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Ingratos

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INGRATOS

SINOPSE
DEDICATÓRIA
A ÚLTIMA PROFECIA
Quando, iludida, às suas origens voltar
O bastardo outros dele irá encontrar
A terra vermelha receberá um parasita
E se em derrota o confronto acabar
Rebobinada será a fita
PRÓLOGO

ma vez que você comete um assassinato e sai impune, se torna muito provável que
você o faça novamente.
Humanos são seres sociáveis. É impossível alguém ser completamente sozinho,
ainda que se sinta assim. Mas o problema dos relacionamentos (sejam eles quais forem) é que
às vezes as pessoas tem con itos com outras; às vezes pessoas querem rejeitar outras e nessas
vezes acontece de elas pensarem: Nossa, como seria mais fácil se fulano simplesmente sumisse.
Não. Talvez esse não seja o problema. Esse não é um pensamento incomum e, a nal de
contas, continua sendo apenas um pensamento.
O verdadeiro problema é quando uma dessas pessoas consegue realmente fazer o fulano
sumir.
Catrina Bryant, infelizmente, entendia bem a sensação.
A primeira pessoa que teve o desprazer de assassinar foi sua mãe, Amaris Bryant.
Ok, essa frase é um pouco escandalosa. Quem mata a própria mãe? Mas talvez seja
importante salientar que nenhuma mulher Bryant vive de maneira prazerosa ou benevolente.
Até Catrina é obrigada a admitir que decerto ela própria é uma poluição humana para o
universo. Embora precisemos admitir: Amaris era mil vezes pior.
A avó de Catrina, Bryana, era egocêntrica ao ponto de decidir que seu nome seria o
sobrenome de todos os seus descendentes. Era uma idosa feiticeira e ardilosa como uma
cobra, vendendo poções e objetos mágicos e passando a perna em qualquer infeliz que
conversasse com ela. Usava a magia pra manter sua beleza eterna e para enriquecer a custo
da felicidade dos outros. No entanto, ela nunca teria feito nada do que fez se não fosse seu
dom especial: ela via o futuro.
E após muitos e muitos anos tirando vantagem disso, Bryana não sentiu nada além de
desgosto quando teve uma lha que não possuía o dom da clarividência. Amaris Bryant era
uma inútil, ela deixou claro muitas vezes. Não havia nada que a própria Amaris pudesse
fazer para mudar a opinião da mãe, aliás.
Amaris não conseguia ver o futuro. Não importa o quanto tentasse ser boa, para sua mãe
esse fato sempre seria o princípio de sua existência. O princípio desprezível de sua existência.
Então Amaris decidiu que ela não seria boa por completo.
E Amaris, por sua vez, não sentiu nada além de desgosto quando teve sua própria lha e
ela nasceu muito mais poderosa que as duas gerações anteriores.
Ou talvez “nada além” seja mentira. Seus sentimentos não se resumiram ao desgosto. Se
sentiu injustiçada, com uma inveja enorme e muito, muito, muito ódio.
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Catrina cresceu sendo mimada pela avó e surrada pela mãe. Obviamente, a combinação
gerada não foi boa: ela passou a vida tentando ser superior a todo mundo, porque mesmo
com toda a sua magia, ainda não era boa o bastante para agradar a mãe.
Ciclos familiares não são lindos?
No meio de sua adolescência, as surras evoluíram de tapas e queimaduras para lições
brutas e falta de comida. Não porque não tinham condições; pelo contrário: as Bryant eram
bem ricas. Mas sim porque, num belo dia de inverno, os sonhos de Catrina sussurraram
sobre o seu futuro: ela seria uma rainha. E claro que nenhum príncipe queria se casar com uma
balofa, né?
— Não pode ser gorda além de idiota, Catrina — a mãe dela sussurrava toda vez que lhe
tomava um doce. — Homens gostam de idiotas, mas de gordas não.
Se Catrina fosse útil pelo menos para agarrar o príncipe de Daynus, Marckson Wyzard,
então não importava para Amaris se ela ia ou não para o hospital por desnutrição.
Um dia, Catrina tivera um sonho. Ela tinha milhões deles, mas era sempre uma cena que
ela estava presente. Esse sonho, contudo, era diferente. Ela visualizava um lugar que nunca
veria com os próprios olhos. Não passava de ashs de uma vida que não era a sua.
Um vestido com a barra rosada, olhos azuis-marinho esperando — ansiando — você se aproximar a
passos lentos. O ambiente era iluminado de forma delicada, em tons quentes, divertidos. Música suave
tocando. Você segurando um punhado de ores e seu coração recheado de uma felicidade quase
completamente plena.
Dentro do sonho, ela soube que era um casamento. Tentou adivinhar quem era a mulher
usando o vestido — a vida de quem ela estava espiando? — quando foi interrompida por sua
mãe, que a acordou acertando sua cara com uma revista.
— Parabéns, sua mula — ela dissera, parecendo feliz enquanto Catrina acariciava a
bochecha ardida. — Deixou que ele escapasse.
Ela pegou a revista e seus olhos sonolentos conseguiram ler, para sua infelicidade:

Fazendo uma careta, Catrina recordara de todas as tentativas (dela mesma e


principalmente de sua mãe) para casa-la com Marck.
Ah, pensou. Então eu estava vendo o casamento dele.
— Durante 25 anos eu te banquei sem colocar nenhum limite — sussurrou sua mãe,
tirando-a de seus pensamentos e tomando a revista com um puxão agressivo. — E é melhor
você aproveitar bem, pois isso acaba no seu próximo aniversário.
Ela tinha apenas 23 anos — o que tornava Catrina ingênua e sua mãe péssima em
matemática — mas, mesmo ali, sabia a 36° lição da vida: quando Amaris Bryant dizia
“chega” era chega.
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Então ela meteu o pé. Aproveitou o dinheiro, como a mãe mandou, e viajou para Newhill,
o reino vizinho. Foi lá que conheceu o príncipe Alexandre II e, depois de poucas semanas, se
casou com ele. Estava apaixonada e feliz. Ainda que um pouco amargurada. Então, se
sentindo a mulher mais poderosa do mundo, enviou para a mãe um envelope que
aparentava carregar um convite para o casamento, mas que na verdade só tinha um bilhete:

“Eu te avisei que seria rainha. A mula foi você por mirar no príncipe errado.”

Foi quando aprendeu a lição 37: Amaris Bryant nunca saia por baixo.
Sua mãe a visitou no palácio de verão, pedindo um milhão de desculpas por interromper
sua lua de mel, e exigiu uma reunião a sós. Alexandre, como sempre o cavalheiro, disse que
iria ao escritório e deixaria a esposa conversar com a mãe. Sua mãe, como sempre a falsiane,
serviu vinho para a lha, alegando estar contente em vê-la. Catrina, burra, bebeu o conteúdo
vermelho.
— Desgraçada! — ela exclamara, cuspindo todo o vinho no tapete caro.
Sua mãe só conseguia rir.
— O que você fez? — Catrina perguntou, a voz tomada de medo porque sentiu, sentiu
quando a magia deixou o seu corpo.
Sua mãe se levantou de onde estava, um sorriso de víbora brincando nos lábios, e disse,
com uma voz doce:
— Tirei seus sonhos idiotas de você. Agora você é como eu, lhinha. — Então seu tom de
voz mudou para algo completamente mortal, vingativo e cruel: — Nunca mais você vai
espiar o futuro. Nunca mais vai conseguir manipular alguém como fez com esse seu
principezinho. Vamos ver como se sai agora.
E Catrina, burra, pensou que caria bem. Que Alexandre a amava e que viveria feliz para o
resto da vida, fazendo sua mãe engolir cada palavra dita quando arrancou dela seu bem mais
precioso: seus sonhos.
E, pelos céus, terei de repetir outra vez: burra.

