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CHE - 237 - Deborah Johns - Encontro Com o Destino

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ENCONTRO COM O DESTINO

(Maiden of Fire)

Deborah Johns
Clássicos Históricos Especial n° 237

Segredos que mudariam uma vida... Uma paixão que mudaria o


destino!

Criada num convento, Claire de Foix foi secretamente treinada na arte da


feitiçaria por um cavaleiro templário, em fuga da perseguição deflagrada pelo
rei da França. Escolhida para fomentar uma rebelião contra o novo senhor da
fortaleza francesa, Claire acreditava que seria fácil fazer Aimery di Segni
render-se a seus encantos, mas sua inexperiência no amor a deixava
despreparada para enfrentar o poder de sedução e a magia dos beijos de lorde
Aimery...
Atraído pela bela noviça, Aimery levou-a para o castelo, pronto para uma fácil
conquista. Foi ele, contudo, que se viu seduzido pela pureza e inteligência da
jovem. E quando a verdadeira identidade de Claire foi revelada, enquanto um
acirrado motim se formava aos portões do castelo, Aimery defrontou-se com a
difícil escolha entre o dever e o desejo... entre um legado de vida e um amor
que só podia ser seu destino!

DIGITALIZAÇÃO: ALICE AKERU


REVISÃO E FORMATAÇÃO: FABIANE
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 2
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 3

Querida leitora,

Nas chamas da batalha entre os remanescentes cavaleiros templários e o


senhor da fortaleza francesa... uma paixão proibida se acende. Uma paixão
forte e arrebatadora que mudaria para sempre a vida e o destino de Claire de
Foix e Aimery de Segni. A fascinante história escrita por Deborah Johns é um
deleite para o coração e a mente!

Leonice Pomponio
Editora

Copyright © 2004 by Deborah Johns Schumaker


Originalmente publicado em 2004 pela Kensington Publishing Corp.
PUBLICADO SOB ACORDO COM KENSINGTON PUBLISHING CORP.
NY, NY - USA Todos os direitos reservados.
Todos os personagens desta obra são fictícios.
Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera
coincidência.
TÍTULO ORIGINAL: Maiden of Fire
EDITORA Leonice Pomponio
ASSISTENTE EDITORIAL Patrícia Chaves
EDIÇÃO/TEXTO
Tradução: Maria Elizabeth Neilson
Revisão: Homero G. de Farias Jr.
ARTE Mônica Maldonado
ILUSTRAÇÃO Hankins + Tegenborg, Ltd.
COMERCIAL/MARKETING Daniella Tucci
PRODUÇÃO GRÁFICA Sônia Sassi
PAGINAÇÃO Dany Editora Ltda.
© 2005 Editora Nova Cultural Ltda.
Rua Paes Leme, 524 – 10° andar - CEP 05.424-010 - São Paulo - SP
www.novacultural.com.br
Impressão e acabamento: RR Donnelley Moore
Tel.: (55 11)2148-3500
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 4

Nota da Autora

Os cátaros, um grupo de hereges cristãos, floresceram na graciosa terra de


Languedoc durante os primeiros anos do século XIII. Entretanto, a natureza
revolucionária de suas crenças ameaçou a Igreja estabelecida e a autoridade
política feudal do rei da França. Em 1209, Lotário del Conti de Segni, subiu ao
trono papal com o nome de Inocêncio III e se tornou um dos papas mais
implacáveis de todos os tempos, lançando uma série de investidas contra os
cátaros. Essas guerras, as Cruzadas, duraram até 1244 e podem ter dado início
à Inquisição. Embora a Causa fosse apoiada pelas famílias nobres da região,
que lutaram valentemente ao lado de aldeões e camponeses para conservar a
liberdade, os cátaros rebeldes foram completamente esmagados pelas forças
francas do Norte. Ou não?

PRÓLOGO

Montsegur, 1314

A névoa se dissipou e Pedro de Bolonha avistou, enfim, seu objetivo, tão


perto agora que se estendesse a mão e se esforçasse, teria a sensação de que
poderia tocá-lo. Porém Montsegur sempre estivera assim, fora de seu alcance.
Mesmo àquela hora, a mais negra da noite, quando todos os bons e justos
dormiam protegidos pelas muralhas da fortaleza, a grande cidade ainda
parecia emanar energia e vigor, arrastando-o, impelindo-o para frente como se
atraído por uma força superior.
Muro de pedras, igrejas de granito e o castelo no alto da colina, pairando
sobre tudo, flutuando no ar. Na calada da noite, Pedro, cavaleiro templário,
monge guerreiro, sacerdote e, portanto, pouco inclinado a fantasias, por um
momento perguntou-se se algum demônio não haveria cuspido Montsegur do
inferno, já pronta e acabada. Mas isso não tinha importância; o que importava
era que a cidade estava ali, a poucos metros de distância.
A luz de Montsegur o guiara através de horrores inimagináveis.
Entretanto, bastara erguer os olhos e se deparar com as torres magníficas para
esquecer o cansaço extremo, a grossa camada de sujeira que o cobria e até
mesmo a criança que carregava no colo, embora ela não fosse o tipo que se
permitisse ser esquecida facilmente.
Montsegur. Estava quase lá. Quase em casa.
A cidade-fortaleza brilhava como um diamante sob o luar. Porém não
como um diamante extraído da terra e lapidado pela mão do homem. Não
como os que vira adornando a cabeça da rainha e da princesa Isabel, a
feiticeira, quando ele e seus pobres companheiros templários haviam sido
levados diante do trono de Felipe, o Belo. Não, o brilho de Montsegur era
diferente. Puro e...
— Perfeito — ele murmurou, completando: — Logo esse brilho pertencerá
a mim.
Porque a fortaleza lhe fora roubada e pretendia retomá-la. Ansioso para
cumprir seu destino, Pedro estremeceu. Assim como estremecera tantos anos
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atrás nos campos de batalha da Cidade Santa, quando ainda era jovem e puro
como a terra em que pisara.
Uma coruja piou de repente, a névoa tornou a ficar espessa e Montsegur
desapareceu dentro da escuridão. O encanto se quebrou e Pedro de Bolonha,
sentindo novamente o peso da idade, olhou ao redor, constatando que para
chegar ao fim da viagem teria que enfrentar mais uma hora de subida íngreme
e perigosa.
— Montsegur foi construída bem antes do tempo do conde Raymond
Roger de Foix — disse o guia, um camponês de sotaque carregado a quem
Pedro, italiano de nascimento, encontrava dificuldade para entender —,
embora o conde Raymond seja sempre lembrado como o mais notável
defensor da cidade. Então os diabólicos pagãos, os canalhas francos, se
esgueiraram por esse mesmo caminho numa madrugada chuvosa e...
Com um gesto imperioso de mão, Pedro fez sinal para o aldeão se calar.
Conhecia muito bem a história do desastre que se abatera sobre Montsegur e a
criança não precisava sabê-lo. Não já.
Gentilmente, o templário aconchegou a menina nos braços, a figura etérea
dando a impressão de não pesar nada. Contudo, quando Montsegur
desaparecera no meio da bruma, sentira uma necessidade urgente de apertá-
la junto de si, como que para se reassegurar de que pelo menos a criança lhe
pertencia. Apesar de não ter pretendido acordá-la, acabou despertando-a. Os
olhos verdes e límpidos o fitaram como no dia em que a havia achado, faminta
e exausta, vagando pela aldeia devastada. E mais do que o toque suave da
mão pequenina, mais do que as palavras sussurradas com uma maturidade
muito além de seus anos, haviam sido aqueles olhos que lhe disseram ser ela a
escolhida.
Sua Madalena.
— Você está me machucando — a garotinha reclamou; a voz solene
parecendo pertencer a uma adulta, não a uma menina de três anos.
Mesmo não sendo especialista em crianças, poucas delas se aventuravam
a romper as barreiras impostas por sua vida monástica, Pedro tinha plena
consciência de estar lidando com uma menina singular, única.
— Oh, sim, claro. — O monge suavizou a pressão das mãos. — Eu jamais
pretendia machucá-la. Jamais.
— Ainda não chegamos? Estamos perto daquele lugar especial?
Até aquela leve impertinência o enternecia. De fato, julgava-a sem
nenhum defeito. O modo como falava, o doce sotaque tão diferenciado do
francês rude, típico de Paris, o agradava imensamente porque, nos últimos
anos, passara a odiar tudo o que se relacionasse a Paris. E com razão.
A criança era tão novinha. Ninguém perceberia sua ausência, ninguém
sairia à sua procura. Aliás, tomara os cuidados necessários para que tal coisa
não acontecesse. Como poderiam eles valorizá-la? Agira bem levando-a
embora da aldeia.
— Estamos quase chegando, querida menina. Estamos quase chegando,
querida Claire — apressou-se a se corrigir. — Somos esperados.
— Estou com medo. — A menina procurou a mão do monge, a mesma
mão que rejeitara segundos atrás. — Estou com fome e com frio. Sinto saudade
da minha mãe. Quero a minha mãe.
— Olhe, estamos quase nos portões da fortaleza. Porque você não os está
enxergando não significa que não estejam lá.
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Porém, apesar do tom firme, tinha suas dúvidas. A subida lenta e


laboriosa, liderada pelo camponês, não estava lhe inspirando muita confiança.
Só esperava que o guia conhecesse mesmo o caminho, iluminado apenas pela
luz da tocha. Não, não era hora de alimentar dúvidas. Há gerações os Justos
percorriam aquela trilha; se não a conhecessem bem, já estariam todos
mortos.
Entretanto, não haviam morrido. Seria preciso mais do que tortura e fogo
para varrê-los da face da Terra. Ele, Pedro, sobrevivera e encontrara sua
Madalena. Sim, era verdade que somente um pequeno grupo de
remanescentes os aguardavam no alto da colina, ao fim daquele traiçoeiro
caminho. Mas logo esse grupo cresceria. Quanto a isso o monge guerreiro não
tinha a menor dúvida.
— Quase em Montsegur — o templário repetiu como uma ladainha. —
Estamos sendo esperados.
Pedro colocou a menina no chão frio e, à despeito dos protestos, obrigou-a
a caminhar a seu lado; o instinto lhe dizia que deveria fazê-la percorrer a
derradeira parte da jornada com os próprios pés. Embora ela ainda fosse muito
jovem, cabia-lhe entrar em Montsegur de livre e espontânea vontade. Se
houvesse enxergado as coisas com clareza, e havia, saberia que Claire iria
enfrentar muitas provações no futuro e precisaria de força e de coragem para
percorrer o longo, árduo e amargo caminho que a levaria até o topo. Era isso o
que a intuição lhe segredava e sempre fora um homem de dar ouvidos ao
instinto.
Graças a ele vencera as fogueiras da Inquisição e conseguira retornar a
Montsegur. Seu instinto nunca falhara e jamais falharia. Tinha tanta certeza
disso quanto do ar que respirava. Assim como tinha certeza plena, absoluta, de
que essa criança era importante para os planos que traçara com os outros.
Tomando a tocha das mãos do guia, Pedro analisou rapidamente, e mais
uma vez, as feições da menina, que o fitou com igual seriedade. Ela era
adorável. Muito mais do que sonhara encontrar enquanto estivera apodrecendo
na cela fétida da prisão. Aqueles olhos magníficos, aquela incrível cascata de
cabelos vermelhos. Claire seria uma bela mulher quando crescesse e
encantaria os homens, algo que acabaria se mostrando vantajoso. Já se
adivinhava nela a marca de uma feiticeira, por si só poderoso fator de atração.
Todavia, Pedro de Bolonha jamais alimentara, ou viria a alimentar,
pensamentos lascivos. A simples idéia o horrorizava. Ela era pura demais. E
ele, um Perfeito.
— Haverá uma cama quente e macia esperando-a no fim de nossa jornada
— ele falou, devolvendo a tocha ao guia —, além de lençóis de linho e de muita
comida. Você será feliz.
Animada com a promessa, a garotinha sorriu.
— Haverá carne também? E doces? Minha mãe virá me buscar?
— Oh, sim — retrucou o monge, mentindo descaradamente. — Você terá
tudo de que precisar e sua mãe se juntará a nós em breve.
— Devemos nos apressar — incitou-os o guia, num tom aflito. — Logo vai
amanhecer. Os outros estão à nossa espera e correndo perigo também.
No mesmo instante, Pedro apertou o passo, com a criança se esforçando
para acompanhá-lo.
— Eles vieram no meio da noite — insistiu o camponês, retomando a
história sobre os infortúnios de Montsegur, apesar da proibição do templário. —
Sob o comando de Simon de Montfort e pagos pelo papa Inocêncio III. O
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sobrenome daquele Papa-demônio era Segni, uma das famílias mais


importantes e ricas do Sul. Os pagãos passaram por essa mesma trilha. Um
passo em falso e teriam caído no abismo, indo direto para o inferno. Pena que
isso não aconteceu.
O rancor na voz do aldeão não perturbou o monge. Muito pelo contrário.
Estava acostumado ao ódio. Seu coração o alimentava.
— Eles se consideravam cavaleiros — o guia continuou. — Portanto,
esperava-se que fossem homens bons, os melhores de que Simon de Montfort
poderia dispor. Proteger os mais fracos não é um de seus juramentos?
Entretanto os malditos caíram sobre nós como animais selvagens. E teriam nos
matado a todos.
— Mas não o conseguiram — murmurou Pedro de Bolonha.
— Mataram o suficiente. Mataram os Perfeitos.
O monge nada respondeu. Segurando a mão da criança com força,
manteve seu segredo bem guardado dentro do coração.
— Contudo você não deixa de ter uma certa razão — concordou o aldeão,
pensativo. — Aqueles cães do inferno não foram capazes de matar todos nós e
por isso devemos nos sentir gratos.
— Eles nunca nos varrerão da face da Terra. Nunca, nunca — Pedro
repetiu sombrio.
— Quem eram os Perfeitos? — Ouvindo a menina, mais uma vez o
templário regozijou-se com sua escolha. Bendizia o destino por tê-la
encontrado. Essa criança estava à altura da grandeza de seu futuro.
— Os Perfeitos eram pessoas boas cruelmente perseguidas pelas
autoridades de Paris — explicou, como se recitasse um texto decorado. —
Eram clérigos cátaros que morreram com a maioria de seu povo muitos anos
atrás, numa época negra de caça aos puros. Mas você, querida menina, salvará
os remanescentes. Você será a maior de todas as Madalenas.
A fatiga o levara a dizer mais do que talvez fosse necessário. De repente a
garotinha estancou e, fitando-o fixamente, balançou a cabeça enérgica,
enfrentando-o pela primeira vez.
— Não. Não sou Madalena. Sou Claire. E Claire deverei permanecer para
sempre.
Não havia razão para discutir agora. A criança aprenderia e Pedro estava
tanto cansado quanto exultante demais para se preocupar com meras
palavras. Haveria tempo de sobra para dobrá-la. Afinal, ele a tinha encontrado
e então roubado. Tudo daria certo no final. Assim, limitou-se a assentir e olhar
na direção de Montsegur.
Jamais estivera tão confiante.
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CAPÍTULO I

Montsegur, 1331

Aimery, conde de Segni, estava presente ao lado do inquisidor-mor no dia


em que a feiticeira surgiu no meio deles. Naturalmente, ninguém imaginara
então que Claire de Foix fosse uma bruxa. Um detalhe que viriam a descobrir
depois.
Passava das seis horas da manhã e as chamas das fogueiras altas, que
haviam lhes dado as boas-vindas como o novo lorde de Montsegur na noite
anterior, ainda crepitavam, quando a jovem entrou no pátio. Aimery podia
ouvir as risadas dos camponeses espalhados por todo canto. Felizes porque a
chegada do senhor do castelo lhes proporcionara um feriado, não escondiam o
contentamento. Também a presença do inquisidor-mor lhes aguçava o
interesse. Sem dúvida logo haveria um julgamento, com mais feriados e
festejos. Todos acreditavam que um herege feito William Belibaste acabaria
condenado a arder nas chamas, o que lhes garantiria três dias de folga dos
trabalhos no campo.
Todavia Aimery não prestava a menor atenção ao burburinho que o
cercava. Tampouco aos seus cavaleiros e soldados fiéis, que o tinham
acompanhado desde a Itália. Enxergava apenas a mulher que caminhava em
sua direção, tão altiva e serena na sua simplicidade que nada parecia afetá-la,
nem mesmo a nobreza ali reunida.
Intrigante.
— Quem é essa moça? — Aimery perguntou ao cunhado, Huguet de
Montfort.
Montfort estivera conversando com um sacerdote vestido de negro, mas
virou-se para atendê-lo.
— É a nova escriba, enviada pela superiora do convento de Santa
Madalena, para redigir as atas do julgamento.
— Foi-nos mandada uma mulher? — indagou o conde, ainda com os olhos
fixos na figura esguia e delicada. Como o novo senhor do castelo, não havia
razão para esconder seu interesse.
Huguet deu de ombros.
— Jacques Fournier, o inquisidor, está ansioso para adiantar o processo.
Como não há monges disponíveis, foi obrigado a recorrer às freiras, cujo
convento é reconhecido como um celeiro de mulheres instruídas. Porém,
somente puderam dispor dessa noviça e o bispo-inquisidor viu-se forçado a
aceitá-la, ou a prosseguir sem um escriba.
— A presença de um escriba é indispensável. O julgamento deve ser justo
e documentado de forma íntegra e imparcial. Você mencionou ser essa moça
uma noviça? Ela é bonita demais para se consagrar à Igreja. Beleza assim
sugere uma união mais terrena.
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— Como se vocês, Segni, dessem muita importância à beleza — retrucou


Huguet sorrindo.
Aimery devolveu o sorriso. Grandes amigos desde quando eram jovens
escudeiros, os dois pouco tinham em comum fisicamente. Enquanto Aimery de
Segni era alto, louro e de olhos azuis, seu cunhado era moreno, peludo e baixo
demais para um cavaleiro, como seu famoso ancestral, Simon de Montfort,
também o fora.
"Parece um gnomo", muitos haviam sussurrado às costas de Huguet em
várias ocasiões, com pleno conhecimento do próprio. A primeira vez que ouvira
o insulto, Aimery não hesitara em sair em defesa do amigo com os punhos,
embora admitisse que o conde de Montfort estivesse longe de ser bonito.
Contudo, não se surpreendera quando sua linda irmã, Minerve, a quem um
primo do rei da França desejara desposar, escolhera Huguet para marido. E
não fora por dinheiro, pois apesar de possuir terras, o conde de Montfort não
era rico. Todavia, apesar de lhe faltar beleza e fortuna, Huguet tinha
qualidades mais importantes, como retidão de caráter, honradez. Coubera a
Aimery fazer sua relutante e poderosa família aceitar o casamento, embora
acreditasse que Minerve teria acabado conseguindo o que queria com ou sem
seu apoio. Uma vez determinada a casar-se com o conde de Montfort, nada a
teria demovido dessa idéia.
— A escriba é uma noviça — Huguet repetiu. — Portanto, noiva da Igreja.
— Noiva não é o mesmo que esposa.
Aquela mulher o fascinava e simplesmente não conseguia deixar de fitá-la.
Trajando um simples hábito branco, os olhos abaixados, os cabelos
inteiramente cobertos por uma touca engomada, ela personificava a
obediência. Entretanto havia algo, algo quase imperceptível, que desafiava
essa imagem. Algo indefinível que o olhar penetrante de Aimery captara. Sim,
havia alguma coisa inquietante.
Alguma coisa pequenina que Jacques Fournier, o inquisidor-mor sentado
ao seu lado, não percebera.
O imenso salão estava repleto, cavaleiros e soldados tão ocupados com
seus próprios interesses que sequer a tinham notado. Muito nervosa, mas
treinada para não demonstrar quaisquer emoções, a noviça manteve-se
cabisbaixa, certificando-se de que a touca cobria-lhe toda a cabeça. Naquele
dia, ela era a única mulher ali presente, embora muitas, num passado recente,
houvessem sido levadas a julgamento diante do inquisidor, quando em visita a
Montsegur. Podia-se sentir ainda o cheiro do medo das pobres coitadas
pairando no ar, suas figuras fantasmagóricas vagando no limbo. Porém Claire
não podia se permitir sentir nada. Sabia que precisava ser cuidadosa e
aprender o máximo possível. Os homens do inimigo, entretidos com seus jogos
e bebidas, lhe ofereciam ampla oportunidade de analisá-los, de usar seu poder
para extrair informações.
Exatamente como padre Pedro lhe ensinara.
"Como se esses idiotas pudessem reconhecer uma verdadeira feiticeira",
pensou desdenhosa. Como se pudessem perceber a proximidade de uma
delas.
Entretanto, apesar de imbecis, Aimery de Segni e seus homens ainda
mantinham William Belibaste na masmorra. Seria seu dever sagrado libertá-lo.
Resoluta, a noviça ergueu os olhos e observou os arredores. Para sua
surpresa, o vasto salão fora decorado com simplicidade. As paredes altas não
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ostentavam ricas tapeçarias, ou vitrais parisienses. Em vez de mobiliário


rebuscado, cadeiras e mesas de linhas discretas.
Das vigas do teto, pendiam estandartes vermelho e marfim, as cores do
conde de Segni, lorde de Montsegur. Mas mesmo estes balançavam-se ao
vento sem alarde. O salão revelara-se menos suntuoso do que imaginara, com
muito menos sinais de opulência do que padre Pedro procurara fazê-la crer.
Já os homens... Eles eram tudo contra o qual o monge a prevenira. Na
verdade, pior. Sem esforço, reconhecia cavaleiros, escudeiros e pajens, com
suas espadas e adagas brilhantes presas à cintura, falando e rindo sem cessar.
Os poucos inquisidores vestiam-se com sobriedade e comportavam-se
igualmente, os rostos sérios denunciando a gravidade da situação. Afinal, não
estavam ali para se divertirem como os outros. Tinham um assunto difícil a
resolver, questão de vida ou morte, de céu ou inferno. Claire os odiava.
De repente, no meio da multidão, uma figura alta e magra tossiu de leve,
como se para chamar sua atenção. No mesmo instante Claire soube de quem
se tratava e seu coração se fortaleceu. Padre Pedro conseguira penetrar dentro
da fortaleza para oferecer-lhe apoio espiritual. Ele cumprira a promessa, não
deixando-a enfrentar os inimigos sozinha.
Um dos inquisidores ergueu a cabeça de súbito e fitou Claire, os olhos se
estreitando.
— Menina — ele chamou. — Venha cá. Aproxime-se depressa.
Claire de Foix obedeceu à ordem, notando que alguns cavaleiros
afastavam-se para lhe dar passagem. Ninguém parecia desejar ser censurado
por Jacques Fournier. O perigo estava no ar, mas não tinha importância porque
a vida inteira convivera com o perigo. Isso não a afetava.
— Eminência — ela falou, fazendo uma reverência.
— Você nos foi enviada pela superiora do convento de Santa Madalena?
— Sim, milorde.
— Qual é seu nome?
— Claire. — Uma breve pausa. — Claire de Foix.
Um murmúrio percorreu o salão. Padre Pedro escolhera bem seu
sobrenome. Um sobrenome que encontrava ressonância naquela parte de
Languedoc. Um sobrenome que respirava história.
— De Foix? — repetiu o inquisidor. — Então, mais do que qualquer pessoa,
você sabe por que estamos aqui.
— Sim, Eminência. — Atendendo à ordem do inquisidor, Claire deu mais
um passo à frente, aproveitando para observá-lo discretamente. Jacques
Fournier era alto e elegante, a túnica de corte simples confeccionada da mais
pura seda. Entretanto seu timbre de voz soava áspero como o de um
camponês, apesar de seus modos corteses e das palavras educadas. Mais
tarde, sozinha em seu quarto, examinaria tal disparidade e, claro, falaria dessa
anomalia com padre Pedro.
— Eu achava que o conde e a condessa de Foix estavam mortos,
juntamente com seus descendentes — disse o inquisidor. — Pensei que
houvessem sido assassinados durante o cerco ao castelo, na Grande Cruzada
contra os cátaros hereges.
— Nem todos os Foix eram hereges — retrucou Claire, abaixando os olhos
com estudada humildade. — Muitos da família se arrependeram. Depois da
Cruzada, abandonaram as falsas crenças, ouvindo as pregações de Bernardo
de Clairveaux e de São Domingos, reconheceram seus erros e retomaram o
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verdadeiro caminho. Meu pai estava entre os que se arrependeram. Ele era
primo distante do último conde, mas perdeu o título de nobreza.
— Qual é o nome de seu pai? Por que nunca ouvi falar dele?
— Porque meu pai era pobre, fruto do ramo mais fraco de uma família rica
e poderosa. Homens como meu pai raramente deixam uma marca. Não são
notados.
Essa resposta, verdadeira de fato, pareceu satisfazer o homem que a
interrogava. O inquisidor assentiu e fez sinal para Claire continuar o relato.
— O avô de meu pai se retratou com São Domingos de Gusmão, o
fundador de sua ordem, Eminência. De livre e espontânea vontade, meu avô
prometeu que, durante cinco gerações, as mulheres de sua família seriam
consagradas à vida religiosa, entrando para o convento dominicano de
Montsegur. Seria a maneira de reparar os graves erros de nossos ancestrais.
— É por este motivo que a mandaram para mim? Por que você está num
convento próximo?
— Sim, milorde — Claire mentiu suavemente. — É por esta razão que
estou aqui.
— Não é verdade — rebateu Jacques Fournier, seco. — Você me foi
enviada por ter amplo conhecimentos de latim, não por qualquer outro motivo.
Agora, explique-me: como você é tão eficiente no domínio da língua santa?
— Também domino grego e um pouco de hebraico — afirmou Claire, que
havia ensaiado bem o pequeno discurso. — Fui escolhida desde a infância para
aprender as línguas santas e ser útil à missão do convento.
O inquisidor a fitou fixamente, como se a enxergasse pelo avesso. Muito
pouco escapava àquele olhar.
— Você sabe quem sou eu?
— Sim, milorde. Você é Jacques Fournier, bispo de Pamiers — respondeu.
— E bispo dessa região também. Pelo menos até outro ser apontado.
Mantendo-se calada, Claire assentiu com um gesto de cabeça.
— Você sabe por que estou em Montsegur? — prosseguiu o inquisidor, em
um tom mais afável.
— Para abençoar o novo conde de Segni, chegado recentemente do sul,
em sua tomada de posse do castelo.
Alguém deixou escapar uma risada divertida e, pela primeira vez, Claire se
deu conta da presença de um homem alto ao lado de Fournier.
— É verdade e você o disse bem. — O bispo se inclinou ligeiramente para
frente, diminuindo a distância entre os dois. — Todavia, duvido de que o
convento deixaria uma noviça sair de seu confinamento apenas para
desempenhar o papel de escriba numa função simples como a bênção de um
castelo. Sua abadessa não lhe contou sobre a razão real de sua presença aqui?
— Sim, ela me contou. — Claire o fitou diretamente. — Estou aqui porque
um herege cátaro foi capturado. O julgamento do infiel começará em breve e
vocês precisam de alguém para redigir as atas do julgamento de forma correta.
— Foi isto o que a abadessa me disse. Esta é a função para a qual fui
convocada.
"Você deve engolir o orgulho e parecer um anjo. Você deve ser humilde
perante o inquisidor. É a única maneira de ajudar os Perfeitos". As palavras de
padre Pedro ecoaram em sua mente, fortalecendo-a.
— Estou aqui para lhes prestar auxílio.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 12

— Então, fale a verdade — exigiu Jacques Fournier. — Diga-me,


exatamente, como você aprendeu latim. Explique-me essa aberração que é a
existência de uma mulher escriba.
Pedro a preparara bem para essa pergunta. Da habilidade de Claire em
soar convincente dependia a salvação de Belibaste e, talvez, dos membros
restantes do culto.
Claire permaneceu em silêncio por alguns segundos, antes de iniciar o
relato.
— A história de minha consagração à Igreja não é nenhum segredo. Fiquei
órfã quando criança. Não sei nada sobre meus pais, exceto que eram gente
simples, mortos durante um incêndio na aldeia. Eu não tinha parentes capazes,
ou desejosos, de me abrigar. Um padre, de passagem, encontrou-me vagando
ao pé da colina. Depois de ouvir minha história, levou-me consigo até o
convento de santa Madalena e implorou para que me aceitassem. As freiras
sabiam que meu ancestral havia prometido as mulheres da família àquela
ordem. Então me acolheram.
— Você não se lembra de nada a respeito de sua família? Imagens fugidias
passaram pela mente de Claire. Mamãe e papai rindo, o fogo ardendo na
lareira. Embora não pensasse nos dois há anos, reconhecia-lhes o rosto.
— Não me recordo de nada — afirmou, esforçando-se para controlar o
tremor da voz.
A lembrança inesperada dos pais havia minado seu equilíbrio, abalando
sua serenidade. De repente ela se deu conta de que um silêncio mortal caíra
sobre o salão e todos os olhares convergiam para sua figura. Uma sensação
súbita de perigo iminente a dominou, porém Claire obrigou-se a conservar a
calma aparente.
— Continue — ordenou o bispo, após breve pausa.
— A abadessa se afeiçoou a mim. Talvez porque eu tivesse ficado órfã
muito cedo e fosse natural da região de Foix. Ela achou importante cuidar
pessoalmente da minha educação para se assegurar de que nenhum resquício
de heresia manchasse minha vida, porque presumiu...
— Que você começara a ser criada na fé herética?
Claire obrigou-se a encarar o inquisidor, a usar o poder que possuía,
embora soubesse do perigo de tentar manipular um homem tão obviamente
astuto.
— Nasci em Foix, uma região habitada por hereges, assim como
Montsegur também o era anos atrás. Minha abadessa preferiu não correr riscos
diante da possibilidade de que eu houvesse recebido, mesmo na mais tenra
infância, ensinamentos falsos. Tudo isto está documentado nos registros do
convento, assim como o fato de eu não possuir nenhum conhecimento das
crenças heréticas. Não me lembro de nada de meu passado. Algo normal,
considerando que cheguei ao convento aos três anos de idade.
Mais uma vez imagens da mulher sorridente e do homem feliz vieram-lhe
à mente.
— Porém, como os outros, a abadessa presumiu que eu...
— Você, Claire de Foix, usou muitas vezes o verbo "presumir" ao se referir
à sua abadessa — interrompeu-a Jacques Fournier, num tom enganosamente
tranqüilo. — Sim, você se valeu desse verbo repetidas vezes. Pois agora lhe
pergunto, Claire de Foix: você é, ou não, herege?
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 13

— Não sou herege! — Sua voz soou surpreendentemente forte, segura. E


mesmo ela, bem treinada na arte dos Perfeitos, não saberia dizer de onde
vinha este inesperado poder do controle absoluto das emoções.
O bispo fitou-a com redobrado interesse.
— Soube que você também costuma ser chamada de Madalena.
O sangue de Claire gelou nas veias. Entretanto, apesar do medo
crescente, a jovem manteve-se calma.
— O monge que me recolheu me chamou assim e outros o imitaram. —
Seguindo as orientações de padre Pedro, não se afastou muito da verdade,
ciente do perigo que as mentiras representavam quando enfrentava um
interlocutor com a inteligência e sagacidade de Jacques Fournier. — Tratava-se
de um apelido. Maria Madalena era a santa favorita do monge. O convento que
me recebeu também leva esse nome. Portanto, acabou sendo natural alguns
chamarem-me assim.
— Sua abadessa explicou-lhe por que mandamos buscá-la, a você, uma
mulher? — o inquisidor interrogou-a, depois de uma pausa. — Ela lhe explicou
a verdadeira importância desse julgamento e por que não podemos adiá-lo?
— Sim. Os cátaros se tornaram ativos novamente. Crenças heréticas
provaram-se mais vivas do que a Igreja julgava. Devo me esforçar para ser útil
na luta contra os hereges. Estou aqui para servi-lo e à Verdade.
— Muito bem. E de que maneira você prestará seus serviços a mim e à
Verdade?
— Usando meus conhecimentos de latim e desempenhando a função de
escriba no julgamento de um homem acusado de heresia.
— Qual é o nome desse homem, menina?
— William Belibaste — replicou ela, obediente.
— Tivemos sorte por apanhar um peixe graúdo em nossas redes. Não há
dúvida sobre a culpa do acusado. Entretanto, concederemos a ele um
julgamento justo e lhe daremos ampla oportunidade de abjurar. William
Belibaste é um cátaro, membro do clero da seita dos Perfeitos. Esperamos que
seja o último deles e que, com a graça dos céus, se arrependa.
— Ele não se arrependerá — Claire falou baixinho, abaixando a cabeça.
— O que você disse, menina? Você sabe alguma coisa sobre essa gente e
suas crenças? Há resquícios de heresia em seu sangue, Claire de Foix?
— Todos em Montsegur sabem sobre os cátaros. Todos conhecem a
história da guerra deflagrada contra eles. Monsenhor já se esqueceu?
— Aconselho-a a ter cuidado com as palavras. Na verdade, menina, não
me esqueci daquela época infeliz e sugiro que você guarde essas lembranças
dentro de seu coração. Que essas recordações a levem, e a todo o povo de
Languedoc, a agir com cautela.
Devagar, Jacques Fournier passeou o olhar pelo salão repleto, como se
examinasse cada um dos rostos ali presentes.
— Tristes tempos esses, em que somos obrigados a usar uma mulher
como escriba. Normalmente uma mulher deveria ser mantida em seu lugar. De
fato os cátaros permitiram a elas tornarem-se sacerdotisas e isto contribuiu
para a gravidade de sua heresia. Porém esse tribunal não teve outra
alternativa. O escriba de minha ordem, irmão Edmond, adoeceu
repentinamente e seu estado é tão crítico que já recebeu a extrema-unção.
Não há tempo para esperar que um monge venha de Paris, ou de Roma, para
substituir irmão Edmond, devido à urgência do julgamento de William
Belibaste, pois já se escutam rumores de planos para libertá-lo. Somos fortes,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 14

mas precisamos ter cautela. Num passado recente, há setenta anos, santos
inquisidores foram assassinados enquanto rezavam. Que tal blasfêmia,
acontecida em Avignonet, jamais se repita. Esta menina continuará vivendo no
convento, como de costume, e virá ao castelo para documentar o julgamento.
Não existe a menor possibilidade de que a culpa de Belibaste não venha a ser
amplamente provada. Não queremos transformá-lo num mártir!
Às palavras do inquisidor seguiu-se um burburinho de aprovação.
— Não temos tempo de esperar a chegada de um escriba. O acusado deve
ser julgado antes que sua gente tente libertá-lo. Você, menina, será trazida do
convento pela manhã e levada de volta à noite. Durante o dia, se dedicará a
registrar o julgamento. Todo o processo deverá ser documentado com
precisão. Não queremos que o acusado seja sentenciado sem ter a culpa
comprovada. A justiça prevalecerá acima de tudo.
Claire assentiu.
— Pois bem. Sir Aimery, conde de Segni, designará um servo para
acompanhá-la até o convento.
— Sir Aimery, conde de Segni, acompanhará a noviça pessoalmente —
disse uma voz baixa e profunda.
Surpresa, Claire virou-se para a origem do som. Estivera tão preocupada
com Jacques Fournier, que mal reparara no homem musculoso ao lado do
inquisidor.
Mas ele a tinha notado.
Era comprovado que a perspectiva de um julgamento público atraía
curiosos a uma aldeia como moscas a um pote de mel. Assim, o julgamento de
William Belibaste, aliado à cerimônia de tomada de posse do novo senhor do
castelo, transformara as ruas estreitas de Montsegur num aglomerado de
visitantes. Claire, Aimery, e a guarda de honra que os seguia, avançavam
lentamente, abrindo caminho no meio de camponeses, mercadores e artistas
circenses.
Com o olhar abaixado e as mãos cruzadas, Claire caminhava em silêncio,
incapaz de fitar o nobre a seu lado. Padre Pedro a avisara, e ela sempre
seguira à risca seus conselhos. Sabia o que esperar de homens como Aimery
de Segni. Embora pertencessem à nobreza e se comportassem com a
arrogância típica, por trás do aparente refinamento, das roupas espalhafatosas,
das botas de couro pintado e bico fino, ele, como todos os de sua classe, podia
ser tão grosseiro e destituído de sentimentos quanto qualquer aldeão. Pior até.
Afinal, não fora o que presenciara no grande salão pela manhã? Enquanto o
destino de um camponês estava sendo discutido ali, os cavaleiros do de conde
Aimery haviam rido e se divertido como se estivessem numa festa, ignorando
até mesmo a presença do inquisidor-mor.
E parecera-lhe óbvio que o novo lorde de Montsegur não era melhor que
seus comandados. Claire fitou-o de soslaio. Se fosse sincera consigo mesma,
admitiria que Aimery de Segni não se encaixava, pelo menos fisicamente, no
padrão cultivado pelos aristocratas. Muito alto, musculoso, suas roupas nada
tinham de extravagantes. Pelo contrário, exibiam uma sóbria elegância no
corte e na combinação das cores. As botas também acompanhavam o estilo
discreto da túnica, escuras e sem ornamentos desnecessários.
Todavia, tais qualidades exteriores não a iludiam, pois notava o efeito que
esse gigante louro tinha sobre as mulheres com as quais cruzavam. Estava
claro o quanto a beleza viril atraía o sexo oposto, independente da idade.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 15

Embora a distância entre o castelo e o convento não fosse expressiva, o


conde destacara dois escudeiros e seis pajens para acompanhá-los, um
pequeno séquito contribuindo para o congestionamento das ruas. Mais de uma
vez Claire, a contragosto, notou que seu braço roçava o de sir Aimery, por pura
falta de espaço para se locomover.
Isso não a agradava nem um pouco. Aliás, toda a situação a irritava.
Vendo o estandarte da casa de Segni tremular no ar, um lobo seguro pelas
garras douradas de uma águia, ela cerrou os lábios, desgostosa.
Não encontrava nenhuma dificuldade para imaginar Aimery de Segni como
uma enorme ave de rapina. Com que prazer ele não investiria contra inocentes
e indefesos. Com que prazer não tentaria destruir William Belibaste! Entretanto
os Perfeitos o impediriam. Ela o impediria.
— As notícias sobre a festa em Montsegur se espalharam rápido. — Essa
era a segunda tentativa do lorde de Segni para iniciar uma conversa,
considerando que especulações sobre o tempo não o haviam levado a lugar
nenhum. — Muitos artesãos vieram de longe, além das montanhas de Haute
Savoie. Reparei nos tecelões vendendo seus belos artigos de seda. Claro que
qualquer celebração é apenas uma desculpa para as pessoas dançarem e se
divertirem. Sou natural do sul da Itália, de uma região conhecida pela alegria
de viver de seus habitantes. Soube que Languedoc é semelhante à minha
terra; aliás, também famosa por seus grandes amantes. É comum essas
características atraírem visitantes, você não acha?
— Trata-se de um assunto sobre o qual dificilmente eu teria uma opinião
— retrucou Claire, seca — visto ter sido criada dentro de um convento.
— Todavia este assunto a interessa mais do que o tempo — Aimery
comentou num tom suave.
Pela primeira vez ela o fitou de frente. Impossível não se impressionar
com a beleza daqueles olhos, de um azul tão brilhante, tão límpido, que
ameaçava hipnotizá-la. Fascinada, sorriu-lhe. O conde retribuiu o sorriso.
— Criada dentro de um convento, ou não, estou certa de que você escutou
histórias sobre os trovadores. — Num gesto gentil, ele a segurou de leve no
cotovelo, para guiá-la através da multidão. — A cultura dos trovadores
começou aqui, as baladas, as canções de amor, as lendas. Essa terra ainda
carrega as marcas de seus dias de glória.
Embora permanecesse em silêncio e caminhasse cabisbaixa, nada
passava despercebido a Claire. Há quase vinte anos no Convento Santa
Madalena, freqüentemente ouvira histórias sobre o esplendor de Montsegur
quando ainda sob o domínio cátaro. Sua vida, até então, sempre fora
sossegada. Protegida pelas paredes do claustro, dedicara-se aos estudos,
seguindo rigidamente as orientações de padre Pedro. Mesmo dentro daquela
redoma, soubera dos trovadores, um aspecto importante da história de
Languedoc, uma parte da cultura que perdera-se na época das Cruzadas.
Todavia, jamais tivera oportunidade de escutar uma só de suas canções de
amor.
De repente, como se atendendo ao seu apelo mudo, um menestrel pôs-se
a cantar:

Corada ela era, e viçosa como um raio de sol. Seus seios incitavam todos os
homens a mordê-los Tenros de amor; doces como fruta madura. Assim é nossa
Lupa. Nossa loba do Cabaret.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 16

Os versos sensuais fizeram Claire enrubescer e uma das mulheres que


acompanhava o menestrel, tocando um pequeno tamborim, sorriu
sugestivamente para o conde de Segni. Como ele não retribuísse o sorriso, a
mulher ergueu a barra da saia e mostrou um dos tornozelos bem torneados,
arrancando risos da multidão. Os escudeiros do nobre atiraram algumas
moedas para os músicos que, alvoroçados, retomaram a cantoria com
redobrado entusiasmo.
Padre Pedro a ensinara que apenas o espírito importava. Mas os
menestréis estavam celebrando a paixão carnal, falando de beijos, de seios, do
toque das mãos de um homem. Era tudo muito diferente do que aprendera e
essa gente parecia estar genuinamente se divertindo, sem nenhuma malícia.
Discutiria a questão com padre Pedro, pois sempre conversavam sobre tudo.
Somente ele tinha o poder de sossegar sua mente.
Porém caminhar tão perto do conde de Segni não a sossegava nem um
pouco. As ruas estreitas e movimentadas os forçavam-nos a andar tão
próximos que ela podia aspirar o perfume másculo de Aimery. Por mais que se
esforçasse e até mesmo se recusasse a fitá-lo, não conseguia se manter
indiferente.
Sob a sombra da catedral, Claire notou uma fileira de barracas, onde
comerciantes vendiam seus produtos. Dentre eles, destacava-se um mercador
da Província de Como, expondo lenços de seda. Um lenço verde, da cor que
imaginava ser o mar, chamou-lhe a atenção. O tecido fino e esvoaçante lhe
transmitia uma serenidade tão grande no meio de toda aquela balbúrdia que,
num impulso, estendeu a mão para acariciá-lo.
— Seria um presente perfeito para milady — disse o mercador, dirigindo-
se ao conde. — É exatamente da cor dos olhos dela.
No mesmo instante Claire largou o lenço. Aimery o apanhou. Então, com
exagerada concentração, examinou o tecido e comparou-o com os olhos da
noviça.
— Sim, é verdade. A cor é a mesma.
— Os tingidores da Lombardia são mestres em sua arte, os melhores que
existem — continuou o mercador, antecipando uma venda. — Famosos pelos
tons de azuis que obtêm e pelos verdes inimitáveis.
— É uma pena que milady não se interesse por essas coisas — explicou
Aimery, devolvendo o lenço ao mercador. — Ela é por demais séria para dar
importância a tolices, ou eu realmente cederia à tentação de presenteá-la.
Imóvel, Claire abaixou o olhar. Na verdade, por um breve instante,
estivera tentada a possuir aquele lenço macio e brilhante. Outra questão que
precisaria discutir com padre Pedro.
Ansiosa para esquecer o embaraço de desejar algo mundano, ela mudou
de assunto, retomando a caminhada.
— Você não acha uma espantosa coincidência um lorde de Segni vir a
tomar posse da fortaleza de Montsegur? Nunca mais os Segni estiveram no
poder aqui desde que essas terras foram interditadas por ordem do papa
Inocêncio III. A propósito, você não é descendente dele?
— Sim. Inocêncio III e o papa que o sucedeu, são meus ancestrais.
— Montsegur é um grande castelo, digno de ser o lar de um nome nobre
como Segni.
— Palavras gentis — devolveu Aimery, com certa irreverência. — Embora
eu seja o primeiro a realmente tomar posse dessas terras. Montsegur não
passava de um ponto minúsculo no mapa para meus ilustres ancestrais.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 17

— Porém eles, em especial o papa Inocêncio III, estavam determinados a


conservá-la — disse Claire, diminuindo o passo —, assim como o conde de
Montfort.
Aimery deu de ombros.
— Essa era uma terra de hereges.
— Você não acha uma enorme coincidência um Segni estar novamente em
Montsegur, na companhia do bisneto de Simon de Montfort? — ela insistiu.
— Não há nenhuma coincidência no fato de Huguet de Montfort e eu
estarmos juntos aqui. Somos amigos desde nosso tempo de escudeiros. Ele é
casado com minha irmã e pai de quatro filhos saudáveis e robustos. Como
nossos ancestrais, viemos defender essas terras mais uma vez. Rumores de
outra rebelião catara chegaram a Paris. Sou um vassalo do rei. Talvez ele
tenha pensado que um Segni fosse o mais indicado para proteger Languedoc.
— Considerando o histórico de sua família?
— Considerando minha história porque eu, como você, pertenço a uma
facção empobrecida de um clã poderoso. Não me foi dado um castelo quando
nasci. Montsegur é o primeiro que possuo. Na verdade, é meu primeiro lar.
Vendo-o sorrir, Claire, de repente, se deu conta de que Aimery era jovem.
Não teria mais do que vinte e cinco anos. Sem saber como reagir ao sorriso
devastador, ela abaixou o olhar, obrigando-se a prestar atenção nos contornos
das pedras que pavimentavam a rua estreita, como se aquilo fosse de máxima
importância. Os ruídos das festividades na praça principal começaram a se
desvanecer no ar à medida que se aproximavam das muralhas que
circundavam o convento.
Descubra tudo o que puder rapidamente. Os nossos esforços são
desesperados. Precisaremos de todos os detalhes possíveis.
A voz de padre Pedro soava tão nítida dentro de sua cabeça que Claire
quase cedeu ao impulso de procurá-lo nos arredores, e se certificar de que o
templário não estava escondido nas redondezas do convento. O longo e
vagaroso trajeto chegava ao fim e, talvez, ainda houvesse oportunidade de
descobrir algo que se provaria útil para a causa dos Perfeitos.
— Conte-me como você veio parar em Montsegur, milorde.
— Conte-me como você veio parar dentro das paredes do convento.
Tratava-se de um pedido justo. Poderia contar-lhe a maior parte de sua
verdadeira história. Aliás, já o tinha feito na presença do inquisidor. E, em
troca, talvez ele se abrisse um pouco mais.
— Nasci para a vida religiosa, como falei pela manhã diante do bispo
Fournier. Meus pais foram mortos, bem... eles morreram quando eu era muito
menina. Um padre me encontrou vagando e me trouxe para cá.
— De fato ouvia-a explicar ao inquisidor que essa vida foi escolhida para
você.
A crítica sutil, embutida nas palavras do nobre, irritou-a.
— Talvez no começo tenha sido assim. Depois, abracei essa escolha.
— Entretanto, após tanto tempo vivendo no convento, você ainda é uma
noviça, quando já tem idade suficiente para ser freira. Talvez, no íntimo, relute
em aceitar os planos que alguém traçou para a sua vida.
— Os planos que os céus traçaram para mim — ela retrucou, áspera.
— Oh, sim. O céu. — Aimery não se mostrou nem um pouco convencido. —
Pelo que pude perceber, apesar do hábito e da touca que a cobrem, você é
muito bonita para se tornar religiosa. E uma moça bonita sempre recebe
ofertas de casamento dos rapazes da aldeia, mesmo não possuindo dote. As
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 18

freiras não deveriam nunca tê-la mantido no convento contra sua vontade. Por
que uma mulher tão linda optaria por viver trancafiada dentro de quatro
paredes? Este é o enigma que pretendo decifrar.
Claire abriu a boca para retrucar, mas conteve-se a tempo. Lorde Segni a
estava provocando e precisava resistir a qualquer custo, ou deixaria
transparecer o que não deveria. Como vira madre Helene fazer diversas vezes
no convento Santa Madalena, cruzou as mãos sob o avental, numa tentativa de
impressioná-lo e parecer solene. Subitamente tornara-se imperativo que
Aimery de Segni soubesse não estar lidando com uma mulher com quem
pudesse brincar à vontade.
Todavia o conde não se desencorajava com facilidade.
— E você tem esses maravilhosos olhos de gata. Claire não disse nada.
— Além de cabelos vermelhos. A marca de uma feiticeira.
Enfim conseguira a reação que desejara. Mal acabara de falar e Claire já
tentava recolocar a mecha de cabelos sob a touca engomada.
— É uma mecha pequenina, porém o brilho intenso dos fios fez com que
eu reparasse na cor. Percebi-o de imediato, mas duvido que o inquisidor a
notara, ou teria feito algum comentário. Trata-se de uma cor interessante,
especialmente para alguém prometida tão cedo à vida monástica, alguém que
julga possuir tanta vocação para o claustro.
Devagar, Aimery estendeu a mão e tocou os fios sedosos, quase
reverente.
— A cor de meus cabelos não foi escolha minha. Não posso fazer nada a
respeito.
— É verdade. — Eles haviam chegado às muralhas do convento. Com o
punho da espada, o conde bateu duas vezes na pesada porta de carvalho, o
som reverberando pelo silêncio do entardecer. — Não tenho nada contra a cor
de seus cabelos. Pelo contrário, acho-os maravilhosos. Porém, possuo duas
primas enclausuradas num mosteiro nessa região da França e sei que o
costume é raspar os cabelos das noviças, como um sinal de piedade.
Entretanto a abadessa do Santa Madalena permitiu que você mantivesse os
fios longos sob a touca de noviça. Pergunto-me por quê. Sim, fico imaginando
por quê.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 19

CAPÍTULO II

— O que você sabe sobre William Belibaste? — indagou Aimery de Segni


ao cunhado, enquanto observavam os jovens escudeiros praticarem na arena.
— É um rebelde cátaro e, portanto uma amolação. — Huguet de Montfort
manteve os olhos fixos no grupo de rapazes, cujo entusiasmo pelo treinamento
era contagiante.
— O homem está sendo acusado de herege e agitador. Eu consideraria
tais acusações mais do que uma amolação, se fosse ele.
— Todavia eu não sou Belibaste — retrucou Huguet mansamente. — Sou
seu amigo e ninguém gostaria de ver um amigo tomar posse de um castelo
com o inquisidor-mor e seus auxiliares pressionando-o.
— Especialmente se este inquisidor for Jacques Fournier.
— Um homem obcecado pelo dever.
Os dois amigos formavam uma dupla perfeita, embora nem a própria mãe
de Huguet se atreveria a chamá-lo de bonito. Enquanto os Segni eram todos
louros, Montfort tinha o nariz aquilino e os cabelos encaracolados
característicos de sua família há gerações.
— Os cátaros eram hereges também — falou Huguet —, embora eu não
saiba precisar com exatidão as infrações de que costumavam ser culpados.
Creio que alguma coisa relacionada às teorias maniqueístas; a velha dicotomia
de que o corpo é mau e o espírito, bom.
— Parece-me uma idéia inocente.
— Porém perniciosa. Tal noção fomentou heresias que foram sempre dura
e rapidamente esmagadas.
— Mas por quê? Pelo que ouvi dizer, os cátaros eram pacíficos, pelo menos
no começo.
— Oh, sim, é verdade. Os movimentos floresceram aqui, no sul da França,
ao longo de Haute Savoie e no norte da Itália. Contudo, a região de Montsegur
é considerada o verdadeiro berço da seita. Os cátaros acreditavam
profundamente na vida espiritual, desde que segundo os próprios padrões.
Valorizavam a simplicidade, a pureza, a beleza e a harmonia. Prezavam a
cultura dos trovadores e, segundo muitos, devemos o código de honra dos
cavaleiros a eles. Qualquer coisa relacionada ao espírito era perfeita; qualquer
coisa carnal necessitava ser evitada a todo custo. Infelizmente essa visão
simplista da vida põe o homem numa situação angustiante, sempre se
debatendo entre o bem e o mal. E não há garantias de que o bem irá
prevalecer.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 20

Huguet fez uma pausa antes de continuar.


— Os cátaros tinham idéias avançadas para seu tempo. Acreditavam, por
exemplo, no sacerdócio feminino. Assim, criaram uma confraria, os Perfeitos,
em que homens e mulheres formavam o clero.
— Mas eles se consideravam cristãos, não é? — Aimery perguntou.
— Sim. Entretanto, no que lhes convinha, recusavam-se a seguir as
diretrizes de Roma. Aliás, não creio que o problema com Roma tenha sido
apenas religioso. Se não fossem fortes adversários políticos, não acho que
Roma os teria mandado eliminar. Seu tataratio, o papa Inocêncio III, e meu
tataravô, Simon de Montfort, foram os responsáveis diretos pelo acontecido. O
papa, o mandante, e Simon o general dos exércitos invasores. Não há como
negar a responsabilidade de nossas famílias quanto ao que aconteceu naquela
terra.
— Você está se referindo ao massacre de Montsegur.
— Sim. Além do massacre de Albi, Toulouse e Foix. O conde de Foix talvez
tenha sido o mais formidável oponente, mas com uma defesa inútil. Não havia
como vencer o resto da Europa e a Igreja. Foram preciso alguns anos. No final,
os cátaros acabaram todos destruídos.
— Eles não perceberam o que lhes estava acontecendo?
— Sim, todavia resistiram até o final, especialmente em Toulouse, Foix e
em Montsegur.
— Talvez, então, seja justo que William Belibaste tenha sido trazido para
cá. Imagino que ele faça parte do clero, os Perfeitos. Não é assim que você os
chama?
— Sim — concordou Huguet.
— Pois, então, que ele tenha um julgamento justo. Que se arrependa, ou
sofra a condenação. — Aimery calou-se por alguns instantes, pensativo. — É
interessante o que você disse, sobre os cátaros aceitarem sacerdotisas.
Interessante porque também estamos lidando com uma anomalia em nosso
meio. Dependemos dos serviços de uma mulher escriba.
— Ah, a linda noviça. — Huguet sorriu enquanto os dois tomavam o rumo
do castelo, o treino dos escudeiros havendo se encerrado. — Notei mesmo o
seu interesse. Você fez questão de acompanhá-la pessoalmente ao convento.
Confesso-lhe que estranhei. Você não é o tipo de abandonar seus afazeres para
explorar os encantos de uma simples noviça.
— Você acha estranho eu haver levado nossa jovem escriba ao convento?
Acha esquisito?
— Sim, acho. Sem dúvida caberia a um de seus escudeiros acompanhá-la,
mas esse jamais seria seu dever, como o senhor do castelo. Nem mesmo a
abadessa Helene esperaria tal deferência, caso fosse ela a escriba, e não essa
moça. Portanto, surpreendeu-me que você tenha se dado a esse trabalho
principalmente por que...
— Principalmente porque estou quase noivo — Aimery completou.
— Sim. — Huguet hesitou por um breve instante. — E com certeza
ninguém gostaria de comprometer sua aliança com a poderosa Casa de Valois
e seu futuro parentesco com o rei da França. Você e eu temos sido amigos
desde a infância e sei que você é um homem honrado. A noviça é bonita, pelo
menos suponho que sim, pelo pouco que pude avaliar sob o hábito e a touca
engomados. Não posso imaginar que você seja capaz de brincar com uma
mulher prometida à vida religiosa.
— Ela ainda não professou os votos.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 21

Os dois haviam chegado às portas maciças e, por um momento, Aimery


virou-se para contemplar as terras que agora lhe pertenciam. Tomara posse de
uma magnífica fortaleza, cujos limites se estendiam para o norte, fazendo-o se
lembrar de seu lar, a Itália. Trilhara um longo caminho até chegar ali e às
vezes, especialmente em dias como aquele, sentia uma saudade sofrida de sua
terra natal e perguntava-se se um dia tornaria a vê-la.
Este era seu castelo, mas jamais seria seu lar.
— E você é o homem mais honrado que conheço — prosseguiu o cunhado.
— Nunca passou pela minha cabeça que desejasse comprometer a virtude de
qualquer mulher, menos ainda em se tratando de uma escriba preparando-se
para se tornar freira. Além de a moça pretender se consagrar à Igreja, existe
um agravante. Você está quase noivo de Isabel de Valois, prima do rei da
França, assim como sua irmã estava quase noiva de outro primo do rei, antes
de me escolher para marido e criar um mal-estar entre Roma e Paris.
— Minha irmã lutou por você — disse Aimery, ambos sorrindo ao
lembrarem-se da bela e teimosa Minerve e sua determinação em conquistar o
sem-terras e quase sem dinheiro conde de Montfort. Aquele casal também
trilhara um longo e árduo caminho nos últimos anos.
— A propósito — esclareceu Huguet —, minha adorável esposa chegou a
Montsegur e trouxe consigo todos os nossos filhos. O mais velho, Rupert,
entrou para o serviço de pajem do duque de Burgundy e está ansioso para
rever o tio, o conde de Segni. Creia-me, meu amigo, você é o herói do menino.
Aliás, de quase todos os pajens da Europa. Você se tornou uma verdadeira
lenda no leste, como o mais poderoso dos cruzados.
Aimery sentiu-se repentinamente inquieto; a idéia da irmã e dos sobrinhos
pequenos em Montsegur durante o julgamento de William Belibaste causou-lhe
apreensão. Entretanto, sorriu para o cunhado e falou:
— Diga a Minerve que irei vê-la logo. Tenho um pequeno assunto a
resolver antes.
Sem maiores esclarecimentos, o conde de Segni deixou Huguet às portas
do castelo e tomou o caminho da aldeia.
— Então o conde de Segni notou seus cabelos — disse padre Pedro.
Claire assentiu.
— É interessante que ele tenha feito um comentário sobre o assunto.
Parece-me um homem muito observador. Duvido que o inquisidor percebesse a
existência daquela pequena mecha. Entretanto sir Aimery sempre foi
conhecido por sua astúcia. Eu não a avisei sobre seus cabelos?
Como de costume, o tom de reprovação na voz de padre Pedro ao se
dirigir à Claire era quase imperceptível, mais como se fosse um pai do que um
sacerdote, a única família que restara à jovem noviça. Baixo, atarracado,
cabeça tonsurada, rosto enrugado e hábito gasto, ele continuava o mesmo que
Claire conhecera desde a mais tenra infância, um homem bom e manso,
verdadeiramente devotado à causa dos Perfeitos.
Os dois caminhavam lado a lado pelo claustro do Santa Madalena, à noite
se aproximando devagar.
Uma freira idosa, do alto de uma janela, observava-os com um sorriso
complacente nos lábios, pensando no quanto a presença daquele homem santo
era importante para o convento e em como sentia-se grata por sua simples
existência.
Pedro de Bolonha vivia ali há anos e se tornara o confessor da
comunidade, sua bondade e sabedoria servindo de inspiração para todos que o
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 22

cercavam. Ele também arriscara a própria vida para levar-lhes a querida Claire
e permanecera devotado à pequena órfã por duas décadas.
Por sorte, a velha freira achava-se distante demais para ouvir a conversa
dos dois.
— De qualquer forma, talvez as atenções que o conde lhe dispensou
venham a ser providenciais — padre Pedro murmurou satisfeito, como se
prevendo desdobramentos satisfatórios e, até o momento, imprevistos.
Claire abriu a boca para contar que sir Aimery não apenas notara a mecha
de seus cabelos, como a tocara. Ainda podia sentir a pressão dos dedos fortes
em sua testa. Chegando a seu quarto, lavara o rosto imediatamente, ansiosa
para se livrar da sensação indescritível provocada pelo toque másculo. Porém,
de nada adiantara. Não conseguira apagar a impressão inquietante, assim
como não conseguia contar ao monge tudo o que acontecera.
— Aimery de Segni é um guerreiro — continuou o templário, apertando o
passo. — E guerreiros são todos iguais. Anseiam por batalhas e derramamento
de sangue. Não podem nem sequer começar a compreender a felicidade que
encontramos em nossa vida simples e é este o principal motivo pelo qual
perseguem os cátaros Perfeitos tão implacavelmente. Não são capazes de nos
entender. E como poderiam, sendo tão diferentes dos Bons e Justos?
Pedro de Bolonha suspirou, pensando na perfídia daqueles que os
espreitavam do lado de fora dos muros do convento.
— Mas você também foi um guerreiro — falou Claire, apoiando-se no braço
do velho sacerdote. — Você era um cavaleiro templário e os templários
combateram os infiéis ao lado dos grandes reis da Europa durante as Cruzadas.
— De fato, é verdade. Até que os reis se voltaram contra nós.
Ela conhecia a terrível história de padre Pedro, escutara-a dezenas de
vezes e gostaria de escutá-la novamente. Passara uma hora inteira sozinha, na
companhia de Aimery de Segni, e o resto da tarde perturbada por lembranças
do que acontecera durante o trajeto até o convento. Assim, desejava a
qualquer custo tirá-lo da cabeça e substituir a figura viril por algo que conhecia
e podia entender. Também angustiava-a constatar que, pela primeira vez,
guardava um segredo que não ousava partilhar com o amado sacerdote. Pela
primeira vez fora tocada por um homem. Ela, Claire, consagrada aos cátaros
quando ainda criança. Como padre Pedro se divertira com a idéia! Quem
pensaria em procurar um membro dos Perfeitos dentro de um convento
consagrado por São Domingos em pessoa? Os dominicanos eram amplamente
reconhecidos como os responsáveis pela instituição da Inquisição. Portanto,
nada mais natural que os Perfeitos tramassem sua pequena vingança
escondendo sua Madalena sob o manto da Igreja.
Todavia, padre Pedro não parecia disposto a falar de qualquer outro
assunto que não fosse Aimery de Segni.
— Ele disse mais alguma coisa sobre seus cabelos?
— Disse serem da cor típica associada às feiticeiras.
Após alguns segundos imóvel, o monge retomou a caminhada pelo
claustro. A lua acabara de nascer, derramando seus raios luminosos sobre a
beleza plácida de Languedoc.
— Aimery de Segni possui olhos penetrantes e, com certeza, uma mente
mais arguta ainda. Sempre foi assim, apesar de seus modos dissolutos.
— Então você o conhece?
— Todos conhecem os Segni. Trata-se de uma família famosa. Conhecida
há gerações.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 23

— Mas eu não sei nada sobre ele. A única coisa que sei sobre cavaleiros
mercenários é que, às vezes, costumam se aliar aos inquisidores. E que são os
responsáveis pela morte de minha família.
— Isto é tudo que você precisa saber e do que deve se lembrar sempre —
afirmou o templário, convicto. — E faria bem ao orgulhoso sir Aimery descobrir
que existem pessoas para as quais o nome de sua família pouco significa. Os
Segni deixaram de se considerar simples mortais há um século, quando Lotário
Segni assumiu o trono da Igreja com o nome de Inocêncio III.
Novamente o templário estancou, como se perdido nos próprios
pensamentos, esquecendo-se da noviça ao seu lado.
— No momento em que Lotário Segni ascendeu ao papado, acabou a paz
de nosso povo e a paz de toda a cristandade. Como Inocêncio III, ele nos
perseguiu, aprisionou e matou implacavelmente, determinado a subjugar essas
terras à sua autoridade. O rei da França e outro papa, Clemente V, não
descansaram até lançar todos os meus irmãos templários em suas sepulturas e
selar nosso destino para sempre. Aqui, os Perfeitos haviam conseguido
construir um porto seguro, onde todos os perseguidos sentiam-se bem-vindos.
Enquanto no mundo cristão eram tratadas como escória, em Languedoc
aceitavam-se mulheres no clero dos Perfeitos, permitiam-nas ministrar os
sacramentos. Nós, chamados de cátaros, levávamos uma vida simples. E talvez
fossem nossa paz e harmonia, cantadas pelos trovadores, o que incomodou
Lotário de Segni, levando-o a nos massacrar. Mas essa não é a razão pela qual
o infame iniciou a Cruzada contra seus irmãos cristãos. O papa afirmava que a
verdadeira fé precisava ser defendida. Porém, naturalmente, o motivo real da
barbárie era outro. Como sempre, o que estava em jogo eram terras, dinheiro e
poder. Eles mataram os templários porque acreditava escondiam um tesouro.
Como nada encontraram, e ainda cheios de cobiça, viraram-se contra os
cátaros. Essa era uma terra rica, povoada por nobres abastados.
Padre Pedro fitou Claire fixamente, os olhos febris e irrequietos
denunciando agitação interior.
— Rumores insistentes afirmam que os cátaros esconderam o tesouro ao
pé de uma das colinas ao redor de Montsegur, quando ficou claro que as tropas
de Simon de Montfort sairiam vencedoras. Mas não é verdade. O tesouro dos
cátaros sempre esteve escondido e assim permanecerá. Aliás, poucos têm
certeza de sua existência. Todavia, creio que Jacques de Fournier conhece a
verdadeira natureza desse tesouro. Assim como eu. Os Segni e os Montfort
sempre conseguiram tudo o que queriam neste mundo — prosseguiu o velho
monge, quase como se falasse sozinho. — Desta vez isso não acontecerá. Eles
tentaram, tentaram e tentaram, porém nunca conseguiram arrancar tudo o
que pertencia a nós. Nunca conseguiram nos matar a todos. Agora estamos de
volta, embora ainda permaneçamos nas sombras, escondidos. Mas chegou a
hora de nossa vingança. Tomaremos de volta o que por direito nos pertence.
— Então nos reuniremos aos outros em breve, com Ruch Anger, Guy de
Loc e madre Helene — murmurou à noviça —, e libertaremos William Belibaste
antes que seja tarde demais.
O templário sorriu-lhe, ainda dando a impressão de que contemplava uma
visão secreta, que não pretendia partilhar com ninguém.
— Ah, sim, Helene e os outros. Todos trabalhando juntos, arduamente,
para libertar nosso último Perfeito. E, sem dúvida, Belibaste também ficará
livre no final.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 24

O luar prateado banhava o quarto apertado, envolvendo-o numa claridade


suave. Insone, Claire aspirou o perfume da noite de verão, saboreando-o com
prazer. Amava o mês de junho, quando podia ver a lua da cama onde dormia
desde a infância.
Padre Pedro decidira que em breve se encontrariam com os outros.
— É perigoso para nós nos reunirmos, especialmente por sua causa,
pequenina — ele dissera, apreensivo. — O destino de Belibaste sem dúvida vai
depender de nossos planos.
Como de costume, Claire concordara prontamente.
Todavia, tantas coisas novas haviam acontecido que ansiara pela solidão
de sua cela. Talvez, naquele ambiente austero e familiar, fosse capaz de
sossegar o coração.
Mal entrara no quarto, notara o objeto estranho sobre a cama. Sem
pensar, tocara-o.
Era o lenço de seda verde que vira na feira da aldeia. Tão macio e
perfeito.
Sim, sabia muito bem quem o colocara ali. E sabia muito bem o que o
gesto significava.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 25

CAPÍTULO III

— Seu nome é William Belibaste? — o inquisidor indagou num tom sereno.


O homem assentiu. Se ainda ardia uma chama rebelde em seu interior, ele
obviamente preferira poupá-la, não desperdiçando energia com as perguntas
iniciais. O pior ainda estava por vir e com certeza precisaria de toda sua força
para enfrentá-lo.
— Então, por favor, fale seu nome em voz alta para que possa ser
registrado por nossa escriba.
Jacques Fournier indicou Claire, sentada num banco às suas costas, quase
escondida atrás de uma pilha de papéis, penas e tinteiros. Fora a noviça quem
preferira assim; quisera permanecer oculta, movida pelo desejo de não ficar
frente a frente com o acusado. Já o tinha visto entrar, vergado sob o peso das
correntes, transpirando medo por todos os poros.
— Sou William Belibaste — disse o réu, com a voz rouca e cansada.
— Você sabe ler e escrever seu nome?
— Não sei ler, nem escrever. Sou um homem simples. Um camponês.
— Você, pelo menos, é capaz de rubricar um documento? — Fournier
interrogou gentilmente.
— Sou capaz de qualquer coisa, quando necessário. Você não deveria
duvidar disso.
Risadas ecoaram pelo salão lotado.
— Ótimo. Iremos lhe pedir apenas para rubricar o documento com um
sinal que reconheça como seu e, é claro, que fale a verdade. Você está de
acordo com esses pedidos?
Belibaste limitou-se a deixar escapar um suspiro de desdém. Ignorando-o,
o bispo colocou os óculos e se debruçou sobre uma folha de papel.
— Por favor, informe a este tribunal sobre onde e quando você nasceu.
— Nasci na região de Corbieres, disso tenho certeza. Quanto ao resto, a
data e o local exato de meu nascimento, não sei. Como eu disse, éramos muito
pobres e não tínhamos sacerdotes ou escribas para registrar os
acontecimentos.
Por alguns instantes não se escutava nada no salão, exceto o ruído da
pena de Claire deslizando sobre o pergaminho.
— Prossiga — instruiu-o Fournier. — Sem dúvida você deve saber mais
sobre a própria infância, o nome de seus pais, a existência de irmãos e irmãs
mais novos. Conte tudo a este tribunal. Precisamos sabê-lo.
— Não me lembro de nada — repetiu Belibaste. — Sou um mero
camponês. Não tenho raízes. Não tenho família.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 26

Fournier recostou-se no espaldar da cadeira e, apoiando as mãos na mesa


à sua frente, fitou o acusado longamente.
— Então fale-nos do assassinato, daquele que você cometeu e pelo qual
foi justamente julgado e condenado. Uma vez que você não se lembra de mais
nada, comecemos com um fato conhecido.
Se Belibaste se surpreendeu com a pergunta, nada demonstrou.
— Aconteceu durante uma briga. Minha única justificativa, embora
questionável, era minha juventude extrema. Eu também estava bêbado.
Todavia matei um homem e para tal ato não existe perdão. Nós dois éramos
pastores e não me recordo do motivo que deu início ao desentendimento. Mas
isso não importa. O fato é que me recrimino até hoje pelo que houve. Tirei a
vida de um homem e me arrependo profundamente. Foi meu arrependimento
que me trouxe até aqui.
— Você não veio de livre e espontânea vontade — reprovou-o o inquisidor.
— Portanto, não tentemos fazer parecer o contrário.
Fournier virou-se para seus auxiliares, todos mais jovens e donos da
mesma expressão circunspecta.
— Este homem — continuou o bispo, dirigindo-se aos colegas —, não está
aqui para ser julgado por assassinato cometido num passado distante. Será
julgado por fomentar heresia. — Voltando-se novamente para o réu. — Você
fugiu ao avistar as autoridades francesas. Seu arrependimento não o impediu
de tentar escapar da justiça.
William Belibaste olhou para as próprias mãos calosas, os pés descalços,
as roupas puídas.
— Não existe justiça para pessoas como eu na França. Não havia naquela
época, não há agora. Fugi dos soldados do rei e levei meu irmão comigo. Há
anos ele estava sendo caçado pela Inquisição. Apesar de homem simples,
professava crenças não ortodoxas, pois era um cátaro. — Belibaste fez uma
pausa antes de repetir: — Ele era um cátaro. Acreditava que um homem livre
deveria ser capaz de pensar por si mesmo. Todavia a Inquisição não acreditava
nisso e fomos obrigados a fugir juntos. Minha história chega agora a um ponto
que irá interessá-lo, senhor. Nossa fuga levou-nos a Philip d'Alayrac, também
um homem caçado.
Um burburinho de excitação percorreu o local à menção desse nome.
— Continue — ordenou Fournier, enquanto os outros prendiam a
respiração.
— D'Alayrac pertencia ao movimento de renascimento dos Perfeitos —
disse Belibaste com voz forte e olhar altivo.
À distância, Aimery acompanhava cada um dos movimentos de Claire.
Fascinado, observou-a molhar a pena no tinteiro e escrever no pergaminho, a
testa franzida indicando profunda concentração. Notou que ela raramente
fitava Belibaste. Sim, havia um mistério envolvendo aquela mulher, algo que
não podia explicar. Talvez fosse alguma coisa relacionada à mecha de cabelos
vermelhos que vislumbrara, tão vibrante e atrevida em seu contraste com a
brancura da touca engomada. Fora por causa da mecha que se atrevera a
comprar o lenço de seda verde e presenteá-la. Mesmo agora, perguntava-se
por que fizera aquilo, por que agira de modo tão impulsivo. Não estava em sua
natureza ser precipitado e, afinal, tratava-se de uma noviça, preparando-se
para se consagrar à Igreja.
O salão, embora enorme, estava quente e abafado. Acostumado, como
guerreiro, a passar grande parte do tempo sobre um cavalo, cavalgando em
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 27

espaços abertos, tal confinamento beirava o insuportável. Todavia, este


julgamento fazia parte dos deveres do senhor de Montsegur. Se aceitara a
posição, restava-lhe desempenhar o papel para o qual fora designado.
Entretanto, reger a fortaleza era um trabalho tedioso. Além de ser
obrigado a presidir o tribunal, passara a manhã inteira entrevistando
candidatos a administrador do castelo e resolvendo outros negócios. Quem
poderia imaginar que suas obrigações como lorde de Montsegur se revelariam
tão maçantes? Sim, necessitava de uma esposa para lidar com as questões
domésticas, liberando-o para perseguir seus verdadeiros interesses.
E entrevistar as dezenas de candidatos vindos de todos os cantos, para o
cargo de administrador, fora de longe a tarefa mais fácil daquela manhã. Fora
obrigado a interferir numa rusga entre dois luveiros, ambos já havendo pago
uma taxa para erguer suas bancas sob o beirai da catedral, caso William
Belibaste fosse considerado culpado de heresia e sentenciado à morte.
— Muitos visitantes chegarão à cidade no dia marcado para o herege
arder na fogueira — dissera um dos mercadores, cheio de arrogância — e
quero o melhor lugar para expor minha mercadoria.
Aimery precisara fazer um esforço consciente para não demonstrar o asco.
Porém, sendo novo ali, um estrangeiro, um italiano, deveria aprender a
governar aquele lugar.
— Não há garantias de que Belibaste queimará na fogueira — respondera
ao luveiro. — Ele está apenas sendo julgado e terá um julgamento justo. Não
há motivos para essa discussão agora. Você instalará sua banca junto aos
demais vendedores, no pátio da catedral, assim como o mercador de Paris. O
valor da taxa paga lhes será restituído.
O luveiro abrira a boca para protestar e então desistira. Depois de uma
reverência, lançara um olhar fulminante para Aimery e afastara-se, custando a
disfarçar o ódio que o consumia.
— Hoje pela manhã você transformou aquele luveiro num inimigo — disse
Huguet, enquanto o testemunho de Belibaste se arrastava. — Ele é um dos
homens mais ricos deste lugar e está acostumado a ser tratado com certa
deferência. Não gostou de sua intervenção.
— Especialmente porque sou um estrangeiro — retrucou Aimery,
exagerando no sotaque. Os dois amigos riram. — Na verdade estou irritado
com essa história de feitiçaria e morte na fogueira. — O conde de Segni ergueu
a voz para que os cavaleiros e monges que o cercavam pudessem ouvi-lo bem.
— Belibaste ainda não foi condenado por coisa alguma.
— Ele é um notório herege — Huguet argumentou calmamente. — E jurou
não se arrepender.
— Mas talvez venha a se arrepender. Um homem pode sempre mudar de
idéia. Belibaste não tem que contribuir para a própria destruição.
Aimery surpreendeu-se com a própria veemência. O destino daquele
camponês não deveria absolutamente interessá-lo. O julgamento, quando
muito, devia ser apenas um mau presságio, nada mais. Entretanto, algo nos
apelos de Belibaste despertara sua compaixão. Desgostava-o que sua primeira
obrigação como lorde de Montsegur estivesse relacionada à possibilidade de
condenar um ser humano a morrer na fogueira.
— Belibaste deveria ser livre para acreditar no que quisesse — Aimery
continuou. — Os cátaros têm sido reprimidos há mais de cem anos.
Certamente esse homem e seus seguidores não podem nos causar nenhum
grande mal.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 28

— O rei teme uma revolta.


