Ingratos
Ingratos
Ingratos
SINOPSE
DEDICATÓRIA
A ÚLTIMA PROFECIA
Quando, iludida, às suas origens voltar
O bastardo outros dele irá encontrar
A terra vermelha receberá um parasita
E se em derrota o confronto acabar
Rebobinada será a fita
PRÓLOGO
ma vez que você comete um assassinato e sai impune, se torna muito provável que
você o faça novamente.
Humanos são seres sociáveis. É impossível alguém ser completamente sozinho,
ainda que se sinta assim. Mas o problema dos relacionamentos (sejam eles quais forem) é que
às vezes as pessoas tem con itos com outras; às vezes pessoas querem rejeitar outras e nessas
vezes acontece de elas pensarem: Nossa, como seria mais fácil se fulano simplesmente sumisse.
Não. Talvez esse não seja o problema. Esse não é um pensamento incomum e, a nal de
contas, continua sendo apenas um pensamento.
O verdadeiro problema é quando uma dessas pessoas consegue realmente fazer o fulano
sumir.
Catrina Bryant, infelizmente, entendia bem a sensação.
A primeira pessoa que teve o desprazer de assassinar foi sua mãe, Amaris Bryant.
Ok, essa frase é um pouco escandalosa. Quem mata a própria mãe? Mas talvez seja
importante salientar que nenhuma mulher Bryant vive de maneira prazerosa ou benevolente.
Até Catrina é obrigada a admitir que decerto ela própria é uma poluição humana para o
universo. Embora precisemos admitir: Amaris era mil vezes pior.
A avó de Catrina, Bryana, era egocêntrica ao ponto de decidir que seu nome seria o
sobrenome de todos os seus descendentes. Era uma idosa feiticeira e ardilosa como uma
cobra, vendendo poções e objetos mágicos e passando a perna em qualquer infeliz que
conversasse com ela. Usava a magia pra manter sua beleza eterna e para enriquecer a custo
da felicidade dos outros. No entanto, ela nunca teria feito nada do que fez se não fosse seu
dom especial: ela via o futuro.
E após muitos e muitos anos tirando vantagem disso, Bryana não sentiu nada além de
desgosto quando teve uma lha que não possuía o dom da clarividência. Amaris Bryant era
uma inútil, ela deixou claro muitas vezes. Não havia nada que a própria Amaris pudesse
fazer para mudar a opinião da mãe, aliás.
Amaris não conseguia ver o futuro. Não importa o quanto tentasse ser boa, para sua mãe
esse fato sempre seria o princípio de sua existência. O princípio desprezível de sua existência.
Então Amaris decidiu que ela não seria boa por completo.
E Amaris, por sua vez, não sentiu nada além de desgosto quando teve sua própria lha e
ela nasceu muito mais poderosa que as duas gerações anteriores.
Ou talvez “nada além” seja mentira. Seus sentimentos não se resumiram ao desgosto. Se
sentiu injustiçada, com uma inveja enorme e muito, muito, muito ódio.
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Catrina cresceu sendo mimada pela avó e surrada pela mãe. Obviamente, a combinação
gerada não foi boa: ela passou a vida tentando ser superior a todo mundo, porque mesmo
com toda a sua magia, ainda não era boa o bastante para agradar a mãe.
Ciclos familiares não são lindos?
No meio de sua adolescência, as surras evoluíram de tapas e queimaduras para lições
brutas e falta de comida. Não porque não tinham condições; pelo contrário: as Bryant eram
bem ricas. Mas sim porque, num belo dia de inverno, os sonhos de Catrina sussurraram
sobre o seu futuro: ela seria uma rainha. E claro que nenhum príncipe queria se casar com uma
balofa, né?
— Não pode ser gorda além de idiota, Catrina — a mãe dela sussurrava toda vez que lhe
tomava um doce. — Homens gostam de idiotas, mas de gordas não.
Se Catrina fosse útil pelo menos para agarrar o príncipe de Daynus, Marckson Wyzard,
então não importava para Amaris se ela ia ou não para o hospital por desnutrição.
Um dia, Catrina tivera um sonho. Ela tinha milhões deles, mas era sempre uma cena que
ela estava presente. Esse sonho, contudo, era diferente. Ela visualizava um lugar que nunca
veria com os próprios olhos. Não passava de ashs de uma vida que não era a sua.
Um vestido com a barra rosada, olhos azuis-marinho esperando — ansiando — você se aproximar a
passos lentos. O ambiente era iluminado de forma delicada, em tons quentes, divertidos. Música suave
tocando. Você segurando um punhado de ores e seu coração recheado de uma felicidade quase
completamente plena.
Dentro do sonho, ela soube que era um casamento. Tentou adivinhar quem era a mulher
usando o vestido — a vida de quem ela estava espiando? — quando foi interrompida por sua
mãe, que a acordou acertando sua cara com uma revista.
— Parabéns, sua mula — ela dissera, parecendo feliz enquanto Catrina acariciava a
bochecha ardida. — Deixou que ele escapasse.
Ela pegou a revista e seus olhos sonolentos conseguiram ler, para sua infelicidade:
“Eu te avisei que seria rainha. A mula foi você por mirar no príncipe errado.”
Foi quando aprendeu a lição 37: Amaris Bryant nunca saia por baixo.
Sua mãe a visitou no palácio de verão, pedindo um milhão de desculpas por interromper
sua lua de mel, e exigiu uma reunião a sós. Alexandre, como sempre o cavalheiro, disse que
iria ao escritório e deixaria a esposa conversar com a mãe. Sua mãe, como sempre a falsiane,
serviu vinho para a lha, alegando estar contente em vê-la. Catrina, burra, bebeu o conteúdo
vermelho.