»◊«

22 anos depois. Fevereiro de 3425.

chuva se lançava contra o vidro da janela quando Catrina acordou. Ela franziu o
cenho para as pernas arrepiadas. Antes, Alexandre sempre a cobria após se
levantar e deixá-la na cama. Mas isso foi há muitos anos, quando ela ainda
acreditava em nais felizes e maridos éis.
A tevê do quarto estava ligada e o som competia com a água violenta que esmurrava a
janela. A imagem na tela era um escritório decorado em tons neutros e sem personalidade.
Havia uma jornalista de cabelo curto e algum pro ssional da saúde usando jaleco impecável.
— Estamos aqui com o Cientista de Magia Natural Jonathan Carvalho — anunciou a jornalista,
com um sorriso. — Sr. Carvalho, cada vez mais aumenta a facilidade de edição de vídeos e fotos. Isso
facilita muito a propagação de fake news a respeito de aparições mágicas. O que o senhor tem a dizer
sobre isso?
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— Obrigada pelo convite, Lilian — O cientista também sorriu. — Então, é importante dizer que
tais aparições são falsas. Qualquer tipo de acesso à magia no geral é de extremo risco a saúde, já que
estamos negociando Energia Vital. Além disso, Magia Proibida tem esse nome por uma razão né. Ela é
ilegal. Então muito cuidado...
Catrina desligou a tevê, irritada por ter gastado tanto tempo procurando o controle. Não
havia nada de novo naquela entrevista: Magia Proibida era perigosa, magia comum havia
desaparecido. Eram dois fatos simples, que de repente haviam se tornado essenciais na vida
da Rainha de Newhill.
Pouco tempo após o casamento de Catrina, houve um terrível pronunciamento. Havia uma
maldição em Minelu. Mas não foi apenas aquele país que foi desgraçado. Não, não. Cada
Anjo e Demônio foi mudado para sempre desde aquele dia nublado em 3403. Pois uma nova
regra foi imposta: um Anjo nunca poderia beijar um Demônio. E o Anjo que desobedecesse
pagaria o preço imposto pela Grande Maldição: a vida.
Catrina era uma Demônia nascida e criada. E felizmente, Alexandre era um Místico. Uma
das dezenas de espécies que fugiram ilesas da Grande Maldição. Os Híbridos (os seres
metade Anjo e metade Demônio) também saíram ilesos.
De qualquer forma: magia havia sumido.
E Catrina se sentiu consolada na época. Seus sonhos foram roubados pela sua mãe; seu
dom mais precioso, perdido. Parecia justo que todas as outras pessoas perdessem os seus
poderes também. Fez ela se sentir... acolhida. Como se de repente o mundo entendesse um
pouco do seu desespero.
Durante 22 anos, ela viveu com essa sensação de conforto. Os poderes quase não lhe
zeram falta. Na verdade, como todos no planeta estavam loucos para saber o que tinha
acontecido com a magia, ninguém se preocupou quando uma ricaça chamada Amaris Bryant
morreu suspeitosamente com gás de cozinha. Para Catrina, a Crise Mágica — como os
cientistas chamavam a total falta de magia — foi até conveniente.
No entanto, matar sua mãe não trouxe seus sonhos de volta.
Durante 22 anos, Catrina dormiu apenas para se afogar no nada. No escuro e terror de sua
mente. O breu sem m e sem começo para o qual ela viajava quando pegava no sono. Então
numa noite fria de Newhill, como qualquer outra de sua vida, ela sonhou.
Devia ter sido um milagre. Mas foi um castigo.
Como sempre, era um vislumbre do futuro, do seu futuro. Um futuro infeliz, amaldiçoado,
maldito. Um futuro desgraçado, aterrorizado pelas façanhas de Alexandre.
Então, quando acordou, após superar o choque inicial, Catrina chegou à conclusão óbvia:
Alexandre era a sua ruína.
E à decisão óbvia: ela precisava dele morto.
Esse é o problema do assassinato: para certas pessoas, ele é incrivelmente prático.
De alguma forma idiota e patética, Catrina soube que, se Alexandre tivesse coberto-a
naquela manhã, ela teria repensado sua decisão. A decisão de tirar sua vida.
Havia pensado um milhão de vezes como seria sua vida sem Alexandre e, no entanto,
nunca especulou nada, nunca ousou, pois Catrina não se casara com qualquer homem.
Alexandre Windsor era o rei de Newhill. E se sua esposa quisesse matá-lo, teria que fazê-lo
com cuidado.
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Imaginou o que aconteceria no dia seguinte, quando a notícia se espalhasse. Pensou o que
diria para seu lho, Henrique, que provavelmente saberia. Saberia que ela en ou veneno na
garganta do pai dele.
Ela se levantou, descartando a imagem e calçando as pantufas. Tomou um banho quente
demorado, expulsando o ar gélido de seus ossos. Em Newhill, era sempre assim: nublado e
chuvoso. Friorento e nebuloso.
Entre às 10:00 e às 11:30, Alexandre tinha uma pausa de vinte minutos que usou para
encontrar Catrina. Ela estava na sala de estar conectada ao quarto, ngindo ler um livro. No
entanto, o que Catrina fazia mesmo era olhar para o jardim. Havia um segundo problema em
sua vida. Que era a construção quadrada que se ergueu ali.
No início da construção — da proeza de Alexandre — ela pensou que era algum gazebo de
concreto, algo que realmente vai num jardim. Mas então a sala ganhou largura e várias janelas
de vidro escuro. Não passava de um retângulo com muitas janelinhas. Algo inocente. Ou
seria algo inocente se a) a construção não fosse projeto de Alex e b) Catrina não fosse
proibida de pisar lá.
Quando questionou o marido, Alexandre alegou que era um camvel. Um lugar para honrar
e rezar para os deuses.
No entanto, não era. Ele devia pensar como a mãe de Catrina: ela era uma mula. Pois
apenas uma mula não notaria que era um centro militar.
Ele construiu a porra de um centro militar no meu jardim, pensou ela, borbulhando de ódio.
Então o rei entrou pela a porta e Catrina voltou a olhar para o livro.
— Minha querida esposa — decretou Alexandre, sorrindo, jovial. — Já de pé?
Ela segurou a resposta ignorante que sua língua formulou.
— Tudo bem? — perguntou, ao invés disso, ajeitando a postura e sorrindo para o marido.
Ele fez uma careta manhosa e se inclinou sobre a poltrona que ela estava, murmurando ao
seu pescoço:
— Tô cansado, amor. Saudades de você.
Ela estremeceu de raiva — de ódio — e torceu para que ele confundisse com desejo. A nal,
Catrina estava apenas de robe, os seios não muito escondidos atrás do tecido fofo.
Ele a beijou nos lábios uma vez, devagar e suavemente, e depois se afastou.
— Desculpa, amor. Meus vinte minutos estão quase acabando e tô morrendo de fome.
Como se tivesse o escutado, um criado entrou no cômodo, pedindo licença e trazendo uma
bandeja enorme cheia de comida. Deixou-a sobre a mesa de vidro e rapidamente sumiu.
Alexandre se sentou numa cadeira próxima e começou a comer. Catrina fechou o livro e o
colocou sobre o colo, olhando para o marido. O cabelo cacheado estava bem curto — era o
único modo de mantê-lo baixo — e a pele marrom escuro estava pálida, quase cinzenta, pois
agora ele vivia dentro daquela construção, sem sinal de sol.
Catrina preparou seu tom de voz doce.
— Alex, querido — disse, apontando para a janela enquanto Endriam, o encarregado de
organizar a proteção do rei, saia daquela sala de planejamento militar. — Me conte outra vez
porque não posso ir até lá.
O marido seguiu seu aceno, e Catrina se lembrou de todos os nomes que ele já ganhou (O
grande e bondoso rei Alexandre de Newhill, protetor dos direitos humanos e pai caridoso e
atencioso) quando algo como preocupação brilhou em seu olhar. E depois sumiu.
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— É um lugar para se redimir com os deuses, querida — ele replicou, reiniciando toda a
ladainha. — Admitir seus pecados e pedir perdão. Meus homens falam coisas horríveis
dentro daquele lugar. Revelam suas almas podres. O que acontece lá dentro não é para seus
ouvidos sensíveis. Em compensação, reformei seu altar pessoal se quiser fazer o mesmo.
Ouvidos sensíveis? Sério?