— Uma revolta de camponeses? — O esboço de um sorriso iluminou as
feições viris do conde. — Essas revoltas nunca deram certo.
— Claro que sim — discordou Huguet. — Na Itália os cátaros, considerados
tão ardentemente contrários a qualquer derramamento de sangue, rebelaram-
se contra a Inquisição e massacraram seus partidários. Nem mesmo o
anátema, a ameaça da danação eterna, serviu para contê-los em sua fúria. Os
cátaros se insurgiram na França também. Na festa da Ascensão, simpatizantes
do culto se revoltaram contra os dois juízes inquisidores. Lembre-se de que os
rebeldes saíram desta cidade, de Montsegur. Depois do ataque, uma
testemunha afirmou tê-los visto na estrada, mas os tomou por aldeões,
voltando de um dia de trabalho. Só havia uma coisa errada. Aqueles
camponeses carregavam machados de batalha.
— Não haverá nenhuma revolta aqui, enquanto eu for lorde de Montsegur.
William Belibaste terá um julgamento justo e espero vê-lo absolvido. Todavia
não admitirei meios ilegais para garantir-lhe a liberdade e qualquer pessoa que
tentar incitar uma rebelião, enfrentará as conseqüências de suas ações. Essa é
minha palavra final.
Dali a segundos os inquisidores levantavam-se de suas cadeiras e,
discretamente, alongavam os músculos doloridos das costas. A sessão daquele
dia chegara ao fim. Conduzido por dois soldados, o prisioneiro retirou-se do
salão.
Durante alguns instantes Aimery esperou Claire recolher o material de
trabalho. Então, sem despedir-se de Huguet, caminhou na direção da noviça.
Um padre conversava com ela. Baixo, atarracado, trajando o hábito
simples dos franciscanos. Os dois, o velho monge e a jovem noviça, pareciam
entretidos numa conversa séria. Contudo, ao avistar o senhor de Montsegur, o
sacerdote abaixou a cabeça e, após saudá-lo com uma reverência, afastou-se,
desaparecendo no meio da multidão.
Se Aimery esperava que a jovem escriba se mostrasse reticente e não
mencionasse o presente, se esperava vê-la enrubescer, ou hesitar, mudou de
idéia no momento em que se acharam do lado de fora das paredes do castelo.
— Trouxe o lenço comigo — disse ela. — Você tem que aceitá-lo de volta.
Embora falasse baixo, para que a guarda de honra do conde não pudesse
ouvi-la, Claire foi firme e decidida.
Tão surpreso ficou Aimery, que continuou caminhando em silêncio durante
vários segundos, procurando ordenar os pensamentos. Estava em Montsegur
há uma semana e as festividades em sua honra gradualmente começavam a
se extinguir. Apenas uns poucos vendedores continuavam exibindo suas
mercadorias. Os trovadores já haviam partido, assim como a trupe circense.
Junho era um mês festivo, cheio de celebrações. Todo mundo saía em busca de
novos lugares onde ganhar dinheiro.
Não que Aimery notasse a ausência de quem quer que fosse; a presença
da donzela de Foix a seu lado bastava.
— Foi um presente — falou afinal. — Algo que você admirou e com o qual
eu quis presenteá-la. Achei que combinava bem com seus cabelos.
O nobre percebeu seu erro quando as palavras já haviam saído de sua
boca.
Claire fitou-o com seus olhos verdes muito límpidos, sem nenhum sinal da
vaidade ou da faceirice tola que acostumara-se a esperar quando as mulheres
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 29

lhe diziam coisas apenas por dizer, com o único objetivo de provocá-lo, de
atiçar seu interesse.
— Você deu muito crédito a meu capricho. Fui mimada pelas freiras que
me criaram, é só. Elas afrouxaram certas regras em meu benefício,
concederam-me certos privilégios. Além do mais, raspar a cabeça não é,
realmente, uma regra do convento, é mais um costume. Cheguei ao Santa
Madalena quando era uma menina. Aquelas mulheres me acolheram como a
uma filha. Vivi tão cercada de atenções, que acabei ficando mimada.
— Então imagino que você irá raspar a cabeça amanhã apenas para me
espezinhar. Porque você sabe o quanto me dá prazer imaginar seus cabelos
sob a touca, sendo eu um dos poucos que já os viu. É quase como se nós dois
partilhássemos um segredo.
Se ele planejara perturbá-la, enganou-se. Claire deu de ombros,
desinteressada.
— Seria um segredo banal, visto ser partilhado com um convento cheio de
freiras. — Pausa. — Não consigo imaginar porque meus cabelos iriam
interessá-lo. Quero que você aceite o lenço de volta.
Aimery fitou o horizonte. Na verdade, não fazia a menor idéia do que
queria dessa mulher. Ainda não entendera por que, movido por um impulso
incontrolável, fora atrás do mercador da Província de Como para comprar o
maldito lenço de seda, que agora causava essa discussão. Todavia não tinha
intenção de aceitar o presente de volta. Pela primeira vez, desde sua chegada
a Montsegur, estava realmente se divertindo.
Certo de que se não mudasse de assunto continuariam debatendo o
malfadado lenço, procurou ocupá-la com questões mais sérias e importantes.
— Você acha que William Belibaste é culpado de heresia? — Não havia
ninguém em Montsegur que não tivesse uma opinião sobre o acusado e o
muito provável veredicto. Aimery pensou ter visto Claire estremecer com sua
pergunta e se afastar alguns centímetros.
— Não fui chamada pelo bispo para opinar sobre aquilo que escuto. Fui
chamada para registrar os procedimentos do tribunal.
— Entretanto você deve ter algum interesse no que transcorre durante os
interrogatórios — ele insistiu, agradecendo aos céus pela jovem noviça não
persistir na história do lenço. — Você é de Foix e, segundo as informações que
possuo, aquela região fervilhava de cátaros no século passado.
— Fervilhar não é um verbo geralmente associado aos cátaros. É uma
palavra associada a emoções fortes, algo desconhecido para eles. Os cátaros
sempre prezaram um estilo de vida simples e pacífico. Acreditavam na
importância de não ceder às emoções primitivas. Pelo menos é o que eu ouvi
falar.
Dando mostras de não querer levar a conversa sobre esse tópico adiante,
Claire cerrou os lábios. Porém o conde se fez de desentendido.
— Então você ouviu mais do que eu — ele comentou, parando sob a
sombra de um enorme carvalho. — Não sei nada sobre as crenças dos cátaros
e poderia ser de grande valia para eu compreendê-las. Talvez pudesse
entender por que essa heresia enfurece tanto a Inquisição. Se você me
esclarecesse alguns pontos eu lhe seria grato. — Então, sem nenhum motivo,
completou: — Talvez assim eu estivesse em posição de ajudar Belibaste.
Claire hesitou. Em silêncio, os dois retomaram a caminhada para o
convento.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 30

— Há muito pouca coisa que você poderia fazer para ajudá-lo, ainda que
quisesse — ela falou afinal. — Nem mesmo a mais alta nobreza foi capaz de
defender seu povo da Inquisição. Deus é testemunha de que no último século
muitos aristocratas tentaram resistir, aqui mesmo em Languedoc.
— Então você vai me contar essa história? — Aimery pressionou-a. — Não
fale sobre batalhas e mortes na fogueira. Tais acontecimentos podem ser
explicados por outras fontes. Tenho a impressão de que em Montsegur, de meu
cunhado ao servo mais humilde, todos têm alguma teoria sobre o que
aconteceu aqui e sobre quem estava errado. Preciso saber que relevância
possui o passado sobre o presente, por que os cátaros novamente se
expuseram e por que William Belibaste se deixou ser capturado.
— Ele não se deixou ser capturado — Claire revidou. — Nenhum homem
agiria assim.
— Então explique-me o que houve. Preciso conhecer as crenças dos
cátaros, se desejo governar bem esta terra.
Um longo silêncio, antes de Claire ceder ao apelo.
— Todos aqui conhecem a história. Como já lhe disse, é algo de que
ouvimos falar desde a infância, especialmente os camponeses. Os Perfeitos
eram uma gente pacífica e generosa, que ansiava por uma vida espiritual,
afastada do mundo carnal. — Não passou despercebido ao conde o quanto o
assunto a entusiasmava. — Esse pensamento florescia tanto no casebre mais
simples quanto nos castelos dos ricos. Entretanto, isso acabou gerando um
conflito direto com o papa em Roma e o rei em Paris. Inocêncio III foi o primeiro
a lançar uma Cruzada contra os cátaros, aliando-se ao rei da França, cujo
maior objetivo era subjugar os vassalos de Languedoc, conhecidos por sua
natureza independente. Os exércitos aliados, liderados por Simon de Montfort,
varreram Languedoc, pilhando a terra e dizimando a população, queimando-os
como hereges. Uns poucos sobreviveram ao massacre e, pelo que ouvi dizer,
esses sobreviventes vivem escondidos, temerosos de que, a qualquer
momento, a Inquisição os localize e prenda.
Aimery assentiu. A jovem escriba falara sobre muitas coisas, porém não
descobrira nada de novo naquele relato. E as omissões haviam sido curiosas.
Claire não mencionara os rumores sobre os cátaros serem feiticeiros e bruxas.
As mesmas acusações usadas, com grande efeito, a respeito dos cavaleiros
templários poucos anos atrás. Embora ainda não houvesse professado seus
votos, ela pertencia a uma ordem religiosa e, portanto, certamente escutara
tais acusações. Sem perceber, Claire defendera a causa dos cátaros
apaixonadamente. Mais um mistério, ele concluiu pensativo. Um entre muitos.
O dia estava claro, o ar pesado e langoroso. Todavia, apesar das muitas
obrigações que o aguardavam no castelo, o lorde de Montsegur as tinha
adiado, permitindo-se alguns minutos de pura distração. A conversa da noviça
prendia seu interesse. Gostava de ouvi-la expressar suas opiniões com
franqueza e ardor. O único tópico sobre o qual sua futura noiva discorria com
paixão era as várias maneiras de arrumar os cabelos. Isabel de Valois não se
interessava por nada que não estivesse diretamente relacionado à sua pessoa.
E com freqüência Aimery sentia-se grato por seus deveres o impedirem de
passar muito tempo ao lado dela. Felizmente, depois de casados, essa
distância se manteria.
Aprendera a aceitar o que sua posição exigia, como um casamento
arranjado. As terras e o dinheiro dos Segni em troca do poder do sobrenome
Valois. Amor, paixão, e mesmo uma conversa interessante, podiam ser
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 31

encontradas em outro lugar. Pois não estava achando isso agora ao conversar
com a séria e doce noviça? Os simples momentos desfrutados na companhia
da escriba haviam se revelado os únicos agradáveis desde que chegara a
Montsegur.
Mais tarde, Aimery perguntou-se se não fora seu contentamento que o
impedira de avistar a imagem imediatamente. Ou talvez tivesse sido devido ao
tamanho diminuto. Somente quando já estavam às portas do convento é que
notou a ameaça, dependurada num pedaço de pau.
Sua primeira reação foi impedir que Claire a visse, postando-se diante do
objeto. Tarde demais. Ante o olhar horrorizado da jovem, ele retirou a imagem.
Uma boneca pequena, esculpida em sabão de gordura de porco, trajando um
hábito como o das noviças do Santa Madalena, com os cabelos vermelhos, na
verdade fios de algodão, escapando do arremedo de touca.
A barra da túnica branca fora queimada. Sem dúvida, em uma alusão à
fogueira.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 32

CAPÍTULO IV

Deitada na cama, em posição fetal, Claire fitava a escuridão. Fora uma


brincadeira estúpida colocar a boneca num lugar à vista de todos com o
objetivo de amedrontá-la. Sim, tinha plena consciência de que o autor da
brincadeira não devia passar de um tolo. Todavia, estava apavorada.
Percebera a ameaça embutida no gesto, embora Aimery praticamente a
tivesse impedido de ver a imagem, tomando-a em suas mãos e esmagando-a
como se fosse um verme. O nobre quisera protegê-la, evitar que se sentisse
assustada.
Porém, continuava aterrorizada.
Quem poderia querer intimidá-la daquela maneira? Quem lhe desejava
tanto mal?
Fora o que Aimery lhe perguntara. Perguntava-se a mesma coisa agora.
E não achava respostas.
Naturalmente a explicação óbvia seria a de que alguém descobrira os
planos para salvar William Belibaste. O pequeno grupo de partidários da causa
fora localizado. Os inquisidores já estavam a par de tudo.
Claire, educada naquele convento, jamais alimentara idéias ingênuas a
respeito do poder da Igreja. Sabia de suas tramas intrincadas. Desde a infância
aprendera que a qualquer momento o punho da Inquisição, uma extensão do
norte franco, poderia esmagá-la. Sim, sabia de tudo isso. Apenas indagava-se
como.
"Como eles haviam descoberto?", pensava.
Envolta no lençol de algodão, Claire se revirava na cama, atordoada. O
grupo fora sempre cuidadoso, sempre se mantendo na sombra. E era um grupo
tão pequeno. Somente ela, padre Pedro, madre Helene, que escondia suas
crenças heréticas atrás do hábito de abadessa, e mais uns poucos. Ninguém
quisera aumentar o número de agregados. Isso viria depois, quando
retomassem o que por direito lhes pertencia e William Belibaste fosse
libertado.
Todavia, uma outra coisa a preocupava ainda mais. No instante em que
Aimery estendera a mão para apanhar a boneca, postara-se atrás dele.
Instintivamente, buscara amparo, socorro. E Aimery de Segni não passava de
um inimigo. Como o Protetor da Inquisição, cabia-lhe caçar os infiéis. Não
importavam suas palavras educadas, seu empenho em engajá-la numa
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 33

conversa interessante. Se soubesse quem ela era de fato, o lorde de Montsegur


não vacilaria em destruí-la. Fora o que lhe tinha sido ensinado por padre Pedro.
Entretanto, confiava em Aimery. Quando ficara com medo, fora nele que
encontrara segurança. Mesmo agora, horas depois, ainda se agarrava ao lenço
de seda que ganhara de presente como a um talismã.
Precisava se reunir aos outros. Na companhia de padre Pedro, de madre
Helene e dos demais integrantes do grupo se sentiria fortalecida, tranqüila
para enfrentar o destino que lhe fora reservado.
Os francos nortistas eram assassinos. Os cátaros representavam a
verdade, a pureza. E, um dia, retomariam a terra que lhes havia sido tão
cruelmente roubada. Apegada a esse pensamento, Claire assistiu ao nascer do
dia. Porém, desta vez, o pensamento não lhe trouxe conforto como no passado.
Jacques Fournier ergueu os olhos ao escutar a voz de seu anfitrião.
Surpreendia-o que o conde fosse procurá-lo em seus aposentos àquela hora,
mas, como diplomata consumado, nada deixou transparecer de suas
impressões. E, além do mais, tinha novidades a partilhar.
Fazendo sinal para Aimery sentar-se, o bispo iniciou a conversa.
— Trouxe este documento comigo de Paris. Segundo me contaram, esses
papéis estavam inicialmente destinados à residência papal, em Avignon.
Contudo o mensageiro, natural da Lombardia, talvez estivesse apenas
exagerando para elevar o preço. O homem deve imaginar que bispos estão
sempre atrás de informações que julgam auxiliá-los na disputa pelo poder.
— O mensageiro disse por que o papa não queria que esse documento
chegasse a Avignon? — indagou Aimery.
— Não. Mas não importa o motivo, pois certamente será algo tolo. O
grande problema atual é o cisma. É desastroso termos dois papas e não
consigo enxergar o fim dessa situação num futuro próximo. De qualquer
maneira, não creio que você tenha vindo me procurar a essa hora para discutir
tal assunto.
Outra vez Fournier fez sinal para que o conde se sentasse.
— Vim falar da noviça — disse Aimery, acomodando-se na cadeira de
espaldar alto. — Aquela que tem desempenhado as funções de escriba.
O bispo limitou-se a erguer as sobrancelhas e aguardar, sem demonstrar
espanto ante o comentário.
— Quero tirá-la do convento. Quero-a no meu castelo.
— É impossível. Ela ainda não professou os votos. Portanto, é impossível
tirá-la do Santa Madalena. De acordo com o que nos contou, a jovem passou a
vida inteira no claustro e as freiras lhe têm muita estima. Sendo uma moça
atraente e desprotegida, removê-la do convento provocaria um escândalo e
um escândalo é a última coisa de que precisamos durante esse julgamento
delicado.
— Quero-a em meu castelo — repetiu Aimery, sem erguer a voz. —
Pretendo tê-la aqui.
Fournier fitou o conde fixamente, analisando-o.
— Creio que a jovem está em perigo.
— Você está se referindo àquele incidente com a boneca, do qual me
falou? — O bispo levantou a mão, num gesto desinteressado. — Aquilo não foi
nada. Apenas uma brincadeira de criança.
— Não creio. A boneca tinha o vestido queimado com fogo, além de
possuir cabelos da cor dos de Claire. Essas são marcas de heresia. A noviça
ficou aterrorizada. Eu estava lá e vi seu pavor.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 34

— Mas Claire de Foix é noviça num convento cristão. Exceto por seu
trabalho como escriba, não sabe nada sobre os cátaros. Como poderia sabê-lo?
Aimery abriu a boca para contar sobre sua conversa com Claire, mas
calou-se a tempo. Afinal, Fournier era o inquisidor-mor e talvez não gostasse
de descobrir quão minuciosos eram os conhecimentos da escriba sobre as
crenças dos Perfeitos.
— Há rumores de que os companheiros de Belibaste tentarão resgatá-lo.
Não seria a primeira vez que essa gente, contrariando sua suposta natureza
pacífica, incitaria um derramamento de sangue. Prefiro ter a noviça a salvo.
— Impossível — repetiu o bispo. — Já circulam comentários sobre as
atenções que você dispensa a essa mulher, destinada a abraçar uma vida
casta. Será melhor deixá-la permanecer onde está, considerando a inexistência
de um perigo iminente.
— Como lorde deste castelo, está no meu direito insistir. Quero a donzela
de Foix retirada do convento Santa Madalena e trazida para dentro das
muralhas de Montsegur.
Durante um longo instante os dois se fitaram fixamente, irredutíveis na
sua determinação.
— Recebi uma carta de sua mãe ontem — disse Jacques Fournier afinal.
O nobre balançou a cabeça, impaciente.
— Você não respondeu à minha solicitação.
— Estou respondendo, se você fizer a gentileza de me ouvir. Sua mãe
manda-lhe recomendações, e à sua irmã. Informa estar partindo de Roma e
voltando novamente para o sul, embora a viagem a fatigue muito. Milady
também se queixou de ligeira indisposição. Mencionou vagamente andar
adoentada. Mas você a conhece. Sua mãe poderia já estar no céu e ainda
considerar a própria doença algo sem importância, exigindo que São Pedro a
mandasse de volta à terra para resolver assuntos pendentes.
Aimery sorriu ante a imagem da diminuta e enérgica condessa de Segni.
— Conheço-a bem e pude perceber seu extremo cansaço nas entrelinhas
— continuou o bispo. — Achei sugestivo ela mencionar uma esposa para você,
aliás, mais de uma vez. As perguntas sobre Isabel de Valois foram insistentes.
— É natural uma mulher da idade de minha mãe querer netos — Aimery
retrucou bruscamente.
— Se não me falha a memória, sua irmã Minerve já a presenteou com
quatro netos. E todos homens.
— Minha mãe quer um herdeiro para o nome Segni. Minha irmã deu à luz
quatro Montforts.
— Sua mãe deseja vê-lo acomodado. Deseja vê-lo feliz. De qualquer
maneira, a questão dos netos não foi mencionada na carta. Mas a questão das
terras, sim.
— Minhas terras não são da responsabilidade de minha mãe. — Apesar de
suas palavras, Aimery tinha consciência de que estava acontecendo
exatamente o contrário devido às circunstâncias que escapavam a seu
controle.
— São da responsabilidade de sua mãe quando ela encontra-se forçada a
administrá-las — rebateu o bispo. — E milady está sendo forçada a administrá-
las porque você pouco permanece na Itália. As terras em Campagna são
responsabilidade sua e você está evitando assumir seus deveres porque
resolveu vir para a França em busca de títulos e terras os quais não necessita,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 35

nem realmente deseja. A condessa já não tem idade para apoiá-lo em suas
ambições.
— Porém meu pai me quereria aqui, se estivesse vivo — Aimery
argumentou, impulsionado por ecos do passado. — Minha mãe não é obrigada
a governar minhas propriedades. Contratei um administrador competente para
cuidar disso.
— Nos últimos dois anos você já teve cinco administradores. Soube-o
através de terceiros, pois condessa Iolande jamais mencionaria esse detalhe,
mesmo levando em conta minha posição de velho amigo da família. Sua mãe
conhece minha opinião a respeito do assunto. Você tem terras demais e,
portanto, encontra dificuldades para administrá-las. Ainda assim, quer mais
terras.
— Montsegur não é uma terra qualquer. Este não é apenas mais um
castelo.
— Mas Montsegur é seu castelo?
Aimery levantou-se num arranco, jogando a pesada cadeira no chão de
pedra, o barulho estridente ecoando pelo aposento silencioso.
— Por acaso Vossa Eminência está insinuando que sou tão ambicioso a
ponto de me apossar de algo que, por direito, não me pertence? O próprio rei
da França me...
— Não ambicioso — interrompeu-o Fournier gentilmente. — Talvez
pressionado fosse a melhor palavra.
— Pressionado a quê? — Recuperando o controle, Aimery recolocou a
cadeira em pé e sentou-se novamente. — Pressionado a tomar posse de mais
terras? Pressionado a conquistar o que minha família espera de mim?
— Sua família... ou seu pai?
Uma vez bastava. O conde não permitiria que o astucioso bispo o
manipulasse, ou o desviasse de seu objetivo. Permitira-se uma demonstração
de raiva segundos atrás e tal coisa não tornaria a acontecer. Comandaria a
situação, como estava acostumado a fazer à frente de seus homens.
— Não tenho a menor idéia do significado dessa sua referência ao meu pai
— ele começou, falando depressa para impedir que Fournier se manifestasse.
— Sei apenas que sou o senhor de Montsegur e, portanto, cabe-me continuar o
ilustre trabalho de meus ancestrais. Manterei essa terra unida sob a égide dos
reis da França. Não tolerarei nenhum tipo de insurreição, política ou religiosa. E
embora eu não deseje lhe mostrar nenhum desrespeito, Eminência, talvez seja
bom lembrar-se de que você está sob minha proteção, não o contrário. Há
rumores insistentes de que os amigos de William Belibaste tentarão resgatá-lo
e que fomentarão uma revolta. Teremos um caminho difícil a percorrer até que
Belibaste queime na fogueira por heresia, se for este mesmo o seu destino. Eu,
particularmente, sou contra tudo isso, inclusive me desagrada vê-lo
desempenhar a função de inquisidor. Mas farei o que for necessário para
assegurar a unidade dessa terra para o rei. Todavia, não arriscarei a vida de
uma moça inocente. A escriba é o elo mais frágil de todos os envolvidos nessa
história. Fomos nós que a colocamos em perigo e o mínimo que posso fazer é
trazê-la para o castelo, onde ficará a salvo.
— Ela não é a única em perigo. Outros acabarão correndo riscos
semelhantes. — Jacques Fournier fez uma pausa, decidindo não insistir na
questão do pai de Aimery. Deixaria para falar de Umberto, dei conti de Segni
numa ocasião mais propícia. — Você possui um dos maiores títulos concedidos
a qualquer guerreiro da cristandade, o que, naturalmente, desperta inveja e
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 36

cobiça. Como seu bispo e confessor, aconselho-o a assegurá-lo casando-se e


produzindo um herdeiro o mais rápido possível. Se você não quer pensar em si
mesmo, ou nas suas responsabilidades, aconselho-o a considerar Huguet e sua
irmã. Sobretudo, considere a posição de sua irmã. Minerve está grávida e corre
perigo ficando aqui.
— Há dias sugeri que ela fosse embora. De fato, pedi-lhe que não viesse
para cá.
— Mas Minerve não deixará o marido. E você precisará de Huguet.
Não havia como discordar. Aimery tomara posse de Montsegur há uma
semana e já se ouviam rumores de insurreição.
— Se você não acha sensato trazer Claire para o castelo — o conde
prosseguiu devagar —, talvez, então, devêssemos dispensá-la de seus deveres.
Talvez não seja correto uma noviça ser escriba. '
Jacques Fournier fitou-o longamente. Não lhe passara desapercebido
Aimery ter usado o nome de batismo da noviça pela segunda vez.
— Você esteve a favor desde o início. Quando irmão Clements adoeceu, foi
você quem falou que o tribunal mostraria imparcialidade permitindo a uma
mulher desempenhar o papel de escriba.
— Uma mulher. Não uma freira.
— E qual é a diferença? Ambas despertam atenções in-desejadas. Estou
certo de que as notícias sobre uma mulher documentando o julgamento já
chegaram a Roma. Esse tipo de escândalo se espalha rápido.
— O problema é exatamente este. Não importa o que faça Claire de Foix
sempre chamará atenção para si. Pelo menos se continuar a vestir-se como se
veste. Há alguma coisa inquietante em todo aquele branco. Meus homens já o
notaram.
— Claire de Foix é a única pessoa disponível que domina o latim! —
exclamou o bispo. — Pedi ajuda, mas não há ninguém nos mosteiros próximos
capaz de exercer a função de escriba. E é imperativo que o julgamento de
William Belibaste seja concluído. Você conhece os perigos que nos espreitam.
Sabe o que aconteceu antes. Sabe da revolta e do derramamento de sangue.
Que me resta fazer senão prosseguir?
— Então que a Donzela de Foix passe a se vestir como uma mulher
normal. Modestamente, sem exageros. Você não estaria fazendo nada errado.
Afinal, não há razão para ela se vestir como freira, porque não o é. Ainda não
professou os votos. Você não estaria infringindo nenhuma lei da Igreja se a
proibisse de usar o hábito durante o julgamento.
Percebendo que seus argumentos começavam a surtir efeito sobre o
bispo, Aimery se aproveitou da vantagem.
— Ela também deveria descobrir os cabelos. A touca é a marca de uma
religiosa. Com a cabeça descoberta, Claire de Foix parecerá pertencer ao povo.
Assim, quando se chegar a um veredicto, haverá menos discussão sobre sua
imparcialidade.
— Não haverá discussão sobre imparcialidade. Não no meu tribunal. Faço
questão de que seja um julgamento justo. Ninguém será condenado à fogueira
se não for realmente culpado de heresia. Ou sem uma chance de abjurar.
— A menos que o réu seja um Perfeito.
— Sim, a menos que seja um Perfeito — repetiu o bispo sem hesitar.
— Então, que a donzela continue a registrar o julgamento. Mas que se
apresente como verdadeiramente é. Uma donzela.
— Pensarei nisso.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 37

— É só o que peço — pressionou Aimery.


Não havia como ir contra uma decisão do senhor do castelo,
especialmente estando sob sua proteção. Jacques Fournier era inteligente o
bastante para compreender as sutilezas da situação, como Aimery imaginara.
Todavia o bispo deixara claro saber dos verdadeiros motivos pelos quais o
conde de Segni desejava a Donzela de Foix dentro das muralhas de Montsegur.
— Ela o atrai — dissera o inquisidor, assinando a permissão para que a
noviça se ausentasse do convento. — Por alguma razão, você a quer. Mas
lembre-se de sua posição. E lembre-se da dela.
Aimery não se esquecera de nada disso, porém estava determinado a ter
Claire. E a teria naquele mesmo dia, embora não da maneira que o bispo
supusera. Nem por um instante ele se esquecera de seu dever para com
Montsegur, ou para com sua família. Contudo, apreciava a companhia de
Claire. Gostava de ouvi-la falar, de observá-la escrever, de caminhar a seu lado
até o convento, de especular sobre a cor exata de seus cabelos. Os momentos
passados juntos eram os mais agradáveis de sua rotina, aqueles que lhe
davam maior prazer.
E pretendia desfrutar da alegria que Claire lhe proporcionava. Pelo menos
enquanto fosse possível.
— Não posso, de jeito nenhum, deixar meu convento — Claire falou,
alterada.
A noviça e o conde de Segni estavam sozinhos numa saleta após o
encerramento dos trabalhos daquele dia. As sessões de interrogatório ainda
giravam em torno das informações preliminares sobre a vida de William
Belibaste. Nascimento, família, profissão. Jacques Fournier queria um
julgamento imparcial, em que nenhum detalhe fosse deixado de fora. Os
testemunhos sobre heresia e feitiçaria ainda estavam por vir.
— Ninguém está pedindo que você deixe o convento em caráter
permanente — retrucou o conde —, apenas por um breve período. Ouvimos
rumores sobre um complô para libertar William Belibaste. Preferimos tê-la a
salvo dentro das muralhas da fortaleza. Você precisa entender que eu, que
nós, acabamos colocando-a em perigo ao pedir-lhe para ocupar o cargo de
escriba. Aquela boneca... bem, é algo perturbador.
— Simples superstição — Claire murmurou depressa, desviando o olhar.
Suspeitava mais sobre a imagem do que estava disposta a admitir,
especialmente considerando que seu interlocutor representava o poder
inimigo. — Como pode uma boneca me causar mal?
— Claro que eu não acredito que uma boneca possa lhe causar mal. Mas
certamente acredito que o homem que a colocou lá pode. E o fará.
— Não tenho necessidade de proteção. Sou de Montsegur. Ninguém me
machucaria. Vivi nesta cidade, dentro do convento, toda minha vida.
— Não toda sua vida. Apenas a partir dos três anos. Recebi notícias de
Foix. Sei tudo a seu respeito.
— Tudo sobre mim? — O fato de o conde ter buscado informações em Foix
não a surpreendia, nem amedrontava. Esperava-o agir com cautela. Teria feito
o mesmo no lugar dele.
Aimery aproximou-se da janela, os olhos fixos no pôr-do-sol. Grata por ele
ter lhe dado as costas, Claire pôde, enfim, estudá-lo atentamente, algo que não
tivera oportunidade até então.
O conde de Segni era alto, de ombros largos, músculos bem definidos. E
transpirava masculinidade por todos os poros.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 38

— Você mandou espiões a Foix? — indagou, esforçando-se para manter a


voz firme e calma. Não conseguia entender por que a visão do corpo de Aimery
a afetava tanto.
— Não espiões. Perdoe a impertinência, mas, admitamos, é curioso uma
mulher de origens humildes como as suas receber uma educação tão
esmerada.
— Já lhe contei que as freiras no convento de Santa Madalena...
— As freiras jamais seriam capazes de lhe ensinar tudo o que você
aprendeu. Elas também assombraram-se com seus talentos. A abadessa
Helene disse que lhe ensinou os rudimentos do latim e que logo você a tinha
superado. Parece-me que você, dona de uma inteligência rara, possui
conhecimentos profundos sobre assuntos variados. Além do latim, é excelente
em escrita e matemática. Madre Helene me contou que você também domina
a arte da alquimia.
Ante a palavra proibida, tão associada aos cavaleiros templários, Claire
experimentou uma pontada de medo. Esforçando-se para aparentar
tranqüilidade, falou baixinho:
— Você não tinha nenhum direito de me espionar. Não tinha o direito de
fazer perguntas.
— Tenho todo o direito. Sou lorde de Montsegur e conheço meus deveres
para com este lugar e este povo. Cabe-me zelar pela segurança de ambos.
Essas eram as mesmas palavras que usara com o bispo, porém Claire não
era Jacques Fournier e estava longe de aceitá-las sem se rebelar.
— Sou uma noviça, prometida à Igreja. Não permitirei que me digam o que
fazer. Não serei removida de meu lar.
— Você já foi removida. — Aimery virou-se para fitá-la, senhor absoluto da
situação. — Seus poucos pertences foram levados para um quarto da ala
nobre. Você gostará de seus aposentos. Ficam perto dos de minha irmã,
Minerve. Ela é apenas um pouco mais velha do que você e tenho a impressão
de que as duas se entenderão bem. Minerve também tem opiniões próprias a
respeito de tudo. É mãe de quatro filhos. O quinto chegará em breve, antes do
fim do verão. Você gosta de crianças?
A pergunta inesperada pegou-a de surpresa. Atônita, concordou com um
aceno de cabeça.
— Ótimo — continuou o conde. — Os filhos de Minerve são bem-educados
e exuberantes, se é possível imaginar tal combinação. Minha irmã é tão
apaixonada pelas crianças quanto pelo marido. Tenho o pressentimento de que
você e Minerve se tornarão amigas.
— Duvido. Sendo ela sua parente, deve partilhar com você dessa
arrogante incapacidade de considerar os desejos alheios. Duvido que sua irmã
e eu descubramos algo em comum.
— Veremos. — Aimery sorriu, como se saboreasse ura segredo. — Minerve
é dona do próprio nariz, com opiniões, definidas. Você conhecerá minha irmã e
terá oportunidades suficientes para chegar a uma decisão. Acompanhe-me
agora. Vou levá-la aos seus novos aposentos, ao seu novo lar.
"Não é meu lar. Nunca será meu lar", Claire decidiu.
Bastou uma olhada rápida, para Claire perceber quão mais
confortavelmente estaria instalada em seu novo quarto do que jamais estivera
na cela do convento. De tamanho médio, elegantemente mobiliado e com uma
cama tão grande que podia se deitar na diagonal sem que seus pés tocassem
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 39

as beiradas do colchão. E a janela então? Imensa, abrindo-se para um jardim


florido.
E o mais importante, não dividiria aquele espaço com ninguém. Muitos
quartos de castelos, mesmo na ala nobre, costumavam abrigar várias pessoas.
Presumira que Aimery de Segni fosse colocá-la na companhia de outras
donzelas. Enganara-se. Agradecia aos céus pela solidão. Precisaria de
privacidade, se almejava ver William Belibaste livre.
Andando de um lado para o outro do quarto, Claire considerava as
implicações de sua vinda para a fortaleza. Sabia que precisava avisar padre
Pedro e os outros. Talvez madre Helene já os houvesse informado da
desastrosa mudança. Pela primeira vez ansiava conversar com madre Helene,
mais do que com padre Pedro.
Precisava entrar em contato com o grupo. Planos mais detalhados
deveriam ser elaborados. No passado, eles tinham se contentado em viver o
dia a dia, em esperar que o acaso lhes providenciasse algo que viesse a se
revelar útil para sua missão. Agora, porém, acabariam tendo que se opor a
Aimery de Segni e o conde não cometeria erros. Planos precisavam ser
traçados com urgência.
E ninguém sabia quanto tempo o julgamento demoraria. As provas contra
William Belibaste pareciam ilimitadas, especialmente porque ele não se
mostrava arrependido, nem dava a impressão de querer abjurar. Belibaste
nunca fora o tipo dissimulado. Homem franco e destemido, deixara rastros
atrás de si e a Inquisição, espreitando-o há anos, aproveitara a primeira
oportunidade para capturá-lo. Portanto, Jacques Fournier poderia encerrar o
julgamento no dia seguinte, caso lhe conviesse. Na verdade, ninguém sabia o
que o bispo faria, apenas que ele tinha poder e autoridade para agir conforme
quisesse.
Padre Pedro compreendera muito bem a situação. O templário conseguira
lhe entregar um bilhete dizendo que, naquela noite, se reuniriam no convento.
Como todos os encontros, esse seria rápido e furtivo. Perigoso. Mas estaria
presente.
Entretanto, sentia medo. Aimery de Segni não era estúpido, não era um
homem a quem se tentasse enganar impunemente. Todavia, duvidava que o
conde houvesse suspeitado de seu segredo. Como poderia? Não fora por este
motivo que ele a obrigara a se mudar para o castelo. Todos do grupo, em
especial padre Pedro, haviam sido extremamente cuidadosos. Porém, estava
sendo vigiada, e o sabia.
Suspirando fundo, Claire sentou-se na cama e deslizou a mão sobre a
colcha espessa e perfumada. Nunca estivera em contato com um tecido tão
fino, tão rico. A vida no Santa Madalena sempre fora frugal, simples, voltada
para o trabalho duro, uma vida nos moldes dos cátaros, dedicada à glória
futura.
Mas apesar dos ensinamentos recebidos, sobre não valorizar as coisas
terrenas, a beleza daquela cama, com seus lindos lençóis macios, a
hipnotizava. Assim como o lenço de seda que o conde de Segni lhe dera de
presente e o qual trazia amarrado ao pescoço, sob o grosso hábito de algodão.
Sem que percebesse, começara a gostar de um mundo e de um estilo de vida
que sempre conhecera como carnal, confuso, sem valor e insatisfatório.
Intrigava-a sua rápida mudança. E o culpado era Aimery de Segni. O badalar
dos sinos trouxe-a de volta à realidade. Anoitecera e uma lua cheia iluminava a
noite de verão. Aproximando-se da janela, Claire vasculhou o pátio do castelo
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 40

com o olhar. Ninguém nas imediações do portão, exceto o sentinela que


cochilava sentado no chão. Se queria alcançar os outros, precisava se apressar.
Primeiro teria que mudar de roupa. Uma freira perambulando àquela hora
despertaria curiosidade e geraria perguntas. Planejara discutir com o conde
sobre a insistência dele em obrigá-la a usar roupas normais, mas agora
agradecia-o. Em poucos minutos, vestiu uma túnica escura e soltou os cabelos.
Tinha que sair o quanto antes e se reunir aos outros sem que fosse pega.
Não podia ser pega. Ou perderia a vida.
Aimery de Segni não conseguia dormir. Há horas revirava na cama,
incapaz de conciliar no sono. "Talvez seja o calor', pensou, "ou a lua".
"Sim, provavelmente é a lua", concluiu em silêncio. Afinal, diz-se que a lua
cheia enlouquece os homens.
Não, ainda não estava louco. Tinha pleno controle de suas faculdades
mentais. O dia seguinte prometia ser tão atarefado quanto os anteriores. Cheio
de decisões a serem tomadas, cheio de responsabilidades em relação às
pessoas que exigiam sua interferência para resolver algum assunto. Essa era
sua vida, esses eram seus deveres.
Levantando-se, Aimery aproximou-se da janela para fechar a cortina.
Então avistou Claire.
Cautelosa, ela avançava pelo pátio deserto, os cabelos vermelhos
banhados pelo luar. Fascinado pela visão, observou-a escapar pelo portão de
ferro.
"Onde ela estaria indo?" A pergunta não o preocupava, pois sabia que não
seria difícil descobrir.
Tratava-se de um grupo estranho. Um grupo pequeno, que encolhera
desde a prisão de William Belibaste. As poucas pessoas que o compunham, de
aspecto envelhecido e cansado, se acotovelavam em um cômodo úmido sob o
convento. Claire tentou não se deixar impressionar pelos ruídos feitos pelos
ratos enquanto atravessava o corredor subterrâneo. A madre superiora,
abadessa Helene, providenciara o espaço para as reuniões. Apesar de ser
também uma catara, nos últimos tempos ela raramente comparecia aos
encontros. Porém, naquela noite, madre Helene estava lá, junto com um
notário, dois camponeses e um monge, que saíra às escondidas do próprio
mosteiro na calada da noite. Antigamente o grupo contara com mais três
integrantes. Eram todos homens, exceto Claire e Helene. Cada qual jurara
imorredoura fidelidade à causa. Também haviam jurado fazer tudo o que
estivesse a seu alcance para a vitória contra o inimigo, personificado por
Aimery de Segni. Todavia os outros três integrantes haviam sumido no mesmo
dia em que William Belibaste fora preso. E quem poderia culpá-los? Os cátaros
eram caçados, seu mundo secreto era um eco distante dos dias de glória do
século passado, quando reinavam em Languedoc e comandavam Congressos e
Conselhos. Agora não passavam de uma sombra pálida. A ameaça da morte na
fogueira fora o que bastara para dispersar o grupo.
Desde a deserção dos três, padre Pedro sempre os havia tranqüilizado e
encorajado, chamando-os de seus "bravos remanescentes". Com a astúcia
costumeira, o velho templário alimentara sua lealdade e fomentara sua sede
de vingança.
— Os outros voltarão e trarão muitos companheiros consigo. Assim que
tivermos organizado a rebelião, se juntarão a nós. Irão se apressar a apagar a
influência de Roma e de Paris sobre Languedoc. Breve, muito breve, nós
tomaremos posse dessa grande terra outra vez.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 41

Aquele seria o glorioso futuro. Por enquanto, o pequeno grupo escutava a


exclamação incrédula de seu líder.
— Ele fez o quê? — interrogou-a padre Pedro, indignado.
Claire já havia lhes contado tudo uma vez, porém repetiu a história.
— O conde de Segni me levou para o castelo. Mandou-me tirar o hábito e
me vestir como uma donzela comum. Ele mesmo se encarregou de
providenciar túnicas e sapatos para mim. Coisas simples, nada muito
extravagante. Era como sua intenção fosse me levar a negar o que eu sou, a
arrancar isso de mim.
Padre Pedro a acariciou na mão, num gesto paternal.
— Ele não pode negar sua identidade catara, criança. O conde de Segni
não tem poder para isso. Você é uma de nós, como sempre foi.
Os outros concordaram, assentindo com a cabeça.
— O bispo disse que devo usar meus cabelos soltos — prosseguiu Claire.
— Mandou-me avisar que devo me vestir como uma donzela respeitável, não
como uma freira, até o julgamento de Belibaste chegar ao fim. Explicou que eu
atrairia menos atenção se me vestisse como as outras moças, se agisse como
elas.
Embora pronunciasse palavras encorajadoras, padre Pedro sabia que a
idéia de soltar os cabelos de Claire e fazê-la vestir roupas comuns não partira
de Jacques Fournier. Por um instante o monge estudou os longos fios,
vermelhos e brilhantes, os olhos verdes e os belos traços do rosto delicado de
sua discípula. E, pela primeira vez, experimentou uma pontada de medo.
Compartilhada pelos demais.
— Eles nunca exigiram nada assim antes — disse Roger Aude, o notário e
o mais instruído do grupo. — A Inquisição nunca exigiu que as mulheres
abandonassem seus hábitos. No começo da perseguição, insistiram para que
abjurássemos nossas crenças, porém não nos impuseram um novo modo de
trajar. Os cátaros sempre tiveram seus próprios conventos. Jamais fomos
forçados a mudar a maneira como nos vestíamos.
— E, mediante esses acontecimentos, vocês logo concluíram que o conde
de Segni, ou o bispo, sabem de alguma coisa? — questionou-os Helene,
superiora do Santa Madalena. — Duvido que seja isso.
A abadessa se debruçou sobre a mesa de madeira lascada e fitou Claire.
As duas se conheciam há anos, desde a chegada da pequena órfã ao convento.
Na sua ingenuidade e carência infantis, Claire freqüentemente fantasiara uma
família perfeita, com padre Pedro como pai, Helene como mãe e ela como a
filha amada. O tempo se encarregara de destruir esse sonho. Aprendera a
aceitar o fato de que um dia seria uma Perfeita e que, em seu futuro, não
haveria lugar para criar a própria família. Em vez de marido e filhos, dedicar-
se-ia aos seus deveres.
Helene, uma mulher alta e magra, raramente tocara Claire. Porém,
contrariando seus hábitos, tomou a mão pequenina entre as suas.
— São apenas roupas — falou a abadessa. — E roupas não importam. Não
são as roupas que fazem de nós cátaros. O exterior é irrelevante. A bondade
vem da alma, do coração. Você tem apenas que conservar o espírito puro,
minha criança. O resto não importa. Lembre-se sempre disso.
Estava úmido e abafado dentro do cômodo apertado. Incomodada, Claire
sentia a túnica nova grudada no corpo.
— Está quente aqui — comentou Guy, o pastor. — É a maneira de a
natureza nos preparar para arder na fogueira.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 42

Diante da piada rude, os outros riram. Todavia Claire tinha certeza de que,
no dia seguinte, aconteceriam mais deserções. Seria uma questão de tempo
até o primeiro traidor aparecer.
— É impossível saber realmente por que esses estrangeiros vieram para
cá — repreendeu-os Helene. — Talvez queiram apenas o castelo. A captura de
Belibaste pode ter sido apenas incidental. Sim, existe a possibilidade de que
eles queiram tudo de nós. Mas talvez não queiram nada.
— A História tem nos ensinado que eles tomarão tudo de nós — interveio
Roger Aude — e quando tiverem tomado tudo, ainda irão querer mais.
Estranhamente padre Pedro se mantivera silencioso durante a troca de
palavras. Entretanto, como o líder, como o coração corajoso do pequeno grupo,
era natural que buscassem sua opinião. A voz do templário soou baixa, quase
inaudível.
— O inimigo suspeita que estamos perto. Desconfiam que Belibaste possui
amigos secretos. Logo essa suspeita se transformará em certeza. Mas seremos
salvos por Claire. Ela usará o poder. — O velho monge a fitou fixamente sem
sorrir. — Você deve usar todos os seus poderes contra esse filho de Satanás,
esse Aimery de Segni. O objetivo do infame é esmagar nossa irmandade, é
massacrar os Bons e os Justos. Ele é mais perigoso que o próprio Inquisidor e
desejará nos ver a todos mortos. Destruirá tudo pelo qual lutamos e nos
destruirá no processo, se não o destruirmos primeiro. Ele tem que ser
aniquilado. O conde de Segni tem que ser morto.
— Por quê? — interrogou-o madre Helene. — Por que você está dizendo
isso? Aimery de Segni não nos causou nenhum mal. Na verdade, tanto ele
quanto Jacques Fournier tem se empenhado em garantir a Belibaste um
julgamento Justo. Se nosso objetivo é libertar Belibaste de forma pacífica, por
que usar violência, matando Aimery de Segni?
— Expliquei-lhe não haver alternativa — devolveu o templário, ríspido. —
Ou o inimigo é destruído, ou nós seremos. Você já se esqueceu das lições de
nossa História? Já se esqueceu do que aconteceu aqui, em Montsegur?
Centenas dos nossos foram queimados nas fogueiras por causa de suas
crenças. Mulheres e crianças massacradas, suas cinzas espalhadas ao vento
sem ao menos o consolo de um enterro cristão. Não está claro o que os
ancestrais do conde fizeram a nós? Você esqueceu nosso passado?
— E você se esqueceu de nossos objetivos? — rebateu a abadessa
gentilmente. — Esqueceu-se dos motivos pelos quais somos Bons e Justos?
Padre Pedro pareceu perder a calma.
— Então você prefere ver William Belibaste morto? Ele é nosso último
Perfeito do sexo masculino. O que nos acontecerá sem Belibaste?
— Claro que não quero Belibaste morto. E farei tudo o que estiver em meu
alcance para libertá-lo pacificamente. Todavia ele não é o último Perfeito do
sexo masculino. Você é. Você foi um sacerdote templário até se unir a nós,
mas continuou sendo um padre. E sacerdotes são Perfeitos, você o sabe tanto
quanto eu. Você tem o poder de ministrar os sacramentos. Em certos aspectos
você é mais um verdadeiro Perfeito do que Belibaste jamais o foi.
— Porque eu não me casei e Belibaste sim.
Um silêncio prolongado seguiu as palavras de Pedro.
— A esposa dele está vindo para cá — disse madre Helene afinal. —
Belibaste pediu a presença da mulher e a Inquisição lhe concedeu o consolo de
tê-la por perto. Provavelmente ela já atravessou as montanhas de Haute
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 43

Savoie e se encontra próxima a Montsegur. O bispo Fournier pediu-nos para


hospedá-la no convento. E quando ela chegar...
Diante da notícia inesperada, todas as atenções convergiram para a
abadessa.
Juntos, começaram a traçar um plano.

