CHE - 237 - Deborah Johns - Encontro Com o Destino
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CHE - 237 - Deborah Johns - Encontro Com o Destino
(Maiden of Fire)
Deborah Johns
Clássicos Históricos Especial n° 237
Querida leitora,
Leonice Pomponio
Editora
Nota da Autora
PRÓLOGO
Montsegur, 1314
atrás nos campos de batalha da Cidade Santa, quando ainda era jovem e puro
como a terra em que pisara.
Uma coruja piou de repente, a névoa tornou a ficar espessa e Montsegur
desapareceu dentro da escuridão. O encanto se quebrou e Pedro de Bolonha,
sentindo novamente o peso da idade, olhou ao redor, constatando que para
chegar ao fim da viagem teria que enfrentar mais uma hora de subida íngreme
e perigosa.
— Montsegur foi construída bem antes do tempo do conde Raymond
Roger de Foix — disse o guia, um camponês de sotaque carregado a quem
Pedro, italiano de nascimento, encontrava dificuldade para entender —,
embora o conde Raymond seja sempre lembrado como o mais notável
defensor da cidade. Então os diabólicos pagãos, os canalhas francos, se
esgueiraram por esse mesmo caminho numa madrugada chuvosa e...
Com um gesto imperioso de mão, Pedro fez sinal para o aldeão se calar.
Conhecia muito bem a história do desastre que se abatera sobre Montsegur e a
criança não precisava sabê-lo. Não já.
Gentilmente, o templário aconchegou a menina nos braços, a figura etérea
dando a impressão de não pesar nada. Contudo, quando Montsegur
desaparecera no meio da bruma, sentira uma necessidade urgente de apertá-
la junto de si, como que para se reassegurar de que pelo menos a criança lhe
pertencia. Apesar de não ter pretendido acordá-la, acabou despertando-a. Os
olhos verdes e límpidos o fitaram como no dia em que a havia achado, faminta
e exausta, vagando pela aldeia devastada. E mais do que o toque suave da
mão pequenina, mais do que as palavras sussurradas com uma maturidade
muito além de seus anos, haviam sido aqueles olhos que lhe disseram ser ela a
escolhida.
Sua Madalena.
— Você está me machucando — a garotinha reclamou; a voz solene
parecendo pertencer a uma adulta, não a uma menina de três anos.
Mesmo não sendo especialista em crianças, poucas delas se aventuravam
a romper as barreiras impostas por sua vida monástica, Pedro tinha plena
consciência de estar lidando com uma menina singular, única.
— Oh, sim, claro. — O monge suavizou a pressão das mãos. — Eu jamais
pretendia machucá-la. Jamais.
— Ainda não chegamos? Estamos perto daquele lugar especial?
Até aquela leve impertinência o enternecia. De fato, julgava-a sem
nenhum defeito. O modo como falava, o doce sotaque tão diferenciado do
francês rude, típico de Paris, o agradava imensamente porque, nos últimos
anos, passara a odiar tudo o que se relacionasse a Paris. E com razão.
A criança era tão novinha. Ninguém perceberia sua ausência, ninguém
sairia à sua procura. Aliás, tomara os cuidados necessários para que tal coisa
não acontecesse. Como poderiam eles valorizá-la? Agira bem levando-a
embora da aldeia.
— Estamos quase chegando, querida menina. Estamos quase chegando,
querida Claire — apressou-se a se corrigir. — Somos esperados.
— Estou com medo. — A menina procurou a mão do monge, a mesma
mão que rejeitara segundos atrás. — Estou com fome e com frio. Sinto saudade
da minha mãe. Quero a minha mãe.
— Olhe, estamos quase nos portões da fortaleza. Porque você não os está
enxergando não significa que não estejam lá.
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CAPÍTULO I
Montsegur, 1331
verdadeiro caminho. Meu pai estava entre os que se arrependeram. Ele era
primo distante do último conde, mas perdeu o título de nobreza.
— Qual é o nome de seu pai? Por que nunca ouvi falar dele?
— Porque meu pai era pobre, fruto do ramo mais fraco de uma família rica
e poderosa. Homens como meu pai raramente deixam uma marca. Não são
notados.
Essa resposta, verdadeira de fato, pareceu satisfazer o homem que a
interrogava. O inquisidor assentiu e fez sinal para Claire continuar o relato.
— O avô de meu pai se retratou com São Domingos de Gusmão, o
fundador de sua ordem, Eminência. De livre e espontânea vontade, meu avô
prometeu que, durante cinco gerações, as mulheres de sua família seriam
consagradas à vida religiosa, entrando para o convento dominicano de
Montsegur. Seria a maneira de reparar os graves erros de nossos ancestrais.
— É por este motivo que a mandaram para mim? Por que você está num
convento próximo?
— Sim, milorde — Claire mentiu suavemente. — É por esta razão que
estou aqui.
— Não é verdade — rebateu Jacques Fournier, seco. — Você me foi
enviada por ter amplo conhecimentos de latim, não por qualquer outro motivo.
Agora, explique-me: como você é tão eficiente no domínio da língua santa?
— Também domino grego e um pouco de hebraico — afirmou Claire, que
havia ensaiado bem o pequeno discurso. — Fui escolhida desde a infância para
aprender as línguas santas e ser útil à missão do convento.
O inquisidor a fitou fixamente, como se a enxergasse pelo avesso. Muito
pouco escapava àquele olhar.
— Você sabe quem sou eu?
— Sim, milorde. Você é Jacques Fournier, bispo de Pamiers — respondeu.
— E bispo dessa região também. Pelo menos até outro ser apontado.
Mantendo-se calada, Claire assentiu com um gesto de cabeça.
— Você sabe por que estou em Montsegur? — prosseguiu o inquisidor, em
um tom mais afável.
— Para abençoar o novo conde de Segni, chegado recentemente do sul,
em sua tomada de posse do castelo.
Alguém deixou escapar uma risada divertida e, pela primeira vez, Claire se
deu conta da presença de um homem alto ao lado de Fournier.
— É verdade e você o disse bem. — O bispo se inclinou ligeiramente para
frente, diminuindo a distância entre os dois. — Todavia, duvido de que o
convento deixaria uma noviça sair de seu confinamento apenas para
desempenhar o papel de escriba numa função simples como a bênção de um
castelo. Sua abadessa não lhe contou sobre a razão real de sua presença aqui?
— Sim, ela me contou. — Claire o fitou diretamente. — Estou aqui porque
um herege cátaro foi capturado. O julgamento do infiel começará em breve e
vocês precisam de alguém para redigir as atas do julgamento de forma correta.
— Foi isto o que a abadessa me disse. Esta é a função para a qual fui
convocada.
"Você deve engolir o orgulho e parecer um anjo. Você deve ser humilde
perante o inquisidor. É a única maneira de ajudar os Perfeitos". As palavras de
padre Pedro ecoaram em sua mente, fortalecendo-a.
— Estou aqui para lhes prestar auxílio.
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mas precisamos ter cautela. Num passado recente, há setenta anos, santos
inquisidores foram assassinados enquanto rezavam. Que tal blasfêmia,
acontecida em Avignonet, jamais se repita. Esta menina continuará vivendo no
convento, como de costume, e virá ao castelo para documentar o julgamento.
Não existe a menor possibilidade de que a culpa de Belibaste não venha a ser
amplamente provada. Não queremos transformá-lo num mártir!
Às palavras do inquisidor seguiu-se um burburinho de aprovação.
— Não temos tempo de esperar a chegada de um escriba. O acusado deve
ser julgado antes que sua gente tente libertá-lo. Você, menina, será trazida do
convento pela manhã e levada de volta à noite. Durante o dia, se dedicará a
registrar o julgamento. Todo o processo deverá ser documentado com
precisão. Não queremos que o acusado seja sentenciado sem ter a culpa
comprovada. A justiça prevalecerá acima de tudo.
Claire assentiu.
— Pois bem. Sir Aimery, conde de Segni, designará um servo para
acompanhá-la até o convento.
— Sir Aimery, conde de Segni, acompanhará a noviça pessoalmente —
disse uma voz baixa e profunda.
Surpresa, Claire virou-se para a origem do som. Estivera tão preocupada
com Jacques Fournier, que mal reparara no homem musculoso ao lado do
inquisidor.
Mas ele a tinha notado.
Era comprovado que a perspectiva de um julgamento público atraía
curiosos a uma aldeia como moscas a um pote de mel. Assim, o julgamento de
William Belibaste, aliado à cerimônia de tomada de posse do novo senhor do
castelo, transformara as ruas estreitas de Montsegur num aglomerado de
visitantes. Claire, Aimery, e a guarda de honra que os seguia, avançavam
lentamente, abrindo caminho no meio de camponeses, mercadores e artistas
circenses.
Com o olhar abaixado e as mãos cruzadas, Claire caminhava em silêncio,
incapaz de fitar o nobre a seu lado. Padre Pedro a avisara, e ela sempre
seguira à risca seus conselhos. Sabia o que esperar de homens como Aimery
de Segni. Embora pertencessem à nobreza e se comportassem com a
arrogância típica, por trás do aparente refinamento, das roupas espalhafatosas,
das botas de couro pintado e bico fino, ele, como todos os de sua classe, podia
ser tão grosseiro e destituído de sentimentos quanto qualquer aldeão. Pior até.
Afinal, não fora o que presenciara no grande salão pela manhã? Enquanto o
destino de um camponês estava sendo discutido ali, os cavaleiros do de conde
Aimery haviam rido e se divertido como se estivessem numa festa, ignorando
até mesmo a presença do inquisidor-mor.
E parecera-lhe óbvio que o novo lorde de Montsegur não era melhor que
seus comandados. Claire fitou-o de soslaio. Se fosse sincera consigo mesma,
admitiria que Aimery de Segni não se encaixava, pelo menos fisicamente, no
padrão cultivado pelos aristocratas. Muito alto, musculoso, suas roupas nada
tinham de extravagantes. Pelo contrário, exibiam uma sóbria elegância no
corte e na combinação das cores. As botas também acompanhavam o estilo
discreto da túnica, escuras e sem ornamentos desnecessários.
Todavia, tais qualidades exteriores não a iludiam, pois notava o efeito que
esse gigante louro tinha sobre as mulheres com as quais cruzavam. Estava
claro o quanto a beleza viril atraía o sexo oposto, independente da idade.
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Corada ela era, e viçosa como um raio de sol. Seus seios incitavam todos os
homens a mordê-los Tenros de amor; doces como fruta madura. Assim é nossa
Lupa. Nossa loba do Cabaret.
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freiras não deveriam nunca tê-la mantido no convento contra sua vontade. Por
que uma mulher tão linda optaria por viver trancafiada dentro de quatro
paredes? Este é o enigma que pretendo decifrar.
Claire abriu a boca para retrucar, mas conteve-se a tempo. Lorde Segni a
estava provocando e precisava resistir a qualquer custo, ou deixaria
transparecer o que não deveria. Como vira madre Helene fazer diversas vezes
no convento Santa Madalena, cruzou as mãos sob o avental, numa tentativa de
impressioná-lo e parecer solene. Subitamente tornara-se imperativo que
Aimery de Segni soubesse não estar lidando com uma mulher com quem
pudesse brincar à vontade.
Todavia o conde não se desencorajava com facilidade.
— E você tem esses maravilhosos olhos de gata. Claire não disse nada.
— Além de cabelos vermelhos. A marca de uma feiticeira.
Enfim conseguira a reação que desejara. Mal acabara de falar e Claire já
tentava recolocar a mecha de cabelos sob a touca engomada.
— É uma mecha pequenina, porém o brilho intenso dos fios fez com que
eu reparasse na cor. Percebi-o de imediato, mas duvido que o inquisidor a
notara, ou teria feito algum comentário. Trata-se de uma cor interessante,
especialmente para alguém prometida tão cedo à vida monástica, alguém que
julga possuir tanta vocação para o claustro.
Devagar, Aimery estendeu a mão e tocou os fios sedosos, quase
reverente.
— A cor de meus cabelos não foi escolha minha. Não posso fazer nada a
respeito.
— É verdade. — Eles haviam chegado às muralhas do convento. Com o
punho da espada, o conde bateu duas vezes na pesada porta de carvalho, o
som reverberando pelo silêncio do entardecer. — Não tenho nada contra a cor
de seus cabelos. Pelo contrário, acho-os maravilhosos. Porém, possuo duas
primas enclausuradas num mosteiro nessa região da França e sei que o
costume é raspar os cabelos das noviças, como um sinal de piedade.
Entretanto a abadessa do Santa Madalena permitiu que você mantivesse os
fios longos sob a touca de noviça. Pergunto-me por quê. Sim, fico imaginando
por quê.
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CAPÍTULO II
cercavam. Ele também arriscara a própria vida para levar-lhes a querida Claire
e permanecera devotado à pequena órfã por duas décadas.
Por sorte, a velha freira achava-se distante demais para ouvir a conversa
dos dois.
— De qualquer forma, talvez as atenções que o conde lhe dispensou
venham a ser providenciais — padre Pedro murmurou satisfeito, como se
prevendo desdobramentos satisfatórios e, até o momento, imprevistos.
Claire abriu a boca para contar que sir Aimery não apenas notara a mecha
de seus cabelos, como a tocara. Ainda podia sentir a pressão dos dedos fortes
em sua testa. Chegando a seu quarto, lavara o rosto imediatamente, ansiosa
para se livrar da sensação indescritível provocada pelo toque másculo. Porém,
de nada adiantara. Não conseguira apagar a impressão inquietante, assim
como não conseguia contar ao monge tudo o que acontecera.
— Aimery de Segni é um guerreiro — continuou o templário, apertando o
passo. — E guerreiros são todos iguais. Anseiam por batalhas e derramamento
de sangue. Não podem nem sequer começar a compreender a felicidade que
encontramos em nossa vida simples e é este o principal motivo pelo qual
perseguem os cátaros Perfeitos tão implacavelmente. Não são capazes de nos
entender. E como poderiam, sendo tão diferentes dos Bons e Justos?
Pedro de Bolonha suspirou, pensando na perfídia daqueles que os
espreitavam do lado de fora dos muros do convento.
— Mas você também foi um guerreiro — falou Claire, apoiando-se no braço
do velho sacerdote. — Você era um cavaleiro templário e os templários
combateram os infiéis ao lado dos grandes reis da Europa durante as Cruzadas.
— De fato, é verdade. Até que os reis se voltaram contra nós.
Ela conhecia a terrível história de padre Pedro, escutara-a dezenas de
vezes e gostaria de escutá-la novamente. Passara uma hora inteira sozinha, na
companhia de Aimery de Segni, e o resto da tarde perturbada por lembranças
do que acontecera durante o trajeto até o convento. Assim, desejava a
qualquer custo tirá-lo da cabeça e substituir a figura viril por algo que conhecia
e podia entender. Também angustiava-a constatar que, pela primeira vez,
guardava um segredo que não ousava partilhar com o amado sacerdote. Pela
primeira vez fora tocada por um homem. Ela, Claire, consagrada aos cátaros
quando ainda criança. Como padre Pedro se divertira com a idéia! Quem
pensaria em procurar um membro dos Perfeitos dentro de um convento
consagrado por São Domingos em pessoa? Os dominicanos eram amplamente
reconhecidos como os responsáveis pela instituição da Inquisição. Portanto,
nada mais natural que os Perfeitos tramassem sua pequena vingança
escondendo sua Madalena sob o manto da Igreja.
Todavia, padre Pedro não parecia disposto a falar de qualquer outro
assunto que não fosse Aimery de Segni.
— Ele disse mais alguma coisa sobre seus cabelos?
— Disse serem da cor típica associada às feiticeiras.
Após alguns segundos imóvel, o monge retomou a caminhada pelo
claustro. A lua acabara de nascer, derramando seus raios luminosos sobre a
beleza plácida de Languedoc.
— Aimery de Segni possui olhos penetrantes e, com certeza, uma mente
mais arguta ainda. Sempre foi assim, apesar de seus modos dissolutos.
— Então você o conhece?
— Todos conhecem os Segni. Trata-se de uma família famosa. Conhecida
há gerações.
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— Mas eu não sei nada sobre ele. A única coisa que sei sobre cavaleiros
mercenários é que, às vezes, costumam se aliar aos inquisidores. E que são os
responsáveis pela morte de minha família.