— Certo, Alex — ela disse, se perguntando, como, como ele conseguiu mantê-la calada,
impassível, por tantos anos.
Mas então outra pergunta se formou em sua mente: quando ela passou a aceitar ser tratada
como uma mula?
— Esquece isso, amor. Aqui. — Alexandre colocou um pratinho no lado dela da mesa, com
um bolo de aparência apetitosa. Ele abriu um sorriso de canto. Um sorriso travesso,
egocêntrico, manipulador. — Pedi que lhe trouxessem isso.
Depois de muitos anos com Amaris en ando os dedos na garganta de Catrina para que ela
vomitasse algum açúcar que consumiu, Catrina criou uma repulsa com doces. Porém, mais
tarde, quando a rainha se livrou do reinado da mãe, Catrina tentou aos poucos voltar a
comer açúcar sem chorar e malhar por horas. Quase nunca funcionava, mas nas raras
excessões, era bolo que ela comia.
Catrina sempre amou bolo.
E, pelo visto, Alexandre se lembrava.
— Obrigada, querido — ela disse, com a voz embargada.
Foi preenchida, de repente, com a visão das suas pernas arrepiadas ao acordar. Antes,
Alexandre a cobria porque era um gesto de carinho. Lhe trazia bolo porque era um gesto de
carinho. Ele lhe fazia cafuné quando Catrina vomitava tudo que comia. Ele lhe dava ores, e
sorria todas as vezes que ela pisava no pé dele, porque todos sabiam que, apesar do esforço
de Amaris, ela era péssima dançarina.
Mas isso foi antes. Antes de Alexandre engravidar uma vadia três vezes. Antes de Catrina
dar à luz a um lho surdo e Alexandre reclamar dos criados, que chamavam sua criança de
“defeituosa”. Antes de todas as vezes que o marido procurou-a na cama e apenas na cama.
Antes de humilhá-la numa reunião, alegando que ela não devia participar de tais debates
políticos.
Antes de Catrina sonhar com o futuro e ver tudo que ruim que ele ainda lhe faria.
E gestos como aquele bolo... No tempo atual, aqueles gestos só apareciam quando era
vantajoso para ele.
Logo, quando Alexandre apareceu no quarto naquela noite, ela não hesitou.
Ela perguntou o que ele fez o dia todo. Ele deu uma resposta evasiva e arrancou seu
roupão, alegando estar cansado, tão cansado...
Ela disse:
— Não cansado o su ciente para apenas dormir, não é, Alex?
Ele sorriu. Nem notou a raiva na voz dela.
— Nunca, querida Cat.
Ela sorriu também. Ele veio pra cima dela, agora completamente nu. Ela empurrou aquele
peitoral de nido, que lhe era tão familiar quanto seu próprio corpo, e perguntou se ele não
queria vinho. Ele disse que queria. Ela o serviu, provocando-o como costumara gostar de
fazer. Ele bebeu, ela bebeu, e eles zeram amor.
— Você me ama, Catrina? — ele perguntou.
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Perguntava isso toda vez. Como se o amor dela fosse uma conveniência, um carinho no
orgulho, que ele não poderia perder.
— Amo — ela respondeu.
Respondia isso toda vez. Porque, apesar de tudo, era verdade.
Um segredo sobre venenos mágicos: eles não agem de imediato. Não, eles matam devagar.
A pessoa consegue fazer uma ou duas refeições depois — Se essa pessoa for Alexandre, três
ou quatro — di cultando todo o processo de descobrir um culpado... Isso se os legistas
descon assem de veneno. O que, se saísse como Catrina planejou, não iria acontecer.
Então, quando Endriam veio até sua sala de jantar anunciar que o rei caiu morto e que foi
tudo um acidente dentro do centro militar, ela disse, aterrorizada, escandalizada:
— Como assim? — Ela caiu de bunda numa cadeira. Enquanto pronunciava as palavras
falsas, um choro verdadeiro lhe fugiu. — Como assim, Endriam? Alex me disse que era um
camvel.
Ele cou em silêncio. Um único pensamento reverberou por Catrina: Alexandre está morto.
E como se isso fosse possível, seu peito sentiu um aperto e um alívio ao mesmo tempo.
Acabou. Seu corpo vibrou essa única palavra. Acabou.
Não sabia dizer se isso era bom ou ruim, se sentia arrependimento ou triunfo, então
chorou. Chorou quando voltou a dizer:
— Um altar para os Deuses, Endriam. Algo inocente! Do que você está falando?
— Sinto muito, senhora. Ele... Ele mentiu. Nós estávamos...
Ele suspirou, parecendo cansado, culpado. Por um segundo, Catrina quase sentiu pena
dele. Mas naquela sala de jantar imensa, enfeitada de roxo e azul, estavam seus lhos. Sua
lha mais velha, Praga. E seu pequeno Henry.
Engraçado não ter pensado em Praga até aquele momento. A verdade é que se preocupou
apenas com Henrique. Não por uma questão de favoritismo, mas sim porque a Praguinha
sentia quase tanta raiva de Alexandre quanto Catrina.
Elas sempre teriam isso em comum, apesar de todo seu passado turbulento.
— O que estavam fazendo, Endriam? — perguntou Praga. Firme. Bruta. Como Catrina
havia ensinado-a.
Não como Amaris. Nunca como Amaris. Mas como uma mãe que nunca aceitaria ver a
lha no mesmo lugar que ela.
O general pareceu envergonhado.
— Estudando magia proibida.
Henrique perdeu o fôlego. Catrina arregalou os olhos e voltou a chorar.
— Minha senhora — prosseguiu o general, se aproximando da rainha. — Eu peço que me
perdoe, peço que...
— Basta — decretou Praga. Como uma verdadeira princesa. — Suma da minha frente.
Deixe mamãe em paz.
O general saiu da sala, assim como todos os criados. Vários segundos, vários minutos se
passaram em silêncio. Os soluços de Catrina eram o único som.
Rapidamente o triunfo superou o arrependimento. Alexandre estava morto. E ela em breve
conquistaria o que era dela por direito.
Então o choro cessou. E só quando reinou o silêncio absoluto, a lha de Catrina disse:
— Escutem. Independente do que meu pai estava fazendo, do porquê ele estava mexendo
com Magia Proibida, vamos deixar os ares de acalmarem.
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Catrina assentiu.
— Vou resolver essa situação, não se preocupem — prosseguiu a jovem. — Mas preciso de
vocês calmos. Ok?
Catrina sabia que ela fazia aquilo pelo irmão, por Henrique. As duas, mãe e lha, fariam
tudo por ele. E as duas, mãe e lha, sabiam disso.
Contudo, os três, mãe e lhos, sabiam que Alexandre não morreu por causa de algum
acidente envolvendo Magia Proibida.
Logo, sobraram apenas Catrina e seu lho na sala de jantar. A comida esfriava, intocada. O
cheiro do fettuccine alfredo ainda enchia o ar. E Catrina olhou para baixo, para o colo.
— Eu só tenho uma pergunta — disse seu lho, sua voz paciente e lenta.
Ele sempre falou assim. Talvez por medo de não ser compreendido. Ela conseguiu arranjar
coragem para encará-lo, e ignorou com todas as forças os aparelhos em seus ouvidos, o sinal
visível e eterno que Catrina havia falhado ao produzi-lo.
Defeituoso. Era o que as pessoas disseram sobre Henrique. Surdo e prematuro.
— Por quê? — ele perguntou.
Catrina não fugiu. Não mais.
Acabou. A palavra cantou de novo. Acabou. Não precisa mais ser fraca. Não precisa mais ser
manipulada, enganada, traída. E de repente, uma nova palavra apareceu, linda, reluzente
como um raio de sol no meio daquele lugar frio. Livre.
Livre. Livre. Livre.
Catrina agarrou aquela palavra e disse:
— Porque o seu pai me atrapalharia a conseguir o que eu quero. E minha vontade de tirá-lo
do caminho era maior do que o amor que sinto por ele.
Henry manteve a expressão imóvel.
— E o que você quer, mãe?
Clarividência. Sonhos. Poder.
Ela não respondeu nada.
— O que você quer, meu lho?
Henry respirou fundo. Só uma vez.
— Quero ouvir sem isso. — Ele apontou para o aparelho auditivo. — Quero magia.
Quero... Não ser indefeso.
Seu coração encolheu, mas Catrina não demonstrou. Passou a vida toda tentando
conquistar as coisas. Conquistar a mãe, conquistar príncipes, conquistar aceitação.
Agora seria diferente. Agora ela passaria a tomar. Tomaria seus sonhos de volta, tomaria o
respeito do seu reino, tomaria o poder que seu lho desejava.
E que os Deuses ajudassem quem estivesse em seu caminho.
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CAPÍTULO 1