CAPÍTULO V

O grupo de cátaros terminou de traçar os planos logo antes do galo cantar


e, como folhas ao vento, se dispersaram. Ansiosa para retornar ao castelo,
Claire percorreu os corredores silenciosos às pressas, padre Pedro seguindo-a
de perto. Às vezes o velho templário estancava, ofegante, a idade começando
a pesar-lhe. Embora parasse para esperá-lo recuperar o fôlego, a noviça não
via a hora de estar do lado de fora daquelas paredes. O convento sempre fora
seu lar, porém agora o perigo a rondava ali dentro. Desejava a solidão de seus
aposentos em Montsegur.
— Sei que tudo isso a está preocupando — disse padre Pedro —, todavia
trata-se de um fato consumado. Sua cela no Santa Madalena será ocupada
pela esposa de Belibaste. Você foi afastada de nosso convívio, mas saberemos
tirar proveito disso. Nada nos acontece que não possamos transformar num
ponto a nosso favor. Sempre lhe falei isso porque é verdade.
Claire estava tão cansada. O céu começava a clarear. Precisava regressar
antes que sua ausência fosse notada. Além do mais teria longas horas de
trabalho pela frente. Enfrento padre Pedro parecia desejoso de conversar.
— Sei que tudo a está preocupando — ele repetiu. — Não se esqueça de
que somos capazes de transformar as situações e usá-las em nosso benefício.
Nada acontece que não seja para o bem dos Perfeitos. Somos capazes de usar
qualquer coisa.
— Usar? — A escolha da palavra perturbou-a. Nunca pensara na
irmandade usando qualquer coisa. Nunca pensara nos cátaros desse jeito.
Todavia quem lhe falava era padre Pedro, a quem devia escutar e obedecer. —
O que devemos usar? — indagou, cautelosa.
— Devemos usar você — o templário sussurrou. — Porque Aimery de
Segni a quer.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 44

— O conde me quer? — Apesar da sincera incredulidade, bem no fundo


soubera o que o monge diria antes mesmo que as palavras saíssem de sua
boca.
— Aimery de Segni a quer como um passatempo, como um brinquedo —
padre Pedro prosseguiu, sereno. — Como inimigo, não pode vê-la como a
mulher que você é, pertencente à irmandade dos Bons e Justos. Você é
consagrada a algo que ele jamais será capaz de compreender. Pois homens
como Aimery de Segni, que seguem os passos selvagens do rei da França, são
bárbaros. Muito diferentes de nós dois e do povo de Languedoc. Gente como
Aimery de Segni está acostumada a roubar, saquear, a ter o que deseja a
qualquer custo. Porém o conde jamais a terá. Ele não pode. Você está
consagrada a Deus e será uma Perfeita. Entretanto isso não significa que não
possamos usar aquele arrogante.
— E quanto ao plano de madre Helene para libertar Belibaste por meios
pacíficos? Sem dúvida irá funcionar. Se nós trabalhássemos através da esposa
dele...
— O plano de Helene fracassará. Ela não conhece a perfídia do inimigo
com o qual está lidando e eu sim. Creia-me menina, reconheço o mal quando o
vejo. E você tem que acreditar nisso, mais do que em qualquer outra coisa que
já acreditou no passado — continuou o velho templário, um brilho frio no olhar.
— Você deve usar seu poder contra Aimery de Segni para salvar William
Belibaste, para salvar todos nós.
Padre Pedro suspirou fundo e retirou um maço de ervas do bolso do
hábito.
— O que é? — Claire perguntou.
— Algo que ajudará você como já me ajudou num momento de grande
necessidade. Você precisa se concentrar apenas no conde de Segni, da
maneira que sempre lhe ensinei. Não será difícil. Obviamente ele quer suas
atenções e é seu dever satisfazê-lo. Pelos cátaros e por si mesma. Procure
apenas se lembrar o que os francos nortistas fizeram a seus pais. Como, por
obra dos infames, você ficou órfã. Agora é sua vez de os controlar.
"Primeiro 'usar' e agora 'controlar'. É isso o que realmente escolhi para
mim? É isso o que eu quero?"
— Seus pais morreram trabalhando para restaurar a glória dos cátaros.
Eles morreram para que você pudesse se tornar uma Perfeita, membro da
irmandade dos Bons e Justos.
Claire balançou a cabeça devagar, como se para afastar a névoa.
— Não machucarei ninguém. Não derramarei sangue.
— Não haverá nenhum derramamento de sangue! — o Sacerdote
exclamou, obrigando-a a aceitar o maço de ervas.
— Ou talvez apenas um pouco, se formos capazes de libertar
Belibaste antes que o inquisidor-mor o condene à fogueira. Essas ervas
irão... ajudá-la. Elas lhe permitirão dirigir, com maior facilidade, os
pensamentos de Aimery de Segni para o ponto que nos convém. E só este o
efeito das ervas, direcionar os interesses do conde.
A mente de Claire vagava. Via-se, ainda menina, correndo para as
chamas. Alguém a agarrava, alguém a arrastava...
Mamãe!
— Lembre-se disso — padre Pedro insistiu, a voz soando novamente
mansa e baixa, como a do templário que, anos atrás, a tinha salvado do frio e
das chamas, levando-a até Montsegur. Outra vez ele tinha o olhar terno
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 45

daquele a quem devia a vida. — Mas você deve usar seus poderes também.
Essas ervas não são nada sem você. Você tem que entrar na mente de Aimery
de Segni, do modo como sempre praticamos. Concentre-se. Você tem que
descobrir o que ele traz escondido dentro da alma.
Sem muito entusiasmo, Claire concordou.
— Diga seu nome a este tribunal.
— Sou Arnold Sicre. — E então mais alto, como se a criatura baixa e magra
sentada diante do inquisidor-mor de repente se tornasse segura de si. — Sou
Arnold Sicre.
Tratava-se de um nome comum, típico de aldeões, um detalhe de
conhecimento geral.
— Você é o responsável por trazer William Belibaste de volta a
Languedoc?
— Sou o responsável por trazer um feiticeiro e um traidor ao banco dos
réus! — o camponês anunciou no meio da súbita balbúrdia. Ainda era cedo,
porém os cavaleiros e soldados do conde de Segni já se achavam a um passo
da embriaguez, devido ao tédio.
Irritado, Aimery ergueu a mão e seus comandados silenciaram.
— Práticas de feitiçaria ainda não foram provadas — disse Jacques
Fournier com firmeza —, e muito menos traição. Aconselho-o a ter cuidado na
escolha de suas palavras.
O homem assentiu e afundou na cadeira.
Se existia um traidor ali, Aimery pensou, apontaria Arnold Sicre. O delator
de olhar cruel dava a impressão de ter sido criado para desempenhar tal papel
na vida. Miúdo, o rosto cheio de cicatrizes, herança de alguma doença, ele
possuía a estrutura física de quem tivera uma infância pobre e agora agarrava-
se à oportunidade de conhecer a fartura. Não duvidava de que esse traidor
passaria a viver suntuosamente num futuro próximo. De acordo com rumores
insistentes, o bispo lhe prometera uma fortuna em moedas de ouro em troca
de apoio para levar o último Perfeito cátaro a julgamento. Durante anos
Jacques Fournier caçara Belibaste e sua captura representava um sucesso. Um
sucesso capaz de alçá-lo do bispado ao trono papal.
Todos o sabiam, sobretudo Arnold Sicre, que sorria para seu benfeitor
enquanto continuava:
— De fato, sempre estive do lado de Roma e de Paris. E minha...
Talvez devido ao tom monocórdio da testemunha, ou ao calor sufocante
do salão, Aimery distraiu-se, relegando a um segundo plano, pelo menos por
alguns minutos, o relato de Arnold Sicre. Sua atenção voltava-se toda para a
jovem escriba. Embora Claire desse a impressão de estar mergulhada no
trabalho, e sequer levantasse a cabeça do pergaminho, Aimery tinha certeza
de que ela o estudava com a mesma intensidade com a qual a observava.
Claire de Foix representava um enigma, um desafio. E há muito não se
deparava com uma charada instigante. Ela parecia dócil, sossegada,
obediente. Porém o instinto lhe dizia não ser essa sua verdadeira natureza. Sua
verdadeira natureza estava escondida dos olhos do mundo. Ansiava ouvir o
que Minerve lhe diria sobre a noviça. Intuitiva, a irmã sempre fora boa
conhecedora do caráter das pessoas.
— Localizei William Belibaste exatamente onde Vossa Eminência, bispo...
onde me disseram que ele estaria — prosseguiu Arnold Sicre. — Havia um
bando secreto de cátaros escondidos em Sabartès, nas terras dos reis da
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 46

Espanha. Belibaste era o Perfeito do grupo, o encarregado de ministrar os


sacramentos.
— Um Perfeito é uma espécie de sacerdote?
— Supõe-se que sim — replicou a testemunha. — Eu não tinha nenhuma
conexão com as crenças daqueles hereges, até me associar ao grupo
temporariamente. E já me esqueci de todas as suas crenças amaldiçoadas.
— Você se deparou com os cátaros por acaso?
— O grupo estava onde Vossa Eminência me disse que estaria — outra vez
o mesmo deslize que Sicre se apressou a corrigir — onde me disseram que
estaria, numa pequena aldeia chamada Axles-Thermes.
Durante alguns segundos não se ouviu nada no salão, exceto o deslizar da
pena da escriba sobre o pergaminho.
— Prossiga — ordenou o bispo à testemunha.
— Quando os encontrei, eles se convenceram facilmente de minha
sinceridade. Os cátaros estavam prontos para acreditar em qualquer um.
Afinal, passaram um século sendo perseguidos e viviam escondidos como
coelhos assustadiços. Estavam ansiosos para acreditar em qualquer um que
lhes desse esperança. E eu, é claro, me aproveitei da situação, mostrei-me
compreensivo. Minhas credenciais eram excelentes, não havia razão para
alguém duvidar de meus bons propósitos. A Inquisição condenou minha mãe,
Sybil Bayle, à fogueira. Belibaste e seus seguidores sabiam disso. Meu irmão,
Pons, havia feito parte do círculo íntimo dos Perfeitos. Quando surgi no meio
dos hereges de Axles-Thermes, consideraram-me uma bênção. Ninguém
questionou minha súbita aparição. Ninguém me interrogou.
— E não perguntaram nada sobre seu pai? O camponês deu de ombros.
— Eram todos crédulos. Digo-lhe com toda a certeza, eles queriam
acreditar em mim. Além do mais, não acho que soubessem que meu pai havia
se voltado contra a fé catara. Os refugiados de Axles-Thermes não pareciam
saber que meu pai solenemente abjurara suas crenças e ajudara a organizar o
massacre dos cátaros em Montaillou. — Outra vez Arnold Sicre deu de ombros,
como se falasse de algo enfadonho e sem importância. — Deve ter sido difícil
para meu pai ter uma Perfeita como esposa. Ele deveria ter preferido uma
carne quente para aquecê-lo à noite, em vez de fria perfeição.
Risadas ecoaram pelo salão lotado.
Satisfeito com a atenção obtida, a testemunha passeou o olhar pelos
presentes, sem, no entanto, deter-se sobre Willian Belibaste, silencioso e
acorrentado no banco dos réus.
— Você tinha conhecimentos suficientes das crenças cléricas para se fazer
passar por um deles? — indagou Jacques Fournier. — Sim, embora eu não seja
um herege.
— Foi assim que você conseguiu enganá-los, inclusive a Willian Belibaste?
Sicre balançou a cabeça.
— Belibaste sabia menos sobre aquelas crenças do que eu. Vossa
Eminência se esqueceu de que ele é um assassino condenado? Apesar das
relações sexuais serem proibidas para um Perfeito, Belibaste gerou um filho.
Vossa Eminência não se lembra disso?
— Lembro-me de tudo — declarou Fournier.
— Claro que sim, claro.
— Prossiga, por favor.
Sicre fixou o olhar no bispo Fournier evitando, a todo custo, enfrentar
Belibaste, porque o prisioneiro não deixava de encará-lo um só instante.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 47

— Os cátaros me receberam de braços abertos. Pensaram que eu seria


facilmente convertido. Aceitaram-me de imediato.
— Belibaste aceitou você? — insistiu o inquisidor-mor. A hesitação da
testemunha era evidente.
— Não, não a princípio. E depois com ceticismo. Era como se ele
soubesse...
"Que eu iria traí-lo", pensou Sicre.
— Que havia alguma coisa errada comigo — continuou Sicre. — E
naturalmente havia. Eu compreendia pouco as crenças e práticas dos cátaros.
Conhecia apenas aquilo que Vossa Eminência... isto é, o que me explicaram
antes de minha missão. Cometi muitos erros. Porém os outros integrantes do
grupo acreditaram em mim e logo me ofereceram sua amizade. Arrumaram-me
um trabalho de aprendiz de carpintaria nos arredores da aldeia de Saint
Matieu, o que me deixou com tempo livre para comparecer às reuniões
secretas na pequena casa de Belibaste. Dentro de poucos meses fui aceito no
círculo da comunidade catara. Permaneci ali durante anos e trabalhei duro.
Tornei-me grande amigo do Perfeito. Muitos chegaram a me considerar seu
sucessor natural.
— E, entretanto, durante todo esse tempo...
— Durante todo esse tempo eu tinha minha missão, a coisa mais
importante para mim — disse Sicre, remexendo-se na cadeira. — Eu não
alimentava dúvidas sobre quem merecia minha verdadeira lealdade. Após
alguns anos, comecei a fazer comentários sobre a saudade que sentia de
minha família, que abandonara ao partir de Languedoc. Contei-lhes sobre uma
tia viúva, muito rica, e minha bela irmã. Falei o quanto as amava. Enfatizei
quão ricas eram. Lamentei-me por havê-las deixado sem que tivessem o
socorro espiritual que eu tinha encontrado na Catalonia. Confesso ter sido
facílimo convencer os cátaros da sinceridade de minhas palavras.
Jacques Fournier pigarreou.
— No final, o próprio Belibaste sugeriu seu regresso a Languedoc para
buscar a família?
— Ele me convenceu a buscá-la. Explicou-me que uma jovem virgem seria
bem-vinda à comunidade, especialmente sendo rica.
— Nesta época o réu já confiava em você? — o bispo indagou, seco.
— Completamente. — Sicre sorriu e sentou-se mais aprumado na cadeira
dura. — Parti de Axles-Thermes com destino a Languedoc e estive fora por
muitos meses. Quando retornei, partilhei as tristes notícias. Minha tia estava
muito doente para viajar e minha irmã decidira permanecer em Languedoc
para cercá-la de cuidados. Oh, sim, expliquei que a doença de minha tia era
fatal e que a pobre senhora, velha, frágil, muito rica e à beira da morte,
precisava do consolo de um Perfeito.
— Portanto, ela precisava de Belibaste. — Um silêncio pesado seguiu-se às
palavras do inquisidor.
— William Belibaste é o único Perfeito remanescente, pelo menos o único
do qual tenho conhecimento — afirmou Sicre. — Incentivei-o a cruzar as
montanhas usando o argumento de que minha tia o recompensaria
generosamente por seus serviços de sacerdote. Falei dezenas de vezes sobre a
herança que minha irmã receberia. Os cátaros querem dinheiro, na verdade,
precisam de dinheiro. Ao voltar de minha visita a Languedoc, levei comigo
muitas moedas de ouro e fiz com que o Natal daquele pobre grupo fosse algo
memorável. Ótimo, porque seria o último para muitos deles.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 48

— E então, embalado por suas palavras, o réu veio para Languedoc?


— Sim. Embora muitos, àquela altura, tivessem dúvidas a meu respeito e
se mostrassem contrários à jornada. A esposa de Belibaste, em particular,
sempre me odiou. Nunca fui capaz de conquistá-la. Ela lembrou ao marido que,
anos atrás, ele quase não escapara com vida de Languedoc. Suplicou-lhe para
ter cuidado. E Belibaste queria ter cuidado Talvez o instinto o avisasse do
perigo. Mas seu próprio caráter provou ser seu maior inimigo. Uma senhora
idosa necessitava de consolo e ele era o último Perfeito. O fato de essa mulher
ser rica traria um benefício extra aos empobrecidos cátaros.
— O réu não foi forçado a deixar a Catalonia?
— Forçado? Não. — Disse Arnold Sicre baixinho. — Ed trapaceei; o
enganei.
Naquele momento Claire ergueu a cabeça e seu olhar encontrou o de
Aimery. Por uma fração de segundo, os olhos da noviça revelaram o ódio que a
consumia. Então, sufocando as emoções, a jovem escriba retomou o semblante
plácido que lhe era característico.
Arnold Sicre mostrou-se cansado após o longo depoimento e o tribunal
entrou em recesso até o dia seguinte. Enquanto retiravam o prisioneiro do
salão, Aimery procurou Claire com a intenção de acompanhá-la até seus
aposentos. Todavia, a noviça parecia ter sumido no meio da multidão,
engolfada no caos reinante.
— Maldição! — o conde praguejou por entre os dentes.
— Por acaso o xingamento é dirigido a mim, milorde?
Ao virar-se, Aimery se deparou com a irmã, que lhe sorria afetuosamente.
— De jeito nenhum. Vê-la é sempre um prazer e me faz sentir mais perto
do paraíso.
Minerve riu alto.
— Acho que você tem passado tempo demais nessa terra de trovadores,
querido irmão, apesar disso não ter servido ajudá-lo a apurar seu talento na
criação de versos românticos.
— Creio que nunca serei um cavaleiro típico de Languedoc. — Aimery
tomou o braço da irmã e a conduziu para a saída do salão. — Não possuo veia
poética.
— E não lhe faz falta. É refrescante estar longe dos versos vazios e falsos,
especialmente quando acabei de passar tantos meses em Paris.
Bastou à simples menção da capital francesa para Aimery sentir um
aperto no peito. Contudo, não lhe restava outra alternativa a não ser levar a
conversa adiante.
— Como estava Paris? — perguntou após alguma hesitação. — E Isabel de
Valois?
— Sua noiva?
Os dois achavam-se em um dos corredores do castelo agora. A multidão
se dispersara, porém o ar continuava opressivo, abafado. Tudo o que Aimery
queria era refugiar-se num lugar fresco. Preocupava-se com a irmã. Já no final
da gravidez, Minerve estava imensa e também exuberante. Quantas mulheres,
próximas da data do parto, teriam ousado atravessar metade da França?
Ela lhe escrevera:
Preciso estar em Montesegur. Depois de tantos filhos homens, Huguet tem
o direito de ver a filha nascer. Como meu marido não pode vir ao meu
encontro, irei ao encontro dele.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 49

“Como se alguém tivesse mesmo esperança de que nascesse uma


menina”, o conde pensou, lembrando-se da conversa recente com o cunhado.
Huguet compartilhava da opinião geral segundo a qual Minerve de Montfort
produziria mais um belo e robusto menino.
— Como estão os garotos? — ele perguntou, sendo recompensado com
um relato minucioso das atividades dos sobrinhos. Rupert, o mais velho e seu
afilhado, aos seis anos começara o treinamento para pajem, já havendo
demonstrado imensa habilidade no manejo da espada de madeira. Edoard e
Guy adoravam arco e flecha e a primeira palavra do pequeno Simon, Minerve
jurava, fora "torneio".
— Ele falou tão claramente quanto a luz do dia e mal acabara de
completar dois meses! Não ria tanto, Aimery! Um dia Simon estará liderando as
listas de vencedores de todos os torneios do país. Meu filho será o maior
cavaleiro dentre seus pares e você verá como é verdade o que estou lhe
dizendo agora. Sinto-o nos ossos.
— E Isabel? Você se encontrou com minha futura noiva em Paris?
— Sua noiva — repetiu Minerve, sem sorrir. Tomando a mão do irmão, o
levou até um canto perto de uma janela, onde gozariam de privacidade e de
um pouco de ar fresco. Os outros, aproveitando o recesso do julgamento de
Belibaste, tinham se recolhido para um breve cochilo, ou então se ocupavam
tomando um lanche rápido.
— Você a viu. Como está ela? — insistiu o conde.
Os dois eram tão parecidos! E não apenas porque possuíam os mesmos
cabelos loiros e os mesmos olhos incrivelmente azuis. Bastara Aimery notar a
irmã franzir a testa para ter certeza de que Minerve preferia não discutir Isabel.
E ele tampouco se interessava em saber notícias da futura noiva. A herdeira de
Valois perdera a pouca importância que tivera em sua vida nos últimos meses.
As coisas haviam mudado muito. Não apenas não queria saber notícias da
mulher a quem deveria desposar, como não tolerava pensar nesse enlace. O
fato é que nunca fora apaixonado por Isabel. Tratava-se de uma união de
conveniência. Felizmente, em seu círculo, o amor entre o casal não era
necessário, nem a aprovação mútua. E esse fora o ponto sobre o qual ele e
Minerve sempre haviam divergido.
— Você e eu quase não tivemos oportunidade de conversar a sós desde
que cheguei a Montsegur. Creio que Isabel seja o motivo de nossa reticência.
Eu, não querendo falar. Você, não querendo ouvir. Claro que a vi no Palácio do
Louvre. Afinal, não é um lugar tão grande assim. E Isabel é sua noiva.
— Minha futura noiva — Aimery a corrigiu. — Ainda não terminamos de
finalizar os arranjos. Há planos financeiros, questões a resolver sobre as terras
que Isabel receberá dos Valois como dote. Os advogados e os banqueiros da
Lombardia estão trabalhando no assunto.
— Sua futura noiva — Minerve repetiu obediente. — Na verdade, eu a vi
com freqüência. O Louvre não é um castelo enorme e as pessoas perdem um
pouco da privacidade. Especialmente quando, como Isabel, não dão a menor
importância à discrição.
— Ou seja, não disfarçam suas ações?
A herdeira de Valois me pareceu bem. Pareceu bem? — Não era do feitio
de Minerve utilizar Palavras dúbias. Assim como não era de seu feitio
pressioná-la. Mas foi o que fez. — Você disse tê-la visto com freqüência.
— Sim, vimo-nos com freqüência. Porém, não nos falamos com freqüência.
Tínhamos interesses diferentes. Amigos diferentes.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 50

Aimery conduziu a irmã até uma cadeira e a ajudou a sentar-se. Assim que
Minerve começou a se abanar e abriu a boca para se queixar do calor, o conde
a interrompeu, indo direto ao ponto.
— Não quero escutá-la discorrer sobre os incômodos do verão. Quero
escutar o que você não quer me falar sobre Isabel.
Durante alguns segundos os dois se fitaram em silêncio.
— Não tenho nada a acrescentar além do que você já sabe — disse
Minerve, sem deixar de encará-lo. — Isabel é... o que é. Você não a escolheu
por ser um modelo de virtude.
Aimery sentou-se também, sem saber por que insistia em discutir algo que
sempre soubera. Talvez porque suas dúvidas sobre esse casamento
houvessem aumentado, em vez de se dissiparem.
— Conte-me aquilo que você não quer me contar, irmã. Sentada na
beirada da cadeira, Minerve ainda hesitou.
Nunca aprovara as fofocas típicas da Corte e desagradava-lhe comentar a
intimidade alheia.
— Falarei francamente — decidiu-se afinal. — Os Valois, a família de
Isabel, subiram ao poder inesperadamente. Ninguém jamais imaginara que o
tio dela, algum dia, subiria ao trono como Felipe VI. Você sabe que ele é
chamado de le roi trouve, "o rei achado", porque foi levado ao trono em uma
emergência, na falta de outra opção. Antes, Isabel era apenas uma prima
distante do rei da França. Agora, com a ascensão de Felipe, é a sobrinha do rei.
E é uma mulher muito tola para estar tão perto do poder. O conde deu de
ombros e disse:
— Isabel não é uma jovenzinha frívola. Já esteve casada e enviuvou. O tio,
o rei, é muito piedoso, dizem que chega a ser obsessivo. O único objetivo de
Felipe é conseguir comprovar sua visão beatífica. Ele quer saber se os santos
vêem a Deus imediatamente ao chegarem ao paraíso. E ameaçou excomungar
o papa, se este discordasse de suas idéias! Essa é a família de Isabel, o meio
de onde ela veio.
— Você acredita que eu me prestaria a espalhar mexericos? — Minerve
perguntou sem se alterar.
Aimery balançou a cabeça, não tendo dúvidas sobre a natureza do que
estava para ouvir.
— Você me pediu, e vou lhe contar o que testemunhei. Direi apenas aquilo
que vi — prosseguiu Minerve, uma expressão grave no rosto. — Os amigos de
Isabel não são os melhores. Guy de Guinne, Raoul de Perceval, Eustache d'
Alembert. Você passou algum tempo na Corte. Ouviu histórias sobre todos.
Sabe que tipo de homens são. Pois foram esses amigos íntimos que Isabel
escolheu ao chegar à Corte e dos quais nunca mais se separou. Os rumores se
espalharam... especialmente quando o marido dela morreu. Até hoje comenta-
se que Isabel envenenou o marido porque o infeliz se opunha ao estilo de vida
que ela levava abertamente na Corte, com suas companhias masculinas.
Aimery ouvira os mexericos, mas preferira ignorá-los. Isabel era nova e
muito rica, objeto fácil para se tornar alvo de inveja. Entretanto, não podia
ignorar o que a irmã estava lhe dizendo agora.
— Isabel vive com Eustache d'Alembert, debaixo do nariz da jovem esposa
dele e debaixo do nariz do futuro noivo. Todos sabem que Isabel é amante de
Eustache há anos. Na verdade foi o conde quem decidiu dar a festa.
— Que festa?
— A festa para celebrar seu noivado.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 51

— Lady Isabel e eu ainda não estamos noivos.


Minerve desconsiderou o comentário, ansiosa para terminar a história.
Sentia-se péssima por tocar no assunto, mas jamais enganaria o irmão.
— Foi um escândalo. Dar uma festa para uma viúva à beira de se casar
outra vez é algo escandaloso, mesmo em Paris. Principalmente em se tratando
de uma mulher como Isabel, que vive maritalmente com um homem casado. —
Minerve abaixou a voz, aflita. — Quisera que uma outra pessoa estivesse lhe
contando tudo isso. Deus sabe que eu não queria fazê-lo. Todavia, se você
insiste em se casar com Isabel, é melhor estar com os olhos bem abertos e
saber o que esperar.
— São mexericos.
— Eu estava na Corte. Sei o que aconteceu. Você duvida da minha
palavra?
— Fale-me da tal festa.
— Aconteceu tarde da noite. No salão principal do Louvre. Isabel estava
presente. Eustache estava presente.
— E você?
— Somente no final.
— Para espionar Isabel?
Minerve não se abalou. Tampouco desviou o olhar. Altiva, enfrentou o
irmão.
— Estive presente para proteger seus interesses. Conhece-o bem. Isabel
não é o que você gostaria de encontrar numa esposa.
— Fale-me da festa — Aimery repetiu.
— Deveria ser uma bacanal — explicou Minerve. — Espelhada nas orgias
da Grécia Antiga. E, como era de se esperar, sendo Baco o deus do vinho, a
bebida jorrou. As mulheres compareceram fantasiadas de ninfas, os homens,
de sátiros. Porém, Guy de Guinne e seis amigos decidiram que meras fantasias
não bastariam. Por que se fantasiar, quando podiam pintar o corpo nu com
resina e colar pêlos de bode nos lugares certos? Naturalmente esses homens
estavam mascarados, mas ninguém tinha dúvidas sobre suas identidades.
Claro que decidiu-se pela não utilização de tochas, sabendo-se que resina é um
material altamente inflamável. Uma simples faísca poderia consumir aqueles
com os corpos pintados em questão de minutos.
— O que aconteceu então? — o conde a interrogou, vendo-a hesitar.
— Completo desastre. Apesar dos avisos contra fogo, Eustache d'Alembert
resolveu adentrar o salão carregando um archote. Uma centelha tocou sir Guy
e logo ele, e outros cavalheiros, eram engolfados pelas chamas. Apenas dois
do grupo escaparam. Um pulando num barril de água, outro escondendo-se
debaixo da saia de Sybille Thierry. Senão esses dois teriam morrido da mesma
maneira horrível que os companheiros. — Minerve calou-se por um instante, os
olhos cheios de lágrimas. — Foi uma cena macabra. Mesmo os que não haviam
comparecido à festa pavorosa escutaram os gritos dos moribundos. Esses
gritos pareceram ecoar pelos corredores do palácio por dias a fio. O rei ficou
cheio de ódio. Tanto pelo ultraje da festa, quanto pelas conseqüências
funestas. Mandou que Isabel partisse da Corte e a baniu para Picardy, onde
permaneceria sob a guarda de Sire de Coucy. Eustache d'Alembert a
acompanhou. Isabel não tem nenhuma intenção de abrir mão do amante,
Aimery. o rei não foi capaz de obrigá-la a romper a relação e você tampouco o
será. O caso daqueles dois já ultrapassou a fase do escândalo e evoluirá até se
transformar em tragédia.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 52

Suas passadas rápidas o afastavam do castelo, como se,


inconscientemente, quisesse pôr uma grande distância entre si e o que a irmã
lhe contara.
"Até se transformar em tragédia", lembrara.
Entretanto, como Minerve poderia entender sua determinação em se casar
com Isabel de Valois? Ao terminar o relato tétrico, Minerve o fitara cheia de
expectativa antecipando sua indignação, convencida de que iria repudiar
Isabel, negar-se a tomá-la como esposa.
Todavia, precisava ir até o fim. Aquele noivado fora o último desejo de seu
pai no leito de morte, a maneira que o falecido conde de Segni encontrara para
mostrar à sua ilustre família que ele também era poderoso o suficiente para
aliar o filho à mais nobre família da França.
Aimery lembrava-se do pai. Vira-o, inúmeras vezes, curvar-se sob o peso
dos insultos sutis do ramo mais poderoso do clã, que o tratava como a um
subalterno. Lembrava-se das roupas desbotadas, dos piores lugares à mesa,
dos convites para as recepções importantes que nunca chegavam. Recordava-
se de tudo. E embora nada disso tivesse importância para Aimery, lamentara-
se pelo pai e jurara vingá-lo.
— E você me vingará — Aldo dei conti de Segni repetira dezenas de vezes,
enquanto se afogava no vinho.
Depois da honra de se tornar cavaleiro, o casamento com Isabel de Valois
parecera o próximo passo lógico no caminho escolhido. Mesmo antes da
ascensão do tio ao trono, Isabel já possuía prestígio e poder, o sobrenome
Valois um dos mais proeminentes da França. Entretanto Minerve, com o apoio
da mãe, recusara o irmão dissoluto de Isabel para se casar com Huguet de
Montfort. Em memória ao pai, iria se casar com Isabel. Ela seria sua!
Furioso, Aimery continuou caminhando a esmo, sem saber para onde
estava indo. Sabia apenas que Minerve o deixara profundamente irritado com
suas palavras sombrias.
Era fácil para a irmã falar, como fora fácil abandonar o dever familiar e se
casar com Huguet de Montfort, um conde destituído de fortuna. Que ele se
tornara esplêndido guerreiro e herói fora somente um golpe de sorte. As coisas
poderiam ter sido muito diferentes. Como haviam sido para seu pai. O que
Minerve lhe contara realmente não deveria incomodá-lo. De fato, não o
incomodava. Sempre soubera a verdade sobre o caráter de Isabel. Não tudo,
talvez, mas o bastante. E sempre a aceitara como ela era, assim como
pretendia ser aceito.
Sua chance de vingar as humilhações sofridas pelo pai e de ter acesso ao
poder viria através da união com Isabel de Valois e, por todos os santos, não
tinha a menor intenção de permitir que os preconceitos da irmã o detivessem.
Minerve sempre detestara Isabel. Sua irmã jamais aprovara nenhum dos
Valois. Ele, por outro lado, era um guerreiro um cavaleiro contratado por reis e
barões feudais para defender seus interesses. Raramente teria tempo, ou
vontade de permanecer na França por um longo período, na companhia da
esposa. Tão logo engravidasse Isabel, certificando-se, é claro, de que seria um
legítimo herdeiro dos Segni, cuidaria da própria vida e a mulher poderia fazer o
que bem quisesse. Muitos casamentos nobres funcionavam assim, baseados
em deveres familiares, em aquisição de bens. Pois o seu não seria diferente.
Envolvido com seus pensamentos e ainda fervendo de raiva, Aimery
demorou a escutar o ruído suave de água caindo. De repente, estancou,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 53

perguntando-se onde fora parar. Perdera-se dentro de sua propriedade. Mas,


subitamente atraído pelo som musical, caminhou na direção da cascata.
A terra foi se tornando macia e úmida à medida que se aproximava do
lago escondido numa pequena clareira, protegido por árvores frondosas. A
folhagem densa filtrava os raios de sol e a temperatura, quase escaldante em
outros lugares, ali tornava-se agradável.
A princípio, Aimery não notou a presença de Claire. Era óbvio, porém, pela
imobilidade da noviça, que ela o escutara chegar e que tentava passar
despercebida.
— Claire — o conde a chamou baixinho.
No meio do lago, com água até os joelhos, a túnica branca flutuando à sua
volta, Claire resplandecia. Os cabelos ruivos, magníficos, caíam soltos sobre as
costas, quase tocando a água. Isabel também tinha cabelos vermelhos, mas os
dela não possuíam essa beleza, esse esplendor. Apesar do evidente embaraço,
Claire não cruzou os braços sobre os seios, cobertos apenas pelo tecido fino da
túnica. E ele a respeitou por isso. Sabia o quanto a jovem devia desejar se
resguardar. Qualquer mulher com um corpo tão voluptuoso, automaticamente,
procuraria disfarçar a seminudez. Ainda que virgem e inocente, Claire, levada
pelo instinto, pela intuição, imaginaria o que a visão de um corpo como o seu
provocaria em um homem.
Ela não se cobriu. Ela não desviou o olhar. Ela não se moveu. Limitou-se a
permanecer imóvel.
— Claire — Aimery repetiu. — Você estava nadando?
— Eu não sei nadar. Eu...
— Então vou ensiná-la.
A noviça abriu a boca para protestar. Porém, antes de conseguir emitir um
único som, o conde já estava dentro da água, inteiramente vestido.
— Não vou machucá-la.
Aquele sempre fora um dos recantos favoritos de Claire. Freqüentemente
fugia para aquele oásis. Nos dias muito quentes, para se refrescar. Ou quando
desejava ficar sozinha. Descobrira-o quando criança e jamais falara de sua
existência a quem quer que fosse. Nem a madre Helene, nem a padre Pedro.
No verão, refugiava-se ali para escapar do calor. No inverno, vinha admirar o
lago congelado e sentir o vento batendo em suas faces. Sua vida era tão
movimentada, mesmo no convento, que ansiava ter um lugar, qualquer lugar,
que pudesse chamar de seu.
Deus ouvira suas preces. Ele lhe respondera conduzindo-a à pequena
clareira.
Sempre estivera sozinha ali. Até aquele momento.
Aimery de Segni, lorde de Montsegur, aproximou-se sorrindo, os olhos com
azuis brilhando como pedras preciosas. E há tempos sonhava aprender a
nadar.
— Primeiro você precisa aprender a flutuar — ele falou a perna musculosa
roçando a sua sob a água. Gentilmente Aimery a segurou pela cintura,
induzindo-a a deitar-se na água. Sentindo-a ficar tensa, disse baixinho:
— Confie em mim.
"Confiar? Não posso. Não farei", pensava.
Trêmula, arrepiada da cabeça aos pés devido à pressão das mãos fortes
nas suas costas, Claire acabou cedendo. Desde sempre quisera aprender a
nadar. Essa era sua chance.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 54

Abandonando-se às mãos do conde de Segni, que a amparavam com


firmeza, Claire boiou. Era como se o lago a abraçasse, como se seu corpo se
fundisse à água. E, mais delicioso do que tudo era o toque de Aimery.
O toque dele não era o que esperara de um toque masculino. Não havia
nada de rude, de áspero. Os dedos longos em suas costas a convidavam a
relaxar. De olhos fechados, e pela primeira vez em sua vida, sentiu-se salva e
segura.