— Isto é tudo que você precisa saber e do que deve se lembrar sempre —
afirmou o templário, convicto. — E faria bem ao orgulhoso sir Aimery descobrir
que existem pessoas para as quais o nome de sua família pouco significa. Os
Segni deixaram de se considerar simples mortais há um século, quando Lotário
Segni assumiu o trono da Igreja com o nome de Inocêncio III.
Novamente o templário estancou, como se perdido nos próprios
pensamentos, esquecendo-se da noviça ao seu lado.
— No momento em que Lotário Segni ascendeu ao papado, acabou a paz
de nosso povo e a paz de toda a cristandade. Como Inocêncio III, ele nos
perseguiu, aprisionou e matou implacavelmente, determinado a subjugar essas
terras à sua autoridade. O rei da França e outro papa, Clemente V, não
descansaram até lançar todos os meus irmãos templários em suas sepulturas e
selar nosso destino para sempre. Aqui, os Perfeitos haviam conseguido
construir um porto seguro, onde todos os perseguidos sentiam-se bem-vindos.
Enquanto no mundo cristão eram tratadas como escória, em Languedoc
aceitavam-se mulheres no clero dos Perfeitos, permitiam-nas ministrar os
sacramentos. Nós, chamados de cátaros, levávamos uma vida simples. E talvez
fossem nossa paz e harmonia, cantadas pelos trovadores, o que incomodou
Lotário de Segni, levando-o a nos massacrar. Mas essa não é a razão pela qual
o infame iniciou a Cruzada contra seus irmãos cristãos. O papa afirmava que a
verdadeira fé precisava ser defendida. Porém, naturalmente, o motivo real da
barbárie era outro. Como sempre, o que estava em jogo eram terras, dinheiro e
poder. Eles mataram os templários porque acreditava escondiam um tesouro.
Como nada encontraram, e ainda cheios de cobiça, viraram-se contra os
cátaros. Essa era uma terra rica, povoada por nobres abastados.
Padre Pedro fitou Claire fixamente, os olhos febris e irrequietos
denunciando agitação interior.
— Rumores insistentes afirmam que os cátaros esconderam o tesouro ao
pé de uma das colinas ao redor de Montsegur, quando ficou claro que as tropas
de Simon de Montfort sairiam vencedoras. Mas não é verdade. O tesouro dos
cátaros sempre esteve escondido e assim permanecerá. Aliás, poucos têm
certeza de sua existência. Todavia, creio que Jacques de Fournier conhece a
verdadeira natureza desse tesouro. Assim como eu. Os Segni e os Montfort
sempre conseguiram tudo o que queriam neste mundo — prosseguiu o velho
monge, quase como se falasse sozinho. — Desta vez isso não acontecerá. Eles
tentaram, tentaram e tentaram, porém nunca conseguiram arrancar tudo o
que pertencia a nós. Nunca conseguiram nos matar a todos. Agora estamos de
volta, embora ainda permaneçamos nas sombras, escondidos. Mas chegou a
hora de nossa vingança. Tomaremos de volta o que por direito nos pertence.
— Então nos reuniremos aos outros em breve, com Ruch Anger, Guy de
Loc e madre Helene — murmurou à noviça —, e libertaremos William Belibaste
antes que seja tarde demais.
O templário sorriu-lhe, ainda dando a impressão de que contemplava uma
visão secreta, que não pretendia partilhar com ninguém.
— Ah, sim, Helene e os outros. Todos trabalhando juntos, arduamente,
para libertar nosso último Perfeito. E, sem dúvida, Belibaste também ficará
livre no final.
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CAPÍTULO III
lhe diziam coisas apenas por dizer, com o único objetivo de provocá-lo, de
atiçar seu interesse.
— Você deu muito crédito a meu capricho. Fui mimada pelas freiras que
me criaram, é só. Elas afrouxaram certas regras em meu benefício,
concederam-me certos privilégios. Além do mais, raspar a cabeça não é,
realmente, uma regra do convento, é mais um costume. Cheguei ao Santa
Madalena quando era uma menina. Aquelas mulheres me acolheram como a
uma filha. Vivi tão cercada de atenções, que acabei ficando mimada.
— Então imagino que você irá raspar a cabeça amanhã apenas para me
espezinhar. Porque você sabe o quanto me dá prazer imaginar seus cabelos
sob a touca, sendo eu um dos poucos que já os viu. É quase como se nós dois
partilhássemos um segredo.
Se ele planejara perturbá-la, enganou-se. Claire deu de ombros,
desinteressada.
— Seria um segredo banal, visto ser partilhado com um convento cheio de
freiras. — Pausa. — Não consigo imaginar porque meus cabelos iriam
interessá-lo. Quero que você aceite o lenço de volta.
Aimery fitou o horizonte. Na verdade, não fazia a menor idéia do que
queria dessa mulher. Ainda não entendera por que, movido por um impulso
incontrolável, fora atrás do mercador da Província de Como para comprar o
maldito lenço de seda, que agora causava essa discussão. Todavia não tinha
intenção de aceitar o presente de volta. Pela primeira vez, desde sua chegada
a Montsegur, estava realmente se divertindo.
Certo de que se não mudasse de assunto continuariam debatendo o
malfadado lenço, procurou ocupá-la com questões mais sérias e importantes.
— Você acha que William Belibaste é culpado de heresia? — Não havia
ninguém em Montsegur que não tivesse uma opinião sobre o acusado e o
muito provável veredicto. Aimery pensou ter visto Claire estremecer com sua
pergunta e se afastar alguns centímetros.
— Não fui chamada pelo bispo para opinar sobre aquilo que escuto. Fui
chamada para registrar os procedimentos do tribunal.
— Entretanto você deve ter algum interesse no que transcorre durante os
interrogatórios — ele insistiu, agradecendo aos céus pela jovem noviça não
persistir na história do lenço. — Você é de Foix e, segundo as informações que
possuo, aquela região fervilhava de cátaros no século passado.
— Fervilhar não é um verbo geralmente associado aos cátaros. É uma
palavra associada a emoções fortes, algo desconhecido para eles. Os cátaros
sempre prezaram um estilo de vida simples e pacífico. Acreditavam na
importância de não ceder às emoções primitivas. Pelo menos é o que eu ouvi
falar.
Dando mostras de não querer levar a conversa sobre esse tópico adiante,
Claire cerrou os lábios. Porém o conde se fez de desentendido.
— Então você ouviu mais do que eu — ele comentou, parando sob a
sombra de um enorme carvalho. — Não sei nada sobre as crenças dos cátaros
e poderia ser de grande valia para eu compreendê-las. Talvez pudesse
entender por que essa heresia enfurece tanto a Inquisição. Se você me
esclarecesse alguns pontos eu lhe seria grato. — Então, sem nenhum motivo,
completou: — Talvez assim eu estivesse em posição de ajudar Belibaste.
Claire hesitou. Em silêncio, os dois retomaram a caminhada para o
convento.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 30
— Há muito pouca coisa que você poderia fazer para ajudá-lo, ainda que
quisesse — ela falou afinal. — Nem mesmo a mais alta nobreza foi capaz de
defender seu povo da Inquisição. Deus é testemunha de que no último século
muitos aristocratas tentaram resistir, aqui mesmo em Languedoc.
— Então você vai me contar essa história? — Aimery pressionou-a. — Não
fale sobre batalhas e mortes na fogueira. Tais acontecimentos podem ser
explicados por outras fontes. Tenho a impressão de que em Montsegur, de meu
cunhado ao servo mais humilde, todos têm alguma teoria sobre o que
aconteceu aqui e sobre quem estava errado. Preciso saber que relevância
possui o passado sobre o presente, por que os cátaros novamente se
expuseram e por que William Belibaste se deixou ser capturado.
— Ele não se deixou ser capturado — Claire revidou. — Nenhum homem
agiria assim.
— Então explique-me o que houve. Preciso conhecer as crenças dos
cátaros, se desejo governar bem esta terra.
Um longo silêncio, antes de Claire ceder ao apelo.
— Todos aqui conhecem a história. Como já lhe disse, é algo de que
ouvimos falar desde a infância, especialmente os camponeses. Os Perfeitos
eram uma gente pacífica e generosa, que ansiava por uma vida espiritual,
afastada do mundo carnal. — Não passou despercebido ao conde o quanto o
assunto a entusiasmava. — Esse pensamento florescia tanto no casebre mais
simples quanto nos castelos dos ricos. Entretanto, isso acabou gerando um
conflito direto com o papa em Roma e o rei em Paris. Inocêncio III foi o primeiro
a lançar uma Cruzada contra os cátaros, aliando-se ao rei da França, cujo
maior objetivo era subjugar os vassalos de Languedoc, conhecidos por sua
natureza independente. Os exércitos aliados, liderados por Simon de Montfort,
varreram Languedoc, pilhando a terra e dizimando a população, queimando-os
como hereges. Uns poucos sobreviveram ao massacre e, pelo que ouvi dizer,
esses sobreviventes vivem escondidos, temerosos de que, a qualquer
momento, a Inquisição os localize e prenda.
Aimery assentiu. A jovem escriba falara sobre muitas coisas, porém não
descobrira nada de novo naquele relato. E as omissões haviam sido curiosas.
Claire não mencionara os rumores sobre os cátaros serem feiticeiros e bruxas.
As mesmas acusações usadas, com grande efeito, a respeito dos cavaleiros
templários poucos anos atrás. Embora ainda não houvesse professado seus
votos, ela pertencia a uma ordem religiosa e, portanto, certamente escutara
tais acusações. Sem perceber, Claire defendera a causa dos cátaros
apaixonadamente. Mais um mistério, ele concluiu pensativo. Um entre muitos.
O dia estava claro, o ar pesado e langoroso. Todavia, apesar das muitas
obrigações que o aguardavam no castelo, o lorde de Montsegur as tinha
adiado, permitindo-se alguns minutos de pura distração. A conversa da noviça
prendia seu interesse. Gostava de ouvi-la expressar suas opiniões com
franqueza e ardor. O único tópico sobre o qual sua futura noiva discorria com
paixão era as várias maneiras de arrumar os cabelos. Isabel de Valois não se
interessava por nada que não estivesse diretamente relacionado à sua pessoa.
E com freqüência Aimery sentia-se grato por seus deveres o impedirem de
passar muito tempo ao lado dela. Felizmente, depois de casados, essa
distância se manteria.
Aprendera a aceitar o que sua posição exigia, como um casamento
arranjado. As terras e o dinheiro dos Segni em troca do poder do sobrenome
Valois. Amor, paixão, e mesmo uma conversa interessante, podiam ser
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encontradas em outro lugar. Pois não estava achando isso agora ao conversar
com a séria e doce noviça? Os simples momentos desfrutados na companhia
da escriba haviam se revelado os únicos agradáveis desde que chegara a
Montsegur.
Mais tarde, Aimery perguntou-se se não fora seu contentamento que o
impedira de avistar a imagem imediatamente. Ou talvez tivesse sido devido ao
tamanho diminuto. Somente quando já estavam às portas do convento é que
notou a ameaça, dependurada num pedaço de pau.
Sua primeira reação foi impedir que Claire a visse, postando-se diante do
objeto. Tarde demais. Ante o olhar horrorizado da jovem, ele retirou a imagem.
Uma boneca pequena, esculpida em sabão de gordura de porco, trajando um
hábito como o das noviças do Santa Madalena, com os cabelos vermelhos, na
verdade fios de algodão, escapando do arremedo de touca.
A barra da túnica branca fora queimada. Sem dúvida, em uma alusão à
fogueira.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 32
CAPÍTULO IV
— Mas Claire de Foix é noviça num convento cristão. Exceto por seu
trabalho como escriba, não sabe nada sobre os cátaros. Como poderia sabê-lo?
Aimery abriu a boca para contar sobre sua conversa com Claire, mas
calou-se a tempo. Afinal, Fournier era o inquisidor-mor e talvez não gostasse
de descobrir quão minuciosos eram os conhecimentos da escriba sobre as
crenças dos Perfeitos.
— Há rumores de que os companheiros de Belibaste tentarão resgatá-lo.
Não seria a primeira vez que essa gente, contrariando sua suposta natureza
pacífica, incitaria um derramamento de sangue. Prefiro ter a noviça a salvo.
— Impossível — repetiu o bispo. — Já circulam comentários sobre as
atenções que você dispensa a essa mulher, destinada a abraçar uma vida
casta. Será melhor deixá-la permanecer onde está, considerando a inexistência
de um perigo iminente.
— Como lorde deste castelo, está no meu direito insistir. Quero a donzela
de Foix retirada do convento Santa Madalena e trazida para dentro das
muralhas de Montsegur.
Durante um longo instante os dois se fitaram fixamente, irredutíveis na
sua determinação.
— Recebi uma carta de sua mãe ontem — disse Jacques Fournier afinal.
O nobre balançou a cabeça, impaciente.
— Você não respondeu à minha solicitação.
— Estou respondendo, se você fizer a gentileza de me ouvir. Sua mãe
manda-lhe recomendações, e à sua irmã. Informa estar partindo de Roma e
voltando novamente para o sul, embora a viagem a fatigue muito. Milady
também se queixou de ligeira indisposição. Mencionou vagamente andar
adoentada. Mas você a conhece. Sua mãe poderia já estar no céu e ainda
considerar a própria doença algo sem importância, exigindo que São Pedro a
mandasse de volta à terra para resolver assuntos pendentes.
Aimery sorriu ante a imagem da diminuta e enérgica condessa de Segni.
— Conheço-a bem e pude perceber seu extremo cansaço nas entrelinhas
— continuou o bispo. — Achei sugestivo ela mencionar uma esposa para você,
aliás, mais de uma vez. As perguntas sobre Isabel de Valois foram insistentes.
— É natural uma mulher da idade de minha mãe querer netos — Aimery
retrucou bruscamente.
— Se não me falha a memória, sua irmã Minerve já a presenteou com
quatro netos. E todos homens.
— Minha mãe quer um herdeiro para o nome Segni. Minha irmã deu à luz
quatro Montforts.
— Sua mãe deseja vê-lo acomodado. Deseja vê-lo feliz. De qualquer
maneira, a questão dos netos não foi mencionada na carta. Mas a questão das
terras, sim.
— Minhas terras não são da responsabilidade de minha mãe. — Apesar de
suas palavras, Aimery tinha consciência de que estava acontecendo
exatamente o contrário devido às circunstâncias que escapavam a seu
controle.
— São da responsabilidade de sua mãe quando ela encontra-se forçada a
administrá-las — rebateu o bispo. — E milady está sendo forçada a administrá-
las porque você pouco permanece na Itália. As terras em Campagna são
responsabilidade sua e você está evitando assumir seus deveres porque
resolveu vir para a França em busca de títulos e terras os quais não necessita,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 35
nem realmente deseja. A condessa já não tem idade para apoiá-lo em suas
ambições.
— Porém meu pai me quereria aqui, se estivesse vivo — Aimery
argumentou, impulsionado por ecos do passado. — Minha mãe não é obrigada
a governar minhas propriedades. Contratei um administrador competente para
cuidar disso.
— Nos últimos dois anos você já teve cinco administradores. Soube-o
através de terceiros, pois condessa Iolande jamais mencionaria esse detalhe,
mesmo levando em conta minha posição de velho amigo da família. Sua mãe
conhece minha opinião a respeito do assunto. Você tem terras demais e,
portanto, encontra dificuldades para administrá-las. Ainda assim, quer mais
terras.
— Montsegur não é uma terra qualquer. Este não é apenas mais um
castelo.
— Mas Montsegur é seu castelo?
Aimery levantou-se num arranco, jogando a pesada cadeira no chão de
pedra, o barulho estridente ecoando pelo aposento silencioso.
— Por acaso Vossa Eminência está insinuando que sou tão ambicioso a
ponto de me apossar de algo que, por direito, não me pertence? O próprio rei
da França me...
— Não ambicioso — interrompeu-o Fournier gentilmente. — Talvez
pressionado fosse a melhor palavra.
— Pressionado a quê? — Recuperando o controle, Aimery recolocou a
cadeira em pé e sentou-se novamente. — Pressionado a tomar posse de mais
terras? Pressionado a conquistar o que minha família espera de mim?
— Sua família... ou seu pai?