ucy Kenblay, a princesa de Astéria, bebericou sua taça com vinho e analisou a
própria situação.
Ela estava fodida. Isso era fato.
Ou formulando melhor: ela teve uma ideia fodida. No nal, a escolha era dela para decidir
se realizava a ideia ou não.
Provavelmente fazer essa decisão — a nal: ir ou não ir? — tomando vinho e ouvindo
clássica não fosse o melhor caminho, mas fazer o quê? Ela também tinha defeitos.
Talvez ela devesse fazer como Deadpool e revisar os fatos desde o princípio para depois
tomar alguma decisão — que com certeza seria a pior saída, claro.
É, parecia uma boa.

Três dias atrás

— Você acha que o livre arbítrio existe ou é uma ilusão social?


Lia Kenblay, irmã mais nova de Lucy, entrou no quarto e se sentou na poltrona lilás que
Lucy usava para pensar.
A decoração do quarto era feita com tons de branco e rosa, então a poltrona se sobressaia,
posicionada perto da enorme janela que cava sempre fechada. Mesmo assim, Lucy insistiu
em car com ela, porque “era o único lugar que conseguia calar os pensamentos intrusivos”.
— Eu primeiro: — Lia declarou — ilusão social. Pura ilusão social.
— Deixa eu adivinhar — Lucy disse, enquanto colocava um post it no quadro que
mostrava seu cronograma até o nal do mês. Não era obrigação dela organizar sua agenda,
mas ela gostava de tudo em ordem. — Sua nutricionista diminuiu o chocolate de novo?
— Não — Lia rebateu, depois repensou. — Na verdade, isso também. Mas o que me irrita
são essas reuniões ridículas. Se o livre arbítrio existisse, eu não deveria precisar ir em tantas
delas.
Lucy se virou, dando as costas para o quadro, e encarou a irmã na poltrona. Sua postura
estava um horror, como se fosse um boneco de pano espreguiçado na poltrona. O braço
direito estava nos olhos, numa pose dramática, e o cabelo castanho-avermelhado começava a
perder as ondas perfeitas da escova.
— A nal, por que elas estão tão frequentes? — a mais velha questionou.
— E eu lá que sei! — Lia exclamou, abrindo os olhos e fazendo um gesto amplo com a mão.
— Eles querem me matar pra colocar o Aidan no trono. É a única explicação.
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Aidan, o terceiro e último irmão, com apenas 17 anos de idade, não queria saber de se
tornar rei, isso Lucy tinha certeza.
O lho legítimo mais velho seria o herdeiro do trono. Essa era a regra. Lucy era a mais
velha (com 22 anos), mas não era legítima, porque era adotada. Sendo assim, o trono era uma
responsabilidade de Lia, que tinha 21.
Infelizmente, a mais dramática dentre eles.
— Essa sociedade machista ainda vai acabar com a humidade, escuta o que eu tô te
dizendo!
Lucy riu.
— Claro, claro.
— Lucy, é sério. Hoje eu virei para o papai e falei: “Olha, eu preciso de uma folguinha. Ou
de um presente bem incrível. O que for mais conveniente pra vocês”.
Lucy se sentou no braço da poltrona, começando a brincar com o cabelo da irmã. Queria
ter o cabelo vermelho como a mãe delas.
— E o que o papai disse?
Lia bufou.
— “Nada de folguinha”.
Lucy pressionou os lábios para evitar rir outra vez.
— Pelo menos ele te deu o presente? — questionou.
— Bom, sobre isso… — Ela fez uma cara de falsa inocência.
— Ai não — Lucy franziu as sobrancelhas e imediatamente soltou o cabelo dela. — Nem
vem me dizer que sobrou para mim.
— Sobrou pra você? É isso que você pensa da sua irmãzinha linda? Que horror! O que eu z
foi um gesto de amor e você aí nessa ingratidão!
Ela se limitou a cruzar os braços e resmungar:
— Hum.
Lia cou ainda mais ultrajada.
— É verdade, tá? Eu falei pro papai que ele podia me fazer um favor e conseguir uma coisa
que você está precisando há um tempão.
— Um diploma? — Lucy chutou.
Lia fez careta. Ai, ai, esses pobres coitados que faziam faculdade, viu.
— Não, tchonga! Tô falando de um documento importante.
— Um diploma — Lucy insistiu.
Lia riu contra a vontade.
— Aff, chata, não! Tô falando de um feitiço.
Lucy descruzou os braços, as sobrancelhas relaxando.
— Um feitiço? Que feitiço?
Esse já era um chute mais difícil. Existia bilhões de feitiços, ainda que nenhum funcionasse.
Magia não era vista no mundo há anos, e explicar o porquê demoraria alguns dias. A questão
foi como uma leira de dominós caindo, onde um problema levava a outro, que levava a
outro e, no m, pareceu tão irreversível que até os cientistas mais importantes desistiram do
caso.
Mas Lucy não era um deles.
Ela estudou que havia para saber sobre tal questão, inclusive a leira de dominós, onde o
primeiro deles era a Grande Maldição. Uma maldição que impedia todo Anjo de beijar um
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Demônio. E o Anjo que ousasse desobedecer pagaria com a vida. A Grande Maldição levou
ao desaparecimento excessivo dos Híbridos, que de repente haviam se tornado uma fonte de
pesquisa sem fundo.
Pois Híbridos, metade um e metade outro, podiam beijar quem bem quisessem.
A parte Demônio deles os tornavam imunes? Por quê?
Era o que todo cientista queria saber.
E de repente o mundo não era mais um lugar seguro para Híbrido nenhum.
Então, um a um, eles sumiram.
O desaparecimento dos Híbridos — o segundo dominó — levou ao Desequilíbrio Mágico
Universal.
Ou seja: existiam dezenas de magias. Dentre elas, existia magia negra, porque existiam
Demônios para carrega-la. Existia magia branca, porque existiam Anjos para carrega-la. Mas
não existiam Híbridos para carregar magia mista, o produto desses dois fatores.
Então todos os outros fatores sumiram também.
Isso era o que os cientistas chamavam de “Crise Mágica”. É, eles não eram um pessoal
muito criativo.
Para resolver a Crise Mágica, tinham que trazer a magia mista de volta. Para trazer a magia
mista, precisam trazer os Híbridos de volta. Para trazer os Híbridos de volta, precisam
quebrar a Grande Maldição.
Isso era o que Lucy queria.
O problema nisso era…
Ela piscou duas vezes, atônita. Não… Não era possível.
Lia sorriu para ela.
— Acho que você entendeu.
Lucy abriu a boca para dizer que a irmã tinha enlouquecido, mas uma batida na porta a
interrompeu.
O sorriso de Lia cresceu.
— Ele chegou! — Ela se levantou da poltrona e correu até a porta.
Ela puxou a madeira pesada e o rei de Astéria, Wilson Kenblay, sorriu para as lhas.
— Minhas queridas mulheres — cumprimentou. — O que vocês não me pedem chorando
que eu não faço sorrindo?
— Querido papai, princesas não choram — Lia disse, beijando a bochecha dele. — E acho
que o ditado é ao contrário.
Lucy se levantou enquanto o seu pai se aproximava.
Ele estendeu alguns papéis, segurados por um clipe.
— Aqui está. — Ele abriu um sorriso gentil. — A chave para o seu momento eureka.
Ela encarou os papéis, o pai, e a irmã, que também sorria. Depois refez esse processo duas
vezes antes de respirar fundo e pegar os papéis.
Ela abriu a primeira folha em branco e encarou a caligra a redonda e bem feita.
O feitiço da Grande Maldição

O Momento Eureka - Agora


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la só precisou de três dias com o feitiço para descobrir o que precisava fazer.
Havia trechos que revelavam demais, para o azar de quem a lançou. Os versos eram
extensos, bem divididos e a resposta estava camu ada entre palavras suaves.
Mas não escondidos o bastante. O segredo estava aqui:

O castigo será, en m, rompido


Quando não pagar pelo ato proibido

Com isso resta a pergunta: o que é, a nal, o ato proibido?