CAPÍTULO VI

Não poderia durar. Não deveria durar. Claire compreendeu a verdade dos
fatos enquanto corria pela floresta de volta ao castelo comandado por Aimery
de Segni. A fortaleza dele. Não dela. Se fosse uma mulher sensata, lembrar-se-
ia disso sempre. O que lhe dera na cabeça para se permitir ser tocada daquela
maneira? Para deixá-lo ver os contornos de seu corpo sob a túnica molhada?
Porque, sem dúvida, o conde vira suas formas, centímetro por centímetro. Mas
quisera aprender a nadar. Adorara flutuar na água.
Quando Aimery dissera: "Nós nos encontraremos aqui amanhã. Vou lhe
ensinar mais", simplesmente concordara, saíra do lago e se escondera atrás de
um arbusto para se secar e vestir-se.
Ao terminar de se arrumar o conde já havia sumido, tão silenciosamente
quanto surgira. Claire sentira-se grata por estar sozinha. Teria tempo para
pensar, para tentar começar a entender a natureza das emoções que a
sacudiam antes de chegar ao castelo.
Não poderia... não deveria... não iria durar.
Desta vez as palavras soaram em sua mente na voz de padre Pedro, que
as repetira incansavelmente durante os muitos anos dedicados a ensiná-la.
Amara aquelas palavras amara sua pureza, tão digna dos Perfeitos.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 55

Entretanto, nos últimos tempos, essas palavras estavam sendo


substituídas por outras.
"Descubra tudo o que puder. Use seu poder".
Sem dúvida poderia descobrir mais se ficasse sozinha com o conde de
Segni no lago, do que durante as sessões de interrogatório, quando o salão
ficava lotado de gente. As aulas de natação seriam uma forma de obedecer ao
padre Pedro e de ajudar a causa dos cátaros, na libertação de William
Belibaste.
Todavia, não fora por este motivo que concordara com a sugestão de
Aimery para se encontrarem na clareira no dia seguinte. Era mulher o
suficiente para compreendê-lo. O conde oferecera-se para ensinar algo que ela
sempre desejara experimentar, algo que sempre desejara aprender. Pela
primeira vez escolhera fazer alguma coisa sem discutir o assunto com padre
Pedro e isso a assustava. Também decidira não abordar o assunto. No íntimo,
sabia que o monge não gostaria do novo rumo dos acontecimentos. Os outros
cátaros, talvez até mesmo madre Helene, não se importariam. Mas padre
Pedro sim.
Durante o resto da tarde, imagens da aula de natação inundaram-lhe a
mente. Claire tentou evitá-las entregando-se à função de escriba. Porém, por
mais que se esforçasse para se concentrar na transcrição dos interrogatórios,
qualquer coisa parecia distraí-la. E outra vez descobria-se pensando momentos
passados no lago, nas mãos de Aimery segurando-a para que flutuasse.
"Que será que ele pensa de mim?"
Não, aquilo nunca daria certo! Precisava dar um jeito de controlar-se e os
seus pensamentos. Se não era capaz de dominar sua mente, então que
dominasse as próprias ações. Ensinamentos de padre Pedro. Treinada na arte
do Poder, Claire sabia ser necessário conduzir suas tarefas sem demonstrar
qualquer agitação interior. Não podia se deixar consumir pelas sensações
esquisitas que a perturbavam. Melhor ocupar a mente com o trabalho hora
após hora do que ter a oportunidade de enxergar algo que não queria ver.
Sozinha em seu quarto, ela se dedicou a arrumar as roupas que o conde
de Segni providenciara no pequeno armário. Ele não lhe dera nada ostensivo,
nada extravagante, nada que não pudesse ser usado por uma donzela comum,
mas que não estivesse destinada a ser Perfeita. Entretanto, cada peça de
roupa a inquietava. As túnicas eram de cores variadas. Azul, amarela, verde
como o lenço que trazia consigo, no bolso do avental. Não havia nada branco, a
única cor que se acostumara a usar.
Depois de arrumar o armário, ainda movida por uma energia nervosa,
apanhou a vassoura e varreu todo o aposento, até deixá-lo brilhando. Não era
possível que em um ambiente imaculadamente limpo imagens de Aimery de
Segni ensinando-a a flutuar no lago, continuassem a persegui-la.
Então, sentindo-se como uma ladra, aproximou-se da porta e encostou o
ouvido na madeira maciça. Nenhum som vinha do corredor, sequer os ruídos
das servas que deviam estar iniciando os preparativos para a refeição noturna.
O vasto castelo dava a impressão de ter adormecido, vencido pelo calor
opressivo do fim da tarde.
A fortaleza de Montsegur estivera sem um senhor por tantos anos que,
provavelmente, os jardins e as hortas andavam negligenciados. Ainda assim,
existia a possibilidade de encontrar lá o que precisava: tomilho doce, pó de
rosas e alfazema. A mescla dessas ervas emprestaria frescor ao seu quarto e
lhe proporcionaria algo mais também. Tomilho para doçura, rosas para paz e
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 56

alfazema para cura. Talvez pudesse sentir na alma os efeitos dessa mistura.
Mas bem no fundo suspeitava de que não haveria remédio para o
encantamento do qual caíra vítima no lago, quando experimentara o toque de
Aimery de Segni.
"Que será que ele pensa de mim?"
Os jardins estavam em pior estado do que imaginara, ervas daninhas
sufocavam o que antes devia ter sido uma sucessão de belos canteiros.
Entretanto, aqui e ali, resistindo ao avanço do mato, reinavam triunfantes o
que buscava. As rosas perfumadas, alguns gerânios coloridos, singelas
violetas.
Emocionava-a testemunhar tamanha determinação de viver. Iria cuidar
dessas flores, livrá-las dos parasitas, adubar a terra. De repente o repicar do
sino do Santa Madalena lembrou-a do avançado da hora. Admirada porque o
tempo passara sem que percebesse, apanhou o cesto com as flores e ervas e
correu de volta para o castelo, cantarolando no caminho. A excursão ao jardim
fora benéfica. Seu humor melhorara muito. Estava cansada, as mãos
encardidas. Porém tinha conseguido se livrar dos efeitos da aula de natação.
Enfim sentia-se calma e em paz. Reconhecia-se outra vez.
Claire atravessou os longos corredores do castelo sem cruzar com
ninguém. Felizmente sua ausência passara despercebida. Segurando o cesto
de vime com firmeza, subiu a escada de pedra às pressas, pedindo aos céus
que o conde não a visse. Se ele não a visse, se esqueceria dela e então, talvez,
ela poderia esquecê-lo.
Ao entrar em seus aposentos, ofegante e aliviada, falou baixinho,
fechando a porta:
— Pelo menos estou sozinha aqui dentro e posso ser eu mesma.
— Por acaso você é Claire de Foix?
Uma voz feminina, clara e vibrante, ecoou de dentro da penumbra.
Assustada, Claire virou-se rapidamente na direção do som e largou o cesto, as
flores e ervas se esparramando pelo chão.
— A culpa é minha — disse a voz gentil. — Vou apanhar tudo, não se
preocupe.
— Não, a culpa foi minha. Deixe-me cuidar disso.
— Oh! — as mulheres exclamaram em uníssono quando suas cabeças
colidiram. No afã de apanhar as flores, as duas haviam se abaixado ao mesmo
tempo.
— Claire de Foix? — repetiu a estranha aparição, levantando-se com
alguma dificuldade. Pela primeira vez, Claire conseguiu enxergá-la. Já num
estágio avançado de gravidez, a desconhecida tinha olhos incrivelmente azuis
e cabelos dourados como raios de sol. — Sou Minerve de Montfort, irmã do
conde de Segni.
Ela é igualzinha ao irmão, a noviça pensou, admirada. a outra mulher pôs-
se a rir de repente, tornando a se sentar no chão. E ria tanto, com tanta força,
que a barriga balançava de uma forma assustadora. Apavorada, Claire
interveio.
— Você precisa parar! Pare de rir tanto. Você pode se machucar, alguma
coisa terrível pode acontecer.
— Nada terrível pode acontecer comigo, apenas dar a luz — respondeu a
fisicamente delicada lady Minerve. — Esse não é meu primeiro filho. Mas o
quinto!
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 57

Todavia, percebendo a expressão alarmada da jovem escriba, Minerve


conteve o acesso de risos, esforçando-se para se recompor.
— Você é linda — disse Claire, depois de alguns segundos de silêncio. — E
se parece demais com seu irmão. Claro que sabe disso. Com certeza as
pessoas comentam a extraordinária semelhança.
— Hum, acho que não somos tão parecidos assim agora — riu-se Minerve,
apontando para o abdômen dilatado. — Todavia ainda persiste alguma
semelhança. Recebo suas palavras como elogio. Francamente, considero meu
irmão muito bonito. Na verdade, ele só perde em beleza para meu marido. A
propósito, perdoe minha falta de boas maneiras por esperá-la em seus
aposentos. Aimery garantiu-me que você não se importaria e eu tinha medo de
que tornássemos a nos desencontrar. Venho tentando conhecê-la desde minha
chegada. Acho maravilhoso eles terem achado uma mulher para ocupar o
cargo de escriba.
Claire estendeu a mão para ajudar Minerve a levantar-se. porém acabou
perdendo o equilíbrio e caindo sentada no chão. As duas puseram-se a rir outra
vez, até ficarem com lágrimas nos olhos.
— Por Deus! — exclamou a condessa de Montfort, encontrando os olhos.
— Não rio tanto desde que cheguei a vi Montsegur. Nosso encontrão
desastrado só me fez bem! Sei que foi errado de minha parte vir esperá-la em
seu quarto. Acabei assustando-a. Por favor, perdoe minha intrusão. Por outro
lado, rir acabou sendo benéfico para meu filho.
Claire levantou-se e ajudou a outra a se erguer cuidadosamente.
— Mas você está tão grávida! — exclamou sorrindo.
— Estou enorme —, concordou a condessa de Montfort.
— Em especial porque a criança só nascerá daqui a dois meses.
— Dois meses? Você dá a impressão de estar pronta...
— Pronta para parir gêmeos? — Minerve seguiu Claire até o pequeno sofá
perto da janela. Embora houvesse velas nos castiçais de estanho, não valia a
pena acendê-las, pois o céu continuava claro. — Sinto-me tão imensa que se só
nascer uma criança receio que todos nós levaremos um susto.
Uma batida à porta e uma criada entrou para acender as velas. Notando a
presença da jovem condessa de Montfort, a serva fez uma reverência e disse
que logo estaria de volta com uma vassoura para varrer as ervas espalhadas.
— Você realmente precisa me perdoar — insistiu Minerve, quando a
empregada se retirou. — Sei que foi rude de minha parte me aventurar em
seus aposentos sem sua permissão. Mas eu estava tão determinada a conhecê-
la! Desde que cheguei de Paris, quase não vou ao salão onde estão sendo
conduzidos os interrogatórios de William Belibaste. c, como você, faço as
refeições em meus aposentos, sozinha, sei que você está ciente do quanto
meu irmão a admira, e meu marido também. Ambos consideram seu domínio
do latim extraordinário.
— Para uma mulher — disse Claire.
— Para qualquer um. — Minerve ajeitou-se confortavelmente no sofá. —
Eles a julgam uma pessoa muito interessante. Incomum. E Aimery também me
falou que você era linda.
— Fico lisonjeada e agradeço o cumprimento. Mas seu irmão exagerou um
pouco ao me descrever.
— Oh, não — discordou Minerve. — Meu irmão nunca exagera. Diz apenas
o que acha ser verdade. Aimery falou que talvez você gostaria de me fazer
companhia durante algumas horas do dia. Não tenho amigas aqui. Pensei que
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 58

poderíamos ser amigas e trabalhar em nossos bordados juntas. Sou um


desastre no manejo da agulha. Há dez anos venho me esforçando para
terminar uma tapeçaria.
Pela segunda vez naquele dia Claire abriu a boca para dizer "não" a um
Segni e descobriu-se concordando com a sugestão de Minerve.
— Não tenho a menor habilidade com bordados, mas eu poderia trabalhar
na finalização dos documentos referentes aos interrogatórios. Ainda não
acrescentei cores, nem retoquei as letras. Eu poderia fazer isso na sua
companhia. De fato, creio que seria bom. Às vezes me sinto...
— Solitária — Minerve completou, compreendendo perfeitamente o
sentimento da outra. — Eu também me sinto só. Acho que seria um ótimo
arranjo para nós duas. Isto e, se crianças não a incomodarem.
— Na verdade nunca convivi com crianças, mas não creio que vá me sentir
incomodada.
— Meus filhos talvez não sejam uma boa maneira de iniciar tal
convivência. Confesso-lhe, eles são tão agitados que cada um vale por dois.
Entretanto, são amorosos e educados. — Suspirando fundo, Minerve levantou-
se. — Então vou esperá-la amanhã, no solário, depois que você terminar seu
trabalho com o bispo Fournier. Ah, eu ia quase me esquecendo. Meu irmão
pediu-me para convidá-la para uma festa amanhã à noite no salão principal. O
conde de Foix estará presente e Aimery achou que seria interessante você
comparecer. — Por um longo instante a condessa de Montfort fitou a jovem
escriba, os olhos azuis e penetrantes dando a impressão de lhe enxergarem a
alma. — Sei que meu irmão gosta de você, Claire de Foix. E eu também. Espero
que nós duas nos tornemos amigas.
"Você é uma Segni, casada com um descendente de Simon de Montfort",
pensou Claire com uma ponta de amargura. "Nunca poderemos ser amigas".
Todavia, em voz alta, não disse nada.
Claire tinha plena consciência de não ser possível participar de qualquer
festividade no salão principal. Há anos fora preparada para abraçar a fé catara.
E, sobretudo, estava destinada a se tornar a próxima Perfeita. Sagrar-se
sacerdotisa continuava sendo seu objetivo mais importante. Aliás, sua vida
resumia-se a isso. O problema era que, nos últimos dois dias, já não tinha tanta
certeza do que queria para si. Não deveria passar horas na companhia de
Aimery de Segni. Todavia, desejava aprender a nadar. Não deveria comparecer
a festa em honra ao conde de Foix, todavia ansiava conhecê-lo. Bem no fundo,
alimentava uma tênue esperança de que o conde soubesse alguma coisa a
respeito de seus pais alguma coisa que padre Pedro, como um simples
peregrino de passagem por Foix, jamais pudera saber.
Precisava muito de padre Pedro naquele momento, de seus conselhos, de
sua certeza sobre qual caminho seguir. O monge estava no convento, perto
dali, porém tinha a sensação de que uma montanha os separava. Como uma
insana, flutuara nos braços do conde de Segni. Falara de amizade com uma
odiada Montfort. Entretanto, no íntimo, permanecia urna Perfeita e estava
determinada a agir como tal.
Mal havia terminado a sessão de interrogatório; Claire não esperara que o
lorde de Montsegur a procurasse. Preferira tomar a iniciativa para resolver logo
a questão que a afligia.
Parecendo animado, o conde recebeu-a com um largo sorriso.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 59

— Que surpresa agradável, donzela de Foix! Imagino que você tenha


dormido bem ontem à noite. Nadar é um ótimo exercício, deliciosamente
cansativo.
— Dormi bem, obrigada. — Sem rodeios, ela foi direto ao assunto. — Lady
Minerve me informou que você exige minha presença no banquete de hoje à
noite para o conde de Foix. Suplico-lhe que revogue sua ordem, sir. É
impossível para mim participar de quaisquer festas. Você deveria sabê-lo.
Num gesto natural, ele a segurou pelo braço e a conduziu para longe da
multidão.
— Não posso acreditar que minha irmã tenha lhe dado uma ordem, ou
feito exigências em meu nome. Minerve devera receber ordens e abomina
ainda mais passá-las adiante. Acenas pedi que você compareça a
comemoração em honra conde de Foix, que veio a Montsegur pagar o dízimo
anual. Achei que você, natural de Foix, gostaria de participar do banquete. O
abade do mosteiro Santo Ambrósio estará presente. Também convidei a
abadessa de seu convento.
— Madre Helene? — indagou Claire, imediatamente alerta. — Ela virá?
— A abadessa ainda não confirmou, mas estou aguardando-a. Será um
jantar simples, não uma festa de gala. O conde de Foix surpreendeu-nos,
aparecendo pessoalmente para ofertar o dízimo. Creia-me, não lhe dei ordem
nenhuma. Você interpretou mal minha irmã.
— Lady Minerve foi gentil comigo. Não me deu ordem alguma. Peço-lhe
desculpas por ter usado essa palavra. Empreguei-a somente porque pensei que
sua irmã estivesse expressando seu desejo.
— Desejo é uma palavra que posso aceitar — concordou Aimery. — Eu
desejo vê-la no banquete dessa noite. De fato, desejo muito. Creio que você se
divertirá bastante na companhia de Minerve.
Na verdade, Claire partilhava dessa mesma opinião. Todavia ainda lutava
contra a teia de situações sedutoras, contra o charme envolvente daquele
homem.
— Não posso freqüentar banquetes. Você sabe muito bem que sou
prometida à Igreja.
Mesmo a seus ouvidos a desculpa soou esfarrapada e repetitiva. Com
certeza sua devoção à vida monástica fora Posta em dúvida depois do que
acontecera no lago.
Atento a sua hesitação, Aimery aproveitou a vantagem e a pressionou.
— Você não será a única religiosa presente. Tomei as iniciativas
necessárias para protegê-la diante do mundo. E a propósito, você ainda não fez
os votos definitivos, ainda não tomou o hábito de freira. O noviciado, pela
própria definição do termo, é um período de experimentação. Se a sua vocação
for verdadeira, não terá nada a temer de uma simples festa.
— A minha vocação é verdadeira — devolveu Claire, futura profetiza dos
cátaros. — Uma vocação que não necessita de sua anuência ou de seu apoio,
Aimery de Segni.
— Veremos.
"Adorável", ele pensou, observando-a afastar-se. E tão diferente do que
esperara. No início, a provocara apenas por brincadeira, para espantar o tédio.
Mesmo quando lhe dera o lenço de seda de presente, quisera somente fazê-la
perder a compostura, obrigá-la a se lembrar dele quando não estivesse por
perto. Não conseguindo acreditar que uma criatura tão linda houvesse
escolhido a vida monástica de livre e espontânea vontade, decidira desvendar
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 60

o mistério que a cercava. A mudança acontecera quando...? Quando a vira


ameaçada pela boneca de cera? Quando a levara para morar no castelo?
Não, a mudança ocorrera no lago. Quando os raios de sol a tinham
envolvido como um halo, quando os cabelos vermelhos se espalharam sobre a
água como um manto de seda. Percebera muito da verdadeira natureza de
Claire de Foix naquele momento. Muito mais do que a jovem noviça jamais
poderia imaginar. A maneira inocente como ela se abandoara em suas mãos,
não entrando em pânico sequer quando soltara por alguns segundos, para que
boiasse sozinha. Na alma de Claire havia uma determinação férrea, como se
soubesse exatamente o que estava fazendo, e por quê. De repente, invejou-a
por isso. Tão diferente de Isabel. "Que será que ela pensa de mim?", Aimery se
perguntava.
Os trabalhos daquela tarde foram morosos. Jacques Fournier conduziu um
interrogatório arrastado, querendo de Arnold Sicre todos os pormenores
relativos ao modo como traíra William Belibaste. Diligentemente Claire tomava
notas, nunca levantando a cabeça, temendo cruzar o olhar com o de um certo
alguém. E fazia planos. Padre Pedro poderia salvá-la do perigo iminente, assim
como a salvara tantas outras vezes no passado. Precisava somente dar um
jeito de combinarem um encontro. Padre Pedro lhe diria como agir. Eles
sempre tinham sido como pai e filha. O velho monge não a abandonaria a sua
aflição.
Assim, quando a ofegante donzela de Foix abriu a porta do local secreto
onde os cátaros se reuniam, padre Pedro já a aguardava. Em poucas palavras,
expôs o que a preocupava.
— Mas claro que você deve comparecer ao banquete em honra ao conde
de Foix — o templário falou sem vacilar. — Está fora de questão sua ausência.
Trata-se de uma oportunidade maravilhosa, de uma oportunidade única. Os
outros concordarão comigo. Mesmo Helene perceberá as vantagens.
O conde de Segni convidou a abadessa também.
— Interessante. — Padre Pedro desviou o olhar. — Mas nossa querida
Helene tem andado muito ocupada ultimamente. Duvido que possa
comparecer. Sua presença bastará para o bem da causa. A propósito, você se
tornou a favorita do conde?
— Favorita? — repetiu Claire, desconcertada.
— O lorde de Montsegur parece estar muito interessado em você.
"Ele me chamou de amiga. Ofereceu-se para me proteger". Todavia Claire
não partilhou seus pensamentos com o monge.
— O óbvio interesse do conde por você já está sendo comentado em todo
Montsegur. Ele deu um passo muito indiscreto ao tirá-la do convento e levá-la
para o castelo. Uma atitude assim só pode fomentar mexericos, especialmente
em um lugar pequeno. Toda a Languedoc está curiosa quanto às intenções de
Aimery de Segni. As especulações correm soltas. Alguns dizem até que ele vai
querer tomá-la para amante. Calma, criança, não seria a primeira vez que o
lorde de um castelo buscaria uma amante entre as virgens de um convento.
— Aimery não é assim — disse Claire num impulso, não havendo
pretendido chamá-lo pelo nome de batismo. — Ele não iria querer
comprometer sua nova posição como lorde de Montsegur.
— Não que Aimery de Segni iria tê-la — sossegou-a padre Pedro, dando-
lhe um tapinha na mão. — Claro que isso jamais aconteceria. Você o impediria.
Contudo, ele deve pensar que tal coisa seria possível. É de conhecimento geral
que os homens são muito mais ardentes na perseguição do que na captura.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 61

Você precisa somente manter o interesse dele vivo, usá-lo para atingir nossos
fins. Seria uma situação favorável para a libertação de William Belibaste.
— Os outros não vão concordar — Claire retrucou, angustiada. — Roger,
Guy e Estoril vão se opor à idéia. A abadessa Helene não concordará.
— Já não importa se Helene concorda ou não. E os outros não precisam
saber. Isto é, só saberão o que você lhes contar. — Padre Pedro puxou o banco
para mais perto de Claire, porém a noviça se levantou e começou a andar de
um lado para o outro, atordoada.
"Amigos", Aimery dissera. Mas seria isso o que ela realmente queria?
Amizade?
Imagens do conde vieram-lhe à mente. O sol batendo em seus cabelos, o
lenço de seda que ele lhe dera, o corpo musculoso dentro do lago.
— Ainda que os outros soubessem de tudo, não teria importância —
insistiu o monge. — Você é uma Perfeita e qualquer coisa que faça visa o bem
da causa catara. Você não continua dedicada ao nosso estilo de vida? Não foi
escolha sua?
Minha escolha. "Minha escolha?", começava a duvidar.
— Está errado. Está errado usar outra pessoa para atingir nossos próprios
fins — Claire afirmou.
Por um instante padre Pedro fitou-a assombrado. Então abafou o espanto
assumindo a expressão benigna de sempre.
— Você se engana ao pensar que os outros não concordarão comigo.
Concordarão sim, você verá.
— Madre Helene também? — Claire balançou a cabeça. A abadessa nunca
concordará com seus motivos, padre.
ela nunca concordaria em me ver toda enfeitada e levando uma vida
mundana. Isso vai contra tudo aquilo em que acreditamos.
— Não tem importância — o monge devolveu, áspero. — Importa apenas
que prevaleçamos. Helene é tão devotada à nossa causa quanto eu. Saberá
que para vencermos teremos que nos adaptar à certas circunstâncias. O
interesse do conde de Segni por você é evidente — prosseguiu padre Pedro em
um tom mais ameno. — É seu dever manter esse fogo ardendo até que a causa
dos cátaros seja beneficiada. O que importa você usar roupas finas uma única
noite ou mesmo permitir que ele a beije?
— Beijar-me? Milorde não se mostrou interessado em mim desta maneira.
— Entretanto é o que acontecerá. O conde de Segni quer beijá-la e não
vejo problema em você conceder-lhe essa pequena vitória. Você prefere ter a
morte de William Belibaste na consciência simplesmente por que agiu de forma
egoísta, movida por escrúpulos tolos? Você é um instrumento. Você deve ir ao
encontro de Aimery de Segni porque o atrai e ele detém tanto informações
quanto o poder de que necessitamos. Você comparecerá à festa e
desempenhará o papel que lhe couber. Um decote mais acentuado, os cabelos
bem penteados... que mal pode haver nisso? Você ainda tem as ervas que lhe
dei, não é? Utilize-as para se proteger.
A confusão interior de que estava sendo vítima enfureceu Claire.
— Não farei nada disso! Por que eu deveria me enfeitar e comparecer ao
banquete? Por que você chegou a sugerir que Aimery de Segni poderá querer
me beijar? Os cátaros não precisam de ornamentos. Somos valorizados pelo
que somos, por nossa natureza espiritual. Não usamos nossos corpos para
seduzir.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 62

— Nesses tempos duros em que vivemos — retrucou padre Pedro,


igualmente furioso —, é melhor os cátaros guardarem as almas puras dentro
de corpos impuros. Dia após dia você documenta os interrogatórios. Ainda não
lhe passou nela cabeça que Aimery de Segni e os de sua laia condenariam a
todos nós, hereges, a arder na fogueira? Não, esses não são tempos de nos
apegarmos a noções ingênuas de eras passadas. Houve uma época em que os
cátaros governavam essas terras e contavam entre seus seguidores bispos e
nobres poderosos. Essa época passou. E só a traremos de volta à força. Meus
irmãos templários eram exatamente como você, inocentes e crédulos. Jamais
consegui convencer nosso prior, Jacques de Molay, que Felipe da França se
voltaria contra ele. "Sou amigo de Felipe. Sou padrinho da filha dele" — padre
Pedro imitou o falecido templário, num tom rude. — Tentei avisá-lo. Depois
tentei defendê-lo. Mas como se pode defender um homem que se recusa a
enxergar um perigo como real? Pois bem, Jacques acabou morrendo na
fogueira por sua estupidez, queimado diante do rei e do papa. Meu amigo
morreu amaldiçoando Felipe e sua família até a décima terceira geração. A
praga surtiu efeito, porém Molay não escapou da morte.
Padre Pedro abaixou a voz, parecendo muito velho e cansado.
Acredite-me Claire, juro pela alma de meu mais querido amigo. Se os
cátaros têm alguma chance de sobreviver, se algum dia esse movimento puro
ressurgir, será porque pendemos o máximo sobre nossos inimigos e usamos
suas fraquezas contra eles próprios. E guarde bem minhas palavras: as
fraquezas deles, não são as nossas. O que é mais importante para você: vestir-
se como freira ou salvar William Belibaste? Essa é sua única escolha. Pense
bem e responda-me. A vida de William Belibaste não vale uma pequena
mudança em seu vestuário?
Claire concordou. A cena no lago não lhe saía da cabeça. Já estava
mudada.
Padre Pedro estendeu a mão e soltou os longos cabelos da noviça.
— Então aprenda a ouvir a voz da razão. Você vai fazer exatamente o que
eu lhe disse. Enfeitice Aimery de Segni. Descubra o que puder e partilhe esse
conhecimento conosco. Ajude-nos da maneira que mais precisamos.
Outra vez Claire concordou. Porém, intimamente, já pensava na
mensagem que escreveria à madre Helene. Deixaria o bilhete na cela da
abadessa antes de voltar para o castelo.

CAPÍTULO VII

O pergaminho jazia dobrado sobre a cama imaculadamente arrumada de


Claire. Ansiosa para ler o bilhete, a noviça abandonou as penas e o tinteiro
sobre a cômoda e correu para apanhá-lo.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 63

Minha querida criança, rogo-lhe que se encontre comigo hoje à noite, no Roc,
logo depois que a última badalada do sino do convento soar. Tenho muita coisa
para lhe dizer. Sei quem colocou a boneca de cera no portão do convento e o
motivo. Descobri sobre o tesouro.

O bilhete não tinha assinatura. E não precisava de assinatura. Claire


crescera ao lado de madre Helene e reconhecia a caligrafia firme e bonita.
Pouca importância dava ao mito do tesouro, porém a boneca de cera a
assustara, quer o admitisse ou não. E perturbara Aimery também. Mas, como
viera a concluir depois, a boneca havia servido a seu propósito. Claire acabara
dentro das quatro paredes de Montsegur.
Esse fora o plano do autor daquela brincadeira asquerosa "Como madre
Helene chegara à essa mesma conclusão?" apreensiva, Claire desejava ir ao
encontro da abadessa imediatamente. Contudo, sabia a necessidade da
cautela. Se saísse do castelo naquele instante, notariam sua ausência. O conde
de Segni a queria no banquete em honra do conde de Foix e padre Pedro a
pressionara sem cessar, valendo-se de todos os argumentos possíveis para
impedi-la de recusar o convite. Se desaparecesse de repente, levantaria
suspeitas quanto a seu paradeiro. Não, melhor agir como a abadessa sugerira.
Encontrar-se-iam no local combinado, à hora planejada.
— Estou me preocupando à toa — Claire falou em voz alta, procurando
aquietar seus temores. — Se fosse urgente, madre Helene teria me pedido
para ir vê-la agora, neste exato momento. Deve existir uma razão para
aguardarmos até depois da última badalada do sino.
Tão absorta estava em seus pensamentos, que mal escutou a condessa de
Montfort entrar no quarto. Resplandecente em sua gravidez avançada, Minerve
usava uma túnica de seda vermelha, de corte reto e os cabelos, presos apenas
por uma fita estreita, caíam soltos sobre as costas como uma cascata dourada.
Um pequeno séquito de criados a seguia. Iam todos quase vergados sob o
peso da banheira de cobre, dos baldes de água quente, de um biombo de
madeira, de pilhas de roupas e um punhado de outros objetos que Claire não
conseguia sequer começar a identificar.
— Oh, desculpe-me! Sinto muito por estar atrasada — falou a condessa de
Montfort, agitada. — Meu filho mais velho, Rupert, queria de qualquer maneira
que eu lhe desse permissão para ser o escudeiro do tio Aimery nos próximos
torneios e, naturalmente, a resposta foi um sonoro "não". Fie é novo demais,
começou o treinamento de pajem há pouco. Depois, Edoard, meu segundo
filho, resolveu que eu devia lhe dar permissão para adestrar falcões e, claro...
— Minerve parou no meio da frase e riu com prazer. — Você não tem
absolutamente nenhum interesse nos meus percalços como mãe de um bando
de meninos. Você quer se vestir para sua primeira festa. E eu vim ajudá-la. —
Ajudar-me com o quê?
— Com os preparativos, ora. — Rapidamente Minerve instruiu os servos na
disposição dos objetos no quarto. — Ou como você poderia se aprontar para o
banquete dessa noite? Você não tem roupas adequadas.
— Tenho aquelas que sir Aimery me mandou — insistiu Claire.
— Meu irmão não sabe nada sobre roupas femininas. Por isso me designou
para auxiliá-la.
— Posso usar qualquer coisa. Não me importo com o que estou vestindo.
A condessa arregalou os olhos, incrédula.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 64

— Não se importa com o que está vestindo? Como? Toda mulher importa-
se com o que veste. Metade da diversão de uma festa é planejar o que
pretendemos usar. Já estou pensando nas roupas que mandarei fazer depois
que meu filho nascer. É uma distração. Todavia você passou a vida inteira num
convento, o que lhe dá uma boa desculpa por tamanho desinteresse. Após seu
banho, cuidaremos do resto.
Enquanto a condessa falava, as servas se encarregaram e encher a
banheira e dispor o biombo no lugar.
— Agora deixem-nos — instruiu-as Minerve. — Mas estejam de volta
dentro de uma hora. Teremos muito a fazer
"Uma hora para tomar banho", pensou Claire, pasma. "Impossível!"
Todavia, ao se aproximar da banheira, aspirou um perfume delicioso.
— Tem pétalas de rosas na água!
— E essência de rosas também! — Minerve entregou-lhe um sabonete
perfumado. — Tudo faz parte da magia feminina. Sei o quanto as freiras
preservam a modéstia. Assim, vou me sentar do outro lado do biombo e lhe dar
privacidade para banhar-se. Podemos conversar enquanto você se incumbe da
tarefa. Adoro conversar, como você já deve ter percebido.
"Bem, trata-se de algo novo, ao qual preciso se acostumar", concluiu
Claire, tirando a roupa. No convento, os banhos eram sempre rápidos, com
água tão gelada que a pele ficava toda arrepiada, mesmo no auge do verão. O
sabonete à base de gordura de ganso limpava bem, porém o cheiro era
horrível. Devagar, entrou na água.
— Acomodada? — indagou Minerve, depois de alguns segundos.
— Sim.
— Sei que nos tornaremos amigas — falou a condessa de Montfort,
sentada no sofá junto à janela. — Deus sabe que não tenho nenhuma amiga
neste fim de mundo.
— Eu também não — Claire surpreendeu-se dizendo. As duas mulheres
riram, cada qual de seu lado do biombo.
— Porém você precisa ignorar meus modos mandões — continuou
Minerve. — Meu irmão me chama de déspota, como se ele pudesse me criticar.
— Ela tornou a rir. Mas não Claire. — Aimery é imponente, às vezes dominador,
porque é um guerreiro. E porque é tão pressionado.
— Pressionado? — A jovem escriba ficou rígida. — Quem se atreveria a
coagir o conde de Segni?
— Nosso pai. Também conde de Segni. Chamava-se Aldo. Porém, não
sendo o primogênito, ao se casar com minha mãe não herdou um castelo. Os
dois se amavam desesperadamente, pelo menos no começo. Todavia as
respectivas famílias se opunham à união. Minha mãe era uma Trenceval, de
Languedoc, portanto portadora de um nome muito antigo. Os pais não a
queriam casada com alguém a quem consideravam inferior. Não importava aos
Trenceval que dois dos ancestrais de meu pai houvessem se tornado papas.
Aliás, este detalhe parecia não interessá-los, visto nutrirem simpatia pela velha
religião dos cátaros. Enfim, apesar da resistência inicial, meus pais acabaram
obtendo permissão para se casarem. Meu pai acalentava grandes sonhos, mas
faltava-lhe os meios necessários para realizá-los. Destituídos de herança, o
pouco dinheiro que possuíam era usado para manter meu pai na irmandade
dos cavaleiros. Naquela época, meu irmão, meus pais e eu morávamos numa
simples casa no campo. Foram muitas as vezes em que minha mãe se viu
forçada a realizar trabalhos braçais, como cozinhar e cuidar da horta, para
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 65

conservar nossas terras, enquanto meu pai saía em busca de aventura e


fortuna nas Cruzadas. Ele nunca conseguiu conquistar riqueza e posição.
Assim, em um determinado momento, transferiu suas ambições para Aimery e
para mim. Nós nos encarregaríamos de realizar seus sonhos.
Minerve calou-se por alguns instantes, as lembranças do passado
machucando-lhe a alma. Ao retomar a palavra, sua voz soou fria como aço.
— Aimery estava decidido a agradar nosso pai. Ele sempre foi assim,
desde menino. Você pode imaginar quão difícil é agradar um homem que
nunca se satisfaz com nada? Nosso pai queria, a qualquer preço, que Aimery
conquistasse tudo aquilo que ele não fora capaz. Fortuna, terras, castelos não
apenas na Itália, mas em Languedoc também. Aimery, dei conti de Segni
deveria se transformar no maior de todos os condes! A pressão era enorme,
contudo Aimery não desmoronou. Permitiu que os desejos de nosso pai
moldassem sua vida. De fato, nossa mãe sempre diz que Aimery só não
sucumbiu à peste porque se morresse desapontaria nosso pai.
— Aimery foi contaminado?
— Sim, e quase morreu — respondeu Minerve. — Éramos muito novos na
ocasião. Meu irmão tinha apenas oito anos e havia começado o treinamento
para escudeiro.
— Você não ficou doente também? Em geral o contágio é rápido e se
alastra como fogo na palha.
— Felizmente meus pais haviam me mandado para o campo pouco antes
do início da epidemia. Uma época terrível e, entretanto...
— Aimery sobreviveu.
— Um milagre — Minerve concordou. — E muito raro alguém sobreviver à
peste. Especialmente quando comentava-se que ele havia trazido a doença ao
retornar da corte de Amedeo de Savoy. Minha mãe atribuiu a cura de meu
irmão a uma novena a Santa Dorothea. Ela acreditava que por causa dessa
novena seu filho, seu único filho homem, fora salvo.
— Talvez tenham sido as orações, não a novena a essa santa em
particular.
— De qualquer maneira, as orações pareceram surtir efeito apenas em
prol de uma criança. A mesma graça não foi concedida a meu pai.
Um pesado silêncio se estendeu durante vários minutos. Claire não queria
ouvir essas coisas sobre Aimery de Segni. Não queria escutar histórias de sua
infância. De sua luta para vencer os desafios e atender às expectativas de um
pai ambicioso. Tudo isso o tornava real aos seus olhos.
— E eu não quero que ele seja real — Claire murmurou.
— Mas ele é real — afirmou Minerve. — Você precisa aceitar isso. Depois
da morte de nosso pai, foi como se Aimery assumisse todas aquelas ambições
desvairadas. Os erros do passado precisavam ser consertados. Meu irmão
devia conquistar castelo após castelo e devia conquistar Montsegur
simplesmente porque o povo de Languedoc desprezou nosso pai. Na realidade,
Aimery odeia essas terras, odeia a responsabilidade que essa fortaleza
acarreta. Ele deveria largar tudo e voltar para a Itália, onde se sente feliz. Deus
sabe que, por mérito próprio, possui muitas terras lá. Angustia-me vê-lo seguir
adiante, e mesmo vir a se casar, sem que nada disso valha o preço que irá
pagar.
— Mas devemos honrar a memória de nossos pais, devemos fazer o que
eles desejavam que fizéssemos e vingá-los — argumentou Claire.
— Seus pais estão vivos?
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 66

— Não. Eu tinha três anos quando morreram. Mal consigo me lembrar dos
dois. As recordações são vagas. Porém soube o que lhes aconteceu. Morreram
queimados.
— Houve um incêndio na sua aldeia? — A voz de Minerve soou cheia de
sincera compaixão.
— Não. — Sem saber por que se sentia impelida a fazer confidencias,
escutou-se dizendo: — Meus pais eram pobres. Considerados culpados de um
crime, acabaram executados. Pelo menos é p que me explicaram. Só que
ultimamente...
— Ultimamente?
— Minhas lembranças, apesar de nebulosas, têm sido diferentes daquilo
que me contaram como sendo a verdade. Admito que eu só tinha três anos na
época e não posso me recordar dos acontecimentos com exatidão. Mas nesses
lampejos de lembranças, vejo fogo em todos os lugares, não apenas ao redor
deles. Testemunhas não assistiam a cena. E testemunhas têm que estar
presentes nas execuções públicas. É uma exigência da Inquisição. Entretanto
sei que meus pais estavam sozinhos e foram surpreendidos pelo que houve.
Posso sentir na carne o choque, o medo de ambos. Se eles tivessem sido
julgados, com certeza esperariam tal fim. — Claire inspirou fundo, a água
subitamente gelada. Não gostava daquelas lembranças. Sempre as espantava.
— Eu era muito nova. Posso estar confundindo as coisas. Talvez tenha criado
essas imagens. Afinal, disseram-me que eu não estava presente quando meus
pais foram queimados. — Envolvendo-se em uma toalha, ela saiu da banheira.
— Pronta para começar a se arrumar? — perguntou Minerve, vendo-a
surgir de trás do biombo. Apesar de falar num tom alegre, os olhos da
condessa de Montfort revelavam preocupação. — Onde será que estão as
criadas? Precisamos dele todas agora. Escolhi algo maravilhoso para você. Algo
estonteante. Algo que, com certeza, você irá gostar. Vamos, vamos, mocinha,
não balance a cabeça assim. Entregue-se em minhas mãos. Ainda que só por
esta única noite.
Aimery esperara uma mudança em Claire. Na verdade, não tivera dúvidas
de que a veria muito diferente na festa. Afinal, como guerreiro, aprendera a
dar ouvidos à intuição, a pressentir uma mudança antes mesmo que esta se
manifestasse. Instintivamente soubera, desde o primeiro momento, que sob o
hábito engomado de noviça, sob a touca branca e disforme, existia uma
mulher belíssima, de curvas sinuosas e tentadoras.
Nada disfarçava o corpo esguio agora. Bastou entrar no salão, para Claire
de Foix roubar-lhe o fôlego. Com a altivez de uma rainha, ela parecia flutuar
acima dos outros convidados, absolutamente linda em sua elegante
simplicidade. Os cabelos ruivos caíam-lhe às costas em ondas suaves e
brilhantes, seguros por uma fina tiara de ouro. O vestido verde-musgo, de
corte reto e mangas compridas, acentuava a brancura da pele acetinada e
ressaltava a cor dos olhos opressivos. Claire não estava usando um modelo
ousado, sensual. Tampouco ostentava jóias, exceto a discreta tiara nos
cabelos. Entretanto, sua beleza clássica o fascinava. Simplesmente não
conseguia desviar o olhar da figura arrebatadora, sem se importar com o que
pudessem pensar a sei respeito, sem tentar reprimir a reação do próprio corpo.
Desejava-a, apesar de todos os pesares. Compreendia suas responsabilidades
como senhor de Montsegur. Cabia-lhe zelar pela segurança de todos os seus
vassalos. E embora em suas conversas com o bispo Jacques Fournier houvesse
enfatizado inúmeras vezes que Claire ainda não professara os votos definitivos,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 67

jamais pretendera desonrá-la. Talvez os rumores sobre o mal que os Segni


tivessem causado ao povo de Languedoc fossem verdadeiros. Então ele,
Aimery de Segni, repararia os erros. Pelo menos no que dizia respeito à
donzela de Foix. Sabia que poderia fazê-lo. E o faria.
Aimery cumprimentou primeiro a irmã com uma inclinação de cabeça e
depois, oferecendo a mão a Claire, conduziu-a até a mesa principal, sobre uma
plataforma. Ainda que não apreciasse festas, encarara aquele banquete como
um dever, uma maneira de prestigiar um lorde aliado que viera a Montsegur
para reconhecê-lo, publicamente, como seu líder. Portanto, restara-lhe retribuir
o gesto à altura. O salão havia sido meticulosamente limpo e lavado, para ficar
livre de quaisquer detritos produzidos pelo grande número de homens e
cachorros que ali transitavam. As paredes de pedras exibiam tapeçarias
requintadas e nas mesas de madeira sobressaíam-se objetos de prata e
estanho, brilhantes de tão bem polidos. Enormes estandartes, nas cores da
Casa de Segni, tremulavam no ar, orgulhosos.
"Eu fiz isto. Eu conquistei o que me propus a conquistar, o que esperavam
que eu conquistasse", pensava.
Dedicara-se à organização daquela noite com a estóica paciência exigida
pelo dever. Não esperava apreciar seu próprio banquete, porque nunca se
divertira em festa alguma 0 passado. Porém, o toque delicado da mão de Claire
mudara tudo. De repente o salão explodira em sons, com a música alegre
marcada pelo tamborim e alaúde contagiando-o. Um malabarista jogou bolas
coloridas no ar com impressionante habilidade e Aimery, sorrindo para a
mulher a seu lado, chamou-lhe a atenção para a destreza do artista. "Pela
primeira vez", concluiu pasmo, "estou me divertindo".
Sentia-se tão jovem quanto o mais jovem de seus escudeiros. E
despreocupado. Notando que coubera a Gertrude, condessa de Triconet,
sentar-se no lugar de honra à mesa principal, ao lado do anfitrião, Aimery não
teve dúvidas. Não a queria ali, queria Claire. E agora, como o lorde do castelo,
escolheria quem bem desejasse para ocupar a posição de honra. Escolheria a
donzela de Foix. Essa era sua mesa, esse era seu castelo, e agiria como lhe
aprouvesse. Ainda sorrindo, pediu a um dos servos para efetuar a mudança. A
condessa de Triconet seria transferida para junto do conde de Montfort.
Todavia, embora continuasse bem situada, Gertrude não se mostrou nada
satisfeita com a alteração, chegando a ficar pálida sob a maquiagem
carregada. Porém, Aimery não se incomodou.
A nobre fez uma breve reverência diante do conde de Segni, fuzilou a
noviça com o olhar e afastou-se, sacudindo as toneladas de jóias.
Ainda sentindo o peso do olhar malévolo, Claire sentou-se entre um
solícito Huguet de Montfort e o lorde de Montsegur.
— Lady Gertrude vai se vingar — sussurrou o conde de Segni junto ao
ouvido de Claire de Foix. Ele amava estar Perto dela, aspirai- seu perfume sutil.
— Por favor, não me transforme em um motivo de contenda — a jovem
escriba pediu. — Eu teria ficado satisfeita sentando-me num lugar mais
apropriado a minha posição social. Não sou aristocrata, nem possuo fortuna.
— Sou o senhor deste castelo — Aimery retrucou em tom baixo. — Decido
quem se sentará e onde.
Contudo reconhecia a validade do argumento de Claire. Sim, quisera-a a
seu lado, mas não pretendera ofender lady Gertrude. Sorrindo para a
condessa, resolveu se esforçar para agradá-la. Outro de seus deveres como
lorde de Montsegur.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 68