Uma vez bastava. O conde não permitiria que o astucioso bispo o
manipulasse, ou o desviasse de seu objetivo. Permitira-se uma demonstração
de raiva segundos atrás e tal coisa não tornaria a acontecer. Comandaria a
situação, como estava acostumado a fazer à frente de seus homens.
— Não tenho a menor idéia do significado dessa sua referência ao meu pai
— ele começou, falando depressa para impedir que Fournier se manifestasse.
— Sei apenas que sou o senhor de Montsegur e, portanto, cabe-me continuar o
ilustre trabalho de meus ancestrais. Manterei essa terra unida sob a égide dos
reis da França. Não tolerarei nenhum tipo de insurreição, política ou religiosa. E
embora eu não deseje lhe mostrar nenhum desrespeito, Eminência, talvez seja
bom lembrar-se de que você está sob minha proteção, não o contrário. Há
rumores insistentes de que os amigos de William Belibaste tentarão resgatá-lo
e que fomentarão uma revolta. Teremos um caminho difícil a percorrer até que
Belibaste queime na fogueira por heresia, se for este mesmo o seu destino. Eu,
particularmente, sou contra tudo isso, inclusive me desagrada vê-lo
desempenhar a função de inquisidor. Mas farei o que for necessário para
assegurar a unidade dessa terra para o rei. Todavia, não arriscarei a vida de
uma moça inocente. A escriba é o elo mais frágil de todos os envolvidos nessa
história. Fomos nós que a colocamos em perigo e o mínimo que posso fazer é
trazê-la para o castelo, onde ficará a salvo.
— Ela não é a única em perigo. Outros acabarão correndo riscos
semelhantes. — Jacques Fournier fez uma pausa, decidindo não insistir na
questão do pai de Aimery. Deixaria para falar de Umberto, dei conti de Segni
numa ocasião mais propícia. — Você possui um dos maiores títulos concedidos
a qualquer guerreiro da cristandade, o que, naturalmente, desperta inveja e
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 36
Diante da piada rude, os outros riram. Todavia Claire tinha certeza de que,
no dia seguinte, aconteceriam mais deserções. Seria uma questão de tempo
até o primeiro traidor aparecer.
— É impossível saber realmente por que esses estrangeiros vieram para
cá — repreendeu-os Helene. — Talvez queiram apenas o castelo. A captura de
Belibaste pode ter sido apenas incidental. Sim, existe a possibilidade de que
eles queiram tudo de nós. Mas talvez não queiram nada.
— A História tem nos ensinado que eles tomarão tudo de nós — interveio
Roger Aude — e quando tiverem tomado tudo, ainda irão querer mais.
Estranhamente padre Pedro se mantivera silencioso durante a troca de
palavras. Entretanto, como o líder, como o coração corajoso do pequeno grupo,
era natural que buscassem sua opinião. A voz do templário soou baixa, quase
inaudível.
— O inimigo suspeita que estamos perto. Desconfiam que Belibaste possui
amigos secretos. Logo essa suspeita se transformará em certeza. Mas seremos
salvos por Claire. Ela usará o poder. — O velho monge a fitou fixamente sem
sorrir. — Você deve usar todos os seus poderes contra esse filho de Satanás,
esse Aimery de Segni. O objetivo do infame é esmagar nossa irmandade, é
massacrar os Bons e os Justos. Ele é mais perigoso que o próprio Inquisidor e
desejará nos ver a todos mortos. Destruirá tudo pelo qual lutamos e nos
destruirá no processo, se não o destruirmos primeiro. Ele tem que ser
aniquilado. O conde de Segni tem que ser morto.
— Por quê? — interrogou-o madre Helene. — Por que você está dizendo
isso? Aimery de Segni não nos causou nenhum mal. Na verdade, tanto ele
quanto Jacques Fournier tem se empenhado em garantir a Belibaste um
julgamento Justo. Se nosso objetivo é libertar Belibaste de forma pacífica, por
que usar violência, matando Aimery de Segni?
— Expliquei-lhe não haver alternativa — devolveu o templário, ríspido. —
Ou o inimigo é destruído, ou nós seremos. Você já se esqueceu das lições de
nossa História? Já se esqueceu do que aconteceu aqui, em Montsegur?
Centenas dos nossos foram queimados nas fogueiras por causa de suas
crenças. Mulheres e crianças massacradas, suas cinzas espalhadas ao vento
sem ao menos o consolo de um enterro cristão. Não está claro o que os
ancestrais do conde fizeram a nós? Você esqueceu nosso passado?
— E você se esqueceu de nossos objetivos? — rebateu a abadessa
gentilmente. — Esqueceu-se dos motivos pelos quais somos Bons e Justos?
Padre Pedro pareceu perder a calma.
— Então você prefere ver William Belibaste morto? Ele é nosso último
Perfeito do sexo masculino. O que nos acontecerá sem Belibaste?
— Claro que não quero Belibaste morto. E farei tudo o que estiver em meu
alcance para libertá-lo pacificamente. Todavia ele não é o último Perfeito do
sexo masculino. Você é. Você foi um sacerdote templário até se unir a nós,
mas continuou sendo um padre. E sacerdotes são Perfeitos, você o sabe tanto
quanto eu. Você tem o poder de ministrar os sacramentos. Em certos aspectos
você é mais um verdadeiro Perfeito do que Belibaste jamais o foi.
— Porque eu não me casei e Belibaste sim.
Um silêncio prolongado seguiu as palavras de Pedro.
— A esposa dele está vindo para cá — disse madre Helene afinal. —
Belibaste pediu a presença da mulher e a Inquisição lhe concedeu o consolo de
tê-la por perto. Provavelmente ela já atravessou as montanhas de Haute
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 43
CAPÍTULO V
daquele a quem devia a vida. — Mas você deve usar seus poderes também.
Essas ervas não são nada sem você. Você tem que entrar na mente de Aimery
de Segni, do modo como sempre praticamos. Concentre-se. Você tem que
descobrir o que ele traz escondido dentro da alma.
Sem muito entusiasmo, Claire concordou.
— Diga seu nome a este tribunal.
— Sou Arnold Sicre. — E então mais alto, como se a criatura baixa e magra
sentada diante do inquisidor-mor de repente se tornasse segura de si. — Sou
Arnold Sicre.
Tratava-se de um nome comum, típico de aldeões, um detalhe de
conhecimento geral.
— Você é o responsável por trazer William Belibaste de volta a
Languedoc?
— Sou o responsável por trazer um feiticeiro e um traidor ao banco dos
réus! — o camponês anunciou no meio da súbita balbúrdia. Ainda era cedo,
porém os cavaleiros e soldados do conde de Segni já se achavam a um passo
da embriaguez, devido ao tédio.
Irritado, Aimery ergueu a mão e seus comandados silenciaram.
— Práticas de feitiçaria ainda não foram provadas — disse Jacques
Fournier com firmeza —, e muito menos traição. Aconselho-o a ter cuidado na
escolha de suas palavras.
O homem assentiu e afundou na cadeira.
Se existia um traidor ali, Aimery pensou, apontaria Arnold Sicre. O delator
de olhar cruel dava a impressão de ter sido criado para desempenhar tal papel
na vida. Miúdo, o rosto cheio de cicatrizes, herança de alguma doença, ele
possuía a estrutura física de quem tivera uma infância pobre e agora agarrava-
se à oportunidade de conhecer a fartura. Não duvidava de que esse traidor
passaria a viver suntuosamente num futuro próximo. De acordo com rumores
insistentes, o bispo lhe prometera uma fortuna em moedas de ouro em troca
de apoio para levar o último Perfeito cátaro a julgamento. Durante anos
Jacques Fournier caçara Belibaste e sua captura representava um sucesso. Um
sucesso capaz de alçá-lo do bispado ao trono papal.
Todos o sabiam, sobretudo Arnold Sicre, que sorria para seu benfeitor
enquanto continuava:
— De fato, sempre estive do lado de Roma e de Paris. E minha...
Talvez devido ao tom monocórdio da testemunha, ou ao calor sufocante
do salão, Aimery distraiu-se, relegando a um segundo plano, pelo menos por
alguns minutos, o relato de Arnold Sicre. Sua atenção voltava-se toda para a
jovem escriba. Embora Claire desse a impressão de estar mergulhada no
trabalho, e sequer levantasse a cabeça do pergaminho, Aimery tinha certeza
de que ela o estudava com a mesma intensidade com a qual a observava.
Claire de Foix representava um enigma, um desafio. E há muito não se
deparava com uma charada instigante. Ela parecia dócil, sossegada,
obediente. Porém o instinto lhe dizia não ser essa sua verdadeira natureza. Sua
verdadeira natureza estava escondida dos olhos do mundo. Ansiava ouvir o
que Minerve lhe diria sobre a noviça. Intuitiva, a irmã sempre fora boa
conhecedora do caráter das pessoas.
— Localizei William Belibaste exatamente onde Vossa Eminência, bispo...
onde me disseram que ele estaria — prosseguiu Arnold Sicre. — Havia um
bando secreto de cátaros escondidos em Sabartès, nas terras dos reis da
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 46
Aimery conduziu a irmã até uma cadeira e a ajudou a sentar-se. Assim que
Minerve começou a se abanar e abriu a boca para se queixar do calor, o conde
a interrompeu, indo direto ao ponto.
— Não quero escutá-la discorrer sobre os incômodos do verão. Quero
escutar o que você não quer me falar sobre Isabel.
Durante alguns segundos os dois se fitaram em silêncio.
— Não tenho nada a acrescentar além do que você já sabe — disse
Minerve, sem deixar de encará-lo. — Isabel é... o que é. Você não a escolheu
por ser um modelo de virtude.
Aimery sentou-se também, sem saber por que insistia em discutir algo que
sempre soubera. Talvez porque suas dúvidas sobre esse casamento
houvessem aumentado, em vez de se dissiparem.
— Conte-me aquilo que você não quer me contar, irmã. Sentada na
beirada da cadeira, Minerve ainda hesitou.
Nunca aprovara as fofocas típicas da Corte e desagradava-lhe comentar a
intimidade alheia.
— Falarei francamente — decidiu-se afinal. — Os Valois, a família de
Isabel, subiram ao poder inesperadamente. Ninguém jamais imaginara que o
tio dela, algum dia, subiria ao trono como Felipe VI. Você sabe que ele é
chamado de le roi trouve, "o rei achado", porque foi levado ao trono em uma
emergência, na falta de outra opção. Antes, Isabel era apenas uma prima
distante do rei da França. Agora, com a ascensão de Felipe, é a sobrinha do rei.
E é uma mulher muito tola para estar tão perto do poder. O conde deu de
ombros e disse:
— Isabel não é uma jovenzinha frívola. Já esteve casada e enviuvou. O tio,
o rei, é muito piedoso, dizem que chega a ser obsessivo. O único objetivo de
Felipe é conseguir comprovar sua visão beatífica. Ele quer saber se os santos
vêem a Deus imediatamente ao chegarem ao paraíso. E ameaçou excomungar
o papa, se este discordasse de suas idéias! Essa é a família de Isabel, o meio
de onde ela veio.
— Você acredita que eu me prestaria a espalhar mexericos? — Minerve
perguntou sem se alterar.
Aimery balançou a cabeça, não tendo dúvidas sobre a natureza do que
estava para ouvir.
— Você me pediu, e vou lhe contar o que testemunhei. Direi apenas aquilo
que vi — prosseguiu Minerve, uma expressão grave no rosto. — Os amigos de
Isabel não são os melhores. Guy de Guinne, Raoul de Perceval, Eustache d'
Alembert. Você passou algum tempo na Corte. Ouviu histórias sobre todos.
Sabe que tipo de homens são. Pois foram esses amigos íntimos que Isabel
escolheu ao chegar à Corte e dos quais nunca mais se separou. Os rumores se
espalharam... especialmente quando o marido dela morreu. Até hoje comenta-
se que Isabel envenenou o marido porque o infeliz se opunha ao estilo de vida
que ela levava abertamente na Corte, com suas companhias masculinas.
Aimery ouvira os mexericos, mas preferira ignorá-los. Isabel era nova e
muito rica, objeto fácil para se tornar alvo de inveja. Entretanto, não podia
ignorar o que a irmã estava lhe dizendo agora.
— Isabel vive com Eustache d'Alembert, debaixo do nariz da jovem esposa
dele e debaixo do nariz do futuro noivo. Todos sabem que Isabel é amante de
Eustache há anos. Na verdade foi o conde quem decidiu dar a festa.
— Que festa?
— A festa para celebrar seu noivado.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 51
CAPÍTULO VI
Não poderia durar. Não deveria durar. Claire compreendeu a verdade dos
fatos enquanto corria pela floresta de volta ao castelo comandado por Aimery
de Segni. A fortaleza dele. Não dela. Se fosse uma mulher sensata, lembrar-se-
ia disso sempre. O que lhe dera na cabeça para se permitir ser tocada daquela
maneira? Para deixá-lo ver os contornos de seu corpo sob a túnica molhada?
Porque, sem dúvida, o conde vira suas formas, centímetro por centímetro. Mas
quisera aprender a nadar. Adorara flutuar na água.
Quando Aimery dissera: "Nós nos encontraremos aqui amanhã. Vou lhe
ensinar mais", simplesmente concordara, saíra do lago e se escondera atrás de
um arbusto para se secar e vestir-se.
Ao terminar de se arrumar o conde já havia sumido, tão silenciosamente
quanto surgira. Claire sentira-se grata por estar sozinha. Teria tempo para
pensar, para tentar começar a entender a natureza das emoções que a
sacudiam antes de chegar ao castelo.
Não poderia... não deveria... não iria durar.
Desta vez as palavras soaram em sua mente na voz de padre Pedro, que
as repetira incansavelmente durante os muitos anos dedicados a ensiná-la.
Amara aquelas palavras amara sua pureza, tão digna dos Perfeitos.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 55
alfazema para cura. Talvez pudesse sentir na alma os efeitos dessa mistura.
Mas bem no fundo suspeitava de que não haveria remédio para o
encantamento do qual caíra vítima no lago, quando experimentara o toque de
Aimery de Segni.
"Que será que ele pensa de mim?"
Os jardins estavam em pior estado do que imaginara, ervas daninhas
sufocavam o que antes devia ter sido uma sucessão de belos canteiros.
Entretanto, aqui e ali, resistindo ao avanço do mato, reinavam triunfantes o
que buscava. As rosas perfumadas, alguns gerânios coloridos, singelas
violetas.
Emocionava-a testemunhar tamanha determinação de viver. Iria cuidar
dessas flores, livrá-las dos parasitas, adubar a terra. De repente o repicar do
sino do Santa Madalena lembrou-a do avançado da hora. Admirada porque o
tempo passara sem que percebesse, apanhou o cesto com as flores e ervas e
correu de volta para o castelo, cantarolando no caminho. A excursão ao jardim
fora benéfica. Seu humor melhorara muito. Estava cansada, as mãos
encardidas. Porém tinha conseguido se livrar dos efeitos da aula de natação.
Enfim sentia-se calma e em paz. Reconhecia-se outra vez.
Claire atravessou os longos corredores do castelo sem cruzar com
ninguém. Felizmente sua ausência passara despercebida. Segurando o cesto
de vime com firmeza, subiu a escada de pedra às pressas, pedindo aos céus
que o conde não a visse. Se ele não a visse, se esqueceria dela e então, talvez,
ela poderia esquecê-lo.
Ao entrar em seus aposentos, ofegante e aliviada, falou baixinho,
fechando a porta:
— Pelo menos estou sozinha aqui dentro e posso ser eu mesma.
— Por acaso você é Claire de Foix?
Uma voz feminina, clara e vibrante, ecoou de dentro da penumbra.
Assustada, Claire virou-se rapidamente na direção do som e largou o cesto, as
flores e ervas se esparramando pelo chão.
— A culpa é minha — disse a voz gentil. — Vou apanhar tudo, não se
preocupe.
— Não, a culpa foi minha. Deixe-me cuidar disso.
— Oh! — as mulheres exclamaram em uníssono quando suas cabeças
colidiram. No afã de apanhar as flores, as duas haviam se abaixado ao mesmo
tempo.