Um beijo. Claro.
Ou talvez não. Esse era o problema dos feitiços: eles nunca usavam o óbvio. Gostavam do
conotativo e das metáforas.
Então Lucy analisou todos os Anjos e Demônios que conhecia.
E estava bem ali. Bem debaixo do seu nariz. A solução de tudo.
Após obter a solução dos seus problemas, outra pergunta surgiu na mente dela: qual a
primeira coisa que você faz após fazer a maior descoberta do seu século?
Resposta: você senta na sua poltrona lilás, abre um vinho suave e coloca música clássica
para tocar.
Outra pergunta: qual a segunda coisa que você após fazer a maior descoberta do seu
século?
Resposta: liga para a sua melhor amiga
E pergunta:
— O que anjos e demônios nunca são uns dos outros?
— O quê?
E repete:
— O que anjos e demônios nunca são uns dos outros?
Melina, sua melhor amiga e parceira na sala de aula, cou quieta. Era uma loira linda, alta,
inteligente e esforçada. Gostava de ler romances melosos, ouvir músicas calmas e ver todo
tipo de lme. Isso, claro, quando não estava estudando. Ela gostava de histórias com grandes
plot twists, e talvez por isso cou pensando em alguma resposta mirabolante.
Enquanto ela re etia, Lucy cou pensando que a cultura pop estava certa quando fazia as
pessoas acreditarem que momentos eureka são mágicos.
Mas os lmes não contaram que eles também eram apavorantes.
Porque agora que tinha uma solução para os problemas, Lucy deveria deveria decidir se
colocaria, ou não, a solução em prática.
Ela ainda não havia conseguido nenhuma resposta, então foi obrigada a perguntar pela
terceira vez:
— O que Anjos e Demônios nunca são uns dos outros?
— Não sei, Lucy! — gritou Melina do outro lado da linha. — Que saco.
Ela revirou os olhos. Quando queria, Melina era delicada como um coice de mula.
— Amigos — Lucy disse. — Anjos e Demônios nunca são amigos.
Melina cou em silêncio, como se absorvendo sua fala.
— Eles se odeiam ou tem medo uns dos outros por razões óbvias. Ou até sentem atração
um pelo outro, mas nunca são amigos — Lucy continuou. Depois começou a tagarelar porque
estava louca com a ideia: — Em 3374, vinte e nove anos atrás, o Tratado de Paz entre Daynus
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e Astéria prometeu amizade e companheirismo. Mas o feitiço da maldição usa palavras como
“duelo”, “ódio” e “confrontos”, que são o contrário de amizade.
Mais um momento de silêncio. Lucy conseguia sentir Melina se lembrando das aulas de
história. Em 3374, Astéria, o reino dos Anjos, e Daynus, o reino dos Demônios, entraram em
trégua, nalizando as guerras. Os reinos a rmaram iniciar um tempo de companheirismo,
contudo, com a Grande Maldição, isso se tornou impossível.
— Lucy — disse Melina, a voz calma. — Devagar. O feitiço da maldição? Como você conseguiu
isso?
De tudo que ela disse, Melina só prestou atenção naquilo?
— Não importa! — Lucy abanou a mão, como se a amiga pudesse vê-la. — O importante é:
Durante todos esses anos, a gente acreditava que a maldição impedia um beijo, mas não é
isso que ela proíbe. Você ainda pode beijar um Demônio, se quiser. Mas Anjos nunca se
tornam amigos dos Demônios, porque o que a maldição proíbe é que con emos um nos
outros.
— Conclusão?
Lucy sorriu.
— Para quebrar a maldição, um Anjo e um Demônio precisam ser amigos. E a amizade
precisa durar mais tempo que o ódio e o con ito.
— Então… — Melina fez uma pausa. — Como estamos em ódio e con ito por 21 anos, temos que
fazer uma amizade durar por 22 anos?
Seu sorriso cresceu um pouco mais, o orgulho in ando seus pulmões. Não conseguiu
evitar.
— Exato!
— Mas isso é impossível.
— Eu sei. Por isso eu acho que é a resposta. Quanto mais tempo de ódio se passa, mais
tempo de amizade teríamos que conservar para quebrar o feitiço. Ou seja: quanto mais
tempo se passa, mais improvável se torna que a Grande Maldição se quebre.
Ela ouviu Melina suspirar. Ela sabia que fazia sentido, mas estava relutante.
Parecia tão… patético. Estupidamente patético. Uma maldição que tirou milhões de vidas
sendo quebrada com algo tão idiota como a amizade.
Mas, parando para pensar, será que quem fez o feitiço não pensou exatamente nisso?
Melina continuou colocando os contras na mesa:
— Amiga, a gente nunca teria permissão pra fazer amizade com um Demônio. Eles são malignos.
Podem matar a gente com um simples beijo. Você tá entendendo?
Lucy respirou fundo. Imaginou que haveria certa relutância com sua ideia (frase usada
com excesso de eufemismo). Anjos não con avam em Demônios por causa do medo.
Nenhuma pessoa quer ter um beijo roubado e, logo em seguida, desaparecer para sempre. E
os Demônios que eram bons, aqueles que não iriam machucar outras pessoas de graça, se
afastaram por autopreservação.
No entanto, era isso que tornava a ideia dela tão convicta. Anjos e Demônios viviam
separados pois esse era o efeito maldição. E, se Lucy estivesse certa, quebrar esse efeito era
quebrar a maldição.
Então ela controlou sua empolgação, a parte louca de sua mente que implorava que ela
agisse, e disse, mais calma:
— Lina, eu sou uma princesa. Ninguém seria maluco o su ciente pra me matar.
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Havia outras questões também, claro. Numa medida protetiva, o governo facilitava para os
Anjos o processo de trocar de identidade. Muita gente usava esse recurso para proteção
própria (um Demônio não pode te atacar se pensar que você também é um Demônio), mas
também haviam os Anjos que usavam para objetivos ilegais. Muitas vezes, a troca de
identidade facilitava para algum foragido, imigração ilegal… Você poderia até mesmo acusar
um Demônio de quem você guarda rancor… As opções eram inúmeras.
Então, como Anjos eram mortos de maneira injusta e Demônios eram acusados e presos de
maneira injusta, a sociedade havia voltado para uma vivência quase primitiva. A maioria dos
Anjos se mudou para Astéria, seu Estado de origem. Assim como os Demônios voltaram
para Daynus. E a minoria que cou não era tratado de maneira muito agradável. Qualquer
Demônio que morava em Astéria era muito temido e evitado por todos. Em contrapartida,
qualquer Anjo que morava em Daynus, era recebido com muita hostilidade.
Lucy, como princesa Anja, assustava qualquer Demônio que ainda vivia no reino dela.
Ninguém queria ameaça-la. Ninguém ousaria ameaça-la.
Por isso, ela prosseguiu:
— Além disso, iremos fazer amizade com um Demônio que, se ele fosse maluco o
su ciente para me beijar, isso o levaria à ruína.
— Hm… Exemplo?
— Digamos que eu vire amiga de uma atriz daynusiana muito famosa. Se ela fosse maluca
de pedra e me beijasse, isso acabaria com a carreira dela. Conclusão: ela pensaria duas vezes
antes de fazer uma coisa dessas. E — ela acrescentou, antes que Melina abrisse a boca — se a
pessoa fosse maluca de pedra, a gente saberia, Lina.
— Ok, posso aceitar isso. Mas nessa lógica, se a gente fosse virar amiga de um Demônio… Quem
seria?
O quarto caiu num silêncio sem m. De repente Lucy notou o que sua ideia implicava: ser
amiga de um Demônio. Não por cinco minutos ou por uma semana, mas por vinte e poucos
anos. Como posso fazer uma coisa dessa? — Em contrapartida ela sabia, sim, que grande
parte do medo que tinham era apenas colocado em suas cabeças. Temiam Demônios para
manter distância. Mantinham distância para carem seguros. Mas esse tipo de pavor não era
também uma espécie de fraqueza?
Temer tanto a ponto de não conhecer Demônio nenhum. Temer a ponto de nunca
experimentar. Temer a ponto de não enfrentar. E, nessa lógica, se você escolhe todo dia não
enfrentar um problema, isso não é covardia?
Vivendo daquela forma, os Anjos eram protegidos e sensatos, sim. Mas, talvez, também
fossem fracos e covardes.
Ela encarou a taça de vinho e acusou-a mentalmente por seu súbito estado losó co. Então
uma voz soou no ambiente:
— O príncipe Félix.
Seu coração quase saltou para fora da boca. Lucy se virou sabendo quem era, fazendo uma
cara de repreensão para Lia. A irmã entrou no quarto e se jogou na cama, fazendo as cobertas
farfalharem baixo.
— Você não deveria estar em alguma reunião? — perguntou Lucy, franzindo os lábios.
Lia deu de ombros, colocando os pés em cima de uma almofada.
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— Eu fugi e vim ouvir suas conversas. — Ela abriu um sorriso travesso, os olhos castanhos
brilhando. — Quer dizer que você descobriu como quebrar a maldição? Eu sabia que
conseguiria.
Do jeito que Lia disse, parecia que Lucy descobriu que azul mais amarelo dá verde.
A irmã sempre teve essa crença cega que Lucy conseguiria, uma crença que a própria Lucy
não conseguia ter. Talvez ela passasse a vida inteira se perguntando se a visão de Lia era
mais realista ou apenas mais fantasiosa.
— O que ela disse sobre o príncipe? — a voz de Melina soou em seu ouvido. Lucy quase havia
se esquecido que estava em ligação com a amiga. Ela ligou o viva-voz e colocou o celular no
braço da poltrona. — Sério, que tem o príncipe?
— Se a Lucy tem que fazer amizade com um Demônio — Lia disse —, por que não vai para
Daynus e bate papo com o príncipe? — Vendo a expressão da irmã Lia acrescentou: — Você
pode dar uma desculpa como: “É um encontro pra assegurar a boa convivência entre os
reinos”. A galera adora esse tipo de coisa. A rainha Diana não é cientista? Diz que foi pra
fazer uma entrevista pro seu TCC, sei lá. Inventa.
Mas, contrariando toda a sua empolgação anterior, Lucy sentiu de repente que ia vomitar.
Uma coisa era fazer amizade ali, em Astéria, em casa. Outra, completamente diferente, era ir
para Daynus. Ir e, pior, conversar com o príncipe Félix. Com a mãe dele.
— Me parece uma boa ideia — disse Melina, nalmente se dando por vencida. — Mas se for
apenas uma visita, Lucy não ia ter tempo pra conhecer a família Wyzard. Eles não iam con ar nela e aí
seria perda de tempo.
Lia fez uma careta.
— Verdade. Ela precisaria de uma desculpa pra car por lá.
— E pra me levar — Lina acrescentou. — Porque nem fudendo vou perder isso.
— Calma, vocês duas — Lucy interrompeu.
Era muito fácil ir ditando as coisas sem pensar nas consequências. Ela tinha muitas
responsabilidades ali. Havia os eventos, as reuniões que ela deveria participar, as aulas
extras, a faculdade…
— Meus Celestes! E a faculdade? Não posso fazer aula online! Eu detesto.
Então ela subitamente arregalou os olhos quando Lia deu um pulo para fora da cama.
— É isso, Lucy! — Havia um sorriso enorme em seus lábios. — Você pode estudar em
Daynus! Como numa espécie de intercâmbio. O Winnts tem um dos melhores cursos de
Ciência Mágica do país. Cria um projeto para levar alguns alunos, pra provar que Anjos e
Demônios ainda podem viver em sociedade e no ambiente escolar. Usa umas palavras
chiques. As pessoas topariam uma coisa assim pra te agradar.
— Mas eu não quero que as pessoas concordem com as minhas ideias para me agradar —
Lucy protestou, fazendo careta. — Quero que concordem com minhas ideias porque elas são
importantes. E Anjos e Demônios estudando juntos…
A ideia era insana. Em 3404, mais ou menos um ano após a Grande Maldição, o primeiro-
ministro Nayan Ward, acompanhado da rainha de Daynus e do rei de Astéria, assinou uma
lei que proibia Anjos e Demônios de frequentarem os mesmos colégios, faculdades, ou
qualquer tipo de ambiente escolar. Estudantes mais velhos, que tinham amigos e até
namorados da espécie oposta, protestaram com muito barulho. Mas no m, a justiça pendeu
para a segurança dos mais jovens, que ainda estavam descobrindo o toque físico e não
tinham maturidade para lidar com a situação.
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Contudo, Lucy tinha 21 anos… E estudantes do Winnts também estavam nessa faixa
etária… Logo, esse argumento não valia mais. Pelo menos não nesse caso.
— É loucura. — Lucy pressionou os lábios. Sempre fazia isso quando queria evitar sorrir
— Mas possível — Lia retrucou.
— Totalmente possível. — Então não aguentou mais: deixou o sorriso surgir.
— Anjos e Demônios convivendo na mesma instituição — Melina comentou. — É. Parece
polêmico. Amo. Quando a gente vai mesmo?
— Eita, calma aí, louca. — Lucy ergueu a mão e começou a contar: — Primeiro a gente
precisa formalizar a proposta, acrescentar um ar argumentativo… Depois preciso conversar
com o advogado da família…
Lia fez cara de vômito.
— Eca, burocracia.
— E só depois eu posso apresentar o projeto ao Parlamento.
— Jesus, que trabalheira. Lucy, meu bem, você tem certeza que tá valendo a pena? Não tem alguém
por aí pra dar uma quarta opinião sensata?
— Na verdade… — Ela abriu um sorriso e depois gritou: — Fernanda!
A porta se abriu um segundo depois, revelando uma mulher esbelta de terno preto.
— Sim, Alteza?
Lucy decidiu jogar a bomba de uma vez:
— Precisamos ir até Daynus para fazermos amizade com a família Wyzard em prol de um
bem maior. Você acha a ideia sensata?
Fernanda sorriu. Era um gesto raro para ela. Como segurança pessoal da princesa, estava
sempre com o rosto fechado.
— Talvez você devesse nomear a ideia, Alteza. Burocratas gostam de nomes pomposos.
— Eita, calma aí — Lia protestou. — Burocratas virgula, minha lha!
— Diversidade em Ação — sugeriu Melina, soltando uma risada.
Lia disse:
— Vou repetir: eca.
— Tem que ter asas — Fernanda sugeriu. — É um detalhe visual de fácil acesso.
Então Lucy disse:
— Asas Sem Fronteiras.
Um curto momento de silêncio tomou conta do quarto, então todas abriram um sorriso.
Estava decidido.
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CAPÍTULO 2