Todavia, até o término do jantar, não pensaria no assunto. Iria se divertir,


saborear o raro contentamento que agora desfrutava.
A um sinal de Aimery, um verdadeiro batalhão de criados entrou no salão,
carregando bandejas de prata. Assim começou a sucessão interminável de
pratos requintados. De entrada, queijos, presunto defumado e alface crespa.
Depois, peixes variados, perdizes e javali, caçados pela manhã. Para finalizar,
doces glaçados e frutas. De soslaio, Aimery observava Claire comer com
parcimônia. Também o vinho, que trouxera de suas terras na Itália, era
consumido pela noviça com igual sobriedade.
— Experimente isso — disse Aimery, entregando-lhe um docinho glaçado.
Claire hesitou alguns segundos antes de provar a guloseima. E logo pediu
outro.
O conde de Segni riu alto, satisfeito.
— Tenho grande admiração por uma mulher capaz de apreciar a boa
comida. Porém, somente mais um doce, ou você acabará redonda como o
homem que os fez.
Aimery mostrou uma porta aberta, além da qual enxergava-se um
homenzarrão vestido de branco que, com a ajuda de um garotinho, mexia
numa panela com uma enorme colher de pau.
— Meu cozinheiro — explicou o conde. — Trazido direto de Paris por minha
empreendedora irmã. Ele é casado com a costureira de Minerve. Talvez você já
tenha conhecido madame Monique? Ainda não? Pois conhecerá. Com certeza
minha irmã se encarregará de apresentá-las uma à outra. Diddier trabalhou
nas cozinhas do rei e é tão ciente de sua própria importância que nem mesmo
eu, senhor de Montsegur, me atrevo a contrariá-lo. Precisarei de uma esposa
para enfrentá-lo.
Por que dissera aquilo? E por que para Claire?
— Seu cozinheiro esteve a serviço do rei da França? — ela indagou
atônita. — Por que deixaria...
— Paris para vir à Languedoc? — Aimery completou. — Oh, sim, meu
cozinheiro é parisiense e compreenderia seu espanto. Como todos os nativos
da cidade, ele amaldiçoa os deuses que o obrigaram a viver longe de lá. Porém
Diddier selou o próprio destino com suas ações. Seu trabalho no Louvre lhe deu
amplo acesso às adegas do rei onde, comentava-se, ele começou a passar
cada vez mais tempo. Seu gosto pelo conteúdo das garrafas era a única
fraqueza em uma carreira brilhante e motivou sua queda. O rei o demitiu.
Restava-lhe trabalhar comigo, ou arriscar a sorte com os príncipes da Boêmia.
Bem, considerando as alternativas, Diddier não vacilou muito antes de se
decidir por mim.
Claire riu com prazer, para imensa satisfação de Aimery e de Minerve de
Montfort, que piscou para a noviça com ar de cumplicidade.
Saindo de trás de uma tapeçaria, um grupo de músicos fez soar os
primeiros acordes de uma canção, os sons do tamborim e do alaúde cedendo
lugar a Rogre de Tencacel e seu bandolim. Tencacel, um dos mais famosos
trovadores de Languedoc, cantou emocionado sobre um trágico incidente
acontecido na corte inglesa recentemente. Sua canção arrancou aplausos e
lágrimas. A nobre condessa de Trenceval secou os olhos com o providencial
lenço oferecido pelo sempre atento Huguet de Montfort.
— Seu povo tem o melhor de todos os mundos — murmurou Minerve,
inclinando-se à frente do irmão para falar com Claire. — Languedoc é uma
terra e uma cultura criadas sobre a centelha do romance. Ou pelo menos o era
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 69

até a desafortunada perseguição aos cátaros arruinar tudo o que aqui vicejava.
Sou ortodoxa em minhas crenças, assim como meu irmão, porém nenhum de
nós dois acredita que deve-se queimar o corpo de um homem para incentivá-lo
a mudar de idéia. Aimery libertaria William Belibaste neste momento, se
pudesse encontrar um meio de fazê-lo.
Claire manteve o olhar fixo em um ponto distante, resistindo à tentação
de confiar em Minerve, de pedir-lhe ajuda. Gostava da condessa de Montfort e
começava a confiar em Aimery. Todavia, eles podiam mesmo ajudar William
Belibaste?
"Não, claro que não", respondeu a si mesma. Não sendo cátaros, a
liberdade e a vida de um herege não lhes importava. Além do mais, padre
Pedro sempre a avisara para ter cuidado com as supostas boas intenções dos
inimigos. Minerve de Montfort e Aimery de Segni jamais lhe ofereceriam
esperanças. Melhor não se esquecer disso nunca.
O rufar de um tambor anunciou a chegada da pièce de résistance: um bolo
de especiarias, réplica das flâmulas de Montsegur e de Foix, tão habilmente
confeccionadas que pareciam tremular em uma brisa açucarada.
Encantada, Claire reparou nos mínimos detalhes da iguaria. Jamais vira
algo semelhante antes. Tratava-se de uma verdadeira obra de arte, digna da
corte de um rei. E como obra de arte o bolo foi saudado pelos convidados, com
vivas e aplausos.
Ela estava sorrindo, se divertindo, porém continuava distante, Aimery
concluiu, notando as finas linhas de preocupação na testa de Claire. Algo a
angustiava, embora ninguém mais, exceto ele próprio, o percebesse.
Minerve e Huguet conversavam animadamente, esperando, ansiosos, o
início do baile. No meio de toda a agitação, Aimery notou Claire lançar um
olhar furtivo para o conde de Foix.
Ele sabia que deveria apresentá-los. Aliás, fora esse o motivo pelo qual a
convidara para o banquete. Claire nascera em Foix e, sem dúvida, estaria
interessada em conhecer o conde de sua região.
Entretanto, aquele não era o momento. Na ocasião certa, agiria. Agora
queria apenas fazê-la sorrir e se divertir.
O conde de Segni levantou-se e bateu palmas.
— Que comece o baile!
Claire jamais dançara antes. Naturalmente, bailes sempre Ocorriam na
aldeia em dias festivos, ou por ocasião de torneios em Montsegur. Todavia
sempre acompanhara esses acontecimentos à distância, do alto dos muros do
convento Observar as pessoas se movimentando e se tocando ao som da
música a intrigava, mas não a entusiasmava. Concluíra que dançar não lhe
dizia respeito e não sentira falta disso.
Ou pelo menos era o que se habituara a pensar.
Entretanto essa noite tudo lhe parecia diferente. Aimery tornara tudo
diferente.
Talvez fosse por causa do roçar da seda contra seu corpo, ou do perfume
de rosas que impregnara sua pele durante o banho. Talvez porque tomara um
pouco de vinho, logo ela, que nunca bebia. Agora, enquanto os criados
preparavam o salão para o baile e os músicos afinavam os instrumentos,
começou a se sentir sozinha, isolada. No fundo, embora relutasse em admitir,
queria tomar parte da diversão que estava por vir. Olhando ao redor, reparou
que as mulheres se remexiam em seus lugares, impacientes para o início da
festa.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 70

"Como seria dançar?", ansiava descobrir.


Todavia, Claire logo tratou de ignorar o pensamento e sufocar a
curiosidade. O sino do convento não tardaria a soar e madre Helene a estaria
esperando no local combinado. Tinha que sair dali o quanto antes. Por isto
concordou prontamente com a sugestão do conde de Segni.
— Você deve estar cansada. Vejo a fadiga em seu rosto. Mas primeiro eu
gostaria de levá-la a um lugar e mostrar-lhe algo. Não faça perguntas. Apenas
me acompanhe. Prometo-lhe que não a reterei por muito tempo. Logo você
estará livre.
Sim, precisava estar livre para ir ao encontro de madre Helene. Se fizesse
o que o conde de Segni desejava, poderia desaparecer em seguida sem
levantar suspeitas. Caso se recusasse a acompanhá-lo, as conseqüências
seriam inconvenientes. Afinal, compareceu ao banquete porque ele quisera,
usava as roupas que ele providenciou e passara a morar no castelo porque ele
assim o havia determinado. Nada do que havia acontecia recentemente fora
escolha sua. Vira-se obrigada a aceitar o inevitável.
"Conheça seu inimigo. Use-o". Eram os conselhos de padre Pedro.
Aimery controlava algumas de suas ações, mas não todas. Como poderia?
O conde de Segni não sabia nada sobre os Bons e Justos, nem de sua devoção
aos cátaros. Então que ele a levasse logo para onde queria e lhe mostrasse o
que desejava. Que ele pensasse que a dominava. Não importava. Porque, no
fim, ela faria o que necessitava ser feito, o que prometera fazer.
— Onde estamos indo? — perguntou, ao se embrenharem numa das
passagens escuras e desertas da fortaleza. Pela primeira vez, a guarda de
honra não os acompanhava. Estavam completamente sós. — Aonde você está
me levando?
— Vou lhe mostrar o caminho.
Os dois seguiram em frente, de mãos dadas. Aos poucos, os sons da
música foram ficando distantes, vagos, até desaparecerem por completo.
Claire pensou em madre Helene, temeu não ser capaz de ouvir o sino soar,
mas continuou em frente. Não havia como voltar atrás.
— Aqui em cima — disse Aimery, ajudando-a a subir os degraus de pedra
e abrindo uma portinhola.
Ofegante, Claire se descobriu numa das torres do castelo, iluminada por
uma enorme lua cheia. E a música tocada no salão principal chegava à torre
com absoluta clareza, os sons tão fortes e pungentes que pareciam envolvê-la
como um manto. Era como se estivessem no salão, no meio dos convidados.
Aimery sorriu-lhe. Um sorriso tão aberto, tão despreocupado, tão terno,
que Claire teve a estranha sensação de estar vendo uma parte do conde que
ele não mostrava a ninguém. Uma parte que preferia manter resguardada.
— Achei que você apreciaria a vista. Subi aqui no meu primeiro dia em
Montsegur. Estamos exatamente em cima do salão principal e a acústica desse
lugar é fantástica. Assim, não tive dúvidas de que escutaríamos a música
perfeitamente. Podemos dançar juntos. Você estará segura.
Suas últimas palavras soaram estranhas aos seus próprios ouvidos.
Aimery não sabia se as havia dito para tranqüilizar Claire, ou para tranqüilizar a
si mesmo. Sabia apenas que falara com absoluta convicção.
Trabalhara duro para se tornar cavaleiro e levava seus juramentos e
deveres muito a sério. Nada lhe fora entregue em bandeja de prata. E embora
tivesse tido muitas mulheres no passado, todas o haviam desejado tanto
quanto as desejara. Sempre se certificara disso, pois não suportaria se
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 71

imaginar aproveitando-se de alguém. Assim, nunca se aproveitaria da jovem


donzela de Foix.
Além do mais, em breve ficaria noivo de uma descendente dos Valois, a
poderosa família real francesa. Aliás, não tinha idéia de por que ainda relutava.
Minerve desaprovava a união e, provavelmente, Huguet também. Contudo a
opinião de ambos não importava e não era o que o fazia hesitar. Talvez
andasse ocupado demais para concretizar o sonho de seu pai. Esses eram os
motivos que sua razão apresentava para o adiamento do noivado; porém seu
coração sussurrava: Claire.
Queria beijá-la, percebeu de repente. Queria acariciá-la. Queria apertá-la
junto ao peito tão desesperadamente, que sentia-se a ponto de sufocar.
Não podia fazê-lo, mas podia dançar com ela. Com certeza não haveria
mal nisso. Claire desejava dançar. Vira-a balançar de leve a cabeça ao som da
música. Entretanto, algo ainda a preocupava. Quem sabe se perguntasse...
Não, de nada adiantaria.
O conde de Segni estendeu a mão e Claire, após brevíssima indecisão,
aceitou-a. O resto foi fácil. Ela deixou-se conduzir, movendo-se ao ritmo mágico
do alaúde, acompanhando-o languidamente, dançando com ele sob a luz das
estrelas e da lua, numa noite perfumada de verão.
Um momento perfeito, um daqueles raros e preciosos momentos perfeitos.
Todavia Aimery não experimentou o contentamento que imaginara. Desejava
mais.
Talvez não houvesse sido uma boa idéia levá-la até a torre. Estavam ali,
estavam dançando e estavam sozinhos.
A música parou de súbito. Ofegante, Claire afastou-se imediatamente e
correu para a portinhola. Porém o conde de Segni ainda não dera a noite por
encerrada. Levara-a à torre também porque desejara mostrar-lhe algo.
— Não somente a acústica é excelente, como a vista é deslumbrante.
Veja, numa noite clara como esta, é possível avistar todo o vale. No horizonte,
estão as montanhas através das quais chegamos ao meu lar, a Itália.
— Mas Montsegur é seu lar agora — ponderou Claire — É o castelo que
você sempre quis.
— Como você sabe disso?
— Minerve me contou. Ela me falou sobre as razões que o fizeram vir para
cá. Sua irmã acha isso tudo um erro.
Aimery abriu a boca para argumentar, mas calou-se. Seus instintos
continuavam afiados, porém a prudência parecia entorpecida. Era melhor não
trilhar o caminho que o enredaria mais e mais no mistério de Claire, de cujo
fascínio não estava conseguindo escapar. Melhor não perguntar o que Minerve
dissera. Ele e a irmã eram muito próximos, raramente discutiam, porém
começava a sentir-se irritado com as inconfidências de Minerve.
— Vamos para o outro lado — Aimery falou com certa aspereza. — De lá
podemos enxergar o precipício.
Claire avistou as luzes antes de escutar as vozes e os gritos. Eram tantas
as tochas, que o vilarejo inteiro parecia estar acordado, reunido à beira do
precipício chamado Roc.
— Helene! — ela gritou.
Instintivamente Aimery correu para os degraus, a mão apoiada no punho
da espada. Outra vez o guerreiro assumia a liderança.
— Espere aqui. Mandarei alguém vir buscá-la.
Claire, todavia, não pretendia esperar e seguiu-o escada abaixo.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 72

— Não. E madre Helene. Alguma coisa aconteceu com ela. Sei que sim.
Por um instante o conde de Segni a fitou duramente, não estando
acostumado a ter suas ordens contrariadas. Claire não pedira nem esperara
sua permissão.
Juntos, os dois saíram para o pátio do castelo quando o sino do convento
soava, chamando para as preces noturnas.

CAPÍTULO VIII

— Ela morreu rapidamente. Pelo menos não sofreu. — Aimery logo deu-se
conta de como tolo e ineficaz soava. Pouco consolo estas palavras podiam
oferecer num momento de dor extrema, ante uma perda dura. Sentada numa
pedra ao seu lado, Claire fechara-se em si mesma. O vestido novo estava
rasgado em vários lugares, pois descera a colina correndo em direção ao corpo
inerte de madre Helene. Entretanto, a noviça não percebia o estado lamentável
de suas roupas. Ou não se importava.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 73

Uma maca transportara a abadessa para o convento, no cemitério em que


repousaria em paz. A maioria dos camponeses já havia voltado para casa è
Huguet, instruído pelo conde, encarregara-se de acalmar as pessoas no castelo
e na aldeia.
A notícia sobre a morte de madre Helene sem dúvida influenciaria
negativamente o julgamento de William Belibaste. O povo de Montsegur,
conhecido por sua religiosidade, não hesitaria em recriminar o Perfeito e os
que queriam libertá-lo, responsabilizando-os por aquela atrocidade. Ciente
disso, Aimery tomara medidas imediatas para esmagar qualquer prenuncio de
revolta.
Era seu dever proteger William Belibaste até o final do julgamento. Porém
também queria proteger Claire. Mas do quê? Ela chamara o nome de madre
Helene no primeiro instante, quando avistaram as tochas da torre. Como se
soubesse que a abadessa se encontrava lá.
Claire não quisera ser confortada e, muito menos, questionada. Assim,
abandonara seus esforços após as primeiras tentativas. Entretanto, devia
existir uma maneira de romper a barreira que a jovem noviça erguera ao redor
de si. Ela parecia tão triste, solitária, vulnerável e... culpada. Sim, a culpa
estava escrita no rosto delicado dela, porque conhecia os sinais desse
sentimento muito bem. Afinal, trazia a culpa tatuada no corpo e na alma. No
seu caso, como general guerreiro, carregava culpa por ter ordenado dezenas
de batalhas e, conseqüentemente, provocado milhares de mortes. Não fazia
idéia dos segredos que Claire ocultava. Desde que haviam saído do castelo e
voado para o cenário da morte de madre Helene, não a ouvira emitir um único
som. Talvez algum dia ela lhe fizesse confidencias; ou não. Impulsivamente,
Aimery puxou-a e abraçou-a com força, oferecendo-lhe conforto e proteção.
Para sua surpresa, não foi rejeitado.
A jovem noviça ainda não tinha derramado uma só lágrima, e isso o
preocupava. Diante da dor e do sofrimento, as lágrimas concedem alívio e
iniciam o processo de cura. Claire dava a impressão de não querer curar-se.
O conde de Segni recostou-se na cadeira e massageou as têmporas,
cansado. As primeiras luzes da manhã se infiltravam pelas janelas do salão,
rompendo a pesada penumbra.
— Ouvi rumores de que o diabo está por trás da morte da abadessa —
falou Huguet de Montfort, fitando o cunhado. — Dizem que as almas dos
cátaros martirizados no precipício pela Inquisição se levantaram contra a freira
para vingarem-se. Nenhum aldeão se atreve a pôr os pés naquele lugar à
noite, porque acreditam estar amaldiçoado.
— Ao longo dos anos descobri que o Homem é capaz das maiores
atrocidades. Não precisa do sobrenatural para ajudá-lo a cometer seus crimes
— As poucas superstições que Aimery alimentara haviam sido abandonadas na
infância. Um homem, ou uma mulher, matara a abadessa do Convento Santa
Madalena, atirando-a precipício abaixo, e então feito soar o alarme para
despertar a aldeia. O conde perguntava-se por quê, e como Claire poderia ter
adivinhado que madre Helene corria perigo. A noviça sabia de alguma coisa,
disso estava certo. Desde o início não confiara totalmente na aparente
inocência de Claire. Mesmo quando a segurara no lago, ou quando a ensinara a
dançar, mesmo desejando-a, sentira necessidade de manter a cautela.
Um mistério a envolvia. Um mistério que resolvera decifrar.
Levantando-se de repente, aproximou-se da janela. Ura membro da
guarda de honra estava escoltando Claire de volta ao convento, para o velório
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 74

de madre Helene. A luz da tocha envolvia o corpo esguio, fazendo-a parecer


engolfada pelas chamas. Aimery virou-se de costas; a visão incomodava.
— Conte-me o que mais você escutou. Os outros mexericos.
Huguet deu de ombros.
— O resto não é mexerico. A pequena capela do convento foi profanada
ontem à noite. Não ofensivamente, mas de forma que os agravos não
passassem despercebidos. Atiraram o cálice no chão e apagaram a lamparina
que ilumina o sacrário. Deixaram a porta da capela escancarada, para que o
vento varresse o interior. Quem quer que tenha feito isso, quis marcar sua
presença. Oh, também foi encontrada uma pequena boneca de cera sobre o
altar. Uma boneca queimada.
— Suspeitos? — Aimery perguntou, já traçando planos mentalmente.
—Nenhum. Madre Helene caiu, ou foi empurrada, quando o sino tocou
para anunciar as preces noturnas. As outras freiras dormiam há horas e
pensavam que a abadessa também estivesse dormindo. Foram para a capela
esperando vê-la.
— A abadessa não caiu. Tenho certeza de que foi empurrada.
"Assim como tenho certeza de que Claire de Foix sabe algo a respeito",
Aimery continuou em pensamento.
— Alguns comentam que a abadessa do Santa Madalena era uma
simpatizante secreta dos cátaros — afirmou Huguet de Montfort muito sério. —
Mas ultimamente andava desiludida com a causa dos Perfeitos. Quem me
contou foi um antigo simpatizante, agora arrependido.
— A que preço?
Huguet teve a decência de enrubescer. - Quisera poder dizer que apenas a
consciência de meu espião motivou suas ações. Porém seu ouro, meu amigo,
foi fundamental para estimulá-lo a abrir a boca. Nosso informante nos contou
tudo, pelo menos tudo o que sabia.
— Quem é o espião?
— Ninguém importante. Apenas um camponês que se encantou pelas
crenças cátaras e depressa se decepcionou. As regras que os regem são
extremamente duras para um homem de sangue quente nas veias, sujeito às
necessidades da carne. Languedoc é lendária por ser um baluarte cátaro, com
muitos seguidores. Talvez madre Helene tenha sido um deles. É o que se
concluiu devido às provas encontradas.
— Provas?
— Descobrimos manuscritos cátaros sob o colchão da abadessa —
continuou o conde de Montfort. — E em grande número. Parece que nossa
inocente madre Helene pertencia a um grupo clandestino de remanescentes do
culto. Numa situação como a atual, com o julgamento de William Belibaste e
sua ascensão à suserania, é possível que muitos cátaros queiram fomentar
uma rebelião. Ou, no mínimo, desejem mostrar força nessas suas primeiras
semanas como lorde de Montsegur. O povo dessa terra é supersticioso. Você
escutou o que falaram sobre a prisão de Belibaste.
Claro que Aimery escutara:
— Que a captura de Belibaste estava predestinada a acontecer e que ele
fora amplamente avisado. A esposa implorou para que não viesse a Montsegur
depois de um sonho terrível. Um gato preto cruzou seu caminho ao sair de
viagem. Sinais de mau agouro ignorados.
— A mulher de Belibaste chegará em breve, você sabe. O bispo Fournier
lhe deu permissão para partilhar a cela com o marido — disse Huguet.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 75

Aimery sorriu.
— Um asceta religioso, um Perfeito, que não conseguiu abrir mão dos
prazeres de uma esposa.
— Ele tem um filho — completou Huguet —, embora não reconhecido. A
esposa de Belibaste era sua empregada. Ao engravidar, foi obrigado a se casar
com um de seus seguidores. Porém ela retornou à casa do amado para dar à
luz.
— Ainda assim, deve haver algo nessa seita que atrai as pessoas. Homens
e mulheres morreram em nome de suas crenças. Talvez existam mais coisas
do que somos capazes de entender.
— Ou talvez essas crenças tenham mudado, sofrido distorções ao longo
dos anos.
— Acho que acusar os cátaros da morte de madre Helene é apenas uma
explicação fácil, óbvia demais — disse Jacques Fournier, entrando no salão.
Ninguém o ouvira chegar. — E como se alguém quisesse nos fazer enveredar
por esse caminho e não olhar numa outra direção. Profanar uma igreja é sinal
de feitiçaria e os cátaros, apesar de todas as suas heresias, não compactuam
com isso. Num momento crítico como este, os verdadeiros seguidores de
Belibaste devem estar mais interessados em manter a discrição do que em
alimentar histórias perigosas. Não faz sentido vandalizar a capela do convento
quando o líder da seita está sendo acusado pelo Tribunal do Santo Ofício. Seus
problemas apenas aumentariam.
O castelo começava a despertar. Do pátio, ecoavam os ruídos matutinos.
Ao longe, o sino do convento soou, lúgubre. Aimery pensou em Claire.
"Que papel ela teria naquela história? Que parte lhe coubera
desempenhar?", se perguntava Aimery.
— Você está franzindo o cenho, meu filho — disse o bispo. Nada escapava
ao seu olhar arguto. — Creia-me, nem Belibaste, nem seus seguidores estão
envolvidos no que aconteceu ontem à noite. Eles não profanaram a capela.
Penso que madre Helene foi assassinada, porém eles não a mataram.
Tampouco levo a sério os manuscritos sob o colchão da abadessa. Nossa
abadessa pode, ou não, ter sido simpatizante dos cátaros, e essa não é a
primeira vez que escuto tais rumores, porém era inteligente demais para
deixar provas de suas crenças onde espiões poderiam achar com tamanha
facilidade. Não, meus caros, estamos lidando com um homem extremamente
esperto e astuto. É importante não nos esquecermos disso, mesmo que ele
tenha cometido alguns erros.
— Vossa Eminência sabe quem é esse homem? — perguntou Huguet.
— Tenho algumas suspeitas. — Jacques Fournier sentou-se à mesa. —
Apenas um grupo foi acusado de feitiçaria ultimamente e apenas um homem
conseguiu escapar à uma eventual condenação. Encontrei-o muitos anos atrás.
Ele jurou vingança. Acredito que meu suspeito esteja muito ocupado agora,
vingando-se. Mas antes preciso ir a Paris, obter provas.
Juntos, os três traçaram um plano de urgência.
Claire não podia dormir. Tampouco o queria. Seria um longo dia ajudando
nos preparativos do funeral de madre Helene. De pé junto à pequena janela da
cela, os olhos fixos no castelo, ela escutou a porta se abrir. Sequer se virou.
Sabia que padre Pedro acabara de entrar.
— Uma tragédia terrível — o velho monge sussurrou, a voz revelando
algumas de suas emoções. Incerteza. Hesitação.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 76

— Quem teria feito isso? — ela indagou em um murmúrio, ainda


contemplando o castelo. — Quem poderia ter desejado ferir madre Helene?
— Então você acha que não foi um acidente? Que alguém a empurrou?
— Sim, creio que foi um ato deliberado. — Claire esteve a ponto de contar
a padre Pedro sobre o bilhete da abadessa, convocando-a para um encontro
urgente, mas mudou de idéia. Conversariam sobre isso depois, quando
tivessem mais tempo, quando não estivessem se sentindo tão chocados e
tristes.
— Ninguém teria querido machucá-la — falou o templário, após alguns
minutos de silêncio.
— Você acredita que o que houve foi acidente?
— Sei que sim. Não existe nenhuma outra explicação.
— Os outros acham que a Inquisição é culpada da morte de madre Helene.
Quando estávamos perto do precipício, Roger me contou que o bispo descobriu
provas de que madre Helene pertencia à seita dos cátaros e que sob o colchão
escondia manuscritos heréticos. Roger crê que a abadessa foi assassinada
porque Jacques Fournier preferiu evitar o escândalo de julgá-la por heresia.
Padre Pedro deu de ombros, impaciente.
— Isso tudo é bobagem. Desde quando a Inquisição hesita diante de um
caso notório? Eles sempre lançaram tanto pobres quanto ricos à fogueira. Tudo
depende do que desejam. E só o que importa. Basta nos lembrarmos do que
aconteceu ao meu estimado mestre, Jacques de Molay, e aos meus
companheiros templários. Eram todos homens eminentes que haviam servido
ao rei e à Coroa. Mas quando Felipe quis se apossar do tesouro que lhes
pertencia, não vacilou em condená-los.
— Nós podemos não estar envolvidos na morte de madre Helene, mas
acabaremos sendo responsabilizados — Claire sussurrou, desolada. — Se o que
Roger falou é verdade, o bispo Fournier deve ter suas suspeitas. Ele iniciará
uma caça às bruxas.
— Não existem bruxas. — Padre Pedro soou ríspido. — São homens e
mulheres de carne e osso que Jacques Fournier deve encarar, não o
sobrenatural. A pobre Helene estava fora do convento à noite por algum
motivo. Talvez não conseguisse dormir. Nunca saberemos. Ela escorregou e
caiu no precipício. Acidentes semelhantes já aconteceram antes. Helene se
libertou do corpo terreno. Encontra-se no Paraíso e devemos nos regozijar.
Claire quis gritar que Helene tinha uma razão para estar fora do convento
tarde da noite, porém conteve-se. Não seria certo angustiar o pobre padre,
ainda mais naquele momento de dor. Ele e madre Helene tinham sido amigos e
colaboradores desde a infância. Juntos haviam organizado o ressurgimento dos
cátaros. A morte dela fora um golpe duro, do qual o templário demoraria a se
recuperar. Numa hora mais adequada o colocaria a par do bilhete e discutiriam
o assunto.
— Eles vão solicitar sua presença — disse padre Pedro, apontando para
Montsegur. — Se conheço o bispo Fournier, e o conheço bem, ele fará questão
de manter a rotina do julgamento. Desejará que a aldeia, e toda Languedoc,
saiba que nem ele, nem o lorde de Segni, serão intimidados e afastados de
seus deveres. Belibaste deve ser julgado e nada, nem ninguém, interromperá
esses procedimentos, nem mesmo o diabo em pessoa. Você deve lamentar e
rezar por Helene, porém deve estar pronta para quando a chamarem. Nossa
pobre abadessa está morta; todavia, felizmente, William Belibaste continua
bem vivo e ainda é possível salvá-lo.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 77

"Devo confortá-la? Devo abraçá-la?" Aimery considerara essas questões


durante toda a manhã, enquanto se ocupava de seus afazeres. Aliás, esses
pensamentos não lhe saíam da cabeça.
Pela primeira vez em muitos anos, conquistar terras e administrar seu
feudo não eram suas únicas preocupações. Tinha a mente dominada por Claire
de Foix.
Tê-la junto de si perturbara-o profundamente. Primeiro no lago, depois na
torre e até mesmo, que Deus o perdoasse, na beira do precipício, o local da
morte da abadessa. E estava satisfeito que o bispo não houvesse suspendido o
interrogatório marcado para aquele dia, apesar do funeral de madre Helene.
— Não devemos alterar a rotina — Fournier explicara. — Precisamos
continuar.
De seu lugar, Aimery observou Claire, debruçada sobre 0 pergaminho.
Vestida de maneira simples, os cabelos rui-vos presos em uma única trança,
ela o cativava com sua graça e sóbria elegância. Impossível deixar de fitá-la. O
rosto delicado, embora sereno, revelava o sofrimento interior.
— Não posso concordar com o bispo — sussurrou Huguet. — Nós devíamos
ter suspendido a sessão de hoje em sinal de respeito pela abadessa. Afinal, a
aldeia está de luto
— Fournier quer chegar a um determinado ponto dos trabalhos antes de
interrompê-los por alguns dias. Prefere não levantar suspeitas sobre sua
viagem a Paris.
— Mas e todos esses rumores e acusações? Os camponeses estão irados
com a profanação da capela. Atribuem o ato de vandalismo aos cátaros.
— Porém Belibaste sabe das vantagens de ser acusado pelo ocorrido
ontem. O testemunho dos aldeões fará com que o julgamento se estenda,
concedendo-lhe mais horas de vida.
Novamente o olhar do conde de Segni buscou a noviça. O único ponto de
luz em todo aquele imenso salão. A única imagem capaz de lhe aquecer a
alma. Aimery sentia-se como se as paredes do castelo de Montsegur, o
coroamento de sua ambição, o seu novo lar, o estivessem sufocando-o. "Posso
encontrar paz aqui? Posso ser feliz?" Nunca alimentara tantas dúvidas quanto
agora.
Com dificuldade, Claire procurava manter a atenção fixa no trabalho.
Todavia, apesar de molhar a pena no tinteiro com extremo cuidado, gotas
escuras caíam sobre o pergaminho, arruinando o trabalho. Teria que reescrevê-
lo mais tarde. Jacques Fournier jamais poderia ver o resultado de seu
nervosismo, ou suspeitaria de algo. Entretanto, por mais angustiada e tensa
que estivesse, aquela atividade transformara-se em uma bênção porque a
ajudava a conservar o olhar abaixado. Não tinha coragem de fitar o conde de
Segni.
Não queria ver as perguntas estampadas naqueles olhos incrivelmente
azuis.
— E você tem certeza de que eram hereges? — indagou um dos jovens
auxiliares do bispo Fournier.
Por um instante Yves, o camponês convocado para depor, franziu a testa.
Então sorriu, lembrando-se do que deveria dizer.
— Ah, sim, certeza absoluta. Ouvi-os na calada da noite, essas criaturas do
mal, conversando com os demônios. Fico apavorado só de pensar do que são
capazes.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 78

O aldeão continuou sua história, tão absurda e ridícula, que o próprio


inquisidor não conseguia disfarçar o ar de descrença. Concentrada no trabalho,
Claire só ergueu o olhar uma única vez, para procurar padre Pedro no meio da
multidão.
Em geral não encontrava nenhuma dificuldade para localizá-lo, mesmo o
salão estando sempre cheio. Às vezes ele aparecia disfarçado de próspero
mercador, em roupas de linho imaculadamente limpas. Outras vezes surgia
como um aldeão maltrapilho.
— Ninguém presta atenção nos pobres — ele lhe dissera durante uma
conversa, anos atrás. — Ninguém enxerga os destituídos. A pobreza é o melhor
disfarce que existe sobre a face da terra.
Claire acreditara sem hesitar. Sempre acreditada em tudo o que padre
Pedro lhe falava. Assim fora desde o dia em que haviam subido a montanha, no
meio da escuridão, para chegar a Montsegur. A partir daí, raramente se
separavam. Até agora.
"Esta é a noite de seu segundo nascimento", o monge afirmara diante dos
portões fechados do Santa Madalena. "Melhor esquecer o primeiro, criança".
O velho templário a educara, lhe dera forças, a assegurara de que faziam
o certo.
"Mas seria mesmo o certo? O que madre Helene queria me contar tão
desesperadamente?"
A abadessa mencionara o tesouro. Porém o tesouro dos cátaros não era
apenas um mito?
Precisava se encontrar com padre Pedro e lhe falar do bilhete. Por que
ainda não o fizera? Talvez porque na noite anterior estivesse cansada,
esgotada física e emocionalmente. Afinal, sempre confidenciara tudo a padre
Pedro, não retendo sequer seus pensamentos. Sim, devia retificar essa
situação o quanto antes.
Jacques Fournier ergueu a mão dando os trabalhos do dia por encerrados.
Discreto, o bispo levantou-se e iniciou uma conversa com o conde de Segni,
enquanto os outros juízes se retiravam e as demais pessoas começavam a
deixar o salão, o vozerio em um crescendo até se transformar num barulho
quase ensurdecedor. Alguém tirara uma galinha viva de sob a túnica e a
atirara aos cães. Em segundos, voavam penas e sangue para todos os lados, os
cachorros, sempre famintos, destroçaram a ave impiedosamente sob os
assobios e gritos entusiasmados dos presentes. Na verdade, a platéia, os
soldados, os cavaleiros e os aldeões, estavam aguardando que Jacques
Fournier exibisse o prisioneiro e o ameaçasse com a morte na fogueira. O
depoimento do tal Yves sobre demônios e vandalismo não servira para diverti-
los e a frustração fora descontada no triste episódio da galinha.
Aproveitando-se do tumulto, Claire juntou seus pertences e correu para o
corredor. Dali, saiu para o pátio.
Depois das horas passadas no salão abafado, respirar o ar fresco do fim da
tarde era como um bálsamo. Saboreando a solidão momentânea, ela encostou-
se na parede de pedra e inspirou fundo, reunindo forças para regressar ao
convento. Teria sorte se conseguisse voltar ao Santa Madalena antes que o
conde de Segni mudasse de idéia e ordenasse seu retorno à fortaleza. Ou
então que Minerve, a pedido do irmão, viesse procurá-la. Claire não desejava
ver nenhum dos dois, estar perto de nenhum dos dois. Não, não era verdade. E
isso estava errado.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 79

Porque o queria, precisava dele. Junto de Aimery sentia-se segura,


amparada, livre de seus fardos. Entretanto, existia apenas uma pessoa com
quem precisava estar, uma única pessoa que poderia ajudá-la. Padre Pedro.
Chegara perigosamente perto de se esquecer disso enquanto morara no
castelo, sob a proteção do conde de Segni. Agora retomaria sua posição no
convento, o convento que sempre chamara de lar e seria capaz de se libertar
da influência de Aimery. Só precisava ficar longe dele para esquecê-lo. Só isso.
Mas desejava ficar perto dele.
Sufocando o pensamento, Claire tomou o caminho do convento em
desabalada correria. Buscava o santuário.
— Madalena.
A palavra soou como um sussurro trazido pelo vento, fazendo-a
estremecer.
— Madalena.
Não, não era uma Madalena qualquer sendo chamada, e sim ela própria.
Claire. Claire que faria o que lhe mandassem.
—Madalena — Claire era chamada pela terceira vez.
No fim de tudo, que importância tinha? No começo, lutara contra esse
nome, lutara para conservar a identidade. E o que ganhara? Nada. Madalena
ou Claire eram a mesma pessoa.
Não foi difícil reconhecer a voz que a chamava. Parando de repente, ficou
imóvel, aguardando.
— Padre Pedro — falou baixinho, virando-se para encará-lo.