— Desgraçada! — ela exclamara, cuspindo todo o vinho no tapete caro.
Sua mãe só conseguia rir.
— O que você fez? — Catrina perguntou, a voz tomada de medo porque sentiu, sentiu
quando a magia deixou o seu corpo.
Sua mãe se levantou de onde estava, um sorriso de víbora brincando nos lábios, e disse,
com uma voz doce:
— Tirei seus sonhos idiotas de você. Agora você é como eu, lhinha. — Então seu tom de
voz mudou para algo completamente mortal, vingativo e cruel: — Nunca mais você vai
espiar o futuro. Nunca mais vai conseguir manipular alguém como fez com esse seu
principezinho. Vamos ver como se sai agora.
E Catrina, burra, pensou que caria bem. Que Alexandre a amava e que viveria feliz para o
resto da vida, fazendo sua mãe engolir cada palavra dita quando arrancou dela seu bem mais
precioso: seus sonhos.
E, pelos céus, terei de repetir outra vez: burra.
»◊«
chuva se lançava contra o vidro da janela quando Catrina acordou. Ela franziu o
cenho para as pernas arrepiadas. Antes, Alexandre sempre a cobria após se
levantar e deixá-la na cama. Mas isso foi há muitos anos, quando ela ainda
acreditava em nais felizes e maridos éis.
A tevê do quarto estava ligada e o som competia com a água violenta que esmurrava a
janela. A imagem na tela era um escritório decorado em tons neutros e sem personalidade.
Havia uma jornalista de cabelo curto e algum pro ssional da saúde usando jaleco impecável.
— Estamos aqui com o Cientista de Magia Natural Jonathan Carvalho — anunciou a jornalista,
com um sorriso. — Sr. Carvalho, cada vez mais aumenta a facilidade de edição de vídeos e fotos. Isso
facilita muito a propagação de fake news a respeito de aparições mágicas. O que o senhor tem a dizer
sobre isso?
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— Obrigada pelo convite, Lilian — O cientista também sorriu. — Então, é importante dizer que
tais aparições são falsas. Qualquer tipo de acesso à magia no geral é de extremo risco a saúde, já que
estamos negociando Energia Vital. Além disso, Magia Proibida tem esse nome por uma razão né. Ela é
ilegal. Então muito cuidado...
Catrina desligou a tevê, irritada por ter gastado tanto tempo procurando o controle. Não
havia nada de novo naquela entrevista: Magia Proibida era perigosa, magia comum havia
desaparecido. Eram dois fatos simples, que de repente haviam se tornado essenciais na vida
da Rainha de Newhill.
Pouco tempo após o casamento de Catrina, houve um terrível pronunciamento. Havia uma
maldição em Minelu. Mas não foi apenas aquele país que foi desgraçado. Não, não. Cada
Anjo e Demônio foi mudado para sempre desde aquele dia nublado em 3403. Pois uma nova
regra foi imposta: um Anjo nunca poderia beijar um Demônio. E o Anjo que desobedecesse
pagaria o preço imposto pela Grande Maldição: a vida.
Catrina era uma Demônia nascida e criada. E felizmente, Alexandre era um Místico. Uma
das dezenas de espécies que fugiram ilesas da Grande Maldição. Os Híbridos (os seres
metade Anjo e metade Demônio) também saíram ilesos.
De qualquer forma: magia havia sumido.
E Catrina se sentiu consolada na época. Seus sonhos foram roubados pela sua mãe; seu
dom mais precioso, perdido. Parecia justo que todas as outras pessoas perdessem os seus
poderes também. Fez ela se sentir... acolhida. Como se de repente o mundo entendesse um
pouco do seu desespero.
Durante 22 anos, ela viveu com essa sensação de conforto. Os poderes quase não lhe
zeram falta. Na verdade, como todos no planeta estavam loucos para saber o que tinha
acontecido com a magia, ninguém se preocupou quando uma ricaça chamada Amaris Bryant
morreu suspeitosamente com gás de cozinha. Para Catrina, a Crise Mágica — como os
cientistas chamavam a total falta de magia — foi até conveniente.
No entanto, matar sua mãe não trouxe seus sonhos de volta.
Durante 22 anos, Catrina dormiu apenas para se afogar no nada. No escuro e terror de sua
mente. O breu sem m e sem começo para o qual ela viajava quando pegava no sono. Então
numa noite fria de Newhill, como qualquer outra de sua vida, ela sonhou.
Devia ter sido um milagre. Mas foi um castigo.
Como sempre, era um vislumbre do futuro, do seu futuro. Um futuro infeliz, amaldiçoado,
maldito. Um futuro desgraçado, aterrorizado pelas façanhas de Alexandre.
Então, quando acordou, após superar o choque inicial, Catrina chegou à conclusão óbvia:
Alexandre era a sua ruína.
E à decisão óbvia: ela precisava dele morto.
Esse é o problema do assassinato: para certas pessoas, ele é incrivelmente prático.
De alguma forma idiota e patética, Catrina soube que, se Alexandre tivesse coberto-a
naquela manhã, ela teria repensado sua decisão. A decisão de tirar sua vida.
Havia pensado um milhão de vezes como seria sua vida sem Alexandre e, no entanto,
nunca especulou nada, nunca ousou, pois Catrina não se casara com qualquer homem.
Alexandre Windsor era o rei de Newhill. E se sua esposa quisesse matá-lo, teria que fazê-lo
com cuidado.
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Imaginou o que aconteceria no dia seguinte, quando a notícia se espalhasse. Pensou o que
diria para seu lho, Henrique, que provavelmente saberia. Saberia que ela en ou veneno na
garganta do pai dele.