élix ignorou o riso de Daniel enquanto resmungava. O carro estacionou debaixo das
tendas azul-gelo, quase como neve.
— Irritado, Vossa Alteza? — Daniel provocou, sorrindo com os dentes perfeitamente
brancos.
— Cala a boca.
Alguém abriu a porta do carro e Félix saiu enquanto ajustava o terno outra vez. Ele
agradeceu com um aceno de cabeça e tentou manter uma expressão neutra. Apesar do sol
que brilhava e do tempo agradável, o príncipe de Daynus estava com um péssimo humor.
Isso signi cava que era um péssimo momento para encontros políticos.
— Quem foi o idiota que decidiu que trazer a princesa anja asteriana para esse lugar cheio de
demônios podres era um boa ideia? — ele murmurou para Daniel. O amigo já era seu
segurança há anos e por isso não teve di culdades em seguir seu passo apressado. Atrás do
dois seguiam outros seis homens, observando cada passo.
— A própria princesa anja asteriana, senhor — Daniel respondeu. Estava se divertindo
muito naquela manhã. — Vossa Alteza Lucy Kenblay Astley Mar…
— Eu sei a porra do nome dela.
O segurança riu baixinho. Félix detestou por um segundo a intimidade que tinha com ele.
Agora eles andavam a céu aberto no aeroporto, onde a pista de aviões recebia outros
veículos. A maioria voos nacionais. Pessoas desembarcavam a metros e metros de distância,
uma vez que aquela pista toda foi isolada para receber Vossa Alteza Lucy Kenblay Astley
Ninguém-Se-Importa.
Félix soltou um suspiro. Seu mau humor não era culpa da princesa. Ele teve uma péssima
manhã. Lyra — a sua irmã mais nova bocuda e insolente — tinha mexido no seus papéis
pessoais e depois jogou na cara dele que sua pesquisa não estava indo pra lugar nenhum.
No m das contas ele e Lucy até tinham algo em comum: ambos eram cientistas mágicos. E
magia, como todos sabiam, não era vista nesse mundo há anos. Pelo menos não pela a
maioria deles. Porque o que ninguém sabia era que Félix Wyzard tinha, sim, magia.
A pesquisa dele existia para descobrir o porquê.
— Aqui já está bom, Vossa Alteza — Daniel informou baixinho.
Eles pararam no meio de uma estrada enorme, em frente a um avião branco, com detalhes
em verde, amarelo e vermelho. A bandeira de Astéria. Muitos outros seguranças — também
asterianos — se posicionam à frente dos dois. Ao redor havia uma ta amarela escandalosa
isolando toda a área, onde estava a imprensa, com suas centenas de câmeras apontando na
sua direção. Félix sorriu e acenou uma vez para todos eles, depois manteve o rosto
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cuidadosamente neutro. Diferente da mãe, ele não se incomodava tanto com as câmeras em
excesso.
Fazia um ano agora (talvez dois) que Félix decidira investigar a origem de sua magia. Já
conseguia controla-la, entender as nuances do poder, suas características e falhas e
qualidades. Voar havia se tornado sua atividade favorita, sua terapia grátis. No entanto, não
bastava saber fazer o que ninguém mais conseguia. Precisava entender porque era o único na
sua família, no seu colégio, no seu reino, que tinha acesso à magia.
Félix estudou sobre a origem mágica, de onde vinha a magia e para onde ela foi há 21 anos.
Entendeu que a magia não havia "desaparecido". Não, a magia ainda estava ali, na terra, no
ar, nas árvores e dentro deles. Mas o universo estava em desequilíbrio, a extinção dos
híbridos causou isso. E isso os impossibilitava de acessa-la. No entanto, Félix conseguia.
Então a pergunta que cou foi: Por que algumas pessoas conseguiam acessar a magia e outras
não?
E para além disso: existiam outras pessoas que conseguiam?
— Como você acha que ela é? — Daniel perguntou de repente. — A princesa.
— Chata — ele respondeu, mas não estava pensando na questão direito. — Ou gentil e
doce demais, a ponto de você querer calar a boca dela com super bonder. As anjas não são
todas assim?
Félix ajeitou a gravata. Daniel fez um som que reprova minha fala preconceituosa.
Enquanto isso, uma equipe do aeroporto trazia uma escada móvel gigante, que se encaixava
na “porta” do avião.
Ele nunca encontrou alguém com magia. Alguém como ele. Procurou em pessoas da
mesma árvore genealógica e com o mesmo tipo sanguíneo. Ele havia encarado a situação
como uma alteração genética (como uma mutação ou uma variação no DNA). Lyra caria
surpresa com a quantidade de anomalias genéticas que Félix estudou nesses dois anos. Ou a
quantidade de vezes que analisou seu próprio sangue. E outras coisas. Tudo isso e mais um
pouco levou-o a…
Nada.
— O que sua mãe falou sobre a pesquisa? — Daniel perguntou, provavelmente
adivinhando de onde vinha o seu estresse. Precisava arrumar um nome melhor que
“pesquisa”. Algo sem sentido mas foda ao mesmo tempo, como o Henry Mills faria.
— Ela criticou a minha linha de raciocínio. Magia está sim ligada com genética, tanto que
alguns dos meus poderes são típicos dos Wyzard, mas minha mãe acha que é algo mais…
abstrato. Sei lá. Talvez eu deva “voltar ao início”, como a tia Darlee mandou eu fazer.
— Ah — Daniel disse. — Meus Deuses.
Ele franziu a testa, prestes a encarar sua expressão chocada.
— Ela é gostosa.
Então Félix acompanhou seu olhar e percebeu que, sim, a princesa Lucy Kenblay Astley
Pra-Quê-Tanto-Sobrenome? é linda mesmo. Será que era por isso que todo mundo estava
amando a ideia de ela passar um tempo ali?
Ela desceu a escada como se fosse o primeiro-ministro. Estava usando um vestido de renda
branco que por alguma razão não era sexy, mas elegante e adequado. Na verdade, tudo nela
era assim. Até o aceno que ela ofereceu para os pobres infelizes ao redor, hipnotizados com o
sorriso de anja asteriana dela.
Félix achava que era um deles.
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Ela parou na frente dele e então ele notou com mais nitidez o cabelo castanho solto e os
olhos.
É impressionante vivermos num mundo sem magia e ainda existir esse tipo de coisa sobrenatural.
Os olhos dela eram roxos.
Ela abriu outro sorriso e ele percebeu… Deuses, ele percebeu tarde demais. Félix estava
certo.
Ela era gentil demais.
— Olá, Vossa Alteza. — Ela estendeu a mão.
— Olá, princesa Lucy — as palavras saíram da boca dele de forma quase ensaiada. — É um
prazer recebê-la em nosso reino.
— O prazer é todo meu.
Ele apertou a mão dela. Era o primeiro aperto de mão entre realezas daynusianas e
asterianas em anos. Décadas, aliás. Era um símbolo histórico, registrado por dezenas de
fotógrafos e jornalistas de todo o país.
A ironia estava no fato que foi a maior burrice da vida dele, porque quando tocou a pele
dela, Félix nalmente entendeu porque ela era tão… fascinante. Não tinha nada a ver com o
físico bonito ou os olhos incríveis. Não tinha nada a ver com algo que se pode ver. Mas
quando ele tocou nela… conseguiu sentir.
Conseguiu sentir a magia dela.

