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Cynthia Breeding - O Destino de Camelot (CHE 280)

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O DESTINO DE CAMELOT

Camelot´s Destiny

Cynthia Breeding

Bretanha, 490 d.C.

Um dilema atroz... Um coração dilacerado... Uma paixão perigosa...

Jovem, bonita e determinada, Guinevere foi escolhida pelo rei Arthur para ser sua esposa e
futura rainha da Bretanha. A relutância inicial de Guinevere em aceitar a honraria logo deu
lugar ao desejo que lhe despertava o novo rei, amante hábil que a deleitava com carícias
sensuais... mas que ela em breve descobriria não serem um privilégio exclusivamente seu.

Guinevere não esperava que outro homem arrebatasse seu coração com um beijo furtivo, nem
que esse homem fosse justamente Lancelot, o guerreiro de maior confiança de Arthur. Numa
era de constantes conflitos entre o bem e o mal, e num reino regido pela magia e por rígidos
códigos de ética, o dilema de uma mulher dividida entre a lealdade ao marido infiel e a paixão
por um homem que ela não pode ter, ameaça tornar-se uma arma tão traiçoeira quanto a mais
mortal das espadas...
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Digitalização e Revisão: Crysty

Copyright © 2006 by Cynthia Breeding

Originalmente publicado em 2006 pela Kensington Publishing Corp.


PUBLICADO SOB ACORDO COM KENSINGTON PUBLISHING CORP
NY.NY-USA Todos os direitos reservados.

Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com


pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

TÍTULO ORIGINAL: Camelot´s Destiny

EDITORA
Leonice Pomponio
ASSISTENTE EDITORIAL
Patrícia Chaves
EDIÇÃO/TEXTO
Tradução: Elsa Joana Frezza
Revisão: Giacomo Leone

ARTE
MônicaMaldonado

ILUSTRAÇÃO
Hankins + Tegenborg, Ltd.

MARKETING/COMERCIAL
Silvia Campos

PRODUÇÃO GRÁFICA
Sônia Sassi

PAGINAÇÃO
Dany Editora Ltda.

© 2007 Editora Nova Cultural Ltda

Rua Paes Leme, 524 – lº andar- CEP 05424-010. São Paulo - SP


www.novacultural.com.br

Premedia, impressão e acabamento: RH Donnelley Moore

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Prólogo

Glastonbury, AD 490

Farrapos de bruma formavam-se ainda na superfície do lago aquecido pelo sol, para
logo, envolvidos nas voragens do vento, desfazer-se em flocos ao longo da ladeira por onde a
menina Guinevere caminhava, descuidada.

O ar estava úmido e frio, coisa rara para um dia de primavera no País do Verão. Mas
ela não se importava. Erguia os braços, procurando apanhar as estranhas formas que a nebli-
na ia criando.

O menino de cabelos escuros apareceu de repente diante dela, emergindo da névoa


matutina. Vacilou e, antes que se desse conta, viu-se deslizando ladeira abaixo, rumo à
margem pantanosa do lago. Os cálices de nenúfares farfalharam, uma rã assustada pulou na
água. Ele segurou-a pelo braço antes que ela submergisse no alagadiço.

— De onde você veio? — ela balbuciou, os imensos olhos verdes refletindo ainda o
medo que sentira.

Ele hesitou.

— Não importa. Mas você, o que faz por aqui? Volte para sua casa. Este lugar é
perigoso.

Pondo-se de lado, ele puxou a espada de madeira que trazia na cintura e pôs-se a
duelar com um adversário invisível.

— Tenho seis anos! — ela gritou, sacudindo os cachos, castanhos dourados. — E


também sei manejar a espada.

O menino interrompeu bruscamente a brincadeira. — Mostre — ele a desafiou


sorrindo e entregou-lhe a espada com o punho virado para ela.

— O Destino começou a girar a Roda — sussurrou o vento, enquanto do reino


das fadas chegava uma luz tímida, que iluminou brevemente a orelha de Merlin e
depois desapareceu. O sagaz druida ergueu-se impetuosamente, deixando tombar a

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

cadeira de espaldar alto, o que provocou um atônito silêncio entre os monges e os


reis ali reunidos para debater o ressurgimento da Teoria Pelagiana.

Tolhido por sua ampla roupagem de monge, Merlin correu atrás das duas
crianças e alcançou-as. Seus olhos dourados dardejaram rapidamente sobre o
menino. Depois, seu olhar de águia pousou-se na menina.

— Crianças, não quero que brinquem tão perto dessas águas. São mais
profundas do que parecem à primeira vista. — Inclinou a cabeça na direção da
menina e continuou: — Vá para junto de seu pai, que está no mosteiro com seus
pares.

Guinevere ergueu o queixo voluntarioso.

— Antes, quero mostrar a esse menino que sei usar a espada.

Os olhos acinzentados do garoto de dez anos tornaram-se mais escuros e


Merlin conseguiu ver neles um certo ar de admiração.

O druida elevou-se em toda a sua estatura. Quando falou, a voz saiu-lhe


trovejante.

— Voltem já para as suas casas!

Ergueu a mão e percebeu que a menina sentiu o cutucão, embora não a tivesse
tocado. Os olhos arregalados de espanto, ela deixou cair a espada e correu ladeira
acima.

Merlin tornou a erguer a mão e a névoa os envolveu.

Capítulo I

Um brilho de revolta animou os olhos verdes de Guinevere.

— Eu não quero me casar com Arthur! — ela anunciou em alto e bom som.
Depois levantou-se da longa mesa de carvalho e encaminhou-se para a janela. Como

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

deveria agir para que seu pai a compreendesse, se ele nada sabia sobre o homem alto,
de cabelos escuros, que costumava visitá-la em sonhos?

Apoiou a cabeça ao batente e uma onda de nostalgia dominou-a. Ecos de


antigas emoções palpitaram em sua memória e, por um instante, o passado ficou ao
alcance de sua mão. Uma bela manhã de primavera... abelhas zumbindo em tomo
das macieiras... alguém mostrando-lhe como exercitar a espada de madeira...

Sons familiares, vindos do pátio, trouxeram-na de volta à realidade. Lá


embaixo, os dependentes de seu pai já davam início as suas tarefas diárias. Primeiro
foi o ferreiro, atarracado, peito vigoroso, que abriu a porta do barracão e pôs os foles
a funcionar. Quando os primeiros golpes de seu martelo começaram a soar sobre a
bigorna, já todos estavam em atividade.

As leiteiras corriam de um lado para o outro do pátio empedrado, arrastando


os latões de leite para a cozinha; os trabalhadores braçais dirigiam-se para os eirados
ou para o cultivo dos jardins; os oleiros cuidavam de manter seus fornos fumegantes.
Suas vidas rotineiras e seguras estavam bem estruturadas. Sabiam que Cameliard
zelaria por eles. E era isso o que ela mais desejava: que tudo continuasse como
estava. Sob os seus futuros cuidados, naturalmente. Voltou-se para o pai e comentou,
com menos veemência:

— O senhor vai longe em suas suposições, meu pai. Quem lhe disse que
Arthur quer se casar comigo?

Leodegrance recostou-se na cadeira e adiantou:

— Como você mesma disse, são meras suposições. O mensageiro veio apenas
anunciar a chegada iminente de Arthur e de Bedwyr. Desconfio que seja um gesto
político. Talvez venham discutir a conveniência de uma aliança permanente conosco.
Seria ótimo, porque temos que proteger a região norte de Eboracum. Na última vez
em que seu irmão aqui esteve disse-me que Arthur estava pensando em fixar-se
definitivamente em Camelot. Seu objetivo é unir todos os territórios bretões num
único Estado: a Bretanha. E isso toca o meu coração de patriota.

De súbito, Guinevere sentiu sua curiosidade aguçar-se.

— Quem é, afinal, esse Arthur?

— Um homem incorruptível, intransigente em suas opiniões, inflexível em sua


maneira de realizar o que ambiciona.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Um homem raro. Permita que ele se case com minha prima Elaine. Desde
que veio morar conosco, ela não faz outra coisa senão falar em casamento. As terras
de seu pai oferecerão mais proteção contra os bárbaros do que as nossas.

— Carbonek é uma imensidão inculta que ninguém quer, nem mesmo os


bárbaros. Pelles não está em condições de implantar e comandar uma fortificação. —
Leodegrance sacudiu a cabeça. — Arthur está mais preocupado com as investidas
dos saxões vindos do mar do Norte. Cameliard tem uma ótima localização e também
condições para receber a instalação de um alto comando. Além disso, sua prima tem
apenas catorze anos.

— E eu apenas dezesseis! Arthur tem trinta anos e já foi casado. Não me seduz
sua fama de Duque das Guerras. Para mim, isso significa apenas uma coisa: ele
estimula seus homens a guerrear.

Leodegrance interrompeu-a.

— Sabe o que aconteceria se ele desistisse de guerrear? Os saxões cairiam


sobre nós. Então, o que seria de Cameliard?

— Seja como for, não tenho a intenção de me casar. Nem agora nem nunca!
Fui criada para cuidar de nossas terras e de nossa gente. E é isso o que vou fazer.
Olhar pelos nossos dependentes para ter certeza de que sejam tratados justamente,
que suas despensas estejam sempre bem abastecidas, que haja sempre fogo em suas
lareiras. E depois, meu irmão vem prestando um bom serviço a Arthur. É o seu
trabalho e Bedwyr deverá realizá-lo até o fim de seus dias. Quem então cuidará do
senhor?

Leodegrance fez um gesto vago com a mão.

— Não sabia que você tinha a intenção de se dedicar inteiramente a


Cameliard. E não era isso o que eu pretendia para minha única filha.

Por que não? Aqui se vive com simplicidade, mas confortavelmente.

— Reflita, Guinevere. Você deve formar sua própria família. E esta é uma
oportunidade única.

— Meu lugar é aqui, papai.

Leodegrance empurrou para trás sua cadeira e levantou-se.

— Você é muito teimosa, Guinevere. Mas sinto orgulho em tê-la por filha.

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Ela correu para abraçá-lo.

— E é isso o que eu quero, papai. Que sinta orgulho de mim.

Guinevere enxugou o suor do rosto com a manga da camisa. A tarde estava


muito quente. Parecia verão, embora estivessem ainda em maio.

— Teremos tempestade ao cair da tarde — disse para si mesma, enquanto


escovava o pêlo sedoso de Cali, que agradeceu os cuidados com um empinar de
orelhas e um gentil relincho. Glena, a grande cadela rolfhound, fiel companheira de
todas as horas, concordou com um abanar de rabo.

Continuou seu trabalho, sem perceber que o tempo passava. As sombras já sé


alongavam, sinuosas, quando o estrépito das patas dos cavalos, transmitido pela
vibração do solo ecoou pelo ar quente como o surdo ribombar de um trovão. Deixou
cair a escova, limpou as mãos no avental e correu para a plataforma mais próxima.

Quando o grupo, formando um todo único com suas montarias, contornou a


casa, reconheceu o cavalo do irmão e também o estandarte do dragão. Arthur!

— Meu Deus! — exclamou em voz alta e persignou-se rapidamente. Nada a


havia preparado para uma chegada tão eminente. Vestia ainda calções de montaria e
camisa masculina, seu traje preferido. Mas, o que ainda era pior: cheirava a es-
trebaria!

Quando os cavalos diminuíram a marcha, passando do galope ao trote, soube


que não adiantaria se apressar. Não haveria mais tempo para mudar de roupa.
Desceu da plataforma de observação. Alisou a camisa, endireitou os ombros e
encaminhou-se para o centro do pátio com ar altaneiro.

Bedwyr e Arthur já se adiantavam do grupo e Guinevere ficou logo fascinada


com o animal que o Duque da Guerra montava. O garanhão era garboso, o negro de
seu pelame combinando com a cor de seus olhos, tão escuros quanto o céu noturno.
Via-se que era um legítimo puro-sangue.

— Que beleza! — murmurou, acariciando-o.

— Cuidado, Guinevere! — Bedwyr desmontou rapidamente e puxou-a pelo


braço — Valiant não é nenhum palafrém de dama.

— Sei reconhecer um palafrém de longe! — ela retrucou, olhando-o com


desdém.

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— Parece que você não mudou, irmãzinha. Sua língua continua afiada. Como
sempre. — Seus olhos brilharam, enquanto ele se inclinava para beijar-lhe o rosto. —
E também seu cheiro continua o mesmo.

Guinevere deu de ombros. Já estava acostumada. Bedwyr tinha uma língua


ferina e a usava sem piedade.

Arthur clareou á garganta. Embaraçada, ela ergueu os olhos. Ele estava ainda
montado. Sob seu exterior atraente e vigoroso, revestido de todos os símbolos do
poder, havia algo que a assustava. E a idéia de casar-se com ele não lhe despertava
nenhum entusiasmo.

Quando seus olhos se encontraram, teve consciência de que ele a inspecionava


da cabeça aos pés. Suas botas estavam sujas de barro, seus cabelos despenteados e
suas mãos imundas. O que ele não iria pensar? Apesar disso, disse com a maior dig-
nidade possível:

— Queira me desculpar, lorde Arthur. Ainda não lhe dei as boas-vindas.


Sinta-se em sua casa, por favor.

Arthur desmontou e aproximou-se dela esboçando um sorriso encantador.

— Não há com que se preocupar milady.

Sua voz era agradável, mas ela entreviu um lampejo de divertimento em seus
olhos.

Esse homem está se divertindo à minha custa!

Arthur pareceu adivinhar seus pensamentos, pois continuou:

— Estou verdadeiramente feliz em conhecê-la, Guinevere — reiterou,


correndo os dedos pelos cabelos da cor do trigo maduro.

Antes que ela pudesse agradecer-lhe, seu pai chegou apoiado à bengala e
cumprimentou-o efusivamente. Seguia-o Elaine que, como sempre, era o perfeito
retrato de uma dama. Suas trancas acobreadas contornavam-lhe a cabeça com
perfeição e o leve vestido azul que usava combinava com os olhos da cor de um céu
de primavera. Ao passar, deixou um leve perfume de rosas no ar.

Leodegrance olhou em torno e franziu os cenhos.

— Por que os palafraneiros ainda não vieram recolher as montarias? — Ato


contínuo, ele fez um sinal e os homens chegaram correndo.

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Valiant, porém, agitou a cabeça e bateu as patas no chão, recusando-se a segui-


los. Arthur voltou-se para ajudá-los, mas Guinevere foi mais rápida.

— Permita-me, senhor — ofereceu-se e, sem esperar resposta, apanhou as


rédeas.

O garanhão estudou-a por um momento e Arthur parou para observá-los.


Inesperadamente, o animal cheirou os ombros dela. Ela riu, acariciou sua crina e,
sossegadamente encaminhou-o ao padoque, virando-se apenas para lançar um olhar
triunfante ao irmão.

Mas foi Arthur quem encontrou seus olhos. E sorriu.

Estavam todos sentados à mesa da sala de jantar, quando ouviu-se um trovão


a distância.

— Teremos chuva ao anoitecer — observou Arthur olhando para o céu, onde


sombras vagas eram rasgadas por bruscos clarões. Ao voltar-se, seus olhos
encontraram-se com os de Elaine. — Meus cumprimentos. A refeição estava
excelente. Como conseguiu preparar tantos pratos em tão pouco tempo?

Elaine sorriu, extasiada.

— Obrigada, milorde. Gosto de satisfazer os homens convenientemente.

Arthur ergueu as sobrancelhas e alguém, atrás dele, limpou a garganta.


Guinevere corou pela prima. E resolveu tomar a palavra para não fazê-la passar por
tola.

— Lorde Arthur, gostaria de saber como conseguiu aquele magnífico corcel


negro.

— Palomides vai contar essa história. — Ele fez um gesto na direção de um de


seus homens: um sarraceno de cabelos dourados. — É meu chefe de cavalariços. O
único homem que lida com cavalos tão bem quanto Lance.

— Lance? — admirou-se Elaine. — Que nome estranho. Quem é ele?

Bedwyr respondeu:

— É o nosso melhor cavaleiro. Tem esse apelido porque sabe arremessar a


lança como ninguém. Seu nome verdadeiro é Lancelot.

— Milady gostaria dele — observou um dos capitães de Arthur. — Como a


maioria das mulheres, aliás,

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Uffin, o lugar-tenente, riu.

— Ele deve ter nascido sob a proteção de algum rito pagão. As mulheres
caem, literalmente, a seus pés.

Arthur acrescentou, com simplicidade:

— Ele salvou minha vida em Castellum. Eu estava distraído, não vi o saxão


que surgiu do meio do bosque. Lance cobriu-me com seu corpo e levou o golpe
destinado a mim. Foi ferido novamente há algumas semanas. Mas, agora, está em
franca recuperação. — Arthur guardou um silêncio meditativo. — Enquanto eu
viver, ele terá toda a minha proteção. — Ele voltou-se para Palomides. — Responda
por favor à pergunta de lady Guinevere.

— O cavalo que a fascinou vem de Meca, a cidade onde nasci — respondeu o


sarraceno com voz suave. — É um animal forte e resistente. Os cavalos dessa raça
galopam bem na areia. São rápidos como o vento tanto em solo firme quanto em solo
pedregoso.

Guinevere estava encantada.

— Todos têm a mesma compleição e a mesma leveza de Valiant? Nossos


cavalos de guerra são, em sua maioria, muito pesados.

Palomides sorriu.

— Valiant é um garanhão especial. Um dos melhores. Tive a sorte de


consegui-lo quando era ainda um potro novo.

— Tem mais desses cavalos em sua estrebaria? Foi Arthur quem respondeu:

— Temos a possibilidade de conseguir várias éguas e alguns garanhões. Mas


precisamos de muito mais do que isso para formar uma cavalaria ligeira. Gostaria
que a minha fosse composta apenas por essa raça de cavalos.

— Tamanha força certamente deteria os saxões! Os bárbaros costumam lutar a


pé, são obrigados a usar armaduras pesadas, que lhes dificultam os movimentos. Ao
passo que a nossa infantaria, apoiada por uma cavalaria de tal porte, poderia usar
vestiduras mais leves, permitindo que os infantes se movimentassem e sacassem com
mais rapidez a lança e a espada. É uma perspectiva animadora!

Arthur viu-a tão entusiasmada que declarou sorrindo:

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— Acho que vou convidar sua irmã para participar de meu Conselho de
Guerra, Bedwyr!

Guinevere surpreendeu-se.

— Dá tanta importância assim à opinião de uma mulher?

— Não tenho opinião formada a esse respeito. Jamais conheci uma mulher que
gostasse de falar de cavalos e guerras.

Guinevere preparava-se para retrucar. Mas, ao ver o olhar de advertência que


seu pai lhe lançou, permaneceu de boca fechada.

Lembrou-se do que Bedwyr dissera certa vez: Arthur saiu ao pai. Gosta de estar
em companhia de meretrizes jovens e bonitas.

Outro bom motivo para não me casar com um homem desses! Palomides
tomou um gole de vinho e comentou:

— Os sheiks dão mais valor a seus cavalos do que a suas esposas.

Elaine fitou-o sem falar durante um minuto.

— Em sua terra, os homens têm mais de uma esposa?

Leodegrance ergueu a mão para silenciá-la.

— Peço desculpas pela deselegância de minha sobrinha, Palomides. Ela ainda


não aprendeu a respeitar os costumes e as crenças de outros povos. — Leodegrance
lançou-lhe um olhar exasperado.

Palomides voltou-se para Elaine e explicou-lhe brandamente:

— A maioria de meus homens é pobre. Vivem todos fechados no círculo de


uma vida primitiva. Portanto, consideram uma honra ter uma de suas filhas casada
com um homem rico. Mas eu lhe asseguro: no novo lar, todas as esposas ocupam as
mesmas posições privilegiadas e todas são servidas solicitamente pela criadagem
escolhida pelo marido.

Elaine não parecia convencida e Guinevere lançou um olhar de soslaio ao pai.

— Acho que a escolha deve caber às mulheres.

Arthur reprimiu um sorriso.

— Já fez a sua Guinevere?

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Por um instante ela guardou silêncio. Então, lentamente, ergueu o queixo.


Olhos verdes fuzilantes encontraram-se com irônicos olhos cinzentos. Uma espécie
de eletricidade fluiu entre ambos, algo que não tinha nada a ver com a tempestade
que se avizinhava.

— Não tenho intenções de me casar. Não quero ir embora pura um outro


lugar, para um novo futuro. Quero ficar aqui, em Cameliard e um dia dirigi-la.

Arthur voltou a sorrir e Guinevere sentiu a cólera dominá-la.

— Acha que, por ser mulher, eu não seria capaz de administrar minhas
próprias terras?

— Acho-a capaz de qualquer coisa, milady — ele respondeu sem hesitar.

Antes que Guinevere pudesse prosseguir na discussão, Bedwyr interveio.

— O que há com você, Guinevere? Já não sabe que um dia terá de se casar?
Papai não viverá para sempre e eu também não.

— Não preciso da proteção de ninguém para sobreviver.

— Acredito — disse Arthur simplesmente, provocando os sorrisos e as


risadinhas sufocadas dos homens de seu séquito.

Guinevere sentiu a cólera dominá-la e gritou, exaltada:

— Se um dia eu decidir me casar, Arthur Pendragon, o senhor seria o último


homem que eu escolheria para marido!

Um silêncio, pesado como uma rocha, desceu sobre todos. Arthur deu de
ombros e o sorriso retornou a seus lábios. Mas seus olhos permaneceram sérios.

— É o que veremos.

O estouro de um trovão abafou suas palavras. Enquanto a tempestade


desabava com toda a sua fúria, trazendo consigo uma estranha mistura de temores,
Guinevere deu-lhe as costas e saiu correndo.

Nessa noite, não conseguiu dormir. O sono chegou de madrugada, leve e


inquieto, não o suficiente para refazer as energias, mas o bastante para alimentar seus
temores. Não tinha coragem de encarar o pai. Envergonhara-o diante de todos e
também ao seu irmão, transgredindo todos os códigos da boa hospitalidade. E o que
era pior: passara por tola diante de todos. O sentimento de humilhação cresceu em

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seu íntimo com fúria descomunal. Não esqueceria tão cedo a vergonha daquele
instante.

Elaine entrou no quarto sem bater e foi logo dizendo:

— Meu tio quer ver você, Guinevere.

Em seguida entrou Brisen, sua antiga ama e jogou as cobertas para o lado.

— Levante-se, menina. Rápido! Nunca vi Sua Senhoria tão fora de si. Não
queria estar em sua pele. A cólera de seu pai poderá ser terrível! Lembre-se disso e
vista-se com discrição. Hoje, nada de calções!

Guinevere ia protestar, mas conteve-se. Não era hora de argumentar com


Brisen nem de lembrar-lhe qual era o seu lugar. Mesmo porque, isso não faria
diferença alguma. Brisen era incontrolável.

— Também Arthur está esperando por mim? — Sentiu mais apreensão em


enfrentá-lo do que ao próprio pai. Seu comportamento fora imperdoável, mas não
iria pedir-lhe desculpas. De jeito nenhum!

— Arthur e seus homens partiram ao amanhecer. Quanto a seu pai e seu


irmão, sei apenas que eles falaram longamente com Arthur.

— Não me diga mais nada—disse Guinevere, ainda furiosa. — E agora saiam,


por favor. Quero ficar só.

Leodegrance estava ainda tomando sua refeição matinal, quando ela parou à
entrada da sala. Ficou a olhá-lo por um momento, depois sua confiança ruiu por
terra, convertendo-se cm desculpas proferidas em voz baixa.

— Papai, por favor! Eu não tinha a intenção...

— Cale-se, Guinevere! — ele falou em tom moderado, mas sua voz era
cortante como uma lamina de aço. — Desta vez, você foi longe demais! Usou sua
língua afiada como uma arma para atingir o nosso futuro Grande Rei. Ninguém em
seu juízo perfeito teria coragem para tanto!

Guinevere fitava-o, boquiaberta.

— Grande Rei? Do que está falando? Os reis menores, como o senhor, jamais
teriam permitido que... — Ela interrompeu-se e quase sentiu o coração despedaçar-
se, ao ver a dor que havia nos olhos do pai. — O que está acontecendo?

Leodegrance precisou de um minuto para se dominar.

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— Os saxões estão invadindo o mar do Norte e os Picts continuam sendo uma


ameaça. Isso sem falar dos Scotti do Eire! A única chance que nós, bretões, temos de
sobreviver é formar um fronte único, associando-nos, unificando nossas forças. E,
para isso, precisamos de um chefe. Um rei. Um Grande Rei!

— Arthur.

— Sim, Arthur. Dei-lhe minha palavra de que construiria aqui, em Cameliard,


uma fortificação permanente.

Guinevere exalou um suspiro de alívio.

— O senhor faria isso?

— Certamente que sim! Empenhei minha palavra. Não podemos desapontá-


los, podemos?

Horas depois, Leodegrance mandou chamá-la. Quando ela chegou, ele tomou-
lhe o rosto entre as mãos e contemplou-o longamente.

— Um rosto tão vivo... Poderei vê-lo corar de prazer? Sente-se, minha filha. —
Enquanto o fitava, ansiosa, ele continuou: — Arthur quer se casar com você.

— Quê? — Guinevere levantou-se impetuosamente. — Não pode ser verdade.


Ainda há pouco o senhor me disse...

Leodegrance interrompeu-a.

— E a mais pura verdade. E agora sente-se e ouça. Arthur tem pressa, Quer
apresentar logo um herdeiro a seus súditos, depois de proclamado rei. Um filho
legítimo, que perpetue seu nome e sua linhagem. É compreensível, não acha?

— Perfeitamente compreensível. Mas por que comigo?

— Parece que você se constituiu num desafio para ele. Achou você a mulher
mais espirituosa que já conheceu.

— Ele acha que pode me domar como se doma um cavalo bravo, é isso?

— Não, não! Ele acredita que a seu lado, a vida se tornará amável, diferente,
colorida, nova.

— Por favor, papai! Não quero ser rainha não permita que me levem embora
daqui. — Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela fez força para não chorar.

Leodegrance tomou-lhe a mão entre as suas e acariciou-a.

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— Pense bem, minha filha. Será uma grande honra para a nossa família. E
depois, estou convencido de que Arthur irá tratá-la realmente como sua rainha.
Perderia o apoio dos reis menores, caso traísse a confiança que depositamos nele.

Guinevere olhou-o muda, desesperada. Depois, sentindo que não havia um


meio de lhe fazer compreender que nunca, depois disso, sua vida teria o mesmo
encanto, baixou os olhos, vencida.

— Prepare-se — continuou seu pai, bruscamente. — Arthur mandará alguém


para escoltá-la até o Forte Cadwy's, rebatizado de Camelot diante de Cannulus, o
deus da guerra.

— Se Arthur faz mesmo tanta questão de me levar embora daqui, por que não
vem me buscar pessoalmente?

— Ele está viajando para o norte, mais exatamente para Lothian. Vai visitar
sua irmã Morgause, que enviuvou recentemente. Quando voltar, ele quer vê-la
instalada em Camelot. — Leodegrance esboçou um sorriso satisfeito. — Enquanto o
espera, poderá se divertir treinando aqueles cavalos do deserto que você tanto
admirou. Uma centena deles! Serão o seu dote de casamento.

Até o dia de seu casamento... alguma coisa desmoronou no íntimo de Guinevere.


Seus pensamentos se desgarraram e se desmantelaram em mil fragmentos, como um
vaso partido.

Tinha que haver um modo de evitar que essa loucura acontecesse!

Leodegrance apareceu à porta do quarto da filha e anunciou sucintamente:

— Cavaleiros à vista. Devem ser os homens de Arthur.

Quando ele se foi, Guinevere deixou-se cair sentada na beira da cama,


sentindo o gosto do fracasso e da desilusão. Passara as ultimas três semanas
esperando, nervosa, que esse dia nunca chegasse. Isso até aquele desolado momento.

Por três semanas, batalhara, arquitetara ameaças, valera-se de lisonjas e de


chantagem, com a intenção de reconquistar a liberdade. Ainda naquela manhã,
abordara o pai, e derramara palavras ardentes, impregnadas de lágrimas.

Ele aguardara um momento, até que ela se acalmasse e por fim confessara que
o poder da decisão cabia agora a Arthur.

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— Um Grande Rei tem o direito de tomar por esposa a mulher que mais o
agradar, sem que haja a necessidade de negociações de parte a parte. Tudo o que
tinha a ser dito já o foi. Agora, não há mais nada a fazer senão aceitar o inevitável.

Aquela revelação fora o auge de sua decepção. A percepção direta de que


perdera Cameliard para sempre.

Num gesto de revolta, atirou para longe as saias que Elaine estendera sobre a
cama e escolheu um par de calças e uma camisa de linho, seu traje habitual. Estava
ainda livre. Podia usar de sua liberdade como melhor entendesse.

Mais uma vez, Brisen tentou impedi-la.

— Nem pense em chegar assim à corte! O que não irão pensar? Que seu pai
não passa de um pobretão! Escolha um dos vestidos que sua mãe lhe deixou. São
todos muito finos.

— Como poderia cavalgar usando saias? — Aquele dia, não se sentia com
disposição para polemizar com sua ama.

Brisen vacilou, mas, por fim, venceu a sua relutância.

— Nesse caso, vou tratar da bagagem. Ao ficarem a sós, Elaine comentou:

— Você acha que Arthur irá permitir que a Grande Rainha NC vista como um
homem?

Guinevere olhou-a meditativamente. Grande Rainha. Grande Rainha da


Bretanha! Não pensara nisso. Certamente Arthur não seria tão cruel a ponto de
impedi-la de cavalgar. Ou de obrigá-la a abrir mão de seu direito de treinar os novos
cavalos que constituíam o seu dote.

O ruído de passos pesados no hall de entrada trouxe-a de volta à realidade. Os


homens de Arthur já haviam chegado para levá-la ao seu novo lar. Para longe de
tudo o que lhe era mais caro e familiar. Seria obrigada a usar vestidos, a freqüentar,
as lestas da corte, a receber homenagens e a retribuí-las.

Elaine, no entanto, parecia preocupada com outras coisas.

— Mulheres devem ter filhos. É nosso dever. Arthur é um homem bonito e


forte. E será rei. Ah, como gostaria que ele tivesse me escolhido...

Projeto Revisoras 16
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Eu também gostaria. Venha comigo à corte. Se gostar daquele sujeito


insuportável, tome-o para você. Eu não me importaria. Não quero me casar!

Brisen, que ouvira tudo, entrou no quarto correndo e deu-lhe um tapa.


Guinevere olhou-a, espantada, sem compreender a razão daquela fúria.

— Os homens de Arthur acabam de chegar — ela anunciou, em voz dura. —


Não pense em humilhar nem desacreditar seu irmão diante deles, ou terá que se
haver comigo! Agora desça e cumpra direitinho seu dever de dona de casa.

Guinevere fitou-a e, por um momento, foi tentada em devolver-lhe o tapa.


Ninguém parecia compreender sua ansiedade nem tinha idéia de como estava
assustada. Mas Brisen tinha razão. Como senhora de Cameliard, tinha deveres para
com seus hóspedes.

Lancelot acabava de entrar no salão nobre, quando um ruído de passos


femininos o fez voltar-se para a porta do corredor. A jovem que ali estava era bonita
e não parecia nem um pouco furiosa.

Esta mantinha os olhos baixos e um leve sorriso brincava em seus lábios,


enquanto se aproximava dele com a mão estendida, que ele tomou e sobre a qual
inclinou-se galantemente Ao erguer a cabeça, viu uma outra aparecer no limiar Viu-a
avançar sorrindo, e os cabelos da mesma cor dos raios do sol poente, esvoaçaram
atrás dela. Sua pele clara como alabastro estava rosada pela ansiedade que lhe
transbordava dos luminosos olhos verdes. Quando encontraram os dele, ela pareceu
surpresa, como se o tivesse reconhecido.

Mas durou apenas um segundo. Logo ela prosseguiu caminho, instalando-se


no meio dos outros convidados.

Lancelot contemplava-a de longe, embevecido. Havia nela algo familiar. De


onde a conheceria? Viu-a voltar lentamente para junto do pai. Apresentações foram
feitas e ela comportou-se corretamente.

Um sorriso polido, maneiras apropriadas... Mas o desespero que ela


procurava ocultar era algo quase palpável. Podia senti-lo pairando na grande sala
como uma nuvem cinzenta prenunciando chuva...

Suas divagações foram interrompidas pela jovem que estava ainda ao seu
lado.

Projeto Revisoras 17
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Sou Elaine — ela apresentou-se com voz suave. — A prima de Guinevere.


Vou acompanhá-la na viagem. Espero que possamos contar com sua ajuda.

— Naturalmente — ele replicou cortesmente. — Arthur pediria minha cabeça


se algo acontecesse à sua noiva. A propósito, gostaria de conhecê-la.

Elaine apertou os lábios, aborrecida. Lancelot percebeu e tornou a insistir:

— Quer me apresentar sua prima?

Guinevere viu Elaine aproximar-se com o desconhecido e saudou-o, curiosa.


Alto, magro, musculoso. O corpo de um cavaleiro e o rosto perfeito de um jovem
deus. Uma combinação extraordinária. Percebeu logo que Elaine o queria para si o
sentiu um inexplicável e urgente desejo de contrariá-la.

— Por favor, Elaine. Vá à despensa e peça a Rufus que nos sirva um bom
vinho.

Lancelot aproveitou o instante favorável para aprofundar-se numa reverência.

— Sou Galahad, milady, mas todos me chamam de Lance. — Sua voz,


agradavelmente modulada, continha um tom de intimidade que desmentia a
formalidade das palavras. — Fui escolhido para escoltá-la até o forte Cadwy's.

Ela encontrou seus olhos e, por um instante, sentiu-se perder em suas


profundezas. Quem era esse homem? Por que tinha a impressão de que o conhecia?

De maneira hábil, mas sem ignorar as regras da boa educação, levou a


conversa para outro campo. Lembrou-se do que ouvira durante a visita de Arthur e
comentou:

— Soube que o senhor e Palomides são competentes tratadores de cavalos.

— Os cavalos são minha paixão.

— E a minha também. Sabe quando chegará o novo lote?

Lancelot ficou surpreso.

— Teremos cavalos novos?

— Meu dote — ela esclareceu. — Cem cavalos sarracenos.

Ele ergueu as sobrancelhas e pareceu ainda mais surpreso.

— Vou ajudá-lo a treinar esses cavalos — ela anunciou em voz alta, com ar de
bravata: — Quer Arthur concorde, quer não!

Projeto Revisoras 18
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

O silêncio invadiu a sala, um silêncio quê permaneceu absoluto durante um


minuto ou mais. Então Lancelot sorriu, um sorriso que tornou seus olhos ainda mais
luminosos, e o mal-estar geral se dissipou. Foi como se o sol tivesse aparecido,
rompendo as nuvens, após um dia. de chuva fria e contínua.

Guinevere também sorriu, o primeiro verdadeiro sorriso que esboçava nos


últimos dias. Para comemorá-lo, Lancelot ergueu a taça em sua honra.

Os cavalos já estavam arriados e as carroças cheias de provisões e de bagagens


quando Guinevere chegou ao pátio usando seu traje habitual: camisa de linho,
coletes masculinos e botas de couro.

— Onde está Cali? — perguntou, lançando um olhar ao grupo de cavalos que


já se encontrava no pátio.

Leodegrance limpou a garganta.

— Brisen e Elaine viajarão em liteiras. Você, a futura rainha, devia fazer o


mesmo.

— Nunca em minha vida viajei em liteira, papai. Não estou acostumada. E


depois, os arranjos já foram feitos.

Leodegrance começou a replicar, quando Lance chegou, trazendo Cali e seu


próprio garanhão pelas rédeas.

— Achei que milady gostaria de viajar a cavalo — ele inclinou-se para a égua e
murmurou-lhe algo ao ouvido, enquanto balia de leve em seu joelho esquerdo.
Lentamente, o animal ajoelhou-se. Guinevere ficou encantada.

— Como conseguiu que Cali fizesse isso?

— Cali é uma égua inteligente, aprendeu depressa. Pode montá-la sem receio.

Guinevere deslizou rapidamente para a sela e a égua ergueu-a.

— Quero aprender como se faz — disse, entusiasmada.

— Será um prazer ensiná-la.

Leodegrance veio se despedir da filha.

— Boa viagem, Guinevere. Eu a verei no dia da coroação. Dentro de dois


meses.

Sua voz era tão indistinta e vacilante, que ela ficou apreensiva. Alcançou-lhe a
mão pálida, coberta de veias azuladas, e apertou-a entre as suas. Tornou a olhá-lo,

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

como se carregasse um pesado fardo... Seu coração confrangeu-se e parte da beleza


do dia dissipou-se.

Quando o pai se afastou, ela olhou para a frente, não se atrevendo a lançar um
último olhar. Seus olhos se anuviaram e uma sensação de solidão e isolamento
apoderaram-se dela, prostrando-a.

Aquela dor comoveu Lancelot. Teve a esperança de que podia consolá-la e,


quando acabaram de transpor o portão, veio colocar-se ao lado dela e manteve sua
montaria ajustada ao passo da égua.

Guinevere ficou grata pelo silêncio e também pela companhia. Algum tempo
depois, quando todas as lágrimas haviam sido jorradas, ela pediu:

— Fale-me sobre Arthur.

Aquela voz suave penetrou na mente e no coração de Lancelot. Voltou-se e


fitou-a.

— O que milady gostaria de saber?

— Tudo! Arthur esteve em Cameliard e eu, impensadamente, insultei-o. Para


preservar seu orgulho, meu pai resolveu adquirir os cem cavalos sarracenos que irão
constituir meu dote — ela disse com toda a simplicidade. — Eu também faço parte
desse dote. Sei que Arthur não me ama.

Lancelot ficou em silêncio por algum tempo.

— Arthur não é um homem vingativo. Não se casaria apenas para salvar seu
orgulho. Milady atraiu sua afeição.

Guinevere rejeitou enfaticamente a explicação.

— Isso não basta! Tem que haver uma certeza, um sentido.

Lancelot disse, então, com um sorriso e uma leve malícia no olhar.

— O amor raramente faz sentido.

— Eu teria preferido ficar solteira a me casar com um homem que certamente


me fará infeliz.

— Por que acha que ele a fará infeliz? Arthur é um homem bom, encantador.

— Mas eu o desafiei. Disse-lhe coisas duras! Agora ele vai querer me dobrar
até fazer de mim uma criatura dócil e obediente. — Ela ergueu o queixo, orgulhosa.
— Pois bem. Ele não me dobrará!

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— O amor não leva em conta as eventuais diferenças que há entre um homem


e uma mulher — observou Lancelot, pensativo.

Guinevere observou-o atentamente.

— Pelo que acabo de ouvir, parece que o senhor o estima de verdade.

— Considero-o como um irmão — confessou Lancelot. — E o apoiarei em


todos os seus sonhos.

— E qual é o sonho de Arthur?

— Pensei que já soubesse. Um sonho que conta tornar realidade: unificar a


Bretanha e torná-la uma nação próspera e poderosa. E eu o acompanharei. Não posso
imaginar Arthur lutando sem que eu esteja a seu lado.

Depois disso, Guinevere manteve-se num torpor do qual só saiu quando o


último fulgor do dia se extinguiu. O instante em que as primeiras sombras
começaram a envolver todas as formas visíveis, vieram chamar Lancelot para que ele
decidisse onde iriam acampar, antes que a noite tombasse por completo.

A primeira noite, quando Garient, um membro da escolta veio para cuidar de


Cali, ficou surpreso ao ver que Guinevere já cuidara de seu cavalo e estava, naquele
instante, desdobrando sua cama de campanha.

— Milady, já lhe preparamos uma tenda. Permita que eu a acompanhe até lá.

— Não é necessário, gosto de dormir a céu aberto. Até mesmo quando chove.

Garient tentou convencê-la da necessidade de dormir ao abrigo de possíveis


animais selvagens, mas ela foi taxativa. Não queria dar mais trabalho aos homens da
escolta.

A noite seguinte, Lancelot persuadiu-a de que era uma preocupação


necessária e ela não resistiu nem aos seus argumentos nem ao seu sorriso. Mas fez
questão de armar a tenda com as próprias mãos.

A partir daquele dia, não houve mais incidentes, a não ser causado pela
lentidão das liteiras, às queixas de Elaine, já que nos primeiros cinco dias a estrada
apresentou-se íngreme, desenrolando-se através de colinas ou florestas densas e
inóspitas.

Guinevere e Lancelot continuavam a cavalgar lado a lado.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ela gostaria de ouvi-lo falar sobre a vida no forte ou nos campos de batalha
onde Arthur primava, ganhando reputação de Senhor da Guerra. Certo dia,
enquanto seguiam através do fértil e luxuriante País do Verão, perguntou-lhe qual
era a sua origem.

— Ouvi dizer que é o príncipe de Benoic. É verdade?

— Sou filho do rei Ban. Tenho um irmão mais jovem: Ector. Minha mãe é a
Senhora do Lago Negro, no coração da Brocelândia. E minha irmã, Vivian, a Senhora
da Ilha.

— Você é pagão?

— Sou. Isso a incomoda?

— Não. Eu sou cristã e os padres nos ensinaram que os pagãos são perigosos.

— Eu lhe pareço um sujeito perigoso?

— Absolutamente não! O senhor me lembra... — Guinevere interrompeu-se e


mordeu os lábios. Não podia dizer que ele tinha unia semelhança fantástica com o
homem que lhe aparecia em sonhos. — Quero dizer, é como se eu o conhecesse há
muito tempo.

— Talvez nos tenhamos conhecido em outra vida.

— Os padres dizem que vivemos uma só vez. É por isso que devemos nos
comportar bem nesta vida. Para na outra não sermos queimados nas chamas do
inferno.

— Desconheço esse conceito de inferno. Para mim, não faz sentido. Acho que
teremos outras chances de aprendermos as lições da vida. Ninguém pode aprender
tudo em algumas décadas.

— Não tenho opinião formada a esse respeito. Arthur é também pagão?

— Não sei. Talvez. O pai dele era cristão, mas ele foi tutorado por Merlin, um
druida. Ele acredita em deusas e também em Cristo e em Woden.

— Woden, o deus dos saxões.

— Arthur é um homem tolerante também em matéria de crenças.

— Suficientemente tolerante para ser meu amigo? Gostaria de ter um amigo


no forte.

Lancelot sorriu.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Eu serei sempre seu amigo. Arthur não poderá me negar esse privilégio.

Guinevere exalou um suspiro de alívio.

— Foi bom ouvir isso: De agora em diante, não me assustarei mais.

— Ótimo!

A um dia de distância do forte, quando as sombras da noite já se espessavam,


Guinevere fez a pergunta que deixara para o fim:

— Arthur nos disse que o senhor lhe salvou.a vida. Quer me contar como foi?

— Tínhamos acabado de invadir a Gália. Os saxões estavam em retirada,


quando Arthur avistou Colgrin, seu líder, e quis capturá-lo. Eu vi um saxão sair do
bosque com a machadinha erguida. Arremessei minha lança contra a arma e a
desviei. — Ele suspirou. — O que eu não vi foi um segundo homem. Felizmente, eu
estava quase deitado sobre o pescoço de meu cavalo. O machado passou zunindo
sobre as minhas costas e não me decepou a cabeça, como ele pretendia. Mas foi por
um triz.

Guinevere levou o cavalo para bem junto dele e colocou a mão em seu braço
nu, ainda quente do sol da tarde.

— O senhor quase morreu! Não é de admirar que Arthur tenha lhe jurado
eterna gratidão. É a recompensa de sua felicidade.

Lancelot mexeu-se inconfortavelmente na sela.

— Eu e Arthur somos ligados por laços fraternos. Jurei protegê-lo sempre.

— O senhor já deu inúmeras provas de lealdade para com Arthur. Presumo


que será sempre assim.

— Arthur é um homem especial. Merecerá seu respeito e sua lealdade.


Exatamente como mereceu a minha:

Guinevere mudou de assunto.

— Não se conseguiria ir até o fim desta jornada, se não fosse pelo senhor.
Gostei de sua companhia, Lance... Lancelot. — Ela sorriu — Lancelot. Importa-se se
eu o chamar assim?

Ele esboçou um amplo sorriso.

— Gosto de ouvi-lo em sua boca.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Prosseguiram tão lentamente quanto permitia a marcha de seus cavalos,


comprazendo-se com aqueles últimos instantes de total intimidade. Um bem-estar,
que talvez não fosse uma reação do desalento em que mergulharia ao deixar
Cameliard, apoderou-se de Guinevere. E talvez viver em Cadwy's não seria tão
assustador quanto lhe parecera a princípio.

Capítulo II

Um giro de corpo, um passo para leste. Nimue ergueu os braços, em súplica e


assim ficou por um momento. Depois, lentamente, jogou a cabeça para trás e seus
longos cabelos prateados caíram-lhe até a cintura. Uma criatura da natureza,
iluminada por uma luz vinda de alguma estrela distante e transformando-se em
cintilações de sol.

Ao erguer o corpo, uniu sua voz à das outras sacerdotisas que entoavam
cantos saudando o final do dia. Cantos lentos, repassados de melancolia que,
quebrando o silêncio do lago sagrado, percorriam longos caminhos até chegarem
onde Vivian, A Senhora do Lago, conversava com Merlin, o druida-mor. Ele estava
ali, atendendo ao chamado da alta sacerdotisa, e Nimue perguntou-se por quê.

As noviças terminaram suas orações e seguiram em fila em direção ao outeiro.


Nimue deteve-se. Era hora do crepúsculo, e o disco incandescente do sol refletia-se
nas águas do lago, onde uma brisa fresca começava a encrespar. Quando o fulgor
desapareceu e as águas retomaram sua primitiva cor acinzentada, fez-se um
profundo silêncio.

Nimue parou um instante sob uma jovem bétula e aguçou os ouvidos a ecos
sussurrantes. Sons da conversa que o druida mantinha com Vivian chegaram até ela.

— As deusas estão vivas. Até mesmo os cristãos reconhecem o poder da Mãe,


como eles as chamam. Mas as pessoas estão confusas. E é exatamente por este motivo
que Arthur deve seguir tanto os novos quanto os antigos caminhos. No dia da

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

coroação, haverá uma missa cristã para agradar os romanos convertidos. E logo em
seguida o Grande Rito, orgulho de nosso país e de nosso povo. É sua missão.

Nimue estremeceu, embora a noite estivesse cálida e o ar perfumado pelos


jasmineiros floridos.

A noite escura, sem lua, despertava em Nimue medos estranhos. Sentia-se


aterrorizada e prisioneira de enorme uma apreensão. Seu mal-estar cresceu quando a
noviça Etain chegou, apressada.

— À Senhora quer falar com você.

Um instante depois, ainda respirando com dificuldade, batia à porta de lady


Vivian. Ao entrar, ficou surpresa ao ver Merlin ainda ali. Mas reprimiu todo
sentimento que pudesse trair seu espanto.

— Senhora... — murmurou, em tom respeitoso.

— Sente-se, Nimue.

Enquanto esperava que a Senhora se manifestasse, estudou a tapeçaria que


cobria uma das paredes do aposento. Representava um veado branco sobre um
aveludado fundo verde-esmeralda.

Como um mensageiro do sobrenatural, ele revelava mistérios, quando bem


observado.

Merlin interrompeu-lhe os pensamentos.

— Os reis da Bretanha reuniram-se em Conselho. E todos concordaram em


eleger Arthur como o Grande Rei.

Nimue endireitou-se na cadeira. Conhecera Arthur anos antes e o que o


aproximara de seu coração fora algo que havia nele e que jamais encontrara em
qualquer outro homem.

— Que Arthur seja abençoado! A Bretanha unificada deterá o avanço dos


bárbaros.

— A unificação representa apenas o começo, Nimue. Arthur irá restabelecer a


justiça, a imparcialidade e também a tolerância. As deusas voltarão a reinar!

Nimue supôs que Merlin estivesse simplesmente sonhando. Não distante, a


perspectiva era excitante. A Antiga Religião prevaleceria. As famílias enviariam suas

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

filhas para serem educadas e a casa das noviças ficaria outra vez cheia de jovens
ansiosas...

—Nimue — disse Vivian gentilmente —, você tomará parte desse destino.

A jovem sacerdotisa foi tomada de arrepios. Mas nada disse. Apenas assentiu.

Merlin tomou novamente a palavra.

— Por ora, os reis concordaram em auxiliar-se mutuamente. Mas chegará o


momento em que surgirão diferenças entre eles. As crenças nos antigos costumes
serão contestadas. Os seguidores da nova religião tentarão se impor.

Nimue olhou de um para o outro.

— Qual será a minha participação nisso?

— Em épocas passadas, quando a terra não era ainda fértil, costumávamos


sacrificar um rei por outro, com a esperança de que tudo se resolvesse. Agora, não
sacrificaremos mais os nossos reis. Mas o povo quer a prova de que a Grande Mãe
aceita aquele que escolhermos. Para tal, o Grande Rito deverá ser restabelecido.

Vivian inclinou-se para a frente.

— E preciso que Arthur estenda seus louvores também a nossa Deusa, que
escolherá o meio pelo qual ela agirá. O ritual em si, já é suficiente. Mas se um filho
resultar desse ato, a terra será duplamente abençoada.

— E eu... eu serei esse meio? — balbuciou Nimue.

Vivian assentiu solenemente.

— Senhora, quando vim para cá, eu era apenas uma noviça. Agora sou
sacerdotisa. Meu dom é a Visão. Não perderei meu poder, se me entregar a um
homem? Pensei que fosse permanecer virgem para sempre.

— Essa união será o sinal de que a Grande Mãe aceitará seu filho, se ele vier. A
soma das energias feminina e masculina será um perfeito exemplo de igualdade. O
símbolo do futuro da Bretanha. A Visão que você possui foi um presente da Deusa. E
ela não virá retirá-lo. A menos que haja um motivo muito forte para isso.

Nimue abaixou a cabeça.

— Eu assumi um compromisso. Que seja abençoado!

As fadas chegaram esvoaçando ao redor dela.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não seja pessimista, Nimue. Poderá ser divertido! — suas risadinhas


ressoaram no silêncio da noite como um sino de prata.

— Voltem já para cá! — ordenou Merlin, irritado.

E as pequenas fadas verdes, delicadas como libélulas, foram se agrupar atrás


dele.

— Nimue — tornou Vivian —, Arthur irá precisar de sua ajuda. Não só agora,
mas também no futuro.

— De que modo eu poderia ajudar? O Reino é um mundo leito para os


homens e para as suas guerras.

Vivian replicou:

— Para compreender o mundo espiritual, você precisa compreender também


o mundo físico: o Superior e o Inferior. — Nimue nada disse e Vivian continuou: —
Merlin está precisando de sua ajuda. Teve uma visão parcial que o deixou per-
turbado. Conte-lhe o que viu, meu amigo.

Merlin começou, hesitante:

— Vi apenas fragmentos... um veado adulto abatido... Morgana, a irmã de


Arthur... há uma aura escura envolvendo-a, mas não sei qual é o motivo... — Ele
calou-se, ao ver Nimue enrijecer-se subitamente e seus olhos azuis brilharam. Logo
em seguida sua testa perlou-se de suor e ela entrou em transe.

Duas mulheres cavalgam ao encontro de Arthur. Uma delas é pequena e tem


cabelos escuros. A outra tem cabelos acobreados... Há algo entre elas, uma espécie de
hostilidade que torna a morena vulgar, quase feia...

Merlin moveu tristemente a cabeça.

— Não sei quem é a segunda mulher, mas a morena é Morgana. Ela é ávida
pelo poder e permanecerá em constante vigilância. Quando souber que Arthur será o
próximo Grande Rei, tentará aproximar-se dele. Nimue, sua presença na corte será
necessária. Morgana é a encarnação do Mal!

— Quer que eu vá à corte? Mas minha vida é aqui! — ela voltou-se para
Vivian. — Não me prepararam para um dia tomar o seu lugar, Senhora?

Vivian sorriu gentilmente.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Para tomar-se a Senhora é necessário saber como o mundo funciona.


Conheça as ambições dos homens e sua luta pelo poder, as culpas que os
atormentam, a luxúria que os degradam, as loucuras que os diminuem. Ou então
nosso mundo continuará a girar como uma Roda. Para nada. Vá com Merlin e
aprenda com ele tudo o que puder.

Nimue sentiu que as forças lhe faltaram.

— É esse o desejo da Deusa?

— Sim, filha.

— Então, terei que obedecer. Quando devo partir? Foi Merlin que respondeu:

— O dia seguinte a Lygnasad, que é o dia sagrado do casamento do rei com a


terra, ou seja, dentro de algumas semanas. E se Morgana já estiver indo ao encontro
de Arthur, não teremos tempo a perder. Partiremos logo.

Nimue prendeu a respiração e olhou para Vivian. Foi liberada com um quase
imperceptível aceno de cabeça. Saiu correndo antes que lágrimas mal contidas lhe
escorressem peio rosto, num jorro de desespero e de dor.

O leve e adocicado perfume de maçãs verdes espalhava-se pela noite sem lua,
quando Nimue, carregando consigo a caixa do ritual, seguiu lentamente o Caminho
Processional que levava ao Lago Sagrado. Sobre sua cabeça, milhares de estrelas
salpicavam um céu de veludo negro.

Ao chegar ao sopé da colina, procurou a grande rocha que servia de altar.


Ajoelhou-se e tirou uma pitada de incenso da caixa, colocando-o a seguir no alto da
rocha. Esfregou a pederneira e logo uma chama soltou, amarela e azul. Abanou-a
com a mão e quando as centelhas acenderam-se na escuridão, santificou o ar. O
incenso subiu numa espiral de fumo azul.

Satisfeita, sentou-se à margem da lagoa, que aquela noite espelhava um céu de


ébano, e, cuidadosamente, recolheu um pouco de água, o suficiente para umedecer
os treze pontos de contacto de seu corpo. Assumiu a posição de ritual e fechou os
olhos.

— Mãe de todos, não se esqueça de sua serva. Ajude-me a compreender por


que devo deixar Avalon.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Tudo em volta era silêncio, rompido apenas pela canção do vento


perpassando por entre as árvores. Mas seu espírito não lhe trouxe nenhuma
mensagem. Tentou novamente:

— Quero apenas saber por que devo partir. Não posso cumprir minha tarefa
aqui mesmo?

Lentamente, a imagem de um veado de belas galhas, formou-se em sua mente.


Enquanto ele se erguia regiamente, um gato preto irrompeu das trevas. O macho deu
um pulo, mas não derrubou a estranha criatura. Limitou-se a sacudir a cabeça, para
depois, olhar diretamente para Nimue. Ela quis ajudá-lo, mas estava mergulhada em
seu transe.

Subitamente, os dois animais tomaram formas diferentes. O veado


transformou-se num homem e o gato numa mulher de longos cabelos negros e tez de
alabastro. Aproximaram-se e puseram-se a dançar, girando cada vez mais depressa
até que, cansados, deixaram-se cair ao chão, o membro dele inserido profundamente
na feminilidade da companheira.

A imagem desapareceu e outra substituiu-a: a de uma criança de cabelos


negros e olhos acinzentados que se tornou um adulto diante dos olhos espantados de
Nimue. Ele soltou um grito de desafio e o veado-rei tornou a aparecer, escavando o
chão. O desafiador tomou outra forma. Havia agora dois veados adultos, que
andavam em círculo, um observando o outro. Por fim, o mais jovem decidiu-se,
investindo contra o outro. Poeira e folhas secas rodopiaram no ar, toldando sua
visão. Quando a luta terminou, o veado mais velho jazia no chão, aparentemente sem
vida.

Nimue voltou bruscamente à realidade. Permaneceu imóvel até que sua mente
clareasse e então pôs-se a galgar a colina. Sabia que tivera a mesma visão de Merlin e
sabia também que devia evitar que essa luta ocorresse. Se tivesse esse poder.

Estacou de repente e voltou-se, já imaginando o que iria ver. O veado adulto


estava saciando a sede nas águas do lago. Pressentiu-a, talvez, porque ergueu a
cabeça para olhá-la. Então, graciosamente, trotou para as sombras do bosque.

Por mais um momento ela permaneceu olhando para baixo. Então virou-se e
prosseguiu caminho encosta acima.

— Ele fez o quê? — perguntou Nimue ao jovem soldado, diante do olhar


enfadado de Merlin.

Projeto Revisoras 29
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Estávamos no dirigindo para Lothian e Arthur achou que seria um bom


momento para confirmar a aliança que Leodegrance lhe havia prometido. — Gryflet
hesitou, antes de continuar: — Arthur conheceu Guinevere. Ela é linda, meu senhor,
mas que temperamento... Mal começaram a falar e já estavam discutindo!

Merlin ficou exasperado.

— Vamos logo ao que interessa, homem! Ou prefere que eu lhe arranque as


palavras da boca?

— Guinevere disse-lhe claramente que não queria se casar. E que se um dia se


resolvesse a isso, ele seria a última pessoa do mundo que escolheria para marido.

Merlin emudeceu.

— Apesar de tudo, ele vai se casar com ela, senhor.

— Por Mithras! Onde está Arthur? Preciso falar com ele. Imediatamente!

— Deu-me ordens para que eu preparasse tudo o que fosse necessário para
um casamento perfeito e depois partiu.

— Partiu?... Para onde?

— Foi visitar a irmã, que enviuvou recentemente. Quer ter certeza de que ela
não precisa de nada.

Merlin deixou escapar um som estrangulado.

— Você conhece Morgana. Ela é uma mulher perfeitamente capaz de manter


os saxões fora de seus domínios sem a ajuda de ninguém. Essa viagem não lhe
pareceu estranha?

— Não tão estranha assim, tratando-se de um homem como Arthur —


suspirou Gryflet. — O fato é que dispomos de menos de duas luas para preparar
tudo. Por sorte, lady Ygraine já está aqui. Poderá nos ajudar.

Merlin dilatou as narinas e sorveu o ar num hausto cheio. Imediatamente,


Nimue leu seus pensamentos:

Tão depressa? Não temos tempo a perder. Talvez possamos controlar a questão e
impedir que esse casamento aconteça! Nimue apertou os lábios e abanou a cabeça. Já era
tarde demais.

— E Guinevere? Arthur a trará consigo na Volta?

— Não, senhor. Mandei uma escolta buscá-la.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Nimue foi subitamente envolvida por um frio mortal. Teve uma rápida visão
de um menino de cabelos negros e de uma menina de cabelos acobreados
compartilhando a mesma espada de madeira e de um monge correndo para separá-
los. Já estava predestinado.

— Quem foi buscar a jovem? — A voz de Merlin era puro gelo.

Gryflet olhou-o com surpresa.

— Lance... Lancelot, senhor.

O fogo, que até então estivera em combustão lenta na lareira, explodiu em


chamas.

— Deixem-me a sós! — gritou Merlin.

Gryflet não perdeu tempo. Afastou-se sem demora, com o grupo de fadas
esvoaçando atrás dele. Algo nesse casamento não ia bem. Mas o quê? E por quê?

Morgana jogou para o lado as cobertas de pele e lançou um olhar para o


homem de meia-idade: Uriens de Rheged, seu marido. Ele dormiria profundamente
aquela noite: uma pitada de meimendro na taça de vinho e o caminho estava livre!
Seu amante a esperava.

Um calor delicioso percorreu-lhe o corpo. Accolon irradiava um magnetismo


animal que a atraía de forma irresistível, despertando-lhe uma paixão selvagem.

Vestiu a túnica e desceu as escadas, rumo ao pátio deserto. Lançou um breve


olhar em torno, antes de entrar na baia. Seus olhos ainda não haviam se ajustado à
escuridão, e já duas mãos fortes rodeavam sua cintura e a depositavam sobre uma
cama de feno fresco. Sua túnica foi arrancada, expondo seus seios-brancos e macios.
Accolon.

Morgana sentiu-lhe a rigidez íntima e sua força impetuosa. Desvairada,


gritou:

— Machuque-me!

— Quê!...

— Machuque-me... como fez da última vez!

Ele retraiu-se, parecendo estranhamente ausente. Morgana soergueu-se,


aborrecida.