CAPÍTULO IX
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 80

Foi você quem soltou a galinha, não, padre Pedro? Você lançou os cães do
salão sobre a pobre ave? O monge riu baixinho, fazendo sinal para que Claire
saísse da estrada e se embrenhasse no bosque. Não podiam correr o risco de
serem vistos juntos.
— Um truque inteligente, não? — ele indagou satisfeito, não se dando
conta da expressão incrédula da noviça. Outra risadinha, antes de repetir: —
Um truque muito inteligente. Eu sabia que depois da excitação provocada pela
triste morte de madre Helene, os homens do lorde Segni estariam agitados e
ficariam decepcionados quando Belibaste não fosse chamado para depor. Eu
tinha me vestido bem, para passar despercebido no meio da multidão.
Entretanto existia a possibilidade de alguém se lembrar de ter me visto em
outras ocasiões. Eu precisava vê-la e, para isso, precisava de uma distração.
— E você não hesitou em providenciá-la — disse Claire, desgostosa. —
Cães raivosos, sangue para todo lado. Uma cena deprimente.
Tão ocupado estava Pedro de Bolonha com seus próprios pensamentos,
que não reparou na mudança do tom de voz da noviça.
— Melhor sacrificar a galinha para ajudar a causa dos Perfeitos, do que
mandá-la para a panela de algum camponês. E eu tinha algo importante para
lhe dizer, algo que o conde de Segni talvez ainda não tenha lhe contado, algo
que você pode não ter ouvido.
O ar estava parado no interior do bosque e cheirava a putrefação. Por um
instante ela lembrou-se de quão doce o ar lhe parecera nas proximidades do
castelo de Aimery e com que avidez o sorvera. Cansada de caminhar, sentou-
se num tronco úmido e suspirou fundo.
— Pobre Helene. Mas um sacerdote também foi ferido ontem à noite. Eles
lhe contaram? O conde de Segni partilhou essa informação com você?
— Um sacerdote ferido?
— Não seriamente, porém machucado o bastante para levantar suspeitas.
Creio que o bispo-inquisidor referiu-se ao assunto como um acidente infeliz.
Todavia Jacques Fournier sempre foi cheio de explicações tolas.
Claire discordava. Desde que assumira a função de escriba, percebera
como os pronunciamentos do bispo eram sensatos. Todavia, nada disse a
padre Pedro.
— Esse episódio trará mais atenção para os cátaros? Seremos
considerados responsáveis? O que aconteceu com o sacerdote? E quando?
— O incidente aconteceu essa manhã, a vítima era um sacerdote chegado
ontem de Paris, com notícias urgentes para Jacques Fournier. Comentava-se
que esse padre veio para cá devido à insistência de nossa Helene. Contudo,
sabíamos como os mexericos se espalham. As pessoas são capazes de dizer
qualquer coisa, em especial dos mortos. Eu soube do ocorrido através de
alguém que trabalha para o conde de Segni. Entretanto, meu informante não
pôde me dizer o teor da mensagem que o sacerdote trazia de Paris. Sei apenas
que o mensageiro levou uma pancada na nuca; gravemente ferido, foi
abandonado como morto. Imagino que tenha sido o motivo pelo qual Fournier
se apressou a encerrar a sessão de hoje.
Claire abaixou a cabeça, sentindo o chão desaparecer sob seus pés.
— Outra morte.
— O sacerdote não está morto. Não ainda, pelo menos.
Ao tornar a erguer a cabeça, a noviça deparou-se com o olhar do velho
monge, que a fitava, preocupado.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 81

— Isto nos aconteceu no mais inconveniente dos momentos. Primeiro, a


morte de Helene. Agora o ataque ao sacerdote. E Belibaste continua preso.
— Eles vão pensar que estamos por trás de tudo. Já circulam essas
histórias horríveis sobre madre Helene. Agora acreditarão que os cátaros são
os culpados.
— Não os cátaros vivos, mas fantasmas — padre Pedro assegurou. —
Talvez não nos grandes salões do castelo de Montsegur, porém nos campos
dirão que os mártires gloriosos da era dos cátaros voltaram para se vingar da
Inquisição e de seus juízes, para se vingar do bispo, de Aimery de Segni e
Huguet de Montfort. — Padre Pedro fez uma pausa dramática. — Todavia, não
precisamos de pessoas falando mal dos Perfeitos, não quando o último de
nossos grandes sacerdotes está sendo julgado por heresia. No começo
atribuirão a culpa aos fantasmas e espíritos, mas, eventualmente acabarão nos
culpando pelo ataque ao padre mensageiro, o povo dirá que os cátaros agiram
em represália à prisão de Belibaste e, talvez, até em retaliação à morte de
Helene cujas verdadeiras crenças foram reveladas. Isso lhes dará a desculpa
necessária para se virarem contra Belibaste com uma fúria crescente.
Naturalmente trata-se de algo que nosso poderoso bispo já levou em
consideração, ou não teria mantido o prisioneiro em sua cela hoje, em vez de
expô-lo no salão, durante o depoimento de uma das testemunhas. Meu
informante me contou que Fournier está planejando suspender o julgamento
durante uns dias para ir a Paris. Ele deve ter ouvido alguma coisa, ou então
suspeita de alguma coisa, para essa viagem se tornar imperativa.
— O que poderia ser?
Padre Pedro deu de ombros.
— Alguma coisa. Qualquer coisa. Não importa. Importa apenas tirar
William Belibaste da prisão o quanto antes. Sua libertação deve acontecer sem
demora. Não podemos esperar o julgamento chegar ao fim, ou a esposa dele
chegar para nos ajudar. Precisamos trabalhar nisso agora. É nosso dever. Ele é
nossa única esperança. Eu sou um Perfeito. Você será uma Perfeita. Ainda
assim, Belibaste tem que ser libertado.
Claire concordou, hesitante a princípio, depois com mais entusiasmo.
Porque, com certeza, padre Pedro tinha razão. Ele sempre tinha razão no final.
Envergonhava-se de haver duvidado, de haver desconfiado.
— O caso de Belibaste está mais complicado do que nunca — prosseguiu o
velho monge, apreensivo. — Podia-se sentir a tensão crescente no grande
salão hoje. Se você não estivesse tão arrasada com a morte de Helene, teria
percebido também. Agora, talvez, até o conde de Segni gostaria de se livrar
rapidamente do prisioneiro, de mandá-lo para a fogueira o quanto antes para
pôr um ponto final nessa história.
— Aimery não gostaria de ver homem nenhum morrer na fogueira —
afirmou Claire, em um impulso. — Ele sempre disse, abertamente, e muitas
vezes, ser contra a caça às bruxas nessa terra.
— O conde de Segni o diz, sim, porém o julgamento de um herege está
acontecendo em seu castelo. Você já esqueceu de que ele é o Protetor dos
padres inquisidores? Roma o investiu desse poder e o rei da França o
confirmou.
— Não é verdade — gritou Claire. — Sir Aimery simplesmente se descobriu
no meio deste tumulto. Ele não o criou. Tomou posse de Montsegur no mesmo
dia em que William Belibaste foi trazido para cá, acorrentado. Nós sabemos
disso.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 82

— Eu sei que agora você o está defendendo — devolveu padre Pedro. — E


também sei que Aimery de Segni é descendente de dois papas malignos,
homens que lideraram nações contra nossa gente. Através do casamento,
nosso bom Aimery tornou-se parente dos Montfort, uma família poderosa, que
lucrou com a destruição dos cátaros. Não se iluda com as aparentes virtudes
desse homem. Poucos, atualmente, são tão poderosos, ou astutos, quanto o
conde de Segni. Se ele quisesse, poderia libertar William Belibaste em um
piscar de olhos sem que ninguém o impedisse. Como senhor de Montsegur, ele
tem o privilégio de libertar quem Quiser, no instante em que quiser.
— Mas é importante que a justiça seja respeitada. É importante haver um
verdadeiro julgamento.
Entretanto, ao repetir as palavras de Aimery, Claire duvidou de sua
veracidade. Seria mesmo mostrar respeito à justiça condenar um homem a
arder na fogueira por causa de suas crenças? E aquele seria o destino de
Belibaste. Ele nunca iria abjurar. Portanto, morreria.
— O lorde de Montsegur poderia interferir se quisesse — o templário
insistiu, num tom insidioso. — Porém é óbvio que não fará nada. Assim,
devemos nos defender da melhor maneira que pudermos. Diga-me, você já
conseguiu descobrir algo sobre Aimery de Segni?
"Apenas que é um homem e não um monstro. Apenas que me abraçou e
me fez sentir segura. Apenas que anseio pelo conforto de seus braços fortes".
— Nada — Claire falou em voz alta. — Não descobri nada.
— Mas descobrirá. — Pedro de Bolonha conhecia bem o caráter dos
homens, suas fraquezas. E sabia que Aimery de Segni sentia-se atraído por
Claire de Foix. — Basta olhar para o conde para ver o quanto ele está fascinado
por você. E é natural que, do alto de sua arrogância, acredite que essa atração
seja recíproca. Aimery de Segni acha que pode ter o que quiser de você.
Usaremos essa fraqueza contra ele. Chegará um momento em que o conde lhe
contará tudo o que você precisa saber. E você contará a mim.
O velho monge suspirou e apontou para o castelo, no alto da colina.
— Muito em breve, recuperaremos o que nos foi roubado. Retomaremos
essas terras para os cátaros. Daqui, de nosso lar, nos espalharemos e
conquistaremos o resto da França. Este lugar será novamente seguro para os
cátaros e os templários. Ascenderemos ao poder outra vez.
— E William Belibaste será salvo? — Claire indagou baixinho.
— Certamente o salvaremos — tranqüilizou-a padre Pedro, com mais uma
risadinha. — Ele é nosso último Perfeito. Precisaremos de Belibaste para
completar nossa missão, assim como precisaremos de você. Sua missão é
descobrir tudo o que puder do conde de Segni, arrancar todas as informações.
O destino lhe propiciou a oportunidade, deu-lhe a chance de completar sua
missão. Até mesmo a irmã do conde, a condessa de Montfort, a acolheu com
simpatia. Use esse interesse que ambos têm por você. Tire dos dois tudo o que
puder. Conserte o mal que os ancestrais dos Segni e dos Montfort fizeram a
nós.
Claire desviou o olhar.
— Você ainda tem as ervas que eu lhe dei?
— Sim.
— Estão bem escondidas?
— Trago-as sempre comigo, porque não sei onde guardá-las — falou.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 83

— Utilize-as. Faça com que o conde de Segni as ingira. Faça-o dizer-lhe a


verdade. Creio que ele planeja uma viagem. Acompanhe-o. Descubra a
verdade.
Claire concordou. E embora hesitasse a princípio, aceitou quando padre
Pedro estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. Afinal, este era padre Pedro
e estavam juntos desde o começo.
E padre Pedro provara ter razão. O conde de Segni realmente a procurou
não muito tempo depois, com a proposta que o velho monge havia adivinhado.
Claire voltara para o convento desejando oferecer à abadessa suas
últimas preces antes do enterro, ao anoitecer. À madre Helene fora negado o
consolamentum, o sacramento cátaro, devido à subtaneidade de sua morte.
Mas Claire podia fazer a vigília e orar pela amiga e abadessa.
Originalmente, quando o convento Santa Madalena foi fundado, no século
anterior, tratava-se de um reduto cátaro, um lugar onde as mulheres eram
educadas e recebiam os ensinamentos sobre a crença dos Bons e Justos. As
mulheres sempre tinham sido estimadas na cultura catara, até reverenciadas.
Todavia, quando os dominicanos avançaram sobre Languedoc, trazendo a
Inquisição no rastro das Cruzadas, todos os conventos foram reformados e
reconduzidos à religião ortodoxa. Entretanto, ao se tornar abadessa, madre
Helene, discreta e eficientemente, retomara o que acreditava lhe ter sido
roubado. Embora uma cátara dedicada, Helene usara sua alta posição
hierárquica para servir ambas as religiões. A abadessa sempre havia sido
amada e muito respeitada. Apesar dos rumores sobre sua simpatia pela causa
dos hereges, a capela do convento estava cheia, uma prova de sua
importância para a comunidade local. Camponeses e mercadores, nobres e
freiras. Todos ali reunidos desejavam prestar suas últimas homenagens àquela
mulher gentil e caridosa, que estivera à frente do Santa Madalena por tantos
anos. Helene guardara suas crenças para si, nunca tentando influenciar as
outras religiosas.
"É o bastante que cada uma de nós seja livre para professara a fé que
deseja. Os verdadeiros cátaros almejavam apenas isso. Não sentiam
necessidade de obrigar os outros a seguirem sua doutrina".
Helene repetira essas palavras vezes sem conta para a menina Claire.
Agora Claire, uma mulher, lamentava a perda de sua querida amiga e
superiora.
Enquanto esperara a hora de enterrar a abadessa, Claire buscara refúgio
no trabalho. Há mais de uma semana vazia, sua antiga cela precisava,
desesperadamente, ser limpa. Decidida a ocupar a mente e cansar o corpo,
varreu o chão de pedras, lavou os lençóis de algodão, bateu o colchão de
penas até tirar todo o pó, encerou o banco e a mesa pequenina até ficarem
brilhando. Por fim, colocou alguns gerânios vermelhos numa tigela de barro. A
verdade é que estava se esforçando para voltar a amar aquele quartinho como
um dia amara, tentando não pensar nos aposentos que a aguardavam na
fortaleza de Montsegur. Tentando, com todas as forças, não pensar em Aimery.
Mas falhava, falhava e falhava. Pensava nele o tempo todo, ainda que não
quisesse.
Quando terminava de varrer a cela pela segunda vez, ouviu passos
inesperados no corredor.
Dali a instantes, alguém batia à sua porta.
— É o cavaleiro de Segni — disse madre Fausta, agora a abadessa do
Santa Madalena. — Eu o adverti para mostrar respeito a esse claustro, um
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 84

lugar sagrado, porém ele me disse que veio buscá-la porque quer levá-la para
casa.
Vendo a expressão confusa de madre Fausta, Claire sentiu-se tomada pela
raiva. Como Aimery se atrevia a interromper seu luto? Ele já havia invadido sua
vida, afastado-a de seu dever, possuindo sua mente. Mas não cederia mais um
centímetro sequer! Não lhe daria mais nada!
— Mas eu estou em casa! — retrucou por entre os dentes, com o olhar fixo
no nobre —, e não permitirei que você me leve embora daqui outra vez.
Resplandecente em sua túnica negra, a espada presa à cintura, ele falou
simplesmente:
— Esta não é sua casa. Vou levá-la para seu verdadeiro lar, para Foix.
Vamos voltar para onde toda essa história começou.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 85

CAPÍTULO X

— O conde de Foix envia seus cumprimentos e também um pedido de


desculpas — disse Aimery de Segni na manhã seguinte, ao iniciarem a jornada
através das montanhas rochosas que os levariam de Montsegur à fortaleza
onde Claire nascera. — Ele achou importante partir com alguma antecedência.
Como nossa visita não estava planejada, julgou necessário tomar as iniciativas
necessárias para nos receber.
— Por que estamos indo para lá? — Claire o interpelou, brusca. Ansiava
lhe fazer essa pergunta desde o primeiro momento, quando a viagem para Foix
fora anunciada. — Por que tenho que ir?
Aimery não respondeu imediatamente. Sem pressa, ergueu-se na sela,
virou-se para trás e contemplou o séquito que os acompanhava. Doze de seus
melhores cavaleiros, com seus respectivos escudeiros e pajens. O fabuloso
cozinheiro parisiense, à frente de três assistentes e mais duas carroças
carregadas de guloseimas selecionadas. Presentes para os anfitriões. Fechando
a procissão, três outras carroças, estampando as cores da Casa de Segni,
cheias até a borda. O que essas carroças carregavam, Aimery não fazia a
menor idéia e não se importava. De fato, toda essa pompa não passava de
camuflagem, destinada a desviar a atenção de coisas mais importantes. Por
este motivo, trouxera Claire consigo.
Sem saber o que se passava, Claire continuou cavalgando ao lado do lorde
de Montsegur. E enquanto aguardava uma resposta para sua pergunta, deixou
os pensamentos vagarem e se fixarem na noite anterior.
— O conde de Segni veio buscá-la — madre Fausta dissera, empertigada.
— Todavia você não tem que acompanhá-lo, se não quiser. Ninguém pode
obrigá-la a segui-lo.
Palavras fortes, incisivas. Porém bastou um olhar para a freira se afastar,
apressada. Um dia ela regeria o convento de Santa Madalena com firmeza e
amor, como Helene o fizera. Porém, sendo nova e inexperiente, madre Fausta
ainda não aprendera a exercer a autoridade. Muitos guerreiros já haviam
tremido e vacilado ante o simples olhar de Aimery de Segni. A pobre freira não
tinha do que se envergonhar.
— Não deixarei meu convento — Claire falara, tão logo os dois ficaram
sozinhos. — Madre Helene não era apenas a abadessa, mas era como uma
mãe para mim. Não vou abandoná-la. Não retornarei ao castelo de Montsegur.
— Eu nunca lhe pediria para deixar o Santa Madalena até depois do
funeral de sua abadessa. Você me julga um insensível? Já se esqueceu de que
fui eu quem lhe deu permissão para voltai- para cá?
— O enterro de madre Helene será ao anoitecer. Não regressarei a
Montsegur nem mesmo depois. Você não precisa que eu me instale no castelo.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 86

Posso executar meu trabalho de escriba durante as horas que forem


necessárias e ainda continuar morando aqui.
— Ninguém está lhe pedindo para retornar a Montsegur, pelo menos não
agora.
— Então por que você veio aqui?
— Porque preciso da sua ajuda.
Aliviada, Claire tirou o avental. Jamais negaria um pedido de ajuda a quem
quer que fosse.
— Vou apanhar os rolos de pergaminho, as penas e o tinteiro. Não
demorarei mais que alguns minutos.
— Não há necessidade dessas coisas. Como lhe falei, não iremos para
Montsegur porque vou levá-la para Foix.
— Para Foix? Por quê?
— O bispo Fournier suspendeu o julgamento por vários dias. O motivo
oficial é conceder ao convento, e à aldeia, um período de luto. Fournier
também declarou que será um gesto de benevolência para com o prisioneiro,
dando tempo a sua esposa de chegar a Montsegur. Nenhum desses dois
motivos é o verdadeiro por trás da decisão extraordinária do bispo.
— Qual é a razão verdadeira?
— Ele deseja ir a Paris. Acredita que encontrará explicações importantes.
“Para a morte de Helene? Para o ataque ao padre-mensageiro?”, Claire se
perguntou.
Horas atrás, padre Pedro a colocara a par dos planos de Jacques Fournier.
Aimery não podia descobri-lo. Muita coisa estava em jogo. Precisava agir com
cautela.
— Essa viagem está relacionada aos cátaros? Montsegur inteira sabe que
foram encontrados manuscritos sob o colchão de madre Helene.
— Aos cátaros... e aos cavaleiros templários.
Cada detalhe do funeral de madre Helene ficaria para sempre impresso
em sua mente. E agora, enquanto abandonavam a segurança da fortaleza de
Montsegur e rumavam para o norte, era dominado pela lembrança dos
acontecimentos recentes. Não importava o que lhe reservava o futuro. Nunca
se esqueceria daquela que fora mais do que sua abadessa, e da simplicidade
da cerimônia pungente na qual lhe dera adeus. A pequena capela do convento
estivera repleta com as pessoas que a amavam. Recordaria o perfume suave
das flores do campo, do aroma delicado da alfazema e do tomilho recendendo
no ar. Tributo dos camponeses em honra de alguém querido.
Porém, mais do que tudo, lembraria sempre de Aimery ao seu lado, do
roçar do braço musculoso contra o seu, da segurança que a presença viril lhe
proporcionara.
E fora a essa segurança que se agarrava quando atormentada por
perguntas angustiantes. Poderia ter salvado madre Helene? Ela ainda estaria
viva se tivesse ido imediatamente ao convento, tão logo recebera o bilhete? O
que a abadessa estava tão ansiosa para lhe contar? Que história era aquela do
tesouro?
Jamais o saberia.
Jacques Fournier celebrara a missa. E preferiu usar urna batina simples,
não a vestimenta escarlate e dourada dos bispos. Madre Helene teria
apreciado o gesto, porque sempre prezara a singeleza. Durante o curto
sermão, Fournier exaltara as qualidades da abadessa e do grande convento
que ela dirigira.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 87

Depois da cerimônia, enquanto caminhavam para o cemitério, o olhar de


Claire cruzara com o de padre Pedro. Ele sorrira-lhe, triste e cansado. Com
certeza já acrescentando a morte de madre Helene à lista daquelas que
clamavam por vingança.
Aimery fora um dos que carregara o caixão da abadessa, ao lado do
jardineiro do convento. Ainda junto ao precipício, na noite anterior, o conde lhe
havia dito que não tentaria consolá-la, nem procuraria oferecer explicações
para uma morte inexplicável. Considerara que seria impertinente de sua parte
querer forçá-la a minimizar sua dor. Aimery simplesmente a abraçara.
Envolvida pelos braços fortes, sentira-se resguardada, protegida.
Todavia, continuava abalada pela dor da perda. Talvez fosse bom distrair-
se com a viagem a Foix.
— Por que você me trouxe? — ela tornou a perguntar, voltando ao
presente.
"Sim, por quê?", pensou Aimery. Porque amava fitá-la? Por que amava a
idéia de ter essa mulher cavalgando ao seu lado?
— Eu precisava ir a Foix e achei que você apreciaria a viagem. — Não, não
se tratava do motivo real, mas perto o bastante. — Foix é sua terra natal, a
terra que lhe emprestou o nome. Afinal, você não é conhecida como Claire de
Foix?
— Posso carregar um nome nobre, porém sou uma camponesa, nada
mais.
Uma camponesa que sabia ler e escrever latim; uma camponesa que sabia
cavalgar com a elegância de uma aristocrata. Alguém lhe ensinara tudo isso e
muito mais. Aimery pretendia descobrir quem se encarregara de educá-la.
Precisava sabê-lo porque este conhecimento solucionaria mistérios, decifraria
as charadas que o desafiavam. E então...
— Todavia você não tem certeza absoluta de quem realmente é — o
conde falou. Os dois cavalgavam lado a lado um pouco à frente dos outros. —
De acordo com seu relato, você perdeu seus pais quando ainda era muito
nova, sendo difícil lembrar-se deles. Na minha opinião é uma tragédia. Você
não gostaria de saber mais a respeito?
— O que há para saber? — Claire indagou aparentando calma, embora o
coração pulasse dentro do peito. — Meus pais eram aldeões. E não se fazem
registros sobre nascimento e morte de camponeses. Não poderei descobrir
nada sobre ambos.
— Você está mal informada. São mantidos registros sobre todas as
pessoas de um feudo, não apenas de nobres e clérigos. Quem lhe falou o
contrário? Quem lhe disse que não há registro de seu nascimento em Foix?
Claire manteve a cabeça ereta e o olhar fixo em um ponto distante.
— Foi o que presumi.
— Pois presumiu errado, minha pequena dama. Como você sabe, meus
ancestrais, Lotário e Ügolino de Segni, ascenderam ao papado durante a época
das Cruzadas contra os hereges cátaros. Lotário especialmente, como
Inocêncio III, teve um papel fundamental na perseguição aos hereges.
Entretanto, assim como o bispo Fournier, ele exigia que todos os julgamentos
fossem legais e documentados, fazendo questão de que os autos chegassem a
Roma para que pudesse acompanhá-los.
Um suspiro de alívio escapou dos lábios da noviça.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 88

— Então você quer que eu escreva algo, ou transcreva um documento que


pode estar em Foix. Este é o verdadeiro motivo pelo qual decidiu me trazer
nesta viagem.
— Não exatamente. Inocêncio III tinha um interesse especial nas mulheres
do movimento cátaro. Meu tio admirava-lhes a força. É claro que as
considerava equivocadas, mas as admirava. O novo conde me contou que, no
passado, existiu uma lady de Foix cujo retrato está estampado numa tapeçaria
do castelo. Essa mulher interessou meu ancestral e me intriga. Chamava-se
Esclarmonde de Foix. Você já ouviu esse nome?
— Não — Claire mentiu.
— Imaginei que não. Esclarmonde foi uma das maiores sacerdotisas
cátaras e morreu há mais de cem anos. Apesar de você sequer saber de quem
se trata, o conde de Foix afirmou que sua semelhança com lady Esclarmonde é
espantosa. Isto me encorajou a trazê-la comigo.
— O conde de Foix me viu rapidamente e à distância, durante o banquete.
Nunca nos falamos. Como poderia notar alguma semelhança?
Porém o conde a observara sim, Claire admitiu em silêncio. Na verdade a
tinha fitado insistentemente e só não se aproximara porque o conde de Segni a
levara para a torre.
— De acordo com o lorde de Foix — continuou Aimery, — a semelhança é
notável. Vocês duas possuem os mesmos cabelos ruivos, os mesmos olhos
extraordinários. Interprete esses comentários como um elogio, porque mesmo
aqueles que abominavam as crenças cátaras decantavam a beleza de lady
Esclarmonde. Ela tornou-se uma lenda, a última das Perfeitas. E também uma
Madalena.
— Uma Madalena? — indagou Claire, a voz estrangulada. Desta vez foi
Aimery quem desviou o olhar.
— Maria Madalena era a patrona dos cavaleiros templários. A mulher a
quem eles adoravam como uma deusa. Naturalmente você não o saberia.
"Eu deveria ter alguma lembrança deste lugar", Claire pensou. Afinal, seus
ancestrais haviam sido queimados ali, seus próprios pais martirizados. Deveria
ouvir o sangue deles clamando vingança. Todavia não sentiu nada ao cruzar os
portões do castelo de Foix. Nem interesse, nem curiosidade. Apenas medo.
O que Aimery realmente sabia? Por que ele a trouxera consigo?
Padre Pedro falara sobre as provas encontradas, ligando madre Helene ao
movimento cátaro. Pela primeira vez Claire se perguntava se essas provas não
a ligavam ao grupo herege também.
Ao entrar no castelo, Claire experimentou sensações estranhas e
inquietantes. Sem dúvida fora pobre demais para viver ali e jovem demais
quando saíra da aldeia para guardar lembranças. Desde a mais tenra infância,
fora Montsegur o seu lar. O único lar do qual se recordava.
No entanto...
No entanto havia algo de familiar. Sentia-o nos ossos. Seus pais tinham
sido mortos na aldeia de Foix, quando os primeiros francos nortistas se
tornaram os novos senhores feudais, se apossando da suserania. Indagava-se
se a pessoa que ordenara a morte de seus pais ainda vivia. Seria obrigada a
apertar-lhe a mão? Padre Pedro repetira, incontáveis vezes, que seus pais
tinham sido assassinados por se recusarem a abandonar as velhas crenças e
os ensinamentos de sua preciosa religião. Felizmente o velho padre a salvara,
a levara embora antes que a machucassem. Ele não pudera fazer nada para
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 89

salvar seus pais e lamentava profundamente, nunca conseguindo aceitar esse


fracasso.
O templário lhe contara essa história pela primeira vez com lágrimas nos
olhos. Chorara ao escutá-lo. Chorara pelos pais dos quais não conseguia se
lembrar e por uma vida que não chegara a viver junto de sua família. Padre
Pedro a confortara. Ela seria Perfeita um dia. E os vingaria. Ela seria a
Madalena.
Era este o segredo que ambos partilhavam. O segredo que ninguém mais
sabia. Os cátaros voltariam a reinar nesta terra. O lar de sua gente.
De repente, uma onda de ódio a inundou. Um ódio que se estendia por
tudo e todos ao redor. Odiava o que a cercava. As montanhas, as colinas, o
castelo de pedras e o homem que o comandava, o novo conde de Foix. Odiava
Aimery de Segni também. Odiava-o por ele ter o poder de fazê-la esquecer que
estava sozinha, que sempre estivera sozinha, e que vivia em perigo constante.
Aimery que a levara até ali querendo lhe oferecer refúgio, proteção. Mas
proteção contra o quê? Cerrando os dentes, Claire abaixou os olhos e pela
primeira vez na vida, deixou que a raiva a guiasse.
Fora parar em um antro de inimigos e esse fato não devia ser ignorado, ou
menosprezado. Aimery não poderia, mesmo se quisesse, ajudá-la, caso
descobrisse a verdade a seu respeito. Ele jurara defender os interesses tanto
do papa quanto do rei. E, segundo lhe dissera Minerve, era um homem
ambicioso. Se desconfiasse de seu envolvimento com os hereges, Aimery seria
obrigado a delatá-la, entregá-la à Inquisição e às chamas.
Nem falsa ternura nem idas ao lago seriam capazes de salvá-la. Melhor
lembrar-se disso.
A verdade a enfurecia. Sua mente racional, pautada nos ensinamentos
cátaros, dizia uma coisa. Suas emoções mais profundas, outra.
Ele a abandonaria. Ela morreria. Como aceitar o inaceitável?
Quando as portas do salão foram escancaradas e um elegantemente
vestido conde de Foix surgiu para lhes dar as boas-vindas, Claire sentiu-se
grata pela interrupção de seus pensamentos. Enfim recuperara o controle e o
rosto delicado nada deixava transparecer do que lhe ia no íntimo. Ainda tinha
sua missão. E fora bem treinada para cumpri-la.
— Meu lorde de Segni — disse o anfitrião, com grande cerimônia. — É uma
honra recebê-lo no castelo de Foix.
Aimery desmontou e o outro nobre ajoelhou-se diante dele, estendendo as
mãos cruzadas, um costume antigo que traduzia lealdade a um lorde de maior
poderio.
— Você é muito bem-vindo — o conde de Foix completou, levantando-se.
Claire aproveitou a oportunidade para estudá-lo. Mais jovem do que
esperava. Mais jovem do que parecera no banquete em Montsegur. Isso lhe
proporcionava um certo alívio diminuía o peso de seu fardo de ódio. O conde
era novo demais para haver matado seus pais. Na época, não teria tido mais
do que sete, oito anos. Uma criança não participaria da atrocidade cometida
contra sua família. Aliviada, sorriu-lhe.
E ele retribuiu o sorriso. Com os cabelos loiros curtos e olhos azuis, o
conde de Foix tinha o tipo físico de Aimery, mas parecia faltar-lhe a força
natural que o conde de Segni emanava.
Porém seu sorriso era genuinamente franco e caloroso.
— Claire de Foix — falou Aimery —, eu gostaria de lhe apresentar Emerico
de Cabaret, conde de Foix.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 90

Sir Emerico fez uma reverência e, segurando-a pela cintura,


respeitosamente, ajudou-a a apear. Então se virou para uma mulher baixa e
gordinha, que permanecera alguns passos atrás.
— Claire de Foix, permita-me apresentar-lhe Joanna de Landiwick, minha
esposa.
As duas mulheres se cumprimentaram com reverências e, lado a lado,
caminharam para a entrada principal do castelo. A localização da fortaleza de
Foix era ainda mais impressionante do que Montsegur.
E Montsegur sempre fora considerada inóspita, inacessível aos inimigos.
Segundo a lenda, Raymond Roger de Foix havia, continuamente, se ausentado
de sua propriedade isolada, um reduto cátaro, para enfrentar as tropas
francesas lideradas pelo ancestral de Huguet, Simon de Montfort. Após
provocar graves estragos nas linhas inimigas, ele tornava a desaparecer,
refugiando-se em seu lar centenário. As turbulentas rebeliões lideradas por
Raymond Roger tinham todos os ingredientes geradores de uma lenda. Assim,
uma das primeiras preocupações do rei da França, tão logo subjugara aquelas
terras, fora remover o conde que as herdara por direito e pôr um homem de
confiança em seu lugar.
Apesar de seu passado tumultuado e de sua localização erma, o castelo
exalava serenidade. Enquanto seguia a jovem castelã pelos corredores da
fortaleza de Foix, Claire maravilhava-se ante a beleza da decoração.
Tapeçarias ricas enfeitavam as paredes imaculadamente brancas. As mesas de
madeira polida exibiam objetos de prata e estanho. Enormes arranjos de flores
impregnavam o ar com um perfume suave e calmante. Embora educada para a
simplicidade e treinada para desprezar tudo o que fosse mundano, Claire
estava achando difícil colocar defeitos em como o conde e a condessa
cuidavam de seu castelo. A atmosfera plácida e bela exercia influência sobre o
espírito e convidava à paz. E ela estava certa de que Aimery sentia a mesma
coisa.
— Suponho que lorde de Segni tenha lhe falado sobre o retrato de
Esclarmonde de Foix — disse lady Joanna. — É uma semelhança
impressionante. Espero que meu comentário não a incomode.
— Você não deveria chatear a donzela de Foix com essas coisas — o
conde repreendeu a esposa. — Ela perceberá a semelhança por si mesma,
depois de descansar da viagem e se alimentar com uma boa refeição. O conde
de Segni conhece algo a respeito da lenda de Esclarmonde. Seus ancestrais a
estudaram e ele se comprometeu a partilhar informações conosco. Ao que me
consta, Esclarmonde de Foix não era apenas uma Perfeita, mas também a
Madalena dos cavaleiros templários. Apesar do que acusavam as Madalenas,
de serem bruxas e concubinas de demônios. À noite, sob a luz das velas,
examinaremos o retrato da nobre Esclarmonde e veremos se a consideramos
ter sido capaz de práticas tão sombrias. — O conde de Foix riu. — Pelo menos
ela tinha a marca das feiticeiras, os cabelos vermelhos.
Assim que os castelões e seus convidados entraram no salão principal, um
bando de servos serviu-os de bebidas frescas, frutas, queijos e pães. Joanna fez
com que Claire se sentasse numa confortável cadeira.
— Como está o sacerdote? — começou sir Emerico, imediatamente
lançando um olhar preocupado para Claire. — Desculpe-me, sei que você não
planejara contar nada à jovem dama. Ela já o sabe agora?
Aimery tomou um pouco de água antes de responder.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 91

— No início, logo após a morte da abadessa, eu não quis sobrecarregá-la


com notícias funestas. Porém contei-lhe tudo. Quanto à sua pergunta, o padre
está melhorando lentamente. Coloquei-o sob vigilância constante e mandei
que me avisassem, caso venha a piorar.
— Você sabe qual o teor da mensagem que ele trazia?
— Não. O sacerdote ainda não recuperou a consciência e não pôde nos
dizer coisa nenhuma.
— Então deve ser algo importante, se a mensagem não foi escrita, mas
guardada na memória — observou lady Joanna. — Infelizmente esse não é o
primeiro infortúnio que se abateu sobre Montsegur nas últimas semanas. O
sacerdote, a abadessa... Dizem também que um outro monge adoeceu e
morreu de maneira misteriosa assim que você tomou posse do castelo.
— É mesmo — sir Emerico concordou. — Não seria esse monge, versado
em latim, quem transcreveria o julgamento de William Belibaste?
Claire soubera da morte do monge, todavia não relacionara a doença
súbita a sua função de escriba. Nervosa, sentou-se muito ereta.
— O julgamento do herege não tem trazido nada a não ser má sorte —
prosseguiu o lorde de Foix.
Sua jovem esposa concordou fervorosamente, balançando a cabeça.
— Consideramo-nos com sorte pela Inquisição não ter escolhido julgá-lo
em Foix. Ou estaríamos enfrentando os mesmos problemas.
Claire não queria escutar o que eles tinham a dizer sobre Belibaste, não
queria participar da conversa. Assim, enquanto os outros trocavam idéias
sobre o assunto, deixou a mente vagar e o olhar passear pelo salão.
O castelo de Foix realmente impressionava. Apesar de menor, era muito
mais opulento que Montsegur. Será que todas aquelas tapeçarias tinham sido
trazidas de Paris, ou já existiam desde o tempo do conde Raymond Roger,
quando a região vicejava sob o domínio cátaro? Padre Pedro lhe havia ensinado
que seus ancestrais cátaros viviam de modo simples e frugal, de acordo com
suas crenças. O velho monge sempre condenara veementemente as
extravagâncias da corte francesa e do papado em Roma. Todavia, o castelo de
Foix, antiga residência de Raymond Roger, só podia ser descrito como luxuoso.
As sedas e linhos, tapeçarias, objetos de prata e cristal, tudo muito antigo e
precioso, trazendo gravado o emblema da Casa de Foix. Claire não sabia como
relacionar o que padre Pedro contara com o que agora constatava como
realidade. Eram visões opostas a respeito da vida dos cátaros.
— Não é verdade, lady Claire?
À inesperada menção de seu nome, ela olhou primeiro para Aimery,
depois para os outros.
— Sir Emerico está falando sobre os cátaros — Aimery a informou
gentilmente.
— Existem rumores de que essa gente esteja por trás do ataque ao
sacerdote — explicou o lorde de Foix. — Aquele pobre homem. Recém-chegado
de Paris...
— Monstros! — gritou Joanna, tornando a sacudir os cachos dourados. —
Esta é a segunda vez na história recente de Montsegur que ocorrem vis
assassinatos.
Atônita, Claire fitou sir Emerico.
— Já aconteceram outros assassinatos em Montsegur?
— Naturalmente. Os cátaros nunca foram tão pacíficos quanto queriam
nos levar a crer. Uma das principais rebeliões aconteceu perto de Montsegur,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 92

anos atrás, numa cidadezinha chamada Avignonet. Com a Inquisição, não


havia lugar seguro para os cátaros. As investigações lançaram pais contra
filhos, maridos contra esposas. Durante as Cruzadas, os cátaros permaneceram
unidos. A Inquisição destruiu essa unidade, esfacelando o movimento e
provocando o aparecimento de delatores. Você pode ver os frutos dessa
traição na captura de William Belibaste. Ele não foi traído por um amigo? Ele
não havia escolhido Arnold Sicre como seu sucessor?
"Sir Emerico é tão jovem", Claire pensou, fitando-o. "Como podia ser tão
sábio? Como podia conhecer a história dos cátaros?"
— A tragédia aconteceu na véspera da festa da Ascensão a qual, no ano
de 1242, aconteceu no fim de maio — prosseguiu o conde de Foix. — Dois dos
maiores inquisidores, Stephen de St. Thibery e William Arnald, buscaram
hospitalidade em Avignonet, uma pequena cidade fortaleza. Ambos eram
esperados lá.
Joanna, a jovem castelã, tomou a palavra.
— Avignonet, como você sabe, está no coração de Languedoc. Região
montanhosa e de vales férteis. Dizem que a cidade é linda. Parece que os
cátaros, após anos de perseguição, cansaram-se de tomar parte da própria
destruição. Já não suportavam ver suas mulheres, acusadas de bruxaria,
desaparecerem do dia para a noite.
Claire notou que Aimery a estudava. Entretanto os olhos azuis nada
deixavam transparecer do que lhe passava no íntimo. Simpatizava com esse
povo condenado ou não se importava a mínima com o que haviam sofrido?
Sir Emerico continuou a história.
— Os dois padres inquisidores foram bem recebidos por Raymond d'Alfaro,
representante do conde de Toulouse. Raymond era uma pessoa importante na
região por ter se casado com a meia-irmã ilegítima do conde. Todavia, porque
seu poder emanava do cunhado, é difícil imaginar que Raymond tivesse
tomado decisões tão importantes sem o consentimento expresso de seu
superior, o conde de Toulouse.
Sir Emerico fez uma pausa para sé certificar de que sua audiência
continuava a escutá-lo com interesse antes de retomar a narração.
— Raymond d'Alfaro desempenhou o papel de anfitrião perfeito.
Hospitaleiro, ofereceu aos dois viajantes cansados as melhores acomodações
do castelo, onde poderiam jantar em paz e dormir sossegados. Assim que os
inquisidores adormeceram, o criado encarregado de servi-los escapou para a
floresta, onde era aguardado. Seis homens, então, rumaram para o castelo,
outros aldeões se unindo ao grupo no trajeto. O bando podia ser facilmente
identificado como trabalhadores voltando do campo, devido aos machados que
carregavam. Tudo havia sido cuidadosamente planejado para não levantar
suspeitas. O servo, escalado para ir à floresta chamá-los, esperava para abrir
os portões do castelo e guiá-los até os aposentos dos inquisidores.
Novamente sir Emerico fez uma pausa e olhou para a esposa, à espera de
encorajamento.
— Vocês podem imaginar o resto. O fim dos sacerdotes foi rápido. Um
deles teve tempo apenas de invocar a Virgem Maria antes de cair morto a
machadadas. Então o grupo de agressores queimou toda a documentação dos
julgamentos dos hereges, encontradas num baú, e partiu. Chegando às suas
casas, os aldeões foram recebidos com flores e cânticos.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 93