— Claire de Foix? — repetiu a estranha aparição, levantando-se com
alguma dificuldade. Pela primeira vez, Claire conseguiu enxergá-la. Já num
estágio avançado de gravidez, a desconhecida tinha olhos incrivelmente azuis
e cabelos dourados como raios de sol. — Sou Minerve de Montfort, irmã do
conde de Segni.
Ela é igualzinha ao irmão, a noviça pensou, admirada. a outra mulher pôs-
se a rir de repente, tornando a se sentar no chão. E ria tanto, com tanta força,
que a barriga balançava de uma forma assustadora. Apavorada, Claire
interveio.
— Você precisa parar! Pare de rir tanto. Você pode se machucar, alguma
coisa terrível pode acontecer.
— Nada terrível pode acontecer comigo, apenas dar a luz — respondeu a
fisicamente delicada lady Minerve. — Esse não é meu primeiro filho. Mas o
quinto!
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 57
Você precisa somente manter o interesse dele vivo, usá-lo para atingir nossos
fins. Seria uma situação favorável para a libertação de William Belibaste.
— Os outros não vão concordar — Claire retrucou, angustiada. — Roger,
Guy e Estoril vão se opor à idéia. A abadessa Helene não concordará.
— Já não importa se Helene concorda ou não. E os outros não precisam
saber. Isto é, só saberão o que você lhes contar. — Padre Pedro puxou o banco
para mais perto de Claire, porém a noviça se levantou e começou a andar de
um lado para o outro, atordoada.
"Amigos", Aimery dissera. Mas seria isso o que ela realmente queria?
Amizade?
Imagens do conde vieram-lhe à mente. O sol batendo em seus cabelos, o
lenço de seda que ele lhe dera, o corpo musculoso dentro do lago.
— Ainda que os outros soubessem de tudo, não teria importância —
insistiu o monge. — Você é uma Perfeita e qualquer coisa que faça visa o bem
da causa catara. Você não continua dedicada ao nosso estilo de vida? Não foi
escolha sua?
Minha escolha. "Minha escolha?", começava a duvidar.
— Está errado. Está errado usar outra pessoa para atingir nossos próprios
fins — Claire afirmou.
Por um instante padre Pedro fitou-a assombrado. Então abafou o espanto
assumindo a expressão benigna de sempre.
— Você se engana ao pensar que os outros não concordarão comigo.
Concordarão sim, você verá.
— Madre Helene também? — Claire balançou a cabeça. A abadessa nunca
concordará com seus motivos, padre.
ela nunca concordaria em me ver toda enfeitada e levando uma vida
mundana. Isso vai contra tudo aquilo em que acreditamos.
— Não tem importância — o monge devolveu, áspero. — Importa apenas
que prevaleçamos. Helene é tão devotada à nossa causa quanto eu. Saberá
que para vencermos teremos que nos adaptar à certas circunstâncias. O
interesse do conde de Segni por você é evidente — prosseguiu padre Pedro em
um tom mais ameno. — É seu dever manter esse fogo ardendo até que a causa
dos cátaros seja beneficiada. O que importa você usar roupas finas uma única
noite ou mesmo permitir que ele a beije?
— Beijar-me? Milorde não se mostrou interessado em mim desta maneira.
— Entretanto é o que acontecerá. O conde de Segni quer beijá-la e não
vejo problema em você conceder-lhe essa pequena vitória. Você prefere ter a
morte de William Belibaste na consciência simplesmente por que agiu de forma
egoísta, movida por escrúpulos tolos? Você é um instrumento. Você deve ir ao
encontro de Aimery de Segni porque o atrai e ele detém tanto informações
quanto o poder de que necessitamos. Você comparecerá à festa e
desempenhará o papel que lhe couber. Um decote mais acentuado, os cabelos
bem penteados... que mal pode haver nisso? Você ainda tem as ervas que lhe
dei, não é? Utilize-as para se proteger.
A confusão interior de que estava sendo vítima enfureceu Claire.
— Não farei nada disso! Por que eu deveria me enfeitar e comparecer ao
banquete? Por que você chegou a sugerir que Aimery de Segni poderá querer
me beijar? Os cátaros não precisam de ornamentos. Somos valorizados pelo
que somos, por nossa natureza espiritual. Não usamos nossos corpos para
seduzir.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 62
CAPÍTULO VII
Minha querida criança, rogo-lhe que se encontre comigo hoje à noite, no Roc,
logo depois que a última badalada do sino do convento soar. Tenho muita coisa
para lhe dizer. Sei quem colocou a boneca de cera no portão do convento e o
motivo. Descobri sobre o tesouro.
— Não se importa com o que está vestindo? Como? Toda mulher importa-
se com o que veste. Metade da diversão de uma festa é planejar o que
pretendemos usar. Já estou pensando nas roupas que mandarei fazer depois
que meu filho nascer. É uma distração. Todavia você passou a vida inteira num
convento, o que lhe dá uma boa desculpa por tamanho desinteresse. Após seu
banho, cuidaremos do resto.
Enquanto a condessa falava, as servas se encarregaram e encher a
banheira e dispor o biombo no lugar.
— Agora deixem-nos — instruiu-as Minerve. — Mas estejam de volta
dentro de uma hora. Teremos muito a fazer
"Uma hora para tomar banho", pensou Claire, pasma. "Impossível!"
Todavia, ao se aproximar da banheira, aspirou um perfume delicioso.
— Tem pétalas de rosas na água!
— E essência de rosas também! — Minerve entregou-lhe um sabonete
perfumado. — Tudo faz parte da magia feminina. Sei o quanto as freiras
preservam a modéstia. Assim, vou me sentar do outro lado do biombo e lhe dar
privacidade para banhar-se. Podemos conversar enquanto você se incumbe da
tarefa. Adoro conversar, como você já deve ter percebido.
"Bem, trata-se de algo novo, ao qual preciso se acostumar", concluiu
Claire, tirando a roupa. No convento, os banhos eram sempre rápidos, com
água tão gelada que a pele ficava toda arrepiada, mesmo no auge do verão. O
sabonete à base de gordura de ganso limpava bem, porém o cheiro era
horrível. Devagar, entrou na água.
— Acomodada? — indagou Minerve, depois de alguns segundos.
— Sim.
— Sei que nos tornaremos amigas — falou a condessa de Montfort,
sentada no sofá junto à janela. — Deus sabe que não tenho nenhuma amiga
neste fim de mundo.
— Eu também não — Claire surpreendeu-se dizendo. As duas mulheres
riram, cada qual de seu lado do biombo.
— Porém você precisa ignorar meus modos mandões — continuou
Minerve. — Meu irmão me chama de déspota, como se ele pudesse me criticar.
— Ela tornou a rir. Mas não Claire. — Aimery é imponente, às vezes dominador,
porque é um guerreiro. E porque é tão pressionado.
— Pressionado? — A jovem escriba ficou rígida. — Quem se atreveria a
coagir o conde de Segni?
— Nosso pai. Também conde de Segni. Chamava-se Aldo. Porém, não
sendo o primogênito, ao se casar com minha mãe não herdou um castelo. Os
dois se amavam desesperadamente, pelo menos no começo. Todavia as
respectivas famílias se opunham à união. Minha mãe era uma Trenceval, de
Languedoc, portanto portadora de um nome muito antigo. Os pais não a
queriam casada com alguém a quem consideravam inferior. Não importava aos
Trenceval que dois dos ancestrais de meu pai houvessem se tornado papas.
Aliás, este detalhe parecia não interessá-los, visto nutrirem simpatia pela velha
religião dos cátaros. Enfim, apesar da resistência inicial, meus pais acabaram
obtendo permissão para se casarem. Meu pai acalentava grandes sonhos, mas
faltava-lhe os meios necessários para realizá-los. Destituídos de herança, o
pouco dinheiro que possuíam era usado para manter meu pai na irmandade
dos cavaleiros. Naquela época, meu irmão, meus pais e eu morávamos numa
simples casa no campo. Foram muitas as vezes em que minha mãe se viu
forçada a realizar trabalhos braçais, como cozinhar e cuidar da horta, para
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 65
— Não. Eu tinha três anos quando morreram. Mal consigo me lembrar dos
dois. As recordações são vagas. Porém soube o que lhes aconteceu. Morreram
queimados.
— Houve um incêndio na sua aldeia? — A voz de Minerve soou cheia de
sincera compaixão.
— Não. — Sem saber por que se sentia impelida a fazer confidencias,
escutou-se dizendo: — Meus pais eram pobres. Considerados culpados de um
crime, acabaram executados. Pelo menos é p que me explicaram. Só que
ultimamente...
— Ultimamente?
— Minhas lembranças, apesar de nebulosas, têm sido diferentes daquilo
que me contaram como sendo a verdade. Admito que eu só tinha três anos na
época e não posso me recordar dos acontecimentos com exatidão. Mas nesses
lampejos de lembranças, vejo fogo em todos os lugares, não apenas ao redor
deles. Testemunhas não assistiam a cena. E testemunhas têm que estar
presentes nas execuções públicas. É uma exigência da Inquisição. Entretanto
sei que meus pais estavam sozinhos e foram surpreendidos pelo que houve.
Posso sentir na carne o choque, o medo de ambos. Se eles tivessem sido
julgados, com certeza esperariam tal fim. — Claire inspirou fundo, a água
subitamente gelada. Não gostava daquelas lembranças. Sempre as espantava.
— Eu era muito nova. Posso estar confundindo as coisas. Talvez tenha criado
essas imagens. Afinal, disseram-me que eu não estava presente quando meus
pais foram queimados. — Envolvendo-se em uma toalha, ela saiu da banheira.
— Pronta para começar a se arrumar? — perguntou Minerve, vendo-a
surgir de trás do biombo. Apesar de falar num tom alegre, os olhos da
condessa de Montfort revelavam preocupação. — Onde será que estão as
criadas? Precisamos dele todas agora. Escolhi algo maravilhoso para você. Algo
estonteante. Algo que, com certeza, você irá gostar. Vamos, vamos, mocinha,
não balance a cabeça assim. Entregue-se em minhas mãos. Ainda que só por
esta única noite.
Aimery esperara uma mudança em Claire. Na verdade, não tivera dúvidas
de que a veria muito diferente na festa. Afinal, como guerreiro, aprendera a
dar ouvidos à intuição, a pressentir uma mudança antes mesmo que esta se
manifestasse. Instintivamente soubera, desde o primeiro momento, que sob o
hábito engomado de noviça, sob a touca branca e disforme, existia uma
mulher belíssima, de curvas sinuosas e tentadoras.
Nada disfarçava o corpo esguio agora. Bastou entrar no salão, para Claire
de Foix roubar-lhe o fôlego. Com a altivez de uma rainha, ela parecia flutuar
acima dos outros convidados, absolutamente linda em sua elegante
simplicidade. Os cabelos ruivos caíam-lhe às costas em ondas suaves e
brilhantes, seguros por uma fina tiara de ouro. O vestido verde-musgo, de
corte reto e mangas compridas, acentuava a brancura da pele acetinada e
ressaltava a cor dos olhos opressivos. Claire não estava usando um modelo
ousado, sensual. Tampouco ostentava jóias, exceto a discreta tiara nos
cabelos. Entretanto, sua beleza clássica o fascinava. Simplesmente não
conseguia desviar o olhar da figura arrebatadora, sem se importar com o que
pudessem pensar a sei respeito, sem tentar reprimir a reação do próprio corpo.
Desejava-a, apesar de todos os pesares. Compreendia suas responsabilidades
como senhor de Montsegur. Cabia-lhe zelar pela segurança de todos os seus
vassalos. E embora em suas conversas com o bispo Jacques Fournier houvesse
enfatizado inúmeras vezes que Claire ainda não professara os votos definitivos,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 67
até a desafortunada perseguição aos cátaros arruinar tudo o que aqui vicejava.
Sou ortodoxa em minhas crenças, assim como meu irmão, porém nenhum de
nós dois acredita que deve-se queimar o corpo de um homem para incentivá-lo
a mudar de idéia. Aimery libertaria William Belibaste neste momento, se
pudesse encontrar um meio de fazê-lo.
Claire manteve o olhar fixo em um ponto distante, resistindo à tentação
de confiar em Minerve, de pedir-lhe ajuda. Gostava da condessa de Montfort e
começava a confiar em Aimery. Todavia, eles podiam mesmo ajudar William
Belibaste?
"Não, claro que não", respondeu a si mesma. Não sendo cátaros, a
liberdade e a vida de um herege não lhes importava. Além do mais, padre
Pedro sempre a avisara para ter cuidado com as supostas boas intenções dos
inimigos. Minerve de Montfort e Aimery de Segni jamais lhe ofereceriam
esperanças. Melhor não se esquecer disso nunca.
O rufar de um tambor anunciou a chegada da pièce de résistance: um bolo
de especiarias, réplica das flâmulas de Montsegur e de Foix, tão habilmente
confeccionadas que pareciam tremular em uma brisa açucarada.
Encantada, Claire reparou nos mínimos detalhes da iguaria. Jamais vira
algo semelhante antes. Tratava-se de uma verdadeira obra de arte, digna da
corte de um rei. E como obra de arte o bolo foi saudado pelos convidados, com
vivas e aplausos.
Ela estava sorrindo, se divertindo, porém continuava distante, Aimery
concluiu, notando as finas linhas de preocupação na testa de Claire. Algo a
angustiava, embora ninguém mais, exceto ele próprio, o percebesse.
Minerve e Huguet conversavam animadamente, esperando, ansiosos, o
início do baile. No meio de toda a agitação, Aimery notou Claire lançar um
olhar furtivo para o conde de Foix.
Ele sabia que deveria apresentá-los. Aliás, fora esse o motivo pelo qual a
convidara para o banquete. Claire nascera em Foix e, sem dúvida, estaria
interessada em conhecer o conde de sua região.
Entretanto, aquele não era o momento. Na ocasião certa, agiria. Agora
queria apenas fazê-la sorrir e se divertir.
O conde de Segni levantou-se e bateu palmas.
— Que comece o baile!
Claire jamais dançara antes. Naturalmente, bailes sempre Ocorriam na
aldeia em dias festivos, ou por ocasião de torneios em Montsegur. Todavia
sempre acompanhara esses acontecimentos à distância, do alto dos muros do
convento Observar as pessoas se movimentando e se tocando ao som da
música a intrigava, mas não a entusiasmava. Concluíra que dançar não lhe
dizia respeito e não sentira falta disso.
Ou pelo menos era o que se habituara a pensar.
Entretanto essa noite tudo lhe parecia diferente. Aimery tornara tudo
diferente.
Talvez fosse por causa do roçar da seda contra seu corpo, ou do perfume
de rosas que impregnara sua pele durante o banho. Talvez porque tomara um
pouco de vinho, logo ela, que nunca bebia. Agora, enquanto os criados
preparavam o salão para o baile e os músicos afinavam os instrumentos,
começou a se sentir sozinha, isolada. No fundo, embora relutasse em admitir,
queria tomar parte da diversão que estava por vir. Olhando ao redor, reparou
que as mulheres se remexiam em seus lugares, impacientes para o início da
festa.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 70
— Não. E madre Helene. Alguma coisa aconteceu com ela. Sei que sim.
Por um instante o conde de Segni a fitou duramente, não estando
acostumado a ter suas ordens contrariadas. Claire não pedira nem esperara
sua permissão.
Juntos, os dois saíram para o pátio do castelo quando o sino do convento
soava, chamando para as preces noturnas.
CAPÍTULO VIII
— Ela morreu rapidamente. Pelo menos não sofreu. — Aimery logo deu-se
conta de como tolo e ineficaz soava. Pouco consolo estas palavras podiam
oferecer num momento de dor extrema, ante uma perda dura. Sentada numa
pedra ao seu lado, Claire fechara-se em si mesma. O vestido novo estava
rasgado em vários lugares, pois descera a colina correndo em direção ao corpo
inerte de madre Helene. Entretanto, a noviça não percebia o estado lamentável
de suas roupas. Ou não se importava.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 73
Aimery sorriu.
— Um asceta religioso, um Perfeito, que não conseguiu abrir mão dos
prazeres de uma esposa.
— Ele tem um filho — completou Huguet —, embora não reconhecido. A
esposa de Belibaste era sua empregada. Ao engravidar, foi obrigado a se casar
com um de seus seguidores. Porém ela retornou à casa do amado para dar à
luz.