Projeto Revisoras 31
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— O que há, Accolon? Não represento mais nada para você?

Ele não respondeu.

— Existe outra?

— Não.

— Então, o que há?

— Encontrei Medraut, ao vir para cá. É muito cedo para um menino de sete
anos andar por aí.

— Medraut tem manias estranhas.

— Ele teve a coragem de me perguntar para onde eu estava indo.

Morgana desmanchou-lhe os cabelos, num gesto de carinho.

— E o que você lhe disse, meu amor?

Accolon fitou-a, chocado.

— O que ele estava fazendo fora de casa? Parece que Uriens não se importa
muito com ele.

— Deve ser porque Medraut não é filho dele... — Morgana Interrompeu-se


bruscamente. As palavras haviam-lhe escapado da boca sem querer. A hora da
verdade ainda não havia chegado. Tinha que tomar cuidado.

Mas Accolon parecia mais preocupado com seus próprios problemas.

--- Acho que devíamos parar de nos ver por algum tempo.

— Está com medo de Uriens? Posso aumentar a dose de divas que costumo
misturar ao vinho dele.

— Não!— ele gritou, aterrorizado. — Não me agrada saber que você está
drogando seu marido. Uriens é um bom rei para seu povo. E um dos mais fiéis
aliados de Arthur.

— Não se preocupe. Não estou pensando em matá-lo. Sei o que estou fazendo.
— Morgana levantou-se e vestiu a túnica.

Accolon também levantou-se.

— Acho que deveríamos parar de nos ver. Apenas por algum tempo.

Morgana sentiu o golpe em cheio. Mas disse, com voz macia:

Projeto Revisoras 32
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Quer parar, mesmo? — Abriu a túnica e esfregou os seios no peito dele.


Depois virou-se e desapareceu nas sombras.

Logo pela manhã, banhada e reanimada, Morgana saiu para o pátio


pintalgado de sol, levando consigo o pequeno Medraut.

Junto ao muro havia uma pérgola sobre a qual pendiam lânguidas e fartas
madressilvas. Sentou-se e ficou observando o menino que se exercitava com a espada
de madeira.

A paz matutina foi interrompida pelo ruído abafado de cascos de cavalo.


Ergueu os olhos e viu um cavaleiro que se aproximava do portão, em meio a uma
nuvem de pó. Ficou a observá-lo, enquanto ele entrava. Usava as cores de Arthur,
vermelho e dourado.

— Que mensagem nos traz? — perguntou, curiosa, quando ele se aproximou.

O homem fez-lhe uma reverência e entregou-lhe o rolo de pergaminho no


exato momento em que Uriens saía de casa. Morgana lançou um olhar rápido.à
mensagem. O texto em latim, começava com saudações e terminava anunciando o ca-
samento de Arthur.

Passou o pergaminho ao marido, adiantando:

— Teremos uma nova rainha em breve.

Uriens alegrou-se.

— Estava mais do que na hora! Quem é a mulher de sorte?

Morgana fitou-o.

— Ou sem sorte. Duvido que Arthur esquentará uma só cama por muito
tempo.

O mensageiro de Arthur endireitou-se na sela, visivelmente aborrecido.


Uriens lançou um olhar de advertência à mulher c pôs-se a ler.

— Que notícia maravilhosa! — Ele fez um gesto na direção do mensageiro. —


Entre homem! Venha me fazer companhia na refeição matinal. E conte-me tudo o que
sabe sobre esse casamento.

Morgana lançou um olhar de desdém aos dois homens que se afastavam; o


pequeno. Medraut percebeu e aproximou-se Dela.

— Você não parece contente, mamãe.

Projeto Revisoras 33
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Toda a sua compostura se desfez, enquanto o fitava, zangada e medrosa.


Medraut parecia ter um dom especial para aborrecê-la. Confrontava-a sempre nos
momentos menos oportunos.

— Absurdo! Eu estava apenas pensando nos preparativos que teremos de


fazer para a viagem. Seu tio Arthur vai se casar. E, logo a seguir, será coroado
Grande Rei da Bretanha. — Morgana sorriu de repente. — Sabe o que isso significa?
Você é sobrinho dele... é possível que um dia seja também seu herdeiro.

— Ele não tem filhos?

Tem, sim. Você, e ela quis dizer, mas falou apenas:

— Você faz perguntas demais. Continue a praticar com essa espada, caso
contrário não poderá tornar-se rei. Agora vá.

Morgana levantou-se e desceu lentamente a trilha que levava ao jardim


cercado de muros e daí para uma área oculta atrás do parreiral onde cultivava ervas
especiais. Deixou-se cair no relvado ainda úmido de orvalho, seus dedos acariciando
as folhas recortadas de algumas espécies de plantas às quais se deliciava
secretamente.

Seu olhar vago deteve-se na pequena lagoa de águas esverdeadas. O que vira
ali eram os dias de infância, o castelo em que passara os longos verões, seus
desesperos juvenis, quando o despertar da imaginação a lançava numa prostração
cheia de desejos.

Aos catorze anos, seu pai a enviara para Amesbury Abbey porque fazia
perguntas demais em casa e era ainda muito jovem para se casar.

A vida no convento não se ajustara ao seu temperamento irrequieto, embora


tivesse ganho a reputação de curandeira, pois possuía um dom natural para
herborista. Evidentemente, as irmãs não sabiam que ela praticava também a magia
negra, que aprendera em Tintagel, com uma velha feiticeira.

Os homens a fascinavam. Vira o ferreiro da vila trabalhar sem camisa, os


poderosos bíceps à mostra, os músculos das costas saltados, quando manejava o
martelo e a bigorna, e logo imaginava aqueles braços fortes erguendo-a. Seu corpo
incendiava-se de desejo e sua respiração acelerava-se. Tivera essa mesma reação
quando conhecera o alto céltico, tratador de cavalos, que iluminara sua juventude
com o calor de seus beijos... Suportara a monotonia do convento durante oito longos

Projeto Revisoras 34
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

anos. Pouco antes de sair, durante os festejos de Beltane, conhecera Arthur. E sentira
a primeira e verdadeira tentação de sua vida.

Soubera que os homens de Uther estavam acampados na vizinha


Ambresbyrig. E prometera a si mesma que aquela noite abrandaria o constante calor
que fazia seu sexo palpitar.

Saiu sem fazer ruído, enquanto as irmãs estavam em Compline. As fogueiras


estavam se extinguindo e as encostas das colinas começavam a silenciar. Mas nas
tavernas, havia ainda cantos e risos. Entrou numa delas e ficou imóvel, contemplan-
do, fascinada, o homem que estava sentado à sua frente e que, subitamente, lhe
pareceu o mais belo dos homens. Sentiu uma onda de calor subir-lhe ao rosto e uma
confusa sensação de voluptuosidade invadir seu corpo. Será com ele, pensou.

Ao sair baixou o capuz da túnica preta e escondeu o rosto com uma máscara.
Ocultou-se a seguir nas sombras de um pequeno grupo de árvores, onde moitas de
samambaias e de espinheiros formavam uma cerca-viva, criando um refúgio
conveniente. Dali podia ver sem ser vista. E esperar.

Deixou passar alguns grupos de bêbados e mais duas ou três pessoas, até que
o viu. Estava sozinho, felizmente. Deu um passo para a frente e postou-se no meio da
estrada.

Quando a viu, ele parou bruscamente e olhou-a, estupefato.

— Quem é você?

— Siga-me — ela disse simplesmente e voltou ao refúgio.

Como em transe, ele a seguiu.

Morgana tirou o manto e estendeu-o no chão. Depois fez um sinal com a mão.

— Venha.

Ele tirou rapidamente as roupas e aproximou-se. Ela olhou para aqueles


ombros amplos, quadris estreitos, coxas musculosas e achou-o ainda mais belo do
que os deuses que enfeitavam os frontões dos templos pagãos. Quando o abraçou,
encontrava-se num estado de total ansiedade. Sentiu-lhe o calor, a rigidez do corpo e
sua força impetuosa, e o atacou.

Levado pela torrente precipitada do desejo, ele tomou posição diante dela e
penetrou-a profundamente, sem se importar com os agrados nem com seus gemidos,
cada vez mais incontroláveis.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Pouco depois, tudo estava acabado. O desconhecido rolou para um lado e


levantou-se. Mas Morgana não se mexeu, tal a dor que sentia. Foi tomada de uma
lassidão extrema, quando algo viscoso, começou a lhe escorrer por entre as pernas.
Sangue?

Ele ficou surpreso e acabrunhado.

— Você era virgem!... Por que não me disse?

Subitamente, um ruído compassado de botas, vindo da estrada, ressoou no


silêncio da noite. Alguns homens, obviamente embriagados, gritavam:

— Arthur! Arthur! Onde está você?

O desconhecido começou a vestir-se, sussurrando:

— Meus homens! Fique aqui até que eles sigam seu caminho.

Ela fez menção de levantar-se e ele tornou:

— Não pretendia fazer-lhe nenhum mal. Eu apenas pensei que você quisesse...
— Ele inclinou-se, beijou-a profundamente e se foi.

Ela nunca soube que desculpas ele deu a seus homens pelo atraso. Mas
lembrava-se ainda daquela mistura de dor e de prazer que sentira quando ele a
penetrara e da doçura daquele beijo. Ele fora seu primeiro homem, tornara-a mulher.
Tornaria a vê-lo um dia? Sentia que sim.

Morgana voltou do passado com um sobressalto. Quanto tempo deixara-se


ficar ali para viver em sonhos, não saberia dizer. Talvez uma ou duas horas, pois o
sol já estava alto no céu.

Fixou seus pensamentos no futuro. Agora que Arthur se tornaria monarca-


coroado, Medraut seria seu herdeiro por direito. Ela também tinha direitos a
reclamar: queria ser proclamada consorte do rei. Era algo que podia acontecer
mesmo com Guinevere como rainha. Antes, porém, deveria impedir que aquela
jovenzinha petulante engravidasse. Pelo menos até que Arthur perfilhasse Medraut.
Tinha meios de conseguir isso.

O fato de que seu filho tivesse sido concebido por intermédio de um incesto
não a incomodava nem a envergonhava. Fora o destino a empurrá-los um para o
outro, quando ainda não se conheciam.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Agora, tinha outros problemas a resolver. Acariciou suas plantas, pensando


que a lua seria vazia aquela noite, propícia para começar logo o encantamento. Sabia
que possuía poderes para isso, poderes que eram inatingíveis ao mais comum dos
mortais. Sabia também que, ao usá-los, sua sorte poderia mudar.

Encontrou-se com Uriens pouco depois.

— Tive uma idéia maravilhosa — disse, passando-lhe os braços pelo pescoço e


mordiscando-lhe o lobo da orelha. — Dentro de poucos dias Guinevere será minha
cunhada, quase irmã. Ela é muito jovem. Talvez goste de ter por perto uma mulher
mais experiente com quem possa se abrir e aconselhar. — Morgana sorriu
docemente. — Seu eu chegar mais cedo a Cadwy's, terei tempo de conhecê-la melhor
e informá-la Sobre seus deveres de esposa e rainha. Talvez seja necessário que eu
prolongue minha estada no forte. Mas você não se importaria, não é?

Uriens acariciou-lhe o rosto.

— Gosto quando você se mostra bondosa comigo e cornos outros. Sua


cunhada é uma mulher de sorte em ter você por perto.

Ela o beijou carinhosamente, enquanto pensava que medidas tomar para que
Accolon a escoltasse até o forte. O mais difícil seria convencê-lo. Isto feito... Um
sorriso cismarento entreabriu-lhe os lábios. Ia ser muito divertido...

Capítulo III

Continuaram a marcha em passo rápido por uma estrada orlada de salgueiros


que parecia não ter fim. Avistaram o Forte Cadwy's quando o sol se erguia no
horizonte, os primeiros raios envolvendo a imponente construção num brilho
fulgurante.

Guinevere sentiu-se de novo hesitante, certa de que cometera um erro. Não


era um simples forte, como imaginara. Era uma verdadeira cidadela romana: a alta

Projeto Revisoras 37
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

torre quadrada cercada de construções menores cobertas de musgo, o grande pátio


interno, outras torres ameiadas nos muros exteriores para defesa de cada um de seus
ângulos...

Mergulhou em desalento. Como poderia dirigi-la? Seria uma carga muito


pesada em suas mãos. Era uma perspectiva realmente sombria, para a qual ninguém
a havia preparado.

Lancelot percebeu-lhe o desespero e colocou-se ao seu lado.

— O forte, visto de fora, é realmente intimidante.

— É mais do que isso. É assustador!

— Era um baluarte, talvez o maior, para as legiões romanas — ele explicou,


compreensivo. — Agora, abriga cerca de mil soldados bretões, mais a criadagem.
Mas Cai, o irmão de Arthur, é um administrador eficiente. É ele quem dirige o forte.
E o faz com mão de ferro. Quanto a isso, fique descansada.

As carroças, as liteiras e a escolta já transpunham o portão, quando ela tomou,


desesperada:

— Não posso assumir esse compromisso. É algo superior às minhas forças.

Por um instante, os olhos dele tornaram-se sombrios, como u mar em um dia


de tempestade. Depois voltou a sorrir, um sorriso que transmitia segurança eterna.

— Eu estarei aqui, para ajudá-la no que for preciso.

O calor de seu sorriso e de suas palavras encorajaram-na.

— Fique sempre ao meu lado. Eu lhe peço.

Guinevere deteve sua montaria a poucos metros atrás das liteiras. Uma
senhora, com ares de rainha, achava-se num dos degraus externos da enorme
escadaria, obviamente para dar-lhes as boas-vindas.

— A rainha Ygraine de Tintagel — sussurrou-lhe Lancelot. — A mãe de


Arthur.

Quase no momento em que Lancelot a identificou, Elaine afastou a cortina da


liteira e aceitou a mão do soldado pressuroso que a ajudou a descer. Embora tivesse
passado dias viajando por estradas poeirentas, ela parecia fresca e repousada como
alguém que tivesse acabado de sair de um banho. Adiantou-se para Ygraine,
sorridente, e fez-lhe uma profunda reverência.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Bem-vinda, filha. — A voz da rainha ressoou alta e claramente. — Deve


estar exausta, depois de uma viagem tão longa. Sugiro que descanse um pouco.
Conversaremos depois. — Ela fez menção de entrar e então viu os olhares e os
cochichos que os homens da escolta trocavam entre si. — O que há? Qual é a razão
desses cochichos?

O chefe da escolta falou:

— Milady ainda não foi apresentada à futura esposa de Arthur.

— Não? — ela replicou, girando os olhos desdenhosos em torno de si.

Guinevere viu-se, subitamente, como ela e os outros deviam vê-la. Uma


jovenzinha desleixada, de cabelos desgrenhados, vestindo impensáveis roupas
masculinas! Pôde sentir o desapontamento da mãe de Arthur, confirmado quando
um homem de cabelos vermelhos apareceu no alto da escadaria e perguntou
rudemente:

— É aquela?

— Cai, o irmão de Arthur — disse-lhe rapidamente Lancelot em voz baixa.

Ygraine respondeu à pergunta do filho com um desanimado dar de ombros.

Guinevere fechou os punhos e tentou desesperadamente se comportar como


se não tivesse ouvido a grosseira interpelação e o irônico comentário de Cai.

Virou-se para Lancelot e sussurrou-lhe:

— Não posso...

— Sim, milady pode. Venha, quero apresentá-la à rainha.

Guinevere nada mais fez do que desmontar e apoiar-se nele.

Ygraine, que já havia recuperado o sangue-frio, comportou-se com sua graça


habitual. Depois das apresentações de praxe, levou Guinevere para a casa de banhos
e deixou-a à vontade.

Uma hora depois, banhada e reanimada, foi conduzida ao andar superior. Cai,
talvez num esforço para minimizar sua observação infeliz, destinara-lhe um aposento
grande e imponente. A ampla cama de cerimônia, as colgaduras de damasco, as
tapeçarias antigas representando virgens pálidas e o alto espelho no qual, pela
primeira vez, podia ver-se da cabeça aos pés, tudo isso a impressionou, parecendo-

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

lhe excessivo. Pediu-lhe um aposento mais simples e ele colocou-a num anexo aos
aposentos de Arthur.

Mais tarde, explorou sozinha a ala residencial. No andar térreo, a entrada


principal conduzia à enorme sala de jantar que comportava, com folga, mais de
duzentas pessoas. A alta mesa de carvalho corria paralela à parede dos fundos, sobre
um estrado, e era ocupada somente pelos membros principais da família e pelos
convidados de categoria. De ambos os lados, estendiam-se outras mesas, mais
comprimidas e mais baixas, às quais comiam as pessoas de condição inferior e os
criados.

As paredes dessa parte superior se achavam cobertas, em toda a extensão da


plataforma, com flâmulas e estandartes dos Senhores da Guerra, penhores das
amizades de Arthur.

Guinevere atravessou a enorme sala em todo o seu comprimento e abriu uma


porta de duas folhas. Estacou no limiar, de olhos arregalados. Na sala havia uma
grande mesa circular rodeada por cadeiras de espaldar alto. Devia ser a famosa
Távola Redonda, onde Arthur e seus pares se acomodavam em dias de Conselho.
Segundo Lancelot, fora um modo que Arthur encontrara para promover a igualdade
entre os Duques da Guerra. Mas, naquela noite, não haveria conversas.

A tarde foi exaustiva, Ygraine mostrou-se gentil e graciosa, enquanto as fazia


conhecer a casa. Guinevere ainda se lembrava do olhar de aprovação que ela dera a
Elaine no dia da chegada.

Elaine estava radiante com a atenção que recebia. Sua prima não teria
dificuldade em adaptar-se àquela família. Mas... e ela?

— Você deve ser Guinevere.

Guinevere voltou-se rapidamente e viu uma mulher pequena, de cabelos


negros e tez de alabastro, que Caminhava para ela. As feições perfeitas eram
iluminadas por expressivos olhos escuros, quase tão negros como seus cabelos.
Envolveu-a num olhar avaliador. Ela era ainda mais bonita de perto do que parecera
a distância, banhada na leve claridade que lhe acentuava a bela figura. Quem seria?

— Sou Morgana — ela apresentou-se com voz gentil. — Irmã de Arthur. —


Depois adiantou-se para abraçá-la. Cheirava a almíscar.

— Deixe-me vê-la — ela disse, dando um passo para trás e olhando-a da


cabeça aos pés. — Você é bonita. Arthur escolheu bem.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere sorriu, agradecida.

— Obrigada. Não sabia que Arthur tinha duas irmãs. Conheci apenas
Morgause, a viúva de Lot.

— Morgause é minha irmã mais velha e mãe de alguns dos homens do círculo
de Arthur. Eu tenho apenas um filho, pequeno demais para isto aqui.

— Você mora no forte?

—Não, minha querida. Casei-me com Uriens, rei de Rheged e tenho uma
propriedade nesta região. A casa, as terras e tudo que há nelas. Foram-me dadas
como presente de núpcias por meu pai, Gorlois. — Morgana sorriu. — Gostaria de
passar algum tempo aqui. Não conheço bem Arthur. Soubemos que éramos irmãos
há pouco tempo. Agora sei que tenho também uma irmã. Somos uma família!

Guinevere concordou com um sinal de cabeça.

— Nada me daria mais prazer do que tê-la por perto, eu também não conheço
bem Arthur... — Ela interrompeu-se e corou profundamente. — O que eu quis dizer é
que...

Morgana riu amigavelmente.

— Compreendo. Você está prestes a se tomar a Grande Rainha e mãe logo a


seguir. É uma responsabilidade muito grande para alguém tão jovem.

— Mãe!?... — balbuciou Guinevere, empalidecendo.

— Naturalmente! Para Arthur, um filho representará a glória hereditária de


uma família de conquistadores. — Morgana fitou-a, curiosa. — A gravidez a assusta?

— Confesso que sim.

Ygraine entrou no salão sorrindo.

— Vejo que vocês duas já se conhecem. Venham. Vamos ocupar nossos


lugares. Os convidados não tardarão a chegar.

— Ela virou-se para Guinevere e disse-lhe confidencialmente:

— Quando Arthur está, escolhe os homens que irão sentar-se à sua mesa. Mas
hoje ele não está. Podemos conversar como mulheres comuns, sem termos que ouvir
histórias de batalhas, derrotas e vitórias.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere teria preferido falar de batalhas e de cavalos, em vez de tagarelar


sobre bordados e tarefas domésticas. Mas era Ygraine que, naquela noite; fazia as
honras da mesa.

Ela fez um sinal com a cabeça e os criados começaram a servir o jantar


imediatamente. Passavam com bandejas transbordantes de iguarias: peixes, veados,
tortas e aves enfeitadas com suas próprias plumas. Tamanha abundância fez
Guinevere lembrar-se das refeições mais simples servidas em Cameliard, quando
havia convidados. Mas logo recordou-se das circunstancias que a haviam retirado de
lá e o sorriso que começava a insinuar-se em seus lábios extinguiu-se, substituído por
uma lágrima solitária que lhe aflorou ao canto do olho.

Virou-se para ocultá-la e seu olhar foi atraído para a porta um segundo antes
que Lancelot entrasse. Tudo nele revelava uma alegria sem cuidados, uma confiança
sem temor. Viu-o correr os olhos pelo salão e então adiantar-se para a mesa alta.

Depois de aprofundar-se numa reverência à rainha, postou-se diante dela.

— Milady gostará de saber que instalei Cali num grande estábulo e Glena
num canil apropriado ao seu tamanho.

— Obrigada, Lancelot — agradeceu-lhe Guinevere, desejando que a rainha o


convidasse a ficar. Mas ela se manteve impassível. Lancelot tornou a reverenciá-la,
fez uma leve inclinação de cabeça para as outras damas e afastou-se.

— Você o chamou de Lancelot — comentou a rainha, dirigindo-se a


Guinevere. — Aqui, seus homens o chamam de Lance.

— Para mim, ele é Lancelot. — Havia um tremor em sua voz e uma ternura
que revelava mais do que ela teria desejado manifestar.

Mas a rainha mal a ouvira. Sua atenção fora atraída por algo que ela
demonstrou claramente desaprovar. Guinevere voltou-se para olhar.

A mulher que avançava pelo salão era uma figura celestial.

Pequena, envergava um simples vestido branco e, sobre ele, uma transparente


túnica azul. Seus cabelos eram da cor da lua e seus olhos, de um verde profundo
como o mar em dias sem nuvens. O homem que a acompanhava irradiava poder, um
feixe de luz parecia seguir cada um de seus passos.

Guinevere estudou-o. O nariz aquilino dava a aparência de um falcão ou de


uma águia e os olhos castanhos, que sustentavam seu exame com firmeza, eram da

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

mesma cor dos cabelos. Mas foram os olhos que a atraíam, parecendo-lhe familiares.
Tinha certeza que já os vira.

— Quem são? — perguntou à rainha em voz baixa.

— Pagãos! — ela disse, com uma nota de desprezo na voz — O homem é o


druida-mor Merlin, conselheiro de Arthur. A mulher é Nimue, uma sacerdotisa da
Ilha de Avalon. Por mim, não os teria convidado. Sou cristã. Mas são amigos de
Arthur. Tive que consentir em recebê-los. Mas não na minha mesa!

Morgana pareceu interessada.

— Vieram para realizar o Grande Rito?

— O que é... — começou Guinevere.

— Não falem dessas coisas profanas numa mesa cristã! — Interrompeu-as


Ygraine, visivelmente nervosa. — A coroação de Arthur acontecerá durante uma
missa rezada na Santa Igreja. Lembrem-se disso!

Guinevere guardou silêncio.

Pouco depois, Merlin e Nimue já haviam sido acomodados numa pequena


mesa de canto. Mais aliviada, pôs-se a ouvir Ryden, o bardo, contar a história de
Badon.

Arthur e seus homens chegaram na tarde do dia seguinte. O forte, que estivera
movimentado no dia anterior, encontrava-se agora vivo e agitado, como se todo o
povo da vizinhança houvesse se reunido num dia de festa. Todos queriam ouvi-lo. E
ele atendia a todos com o bom humor de sempre.

Do alto da escadaria do salão nobre, onde se encontrava com Ygraine e


Morgana, Guinevere observava-o, curiosa. Viu Lancelot aproximar-se dele e, depois
de dar-lhe um abraço, dizer algo que o fez virar-se rapidamente para ela.

Quando a multidão começou a dispersar-se viu o druida-mor chegar em


companhia da bela sacerdotisa. Merlin aproximou-se de Arthur, fez um gesto na
direção de Nimue. Um ar de felicidade cruzou o rosto de Arthur, enquanto ele se
virava, dobrava um joelho diante dela, tomava-lhe as mãos e as beijava.

— Eles irão representar o Grande Rito! — Morgana sussurrou a Guinevere. —


Essa bênção, que você acaba de ver, é a bênção do ritual!

— No que consiste esse Rito, afinal? — perguntou Guinevere em voz baixa.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

O que vira não a agradara. Por que Arthur se mostrara tão extasiado diante da
sacerdotisa?

— E um modo pagão de aceitar o novo rei. Ele se casará com a terra por meio
da união com a sacerdotisa da Deusa. Se ela o aceitar, a terra será fértil e haverá
prosperidade. O ritual é antigo, mas raramente usado, desde que os romanos trouxe-
ram seu Cristo para a Bretanha.

— Quando isso vai acontecer?

— Na noite da coroação, a céu aberto. Parte do ritual é público e parte se


desenvolve particularmente. Você deve entender por quê. — Isto dito, Morgana
voltou-se para ir embora. Havia um ar de magna satisfação em seu rosto, e seus olhos
brilhavam de satisfação.

Guinevere nada notou. Estava pensando no que Morgana acabara de lhe


dizer.

Arthur interrompeu-lhe os pensamentos.

— Estou feliz em vê-la aqui, Guinevere.

Ela murmurou, ainda magoada:

— Não tive alternativa.

— Você quer que eu a deixe livre para voltar a Cameliard?

Guinevere ficou confusa. Ele aceitaria realmente a humilhação de uma


eventual rejeição?

— Eu deveria ter perguntado antes — ele continuou, mas seus olhos eram
duros, quando perguntou: — Você quer se casar comigo, Guinevere?

Ela dominou o impulso de dizer "não". Queria voltar para Cameliard, onde
tudo lhe era familiar. Como poderia desempenhar uma função qualquer ali, além de
uma função decorativa? Então pensou na vergonha que cairia sobre seu pai e seu
irmão com sua possível recusa e disse com simplicidade:

— Não costumo desrespeitar um compromisso, senhor. Sei que não existe


amor entre nós, porem cumprirei meu dever...

— Não era bem isso que eu tinha em mente. — Arthur tocou-lhe o rosto.
Guinevere retraiu-se e ele deixou cair a mão. — Sei que terá que assumir grandes
responsabilidades aqui. Mas também terá toda a liberdade que lhe posso dar. O que

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

faremos quando estivermos a sós, será usufruirmos juntos os prazeres da vida e da


cama — ele observou comum sorriso e depois ofereceu-lhe o braço. — Vamos entrar?

De seu lugar, junto ao campo de adestramento, Guinevere observava Lancelot,


fascinada. Era um ótimo cavaleiro e exibia sua perícia adestrando seu cavalo com
uma facilidade e leveza incomparáveis. Seria certamente, o campeão do torneio que
se seguiria à coroação.

Os reis menores já haviam chegado ao forte, trazendo consigo seus melhores


cavaleiros e Arthur queria que os dele primassem. Esse era o seu lema: vencer
sempre. Os seus feitos de cavalaria e sua fama de destemido e arrojado forneciam
temas para bardos e menestréis, que haviam feito dele um herói de romance.

Efetivamente, ele era um herói. Parecia estar em todos os lugares ao mesmo


tempo e Guinevere espantava-se com aquela energia e disposição. Naqueles últimos
dias mal o vira.

Uma hora depois, entediada, fez um aceno de despedida a Lancelot e dirigiu-


se ao forte. No hall de entrada, encontrou os três filhos de Morgause que
aguardavam a chegada da mãe. Haviam se desentendido por algum motivo e não
paravam de discutir. O rumor de suas vozes acaloradas ia se tornando cada vez mais
alto. Temendo que isso pudesse chamar a atenção de seus convidados, Guinevere
resolveu fazer a Gwalchmai, o mais velho, uma pergunta banal:

— Sua mãe e Morgana são amigas?

Ele a olhou por um instante, indeciso sobre responder ou não. Por fim, disse:

— Há uma grande diferença de idade entre ambas, quase quinze anos. Além
disso, pouco conviveram. Morgana foi enviada ao convento quando tinha apenas
doze anos.

— Houve algum motivo para isso?—perguntou Guinevere, admirada.

— Um motivo que deixou minha avó Ygraine consternada. Ela percebeu que
embora uma menina, Morgana se dedicava a encantamentos e à magia negra. E
temeu por sua alma. Falou com o marido sobre a necessidade de enviar a filha para
um lugar santo e ele apoiou imediatamente a decisão.

— Como você sabe de tudo isso? — quis saber Gaheris, seu irmão mais novo.

— Gosto de ouvir as histórias que minha avó conta.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere afastou-se, pensando em Morgana. Seu passado era um enigma.


Quanto ao seu presente... Não tinha indicação alguma a respeito de sua crença ou de
sua atitude moral.

Guinevere acordou cedo no dia de seu casamento. Sentada na cama, ouvia o


triste arruinar de uma pomba pousada no peitoril da janela. Um suspiro escapou-lhe
do peito. Sentia-se tão fraca e indefesa como um recém-nascido.

Vestiu-se e desceu para a estrebaria. O palafraneiro ajudou-a a montar e


depois recuou, de gorro na mão, sorrindo de sua impaciência.

Guinevere agradeceu-lhe e partiu a galope. Sua emoção ritmava-se ao passo


do cavalo. E no ímpeto da excitação, esqueceu-se de tudo e de todos. Seguiu por
estreitos caminhos pouco usados, sem parar um só instante até para trás da estrada
real. Uma vez em campo aberto, galopou dentro da quietude da vegetação rasteira.

Quando estacou, percebeu que fora longe demais. Estava quase à beira da
floresta. Perto, havia uma colina cujo cimo ostentava um círculo de pedras.
Desmontou, deixou cair as rédeas de Cali e pôs-se a galgar a encosta para vê-lo de
perto. Doze blocos de pedra, erguidos verticalmente, formavam um monumento
druídico. Colocou a mão sobre um deles e uma descarga de energia subiu-lhe pelo
braço.

— Não faça mais isso. A menos que esteja preparada. — A voz era suave, mas
autoritária. Guinevere voltou-se. Era Nimue.

— Este lugar tem muito poder — ela explicou. — As linhas do dragão, sobre
os quais o círculo foi construído, são muito antigas. Se você não estiver preparada, o
poder pode transformar-se em perigo. Não gostaria que nossa rainha se machucasse.

Havia tal sinceridade em suas palavras, que Guinevere viu-se obrigada a


considerar seu pedido. Deu um passo para trás.

— É para cá que irá trazer Arthur, amanhã à noite?

Os claros olhos de Nimue escureceram-se.

— Tudo o que acontece é predeterminado pela Deusa. Cada acontecimento é o


elo de uma cadeia inquebrantável de causas e efeitos. O que acontecerá aqui amanhã
à noite não irá afetá-la.

— Foi o que Arthur disse.

Projeto Revisoras 46
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Ouça-o Guinevere, e não se preocupe. — Ela chamou Cali suavemente e


ordenou: — Leve a rainha de volta para casa.

Cali ergueu a cabeça e trotou na direção de Guinevere. Atônita, ela montou e


refez o caminho até a estrada real. Quando a alcançou, olhou para trás. Nimue ainda
a observava.

Quando o forte surgiu à sua frente, sua tensão aumentou. Um grupo de


cavaleiros se aproximava velozmente dela. Diminuiu o passo de sua montaria e
emitiu um leve suspiro de alívio ao reconhecer o líder: Lancelot.

Sorridente, foi ao seu encontro. Ele parou ao lado dela sem retribuir o sorriso.
Havia um misto de alívio e indignação estampado em seu rosto.

— Graças aos deuses, milady está bem! Arthur está feito um louco! Pôs todo
mundo à sua procura.

De repente, Guinevere compreendeu. Arthur devia ter pensado que ela


mudara de idéia e fugira. Mais uma vez, deixara-o abalado e humilhado perante seus
homens...

— Fui dar um passeio. Que mal há nisso?

— As noivas não saem para passear no dia de seu casamento!

Guinevere abaixou a cabeça, vencida.

— Ele está muito zangado?

— Arthur sabe controlar sua cólera.

— Eu não iria embora. Vou cumprir fielmente os meus compromissos.

Lentamente, ele fez seu cavalo voltar-se.

— É melhor que eu me vá.

Arthur vestiu a túnica de lã branca orlada de prata com gestos bruscos, que
deixavam transparecer angústia e suspeitas negras. Bedwyr, Cai e Lancelot
observavam-no num silêncio que nenhum dos três ousava romper.

Ao final de alguns minutos, Lancelot decidiu-se:

— Ela está prestes a chegar. Tinha saído para dar um passeio pelos arredores.
Talvez para acalmar o nervosismo natural que todas as noivas sentem.

Projeto Revisoras 47
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur manteve-se em silêncio. Ele estava surpreso ao perceber o quanto


desejava Guinevere. Seu primeiro casamento fora um fracasso. Leonora já estava
grávida e seu sogro, não esconderá a decepção. Deixara-se levar pela cólera e
palavras duras haviam sido ditas de parte a parte.

Leonora adoecera logo após o casamento. Fora definhando lentamente e


morrera de tristeza e esgotamento.

Quanto a ele, reprimia o sentimento que nutria por Nimue, a única mulher
que jamais poderia ter e decidira continuar sozinho.

O casamento fora um fardo em suas costas, algo que não queria mais para si.
Mas acontecera a votação para Grande Rei. Vencera. E, com a vitória, a obrigação de
ter uma esposa.

Merlin fizera uma lista das possíveis candidatas, levando em conta não só suas
qualidades, mas, também, conveniências políticas. Para desespero dele, rejeitara
todas. Guinevere não estava na lista de Merlin, mas seu pai era um aliado poderoso e
ela própria uma mulher incomparável. Julgara-a pelo que ela era e não por sua
beleza, no entanto tão rara: uma mulher forte, que saberia entender seus projetos de
unificação da Bretanha.

O ruído de uma carruagem que se aproximava, interrompeu-lhe os


pensamentos. Aliviado, Arthur sorriu e todos os quatro precipitaram-se para fora da
sacristia. Arthur foi tomar seu lugar aos pés do altar e Cai correu para abrir a porta
da carruagem. O silêncio tombou sobre a praça lotada, quando uma mulher
encantadora, uma visão, desceu acompanhada pelo pai.

E foi assim, parecendo uma visão de sonhos, que ela atravessou a nave
iluminada com os reflexos oblíquos dos vitrais, para se unir a Arthur Pendragon
pelos sagrados laços do matrimônio.

Arthur a esperava aos pés do altar. Foi ao seu encontro pensando que nunca o
vira tão feliz. Parou de tremer e, confiante, ajoelhou-se diante do bispo para
pronunciar as palavras do cerimonial.

A festa no salão nobre começou com um brinde. Novas rodadas rumorosas


seguiram-se à primeira, antes de Cadwy pedir silêncio. Apesar de velho, sua postura
era ereta como a de um soldado e sob os abundantes cabelos cinzentos seus olhos
azuis ainda cintilavam. Levantou-se e dirigiu-se à multidão que lotava o recinto:

Projeto Revisoras 48
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Fui capitão de Uther como muitos de vocês devem saber. Quando o


conheci, não sabia que o jovem Arthur fosse seu filho. Uther não lhe dispensava
nenhum favor especial. Mas um sentimento instintivo quanto ao seu futuro, levou-o
a nomear-me seu preceptor. Competia-me vigiá-lo, ensiná-lo, formá-lo. Arthur era
um jovem inteligente e esforçado. Aprendeu tudo rapidamente e, sem que eu
percebesse, tornou-se meu braço direito.

Houve uma explosão de aplausos, findos os quais Cadwy continuou, olhando


para Arthur:

— Eu nunca tive filhos. Mas você foi como um filho para mim. E é como a um
filho que eu lhe dou a posse deste forte, e de tudo o que há nele, como presente de
núpcias.

Novos aplausos, desta vez de aprovação, seguiram-se às palavras de Cadwy.


Que se voltou, então para Guinevere.

— Minha querida, este forte foi sempre conhecido como Forte Cadwy's. Como
gostaria de chamá-lo, daqui por diante?

Guinevere corou de prazer.

— O senhor me honra, lorde Cadwy — ela disse com serenidade. Depois


pensou um pouco e continuou: — Meu pai contou-me que sua esposa costumava
chamá-lo de Camelot, em honra a Cannulus, o deus da guerra. Acho que gostaria de
adotar esse nome. Além de bonito, seria uma homenagem que faria a sua esposa.

Um leve ar de melancolia cruzou o rosto de Cadwy, logo substituído por um


sorriso.

— A senhora escolheu bem. — Ele ergueu a taça. — A Bretanha unida e a!

Enquanto Arthur aceitava os cumprimentos de seus homens, Morgana


aproximou-se de Guinevere com duas taças de vinho.

— Tome querida. Este vinho acalmará seus nervos. — Ela tomou um gole de
sua própria taça e passou a outra para as mãos de Guinevere. — Logo Arthur virá
buscá-la. Prepare-se.

Guinevere sobressaltou-se. Quase se esquecera de que ainda restava a noite.


Ergueu a taça e tomou um grande gole. Achou o vinho um tanto amargo, mas
continuou a tomá-lo.

Morgana sorriu e acariciou-lhe a mão.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Esta é a sua noite de núpcias, Guinevere. Você vai gostar. Arthur é um


homem experiente. Saberá dar e encontrar o seu prazer. O vinho a ajudará a relaxar e
a suportar a dor.

— A dor... é muita? — gaguejou Guinevere. Morgana tornou a sorrir.

— Beba, Guinevere. E verá que não é tão ruim assim. Cuidadosamente, como
se estivesse ainda em dúvida, ela tomou todo o conteúdo da taça.

Arthur chegou pouco depois, como Morgana previra.

— Está pronta? — perguntou, curvando-se para ela e beijando-lhe o rosto.

Antes que Guinevere pudesse retrucar, ele a levou para o corredor deserto e
ergueu-a nos braços.

— Para onde me leva?

— Para o quarto — respondeu, dando-lhe um beijo na boca.

— Que dirão os outros?

— Não se preocupe. Ninguém notará a nossa ausência.

No quarto, Guinevere sentou-se à beira da cama. Sentia a cabeça girar, tudo


parecia dissolver-se diante dela. Fechou os olhos e o quarto parou de rodar. Quando,
depois de deitá-la, ele tornou a beijá-la, desta vez lentamente, sentiu a pressão de sua
língua e instintivamente entreabriu os lábios para recebê-la. Sentiu um langor
delicioso invadi-la e deixou cair a cabeça para trás.

Arthur parou de beijá-la e sacudiu-a.

— Acorde, Guinevere. Abra os olhos, olhe para mim!

Ela os abriu lentamente.

— O que... — começou, com a língua pastosa.

— Veneno, Guinevere! Senti o gosto amargo em sua língua.

Imediatamente, ele ergueu-se, tomou-a nos braços e começou a girar com ela
pelo quarto.

— Não quero... não quero dançar — queixou-se Guinevere.

— Nem eu. Mas tenho que manter você em movimento até que a droga que
ingeriu deixe o seu organismo. Você comeu ou tomou algo envenenado.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ele entreabriu a janela para que o ar fresco do anoitecer entrasse no quarto e


tomou a rodar com ela nos braços.

Horas depois, Guinevere voltou finalmente a si. Exausta, sentou-se à pequena


mesa de carvalho, ainda com seu vestido de noiva. -

— Tome muita água — recomendou-lhe Arthur, sentando-se na beirada da


cama com a cabeça nas mãos.

— Não posso acreditar que alguém tenha conspirado contra a minha vida —
suspirou Guinevere.

— Ou contra a minha. Talvez nem todos os reis menores queiram um Grande


Rei. Pode ter sido alguém que foi longe demais em suas convicções políticas.

Guinevere estendeu-lhe a mão para consolá-lo e ele a puxou para perto de si.

— Você está se sentindo bem para...?

Guinevere baixou os olhos. Era isso o que ela estava temendo.

— Sim, estou — disse num sussurro.

— O casamento deve ser consumado. Amanhã, o lençol com as manchas de


sangue deve ser visto por todos. É a prova de sua virgindade.

— Haverá muita dor? — ela perguntou, assustada.

— Dor? — Ele sorriu. — Não se eu fizer a coisa certa. E eu vou fazê-la,


apresentando-a a um dos maiores prazeres da vida!

Triunfante, ele apertou-a contra o peito. Depois deitou-a sobre o leito macio e
começou a dar-lhe uma série de lentos e ternos beijos. A princípio, Guinevere
manteve-se tensa. Depois, gradualmente pôs-se a corresponder às carícias que, aos
poucos, foram se tornando mais ousadas. Quando ele a abraçou, encontrava-se num
estado de total ansiedade.

Finalmente, Arthur curvou-se sobre ela.

— Venha para mim, minha luz de felicidade!

Ela despiu-se impetuosamente e emergiu para ele branca e nua sob a luz do
luar. Uma deusa. Deslumbrado, Arthur abandonou todo o controle e tomou-a, macia
e dócil, sob aquela alvura. Deitou-se sobre ela e amou-a intensamente, contagiando-a
com a sua febre, acordando-a para a volúpia que ela ainda ; não conhecia.

Após a explosão final, deitou-a cuidadosamente sobre a cama e ficou a olhá-la.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere deu um suspiro de satisfação. Mulher. Completamente mulher.


Virou-se para ele, lânguida e ansiosa. Ele puxou-a contra si e mostrou-lhe â luz que
entrava com a brisa, pela janela entreaberta.

— Veja, está amanhecendo. É um novo dia para Camelot. Precisamos


descansar um pouco para o muito que nos espera.

Capítulo IV

Guinevere acordou na manhã seguinte com o sol inundando o aposento.


Sentou-se na cama e esticou os braços, feliz. Após fazer as abluções, consciente de si
mesma como mulher, enfiou a túnica e sorriu, lembrando-se das carícias de Arthur.
Recordou a noite que haviam tido e, de repente como se um jato de água fria lhe
batesse no rosto, lembrou-se do veneno que ingerira. Quem desejava sua morte? Ou
a de Arthur? Era algo que devia ser investigado, mas não enquanto houvesse
convidados no castelo. Até lá, o sigilo devia ser absoluto.

Estava ainda pensando nisso, quando chegou ao salão nobre. A única pessoa
que havia ali era Elaine.

— Bom dia, prima — cumprimentou cordialmente. — Dormi até mais tarde


do que pretendia. Onde estão todos?

— Os homens estão cuidando de seus cavalos e preparando us armaduras.


Arthur não está. Merlin veio buscá-lo logo cedo.

— Para quê? Arthur não devia estar se preparando para a coroação?

— É o que ele deve estar fazendo nesse momento, não acha? Guinevere
lembrou-se: a missa religiosa e o rito pagão.

Nimue. O aguilhão do ciúme penetrou-a fundo. Depois da noite que haviam


passado juntos, não queria dividir o marido com mais ninguém. Especialmente com

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

a bela sacerdotisa que tinha o poder de falar com Cali! Que outras mágicas ela sabia
fazer?

— Então, prima, a noite de núpcias foi agradável? — perguntou Elaine de


repente.

— Muito mais do que eu imaginava. Espero que você encontre logo o seu par.
Alguém entre os convidados, interessou-se por você?

— Não. Mas há alguém com que eu gostaria de me casar — ela disse,


perfeitamente calma.

— Posso saber quem é?

— Lancelot.

Guinevere surpreendeu-se.

— Lancelot declarou-se a você?

— Ainda não. — Elaine olhou-a com atenção, como se a estivesse avaliando.


— Ele foi muito gentil com você, desde que saímos de Cameliard. Mas, agora, você
está casada com Arthur. É apenas uma questão de tempo para que ele se interesse
por mim.

Guinevere fitou-a. A prima tinha razão. Estava casada com o Grande Rei.
Tinha que tomar cuidado para não se expor.

— Lancelot é meu amigo e não vejo por que não deva mais sê-lo. Só porque
estou casada?

Elaine abandonou o ar submisso que sempre adotara e foi sarcástica.

— Vamos ver se, no futuro, Arthur aprovará essa amizade.

— Arthur irá aprová-la, Elaine. Quanto a Lancelot, perca as esperanças. Não


há nenhuma para você, minha prima.

— Há uma! — atirou-lhe Elaine.

Mas Guinevere já se encaminhava para a porta. No corredor, encontrou


Morgana, que sorria. E Guinevere perguntou-se se ela ouvira aquela troca de farpas.

Os sinos da igreja badalaram, na sexta hora canônica. Guinevere sentiu um


arrepio, embora o sol de agosto, que se derramava sobre as colinas e os topos dos
telhados, fizesse cintilar a cota de malha que chegava até os joelhos de Arthur. Sob
ela, ele vestia uma túnica de lã vermelha bordada com fios de ouro. Suas calças justas

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eram feitas da mais fina pele de gamo, assim como suas botas. Um rei. Um
verdadeiro Grande Rei.

Arthur aspirou profundamente o cheiro agradável das macieiras floridas e


voltou-se para Guinevere esboçando um leve sorriso.

— Espero que os votos que irei pronunciar se realizem.

— Irão se realizar, Arthur! — ela disse com convicção, vendo nele não apenas
o homem com quem se casara, mas também o guerreiro valente, o único que poderia
conseguir a tão sonhada união da Bretanha:

Mais calmo, Arthur abarcou com um olhar a praça repleta. Seus címbrios
impressionavam, com os mantos vermelhos e as espadas completamente erguidas,
em posição de sentido, não só em atenção a ele, mas também aos convidados.
Estavam ali o rei Ban, pai de Lancelot e Ector, seu irmão. Ambos vindos de Benoic. E
os reis menores que tinham votado a seu favor: Cador de Kelliwic, Marc de Kernow,
Cato de Dumnonia, Agrícola de Glevum, Pellinore e Leodegrance. Outros viriam
para os festejos que se seguiriam à coroação.

Quanto a Guinevere, uma forte emoção mantinha os olhos fixos em Arthur,


alto e esguio no seu traje de gala. Fechou-os por um instante, antes de seguir seus
passos, enquanto ele subia a escadaria da igreja onde o bispo o aguardava para dar-
lhe as boas-vindas e celebrar a missa.

Terminada a cerimônia, Arthur ajoelhou-se diante do altar e o bispo pôs-se a


entoar:

— Arthur Pendragon, filho de Uther e Ygraine, dispõe-se a ocupar,


definitivamente, o alto posto de guardião da Bretanha. Vamos ouvir seus juramentos.

Em meio a um silêncio carregado de emoção, Arthur falou:

— Juro pela cruz que trago ao peito, pela espada que me pende do cinto, pelo
antigo brasão dos meus antepassados, unificar esta terra e promover justiça para
todos. Essa é a minha promessa que submeto à apreciação de meu povo.

Depois abaixou a cabeça para receber a bênção da Igreja. As velas ao altar


iluminaram seu rosto, suavizando as linhas fortes de guerreiro e conferindo-lhe a
aparência de um jovem.

Em Avalon, Nimue se preparava para o Grande Rito. Jejuara desde a véspera,


mas a luz da sabedoria ainda não baixara sobre ela.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Quando o dia rompeu, dirigiu-se ao Templo do Sol, onde a Senhora e suas


sacerdotisas esperavam o momento propício.

Para além, azulavam-se as colinas, cujos cumes acendiam-se um após o outro,


numa explosão de vermelho e alaranjado. Enquanto as nuvens se inflamavam no céu,
Nimue banhou os olhos na luz, ergueu os braços e pôs-se a cantar:

Saúdo o Leste, no qual a liderança nasce com as asas. Possa o rei que vem para mim
esta noite ser um verdadeiro líder.

Saúdo o Sul pelos fogos do esclarecimento e da claridade. Que o rei possa receber
ambos. Saúdo o Oeste, para que o rei seja bem-sucedido. Saúdo o Norte. Que sua fertilidade
possa ser provada esta noite.

Voltou-se novamente para o Leste e abaixou os braços.

— O círculo está fechado, Senhora.

Vivian fez um sinal e uma das sacerdotisas trouxe algo cuidadosamente


embrulhado em linho alvíssimo e o entregou a Nimue.

— Para mim? — ela estranhou ao retirar o vestido azul-escuro que só a Rainha


do Lago podia usar. — Não posso usá-lo, eu...

— Esta noite você será a sua representante — interrompeu-a Vivian.

Delicadamente, Nimue passou os dedos pela lã macia e os símbolos antigos ali


bordados com fios de prata refulgiram à luz do sol.

— É tão lindo! Será uma honra usá-lo, Senhora.

Vivian apenas sorriu. Um sorriso secreto que fez cintilar seus olhos azuis,
iguais aos de Nimue.

— Podemos ir — ela ordenou e as sacerdotisas puseram-se em fila.

Na volta do santuário, Vivian conduziu Nimue a seus aposentos.

— Amanhã será um longo dia e, possivelmente, um dia difícil para você,


Nimue. Quero instruí-la. Está vendo o que há sobre a mesa?

Nimue olhou. Havia lá uma longa caixa de madeira que nunca vira antes. Ao
aproximar-se, reconheceu os entalhes que a adornavam. Eram reproduções de deuses
e deusas há muito cultuados e também de símbolos sagrados usados nos rituais.

— O que há nela e o que representa? — perguntou, interessada.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Vivian tirou do bolso uma pequena chave de prata e abriu a caixa, retirando
dela um objeto enrolado em seda fina. Desembrulhou-o e o mostrou: uma espada
repousava no interior de uma bainha de couro cor de vinho, no qual estavam
gravados os mesmos símbolos da caixa.

Nimue tocou-a levemente e pôde sentir seus poderes. Muito ritual fora
empregado durante a sua feitura.

— A bainha é sagrada e seu poder ainda mais forte. A última pessoa a usá-la
foi Magnus Maximus, que a chamou de Excalibur — explicou Vivian.

— Esta era a espada dele?

— Ele a mereceu, mas a espada pertence à Deusa — esclareceu Vivian. — Sua


história é curiosa. Em tempos anteriores ao dos druidas, uma grande estrela caiu do
céu. A espada foi forjada com esse material.

Com cuidado, Nimue retirou Excalibur da bainha e examinou-a. A lâmina era


bem afiada e o guarda-mão de ouro exibia no punho um grande e raro rubi que
emitia brilhos de fogo quando a espada era manejada. Reverentemente, tornou a
guardá-la.

Vivian revelou-lhe:

— Será de Arthur até sua batalha final. Então voltará para a Senhora. Pegue-a
Nimue e fique com ela durante todo o dia. Aprenda sua história e divida com ela os
seus pensamentos, a sua energia. Seu poder protegerá Arthur. — A senhora sorriu
bondosamente. — Agora vá e isole-se em seu quarto com a espada até o momento
em que formos buscá-la.

Quando Nimue e as outras sacerdotisas chegaram ao círculo de pedra, a noite


começava a cair e um delicioso aroma de pão fresco evolava-se no ar e chegava até o
alto da colina. No vilarejo, celebrava-se a colheita do trigo.

Desceram da carroça e tomaram seus lugares ao lado das tochas que


iluminavam a colina. Nimue avistou Merlin fora do círculo, interrogando suas fadas
e foi ao seu encontro levando a espada em sua bainha.

Merlin endireitou-se, quando a viu chegar.

— Excalibur será dele, então?

— Eu a darei de presente a Arthur no final da cerimônia. —Nimue olhou em


volta. — Não sabia que haveria tanta gente.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— São muitos os que seguem os antigos costumes. O povo ainda acredita no


Grande Rito.

Vivian aproximou-se e avisou:

— Está na hora, Nimue. Eu já coloquei os cálices no altar. E lembre-se do que


lhe disse: o que acontecer aqui esta noite acontecerá por vontade da Deusa.

Nimue inspirou fundo e entrou no círculo. Imediatamente, as sacerdotisas


acenderam novas tochas e deram início ao ritual, entoando cânticos que
continuariam ao longo da noite.

Após colocar seu fardo ao lado de um dólmen, Nimue subiu até o altar de
pedra e ergueu os braços em saudação à lua, inalando profundamente o ar noturno.
Os efeitos do jejum prolongado ajudaram-na á entrar logo em êxtase. Entoou cânticos
sagrados invocando a energia do céu e da terra e então, deixando cair os braços, fez
um sinal a Vivian para que desse início à cerimônia.

Arthur, que acabava de chegar, entrou no círculo. Vestia um manto de peles


de corça e sob ele apenas uma tanga. Sua testeira, que consistia na parte frontal de
um gamo de magnífica galhada, o fazia parecer em tudo e por tudo o Gamo Rei.

Nimue viu a aura branco-dourada que o envolvia e enviou a sua própria aura
ao encontro da dele. Os olhos de Arthur pestanejaram, mas ele manteve-se imóvel.
Ela começou então, com suavidade:

— Bem-vindo lorde Cernunnos. Aproxime-se e ajoelhe-se. Vou invocar a


Deusa.

Deixou cair o manto que a envolvia, permitindo que a lua a banhasse.


Enquanto se aprofundava no transe, um raio de lua refletiu-se no cálice e um rosto de
criança apareceu para logo sumir.

Nimue recolocou o cálice no altar e apanhou uma pequena taça de ouro cheia
de vinho.

— Venha para mim, Cernunnos.

Arthur tirou o manto, jogou-o sobre o altar e voltou-se expectante. Quando


Nimue lhe passou a taça, ele tomou o vinho de uma só vez sem tirar os olhos dela.

Ela entoou:

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Sou mulher, sou a terra. Você é o ser provido de cornos que plantará em
mim a semente da prosperidade. — Depois, removeu a testeira de gamo e a deixou
cair por terra. — Que a nossa união possa agradar a terra. Prosseguindo, puxou o
cordão da tanga e disse:

— Agora.

Deslumbrado, ele viu-se como um adolescente ardendo na impaciência dos


sentidos despertados. Abandonou todo o controle e tomou-a nos braços, levando-a
pouco além, longe dos olhares de todos.

Naquele instante, convenceu-se de que ela era mesmo uma criatura da


natureza. Um pássaro adejando em seus braços e lutando por liberdade no exato
momento em que se dava por inteira.

Não houve tempo para as delicadas preliminares. Levado pela torrente


impetuosa do desejo, ele tomou posição diante dela e a penetrou, delicadamente a
princípio, abafando com beijos os gemidos iniciais, depois com mais ímpeto, até a
loucura.

Quando tudo serenou, fitaram-se em silêncio, ambos surpresos e um pouco


abalados com o impacto provocado pela liberação de tantos desejos reprimidos.
Permaneceram imóveis, ainda unidos, por algum tempo vendo a lua pairar alta sobre
o vale, um navio de prata sobre o mar luminoso.

Finalmente, Arthur retraiu-se e a deixou livre. Ela sentou-se e olhou-o. Seus


olhos acinzentados eram quase negros à luz pálida da lua. E quando ele lhe acariciou
o rosto, admirou-se.

O que há comigo? Tenho certeza de que não era isso o que a Deusa queria. Sou
sacerdotisa, devia ter me controlado.

Arthur fitou-a.

— Um de nós dois deve dizer alguma coisa, não acha?

Embaraçada, ela levantou-se e foi buscar o manto. Ao voltar, confessou:

— Não esperava reagir desse modo.

Ele jogou a cabeça para trás e riu.

— Eu também não.

Nimue baixou os olhos e soltou um profundo suspiro.

Projeto Revisoras 58
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Nós dois sabemos que era melhor que não tivesse acontecido.

— Podíamos ter evitado que acontecesse?

— Não.

Permaneceram um instante em silêncio. Arthur foi o primeiro a rompê-lo.

— Agradeço à Deusa por ter permitido que eu tomasse parte no Rito. Jamais
esquecerei esta noite. Nem você, Nimue. — Tornou a beijá-la, vestiu a tanga e
levantou-se. Nimue lembrou-se da espada.

— Espere, Arthur. Tenho um presente para você. Venha comigo.

Ela apanhou o embrulho e depositou-o sobre o altar. Depois retirou as sedas


que envolviam a espada e mostrou-a.

— Não é linda?

À fria luz do luar e do fogo dos archotes, Excalibur cintilava. O grande rubi
engastado no punho, lançava luzes de fogo.

Arthur tocou na empunhadura e Excalibur zuniu. Cuidadosamente, ele a


retirou da bainha e ela emitiu um som semelhante ao assobio.

— Uma espada mágica — comentou e cortou o ar, simulou um ataque e a fez


girar. — Como você a conseguiu?

— Pertence à Senhora. Ela me disse que a espada aceita apenas o homem que
saiba liderar seu povo com justiça. Magnus Maximus foi o último rei a usá-la. Foi ele
que lhe deu o nome de Excalibur.

Reverente, Arthur girou a espada de modo que ela refletisse a luz.

— Uma verdadeira jóia!

Nimue entregou-lhe a bainha com recomendações:

— Trate-a igualmente bem. As runas mágicas gravadas no couro são muito


antigas. Anteriores à chegada dos druidas. Se você a tratar com cuidado, ela o
protegerá dos ferimentos e das perdas de sangue.

Arthur acariciou o couro macio, sentiu os leves estímulos que ela enviava e
lançou uma exclamação de surpresa e prazer.

— O que você está sentindo é mágico, Arthur. Passei o dia com ela, recebendo
seus ensinamentos e retribuí enviando-lhe minha energia.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur ajoelhou-se e estendeu a espada com o punho virado para que ela o
segurasse.

— Juro por tudo o que é sagrado, que saberei honrar essa espada. Sua força
me ajudará a estabelecer a justiça nesse país.

Guinevere encontrava-se na estrebaria, quando um cavaleiro chegou e foi


direto ao quartinho de arreios. Quem poderia ser àquela hora? O lusco-fusco já se
transformava em noite. Inquieta, saiu da baia de Cali e encontrou-se frente a frente
com Lancelot.

Seu coração disparou.

— Por que não foi à festa com os outros?

— Achei que, esta noite, milady iria precisar de um amigo.

Lágrimas umedeceram os olhos de Guinevere e sua voz vacilou.

— Que posso dizer, senão obrigado? — mas disse sorrindo e estendeu-lhe a


mão. — Bem, amigo, podemos dar uma volta e conversar?

Lancelot tomou-a pelo braço, solícito. Ao saírem do está-bulo quase


tropeçaram em Elaine, que vinha em sentido contrário. Ela os olhou por um minuto,
depois, sem dizer, nada, afastou-se rapidamente.

— O que há com ela? — perguntou Lancelot.

— Tivemos uma discussão. Mas nada sério. Vamos às muralhas? Gosto da


vista que se tem de lá.

Galgaram a longa escadaria e debruçaram-se sobre a amurada. Os contornos


das colinas eram suaves, sob as estrelas. Em baixo, no vale, corria o rio, uma fita de
luz em meio às sombras.

— Teve notícias de Palomides? — começou Guinevere, sem deixar de olhar a


paisagem.

— Recebemos uma mensagem há alguns dias. Palomides teve problemas na


aquisição de um lote tão grande. Conseguiu trinta cavalos e agora está pensando em
como trazê-los para cá.

— Espero que cheguem logo — suspirou Guinevere.

— Caso cheguem a tempo, poderemos usá-los na próxima campanha —


concordou Lancelot.

Projeto Revisoras 60
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Já estão pensando numa próxima campanha?

— Talvez. Cerdic mandou notícias, não tão boas. Há um começo de rebelião


em Llongborth. Caso se confirmarem, Arthur terá que partir.

— Tão cedo! Ele mal acabou de chegar...

Lancelot guardou silêncio e Guinevere tomou a abarcar com os olhos, a


paisagem lunar. A leste, havia um brilho alaranjado.

— O que é aquilo? — perguntou.

— São os fogos em honra a Be'al — ele respondeu, depois de um instante de


hesitação.