Ela se levantou, descartando a imagem e calçando as pantufas. Tomou um banho quente
demorado, expulsando o ar gélido de seus ossos. Em Newhill, era sempre assim: nublado e
chuvoso. Friorento e nebuloso.
Entre às 10:00 e às 11:30, Alexandre tinha uma pausa de vinte minutos que usou para
encontrar Catrina. Ela estava na sala de estar conectada ao quarto, ngindo ler um livro. No
entanto, o que Catrina fazia mesmo era olhar para o jardim. Havia um segundo problema em
sua vida. Que era a construção quadrada que se ergueu ali.
No início da construção — da proeza de Alexandre — ela pensou que era algum gazebo de
concreto, algo que realmente vai num jardim. Mas então a sala ganhou largura e várias janelas
de vidro escuro. Não passava de um retângulo com muitas janelinhas. Algo inocente. Ou
seria algo inocente se a) a construção não fosse projeto de Alex e b) Catrina não fosse
proibida de pisar lá.
Quando questionou o marido, Alexandre alegou que era um camvel. Um lugar para honrar
e rezar para os deuses.
No entanto, não era. Ele devia pensar como a mãe de Catrina: ela era uma mula. Pois
apenas uma mula não notaria que era um centro militar.
Ele construiu a porra de um centro militar no meu jardim, pensou ela, borbulhando de ódio.
Então o rei entrou pela a porta e Catrina voltou a olhar para o livro.
— Minha querida esposa — decretou Alexandre, sorrindo, jovial. — Já de pé?
Ela segurou a resposta ignorante que sua língua formulou.
— Tudo bem? — perguntou, ao invés disso, ajeitando a postura e sorrindo para o marido.
Ele fez uma careta manhosa e se inclinou sobre a poltrona que ela estava, murmurando ao
seu pescoço:
— Tô cansado, amor. Saudades de você.
Ela estremeceu de raiva — de ódio — e torceu para que ele confundisse com desejo. A nal,
Catrina estava apenas de robe, os seios não muito escondidos atrás do tecido fofo.
Ele a beijou nos lábios uma vez, devagar e suavemente, e depois se afastou.
— Desculpa, amor. Meus vinte minutos estão quase acabando e tô morrendo de fome.
Como se tivesse o escutado, um criado entrou no cômodo, pedindo licença e trazendo uma
bandeja enorme cheia de comida. Deixou-a sobre a mesa de vidro e rapidamente sumiu.
Alexandre se sentou numa cadeira próxima e começou a comer. Catrina fechou o livro e o
colocou sobre o colo, olhando para o marido. O cabelo cacheado estava bem curto — era o
único modo de mantê-lo baixo — e a pele marrom escuro estava pálida, quase cinzenta, pois
agora ele vivia dentro daquela construção, sem sinal de sol.
Catrina preparou seu tom de voz doce.
— Alex, querido — disse, apontando para a janela enquanto Endriam, o encarregado de
organizar a proteção do rei, saia daquela sala de planejamento militar. — Me conte outra vez
porque não posso ir até lá.
O marido seguiu seu aceno, e Catrina se lembrou de todos os nomes que ele já ganhou (O
grande e bondoso rei Alexandre de Newhill, protetor dos direitos humanos e pai caridoso e
atencioso) quando algo como preocupação brilhou em seu olhar. E depois sumiu.
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— É um lugar para se redimir com os deuses, querida — ele replicou, reiniciando toda a
ladainha. — Admitir seus pecados e pedir perdão. Meus homens falam coisas horríveis
dentro daquele lugar. Revelam suas almas podres. O que acontece lá dentro não é para seus
ouvidos sensíveis. Em compensação, reformei seu altar pessoal se quiser fazer o mesmo.
Ouvidos sensíveis? Sério?
— Certo, Alex — ela disse, se perguntando, como, como ele conseguiu mantê-la calada,
impassível, por tantos anos.
Mas então outra pergunta se formou em sua mente: quando ela passou a aceitar ser tratada
como uma mula?
— Esquece isso, amor. Aqui. — Alexandre colocou um pratinho no lado dela da mesa, com
um bolo de aparência apetitosa. Ele abriu um sorriso de canto. Um sorriso travesso,
egocêntrico, manipulador. — Pedi que lhe trouxessem isso.
Depois de muitos anos com Amaris en ando os dedos na garganta de Catrina para que ela
vomitasse algum açúcar que consumiu, Catrina criou uma repulsa com doces. Porém, mais
tarde, quando a rainha se livrou do reinado da mãe, Catrina tentou aos poucos voltar a
comer açúcar sem chorar e malhar por horas. Quase nunca funcionava, mas nas raras
excessões, era bolo que ela comia.
Catrina sempre amou bolo.
E, pelo visto, Alexandre se lembrava.
— Obrigada, querido — ela disse, com a voz embargada.
Foi preenchida, de repente, com a visão das suas pernas arrepiadas ao acordar. Antes,
Alexandre a cobria porque era um gesto de carinho. Lhe trazia bolo porque era um gesto de
carinho. Ele lhe fazia cafuné quando Catrina vomitava tudo que comia. Ele lhe dava ores, e
sorria todas as vezes que ela pisava no pé dele, porque todos sabiam que, apesar do esforço
de Amaris, ela era péssima dançarina.
Mas isso foi antes. Antes de Alexandre engravidar uma vadia três vezes. Antes de Catrina
dar à luz a um lho surdo e Alexandre reclamar dos criados, que chamavam sua criança de
“defeituosa”. Antes de todas as vezes que o marido procurou-a na cama e apenas na cama.
Antes de humilhá-la numa reunião, alegando que ela não devia participar de tais debates
políticos.
Antes de Catrina sonhar com o futuro e ver tudo que ruim que ele ainda lhe faria.
E gestos como aquele bolo... No tempo atual, aqueles gestos só apareciam quando era
vantajoso para ele.