»◊«

pai de Félix tinha contado sobre isso. Ele disse que antes — antes da Crise Mágica
e antes da magia ser varrida da vista de todos — as pessoas costumavam sentir a
magia dos outros. Isso serviu como uma espécie de sexto sentido. Mas agora Félix
se perguntava como todas as pessoas aguentavam sentir a magia de todas as pessoas, porque
ele de nitivamente não aguentava a de Lucy.
Era como um brilho esverdeado, fosco e transparente. Uma energia azul escuro que
utuava ao seu redor. Uma estrela, branca e quente, que espalhava pequenos choques
quando ele se aproximava.
Celestes, ele queria toca-la de novo.
Ok. Isso era um problema.
— Algum problema, Vossa Alteza? — Daniel murmurou, logo atrás de Félix, como sempre.
Eles estavam caminhando para a saída do aeroporto. Ao lado de Félix, enchendo Lucy de
doces bobagens políticas, estava seu agente e amigo da família: Sullivan Collins. Sully era
muito persuasivo quando queria.
— Nenhum — Félix murmurou de volta.
— Parece desconfortável — Daniel insistiu.
E eu estou.
— Estou bem.
— Eu sinto muito pela visita apressada — a princesa disse, sorrindo para Sully. — Eu senti
que um projeto como esse deveria ser feito para provarmos que ainda resta uma parceria
entre nossos reinos. A ideia me veio como um trovão e imagino que vocês saibam como é
quando uma cientista en a algo na cabeça.
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Sully riu e Félix até abriu um sorriso. A mãe dele — e rainha daquele lugar — era uma
cientista obstinada, então claro que todos conheciam seu jeito teimoso. O príncipe havia
puxado isso dela, junto com a sua mania incurável de fazer listas.

SOBRE VOSSA ALTEZA LUCY KENBLAY ASTLEY MARSHABELL

1. Era gentil demais (será que Daniel tinha super bonder com ele?)
2. Tinha magia (!!!)
3. Tinha um senso de humor razoável
4. O último nome era uma mistura de Marsha e o Urso com Tinker Bell (e sim, ele achava
isso digno de nota e muito esquisito)
5. Tinha “FRUTO PROIBIDO” escrito na testa.

Esse último item se devia ao fato de:


Lucy = Anja
Todos os Homens Naquela Parte do País = Demônios
Lucy + Qualquer Homem Naquela Parte do País = Bibbidi-Bobbidi-Boo!
A diferença era que, em vez de ratinhos virando cavalos, a princesa viraria poeira.
E claro que Félix havia pensado em Tinker Bell e Cinderela num intervalo de cinco minutos.
Ele era uma eterna criança Disney e os incomodados que se retirassem.
Aliás, a fada preferida dele era a Rosetta. Mas teve um crush na Silvermist porque,
obviamente, fadas da água são atraentes.
De qualquer forma, por ser tão vulnerável, a princesa Lucy devia ser protegida, e por isso
ela andava com tantos seguranças quanto ele, embora tenha uma bem na sua cola,
exatamente como Daniel. É uma moça de terno, a pele negra luminosa e o cabelo crespo
preso num coque apertado.
— O nome dela é Fernanda — Daniel sussurrou à medida que eles caminhavam. — Parece
que é nova no cargo, mas a princesa con a muito nela.
Félix devia demitir Daniel pelas fofocas.
Ou talvez Daniel ainda esteja em seu cargo por causa das fofocas.
Sinceramente, escolher entre as duas opções mostraria um desvio de caráter que Félix não
queria admitir que tinha.
— E quanto tempo você pretende car, Vossa Alteza? — Sully perguntou, delicado.
A princesa sorriu.
— Acredito que até julho, quando poderemos partir com mais tranquilidade. Eu acho que
até aí iremos conseguir estabilizar a amizade Kenblay e Wyzard outra vez. A não ser que
minha estadia seja um empecilho para o senhor, Vossa Alteza.
Félix sorriu, achando graça. Quando comentários assim apareciam, ele sempre se
perguntava: qual seria a reação das pessoas se dissesse sim, por favor vá embora?
Ele deixou o pensamento intrusivo de lado.
— Claro que não. Vocês todos serão muitíssimo bem-vindos aqui e no Winnts, sem dúvida.
A expressão de Lucy cou cheia de gratidão.
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— É um alívio ouvir isso — a voz dela se tornou mais discreta. — Admito que com a
recente morte do querido Rei Alexandre eu temi que as casas reais parecessem… abaladas,
então me pareceu o momento correto para um projeto como o Asas Sem Fronteiras.
Ele trocou um side eye com Daniel. Número seis da lista: Lucy K. A. M. é inteligente.
O Asas Sem Fronteiras — o projeto da princesa — era um pouco absurdo. Ela apresentou a
ideia para o Parlamento há uma semana, explicando que levaria uma certa quantidade de
alunos anjos para estudar no Winnts, um colégio/faculdade com alunos em sua maioria
demônios. Normalmente o projeto teria tudo para ser rejeitado — adolescentes que não
podem se beijar nos mesmos dormitórios é uma ideia de jerico.
Mas a morte do Alexandre mudava tudo. O Parlamento precisava mostrar para o país que,
mesmo sem um dos reis mais in uentes, a realeza não está enfraquecida. Porque todos
sabemos que a realeza é a cara de sua nação.
Félix sabia de tudo isso porque sua mãe contou. No nal, ele ouviu tudo em silêncio e
depois pensou: a nal, por que o Parlamento precisa de uma imagem forte? O luto nacional
pela morte de Alexandre não é comum? Natural até?
Mas as reuniões do próprio Parlamento vinham ocorrendo com mais frequência. Ele via
como seus pais estão cada vez mais ocupados. Então ele se perguntou o que está
acontecendo.
E se perguntou o que o reino de Astéria tinha a ganhar com o Asas Sem Fronteiras.
A nal de contas, por que a princesa Lucy está em Daynus?
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RASCUNHOS
NÃO
OFICIAIS
(TEPs)
CAPÍTULO ❓