—Pensei que o ritual sagrado fosse praticado discretamente.

— Eu fui concebido por meio desse mesmo ritual — ele revelou de repente,
chocando-a.

— Isso significa que uma criança pode ser concebida nesse ritual do qual
Arthur participa?

— Às vezes — ele murmurou, já arrependido da insinuação que havia feito. —


Não devíamos ter vindo aqui esta noite.

Foi então, de súbito, que ela compreendeu a verdade, uma verdade que
preferia não saber.

— A culpa foi minha, Lancelot. Não sei o que há comigo hoje. Só sei que não
posso deixar de pensar em Arthur e na bela sacerdotisa que está com ele.

— Estou aqui a seu lado e não pensa em mim? — queixou-se Lancelot. —


Parece que o leito amacia a maioria das mulheres.

Guinevere adivinhou o que ele queria dizer e revelou num jato, sem pensar,
sem refletir nas conseqüências:

— O motivo de minha discussão com Elaine foi por sua causa.

— Minha... Por quê?

— Ela disse que quer se casar com o senhor. Disse mais: que é apenas questão
de tempo para que a aceite. — E com um pouco de esforço acrescentou: — É verdade
o que ela diz? É então possível?

Projeto Revisoras 61
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ele teve a vaga percepção do que se passava nela e fechou-lhe a boca com um
beijo profundo.

Foi natural... como se o conhecesse desde sempre. Alarmada, Guinevere deu


um passo para trás.

— Não devia confiar em mim, Lancelot. Não, não devia. Não lhe prometi coisa
alguma...

— Desculpe. Tenha certeza de que isso não vai acontecer mais.

— É melhor que não aconteça. — Ela virou-se e começou a descer as escadas.


Ele ia segui-la, mas ela o deteve. — Não venha comigo. Preciso ficar só.

Guinevere acabava de fazer suas orações na capela cristã que fora outrora um
templo dedicado a Minerva, quando Arthur chegou.

Ele está diferente. Parece mais cheio de vida, mais feliz. Seguiu-o até o pátio. A
atenção de todos estava voltada para Arthur que, no meio de um grupo, brandia
uma espada. Não era uma espada. Essa brilhava como prata à luz da manhã.

Chegou mais perto e ele a viu.

— Aproxime-se, Guinevere. Venha ver o presente que a Senhora me deu! —


Ele rodeou-lhe o ombro com o braço esquerdo, o direito ainda mantinha a espada
erguida. — Seu no me é Excalibur.

— É linda! Posso experimentá-la?

— Não me diga que você sabe manejar a espada! — disse Arthur, divertido
com sua pretensão.

— Sei manejar a espada tão bem como qualquer um de seus homens. — Ela
objetou, com certa irritação.

Houve murmúrios e sorrisos entre os homens e seu irmão suspirou,


resignado.

— Quero ver — incitou-a Arthur, ainda sorrindo.

Guinevere percebeu que fora longe demais. Agora, era tarde para recuar.
Apanhou a espada e admirou-se de sua leveza. Ergueu-a e, com perícia admirável,
investiu-a contra um inimigo imaginário, às vezes contra outro, distribuindo-lhe
golpes formidáveis. Então, tendo realizado essa dupla proeza, atirou a espada para o
ar, apanhou-a com facilidade e a entregou para Arthur.

Projeto Revisoras 62
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ele guardou a espada na bainha, depois sorriu.

— Muito bem, Guinevere — reconheceu, em tom quase de respeito, e seus


homens romperam em aplausos. Depois a trouxe para perto, dobrou-lhe a cabeça
para trás e deu-lhe um longo beijo na boca, o que provocou risos e mais aplausos dos
que a rodeavam.

Constrangida, Guinevere procurou desvencilhar-se de seus braços.

— Deixe-me, por favor — ela murmurou, a ponto de explodir. — Não quero


servir de espetáculo para seus homens.

Ele sorriu com indulgência e a deixou ir.

— Lembre-me de esconder a espada, esta noite.

Guinevere fitou-o, indignada. Ia retrucar, quando viu Lancelot. Seus olhos


estavam sombrios e sua boca cerrada numa linha dura. Era uma expressão de
advertência.

— Não será necessário, milorde — disse educadamente e afastou-se,


procurando adotar um porte de rainha, enquanto aqui e ali estouravam risos.
Instintivamente, dirigiu-se ao Jardim das Plantas e as lágrimas que havia retido a
custo jorraram de seus olhos. Quem iria tratá-la com respeito, se Arthur continuava a
tratá-la como uma vivandeira?

— Tem certeza de que quer ir? — perguntava Arthur a Lancelot, pouco


depois. Estavam no vão dos mapas, junto à sala que abrigava a Távola Redonda. —
Posso mandar outra pessoa em seu lugar.

— Não é necessário, Arthur.

Havia arquitetado o plano na noite anterior, enquanto permanecera


debruçado à muralha até o dia amanhecer. Estava perigosamente atraído por
Guinevere. Desejava-a de corpo e alma, mas não podia tê-la. Ela pertencia a Arthur, a
quem jurara lealdade. O que tornava impossível sua permanência em Camelot.

— Acha mesmo que não?

— Palomides mandou dizer que há trinta animais, entre potros e éguas já em


condições de serem trazidos para cá. Se ele próprio os trouxer, irá perder muito
tempo entre a viagem de ida e volta, o que poderia atrasar a compra dos restantes.
Você sabe que esses animais são ariscos, difíceis de domar.

Projeto Revisoras 63
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur riu.

— Posso mandar Guinevere com você. Tenho certeza de que ela saberá como
domá-los.

Lancelot sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Mas, ao perceber que Arthur


estava brincando, forçou um sorriso.

— Com sua permissão, partiria imediatamente. Teria mais chance de embarcar


no primeiro navio que sai de Portus Adurni.

Arthur considerou a questão e acabou cedendo diante da impaciência do


amigo.

— Permissão concedida. Gostaria de ter esses cavalos antes da chegada das


primeiras tempestades de inverno. Nessa época, o mar revolto torna a navegação
impossível. E se os boatos que Cedric ouviu se efetivarem, a cavalaria reforçada terá
condições de defender tanto Clausentum quanto Llongborth.

— Voltarei mais cedo dó que você imagina.

— Ótimo! — exclamou Arthur, em plena convicção. Depois sorrindo: — Você


compreende, sou agora um homem casado. Quero passar algum tempo com minha
esposa, que ainda não conhece bem as delícias do leito. Mas se a noite de núpcias
servir de parâmetro, acredito que ela irá aprender tudo rapidamente.

Lancelot não ousou falar. Temia trair-se.

— Vá então, meu amigo — tornou Arthur. — Se quiser se despedir de


Guinevere, irá encontrá-la no Jardim das Plantas. Ela ficará feliz, quando souber que
os cavalos estão para chegar.

Lancelot fez que sim, mas tomou o caminho das estrebarias, do lado oposto ao
Jardim das Plantas.

Guinevere e Arthur achavam-se confortavelmente sentados diante do fogo


doméstico da lareira, as taças de vinho sobre a mesinha, ao alcance de suas mãos.
Falavam de coisas banais quando, de repente, ele começou:

— Há um assunto que me preocupa. Morgana. Não acha que está na hora de


ela voltar para casa?

— Oh, não Arthur! Deixe-a ficar mais alguns dias. Ela é como uma irmã para
mim.

Projeto Revisoras 64
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur não respondeu imediatamente. Se dependesse dele, Morgana já teria


voltado para sua casa. Havia nela algo que o preocupava. Sabia que era amante de
Accolon e compreendia por quê. Morgana era uma mulher que transpirava luxúria e
que sabia usar os homens para os seus propósitos, fossem eles quais fossem.

— Estou surpreso de que Uriens não a tenha levado consigo, após os festejos.

— Morgana pediu-lhe para ficar — murmurou Guinevere.

— E qual foi o motivo que ela alegou?

— Disse-lhe que queria me ajudar.

— Ajudar? Em quê?

— A acostumar-me à vida no castelo. É tão diferente daquela que eu levava


em Cameliard...

— Como ela poderia saber se ainda não conhecia Camelot? Morgana chegou
aqui apenas alguns dias antes do que você. Seis meses atrás, eu nem sabia que ela era
minha irmã! — Arthur olhou-a nos olhos. — Diga a verdade, Guinevere!

Ela abaixou a cabeça, envergonhada.

— Ao casamento — sussurrou. — Eu estava tão assustada...

— Assustada por quê?

— Morgana me disse que haveria muita dor e eu pensei:

— Pensou o quê, Guinevere.

— Em Cameliard, eu o ofendi diante de seus homens. Pensei que você


quisesse casar-se comigo apenas para me dobrar, como se dobra um cavalo selvagem
— ela revelou, por fim. — Seus homens saberiam que você domou mais um potro e
seu orgulho estaria salvo!

Arthur sentiu o sangue ferver-lhe nas veias. Levantou-se e começou a andar


de um lado para o outro para aplacar sua fúria. Depois, estacou diante dela e
perguntou:

— E o que você pensa de mim, agora?

— Que o julguei mal — ela disse, engolindo as lágrimas.

Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos.

— Maltratei você?

Projeto Revisoras 65
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não.

— Sentiu dor em nossa noite de núpcias?

— Não — ela murmurou com voz entrecortada e os olhos cheios de lágrimas.


— Mas deixe Morgana ficar.

Arthur olhou-a longamente. Guinevere estava se tornando emocionalmente


descontrolada. Não sabia mais como tratá-la.

Passados dois dias, Merlin chegou a Camelot escoltando Nimue. Guinevere


viu-os chegar sem nenhum entusiasmo. Mas Arthur fora categórico. Morgana
poderia ficar somente se Nimue estivesse presente. Permaneceu ao lado dele na
escadaria, enquanto Merlin desmontava e ajudava Nimue a descer.

— Bem-vinda à nossa casa — saudou-a, com estudada cortesia.

— Obrigada, Guinevere.

— Você deve estar exausta. Permita que eu a acompanhe ao seu quarto,


Poderá descansar um pouco antes do jantar.

— Como quiser — respondeu Nimue, lacônica, e virou-se para Arthur: —


Trouxe a prova de que o casamento com a terra foi bem aceito.

Arthur empalideceu e Guinevere ficou sem palavra. Olhou de um para o


outro, intrigada. O que ela quis dizer com isso? Prova... aceitação... Então compreendeu:
Nimue ia ter um filho de Arthur! Sentiu um zumbido no ouvido e, de repente, tudo
escureceu à sua volta. Caiu de encontro a Arthur, mal ouvindo o que se dizia ao seu
redor. Sentiu a mão fria de Nimue em sua testa e então perdeu o conhecimento de
tudo.

Arthur viajara havia algum tempo, quando Nimue decidiu-se a enfrentar


Guinevere.

— Guinevere, precisamos conversar.

— Sobre o quê? Sobre o herdeiro de Arthur? Tenho certeza que ele lhe dará
todo o apoio de que você precisa.

— A criança que eu trago no ventre é uma menina. Será filha de Avalon. Ela
foi concebida durante o Grande Rito e pertencerá à Deusa.

— Nada sei sobre deusas e ritos. Arthur precisa de um herdeiro e você foi a
primeira a lhe dar um.

Projeto Revisoras 66
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Essa criança virá para anunciar um ano de prosperidade para o povo.


Pedirei à Deusa que lhe dê também um filho. Ela ouvirá minhas preces.

Guinevere moveu a cabeça, obstinada.

— Não preciso de suã ajuda. Morgana já está me acorrendo.

— De que maneira? — quis saber Nimue, subitamente inquieta.

— Todas as manhãs, ela prepara uma bebida especial para estimular a


gravidez.

— Que tipo de bebida é essa?

— Uma espécie de chá feito com ervas que ela própria cultiva.

— Que gosto tem? É amargo?

Guinevere lembrou-se do vinho amargo que tomara na noite de núpcias. Fora


oferecido por Morgana... Esquecera-se de contar o fato a Arthur e, agora, começava a
preocupar-se.

— Não, amargo não... mas não agradável.

— Você sabe onde ela cultiva essas ervas?

— No Jardim das Ervas. Quer que eu o mostre para você?

Nimue assentiu e juntas dirigiram-se para o lado oposto do Jardim das Flores.

— É aqui. Fique à vontade — disse-lhe Guinevere, enquanto a seguia.

Nimue caminhou lentamente por entre os canteiros úmidos até chegar a um


recanto quase escondido, junto a um muro coberto de musgo. Abaixou-se e foi
apontando:

— Meimendro, erva-moura, digital, matricária, agripalma... São todas


venenosas. Algumas matam, outras impedem a gravidez ou deformam o feto. —
Nimue ergueu-se e a fitou, consternada. — Acredite em mim. Morgana não é sua
amiga. Enfrente-a.

Guinevere olhava-a, horrorizada. Depois rompeu em soluços amargos e duros


como os de uma criança.

— Por quê? — gritou. — Por quê?

— Não sei. É algo que Merlin e eu teremos de descobrir.

Projeto Revisoras 67
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere cedeu por fim aos argumentos de Nimue, mas era tarde demais.
Morgana fugira durante a noite. No dia seguinte, recusou-se a comer e permaneceu
reclusa em seu quarto. Estava ainda assim, imersa em desespero, quando Arthur
chegou de sua curta viagem.

Da janela, viu Nimue correr para ele e falar-lhe ao ouvido. Permaneceu onde
estava, debruçada ao peitoril e não se virou nem quando ouviu os passos dele no
corredor. Ele entrou, virou-a para si e disse-lhe sombriamente:

— Encontraremos Morgana. Este crime não ficará impune!

— Isso não me consola, Arthur. O mal já está feito.

— Mas nem tudo está perdido. Você poderá engravidar, agora que não está
mais tomando o chá.

Guinevere respondeu com voz quase sumida:

— Nimue não lhe disse que o dano pode ser permanente?

Arthur empalideceu.

— Como ela pode saber, se ainda não tentamos?

— A criança pode nascer deformada. Você se arriscaria a concebê-la?

Arthur permaneceu em silêncio por um minuto. Depois pôs-se a andar de um


lado para o outro. Finalmente estacou.

— Já sei onde podemos encontrar a resposta!

— Onde?

— Em Avalon.

— A ilha paga? Nimue é de lá e se ela não sabe...

— A Senhora do Lago saberá — replicou Arthur. — Prometa que vai pensar


no assunto.

— Prometo.

— Agora vista-se e desça. Gosto de ter sua companhia no café da manhã.

Bedwyr estava esperando junto ao terraço, em companhia de Accolon, quando


Arthur chegou.

Projeto Revisoras 68
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Ele disse que já era bastante tarde, quando deu pela falta de Morgana: Não
sabe para onde ela foi. Cai já saiu à sua procura. Talvez a encontre em suas próprias
terras.

Arthur voltou-se para Accolon.

— Vou mandá-la de volta para Rheged. Gryflet a escoltará. Bedwyr,


acompanhe-os e diga a Uriens que tudo aconteceu enquanto Morgana e Accolon
eram meus hóspedes.

— Mas eu não fiz nada! — protestou Accolon.

— Uriens pode pensar de outra maneira. Submeta-se a seu julgamento e aceite


o castigo que ele eventualmente lhe der. Arthur virou-se, desgostoso, e foi à procura
de Nimue.

Ela estava na horta, escolhendo verduras frescas para o almoço. Sentou-se


num banco e pôs-se a observá-la.

— Eu já destruí as plantas venenosas — ela avisou, sem voltar-se.

Arthur sobressaltou-se. Quase havia esquecido de que ela era sacerdotisa.


Parecia uma criança brincando na terra. Uma linda mulher-criança, mas com total
controle sobre si mesma.

— Guinevere contou-me que o dano pode ser permanente. Isso é verdade?

Ela virou para olhá-lo.

— Pode ser — confirmou.

— E se ela engravidar? O bebê poderá nascer deformado?

Nimue levantou-se e foi sentar-se a seu lado.

— Uma das ervas tem esse poder. Mas, não sei quais Morgana usou.

— Eu tenho que saber! Mesmo que para isso eu tenha de matá-la.

Nimue tocou-lhe o braço.

— Você é o Grande Rei, Arthur. Não abuse de seus poderes.

Ele abaixou a cabeça, vencido. Ela tinha razão. Prometera justiça para todos.
Não podia permitir que suas emoções interferissem em seu julgamento.

— Podemos levar Guinevere a Avalon? Nimue considerou o pedido.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Acredito que sim. A Deusa aceita todos os que a procuram. Até mesmo os
seguidores de Cristo. E a Senhora saberá o que fazer.

— Você estaria disposta a acompanhá-la?

— Se ela for de bom grado, eu a levarei sim.

Arthur sorriu e levantou-se.

— Sabia que podia contar com você.

Guinevere agarrou com força as bordas do barquinho de couro quando


Nimue o empurrou para ás águas escuras do lago. No mesmo instante a neblina
tomou conta de tudo. Apenas o topo dos altos caniços sobressaía aqui e ali, revestido
de uma camada de musgo onde flocos de bruma se empoleiravam precariamente.

— Por que a névoa é tão densa? — perguntou Guinevere.

— Para proteger Avalon do mundo exterior. Merlin a chama de Respiração do


Dragão. Mas não tenha medo. As mulheres são sempre bem-vindas na Ilha da Deusa.

Quando o barquinho alcançou uma zona ensolarada, de céu azul. Uma mulher
alta, de vestido escuro, os esperava na praia acompanhada por um grupo de jovens
noviças.

— Não se preocupe. Nada é tão assustador quanto parece. — Dito isto, Nimue
foi prostrar-se diante da Senhora. — Eu a trouxe para ser desintoxicada, lady Vivian.

A senhora voltou-se para Guinevere.

— Você é bem-vinda, minha filha. A lua será cheia na noite em que


costumamos comemorar o novo ano. Fique conosco até lá e veremos o que a Deusa
destina para você. Entre. As noviças já prepararam seu quarto.

Naquela tarde, como em todas as outras, Guinevere encontrava-se tomando


sol junto ao bosque de macieiras, que se tornara seu lugar preferido desde que
chegara à ilha. As maçãs estavam ainda verdes, mas gostava do aroma que elas
deixavam no ar.

Na noite anterior, encontrara-se com Meg, a curandeira que viera de longe.


Depois de invocar a Esfera, o Fogo e o Invocador de Senhor, ela predissera que os
feitos do veneno não seriam permanentes. Mas a aconselhara a não engravidar logo.
Estava ainda lembrando suas palavras, quando Nimue chegou à lagoa sagrada.

Projeto Revisoras 70
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Sozinha no grande quarto de hóspedes, que cheirava a incenso e a juncos


frescos, Guinevere esperava a chegada de Nimue. Estava pronta para o ritual que se
seguiria. As noviças haviam-lhe preparado um banho aromatizado com algumas go-
tas de óleo de olíbano e em seguida vestiram-lhe uma túnica verde. Depois, haviam-
se retirado.

Podia ouvi-las agora, elevando suas vozes puras para louvar o dia que findava
e lembrou que aquela era a religião que a mãe de Lancelot também praticava.

Seus pensamentos voltaram-se para ele. Não sabia os motivos daquela viagem
que ele decidira de última hora, mas suspeitava que tinham algo a ver com ela. Fora
por causa daquele beijo que a enchera de alegria?

Sentiu uma angústia atenuada por uma emoção desconhecida. Lancelot


tornara-se importante demais para ela. Só se sentia bem perto dele e isso a
assustava...

— Está pronta?

A chegada de Nimue interrompeu seus pensamentos. Olhou pela janela e viu


a lua que começava a erguer-se no céu, triste e bela. Levantou-se e seguiu-a.

Em silêncio, seguiram o Caminho Processional. Ao chegarem à margem da


lagoa, a Senhora acendeu o incenso no pequeno altar de pedra. A mesma rica
fragrância do banho elevou-se em uma tênue espiral de fumo.

Nimue fez um sinal para que Guinevere se posicionasse junto à lagoa e só


então a Senhora ergueu os braços para invocar os elementos.

— Rei dos Ventos, Rei do Fogo, Rei da Água, Cernunnos, Rei da Floresta, eu
os invoco. Juntem-se à Deusa esta noite e tragam o perfeito equilíbrio a esta vida!

Nimue adiantou-se e colocou uma simples coroa de junquilhos na cabeça de


Guinevere.

— Essas flores irão unir sua energia à nossa — ela revelou e apontou para as
águas. — Olhe.

A lua refletia-se agora nas águas. De mãos juntas, as sacerdotisas fecharam os


olhos e puseram-na a entoar uma melodia suave e cadenciada. Nimue caiu ao chão e,
lentamente, entrou em transe. Quando consultou as águas porém elas permaneceram
imóveis.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere torceu as mãos, desesperada. Nimue fechou os olhos por algum


tempo. Seu corpo enrijeceu-se e seu rosto contraiu-se, na agonia da concentração. As
águas se arrepiaram e, lentamente, um rosto de criança apareceu. Tinha os cabelos
negros e os olhos acinzentados. Os olhos de Arthur.

Guinevere deixou escapar um longo suspiro. Sabia agora, que chegara ao fim
de sua busca. Espiara o futuro e vira os traços típicos de seu filho, o herdeiro de
Arthur.

Capítulo V

— Eles voltarão — previu Maelgwin, sentado à mesa de Morgana, uma


semana depois de sua fuga de Camelot.

Frustrada porque tivera que abandonar Accolon, ela desabafou:

— Pense em alguma coisa, num meio de me proteger! Este lugar não é


defensável? Não quero passar de novo pelo que já passei: uma semana escondendo-
me na floresta, acusada como um animal, enquanto os címbrios esquadrinhavam mi-
nhas terras!

Maelgwin irritou-se.

— Quer que eu me coloque contra Arthur? Você deve estar louca!

Morgana fitou-o com desprezo.

— Essa é a prova de lealdade que você me dá? O que há? Passou para o lado
de Arthur?

— Uther mandou matar nosso pai. Não gosto de Arthur, mas gostaria de
possuir sua esposa. Ela seria uma ótima refém!

Morgana, que estava pensando em Accolon, quase não o ouviu.

Projeto Revisoras 72
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Que foi que disse? Refém... que refém?

Pacientemente, Maelgwin explicou:

— Capturaremos Guinevere e Arthur só a terá de volta, se permitir que você


tenha livre passagem para Rheged.

— É uma idéia esplêndida... se você conseguir capturá-la.

— Estou certo de que conseguiremos — ele disse, inclinando-se sobre a mesa e


dando-lhe uma palmadinha de encorajamento na mão. — Agora ouça: Lancelot
partiu com o sobrinho e Arthur está se preparando para ir defender Llongborth. Dei-
xará poucos homens para guardar o forte. Não será difícil encontrarmos um meio de
invadi-lo.

Os olhos de Morgana iluminaram-se.

— Colocaremos observadores em pontos estratégicos para agirmos com


rapidez, quando Arthur partir. Uma vez dentro do forte, você não poderá perder
tempo. Leve um homem para agarrar Guinevere e outros dois para amarrá-la. Ela irá
lutar com unhas e dentes para se defender.

Maelgwin passou a língua sobre os lábios.

— Uma gata selvagem. É disso que eu gosto!

O sol tombava atrás da floresta, mergulhando a estrada em penumbra,


quando Lancelot cruzou os portões de Camelot com os cavalos que trouxera de tão
longe.

Arthur, que o avistara de longe, foi ao seu encontro.

— Bem-vindo, amigo.

— Viu-os galopar? — perguntou Lancelot, ansioso. — Não são magníficos?

— São de fato! — Arthur esboçou um grande sorriso e abraçou-o. — Você fez


um bom trabalho, meu amigo.

— Foi Palomides que conduziu as negociações. Eu apenas os trouxe para cá —


disse Lancelot modestamente e depois olhou em torno. — Onde está Guinevere? Ela
gostará de vê-los. O rosto de Arthur ensombreceu-se.

— Vamos entrar, Lancelot. Tivemos problemas durante sua ausência.

— Que aconteceu? — indagou Lancelot, inquieto. Arthur fitou-o e em voz


baixa contou-lhe tudo, sem omitir um só detalhe.

Projeto Revisoras 73
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Onde está Morgana? — perguntou Lancelot com a voz sufocada pela


cólera.

— Não sabemos. Cai e seus homens saíram à sua procura, pusemos guardas
em seus domínios, mas, até agora, nada. Parece que Morgana dissolveu-se no ar.

— Deixe-me ir à sua procura — disse Lancelot, numa revolta.

— Se a encontrasse, você a mataria.

— Ela merece morrer. Mas não a torturaria. Em minhas mãos, sua morte seria
rápida.

— Impossível. — Arthur suspirou.

— Impossível. Por quê?

— Lembra-se da promessa que fiz a meu Deus e ao meu povo? Justiça para
todos. Também para ela.

— Eu não fiz essa promessa — insistiu Lancelot. — Deixe-me vingar


Guinevere por você.

— Obrigado, meu amigo. Mas você fez uma aliança com o seu rei. E como
aliado, jurou-lhe lealdade.

Lancelot moveu a cabeça afirmativamente, sem uma palavra. Passado um


minuto, perguntou:

— E Guinevere? Acha que a Senhora poderá realmente curá-la?

— Peço aos deuses que ela consiga e depressa. Sinto falta dela em minha
cama.

O ar estava luminoso com o esplendor do sol poente, mas, a leste, a luz difusa
de um céu de opala já desvanecia a linha do horizonte, quando Guinevere e sua
escolta chegaram a Camelot.

Ela desmontou sorridente, o coração cheio de alegria.

— Em casa, afinal! — disse. Já estava na entrada, quando encontrou Enid. —


Onde está Arthur? Tenho boas notícias!

Enid abraçou-a com efusão.

— Fico feliz, milady. Mas não irá encontrar seu marido. Ele partiu esta manhã
com seus homens para dominar uma revolta em Llongborth.

Projeto Revisoras 74
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere reprimiu a decepção e entrou.

— Pode dar as boas notícias para mim mesmo. Isto é, se quiser.

Guinevere virou-se rapidamente. Lancelot! Teve que fazer um esforço


supremo para não correr ao seu encontro. Ele esboçou um sorriso e ela sentiu a
felicidade invadi-la.

— O que faz aqui?

— Não está contente de me ver? — ele murmurou, enquanto seus olhares se


encontravam e se prendiam.

— Sim, claro... mas é que eu... nós não estávamos esperando... Pensávamos...
— Ela viu um brilho divertido animar os olhos dele e implorou: — Não brinque
comigo, Lancelot. Sabe que estou feliz em vê-lo.

— Eu sei — ele disse, sério. — Não quer saber como foi minha viagem?

— Claro que sim! Trouxe os cavalos? E Palomides, também veio?

— Uma pergunta de cada vez, por favor! — Lancelot tomou-a pela mão e
levou-a para junto da lareira. — Vamos nos sentar e conversar, com calma.

Horas depois, estavam ainda conversando quando ouviram um ruído, algo


semelhante a um arranhão, na porta dos fundos do corredor. Lancelot levantou-se
silenciosamente, tirou a espada da bainha e foi examinar primeiro a entrada. Olhou
para fora. O pátio estava deserto e o guarda de plantão encontrava-se em seu posto.
Ouviu passos e correu para o fundo. Três homens e um garoto, todos usando
capuzes, acabavam de entrar.

Assustada, Guinevere foi ver o que estava acontecendo.

— Aí está ele! — gritou um deles e puxou a espada. Ergueu-a, mas Lancelot


foi mais rápido. Com um giro hábil do pulso desfechou-lhe um golpe violento que o
pôs por terra. O garoto precipitou-se em socorro do companheiro. Mas não a ponto
de defender-se dos punhos de Lancelot, que o jogou ao chão com o rosto ferido.

Isto feito, Lancelot saiu à procura de Guinevere, que desaparecera de vista.


Pegou uma segunda espada e correu para o salão nobre. Um dos homens segurava
Guinevere pelo braço, enquanto o outro tentava imobilizar-lhe as pernas. Haviam re-
tirado os capuzes e ele os reconheceu: eram dois mercenários saxões a serviço de
Maelgwin.

Projeto Revisoras 75
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ela se defendia, cravando as unhas nos braços de seus opressores e


desfechando pontapés. Os homens imprecaram, furiosos, quando curvando-se sobre
si como uma bola, ela rolou para longe. Rápido, Lancelot fez deslizar a espada pelo
chão, na direção dela. Depois vibrou a sua em torno de si, o que fez recuar os que
estavam mais próximos, sem lhes dar tempo de atacar.

Alertados pelos gritos e pelo vozerio áspero e dissonante, os homens de


plantão deixaram suas barracas e chegaram correndo. Os dois primeiros foram para
cima de um mercenário, pondo-o fora de ação.

— Há mais dois no fundo — gritou-lhes Lancelot.

— Um deles é Morgana — esclareceu Nimue, que chegava em companhia de


Ygraine e Elaine.

Guinevere arredondou os olhos, incrédula.

— Morgana aqui? Por quê?

— Ela morreu?

— Não, não morreu — tranqüilizou-o Nimue. — Mas precisa de cuidados


médicos. Todos eles precisam. Levem-nos à enfermaria — ordenou aos homens.

Morgana passou numa padiola e Guinevere lançou-lhe um olhar. Ela estava


ainda inconsciente. O lado direito de seu rosto era uma massa confusa de sangue e de
manchas roxas. Seus olhos estavam inchados e seu nariz quebrado. Gemia, enquanto
os padioleiros a levavam.

Lancelot também a viu e ordenou aos homens que haviam permanecido ali:

— Quero todos eles sob guarda constante. Gaheris, dobre a guarda nas
muralhas e avise os arqueiros que, ao primeiro sinal de luz, ocupem suas posições
nas seteiras. Depois traga-me o capitão da guarda. Quero saber por que motivo esse
grupo de malfeitores burlou a vigilância.

Guinevere ouvia tudo em estado de choque. Lancelot percebeu e foi sentar-se


a seu lado.

— Milady se saiu muito bem.

Ela o olhou ainda longe dali. Quando encontrou um par de olhos verdes fixos
nela, experimentou uma grande felicidade, como se ele tivesse acabado de chegar.

Projeto Revisoras 76
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Por um instante permaneceu muda, sem saber o que fazer. Depois lembrou-se de
tudo e murmurou, agradecida:

— O senhor salvou a minha vida. Arthur ficará eternamente grato.

— Não sei... talvez ele fique zangado. Em parte porque deixei que toda essa
confusão acontecesse e, por outra, porque quase matei Morgana, quando jurei que
não o faria.

Guinevere começou a tremer.

— Por quê, Lancelot?

— Desconheço o motivo. Mas vou descobrir! — ele afirmou, categórico,


envolvendo-a pela cintura e trazendo-a para junto de si.

Como um sonho, ela ergueu a cabeça. O beijo foi delicado, um mero encontro
de lábios que foi se aprofundando aos poucos, até tornar-se insuportavelmente
excitante. Fechou os olhos e flutuou num mundo sem idéias, onde tudo era prazer,
sedução...

Lancelot olhou-a. Ela estava tão languidamente abandonada em seus braços


que não seria difícil torná-la sua. Mas resistiu à tentação e afastou-se.

— Não podemos, minha preciosa.

— Por que não, se nós dois queremos?

Ele juntou-lhe as mãos e olhou-a com infinita tristeza.

— Não assim, Guinevere. Não é justo para Arthur.

Por um momento, ela sentiu o gelo da rejeição. Depois caiu em si.

— Tem razão. Não é justo para ninguém.

— Sou eu que devo me desculpar. Milady estava ainda em estado de choque e


eu tirei vantagem disso.

Sem nada dizer, ela levantou-se.

— Vou ajudar Nimue.

— Irei junto. Preciso encontrar-me com Gaheris e o capitão da guarda.

Ao saírem, encontraram Agravaine encostado à porta.

— O que está fazendo aqui? — perguntou-lhe Lancelot, a expressão sombria.

Projeto Revisoras 77
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Agravaine sorriu maliciosamente e afastou-se.

Duas semanas depois, Morgana já podia falar, embora se negasse a fazê-lo,


quando a interrogavam. Lancelot mantinha-a, e a Maelgwin, sob guarda.

Lancelot começava a cansar-se daquela rotina que não era a sua, quando
Arthur chegou. Foi colocar-se ao lado de Guinevere e esperou que ele atravessasse o
portão, para então se adiantar. Viu-o desmontar e depois avançar, trazendo pelas
rédeas o cavalo de Garient sem seu cavaleiro. Enid gritou ao ver o marido numa
padiola e ajoelhou-se no chão, ao lado dele.

— Ele está ainda vivo. Mas não sei até quando — disse Arthur, pesaroso,
enquanto atraía Guinevere para si. — Uma escaramuça no último instante, o último
grupo de rebeldes. Garient achou que poderia contê-los e avançou para enfrentá-los.
Não devia ter permitido — ele concluiu, deixando-se dominar pela emoção.

—Malditos sejam—rosnou Lancelot, à menção dos saxões.

Nesse instante Nimue chegou apressada, pedindo a ajuda de Guinevere na


enfermaria. Arthur tomou a mão da esposa e beijou-a. Só então a deixou ir. Depois,
voltando-se para Lancelot perguntou distraído:

— Alguma novidade em minha ausência?

— Morgana está aqui.

— Morgana?... Que ousadia! O que veio fazer?

— Ela queria Guinevere.

— Essa mulher é uma doida! Onde ela está?

— Numa cela, sob vigilância. E também Maelgwin.

— Maelgwin? Ele também queria Guinevere?

— Tinham planejado apanhá-la e levá-la como refém. Com ela em mãos, seria
fácil para Morgana conseguir livre passagem a Rheged... É bom que o previna. O
rosto de Morgana não está em boas condições. Eu a fiz experimentara força de meus
punhos.

— Você me prometeu que não a maltrataria.

— A minha intenção não era essa, acredite. Todos eles usavam capuzes.
Tomei-a por um garoto.

Arthur olhou-o em silêncio por um instante. Depois, pôs-se a rir.

Projeto Revisoras 78
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Só você em toda a Bretanha, para confundir Morgana com um garoto! —


Bom, vamos em frente.

Lancelot trouxe primeiro Maelgwin, que estava visivelmente apreensivo.

— Diga, o que você pretendia de verdade?— perguntou Arthur com voz dura.

Maelgwin engoliu seco.

— Foi idéia de Morgana, milorde. Ela achava que se conseguisse fazer da


rainha sua refém, milorde a deixaria ir para Rheged. — Como Arthur se mantivesse
em silêncio, ele continuou: — Em minha casa, ela seria tratada como uma hóspede
considerada.

Lentamente, Arthur aproximou-se dele.

— O que você queria com Guinevere?

— Nada, milorde, eu juro.

Com inesperada rapidez, Arthur torceu-lhe o braço para trás.

— Acha que eu acredito em suas juras? Fale a verdade!

— Não, eu não a queria — gemeu Maelgwin.

— Sabe o que eu acho? — interveio Arthur, obrigando Maelgwin a ajoelhar-se.


— Acho que você a desejava.

Maegwin gritou, quando Arthur deslocou seu braço, e caiu por terra,
inconsciente.

— Traga Morgana, Lance — pediu Arthur, impaciente.

Lancelot abriu a cela e encontrou Morgana assustada, mas com a cabeça


orgulhosamente erguida. Ia levá-la para Arthur, quando ele entrou e pôs uma
cadeira à frente dela.

— Sente-se, Morgana.

Ela permaneceu em pé e ele continuou:

— Você não tem do que se queixar, recebeu o tratamento que merecia. E agora
sente-se!

Lentamente, ela sentou-se. Mas a revolta brilhava em seus olhos.

Arthur continuou:

Projeto Revisoras 79
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— O que você pretendia? Matar Guinevere?

— Você pode não acreditar, mas minha intenção não era matá-la.

— O que havia na beberagem que você lhe servia?

— Algo semelhante às folhas que os soldados costumam dar às prostitutas


para que não engravidem. Eu mesma costumo usá-las.

Arthur fitou-a, fora de si.

— Por quê?

— Ela estava assustada, quando chegou aqui. Não queria casar-se com você.
Pensei que poderia ajudá-la, evitando que tivesse um filho.

— Você mentiu! Disse-lhe que o chá a ajudaria a ter uma gravidez tranqüila.

— Menti porque Guinevere é ainda muito jovem. Não haveria nenhum mal, se
ela esperasse um ano ou dois para ter um filho.

Arthur sabia que ela estava mentindo. E mudou de tática.

— Fale-me sobre esse seqüestro frustrado.

— De minha parte, representaria apenas uma espécie de salvo-conduto.


Maelgwin a desejava. Estava louco por ela.

Arthur pôs-se a andar de um lado para o outro da cela.

— Contra a minha vontade, vou mandá-la para Uriens. Ele sabe o que você fez
e pediu-me clemência. Aceitei seu pedido porque é um amigo leal. Quanto a
Accolon... Uriens já está a par de sua infidelidade. Você terá que lhe prestar conta de
ambos os crimes. — Ele inclinou-se para examinar-lhe o rosto. — Talvez a justiça já
tenha sido feita.

Guinevere foi ao quarto de Arthur enquanto ele se preparava para o jantar.

— O que aconteceu com Maelgwin?

Arthur acabou de vestir a túnica.

— Recebeu o castigo que merecia. Apenas isso. Mas no futuro, evite-o —


aconselhou e mudou de assunto. — As notícias de Avalon são boas?

Ela apenas sorriu e ele compreendeu. Puxou-a para si, apertando-a contra o
peito e pôs-se a passear a boca sobre o rosto ' corado, cobrindo-o com beijos leves.

— O jantar pode esperar — sussurrou-lhe ao ouvido.

Projeto Revisoras 80
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Os joelhos de Guinevere fraquejaram, mas ela conseguiu dizer:

— A senhora aconselhou-me a não ter um filho logo. O efeito das ervas ainda
não cessou de todo.

Arthur gemeu.

— Quanto tempo mais eu devo esperar?

— Algumas luas, pelo menos.

— Tanto assim? Mas temos outros meios de alcançar o prazer.

Guinevere fitou o rosto bonito que se inclinava para ela e, pelo espaço de
alguns segundos, não viu mais nada. Depois retraiu-se e o lembrou, sentindo-se um
pouco culpada:

— Há muita gente à nossa espera. Talvez mais tarde...

Deus! Como posso desejar dois homens ao mesmo tempo?

Senhor, ajude-me!

Durante o jantar, Arthur comentou:

— Ainda não decidi que castigo devo dar a Maelgwin. Ajude-me, Guinevere,
contando com detalhes o que aconteceu aqui, quando o bando invadiu a casa.

Guinevere sentiu o peso do olhar de Merlin, enquanto ela mantinha seu


pequeno auditório sujeito a uma profunda emoção. Ao terminar, comentou:

— Lancelot salvou a minha vida, Arthur.

Ele acrescentou modestamente, como era de seu feitio:

— Não fosse a espada de Guinevere, eu não teria conseguido dominá-los.

Arthur sorriu.

— Minha mulher está sempre me surpreendendo. Sei que ela é hábil com a
espada. Mas como poderia, sozinha, defender-se do ataque de três ou quatro
malfeitores? Guinevere, você precisa de alguém que a proteja enquanto eu estiver
fora.

Merlin sugeriu:

— Um grupo de guardas designados especialmente para ela seria ideal.

Projeto Revisoras 81
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Isso e mais alguém que possa ser seu paladino, quando for necessário —
acrescentou, Arthur.

— Bedwir, então. É irmão da rainha.

Arthur não lhe fez caso e voltou-se para Lancelot.

— Você salvou a vida de Guinevere. Fico-lhe muito grato por isso.

— Fiz o que qualquer um faria em meu lugar.

— Você fez muito, não sabe quanto! Está disposto a lhe dar proteção para
sempre? Quer ser seu paladino?

— De bom grado, se sua esposa aceitar. Guinevere ficou um instante em


silêncio.

— Precisamos de Lancelot ao seu lado, Arthur! — explodiu J Merlin. — Quem


melhor do que ele para ajudá-lo a dominar os esquivos guerrilheiros rebeldes que
ainda assolam a região?

Guinevere fitou-o, irritada. Depois virou-se para Lancelot.

— Aceito sua proteção.

Lancelot levantou-se e inclinou-se sobre a mão que ela lhe estendeu.

— Possa a terra fender-se sob meus pés, o mar submergir-me e o céu cair
sobre minha cabeça, se algum dia eu retirar minha promessa. — Ele virou-se para
Arthur. — Eu a protegerei sempre.

Do alto da escadaria, Guinevere acompanhava Arthur na operação de


patrulhamento da escolta armada que iria conduzir Morgana para Rheged.

Quando Lancelot chegou, ela lançou-lhe um rápido olhar de surpresa.

— Pensei que também fosse acompanhá-la.

— Essa era a minha intenção. Mas Arthur achou desnecessária.

Um segundo depois, houve o caos.

— Arthur! Lancelot! Venham depressa — gritou Ygraine, chegando da


enfermaria. — Garient está morrendo!

Correram, mas chegaram tarde demais. Nimue já puxava o lençol sobre a


figura imóvel que jazia na cama e Enid soluçava desesperadamente.

Projeto Revisoras 82
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Quando vocês o trouxeram a infecção já havia tomado conta de todo o


corpo. Além disso, ele perdeu muito sangue. Era de se esperar que morresse ao cabo
de alguns dias — explicou Nimue cansadamente.

Arthur imprecou e saiu da enfermaria precipitadamente. Minutos depois,


ouviram Valiant galopar em direção aos portões. Guinevere olhou para Lancelot e
depois para Merlin.

— Alguém tem que ir atrás dele!

— Arthur precisa ficar só — disse Lancelot. — É assim que ele lida com a
morte.

Arthur voltou pouco antes do jantar. Não disse palavra e a refeição


transcorreu em pesado silêncio. Assim que terminaram, ele pegou Guinevere pelo
braço.

— Preciso de você, minha mulher — murmurou, conduzindo-a para as


escadas.

Uma vez em seu quarto, ele beijou-a com uma brutalidade que a gelou. Viu
seu rosto alterado pelo desejo e assustou-se.

— Temos que esperar, lembra-se? — murmurou, agitando-se em seus braços.

Ele trouxe-a de novo para si e beijou-lhe o pescoço com avidez.

— Quer me tomar à força? — ela perguntou, sentindo a cólera invadi-la.

Arthur olhou-a por um instante.

— Desculpe-me a morte de Garient abalou-me. Queria... encontrar algum


conforto...

— Eu o entendo, Arthur. Mas não podemos perder a cabeça. Você sabe o que a
Senhora disse. Nenhum contato carnal durante várias luas.

— Não posso nem ao menos tocar em você?

— Se começarmos será difícil parar.

— Difícil, sim. Mas não impossível. Confie em mim.

— Não posso arriscar-me a ter um filho deformado. Seja compreensivo — ela


disse, afastando-o delicadamente.

Projeto Revisoras 83
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur olhou-a. Ela permanecia imóvel, decidida, os lábios contraídos.


Percebeu que era inútil resistir e levantou-se, o desejo escorrendo-lhe inteiramente
dos nervos.

Quando ele saiu, Guinevere demorou ainda um segundo recordando seu


olhar magoado. Mas não o chamou de volta.

Arthur sentou-se diante da lareira e serviu-se de uma taça de vinho. Tomou


um gole e fechou os olhos, ouvindo o fogo crepitar e as cascas de lenha estalarem,
tranqüilos ruídos familiares que o ajudavam a recuperar um pouco de sua calma.

— Gostaria de tomar um gole, se não se importar — disse uma suave voz


feminina às suas costas.

Arthur ergueu-se num salto. Nimue! Ela estava sentada nas sombras, o rosto
perfeito em repouso, os olhos pensativos. Passou-lhe imediatamente a taça e ela
tomou um gole.

— Vou buscar outra taça para você — ofereceu-se.

— Um gole já é suficiente. O álcool faz mal para o bebê.

Arthur puxou uma cadeira para perto dela, sentou-se e tomou a pequena mão
entre as suas.

— Meu filho não é pesado demais para você?

— Até agora, não. Ela é menina, uma filha da Deusa e será bem-vinda em
Avalon.

— E se for um menino? Um filho que eu possa considerar meu herdeiro?

— Esta criança será do sexo feminino. Vi seu rosto refletido no cálice, no dia
da coroação.

— Farei tudo o que for possível para dar-lhe amor e conforto. Mas falaremos
disso depois. Hoje...

— Compreendo. — A voz dela era triste. — Seu amigo perdeu a vida e eu


nada pude fazer para salvá-lo.

— Procurei explicar a Guinevere como me sentia, mas ela...

Nimue interrompeu-o.

Projeto Revisoras 84
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Você precisa de tempo para refazer-se. É natural que se sinta perdido —


disse, tomando-lhe a mão e colocando-a sobre seu ventre. — Se tiver paciência,
sentirá a criança mover-se e verá que, apesar de tudo, a vida continua.

Arthur sentiu um leve movimento e retirou a mão, como se tivesse levado um


choque. Nimue riu.

— Não tenha receio. Tente outra vez.

Desta vez sem medo, ele tornou a colocar a mão sobre o pequeno ventre
redondo sentindo o movimento.

— Obrigado, Nimue. Acho que agora conseguirei dormir em paz.

Que paz, que tranqüilidade..., pensou Guinevere, enquanto cuidava de um potro.


Viera à cocheira apenas para gozar de um instante de solidão, antes de preparar-se
para o almoço. Haveria convidados vindos de longe, aquele dia.

— Ele está se desenvolvendo bem — ouviu Lancelot dizer de repente,


interrompendo-lhe os pensamentos.

Ela virou-se devagar, com um sorriso nos lábios.

— É o meu predileto. Dei-lhe o nome de Safere.

Lancelot aproximou-se.

— Logo, estará pronto para a sela — ele tornou, correndo a meio dorso macio
do animal.

— Eu também estarei pronta. Safere será o meu desafio.

— Acha que Arthur vai deixá-la montar um potro novo, um animal que não
foi ainda domado?

— Arthur não irá perceber. Tivemos... um desentendimento — ela confessou,


sem olhá-lo. — E agora, ele mal me vê. Passa seu tempo livre admirando o ventre de
Nimue, que cresce a cada dia.

Lancelot colocou a mão sobre o ombro dela.

— Arthur a ama, Guinevere. Não se esqueça disso.

Ela desviou os olhos, envergonhada.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— A culpa foi toda minha. Eu o rejeitei e ele foi procurar a companhia de


Nimue. Acho que, depois do que aconteceu entre nós, dificilmente haverá
reconciliação.

— Mas que bobagem...

— Lancelot! — chamou-o uma voz feminina vinda de fora. Ele virou-se


lentamente. Elaine estava do outro lado da cerca. Sorria, mas o sorriso não lhe
chegava aos olhos.

— O que aconteceu, Elaine?

— Arthur reuniu o Conselho e reclama sua presença. Vamos? Lancelot fez um


sinal afirmativo com a cabeça. Depois, lançando um último olhar a Guinevere,
seguiu-a.

O solstício de inverno se aproximava, quando Ygraine resolveu partir. Sentia


falta do convento para onde se retirara e no qual decidira permanecer até o fim de
seus dias.

Também Nimue ansiava por voltar ao calor do festival de Avalon, que


anunciaria o renascimento do sol. Arthur, a quem tinha anunciado a sua próxima
partida, pedira-lhe que ficasse alguns dias mais. Haviam cultivado o hábito de se
encontrarem diante da lareira após o jantar, para dividirem confidencias e uma taça
de vinho. A criança que, se desenvolvia dentro dela, fascinava-o.

Guinevere entrara na sala, durante um desses encontros e manifestara seu


desagrado em palavras amargas. Arthur tomado pela cólera, dissera-lhe que seria ela
a estar ali se o tivesse aceitado como marido.

Naquela noite, Nimue abordou, embora hesitante.

— Preciso voltar para Avalon.

— Por quê? O inverno já está às nossas portas. Será uma viagem dura e
cansativa. O bebê poderá ressentir-se.

— Tenho ainda algumas meses de tempo. E se eu partir já, encontrarei pouca


neve pelo caminho. Preciso estar em Avalon para o festival. — Ela tornou a hesitar,
antes de finalizar: — E há também Guinevere. Ela já demonstrou que não aprova
nossa amizade.

— Não se preocupe com Guinevere. Ela me recusa sempre.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Nimue demonstrou-se preocupada.

— Ainda, Arthur? Meg, a curandeira, disse-lhe que esperasse apenas uma ou


duas luas. Você tem de encontrar um meio de resolver essa situação. Ela é sua
esposa.

Ele riu, um riso amargo.

— Esposa? A única coisa que fazemos é discutir!

— Mais um motivo para eu me afastar daqui.

— Mas eu quero estar a seu lado, quando a criança nascer!

— Não, Arthur. Não pode ser. Esta criança deve nascer no templo de Avalon,
onde os homens não podem entrar.

— Desculpe-me Nimue. Havia esquecido que você é sacerdotisa.

— Parto amanhã — ela anunciou, pesarosa. Uma parte de si mesma ficava


com ele, na sala onde haviam trocado confidencias.

Duas semanas depois, Arthur estava na pista de corrida, comandando o


treinamento das éguas novas, quando um cavaleiro de Dumnonia, montando um
cavalo exausto de fadiga, cruzou os portões. Arthur reconheceu-o de longe. Era
Tristão, sobrinho de Marc de Kernow.

— Os escoceses? — perguntou-lhe, quando ele se aproximou para


cumprimentá-lo.

Tristão fez que sim, enquanto aceitava o copo de água que Elaine lhe trouxera.

— Marc viu apenas um navio. Ele acha que há outros de prontidão, além da
linha do horizonte. É preciso agir, antes que eles tomem a iniciativa.

Arthur encarregou alguns de seus homens de alertar os Senhores da Guerra e


depois começou a delinear seu esquema de guerra. E como Palomides já voltara de
sua longa viagem, ficou combinado que, dessa vez, Lancelot iria com eles. A rainha
estaria bem protegida sob a guarda de um de seus melhores homens.

O exército de Arthur partira havia um mês, quando finalmente, Guinevere


decidiu-se a montar Safere.

A chuva amena, que caíra incessantemente desde p princípio de abril, havia


sido substituída pelos ventos do sul. Os dias eram dourados, estimulando uma boa

Projeto Revisoras 87
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

cavalgada pelos campos dos arredores. Arthur, provavelmente não aprovaria, como
também não aprovaria os velhos calções de montaria que estava usando.

Mas tomaria cuidado e, com um pouco de sorte, ninguém notaria sua saída
furtiva.

Acabava de sair da cocheira levando Safere pelas rédeas, quando viu


Palomides vir ao seu encontro com ar preocupado.

— Arthur não gostaria de vê-la montada nesse potro. É um animal arisco. Eu


também não confio nele. Será difícil controlá-lo, se for posto à galope.

— Eu sei como amansar um potro indócil. Em Cameliard, domei todos os do


nosso plantei... — começou, quando a senti nela fez soar a trompa, anunciando a
chegada de Arthur. Largou as rédeas de Safere e correu ao seu encontro.

Ele vinha à frente do pelotão com Lancelot ao seu lado. De repente, notou que
nem Bedwyr nem Gwalchmai estavam entre eles e assustou-se. Abordou Lancelot,
que acabava de desmontar.

— Onde está meu irmão? E Gwalchmai? — perguntou aflita.

— Ficaram para reordenar e treinar cada um dos pelotões de Marc. —


Lancelot sorriu. — Obrigado pela recepção. Foi uma agradável volta ao lar.

Embaraçada, percebeu que estava sendo o alvo dos olhares dos homens e deu
um passo para trás.

Nesse instante, Arthur fez Valiant estacar e desmontou.

— O que você está fazendo aqui, no meio dessa poeira? — perguntou, o ar


severo. — E de calções!

— Guinevere preocupou-se, quando não viu nem Bedwyr nem Gwalchmai —


explicou Lancelot, solícito.

Ela baixou os olhos, envergonhada. Por que tomava sempre atitudes


precipitadas?

— Olhe para mim, Guinevere — ordenou Arthur. Ela obedeceu


automaticamente, mas não disse palavra. O que poderia dizer? — Você está ainda
perturbada? — ele quis saber, passando-lhe o braço pela cintura e levando-a de volta
ao castelo.

— Não, agora que eu sei que estão todos bem.

Projeto Revisoras 88
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Encontraram Elaine aos pés da escada. Ela sorriu para Lancelot.

— Estou feliz com a sua volta — disse-lhe com calor.

A Guinevere não restou outra coisa senão guardar silêncio, embora sofresse
com isso. Elaine estava no seu direito de mulher livre. Deu o braço a Arthur e deixou
que ele a conduzisse pela longa escadaria que levava às muralhas.

Capítulo VI

Escurecia. Na aldeia, os fogos já começavam a crepitar nas lareiras e a fumaça


a elevar-se das aberturas nos tetos de colmo. Centenas de pequenas luzes, projetadas
por janelas iluminadas pontilhavam a colina.

— É uma linda vista — disse Arthur, com o braço ainda passado pela cintura
de Guinevere.

Guinevere moveu a cabeça, afirmativamente. Ainda ofegante, a lua cintilando-


lhe os cabelos, ela parecia uma divindade.

Arthur olhou-a e achou que tudo seria possível. Até mesmo se entenderem.

— Ouça! — ela disse de repente. — Ouça!

Ele aguçou os ouvidos, atento aos ecos sussurrantes. A distância, o som de um


alaúde flutuava no ar noturno, descendo c elevando-se, melodiosos.

— Obra de Merlin? — ela perguntou.

— Merlin não está.

Guinevere ficou surpresa e ele explicou:

— Quero passar mais tempo com você.

— Talvez por efeito dos bons ares da primavera? — ela observou, alegre.

Projeto Revisoras 89
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Ou talvez por influência da lua, que tem mais poderes nesta época do ano.
Beltane, como os druidas a chamavam — ele revelou, olhando para o céu que
mudava de cor. — Nimue diz que, nesta noite, todas as mulheres tornam-se deusas. .

— Nimue. Sempre Nimue! Ela está comandando os ritos esta noite? Você
esteve com ela de novo?

Arthur sorriu, divertido.

— Está com ciúme?

— A rainha jamais sente ciúme. Tais sentimentos ficam abaixo de sua


dignidade — ela afirmou, elevando o tom de voz.

— Faz dias que não vejo Nimue. Ela está para dar à luz, a qualquer momento.

Guinevere afastou-se dele.

— Oh, então é por isso que não está com ela!

— Esqueça Nimue. Vamos fazer desta noite a nossa própria noite de magia.

— Não irei participar de nenhum rito pagão! — ela quase gritou.

Arthur observou-a descer as escadas com resignação.

Merlin chegou no dia seguinte envergando ainda a túnica branca dos rituais.
O capuz estava jogado para trás e seus longos cabelos escuros pareciam dar mais luz
a seus olhos perspicazes. Entrou e foi direto ao encontro de Arthur.

— Você tem uma filha. Nasceu ontem, na noite de Beltane. Nimue deu-lhe o
nome de Argante. As luzes brilharam para ela, ontem à noite.

Guinevere ouviu, mas não fez comentários. Arthur ergueu-se da mesa


irradiando felicidade.

— Vou selar Valiant. Estarei pronto dentro de alguns minutos.

Merlin ergueu a mão e o deteve.

— Ainda não, meu amigo.

— Mas é minha filha! — protestou Arthur.

— Ouça-me, antes de tomar qualquer atitude. Os rituais em honra ao


nascimento vão acontecer dentro de nove dias. Um ritual por dia, somente para
mulheres. Nem mesmo eu terei acesso a esses segredos — explicou Merlin. — No
décimo dia, Nimue mostrará a criança ao povo e abençoará a terra e seu rei.

Projeto Revisoras 90
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Teremos uma grande festa, então — disse Arthur entusiasmado. — Com


jogos e entretenimentos. — Feliz, ele voltou-se para Guinevere. — Tenho uma filha!
Tenho certeza de que também você a amará.

Guinevere empalideceu. Lancelot reconheceu a explosão que viria a seguir e


fez um sinal para que todos se retirassem. Uma vez a sós, Arthur respirou duas ou
três vezes, como se lhe fosse difícil dizer:

— Guinevere, eu sei que quando você conhecer a criança... bem, Nimue quer
que você...

Mas ela se mantinha alheia a tudo, para não ouvi-lo. Ele tentou uma nova
abordagem.

— Você sabia que isso iria acontecer. Mas, ninguém ignorava que Nimue
esperava um filho meu. Não quer que eu seja feliz?

Ela ergueu a mão. Seus olhos de esmeralda pareciam duas chamas, quando o
esbofeteou duramente.

Arthur seguiu-a com os olhos, enquanto ela deixava a sala. Mas permaneceu
onde estava, com a mão no rosto.

— Não sei por que ela se comportou dessa maneira... Merlin colocou-lhe a
mão no ombro.

— Arthur, meu rapaz. Afinal o que foi que Uther lhe ensinou sobre as
mulheres?

Logo depois, Lancelot foi encontrá-la sentada no seu banco preferido, num
canto escondido do Jardim das Ervas. Como sempre, Guinevere pressentiu sua
presença, mas continuou a fitar o espaço. Sentou-se ao seu lado e esperou. Após
alguns minutos de silêncio, ela disse com voz inexpressiva:

— Dei-lhe um bofetão, Lancelot. Com força.

— Eu sei. Vi a marca no rosto dele.

Ela voltou-se, preocupada.

— Ele está muito zangado?

— E difícil dizer. Arthur não está falando com ninguém. E Merlin, por algum
motivo que desconheço, parece achar que ele mereceu a lição.

Projeto Revisoras 91
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Merlin? Ele não gosta de mim. Por que, então? Ah, Lancelot, não sei o que
vou fazer! O filho de outra mulher... Não posso, não quero aceitar isso!

— E difícil, eu sei. Mas faça um esforço. É o que todos esperam da rainha.

Guinevere agarrou-se a ele com desespero e pôs-se a chorar como uma


criança. Depois, esgotada a emoção, ergueu o rosto.

— Devo estar horrível!

— Está linda, Guinevere. Sempre.

Lancelot aconchegou-a, apertando-a nos braços. Seu doce perfume invadiu-lhe


as narinas, empolgando-o e despertando-lhe desejos vagos.

— Olhe para mim — ordenou-lhe com suavidade.

O coração batendo mais rápido, tomou-lhe os lábios entreabertos e beijou-os


com delicadeza. Então ao sentir a doçura da língua, tornou a cobrir sua boca, desta
vez com beijos profundos, que a fizeram fremir. Mas ao vê-la lânguida, quase
desfalecida em seus braços, recuou.

— E melhor paramos por aqui. Ou não respondo por mim.

— Não me deixe só — ela implorou, ainda chorosa.

— Sabe o que podemos fazer? Dar uma boa cavalgada por aí. Gostaria de
montar Safere?

Ela suspirou e fez que sim.

Enquanto se dirigiam às estrebarias ele comentou:

— Acho melhor que Palomides venha conosco. Não quero me arriscar. Ao


menor descuido, eu a tornaria minha.

Ela parou para fitá-lo.

— Eu não me importaria. Deixe que aconteça o que tem de acontecer!

— Esqueça a mágoa. Sabemos que essa não é a solução. Vamos nos concentrar
no passeio.

Pouco depois, dirigiam-se a galope para o portão do castelo. Guinevere viu


Arthur, que os observava da escadaria, mas ignorou-o. Antes de sair, lançou um
olhar por cima do ombro. Ele sorriu e, pela primeira vez, ela se perguntou se estava
agindo corretamente.

Projeto Revisoras 92
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Os dias seguintes passaram rapidamente. Mensageiros haviam sido enviados


aos aliados de Arthur e os convidados para a Bênção da Terra e para os jogos que se
seguiriam, já começavam a chegar. As tendas foram montadas, as arquibancadas
enfeitadas de guirlandas, ramos e arcos.

Tudo em volta do castelo revelava uma entusiasmada confusão. Aquela era


uma ocasião de geral e profunda hospitalidade, um costume observado em toda a
sua amplitude graças à riqueza e a nobre estirpe do anfitrião.