Logo, quando Alexandre apareceu no quarto naquela noite, ela não hesitou.
Ela perguntou o que ele fez o dia todo. Ele deu uma resposta evasiva e arrancou seu
roupão, alegando estar cansado, tão cansado...
Ela disse:
— Não cansado o su ciente para apenas dormir, não é, Alex?
Ele sorriu. Nem notou a raiva na voz dela.
— Nunca, querida Cat.
Ela sorriu também. Ele veio pra cima dela, agora completamente nu. Ela empurrou aquele
peitoral de nido, que lhe era tão familiar quanto seu próprio corpo, e perguntou se ele não
queria vinho. Ele disse que queria. Ela o serviu, provocando-o como costumara gostar de
fazer. Ele bebeu, ela bebeu, e eles zeram amor.
— Você me ama, Catrina? — ele perguntou.
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Perguntava isso toda vez. Como se o amor dela fosse uma conveniência, um carinho no
orgulho, que ele não poderia perder.
— Amo — ela respondeu.
Respondia isso toda vez. Porque, apesar de tudo, era verdade.
Um segredo sobre venenos mágicos: eles não agem de imediato. Não, eles matam devagar.
A pessoa consegue fazer uma ou duas refeições depois — Se essa pessoa for Alexandre, três
ou quatro — di cultando todo o processo de descobrir um culpado... Isso se os legistas
descon assem de veneno. O que, se saísse como Catrina planejou, não iria acontecer.
Então, quando Endriam veio até sua sala de jantar anunciar que o rei caiu morto e que foi
tudo um acidente dentro do centro militar, ela disse, aterrorizada, escandalizada:
— Como assim? — Ela caiu de bunda numa cadeira. Enquanto pronunciava as palavras
falsas, um choro verdadeiro lhe fugiu. — Como assim, Endriam? Alex me disse que era um
camvel.
Ele cou em silêncio. Um único pensamento reverberou por Catrina: Alexandre está morto.
E como se isso fosse possível, seu peito sentiu um aperto e um alívio ao mesmo tempo.
Acabou. Seu corpo vibrou essa única palavra. Acabou.
Não sabia dizer se isso era bom ou ruim, se sentia arrependimento ou triunfo, então
chorou. Chorou quando voltou a dizer:
— Um altar para os Deuses, Endriam. Algo inocente! Do que você está falando?
— Sinto muito, senhora. Ele... Ele mentiu. Nós estávamos...
Ele suspirou, parecendo cansado, culpado. Por um segundo, Catrina quase sentiu pena
dele. Mas naquela sala de jantar imensa, enfeitada de roxo e azul, estavam seus lhos. Sua
lha mais velha, Praga. E seu pequeno Henry.
Engraçado não ter pensado em Praga até aquele momento. A verdade é que se preocupou
apenas com Henrique. Não por uma questão de favoritismo, mas sim porque a Praguinha
sentia quase tanta raiva de Alexandre quanto Catrina.
Elas sempre teriam isso em comum, apesar de todo seu passado turbulento.
— O que estavam fazendo, Endriam? — perguntou Praga. Firme. Bruta. Como Catrina
havia ensinado-a.
Não como Amaris. Nunca como Amaris. Mas como uma mãe que nunca aceitaria ver a
lha no mesmo lugar que ela.
O general pareceu envergonhado.
— Estudando magia proibida.
Henrique perdeu o fôlego. Catrina arregalou os olhos e voltou a chorar.
— Minha senhora — prosseguiu o general, se aproximando da rainha. — Eu peço que me
perdoe, peço que...
— Basta — decretou Praga. Como uma verdadeira princesa. — Suma da minha frente.
Deixe mamãe em paz.
O general saiu da sala, assim como todos os criados. Vários segundos, vários minutos se
passaram em silêncio. Os soluços de Catrina eram o único som.
Rapidamente o triunfo superou o arrependimento. Alexandre estava morto. E ela em breve
conquistaria o que era dela por direito.
Então o choro cessou. E só quando reinou o silêncio absoluto, a lha de Catrina disse:
— Escutem. Independente do que meu pai estava fazendo, do porquê ele estava mexendo
com Magia Proibida, vamos deixar os ares de acalmarem.
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Catrina assentiu.
— Vou resolver essa situação, não se preocupem — prosseguiu a jovem. — Mas preciso de
vocês calmos. Ok?
Catrina sabia que ela fazia aquilo pelo irmão, por Henrique. As duas, mãe e lha, fariam
tudo por ele. E as duas, mãe e lha, sabiam disso.
Contudo, os três, mãe e lhos, sabiam que Alexandre não morreu por causa de algum
acidente envolvendo Magia Proibida.
Logo, sobraram apenas Catrina e seu lho na sala de jantar. A comida esfriava, intocada. O
cheiro do fettuccine alfredo ainda enchia o ar. E Catrina olhou para baixo, para o colo.
— Eu só tenho uma pergunta — disse seu lho, sua voz paciente e lenta.
Ele sempre falou assim. Talvez por medo de não ser compreendido. Ela conseguiu arranjar
coragem para encará-lo, e ignorou com todas as forças os aparelhos em seus ouvidos, o sinal
visível e eterno que Catrina havia falhado ao produzi-lo.
Defeituoso. Era o que as pessoas disseram sobre Henrique. Surdo e prematuro.
— Por quê? — ele perguntou.
Catrina não fugiu. Não mais.
Acabou. A palavra cantou de novo. Acabou. Não precisa mais ser fraca. Não precisa mais ser
manipulada, enganada, traída. E de repente, uma nova palavra apareceu, linda, reluzente
como um raio de sol no meio daquele lugar frio. Livre.
Livre. Livre. Livre.