— Ainda assim, deve haver algo nessa seita que atrai as pessoas. Homens
e mulheres morreram em nome de suas crenças. Talvez existam mais coisas
do que somos capazes de entender.
— Ou talvez essas crenças tenham mudado, sofrido distorções ao longo
dos anos.
— Acho que acusar os cátaros da morte de madre Helene é apenas uma
explicação fácil, óbvia demais — disse Jacques Fournier, entrando no salão.
Ninguém o ouvira chegar. — E como se alguém quisesse nos fazer enveredar
por esse caminho e não olhar numa outra direção. Profanar uma igreja é sinal
de feitiçaria e os cátaros, apesar de todas as suas heresias, não compactuam
com isso. Num momento crítico como este, os verdadeiros seguidores de
Belibaste devem estar mais interessados em manter a discrição do que em
alimentar histórias perigosas. Não faz sentido vandalizar a capela do convento
quando o líder da seita está sendo acusado pelo Tribunal do Santo Ofício. Seus
problemas apenas aumentariam.
O castelo começava a despertar. Do pátio, ecoavam os ruídos matutinos.
Ao longe, o sino do convento soou, lúgubre. Aimery pensou em Claire.
"Que papel ela teria naquela história? Que parte lhe coubera
desempenhar?", se perguntava Aimery.
— Você está franzindo o cenho, meu filho — disse o bispo. Nada escapava
ao seu olhar arguto. — Creia-me, nem Belibaste, nem seus seguidores estão
envolvidos no que aconteceu ontem à noite. Eles não profanaram a capela.
Penso que madre Helene foi assassinada, porém eles não a mataram.
Tampouco levo a sério os manuscritos sob o colchão da abadessa. Nossa
abadessa pode, ou não, ter sido simpatizante dos cátaros, e essa não é a
primeira vez que escuto tais rumores, porém era inteligente demais para
deixar provas de suas crenças onde espiões poderiam achar com tamanha
facilidade. Não, meus caros, estamos lidando com um homem extremamente
esperto e astuto. É importante não nos esquecermos disso, mesmo que ele
tenha cometido alguns erros.
— Vossa Eminência sabe quem é esse homem? — perguntou Huguet.
— Tenho algumas suspeitas. — Jacques Fournier sentou-se à mesa. —
Apenas um grupo foi acusado de feitiçaria ultimamente e apenas um homem
conseguiu escapar à uma eventual condenação. Encontrei-o muitos anos atrás.
Ele jurou vingança. Acredito que meu suspeito esteja muito ocupado agora,
vingando-se. Mas antes preciso ir a Paris, obter provas.
Juntos, os três traçaram um plano de urgência.
Claire não podia dormir. Tampouco o queria. Seria um longo dia ajudando
nos preparativos do funeral de madre Helene. De pé junto à pequena janela da
cela, os olhos fixos no castelo, ela escutou a porta se abrir. Sequer se virou.
Sabia que padre Pedro acabara de entrar.
— Uma tragédia terrível — o velho monge sussurrou, a voz revelando
algumas de suas emoções. Incerteza. Hesitação.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 76
CAPÍTULO IX
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 80
Foi você quem soltou a galinha, não, padre Pedro? Você lançou os cães do
salão sobre a pobre ave? O monge riu baixinho, fazendo sinal para que Claire
saísse da estrada e se embrenhasse no bosque. Não podiam correr o risco de
serem vistos juntos.
— Um truque inteligente, não? — ele indagou satisfeito, não se dando
conta da expressão incrédula da noviça. Outra risadinha, antes de repetir: —
Um truque muito inteligente. Eu sabia que depois da excitação provocada pela
triste morte de madre Helene, os homens do lorde Segni estariam agitados e
ficariam decepcionados quando Belibaste não fosse chamado para depor. Eu
tinha me vestido bem, para passar despercebido no meio da multidão.
Entretanto existia a possibilidade de alguém se lembrar de ter me visto em
outras ocasiões. Eu precisava vê-la e, para isso, precisava de uma distração.
— E você não hesitou em providenciá-la — disse Claire, desgostosa. —
Cães raivosos, sangue para todo lado. Uma cena deprimente.
Tão ocupado estava Pedro de Bolonha com seus próprios pensamentos,
que não reparou na mudança do tom de voz da noviça.
— Melhor sacrificar a galinha para ajudar a causa dos Perfeitos, do que
mandá-la para a panela de algum camponês. E eu tinha algo importante para
lhe dizer, algo que o conde de Segni talvez ainda não tenha lhe contado, algo
que você pode não ter ouvido.
O ar estava parado no interior do bosque e cheirava a putrefação. Por um
instante ela lembrou-se de quão doce o ar lhe parecera nas proximidades do
castelo de Aimery e com que avidez o sorvera. Cansada de caminhar, sentou-
se num tronco úmido e suspirou fundo.
— Pobre Helene. Mas um sacerdote também foi ferido ontem à noite. Eles
lhe contaram? O conde de Segni partilhou essa informação com você?
— Um sacerdote ferido?
— Não seriamente, porém machucado o bastante para levantar suspeitas.
Creio que o bispo-inquisidor referiu-se ao assunto como um acidente infeliz.
Todavia Jacques Fournier sempre foi cheio de explicações tolas.
Claire discordava. Desde que assumira a função de escriba, percebera
como os pronunciamentos do bispo eram sensatos. Todavia, nada disse a
padre Pedro.
— Esse episódio trará mais atenção para os cátaros? Seremos
considerados responsáveis? O que aconteceu com o sacerdote? E quando?
— O incidente aconteceu essa manhã, a vítima era um sacerdote chegado
ontem de Paris, com notícias urgentes para Jacques Fournier. Comentava-se
que esse padre veio para cá devido à insistência de nossa Helene. Contudo,
sabíamos como os mexericos se espalham. As pessoas são capazes de dizer
qualquer coisa, em especial dos mortos. Eu soube do ocorrido através de
alguém que trabalha para o conde de Segni. Entretanto, meu informante não
pôde me dizer o teor da mensagem que o sacerdote trazia de Paris. Sei apenas
que o mensageiro levou uma pancada na nuca; gravemente ferido, foi
abandonado como morto. Imagino que tenha sido o motivo pelo qual Fournier
se apressou a encerrar a sessão de hoje.
Claire abaixou a cabeça, sentindo o chão desaparecer sob seus pés.
— Outra morte.
— O sacerdote não está morto. Não ainda, pelo menos.
Ao tornar a erguer a cabeça, a noviça deparou-se com o olhar do velho
monge, que a fitava, preocupado.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 81
lugar sagrado, porém ele me disse que veio buscá-la porque quer levá-la para
casa.
Vendo a expressão confusa de madre Fausta, Claire sentiu-se tomada pela
raiva. Como Aimery se atrevia a interromper seu luto? Ele já havia invadido sua
vida, afastado-a de seu dever, possuindo sua mente. Mas não cederia mais um
centímetro sequer! Não lhe daria mais nada!
— Mas eu estou em casa! — retrucou por entre os dentes, com o olhar fixo
no nobre —, e não permitirei que você me leve embora daqui outra vez.
Resplandecente em sua túnica negra, a espada presa à cintura, ele falou
simplesmente:
— Esta não é sua casa. Vou levá-la para seu verdadeiro lar, para Foix.
Vamos voltar para onde toda essa história começou.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 85
CAPÍTULO X
— Ouvi dizer que Raymond Roger de Foix foi o mais feroz dos adversários
de Simon de Montfort — prosseguiu Aimery.
— Ele era considerado, por muitos, o mais excepcional dos generais de
Languedoc — falou sir Emerico, o rosto vermelho devido ao vinho. — Porém, na
verdade, existiam poucos rivais para disputar o título. Sendo montanheses
independentes, os sulistas estavam determinados a não se renderem aos
nortistas francos. Mas essa independência os impedia de aceitar ordens, de
trabalharem juntos. Diferentemente dos francos, que se apoiavam na
estratégia, o povo de Languedoc confiava apenas no que julgava a retidão de
sua causa. Não acreditava na importância de trabalhar em conjunto. E nós
conhecemos o resultado dessa tolice.
— A Inquisição — murmurou Claire, somente Aimery escutando-a.
— Claro que os francos venceram — comentou lady Joanna. — Sendo
cruzados, tinham a boa vontade de Deus para ajudá-los.
— Eles contaram com o apoio do poder político dominante — Aimery a
corrigiu.
— Vocês conhecem a lenda de Foix? — sir Emerico indagou,
diplomaticamente evitando discutir um assunto polêmico.
— Conte-a — incentivou-o a esposa, se empanturrando com o oitavo
docinho. — Nossos convidados poderiam gostar de ouvi-la. Especialmente
Claire, pois lorde Aimery costuma chamá-la de donzela de Foix. Talvez ela
gostaria de saber como Raymond Roger encorajou tanto a esposa Phillipa,
como a irmã, Esclarmonde, a se tornarem Perfeitas, as sacerdotisas cátaras.
Infelizmente haviam voltado para o ponto de partida e não havia nada que
Claire pudesse fazer a respeito. "Talvez fosse melhor permanecer em silêncio",
pensou. E parar de temer o que Emerico viesse a dizer-lhe. Devia escutar e
aprender.
— Falam que os motivos por trás da atitude de Raymond não estavam
muito relacionados à devoção religiosa e sim ao desejo que ele sentia por Loba
de Cabaret, uma mulher linda e sedutora — esclareceu lady Joanna, piscando
um olho. — Apesar disso tudo ter acontecido há menos de cem anos, era
seguro confiar a esposa e irmã a um convento cátaro. Ainda não se queimava
ninguém em fogueiras por heresia. Isso viria depois. Com as Cruzadas.
Fitando-o de soslaio, Claire percebeu que a história interessava Aimery
imensamente. Será que o conde a trouxera a Foix para que escutasse as
lendas locais?
Os castelões de Foix se prepararam para prosseguir a narrativa. Sir
Emerico com seu vinho e a esposa com seus doces.
— As batalhas que se sucederam foram ferozes — continuou o lorde de
Foix. — Absolutamente ferozes. Cristãos contra cristãos e depois contra os
cátaros hereges, em um derramamento de sangue como nunca se vira antes.
Nem mesmo na guerra contra os sarracenos na Cidade Santa. Simon de
Montfort arrasou essa região, e lançou tantas bruxas à fogueira que as noites
pareciam dias. Conde Raymond Roger foi um dos poucos a resistir-lhe. Os
outros, como eu disse, eram independentes demais, ou fracos demais, como o
conde de Toulouse. Um homem muito fraco — repetiu sir Emerico, num tom
desdenhoso. — Raymond Roger e seu filho eram diferentes. Foram os últimos
grandes defensores dos cátaros.
— Mas as razões por trás dessas batalhas revelaram-se muito mais
políticas do que religiosas — ponderou Aimery de Segni, cujos ancestrais
tinham sido os primeiros a apoiar as Cruzadas. — Sendo essas terras férteis, o
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 98
rei da França queria assegurá-las para si, especialmente depois que a maior
herdeira da região, Eleanor de Acquitaine, se casou com Henrique, o rei inglês.
Outra vez sir Emerico sorveu uni longo gole de vinho. A um sinal da
castelã, uma criada substituiu a travessa vazia por outra cheia de docinhos.
— No fim o conflito se resumiu a um confronto entre Simon de Montfort e
Raymond Roger de Foix — disse lady Joanna, com um suspiro. — E que
contraste aqueles dois faziam!
Sir Emerico retomou a palavra.
— Simon era casado com uma mulher verdadeiramente maravilhosa, Alice
de Montmorency, a quem permaneceu fiel e dedicado. Do outro lado, embora
decantasse aos quatro ventos as virtudes dos cátaros, Raymond Roger levava
uma vida devassa.
— Você não estaria se confundindo? — perguntou Claire.
— Não seria o conde Raymond Roger quem se dedicou inteiramente à
família e Simon de Montfort o libertino?
Pelo menos fora o que padre Pedro sempre lhe ensinara. O conde de Foix
caiu na risada.
— Oh, não. Era exatamente o contrário. Os trovadores cantaram muitas
canções sobre o comportamento dissoluto do velho conde de Foix.
— Talvez "exuberante" fosse uma palavra mais adequada —
contemporizou lady Joanna.
— Todavia Montfort não era, como diria minha esposa, "exuberante". Alice
de Montmorency sempre foi a única mulher de sua vida. Lembro-me de meu
pai contar que ela partia para as batalhas ao lado do marido, recusando-se a
ser deixada para trás, no castelo, enquanto o amado se expunha ao perigo. Os
dois se entregaram àquele casamento de corpo e alma.
— Como um casamento deve ser — concordou a castelã. — Digno de
censura é Raymond Roger, com uma esposa trancada em um convento e
morando com a amante no castelo.
Ninguém percebeu o prolongado silêncio de Claire.
— Ele não era um homem tão mau assim. Apenas humano, com
necessidades humanas — decretou lady Joanna, como se falasse de um
parente excêntrico e não daquele de quem ela e o marido tinham usurpado as
terras.
— É verdade — concordou o atual conde de Foix. — Raymond Roger
morreu tranqüilamente enquanto dormia e está enterrado perto do castelo.
Devo esclarecer que apesar de todos os seus problemas com as Cruzadas, ele
conseguiu estabelecer uma trégua com a Igreja e foi bastante generoso com os
membros do clero que se mostraram inclinados a fazer vista grossa para seus
excessos e lhe dar a absolvição. No final, foram os monges cistercienses quem
lhe prepararam um lugar para o repouso eterno.
— O fim de uma era — disse Aimery. — A morte dele marcou o fim das
Cruzadas nessa região.
— E o fim da causa catara também — Claire falou num impulso.
— É engraçado como todos vocês foram reunidos outra vez — comentou
lady Joanna. — Segni, Montfort e agora a donzela de Foix. É quase como se o
velho padrão de inimizade houvesse ressurgido.
— Não tenho nenhuma ligação com as causas nobres — Claire se apressou
a esclarecer. — Sou filha de simples camponeses.
— Mas você nasceu em Foix — a castelã insistiu. — E agora exerce a
função de escriba neste último julgamento cátaro.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 99
— Agora, não no passado — insistiu Claire, certa de que algo ainda estava
por vir. Podia sentir nos ossos que uma mudança ocorreria. Queria dar as
costas àquela situação e correr para junto de padre Pedro. Padre Pedro que
sempre lhe proporcionara segurança, que sempre a cercara de cuidados.
Entretanto, bem no fundo, sabia que seria impossível. Não poderia jamais
voltar atrás. O futuro a puxava para a frente. Não poderia retornar ao passado.
Estava sozinha e com medo.
Sempre estivera sozinha, ela percebeu de repente. Sempre estivera com
medo.
Sir Emerico retomou a história do ponto que, particularmente, julgava
mais interessante.
— Simon de Montfort morreu em um campo de batalha depois de sitiar, e
vencer, Raymond Roger em Toulouse. Toulouse era, e ainda é, um dos maiores
centros comerciais da região e seu povo, cátaros e ortodoxos, estava unido
contra os invasores. Os condes lutaram lado a lado com os camponeses;
homens, mulheres e crianças lutaram. Todos sabiam o que lhes aconteceria se
Montfort vencesse. O povo de Toulouse lutou com o desespero nascido da
certeza de que suas vidas dependiam do resultado daquele embate. Porque,
apesar de todas as suas virtudes, Simon de Montfort era implacável nas
Cruzadas, não deixando nenhum sobrevivente.
— Eles não poderiam jamais vencer. Meu marido lhes dirá por quê — falou
lady Joanna. — Conta-se que os padres já estavam ouvindo as confissões e os
Perfeitos ministrando os últimos ritos quando o milagre aconteceu.
— E foi verdadeiramente um milagre — concordou sir Emerico. — Os
invasores francos haviam construído uma enorme catapulta. Essa máquina de
guerra era tão temida que o povo de Toulouse a chamava de "arma de
bruxaria". E eles sabiam que se a permitissem se aproximar de suas muralhas,
seriam massacrados. A máquina tinha que ser destruída. Como sempre, foi
Raymond Roger quem decidiu deixar a cidadela, em uma bela manhã, e liderar
um ataque surpresa. Conta a lenda que, naquele exato momento, o sempre
piedoso Simon de Montfort estava assistindo à missa e que pediu a Deus que
lhe concedesse a vitória, ou a morte. Então Simon, acompanhado de seu irmão
e camarada, Guy de Montfort, saiu para o campo de batalha. De repente,
quando a vitória parecia certa, uma flecha atingiu Guy na virilha. Simon apeou
e correu em auxílio do irmão. Uma atitude digna de um homem bom e valente
— prosseguiu sir Emerico, após breve pausa. — Mas que o condenou à morte.