Guinevere pouco participava dos preparativos. No jantar da primeira noite,


ela viu a marca avermelhada de sua mão ainda visível no rosto de Arthur e
desculpou-se formalmente. Ele aceitou suas desculpas. Mas não a incluiu nas
conversas que manteve com Merlin.

Um dos últimos a chegar foi Maelgwin que, para desespero de Guinevere,


veio acompanhado dos dois saxões. No entanto, como Arthur estava determinado a
receber todos os vizinhos, ela nada pôde fazer a não ser evitá-los.

Ia cavalgar todos os dias. Lancelot acompanhava-a nesses passeios, mas


sempre tendo o cuidado de convidar alguém para o entretenimento.

A noite anterior à chegada de Nimue, Arthur pediu-lhe que fosse à Sala do


Conselho para colocá-la a par da cerimônia ritual que aconteceria com a presença da
filha.

— O povo irá antes e se reunirá em torno do círculo de pedras. A cerimônia


acontecerá ao meio-dia, com o sol a pino. Nimue estará lá, à nossa espera, e nos
receberá. — Ele fitou-a com ar sério. — Iremos juntos ao encontro dela.

— Não tenho vontade de tomar parte dessas cerimônias pagas e não pretendo
ir.

Arthur continuou como se não tivesse ouvido:

— Depois que ela tiver apresentado minha filha à população, aceitarei á


bênção e reconhecerei você como minha rainha. Você retribuirá a homenagem
sorrindo graciosamente.

Ela o fuzilou com os olhos.

— Não farei nada disso!

— Ah, você fará!

Projeto Revisoras 93
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ela ergueu o braço, mas ele colheu sua mão e a colocou sobre a mesa com
força.

— Não repita o gesto! Caso contrário, esquecerei as minhas boas maneiras.

Furiosa, ela desviou os olhos.

— Como ia dizendo — ele tornou com voz calma —, você aceitará o


reconhecimento e a cerimônia estará encerrada. A seguir voltaremos para cá e
receberemos os convidados.

Ela o olhou, em dúvida.

— Você está querendo me humilhar? Sou sua esposa, mas ainda não lhe dei
um filho. Talvez não possa dá-lo jamais. Mas uma única noite com sua sacerdotisa
pagã e seus estranhos meios...

— Contenha sua língua. Não vou permitir que você insulte Nimue. Nem
agora nem nunca!

Guinevere reconheceu o perigo e mudou de tática.

— Acha justo que sua esposa legítima permaneça exposta aos olhares de
todos, aceitando o filho de outra mulher? Acha justo que "sua" rainha se humilhe a
esse ponto?

— Pois é exatamente isso o que uma verdadeira rainha faria — disse Merlin
aproximando-se e Guinevere sobressaltou-se. — Uma verdadeira rainha não iria
contrariar os desejos de seu povo. Ela saberia que o povo aceitará essa criança porque
ela trará fertilidade e prosperidade para a sua terra. E que isso nada tem a ver com o
desejo de um homem por uma mulher.

— Ah! — ela o interrompeu. — Mas eu não tenho dúvida de que Arthur a


deseja!

— Se eu fosse você não falaria de desejos ocultos — advertiu-a Arthur


calmamente.

Ela gaguejou:

— Eu não...

Ele colocou-lhe a mão sobre a boca.

— Nada de mentiras, nada de confissões. Deixe tudo como está. É melhor


assim.

Projeto Revisoras 94
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur já se impacientava de um lado para o outro, quando ouviu os passos


de Guinevere. Olhou para a escada, que ela descia com o porte de uma verdadeira
rainha, e ficou perturbado. Guinevere parecia dotada de uma beleza excitante. Pen-
teara os cabelos cacheados para cima, deixando a nuca a descoberto e pintara o rosto
e os olhos, como no dia do casamento. O vestido de seda verde ondulava
graciosamente, quando ela se movia, marcando o contorno dos quadris, e o decote
baixo expunha-lhe a delicada curva dos seios que um pendente de esmeralda
tornava, por isso, mais evidente.

Envolveu-a num olhar demorado e moveu-se inconscientemente na direção


dela.

— Você não tinha um vestido menos revelador. Aonde pensa que vai? —
disse-lhe severamente.

— Não gosta de minha aparência? — ela perguntou, com ar inocente.

Era uma pergunta intencional e ele percebeu.

— Gosto muito de sua aparência, mas gostaria que você a tivesse reservado
apenas para mim e não para os outros,

— Pensei que você quisesse me apresentar como sua rainha.

Arthur desistiu. Não tinha propósito ficarem ali, discutindo insignificâncias,


que era o que ela pretendia. Ofereceu-lhe o braço e saíram.

Lancelot trouxe a antiga biga romana e parou diante deles. Ao ver Guinevere,
voltou sua atenção para as rédeas dos dois cavalos. Arthur aproximou-se e tomou-
lhe as rédeas, segurando-as com uma das mãos.

— Pode olhá-la à vontade, Lance. É o que todos os homens farão — ele


murmurou tristemente. Depois, forçando um sorriso, voltou-se para Guinevere e a
ajudou a subir.

Chegaram ao círculo de pedra poucos minutos antes do meio-dia, Arthur


dirigindo a pequena carruagem e Guinevere sentada ao lado dele, com a cabeça
orgulhosamente erguida.

Ele viu a expressão de espanto que se estampou no rosto de Merlin e tentou


evitar seus olhos, concentrando-se apenas nos cavalos. E também não fez
comentários, quando o viu adiantar-se para receber Guinevere, dizendo-lhe.

Projeto Revisoras 95
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Milady veio pronta para controlar seu destino? Espero que ele vá de
encontro às suas expectativas.

Guinevere concedeu-lhe um sorriso impessoal e, tão oprimida como se


achava, precisou lançar mão de todo o seu talento para agir com naturalidade.

A fisionomia séria, concentrada, Lancelot avançou por entre a multidão e foi


se colocar ao lado de Guinevere, que não escondia nem seu nervosismo nem sua
ansiedade em livrar-se de um dever que a embaraçava.

Arthur já fora ocupar o lugar que a Senhora lhe destinara, junto a uma das
colunas de pedra e, ao contrário de Guinevere, irradiava felicidade. Naquele instante,
uma fila de sacerdotisas, vestindo túnicas brancas, saía de um bosquete de oliveiras.
Nimue envergando uma leve túnica azul, seguia-as com a filha nos braços. Quando
parou diante de Arthur, a multidão fez silêncio.

Sorrindo, ela anunciou em voz alta e clara:

— Sua filha, milorde.

Ele deu um passo para trás.

— Eu a deixaria cair. Ela é tão pequena, tão frágil... Nimue tornou a sorrir.

— Não tenha receio. Ela não é tão frágil como parece. Tome-a em seus braços e
erga-a para que seu povo a conheça.

Guinevere viu a emoção que se espelhava no rosto do marido e, de repente,


sentiu-se ridícula.

— Arthur vai chamá-la — avisou Lancelot. Guinevere entrou em pânico.

— Não posso ir. Como poderia competir com a simplicidade de Nimue?

— Você é a rainha, Guinevere, mostre isso ao seu povo. Erga a cabeça e vá. Eu
ficarei esperando aqui.

Ela sorriu, um sorriso gentil, e foi ao encontro do marido. Arthur tomou-lhe a


mão direita e a fez erguer o braço junto com o dele. A multidão aplaudia longamente.

Ela gelou, quando Nimue lhe ofereceu o bebê. Tentou virar-se, mas Arthur,
que se colocara atrás dela com as mãos colocadas sobre seus braços, obrigou-a a
aceitá-la. Depois, cuidadosamente, levou-a a fechar os braços em torno dele. O bebê
estava seguro e Nimue deu um passo para trás.

A multidão aplaudiu de novo.

Projeto Revisoras 96
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Nesse instante, a criança mexeu-se e Guinevere olhou-a. Seus olhos eram


cinzentos, iguais aos de Arthur, e a estudavam, lembrando-a de olhos que já vira não
sabia onde. Mas a lembrança logo esvaiu-se e ela ficou sem saber se havia sido em
sonho ou na vida real.

A multidão delirou, quando Nimue pegou o bebê de volta, e levou-o ao peito.


Arthur aproveitou o momento. Tomou Guinevere nos braços e beijou-a longamente.

— Obrigado — ele murmurou de encontro à sua boca. — Obrigado.

Na manhã seguinte, Guinevere vestiu suas roupas habituais: camisa e calças


ajustadas. Vira Maelgwin e seus saxões que olharam-na com olhos cobiçosos durante
o festival e isso a incomodara. Tanto, que resolvera voltar ao seu normal.

Mas estava aborrecida. Todos estavam muito ocupados, ninguém lhe dava
atenção. Instintivamente, dirigiu-se ao padoque. Safere relinchou quando a viu, e
veio ao seu encontro. Acariciou-lhe o focinho e montou-o. Depois guiou-o na direção
das colinas.

Mas no instante em que se viu longe estimulou Safere, levando-o do trote a


um galope acelerado. Mas o prazer logo acabou, quando ouviu o rumor compassado
de cavalos aproximando-se.

Distraidamente, pensou que fora vista ao deixar a estrebaria e que alguém


viera buscá-la. Mas, naquele dia, sentia-se arrojada. Desmontou, depositou as rédeas
sobre a cabeça de Safere e permitiu que ele fosse pastar a erva que crescia no bosque
de aveleiras. Depois, calmamente, pôs a galgar a colina.

Um momento depois ouviu o som de uma chicotada seguido do relincho de


Safere e, logo depois, o ruído de seus cascos em rápido galope.

— Guinevere! — chamou um deles.

— Ela deve estar em algum lugar — tornou o outro. — Talvez lá em cima.

— Esses lugares têm uma antiga magia. Vamos dar uma olhada aqui por
perto. Se for preciso, subiremos até o topo.

Guinevere sentiu o pânico crescer dentro dela. Tinha que alcançar os cavalos.
Eram seu único meio de salvação. Deslizou para fora do círculo e, sem fazer ruído,
foi se arrastando na direção de um deles. Estava a meio caminho de safar-se, quando
o cavalo sentiu a sua presença e relinchou.

Projeto Revisoras 97
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ainda assim, conseguiu pôr o pé no estribo. Um dos saxões a viu e correu


para agarrar o animal pelas rédeas. Mas o negro corcel fora treinado para as batalhas
e fez o melhor que pôde para corresponder aos comandos de Guinevere. Ela já estava
alcançando a estrada, quando o outro saxão que vinha a cavalo no seu encalce,
arrancou-a da sela e colocou-lhe os braços sobre a cabeça. Viu-o claramente, os
cabelos emplastrados de suor, os olhos selvagens e cuspiu-lhe no rosto. Ele a
esbofeteou duramente. Depois rasgou sua camisa e...

Lancelot viu quando Safere chegou, galopando pela estrada sem seu cavaleiro.
Gritou para que Palomides o apanhasse, montou Pryderi e cruzou os portões a toda
velocidade.

Guinevere deve ter sido arremessada pelo jovem potro...

Ouviu seus gritos quando estava perto do bosque. E então a viu. Ela jazia
encolhida sobre si mesma, com a camisa em tiras, os braços escondendo o rosto.
Arrancou sua própria camisa e correu para ela.

— Sou eu, Lance — ele gritou, ajoelhando-se a seu lado.

Ela abriu os olhos, piscando à luz do sol e jogou-se tremendo em seus braços.
Lancelot viu as marcas no rosto e pôs-se a acariciá-la. Sentiu então algo pegajoso nos
dedos e olhou-os. Sangue. Ela estava sangrando!

— O que foi, Guinevere? Eles a machucaram? Ela enterrou o rosto em seu


pescoço.

— Sinto-me tão suja, tão impura...

Lancelot ia cobri-la com sua camisa, quando ela se sentou. Seu seio esquerdo,
muito machucado, guardava ainda as marcas das mordidas. O direito tinha longos
arranhões e sangrava:

— Vou matá-los! — ele rugiu, impressionado.

— Faça-me sentir limpa de novo — ela murmurou, tomando-lhe uma das


mãos e levando-a ao seio.

Por um minuto, ele não disse nada.

Ela quer que eu... pelos deuses, seus seios são lindos...

Com muita gentileza, tomou-lhe o seio que sangrava e beijou-o ca-


rinhosamente. Depois beijou-lhe os lábios, saboreando o gosto salgado de suas

Projeto Revisoras 98
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

lágrimas. Quando o beijo aprofundou-se num encontro de línguas, ele percebeu que
devia parar. Caso contrário, tudo redundaria numa paixão desenfreada. Guinevere
não lhe pertencia.

Ela suspirou e abriu os olhos.

— Eram homens de Maelgwin. Os dois saxões... eles me seguiram.

Lancelot sentiu-se culpado.

— Devem ter combinado tudo com Maelgwin, tenho certeza. Vamos para
casa, você precisa de cuidados. — Ele a ajudou a vestir a camisa e a abotoá-la.

— Você chegou a tempo, antes que eles me tirassem o restante das roupas.

Lancelot assobiou para Pryderi, acomodou-a na sela e montou atrás dela,


conduzindo o cavalo a passo, para que ela se sentisse confortável. Ao atingirem a
estrada principal encontraram Arthur, que vinha acompanhado por Uriens e
Palomides.

Lancelot levou Pryderi para junto de Valiant e pôs-se a contar o que


acontecera.

— Os saxões de Maelgwin seguiram-na até aqui e tentaram estuprá-la.

Arthur inclinou-se para a frente e tocou o rosto machucado de Guinevere.

— Machucaram-na muito, Guinevere? Chegaram a...

— Não, não! Lancelot chegou a tempo.

— Leve-a para casa. Estamos indo atrás deles. E Maelgwin que me aguarde! Se
ele teve parte nisso será um homem morto!

Arthur retornou ao amanhecer e encontrou Lancelot à sua espera.

— Achou-os?

— Não. Voltaram para sua terra. E Guinevere, como está?

— Dormindo. Nimue preparou-lhe um sonífero.

— Ótimo! — Arthur aceitou a taça de vinho que o criado lhe serviu e fez um
sinal para que Lancelot o seguisse. Entraram na sala dos mapas e acomodaram-se.

— Você interrogou Maelgwin?

Projeto Revisoras 99
Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Sim, mas ele jura que não sabia de nada. Estou inclinado a acreditar nele.
Parece que aqueles saxões trabalhavam para Cedric, antes de se colocarem a serviço
de Maelgwin. Para onde você iria, se fosse um deles?

Lancelot pensou um pouco.

— Aesc seria a melhor opção. Ele mora bem longe daqui e não é nosso amigo.

Arthur concordou.

— Será lá que irei procurá-los.

— Deixe-me ir em seu lugar Arthur. Falhei na primeira vez, quando os deixei


ir. Permita que eu corrija o meu erro.

— Sou o marido dela, Lance.

— E é também nosso rei. Não é por esse motivo que ela tem um paladino?

— Você tem razão.

Lancelot contou resumidamente o que acontecera e Arthur suspirou, aliviado.

— Foi uma sorte, você estar por perto. Como posso agradecer-lhe?

A culpa quase sobrepujando-o, Lancelot pediu:

— Deixe que eu vá atrás deles. E quando tiver terminado, dê-me permissão


para partir.

Arthur ficou surpreso.

— Você pretende me abandonar, depois de todos os protestos de lealdade e


dedicação?

Lancelot empalideceu, mas falou com calma:

— Jamais faria tal coisa. Meu motivo é outro.

— Diga, então!

Lancelot inspirou fundo e confessou:

— Porque eu me preocupo demais com Guinevere.

Arthur ergueu-se.

— Eu sei. Você sempre se preocupou com o bem-estar dela. Ele sorriu


inesperadamente. — Pois eu acho que você precisa de uma mulher. Há quanto tempo
está sem ninguém?

Projeto Revisoras 100


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Há um bom tempo.

— Há sete anos, quando chegou aqui, você conquistou uma coleção de


mulheres. De repente, você se tornou um monge. Por quê?

Lancelot encolheu os ombros. Era verdade. Tivera muitas mulheres. E agora


queria apenas uma, a única que não podia ter.

— Perdi o gosto por mulheres fáceis.

— Uma esposa, então. Está na hora de você se casar. Elaine, talvez?

— Não, não! Não quero compromissos.

Arthur estudou-o atentamente.

— Você ama Guinevere.

Lancelot sustentou seu olhar.

— Sim, amo. E é por isso que devo partir.

Ficaram ambos em silêncio, ambos imersos em seus próprios pensamentos.


Arthur foi o primeiro a falar:

— Tive uma idéia que poderá dar certo. Há uma fortaleza ao norte do muro
de Adriano que está vaga há muito tempo. Leve consigo Gaheris e uma subdivisão
de batalhão e prepare-a para a defesa. O nome da fortaleza é Din Guayrdi.

— Bela Vista? — Lancelot esboçou um leve sorriso. — Até lá, permita que eu
continue sendo o guardião de Guinevere e que faça as contas com aqueles saxões.

Arthur levantou-se.

— Você deu sua palavra, não foi? Ela espera que você a cumpra.

Ele saiu da sala e Lancelot ouviu-o subir lentamente as escadas que levavam
ao quarto de Guinevere.

Menos de uma lua depois da partida de Lancelot, um mensageiro de Aelle


chegou com uma caixa contendo um pote lacrado e uma carta. Lancelot surpreendeu
os dois saxões tentando alcançar as terras de Aesc através de uma floresta limítrofe e
ajustara contas com eles. A carta terminara com os seguinte dizeres:

Lancelot espera que o conteúdo do pote proporcione paz à rainha.

Arthur retirou o lacre do pote, espiou seu conteúdo e pôs-se a rir. Depois
passou-o a Guinevere, dizendo:

Projeto Revisoras 101


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Foi uma façanha e tanto! Veja por si mesma.

Guinevere olhou e emitiu um som estrangulado. Boiando no líquido que os


preservava, havia a prova inquestionável da emasculação dos dois saxões.

Arthur viu-a tão chocada, que resolveu intervir.

— Pense Guinevere. Esses homens jamais estuprarão mulher alguma. Eu não


poderia ter feito um trabalho melhor para -vingar você.

— Para mim, o assunto está encerrado. Nunca mais quero ver esse pote na
minha frente!

Arthur recolocou-o na caixa, pensativo.

— Acho que vou mandá-lo para Maelgwin. Espero que isso lhe sirva de lição.

— Por que o próprio Lancelot não leva pessoalmente?

Ele hesitou um instante, temendo uma explosão. Por fim lhe revelou que
estava enviando Lancelot para o forte Bela Vista. Mas ela nada disse. Olhou-o
apenas, demoradamente, e saiu da sala.

No auge do verão, Hueil deu o primeiro passo. Transpôs o mar do Oeste com
cento e cinqüenta escoceses e recrutou outros cem na ilhas Dormangart, dando início
ao assédio a Alclud.

Arthur aprontou-se para a batalha iminente com mais energia da que


empregara na elaboração de seus colégios de justiça. Enviou mensageiros para
Lancelot, Leodegrance e Owain, filho de Uriens, pedindo-lhes que preparassem suas
tropas. Leodegrance deveria unir-se a Lancelot, para juntos avançarem para leste,
enquanto Arthur e seus homens se uniriam aos de Owain e avançariam em direção
ao sul.

— Estarei de volta antes da primeira nevada. Cai e Gwalchmai ficarão aqui, de


guarda. Pode contar com eles, Guinevere.

— Você irá ver Lancelot? — ela perguntou, com uma certa hesitação.

Arthur olhou-a intensamente.

Ela ainda pensa nele.

— Vou me encontrar com ele, sim. Quer que eu lhe dê notícias suas?

— Diga-lhe que eu espero que ele esteja bem e que volte ileso da batalha.

Projeto Revisoras 102


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur ergueu as sobrancelhas e ela apressou-se a acrescentar:

— E você também. Quero-o de volta para mim inteiro, de corpo e alma.

Ele aproximou-se dela e ergueu-lhe o queixo.

— Vai mesmo sentir a minha falta-?

— Claro que sim! Que pergunta mais estranha... — ela murmurou, corando.

— É uma pergunta justa. Este ano, foram poucos os momentos que passamos
juntos — ele retrucou, seus olhos sustentando os dela.

— Você estava muito ocupado, Arthur. Não tinha tempo para mim.

— Tenho tempo de sobra, agora. Se me quiser, é só fechar a porta.

Ele a viu caminhar para a porta e hesitar. Preparava-se para o pior, quando ela
a fechou com determinação.

Uma onda de felicidade invadiu-o. Puxou-o para si e caíram juntos sobre a


cama, retomando o ritual há muito interrompido. E foi como um fogo que se
alastrasse por uma floresta ressequida. Forte e avassalador.

Quando terminaram, Arthur soergueu-se e procurou-lhe os olhos.

— O que foi? — ela perguntou, inquieta.

Ele inclinou-se e beijou-lhe os lábios.

— Nada, meu amor.

Como posso perguntar se ela estava pensando em mim ou em Lancelot, enquanto


fazíamos amor?

O assédio prolongou mais do que Arthur esperava. As tropas haviam


conseguido encurralar Hueil e suas forças, quando Fergus Morsent enviou reforços
do norte, abrindo uma via de escape para Hueil. A primeira nevasca já estava caindo
na região. Teriam que esperar até a primavera, para sair em sua perseguição.

Arthur mandou para casa a maior parte de suas tropas, retendo consigo
apenas um grupo de trinta cavalarianos e seguiu com Owain para Rheged.
Encontrou Uriens pálido e fraco e pensou se Morgana tinha algo a ver com isso.
Resolveu questionar Owain, que foi encontrar na sala dos mapas.

Owain sacudiu negativamente a cabeça, quando Arthur falou de suas


suspeitas.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Um ano atrás, eu teria concordado com você. Mas, desde a sua volta de
Camelot, ela tem se comportado exemplarmente. Dedica as manhãs a meu pai e o
resto do dia a Medraut, a quem data mais como amigo do que como filho.

— O filho dela é meu sobrinho! Gostaria de conhecê-lo.

Owen lançou-lhe um olhar de estranheza, antes de responder:

— Não está aqui, no momento. Foi visitar Morgause. Tornou-se amigo do


filho dela.

Morgana, que acabava de entrar na sala, ouviu parte da conversa.

— Medraut é um menino excepcional. Tem quase onze anos é bastante


desenvolvido para a sua idade. Posso levá-lo a Camelot, se quiser. — Ela olhou
demoradamente para Arthur. — Vamos esquecer o passado? Afinal, somos irmãos.

Ele ficou calado, sem saber o que dizer. Todos os seus sentidos de guerreiro
estavam alertas. Ela parecia sincera. Ele, porém, sentia-se com um rato na presença
do gato.

— Essa pergunta você deve fazer a Guinevere.

— Sem dúvida. Gostaria de apresentar Medraut a vocês dois. Vai falar com
ela?

Ele hesitou, pensando se não haveria alguma perversidade, atrás daquela


aparente mansidão.

— Falarei — disse por fim.

Arthur voltou para Camelot no final de julho. Dias depois, recebeu a notícia
da morte de Uriens. No mesmo instante, montou Valiant e desapareceu por vários
dias. Ao voltar, cansado e desfeito cancelou todas as comemorações em honra ao
Solstício de Inverno. Quando Guinevere o interrogou, disse-lhe apenas que havia
perdido um grande amigo.

Gradualmente, o inverno chegou ao fim, dando lugar à primavera, às


comemorações, aos jogos e às competições.

Nimue e Merlin chegaram um dia antes das festas. Na tarde do mesmo dia,
um criado entregou a Arthur uma carta que acabava de chegar. Quando ele a leu, seu
rosto tornou-se sombrio. Passou-a a Guinevere para que ela se inteirasse do con-
teúdo.

Projeto Revisoras 104


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Morgana voltara, pelo menos temporariamente, à sua propriedade, vizinha a


de Maelgwin. Accolon viera junto e ele pedia permissão a Arthur para que
participasse dos jogos do dia seguinte.

— A decisão é sua Guinevere — ele afirmou, preocupado com Morgana, uma


mulher violenta e contraditória, refém de suas próprias paixões.

— Parece que ela não perdeu tempo. Está de novo com Accolon — observou
Guinevere. — Mas hoje é dia de petição. Você não pode ignorar seu pedido.

— Acho que você está certa. E, embora a contragosto, irei convidá-los...

O dia do torneio amanheceu com um céu sem nuvens e uma brisa suave. O
campo dos jogos fora preparado com antecedência e os estandartes coloridos já
flutuavam ao longo das fileiras de bancos, um complemento às cores primaveris dos
vestidos das damas.

Os arqueiros foram os primeiros a competir, seguidos pelos espadachins.


Accolon venceu numa luta corpo-a-corpo e Morgana acenou-lhe com um lenço de
gaze, sorridente e feliz. O desafio seguinte seria o arremesso de lanças.

— Se Lancelot estivesse aqui, seria ele a vencer — declarou Arthur.

Guinevere concordou. Lancelot fora convidado, mas não viera. Dois anos
haviam se passado, desde que ela o vira pela última vez.

No início da tarde, houve exibições de equitação. O último evento do dia seria


a justa, uma disputa que exigia o uso de elmos e armaduras. Arthur pretendia
apresentar-se, mas incógnito. E para tal, deixou sorrateiramente o campo para mudar
de roupa.

Apareceu pouco depois, envergando uma armadura simples, a viseira já


fechada, e munido de uma longa lança em riste. Bedwyr aceitou o desafio.
Arremessaram-se um contra o outro por duas vezes. Na terceira Bedwyr conseguiu
desequilibrar Arthur, mas logo ele se recompôs. No quarto ataque, Arthur colheu o
adversário de surpresa e o jogou por terra. A multidão aplaudiu.

Arthur estava para retirar o elmo quando a multidão silenciou subitamente.


Voltou-se. Um grande corcel alazão aparecera na liça. Seu cavalo usava uma
armadura de bronze que fazia par com a cor de sua montaria. A viseira já estava
fechada e sua lança erguida. Arthur ergueu a dele, em resposta, e esporeou seu
cavalo. O outro fez o mesmo.

Projeto Revisoras 105


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Enquanto os dois cavalos arremessavam-se para a frente a toda brida,


Guinevere estudava o oponente de Arthur. Havia um único homem que cavalgava
como se fosse a extensão de seu próprio cavalo. Lancelot! Reconheceu o porte airoso,
o equilíbrio fluido, a destreza que conduzia sua montaria e seus olhos encheram-se
de lágrimas.

No primeiro embate nenhum dos dois caíra por terra. O segundo fora
silencioso, ouvia-se apenas as batidas dos cascos contra o solo duro. De novo dois
encontros violentos e os dois cavaleiros passaram incólumes. No terceiro, Arthur
errou o alvo. No quarto atingiu o cavaleiro desconhecido no ombro, quase
desalojando-o da sela. Mas ele conseguiu recuperar o equilíbrio e esporeou sua
montaria para o quinto assalto.

Guinevere viu o sangue escorrer ao longo de seu braço e levantou-se gritando:

— Interrompam a justa! Ele está ferido!

Os dois cavaleiros estacaram surpresos. Arthur foi o primeiro a manifestar-se.

— Podemos declarar um empate? Eu não faria objeções.

Lancelot inclinou-se levemente para Guinevere e ergueu a lança de novo em


desafio.

Guinevere deixou-se cair sentada.

No último instante possível Arthur desviou seu cavalo para fora da liça e
jogou a lança no chão, concedendo a vitória ao seu desafiante.

Guinevere suspirou, aliviada. E ficou esperando que Lancelot fosse ao seu


encontro. Levantou-se para lhe fazer um aceno e logo tornou a sentar-se, estupefata.
Lancelot estava indo embora.

Durante o festim o assunto era um só: o desafiador misterioso. Mas Guinevere


mal os ouvira. Seus olhos inquietos perscrutavam os grupos de convidados tardios,
esperando encontrar Lancelot entre eles.

Estava ainda pensando nele, quando a porta principal abriu-se e Accolon


entrou. Arthur e Guinevere viraram-se para ele ao mesmo tempo. Ele inclinou
levemente a cabeça e fez um gesto para alguém que estava atrás dele. Morgana
apareceu no limiar acompanhada de um jovem alto, de cabelos escuros.

Nimue e Merlin entreolharam-se, surpresos.

Projeto Revisoras 106


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— O menino que estávamos procurando — ele sussurrou.

— Que os deuses nos ajudem. Jamais teria imaginado que ele fosse armar
tamanho espetáculo. Arthur olhou-os interrogativamente.

— Por que estão tão surpresos? O garoto deve ser meu sobrinho. Morgana
pediu permissão para apresentá-lo, durante minha última visita a Uriens.

Morgana empurrou o filho para a frente e parou, ao seu lado, diante da mesa
de Arthur.

— É Medraut, meu sobrinho?

— Pode chamá-lo de sobrinho — ela respondeu, com voz incolor. — Pode


chamá-lo também de filho.

Guinevere emitiu um som estrangulado.

Aqueles olhos... na noite junto à Lagoa Sagrada... o herdeiro. Não era meu filho. Era o
filho de Morgana!

O rosto de Arthur endureceu-se.

— O que está querendo dizer, Morgana? É algum tipo de brincadeira?

— Não, Arthur, não é brincadeira — ela disse calma e claramente, para que
todos ouvissem. — Ele é seu filho, concebido em Beltane há doze anos. Lembra-se?

Arthur franziu a testa. Depois empalideceu.

— Não, não pode ser.

Naquela ocasião era o comandante das tropas de Uther. Tinham invadido


Compretovium na semana anterior e foram bem-sucedidos. Rechaçaram as forças
dos saxões. Seus homens estavam retornando a Ambresbyrig... Era Beltane...

Lembrava-se da libação na taberna de vigas de carvalho. Ao todo, eram sete


em torno da mesa. Companheiros de armas e de libertinagem.

— Veja, Arthur — disse Cai, de seu canto. — Veja aquela mulher parada junto
à porta. Parece que ela está querendo dormir com todos nós.

Arthur enxugou a caneca de cerveja e colocou-a na mesa. Bebera demais.


Sentia a cabeça rodar.

— Sete é demais para qualquer mulher. Mesmo em Beltane.

Projeto Revisoras 107


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Levantou-se da mesa tropegamente e saiu. A mulher havia desaparecido.


Lentamente, pôs a subir a estrada em declive, na direção do acampamento. De
repente, uma figura envolta num manto escuro surgiu de trás das moitas de
azinheiros. Estacou, pronto para desembainhar a espada, quando ouviu uma voz
feminina dizer:

— Siga-me.

Introduziu-se na moita e viu apenas que ela era pequena.

Seu rosto estava oculto pelas sombras. Quando retirou o manto, entreviu os
grandes seios sob o vestido transparente. Era um convite e ele aceitou. Ela parecia
ansiosa: Abria os braços para recebê-lo. Tomou-a rapidamente, quase em frenesi.
Não percebeu que ela era virgem até ouvi-la gritar de dor. Nesse mesmo instante
seus homens começavam a subir a ladeira, conversando. Impôs-lhe silêncio e vestiu-
se rapidamente. Saiu sem perguntar o seu nome...

Agora fitava-a cheio de horror.

— Não pode ser — murmurou. — Você é minha irmã!

Morgana sorriu quase ironicamente.

— Ouvi seus homens chamá-lo pelo nome e percebi que você era o protegido
de Uther. Naquela época, nem eu nem você sabíamos que éramos parentes. Mas se
você tiver alguma dúvida sobre o menino, olhe-o. Arthur forçou-se a olhá-lo. Os
cabelos negros eram de Morgana, mas as feições eram dele: o queixo quadrado, o
nariz reto, o olhar direto dos olhos acinzentados... eram também os olhos de Uther.

— O que você quer de mim? — perguntou com voz de gelo.

Ela tornou a sorrir.

— Quero que reconheça Medraut e o crie como seu filho. Ele é o legítimo
herdeiro ao trono. Tanto de sua parte quanto da minha. Meu pai era o rei de Tintagel.
E quanto a mim — ela olhou para Guinevere com ar triunfante —, quero ser a
consorte do rei.

Ao ouvir isso, Guinevere pôs-se a rir. Cada vez mais alto. Arthur via seu corpo
sacudir pelos soluços e percebeu que ela não conseguia controlar-se. Voltou-se para
Nimue.

— Faça alguma coisa, por favor!

Projeto Revisoras 108


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Nimue colocou sua mão fria sobre a testa de Guinevere e o ataque histérico
diminuiu de intensidade. Arthur puxou-a para si e apertou-a contra o peito. Depois
ergueu-a nos braços e levou-a escadas acima, em direção ao quarto e Nimue, que os
seguira, preparou uma droga para que ela dormisse em paz, recomendando:

— Ela está mais descansada, mas terá uma noite difícil. Permaneça ao lado
dela, vigiando-a.

Nesse instante, Merlin apareceu à janela.

— Temos que tomar algumas decisões. Arthur olhou-o, irritado.

— Que decisões? Vou exilá-los, vou mandá-los para bem longe daqui!

— É inútil. Ele retornará para lutar contra você.

— Você espera que eu reconheça o garoto? — perguntou Arthur, incrédulo.

— Não apenas que o reconheça, mas que o crie como filho.

— O quê? Você perdeu a razão, Merlin!

— Ele é seu filho assim como Argante é sua filha — observou Nimue
gentilmente.

Arthur sentiu a pungência da observação e revoltou-se. O menino não era


senão o resultado de alguns instantes de prazer físico usufruído descuidadamente.

— Não posso fazer isso a Guinevere.

— Ela aceitou Argante, talvez aceite também Medraut.

— Por que devo cria-lo, se ele nada significa para mim?

— Não estou sugerindo que você acolha também Morgana — interpôs-se


Merlin. — Ao contrário, Medraut deve ficar separado dela. Teríamos, assim, a
oportunidade de salvá-lo da influência maléfica daquela mulher.

Arthur não respondeu. Voltou-se para a mulher adormecida pensando como


lhe explicar que não tivera nada a ver com aquela maquinação.

Ela não irá me aceitar mais, quando souber que cometi incesto.

Incesto. De repente, o pleno horror daquilo explodiu em seu entendimento.


Saiu do quarto, desceu as escadas, montou Valiam e gritou ao guarda que lhe abrisse
o portão.

Projeto Revisoras 109


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Voltou de madrugada sabendo que tinha de jogar contra um adversário


poderoso e com todas as apostas feitas contra ele.

Capítulo VII

Elen de Astolat terminou de tomar o café da manhã e sorriu para o pai.

— Quais são os seus planos para hoje? — perguntou-lhe Bernard.

— O dia está tão lindo! Estou com vontade de dar uma cavalgada com minhas
damas. Talvez até a lagoa dos lírios. Eram suas flores preferidas. Combinavam com a
alvura de sua pele, era o que todos lhe diziam.

Bernard sorriu com indulgência.

— Não vá longe demais. E leve o velho Eric consigo.

Elen olhou-o ceticamente e jogou os longos cabelos para trás. Não precisava
de escolta. Tinha quinze anos, era quase mulher, mas seu pai continuava tratá-la
como menina. Havia implorado para que a levasse consigo a Camelot, seus irmãos
iriam participar dos jogos, mas ele se recusara. Jamais encontraria marido, se ficasse
em Astolat. Sabia, porém, que era inútil protestar e conformara-se.

— Como quiser, papai.

Bernard suspirou. Oh, como era difícil cuidar de uma filha crescida.

Quando Elen abriu a porta, os raios de sol atravessavam a leve neblina da


manhã, como se fossem de prata. A cálida brisa campestre agitava suavemente as
folhagens, e um perfume misterioso chegava dos bosques. Era um dia magnífico,
próprio para uma boa cavalgada.

Ele sorriu e voltou para suas damas.

— Já sei para onde iremos primeiro. À clareira do bosque. Poderemos apanhar


as flores na volta.

Projeto Revisoras 110


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Eric protestou:

— É longe demais!

Ela não fez caso e pôs-se à frente do grupo. Cavalgaram durante duas horas,
antes de alcançarem as sombras do bosque. Seguiram pela trilha estreita que
conduzia à clareira em fila indiana.

— Vamos parar aqui — disse Elen a um certo momento, apontando um


pequeno grupo de árvores. Entre os troncos cresciam amoreiras.

— Vamos apanhá-las. Faremos uma torta.

Seguiam uma velha picada, ora visível ora dissimulada pelas moitas espessas,
quando ouviram um relincho. Esperaram que o animal emergisse do bosque, mas
não houve nada. Quando ele tornou a relinchar, dessa vez mais alto, Elen preocupou-
se.

— O pobrezinho deve estar machucado — comentou. — Vamos voltar.

Alcançaram a trilha e tornaram a montar. Ao dobrarem a curva, viram um


grande corcel negro parado junto a algo que não puderam distinguir. Elen
desmontou e começou a falar suavemente com o animal assustado. Ele empinou as
orelhas e acalmou-se. Ao aproximar-se, percebeu que um homem jazia de borco
sobre a trilha. Evidentemente, escorregara da sela. Aproximou-se mais. Ele vestia
trajes de cavaleiro, mas estava sem couraça o que era estranho, pois o corcel era um
cavalo de batalha. Apenas um elmo de bronze pendia de um lado da sela. Estaria
morto ou vivo?

Ajoelhou-se ao seu lado e virou-o com cuidado. O homem gemeu. Uma


mancha pegajosa alargava-se sobre o ombro esquerdo da camisa. Abriu-a com
delicadeza e, ao ver o feio talho aberto lançou um grito. Era profundo e já começava a
infeccionar-se. Afastou-lhe os cabelos para trás e pôs a mão em sua testa. Ele estava
ardendo em febre.

Chamou as moças, enquanto o olhava. Seu rosto estava coberto pela poeira da
estrada, a barba estava por fazer e ainda assim era bonito. Muito bonito. De que cor
seriam seus olhos?

Eric sobressaltou-se, quando o viu.

— Quem é?

Projeto Revisoras 111


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não sei. Mas temos de levá-lo para casa, antes que morra por falta de
atendimento — disse Elen, apanhando o corcel pelas rédeas.

O animal ajoelhou-se prontamente sobre a perna direita e ela ordenou:

— Rápido Eric! Vamos aproveitar o momento para deitar o ferido sobre a sela.
Amarre-o com as rédeas para que ele não caia.

Eric puxou-o para cima, lançando mão de toda a sua força e jogou-o de braços
sobre o dorso do garanhão, que aguardava nervosamente seu cavaleiro. Amarrou-o
solidamente conduzindo-o com sua carga até a estrada.

A volta a Astolat foi lenta e tensa.

Lancelot sentia-se flutuar num lago de águas escuras. Devia ser noite, tudo
estava escuro ao seu redor. Fez força para coordenar seus pensamentos e só
conseguiu sentir que alguém empurrava seu ombro para baixo. Tentou erguer o
braço para se defender, mas...

Na manhã seguinte, Elen acordou cedo e preparou-se para fazer o primeiro


curativo no estranho. Sabia o que era preciso fazer e o fez com calma e competência.
Mas quando começou introduzir o ungüento no talho aberto, ele pôs-se a gritar como
um animal ferido. Teve que lançar mão de toda a sua força para segurá-lo.

— Virgem Santíssima...

Lancelot sentia o estrondo de suas próprias pulsações e não sabia de onde


vinham as dores. Gritava porque se sentia morrer. Havia alguém que lhe mantinha
as mãos presas.

— Não se entregue. Você precisa resistir.

A voz veio da distância, fresca, gentil e doce como água pura... Subitamente,
sentiu que perdia a consciência.

— Graças a Deus! — murmurou Elen com fervor.

Lancelot dividiu-se entre os lampejos de lucidez e a inconsciência ainda por


alguns dias. A partir daí a febre abaixou e ele começou a dormir em paz.

Certa manhã, Elen encontrou-o acordado. Fitou-o confusa, sem saber o que
dizer. Por fim apresentou-se.

— Sou Elen, vim renovar seu curativo. Você está bem?

Ele fez um sinal afirmativo.

Projeto Revisoras 112


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Isso era tudo o que ela precisava saber. Avançou timidamente e lhe
desenfaixou o ombro. Ao terminar avisou:

— Vou mandar o criado lhe trazer algum alimento. Você deve estar com fome.

— Estou faminto! — ele confirmou, tomando-lhe a mão e beijando-a. —


Obrigada, Elen. Por tudo.

Ela ficou parada um instante, sem saber o que dizer. Depois virou-se
bruscamente e deixou o quarto.

Bernard chegou quando eleja havia acabado de comer. Sentou-se ao seu lado e
disse-lhe onde estava e em que estado chegara em sua casa.

Lancelot sentiu-se no dever de apresentar-se:

— Sou Galahad. Acabo de chegar do Norte. Fui ferido durante um torneio em


Camelot.

— É um dos homens de Arthur? Lancelot hesitou.

— Dou suporte ao rei junto à fronteira norte. Estou tão próximo do território
saxão quanto o senhor.

— Somos leais ao rei, mas, em virtude de nossa proximidade com a fronteira,


somos obrigados a tolerar os saxões.

— Compreendo.

— Meus filhos gostariam de instalar-se em Camelot e minha filha quer se


casar com um dos homens de Arthur. Ela tem apenas quinze anos, jovem demais
para alimentar tais sonhos. Mas é uma boa moça, prestativa e dedicada.

— Ela cuidou de mim, tratou-me como se eu fosse um amigo da casa. Estou


grato a ambos pela dedicação e pela hospitalidade. Mas não quero abusar. Acho que
já está na hora de partir.

— Absurdo! — disse Bernard. — A curandeira recomendou pelo menos uma


semana de repouso. Depois haverá uma lenta convalescença... Até lá, todo o cuidado
é pouco.

Elen, que acabava de entrar, reforçou o pedido do pai.

— Fique conosco algum tempo. Recebemos poucas visitas porque estamos


perto demais da fronteira. — Ela corou. — Não é uma imposição! Acho apenas que
será bom termos um hóspede em casa.

Projeto Revisoras 113


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Bernard assentiu.

— Vê? Estaria fazendo uma desfeita a minha filha, se partisse logo.

Lancelot finalmente concordou.

— Está bem. Ficarei.

A tarde, quando Elen chegou com a bandeja de curativos, Lancelot sentia-se


outro homem. O barbeiro fizera-lhe a barba e a camareira trouxera-lhe água quente e
uma camisa limpa. Recebeu-a confiante.

— Está um lindo dia, não acha? Ela sorriu.

— Como está se sentindo?

— Muito melhor! Acha que posso me levantar?

— Veremos, veremos — ela disse. Depois removeu o curativo e examinou o


ferimento. — Está menos avermelhado.

Enquanto ela massageava a pele em torno da cicatriz, ele suspirou.

— Você tem uma mão suave de fada. Seu toque é delicado. Ela sorriu,
agradecida.

— Feito — disse, dando um passo para trás. — Vejo você amanhã.

Lancelot ficou olhando para a porta, quando ela saiu. Elen era uma jovem
vulnerável e sonhadora. Devia ter cuidado para não encorajá-la.

Lancelot aproveitou seu período de recuperação para conhecer melhor a


propriedade e seus anfitriões.

Certa noite, em que se encontraram todos ao redor da lareira, Elen sugeriu:

— Podemos realizar um torneio aqui? Apenas com nossos homens?

Bernard fez um sinal de aprovação.

— É uma excelente idéia! O que acha, Galahad?

— Levaria muito tempo para prepará-lo.

— Você pode nos ajudar. Ou tem pressa até partir?

— Não de verdade. — Ele pensou um instante. — Tudo bem. Ficarei aqui até o
torneio.

Elen bateu palmas.

Projeto Revisoras 114


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Ótimo! Eu serei a rainha. Você usaria meu distintivo?

O dia do torneio, por fim, chegara e Lancelot se preparava quando bateram à


porta do quarto. Era Elen.

— Está pronto, Galahad? Terminou de vestir-se e abriu a porta. — Fiz para


você — ela disse, mostrando uma roseta de seda vermelha bordada com pérolas.

Ele deu um passo para trás. No passado, havia sempre recusado esse tipo de
troféu.

— Por favor, Galahad. Deixe-me ser rainha por um dia. Você será meu
paladino.

— O rei não permite que a rainha conceda troféus.

— Bem... então serei uma rainha solteira. Você aceita meu presente?

Como dizer não a alguém que salvara sua vida? Embora relutante, colocou a
roseta num lado do elmo. Só muito mais tarde foi compreender a loucura desse
gesto.

Elen tomou o braço que ele lhe ofereceu e desceu a longa escadaria parecendo
de verdade uma rainha.

Lancelot hesitava em participar dos jogos, mas Tirre e Lavraine insistiram e


ele não teve outro remédio senão aceitar. Sabia que era competitivo demais para não
tentar ser o melhor. E o resultado foi que, antes do dia terminar, vencera a maior
parte deles.

Elen presenteou-o com uma taça de prata.

— Essa taça pertence à nossa família há muitos anos. E esta rainha concede-a
ao vencedor com um beijo.

— Receba-a, Galahad — reforçou Bernard com um sorriso. — Você a mereceu.

Elen passou-lhe o braço pelo pescoço, os olhos azuis fixos nele. Os homens
bateram palmas e também os pés. O chão troou. Lancelot viu-se preso numa
armadilha, mas inclinou-se e beijou-a gentilmente. Havia esquecido como podiam ser
doces os lábios de uma mulher. Ela tombou sobre ele, pedindo mais. Tornou a beijá-
la e depois olhou-a. Estava de olhos fechados e, por um instante, pensou que ela
fosse desmaiar. Ao abri-los, perguntou, em tom de brincadeira:

Projeto Revisoras 115


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— E então? Foi como você esperava? — Depois, mais séria, finalizou: — Amo
você, Galahad. — E saiu correndo.

A partir daquele dia, passaram a ver-se somente durante as refeições, porque


Bernard achava que ela dera muita importância ao beijo. Talvez tivesse razão.

Aquela noite era Beltane. Lancelot subiu às muralhas, exatamente como fizera
certa vez com Guinevere. As baixas colinas que rodeavam Astolat surgiram à sua
frente, pontilhada de luzes.

Debruçou-se sobre o parapeito, à procura da fronteira com os saxões. Ali


também havia fachos de luz.

Ouviu alguém subir as escadas e voltou-se. Era Elen.

— Seu pai sabe que você está aqui? É Beltane. Uma noite proibida para as
jovens inocentes.

— Ouvi dizer que é uma noite selvagem.

— Em alguns lugares, praticam-se ritos religiosos.

— Religiosos? Pensei que fosse uma noite em que as mulheres costumam


entregar-se aos homens.

— Algumas mulheres fazem isso — ele disse com severidade. — Mas não
damas como você.

— E o que as damas fazem?

— As damas esperam que alguém se case com elas. E agora permita que eu a
leve de volta para casa.

Ela permaneceu alguns minutos em silêncio.

— Você se casaria comigo, Galahad? — perguntou então com voz doce e


sedutora.

— Quê!? — ele balbuciou, surpreso.

— Eu amo você. Sempre amei.

Galahad colocou um dedo sobre os lábios dela.

— Não diga mais nada. Você ainda não sabe o que é o amor.

— Eu sei o que sinto. Quando você me beijou, pensei que fosse desmaiar de
tanta felicidade.

Projeto Revisoras 116


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Ah, Elen... O que você sentiu foi desejo, não amor. São duas coisas
diferentes.

Elen abaixou a cabeça.

— Você não me ama.

— Eu a amaria, se pudesse. Você é linda, bondosa, gentil. Mas não posso. Amo
outra mulher.

— Por que não está com ela, se a ama tanto?

— Ela não é minha. Pertence a outro.

— Já que não pode tê-la, por que não fica comigo? — ela implorou, abraçando-
o com força.

Lancelot contemplou-a em silêncio, possuído de um sentimento estranho. Ela


parecia um animalzinho acuado. Sua respiração estava acelerada e seu peito ofegava.
Fixou os olhos nos seios arredondados, que se insinuavam através do decote e sentiu
seu próprio sangue correr depressa nas veias. Ah, não era fácil resistir... Tomou-lhe a
boca e beijou-a profundamente, com uma lentidão deliciosa. Voltou a si bruscamente
e deixou cair os braços, em desalento.

— Por favor, continue — ela implorou.

— Não Elen, não posso... Não quero tomar de você algo que um dia seu
marido irá exigir.

— Não quero um marido. Quero você!

— Chega! Vá para seu quarto e durma. Sozinha. Depois dessas palavras, ela
não disse mais nada.

Lancelot partiu de madrugada, antes da aurora. Deixou a taça de prata e o


troféu, além de um bilhete com pedidos de desculpa.

Depois que o leu, Elen amassou-o e jogou nas chamas da lareira. Depois
lembrou da conversa que haviam tido. Ele amava alguém que não podia ter. Seria a
rainha? Então os boatos eram verdadeiros!

A descoberta chocou-a e provocou-lhe um grande sofrimento. Ele voltara para


sua rainha, não voltaria jamais para Astolat.

Projeto Revisoras 117


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere já estava em atividade naquela bela manhã ensolarada. Após sua


crise no dia em que Medraut chegara, dormia menos agitada do que habitualmente e,
quando a criada lhe trouxe a bandeja da refeição matinal e descerrou as cortinas para
o novo dia, resolveu levantar-se.

Uma hora depois, desceu para o jardim, a fim de tomar um pouco de sol.
Medraut já estava à sua espera com o livro de latim. Ele estava com quase treze anos
e sua voz começava a adquirir um timbre profundo.

Fazia mais de um ano que chegara a Camelot e, para sua própria surpresa,
uma vez terminada a revolta que sentira ao vê-lo, descobrira que gostava dele.
Talvez porque se parecesse tanto com o pai. A não ser pela cor dos cabelos, dava
para ver como havia sido Arthur quando adolescente.

Arthur. Ele mudara muito naquele ano. Tornara-se mais duro, mais inflexível,
quase intratável. A princípio atribuíra isso a Medraut, de quem demonstrava
claramente não gostar. Tanto que atribuíra a Bedwyr a tarefa de educá-lo
militarmente. Mas bastara-lhe um momento de reflexão para convencê-la de que não
podia tratar-se disso. O motivo devia ser outro, muito mais sério.

Intrigada fora procurá-lo em seu quarto.

Ele estava na cama, quando ela bateu à sua porta e entrou.

— A que devo a honra dessa visita? — perguntou um tanto irônico.

Ela tirou o manto e ficou apenas de camisola.

— Posso deitar-me ao seu lado?

Ele não respondeu, mas ergueu as cobertas para que ela se acomodasse.

— Desculpe-me se não o procurei antes, estava ainda revoltada. Precisei de


tempo para acostumar-me com essa nova situação. Você me perdoa?

— Sou eu que preciso de perdão. Não você.

— Mas você não sabia... — ela começou.

— Foi um incesto, Guinevere. Não há perdão para isso.

— Você procurou seu confessor? Fez-lhe uma confissão geral?

— Sim, mas nada mudou. Eu me sinto ainda perdido. Ainda desesperado.

Acariciou-lhe o peito e ele a abraçou.

Projeto Revisoras 118


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— E Nimue? Não consultou sua deusa?

— Os antigos são mais tolerantes. Nimue disse que Medraut veio ao mundo
com um único propósito. Mais não disse qual.

— E você aceita isso?

— Não sei. Quando olho para ele vejo Morgana e me lembro o que ela fez.
Sinto a mesma desconfiança em relação ao filho dela.

— Dê tempo a Medraut. Se agirmos corretamente, talvez ele se torne seu filho


de verdade.

— Você fala como Nimue. Ela e Merlin acham que poderíamos transformar
Medraut. Você o aceitaria realmente como seu filho?

Ela foi evasiva.

— Eu ainda não lhe dei um filho. Gostaria de tentar — disse e colou-se a ele
sem reservas, deixando-o sentir a maciez de seus seios sob a camisola entreaberta.

Arthur percebeu-a despertar para a volúpia e soube que devia preveni-la.

— Precisamos conversar, Guinevere — disse afastando-a delicadamente.

Ela engoliu o nó que se formou em sua garganta.

— Para quê? Seu desejo por mim morreu? Você não me quer mais?

Uma sombra de tristeza velou os olhos de Arthur.

— Não se trata disso. É que, depois daquela terrível noite da revelação, eu não
consigo... Agora você sabe por que não a procurei mais.

Ela gelou. Temia que aquele odioso incidente houvesse deixado marcas
profundas no coração dele.

Medraut terminou de ler e olhou-a.

— Senhora?

— Muito bem, Medraut. Você está se esmerando no latim. Sua pronúncia está
cada vez melhor.

Ele era um jovem arisco. Ao chegar, tivera problemas com os outros jovens de
sua idade. Matreiro, estudara-lhes as fraquezas e vingara-se de todos, sem exceção.

Quando ela o repreendera, fazendo-lhe ver que a vingança era um sentimento


vil, ele se desculpara dizendo:

Projeto Revisoras 119


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Quando se é caçado como um animal, aprende-se a lutar como ele.

Por um momento, ela esqueceu os seus próprios pensamentos e voltou-se para


ele. Medraut deixara o livro de latim e fora colher uma rosa.

— A beleza desta rosa não pode competir com a sua — disse, oferecendo-a a
Guinevere.

Ela teve vontade de recusar, mas acabou aceitando-a.

— Onde aprendeu a falar assim, Medraut?

— Não sei... foi instintivo. Ofendi-a, senhora?

— Não, não! Adoro flores — ela comentou, quando foi interrompida pelo
guarda do portão.

— Cavaleiro à vista! Guinevere levantou-se.

— Vamos, Medraut. Vamos ver quem é. Talvez seja Arthur voltando de seus
afazeres.

Ao alcançarem o portão, um cavaleiro montado num corcel de pelagem cor de


canela emergia de uma nuvem de pó que ele próprio levantava. O cavaleiro parecia
completamente à vontade na sela. Guinevere protegeu os olhos do sol com a mão em
pala para ver melhor.

— Lancelot! — gritou, atravessando o portão e correndo estrada abaixo. —


Lancelot! — gritou de novo e o cavaleiro esporeou sua montaria, e depois a fez
estacar diante dela. Saltou e a tomou nos braços.

— Guinevere... Minha Guinevere...

— Por onde andou? Pensei que o tivéssemos perdido para sempre.

Ele não respondeu. Ficou mudo e num ímpeto, tomou-lhe a boca. Incapaz de
resistir, Guinevere correspondeu ao beijo com total abandono.

— Pensei que pudesse viver longe de você — ele conseguiu murmurar, entre
os beijos — Mas não consegui. Amo você. E espero que Arthur não se ofenda com a
minha volta.

Arthur. Subitamente, ambos perceberam que estavam quase em frente ao


portão. Alguém poderia vê-los. Separaram-se com relutância, mas com o braço de
Lancelot ainda rodeando os ombros dela.

— Como está Arthur?

Projeto Revisoras 120


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Deve voltar logo — ela disse, evasiva.

Lancelot lançou-lhe um olhar interrogativo, mas não houve tempo para outras
perguntas. Seus companheiros já estavam chegando ao pátio, todos querendo
cumprimentá-la ao mesmo tempo.

Quando Arthur chegou, Lancelot encontrava-se ainda no pátio, conversando


com os companheiros. Desmontou rapidamente e foi ao seu encontro sorrindo.
Guinevere via-os de longe, rindo e brincando como duas crianças e invejou-os,
passando a compreender pela primeira vez, o significado do verdadeiro
companheirismo, o encanto de uma confiança compartilhada.

No jantar, Lancelot estava para sentar-se ao lado de Guinevere, como de


costume, quando Medraut bateu em seu ombro.

— Senhor esse lugar é meu. Lancelot voltou-se e ficou surpreso.

— Quem é esse jovem?

— É Medraut, filho de Arthur — explicou Guinevere. Lancelot ficou mudo por


um instante. Depois tornou, hesitante:

— Mas... quem é a mãe dele?

— Morgana, senhor — respondeu Medraut com altivez. Arthur olhou para o


filho com desgosto.

— Sente-se, Medraut. E nem mais uma palavra!

Mais do que depressa, Elaine tomou-o pelo braço e o levou para a sua própria
mesa.

— Há um lugar ao meu lado. Não quer me fazer companhia?

— Digam-me, em nome do fogo de Be'ai, o que está acontecendo! — disse


Lancelot, olhando de Arthur para Guinevere.

Estavam apenas os três no salão dos mapas, na manhã seguinte. Arthur


prometera-lhe na noite anterior que contaria tudo pela manhã e foi o que ele fez, com
voz impessoal, como se estivesse falando de outra pessoa e não de si próprio.

Nesse instante, Cai apareceu no corredor.

— Medraut meteu-se numa briga.

Guinevere começou a levantar-se, mas Arthur impediu-a.

Projeto Revisoras 121


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Deixe isso comigo. Fique aqui e conte a Lancelot o restante da história.

Depois que ele saiu, Lancelot tomou a mão de Guinevere entre as suas e
olhou-a nos olhos.

— Como você está suportando esta situação? Ela apenas encolheu os ombros.

— Pense que agora estou aqui para ajudá-la. Ela sorriu e acariciou-lhe o rosto.

— Eu também fui tomada de surpresa. Mas, por enquanto não tenho filhos. Se
eu criar esse à semelhança de Arthur, terei atingido minha finalidade. Medraut se
tornará, merecidamente, o herdeiro do trono.

— O garoto gosta de você. O que aconteceu ontem à noite me convenceu


disso. Nunca tive que disputar um lugar à sua mesa!

— Medraut é uma criança. Sente falta da mãe.

— Arthur não permite que Morgana o visite?

— Não.

Houve um minuto de silêncio, antes que Lancelot dissesse:

— Eu, de minha parte, não o acho tão criança assim. Ele olha para você do
jeito que eu gostaria de olhar.

Bruscamente Guinevere mudou de assunto.

— Por que você foi embora?

— Tinha que ir — ele disse, com ar absorto. — Se não fosse, estaria traindo a
confiança que Arthur deposita em mim. E também porque achei que pudesse
esquecê-la.

— Onde estava? — ela perguntou, enquanto Arthur abria a porta.

— Tencionava ir para as terras de Aelle, mas a estocada que recebi na justa foi
profunda. — Desmaiei durante o caminho. Quando acordei estava em Astolat, um
pequeno forte a meio caminho entre as terras de Aelle e de Aesc.

— Astolat? — disse Arthur. — Tenho a impressão de que os dois filhos do


proprietário competiram num torneio que houve aqui dois anos atrás. Lancelot
assentiu.

— Eles queriam voltar e colocar-se a seu serviço. Mas eu os treinei e também


aos outros homens para que formassem uma unidade combativa. O pai, Bernard,

Projeto Revisoras 122


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

gostou da idéia. Agora, a família dispõe de uma fortificação capaz de protegê-los das
investidas dos saxões.

— Bernard deve estar grato a você.

— Fiz o que pude — ele concluiu brevemente.

— Por que você estava brigando? — Guinevere perguntou a Medraut mais


tarde, ao ver a marca vermelha que se alargava sobre sua face.

— Ryons insultou-a, senhora.

— O filho de Cai? O que foi que ele disse?

— Disse que agora que Lancelot voltou, Arthur terá que vigiá-la.

Guinevere tomou-o pelo braço.

— Sente-se e ouça. Lancelot é meu grande amigo e Arthur sabe disso. Os dois
são também os melhores amigos um do outro. Portanto, não há com que se
preocupar.

— Meti-me numa briga para defender sua honra, senhora!

— Obrigada, mas não era o caso. Como já lhe disse, Lancelot é leal ao rei. Ele
próprio poderia ser rei, se voltasse para Benoic, mas prefere ficar aqui e lutar pelos
ideais de Arthur. Você teria muito que aprender com ele.

Medraut sorriu.

— Eu gostaria muito, senhora.

Mas havia algo em seu sorriso e no seu tom de voz que a levaram a acreditar
que ele mentia.

No dia seguinte, enquanto Guinevere caminhava sozinha, em meio à


fragrância de seus jardins, Morgana chegou e levou Medraut para sua casa.

— Conte-me tudo — pediu ao filho, uma vez instalados no salão. — O que foi
que você aprendeu?

— Quero que você me fale sobre esse grande Lancelot — foi a resposta que ele
deu.

— Então ele voltou?

— Voltou. E não sai de perto da rainha! Morgana riu e tomou-lhe a mão.