Catrina agarrou aquela palavra e disse:
— Porque o seu pai me atrapalharia a conseguir o que eu quero. E minha vontade de tirá-lo
do caminho era maior do que o amor que sinto por ele.
Henry manteve a expressão imóvel.
— E o que você quer, mãe?
Clarividência. Sonhos. Poder.
Ela não respondeu nada.
— O que você quer, meu lho?
Henry respirou fundo. Só uma vez.
— Quero ouvir sem isso. — Ele apontou para o aparelho auditivo. — Quero magia.
Quero... Não ser indefeso.
Seu coração encolheu, mas Catrina não demonstrou. Passou a vida toda tentando
conquistar as coisas. Conquistar a mãe, conquistar príncipes, conquistar aceitação.
Agora seria diferente. Agora ela passaria a tomar. Tomaria seus sonhos de volta, tomaria o
respeito do seu reino, tomaria o poder que seu lho desejava.
E que os Deuses ajudassem quem estivesse em seu caminho.
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CAPÍTULO 1
ucy Kenblay, a princesa de Astéria, bebericou sua taça com vinho e analisou a
própria situação.
Ela estava fodida. Isso era fato.
Ou formulando melhor: ela teve uma ideia fodida. No nal, a escolha era dela para decidir
se realizava a ideia ou não.
Provavelmente fazer essa decisão — a nal: ir ou não ir? — tomando vinho e ouvindo
clássica não fosse o melhor caminho, mas fazer o quê? Ela também tinha defeitos.
Talvez ela devesse fazer como Deadpool e revisar os fatos desde o princípio para depois
tomar alguma decisão — que com certeza seria a pior saída, claro.
É, parecia uma boa.
élix ignorou o riso de Daniel enquanto resmungava. O carro estacionou debaixo das
tendas azul-gelo, quase como neve.
— Irritado, Vossa Alteza? — Daniel provocou, sorrindo com os dentes perfeitamente
brancos.
— Cala a boca.
Alguém abriu a porta do carro e Félix saiu enquanto ajustava o terno outra vez. Ele
agradeceu com um aceno de cabeça e tentou manter uma expressão neutra. Apesar do sol
que brilhava e do tempo agradável, o príncipe de Daynus estava com um péssimo humor.
Isso signi cava que era um péssimo momento para encontros políticos.
— Quem foi o idiota que decidiu que trazer a princesa anja asteriana para esse lugar cheio de
demônios podres era um boa ideia? — ele murmurou para Daniel. O amigo já era seu
segurança há anos e por isso não teve di culdades em seguir seu passo apressado. Atrás do
dois seguiam outros seis homens, observando cada passo.
— A própria princesa anja asteriana, senhor — Daniel respondeu. Estava se divertindo
muito naquela manhã. — Vossa Alteza Lucy Kenblay Astley Mar…
— Eu sei a porra do nome dela.
O segurança riu baixinho. Félix detestou por um segundo a intimidade que tinha com ele.
Agora eles andavam a céu aberto no aeroporto, onde a pista de aviões recebia outros
veículos. A maioria voos nacionais. Pessoas desembarcavam a metros e metros de distância,
uma vez que aquela pista toda foi isolada para receber Vossa Alteza Lucy Kenblay Astley
Ninguém-Se-Importa.
Félix soltou um suspiro. Seu mau humor não era culpa da princesa. Ele teve uma péssima
manhã. Lyra — a sua irmã mais nova bocuda e insolente — tinha mexido no seus papéis
pessoais e depois jogou na cara dele que sua pesquisa não estava indo pra lugar nenhum.
No m das contas ele e Lucy até tinham algo em comum: ambos eram cientistas mágicos. E
magia, como todos sabiam, não era vista nesse mundo há anos. Pelo menos não pela a
maioria deles. Porque o que ninguém sabia era que Félix Wyzard tinha, sim, magia.
A pesquisa dele existia para descobrir o porquê.
— Aqui já está bom, Vossa Alteza — Daniel informou baixinho.
Eles pararam no meio de uma estrada enorme, em frente a um avião branco, com detalhes
em verde, amarelo e vermelho. A bandeira de Astéria. Muitos outros seguranças — também
asterianos — se posicionam à frente dos dois. Ao redor havia uma ta amarela escandalosa
isolando toda a área, onde estava a imprensa, com suas centenas de câmeras apontando na
sua direção. Félix sorriu e acenou uma vez para todos eles, depois manteve o rosto
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cuidadosamente neutro. Diferente da mãe, ele não se incomodava tanto com as câmeras em
excesso.
Fazia um ano agora (talvez dois) que Félix decidira investigar a origem de sua magia. Já
conseguia controla-la, entender as nuances do poder, suas características e falhas e
qualidades. Voar havia se tornado sua atividade favorita, sua terapia grátis. No entanto, não
bastava saber fazer o que ninguém mais conseguia. Precisava entender porque era o único na
sua família, no seu colégio, no seu reino, que tinha acesso à magia.
Félix estudou sobre a origem mágica, de onde vinha a magia e para onde ela foi há 21 anos.
Entendeu que a magia não havia "desaparecido". Não, a magia ainda estava ali, na terra, no
ar, nas árvores e dentro deles. Mas o universo estava em desequilíbrio, a extinção dos
híbridos causou isso. E isso os impossibilitava de acessa-la. No entanto, Félix conseguia.
Então a pergunta que cou foi: Por que algumas pessoas conseguiam acessar a magia e outras
não?
E para além disso: existiam outras pessoas que conseguiam?
— Como você acha que ela é? — Daniel perguntou de repente. — A princesa.
— Chata — ele respondeu, mas não estava pensando na questão direito. — Ou gentil e
doce demais, a ponto de você querer calar a boca dela com super bonder. As anjas não são
todas assim?