Dizem que uma virgem catara aproveitou-se da situação e, com um estilingue,
lançou uma pedra, atingindo Simon de Montfort na têmpora. A morte foi
instantânea. A notícia da queda de seu líder se espalhou como fogo no campo
de batalha e pela cidade. Lo lop es mort! Lo lop es mort! O lobo está morto! O
lobo está morto! Coube ao filho mais velho de Simon, sir Amaury de Montfort,
recolher o corpo do pai e levá-lo para longe do combate. Dali a um mês, a
catapulta estava destruída e o cerco a Toulouse findo. Os cruzados ainda
tentaram um último ataque desesperado à fortaleza, porém foram repelidos.
Entretanto, apesar da vitória, parece que foi a causa catara que morreu
naquele dia, junto com sir Simon. As batalhas cessaram, dando lugar a uma
época de calmaria. Até agora. William Belibaste é o primeiro cátaro a ser preso
em muito, muito tempo. Veremos o que irá acontecer ao longo desse
julgamento.
Sir Emerico calou-se, os olhos fixos em Aimery de Segni.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 100
CAPÍTULO XI
Seria a voz de sua mãe? Claire ficou imóvel, o coração aos pulos. Não
havia sinal de sua mãe.
Então ela viu o homem. Não, na verdade não o viu se aproximar. Apenas
foi pega no colo e carregada para longe daquele inferno.
O desconhecido pôs-se a correr, levando-a para o meio da floresta, para
longe do fogaréu. Claire sorveu o ar fresco avidamente e, ao vomitar, o homem
lhe deu água fresca para beber.
— Nossa Esclarmonde — ele murmurou. — Nossa Madalena. Você
esquecerá essa vida e tudo o que ela significava. Nós tomaremos conta de
você. Helene, eu e os outros. Nós educaremos você e faremos com que nada
de mal lhe aconteça, nunca, nunca mais. Você será feliz. Você será uma
Perfeita.
A menina Claire agarrou-se ao homem vestido com um hábito escuro.
A Claire adulta acordou gritando.
CAPÍTULO XII
Ele sabia que não podia tê-la. Aimery, conde de Segni, não trilhara o duro
caminho da pobreza à proeminência, seguindo trilhas que levassem a lugar
nenhum. E Claire de Foix o conduziria a nada. Sabia muito bem. Escolhera para
si uma vida pautada no dever e na obrigação e agora desfrutava das
recompensas obtidas com orgulhosa satisfação: a suserania de Montsegur, a
irmã casada com um membro de uma ilustre família. Quanto a ele próprio...
Com passadas largas Aimery atravessou um dos vastos corredores.
Emerico já havia conquistado exatamente o que buscara para si. Reconstruíra
o castelo de Foix, tornando-o ainda maior e mais imponente. Chegaria o
momento em que Montsegur ultrapassaria Foix em magnificência. Na verdade,
assim que se casasse com Isabel de Valois. Sim. Quando, finalmente, se
casassem. Não fazia idéia por que, há tempos, adiava a união. A desculpa que
sempre dera, sobre os banqueiros da Lombar-dia e suas demoradas
maquinações, não passava mesmo disso. Uma desculpa esfarrapada. De fato,
era o único culpado pela demora em desposar uma das mais desejáveis
herdeiras da atualidade. Simplesmente não conseguia entender por que
relutava. Sim. Isabel não era nenhuma santa. Viúva, levava uma vida sexual
ativa; histórias de suas escapadas nunca foram segredo. Porém, sempre
ignorara os rumores. Afinal, Isabel, rica e aristocrata, podia fazer o que bem
quisesse. Os boatos sobre sua promiscuidade jamais o haviam incomodado no
passado. Aliás, não haviam incomodado ninguém. Esse era o privilégio dos
bem-nascidos e ricos. Nada do que fizessem parecia merecer reprovação.
Aimery pensou no pai. Lembrou-se de como ele buscara, avidamente, o poder
e a glória, as únicas coisas que tornavam a vida digna de ser vivida. Nada mais
importava para o velho conde de Segni.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 103
CAPÍTULO XIII
pairando sobre sua cabeça, a idéia de beijar Aimery e ser correspondida a fazia
se sentir viva, vibrante. Os lábios de Aimery sobre os seus a tinham despertado
para a realidade de que possuía um corpo capaz de experimentar sensações
antes inimagináveis. Nunca supusera que o calor das mãos fortes pudessem
incendiá-la, que a boca sensual a fizesse desfalecer de puro prazer.
E o desejo que os consumira fora recíproco. Em Foix, sempre que tinham
tido a chance de ficar sozinhos, haviam buscado refúgio nos braços um do
outro. Extasiara-se ao constatar que o atraía tanto.
Adorava beijá-lo.
Quisera amá-lo.
— Isso não — Aimery murmurara, evitando que ambos trilhassem um
caminho sem volta. — Ainda não.
Claire ajustou os olhos à penumbra do grande salão. Enormes estandartes
haviam sido dependurados sobre as janelas, barreiras inúteis à penetração do
calor da tarde. A luz também acabara filtrada, criando uma atmosfera
estranhamente melancólica. Como de hábito, o local estava repleto. Cavaleiros
e soldados distraiam-se jogando cartas, conversando e bebendo, tentativas vãs
de escapar do calor opressivo. De pé, junto à mesa principal, Aimery
conversava com alguns de seus comandados. Ao avistar Claire, ele sorriu e fez
menção de ir a seu encontro. Porém a noviça balançou de leve a cabeça.
Antes, devia falar com Minerve e depois procurar William Belibaste.
A condessa de Montfort, cercada pelos filhos, a aguardava no pequeno
terraço reservado às damas, logo acima do grande salão. O impossível parecia
ter acontecido em poucos dias: a barriga da linda condessa ficara ainda maior.
— Venha sentar-se perto de mim — Minerve falou, abandonando o
bordado. — Ainda não tivemos um momento juntas desde seu regresso. Meus
filhos estavam ansiosos para vê-la e eu desejando saber sua opinião sobre
Foix, sobre sir Emerico e sua simpática esposa. Ele continua gostando tanto de
vinho, ou curou-se do hábito agora que passou a morar em Languedoc?
— Dificilmente. — A noviça acomodou-se em um banco de madeira. — Sir
Emerico é um homem de sorte por ter tantos vinhedos à disposição.
Minerve riu com prazer.
— Você sempre encontra uma maneira de expressar as coisas com
delicadeza. Deve ser porque foi educada no convento. Eu o chamaria de
bêbado e ponto final.
— Então você o conhece bem.
— Eu o conheci em Paris — corrigiu a condessa. — Antes que se casasse.
— Lady Joanna pareceu-me uma grande dama. Juntos, os dois
transformaram o castelo de Foix em um templo de maravilhas.
— Sem dúvida é um lugar perfeito. — Minerve torceu o nariz. — E,
provavelmente, entediante.
— Exatamente a palavra que seu irmão usou para descrevê-lo.
— Imagino que sim. — A condessa de Montfort calou-se, pensativa. —
Entretanto, essa é a vida que Aimery está preparando para si. Isabel de Valois
encherá Montsegur de objetos caros, de mobiliário rico e vistoso, que façam jus
à fortuna da família. Estou certa de que Foix é um belo castelo e
extremamente bem administrado. Contudo não tenho a menor intenção de
visitá-lo um dia. Receio que ficaria morta de inveja diante de tamanha
organização e competência. Imagine qual seria a reação de meu marido diante
de tal perfeição! Huguet poderia decidir me pôr de lado! — Minerve riu e
continuou: — Tenho tentado ao máximo ajudar meu irmão a administrar esse
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 113
castelo, mas você pode ver a bagunça. Minha própria casa não é muito
diferente. E difícil conciliar tarefas domésticas e filhos pequenos. Além do
movimento incessante de cavaleiros, soldados, convidados...
— Imagino que a maioria das pessoas diria que o castelo de Foix funciona
com absoluta perfeição. A prataria está sempre polida, os criados
impecavelmente vestidos, as refeições servidas na hora certa. O assoalho é tão
assombrosamente encerado, que me fazia pensar se não seria uma afronta
que camponeses como eu transitarem por ali, naquele chão nobre. Entretanto,
havia uma frieza no ambiente. Foix é uma magnífica moradia, mas não me
parece um lar. Montsegur é muito mais aconchegante. Senti-me bem-vinda
desde o primeiro instante.
Somente quando as palavras saíram de sua boca, é que Claire se deu
conta de sua veracidade. Desde o primeiro dia, quando fora chamada a exercer
a função de escriba durante o julgamento de William Belibaste, sentira-se bem-
vinda. Sentira-se como se aquela fosse realmente sua casa, o lugar ao qual
pertencia.
— Ainda bem — Minerve falou, rindo.
Então, um dos meninos caiu e começou a chorar. As duas correram para
acalmá-lo. Quando, enfim, as crianças sossegaram e retomaram suas
brincadeiras, o assunto referente à Foix fora completamente esquecido.
— O bispo já voltou da viagem? — Claire indagou inocentemente,
apanhando o bordado.
— Não — respondeu a condessa de Montfort. — E, para ser sincera, estou
feliz que Jacques Fournier tenha viajado. A ausência dele significa um recesso
deste julgamento absurdo. Não apenas posso desfrutar de sua companhia sem
ter que dividi-la com as sessões de interrogatório, o que me agrada demais,
como fico livre da tensão provocada pela presença dos inquisidores. Em minha
opinião, é um julgamento injusto, que está acontecendo em um momento
particularmente infeliz.
— Infeliz para quem?
— Para todos nós e, em particular, para meu irmão. — Minerve fez uma
pausa para passar a linha na agulha. — É difícil para qualquer um tomar posse
de um castelo com uma história tão tumultuada. Como se não bastasse o peso
do passado, Aimery ainda tem que enfrentar o julgamento de um herege.
Impossível negar o óbvio: todos se lembrarão dos acontecimentos trágicos
ocorridos em Montsegur há cem anos. É impossível não fazer um paralelo.
Claire manteve a atenção fixa no bordado. A condessa de Montfort
continuaria a falar sobre o assunto com, ou sem encorajamento. O problema
era que não sabia se queria escutar o que Minerve tinha a dizer. E se isso iria,
de alguma maneira, ajudar William Belibaste.
— Dizem que aqueles que foram mortos impiedosamente assombram o
lugar onde morreram — continuou a condessa, animada. — Neste caso
Montsegur, e toda Languedoc, ira fervilhar com a idéia de vingança. É uma
coisa terrível William Belibaste ter sido levado a julgamento. Sei que na opinião
de muitos ele está recebendo a punição merecida, pelo crime de heresia. Mas
por que alguém tem que ser massacrado apenas por que suas crenças são
diferentes? Há algo terrível acontecendo aqui. Huguet o percebe e creio que
Aimery também. É quase como se os dois estivessem sendo chamados a
responder pelos pecados de seus ancestrais. E como se meu marido e meu
irmão estivessem sendo sentenciados por algo que não cometeram. Somente
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 114
existência desse lugar. Também não contara a padre Pedro. Esse fora o único
segredo que guardara para si, que não partilhara com seus dois grandes
amigos. Não conseguia entender por que agira assim, mas agora se sentia
grata por não ter revelado nada. Ali era o único lugar onde ficava
completamente só. Ninguém podia achá-la. Exceto Aimery.
Inquieta, Claire tirou os sapatos e molhou os pés na água, o friozinho
fazendo-a estremecer. Depressa, despiu-se e caminhou para o meio do lago,
esforçando-se para arrancar da mente todas as preocupações. Queria
aproveitar o momento para simplesmente se esquecer de tudo, para não
pensar em nada exceto em aproveitar o dia de verão.
Conforme Aimery a ensinara, deitou-se de costas e flutuou, os olhos fixos
no céu muito azul.
Então, um peixe prateado roçou suas pernas e a fez olhar para baixo.
Claire contemplou o próprio corpo por um breve instante antes de desviar o
olhar, conforme a tinham ensinado: O corpo não devia jamais ser alvo de
atenção, não quando estava se preparando para se tornar Perfeita.
Entretanto, aquela não fora sua escolha.
Não era mais catara, nem Perfeita. Talvez nunca o tivesse sido.
Com esforço, desafiando anos de treinamento, tornou a observar seu
corpo. Os contornos arredondados dos seios pequenos e firmes, os pelos
avermelhados que cobriam o vértice da feminilidade. Impressionava-a
constatar que para se analisar precisava vencer uma enorme resistência
interior. Mais impressionante ainda era notar as transformações que ocorriam
em seu corpo ao pensar em Aimery. Certas partes pulsavam, enquanto outras
ficavam rígidas.
Bastava pensar nele para ter a sensação de que ia desfalecer.
Sentia falta da presença viril, do gosto da boca sensual, do toque das
mãos fortes. Enquanto vivesse, não se esqueceria nunca da emoção
experimentada quando ele a enlaçara pela cintura pela primeira vez.
Se ao menos pudesse contar a Aimery.
Não, tratava-se de um pensamento perigoso que precisava ser posto de
lado. Ignorado. Sufocado. Ele podia beijá-la, ela podia beijá-lo, porém, jamais,
poderia existir entre os dois, confiança, partilha, total comunicação. Se lhe
contasse uma coisa, teria que contar todas as outras. Teria que falar sobre o
grupo secreto de cátaros em Montsegur, do qual fazia parte. Teria que explicar
a verdade sobre madre Helene, sobre a missão de ambas. Teria que falar sobre
padre Pedro e, assim, expô-lo. E não podia, jamais, expor padre Pedro. Não até
que suas suspeitas se tornassem certezas. E, talvez, nem mesmo assim. Afinal,
ele fora a única família que conhecera, aquele que a criara como a uma filha.
Principalmente, teria que convencer Aimery a libertar William Belibaste. E não
seriam os beijos de uma camponesa que levariam o nobre conde de Segni a
enxergar a necessidade de libertar um herege. A força de seu nome o impeliria
a agir como seus ancestrais. Aimery mandaria lançar Belibaste na fogueira e
massacraria os cátaros que, porventura, se rebelassem. Padre Pedro afirmara
que seria assim e embora estivesse começando a alimentar certas suspeitas,
sabia que o monge não mentiria sobre o destino de Belibaste, ou sobre a
reação violenta do lorde de Segni, porque... "o templário desejava
derramamento de sangue".
A compreensão da verdade atingiu-a com a força de um raio. Padre Pedro,
que sempre enaltecera os valores cátaros como a mansidão e o pacifismo,
ansiava por uma demonstração de violência.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 116
CAPÍTULO XIV
Mas Claire sabia que o problema era esse sim. Todavia, não tinha
importância. Estar junto de Aimery a fazia se sentir segura, protegida; a fazia
se sentir especial, não Perfeita. E tornar-se Perfeita pertencia a um futuro
distante.
Aquela era sua escolha no momento. Aquilo era o que queria.
O instinto, velho como o tempo, a induziu a deslizar as mãos pelas costas
largas, numa carícia leve e sedutora. Olhando-a com um ardor que parecia
queimá-la, Aimery a despiu devagar, livrando-a da túnica ensopada e das
roupas íntimas. Depois, ainda sem deixar de fitá-la, cobriu seus seios firmes
com as mãos e massageou os mamilos rosados. Quando ambos estavam
rígidos, tomou um deles na boca e sugou-o.
Ouvindo-a gemer, depositou-a sobre a capa que estendera sobre a relva.
O toque de Aimery tinha o poder de fazer seu sangue ferver nas veias, o
poder de transformá-la em uma nova pessoa, mais completa, mais inteira,
mais dona de si. A própria nudez não a embaraçava, assim como não se
envergonhava de contemplar a nudez do corpo viril. Pelo contrário. Como uma
criatura faminta, não se fartava de admirar os contornos das pernas
musculosas e bronzeadas, dos braços fortes, do peito firme.