Projeto Revisoras 123


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Meu filho, isso é coisa antiga, ele sempre se comportou assim. Ainda não
avançou o sinal por uma espécie de código de honra. E sofre com isso. Mas não trairá
Arthur nem permitirá que outro homem tome seu lugar junto à rainha.

— Eu o odeio!

— O ódio é uma paixão que nos leva a cometer erros. Não se deixe levar por
ela, meu filho. Ou ela o destruirá. Compreendeu?

Lentamente, ele fez que sim.

— Por que você o odeia tanto, afinal?

— Amo Guinevere. Quero ser seu paladino.

— O que você está sentindo por ela é o primeiro despertar de um homem.


Encontraremos para você uma mulher experiente, que o faça feliz, e você a
esquecerá.

Medraut refletiu um instante e concordou.

— É uma ótima idéia! Estarei pronto, quando a rainha perceber que não sou
mais criança, mas um homem.

Morgana levantou os olhos do bordado que tinha nas mãos e fitou-o frente a
frente. Havia desafio no olhar do filho.

— Nem pense nisso! Seu objetivo deve ser o trono e não irritar Arthur. —
Mostrou-lhe o que estava fazendo. — Teci esta lã e com ela farei um manto especial,
dotado de encantamentos e forças mágicas.

— É destinado a encantar Arthur e o levá-lo a fazer de você sua consorte?

Morgana sorriu.

— É mais ou menos isso.

Ela reteve Medraut em sua casa por mais algum tempo. Ensinou-lhe tudo o
que ele precisava saber.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Capítulo VIII

As tropas de Arthur chegaram em Dalraida na metade de junho e instalaram-


se num forte perto de Aclud. Estariam bem defendidos ali. Três de seus lados caíam
verticalmente sobre o mar e eram inabordáveis. Em suas imponentes torres
octogonais, de onde se podia observar os arredores, abrigaram-se centenas de aves
marinhas que, à aproximação de alguma embarcação estranha, emitiam gritos
agudos, alertando além dos moradores também os incautos.

Depois de instalados, esperaram todo o verão. Arthur começou a pensar se


Hueil não decidira iniciar sua hostil incursão pelo sul e, com o intuito de
eventualmente neutralizar suas forças deslocou para lá as sentinelas avançadas, que
encontraram tudo calmo. Então quando as manhãs começavam a tornar-se mais
geladas, Hueil ancorou seus navios no longínquo norte disposto a defender também
as terras de Fergus Mor. Dali, avançou finalmente para o sul. Mas não esperava que
as forças de Arthur houvessem se colocado entre ele e a Parede de Antonia, seu alvo
final.

As duas forças se enfrentaram, num choque de espadas, adagas e armaduras,


mas o embate durou pouco e a batalha final foi breve. Hueil morreu no confronto e
vendo-o a seus pés, Arthur lamentou-o.

— Ele podia ter vivido, se tivesse seguido os conselhos de seu pai, aceitando
as terras que ele lhe oferecia. Podia ter se tornado o líder de seu próprio povo.

— O que eu me pergunto é por que ele voltou tão tarde — observou Lancelot.

Arthur sacudiu a cabeça.

— Talvez, pensando que nos enganaria e que não ficaríamos para esperá-lo.

Bedwyr lançou um olhar ao campo de batalha, coberto de mortos e feridos, e


murmurou:

— A luta ainda não acabou.

— Você tem razão. Temos que ir atrás de Fergus e acabar com isso de uma vez
por todas. Mas não já. Começou a nevar cedo este ano. Encontraríamos neve em
Luguvalium. Além disso é tarde demais para planejar uma campanha e colocá-la em

Projeto Revisoras 125


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

prática imediatamente. — Arthur sorriu de repente. — Tive uma idéia. Como o forte
está em perfeitas condições de uso, gostaria de ter Guinevere a meu lado. Bedwyr
prepare uma escolta e vá buscá-la. Ah, diga-lhe que traga Medraut. Talvez, assim, ele
comece a interessar-se pelos assuntos de guerra.

Guinevere chegou com as primeiras nevascas. Ao entrar no hall, ela riu feliz,
enquanto sacudia a neve que se acumulara sobre o seu manto de viagem.

— Tinha esquecido como faz frio no Norte.

Arthur passou-lhe o braço em volta dos ombros e puxou-a para si.

— Sente-se mais confortável agora?

Elaine aproximou-se de Lancelot e pôs suas mãos sobre as dele.

— Sinta como estão geladas. Não consigo mover os dedos. Ele as reteve por
um instante e depois aconselhou-a:

— Vá aquecê-las junto ao fogo da lareira. — Depois, virando-se para Medraut,


perguntou-lhe gentilmente: — Fez boa viagem?

— Consegui ficar na sela, se é isso que está querendo saber — respondeu o


garoto em tom sarcástico.

— Controle sua língua, Medraut, ou terá que se haver comigo! Lancelot e


Bedwyr são os meus melhores amigos. Exijo que os respeite! — ordenou-lhe Arthur
com ar severo.

— Sim, senhor. Sinto muito — respondeu Medraut automaticamente.

Mais tarde, enquanto se preparavam para a noite, Arthur queixou-se:

— Não gosto de ironias. Medraut é assim também com você?

— Não, não. Comigo ele é invariavelmente gentil. E também não o ouvi usar
esse tom sarcástico com Bedwyr. Parece que ele reserva suas ironias unicamente para
Lancelot.

— Medraut tem adoração por você e sente ciúme de Lancelot.

— Ele é uma criança grande, que vê em mim apenas a mãe.

— Como ele se saiu nos esportes? Cai está satisfeito com sua atuação?

Havia chegado o momento que ela temia. Como explicar tudo a Arthur?

— E então? — ele insistiu, impaciente. — Ele foi rude também com Cai?

Projeto Revisoras 126


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere respirou fundo e disse:

— Medraut passou o verão com Morgana.

— O quê? — Arthur ergueu-se impetuosamente — Como foi que isso


aconteceu?

— Foi no dia seguinte ao de sua partida, enquanto eu estava na estrebaria


ajudando Palomides com os cavalos. Morgana apareceu e levou Medraut consigo.

— Cai estava lá! Por que ele não impediu a entrada de Morgana?

— Elaine lhe disse que ela viera visitá-la.

— Não é possível!...

— Soube depois, que Elaine costuma visitá-la. Parece que ela apóia Morgana
em seu direto de ver o filho.

— Sou eu que estabeleço as regras em minha casa! Amanhã mesmo falarei


com Elaine sobre isso.

— De que adiantaria? Elaine mudou, está se distanciando de mim porque eu


não aprovo essa amizade que ela nutre por Morgana. Mas não posso negar que toda
mãe tem o direito de ver seu filho.

— Você confia em Morgana?

— Sabe que eu não confio! E foi por isso que trouxe Elaine comigo. Acho que
seria mais prudente distanciá-la dessa nova amiga.

— Uma sábia decisão — ele concordou. — Ainda assim, quero falar com ela.

— Como quiser, Arthur. — Guinevere sorriu intencionalmente — Está


interessado em levar sua mulher para a cama?

Ele puxou-a para si, retirou-lhe o manto e beijou-a na boca. Passaram algum
tempo em beijos profundos que a fizeram despertar para a volúpia e então, com o
cuidado de um homem experiente, curvou-se para beijar-lhe o sexo. E foi assim,
somente com carícias, que ele a fez mergulhar num mundo de puro prazer.

Guinevere reteve-o junto a si até vê-lo adormecido. Então, deixou que as


lágrimas corressem livres. Chorava por ele, por ela, e por tudo o que se frustrara.

Na primavera, as tropas de Arthur retornaram a perseguição a Fergus. Os


aliados de Arthur, Angus e Cabran, atacaram pelos lados nordeste e leste. Arthur
pelo sul. Mas Fergus resistia. Colocaram-no sob assédio, porém seus navios

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

conseguiam romper o cerco e voltavam do Eire com suprimentos preciosos. E foi


assim durante todo o verão: pequenas vitórias seguidas de retiradas humilhantes.

Quando o outono terminou sem novidades, os Senhores da Guerra tornaram a


reunir-se.

— Precisamos encontrar um modo de penetrar em seu recesso — afirmou


Arthur. — Os homens de Fergus estão bem armados e bem alimentados, ao passo
que os nossos... — ele disse, olhando para trás com preocupação.

Seus homens cavalgavam em total silêncio. Eram soldados corajosos, mas


agora, prostrados pela fome, pensavam apenas em encontrar alimento para seus
estômagos vazios.

Seus aliados ficaram um instante em silêncio. Depois, um deles sugeriu:

— Por mar, seria mais fácil cercá-los.

— Não temos incursores marítimos — lembrou-o Arthur.

— Não podemos encontrá-los — respondeu Cabran.

— Que tipo de gente? Mercenários? Saxões? Vortigen já tentou essa via,


lembram-se? Sem sucesso.

— Estava pensando nos visigodos. Arthur considerou a proposta.

— Como podemos entrar em contato com eles?

Angus respondeu:

— Theodorico, seu capitão de mar, está na Bretanha.

— Vamos mandar uma mensagem para que ele entre em contato conosco.

Quando o capitão chegou, Arthur sabatinou-o durante semanas, perguntando-


lhe sobre as estratégias que ele adotaria nesse caso, o número de homens de que
dispunha, a recompensa que pedia pelo seu trabalho...

Um porto, ele disse, porque sua gente era de navegantes. Se o obtivessem


poderiam proteger a costa oeste.

Chegaram a um acordo. Arthur sugeriu Bors para ajudá-lo e, aos Senhores da


Guerra, reforços para Camelot.

Sua idéia era formar uma nova unidade de soldados jovens e colocá-los sob o
comando de Lancelot. Duro e exigente consigo mesmo, Lancelot empenhou-se a

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

fundo em transformar aquele bando de garotos imberbes em guerreiros. Ensinou-


lhes de tudo: a tratar de seus cavalos, a limpar as cocheiras, a cuidar de seus
uniformes e de seus alojamentos e, principalmente, a submeter-se à disciplina militar.

À tarde, os jovens soldados adestravam-se com as armas.

Guinevere apareceu um dia para vê-los, enquanto os rapazes praticavam


esgrima aos pares. Medraut, que fora bem treinado, usava a espada com a facilidade
de um adulto. Aproveitando a presença da rainha, quis exibir-se, acrescentando
alguns passos e arremetidas que deixaram seus adversários confusos.

Depois de eliminá-los uma um, viu-se diante de Agravaine, o único a


permanecer na arena.

— Pronto para o desafio? — perguntou-lhe Lancelot.

— Sim, senhor.

As espadas foram desembainhadas. Os duelantes assumiram suas posições e


prepararam-se para o encontro com as armas erguidas.

— Em guarda!

Estimulados, os dois rapazes lançaram-se um contra o outro. Agravaine


simulou um ataque pela direita, Medraut não percebeu que era uma finta e, certo de
que Agravaine se moveria pela esquerda, cortou-a. Em vez disso, Agravaine
prosseguiu e atingiu Medraut com um golpe no antebraço, fazendo sua espada voar.

— Muito bem, Agravaine — elogiou-o Lancelot. — Pegue sua espada,


Medraut. Vamos tentar novamente. E concentre-se em mim, não na rainha. Vamos
tentar essa dupla finta que você esqueceu.

Lancelot ergueu a espada e de novo houve o retinido do aço rompendo o


silêncio tumular da arena. Incitados por recíproca animosidade, os dois duelantes
arremessaram-se para a frente. Lancelot não fez a dupla finta. Apenas deu um passo
para a esquerda. Medraut cortou-a, deixando seu lado direito exposto ao leve golpe
de Lancelot.

Medraut enfureceu-se.

— Você mentiu! Não fez a dupla finta!

Lancelot deu de ombros.

— Procure antecipar-se ao adversário. Essa é a regra, Medraut.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Sorrateiramente, Medraut fez deslizar para o chão a ponteira de proteção da


espada e, impelido por uma fúria que não lhe dava tréguas, desfechou-lhe um golpe
traiçoeiro. Lancelot, porém, teve a necessária presença de espírito para furtar
agilmente o corpo. A espada adversária, que poderia ser mortal, atingiu-lhe apenas a
costela esquerda, que começou a sangrar.

Os outros rapazes lançaram em coro um grito de protesto:

— Golpe de covarde!

Somente Agravaine manteve-se impassível.

Guinevere correu imediatamente para Lancelot. Rápida tirou sua própria


sobreveste e fez dela uma faixa para estancar o sangue. A seguir, passou-lhe o braço
direito por seus ombros e conduziu-o lentamente para a enfermaria. Pediu então
ajuda aos criados para que trouxessem ungüento de salva e aplicou-o sobre o talho
que acabara de limpar. Estava terminando de enfaixá-lo, quando Arthur chegou.

— Lancelot estava dando a Medraut sua aula diária de esgrima com espada,
quando o protetor da arma de Medraut caiu. Mas isso não o fez deter-se, ao
contrário. Arremessou-se com redobrada fúria sobre seu adversário.

— Deliberadamente? Com a ponta da espada a descoberto?

— Sim e eu não sei por quê. Lancelot já havia deposto sua espada...

Arthur olhou-o interrogativamente.

— Eu o irritei, Arthur. Chamei sua atenção diante de Guinevere e ele se


descontrolou.

— Parece-me que Medraut tinha a intenção de matá-lo, meu amigo.

Guinevere protestou.

— Isso não, Arthur! Ele pode não gostar de Lancelot, mas chegar a ponto de
matá-lo...

Arthur pôs-se a andar de um lado para o outro.

— Não posso mandá-lo de volta para Morgana. Mas posso retirar seus
privilégios. Antes de mais nada, ele está proibido de passear com você.

— Mas...

— Não, Guinevere. Ele está encantado demais por você. Uma semana de
segregação também não lhe fará nenhum mal. Pelo contrário, ele terá tempo de

Projeto Revisoras 130


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

avaliar seu comportamento e de preparar-se para uma sessão de chibatadas. —


Arthur voltou-se para Lancelot. — Está disposto a empunhar a chibata?

— Não, Arthur. Não quero torná-lo ridículo perante seus companheiros. E


também acho que, nesse caso, não há necessidade de castigo físico.

— Não quero que meu filho tenha privilégios que os outros não têm. Vou
castigá-lo com as minhas próprias mãos!

No início da primavera, Theodorico voltou e as campanhas recomeçaram.


Eram as primeiras das quais os jovens de Lancelot iriam participar e, em
consideração à sua juventude, Arthur colocou-os na segunda Unha.

— Agravaine está se revelando um ótimo soldado. Forte e destemido —


comentou Arthur.

— Mas gosta de matar — revelou Lancelot.

— Ele é muito diferente dos irmãos. Gaheris segue as ordens à risca.


Gwalchmai gosta de combater, mas prefere apreciar um bom vinho.

— Agravaine passa muito tempo em companhia de Medraut e isso me


preocupa — comentou Lancelot.

— Ele é, praticamente, o único amigo de Medraut. Seus antigos companheiros


o evitam.

— Agravaine não gosta de você, Arthur. Não confio nele. Arthur suspirou.

— E eu não confio em Medraut. Mas que posso fazer? Na falta de outro, será
ele o meu herdeiro.

— Guinevere é jovem — forçou-se a dizer Lancelot. — Vocês têm tempo.

— Espero que assim seja. Um incesto traz em si a sua própria punição. Sinto-
me igualmente estranho tanto diante de Morgana quanto diante de Guinevere.

— Morgana está confinada em suas terras. Que mal poderá fazer?

Arthur riu, um riso amargo.

— Então você não sabe. Guinevere não lhe contou?

Lancelot achou que estivesse delirando. Bebera demais.

— O que eu deveria saber?

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não posso dar a minha mulher o que ela deseja. Mas também não quero
que ela se afaste de mim. Não sei se por egoísmo ou por obra de Morgana.

Mesmo através dos espessos vapores da bebida, Lancelot compreendeu tudo


de maneira bastante clara.

— Você não consegue... você não pode...

— Pensei que você soubesse. — Arthur levantou-se e dirigiu-se para a porta.


— Acho que bebi demais. Assunto encerrado.

Lancelot deixou-se ficar ali, os olhos perdidos no espaço.

Cai preparou um festim para a chegada dos soberanos. Haviam ficado


demasiado tempo ausente, três anos, e sua volta para Camelot teria que ser triunfal.
Até Palomides, que enviara a maior parte dos cavalos para a guerra, tinha agora crias
e potros de um até dois anos para oferecer à rainha. Gostava dela. Guinevere
representava a alegria que faltava, ao antigo forte.

Ao chegar, a rainha encontrou um recado de Morgana, pedindo permissão


para que Medraut fosse vê-la. Fazia tempo que não via o filho e morria de saudade.

Arthur torceu o nariz.

— Quero vê-la bem longe de Elaine e de Medraut — ele afirmou, categórico


enquanto um jovem criado colocava a bandeja do almoço entre os dois.

Guinevere olhou-o. O jovem era belo até demais. Seus cabelos claros eram
cacheados e os brilhantes olhos azuis destacavam-se na pele de alabastro.

— Qual é o seu nome? O jovem corou.

— Sir Cai me chama de Beaumains — ele respondeu, corando ainda mais. —


Talvez porque eu seja bonito.

— Há quanto tempo está aqui?

— Há quase um ano, milady. — Ele voltou-se para Arthur. — Devo


experimentar a comida?

— Não, não é necessário. Confiamos em Cai. Beaumains fez uma mesura e


retirou-se.

— Não acho que Medraut deva ir ver Morgana — tornou Arthur, retomando o
assunto.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Mas Morgana é a mãe dele. E não o vê há quase três anos! Que mal há
numa visita breve? — retrucou Guinevere.

Arthur lançou-lhe um ar crítico.

— Alguns minutos com Morgana podem provocar um terremoto. Imagine


algumas horas!

— Que exagero!

Ele suspirou, vencido.

— Está bem, Guinevere. Não quero que se zangue. Se acha que Medraut deve
ir, então que vá!

Na manhã seguinte, Medraut levou Elaine consigo. Ninguém ficou sabendo.


Até Guinevere notar a falta da prima. Arthur ergueu os braços, em desalento,
quando soube. E foi para as estrebarias, distrair-se.

A única pessoa a alegrar-se, aos ver os dois juntos, foi Morgana. Aos dezesseis
anos, Medraut tornara-se um jovem alto, musculoso, capaz de encantar as mulheres.
Olhou-o com agrado.

— Parece que o trataram bem, meu filho.

Mas quando ele lhe contou sobre as chibatadas que levara, ela revoltou-se e
pediu-lhe que tirasse a camisa.

— Quero ver se deixou marcas.

Havia-as em abundância, ainda bem visíveis sobre o dorso nu. E Morgana


ficou desolada.

— Não havia ninguém para cuidar de você? Onde estava Guinevere?

— Meu pai negou-me o privilégio de ver a rainha — disse Medraut com


amargura. — Mas permite que Lancelot não só cavalgue a sós com ela, mas que
tenha acesso a seus aposentos.

Morgana ergueu as sobrancelhas.

— Não está exagerando, Medraut? Não acredito que Lancelot tenha passado
por cima de seu código de honra!

— Foi o que me disseram — defendeu-se Medraut. Depois, apanhando a


camisa, dirigiu-se para a porta. — Prefiro não falar sobre Lancelot.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Morgana esperou até que ele se afastasse para interrogar Elaine.

— Então, é pelo mesmo motivo que você veio me procurar?

Elaine corou.

— Estou começando a ficar cansada de vê-lo correr atrás da rainha. Ele bem
que podia demonstrar algum interesse por mim!

— E você? Já demonstrou seu interesse por ele?

— Já fiz de tudo! — disse Elaine, exasperada. — E isso não resultou em nada.


Ele só tem olhos para a rainha! — Elaine fitou-a com ar suplicante. — Você pode me
ajudar? Vim aqui contando com isso.

— O que, exatamente, quer de mim? Elaine corou ainda mais profundamente.

— Quero que ele me leve para a cama.

— Posso preparar uma poção que o faça desejar... desejar, não, necessitar de
uma mulher. Dê um jeito para que ele a tome em sua presença. O efeito será mais
rápido.

Elaine sorriu amplamente.

— Isso eu posso conseguir!

— E depois, Elaine?

— Ele terá que se casar comigo!

Morgana sorriu com leve ironia.

— Você é ingênua a esse ponto?

— Mas Lancelot terá que se casar comigo. Sua honra estará em jogo!

Morgana considerou a questão.

— A poção apenas acenderá o desejo dele por você. Não o fará amá-la.

— Posso fazer com que ele se apaixone por mim. Sei que posso!

Morgana encolheu os ombros, ceticamente.

— Isso é com você. E agora me dê algum tempo. Vou preparar a poção.

Medraut chegou e pôs-se a conversar com Elaine, quando Morgana voltou


com o frasco.

— Pingue algumas gotas numa taça de vinho e espere. Medraut interessou-se.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— O que é isso, Elaine? Uma pequena mágica? Para Lancelot, talvez?

Morgana interrompeu-o bruscamente.

— Você é ainda virgem, Elaine?

— Claro que sou! Tive o cuidado de me manter sempre pura.

— Mas Lancelot não gosta de virgens! O que vamos fazer?

— Posso ajudá-la, Elaine — ofereceu-se imediatamente Medraut. — Você já foi


beijada?

— Uma vez.

— Assim? — Medraut tomou-lhe a boca, forçando seus lábios a se abrirem


para que ela sentisse o gosto da sua.

Elaine o repeliu.

— Não. Não sei se gosto...

— Você tem de gostar! — interrompeu-a Morgana, obrigando-a a


corresponder ao beijo. — Medraut, leve-a para a sala. Você sabe o que fazer.

Ele a tomou pelos braços e a conduziu para um dos quartos de hóspedes,


perto do hall principal. Quando o ouviu fechar a porta, Morgana acomodou-se na
poltrona e retomou o bordado. Pouco depois, ouviu o grito de Elaine e sorriu.

Um mês depois, os preparativos para o dia da competição estavam quase


concluídos. À noite, Guinevere pediu permissão a Arthur para que Medraut se
sentasse à mesa alta. Seria um prêmio à contribuição que ele dera para a realização
das festas. Como Lancelot partira em missão para Kernow, a permissão foi
concedida.

Estavam todos esperando que o jantar fosse servido. Beaumains trouxe a


bandeja e colocou-a diante de seus senhores, como de hábito. Ao erguer os olhos,
encontrou os de Medraut, que se mostrou surpreendido.

— Gareth! O que você faz aqui?... E por que está servindo à mesa?

Arthur virou-se para o filho.

— Qual é o motivo de sua surpresa?

— Gareth é irmão de Agravaine — ele esclareceu. A surpresa de Guinevere


não foi menor.

Projeto Revisoras 135


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— É verdade, Beaumains?

— Sim, milady. Sou irmão dele. E também de Gaheris e Gwalchmai.

Arthur levantou-se e abraçou-o.

— Por que não nos disse nada? Cai, venha cá! — chamou. — Por que você pôs
na cozinha, como criado um irmão de Gwalchmai? — inquiriu em voz baixa.

Cai não cabia em si de espanto.

— Eu não sabia! Ele apareceu aqui há um ano e me disse que queria seguir o
seu próprio Caminho. Achei-o delicado demais para ser soldado e enviei-o à cozinha.

Guinevere interferiu.

— Medraut, vá buscar o irmão dele.

Quando Gwalchmai chegou, foi um feliz momento para os dois, que não se
viam havia muito. Terminadas as efusões, Arthur pronunciou-se:

—Meu caro Beaumains, acho que você me deve explicações.

Ele enrubesceu fortemente e dobrou-se sobre o joelho.

— Não contava decepcioná-lo, sir. Gostaria muito de ter me reunido a meus


irmãos para servi-lo. Mas, quando eles partiram, eu era ainda muito jovem e minha
mãe negou-me a permissão. Quando, afinal obtive, vim para cá, à procura deles. Mas
não os encontrei e, assim, aceitei o trabalho que me propuseram.

— Voltamos há um mês — fez-lhe ver Guinevere com gentileza. — Por que


não se apresentou?

Cai clareou a garganta.

— Dei-lhe ordens taxativas para que não saísse da cozinha. Arthur voltou-se
para Beaumains.

— Então, você quer ser soldado.

— Um címbrio, como meus irmãos.

— Você terá que conquistar esse posto, Gareth. Tenho uma unidade e jovens
que estão sendo treinados por Lancelot. Você não poderia ter um mestre melhor. Vá
procurá-lo, quando ele voltar.

Lancelot voltou dois dias depois, em companhia de Tristão, que vinha


escoltando Marc e Isolda, sua rainha.

Projeto Revisoras 136


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere sentiu uma ponta de ciúme, ao pensar que ele viajara ao lado
daquela beldade de cabelos negros e olhos incrivelmente azuis, que esvoaçava como
uma borboleta por entre os homens. Viu o olhar de adoração estampado no rosto de
Tristão e reconheceu o sofrimento do amor, enquanto ele a ajudava a subir as
escadas.

Custennin o filho de Marc também viera. E embora muito jovem, seus homens
acatavam de bom grado as suas ordens. Não ficou surpresa, quando Arthur levou-o
consigo para conversarem. Seu marido gostava de jovens arrojados. Se tivesse uma
impressão positiva, iria aproveitá-lo para dar-lhe o comando de divisão de seu
exército.

Voltou os olhos para Lancelot, mas não teve a oportunidade de interrogá-lo


sobre a viagem. Elaine puxara-o pelo braço e o fizera sentar-se a seu lado.

Nimue chegou na manhã seguinte e instalou-se na antiga capela-santuário que


fora transformada provisoriamente em quarto de hóspedes. Guinevere que já se
habituava às suas visitas tornara-se aos poucos sua amiga. Havia uma calma nela...
uma delicadeza que a encantavam.

— Fez boa viagem? — perguntou-lhe, quando a viu.

— Muito boa, obrigada. E Arthur, como está?

A pergunta foi tão imprevista,-que Guinevere ficou surpresa. Mas respondeu,


ao acaso:

— Ele ainda não se acostumou com a presença de Medraut.

— Mas já faz mais de quatro anos que ele comprometeu-se a criá-lo! — objetou
Nimue, olhando-a com atenção. — Argante disse que você se sente infeliz. E, apesar
da pouca idade, ela raramente se engana.

Guinevere levantou-se impetuosamente.

— Infeliz, insatisfeita, frustrada! Que é que faço, então? Diga-me! Pelo amor
de Deus, diga-me!

— Eu poderia recomendar que rezasse, isso tranqüilizaria sua consciência.


Mas não seria uma resposta completa. É seu "moirai"... seu destino amar também
Lancelot.

Guinevere ficou perplexa, mas acabou confessando:

Projeto Revisoras 137


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— E verdade, amo os dois. Amo Arthur por sua força, por seu compromisso
com a paz e a justiça. Ele tem todas as qualidades de um homem de valor. Mas sinto
que há nele uma porta fechada para mim. É talvez por isso que discutimos tanto. Já
com Lancelot não há essa restrição. Quando estou ao lado dele, tudo me parece fácil e
correto. Amo e quero os dois, Nimue. Mas não posso ter nenhum.

— Mas vai chegar o dia em que você terá que escolher. Ou um, ou outro. A
vida de Arthur vai depender disso.

O dia dos jogos amanheceu chuvoso e, conseqüentemente, as partidas de


esgrima tiveram que ser transferidas para o interior do forte. Enquanto isso, a chuva
cessou e o sol pôs-se a brilhar num céu tão azul que parecia envernizado.

Após o meio-dia, os convidados acomodaram-se no salão nobre para festejar


os vencedores, entre os quais Lancelot, que ganhara a taça de prata. Houve a
tradicional distribuição de presentes aos convidados e todos trataram de abrir os
seus.

— Onde está Medraut? — perguntou Lancelot. — Ele não devia estar aqui?

— Está na enfermaria tratando de uma contusão. Teve problemas com Cai —


explicou Arthur, o rosto sério.

Enquanto isso, as criadas começaram a trazer os presentes que os convidados


ofereciam aos seus reis, e os abriam, dizendo em voz alta o nome dos ofertantes.

Lancelot mal escondeu um bocejo. Era uma cerimônia tediosa, mas necessária.
O Grande Rei tinha que agradecer a homenagem que lhe era prestada. Voltou-se
para segui-la. A criada acabava de pôr sobre a mesa um manto ainda em seu
invólucro, uma fina pele de couro curtido ostentando o sinete de seu doador, que lhe
pareceu conhecido.

Enquanto a criada desdobrava o manto, segurando-o a seguir pela gola, pôde


observar o bordado, uma curiosa combinação de trançados e espirais, feito por mãos
caprichosas e com cores bem escolhidas de fios de seda.

Guinevere ficou encantada à vista de uma peça tão bonita e quis experimentá-
la. Lancelot virou-se ansiosamente para Nimue.

— Impeça-a! Há alguma coisa maligna nesse manto! Não sei o que é... mas...

Nimue não hesitou. Virou-se calmamente para Guinevere e aconselhou:

Projeto Revisoras 138


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não o experimente diante de todos. Seria menosprezar os outros presentes


que recebeu.

Guinevere olhou-a e depois para Lancelot, que lhe fez um aceno negativo com
a cabeça.

— É encantador — ela disse em voz alta, mas o experimentarei depois.

— Se milady quiser, eu o experimentarei para a senhora — ofereceu-se a


criada.

Guinevere sorriu. A camareira tomou o sorriso por permissão e vestiu-o.


Começou a gritar, gritos altos e apavorantes, no mesmo instante, em que o pó branco
que se desprendia do forro tocava-lhe a pele, formando pústulas e manchas. Depois
caiu no chão, retorcendo-se em convulsões. Arthur ordenou aos seus homens que
fechassem todas as portas, enquanto seus címbrios, com as espadas desembainhadas,
formavam um círculo em torno dele e de Guinevere.

Ajoelhada no chão, Nimue lutava para segurar a cabeça da jovem mulher,


impedindo que ela a batesse no chão. Depois, pôs-se a entoar cânticos até vê-la
deslizar para a inconsciência.

Feito isso, pediu luvas aos criados e retirou-lhe o manto, conservando o forro
que envolveu no couro em que viera embrulhado.

— Cal viva — disse Arthur. — Queima a pele. Teremos que banhá-la antes de
levá-la à enfermaria.

Guinevere sentiu subitamente que suas pernas se dobravam. As emoções


haviam-na esgotado. Deixou que Arthur e Lancelot a levassem até a sala dos mapas
e, tremendo, sentou-se junto à lareira.

O rosto de Arthur estava alterado pela preocupação.

— Quem poderia... — deteve-se um instante, ao ocorrer-lhe de súbito um


pensamento terrível. — Morgana... foi ela!

— Ela não está aqui. Nem Accolon — objetou Guinevere com voz fraca.

— Tenho certeza de já ter visto o sinete impresso no couro — murmurou


Lancelot. — Se eu pudesse me lembrar onde...

— Você salvou a minha vida — ela suspirou.

— De novo — tornou Arthur. — Eu lhe devo muito, meu amigo.

Projeto Revisoras 139


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Você não me deve nada. Foi uma reação instintiva, diante de um perigo
iminente. Apenas isso.

— Aproximem-se vocês dois. E me abracem — pediu Guinevere.

Enquanto os dois rodeavam-na com os braços, ela murmurou:

— Que Deus me perdoe. Mas amo vocês dois.

Lancelot olhou para Arthur, esperando vê-lo enfurecido diante da confissão


da mulher. Mas ele parecia perdido em pensamentos.

O banquete que se seguiu foi restrito a poucos e transcorreu em silêncio.


Todos os rostos se achavam sérios e compenetrados, como convinham às pessoas que
haviam presenciado um ato infame.

— É um problema — observou Arthur com ar preocupado. — Somos


moralmente responsáveis por essa moça.

— Ela vai ficar boa? — perguntou Elaine.

— Haverá cicatrizes — explicou Nimue. — Amanhã, logo cedo, irei à procura


de um pouco de gordura de carneiro e, com ela, prepararei ungüento à base de salva.
Isso irá recompor a pele da pobre criatura.

— Irá dormir ao seu lado, esta noite?

—Naturalmente. Se ela sentir dores, estarei lá para aliviá-las.

Elaine contraiu os lábios finos, considerando a informação. E depois sorriu,


um sorriso secreto que gelou Guinevere. Por que a prima parecia tão interessada
nesse assunto? E por que se alegrara, ao ouvir a resposta de Nimue?

Deixou a consideração de lado e levantou-se. Estava cansada demais para


desvendar enigmas.

— Foi um dia conturbado. Tive emoções demais. Vou me retirar mais cedo —
anunciou, desconsolada.

Arthur e Lancelot levantaram-se ao mesmo tempo para puxar-lhe a cadeira.

— Eu a acompanharei — disse Arthur.

— Não, meu querido. Temos convidados, fique para entretê-los. E não se


preocupe comigo. Amanhã estarei bem.

Projeto Revisoras 140


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Enquanto se voltava, viu de novo um sorriso subir aos lábios de Elaine, o


mesmo sorriso intencional que exibira antes e a fazia parecer um gato caseiro pronto
para saborear uma tigela de carne.

Algumas horas depois, o forte envolto num silêncio domingueiro, Lancelot


ouviu um leve ruído na porta. Foi abri-la já com a espada desembainhada. Mas quem
estava diante dele era Brisen, a velha ama das duas primas.

— O que veio fazer aqui?

— Milady quer vê-lo. Não consegue dormir, depois de um dia tão atribulado
quanto o de hoje.

Ao vê-lo indeciso, Brisen entregou-lhe uma echarpe de seda cheirando a


lavanda.

— Milady o espera na antiga capela.

— Mas é o alojamento de Nimue!

— Nimue vai passar a noite na enfermaria — lembrou-o Brisen e desapareceu


nas sombras.

Lancelot ficou parado à porta do quarto. O que fazer? Ter nos braços a mulher
que amava e desonrar o amigo?

Fechou a porta e tomou o caminho da capela, agora banhado pela luz do luar.
Percorreu-o rapidamente e bateu na porta apenas com dois dedos.

— Entre — convidou uma voz baixa e delicada.

Abriu-a e entrou. Uma única vela ardia num canto. Quando seus olhos se
ajustaram à sua fraca claridade, entreviu uma massa de cabelos acobreados
espalhados sobre o travesseiro.

— Guinevere, meu amor... — disse com voz rouca pelo desejo.

— Há vinho para você sobre a cômoda. Tome-o — ela pediu em voz baixa.

— Não preciso de vinho para me estimular.

— Por favor — ela implorou. — É para brindar a nosso primeiro encontro.

Lancelot achou que fosse uma espécie de jogo e resolveu atender ao pedido.
Ergueu a taça e engoliu de um gole toda a bebida. Era acre, amarga e não continha
calor algum.

Projeto Revisoras 141


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Agora venha para mim, meu amor.

Despiu-se com urgência, na ânsia de saciar a paixão que aqueles anos de


espera fizera crescer, e foi deitar-se a seu lado. Ela pôs-se a acariciá-lo com a timidez
do primeiro encontro, mas com a desenvoltura de uma mulher que encontrara, por
fim, o homem amado.

Ao sentir-lhe os seios nus, tomou-os nas mãos em concha e pôs-se a beijá-los


com avidez. Com a mesma avidez explorou seu corpo macio e quente, tocando-lhe os
pontos mais secretos, mais vulneráveis às suas ousadas carícias.

— Desculpe a urgência, Guinevere. Gostaria que em nossa primeira vez


juntos, tudo fosse lento, desvendado passo a passo. Mas depois de tantos anos de
espera não consigo me conter, Ela respondeu apenas: — Não pare! Quero você!

Sabendo que já fora longe demais para que agora recuasse. Penetrou-a com
todo o seu peso e sentiu-a quase tímida às suas arremetidas. Estranhou, porque
julgara que Guinevere se mostraria mais ativa, uma verdadeira parceira no ato do
amor. Iria ensiná-la aos poucos, até transformá-la na mulher ardente e fogosa que
queria estreitar nos braços.

Beijou-a profundamente, ao alcançar o auge. Ela caiu sobre ele, exausta e


depois rolou para o lado.

De súbito a porta abriu-se e um foco de luz iluminou o quarto. Não conseguiu


ver quem estava ali. Alarmado, procurou a espada e então lembrou-se que a deixara
em seu alojamento. Guinevere entrou em pânico e pôs-se a gritar. Ouviu o ruído de
passos, secos ruídos metálicos e de novo os gritos de Guinevere e ele sentou-se na
cama.

Quando o foco de luz, uma lanterna, foi abaixado, com um fraco suspiro pôde
ver quem o segurava: Nimue, que obviamente, acabara de chegar da enfermaria.
Arthur e Guinevere chegaram enquanto ele se vestia. E outros também, uma ver-
dadeira multidão de formas vagas, de ferros e lanças, de lâminas retas de espadas.
Olhos chocados focalizaram-no. Os de Guinevere particularmente.

Lancelot caiu em si. Guinevere? Mas... Virou-se lentamente e viu quem


estreitara nos braços.

— Guinevere, eu pensei... — Deu um passo para trás na direção de Arthur. Ia


desculpar-se, mas desistiu. Não tinha desculpa para apresentar.

Projeto Revisoras 142


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Mais uma vez, foi Nimue quem tomou conta da situação. Empurrou Arthur e
Guinevere para dentro do quarto e fechou II porta, deixando os demais do lado de
fora.

— O segredo foi revelado — ela disse serenamente.

Guinevere pensou como ela podia manter-se tão calma diante de um quadro
tão patético. Depois, olhou para Elaine, que sorria triunfante. Ia precipitar-se contra
ela, mas o braço forte de Arthur a impediu.

Nimue abriu a porta e pôs-se a falar com os que estavam fora. Uma pergunta
incisiva cortou bruscamente sua declaração lealmente Nimue respondeu: Sim, é
verdade. Guinevere sentiu seu mundo desabar. Não havia mais esperança.

— Arthur iria anunciar o casamento esta tarde — ouviu Nimue dizer —, mas
houve essa antecipação e Lancelot resolveu anunciar ele próprio que vai tomar Elaine
por esposa. — Houve algumas risadinhas e outras perguntas, e Nimue continuou,
calma: — Assustei Elaine, quando eu vim em busca de minha bolsa de ungüentos.
Ela gritou. Foi apenas isso que aconteceu. Podem ir, eles irão precisar de um pouco
de privacidade.

Arthur apareceu à porta ao lado de Guinevere e reforçou o depoimento.

— Lancelot já nos pusera a par de suas intenções — disse, apertando com


força a mão dela.

Guinevere compreendeu e acrescentou:

— Espero que essa união seja tão feliz quanto a nossa.

Arthur beijou-a profundamente e ela devolveu-o com toda a paixão de sua


alma.

Os homens riram compreensivamente e foram embora.

Arthur largou a mão dela apenas quando ouviu o ruído dos passos morrer aos
poucos. Quando Lancelot e Elaine saíram, ele enfrentou-a.

— Se houver ainda alguma coisa que você possa fazer para reparar esse
absurdo, faça-o, Guinevere. Não quero ver esse reino desabar por força da luxúria!

— Arthur, não desconte seu desapontamento em mim. Não fiz nada de


reprovável!

O rosto dele tornou-se sombrio.

Projeto Revisoras 143


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Lancelot nunca demonstrou o menor interesse por Elaine. Evidentemente,


ele pensou que iria encontrar você, aqui. Especialmente depois da declaração
explícita que lhe fez esta tarde. — Ele a olhou friamente. — Você teria ido ao seu
encontro, caso ele a chamasse?

Guinevere deu-lhe ostensivamente as costas e ele saiu, deixando-a a sós com


Nimue.

— Nimue, o que vou fazer agora?

Antes que ela pudesse responder, a porta foi aberta. Elaine apareceu no limiar,
sorridente, ao lado de um humilhado Lancelot.

— Minha querida — ela começou —, de agora em diante contente-se apenas


com seu marido!

Foi demais para Guinevere. Num assomo de ódio, ela partiu para cima de
Elaine. Mas Lancelot interpôs-se entre as duas.

— Nimue, por favor leve Elaine para bem longe daqui. Não vou me casar com
ela. Arthur irá encontrar um modo de ajeitar as coisas.

— Não vai mesmo? — perguntou Guinevere, com um fio de esperança.

— Não. Não tenho culpa alguma do que aconteceu. Fui enganado. Mas fui
também ingênuo. Devia saber que você jamais...

— Arthur me perguntou se, caso você me convidasse, se eu teria ido ao seu


encontro.

— E o que disse a ele? — Não consegui dizer que não iria. Lancelot acariciou-
lhe o rosto.

— Parta comigo. Podemos ir para Benoic. Lá nos receberiam de braços


abertos.

Ela tomou-lhe a mão e beijou-a.

— Não posso — murmurou, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. — Partir


seria admitir que somos culpados. Isso iria destruir Arthur, e tudo pelo qual ele
lutou, para fazer desta terra um exemplo de justiça e paz.

Ele suspirou fundo.

— Tem razão, Guinevere. Você não pode. Nem agora nem nunca.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Capítulo IX

Na manhã seguinte, Arthur encontrava-se na sala dos mapas, quando


Lancelot apresentou-se.

— Feche a porta — ele ordenou, sem tirar os olhos do trabalho.

Lancelot sentou-se e esperou pacientemente que ele terminasse. A essa altura,


havia recobrado o sangue-frio e a convicção que podia enfrentar Arthur com a
franqueza que o caso pedia.

Quando ele ergueu a cabeça e ficou a olhá-lo, começou:

— Nem sei mesmo por onde começar. Tudo aconteceu tão de repente... O fato
é que caí numa armadilha... Eu, um homem experiente, curtido pela vida... deixei-me
levar por aquela impostora. Foi ela que tramou todo o mal!

— E Guinevere? — perguntou Arthur de repente.

— Guinevere? Ela não teve nada a ver com isso!

— Foi o que ela disse.

— E é verdade! — retrucou Lancelot secamente. — Fui um louco, a acreditar


em Brisen. Pensei que os eventos da noite houvessem esgotado Guinevere e que ela
tivesse necessidade de alguém...

— Outro além do marido impotente — completou Arthur com brusquidão.

— Com efeito, Arthur! Foi você mesmo que me contou o que estava
acontecendo!

— Sim, fui eu. E confesso que fiquei surpreso, ao perceber que você não se
aproveitava disso. Ou aproveitou?

— Eu arriscaria minha dignidade, se não respondesse a essa pergunta


absurda. Não, não me aproveitei!

Projeto Revisoras 145


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur fitou-o por um momento. Não podia zangar-se com aquele amigo fiel e
dedicado, que lhe dera tantas provas de lealdade.

— E agora vamos ao que interessa. O que pretende fazer, para reparar o


escândalo.

— Conheço os costumes, Arthur. Primeiro a flagelação, depois o exílio. Estou


pronto para enfrentar ambos.

— Isso é pouco, Lance. Houve testemunhas. Entre as quais Medraut e


Agravaine. Se você partir sem antes se casar com Elaine, ambos presumirão que você
tem uma relação amorosa com Guinevere e que quer preservá-la. — Arthur
levantou-se e disse, com súbita ira na voz. — O rei não é um homem comum! O rei
não pode tolerar uma esposa adúltera!

— Não cometemos adultério! E você sabe!

— A impressão que os outros têm é outra. E é essa que irá prevalecer. Os


boatos correrão soltos pelo país e o rei ficará desacreditado. Pode imaginar as
conseqüências, não pode?

— Eu não posso me casar com Elaine — insistiu Lancelot, tomado de uma


lassidão extrema.

Arthur postou-se diante dele, os olhos lançando chamas.

— Mas é o futuro do país que está em jogo! Se o povo não acreditar em mim,
não acreditará também em minhas juras de paz e justiça para todos! Você errou e irá
pagar pelo seu erro, mas não com a vida. Casando-se com Elaine. Os boatos cessarão
e a honra de Guinevere será restaurada.

Lancelot compreendeu suas razões e abaixou a cabeça.

— Nimue teve uma boa idéia — continuou Arthur, mais calmo. — Leve Elaine
para Bela Vista. Eu a dotarei e manterei você no comando de minhas forças.

— E Elaine? Já está fazendo os preparativos para o casamento?

— O que você acha?

Lancelot suspirou, vencido.

— Quando?

Projeto Revisoras 146


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Dentro de dois dias. Todos os convidados que vieram para os jogos


continuarão aqui — revelou Arthur. E depois, mais gentilmente, continuou: — Você
sabe por que esse casamento deve acontecer, meu amigo.

Lancelot olhou-o com surpresa.

— Somos ainda amigos, Arthur?

— O fato de amarmos a mesma mulher não significa que devamos ser


inimigos. Somos amigos e continuaremos a sê-lo para sempre.

— Uma mesma mulher... A mesma a qual ainda não consegui demonstrar o


meu amor — disse Lancelot amargamente.

Arthur fitou-o com olhos pensativos por longo tempo.

— Há um chalé no alto da colina, pouco além do círculo de pedras. Vá para lá


amanhã logo cedo. Eu a levarei para você.

— Você vai permitir que ele se case com aquela... aquela mulher? —
Guinevere entrou como um furacão na sala de mapas.

Arthur suspirou, tomado de desânimo e, a custo, ergueu os olhos do trabalho.

— Não podemos fugir disso. E você sabe por quê.

Ela jogou a cabeça para trás. Parecendo uma leoa, no ardor tia argumentação.

— Faz anos que Elaine o persegue, mas Lancelot jamais demonstrou interesse
por ela. Então, para que insistir?

Um lampejo de ira brilhou nos olhos de Arthur.

— Sou o Grande Rei, devo explicações ao povo. Que outra decisão eu poderia
tomar, a não ser essa?

— Poderia mandá-la de volta para a casa do pai! Elaine se desgraçou sozinha,


ao armar toda essa confusão. Ninguém a induziu a isso!

— Nada tenho a discutir com você, Guinevere — murmurou Arthur por entre
os dentes. — Isso é problema meu!

— E meu também.

— Pois bem! Que resposta você daria aos que dizem que era você o alvo de
Lancelot?

Guinevere empalideceu.

Projeto Revisoras 147


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Quem ousaria dizer tamanho absurdo?

— Talvez não digam abertamente, mas os boatos já se espalharam. Tenho que


silenciá-los. Você é a rainha!

— Mas eu sou um ser humano. Sou como as outras.

— Mas ainda é a rainha.

Ele falava com os dentes cerrados, os olhos endurecidos. Guinevere teve


medo.

— E se eu lhe dissesse que estou cansada de ser rainha, de assumir tantas


responsabilidades?

— Eu a lembraria de que nós estamos lutando juntos para que,a paz e a justiça
imperem na Bretanha. O que aconteceria ao nosso país, a nós todos, se minha política
fracassasse? Acabaríamos massacrados pelos saxões. — Ele fez uma longa pausa. —
Agora você compreende por que temos de acabar com, isso de uma vez?

— Sim, compreendo — ela respondeu com um fio de voz.

Na manhã seguinte, durante a refeição matinal, Arthur observou,


casualmente:

— Vamos ter um dia complicado. Um entra-e-sai de cozinheiros, barbeiros,


jardineiros... Não gostaria de ficar aqui, em meio a toda essa atividade. E você,
Guinevere?

— Também não. Mas o que podemos fazer?

— Darmos um passeio pelo campo, por exemplo — ele propôs, como se a


idéia tivesse acabado de lhe ocorrer. — Mande o cozinheiro preparar uma boa
merenda e depois vá aprontar-se.

Meia hora depois, transpunham o portão. Ela suspirou de contentamento.


Sempre sentia essa excitação quando cavalgava, especialmente a pleno galope. Mas
manteve o cavalo a passo moderado para acompanhar Arthur, que parecia estra-
nhamente sério.

Ao se aproximarem aos pés da colina dos druidas, Arthur puxou as rédeas e


Valiant estacou.

— E aqui? — ela estranhou. — Sem árvores, sem relvados, sem sombra...

— Não. Quero que você vá para um lugar encantador.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Quer que eu vá... sozinha? Não vai me fazer companhia?

— Lembrei-me agora que preciso falar com Merlin. Voltarei para buscá-la no
final da tarde.

— Você deve estar confuso, Arthur. Convidou-me para um passeio e depois


diz que tem de falar com Merlin... Não posso ficar aqui, à sua espera, até o final da
tarde!

— Não terá de ficar sozinha. Veja.

Guinevere voltou-se na sela. Esqueceu depressa seus temores e sorriu, ao ver


Lancelot segurando pela brida seu corcel negro.

— Arthur — sussurrou, encarando-o. — Você está me dando permissão para...

— Amo você, Guinevere e não quero perdê-la. Mas farei isso uma única vez!
— Um ar aflito cruzou seu rosto, antes de dizer: — Prossiga.

Ela não o acompanhou com os olhos, antes de subir, ou não teria tido a
coragem para atirar-se em seguida nos braços de Lancelot. Quando se separaram,
perguntou, ainda abalada:

— Por que ele combinou esse encontro?

— Foi um presente que ele me deu, em troca da sentença que serei obrigado a
cumprir: casar-me com Elaine — disse Lancelot com ar sombrio. Mas logo se refez. —
Venha depressa, vou levá-la a um lugar que ainda não conhece.

Atrás de um chalé de paredes brancas, um largo riacho de águas claras


despejava-se sobre as rochas com um som borbulhante.

— Vamos dar um mergulho?

Despiram-se rapidamente e, de mãos dadas, mergulharam dentro da


correnteza. Guinevere exultou. Era simplesmente divino ver-se livre dás roupas e do
constrangimento numa linda manhã de sol! A água, que começava a amornar,
parecia abraçar seu corpo nu com um toque acariciante e amoroso.

— Adoro a água — confessou.

Ele sorriu com ar brincalhão, os dentes brancos brilhando no rosto bronzeado.

— Você está tentadora. Parece uma sereia. Impulsionada por um súbito desejo
de apagar aquele sorriso, ela pôs-lhe a mão no peito e empurrou-o para baixo. Mas

Projeto Revisoras 149


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Lancelot agarrou-a pelos pulsos e a fez submergir. Quando vieram à tona, puxou-a
de encontro ao peito e beijou-a, um beijo longo, rude que a fez perder o fôlego.

— Lance...

— Olhe para mim, meu amor.

Em seus olhos havia uma expressão que ela reconheceu: desejo. Excitada ela
própria pelo desejo que havia provocado, deixou que ele a erguesse de um só golpe e
a depositasse, triunfante, sobre uma cama de musgo. E o que aconteceu então foi um
ato de louca paixão. Quando ele a penetrou, deu-se por inteira.

Quando voltaram a si, o sol estava a pino. Recolheram rapidamente suas


roupas e correram para o chalé. Era uma construção simples, de pedra polida e um
só ambiente. Uma pequena lareira, uma mesa para dois é uma ampla cama de casal.

Trabalho de Nimue, pensou, perguntando-se se ela e Arthur já o haviam


utilizado.

Colocou sobre a mesa a merenda que trouxera e também uma garrafa de


vinho.

— Quer tomar um pouco?

— Talvez depois. Quero manter a cabeça lúcida para me lembrar de tudo o


que fizemos e o que faremos hoje.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

— Não vá embora. Como posso continuar vivendo sem você?

Ele puxou-a docemente de encontro a seu corpo.

— Ah, minha Guinevere... tão impetuosa, tão sábia...

— Você não pode me deixar sozinha!

— Meu pequeno cisne... você veio para mim roubada das estrelas.

Guinevere se aninhou em seus braços e ele procurou-lhe os lábios, beijando-a


longamente.

— Não temos muito tempo — ela sussurrou, enlanguescida.

— Temos toda a tarde diante de nós, minha bela. É uma eternidade!

Projeto Revisoras 150


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Horas mais tarde, já prontos para partir, permaneceram um instante no limiar


do chalé de braços dados. Guinevere apontou para o topo da colina, agora coroada
pela neblina do entardecer. O círculo de pedra era apenas visível.

— Você já entrou no círculo?

— Não, Os círculos são usados apenas nos rituais.

— Arthur e Nimue geraram Argante nesse círculo.

— Isso a incomoda?

— Talvez.

Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos e fitou-a longamente.

— Você quer um filho tanto assim?

— Gostaria de ter um filho seu.

— E Arthur? Acha que ele o aceitaria de bom grado?

— Acho que sim. Ele quer um herdeiro, mas que não seja Medraut.

Lancelot sorriu amplamente.

— Você já pode estar com a sua semente, Guinevere. Fomos muito ativos,
enquanto estivemos nos braços um do outro.

— Seria maravilhoso! — ela disse, com lágrimas nos olhos.

Ele ajoelhou-se e olhando para o círculo, cantou baixinho, com suavidade:

— Peço a bênção da Deusa pelo que aconteceu hoje, neste lugar, — Depois levantou-
se comentando: — Essa é uma das poucas coisas que eu me lembro do tempo que
passei com Merlin.

Guinevere estava totalmente surpresa.

— Quando foi isso?

— Eu tinha cerca de dez anos e minha mãe... — interrompeu-se bruscamente e


olhou-a. — Você esteve na ilha sagrada quando era pequena?

— Não, mas fui à abadia com meu pai. Naquela ocasião falava-se muito sobre
o ressurgimento da teoria de Pelagium, — Ela ficou pensativa um instante. — Eu
tinha seis anos naquela época.

Um sorriso apareceu nos lábios de Lancelot.

Projeto Revisoras 151


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Você lembra de um garoto com uma espada de madeira, que a socorreu


quando você escorregou no chão lamacento?

Guinevere fez um aceno afirmativo com a cabeça.

— E também do monge vestindo uma túnica marrom, que me assustou.


Aquele menino era você?

— Sim era eu. E o monge era Merlin disfarçado. Ele nos mandou embora,
lembra-se? Depois minha mãe me explicou o porquê.

— Por quê?

— Ele queria nos ver separados. Dizia que, juntos, acabaríamos por destruir os
sonhos de Arthur.

Guinevere viu, com desalento, Elaine descer da carruagem ostentando um ar


radiante.

Era uma dor que a despedaçava, que não poderia suportar. Que seria dela
agora, sem Lancelot?

Ela e Arthur tomaram seus lugares no primeiro banco. Quando os noivos


proclamaram seus votos, Guinevere ausentou-se mentalmente. Não queria ouvir as
promessas que Lancelot e Elaine trocavam, as juras de um amor que não existia.

Sabia que Lancelot não queria aquele casamento e que o aceitara apenas para
salvar sua honra. No entanto, não podia deixar de pensar que seria agora Elaine a
usufruir daquelas mesmas carícias que ela recebera, dos mesmos beijos, da mesma
potente virilidade...

Quando a cerimônia terminou, Arthur deixou escapar um suspiro de alívio. O


assunto estava encerrado.

Em Camelot, a festa terminara e chegara o momento dos noivos se recolherem


aos seus aposentos. Mas Lancelot estava em estado de estupor. Bebera demais.
Arthur tomou-lhe um braço e Gwalchmai o outro, e, juntos, conseguiram que ele
caminhasse com suas próprias pernas, embora cambaleante, ao quarto que lhe fora
destinado.

No quarto, Gwalchmai tentava levar Lancelot à sobriedade.

— É sua noite de núpcias, homem! Todos esperam que você a leve para a
cama.

Projeto Revisoras 152


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Lancelot espiou-o através dos olhos semicerrados.

— Hum...

— O que há com você? — perguntou Gwalchmai, exasperado. — Elaine é


bonita e se parece muito...

Lancelot fechou o punho e desferiu-lhe um golpe que o atingiu no queixo.

— Chega! — disse Arthur, enquanto Gwalchmai se preparava para revidar. —


Nada de escândalos!

Lancelot recompôs-se e entrou no quarto contíguo que iria compartilhar com


Elaine no instante em que Guinevere se aprontava para sair. Acariciou-lhe a mão,
pensando que este seria o último toque.

Arthur aproximou-se e o deteve.

— Espere. Só sairemos daqui quando o virmos debaixo das cobertas.

Lancelot fez o que lhe mandavam sem olhar para Elaine que já estava deitada
na cama.

— Beije-me, meu marido e me tome nos braços — ela murmurou com os olhos
semicerrados.

Ele pousou os lábios sobre os dela com toda a rudeza de que foi capaz e
depois encostou-se ao espaldar da cama. Imediatamente, Arthur levou todos para
fora do quarto.

— Está na hora de os deixarmos a sós. Quando a porta foi fechada, Lancelot


soergueu-se.

— Minha nobre esposa, esse foi o último beijo que roubou de mim. Nem eu
mesmo imaginava a tortura que foi ter você em meus braços. Quero esquecer esse
momento, amarfanhá-lo, queimá-lo, para que sua lembrança se extinga rapidamente!

Ela o olhou com os lábios entreabertos, no esforço de compreender.

— O que está querendo dizer? Somos marido e mulher! Você deve...

— Não me diga o que devo fazer! Se a quisesse de verdade, já a teria feito


minha há anos!

Ela começou a chorar.

— Mas eu te amo!

Projeto Revisoras 153


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Que quer ainda de mim? Já me fez todo o mal que podia fazer. Você me
enganou, ao armar aquela cilada infame!

— Não, nunca o enganei. É que...

Ele interrompeu-a:

— Vamos esclarecer esse ponto! Você não era virgem, quando se entregou a
mim. Quem foi o primeiro? Quem, Elaine?

— Nunca houve ninguém, a não ser você. Nunca amei...

— Não perguntei, se você já amou outro ou não. Quero saber quem a


desvirginou!

— Foi apenas uma vez. Para que não houvesse dor quando Você me tomasse.
Fiz mal, devia ter esperado.

Lancelot olhou-a com incredulidade.

— Você pediu a um homem que a desvirginasse?

— Não, não! Foi ele que se ofereceu!

— Quem se deu a esse trabalho? — escarneceu Lancelot.

— Medraut — ela disse baixinho.

Por um momento, ele não soube o que dizer. Depois pôs-se a rir
descontroladamente.

— Não vejo nenhuma graça nisso! — Elaine protestou.

— Mas eu sim! Medraut venceu desta vez. Mas eu lhe darei o troco...

Elaine começou a dar sinais de impaciência.

— Que troco? Você vai ficar comigo esta noite ou não?

— Compreenda bem: já lhe concedi uma noite e, para mim, foi o suficiente!

— Você acha que eu vou me contentar...

— Com uma vida sem amor e sem sexo? — ele completou. — Pois isso é tudo
o que você terá de mim! — Jogou a coberta para o lado e levantou-se. — Sugiro que
vá ao padre e peça a anulação deste casamento, porque tudo não passou de uma
farsa!

Projeto Revisoras 154


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Na manhã seguinte, Lancelot e Elaine desfeita em lágrimas, partiram para


Bela Vista.

Antes de partir, ele foi se despedir de Guinevere.

— Pedi-lhe a anulação do casamento — disse ao ouvido dela, enquanto lhe


beijava o rosto.

Guinevere mal pôde esconder a alegria. Seria a solução perfeita. As línguas


maldizentes se calariam, pois houvera casamento.

— Espero que voltem logo para Camelot — ela disse em voz alta, para que
todos a ouvissem. E depois mentalmente: você para mim, Lancelot.

Dias mais tarde, após o jantar, sentados em confortável cadeiras diante da


lareira apagada, Guinevere esperava que Arthur terminasse de beber seu vinho para
lhe dizer que suas regras estavam atrasadas.

Entrou no assunto divagando:

— Arthur, podemos falar de Medraut?

— O que foi que ele fez desta vez?

— Por enquanto nada, mas estou preocupada, ele fez amizade com um grupo
de recrutas indisciplinados. Bedwyr não tem mãos a medir, agora que Lancelot
partiu. Desdobra-se para impor-lhes disciplina. Inutilmente.

— Tenho certeza de que ele está ressentido porque eu ainda não o proclamei
meu herdeiro. — Os lábios de Arthur comprimiram-se por um momento, e depois
afrouxaram-se num suspiro. — O homem inicia o seu paraíso ou seu inferno aqui na
Terra. Assim comecei o meu.

— Sei que você está sendo coagido, Arthur. O que pretende fazer?

A voz de Arthur era alta e clara, quando se pronunciou:

— Em relação a Medraut? Nada. Ele ainda não é o meu herdeiro e não será
enquanto não o designar oficialmente. E isso é algo que não pretendo fazer.