Félix ajeitou a gravata. Daniel fez um som que reprova minha fala preconceituosa.
Enquanto isso, uma equipe do aeroporto trazia uma escada móvel gigante, que se encaixava
na “porta” do avião.
Ele nunca encontrou alguém com magia. Alguém como ele. Procurou em pessoas da
mesma árvore genealógica e com o mesmo tipo sanguíneo. Ele havia encarado a situação
como uma alteração genética (como uma mutação ou uma variação no DNA). Lyra caria
surpresa com a quantidade de anomalias genéticas que Félix estudou nesses dois anos. Ou a
quantidade de vezes que analisou seu próprio sangue. E outras coisas. Tudo isso e mais um
pouco levou-o a…
Nada.
— O que sua mãe falou sobre a pesquisa? — Daniel perguntou, provavelmente
adivinhando de onde vinha o seu estresse. Precisava arrumar um nome melhor que
“pesquisa”. Algo sem sentido mas foda ao mesmo tempo, como o Henry Mills faria.
— Ela criticou a minha linha de raciocínio. Magia está sim ligada com genética, tanto que
alguns dos meus poderes são típicos dos Wyzard, mas minha mãe acha que é algo mais…
abstrato. Sei lá. Talvez eu deva “voltar ao início”, como a tia Darlee mandou eu fazer.
— Ah — Daniel disse. — Meus Deuses.
Ele franziu a testa, prestes a encarar sua expressão chocada.
— Ela é gostosa.
Então Félix acompanhou seu olhar e percebeu que, sim, a princesa Lucy Kenblay Astley
Pra-Quê-Tanto-Sobrenome? é linda mesmo. Será que era por isso que todo mundo estava
amando a ideia de ela passar um tempo ali?
Ela desceu a escada como se fosse o primeiro-ministro. Estava usando um vestido de renda
branco que por alguma razão não era sexy, mas elegante e adequado. Na verdade, tudo nela
era assim. Até o aceno que ela ofereceu para os pobres infelizes ao redor, hipnotizados com o
sorriso de anja asteriana dela.
Félix achava que era um deles.
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Ela parou na frente dele e então ele notou com mais nitidez o cabelo castanho solto e os
olhos.
É impressionante vivermos num mundo sem magia e ainda existir esse tipo de coisa sobrenatural.
Os olhos dela eram roxos.
Ela abriu outro sorriso e ele percebeu… Deuses, ele percebeu tarde demais. Félix estava
certo.
Ela era gentil demais.
— Olá, Vossa Alteza. — Ela estendeu a mão.
— Olá, princesa Lucy — as palavras saíram da boca dele de forma quase ensaiada. — É um
prazer recebê-la em nosso reino.
— O prazer é todo meu.
Ele apertou a mão dela. Era o primeiro aperto de mão entre realezas daynusianas e
asterianas em anos. Décadas, aliás. Era um símbolo histórico, registrado por dezenas de
fotógrafos e jornalistas de todo o país.
A ironia estava no fato que foi a maior burrice da vida dele, porque quando tocou a pele
dela, Félix nalmente entendeu porque ela era tão… fascinante. Não tinha nada a ver com o
físico bonito ou os olhos incríveis. Não tinha nada a ver com algo que se pode ver. Mas
quando ele tocou nela… conseguiu sentir.
Conseguiu sentir a magia dela.
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pai de Félix tinha contado sobre isso. Ele disse que antes — antes da Crise Mágica
e antes da magia ser varrida da vista de todos — as pessoas costumavam sentir a
magia dos outros. Isso serviu como uma espécie de sexto sentido. Mas agora Félix
se perguntava como todas as pessoas aguentavam sentir a magia de todas as pessoas, porque
ele de nitivamente não aguentava a de Lucy.
Era como um brilho esverdeado, fosco e transparente. Uma energia azul escuro que
utuava ao seu redor. Uma estrela, branca e quente, que espalhava pequenos choques
quando ele se aproximava.
Celestes, ele queria toca-la de novo.
Ok. Isso era um problema.
— Algum problema, Vossa Alteza? — Daniel murmurou, logo atrás de Félix, como sempre.
Eles estavam caminhando para a saída do aeroporto. Ao lado de Félix, enchendo Lucy de
doces bobagens políticas, estava seu agente e amigo da família: Sullivan Collins. Sully era
muito persuasivo quando queria.
— Nenhum — Félix murmurou de volta.
— Parece desconfortável — Daniel insistiu.
E eu estou.
— Estou bem.
— Eu sinto muito pela visita apressada — a princesa disse, sorrindo para Sully. — Eu senti
que um projeto como esse deveria ser feito para provarmos que ainda resta uma parceria
entre nossos reinos. A ideia me veio como um trovão e imagino que vocês saibam como é
quando uma cientista en a algo na cabeça.
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Sully riu e Félix até abriu um sorriso. A mãe dele — e rainha daquele lugar — era uma
cientista obstinada, então claro que todos conheciam seu jeito teimoso. O príncipe havia
puxado isso dela, junto com a sua mania incurável de fazer listas.
1. Era gentil demais (será que Daniel tinha super bonder com ele?)
2. Tinha magia (!!!)
3. Tinha um senso de humor razoável
4. O último nome era uma mistura de Marsha e o Urso com Tinker Bell (e sim, ele achava
isso digno de nota e muito esquisito)
5. Tinha “FRUTO PROIBIDO” escrito na testa.
INGUÉM PRECISOU CONTAR PARA A garota que a conversa iria ser séria quando,
receosa, a babá chamou por ela. A nal, se fosse uma notícia comum, corriqueira,
por que os pais de Lucy não poderiam contar ali? Na frente dela e dos irmãos?