INGUÉM PRECISOU CONTAR PARA A garota que a conversa iria ser séria quando,
receosa, a babá chamou por ela. A nal, se fosse uma notícia comum, corriqueira,
por que os pais de Lucy não poderiam contar ali? Na frente dela e dos irmãos?
Não. Era algo diferente. Que precisava ser dito só para ela. Teve ainda mais certeza quando
os criados a encararam com receio (mais do que o comum). Era algo diferente. Lucy era
diferente. Ela sempre soube disso, mesmo quando criança. O cabelo castanho e vivo não
tinha as notas quentes e vermelhas como o de sua mãe e os olhos — os malditos olhos —
eram quase sobrenaturais.
As pessoas têm olhos coloridos em Newhill, a babá dizia para a menina.
Mentira, Lucy queria retrucar. Você só fala isso porque nunca vou pisar em Newhill.
Mas princesas não retrucam.
— Filha, oi! — exclamou a mãe dela quando ela entrou na sala de estar, acompanhada da
babá, que logo foi embora. — Sente-se aqui.
Princesas obedecem e princesas não reclamam.
Lucy se sentou em silêncio.
Ellie, mãe de Lucy, era a rainha de Astéria — um dos três reinos que preenchiam o mapa
daquele país chamado Minelu. Daynus era o maior, Astéria perdia por pouco e Newhill
cava em desvantagem na questão do tamanho, ainda que fosse o vencedor no assunto
“infraestrutura” e “comércio”. Daynus era o berço da política e da arte (a casa do primeiro-
ministro cava na capital de lá) e, por m, Astéria era conhecida por seu avançado
conhecimento cientí co, aplicado principalmente na área da saúde.
Astéria a casa dos Anjos. Daynus a casa dos Demônios. Newhill a casa de ninguém-se-
importa. Sempre foi assim e sempre iria ser.
O pai de Lucy, Wilson Kenblay, era o portador do sangue real. Ele casou com Ellie por
conveniência (ou é o que dizem), mas se tornou visivelmente apaixonado por ela. Ele
compartilhou o seu precioso sangue azul com a lha que eles tiveram logo depois, a linda
Lia.
Que, como podemos ver, não era a Lucy.
— Por que estamos na sala da vovó? — perguntou ela, olhando ao redor.
Era um lugar so sticado e organizado de forma que parecia minimalista, ainda que muito
elegante e limpo. Tudo estava muito bem iluminado, a mobília estofada era de um branco
amarelado e as paredes tinham uma pintura delicada em tons de azul; ondas e ores. Era a
sala de estar da vovó Angela. Todos sabiam disso.
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— Precisamos conversar uma coisa bem séria — seu pai anunciou, se sentando no sofá ao
lado da esposa.
— Eu sei disso — Lucy respondeu, soando quase como se contestasse.
Sua mãe ergueu as sobrancelhas.
— Sabe? Que bom. — Havia um sorriso gentil em seus lábios quando ela respirou fundo.
— É uma coisa que queríamos te contar há um tempo.
Lucy assentiu.
Sua mãe prosseguiu, sempre falando muito devagar. Ela sempre falava assim: como se
detestasse não ser compreendida.
— Há alguns anos atrás… Quando o papai e a mamãe decidiram que iam se casar… Nós
queríamos alguém bem especial para fazer companhia pra gente.
— Isso — Will concordou, também abrindo um suave sorriso. Ele tinha o melhor dos
sorrisos, porque eram completamente sinceros. — E decidimos que íamos escolher esse
alguém pra fazer parte da nossa família, entende? E… você se lembra quando me perguntou
porque os seus olhos são roxos?
Lucy os encarou com os enormes olhos citados. O pai agora olhava para a esposa,
procurando apoio. Ellie apertou a mão do rei num pedido silencioso para que ele
continuasse.
Então Lucy disse:
— Eu sou adotada.
Seus pais arfaram, surpresos, mas Lucy Kenblay Astley Marshabell era assim: simples e
prática. Ainda com a bagunça de sentimentos que poderia sentir, havia coisas para ela que
eram inegáveis. Simples fatos que existiam e que deveriam ser aceitos.
Ela era adotada.
Ela era uma Anja e, portanto, podia morrer se algum Demônio a beijasse.
Ela queria trazer a magia de volta.
Ela faria qualquer coisa para isso.
E ponto.
Porém aí algo estranho aconteceu. Seu pai perdeu completamente a postura. Soltou uma
risada afável, quase desesperada, e passou a mão pelo cabelo, encarando a lha mais velha
como se ela fosse um animal de espécie desconhecida. Ele estendeu os braços e puxou a lha
que estava na cadeira de frente ao sofá para seu colo.
— Ai, pai! Socorro, mamãe!
Mas a rainha não fez nada para salvar a lha do ataque de cócegas.
— Você, Lucy Kenblay, é a menina mais esperta do planeta! — o pai exclamou, enquanto
fazia a menina se contorcer de um lado para o outro.
— Para! Para! — ela pediu entre as risadas agudas. — Por favor! Eu me rendo!
Will tirou os dedos das costelas da lha, que tomou fôlego e olhou indignada para a mãe.
— Mamãe! — brigou. — Você nem me ajudou!
Ellie deu um inocente dar de ombros, fazendo uma expressão exagerada quando disse:
— Mas, meu amor, eu sou inútil contra um homem desse tamanho!
Lucy bufou. Depois encarou o pai:
— Eu sou realmente a menina mais inteligente do planeta?
Ele assentiu, abrindo um sorriso com muito con ança.
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— Você é. Eu soube disso desde que peguei você pela primeira vez. Você tinha esse
tamanhinho aqui.
— Isso é muito pequeno — Lucy comentou. — Vocês me acharam no lixo? O lho da
Senhora Tati disse que o irmão dele foi achado no lixo.
Sua mãe arregalou os olhos e o pai urrou:
— Claro que não! — Então, lançando um olhar tenso para a mulher, acrescentou: — O lho
da Senhora Tati precisa manter distância dessa casa. — Ele encarou a lha com uma
seriedade quase inédita, pronunciando as palavras como Ellie fazia: — Você não foi achada
no lixo. E não importa o que você faça, ou o que as pessoas digam, você é uma Kenblay. Você
é nossa lha. Entendeu isso?
Lucy assentiu.
Nenhum dos adultos disse nada, então ela assentiu de novo.
E depois perguntou:
— Então como foi?
Os pais dela trocaram outro olhar. E abriram novos sorrisos suaves na direção dela. Os
olhos azuis acinzentados da sua mãe — como um céu nublado com sol — pareciam
hesitantes.
— Nós… — Ellie suspirou outra vez. — Nós conhecemos sua mamãe, meu amor. O nome
dela era Acelynn.
Então eles contaram. Contaram que a Acelynn não gostava de ser chamada de Acelynn,
mas sim de Lynn. Que ela escreveu uma revista que foi muito famosa. Na verdade, ela
amava escrever, foi o que disseram. Ela era uma Anja muito amável, e ela sempre protegia os
amigos.
E ela amava muito, muito, muito a lhinha dela.
Mas ela cou muito doente…
E muito fraca. Então pediu para duas pessoas cuidarem da Lucy. Duas pessoas que
também amavam muito ela.
Não contaram que Lynn foi uma sábia, torturada por anos para contar seus segredos. Não
contaram que ela amou uma mulher chamada Leeane por toda a vida. Não contaram que foi
quase tão poderosa quanto um Deus.
Não contaram que — exatamente por causa do último fator — Lynn morreu para pagar por
toda a magia que usou.
Se tivessem contado, Lucy perderia o total fascínio pela magia. Nunca teria crescido e
estudado porque, para começo de conversa, a magia havia desaparecido. Nunca teria
construído planos, nunca teria criado um projeto chamado Asas Sem Fronteiras. Nunca teria,
para realizar tal projeto, viajado para Daynus.
E se isso não acontecesse… então não haveria nada para narrar.
A não ser que houvesse.
Porque os pais de Lucy nunca contaram para ela o que sua mãe Lynn realmente fazia.
Ela fabricava destinos.
E havia outra pessoa, outra opção.
Porque se Lucy perdesse o amor por magia… e se isso desencadeasse uma série de fatores
que nunca levariam a menina até Daynus…
Então outra coisa — outra pessoa — atrairia ela até lá.
As pessoas chamavam ela de Praga.
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13 anos depois.

PAI DE PRAGA ESTAVA MORTO. Quer dizer, essa frase não estava certa. O pai de Praga
foi assassinado parecia mais adequado.
A família dela estava ngindo que não sabia. O irmão mais novo, Henrique, não
foi tão próximo do pai para se importar. E sua mãe, Catrina…
Bom, foi ela que matou ele, em primeiro lugar.
Quanto à ela mesma? Difícil dizer. Tudo de ruim que aconteceu com Praga era culpa
daquele maldito homem — inclusive sua existência miserável. Mas sem ele, ela nunca teria
conhecido o irmão e a mãe, que eram… tudo.
Vou resolver essa situação, ela disse, quando o general revelou a morte do pai.
Outra correção: ela iria desvendar a situação.
Por que a mãe matou Alexandre?
E o que diabos ele estava planejando?
Na verdade — ela pensou, enquanto entrava no centro militar que pertenceu ao pai — por
que sua mãe não o mataria? Catrina foi uma esposa negligenciada, traída e posta de lado.
Descartada a partir do momento que reproduziu um herdeiro para o trono de Newhill.
Herdeiro este que nasceu surdo e, assim como a mãe, foi colocado de lado.
Ciclos familiares não são lindos?
Praga abriu a porta do centro militar. Não havia mais soldados ali. Apenas corredores sem
nenhum tipo de decoração e luzes brancas para todos os cômodos.
Ela não perdeu muito tempo vasculhando canto por canto. Endriam, o antigo braço direito
de seu pai e um cretino quase pior que o chefe, passou a planilha da construção no momento
que Praga exigiu. Ele não era burro pra negar. Alexandre não ia protegê-lo agora.
— Magia Proibida, papai? — ela sussurrou, fazendo cara feia para mesas cheias de papéis
abandonadas. — Pensei que fosse melhor que isso.
Praga soltou uma risada.
— Até parece.
Ela olhou os papéis de maneira preguiçosa. Eram mapas. Não de algum país que Praga
conhecesse (e ela era muito boa em geogra a). Não, não. Os mapas representavam um lugar
que não existe.
Praga catou alguns deles, dobrou e en ou na roupa. Voltou para o corredor principal e
passou por três, quatro, sete portas..
— Opa.
O nariz dela pegou alguma coisa que os olhos falharam em ver. Ela voltou dois, cinco
passos. Era uma porta exatamente como todas as outras. Ela tentou abrir.
Trancada.
— Sempre dando trabalho, senhor Alexandre.
Ela chutou a porta com força e ela abriu com um barulho abafado.
— Ah, olha — ela comentou, para absolutamente ninguém. — Que curioso…
Dentro da sala foi construído uma falsa parede com um portal de uma outra porta. Mas em
vez de sustentar uma porta (como deveria fazer) o portal na parede estava coberto de algo
preto. Cheirava queimado.
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Praga se abaixou e passou a mão pela coisa preta, depois levou os dedos até o nariz. Era
uma mistura horrível de cinzas com tinta. Ela fez uma cara de nojo porque odiava o cheiro de
cinzas, mas entendeu na hora o que aquilo representava.
Entendeu o que seu pai estava fazendo.
— Portais.
Mas para onde?
Ela se levantou e tirou os mapas que havia adquirido minutos antes. Para aí.
Mas onde era “aí”?
CAPÍTULO 2

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