— Se você está tão determinado assim, é porque já tem outro candidato em


vista.

Arthur ficou calado.

— Você não gosta mesmo de Medraut, não é?

Projeto Revisoras 155


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Jamais gostei. Você sabe disso. Mas tenho uma solução. Custennin.

— O filho de Marc?

— Ele mesmo. Se você não puder ter filhos, Custennin será oficialmente
investido como príncipe e herdeiro do trono. Os menores reconhecerão essa
possibilidade.

— E se eu puder tê-los?

Arthur olhou-a fixamente.

— Mas são necessários dois para que... — ele interrompeu-se — Você está
grávida?

— Talvez. Minhas regras estão atrasadas três luas. Os olhos de Arthur


estavam frios como gelo.

— Lancelot.

— Por favor, Arthur. Não fique zangado. Isso significa tanto para mim... para
nós...

Ela viu um turbilhão de emoções cruzar o rosto de Arthur. Raiva, ciúme,


desespero, tristeza, esperança...

— Ele conseguiu o que eu não consegui.

— Pedi a ajuda da Deusa, embora seja cristã. Foi outro pecado mortal que
cometi.

— Orar para a Deusa não é pecado. Afinal, Lancelot é filho de uma grande
sacerdotisa. O problema não é esse.

Guinevere inquietou-se.

— Problema? A que problema está se referindo?

— Lancelot poderá pedir a guarda do filho, se o reconhecer como tal.

— Ele não faria tamanha desfeita a você! Foi compreensivo, no caso de Elaine,
aceitou casar-se com ela pelo bem de todos nós.

— Está bem, Guinevere — suspirou Arthur. — Não direi mais nada. Aceitarei
a criança e a criarei como se fosse minha. Se for menino, será meu herdeiro.

Projeto Revisoras 156


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Certa manhã gelada do início de outubro, um cavaleiro chegou de Venta


Icenorum. Era Natanlaod um dos Senhores da Guerra e Arthur conduziu-o
imediatamente à Sala do Conselho

— Quais são as novidades?

O homem foi sucinto.

— Cerdic está nos causando problemas.

— Cerdic? — admirou-se Arthur. — Que tipo de problemas?

— Ele quer não apenas mais terras, como mais homens.

— Seria muito arriscado. Mais cedo ou mais tarde, ele poderia voltar-se contra
nós.

— Foi o que pensamos. E decidimos enfrentá-lo.

— Agora, com o inverno já batendo em nossas portas?

— Por enquanto, não há a menor indicação de que tenham transposto os


limites de seu território. Se o enfrentarmos já, teremos mais chance de subjugá-los.

Arthur pensou rapidamente. Não podia permitir que o saxão se estabelecesse


numa fortaleza. Seria uma porta aberta para uma eventual invasão.

— Então, qual é o seu plano?

— Há um pequeno vilarejo pouco além de Clausentum. Poderemos


transformá-lo em nosso quartel-general. A esta altura, levaríamos vantagem. Se
agirmos depressa, tudo estará terminado antes da chegada do inverno.

— De quantos homens dispõe?

— De trezentos cavaleiros e de três mil infantes. Arthur considerou a questão.

— Conheço a região. É pantanosa. Leve apenas a infantaria.

Seria a opção acertada. E agora me diga: o que você precisa de mim?

— Nada. Apenas sua permissão — respondeu Natanlaod.

— Permissão concedida. Peço-lhe apenas que traga Cerdic vivo. Quero saber o
que ele pretende.

— Como desejar, meu rei.

Quando ele se foi. Merlin sacudiu a cabeça.

Projeto Revisoras 157


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Péssima decisão. Será o seu fim.

Pouco depois, Arthur chamou seu chefe de gabinete e explicou-lhe a situação.

— Vá a Clausentum. Quero saber como estão realmente as coisas por lá.


Natanlaod não me convenceu.

Gryflet chegou seis semanas depois, sob o vento frio de um outono chuvoso.
Arthur e Guinevere correram para recebê-lo.

— Natanlaod morreu — ele murmurou, com voz cansada, aceitando


gratamente o vinho quê Guinevere lhe oferecia.

Arthur estava preste a explodir.

— Diga-me, em nome dos deuses, o que foi que aconteceu?

— Cerdic retirou-se com suas tropas para a região pantanosa. Sem refletir,
Natanlaod deu ordens para que a cavalaria avançasse, praticamente levando cavalos
e cavaleiros a afundarem no lodo. Quando os remanescentes chegaram à beira do
bosque, depararam-se com os homens de Cerdic, que caíram sobre eles como moscas.
Depois houve o caos. Ao saber que o Senhor da Guerra estava morto, a infantaria
bateu em retirada.

— Covardes! — gritou Arthur fora de si. — E Cerdic, já reagrupou suas


forças?

— Parece que sim. Pelo menos eram essas as vozes que corriam em
Clausentum.

— Vamos lutar, meu amigo!

— Estou aqui para isso!

Depois que ele se foi, Arthur voltou-se para Guinevere, que estava no sétimo
mês de gravidez.

— Odeio ter que deixá-la, meu amor. Mas essa rebelião te que ser reprimida a
qualquer custo!

— Não se preocupe comigo, Arthur. Estou rodeada de amigos.

Haviam se passado quinze dias, desde que Arthur partira. Era uma fria tarde
de dezembro e Guinevere estava sentada junto ao fogo, aquecendo-se ao seu calor.
Fora havia neve e o vento ululava, mas ela estava feliz. Acabava de sentir seu bebê
mover-se.

Projeto Revisoras 158


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Subitamente, sentiu o peso de uma mão em seu ombro. Virou-se lentamente,


já sabendo quem iria encontrar. Lancelot.

— Ah, meu amor. Você veio!

— Mas por pouco tempo. Vou esperar a volta de Arthur. A propósito, como
ele reagiu ao saber que você estava grávida?

— Com alegria, mas também com preocupação. Temia que você viesse
reclamar o bebê. Prometeu-me que, ser for menino, o fará seu herdeiro.

— Acha que ele me deixará vê-lo?

— Por que não?

— Aproveitaria para ver a mãe — ele disse com um sorriso.

— E me achará ainda atraente?

Lancelot levantou-se e caiu de joelhos diante dela. Seus olhos estavam


enevoados.

— Para mim, você será sempre a mulher mais linda do mundo.

— E você o homem mais belo, o pai de meu filho!

— Mas será Arthur que irá tê-lo em seus braços.

— E seu filho com Elaine? Você poderá tê-lo em seus braços quando ele
nascer.

— Vou esperar até que nasça. Então verei o que posso fazer. Não a toco desde
aquela infeliz noite, quando eu pensei que fosse me encontrar com você.

— Não a tocou nem em sua noite de núpcias?

— Não, nem naquela noite. Recusei-me a levar a farsa adiante.

— Mas ela proclama que você quer abusar sexualmente dela para matar o
bebê que está em gestão!

Ele respirou fundo e deixou o ar escapar lentamente.

— Quanto a isso, você pode ficar tranqüila. Não faria mal a bebê nenhum nem
mesmo ao dela.

— É seu também — lembrou-o Guinevere, com doçura.

— Será? Ela ameaça levá-lo para casa do pai.

Projeto Revisoras 159


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Vamos ver o que acontece. Até quando você vai ficar aqui?

— Um dia ou dois. Espero que Arthur chegue antes que a neve feche os
caminhos. Preciso voltar a Bela Vista antes disso.

No dia em que Lancelot devia partir, Guinevere recebeu-o em seus aposentos


particulares. Trocaram carícias falando do amor que sentiam um pelo outro, de seus
desejos reprimidos. Depois desceram até o portão, onde uma pequena multidão os
aguardava.

Guinevere acompanhou-o cornos olhos até vê-lo desaparecer. Estava


cruzando o pátio, quando ouviu um cavalo relinchar. Parecia o relincho de Safere.
Encaminhou-se para a estrebaria o mais rápido que pode. Um cavalariço estava
tentando freneticamente espantar, com uma vassoura, alguma coisa que ela não
podia distinguir.

— É uma lebre, milady, e está assustando Safere.

— Dê-me essa vassoura. Depressa! Guinevere tomou seu lugar falando


suavemente com o animal, que estava com os olhos arregalados de pavor. Suas
orelhas se empinaram e ela percebeu que ele a ouvia. Foi se acalmando aos poucos,
escavando ocasionalmente o chão.

Ela adiantou-se e começou a acariciar-lhe o pescoço, sem deixar de falar.


Agarrou-o pelo cabresto e a lebre aproveitou, o momento para escapar, correndo
diante do conde.

Safere empinou-se, de novo assustado, erguendo Guinevere consigo. Quando


desceu, ela viu-se atirada de encontro à baia. Fez ainda um supremo esforço para
recuperar o equilíbrio, mas seus olhos anuviaram-se. Caiu ao chão, inconsciente.

Quando recobrou a consciência, viu Nimue inclinada sobre ela. Seu rosto
demonstrava preocupação.

— O que... o que você está fazendo aqui? Estou com tantas dores... meu ventre
queima como fogo, O bebê... — murmurou e tentou sentar-se.

Gentilmente Nimue obrigou-a a permanecer deitada.

— Procure não se mexer, por ora. Você está ainda confusa.

— Meu bebê... não deixe meu bebê morrer!

Nimue colocou uma compressa em sua testa.

Projeto Revisoras 160


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Acalme-se, você perdeu muito sangue.

— Há quanto tempo estou inconsciente?

— Há dois dias. Mandamos chamar Arthur.

— O bebê... morreu? — ela teve finalmente a coragem de perguntar.

— Não senti nenhum movimento, durante esse tempo.

Guinevere agarrou-se a ela, desesperada.

— Não há nada que você possa fazer? O bebê é um presente da Deusa, E você
é sua sacerdotisa.

— A Deusa faz o que quer. É ela quem dá as ordens.

Guinevere compreendeu.

— O bebê morreu. Tem que ser tirado?

Nimue colocou a mão sobre seu ventre.

— Não podemos tirá-lo. E você morrerá se ele não sair espontaneamente.


Tome isto até o fim — ela determinou, passando-lhe uma taça contendo um caldo
branco e espesso, onde boiavam folhas maceradas.

— O que é?

— Agrião. Se a criança morreu, isto o expelirá — disse Nimue.

Algumas horas depois, a criança foi expelida. Era um menino.

Outra semana passou-se, antes que Guinevere tivesse forças de sentar-se na


cama e de reconhecer Arthur. Agarrou-se a ele soluçando.

— Não me deixe... Não me deixe.

Ele a fitou com o coração despedaçado. Guinevere estava quase


irreconhecível.

— Não se entregue. Você perdeu muito sangue, terá que se alimentar bem
para recuperar-se.

— Eu pequei, Arthur. Foi por isso que o bebê morreu.

A sensação de culpa tornava-a tão submissa que o assustou.

— Ouça bem, Guinevere. A morte do bebê foi um acidente. Apenas isso,


entendeu? Quer que eu mande chamar Lancelot?

Projeto Revisoras 161


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não! Ele não pode sair do lado de Elaine. Se não estiver em casa quando a
criança nascer, ela tomará medidas para que ele nunca mais a veja.

— Elaine não pode fazer isso!

— Seja como for, não o chame. Eu pequei e essa será minha punição. Não vê-
lo mais. Nunca mais!

— Mas fui eu que lhe dei permissão para que você fosse a seu encontro,
lembra-se?

— Pequei e Deus levou meu filho — ela repetiu.

Arthur viu-a tão prostrada, tão acabrunhada, que se atreveu a dizer:

— Não se torture inutilmente, Guinevere. Veja o que aconteceu comigo,


deixei-me levar pela culpa e nós dois sabemos o que aconteceu. Deus não castiga a
nenhum de seus filhos. Deus é amor e compaixão.

Com essas palavras, Arthur sentiu como se um grande peso lhe fosse tirado
das costas. Então, ao olhar para sua mulher, sentiu uma onda de desejo sobrepujá-lo.
Pela primeira vez nos últimos anos. Seu coração encheu-se de felicidade. Ela estava
ainda fraca e abatida, mas saberia esperar.

A convalescença de Guinevere foi lenta. A primavera trouxe Landinus. Ele


entregou um relatório de Estado para Arthur e uma mensagem para Guinevere. A
mensagem era de Elaine. Tivera um filho e dera-lhe o nome de Galahad. Esperava
que Guinevere já tivesse dado à luz e terminava com uma ameaça: Se Lancelot fosse
para Camelot, ao voltar não encontraria ninguém em casa, a não ser os criados.

Em silêncio, Guinevere entregou a mensagem a Arthur. Ele não disse palavra,


mas seus olhos indignados falavam por si.

Depois disso, Guinevere tornou-se ainda mais desanimada. Comia pouco e


não saía dó quarto. Arthur visitou-a certa noite. Mas quando abordou o assunto de
uma nova gravidez, ela reagiu tão histericamente que ele saiu imediatamente,
deixando-a sozinha.

No início do verão, Guinevere foi procurá-lo na sala dos mapas.

— Preciso me ausentar. Apenas por algum tempo. Ele aproximou-se dela e


tomou-lhe as mãos.

— Para onde você gostaria de ir? Tudo está calmo agora que poderíamos...

Projeto Revisoras 162


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não, quero ir sozinha. Gostaria de visitar Ygraine. Talvez lá, na solidão do


claustro, eu encontre um pouco de paz.

— Mas por que...

— Preciso tentar, Arthur — ela disse com desespero. — Preciso tentar...

Ygraine recebeu-a irradiando felicidade.

A vida na abadia era simples. As irmãs dividiam entre si as tarefas domésticas


e tudo procedia com a calma rotina de Cameliard.

Guinevere sentiu-se de novo reanimada. Adaptou-se imediatamente à norma


geral, encontrando prazer em fazer as pequenas tarefas que lhe destinavam. Recitava
os ofícios com as irmãs e rezava todos os dias, pedindo perdão para os seus pecados.

Passado um mês, Arthur foi visitá-la.

— Você é um homem muito ocupado, Arthur. Não devia ter vindo aqui.

Ele beijou-a castamente no rosto.

— Não pense em ficar aqui para sempre. Preciso demais de você.

Guinevere ficou pensativa. Ainda não estava pronta para voltar. Tinha que
trabalhar muito para receber a absolvição de seus pecados. Assim, na próxima vez
que Arthur foi visitá-la, deu uma desculpa e não o recebeu.

Na primavera do ano seguinte, um jovem sacerdote veio visitar a abadia. Ele


possuía a descontrolada paixão de um fanático e, a princípio, Guinevere ouvia seus
sermões emocionada. Até que um dia, sem saber que ela era a rainha, pôs-se a criticar
Arthur. E com tal virulência, que a incomodou. No dia seguinte, após uma longa
conversa com a abadessa, mandou um recado a Arthur, dizendo-lhe que estava
pronta para voltar.

Passada uma semana, estava trabalhando na horta quando, ao erguer os olhos


viu a abadessa que se aproximava.

— Sua escolta chegou, milady. Pode voltar para sua casa.

Arthur!, pensou Guinevere emocionada. Foram juntas ao escritório e


Guinevere aproveitou o breve instante de intimidade para agradecer-lhe com efusão.

Ao sair, deparou-se com Lancelot. Sua emoção foi tamanha, que cambaleou e
teria caído, se ele não a amparasse.

— Veio sozinho? — perguntou, a voz ainda trêmula.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não seria adequado, milady. Gareth e o restante da escolta estão à espera


do lado de fora do convento — ele disse formalmente, porque a abadessa os
observava. Ela procurou manter uma aparência de dignidade.

— O que eu queria saber... é por que Arthur não veio.

— Cerdic continua a nos dar problemas, Arthur e seus homens estão a


caminho de Calleva. Eu cheguei a Camelot com a sua mensagem, milady. A senhora
permite que seu paladino a acompanhe?

— Naturalmente. Por favor, leve-me para casa.

Lancelot portou-se formalmente, durante os dois dias de viagem. Foi só ao


chegarem a Camelot, que Guinevere teve a oportunidade de interrogá-lo. Estavam
jogando xadrez junto ao fogo da lareira, mas seus pensamentos estavam longe.

— Você não está concentrada no jogo — ele observou. — O que há com você?

— Estava pensando em Elaine. Ela mudou de opinião sobre sua vinda para
Camelot? Ele ficou sério.

— Elaine? A estas horas, ela deve estar a caminho de Pelles.

— Então por que você veio para cá? Não pensou que ela poderia concretizar a
ameaça?

— Arthur pediu-me que eu fosse ao convento em seu lugar, e que você se


recusava a recebê-lo. E eu obedeci. Ele é o meu rei.

— Arthur não pensou nas conseqüências? Ele já sabia das ameaças de Elaine!

— Duvido que Arthur tenha pensado nisso. Quanto a Galahad... verei o que
posso fazer para recuperá-lo. — Lancelot tornou a sorrir. — Venha sentar-se ao meu
lado.

— Não posso, é pecado.

— Pecado é o que você está fazendo comigo. É mais que pecado, é uma tortura
— ele murmurou, beijando-lhe a palma da mão.

— Deixe-me, por favor — ela implorou.

— Milady passou muito tempo no convento, já se esqueceu o que é o amor.

Guinevere não respondeu.

Projeto Revisoras 164


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Deixe-me que eu a lembre — Lancelot insistiu, tomando-lhe a boca e


forçando seus lábios a se entreabrirem.

Ela o empurrou e levantou-se. Ele tomou-lhe a mão entre as suas.

— Você está tremendo. Perdoe-me.

— A culpa foi minha. Não devia ter permitido que me tocasse.

Na manhã seguinte, Guinevere encontrou-o perto da estrebaria. Estava se


preparando para montar Pryderi.

— Está voltando para Bela Vista?

— Não. Gaheris disse-me que Agrícola e Theodorico irão iniciar uma


campanha contra os Scotti de Dementia. Pensei e oferecer minha espada a Arthur.

— Ele não precisa de sua espada, por enquanto. Está em tratativas com Cerdic.
Por que não espera que ele volte? Até lá posso aproveitar sua companhia.

Os olhos dele tornaram-se impenetráveis.

— O crime do qual fui injustamente acusado de cometer contra Elaine, eu


cometerei contra você, se me recusar novamente. — Ele virou-se para ajustar a bolsa
da sela. — Nunca tomei à força mulher alguma, mas, ontem à noite, você esteve bem
perto de ser violada!

— Eu não chamaria de violência, o que aconteceu ontem à noite.

Ele deu um passo na direção dela.

— Diga-me que me quer e eu ficarei.

Ela olhou para o chão, em silêncio.

— Quer que eu a tome à força, é isso?

— Você é um cavalheiro, jamais faria isso,

— Tem razão. Quero que você venha para mim livremente e que sinta prazer
em meus braços.

Ele montou Pryderi e partiu a galope, quase deitado sobre sua montaria.

Projeto Revisoras 165


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Capítulo X

Do alto da escadaria, Guinevere contemplava o sol mergulhar atrás das


colinas azuis numa explosão de luz. Era um cenário incomparavelmente cheio de
paz. A mesma paz que ela fora buscar em outro lugar e que estava ali, ao alcance de
seus olhos.

Amava profundamente aquela terra para onde viera quase menina e sempre
esperara que ela fosse suficiente para os filhos que viriam, e que eles soubessem
extrair dela a força e o desejo de permanência, como havia feito. Mas agora...

— O rei está de volta! — gritou o guarda da torre e fez soar o gongo.

Guinevere precipitou-se escadaria abaixo e correu para o portão. A familiar


flâmula vermelha com o dragão dourado flutuava acima do cavaleiro que vinha à
frente. Arthur e Lancelot, cavalgando lado a lado, lideravam o pelotão.

Lancelot cumprimentou-a, ao transpor o portão. Arthur desmontou e


caminhou para ela com um sorriso estampado no rosto.

— É maravilhoso ver que você está de volta. E para sempre.

Não é uma surpresa porque Lancelot já me contou tudo. M é uma grande


alegria.

Ela sorriu e seus olhos encheram-se de lágrimas.

— Sim, é para sempre. Mas gostaria de encontrar um meio de recompensar


essa ausência.

— É suficiente que você tenha voltado para mim — ele murmurou, tomando-a
nos braços e dando-lhe um grande beijo.

Guinevere nunca tinha visto tanta suavidade, tanta ternura, tanto amor nos
olhos dele. Encostou a cabeça em seu ombro: e pôs-se a chorar de felicidade.

Quando se acalmou, Arthur virou-se para um jovem desconhecido e o


apresentou.

— Cynric, filho de Cerdic. — E ao seu ouvido: — É nosso refém.

Guinevere olhou-o com surpresa.

Projeto Revisoras 166


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Houve problemas?

— Não, ao contrário. Gwalchmai conheceu-o numa taverna em Clausentum, e


cativou-o com sua conversa. Depois levou-o ao nosso acampamento e o reteve. Eu
tinha ido a Calleva, para negociar com Cerdic, que se mantinha irredutível. Ao saber
que o filho estava em nosso poder, ele cedeu. Acredito que, de agora em diante, não
haverá novas incursões.

— Então, por que o trouxe para cá?

— Por medida de prudência. Cerdic é muito esperto.

Ao passar por Guinevere, Cynric fez-lhe uma leve inclinação de cabeça.

— Vamos Guinevere? Temos outros assuntos para resolver nesse momento. —


Arthur a chamou e juntos foram para seus aposentos.

— Senti muito a sua falta. Um ano! É muito tempo. E por que se recusou a me
ver?

— Sinto muito, Arthur. Não o recebi porque você queria me tirar de lá.a. E

— Encontrou o que estava procurando?

— Trabalhei muito, rezei e neguei-me alguns prazeres. Por fim, recebi a


absolvição. Mas proibiram-me de invocar as deusas e de observar as cerimônias
pagas.

— Foi o que eu também lhe disse, lembra-se?

— Sim, mas Lancelot... — ela começou imprudentemente e depois calou-se.

— Lancelot? — Arthur insistiu, com olhos observadores.

— Oh... ele me disse...

— Termine de dizer o que começou. Por favor.

Ela começou hesitante:

— Ele acha que as mulheres têm o direito de saber que a verdadeira


absolvição está em não sentir-se culpada pelos prazeres que se proporciona.

— Lancelot tem o poder de conceder absolvição?

Guinevere olhou-o com apreensão. Aquele tom de voz, tão estranhamente


calmo, não pressagiava nada de bom.

— Não me deitei com ele, se é isso o que você está pensando.

Projeto Revisoras 167


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— E você gostaria de ter se deitado?

Ela sentiu a cólera crescer.

— Você está me pressionando a admitir algo que eu não fiz!

— Você é minha mulher, e é bom que se lembre disso!

Foi demais para Guinevere.

— Exerça logo seus direitos! Faz anos que...

Arthur não pensou duas vezes. Agarrou-a pelo braço e rasgou-lhe o vestido
de alto a baixo. Depois jogou-a sobre a cama.

— Você está me machucando!

Ele tomou-a assim mesmo e apertou-a nos braços com a raiva silenciosa do
desejo, cobrindo-a depois de beijos e m deduras.

— Pare, Arthur! Por favor...

Ele ergueu os olhos endurecidos e fitou-a quase com ódio.

— Você é minha esposa e fará exatamente o que eu quiser — depois deixou-se


cair sobre ela com todo o seu peso.

Quando tudo terminou, Guinevere rolou para o lado e encolheu-se toda, com
a impressão de que um abismo se abrir entre ambos.

Minutos depois, sentiu um toque no ombro.

— Guinevere... eu a magoei?

— Você me violou, Arthur.

Ele balançou tristemente a cabeça.

— Só essa idéia me parece horrível, absurda.

Ela enrolou-se num lençol e saiu do quarto sem dizer nada.

Morgana e Accolon entreolharam-se. O que estaria acontecendo com


Medraut? Fazia tempo que ele andava de um lado para o outro da sala com os
cenhos franzidos.

— O que foi, meu filho?

Ele pareceu hesitar, mas acabou contando.

Projeto Revisoras 168


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não sei o que aconteceu, mas alguma coisa não vai bem entre Arthur e
Guinevere.

— Tem certeza?

— Ela apareceu com o rosto machucado, na manhã seguinte à chegada de


Arthur. E, desde então, eles mal se falam.

— Não tem a menor idéia do que possa ter sido? Ele deu os ombros.

— Brigas de amor, talvez. Lancelot está nervoso e Arthur também. Que é que
vai acontecer agora com a campanha contra os Scotti?

— Não se preocupe meu filho. Estão ambos ligados por um estranho elo.
Podem lutar pelo amor de Guinevere até a velhice, mas cada um deles daria a
própria vida para defender a do outro.

Medraut ficou um instante em silêncio, depois enfrentou o olhar atento da


mãe.

— Estive pensando... Se Arthur morrer num campo de batalha serei o seu rei.
E poderei ter Guinevere.

— Esqueça Guinevere! Você poderá ter a mulher que quiser, se for investido
oficialmente rei. E é isso que importa. E essa será a sua meta: a realeza. Quanto a
Arthur morrer em campo de batalha... É impossível, enquanto ele estiver usando sua
espada mágica em sua bainha encantada.

— Excalibur e sua bainha... Elas evitarão que o rei perca muito sangue.

— Venha ver o que estou fazendo — convidou Morgana. Medraut aproximou-


se de sua mesa de trabalho.

— A bainha de uma espada. Para quem?

— Aproxime-se mais.

— É um lindo trabalho, mãe. É muito elaborado, com uma enormidade de


símbolos pagãos. — Ele sorriu compreensivamente. — Você está pensando numa
troca. Numa bainha que não protegerá Arthur, não é verdade?

— Acertou! Vou esperar a circunstância adequada e então Accolon fará a


troca. Ninguém perceberá porque será a réplica da bainha de Excalibur.

— Excelente plano, mãe. Não tem outro em mente? Raptar Guinevere por
exemplo? Nesse caso eu ajudaria.

Projeto Revisoras 169


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Guinevere não, mas Lancelot, sim.

— O quê!? — Medraut pôs-se a rir. — De que modo? Tomando-o pela mão e


levando-o para algum lugar secreto?

— Mais ou menos isso — concordou Morgana.

— Você se esqueceu de que Lancelot só tem olhos para Guinevere? Duvido


que você consiga seduzi-lo!

— Não é isso o que eu tenho em mente.

— Qual é o seu plano. Morgana sorriu.

— Espere e verá. E agora me fale desse novo hóspede que vocês acabam de
receber.

— Cynrie? Arthur o trouxe como refém. Ele é filho de Cerdic, Foi graças a isso
que as negociações entre ambos avançaram.

— Como ele é?

— Bastante acessível. Falou-me de um esconderijo que ele tem perto daqui.


Ofereceu-o para o meu próprio uso. Em troca eu lhe conseguiria algumas prostitutas
já que ele não pode sair.

— Talvez um dia ele se torne nosso aliado — cogitou Morgana. — Você tem
que pensar no futuro e formar uma sólida base de aliados. Pessoas em quem possa
confiar. Os saxões, por exemplo. Que vantagem eles têm em tornar-se aliados de
Arthur? Nenhuma! Chame-os para o seu lado, ofereça-lhes terras e o direito de
deslocar-se livremente de um lugar para o outro. E verá que eles corresponderão.

Os olhos de Medraut cintilaram.

— E se Arthur recusar-se a me reconhecer, eu tomarei o que me pertence por


direito com a ajuda de meus próprios homens!

Aquela vez, contrariamente ao que se acostumara a fazer nos últimos anos,


Arthur fez questão de preparar pessoalmente os pelotões que iriam enfrentar os
Scotti. Porém, mal-humorado e irritadiço como se encontrava, transformou uma
exercitação simples e rotineira em manobras lentas e pesadas.

Lancelot e Bedwyr, com as forças esgotadas, duvidavam de seu sucesso.


Arthur percebeu e irritou-se ainda mais.

Projeto Revisoras 170


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Acham que não sei dirigir um pelotão? — Ele virou-se para Lancelot. —
Você, que costumava exercitá-los diariamente, não teria feito mais do que eu fiz!

— Posso falar francamente? Arthur olhou com desconfiança. — Sobre o quê?

Lancelot não se deixou intimidar.

— Pela primeira vez, desde que nos conhecemos, você está permitindo que
seus sentimentos pessoais interfiram em seu comando.

Os olhos de Arthur estreitaram-se perigosamente.

— Eu deveria castigá-lo por essa impertinência!

Lancelot adiantou-se e Bedwyr ergueu as mãos.

— Se há alguém aqui que precisa de um bom corretivo é minha irmã. Vejam


só o que ela fez a vocês dois! Lancelot age como se ela precisasse ser protegida contra
Arthur. Por quê? — Olhou para Arthur. — Não sei o que aconteceu, mas ela é sua
esposa e precisa comportar-se como tal!

Lancelot girou nos calcanhares e deixou a sala. Arthur suspirou.

— Lancelot tem razão. Deixei que meus problemas pessoais tomassem a


precedência — disse, sentindo-se culpado. Depois mudou bruscamente de assunto:
— Dê dois dias de folga aos homens. Eles merecem.

Guinevere observava os preparativos de longe. Quatro luas haviam se


passado desde que Arthur voltara para casa. As árvores estavam despidas de folhas e
as flores silvestres já não se abriam ao sol fraco das manhãs.

No dia da partida, Bedwyr abordou-a. Ela esperava pelo seu beijo de


despedida. Em vez disso ouviu palavras duras.

— Não sei o que aconteceu entre você e Arthur. Mas, seja o que for, está
prejudicando nossas tropas. Você percebe o que isso significa, irmã?

— O que se passa entre nós não é da conta de ninguém!

— É aí que você se engana. Seremos todos prejudicados, caso Arthur, ainda


cego pela cólera, tomar a decisão errada.

— Não é problema meu, Bedwyr.

— E se Lancelot não voltar para casa? Guinevere empalideceu.

— Ele... ele pode não voltar? Eu não sabia...

Projeto Revisoras 171


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Bedwyr agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a.

— Em que mundo você vive? Você é a esposa de Arthur, não de Lancelot. Se


não puder viver sem ele, peça o divórcio! Não sei por que o próprio Arthur ainda
não pensou nisso.

Guinevere ficou confusa. Divórcio? Arthur poderia declarar-se prejudicado


em seus direitos de marido, já que ela se recusava a recebê-lo.

Calaram-se porque ele vinha chegando.

— Tudo pronto, Bedwyr?

— Tudo pronto. Vim me despedir de minha irmã. — Ele beijou rapidamente o


rosto de Guinevere e partiu.

— Eu também vim me despedir de você, minha querida esposa. Embora não


seja do seu agrado, a despedida terá que ser pública. As tropas esperam ver sua
rainha desejar boa sorte ao marido que vai à guerra.

Guinevere baixou os olhos.

— Perdoe-me, Arthur. Fui rude demais com você, nos últimos tempos.

Ele surpreendeu-se.

— Então posso beijá-la sem o perigo de ser rejeitado?

— Naturalmente, Arthur. Você é o meu marido — disse Guinevere submissa.

— O que significa essa mudança brusca de comportamento?

Ela encontrou coragem para dizer:

— Você pretende se divorciar de mim?

— Divórcio? Do que você está falando? Você quer se divorciar?

— Não! Mas é que eu andei tão distante...

— Você é uma mulher difícil, Guinevere. Mas ainda prefiro ter você ao meu
lado.

— Eu não o tratei bem, desde a minha volta.

— Eu mereci. O que fiz foi indesculpável.

Guinevere aproximou-se mais e passou-lhe os braços em torno do pescoço.

— Ainda quer que eu seja sua rainha?

Projeto Revisoras 172


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Em resposta, Arthur apertou-a contra si e envolveu-a num grande abraço.

Fazia semanas que as tropas haviam partido. Cai estava servindo o jantar a
Guinevere, quando Cynric apareceu no corredor, acompanhado de sua guarda.

— Ele pede permissão para falar com milady — disse-lhe Cai, depois de ouvi-
lo.

Ela hesitou.

— Você ficará por perto?

— Basta bater na taça com a colher, que eu entrarei.

— Traga-o, então.

Ele chegou exibindo um belo sorriso.

— Posso sentar-me, senhora?

— Por favor, acomode-se.

— Quase todos os homens partiram. Vim oferecer-lhe meus serviços.

— Não sei se Arthur permitiria... Você compreende, é uma grande


responsabilidade tomar qualquer decisão na ausência dele.

— Não tentarei fugir, se é isso que teme. Não poderia, mesmo se pudesse. O
guarda tornou-se a minha sombra. — Antes que Guinevere tivesse tempo de
qualquer comentário, ele prosseguiu, ansioso: — Faria qualquer coisa... mesmo a
mais humilde.

— Vou ver o que posso fazer. Mas não lhe prometo nada. Os olhos dele
brilharam.

— Medraut já me disse que milady e muito bondosa.

— Conhece Medraut?

— Somos amigos, temos os mesmos gostos. Guinevere perguntou-se se Arthur


já sabia disso. Mas não fez comentário algum.

— Se não fosse pedir demais, gostaria de ajudar o sarraceno a cuidar dos


cavalos. Tenho a impressão de que ele iria gostar, agora que o capitão Lancelot
partiu.

— Você é um bom cavaleiro?

— Não tão bom quanto seu paladino. Mas quem é melhor do que ele?

Projeto Revisoras 173


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere sorriu.

— Lancelot é insuperável. — Dito isso e sem esperar resposta, bateu na taça


com a colher para chamar Cai, dando a entrevista por encerrada.

Arthur e suas tropas voltaram vitoriosos no início da primavera: quando o


crepúsculo já esfumava as formas. Tomou Guinevere pela mão e levou-a para o
quarto. Ficaram ainda um momento vendo a lua emergir do horizonte. Apareciam as
primeiras estrelas, as primeiras constelações se acendiam, como jóias profundamente
engastadas no azul profundo da noite. Ainda de mãos dadas, foram para a cama. Ele
a apertou nos braços e cobriu-lhe o rosto de beijos.

— Não tenha receio. Não vou magoá-la.

Guinevere confiava nele. Tinha certeza de que Arthur seria gentil e cuidadoso.
Estava escrito em seus olhos, enquanto a tocavam com ternura e em suas mãos,
enquanto se punham a acariciá-la, transmitindo calor e um desvelo infinito.

No dia seguinte, Lancelot apareceu no salão nobre. Enquanto tomavam a


refeição matinal, ele comentou:

— Palomides contou-me que Cynric o está ajudando a treinar os cavalos.

Arthur ergueu os olhos do prato.

— Tem uma explicação para isso, Guinevere?

Ela contou-lhes toda a história e finalizou com uma pergunta:

— Palomides está satisfeito com seu desempenho?

— Muito satisfeito. Cynric é um auxiliar cuidadoso e gosta de cavalos.

Estavam ainda falando sobre isso, quando um dos guardas do portão


apareceu no corredor acompanhando um velho alquebrado.

Lancelot fitou-o e empalideceu. Eric... a escolta de Elen! Por que viera de tão
longe?

— É melhor que me acompanhe, milorde — disse o guarda a Arthur.

— Este homem trouxe algo em sua barcaça que o senhor precisa ver.

Uma multidão silenciosa amontoava-se à beira do rio, quando Lancelot


obrigou-se a ir até lá. Pensava em Elen. Por que ela enviara o velho Eric a Camelot?

Projeto Revisoras 174


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Estacou quando viu a barcaça, incapaz de dar mais um passo. Elen, agora a
sombra do que fora, jazia vestida de branco, num ataúde aberto.

— Não, não pode ser — balbuciou, fraquejando e caindo de joelhos.

Elen, tão gentil, tão inocente... E quando Eric entregou-lhe um bilhete para que o
lesse, Lancelot passou-o para Guinevere. Não poderia... não se atreveria...

Ela sentiu a dor que o despedaçava e leu baixinho, somente para os seus
ouvidos:

Querido Galahad, quero que saiba que só amei a você, mesmo consciente de que você
jamais corresponderia ao meu amor. Amei-o demais e é disso que estou me punindo, dizendo-
lhe adeus para sempre. Tenho um pedido a lhe fazer. Se puder, e espero que possa, enterre-me
em Camelot, o lugar que eu esperava um dia conhecer. Da sua Elen

Guinevere entregou-o para Arthur.

— Leia, são palavras meigas e recolhidas. Recordaram-me os livros de orações


que eu lia em criança.

Arthur leu-o rapidamente e depois deu ordens para que o grupo se


dispersasse. A seguir, mandou chamar Bedwyr e Gwalchmai e pediu-lhes que
trouxessem uma padiola.

— Você gostava dela? — quis saber Guinevere.

Ainda de olhos fechados, Lancelot fez que sim.

— Se eu não amasse tanto você, era com ela que eu me casaria.

Arthur mordeu o lábio inferior e olhou para o outro lado. Nesse instante
Bedwyr e Gwalchmai chegaram com a padiola e depuseram nela a jovem morta.

— Levem-na à igreja — ordenou-lhes com voz incolor e o coração


comprimido.

Lancelot desapareceu durante uma semana. Quando voltou, estava magro


como Guinevere jamais o vira. Tinha os olhos fundos e a pele esticada sobre os ossos
do rosto.

— Preciso partir — disse a Arthur, enquanto selava um dos cavalos de


Palomides.

— Para onde?

— Para Astolat. Depois disso, não sei o que farei.

Projeto Revisoras 175


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Quando vai voltar?

Ele montou e deu uma volta com o cavalo.

— Quando tiverem me esquecido.

Morgana falou com Medraut, quando soube que Lancelot partira, pedindo-lhe
que a mantivesse informada sobre o destino do paladino. Já estava pronta para
executar seu plano. Assim, não ficou surpresa, quando viu o filho surgir galopando
em certa manhã de junho.

— É a sua oportunidade, mãe. Lancelot está meio enlouquecido. Partiu


sozinho para Astolat, e ninguém sabe por quê e nem para quê.

O rosto astuto de Morgana abriu-se num sorriso.

— Eu sei, eu vejo... o choque brutal... a desesperança, a revolta da juventude...


o triste fim. Pobre donzela dos lírios.

Ele foi para lá na esperança de uma absolvição que de nada lhe servirá. — Ela
tornou a sorrir, um sorriso irônico, desta vez. — Considere cumprida a nossa missão.

— Qual é exatamente o seu plano, mãe?

Ela foi buscar o bordado, de onde retirou uma agulha fina.

— Você não vê, mas há um pequeno buraco na ponta da agulha. Vou enchê-lo
de acônito. Quando eu o picar, ele perderá imediatamente a consciência. Accolon
poderá amarrá-lo sem susto. Ele não se debaterá.

— Acha que Lancelot se deixará apanhar assim tão facilmente?

— Realmente, Medraut. Acha que não sei o que faço?

— Está pensando em ficar com ele?

— Não, quero apenas fazê-lo meu refém. E como sei que Arthur virá procurá-
lo aqui, quando souber do ocorrido, vou levar Lancelot para um lugar onde ninguém
possa encontrá-lo. A masmorra de Maelgwin.

— Tenho uma idéia melhor. Meu amigo Cynric tem um lugar secreto para o
seu próprio uso. Está bem estocado de alimentos e bebidas porque pretendia usá-lo
como bordel.

O interesse de Morgana cresceu.

— Onde fica esse lugar?

Projeto Revisoras 176


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— No interior da floresta.

— Perfeito! Você me leva até lá? Quero ter certeza de que serve para a nossa
finalidade.

— Claro que sim. E depois, o que faço?

— Volte para Camelot e aguarde.

Morgana e Accolon procuraram Lancelot em todos os vilarejos da região.


Tinham ouvido falar num anônimo guerreiro de cabelos escuros que à menor
provocação desafiava o provocante a um duelo de espada: Então, já embriagado,
divertia-m com as prostitutas das tavernas.

— Ele bebe e, assim, todas lhe parecem Guinevere — observou Morgana. — E


há também o fato de que outra mulher morreu de amor por ele. Isso o deixou fora de
si. A tal ponto, que expia sua culpa destruindo-se.

— A cada homem sua maldição — murmurou Accolon. No dia seguinte,


Morgana viu-o sair de uma taverna, montar seu cavalo e tomar o caminho para
Astolat.

— Ótimo! Poderemos cercá-lo mais adiante. Lancelot só saberá que sou eu


quando for tarde demais. — Adiantou para Accolon, enquanto cobria a cabeça com
um capuz de traje de montaria.

Inesperadamente, o cavalo de Lancelot ergueu a cabeça e cheirou o vento.

— O que foi, garoto? — perguntou, puxando a espada. O cavalo respondeu


escavando o chão.

Prosseguiu, perscrutando as sombras que as árvores projetavam, mas não


pressentiu a ameaça de tocaia, dissimulada na sombra. Enquanto atravessava um
denso matagal de faias, viu a égua. Seu cavaleiro, uma mulher, estava sentada à beira
da estrada segurando a brida. Guardou a espada e desmontou.

— Posso ajudá-la, senhora?

Lancelot acordou com uma grande dor de cabeça. Tentou erguer-se, mas não
pôde. Estava com os pés e as mãos amarrados às quatro colunas de uma cama
confortável. A mente ainda enevoada pelos efeitos do narcótico, pensou se não fora
envolvido num jogo especial por alguma mulher apaixonada.

Mas estava completamente vestido. Haviam-lhe tirado apenas as botas.

Projeto Revisoras 177


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Olhou em volta. Onde quer que estivesse, o proprietário não poupara


despesas para tornar o lugar confortável. Um espesso tapete cobria o chão, e, diante
da lareira, um sofá para dois acolheria o casal que quisesse aquecer-se às suas
chamas. Até tapeçarias que cobriam as paredes representavam, em sua maioria,
cenas de amor e sexo. No teto, acima da cama, havia uma peça oval de estanho muito
polido, que o refletia. Pôs-se a rir, apesar da situação crítica em que se encontrava.
Seria interessante se...

Nesse instante a porta abriu-se e Morgana entrou.

— Você? Devia imaginar...

Ela avançou sorrindo e apontou para a peça de estanho.

— Artifício interessante, não acha?

Ele não fez caso do reparo e intimou-a:

— Por quê? Diga o porquê!

— Olhe à sua volta, Lancelot. Não é um lugar feito para o amor?

— Você não me quer, Morgana. Então diga logo o que pretende de mim.

Ela inclinou-se, com o rosto a poucos centímetros do dele.

— Posso vir a querê-lo. Afinal, você conseguiu enlouquecer Guinevere,


embora Arthur seja perfeitamente capaz de fazer a felicidade de qualquer mulher.

Ele ficou mudo e ela endireitou-se.

— Não vim aqui para isso — disse enquanto tirava do bolso uma garrafinha
cheia de um líquido onde mergulhou uma agulha muito fina.

— Essa droga irá torná-lo quase feliz.

— O que está fazendo? — ele gritou.

— Não se preocupe — ela disse, enquanto enfiava a agulha em sua pele. —


Isto é muito apreciado no leste, não lhe fará mal. Ao contrário, irá fazê-lo sonhar.
Talvez com Guinevere.

Da porta ainda gritou:

— Bons sonhos!

Projeto Revisoras 178


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Depois disso, Lancelot vivia como num sonho. Tinha consciência de que, de
vez em quando, Accolon entrava, desamarrava-o para que se cuidasse sozinho e
depois tornava a amarrá-lo.

Voltava então para seu estranho mundo, onde se sentia muito confortável. Às
vezes, as damas das tapeçarias vinham lhe fazer companhia. Outras, uma sombra se
recortava diante do retângulo da janela, depois outra e mais outra, a um impreciso
desfile de sombras que se pintavam à luz do luar. Em seu jardim, Elen ia e vinha em
meio aos sussurros dos lírios e das estrelas. Parecia feliz.

Ele também sentia-se feliz. Guinevere estava sempre a seu lado, naquele
quarto encantado, de jogos infinitos, e sua presença transmitia à noite um pouquinho
de seu mágico calor.

A mente de Lancelot começou a clarear aos poucos. Seus ouvidos estavam


mais apurados. Ouvia conversas que, lentamente, começavam a fazer sentido.

— Consegui que Maelgwin enviasse uma mensagem a Arthur com a espada


de Lancelot. Arthur concordou encontrar-se conosco amanhã à tarde, à beira da
floresta.

— Ele não irá sozinho.

— Não importa, Accolon. O que você tem que fazer é bem simples: desafiá-lo,
propor duelo, de modo que ele se veja obrigado a desembainhar a espada. Farei a
troca enquanto todos os olhos estiverem postos em você.

Na manhã seguinte, quando Accolon se preparou para amarrar as mãos de


um enfraquecido Lancelot, Morgana entrou no quarto.

— Espere, Accolon. Amarre-o apenas a uma das colunas. Vamos precisar da


cama.

Ela riu enquanto se despia e caía sobre a cama, com Accolon por cima dela.

Graças aos deuses por isso. Preciso segui-los, quando partirem. Arthur corre perigo,
pensou Lancelot, enquanto fingia estar ainda inconsciente.

Arthur leu o bilhete e passou-o a Guinevere.

— Parece um pesadelo. Mal termina um problema, aparece outro!

Projeto Revisoras 179


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere pôs-se a tremer. Morgana fizera de Lancelot seu refém e ameaçava


mantê-lo preso até que Arthur se dispusesse a torná-la sua consorte.

— Não pode ser verdade, Arthur. Lancelot jamais... Arthur ergueu a espada
que o mensageiro trouxera.

— É dele, não é?

Ela examinou-a e reconheceu o tradicional espiral dos druidas gravadas no


punho de ébano. Ganhara-a da mãe, ao ser admitido no exército de Arthur.

— E dele — admitiu. — Esse encontro... não é uma espécie de complô?

— Não há dúvidas. Mas não temos alternativa. Só os deuses sabem onde se


encontra Lancelot. Ele já teria escapado, se pudesse.

— Vou com você — ela anunciou.

— Nem pense nisso!

— Ele pode estar ferido, necessitado de cuidados.

— Levaremos um médico, Guinevere — falou secamente. Avisarei Cai para


que não a perca de vista. Ou prefere que eu a feche num quarto?

Arthur e seus séquitos esperavam a pouca distância da entrada da floresta.


Reinava o silêncio, mas todos mantinham os ouvidos aguçados ao menor ruído.

— Ali — apontou Gwalchmai de repente.

Morgana e Accolon estavam chegando. Avançaram até a comitiva e


estacaram.

— Que loucura é essa — começou Arthur. — Onde está Lancelot?

— Confinado em meus domínios. Tenho esse direito. Não sou sua consorte?

— Não é e jamais será!

Accolon aproximou-se.

— É um desafio? Aviso-o de que sou o paladino de Morgana e que lutarei até


a última gota de meu sangue para que ela consiga o que lhe cabe por direito. Se não
aceitar o desafio, matarei Lancelot.

— Você está me desafiando? — perguntou Arthur, ainda incrédulo.

— Morgana tem direito ao título.

Projeto Revisoras 180


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Então diga a arma que quer usar.

— Os punhos.

— Aqui?

— Aqui e agora!

Arthur passou Excalibur para Bedwyr e fez um gesto a seus homens para que
ficassem afastados.

Accolon passou sua espada junto com o manto para Morgana.

— Passe-me o cinto e a bainha, Arthur. Livre você poderá lutar mais à vontade
— sugeriu Morgana docemente.

Um brilho de revolta animou os olhos orgulhosos do rei. Não esquecera o


passado. As recordações ainda inundavam-lhe o cérebro, vividas e opressivas. Num
gesto de desdém, desafivelou o cinto com sua bainha e atirou-o ao chão.

Morgana recolheu-os e levou-os com os objetos de Accolon, junto a uma moita


que crescia à sombra das árvores. Depois cobriu tudo com o manto e sentou-se no
chão coberto de folhas.

Os dois adversários, moveram-se em círculo, estudando-se. Accolon atacou


enquanto Arthur se voltava, atingindo-o no ombro; Arthur revidou com um soco no
estômago que o mandou ao chão. Enquanto a luta se desenrolava, prendendo a aten-
ção de todos, Morgana procurou entre as folhas a bainha que fizera. Usando o manto
como escudo fez a troca, e escondeu a bainha de Arthur, com a intenção de recuperá-
la depois.

O estrépito de um cavalo solitário, que chegava da floresta, atraiu todos os


olhares. Arthur deu um passo para a frente e tropeçou numa raiz exposta. No mesmo
instante, Accolon caiu sobre ele e o atingiu com toda a força de seu braço.

Lancelot irrompeu do meio das árvores e viu Arthur caído ao solo. Sua mente
ainda confusa não conseguiu distinguir quem eram os assistentes. Num gesto
instintivo, ergueu a espada e foi ao encontro de Accolon, a lâmina penetrou em seu
peito. Enquanto Accolon caía, Arthur rolou para um lado e ergueu-se.

Lancelot reconheceu-o e embainhou a espada. Só então ouviu os gritos


selvagens de Morgana.

— Assassinos! Vocês mataram Accolon!

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Esse sangue está em suas mãos, Morgana. E de mais ninguém! — disse-lhe


Arthur, friamente. Enquanto ela soluçava, apanhou a bainha colocada junto à moita
e, automaticamente, tirou sua espada das mãos de Bedwyr e guardou-a.

— Leve-a, junto com Accolon, para Camelot — ordenou, enquanto jogava o


manto e a espada de Accolon a um de seus homens. Depois voltou-se para Lancelot.
— Está pronto para voltar para casa?

Lancelot assentiu.

— Encontrei a paz, mas acho que não... — não terminou a frase.

Tombou da sela, inconsciente.

Arthur ergueu-o e o colocou de novo sobre a sela. Ele estava pálido e tremia
muito.

— O que foi que fizeram com você, meu amigo?

— Deram-me algum tipo de droga... muito forte — Lancelot apoiou a cabeça


no pescoço do cavalo e fechou os olhos.

Arthur montou Valient, apanhou o outro animal pela brida e lentamente,


tomou o caminho de casa.

Enquanto prosseguiam a passo, Lancelot conseguiu entreabrir os olhos


enevoados e julgou ver um garoto aparecer por entre as árvores com a bainha de
Arthur. Mas devia ser um sonho, pois Arthur estava com sua espada embainhada. O
mundo tornou-se indistinto outra vez. Mergulhou no esquecimento.

Enquanto avançavam, o sol tombou atrás da floresta, mergulhando a estrada


em penumbra. O céu tornou-se cinzento e o vento pôs-se a soprar. Guinevere sentiu
um frio intenso, nesse momento, e o coração vazio e pesado. Era um mal-estar tão
alheio à sua natureza, que olhou ao redor, inquieta, perscrutando as sombras.

Então viu Arthur chegar atrás de seus familiares, conduzindo um cavalo pelas
rédeas. Sobre a sela havia um homem deitado de braços. Lancelot?

Correu ao encontro deles.

— Arthur!... Não, ele não pode estar...

Nesse instante, viu-o entreabrir os olhos com esforço. O alívio sobreveio de


repente. Tomou sua mão e acompanhou o passo do cavalo até a enfermaria. O
médico chegou e tirou-lhe a camisa.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não há ferimentos — disse, depois de examiná-lo. Então, ao erguer-lhe o


braço, viu as marcas. No outro, a mesma coisa. Examinou-as melhor e distinguiu
algo que fugia ao seu entendimento. Parece que ele foi picado por algo fino e
pontiagudo. Talvez uma agulha. Preciso examinar o restante do corpo para ver se há
outras.

Arthur colocou a mão sobre o ombro de Guinevere.

— É um exame íntimo. É melhor que você saia por um instante.

À tarde, Lancelot foi removido para seus próprios aposentos, já que o médico
não sabia como controlar os tremores. Desolada, Guinevere via-o lançar olhares
inquietos, como um animal acuado, a boca murmurante proferindo palavras e frases
sem nexo.

Guinevere estava à beira do desespero, quando Nimue chegou com Arthur...


Sem fazer comentários, sentou-se ao lado de Lancelot, tomou-lhe o braço e contou as
marcas.

— Quanto tempo você ficou fora, Lancelot?

Ele entreabriu os olhos e pareceu reconhecê-la. Falou devagar, com


dificuldade:

— A última... coisa de que me lembro... ao sair de Venta, encontrei na


estrada... uma mulher que tinha sido arremessada do cavalo. — Seus tremores
recomeçaram, mas ele continuou:

— Tudo ficou... confuso. Eu... eu apenas flutuei num mundo sem idéias.

Nimue olhou para Arthur.

— Morgana disse que era um extrato de sementes de papoula? A reação dele


parece-me semelhante a de uma jovem sacerdotisa que ingeriu uma quantidade
exagerada de cogumelos sagrados. O efeito vai persistir ainda por alguns dias e a
febre subir e baixar durante a noite. Cessará de todo, quando os primeiros clarões do
amanhecer tingirem o horizonte.

Guinevere sentou-se aos pés da cama e declarou.

— Vou ficar, Arthur.

Ele voltou-se para Nimue. Sentia o coração confranger-se de ciúme por deixá-
la a sós com Lancelot.

Projeto Revisoras 183


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Eu também ficarei — Nimue afirmou, em resposta ao seu mudo pedido.

Uma semana depois, Lancelot já estava em condições de alimentar-se sozinho.


Naquela noite, durante o jantar, lembrou-se da conversa de Morgana sobre a bainha
de Excalibur.

— Arthur, você está usando a mesma bainha? Arthur olhou-o com alguma
surpresa.

— Naturalmente! Foi um presente da Senhora do Lago. Por que não a usaria?


Ela é sagrada.

Enquanto Lancelot repetia a conversa que ouvira até onde podia lembrar,
Nimue levantou-se e foi tirar do gancho o cinto com sua bainha. Colocou-a sobre a
mesa e examinou-a detalhadamente, correndo os dedos pelas ornamentações
gravadas no couro macio.

— Esta bainha não é a da Senhora. Não sinto o poder sagrado.

Arthur empalideceu.

— Então foi por isso que Morgana planejou seu seqüestro, Lancelot. Um refém
era um artifício para que ela pudesse trocar a bainha por outra que não me desse
proteção durante as batalhas.

— Mas ela não levou a bainha consigo. Estava inconsciente, lembra-se? Talvez
o menino que eu vi a tenha deixado no lugar onde Morgana a escondeu.

No dia seguinte cavalgaram até o lugar do desafio, mas não encontraram


nada.

Capítulo XI

Medraut olhou para a mãe com ar de desalento. Seus olhos estavam tão cheios
de desânimo, que o coração de Morgana transbordou de preocupação e pena.

— O que foi, meu filho.

Projeto Revisoras 184


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ele revelou, amargo:

— Lancelot voltou. Não sei como faz, mas ele sempre acha uma maneira de
ficar perto da rainha!

Morgana recostou-se na cadeira e contraiu os lábios, considerando o que seu


filho acabava de dizer. Decorrido um instante sorriu, como se algo acabasse de lhe
ocorrer.

— Tive uma idéia... algo que talvez o ajude. — Dito isso e sem esperar
resposta, continuou:—Então o rei está começando a fraquejar.

Medraut riu.

— Ele, perder o vigor? É tão capaz quanto o mais jovem de seus homens!

— Concordo com você nesse ponto. Mas um rei, um Grande Rei, jamais se
permitiria a passar por marido traído!

— O que está querendo dizer, mãe?

— O que aconteceria se alguém encontrasse Lancelot na cama da rainha? Uma


tragédia, pois o rei não poderia furtar-se à evidência nem negar-se a expor os dois à
execração pública. Se não o fizesse, seria o mesmo que se colocar em xeque. O povo
não gostaria de vê-lo interpretar as leis à sua maneira e demonstraria desagrado. —
Morgana sorriu astutamente. — Mas isso é apenas uma hipótese. Conheço bem
Arthur. Ele iria perdoá-los.

Os olhos de Medraut brilharam compreensivamente. Morgana sacudiu-o


pelos ombros.

— Nesse caso, ele estaria perdido. Teria que renunciar. Em seus estatutos, os
reis menores admitem essa possibilidade.

— E se Arthur renunciar, o caminho ficaria livre para mim. O poder e as terras


seriam minhas.

— Antes disso, você precisa encontrar pessoas confiáveis, talvez até mesmo
amigas de Arthur, dispostas a surpreender os dois pombinhos e a testemunhar
contra eles. Esse é um ponto vital.

Naquele inverno, Lancelot resignou-se a ouvir Arthur planejar uma nova


campanha no Norte, onde Quintas Caracum ameaçava estabelecer-se numa fortaleza.

Projeto Revisoras 185


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

O homem era de fato um perigo e, para evitar problemas futuros, o rei decidira en-
frentá-lo.

A idéia era usar os jogos de primavera como disfarce. Quintas não imaginaria
que as tropas bretãs já estivessem prontas e aguardaria. Daquela vez, o elemento
surpresa funcionaria a favor de Arthur.

Os jogos tiveram início com um duelo de espada, o que deixou a assistência


excitada e ansiosa, pois os duelantes, Lancelot e Medraut, eram conhecidos como
inimigos íntimos e se defrontariam com toda a animosidade que um ódio mortal po-
dia inspirar.

Os juizes entraram e depois que as armas foram examinadas e julgadas


aceitáveis, cada um dos espadachins apanhou a sua e foi ocupar o seu lugar.
Cumprimentaram-se tocando as lâminas, como era o uso, rompendo o silêncio que se
instalara, com o retinido de suas armas. Medraut lutava animado pelo ódio. Lancelot,
de sua parte, não tinha dúvida de que venceria aquele pedante e que o mandaria de
volta à caserna derrotado.

Mediram-se cuidadosamente e enfrentaram-se com habilidade e precisão de


gestos. Medraut lutava animado pela esperança de conseguir os favores da rainha e,
durante algum tempo, conseguiu devolver os golpes do adversário.

Lancelot tirou Guinevere da mente e conservou os olhos cravados no


adversário. Gostou de ver sua testa perlar-se de suor. Era sinal de que ele não
demoraria a desistir. Mas ele não desistia, e, durante algum tempo, ainda conseguiu
aparar os golpes, mas não a revidá-los. Até que, esgotado, afrouxou o braço. Lancelot
aproveitou o momento e vibrou-lhe um golpe, atingindo-o no ombro.

— Sangue! — gritou o árbitro e a luta cessou.

Quando Arthur chegou, Medraut já estava sendo levado para fora da liça.

— O que aconteceu com ele? Parecia um louco!

— Não sei. Acho que Medraut me odeia — disse Lancelot, ainda sem fôlego.

O rosto de Arthur tornou-se ainda mais sombrio.

— O selvagem sempre emerge da escuridão que é o seu íntimo.

— Pode ser, Nos últimos tempos, ele mudou sua maneira de duelar. Sabe
guardar-se, mas seu estilo é agressivo demais.

Projeto Revisoras 186


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Hoje ele se portou como um idiota! — revoltou-se Arthur. Depois, fazendo


um gesto para que os jogos continuassem, completou. — Vou ver como está o braço
dele.

Guinevere esperava Lancelot com impaciência. Sua vontade era abraçá-lo


diante de todos. Mas logo pôs essa idéia de lado, faltava-lhe serenidade.

— Por que Medraut comportou-se tão agressivamente? E qual é o motivo do


ódio que ele sente por você?

— Ele sente ciúme. Está apaixonado por você. Sempre esteve.

— Impossível! O que ele sente por mim é apenas afeição. Como um filho por
sua mãe.

Lancelot esboçou um leve sorriso.

— Não é afeto. É amor, desejo, obsessão. Medraut não é mais um garoto. É


homem feito.

Arthur aproximava-se e Lancelot mudou de assunto.

— Como ele está?

— Vai sobreviver. Mas não poderá usar o braço por alguns meses. A lâmina
atingiu alguns músculos.

Lancelot ficou aborrecido.

— Não tive a intenção de feri-lo, Arthur. Lamento muito.

— Sei disso e vou pensar num modo de mantê-lo em atividade. Mas não
agora. Os jogos vão continuar.

As justas estavam para começar e todos foram ocupar seus lugares.

— Veja — disse Isolda a Guinevere. — Tristão vai enfrentar Agravaine.

Os dois cavaleiros estavam em posição, com as viseiras dos elmos fechados e


as lanças em riste. Aguardavam apenas que o arauto cumprisse o seu dever. Quando
as trombetas soaram, os cavaleiros lançaram-se um contra o outro a toda velocidade.