Não. Era algo diferente. Que precisava ser dito só para ela. Teve ainda mais certeza quando
os criados a encararam com receio (mais do que o comum). Era algo diferente. Lucy era
diferente. Ela sempre soube disso, mesmo quando criança. O cabelo castanho e vivo não
tinha as notas quentes e vermelhas como o de sua mãe e os olhos — os malditos olhos —
eram quase sobrenaturais.
As pessoas têm olhos coloridos em Newhill, a babá dizia para a menina.
Mentira, Lucy queria retrucar. Você só fala isso porque nunca vou pisar em Newhill.
Mas princesas não retrucam.
— Filha, oi! — exclamou a mãe dela quando ela entrou na sala de estar, acompanhada da
babá, que logo foi embora. — Sente-se aqui.
Princesas obedecem e princesas não reclamam.
Lucy se sentou em silêncio.
Ellie, mãe de Lucy, era a rainha de Astéria — um dos três reinos que preenchiam o mapa
daquele país chamado Minelu. Daynus era o maior, Astéria perdia por pouco e Newhill
cava em desvantagem na questão do tamanho, ainda que fosse o vencedor no assunto
“infraestrutura” e “comércio”. Daynus era o berço da política e da arte (a casa do primeiro-
ministro cava na capital de lá) e, por m, Astéria era conhecida por seu avançado
conhecimento cientí co, aplicado principalmente na área da saúde.
Astéria a casa dos Anjos. Daynus a casa dos Demônios. Newhill a casa de ninguém-se-
importa. Sempre foi assim e sempre iria ser.
O pai de Lucy, Wilson Kenblay, era o portador do sangue real. Ele casou com Ellie por
conveniência (ou é o que dizem), mas se tornou visivelmente apaixonado por ela. Ele
compartilhou o seu precioso sangue azul com a lha que eles tiveram logo depois, a linda
Lia.
Que, como podemos ver, não era a Lucy.
— Por que estamos na sala da vovó? — perguntou ela, olhando ao redor.
Era um lugar so sticado e organizado de forma que parecia minimalista, ainda que muito
elegante e limpo. Tudo estava muito bem iluminado, a mobília estofada era de um branco
amarelado e as paredes tinham uma pintura delicada em tons de azul; ondas e ores. Era a
sala de estar da vovó Angela. Todos sabiam disso.
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— Precisamos conversar uma coisa bem séria — seu pai anunciou, se sentando no sofá ao
lado da esposa.
— Eu sei disso — Lucy respondeu, soando quase como se contestasse.
Sua mãe ergueu as sobrancelhas.
— Sabe? Que bom. — Havia um sorriso gentil em seus lábios quando ela respirou fundo.
— É uma coisa que queríamos te contar há um tempo.
Lucy assentiu.
Sua mãe prosseguiu, sempre falando muito devagar. Ela sempre falava assim: como se
detestasse não ser compreendida.
— Há alguns anos atrás… Quando o papai e a mamãe decidiram que iam se casar… Nós
queríamos alguém bem especial para fazer companhia pra gente.
— Isso — Will concordou, também abrindo um suave sorriso. Ele tinha o melhor dos
sorrisos, porque eram completamente sinceros. — E decidimos que íamos escolher esse
alguém pra fazer parte da nossa família, entende? E… você se lembra quando me perguntou
porque os seus olhos são roxos?
Lucy os encarou com os enormes olhos citados. O pai agora olhava para a esposa,
procurando apoio. Ellie apertou a mão do rei num pedido silencioso para que ele
continuasse.
Então Lucy disse:
— Eu sou adotada.
Seus pais arfaram, surpresos, mas Lucy Kenblay Astley Marshabell era assim: simples e
prática. Ainda com a bagunça de sentimentos que poderia sentir, havia coisas para ela que
eram inegáveis. Simples fatos que existiam e que deveriam ser aceitos.
Ela era adotada.
Ela era uma Anja e, portanto, podia morrer se algum Demônio a beijasse.
Ela queria trazer a magia de volta.
Ela faria qualquer coisa para isso.
E ponto.
Porém aí algo estranho aconteceu. Seu pai perdeu completamente a postura. Soltou uma
risada afável, quase desesperada, e passou a mão pelo cabelo, encarando a lha mais velha
como se ela fosse um animal de espécie desconhecida. Ele estendeu os braços e puxou a lha
que estava na cadeira de frente ao sofá para seu colo.
— Ai, pai! Socorro, mamãe!
Mas a rainha não fez nada para salvar a lha do ataque de cócegas.
— Você, Lucy Kenblay, é a menina mais esperta do planeta! — o pai exclamou, enquanto
fazia a menina se contorcer de um lado para o outro.
— Para! Para! — ela pediu entre as risadas agudas. — Por favor! Eu me rendo!
Will tirou os dedos das costelas da lha, que tomou fôlego e olhou indignada para a mãe.
— Mamãe! — brigou. — Você nem me ajudou!
Ellie deu um inocente dar de ombros, fazendo uma expressão exagerada quando disse:
— Mas, meu amor, eu sou inútil contra um homem desse tamanho!
Lucy bufou. Depois encarou o pai:
— Eu sou realmente a menina mais inteligente do planeta?
Ele assentiu, abrindo um sorriso com muito con ança.
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— Você é. Eu soube disso desde que peguei você pela primeira vez. Você tinha esse
tamanhinho aqui.
— Isso é muito pequeno — Lucy comentou. — Vocês me acharam no lixo? O lho da
Senhora Tati disse que o irmão dele foi achado no lixo.