E quando Aimery a tocou no centro de sua feminilidade, naquele ponto
que haviam lhe ensinado ser imoral, gritou, completamente alucinada de
prazer.
— Você é tão linda — ele sussurrou. — Eu poderia ficar ao seu lado para
sempre.
Claire, a catara, a Perfeita, nada respondeu. Ofegante, enlaçou-o pelo
pescoço, temendo que o contato entre os dois se desfizesse.
— Bela Claire. — Aimery beijou-a na boca, continuando a acariciá-la. —
Tão límpida e fresca quanto o ar da manhã.
— Nunca imaginei que algo assim podia existir — ela falou.
— Claire, você tem mesmo certeza do que quer? — O conde teria parado,
teria respeitado a decisão da jovem dama, por mais difícil que fosse conter o
desejo avassalador.
— Nunca estive tão certa em toda minha vida. — E era verdade. Queria
Aimery. Queria-o desesperadamente, com todas as fibras de seu ser. Sim,
sabia que fora encarregada de uma missão. Sabia que precisava libertar
Belibaste. Não se esquecera do destino para o qual a tinham preparado. Um
destino que, talvez, pudesse contar a Aimery depois daquele momento. Talvez,
então, ele fosse capaz de entender.
Mas isso seria depois. Por enquanto, queria somente saciar a sede
torturante, aplacar a fome dilacerante. Formariam um só corpo, uma só carne.
E não se importaria se o mundo acabasse logo depois.
— Estou certa — repetiu, decidida.
— Eu poderia machucá-la — ele sussurrou. — Não quero machucá-la, mas
receio que isso possa acontecer.
— Você não me machucaria jamais.
E Aimery não a feriu. Penetrou-a lentamente, gentilmente, despertando,
com sua masculinidade, sensações inconfessáveis em lugares secretos. Claire,
perdida em um turbilhão de emoções ardentes, ergueu os quadris numa
reação instintiva, oferecendo-lhe amplo acesso ao interior de seu corpo e de
seu coração. Enlouquecida de desejo, ela se sentiu ser arrastada por uma onda
avassaladora de prazer.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 119
CAPÍTULO XV
suas preces e dormir, querida criança. Você deve estar sempre descansada e
desperta junto de Aimery de Segni para não deixar escapar nenhuma
informação, ou detalhe relevante. Somos apenas nós dois agora e precisamos
descobrir tudo o que for possível para levar a cabo a fuga de nosso Perfeito.
Claire assentiu e levantou-se, pronta para partir. De súbito, o velho padre
a segurou pela mão, a expressão do rosto enrugado revelando urgência.
— Estou tão feliz que você não tenha me desertado. Estou tão feliz que
pelo menos nós dois continuamos decididos a libertar William Belibaste.
Mas será que ela realmente não desertara? Será que, realmente,
continuava ao seu lado?
Padre Pedro recostou-se no espaldar da cadeira dura e fechou os olhos.
Sozinho na pequena cela escura, permitiu que todas as suas dúvidas viessem à
tona.
Era óbvio que Claire ainda permanecia bastante interessada em promover
a fuga de William Belibaste. Todavia, ela nada falara sobre a revolta catara que
deveria ser desencadeada no processo de libertação do prisioneiro. E haviam
passado anos sonhando e planejando essa rebelião! Para seu desapontamento,
a jovem noviça parecia considerar como objetivo final a obtenção da liberdade
de Belibaste, em vez de encará-la como o início da insurreição. De acordo com
a visão de padre Pedro, assim que Belibaste escapasse, a causa catara
recuperaria a antiga força em Languedoc. Não apenas voltariam para a seita os
que a tinham abandonado recentemente, como surgiriam novos adeptos em
uma velocidade espantosa. Logo, seriam milhares de seguidores, prontos para
retomar Montsegur. Estava tão perto de realizar seu sonho agora, tão perto de
descobrir a chave para o poder! Faltava apenas ficar a par da informação que
Fournier com certeza traria de Paris. A informação que lhe permitiria localizar o
tesouro cátaro. De posse do tesouro, seria fácil fazer com que William Belibaste
fosse libertado.
Caso falhasse, William Belibaste estaria condenado a morrer...
Padre Pedro abaixou a cabeça, pensativo. Uma idéia nova. A morte de
Belibaste. Nunca explorara essa possibilidade antes, porém, talvez, a tragédia
acabasse se provando útil. Desde o início, levara em consideração somente a
libertação do prisioneiro e a conseqüente rebelião dos simpatizantes da causa.
Todavia, as circunstâncias tinham mudado de maneira drástica nos últimos
dias. Primeiro Helene e agora, Claire...
O templário suspirou fundo, abatido por um súbito cansaço. Helene fora
uma mulher simpática, prestativa até. Mas Claire era diferente. Nascera
predestinada a um futuro grandioso. Sua Madalena secreta, seria, um dia, a
maior de todas as Perfeitas. Durante anos a preparara para assumir esse papel
perante o mundo quando chegasse o momento. A possibilidade de que ela
pudesse facilmente desistir de tudo aquilo pelo qual ele tanto lutara o feria na
alma. Por um instante o padre odiou Aimery de Segni, o usurpador, com um
fervor cego, um fervor que já não julgava possuir. Entretanto, logo recuperou o
controle. Ódio sempre fora uma emoção estéril, ineficaz.
A vingança, sim, produzia frutos e exigia frieza para ser posta em prática.
E há muito aprendera a ser frio. Lidaria com Aimery de Segni quando chegasse
a hora. E lidaria com Claire também.
Padre Pedro sorriu. Sim, ela voltaria a ser sua Madalena. Talvez não mais
uma cátara Perfeita, mas a Madalena original também não fora virgem. Não,
não era tarde demais. Ainda poderiam conquistar Montsegur e governá-lo.
Porém, antes que os tempos felizes se instalassem, muitas outras coisas
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 123
precisavam ser feitas. Devagar, o padre levantou-se e dirigiu-se para sua cela.
Lá fora, o galo cantou, anunciando um novo dia.
Jacques Fournier ainda permaneceu em Paris durante vários dias de
agosto. Claire, na função de escriba, tivera nas mãos muitos pergaminhos
selados, enviados pelo bispo. Jamais os abrira, passando-os imediatamente ao
conde de Segni. Não quisera ficar a par do conteúdo. Todavia Aimery
partilhava as notícias sem hesitar.
O bispo-inquisidor descobrira um elo entre o caso de Belibaste e um
homem muito misterioso. Mais informações apenas pessoalmente, ele
escrevera na última mensagem, expressando seu desejo de que a onda de
violência em Montsegur houvesse cessado.
— Não tenho do que me queixar da vida em Montsegur — Aimery dissera,
beijando-a na base do pescoço.
O conde parecia fascinado por ela e Claire se permitiu saborear a
sensação de se sentir amada, desejada, pois seria por um breve período. Assim
que Belibaste fosse libertado, teria que fugir, Claire começar uma nova vida em
alguma outra aldeia bem distante de Languedoc. Não lhe restaria outra
escolha. Ao ajudar o prisioneiro a fugir, perderia Aimery para sempre, disso não
tinha dúvida. Mas William Belibaste devia ser libertado. Essa fora a única
certeza que trouxera consigo de sua vida antiga para a nova. Secretamente,
sem alarde, e sem mais mortes, Belibaste seria libertado. Descobriria uma
forma de consegui-lo. Bastaria aguardar que a situação propícia para agir se
apresentasse. A liberdade de William Belibaste seria sua primeira missão como
Perfeita. E também a última.
Depois...
Depois descobriria o que fazer consigo mesma, que rumo dar a sua
existência.
Até então, amaria Aimery de corpo e alma, apaixonadamente. Desfrutaria
do conforto e da segurança que encontrara entre os braços fortes, viveria
apenas para os momentos passados naquele recanto especial, sob a copa das
árvores, ouvindo o murmúrio do lago. Não sabia o que Aimery sentia a seu
respeito e não queria saber. Uma ou duas vezes, quando repousavam
abraçados, contentes e saciados, ele tentara abordar o assunto, tentara expor
seus sentimentos, falar de seus planos. Porém sempre o calava com um beijo.
Preferia o silêncio.
— Você é a criatura mais estranha que jamais conheci — ele dissera,
fitando-a intrigado. — Em geral, a primeira coisa que uma mulher deseja saber
é se é amada, ou não.
— Isso não tem importância para mim. — E Claire fora sincera. — A
realidade é como é. Você é nobre, eu não. Tal fato não pode ser mudado.
— Mas você poderia me deixar expressar meus sentimentos — o conde
contestara, exasperado.
Embora curiosa sobre o motivo da irritação masculina, Claire não o
questionara.
— Deixemos as coisas como estão.
Como poderia Aimery amá-la se não a conhecia? E Claire tinha perfeita
consciência da impossibilidade de revelar os seus planos. Precisava guardá-los
apenas para si. Assim, em vez de lhe dar a chance de falar dos sentimentos,
sempre preferira contê-lo. A vida inteira agira de acordo com as escolhas de
outras pessoas. Libertar William Belibaste era uma escolha sua,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 124
CAPÍTULO XVI
— De fato, acho que foi uma situação muito pior do que nós dois podemos
supor. Imagine ser o único templário capaz de perceber a seriedade da
situação e a tragédia que os aguardava. Imagine saber que seus irmãos
cavaleiros dependem de sua defesa para serem salvos. Imagine sentar-se
frente a frente com seus algozes, durante infindáveis interrogatórios,
convencido de que o veredicto já fora dado desde o início e que a morte seria
inevitável. Imagine saber que não havia esperança para ninguém, nem para si
próprio, nem para os companheiros. É uma situação capaz de enlouquecer
qualquer homem. E parece que Pedro de Bolonha perdeu a razão, devido à
tristeza, à desilusão e ao medo.
— Pobre homem! Eventualmente ele foi condenado como os outros? —
indagou o conde de Segni.
— Oh, não. Pedro de Bolonha conseguiu escapar.
— Havendo conhecido o Louvre, em Paris, acho impossível acreditar que
qualquer pessoa pudesse escapar de suas masmorras. Basta observamos como
Belibaste tem sido cuidadosamente vigiado aqui, em Montsegur, para
compreendermos quão infinitamente mais difícil teria sido burlar a vigilância
dos soldados do rei e do papa — argumentou Aimery. — o julgamento dos
templários durou anos. Sem dúvida Felipe e Clemente estavam preparados
para enfrentar tentativas de fuga.
— Pedro de Bolonha apenas... desapareceu. E, creia-me sua ausência
provocou imensa consternação.
— Por que ele escapou? — indagou Aimery. — Por que o Tribunal
encontrou dificuldade para achar uma outra pessoa capaz de substituí-lo na
defesa dos réus?
O bispo sorriu e, fitando o conde com inegável afeição, deu-lhe um tapinha
nas costas.
— Meu filho, apesar de todas as suas conquistas, apesar de seu passado
como guerreiro, você ainda conserva uma certa ingenuidade. Nada conseguiu
destruir sua bondade inata. Quem se daria ao trabalho de fazer prevalecer à
justiça, quando havia um tesouro envolvido?
— Tesouro?
Diante do genuíno assombro de Aimery, Claire sentiu o coração
transbordar de amor.
"Então o tesouro continua sendo a única coisa realmente importante", ela
pensou desalentada. Fora sempre assim, desde o começo.
— O sagrado tesouro dos templários — Jacques Fournier replicou, com
uma ponta de tristeza. — E algo mais. Quando os cofres foram abertos,
descobriu-se que continham muito menos do que o esperado. O tesouro foi um
dos motivos pelos quais Jacques de Molay e seus irmãos tinham sido
torturados. Felipe e Clemente desejavam se apossar das riquezas, mas parece
que o grão-mestre dos templários os enganou. Ele jamais lhes contou o
segredo. Porém o contou a Pedro de Bolonha.
— O mesmo Pedro que conseguiu escapar das masmorras do Louvre.
— O mesmo Pedro que Jacques de Molay ajudou a escapar — Fournier o
corrigiu. — Ao ser preso, Jacques de Molay já era um homem velho e sabia que
não resistiria à tortura por muito tempo. Também sabia que a esmagadora
maioria de seus companheiros não possuía nenhuma instrução e que, portanto,
faltava-lhes condições de enfrentar o poder da Coroa e da Igreja. Existia
somente um único homem entre eles capaz de fazer renascer as sementes de
sua Ordem, quando as perseguições aos templários chegassem ao fim. Jacques
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 133
O inimigo sabia que ele estava por perto. Tivera certeza disso ao
testemunhar a chegada do bispo Fournier a Montsegur, acompanhado de um
cortejo real. Disfarçara-se e misturara-se à multidão; porém, por um instante,
quando seu olhar se cruzou com o de Fournier, dera-se conta da verdade.
Entretanto, do alto de sua vaidade, de sua presunção, padre Pedro
duvidava que Jacques Fournier o tivesse reconhecido. Aliás, a idéia era ridícula,
absurda. Fournier, Huguet de Montfort, Aimery de Segni, todos eles se
consideravam poderosos, inatingíveis. Tolos! Não demoraria a vê-los
esmagados como insetos no chão de Languedoc.
Fora o que planejara. Mas agora...
O cavaleiro templário fitou a esposa envelhecida de William Belibaste e
então Claire, a sua Claire. Por um momento 0 ar lhe faltou dos pulmões. Talvez
Fournier não tivesse Percebido o elo de ligação entre o passado e o presente.
Mas Claire sim. Conhecia-a muito bem para ignorar os sinais. Claire teria que
ser sacrificada, como a família dela o fora, para que seu dever fosse cumprido.
Apesar da dor dilacerante que essa certeza lhe causava, padre Pedro continuou
a sorrir. De súbito, ainda que por breves segundos, sentiu-se jovem outra vez.
Jovem, cheio de esperança, de fé, de entusiasmo para defender a justiça. Tão
diferente do velho e amargo assassino no qual se tornara.
A tortura o mudara. Nunca mais fora o mesmo.
— Verei meu marido hoje? — indagou a camponesa, forçando-o a mudar o
rumo dos pensamentos.
Padre Pedro contemplou as duas mulheres. Sim, iria usá-las para alcançar
seus objetivos. Em nenhuma hipótese, falharia. Nada, no céu ou na terra, o
impediria de concluir o plano que traçara anos atrás. Ultimamente Claire
começara a questioná-lo, a discordar de suas idéias, assim como acontecera
com Helene. Bem, dera um jeito em Helene e daria um jeito em Claire também,
quando chegasse a hora.
Com um sorriso cativante, dirigiu-se à futura viúva.
— Minha querida, claro que você verá seu marido hoje. Por que tanta
ansiedade? Nunca devemos perder a esperança.
— Mas o bispo Fournier voltou de Paris. — A expressão da esposa de
Belibaste revelava pavor. — E lorde Segni pediu à jovem Claire para se
apresentar no castelo amanhã cedo. O julgamento será retomado às primeiras
luzes da manhã. Nunca ouvi falar de interrogatórios que começassem à essa
hora. Pode ser sinal de que desejam encerrar essa história o quanto antes.
— Pode não ser sinal de nada — acalmou-a o templário, num tom calmo e
confiante. — Não devemos abandonar a esperança. Não devemos permitir que
esse infiéis influenciem nosso bom senso.
— Não existe esperança para William. O bispo foi a Paris em busca de
provas contra meu marido, provas que o liguem à conspiração catara. O bispo
viajou para se consultar com alguns monges dominicanos.
— O que a leva a pensar assim? — indagou padre Pedro, ríspido.
Porém, vendo o rubor cobrir as faces de Claire, soube de onde partira a
informação. Sua Claire. Sua esplêndida Madalena. Há anos não experimentava
dor tão profunda.
— Lorde Segni me contou ter sido este o objetivo da viagem de Jacques
Fournier — Claire explicou sem se alterar. — O bispo desejava se aconselhar
com especialistas, com estudiosos. Achava que através dessas conversas
poderia encontrar uma explicação para o que está acontecendo aqui.
— Jacques Fournier falou sobre quais especialistas seriam esses?