Na segunda passada, Agravaine quase conseguiu desalojar seu adversário,


mas Tristão reagiu instantaneamente e conseguiu manter-se na sela.

Isolda bateu palmas com entusiasmo.

— Ele é bom, não é?

Projeto Revisoras 187


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere forçou um sorriso. Sabia que Agravaine não gostava de perder e


que revidaria, No início da terceira passada, ele levou seu cavalo a galope pleno e
Tristão imitou-o. Guinevere sussurrou para Arthur:

— Estão fechando o círculo rápido demais. Agravaine vai matá-lo.

As lanças se chocaram com força. Os dois cavaleiros vacilaram na sela.


Agravaine perdeu os estribos, mas conseguiu recuperá-los. Em contrapartida, o
cavalo de Tristão caiu e ele não conseguiu furtar-se a seu peso.

Isolda soltou um grito de desespero e levantou-se. Guinevere puxou-a pelo


braço e obrigou-a a sentar-se.

— Deixe-me! — ela gritou.

— Seu marido está olhando para você. Contenha-se, por favor.

— Mais eu quero correr para ele. Você compreende, não é?

— Compreendo.

Sentada à mesa da sala dos mapas, Guinevere ouvia as queixas de Arthur.

— Tristão e Agravaine quebraram a perna, durante ajusta, e Medraut está com


o braço comprometido. Nenhum dos três poderá tomar parte da próxima campanha.
Apesar disso, não vou deixá-los aqui. A minha preocupação é com você. Guinevere.
Quem irá protegê-la?

— Cai estará aqui — ela o lembrou.

— De fato. Mas terá trabalho redobrado. — Arthur virou-se para Lancelot. —


Quero que você fique e a proteja.

Guinevere reteve a respiração.

— Bedwyr — ela o lembrou, aflita. — Nele você pode confiar.

— Sem dúvida. Mas não posso dispensá-lo. Bedwyr irá comandar o flanco
direito de meus cavalarianos, uma posição vital e ele sabe o que representa em
estratégia durante a batalha. Gwalchmai comandará o esquerdo e Gryflet ficará à
frente de sua antiga companhia, Lancelot.

Guinevere alarmou-se.

— Arthur, acha que estou correndo risco de vida?

Projeto Revisoras 188


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não sei, pode ser. Suspeito até de meu filho. E também de Agravaine, um
homem brutal e insensível.

— Compreendo seu dilema — concordou Lancelot. — E estou disposto a ficar


para proteger a rainha.

— Sei que a protegerá porque você a ama tanto quanto eu — disse Arthur com
ironia.

Lancelot foi polido, mas desdenhoso.

— Vá tranqüilo, Arthur. Não tivemos outras relações além daquela que você
permitiu.

Arthur aproveitou os primeiros dias ociosos da viagem ao Norte, para


restabelecer o antigo Correio de Revezamento dos romanos. Colocou, a cada vinte
milhas ao longo da rota, homens incumbidos de transmitir mensagens de uma
unidade à outra e tudo processou rapidamente. Os mensageiros iam e vinham,
cobrindo longas distâncias num único dia.

As notícias iniciais eram boas. As tropas de Arthur haviam sido bem recebidas
pela população e, naquele momento, aprontavam-se para abrir caminho através das
montanhas Pennine.

— Vai demorar mais do que Arthur imaginava — comentou Lancelot, quando


Guinevere contou-lhe as novidades. — Já faz seis semanas que estão em campanha.

— Você gostaria de estar ao lado dele? Ele foi evasivo.

— Qualquer homem treinado por Arthur sabe que seu dever é lutar. Mas... —
ele interrompeu-se. Estou ficando louco! Faz seis semanas que resisto à vontade de torná-la
nos braços...

Guinevere compreendeu os pensamentos dele e desviou a vista.

— Sinto-me tranqüila com você aqui. Especialmente por causa de Medraut,


que continua a me rondar.

Lancelot contraiu os lábios.

— Medraut representa problemas. Está sempre em companhia de gente como


ele, fomentando discórdias e fazendo amizades com pessoas de caráter duvidoso,
como o desse jovem saxão.

Projeto Revisoras 189


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Cynric é um homem sempre em alerta, esperando, procurando a


oportunidade certa.

— Ele é inteligente, não segue Medraut. Tenho a impressão de que o objetivo


dele é outro. E isso o torna duplamente perigoso.

Guinevere sorriu de repente. Um sorriso malicioso.

— Conheço alguém mais perigoso do que ele.

— Quem?

— Você sabe, não sabe?

— Sim, eu sei — ele murmurou enquanto pousava seus lábios sobre os dela.

Ela se desprendeu suavemente.

— Você prometeu a Arthur...

— Que não a tomaria se você não quisesse. Você quer?

— Eu... Não resistiria, se você me beijasse de novo. Ele apertou-a com força
contra seu peito.

— Então, meu amor, acho que está na hora de fazer algo mais prazeroso do
que conversar.

Mas não foram mais adiante. Um estrondo inesperado, como se algo tivesse
acabado de se quebrar, levou-os correndo para a porta.

Cai e Medraut estavam do lado de fora.

— O que aconteceu? — perguntou Guinevere, assustada. Medraut falou


primeiro:

— Eu vinha apenas pedir notícias de meu pai quando este senhor...

Cai ficou vermelho e cerrou os punhos.

— Basta, Medraut — disse Lancelot, aparecendo no vão. E para evitar


qualquer confronto futuro, colocou-o a par da situação. — Já que você parece tão
interessado em seu pai, irei sempre dar-lhe notícias. Pode ir.

Medraut permaneceu onde estava e Lancelot dispensou-o com um gesto de


mão. Depois interrogou Cai com o olhar.

— Eu o surpreendi com o ouvido colado à porta. E achei que devia fazer


algum ruído para que ele não ouvisse o que não era para ser ouvido.

Projeto Revisoras 190


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Obrigado, meu amigo.

Cai olhou-o diretamente nos olhos.

— Fiz isso por Guinevere — disse e depois retirou-se. Lancelot olhou para
Guinevere, confiante como sempre.

— Acharei um modo de ficarmos a sós num lugar onde ninguém venha nos
perturbar. — Ele sorriu. — Não sou desses que desistem facilmente.

A oportunidade apareceu uma semana depois, durante uma cavalgada?


Lancelot lembrou-se do abrigo de Cynric, onde Morgana o mantivera refém. Seu
coração inundou-se de alegria.

— Já sei para onde levar a minha rainha, a rainha de meu coração.

Tudo lhe parecia espetacular naquele dia. Nunca se sentira tão vivo, tão cheio
de esperança.

Avistaram o abrigo, uma hora depois de terem entrado no bosque de faias de


flores amarelas.

— É aqui — ele disse, lançando um olhar rápido à esquerda e à direita. Nada


se movia. Reinava a mais absoluta calma naqueles confins.

Desmontou e no mesmo instante ela estava em seus braços, apoiando-se,


arquejante, contra o seu corpo.

— Espere até ver o que há lá dentro.

Guinevere entrou e seus lábios se entreabriram, admirados.

— Surpresa? — ele perguntou.

— Completamente. Nunca vi nada tão espetacular!

Ele mostrou-lhe as tapeçarias e o espelho oval, de estanho polido.

— Gostaria de ver como somos, enquanto fazemos amor? Ela voltou-se,


subitamente envergonhada.

— Não sei se quero...

Mas Lancelot não se deteve. Despiu-se e aguardou. Guinevere estava vencida


e o sabia. Com delicado impudor, deitou-se ao seu lado e deixou-o tirar-lhe as roupas
até despi-la inteiramente. Depois abraçou-o.

— Olhe para cima — ele pediu, acariciando-a.

Projeto Revisoras 191


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— É uma loucura! É como se estivéssemos envoltos pela neblina...

— Uma neblina mágica, minha preciosa — ele sussurrou, puxando-a para si.

Seus corpos se amoldaram com naturalidade, comunicando-se com uma


linguagem só deles, suas línguas se tocaram, iniciando um jogo erótico, apaixonado.

Vivian, a Senhora do Lago estava morrendo. Sentada ao lado da cama. Nimue


banhava-lhe delicadamente o rosto com uma compressa embebida em essência de
mirra, para refrescá-la.

Era véspera do Solstício de Verão e o sol, no acaso, derramava-se sobre as


colinas. Mas, sobre o lago, já pairava pesadamente a névoa do entardecer. Em volta
da cama da Senhora as velas acesas emitiam uma luz suave. Fora, as sacerdotisas
esperavam a Canção da Passagem.

O Rito da Purificação começou e Nimue pôs-se a cantar docemente.

Vivian abriu lentamente os olhos e sorriu:

— Minha filha, reze para que eu me vá logo. Estou cansada. Quero ir em busca
de meu repouso.

Nimue sufocou um soluço.

— Por favor, não vá. Não estou pronta para ocupar o seu lugar.

A Senhora tomou-lhe a mão. Seus olhos enfraquecidos estavam cheios de


compaixão e sua voz não era mais do que um murmúrio:

— Preciso lhe revelar um segredo, minha filha. Não posso esperar mais. Já não
estarei aqui amanhã.

— Tente, Senhora. Mandei avisar Merlin. Ele chegará ao amanhecer.

— Ele já está a caminho. — A Senhora fez uma pausa, como se estivesse


recolhendo forças para dizer: — Você sabe por que foi a escolhida?

Nimue aproximou-se mais.

— Talvez porque eu tenha o dom da Visão.

— Não apenas por isso. Você e Argante são um presente do Grande Rito.

— Não compreendo... Sou filha de Uther e ele nunca tomou parte do Grande
Rito.

— Mas Ambrosios sim.

Projeto Revisoras 192


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Com quem? Quem era a Senhora naquela época? — Nimue pôs-se a olhá-la
com súbita compreensão. — Milady?

— Sim, era eu. — Vivian esboçou um leve sorriso. — Você é minha filha.
Minha e de Ambrosios.

— É minha mãe? — Nimue tomou-lhe a mão descarnada e apertou-a entre as


suas. — Por que não me disse antes? Poderíamos ter feito tantas coisas juntas...

— Fiquei na incerteza durante tanto tempo! Agora parece tudo tão fácil...

— Eu sou íntima de Argante. E ela vai me suceder...

— Ela é íntima também de Arthur?

— Sim, ele vem vê-la com freqüência. E a mim também — disse Nimue,
lembrando momentos de suas vidas, infinitamente delicados e preciosos.

— Estou a par dessa amizade. Não permita que a rainha interfira na soberania
do rei e que o derrube.

— Eu? Será Guinevere que irá derrubá-lo do trono! Vivian suspirou.

— Ninguém, a não ser a Deusa, poderia permitir que ela se apaixonasse por
Lancelot e que esse amor fosse tão forte a ponto de abalar o trono. — A Senhora fez
uma pequena pausa. Guinevere não queria casar-se com Arthur, lembra-se?

— Foi Merlin que disse há muitos anos.

— Ele tinha razão.

Nimue lembrou-se então da resposta que dera a Guinevere: Você tem os dois.
Um dia, entretanto, terá que escolher. A vida de Arthur depende disso. Sua Visão antevira o
que iria acontecer.

Merlin chegou pouco depois e Nimue correu para recebê-lo.

— Um mensageiro não podia ter chegado mais depressa — disse-lhe,


ajudando-o a tirar o manto com o capuz e, pela primeira vez, viu como seus cabelos
haviam embranquecido.

— Você acha que eu já não sabia que a hora da Senhora havia chegado?

— Nimue tomou-lhe as mãos entre as suas com ar implorante.

— Pode fazer alguma coisa? Talvez o poder de um arqui-druida somado ao


poder da Ilha Sagrada possam fazer com que ela se recupere.

Projeto Revisoras 193


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Nimue, você é sacerdotisa. Sabe muito bem que não há ninguém que possa
impedir que a Senhora parta para o seu repouso eterno.

Nimue engoliu as lágrimas.

— Entre rápido, a Senhora esta à sua espera.

Merlin sentou-se ao lado de Vivian e acariciou-lhe o rosto.

— Minha querida e velha amiga...

A voz chegou até a Senhora vinda da névoa, familiar, mas distante.

— Oh, Merlin sinto sempre tanto prazer com o toque de sua mão! É tão leve,
tão delicado...

Nimue chegou mais perto e inclinou-se para beijar-lhe o rosto.

— Que a sua jornada possa ser em paz e que encontre seu repouso.

Merlin fez com a cabeça um gesto de concordância.

— Pode ir preparar as outras sacerdotisas. Tomarei conta dela.

Nimue afastou-se e foi juntar-se ao semicírculo de sacerdotisas e de acólitos


que havia se formado do lado de fora do quarto. Enquanto todos se dirigiam para a
alta da colina, ergueu a voz e pôs-se a entoar o canto ritual da Passagem invocando
Rhiannon, a deusa que iria escoltar a Senhora durante sua longa viagem.

Naquela noite, a terra e os céus iriam se conjugar para que "Ela" fizesse sem
problemas a transição em paz. E assim poderia um dia voltar a um novo mundo. As
tochas enterradas no solo responderam ao seu apelo, emitindo uma chama alta e
bela. Imediatamente as estrelas tremeluziram.

O rosto de Nimue estava impregnado da mais intensa vida quando, ao olhar


para o alto, viu o dragão de fogo voar, o longo rabo iluminando o céu. Lentamente,
caiu de joelhos e tomou a cabeça entre as mãos.

Pouco depois, um toque gentil em seu ombro a fez erguê-la. Encontrou os


olhos dourados de Merlin fixos nela. Um corvo estava pousado em seu braço. A ave
a olhou também e então elevou silenciosamente as negras asas abertas de encontro ao
céu noturno.

Passado o instante de emoção e encantamento, Merlin passou-lhe um estojo de


couro.

Projeto Revisoras 194


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Nimue sabia o que ele continha. A pequena foice da Senhora, afiada dos dois
lados, com o punho em marfim esculpido com as imagens de uma jovem mulher
intercalada à de outra em linhas espiraladas, sugerindo a respiração do dragão: A
lâmina era tão polida que refletia a luz do fogo.

— Veja — disse Merlin, pegando a foice e movimentando-a, para que refletisse


ainda mais a luz. — Terra e fogo em perfeita harmonia.

Nimue assentiu.

— Foi lindo ver a alma da Senhora partir.

A aurora já tingia o horizonte, quando terminaram o ritual de lavar e vestir o


corpo da Senhora. Depuseram-no a seguir em um caixão de carvalho consagrado e
Merlin acompanhou, sozinho até o interior da caverna-cemitério. Ao voltar, ele trazia
no braço o manto azul da Senhora. Desdobrou-o e o estendeu para Nimue.

Ela deu um passo para trás.

— Não posso aceitar. Era Dela!

— Agora é você a alta sacerdotisa. A nova Senhora do Lago. — A voz de


Merlin tomara o timbre melodioso da voz de um bardo.

As outras sacerdotisas abaixaram as cabeças e Nimue deixou que ele a


envolvesse no manto. Enquanto o vestia, ela sentiu seu poder irradiante e ergueu os
braços, invocando os quatro elementos.

As sacerdotisas ajoelharam-se em círculo no solo consagrado e puseram-se a


orar.

Nimue sentou-se na cadeira da Senhora e pôs-se a recordar o passado. Tinha


dez anos, quando sua mãe a levara para a Ilha. Mas só foi conhecer a Senhora quatro
anos depois, quando já estava pronta para a Iniciação.

— Venha — ela lhe disse, tomando-a pela mão. — Não tenha medo. Foi a
Deusa que a escolheu.

Nimue não tinha idéia do que aquilo representava, mas queria desesperada-
mente saber se era verdade. Seguiram em procissão até o alto da colina. As
sacerdotisas formaram um círculo e a Senhora colocou-a no meio e tirou seu manto,
deixando-a nua.

Projeto Revisoras 195


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Um aroma de incenso flutuou no ar e pareceu-lhe natural erguer os braços e


girar. Relaxou, durante o ritual e, de olhos fechados, ouviu a música da noite. A visão
apareceu. Estava assistindo a uma cena de batalha. Um Senhor da Guerra... não, um
rei... alto, de ombros largos... a espada refulgindo à luz do sol. Estava se defrontando
com outro homem de cabelos escuros que tinha uma intrigante semelhança com...
com quem?

O rei foi ferido. Viu seus olhos voltarem na sua direção, antes de desabar ao
chão.

Gritou, quebrando o encantamento. A Senhora envolveu-a em seu manto. As


sacerdotisas formaram um círculo em torno delas...

— Que... foi que aconteceu — ela balbuciou, apoiando-se à Senhora.

— Diga-me o que viu.

— Um rei... ele caiu ao chão, ferido... A Senhora deixou escapar um suspiro de


alívio.

— Não morreu, então. Ainda há esperança.

— Quem é o rei, Senhora? — ousou perguntar.

— Seu nome é Arthur. Ele será a nossa esperança, irá impedir que a escuridão
tome conta destas terras.

E foi assim que o treinamento teve início. Os dez anos que se seguiram
constituíram-se num árduo aprendizado de rituais, conhecimento de ervas,
encantamentos.

Merlin apareceu no dia seguinte, quando Nimue chegava da Lagoa Sagrada.


Ela sentiu, mais do que viu, como ele envelhecera.

— Será bem vindo, Merlin, se quiser ficar — convidou, ao ver a bagagem que
ele trazia consigo.

— Obrigado, mas não posso. Estou de viagem marcada.

— Vai ao encontro de Arthur?

— Desta vez, não.

— E essas malas? Para onde vai, afinal?

— Ao encontro de Vivian. — Ele sorriu e havia uma suavidade em seus olhos


como ela nunca vira.

Projeto Revisoras 196


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Nimue estava cada vez mais perplexa.

— Vai tirar sua vida?

Mal as palavras lhe haviam saído da boca, Merlin a interrompeu.

— No mundo dos mundos, eu poderei ficar com Vivian. A rainha da fadas já


foi adiante para preparar meu caminho. Enquanto espero, ficarei em transe. Foi o que
ela me prometeu.

— Então foi por isso que o senhor a tolerou durante todos esses anos? A
intromissão, os comentários, os pareceres...

— Foi um pacto que fizemos há longo tempo, embora eu tenha me


arrependido depois, quando ela se foi.

— Para Cernunnos?

— Sim, o Caçador Selvagem, o Rei da Floresta.

— Amava Vivian tanto assim? Durante muito tempo eu pensei que o senhor
fosse... meu pai.

— Ah, se eu pudesse ter sido... Esse destino pertencia a Ambrosios. Você


precisava do sangue de um rei.

— Mas foi o senhor que me escolheu para o Grande Rito! Por quê? Porque
tinha o dom da Visão?

— Também por isso. Mas principalmente porque você conseguiria


compreender o significado de nossa missão.

— Explique melhor o que está querendo dizer.

— As energias femininas são opostas às masculinas. Quando se juntam se


contrabalançam, mas podem também se anular. Para um druida, isso é esbanjar a
energia vital, o "prana" que permite que as almas cresçam e se aprimorem.

— Todas as almas crescem e se aprimoram de acordo com as lições que


tiramos da vida.

— De fato, mas eu estou falando sobre o conhecimento da verdade, que


muitos confundem com a ilusão. É preciso fazer com que não aja dúvidas nem sobre
uma nem sobre outra!

— Ah, a elevação espiritual! Uma vez conhecida a Verdade não podemos mais
valer-nos de desculpas para justificar nossos erros. No entanto, o Grande Rito, que

Projeto Revisoras 197


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

faz a terra prosperar e crescer é o encontro dessas duas forças: a masculina e a femi -
nina. Nesse caso, elas não se anulam.

— Esse é o propósito, Nimue. O rito é apenas um símbolo, destinado à


população. Como você mesma disse, aqueles que não estão prontos para conhecer a
Verdade precisam de alguém que os guie. O próprio Cristo preparou-se em nossa
Ilha Sagrada. Ele pregava a paz e a tolerância.

Nimue olhou com surpresa.

— A meta de Arthur é também a paz e a tolerância!

— Ele é a nossa esperança. Sem ele, a liberdade desaparecerá, substituída pela


escuridão do fanatismo e da intolerância. O povo sofrerá, se ele não alcançar sua
meta.

— Mas Merlin, é por isso que o senhor deve ficar. Para ajudar Arthur a
alcançar sua meta!

— Agora, Arthur tem você. Meu trabalho já foi feito: abrir o caminho para
ambos.

— Não sei se terei forças suficientes para ajudá-lo. Ao mesmo tempo, não
gosto de ficar longe dele. Arthur é uma alma solitária.

— Você é uma pessoa diferente, Nimue. Poderá manter-se longe dos prazeres
primitivos. O treinamento que recebeu aqui será suficiente para sustentá-la.

— É o que vou procurar fazer. Sou sacerdotisa, em primeiro lugar! Arthur


sempre me respeitou, mais eu gostaria de encontrar um modo de ajudá-lo a suportar
a situação que Guinevere criou.

— Não se preocupe. Ainda há esperança.

Nimue perguntou-se até quando Arthur, poderia ainda suportar tal situação.

— Eu avisei Arthur — continuou Merlin. — Pedi que não se casasse com ela.
Mas ele não me ouviu, preferiu tomá-la para si. E deu no que deu. Se ao menos fosse
possível amar sem causar dano...

Nimue suspirou fundo.

— Arthur está num dilema. Ama Guinevere e gosta de Lancelot. E ela ama os
dois. Os três estão unidos por uma força indestrutível. Só espero que isso não leve
Arthur à ruína, contrariando as suas mais profundas convicções.

Projeto Revisoras 198


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Já chegou a minha hora — anunciou Merlin.

— Não posso convencê-lo a ficar?

— Não, Nimue. — Ele passou-lhe um punhado de avelãs. — Eu sempre


aconselhei Arthur a comê-las. Elas me tornaram mais sábios. Talvez façam o mesmo
por você. — Ele apontou para o Lago Sagrado. — Acompanhe-me, desta vez.

Recatadamente, ela o seguiu ao longo da trilha até a margem onde se


encontrava a barcaça. Ajudou-o a subir e deu-lhe um beijo no rosto.

— Adeus — murmurou e acompanhou-o com os olhos até vê-lo desaparecer


na neblina.

— Eu te amo, princesinha.

Capítulo XII

Guinevere e Lancelot foram os primeiros a saber que Bedwyr havia sido


ferido. Receberam a notícia do mensageiro, que chegara a galope, no instante em que
se preparavam para almoçar.

— Muito ferido? — ela perguntou, chorosa.

—Ele vai sobreviver, milady, mas seu braço esquerdo está... inutilizado.

Guinevere cambaleou e Lancelot sustentou-a pela cintura.

— Vai voltar para casa?

— Não, milady. Ele irá permanecer em Luguvalium.

Guinevere enxugou as lágrimas que teimavam em escorrer pelo rosto.

— Preferia tê-lo aqui, ao nosso lado. Ficaria aos cuidados de Nimue.

— O rei sugeriu essa possibilidade, mas Bedwyr descartou-a — disse o


mensageiro. — Seria uma longa jornada e ele quer retornar logo ao campo de
batalha.

Projeto Revisoras 199


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere sorriu por entre as lágrimas.

— Bedwyr é mais teimoso do que eu.

— Tem outras notícias para nos dar? — perguntou Lancelot ao mensageiro.

— O rei enviou Gwalchmai a parlamentar com Quintas. O saxão usa de todos


os ardis para retardar as negociações. Até agora, isso é tudo que sei.

— Pode ir, então.

Depois que ele se foi, Lancelot levantou-se e começou a andar de um lado para
o outro acariciando o punho da espada.

Guinevere olhava-o de longe, já imaginando que sua vontade era partir.

— Quer juntar-se às forças de Arthur? — perguntou-lhe. Ele estacou e ficou


um instante pensativo. Lá havia ação em vez de conversas, fatos em vez de planos. —
Tentador, mas impossível. Medraut e Agravaine estão ainda se recuperando,
segundo dizem. Cai não pode tomar conta de tudo sozinho.

— Estou interrompendo? — disse uma voz do corredor.

Voltaram-se para ele a um só tempo.

— Medraut? O que você quer? — perguntou Guinevere.

— Queria saber as últimas notícias que o mensageiro trouxe.

— Bedwyr foi ferido — ela disse, as lágrimas voltando-lhe aos olhos. — Muito
ferido, segundo o mensageiro.

— Sinto muito, milady. Lancelot olhou-o fixamente.

— Você está sempre ansioso em relação ao campo de batalha. Mas não


demonstra o menor interesse em lutar. Por quê?

Medraut fechou os punhos.

— Tenho muita vontade de lutar, mas como comandante de minhas próprias


tropas.

— Não sei de que tropas está falando!

— Talvez porque você esteja mais interessado em ficar ao lado da rainha do


que no campo de treinamento.

Aquilo se aproximava muito da verdade. Irritado, Lancelot encheu uma taça


de vinho e tomou de um só gole.

Projeto Revisoras 200


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Um mês depois, Arthur pediu reforços. Mas, restavam apenas alguns, cerca de
vinte, contando Cai e Gareth.

— Não sinto a menor vontade de responder ao apelo de Arthur — Lancelot


confessou. — Receio por Camelot. Quem ficaria aqui para defendê-lo?

— Há ainda muita gente por aqui. O forte está sendo bem guardado —
Guinevere retrucou.

— Nesse ponto estou de acordo. Há muita gente, mas de que tipo? Confiáveis,
leais ao rei? Muitos ainda não lutaram ao lado de Arthur!

— Não é você que os está treinando? Deve conhecê-los bem.

— Não gostam de mim. São leais a Medraut.

— Medraut? O que tem Medraut a ver com isso? — ela perguntou, surpresa.

Lancelot foi evasivo.

— Parece que ele se decidiu a lutar. Anda dizendo por aí que o faz porque é o
herdeiro do rei.

—Se isso viesse mesmo a acontecer, quem o seguiria? Lancelot tomou-a pela
mão.

— Muitos. Venha ver.

Subiram apressados a escadaria das muralhas. Ao chegarem no alto,


debruçaram-se sobre o parapeito. Embaixo, no imenso pátio de manobras, havia um
pequeno exército de cerca de cem homens. Todos montados em seus cavalos.

Guinevere deixou escapar um som estrangulado.

— Há quanto tempo isso vem acontecendo? Por que não soubemos há mais
tempo?

— O recrutamento e as manobras apenas começaram. Medraut os treina em


grupos de dez, após o jantar. Depois os leva para as prostitutas. E paga a conta.

— Dinheiro de Morgana, com certeza!

Guinevere tornou a olhá-los. Alguns deles eram bem jovens. Ela poderia ver a
esperança espelhada em seus rostos, pelo modo como riam e aplaudiam aquele
príncipe que se parecia tanto com eles.

— Você o interrogou sobre isso?

Projeto Revisoras 201


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Fiz uma tentativa. Ele alegou que os está treinando para que defendam o
forte.

— Você não acreditou, não é?

— Daria mais crédito à palavra de um saxão do que à dele. Guinevere recuou


perplexa.

— Vamos voltar. Já vimos o suficiente para saber que Medraut colocou uma
nova cruz às nossas costas.

— São costas fortes, Guinevere. Mais fortes do que supõe.

— O que torna as coisas ainda piores é que Arthur não está. Pelas notícias que
enviou, ainda está preso no desfiladeiro.

Ao chegarem ao hall, foram diretamente para a sala dos mapas.

— Não sei o que fazer. A traição de Medraut abalou-me os nervos. Por que
não manda uma carta para Arthur e não lhe conta o que está acontecendo?

— Arthur confia em mim, deu-me amplos poderes. Se eu lhe contasse o que


está acontecendo, seria como pedir-lhe que volte para casa porque seu filho está se
rebelando e eu não sei como controlá-lo.

— Está aborrecido?

— Aborrecido, não. Frustrado.

Pouco antes do solstício de inverno chegou uma mensagem. As notícias eram


boas e más. Arthur conseguira atravessar o desfiladeiro, mas a um preço alto demais.
A vida de Gaheris.

Gwalchmai retornara da conferência com os saxões com o seguinte recado:


Quintas só negociaria com Arthur e ninguém mais. Quintas prometera livre
passagem, e o rei entregou o comando a Gaheris. Mas tudo não passava de uni
engodo. Quintas queria apenas ganhar tempo para reunir suas tropas desmanteladas.
Quando conseguiu, deu ordens para avançar. Os saxões que formavam os centros
das tropas foram os primeiros a se mover, desferindo golpes com suas espadas e foi-
ces. Gaheris se preparava para executar a ordem de Arthur, quando foi abatido sem
que pudesse alcançar as vanguardas.

Quando soube, Gareth caiu sem sentidos aos pés da rainha, o rosto moreno de
Agravaine tornou-se mais escuro e Medraut afastou-se, acabrunhado.

Projeto Revisoras 202


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Lancelot bateu com o punho na mesa.

— Eu devia estar lá para ajudar Arthur!

— Por que não vai? — disse-lhe Guinevere mansamente. — Eu posso voltar


para o convento. Lá, estarei a salvo.

— Eu sei, mas há Medraut e Agravaine. Sinto com todas as fibras de meu ser,
que eles estão tramando alguma coisa!

Sentada junto à janela do quarto, Guinevere esperava-o, o coração batendo


forte. Se isso era amor, por que doía tanto? Por que não lhe trazia felicidade e alegria?

Olhou para a cama que estava feita com lençóis de linho, a doce fragrância das
lâmpadas a óleo pairava no ar, assim como a sua luz discreta. Banhara-se em água
aromatizada e deixara seus cabelos secarem naturalmente. Estava pronta para ani-
nhar-se nos braços de Lancelot.

Então ouviu um leve ruído de passos no corredor e soube que era ele. Sorriu,
ao pensar que iriam passar a noite juntos. Seria delicioso.

Ele também entrou sorrindo. Tirou o cinto e a espada e pendurou-os junto à


porta. Quando acabou de despir-se, deitou-se ao lado dela.

— Por que tanta roupa? — perguntou, tirando seu manto e depois a camisola
de fina seda entremeada de rendas.

Os seios brancos, a leve depressão no ventre que terminava em retângulo


dourado... Aqueles ombros divinos e o corpo perfeito e perfumado como um riacho
correndo entre flores...

Guinevere flutuava naquele mundo insuportavelmente excitante, quando


ouviu algo movimentar-se no corredor. Não soube porque pensou naquela furtiva
aproximação como se fosse uma coisa diferente. Só um homem ou uma mulher po-
deria subir uma escada. No entanto, ela sentiu que era como se um animal estivesse
se movendo para matar. A escada tremia sem cessar. Devia ter muitos, um
verdadeiro tropel.

A seguir, houve o som retumbante de um machado na porta de madeira e um


quadrado de luz invadiu o quarto. Guinevere puxou instintivamente as cobertas e
Lancelot procurou inutilmente a espada que deixara junto à porta que acabava de
abrir-se.

Projeto Revisoras 203


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Lanternas moveram-se em círculo e Guinevere pôde distinguir os olhos


horrorizados de Cai e de Gareth. E os triunfantes de Medraut. Atrás dele um grupo
de jovens recrutas, entre os quais Cynric... O que fazia ele ali?

Jamais conseguiu lembrar o que aconteceu a seguir. Foi tudo tão absurdo e tão
rápido! Alguém a amarrava à coluna da cama, enquanto Lancelot era arrastado para
o corredor... Fizera uma tentativa de soltar-se, mas Agravaine batera-lhe no rosto,
primeiro de um lado e depois do outro, brutalmente.

— Não lhe faça mal! — Medraut gritara. — Quero-a inteira para mim!

Depois disso não ouvira mais nada. Caíra no mundo da in-consciência e do


esquecimento.

Ao recobrar os sentidos, viu Cynric diante de si. Ele a fitava com expressão de
pena e horror.

— Não, Cynric. Você não — implorou. Ele cobriu-a com o lençol.

— Não gosto deste tipo de divertimentos.

— E Lancelot?

— Irá morrer feliz. Esteve com milady nos braços.

— Salve-o, Cynric. Ele precisa viver para contar a Arthur o que aconteceu.

— Primeiro milady. Depois verei o que posso fazer.

— Salve-o! — ela insistiu. — Mesmo a custa de meu sacrifício.

Os olhos azuis encontraram os dela.

— Espero um dia encontrar uma mulher que saiba amar como milady ama
Lancelot. Verei o que posso fazer por ele. — Ele olhou para o guarda que Medraut
postara à porta do quarto e sussurrou: — Terei que agir como um homem dominado
pelo desejo. — E então beijou-a com ardor.

— Chega! — gritou o guarda da porta que entrou e puxou Cynric pela manga.
— Primeiro Medraut depois os outros. Essa foi a ordem que recebi.

Cynric deu-lhe uma batidinha nas costas.

— Manassen, você sabe que Medraut é como um irmão para mim.


Compartilhamos dos mesmos gostos e... das mesmas mulheres.

Manassen sorriu e ele aproveitou.

Projeto Revisoras 204


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Venha ver como estão os pulsos da rainha. Arroxeados.

Agravaine apertou demais as cordas. Ajude-me a afrouxá-las um pouco.

O guarda pareceu confuso e Cynric insistiu.

— Suficiente apenas para não prejudicar a circulação. Você não quer que ela
morra, quer? Medraut o mataria.

Manassen afrouxou uma das cordas e Cynric a outra, mas de modo a que
rainha pudesse libertar-se. Depois ao sair, recolheu as roupas de Lancelot.

— Ele não irá precisar delas, no lugar para onde vai. — Observou Manassen,
mal-humorado.

—Até os saxões não negam a um homem o direito de morrer vestido — disse-


lhe Cynric, com ar de reprovação. O guarda ficou embaraçado e olhou para
Guinevere.

— Por favor — ela o encorajou, mostrando irritação. — Mostre a esse jovem


saxão que, aqui em Camelot, não somos bárbaros.

Manassen assentiu e Cynric inclinou-se diante de Guinevere.

— Até breve, milady. Foi um grande prazer conhecê-la. Vou partir para as
terras de meu pai.

Lancelot jazia nu no chão frio de pedra da masmorra, fingindo estar


inconsciente. Medraut estava claramente louco e ele precisava de tempo para pensar.
Sentia uma raiva intensa de sua própria estupidez.

Nesse instante, a chave girou duas vezes na fechadura e a porta da cela abriu-
se. Cynric entrou com suas roupas e jogou-as no canto escuro da cela.

— Vista-se, mas não agora. Espere até que as coisas se acalmem.

— E Medraut? — perguntou-lhe Lancelot. — Sabe que você veio?

— Medraut não tem noção de mais nada. Está louco!

— Foi o que pensei, ao ouvi-lo falar com voz de criança.

— Não foi fácil, mas o convenci a esperar até que Arthur chegasse, antes de
tomar qualquer atitude. Ele acha que o rei irá expulsar a esposa adúltera e que, então,
ele irá casar-se com ela.

A chave tornou a girar e a porta abriu-se para dar passagem a Medraut.

Projeto Revisoras 205


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Acho... acho que posso esperar a volta de Arthur — ele tornou a dizer, sem
olhar para Lancelot.

— Ótimo! É uma decisão sábia — apoiou Cynric. — Vá procurar seus


soldados. Estão à espera de suas ordens. Não é você que está protegendo Camelot?

— Encarreguei Agravaine.

— Vá lhe dizer que decidiu proteger Guinevere dos outros, porque resolveu
torná-la sua esposa. Eu ficarei aqui, de guarda. Você sabe que não morro de amores
por Lancelot.

Medraut lançou um olhar triunfante a Lancelot, que continuava imóvel e,


lentamente caminhou para a porta. De lá voltou-se.

— Não se esqueça, Cynric, de que há outros guardas postados do lado de fora


do cárcere.

— Não esquecerei.

— Lancelot esperou até ouvir os passos de Medraut se distanciarem para


então vestir-se.

— E Guinevere?

Cynric explicou-lhe rapidamente como estavam as coisas e Lancelot


agradeceu-lhe.

— Eu me enganei em relação a você. Devo-lhe as nossas vidas.

— Não pude dizer não à nossa rainha. — Cynric olhou para Lancelot quase
com simpatia. — Você é um homem de sorte. Ela é uma mulher sem igual.

— Eu sei — disse Lancelot mansamente. — É por isso que a amo tanto.

Nimue acordou ao amanhecer em sobressalto.

Camelot corre perigo. Alguém já está a caminho de Avalon! Sonhara com isto certa
vez na clareira. Agora, seu sonho se transformava em realidade.

Abriu a grande canastra onde guardava suas roupas e retirou um hábito e um


manto de monge. Eram bens preciosos, mas o tempo urgia. Não podia perder-se em
considerações. Vestiu o hábito sobre a camisola e dobrou o manto sobre o braço.

Quando Gareth desceu a ladeira que conduzia ao lago, já a encontrou à sua


espera.

Projeto Revisoras 206


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Senhora... — ele murmurou, ajoelhando-se e beijando-lhe a fímbria do


hábito. — Medraut surpreendeu Lancelot dormindo ao lado de Guinevere. No
mesmo quarto, na mesma cama.

Nimue sentiu o frio do medo gelar suas entranhas.

A Roda está girando. É o começo do fim de Camelot.

Como um passe de mágica, Barinthus apareceu com dois cavalos descansados.


Passou as rédeas de um deles a Gareth e as do outro para Nimue.

— Vamos; não temos tempo a perder — ela o incitou. — Onde os dois estão?
Você sabe?

— Não, senhora. Durante a confusão, vi alguém golpear Lancelot com o


punho da espada e depois levá-lo inconsciente para algum lugar. Talvez o cárcere.
Quando eu saí em busca de auxílio, Guinevere estava ainda na cama.

Camelot dormitava ao sol do meio-dia, quando um monge e a irmã de


caridade aproximaram-se do portão. O guarda fez sinal para que entrassem sem ao
menos olhá-los. Mas Cai abordou-os no pátio.

— Sejam bem-vindos, amigos do Senhor Deus — disse em voz alta, para que o
guarda pudesse ouvi-los. Temos dois prisioneiros que precisam de ajuda espiritual.
Por ali, senhores — completou, apontando a porta da masmorra.

Um dos guardas olhou-os com suspeita.

— Nenhum dos dois é cristão!

— Somos religiosos. Permita-nos cumprirmos o nosso dever. O guarda olhou


para o colega da guarita, que encolheu os ombros.

— Não vejo nenhum perigo nisso.

— Podem ir, mas não demorem.

Aquele instante de desatenção foi o sinal que Nimue aguardava para acionar o
seu plano. Adiantou-se rápida para a cela que julgou ser a cela de Lancelot. Era, e o
monge, que a seguia com a cabeça baixa e as mãos escondidas nas amplas mangas do
manto, passou-lhe ocultamente uma adaga, que ela, por sua vez, deslizou para as
mãos de Lancelot. Só então o abençoou.

Ele ajoelhou-se dizendo:

— Obrigada, Irmã.

Projeto Revisoras 207


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Ela se pôs a entoar uma litânia: Jubilate deo... Salvi nosfac, Domine...

Instintivamente, o guarda da cela abaixou a cabeça e Cynric, que aguardava as


sombras da noite para partir, passou-lhe a lâmina pelo pescoço, amparando-o
enquanto ele caía. Lancelot tirou-lhe as chaves do bolso e abriu a porta.

Gareth tirou imediatamente o manto e jogou-o sobre suas costas.

— Vão depressa. O tempo é curto.

— Livre-se antes do guarda do pátio. Ponha-o para dormir com o da guarita


— lembrou Lancelot.

Com o caminho livre, Nimue orientou:

— Vamos sair daqui caminhando lentamente, como se fôssemos realmente


dois religiosos. — Depois voltou-se para Cynric: — Diga a seu pai que traga a sua
gente. Precisamos de ajuda. Seja ela qual for.

Cynric ajoelhou-se diante dela.

— Senhora, o povo de meu pai está pronto e a seu dispor.

Nimue abençoou-o e acompanhou Lancelot. A travessia do palácio foi


penosamente lenta. Tinham a impressão de que mil olhos os fitavam de longe,
acompanhando-os.

— Mais devagar, Lancelot. Lembre-se de que é um monge. Abaixe um pouco


mais a cabeça.

Uma vez diante da escadaria, estacaram. Um único guarda estava postado à


porta do grande hall.

— Tomarei conta dele — sussurrou Lancelot.

— Não, deixe isso comigo. Acertarei tudo, com o poder da Deusa.

No portão, Lancelot permanecia ao lado de Cai olhando nervosamente para os


lados. Finalmente Nimue chegou de cabeça baixa e com o capuz escondendo-lhe os
olhos.

— Como está Guinevere? Muito machucada? Pode andar?

Uma pequena mão macia pousou sobre a dele. Ergueu os olhos e viu os olhos
verdes, fixos nos dele.

— Graças aos deuses — murmurou, com um grande suspiro. — E Nimue?

Projeto Revisoras 208


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Ela virá em seguida. Suas ordens são para que saiamos daqui caminhando
lentamente e demonstrando grande piedade.

— A piedade não é meu forte.

— Então aprenda a cultivá-la — disse Cai duramente. A seguir, mais calmo


continuou: — Leve Guinevere para a ilha e depois vá ao encontro de Arthur. Eu
tomarei conta de Camelot... enquanto puder.

Assustada, Nimue correu para a janela. Havia uma grande agitação no pátio.
Soldados iam e vinham, ditando ordens e Medraut corria de um lado para o outro,
feito um louco. A cela aberta sem o prisioneiro e os dois guardas mortos que já
haviam sido descobertos, e ninguém tinha a menor idéia do que fazer.

Rapidamente, ela desceu as escadas desertas e foi sentar-se no salão ao lado de


Cai. Medraut chegou em seguida e franziu a testa, com ar de desagrado, ao vê-los
juntos.

— Onde está Guinevere? — foi logo perguntando. Cai respondeu com calma:

— Como posso saber? Não sou seu guarda. Você próprio impediu que eu me
aproximasse dela. Lembra-se?

— Queria saber quem urdiu essa trama odiosa — ele rugiu, fechando os
punhos. — Irá pagar com a vida!

Dito isso, ele olhou para Nimue.

— O que faz aqui?

— Guinevere mandou me chamar.

— Para quê?

— Não sei. Quando cheguei, não a encontrei. Medraut fitou-os com olhos
respeitosos.

— Vocês dois têm muito que nos explicar. E, por Deus, é o que farão, antes
que o dia termine!

Nimue olhou para Cai que parecia indiferente, embora sua mão estivesse
pousada sobre o punho da espada.

— Quando Arthur voltar, tudo ficará bem — ela ousou dizer. Um pouco da
loucura escapou dos olhos de Medraut, enquanto a olhava fixamente.

Projeto Revisoras 209


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Vou precisar de alguém para substituir Guinevere. Gostaria de ser a minha


convidada?

— Bem, eu... — começou Nimue, tomada de um medo irracional.

A luz da vingança brilhou novamente nos olhos alucinados de Medraut.

— Guardas, prendam-na!

Em vão. Nimue procurou expandir sua aura protetora. Tudo o que conseguiu
foi um leve resplendor, suficiente apenas para que os dois guardas hesitassem.

Cai já ia puxar a espada, quando ela disse mansamente:

— Não, não é necessário. Eu vou ficar.

— De boa-vontade? Fará o que eu mandar? — Medraut insistiu.

— Sim, farei de boa-vontade o que você mandar. Medraut sorriu


diabolicamente.

— Nunca tive o prazer de desfrutar uma sacerdotisa. Espero que milady faça
disso, um momento encantador e inesquecível.

Nimue tornou a aparecer tal qual era com suas noviças: serena e
autoconfiante.

— Isso é algo que eu não posso prometer.

O sol brilhava com todo o seu esplendor no céu de um azul profundo, quando
Lancelot e Guinevere chegaram à margem do lago. Desmontaram rapidamente e
correram para os braços um do outro. E naquele instante de intimidade real e
profunda, ele procurou acalmar-lhe os receios.

— Você vai estar sempre comigo, meu amor.

Palavras doces, bálsamo suave, palavras que-nada mais significavam senão


adeus... Guinevere abraçou-o com força.

— Adeus, meu amor — ela murmurou, afastando-se dele. Barinthus já se


aproximava coma barcaça.

— Adeus, não. Até breve! — ele ainda gritou.

— Você deve estar louco, Medraut! Absolutamente louco! — gritou Morgana e


depois deu-lhe uma bofetada.

Projeto Revisoras 210


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Foi você mesma que me disse para surpreendê-los juntos... — ele lembrou-a
com voz chorosa, como uma criança.

— Sim, disse. Mas quando Arthur estivesse por perto. Ele não poderia negar o
fato. — Ela parou de andar e fitou-o. — O que você pretendia fazer, portando-se
dessa maneira?

Medraut não respondeu e Morgana imediatamente compreendeu o motivo.

— Você a teve?

— Ainda não tive tempo. Não compreendo por que isso a perturba tanto.

— Porque Arthur o mataria, se soubesse que você tomou sua esposa à força!

— Nesse caso, ele teria que matar também Lancelot.

— Não seja idiota, Medraut! Duvido que Lancelot se comporte com ela como
se comportaria com uma rameira. Ele a adora! E Arthur sabe disso.

— Se sabe, por que não toma alguma medida?

— Não sei. Tenho a impressão de que, nesse caso, ambos violaram seus
próprios códigos de honra. Por outro lado...

Medraut olhou-a e notou que ela parecia ausente, como se uma visão lhe
estivesse passando diante dos olhos. Mas logo voltou a si.

— Por outro lado, abriu-se uma porta para que você consiga a liderança. E,
com um pouco de sorte, talvez o trono. Arthur terá que lutar muito para permanecer
nele, agora que Lancelot partiu. — Morgana riu. — E para onde você acha que ele
foi?

— Talvez para Benoic. Quem mais a não ser seu pai, lhe daria abrigo? Ele não
se atreveria a encarar Arthur, depois do que fez!

— Pois é exatamente isso o que ele fará. Esse é seu charme. Ele nunca
escondeu de Arthur seu amor por Guinevere.

— Ele não poderá jamais voltar para Camelot — teimou Medraut. — Agora
são os meus homens que comandam tudo.

— Não se engane, Arthur tornará a Camelot. Você controla pouco menos de


cem homens e ele uma corte completa. Acho que é você que terá de ir embora. —
Morgana suspirou, desconsolada. — Oh, minhas esperanças, meus sonhos... perdidos
para sempre porque você se encantou por aquela prostituta!

Projeto Revisoras 211


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Nem tudo está perdido. Nimue está em meu poder. Morgana empalideceu.

— Seu poder? Não compreendo.

— Retive-a por precaução. Quero que ela venha aquecer minha cama.

— E ela aceitou?

— Só concordou porque Cai foi ferido. Quer cuidar dele.

— Então, você a obrigou a isso! — concluiu Morgana. — Se tem amor à vida,


não a toque! Ela não é apenas uma das Sacerdotisas do Lago. Ela é a Senhora do
Lago, lembra-se?

— Tanto melhor! Eu ganharia mais poder se mantivesse relações com ela.

— Seria a última vez que você teria uma mulher em seus braços!

— Pensei que ela fosse um trunfo! Morgana refletiu, considerando a questão.

— Poderá tornar-se, caso você a tratar bem e não exigir dela o que não pode
exigir. Liberte-a, se Arthur garantir a você e a seus homens uma pena branda.
Implore seu perdão e lembre-o de que é seu filho, seu único herdeiro. E sobretudo,
que não pretendia humilhar a rainha, mas sim livrá-la das garras de um sedutor.

Medraut levantou-se. Da porta, disse:

— Não vou me retratar! Não sou covarde.

Arthur acompanhava sua corte, os cavalos marchavam a passo rápido, ao


estilo romano. Lancelot viera ao seu encontro e contara-lhe tudo, sem poupar
pormenores. Passou algum tempo estudando a questão e depois armou o bote.

— Gwalchmai! — quando ele se aproximou, ordenou-lhe: — Tome uma


unidade e vá encurralar Morgana. E dê um dia de folga às outras.

Diante do olhar indagador do capitão, Arthur disse evasivamente:

— Acho que teremos êxito se negociarmos com ela. Se viajarem à noite,


poderão alcançar suas terras ao amanhecer.

— O que pretextarei?

— Diga-lhe que eu quero ver Medraut.

Dito isso, Arthur obrigou Valient a dar meia-volta. Antes - de mais nada, tinha
que falar com Guinevere.

Projeto Revisoras 212


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Refletiu, enquanto cavalgava. Enviara Lancelot para Bela Vista exatamente


para isso: pensar maduramente, meditar e depois chegar a uma conclusão. Dissera a
seus homens que Medraut havia se rebelado e que tentara fazer da rainha sua refém.
O que não era de todo inexato.

Fui um louco em não perceber até que ponto o orgulho afetou Medraut e como é
profundo o ódio que ele sente por Lancelot.

A medida que se aproximava do Lago, sentiu no ar que alguma coisa não ia


bem. A neblina, que pairava continuamente sobre a ilha, espiralava-se como uma
cobra na estrada que levava a Camelot. Nenhum som, nem mesmo o gentil e inces-
sante bater das águas de encontro à margem, nenhum grito de gaivota, nenhum
crocitar de corvos nem gritos de águia. Absolutamente nada se ouvia naqueles
confins.

Desembainhou a espada e ergueu-a bem alto, para que sua vibração


alcançasse as sacerdotisas e esperou.

Um dos habitantes das redondezas deixou sua choupana e tomou-lhe o


cavalo. Barinthus fez-lhe uma reverência, mas parecia pouco à vontade.

— Guinevere está aqui? — perguntou-lhe.

Barinthus assentiu e, com um gesto de mão, convidou Arthur a subir na


barcaça. Embrenharam-se na neblina. Ao rompê-la, o outeiro luxuriante de Avalon
refulgiu a distância, e o doce odor das macieiras pairou no ar, sobrepondo-se ao mau
cheiro da água.

Ao atingir a margem já havia uma noviça à espera. Seguiu-a em silêncio,


colina acima. Ela o fez entrar no quarto de Nimue e depois se foi. Arthur aproveitou
para tirar a espada e sentou-se olhando para a tapeçaria do veado branco. Seus olhos
luminosos pareciam fixos nele.

Ouviu passos no corredor e ficou à espera, com o coração palpitante.


Guinevere aproximou-se e, de olhos baixos, caiu de joelhos à sua frente.

— A humildade não combina com você — ele disse com voz áspera. — Olhe
para mim!

Ela ergueu os olhos e, por uma fração de segundo, entreviu em seu olhar o
antigo brilho do desafio.

— Não tem nada para me dizer?

Projeto Revisoras 213


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Fui infiel a você. Desculpe, sinto muito.

— Sente muito porque foi surpreendida?

— Não, sofro porque magoei você, sofro por ter frustrado os seus sonhos. E
sofro porque ainda amo você.

— Você tem uma estranha maneira de demonstrar seu amor por mim! Como
pode ser tão leviana, tão louca de dividir seu leito com Lancelot?

Guinevere ergueu-se num ímpeto.

— O que esperava que acontecesse entre mim e ele, enquanto o esperávamos.


Você ficou um ano ausente! Aquela noite foi a única que passamos juntos. Medraut,
aquele louco, pode confirmar isso!

A dor trespassou o coração de Arthur com a força de um punhal.

— Você me fez todo o mal que poderia fazer. Mas tem razão. O que aconteceu
entre vocês dois já era esperado. O erro foi meu. Lancelot tentou me avisar, eu é que
fui um louco em acreditar que você honraria o meu nome e seu título.

— Pare, Arthur! Sei que o erro foi meu. Não sou tão forte como gostaria de ser.
Amo você, mas amo também Lancelot — ela confessou com um ar tão sincero e tão
franco que o impressionou.

— Já percebeu que estamos nos dizendo sempre as mesmas palavras?


Quebramo-nos um ao outro, sem nos unirmos nunca!

Arthur levantou-se e embainhou a espada. Só então se lembrou:

— E Nimue?

— Nimue está em Camelot. Como refém de Medraut.

— O quê? Tem certeza?

— Ela não chegou e as sacerdotisas consultaram a bola de cristal. Viram-na


com Medraut.

Arthur virou-se para a porta concentrado em orações.

Merlin, Merlin... que falta você me faz... Se você estivesse aqui... Ao abri-la, ouviu
algo que se assemelhava a um riso reprimido no vento que assobiava.

Era a rainha das fadas que, recolhendo seu pensamento, cavalgara uma
nuvem para levá-lo bem depressa à caverna e ao ouvido de Merlin.

Projeto Revisoras 214


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

A neblina era densa aquela manhã. Acamava-se sobre os campos, instalava-se


sobre os tetos de colmo das casas, pendia em flocos dos ramos dos carvalhos.

De repente, no pátio, o alarme soou, quebrando o silêncio.

— O Grande Rito está de volta. Que Deus se apiede de nossas almas!

Os homens deixaram atropeladamente suas barracas, alguns semi-vestidos,


outros lutando para embainhar as espadas. Em meio a toda essa confusão, Arthur viu
Medraut e Agravaine aparecerem no alto da muralha e Cynric emergir da névoa li-
derando as tropas de seu pai.

Medraut ergueu a mão.

— Pai! Nimue é nossa refém! Arthur não respondeu.

— Ele verá seu estandarte — disse Cynric, aproximando-se, enquanto Nimue


era levada para a amurada.

— Lancelot me disse que você salvou Guinevere — tornou Arthur, em voz


baixa. — Você tem a minha eterna gratidão. — Sem virar-se completou: — Salvou
também Lancelot?

— A rainha pediu-me e foi impossível dizer "não".

— Compreendo. — Nesse instante, Medraut ordenou que Nimue fosse


retirada da amurada e Arthur respirou, aliviado.

— Espero que não lhe tenham feito nenhum mal. Caso contrário, destruirei
Camelot com as minhas próprias mãos. Deixarei para Medraut apenas os destroços!

As tropas de Arthur continuaram sua penosa espera pelo restante do dia.


Quando a noite caiu, pequenas fogueiras foram acesas, aqui e ali, envolvendo
Camelot num halo de luzes vermelhas, amarelas e azuis.

Arthur chamou Gryflet.

— Deixe os arredores do portão dos fundos às escuras. Alguns rebeldes


tentarão fugir. Permita que passem. Caia sobre eles do lado de fora. Não faça
prisioneiros. Elimine-os.

— Mesmo se forem Medraut e Agravaine?

— Conheço Agravaine, morrerá lutando. Medraut não tentará a fuga. Tem


consciência de que sua única esperança é manter Nimue viva e bem. Mas não pode
saber que temos sua mãe em nosso poder.

Projeto Revisoras 215


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Na manhã seguinte, Arthur levou Morgana para a frente, ao alcance da flecha


de um arqueiro em posição. Da muralha, Medraut gritou:

— Quais são as suas condições para libertá-la?

— Que entregue Nimue sã e salva e que você e seus partidários deixem


Camelot imediatamente.

— Você garante passagem livre para mim e meus homens?

— Darei, assim que souber que Cai, Gareth e o restante de meus homens estão
bem.

— Dê a sua palavra — pediu Agravaine.

— Dou a minha palavra que terão passagem livre em troca dos reféns.

Lentamente, os homens saíram sem as suas armas, enquanto os médicos


corriam para examinar Cai.

Agravaine, o último a sair, trouxe Nimue pelo braço. Ela correu para Arthur e
o beijou. Ele ficou surpreso, mas não hesitou em retribuir o beijo.

— Ah, Nimue... se você soubesse... — murmurou com um suspiro. Depois


olhando para Medraut, acrescentou duramente: — Sua mãe fica aqui até que você e
seus camaradas saiam de minhas terras.

— E nossos cavalos?

— Nada de cavalos! Vocês irão a pé.

Morgana, que até então nada dissera, decidiu falar livremente:

— Medraut não tencionava se rebelar. A rainha foi surpreendida na cama com


Lancelot e meu filho apenas quis retê-los até que Arthur chegasse e fizesse justiça.
Isso foi tudo.

Um silêncio de rocha seguiu-se a essas palavras.

— Não há nada que prove isso! — rebelou-se Gwalchmai rompendo o


silêncio. — A senhora está acusando pessoas que não estão aqui para se defender!

Arthur completou com dureza:

— Não admito que insultem a rainha!

— Aprovado! Aprovado! — gritaram seus homens. Mas não havia convicção


em suas vozes.

Projeto Revisoras 216


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Nimue encontrou os olhos dele e murmurou:

— A Roda começou a girar.

Capítulo XIII

Guinevere sentiu seus olhos se velarem, ao ver as paisagens familiares: pontes,


campos de cultura e filas de almos à beira da estrada. E foi com o coração batendo
forte que desmontou diante da escadaria, onde Arthur a esperava para dar-lhe as
boas-vindas.

— Anime-se — disse-lhe Bedwyr, que fora buscá-la. — Não é tão horrível


assim.

— Qualquer pessoa com sensibilidade me odiará. Pálido, Arthur desceu a


escadaria e a ajudou a desmontar.

Depois fez-lhe uma inclinação protocolar.

Bedwyr dissera a Guinevere, durante o caminho, que as opiniões estavam


divididas, em relação às acusações que Morgana fizera. Havia os que a apoiavam e
outros que, lembrando-se do seu passado tenebroso, a rejeitavam.

— Mas que diferença isso faz? No fundo, é a mim que estão julgando! E eu
errei.

Arthur viu-a tão deprimida, que resolveu dar-lhe coragem.

— Não se preocupe. Dentro em breve, todos esquecerão — murmurou.


Depois, num ímpeto irracional puxou-a para si e beijou-a possessivamente, para que
todos vissem que ela era sua. O Grande Rei reivindicava o que era seu por direito.

Guinevere forçou-se a sorrir e consciente dos olhares que todos lhe dirigiam,
seguiu-o submissa, os olhos baixos. Mas livrou-se de seu braço, quando chegaram ao
quarto. Ele indicou-lhe uma cadeira e deixou-se cair na outra.

Projeto Revisoras 217


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Embora contra a minha vontade, quero saber tudo o que aconteceu entre
você e Lancelot.

Guinevere fitou-o com profunda tristeza, sentindo que tudo o que dissesse o
ofenderia, mas contou fielmente o que se passara naquela noite. Ele, porém, parecia
contemplar as imagens que o torturavam. Disse, com uma dureza que a gelou:

— Não acredito em você.

— Mas eu estou sendo sincera...

O olhar dele perdeu-se na distância. Quando falou, sua voz estava embargada.

— A única saída que eu vejo à minha frente é convencer meus címbrios de que
você é ainda uma dama que merece respeito. Uma dama que, num momento de
fraqueza, cedeu aos encantos de nosso heróico Lancelot! Algo que será difícil fazer
porque eu sei a verdade.

Ela o olhou com indignação.

— Foi você que o converteu em meu paladino! Foi você que lhe pediu que me
desse proteção. Eu bem que tentei ser fiel a você, mas de que modo se estava sempre
ausente? Se para mim tinha apenas carícias... — Horrorizada, ela pôs a mão sobre a
boca. Por que fora levantar aquela questão? Reabrir a chaga sangrenta?

Os olhos de Arthur eram duas pedras de gelo, enquanto ele se despia.

— Tire suas roupas — disse —, se não quiser que eu as arranque.

Ela não ousou dizer mais nada. Ele já estava nu. Despiu-se rapidamente e
esperou. Sentiu o calor dele fluindo para seu corpo. Depois não sentiu mais nada. Era
apenas um joguete na mão de um homem desvairado, que fez dela o que quis. Era o
castigo que merecia.

Estavam jantando, quando Morgana irrompeu no salão. Não disse palavra.


Sentou-se numa das pontas da grande mesa e serviu-se, como se esse fosse o seu
direito.

O jantar foi consumido em silêncio, um silêncio pesado demais, levando-se em


conta que mais de cem cavalarianos ocupavam as mesas inferiores. Houve apenas
uma troca de olhares entre os mais ousados.

Ao final, Arthur levantou-se e disse com voz autoritária:

Projeto Revisoras 218


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Gostaria de ver minha mulher respeitada aqui, em seu próprio lar. O que
aconteceu durante a minha ausência não diz respeito a ninguém, só a mim.
Guinevere é sua rainha. Espero que a lealdade com a qual vocês me honram se
estenda também a ela.