Sua mãe arregalou os olhos e o pai urrou:
— Claro que não! — Então, lançando um olhar tenso para a mulher, acrescentou: — O lho
da Senhora Tati precisa manter distância dessa casa. — Ele encarou a lha com uma
seriedade quase inédita, pronunciando as palavras como Ellie fazia: — Você não foi achada
no lixo. E não importa o que você faça, ou o que as pessoas digam, você é uma Kenblay. Você
é nossa lha. Entendeu isso?
Lucy assentiu.
Nenhum dos adultos disse nada, então ela assentiu de novo.
E depois perguntou:
— Então como foi?
Os pais dela trocaram outro olhar. E abriram novos sorrisos suaves na direção dela. Os
olhos azuis acinzentados da sua mãe — como um céu nublado com sol — pareciam
hesitantes.
— Nós… — Ellie suspirou outra vez. — Nós conhecemos sua mamãe, meu amor. O nome
dela era Acelynn.
Então eles contaram. Contaram que a Acelynn não gostava de ser chamada de Acelynn,
mas sim de Lynn. Que ela escreveu uma revista que foi muito famosa. Na verdade, ela
amava escrever, foi o que disseram. Ela era uma Anja muito amável, e ela sempre protegia os
amigos.
E ela amava muito, muito, muito a lhinha dela.
Mas ela cou muito doente…
E muito fraca. Então pediu para duas pessoas cuidarem da Lucy. Duas pessoas que
também amavam muito ela.
Não contaram que Lynn foi uma sábia, torturada por anos para contar seus segredos. Não
contaram que ela amou uma mulher chamada Leeane por toda a vida. Não contaram que foi
quase tão poderosa quanto um Deus.
Não contaram que — exatamente por causa do último fator — Lynn morreu para pagar por
toda a magia que usou.
Se tivessem contado, Lucy perderia o total fascínio pela magia. Nunca teria crescido e
estudado porque, para começo de conversa, a magia havia desaparecido. Nunca teria
construído planos, nunca teria criado um projeto chamado Asas Sem Fronteiras. Nunca teria,
para realizar tal projeto, viajado para Daynus.
E se isso não acontecesse… então não haveria nada para narrar.
A não ser que houvesse.
Porque os pais de Lucy nunca contaram para ela o que sua mãe Lynn realmente fazia.
Ela fabricava destinos.
E havia outra pessoa, outra opção.
Porque se Lucy perdesse o amor por magia… e se isso desencadeasse uma série de fatores
que nunca levariam a menina até Daynus…
Então outra coisa — outra pessoa — atrairia ela até lá.
As pessoas chamavam ela de Praga.
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13 anos depois.
PAI DE PRAGA ESTAVA MORTO. Quer dizer, essa frase não estava certa. O pai de Praga
foi assassinado parecia mais adequado.
A família dela estava ngindo que não sabia. O irmão mais novo, Henrique, não
foi tão próximo do pai para se importar. E sua mãe, Catrina…
Bom, foi ela que matou ele, em primeiro lugar.
Quanto à ela mesma? Difícil dizer. Tudo de ruim que aconteceu com Praga era culpa
daquele maldito homem — inclusive sua existência miserável. Mas sem ele, ela nunca teria
conhecido o irmão e a mãe, que eram… tudo.
Vou resolver essa situação, ela disse, quando o general revelou a morte do pai.
Outra correção: ela iria desvendar a situação.
Por que a mãe matou Alexandre?
E o que diabos ele estava planejando?
Na verdade — ela pensou, enquanto entrava no centro militar que pertenceu ao pai — por
que sua mãe não o mataria? Catrina foi uma esposa negligenciada, traída e posta de lado.
Descartada a partir do momento que reproduziu um herdeiro para o trono de Newhill.
Herdeiro este que nasceu surdo e, assim como a mãe, foi colocado de lado.
Ciclos familiares não são lindos?
Praga abriu a porta do centro militar. Não havia mais soldados ali. Apenas corredores sem
nenhum tipo de decoração e luzes brancas para todos os cômodos.
Ela não perdeu muito tempo vasculhando canto por canto. Endriam, o antigo braço direito
de seu pai e um cretino quase pior que o chefe, passou a planilha da construção no momento
que Praga exigiu. Ele não era burro pra negar. Alexandre não ia protegê-lo agora.
— Magia Proibida, papai? — ela sussurrou, fazendo cara feia para mesas cheias de papéis
abandonadas. — Pensei que fosse melhor que isso.
Praga soltou uma risada.
— Até parece.
Ela olhou os papéis de maneira preguiçosa. Eram mapas. Não de algum país que Praga
conhecesse (e ela era muito boa em geogra a). Não, não. Os mapas representavam um lugar
que não existe.
Praga catou alguns deles, dobrou e en ou na roupa. Voltou para o corredor principal e
passou por três, quatro, sete portas..
— Opa.
O nariz dela pegou alguma coisa que os olhos falharam em ver. Ela voltou dois, cinco
passos. Era uma porta exatamente como todas as outras. Ela tentou abrir.
Trancada.
— Sempre dando trabalho, senhor Alexandre.
Ela chutou a porta com força e ela abriu com um barulho abafado.
— Ah, olha — ela comentou, para absolutamente ninguém. — Que curioso…
Dentro da sala foi construído uma falsa parede com um portal de uma outra porta. Mas em
vez de sustentar uma porta (como deveria fazer) o portal na parede estava coberto de algo
preto. Cheirava queimado.
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Praga se abaixou e passou a mão pela coisa preta, depois levou os dedos até o nariz. Era
uma mistura horrível de cinzas com tinta. Ela fez uma cara de nojo porque odiava o cheiro de
cinzas, mas entendeu na hora o que aquilo representava.
Entendeu o que seu pai estava fazendo.
— Portais.
Mas para onde?
Ela se levantou e tirou os mapas que havia adquirido minutos antes. Para aí.
Mas onde era “aí”?
CAPÍTULO 2