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 135
Iria fazê-lo por todos eles. Pela esposa de Belibaste, por Huguet, Minerve e
as crianças. Por Aimery, seu amado Aimery, e por si mesma. Seria a única
maneira de evitar que todos acabassem mortos. Porque padre Pedro se
encarregaria de matá-los a todos, sem piedade. Assim como havia matado
seus pais, pondo fogo no chalé, assim como matara o monge inicialmente
destacado para a função de escriba no vigamento de Belibaste e como matara
a doce madre Helene. Padre Pedro estava louco. Disso não tinha a menor
dúvida. Mas o que o levara a perder a razão? Ainda não encontrara resposta
para essa pergunta.
Tinha certeza de que acabaria descobrindo a verdade. Todas as peças do
quebra-cabeça se encaixariam quando libertasse William Belibaste.
Claire estendeu a mão para padre Pedro, sabendo que essa seria a última
vez.
— Tenho-a comigo — falou, mostrando a enorme chave enferrujada. — É
noite. Podemos libertar Belibaste rapidamente.
O velho templário tentou disfarçar a decepção, porém Claire o conhecia
bem.
— Libertá-lo? — A voz áspera do padre Pedro ecoou pela noite escura,
onde os cátaros costumavam se reunir quando madre Helene ainda vivia.
Todos haviam desertado.
— Não era isso o que queríamos? — Claire estreitou os olhos, ainda
segurando a chave. — Desde criança, os princípios cátaros foram a única coisa
sobre a qual ouvi falar. Devemos amar a liberdade, devemos honrar a vida e
protegê-la. Devemos viver com simplicidade, preservando-nos. Devemos
permanecer bons e justos. Devemos sempre amar a paz. Não foi isto o que
você me ensinou, padre Pedro? Não foi isto o que você sempre disse?
— Claro. — Cansado, o padre já não disfarçava a impaciência. — Claro que
a paz é tudo o que sempre desejei.
— E você viveu a paz? Viveu o que pregou?
— O que você está insinuando?
— Oh, padre Pedro, acho que você sabe muito bem.
E de repente ele soube. Soube que Claire descobrira a verdade. Por um
segundo, o chão pareceu fugir sob seus pés e Pedro de Bolonha quis se agarrar
a uma tábua de salvação, a qualquer tábua de salvação, enquanto o mundo
rodopiava sem parar. Mas não demorou a se recompor. Afinal, era Pedro de
Bolonha e já havia feito coisas piores do que aquelas que planejava fazer
agora.
— Você pensa que sabe tudo. Entretanto não sabe nem da metade.
— Você matou meus pais — Claire o acusou, a voz trêmula a princípio
ganhando força. — Você os matou e matou meu irmão. Você matou o monge
designado para a função de escriba. Matou madre Helene, a doce e gentil
madre Helene, que sempre acreditou nos ideais que você pregava apenas da
boca para fora.
— E quanto à boneca de cera no portão do convento? — padre Pedro a
provocou, irônico. — Vai se esquecer de acrescentá-la à lista de meus pecados
capitais?
Os dois se fitaram durante longos e tensos minutos.
— Faça-me entender — ela pediu. Se ele pudesse...
Por um instante o templário perguntou-se se seu plano inicial ainda podia
ter sucesso. Talvez não fosse tarde demais se conseguisse fazer Claire, sua
Madalena, entender.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 137
CAPÍTULO XVII
bondade nos olhos escuros, não teve dúvidas de que ele desempenhava o
papel de sacerdote dos cátaros com empenho e dignidade.
— Você cometeu um ato de traição ao me libertar e ninguém, nem o
conde de Segni, nem o bispo-inquisidor, terá o direito de absolvê-la. Você
tomará meu lugar na fogueira. Está ciente disso?
Claire sorriu, tristemente.
— Não tenho nenhum desejo de morrer, mas devo contar-lhes a verdade.
Devo-lhes pelo menos isso.
— William! Vamos!
— Não vou me unir a sua tolice. Estou farto da prisão, dos interrogatórios,
de ver minha vida por um fio. Você está sendo tola de permanecer aqui.
Porém...
Desesperada, a esposa o segurou pelo pulso e obrigou-o a se mexer. O
último som que Claire jamais ouviu de Belibaste foi o de seus pés descalços
deslizando pelo corredor, rumo à liberdade.
Daquele homem, nunca mais teria notícias.
Mas não tardou a ter notícias de Aimery, conforme imaginara. Dali a meia
hora escutou-o se aproximar, as passadas firmes e decididas rompendo o
silêncio sepulcral da masmorra.
Muito calma, abriu a porta da cela para recebê-lo. Surpresa, deparou-se
com dois servos, que portavam tochas. Não percebera que a noite havia caído.
Esperara sozinha no meio da escuridão, tentando calar a voz interior que a
urgia a oferecer explicações, a pôr em palavras as razões que a tinham levado
a agir como agira. O herege William Belibaste fora libertado. Quem o libertara
ficara para trás.
Isso era tudo que a escutariam dizer.
Embora não quisesse, obrigou-se a fitar Aimery. Nos olhos azuis, notou um
lampejo de esperança, como se ele, de alguma maneira, aguardasse uma
explicação, uma justificativa sobre por que ela os tinha traído, por que ela o
tinha usado e traído.
Infelizmente só podia lhe oferecer a verdade. Uma verdade destituída de
esperança.
Com a entrada do bispo Fournier na cela, os dois servos, a um sinal do
conde, colocaram as tochas nos suportes presos à parede e se retiraram, sem
um único olhar para Claire. De fato, davam a impressão de não a enxergarem.
— Nós sabemos o que houve — informou-a Jacques Fournier, quando os
três ficaram a sós. — Recebemos uma carta de seu confessor.
— Ele era Pedro de Bolonha — Claire falou, esforçando-se para encarar o
bispo.
— Nós o sabemos agora, apesar de ser tarde demais.
— Ele está aprisionado num cubículo no convento.
— Não mais. — Aimery se manifestou pela primeira vez. — Parece que
William Belibaste não foi o único a escapar hoje.
— Você gostaria de se sentar, Claire? — Fournier indagou.
— Não, obrigada.
— Mas eu sim. — O bispo se acomodou no pequeno banco. — Estou velho
e cansado. Os dias em Paris foram difíceis e a viagem ainda pior. Descanso
sempre que posso.
O conde de Segni aguardou o sacerdote se instalar antes de tomar a
palavra.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 142
— Creio que talvez exista outro motivo para você ter agido como agiu.
— Qual? — Claire indagou num fio de voz, notando a frieza dos olhos
azuis. Nada entre os dois jamais voltaria a ser como antes. Perdera-o para
sempre.
— Acho que você e seu bom amigo, Pedro de Bolonha, planejaram tudo
desde o início. Ambos julgaram que seria fácil me enganar, me fazer cair
prisioneiro de um encantamento. Afinal, uma das acusações contra os
cavaleiros templários não é a de feitiçaria? Sendo a Madalena, com certeza
Pedro de Bolonha lhe ensinou alguns truques, como a utilidade de certas ervas.
— Sim, ele insistiu para que eu usasse certas ervas, porém nunca as usei.
Esqueci-me até de que existiam.
— Se eu acreditasse que você me enfeitiçou, seria mais fácil para mim me
eximir de toda responsabilidade do que aconteceu entre nós. Sou tão culpado
quanto você. Mesmo se seduzido, entreguei-me de livre e espontânea vontade.
— Eu te amo.
— Fácil dizer essas palavras agora. — Aimery deu-lhe as costas. — O fato
é que não posso deixá-la arder na fogueira. E você será queimada pelo que fez.
A fuga de Belibaste antes de ser sentenciado apenas o confirmará como
herege. Você tê-lo ajudado a transforma, na melhor das hipóteses, em traidora.
Ambos ouvimos o que Jacques Fournier disse a respeito. Naturalmente, sendo
pura, Perfeita, você não se incomodará de perecer no fogo dos hereges.
— Eu não quero morrer.
— Enfim você fala a verdade sobre alguma coisa. Acho que...
— Acho que você devia se virar e olhar para mim — Claire falou com tal
firmeza que ela mesma se surpreendeu. — Acho que seja lá o que tenhamos a
dizer um ao outro deve ser dito olho no olho.
Não mais noviça. Não mais Perfeita.
Claire permitiu que a própria raiva finalmente viesse à tona e engolfasse
Aimery de Segni. Não sabia o que havia desencadeado aquela torrente de
emoção, mas experimentava um certo alívio.
— Foi escolha minha salvar William Belibaste. Um compromisso que me
dispus a assumir porque quis e estou pronta para arcar com as conseqüências
de meus atos. Para você é fácil murmurar palavras de amor agora, milorde.
Porém, que tipo de vida em conjunto suas promessas evocavam para nós?
Você planeja se casar com outra. Eu não passo de uma simples camponesa,
instruída, é verdade; hábil no domínio do latim, mas não o tipo de mulher que
você desejaria ver carregando o ilustre nome de sua família, o ilustre nome de
seu pai.
Embora notasse a súbita palidez do conde, embora o percebesse cerrar os
dentes para conter a fúria, prosseguiu.
— Você me ofereceu uma vida clandestina, uma vida de dissimulações,
exatamente como a que padre Pedro planejou para mim há vinte anos. Só que,
desta vez, eu estaria servindo-o e a seus interesses, não à causa dos cátaros.
Você está decidido a se casar com Isabel de Valois, uma mulher a quem
despreza. Você governa Montsegur, uma fortaleza que detesta. E quem iria
ajudá-lo a suportar tantas pressões? Quem o apoiaria para que não desabasse?
A pequena donzela de Foix, como você gostava de me chamar. Eu estaria
destinada a cumprir esse papel. Você é um grande lorde, um homem rico,
poderoso e respeitado. E eu deveria me sentir grata por ter a honra de ser sua
amante, de ser a futura mãe de seus filhos bastardos. Pois bem, não concordo
com isso.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 145
CAPÍTULO XVII
Segni, 1333
Claire se afastou sorrindo. Essa era uma das muitas qualidades que
admirava em Iolande. Apesar do grande número de servos em Segni, a velha
dama não fugia ao trabalho. Quem quer que estivesse disponível realizava a
tarefa necessária, inclusive ela própria. Muitas vezes, vira-a lado a lado com os
camponeses nos vinhedos, durante a colheita das uvas. Ou, então, ajudando os
empregados a apanhar o trigo, ou a preparar as várias misturas de ervas
medicinais. Assombrada, observara-a tirar mel da colméia, sem temer um
possível ataque das abelhas. Incentivada pelo exemplo, vencera o medo e se
aventurara a imitá-la.
Porém, em breve, Claire sabia que teria que partir. Sentia o cheiro de
mudança no ar. Não podia simplesmente ficar ali para sempre, abusando da
hospitalidade de Iolande. Uma das coisas que aprendera durante sua estada
em Segni, um dos presentes que recebera daquela terra e daquela gente, fora
o de não recear transformações. Afinal, transformara-se também. Por dentro e
por fora.
Estava feliz. Durante os primeiros meses ali, não reconhecera a sensação.
Acreditara que a serenidade, a paz interior, fosse apenas resignação depois de
tantas perdas sofridas: madre Helene, o convento, a luta pela causa cátara e...
padre Pedro.
Por direito, deveria odiá-lo e de fato o odiara nos primeiros meses. Ia
dormir odiando-o e acordava odiando-o. Vivera consumida por esse sentimento
dia após dia. Mesmo agora, depois de um ano e meio, ainda experimentava
uma certa insegurança quando se lembrava do templário. Contudo, à medida
que se sentia emocionalmente mais forte, s esse medo irracional parecia se
dissolver, modificado pelo amor que dedicava a Segni. E a Aimery.
No início, apesar de morar no lar do conde, junto da mãe dele, não fora
capaz de pensar em Aimery sem raiva. O último encontro dos dois, em
Montsegur, havia sido terrível, marcado pelas coisas cruéis que disseram um
ao outro.
Sem dúvida ele estava casado com Isabel de Valois agora, o casamento
tendo lhe assegurado a suserania definitiva de Montsegur. Aimery devia estar
satisfeito por haver realizado todos os sonhos do pai.
E ela nunca fizera parte desses sonhos.
Então, aos poucos, a raiva e o ressentimento foram desaparecendo e
dando lugar à verdade. Aimery jamais lhe mentira, jamais lhe fizera falsas
promessas. Aliás, quando tentara falar do futuro, impedira-o. E embora ele não
mais lhe pertencesse, devia se sentir grata pelas recordações que guardaria
pelo resto da vida.
Ao chegar perto do rio, Claire ouviu ruídos inesperados. Aproximando-se
devagar, quase perdeu o fôlego. Era Aimery quem nadava nas águas límpidas
e frescas.
Como ele não a notasse, deixou-se ficar imóvel, observando-o.
Muitos meses tinham se passado desde que experimentara a emoção de
estar entre aqueles braços fortes. Dominada por uma emoção súbita, Claire
fechou os olhos.
Ao tornar a abri-los, Aimery estava de pé no meio do rio, a água cobrindo-
o até a cintura, os olhos verdes fitando-a fixamente.
Como o amava!
— Eu te amo — ele falou apenas.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 149
Como poderia ele amá-la, quando se casara com Isabel de Valois? Doía-lhe
pensar nisso. Cortava-lhe a alma saber que Aimery era um homem casado e,
portanto, inacessível.
Sem mais uma palavra, o conde de Segni saiu da água, o corpo musculoso
brilhando sob o sol de verão.
Com a respiração suspensa, Claire o viu desaparecer atrás de uma árvore
e voltar dali a segundos, inteiramente vestido
— Acabei de chegar — Aimery explicou. — Com Minerve, Huguet e as
crianças. Minha mãe não a avisou que estávamos para chegar?
Claire balançou a cabeça, sabendo, instantaneamente, que Iolande
planejara aquele momento. Mas por quê? Não havia razão para a velha
condessa desejar colocá-los frente a frente, pois levavam vidas muito
diferentes agora. Vidas paralelas, que jamais voltariam a se cruzar. O
casamento de Aimery pusera um fim a seus sonhos mais secretos. Entretanto,
o casamento não o mudara. Não havia sinal exterior de que houvesse se
transformado num homem amargo, infeliz. Pelo contrário, sua simples
presença continuava transmitindo-lhe a mesma sensação de paz, de
segurança. Sim, Isabel de Valois podia tê-lo como marido, porém a rica prima
do rei da França jamais conheceria o Aimery que ela conhecera. Fitando-o, não
teve mais dúvidas de que o conde de Segni só havia revelado a alma, e
entregado o coração, a uma mulher: Claire de Foix. Que essa certeza a
satisfizesse pelo resto de seus dias, porque não podia sequer fingir que ele lhe
pertencia.
— Minha mãe não lhe contou nada? — o conde repetiu, os dois pondo-se a
caminhar lado a lado na direção do castelo.
— Sua mãe não disse nada. Não mencionou nem Minerve, nem as
crianças, quanto mais...
— A mim? — Aimery sorriu pela primeira vez. — É, imagino que não. Minha
mãe não iria querer estragar a surpresa.
Sem uma palavra, os dois deram meia-volta e entraram outra vez no
bosque. Foi Claire quem rompeu o silêncio.
— Minerve veio com você?
— Estamos todos aqui.
— Inclusive sua esposa? Inclusive lady Isabel?
No mesmo instante ela se arrependeu de ter falado aquelas palavras em
voz alta. Vermelha até a raiz dos cabelos, armou-se de coragem e fitou-o.
— Não tenho esposa.
Atônita, Claire não conseguiu emitir um único som, embora se
perguntasse se havia mesmo entendido direito.
— Lady Isabel decidiu cancelar o casamento — Aimery continuou —,
depois de ouvir certos argumentos. Ela finalmente compreendeu que o rei, seu
tio, jamais toleraria qualquer tipo de escândalo envolvendo pessoas da família
por medo de perder o trono. Lady Isabel acabou se dando conta que, para
voltar a morar em Paris, conforme ambicionava, iria precisar da permissão do
rei e que essa permissão só aconteceria se passasse a adotar um
comportamento discreto. Para levar uma vida discreta, Isabel teria que se
casar com o homem a quem de fato desejava. Ela não tardou a se convencer
de que, com o empenho do rei, não seria difícil obter a anulação do primeiro
casamento do amante, Eustache d'Alembert.
— E quem apresentou esses argumentos a lady Isabel? Teria sido
Minerve? Sua irmã jamais aprovou Isabel de Valois.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 150
FIM