— E Lancelot? — gritou alguém, das sombras.

— Lancelot permanecerá em Bela Vista. Não haverá mais lugar para ele em
Camelot.

Os aplausos irromperam, calorosos. Arthur estendeu a mão para Guinevere e


a trouxe para junto de si.

— Tem algo a dizer, minha esposa?

— Apenas que meu marido é o meu rei — ela disse em voz alta e clara. —
Demonstrou compaixão e mercê, ao perdoar o erro que cometi. Peço que o
dignifiquem e o honrem por isso.

— Mas procedendo desta maneira, com tanta clemência meu rei não estará se
expondo a uma nova traição? — A voz de Morgana elevou-se em meio a um silêncio
total. — Milady desonrou o Grande Rei, não apenas seu marido, ao manter relações
com outro homem. Traição é o nome que eu dou para isso!

— Basta Morgana! — cortou Arthur. — Você é a pessoa menos indicada para


falar de respeito e de honra!

— Não sou eu, é seu próprio código de justiça que exige que medidas sejam
tomadas! Ou há uma justiça diferente para o rei?

Os murmúrios retornaram com mais força e Gwalchmai e Bedwyr agarraram-


na com força e a levaram até a porta. No caminho ela ainda gritou:

— Tirano! Déspota! É essa a sua justiça? Expulsa-me porque eu estou dizendo


a verdade?

— A verdade é algo que você não saberia reconhecer — replicou Arthur com
desprezo. — Mas, em nome da justiça, eu permitirei que faça o seu pequeno discurso.

Morgana voltou-se para a pequena platéia.

— Todos vocês lutaram ao lado de Arthur. Seguiram-no de bom grado porque


achavam que ele fosse bom e justo. Então eu lhes pergunto: o adultério da rainha
com um capitão do rei foi apenas um deslize, como a rainha insinua? Vocês não os

Projeto Revisoras 219


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

viam sempre juntos. Ele não abandonou a esposa por ela? Pois isso vem acontecendo
há anos! E com pleno conhecimento do nosso soberano!

— Terminou? — perguntou-lhe friamente Arthur.

Os murmúrios transformavam-se em explosões de protesto e Gwalchmai


tomou a palavra.

— Há uma maneira de resolver esta questão. Prova por combate. O paladino


da rainha contra quem Morgana escolher para ser seu paladino. Se Lancelot vencer,
os nomes de ambos serão limpos.

Os cavalarianos murmuraram sua aprovação e Arthur assentiu lentamente.


Morgana protestou:

— Lancelot, não. Ele não foi banido para sempre de Camelot?

Arthur deu um passo à frente.

— Eu próprio serei seu paladino!

— O rei não pode ser paladino de ninguém — escarneceu Morgana. — Ou


está querendo quebrar suas próprias regras?

— Nesse caso, quem será o paladino da rainha?

— Eu, sir — proclamou Gareth, abrindo caminho por entre seus pares. Em seu
rosto brilhava a devoção. — Pelo capitão Lancelot e pela rainha.

— O meu será Bertilak! — anunciou Morgana triunfante.

— Não será um combate honroso, mas um assassinato! Bertilak já mergulhou


sua lâmina no coração de pelo menos uma dezena de homens — murmurou
Gwalchmai, o rosto expressivo revelando o temor de uma desgraça próxima.

— Não exagere — contestou Gryflet, sem muita convicção. — Gareth é uma


das melhores espadas da Bretanha.

Antes que seu companheiro pudesse retrucar, ele caminhou apressadamente


na direção de Arthur.

— Sir, será uma luta injusta.

— Foi o que eu pensei. Gareth e a rainha serão mortos!

— Sou melhor do que pensa — objetou Gareth. — O meu mestre foi Lancelot.

— Pois que seja! Quando houver lua cheia.

Projeto Revisoras 220


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

O salão esvaziou-se rapidamente, ninguém queria enfrentar a cólera do rei. Só


Morgana parecia satisfeita.

Arthur tomava sua refeição matinal sozinho, sentado diante do fogo


crepitante da lareira. O céu estava tão sombrio quanto os seus pensamentos. Temia
que, se Gareth fosse vencido, os caminhos diante e atrás dele se fechariam,
extinguindo para sempre seus brilhantes projetos de unificação.

Não dormira bem naquela noite e achava que o mesmo acontecera com
Guinevere, embora ela tivesse ficado imóvel em seus braços a noite inteira. Ao descer
para o salão, encontrara um guarda postado à porta. Embaraçado, o homem lhe
dissera que, por ordem do conselho, o comando fora retirado de suas mãos. E que a
partir daquele dia, a rainha ficaria confinada em seus próprios aposentos.

Já havia terminado de comer, quando Patrise apresentou-se.

— Quero me desculpar por não ter defendido a rainha. Mas as minhas chances
seriam poucas. A rainha precisa de um paladino hábil na espada. Vou buscar
Lancelot.

— Você não tem deveres para cumprir aqui? Abandoná-los seria uma ofensa
grave.

— Cumprirei minha pena ao retornar.

Subitamente, no rosto cansado de Arthur, alguma coisa palpitou, ganhou


vida.

Arthur ficou esperançoso, à lua iria tornar-se cheia dentro de duas semanas.
Talvez houvesse tempo... Caso isso acontecesse, encontraria um modo de convencer
o conselho.

Arthur vestira sua mais fina túnica. O manto vermelho com o dragão dourado
pendia de seu ombro e o colar de ouro brilhava em seu pescoço.

— Você é ainda a rainha, Guinevere — lembrou-a. — Use seu melhor vestido


e suas mais finas jóias. Isso irá lembrar o povo de que é o monarca e sua consorte que
estão diante deles. Patrise voltou?

— Ainda não o vi. Não quero ser queimada viva, Arthur!

— Ele beijou-lhe os lábios.

— Lancelot não irá permitir que isso aconteça.

Projeto Revisoras 221


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Amo você, Arthur. Não se esqueça disso jamais.

A multidão compacta que apinhava o pátio abriu alas, quando eles passaram,
garbosos. Mas, em vez de ovacionar, todos guardaram silêncio. Até mesmo as
crianças emudeceram, algo que nunca ocorrera antes e que os deixou perplexos.

Nimue apareceu, vinda do meio da multidão.

— Aceitará minha bênção, Guinevere?

— Aceitarei todas as bênçãos neste dia.

— Comigo, você pode contar.

— Então, tome conta de Arthur. Não sei o que vai ser de mim.

Gareth chegou e ajoelhou-se diante da rainha.

— Milady, pedi a ajuda de Cristo — ele disse fervorosamente. — Mas gostaria


que Lancelot estivesse aqui. Ele defenderia melhor a sua honra.

— Sei que você fará o impossível, Gareth. Portanto, perca o medo. Bertilak
pode ser um espadachim melhor, mas é mais velho e mais pesado do que você.
Anime-se!

O rosto de Gareth iluminou-se de esperança, quando foi ao encontro do


adversário. Puxou a espada contra Bertilak e as colinas ecoaram com o tinido das
armas. Gareth percebeu logo que o adversário era nitidamente superior. Podia ser
mais velho e mais pesado, mas seus punhos eram fortes e elásticos. A sua espada
podia ser guarnecida de lavores de ouro, porém a lâmina era feita para matar. Ouvia-
o praguejar e gritar, certamente para irritá-lo, mas continuou a lutar em silêncio.

Não notou o alto monge de hábito marrom e capuz, que emergiu da antiga
capela, e montou um corcel. Mas ouvia sua voz incitá-lo. Atraia-o, Gareth. Rebata a
estocada e depois o faça recuar! Porém, Bertilak foi mais rápido. Sua lâmina cortou baixo
e atingiu-o levemente na coxa. O sangue borbulhou.

— Sangue! — gritou o árbitro. Bertilak vencera. Guinevere correu para o


corcel negro do monge, que se arremeteu para a frente, sob o seu comando. Era
Lancelot! Apanhou-a pela cintura e colocou-a à sua frente. Quando os guardas
reagiram, ele vergastou à esquerda e à direita e os homens caíram.

Instalou-se o caos. Arthur gritou para que os homens desistissem e Bedwyr e


Gryflet fecharam os portões, impedindo a passagem para quem quer que fosse.

Projeto Revisoras 222


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Enquanto isso, Gwalchmai ajoelhava-se ao lado de Gareth e sustentava-lhe a


cabeça.

— Não sinto... não sinto as minhas pernas — ele balbuciou. Arthur chegou no
instante em que o punham na padiola.

— Eu falhei, sir. Perdoe-me.

— Não, você não falhou, meu amigo. Duelou bem e ajudou Guinevere a
escapar. Agora descanse.

Viu Nimue acompanhar a padiola, pensando que, num só dia, perdera o


amigo e a esposa. Desanimado, encaminhou-se para o salão nobre e viu a cadeira de
Morgana vazia. Bertilak também não estava à vista. Deviam ter escapado durante a
confusão. Mas isso era o que menos importava.

Como vou viver sem você, Guinevere?

A viagem foi longa, cerca de duas semanas, e cansativa.

Precisavam de outros cavalos, os que montavam estavam exaustos. Mas não


quiseram aproximar-se de Fosse Way, onde poderiam ser vistos e eventualmente
reconhecidos. Evitavam as estradas transitáveis do noroeste e seguiam, pela maior
parte do tempo, beirando a floresta.

Ao alcançarem a campina, puxaram as rédeas, para que a cadência de seus


animais se abrandasse.

Nuvens amontoavam-se no céu, como muralhas vermelhas refletindo o sol.


Banharam os olhos no cenário imenso e majestoso, e procuraram na distância a
silhueta de Bela Vista, quase tão fluida quanto o céu.

O coração de Guinevere encheu-se de alegria.

— Chegamos?

— Sim, meu amor. Estamos em casa.

Os soldados que estavam de guarda no portão, interromperam seus afazeres,


quando os dois chegaram, exaustos, mas felizes. Lupin, o palafraneiro, veio buscar os
cavalos, porém Lancelot o deteve. Teria que dar uma explicação a seus homens e,
aquele, era o momento certo.

— Meus amigos, houve acusações contra a rainha e Arthur, o rei de Camelot,


pediu-me que eu a protegesse. — Ele lançou um olhar circular. — Se houver alguém

Projeto Revisoras 223


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

aqui que se recuse a dar-lhe apoio, tem a liberdade de deixar Bela Vista imedia-
tamente.

O inesperado pedido manteve-os em suspenso por um momento. Então,


lentamente, os homens que estavam mais próximos de Guinevere, dobraram-se sobre
o joelho. Os demais, seguiram seu exemplo e Lancelot fez um gesto de aprovação
enquanto ajudava Guinevere a desmontar.

— Tudo em paz, minha querida.

Duas criadas aguardavam-nos no alto da escadaria.

— Augusta, a mais idosa, é a governanta — Lancelot explicou.

— Bem-vinda à Bela Vista, milady — ela disse, com uma reverência. Olhou
para Lancelot: — Em qual dos quartos devo acomodá-la?

— No próximo ao meu — ele disse e percebeu imediatamente seu olhar de


reprovação.

— Não aprova, Augusta? A governanta corou.

— Não, senhor. Não seria de bom-tom.

— De que maneira eu iria proteger milady, se ela ficar longe de mim?

— A meu ver, o senhor deveria guardar as aparências — disse a governanta


severamente.

Lancelot sorriu.

— Tem razão, minha prenda. Não quero que o nome da rainha caia na boca do
povo. Escolha você o quarto que mais convenha a uma dama tão ilustre.

Augusta fez outra reverência.

— Por aqui, milady — e conduziu Guinevere para um aposento grande e


imponente, com uma ampla cama de cerimônias e altos espelhos.

Uma pomba arrulhou de madrugada e acordou Guinevere. Surpresa, ela deu-


se conta de que Lancelot estava a seu lado e a acariciava. Ela apoiou a cabeça no
ombro dele.

— Estou feliz de ter acordado ao seu lado. Foi o que sempre quis e por isso...

Ele colocou um dedo sobre seus lábios.

— Nada de recordações desagradáveis. Estamos juntos e é isso o que importa.

Projeto Revisoras 224


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Seus lábios se encontraram, seus corpos se ajustaram. Amanhecia, quando se


separaram. A primeira luz do dia já tremulava por entre os ramos e na erva molhada
pela neblina, suspirava a flauta dos sapos.

— Não pensei em tomar precauções — disse Lancelot de repente. — E se você


engravidar?

Ela sorriu.

— Iria adorar! Quero lhe dar mais um filho, Lancelot.

— Se você quiser, eu também quero, não fui um pai de verdade para Galahad.

— Você nunca mais o viu?

— Não, estou proibido de vê-lo.

— Peça permissão a Arthur e vá buscá-lo. Traga-o para cá. Elaine não se


atreveria a contrariar o rei.

— Não se esqueça que estamos exilados. Não estou em posição de pedir esse
favor ao rei.

— Não seria um favor. Você está no seu direito de conhecer Galahad. Diga a
Arthur que irá treiná-lo por uns dois ou três anos e que depois o enviará a Camelot
para que ele aprenda a educação fina da corte.

Os olhos de Lancelot cintilaram.

— Você gostaria que ele morasse conosco?

— Naturalmente que sim! Criei Medraut em circunstâncias muito piores e


aprendi a gostar dele.

— Seria muito bom treinar meu próprio filho... — Os olhos de Lancelot eram
sonhadores. — Tê-lo à mesa conosco, cavalgarmos juntos... Oh! Guinevere, que bela
idéia você me deu!

Naquele ano, os jogos de Arthur não teve o mesmo bom êxito dos anos
anteriores. Alguns dos reis menores haviam declinado o convite alegando os mais
variados motivos. As visitas não se apinhavam mais no salão nobre. Não se
murmuravam mais felicitações nem se empurravam uns aos outros para reverenciá-
lo.

— É o primeiro passo para a resistência — observou Arthur nervosamente.

— Os motivos que alegaram são razoáveis — consolou-o Nimue.

Projeto Revisoras 225


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Correm boatos de que não consegui controlar nem meu próprio filho nem
minha mulher. Julgam-me um fraco. E se meus címbrios me negarem lealdade, os
saxões se aproveitarão disso para me declarar guerra.

— Os homens estão cansados. É por isso que se rebelam comentou


Gwalchmai.

— É sempre assim quando não há guerra — Gryflet comentou. — Faz um ano


que nos dispusemos a combater Medraut.

— E foi um desastre! — Arthur sentou-se e bateu com o punho na mesa. —


Agora ele está incitando os jovens de Cissa e de Cormenric a se rebelarem. Vou
acabar com ele e com a mãe!

— Você fez com eles um pacto de não agressão. Vai rompê-lo? — perguntou
Nimue.

— Quebrei meus próprios códigos de honra para salvar Guinevere. Por que
não os quebraria de novo para eliminar aqueles dois?

Ninguém replicou. Todos sabiam que, o que realmente o incomodava, era ver
Guinevere longe de Camelot. Mas para isso não havia solução. Se a trouxesse de
volta, o frágil elo que o unia à sua gente, se romperia de vez. Era esse o seu dilema.

Bedwyr disse de repente:

— Recebi uma carta de Guinevere.

Arthur ergueu a cabeça.

— E o que diz?

— Lancelot gostaria que Galahad voltasse para Bela Vista. Quer treiná-lo para
fazer dele um bom soldado.

— E Guinevere cuidaria dele como um filho — disse Arthur, amargo. Depois,


com uma risada: — Elaine conseguiu vingar-se de Lancelot. Tem... — ele
interrompeu-se. — Ela ainda é a esposa de Lancelot?

— Sim, mas se odeiam — lembrou Gryflet.

— Guinevere e Elaine também. — Arthur pensou um instante. — Mande a


ordem. Diga a Elaine que ela e o filho estão intimados a voltar imediatamente a Bela
Vista!

Projeto Revisoras 226


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Segure as rédeas com mão firme! — gritou Lancelot, ao perceber que o


potro que Guinevere montava ameaçava livrar-se dela.

O jovem cavalo quase mordera os freios e ela achava estranho não poder
obrigá-lo a abaixar a cabeça. Mas Lancelot já estava pronto para laçá-lo, caso o animal
levasse a melhor.

— Leve-o agora a meio-galope!

Os dois estavam tão imersos no adestramento do animal, que não ouviram o


guarda anunciar a chegada de dois cavaleiros.

A vibração do solo com a batida dos cascos assustou o potro que se pôs a
corcovear jogando a distraída Guinevere para fora da sela.

Lancelot correu para ampará-la.

— Você se machucou?

— Sou mesmo desajeitada — ela murmurou, enquanto fitava o rosto querido a


um palmo do seu.

— Você não devia arriscar-se tanto — ele disse e, de pronto, ergueu-a nos
braços e a depositou junto à cerca do padoque.

— Parece que as coisas não mudaram muito, meu marido — disse uma voz
irônica atrás deles.

Espantado, Lancelot virou a cabeça. Elaine e Galahad! Teve certeza de que era
seu filho pelas feições e pela mecha de cabelos escuros que lhe caía pela testa. Porém,
ao aproximar-se, ele se retraiu e foi esconder-se atrás da mãe.

Sentiu um início de revolta. O menino tinha medo dele e o evitava. Por quê?

— Elaine, tenho a impressão de que você não educou bem Galahad. O que
você lhe contou a meu respeito? Que eu sou um ogro?

Ela sorriu ironicamente.

— Galahad teve que enfrentar a realidade muito cedo. Ele sabe que não tem
pai.

Lancelot enfureceu-se.

— Como não tem?

— Um pai ausente não é pai!

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

A acusação, de um modo nada agradável, se aproximava muito da verdade.


Lancelot respondeu em tom sereno:

— Parece que você não lhe contou tudo: as tentativas de sedução, o ardil, o
narcótico até eu cair na armadilha como um camundongo acuado num canto, diante
de um gato pronto para saltar. — Ele a olhou com desdém.

— Que você queria que eu fizesse? Que o enaltecesse? — ela retrucou,


elevando o tom da voz.

— Fale mais baixo, Elaine. Não quero assustar Galahad ainda mais. — Ele a
olhou interrogativamente. — Afinal, porque você veio? Eu não a obriguei a isso!
Podia ter mandado outra pessoa em seu lugar.

Elaine demonstrou-se surpresa.

— Pensei que fosse minha obrigação. Não quero enfrentar a ira de Arthur.

— Do que está falando? Pedi apenas a presença de Galahad.

— Pensei que Arthur estivesse me mandando de volta para você.

Guinevere entrou na conversa.

— Vamos entrar? Faz muito frio aqui fora. Vocês podem continuar a conversa
ao pé do fogo.

— Desculpe-me, Elaine — murmurou Lancelot, contrito. — Não fui um bom


anfitrião. Venha Galahad. Quero mostrar a casa a você.

Ao entrar, Elaine tirou uma carta do bolso do manto.

— É de Arthur para você. Não sabia que Guinevere estava aqui. Pensei que eu
tivesse de retomar meus deveres de esposa.

— Esposa apenas no nome — lembrou-a Lancelot e pôs-se a ler a carta. Depois


deu a Guinevere. — Veja o que diz.

Guinevere leu e tornou-se pálida.

— Por que Arthur foi armar essa confusão? Agora não podemos...

— Ele fez justiça — interrompeu-a Lancelot. — Encontrou um modo de


retribuir o mal que lhe fizemos.

Primeiro foram as folhagens que mudaram de cor. A seguir o ouro estendeu-


se às pequenas colinas que cercavam o lago. Depois um vento forte trouxe uma

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

torrente de folhas e uma dourada flotilha animou a superfície da água. O ouro


apagou-se e os galhos se cortaram, nus, contra o céu. O outono, o gelado outono do
norte se instalou em Bela Vista.

Apesar disso, Lancelot viu Galahad enxugar o suor do rosto.

Fazia um ano que ele estava em Bela Vista. Sentia ainda medo dele, mas
melhorara em outras questões. Em parte por que Elaine não estava ali. Fora-se como
chegara: de mãos vazias, sem obter o que mais desejava: ser sua esposa.

Voltou sua atenção ao filho, que, de espada em punho, o enfrentava.

— Muito bem, Galahad. Você me apanhou de surpresa, não é fácil fazer isso!
— disse, diante de uma manobra mais ousada do garoto. — Você melhorou muito!

— Foi o que a rainha disse.

— Vocês são amigos?

— Gostamos muito de conversar. Ela me entende.

— Como assim?

— Ela sabe e compreende que eu prefiro a harpa à qualquer outro


instrumento, especialmente as armas.

— O que você gostaria de fazer, Galahad.

—Já lhe disse uma vez: tocar harpa. A harpa acalma e me faz sonhar. Fecho os
olhos e vejo. Sempre o mesmo sonho: uma taça de prata segura por mãos muito
brancas. Quando a vejo, sinto-me em paz.

Capítulo XIV

Bedwyr e Nimue chegaram em meio a uma nevasca extemporânea de abril.

— Vieram buscar Galahad? Ele já está pronto para ir. Está animado, vai
conhecer Arthur.

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— A propósito, Guinevere... Os tempos são maus e Arthur precisa de você.

Guinevere gelou. Depois de tanto tempo... Saíra furtivamente de sua vida e


acreditava que ele a tivesse esquecido. Mas, não. Ele a queria junto de si. E não havia
dúvida quanto à urgência do mandato. Estava escrito no rosto de Nimue.

Virou-se para Lancelot com os olhos cheios de lágrimas.

— Lance...

Lancelot olhou de Nimue para Bedwyr.

— Vamos para a Sala do Conselho? — Quando todos se sentaram, ele disse


apenas: — Por quê?

Bedwyr falou longamente sobre a seca e a fome que assolara Camelot da


deserção de grande parte dos címbrios, do poder nada tranqüilizador de Medraut, da
investida dos saxões e da falta de apoio ao rei.

— Ouvimos falar sobre isso — disse Guinevere. — Mas o que posso fazer?

— Já se esqueceu, irmã, de que foi você a origem de todos esses males? E que,
apesar disso, Arthur ignorou seu próprio código de honra para evitar que a
queimassem viva? Agora, que ele precisa de seu apoio, do calor de sua presença,
você vacila? Você conseguiu as maiores satisfações, em sua vida, do que a maioria
das mulheres e no entanto se recusa a ir ao seu encontro senão com alegria, pelo
menos com confiança?

— Não vejo nenhuma diferença entre ontem e hoje. Se eu for, serei novamente
rejeitada.

— A divisão já foi feita. Os que não eram leais a Arthur já se foram. Os outros
aceitarão sua volta — disse Nimue calmamente. — O desejo de Arthur é que sua
rainha volte para casa.

— O desejo dele... A sua vontade... A minha não conta? Não voltarei para
Camelot. Podem dizer isso ao rei!

— Ah, você vai! Nem que seja à força! — gritou Bedwyr. Lancelot levantou-se.

— Pois eu digo que ela fica!

— Resolveremos a questão lá fora!

— Não! — gritou Guinevere, interpondo-se entre os dois. — Não suportaria


viver, se um de vocês dois morresse por minha causa. — Ela pegou a mão de

Projeto Revisoras 230


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Lancelot e a beijou. — Arthur venceu, meu amor. Irei. A rainha deve cumprir o seu
dever.

Partiram na manhã seguinte levando Galahad. Guinevere guardou um


silêncio absoluto durante a viagem. Seu único consolo era ver o menino encantado
com a mudança de cenário. Primeiro foram as montanhas escarpadas e os charcos a
dar lugar às florestas, às estradas retas e confortáveis dos romanos. Depois
apareceram as colinas gentis, agora verdes pelos primeiros renovos da primavera do
Sul, as ruínas dos aquedutos e as velhas vilas salpicadas de musgo fresco.

Os olhos de Guinevere cintilaram de emoção. Estava chegando a Camelot, seu


lar.

Cavalgaram até o pátio e Arthur desceu para recebê-los. Seu olhar penetrante
deteve-se em Guinevere. Ela o estudou. Havia neles agora uma dureza que a fez
arrepiar-se.

— Você veio de vontade própria?

— Aceitei a responsabilidade de voltar para você. Conheço meus deveres.

— Cheguei a acreditar que você ficasse contente ao me ver.

— Foi uma viagem cansativa — ela respondeu evasivamente. — Veja, trouxe


Galahad.

— Então você é Galahad! Pode desmontar, se veio para ficar.

Galahad corou e desmontou.

— Que armas prefere? — continuou Arthur. — Você é jovem demais para a


lança. Talvez a espada? Ou o arco? Não vejo nem uma nem outra em sua sela.

— Ele sabe lidar com ambas — explicou Guinevere com entusiasmo. —


Lancelot treinou-o bem. Mas seu instrumento preferido é a harpa.

A chuva caía entre lufadas ameaçadoras. Mas Lancelot não notava essa
espécie de vontade furiosa da natureza, reforçada pelo ulular do vento. Sentado
diante da lareira, ele esvaziava uma taça de vinho após a outra. Percebia que Elaine o
observava do outro lado da sala, mas não se importava.

O que o deixava fora de si era ver-se tolhido, não poder ir buscar Guinevere,
não tornar a vê-la.

Elaine aproximou-se dele.

Projeto Revisoras 231


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Há alguma coisa que eu possa fazer por você? Ele olhou-a com surpresa.

— Por que essa mudança de modos? Eu prefiro a mulher revoltada. É mais


sincera.

Elaine suspirou e apanhou a garrafa vazia.

— Vou enchê-la para você.

Ao voltar, sentou-se a seu lado e, paciente, esperava o momento de encher a


taça logo que ele a esvaziasse.

— Estive pensando... Gostaria de fazer uma tentativa para que nosso


casamento dê certo.

— Que casamento? Não amo você, Elaine. Parece que deixei isso bem claro! —
ele afirmou, revoltado, e continuou a beber. Não viu o sorriso que ela esboçou.

— Poderíamos fazer uma tentativa. Por Galahad — ela murmurou, tocando-


lhe a abertura da calça.

— O que é isso? Você está tentando me seduzir?

— Não sente a necessidade de uma mulher? Eu estou aqui.

A despeito de si mesmo ele sentiu-se reagir ao seu toque. E mesmo através dos
vapores de vinho, compreendeu. Elaine voltara a usar a droga. Segurou-a pelo braço,
mas ela foi mais rápida. Caiu de joelhos à sua frente e abriu-lhe a calça. Lancelot
empurrou-a, mas ela já o tinha nas mãos.

Lancelot agarrou-a pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Depois


tomou-a brutalmente, até fazê-la gritar de dor. Ergueu-a no ar e então jogou-a sobre o
tapete, onde ela ficou chorando, enrodilhada sobre si mesma.

— Já teve o suficiente ou quer mais?

Nove meses depois, Guinevere recebeu uma nota sucinta de Pelles. Elaine
tinha morrido ao dar à luz uma bela menina.

Guinevere terminou de ler a carta de Lancelot e passou-a a Arthur.

Projeto Revisoras 232


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Afinal, Elaine conseguiu o que queria — murmurou. Estava triste com a


morte da prima, mas também um pouco magoada. Lancelot havia sucumbido ao
cerco da mulher que lhe dera uma filha.

Arthur lançou-lhe um olhar rápido.

— Lancelot deu-lhe o nome de Elen. Não é o mesmo daquela jovem de


Astolat?

— Sim, era. A jovem que tinha uma idéia romântica de Camelot. Achava que
aqui tudo era perfeito.

— Você tem que contar a Galahad que ele tem uma irmã.

— Já mandei chamá-lo.

Nem acabara de falar e Galahad já aparecia à porta da sala. — Milady mandou


me chamar?

— Sente-se, Galahad. Você tem uma irmã. Chama-se Elen — disse Guinevere
docemente. E contou sobre a morte da mãe. Ele chorou.

— Se me permitirem, gostaria de ficar só.

Pouco depois, ouviam o som triste e plangente de uma harpa.

— Se Galahad demonstrasse pelas armas o mesmo interesse que tem pela


música, ultrapassaria o pai, em destreza e habilidade — comentou Arthur.

— Era o que Lancelot desejaria. Mas ele aceita bem o fato de Galahad tornar-se
um bardo.

— Tocar harpa não é para um sacerdote.

— Sacerdote? Não sei o que você está falando!

— Galahad me disse que quer entrar para o mosteiro. Parece que isso está
ligado a uma visão do Santo Graal que tanto ele como o bispo Dubricius tiveram. Já
Nimue o chama de mágico.

— Mágico, bardo, sacerdote... Alguém pode me dizer o que ele vai ser?

Um ano após essa conversa, o guarda do portão anunciou a chegada de um


estranho.

— Um cavaleiro?

— Não, um homem a pé vestido de um modo estranho.

Projeto Revisoras 233


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur e Guinevere, que acabavam de chegar da missa de Pentecostes,


entreolharam-se surpresos. O visitante era um jovem magro, de estatura mediana
que, estranhamente, vestia o saiote dos escoceses, embora tivesse os cabelos escuros e
a pele morena dos bretões. No braço, carregava um antigo elmo romano.

Saudou Arthur erguendo o braço direito, como os romanos. Depois inclinou-


se formalmente diante de Guinevere.

— Milady...

Viram logo que era um rapaz educado e Arthur convidou-o para ficar.

— Almoce conosco — disse-lhe, com a impressão de que Camelot voltara aos


velhos tempos. Nova vida pareceu apoderar-se dele. Seus olhos brilharam e um leve
rubor animou seu rosto descolorido. Mas a verdade era que, apesar de a terra ter
readquirido a antiga fecundidade, a maioria dos címbrios não havia retornado.

Guinevere percebeu e resolveu controlar a conversa.

— De onde você vem e como se chama?

— Sou Peredur, milady. E fui criado por Dionas, a mulher da floresta.

— Você tem experiência com armas? — quis saber Arthur.

— Não, mas posso aprender. Conheço as histórias sobre a valentia de seus


homens.

— Receio que ficará desapontado. Essas histórias pertencem ao passado.

— Não tenho muita coisa, sir. Mas sou forte e meu coração anseia por servi-lo.

— Então siga-me. — Arthur levantou-se e o conduziu à sala da Távola


Redonda dos címbrios.

Peredur ficou parado à porta, deslumbrado.

— É a mesa de meus sonhos — disse, correndo a mão sobre a madeira polida.


— Os nomes de seus cavaleiros estão esculpidos no espaldar da cadeira?

— Estão.

O jovem continuou a dar volta à mesa.

— Esta é de Lancelot — ele observou, deliciado. — Ele era bonito de se ver,


montado em seu corcel negro.

O rapaz continuou sua ronda até que, de repente estacou.

Projeto Revisoras 234


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Lamorak... este nome...

— Você o conhece? — perguntou Arthur.

— É meu irmão.

— Como? Então você é filho de Pellinore! Sente-se, porque acho que temos
muito que conversar. Gostaria que seu pai estivesse ainda vivo. Ele ficaria feliz de vê-
lo em minha corte.

— Quero ser soldado. Como meu irmão — animou-se Peredur.

Guinevere pousou a mão sobre o ombro de Arthur.

— Acho que está na hora de você chamar seus címbrios de volta.

Boa parte dos címbrios responderam ao apelo, trazendo consigo jovens


recrutas que tinham sido treinados com os antigos métodos romanos e que se saíram
muito bem nas primeiras batalhas. Arthur animou-se.

Lentamente, Camelot renascia... As tropas voltavam a recompor-se com novas


adesões. Houve outra batalha ao sul, travada sob um purpúreo crepúsculo de abril e
de novo sentiram o sabor da vitória.

A alegria era tamanha que Arthur decidiu, pela primeira vez em cinco anos,
retomar os jogos de primavera.

— Vamos ver quem virá nos honrar com a sua presença — disse a Guinevere
com um certo ceticismo.

Marc, Agrícola e Cador foram os primeiros a chegar. Os reis menores


chegaram aos poucos, mas Arthur ficou satisfeito com a presença deles. Lancelot
também compareceu, trazendo consigo a filhinha. Guinevere, que nunca a vira,
correu para ela. A criança não se parecia nada com Elaine. Tinha os cabelos negros do
pai e seus mesmos olhos acinzentados. A menina olhou para Guinevere com
seriedade e depois estendeu-lhe os bracinhos.

Rindo, Guinevere ergueu-a.

— Vamos conhecer seu irmão. E você também, Lancelot. Não quer me fazer
companhia? — Quando ele se aproximou, abraçou-o diante de todos, sem se
importar com que os outros pudessem pensar. — E agora vamos ver Galahad.

Ao ver o filho, Lancelot surpreendeu-se.

— O que significa isso?

Projeto Revisoras 235


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

O rapaz, alto e forte, usava uma estola curta de acólito. Do colar de ouro
pendia uma cruz.

— Galahad quer ser sacerdote. Mas não pode tomar as Ordens Sagradas até
completar vinte e cinco anos. Talvez, até lá, mude de idéia.

O rapaz viu o pai e aproximou-se com a mão estendida.

— Meu pai... há quanto tempo!

— Esta é sua irmã Elen — disse Lancelot, sem expressar seu desagrado em
relação à decisão que o filho havia tomado. Falariam sobre isso depois.

Um mês após os jogos, Clóvis, o franco, marchava para o oeste. Suas terras em
Armorica estavam ameaçadas. A metade da alegria de Guinevere se dissipou.
Conhecia Arthur. Sabia que ele estava disposto a enfrentar os piores perigos para
salvar um aliado. Mas o que a preocupava era que nada fora definitivamente
provado. Para que, então, precipitar-se?

Arthur recebeu suas preocupações com perplexidade.

— O que há, Guinevere? Guerra é guerra! Por que está tão preocupada dessa
vez?

— Você já recebeu a confirmação?

— Sim, recebi.

— Não sei... algo em meu íntimo me diz que estou dizendo adeus a você.

Arthur riu.

— Iremos apenas reforçar as tropas de Hoel. Não vamos liderar a batalha. Mas
se os saxões se aproximarem muito de Camelot, quero que vá para Bela Vista. Não
espere por mim.

Ela pousou-lhe a mão no braço.

— Obrigada por me amar tanto.

Durante aquele verão, enquanto Arthur combatia ao lado de Hoel, Morgana


ajudava o filho a elaborar planos para os Scotti. Seus capitães, Padraig e Salaigh,
eram ambos filhos de homens que Arthur derrotara, anos atrás.

Ambos estavam sequiosos de sangue e de terras.

Projeto Revisoras 236


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Estaremos prontos quando Arthur chegar — disse-lhes Medraut, ao se


encontrarem. — Temos homens e armas suficientes para criar, em torno de Arthur,
um torniquete que o comprimirá até à morte.

— E se Cerdic obstar o avanço pelo leste? Ele é aliado de Arthur.

Morgana sorriu.

— Não se preocupem com ele. Cerdic está ocupado em assentar as tropas de


Arthur, nos deixará a passagem livre. Quando as tropas de Clóvis começarem seu
lento e sangrento avanço, Cerdic e os seus baterão em retirada. Ficaremos à espera e
os dizimaremos.

— É isso — concordou Padraig. — É melhor forçá-lo a lutar em campo aberto


do que entre as sólidas muralhas de Camelot.

Medraut acrescentou:

— Quero que seus homens participem da emboscada junto com os meus e os


de Maelgwin. Tomaremos Camelot, quando Arthur for derrotado.

— E Lancelot? Continuará do lado dele, depois de ter sido surpreendido na


cama da rainha?

Morgana tornou a dizer:

— São muito unidos. Os três. Parece estranho, mas essa é a realidade.

— Então, seu rei é um louco. Morgana estreitou os olhos.

— Arthur sabe separar sua vida particular da vida de seus súditos.

Medraut apoiou-a.

— Tenha um grande respeito por ambos. Não há ninguém que se compare a


Lancelot no furor da batalha. Nem mesmo Arthur. Não os subestime. Eu já os vi.
Juntos, são imbatíveis.

— Lancelot tinha razão — observou Guinevere, sentada à

Tavola Redonda. Cerdic está apenas ganhando tempo para ver qual é o lado
mais vantajoso.

— Ele está se dirigindo para Londinium — completou Gwalchmai. — Vai


deixar o caminho aberto para os nossos inimigos.

Guinevere voltou-se para o mensageiro.

Projeto Revisoras 237


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Viu Cynric ao lado do pai?

— Não vi seu estandarte, milady.

— Então, há ainda esperança!

— Cynric irá apenas defender suas terras. Não tomará parte da ofensiva geral
— comentou Agrícola, olhando para Gwalchmai. — Você, que o conhece bem, o que
acha?

— Guinevere tem razão. Ele acabará por nos dar suporte. Mas agora temos de
pensar em Camelot e nos preparar para uma possível investida dos saxões.

Agrícola assentiu.

— Estamos em condições de defender Camelot. Nossos estoques, de alimentos


e armas são bons. Se trouxermos nosso gado para cá, poderemos nos agüentar por
muitos meses.

— Acho que Arthur voltará antes que comece a nevar. Parece que Clovis bateu
em retirada.

— Ele fez apenas uma parada estratégica.

— E Medraut? — perguntou Guinevere. — Alguém sabe onde ele está?

— Medraut foi visto na Siluria, tratando com os Scotti — Agrícola respondeu.

— Por qual motivo? Para incitá-los à revolta? Teríamos então duas frentes de
combate! É melhor chamarmos Lancelot.

— Não — replicou Agrícola. Guinevere olhou-o, perplexa.

— Talvez seja mais prudente mandarmos você para Bela Vista — disse
Gwalchmai com relutância. — Se houver uma investida dos saxões...

— Não, não irei para Bela Vista! — Guinevere foi enfática.

— Foram ordens de Arthur — tornou Agrícola irritado.

— Arthur não está aqui. Sou eu que tomo as minhas próprias decisões.

— Podemos chamar Nimue. Ela tem a Visão. Talvez possa nos ajudar —
sugeriu Agrícola.

— Essa foi a única idéia boa que o senhor teve até agora! Nimue chegou duas
horas depois e Gwalchmai foi recebê-la.

— Senhora pode recorrer à Visão?

Projeto Revisoras 238


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Trouxe água da Lagoa Sagrada e uma vasilha da Ilha. Irei até a antiga
capela imediatamente!

Guinevere ficou acordada até o amanhecer. Ao ouvir um ruído, tateou sob o


travesseiro, em busca da adaga. Mas era Nimue.

— Vista-se, rápido. Não temos tempo a perder!

Em silêncio, Guinevere lançou o manto sobre a camisola e seguiu-a, ouvindo o


som do corno pastoril conclamando os homens a entrarem em formação.

Gwalchmai e Agrícola já estavam no hall, à espera.

—Os saxões estão em marcha! — A voz de Nimue era alta e forte. — Alguns
irão manter Camelot sob assédio, outros ficarão à espera de Arthur. Precisamos agir
agora ou seremos rendidos.

— Onde está Medraut?

— Ele está acampado numa vala junto à antiga estrada romana perto de um
rio.

— É a antiga Via da Fossa — disse Gwalchmai. — O rio que banha Lindinis.


Arthur voltará por Dumnonia, não há perigo que se encontrem.

— As duas vias podem servir de emboscada. — Lembrou Agrícola. —


Reunirei meus homens e os cercaremos, quando eles se aproximarem. Seus homens
podem defender a muralha, Gwalchmai. Nós iremos ao encontro de Arthur.

— Patrise já está a caminho de Bela Vista—avisou Gwalchmai. — Lancelot


logo estará aqui. Quanto à senhora, Nimue, leve Peredur e Galahad para a Ilha. Lá,
os dois estarão em segurança.

Nimue voltou-se para Guinevere.

— Leve-os, você conhece o caminho. Eu preciso alcançar Arthur. Preciso


protegê-lo.

Um arrepio de medo percorreu a espinha de Guinevere.

— Vá e que a Deusa a proteja. A ambos.

Haviam já vencido algumas milhas a pleno galope, quando Guinevere


resolveu moderar a marcha.

— Não sei por que Agrícola não permitiu que ficássemos. Eu gostaria de lutai*
ombro a ombro com os címbrios — disse Peredur com petulância.

Projeto Revisoras 239


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Guinevere olhou-o com reprovação.

— Arthur foi taxativo. Quer vocês dois na Ilha. Lá, vocês estarão em
segurança.

— Mas é um lugar pagão, milady — retrucou Galahad.

— O rei tolera todas as crenças. É um modo de unir a Bretanha.

— Não é isso que a Santa Madre Igreja nos ensina. Para sermos salvos, temos
que acreditar apenas em Cristo, que deu sua vida por nós.

— Talvez. Mas a Senhora do Lago deu Excalibur e sua bainha para proteger
Arthur durante as batalhas.

— Proteger de que modo, milady? Matando o inimigo?

— Não, evitando que ele perca sangue.

— Não entendo...

— Não é propriamente a espada, embora ela tenha poderes mágicos. É sua


bainha que impede a perda de sangue. E uma peça muito antiga e tem inúmeros
símbolos gravados no couro macio, de uma estranha cor de vinho. Os antigos
símbolos produzem encantamentos e dão proteção para quem a possuir. Pena que
Arthur a tenha perdido.

Peredur puxou as rédeas do cavalo, obrigando-o a estacar. Estava pálido.

— O que foi? Está se sentindo mal? — perguntou Guinevere.

— A bainha, milady. Sei onde ela está.

— Quê!?

— Foi o dia que o rei lutou por Lancelot, com um homem forte e uma senhora.
Quando tudo terminou, encontrei a bainha debaixo de uma camada de folhas. Levei-
a para casa e a entreguei a Diomas, a mulher que me criou.

— O que fez com ela?

— Nada. Eu tinha me esquecido desse fato. — Ele esporou o cavalo. — Vou


buscá-la.

— Não vá, Peredur. Os saxões já chegaram à floresta. Poderão matá-lo.

— Galahad tem razão, Peredur. Vamos prosseguir. Já estamos perto do lago.

— Não — disse Peredur com firmeza. — E não tenham medo. Eu voltarei.

Projeto Revisoras 240


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Irei atrás dele milady. E o farei ouvir a voz da razão — ofereceu-se


Galahad.

— Não. Lancelot não me perdoaria, se algo acontecesse a você.

— Tenho dezesseis anos e logo estarei livre da tutela de meu pai. Ele me
treinou e eu sei me defender.

— Parece que você se esqueceu das ordens do rei. Não conheço ninguém que
se atreveu a desafiá-lo. Ou a Lancelot.

Com um suspiro, ele olhou em volta.

— Parece-me que tem um mosteiro aos arredores. Prefere ficar lá do que na


Ilha, milady.

— Acha que os saxões irão poupar os monges? — perguntou Guinevere,


diminuindo a marcha do cavalo.

— Eles vivem em solo sagrado e os bárbaros os respeitam.

— Não acredito que eles sejam tão misericordiosos quanto a Arthur.

— Nesse caso, não pouparão também a Ilha.

— O acesso à Ilha é difícil, quase impossível. Está vendo estes flocos de


neblina que se formam ao longo do caminho?

— Não tinha reparado. Neblina num dia tão claro? — Galahad admirou-se.

— Alguns dizem que é a respiração do dragão, expelida por suas ventas para
proteger os que ainda acreditam nele.

A neblina acinzentada já começava a envolvê-los, escondendo a luz do sol,


quando um homem irrompeu subitamente diante deles.

Galahad puxou a espada.

— Que lugar infernal é este?

— Não é infernal, é a sagrada moradia da Senhora do Lago. Esse homem é


Barinthus, o barqueiro. Veio para nos conduzir à Ilha.

O exército de Arthur marchou para o norte seguindo a Via da Fossa. A


jornada havia sido difícil. Os mares estavam agitados e muitos de seus homens
enjoaram.

Projeto Revisoras 241


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Não há a necessidade de voltarmos logo para Camelot, Bedwyr. Claudius e


Hoel já colocaram Clóvis em xeque. Podemos descansar em Lindinis, antes de
atravessarmos o rio.

Continuaram a cavalgar em silêncio, o bater dos cascos dos cavalos marcando


o passo da infantaria.

O vento tornou-se gelado e Arthur envolveu-se no manto. O sol brilhava, mas


as árvores estavam quase despidas de flores. A neve cairia em breve, porém, quando
caísse, eleja estaria em casa, sentado diante do fogo confortador da lareira.

— Não há muita atividade por aqui. Os campos estão vazios — notou de


repente.

Bedwyr explicou;

— O trabalho já foi feito. A colheita terminou.

— Ainda sim... — Depois, soando o corno pastoril, chamou o líder dos


infantes. — Os batedores trouxeram notícias?

— Até agora, nenhum deles voltou.

Cavalgaram ainda por algumas milhas, antes que Arthur dissesse:

— Não sei o que é, mas há algo no ar que não me convence. Esse silêncio...
essa solidão...

Bedwyr olhou em torno.

— Não vejo nada, além de mato, samambaias e umas poucas moitas que não
podem esconder mais do que uma ou duas pessoas. Você precisa descansar Arthur.
Faz tempo que está fora de casa, acaba vendo o que não existe.

Lancelot fez um sinal para que seus homens estacassem. O batedor acabava de
chegar com notícias terríveis. Os saxões estavam reunidos ao norte e a leste de
Glenus, bloqueando a passagem para a antiga Via Romana.

— Quantos são?

— Centenas, talvez milhares.

— Estão em formação de batalha? Já fomos vistos?

— Acho que não.

— Podemos passar ao largo? Ou fora da estrada? O batedor sacudiu a cabeça.

Projeto Revisoras 242


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— São muitos e estão se espalhando rapidamente.

— Maldição! Seremos obrigados a desfechar o assalto final. Lancelot virou-se e


consultou seus lugares-tenentes.

— Formação em cunha... não vamos entrar em choque... Atacar apenas para


abrir caminho. Eles estão a pé, então continuaremos a cavalgar.

Silenciosamente, os homens entraram em formação sabendo que, dentro de


poucos instantes estariam completamente expostos aos saxões. Lancelot ergueu o
braço. O único som que ouvia era o do metal raspando o couro, quando as espadas
foram desembainhadas. Abaixou o braço e estimulou o cavalo, que se arremeteu para
a frente já a passo de batalha.

Viu o ar de surpresa nos rostos fechados de seus homens, quando os saxões


apanharam rapidamente seus machados e enfileiraram-se. Feito louco, abriu caminho
talhando, recortando, golpeando, cortando... Nas poças de sangue jaziam cavalos e
homens. Já não era uma batalha, era uma carnificina contínua...

Rompida, por fim a linha, viram-se livre de repente. O espaço estava limpo
diante deles. Era um momento único e que não se repetiria se o deixassem escapar.
Ergueu o braço e seus homens começaram a retirar-se quase deitados sobre as selas,
para que os saxões não os atingissem por trás. Uma vez fora de vista, diminuíam a
marcha para dar algum repouso a seus cavalos. Mas Lancelot continuou, não
parando senão muito além. Em sua mente havia um único pensamento: alcançar
Arthur e lutar mais uma vez ao lado dele.

A infantaria de Arthur deteve-se junto à margem do rio e quase todos


atiraram-se ao chão relvoso para descansar. Mas os homens ainda ansiavam por uma
vitória decisiva e pela volta ao lar.

No ar parado ressoou subitamente o grito de guerra dos Scotti. Havia centenas


deles galopando o outeiro. Logo, uma nuvem de flechas escureceu o céu antes tão
azul.

— Protejam-se! — gritou Arthur, pondo-se de pé. — Se continuarmos aqui,


ficaremos completamente expostos! E entrem logo em formação!

Bedwyr e Gryflet tentaram, mas o espaço disponível era estreito demais.

— Temos que achar um descampado, onde possamos desembainhar nossas


espadas e lutarmos por nossas vidas!

Projeto Revisoras 243


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Arthur apontou para uma área arborizada além do rio.

— Vamos atravessá-lo e proteger as margens. E se os cavalos seguirem a


correnteza, podemos também nadar. O rio não é tão longo assim.

Um infante jogou-se no rio e logo suas águas tranqüilas tingiram-se de


vermelho. Os outros recuaram.

— Vamos! — incitou-os Bedwyr, levando seu cavalo para o rio. — Não será
pior do que ficarmos aqui, ao alcance das flechas dos Scotti!

Uma pequena parte dos homens havia conseguido alcançar a outra margem,
quando os cavaleiros de Medraut apareceram soltando selvagens gritos de guerra.
Foi o sinal para que os homens de ambos os partidos se lançassem uns contra os ou-
tros, num choque tão formidável, que se ouviu a uma milha de distância. Excalibur
brilhou e as espadas de dois gumes também brilharam ao sol. Os corvos crocitaram e,
atraídos pelo cheiro de sangue, puseram-se a voar cada vez mais baixo.

Nesse instante, Lancelot chegou com reforços e pôs-se a lutar ao lado de


Arthur.

— Deixe-me terminar o serviço. Por esta vez e para sempre.

— Não sei quantos de meus homens estão fora de combate, Lance. Não quero
arriscar nenhum dos seus, quando a maior parte dos meus já morreu.

— Descanse, então. Meus homens tomarão conta do rio e das margens.

— Descansarei quando estiver morto e enterrado. Mas não deixarei meus


homens aqui. Nem os seus. Partiremos para Camelot amanhã bem cedo.

— Terá antes que atravessar o Cam. Espero que não haja surpresas.

Na manhã seguinte as tropas preparavam-se para vadear o rio, quando dois


cavaleiros se aproximaram a galope. A espada de Lancelot brilhou e Arthur
desembainhou Excalibur. Nenhum dos dois esperava ver Nimue, a túnica enfunada
pelo vento, os cabelos esvoaçando. Nem Gwalchmai, ferido, de bruços sobre a sela
do outro cavalo.

Lancelot sustentou-o, antes de retirá-lo e depois de depositá-lo sobre a relva,


avaliou o ferimento da coxa provocado por um golpe de espada.

Arthur ajudou Nimue a desmontar.

— Em nome dos céus, o que veio fazer aqui?

Projeto Revisoras 244


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Viemos avisá-lo... Gwalchmai completou:

— Cissa cercou Camelot.

— E Guinevere? — alarmou-se. — Foi para Bela Vista, como eu lhe pedi?

— Não — respondeu Nimue, enquanto cuidava do ferimento de Gwalchmai.


— Está na Ilha com Peredur e Galahad.

— Menos mal! — Suspirou Arthur. —: Se Gwalchmai estiver em condições de


viajar, partiremos amanhã. Caso contrário, ficaremos aqui junto ao desembarcadouro
do Cam.

No dia seguinte, encontraram Gwalchmai com olhar parado, a boca babosa


proferindo palavras sem nexo. O ferimento infeccionara, apesar dos cuidados e das
ervas de Nimue. E ela precisou drená-lo com meios primitivos de que dispunha.

— Não poderá ser removido. — Decretou, ao final. — Caso contrário, morrerá.

— Ficaremos todos aqui — concluiu Lancelot. — Bedwyr, venha me ajudar.

Cavaram uma trincheira, os arqueiros fizeram uma barricada e assentaram um


bivaque provisório. Esperaram o dia todo que a febre de Gwalchmai baixasse.
Alguns homens adormeceram e a noite desceu, envolta em seu manto de estrelas.
Clarões verdes e rosados cobriam a lua e Arthur lançou, baixinho, um assobio de
surpresa.

— Bom ou mau augúrio? — perguntou-lhe Lancelot.

— Maus ou bons, o que importa? Lutaremos, e o que houver de ser, será.

No dia seguinte, pouco antes do amanhecer, Arthur sentiu a terra tremer. Na


outra margem do Cam, oitocentos homens de infantaria desfilavam diante de
Medraut, montando um corcel negro, seguido de trezentos cavalarianos. Após essa
exibição de força, ele adiantou-se acompanhado de Morgana.

— Ele trouxe a mãe para o campo de batalha... — murmurou Gryflet,


surpreso.

— Não se deixe enganar. Ela o domina e ele a mataria, se tivesse a


oportunidade.

Arthur ergueu a bandeira branca para parlamentar e esporeou seu cavalo para
a frente.

Projeto Revisoras 245


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— Quer falar comigo? — perguntou Medraut, destilando ironia.

— Não tenho motivos para lutar contra seus homens nem com você — disse
Arthur calmamente, ignorando a ironia. — Voltem para o Leste e vivam em paz.

— Isso será fácil demais, meu pai. Mas farei o que minha mãe pediu, não o
matarei.

— Quanta bondade... O que ela quer em troca? Morgana adiantou-se:

— Quero que faça de Medraut o seu co-regente e de mim sua consorte — ela
afirmou, sustentando o olhar de Arthur.

Ele suspirou. Quase esperava por isso...

— Não posso fazer o que me pedem — respondeu simplesmente.

Medraut puxou imediatamente a adaga e Lancelot pousou a mão sobre o


punho da espada.

— Não, Lance. Não faça isso — interveio Arthur.

— Seria uma boa ocasião de acabar logo com esse pedante!

Não trocaram mais palavra, esperando que Medraut voltasse a se manifestar.


Mas ele nada disse.

— E agora? O que vamos fazer? — perguntou Gryflet.

— Eles estão à espera — respondeu Arthur, apontando para o bosque que


cobria a colina em frente.

— Vamos atacá-los antes que cheguem outras tropas.

— Não. Não serei eu a começar esta guerra!

Duas hora depois, quando não esperavam mais nada, o descampado ganhou
vida. Tropas surgiam de todos os lados. As de Cissa, de Agrícola e, de Camelot, a
companhia de Gwalchmai... À vista dos quinhentos cavalarianos descansados, os
aliados de Medraut retiraram-se e infiltraram-se rapidamente na floresta densa, onde
os cavalarianos não poderiam caçá-los como animais selvagens.

O que aconteceu a seguir foi um espetáculo estarrecedor de combate. Algo que


homem nenhum jamais esqueceria, um vislumbre do inferno.

— Basta! — disse Lancelot a um certo momento. — Aqui, não há mais nada a


fazer. Onde está Arthur?

Projeto Revisoras 246


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Bedwyr lançou um olhar ansioso sobre os corpos que cobriam o campo.

— Não sei. Estou à sua procura há algum tempo. Encontrei Valiant morto.

— E Medraut? Conseguiu escapar. — Sim e também Morgana.

— E Gwalchmai? — perguntou Lancelot.

— A febre o levou — disse Nimue, com ar contrito. — E Arthur? Onde está?

Freneticamente, puseram-se a revirar os corpos que jaziam em torno.


Tomados de compreensível apreensão, vasculharam, esquadrinharam, investigaram
até que, por fim, ouviram um débil gemido vindo do alto do outeiro. Nimue correu,
galopando a encosta.

Então viu-o claramente. Uma grande mancha vermelha emplastrava-lhe o


gibão. Ao seu redor havia apenas o sangue que empapava a terra. Caiu de joelhos ao
seu lado e o ouviu dizer baixinho:

— Leve-me para casa.

Três dias após sua partida, Peredur voltou com a bainha encantada e
Guinevere fez uma silenciosa prece de agradecimento.

— Vou levá-la para Arthur.

— Eu a escoltarei, milady — ofereceu-se Galahad.

Peredur aprovou com um gesto de cabeça.

— E eu também.

— Chegaremos logo, se nos apressarmos. Estou preocupada. As luzes


dançaram no céu ontem à noite. Segundo Merlin é um sinal. Não sei se bom ou mau.

Galahad olhou-a com surpresa.

— Milady não deveria permitir que as superstições de um druida que já


morreu interferissem em seus julgamentos!

— Não são superstições. Fazem parte da realidade de quem sabe ver além das
estrelas. Mas vamos deixar essas considerações de lado. Nosso objetivo é encontrar
logo Arthur.

Atravessaram o lago e puseram-se imediatamente a caminho.

— Veja que estranho, minha rainha — disse Peredur, apontando para um


riacho que corria tranqüilo, beirando a estrada.

Projeto Revisoras 247


Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

— As águas parecem rosadas. Este não é um braço do Cam?

Guinevere foi assaltada por um arrepio inesperado. O gélido frio da


premonição.

— Pode ser alguém tingindo suas roupas. Mas vamos ficar atentos.

Algumas horas depois, viram os primeiros corpos. Galahad desmontou e foi


examiná-los.

— Saxões — disse.— Parece que ninguém teve tempo para enterrá-los.

— Devem ter sido surpreendidos pelos homens de Agrícola — arriscou


Peredur, enquanto retornavam a marcha. Nenhum dos três estava preparado para a
visão que tiveram a seguir. O Cam era um rio de sangue. Às suas margens, cavalos e
homens estavam caídos aos montes. A cobri-los havia apenas a bruma, a umidade e o
cheiro inconfundível de sangue. Parecia não existir vida em lugar algum.

Então, a distância, Guinevere distinguiu um pequeno grupo de pessoas


sentadas no chão.

— Ali — apontou para os dois rapazes. — Vamos ver quem são.

Cuidadosamente, abriram caminho por entre os cadáveres. Ao se


aproximarem mais, viu Lancelot e correu para ele.

— Lance!

Ele a tomou nos braços e a manteve apertada contra o peito.

— Guinevere... Guinevere...

— Onde está Arthur?

— Arthur está morrendo, meu amor. Nimue encontrou-o na crista da colina, já


ferido de morte.

— Não pode ser! Ele sempre sobrevive. É um forte! — Guinevere desesperou-


se.

— Arthur perdeu muito sangue.

— A bainha de Excalibur! — ela se lembrou. — Estava com Peredur o tempo


todo... — Rapidamente tirou-a da bolsa da sela e passou-a para ele.

— Por Mythras! — gritou Lancelot. — Vamos, Guinevere! Vamos para junto


de Arthur. Talvez haja tempo!

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

Juntos correram para a figura que jazia no solo, imóvel. Arthur tinha os olhos
fechados e as faces pálidas. A vida estava se esvaindo dele, junto com o sangue que
escapava das ataduras apertadas que lhe cingiam o peito. Guinevere ajoelhou-se ao
seu lado, no instante em que Nimue iniciava um novo canto.

— Meu querido...

Ele abriu vagarosamente os olhos.

— Guinevere... é você mesma ou já estou no outro mundo... ou talvez


sonhando?

— Sou eu — ela murmurou, tomando-lhe a mão. — Fique conosco, eu trouxe a


bainha e Nimue cuidará da magia. Por favor, não se vá! — Guinevere voltou-se para
Nimue. — Ele vai viver, não vai?

— A bainha vai apenas impedir que ele perca mais sangue. Teremos que levá-
lo para Avalon.

— Arthur não precisa de repouso? — preocupou-se Lancelot.

— Se não alcançarmos a Ilha logo, ele morrerá pela manhã.

As primeiras luzes da aurora tingiam o horizonte, quando alcançaram a


margem do Lago Sagrado. A barcaça estava à espera e o encapuzado remador já se
encontrava ao leme.

— Bedwyr... procure Medraut — murmurou Arthur com um fio de voz. —


Quero que ele saiba que o meu sucessor será Custennin. Ajude-o, Lancelot, e estará
ajudando Camelot a reviver.

— Tentarei, meu amigo.

— Não tente. Faça! Mande... mande Galahad e Peredur em busca do Santo


Graal! — Depois fez um gesto para que ele e Guinevere se aproximassem e
completou: — Agora ela é sua, Lance.

Nimue pôs-se então a murmurar uma antiga oração para os espíritos que
partem e entrou no barco. Ajeitou a cabeça de Arthur sobre seu colo e sorriram um
para o outro. Ele procurou-lhe a mão, beijou-a, e uma expressão de paz desceu sobre
seu rosto.

Guinevere compreendeu de repente que os dois se amavam. O coração de


Arthur pertencia a Nimue, assim como o dela pertencia a Lancelot. E, num relance,

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Cynthia Breeding – O Destino de Camelot

entendeu que se Nimue não fosse sacerdotisa, Arthur teria se casado com ela. E se ela
própria fosse livre para amar livremente Lancelot, Medraut não teria motivo para
armar a sua odiosa trama. A Távola Redonda ainda abrigaria seus cavaleiros, o
desembarque a Cam não teria acontecido e eles não estariam agora vendo Arthur
morrer aos poucos.

E no breve segundo daquele último olhar de agonia, recordou por que Merlin
se zangara tanto ao vê-la junto a Lancelot na primeira vez: porque era tarde demais.
A Roda da Vida já começara a girar.

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