— Se os inquisidores não houvessem sido mortos, teriam matado outras


pessoas, condenando-as à fogueira — disse Claire muito séria. — Não tenho
nenhuma simpatia por eles.
Porém, no íntimo, o assassinato a sangue frio a incomodava.
— De certa maneira não há dúvida de que o instinto de auto-preservação
motivou o crime — concordou sir Emerico. — Mataram para não serem mortos.
Todavia esse não IOI o único motivo. Muitos acreditam que existia uma razão
maior para o crime. Durante os interrogatórios, houve suspeita de que os dois
inquisidores tinham descoberto o paradeiro do tesouro dos cátaros e, portanto,
precisavam ser silenciados para que o segredo não fosse revelado.
— Eles haviam mesmo descoberto o paradeiro do tesouro? — Claire
perguntou, sem se importar que sua curiosidade levantasse suspeitas.
— Não naquela época. — Sir Emerico parecia entediado agora. O ponto
alto de sua narrativa fora a batalha entre cátaros e Inquisição. O resto não
passava de boatos sem importância. — Não naquela época — repetiu. — Mas
muitos afirmam que outras pessoas conheciam o local onde o tesouro está
escondido. E dizem que William Belibaste o sabe.
As palavras do conde de Foix ecoaram no silêncio do grande salão:
"William Belibaste sabe onde está escondido o tesouro dos cátaros".
Claire perguntou-se quais poderiam ser as conseqüências dessa suspeita
no julgamento de William Belibaste. Mais do que nunca, o futuro lhe pareceu
sombrio.
Lady Joanna precisou de algum esforço para disfarçar o choque. Porém,
curvando-se ao inevitável, concordou em instalar Claire de Foix no quarto ao
lado do conde de Segni, na ala nobre do castelo. A maioria dos homens, em
sua opinião, teria a delicadeza de se esgueirar nos aposentos da amante na
calada da noite e não permitiria que esta dormisse a poucos metros de uma
dama casada, em especial quando esta dama fosse a castelã de Foix. Joanna
não tinha a menor dúvida de que Claire fosse algo mais que uma simples
escriba para o senhor de Montsegur. Bastara reparar no modo como ele a
olhava. Embora discreto, e mesmo respeitoso, o interesse do conde de Segni
pela jovem era claro como a luz do dia. Havendo seu marido jurado lealdade a
Aimery de Segni, restava-lhe apenas ceder.
Mas, não sendo francês e sim italiano, talvez os detalhes do que fosse um
comportamento apropriado lhe escapassem. Afinal, toda a Europa sabia que
coisas estranhas aconteciam na Itália.
Entretanto lady Joanna permaneceu inflexível em um detalhe. Em hipótese
nenhuma partilharia os mesmos aposentos com a donzela de Foix, conforme o
costume entre as senhoras da nobreza. A escriba podia ser culta e bela, algo
que admitia de má vontade, contudo ninguém sabia nada sobre sua linhagem.
Emerico dissera que Claire nascera em uma família de camponeses. A própria
Claire insistia nisso. Ainda assim, ninguém o sabia com certeza. Aliás, segundo
seu marido, esse fora um dos motivos pelo qual sir Aimery resolvera trazer a
escriba para Foix. Para esclarecer o mistério de sua linhagem.
Foix era um lugar pequeno. Não seria difícil resolver a questão.
— Coloquei-a sozinha neste aposento — falou a castelã, abrindo a porta de
um quarto pequeno. — Você desfrutará de paz e privacidade. Mandarei uma
criada vir ajudá-la a se vestir para o jantar. Avise-me se necessitar de algo.
Claire apenas assentiu. Sabia muito bem o que aquela mulher baixinha e
roliça estava pensando. A princípio, sentiu-se embaraçada. Depois, teve
vontade de rir. Como se Claire de Foix pudesse ser amante de um homem!
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 94

Educada nas crenças cátaras, preparada para se tornar sacerdotisa, Perfeita,


jamais experimentara as tentações da carne.
"Exceto quando ele me apertou junto do peito. Exceto quando flutuei em
seus braços".
Todavia não estava segura ali. Não perto dele. Era uma das últimas
Perfeitas de Languedoc, membro de uma seita herege que Aimery de Segni
jurara destruir. Inimigos a rodeavam. Precisava guardar tanto sua virtude
quanto sua vida.
E havia mais. Se William Belibaste sabia onde fora escondido o tesouro,
como o conde de Foix afirmara, então por que ele não contara àqueles que
planejavam sua fuga? Uma boa maneira de obter a liberdade seria trocá-la por
moedas de ouro. Belibaste, sem dúvida, era inteligente o suficiente para
entender isso. Se ele soubesse onde os cátaros, ainda no século anterior, antes
de sua destruição, haviam enterrado suas riquezas, por que não partilhara tal
conhecimento com os companheiros após sua prisão? Por que não contara a
padre Pedro, que lutava incansavelmente para libertá-lo?
Incapaz de encontrar respostas para essas perguntas, Claire decidiu
ocupar a mente com qualquer outra coisa.
Seu olhar interessado percorreu o ambiente. Com certeza o quarto
acanhado sempre fora destinado àqueles cuja linhagem exigia hospitalidade na
ala nobre, mas que não possuíam um título que os fizessem merecer grandes
confortos. A inexistência de uma lareira sugeria que o espaço apertado seria
úmido e cheiraria a mofo no inverno. O mobiliário consistia apenas de uma
cama estreita, uma mesinha, um banco e um crucifixo na parede. Claire
ajoelhou-se diante do crucifixo. Precisava desse conforto. Precisava pensar.
Poderia realmente existir um tesouro?
Padre Pedro sempre afirmara que não. Apenas boatos, rumores sem
fundamento, o velho padre repetira vezes sem monta. Poderia estar
enganado? Nunca o questionara antes, mas talvez fosse o momento de exigir
explicações. Devia descobrir a verdade por trás dos rumores. Talvez fosse esse
o motivo de sua vinda para Foix. Descobrir a verdade e contá-la a padre Pedro.
Usariam esse conhecimento para libertar William Belibaste.
— E então, talvez, todos nós seremos livres também — ela murmurou.
Sem pensar, Claire desfez as trancas. Balançando a cabeça devagar,
deixou os fios se espalharem por suas costas, chegando quase até a cintura.
Devia se preparar. Devia ficar pronta.
Os últimos pássaros já haviam se recolhido em seus ninhos para a noite
quando Claire finalmente terminou de se arrumar para o jantar. Nunca, em
toda sua vida, gastara tanto tempo consigo mesma. Entre banhar-se, usando
sabonetes de gordura de ganso, e vestir um de seus dois hábitos brancos, não
precisaria mais do que dez minutos. Porém, aquele ritual severo proporcionara-
lhe alguma paz. Uma paz que não experimentava agora. Na verdade, há
muitos anos não sabia o que era a paz. Serenidade seria um termo mais
adequado para definir sua existência. Serenidade, docilidade, confiança. Esses
tinham sido os sentimentos que nortearam seus dias desde o momento em que
padre Pedro a salvara da tragédia que se abatera sobre sua família. Ela
passara a querer o que ele ardentemente buscava: vingança. Passara a ansiar
pelo que ele ansiava: a ressurreição dos cátaros.
Mas, estranhamente, enquanto aguardava que o conde de Foix viesse
buscá-la, começava a ter dúvidas sobre o que queria. Já não sabia pelo que
ansiava. Já não confiava em ninguém.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 95

"Descubra sobre o tesouro. Use seus poderes".


Irritada, procurou sufocar as palavras do velho padre. Como poderia padre
Pedro estar lhe pedindo isso, quando ele insistia na inexistência de um
tesouro?
Tudo começara inocentemente. Disso Aimery tinha certeza. Fora sem
segundas intenções que presenteara a escriba com o lenço de seda. Depois a
ensinara a flutuar e pretendia ensiná-la a nadar. Levara-a para morar em seu
castelo quando a julgara em perigo, após a descoberta da boneca de cera.
Abraçara-a para confortá-la, quando Claire perdera a amiga e abadessa
Helene. Trouxera-a consigo para Foix em busca de respostas. Todos esses
tinham sido gestos inocentes, inofensivos até. Todavia, o que estava sentindo
agora não era nem inocente, nem inofensivo. Aimery de Segni o sabia muito
bem.
Desejava-a.
Era homem o bastante para enfrentar os fatos. Ao vê-la caminhar pelo
salão repleto para ocupar um lugar à mesa principal, quaisquer dúvidas que
pudesse ter a respeito das emoções que o moviam se desintegraram. Claire
estava diferente agora. Muito diferente de quando a conhecera, no primeiro dia
do julgamento de William Belibaste. Ele a fizera diferente.
A donzela de Foix não usava mais o hábito disforme e simples de uma
noviça. Trajava um dos mais belos vestidos de Minerve, de seda azul cobalto,
rebordado com fios de ouro. Fora ele mesmo quem comprara a seda para a
irmã, em uma viagem à Província de Como. Minerve entregara a uma
renomada costureira de Paris, famosa pelo bom gosto e pelos preços salgados,
a tarefa de confeccionar a roupa. Sua irmã devia realmente gostar de Claire,
para lhe emprestar o vestido. E Claire estava absolutamente linda.
Como ele a desejava.
No princípio, acreditava jamais tê-la considerado uma mulher desejável,
embora Huguet não houvesse pensado assim. Na verdade o cunhado lhe
chamara a atenção, aconselhando-o a não se envolver com uma jovem noviça.
Enquanto a observava se aproximar da mesa, Aimery concluiu que ambos
estavam ligados por acontecimentos aparentemente sem grande importância,
mas significativos. Primeiro, cedendo a um impulso, a presenteara com o lenço
de seda. Depois a instalara em Montsegur e então resolvera trazê-la para Foix.
Seus corpos haviam se tocado no lago e não hesitara em tomá-la nos braços,
quando madre Helene morrera. Fatos simples e, entretanto, fortes.
Ao erguer a cabeça, o olhar de Claire cruzou com o de Aimery. Como se
presa de um fascínio arrebatador, ela continuou caminhando, sem deixar de
fitá-lo. Era como se, pela primeira vez, enxergasse Aimery.
Tudo ao redor parecia haver desaparecido. Claire enxergava apenas
Aimery e nada mais a interessava.
Então o encantamento foi quebrado. O conde de Foix estendeu a mão
para ajudá-la a sentar-se.
— Boatos — disse a rechonchuda lady de Foix, com uma ponta de
nervosismo. — Há boatos insistentes de que teremos problemas aqui também.
Ninguém precisava perguntar sobre a natureza dos problemas. Desde o
reaparecimento de William Belibaste, os rumores que varriam Languedoc
estavam concentrados na conspiração que libertaria o herege. Que Belibaste
continuasse preso parecia não importar. Importava apenas disseminar o medo.
— E agora com todas aquelas mortes em Montsegur... — A castelã
suspirou e cobriu os ombros com o xale de seda. — Todo mundo está falando
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 96

sobre os cátaros outra vez e eles estavam praticamente esquecidos. Quando


sir Emerico, meu marido, tomou posse desse castelo, ninguém mencionou os
problemas antigos. Mas agora com a chegada do bispo Fournier e a
Inquisição... não se fala em mais nada além do passado. Comentam sobre
Simon de Montfort e os cavaleiros templários. Também falam sobre
Esclarmonde de Foix.
O coração de Claire deu um salto à menção dos cavaleiros templários e o
envolvimento deles com uma Perfeita. Caso aprofundassem o assunto, existia
a possibilidade de chegarem perto de padre Pedro. Ninguém podia suspeitar da
existência do velho templário. Precisava dizer alguma coisa, qualquer coisa,
para distraí-los, precisava mudar de assunto. Mas Aimery se manifestou
primeiro.
— São objetos muito interessantes esses — disse o conde de Segni,
erguendo um utensílio.
— São chamados garfos — sir Emerico explicou, orgulhoso de sua
aquisição. — Invenção dos sarracenos. Meu sogro os descobriu em Jerusalém,
durante as Cruzadas. São muito mais práticos do que facas. Apanham a comida
com mais facilidade. O pai de Joanna é um Valois e bastante inovador. A família
inteira é assim. Comenta-se que você não tardará a se unir à família. Marido e
mulher se entreolharam e então fitaram Claire.
— Lady Isabel e eu estamos quase noivos há algum tempo — Aimery
observou gentilmente. — Todavia nada de definitivo está decidido. Sempre
acreditei que os arranjos de casamento devem ser deixados nas mãos dos
profissionais, como os banqueiros da Lombardia. Nossos representantes ainda
não chegaram a um acordo financeiro com os representantes da família Valois.
Sir Emerico e esposa concordaram entusiasmados, o casamento de ambos
tendo seguido os mesmos trâmites. Isso também ajudava a explicar a presença
de Claire. Se os rumores estavam corretos, as negociações entre os
representantes da viúva Isabel de Valois e os do conde de Segni se arrastavam
há três anos. A união de poderosas famílias só podia estar emperrada por dois
motivos: terras e dote. Entretanto um homem tinha outras necessidades. E tais
necessidades seriam facilmente satisfeitas por uma linda escriba como a
donzela de Foix. Afinal, Paris inteira sabia que Isabel, apesar do casamento
próximo, não abria mão de suas "prerrogativas". Portanto, seria natural o
conde também se sentir livre para exercer seus direitos. Isso fazia com que o
casal de castelões olhasse Claire com maior benevolência.
Aliás, fora essa a intenção de Aimery, pois lhe abrira o caminho para a
pergunta seguinte.
— Vocês, por acaso, sabem que minha irmã se casou com um
descendente de Simon de Montfort?
Lady Joanna, que acabara de engolir seu terceiro doce, ergueu uma
sobrancelha.
— E mesmo? Sim, agora que você mencionou o fato lembro-me de ter
ouvido algo a respeito. Claro que eu deveria saber, porém têm sido tantos os
casamentos entre a nobreza ultimamente. E impossível manter um registro de
todos.
— Muito embora qualquer união de um membro de sua ilustre família seja
importante para toda a Europa — apressou-se a acrescentar sir Emerico,
temendo que a esposa houvesse ofendido o convidado de honra e seu
superior.
Imediatamente lady Joanna apoiou o marido.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 97

— Ouvi dizer que Raymond Roger de Foix foi o mais feroz dos adversários
de Simon de Montfort — prosseguiu Aimery.
— Ele era considerado, por muitos, o mais excepcional dos generais de
Languedoc — falou sir Emerico, o rosto vermelho devido ao vinho. — Porém, na
verdade, existiam poucos rivais para disputar o título. Sendo montanheses
independentes, os sulistas estavam determinados a não se renderem aos
nortistas francos. Mas essa independência os impedia de aceitar ordens, de
trabalharem juntos. Diferentemente dos francos, que se apoiavam na
estratégia, o povo de Languedoc confiava apenas no que julgava a retidão de
sua causa. Não acreditava na importância de trabalhar em conjunto. E nós
conhecemos o resultado dessa tolice.
— A Inquisição — murmurou Claire, somente Aimery escutando-a.
— Claro que os francos venceram — comentou lady Joanna. — Sendo
cruzados, tinham a boa vontade de Deus para ajudá-los.
— Eles contaram com o apoio do poder político dominante — Aimery a
corrigiu.
— Vocês conhecem a lenda de Foix? — sir Emerico indagou,
diplomaticamente evitando discutir um assunto polêmico.
— Conte-a — incentivou-o a esposa, se empanturrando com o oitavo
docinho. — Nossos convidados poderiam gostar de ouvi-la. Especialmente
Claire, pois lorde Aimery costuma chamá-la de donzela de Foix. Talvez ela
gostaria de saber como Raymond Roger encorajou tanto a esposa Phillipa,
como a irmã, Esclarmonde, a se tornarem Perfeitas, as sacerdotisas cátaras.
Infelizmente haviam voltado para o ponto de partida e não havia nada que
Claire pudesse fazer a respeito. "Talvez fosse melhor permanecer em silêncio",
pensou. E parar de temer o que Emerico viesse a dizer-lhe. Devia escutar e
aprender.
— Falam que os motivos por trás da atitude de Raymond não estavam
muito relacionados à devoção religiosa e sim ao desejo que ele sentia por Loba
de Cabaret, uma mulher linda e sedutora — esclareceu lady Joanna, piscando
um olho. — Apesar disso tudo ter acontecido há menos de cem anos, era
seguro confiar a esposa e irmã a um convento cátaro. Ainda não se queimava
ninguém em fogueiras por heresia. Isso viria depois. Com as Cruzadas.
Fitando-o de soslaio, Claire percebeu que a história interessava Aimery
imensamente. Será que o conde a trouxera a Foix para que escutasse as
lendas locais?
Os castelões de Foix se prepararam para prosseguir a narrativa. Sir
Emerico com seu vinho e a esposa com seus doces.
— As batalhas que se sucederam foram ferozes — continuou o lorde de
Foix. — Absolutamente ferozes. Cristãos contra cristãos e depois contra os
cátaros hereges, em um derramamento de sangue como nunca se vira antes.
Nem mesmo na guerra contra os sarracenos na Cidade Santa. Simon de
Montfort arrasou essa região, e lançou tantas bruxas à fogueira que as noites
pareciam dias. Conde Raymond Roger foi um dos poucos a resistir-lhe. Os
outros, como eu disse, eram independentes demais, ou fracos demais, como o
conde de Toulouse. Um homem muito fraco — repetiu sir Emerico, num tom
desdenhoso. — Raymond Roger e seu filho eram diferentes. Foram os últimos
grandes defensores dos cátaros.
— Mas as razões por trás dessas batalhas revelaram-se muito mais
políticas do que religiosas — ponderou Aimery de Segni, cujos ancestrais
tinham sido os primeiros a apoiar as Cruzadas. — Sendo essas terras férteis, o
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rei da França queria assegurá-las para si, especialmente depois que a maior
herdeira da região, Eleanor de Acquitaine, se casou com Henrique, o rei inglês.
Outra vez sir Emerico sorveu uni longo gole de vinho. A um sinal da
castelã, uma criada substituiu a travessa vazia por outra cheia de docinhos.
— No fim o conflito se resumiu a um confronto entre Simon de Montfort e
Raymond Roger de Foix — disse lady Joanna, com um suspiro. — E que
contraste aqueles dois faziam!
Sir Emerico retomou a palavra.
— Simon era casado com uma mulher verdadeiramente maravilhosa, Alice
de Montmorency, a quem permaneceu fiel e dedicado. Do outro lado, embora
decantasse aos quatro ventos as virtudes dos cátaros, Raymond Roger levava
uma vida devassa.
— Você não estaria se confundindo? — perguntou Claire.
— Não seria o conde Raymond Roger quem se dedicou inteiramente à
família e Simon de Montfort o libertino?
Pelo menos fora o que padre Pedro sempre lhe ensinara. O conde de Foix
caiu na risada.
— Oh, não. Era exatamente o contrário. Os trovadores cantaram muitas
canções sobre o comportamento dissoluto do velho conde de Foix.
— Talvez "exuberante" fosse uma palavra mais adequada —
contemporizou lady Joanna.
— Todavia Montfort não era, como diria minha esposa, "exuberante". Alice
de Montmorency sempre foi a única mulher de sua vida. Lembro-me de meu
pai contar que ela partia para as batalhas ao lado do marido, recusando-se a
ser deixada para trás, no castelo, enquanto o amado se expunha ao perigo. Os
dois se entregaram àquele casamento de corpo e alma.
— Como um casamento deve ser — concordou a castelã. — Digno de
censura é Raymond Roger, com uma esposa trancada em um convento e
morando com a amante no castelo.
Ninguém percebeu o prolongado silêncio de Claire.
— Ele não era um homem tão mau assim. Apenas humano, com
necessidades humanas — decretou lady Joanna, como se falasse de um
parente excêntrico e não daquele de quem ela e o marido tinham usurpado as
terras.
— É verdade — concordou o atual conde de Foix. — Raymond Roger
morreu tranqüilamente enquanto dormia e está enterrado perto do castelo.
Devo esclarecer que apesar de todos os seus problemas com as Cruzadas, ele
conseguiu estabelecer uma trégua com a Igreja e foi bastante generoso com os
membros do clero que se mostraram inclinados a fazer vista grossa para seus
excessos e lhe dar a absolvição. No final, foram os monges cistercienses quem
lhe prepararam um lugar para o repouso eterno.
— O fim de uma era — disse Aimery. — A morte dele marcou o fim das
Cruzadas nessa região.
— E o fim da causa catara também — Claire falou num impulso.
— É engraçado como todos vocês foram reunidos outra vez — comentou
lady Joanna. — Segni, Montfort e agora a donzela de Foix. É quase como se o
velho padrão de inimizade houvesse ressurgido.
— Não tenho nenhuma ligação com as causas nobres — Claire se apressou
a esclarecer. — Sou filha de simples camponeses.
— Mas você nasceu em Foix — a castelã insistiu. — E agora exerce a
função de escriba neste último julgamento cátaro.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 99

— Agora, não no passado — insistiu Claire, certa de que algo ainda estava
por vir. Podia sentir nos ossos que uma mudança ocorreria. Queria dar as
costas àquela situação e correr para junto de padre Pedro. Padre Pedro que
sempre lhe proporcionara segurança, que sempre a cercara de cuidados.
Entretanto, bem no fundo, sabia que seria impossível. Não poderia jamais
voltar atrás. O futuro a puxava para a frente. Não poderia retornar ao passado.
Estava sozinha e com medo.
Sempre estivera sozinha, ela percebeu de repente. Sempre estivera com
medo.
Sir Emerico retomou a história do ponto que, particularmente, julgava
mais interessante.
— Simon de Montfort morreu em um campo de batalha depois de sitiar, e
vencer, Raymond Roger em Toulouse. Toulouse era, e ainda é, um dos maiores
centros comerciais da região e seu povo, cátaros e ortodoxos, estava unido
contra os invasores. Os condes lutaram lado a lado com os camponeses;
homens, mulheres e crianças lutaram. Todos sabiam o que lhes aconteceria se
Montfort vencesse. O povo de Toulouse lutou com o desespero nascido da
certeza de que suas vidas dependiam do resultado daquele embate. Porque,
apesar de todas as suas virtudes, Simon de Montfort era implacável nas
Cruzadas, não deixando nenhum sobrevivente.
— Eles não poderiam jamais vencer. Meu marido lhes dirá por quê — falou
lady Joanna. — Conta-se que os padres já estavam ouvindo as confissões e os
Perfeitos ministrando os últimos ritos quando o milagre aconteceu.
— E foi verdadeiramente um milagre — concordou sir Emerico. — Os
invasores francos haviam construído uma enorme catapulta. Essa máquina de
guerra era tão temida que o povo de Toulouse a chamava de "arma de
bruxaria". E eles sabiam que se a permitissem se aproximar de suas muralhas,
seriam massacrados. A máquina tinha que ser destruída. Como sempre, foi
Raymond Roger quem decidiu deixar a cidadela, em uma bela manhã, e liderar
um ataque surpresa. Conta a lenda que, naquele exato momento, o sempre
piedoso Simon de Montfort estava assistindo à missa e que pediu a Deus que
lhe concedesse a vitória, ou a morte. Então Simon, acompanhado de seu irmão
e camarada, Guy de Montfort, saiu para o campo de batalha. De repente,
quando a vitória parecia certa, uma flecha atingiu Guy na virilha. Simon apeou
e correu em auxílio do irmão. Uma atitude digna de um homem bom e valente
— prosseguiu sir Emerico, após breve pausa. — Mas que o condenou à morte.
Dizem que uma virgem catara aproveitou-se da situação e, com um estilingue,
lançou uma pedra, atingindo Simon de Montfort na têmpora. A morte foi
instantânea. A notícia da queda de seu líder se espalhou como fogo no campo
de batalha e pela cidade. Lo lop es mort! Lo lop es mort! O lobo está morto! O
lobo está morto! Coube ao filho mais velho de Simon, sir Amaury de Montfort,
recolher o corpo do pai e levá-lo para longe do combate. Dali a um mês, a
catapulta estava destruída e o cerco a Toulouse findo. Os cruzados ainda
tentaram um último ataque desesperado à fortaleza, porém foram repelidos.
Entretanto, apesar da vitória, parece que foi a causa catara que morreu
naquele dia, junto com sir Simon. As batalhas cessaram, dando lugar a uma
época de calmaria. Até agora. William Belibaste é o primeiro cátaro a ser preso
em muito, muito tempo. Veremos o que irá acontecer ao longo desse
julgamento.
Sir Emerico calou-se, os olhos fixos em Aimery de Segni.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 100

CAPÍTULO XI

— Toda essa conversa de guerra e mutilação — disse lady Joanna,


estremecendo. — Devemos agradecer aos céus que tanta tragédia faça parte
do passado. Que tal irmos ver a tapeçaria agora? Você não terá dúvidas, sir
Aimery, sobre a semelhança extraordinária entre Esclarmonde de Foix e a
jovem escriba Claire.
A castelã os conduziu através dos corredores sinuosos, iluminados pela luz
de tochas. Mais uma vez, Claire se impressionou com a decoração refinada do
lugar. Flores frescas e objetos valiosos se sucediam, encantando os olhos e o
olfato. Todavia, apesar da beleza que a cercava, a caminhada pareceu durar
uma eternidade. Na verdade, não desejava nem um pouco constatar sua
possível semelhança com a nobre catara, a grande Perfeita. A idéia a
apavorava, embora não conseguisse entender por quê. Afinal, desde sempre
lhe haviam ensinado a reverenciar e respeitar Esclarmonde de Foix, por tudo o
que ela significara para a causa. Por que tanto receio então? Nem mesmo a
presença de Aimery estava servindo para acalmá-la. E desde a morte de madre
Helene, aprendera a ver no conde de Segni um protetor, um porto seguro.
Porém, observando-o caminhar ao lado de Emerico de Foix, enxergou-o,
mais uma vez, como o inimigo. Uma ameaça para ela, para padre Pedro e os
planos que haviam traçado. Podia sentir o perigo pairando no ar, o perigo que,
de alguma forma, dele emanava e a envolvia como um manto sufocante.
— Aqui estamos — lady Joanna falou, abrindo a porta de um pequeno
cômodo. — De fato, não sei para que servia esse aposento.
"Uma capela", Claire pensou imediatamente, inundada por uma poderosa
sensação de paz. Quase podia sentir o aroma das velas e das flores que, em
um passado distante, enfeitaram a pequena mesa.
— Ali — sussurrou a castelã, apontando para uma das paredes. — A
tapeçaria fica ali. — Em silêncio, os quatro se aproximaram do local indicado.
— Esclarmonde de Foix não é igualzinha a você?
O quadro mostrava uma mulher ensinando uma menina. No colo da
mulher, um livro grosso. Claire vira, certa vez, uma pintura similar, enviada
pelo grande monastério de Cluny para o convento de Santa Madalena,
juntamente com um rolo de pergaminhos. O desenho mostrava Santa Ana
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 101

ensinando a filha, a Virgem Maria. Entretanto, havia algumas diferenças nas


duas cenas retratadas.
— Ela não se parece em nada comigo — exclamou Claire, quase exaltada.
— Absolutamente em nada.
Todavia os outros notaram a espantosa semelhança entre a mulher, morta
há cem anos, e a jovem Claire. Ambas possuíam a mesma pele alva e testa
alta, os mesmos olhos verdes e límpidos, os mesmos cabelos ruivos e
ondulados.
E, ainda mais impressionante, era a expressão do rosto das duas. A
mesma serena maturidade.
Esclarmonde de Foix estava sentada junto à uma das janelas do castelo, o
livro em seu colo esquecido. Ela mostrava à menina, uma versão em miniatura
de si mesma, algo além das muralhas. Seus dedos elegantes ostentavam dois
anéis. Um de diamantes outro com uma gigantesca esmeralda. Jóias valiosas,
embora simples, a última coisa que Claire esperara em uma sacerdotisa catara.
Padre Pedro sempre insistira que os cátaros não queriam nada deste mundo,
não se apegavam a bens materiais. Pelo contrário, abominavam qualquer tipo
de ostentação porque valorizavam apenas o espiritual. E acreditara nele. Em
tudo o que o velho padre dissera.
Contudo, era óbvio que aquela bela mulher, trajando roupas finas e
usando belas jóias, fora a verdadeira senhora desse magnífico castelo. Claire
tinha certeza de que havia sido Esclarmonde de Foix quem se encarregara da
decoração do próprio lar, escolhendo os ricos objetos de prata e estanho, as
tapeçarias valiosas, os cristais, o mobiliário suntuoso.
E ela fora uma catara, uma Perfeita.
Ignorando a presença dos outros, Claire deu um passo à frente, a atenção
fixa no livro que a bela dama trazia no colo. Na capa cor de vinho, sobressaía-
se o emblema dos cavaleiros templários.
Ali estava a prova da ligação entre os banidos cavaleiros templários e a
causa dos cátaros, representada por Esclarmonde de Foix. A Madalena.
Assustada, Claire sentiu o sangue gelar nas veias. O perigo parecia
espreitá-la. Sempre estivera tão certa sobre os acontecimentos passados.
Agora já não tinha certeza de que o que aprendera fosse a expressão da
verdade.
— Não — ela repetiu, decidida, dando as costas ao retrato. — Lady
Esclarmonde não se parece em nada comigo. Absolutamente em nada.
O fogo a cercava. Podia sentir o calor excruciante, ouvir o crepitar das
chamas na sua ânsia de destruição.
Mamãe! Papai!
Cercada por uma cortina de fogo, não conseguia enxergar nada ao redor.
Mas podia escutar os pais, sentir a presença dos dois. Entretanto, era muito
pequena para fazer qualquer coisa. Como uma criança de três anos seria capaz
de enfrentar um inimigo tão poderoso?
As chamas avançaram na sua direção, consumindo o que estiva pelo
caminho.
Mamãe! Papai!
Apenas um sussurro, porque a fumaça afazia tossir.
Nenhuma resposta.
Nenhuma esperança.
Corra! Fuja!
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 102

Seria a voz de sua mãe? Claire ficou imóvel, o coração aos pulos. Não
havia sinal de sua mãe.
Então ela viu o homem. Não, na verdade não o viu se aproximar. Apenas
foi pega no colo e carregada para longe daquele inferno.
O desconhecido pôs-se a correr, levando-a para o meio da floresta, para
longe do fogaréu. Claire sorveu o ar fresco avidamente e, ao vomitar, o homem
lhe deu água fresca para beber.
— Nossa Esclarmonde — ele murmurou. — Nossa Madalena. Você
esquecerá essa vida e tudo o que ela significava. Nós tomaremos conta de
você. Helene, eu e os outros. Nós educaremos você e faremos com que nada
de mal lhe aconteça, nunca, nunca mais. Você será feliz. Você será uma
Perfeita.
A menina Claire agarrou-se ao homem vestido com um hábito escuro.
A Claire adulta acordou gritando.

CAPÍTULO XII

Ele sabia que não podia tê-la. Aimery, conde de Segni, não trilhara o duro
caminho da pobreza à proeminência, seguindo trilhas que levassem a lugar
nenhum. E Claire de Foix o conduziria a nada. Sabia muito bem. Escolhera para
si uma vida pautada no dever e na obrigação e agora desfrutava das
recompensas obtidas com orgulhosa satisfação: a suserania de Montsegur, a
irmã casada com um membro de uma ilustre família. Quanto a ele próprio...
Com passadas largas Aimery atravessou um dos vastos corredores.
Emerico já havia conquistado exatamente o que buscara para si. Reconstruíra
o castelo de Foix, tornando-o ainda maior e mais imponente. Chegaria o
momento em que Montsegur ultrapassaria Foix em magnificência. Na verdade,
assim que se casasse com Isabel de Valois. Sim. Quando, finalmente, se
casassem. Não fazia idéia por que, há tempos, adiava a união. A desculpa que
sempre dera, sobre os banqueiros da Lombar-dia e suas demoradas
maquinações, não passava mesmo disso. Uma desculpa esfarrapada. De fato,
era o único culpado pela demora em desposar uma das mais desejáveis
herdeiras da atualidade. Simplesmente não conseguia entender por que
relutava. Sim. Isabel não era nenhuma santa. Viúva, levava uma vida sexual
ativa; histórias de suas escapadas nunca foram segredo. Porém, sempre
ignorara os rumores. Afinal, Isabel, rica e aristocrata, podia fazer o que bem
quisesse. Os boatos sobre sua promiscuidade jamais o haviam incomodado no
passado. Aliás, não haviam incomodado ninguém. Esse era o privilégio dos
bem-nascidos e ricos. Nada do que fizessem parecia merecer reprovação.
Aimery pensou no pai. Lembrou-se de como ele buscara, avidamente, o poder
e a glória, as únicas coisas que tornavam a vida digna de ser vivida. Nada mais
importava para o velho conde de Segni.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 103

Todavia, talvez, outras coisas estivessem começando a ter importância


para seu filho. Talvez fosse essa a razão pela qual nunca finalizara os planos
para desposar a mais rica, e mais libertina, mulher da França.
"Impossível", decidiu Aimery, sorrindo ante a idéia absurda. Não queria
nenhuma virgem, jamais quisera uma. Mulheres puras significavam um alto
preço a pagar. Em vez de amolação, podia se unir a Isabel, deixá-la viver como
quisesse e continuar a viver como bem entendesse também. Continuariam
cada um morando em uma parte do país, encontrando-se raramente. Admirava
o tipo de casamento que Minerve tinha com Huguet, ou Simon de Montfort com
Alice de Monternorency, mas o considerava sufocante. Desejava algo diferente.
Aimery parou diante de uma janela que se abria para o jardim. Sentada
sozinha em um banco de pedra, estava Claire. As mãos cruzadas no colo, uma
expressão sombria no rosto. Que será que a perturbava? Ansiava sabê-lo. No
dia anterior, a jovem noviça escutara todas aquelas histórias sobre as Cruzadas
e fora obrigada a enfrentar sua espantosa semelhança com Esclarmonde de
Foix. E mais coisas estavam para acontecer. Pois planejara a viagem para
esclarecer o mistério que a cercava. Na verdade, parecia mais interessado em
solucionar esse enigma do que ela.
Se conseguisse ficar imóvel, se conseguisse voltar-se para dentro de si
mesma e se esquecer de tudo, talvez conseguisse encontrar paz. Porém estava
agitada demais. Mal conseguia controlar-se, a mente estava em um turbilhão.
E, estranhamente, ao entrar naquele jardim, ficara ainda mais inquieta.
De repente, sons de passos às suas costas.
— Pensei que poderíamos ir até a aldeia — sugeriu Aimery.
Ele poderia ter oferecido muitas desculpas. Uma visita ao mercado local,
ou à catedral. Entretanto preferiu a verdade.
— Lady Joanna me falou sobre uma velha senhora que mora fora dos
limites da aldeia, perto de um riacho. Disse-me que não será difícil localizá-la.
Segundo os rumores, a mulher é uma feiticeira. Portanto, deve ser discreta e
treinada na arte de guardar segredos.
— Segredos? — Claire hesitou apenas alguns segundos antes de dar a
mão a Aimery e segui-lo. Também fora incansavelmente treinada na arte de
guardar segredos. — Contaram-me que meus pais foram mortos pela
Inquisição, queimados na fogueira por causa de suas crenças cátaras. Sempre
acreditei nisso. Porém ultimamente...
Apesar do silêncio do conde de Segni, Claire notou seu interesse, sua
paciência. Ele sempre a fizera se sentir segura, amparada. E agora, mais do
que nunca, desejava o conforto daqueles braços.
Inspirando fundo, retomou a tarefa de pôr em palavras o que a
perturbava.
— Jamais pensei que minha história pudesse ser diferente. Não, não é bem
assim. Jamais quis pensar nessa possibilidade. Eu tinha minha vida no
convento. Eu tinha madre Helene. Eu tinha...
Claire calou-se. Por algum estranho motivo confiava plenamente em
Aimery e sabia que devia contar-lhe a verdade, ou pelo menos tanto quanto
pudesse sem arriscar a segurança dos outros. Não podia contar-lhe sobre
padre Pedro. Não ainda. Entretanto, existiam coisas que poderia, precisava,
falar sobre si mesma.
— Para mim, os cátaros professavam, essencialmente, as mesmas crenças
que os cristãos: viver uma vida correta agora assegura a glória futura. E ambos
os grupos têm que enfrentar sérias tentações, que ameaçam dificultar o
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 104

caminho da salvação. De acordo com o pouco que sei, as crenças são


similares. Na verdade, quando as Cruzadas contra os cátaros chegaram ao fim,
o grande São Domingos transformou os mosteiros destinados às sacerdotisas
em conventos Para novos cristãos. E a mudança não exigiu muito esforço.
— Mas existem diferenças — insistiu Aimery. — Você é uma mulher
instruída. Alguém deve ter se encarregado de educá-la. As Cruzadas acabaram
há pouco menos de um século. Todos ainda se lembram das diferenças
fundamentais, entre os dois credos. Considerando o que é sabido de seus pais,
ou pelo menos o que você julga saber, as freiras deveriam tê-la protegido
desse conhecimento. Embora você fosse muito nova ao perder a família, não
era mais um bebê. Portanto, existia a possibilidade de já haver aprendido
alguma coisa sobre as crenças pagas. Parece-me estranho que uma mulher
inteligente e sábia como madre Helene não houvesse se esforçado para evitar
que possíveis resquícios de crenças heréticas permanecessem entranhados em
você.
— Eu não tinha interesse nisso — Claire retrucou calmamente. — E a
abadessa nutria as crenças cátaras.
Se o que acabara de admitir surpreendera Aimery, ele nada deixou
transparecer.
— Você nunca questionou o que havia acontecido com seus pais? Ou por
que aconteceu? Ou quando?
— Era algo que não me dizia respeito.
Então Claire se deu conta de que, de fato, pouca importância dera ao
passado. Estivera tão ocupada com suas obrigações e seus estudos, que não
pranteara a perda dos pais que mal chegara a conhecer. Em vez de lamentar-
se, dedicara-se, com os outros, a elaborar planos para vingá-los. Aprendera
que se conseguisse manter as crenças cátaras vivas em Languedoc, estaria
honrando os pais.
— Agora é diferente — ela continuou, enquanto caminhavam devagar sob
a sombra de árvores frondosas. — Antes, eu vivia confinada no convento.
Jamais pus em dúvida o que madre Helene me ensinava. Minha vida tinha um
objetivo e isso bastava.
Que a abadessa a ensinara nunca questionar a doutrina catara, Claire não
teve coragem de dizer. Apenas recentemente saíra do casulo no qual estivera
aprisionada e começava a enxergar o mundo com os próprios olhos.
Nas imediações da aldeia, o conde tomou o caminho que conduzia à
floresta. O perfume de pinheiros subitamente inundou o ar e Claire inspirou
fundo, deliciada.
— Não posso julgá-la por adotar as crenças que lhe ensinaram — Aimery
falou, pensativo. — Ultimamente, tenho me perguntado se não estou vivendo a
vida de meu pai, em vez de viver a minha. Será que não saí da Itália e vim para
Montsegur apenas para cumprir o destino que ele escolheu para mim? Todavia,
Montsegur é um belo castelo e é uma honra ter sido designado para comandá-
lo.
Claire fitou-o, certa de que ambos tinham dúvidas sobre o papel que lhes
fora destinado a desempenhar.
Por pouco ela não seguiu adiante, sem notar o chalé da feiticeira. Se
Aimery não a houvesse puxado pelo braço, não teria reparado na pequena
construção, cercada de plantas e flores. Era uma casinha simples, porém
bonita e bem cuidada, de onde parecia irradiar paz.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 105

Entretanto, Claire sentiu uma pontada de medo, como se estivesse presa


em um pesadelo.
Uma mulher muito velha saiu de trás de uma árvore, com os cabelos
brancos como a neve presos em uma trança grossa.
Durante um longo silêncio, no qual limitou-se a examinar Claire, a
desconhecida fez sinal para que ambos a acompanhassem.
Então, antes de entrar na casa, virou-se para a noviça e falou, com um
sorriso radiante:
— Você é igualzinha à sua mãe. Eu a teria reconhecido em qualquer lugar.
Mesmo muito tempo depois, Aimery jamais conseguiria explicar,
exatamente, como tudo acontecera, e quando. A seqüência dos eventos lhe
escapava e não poderia afirmar, com absoluta certeza, como as coisas haviam
escapado ao seu controle e ganhado vida própria. Entretanto, sabia qual fora o
fato marcante.
Beijara Claire. E ela correspondera ao beijo.
Os eventos subseqüentes tinham sido conseqüência desse primeiro beijo.
Pelo menos tinha a consciência tranqüila, porque não planejara nada. Ao
saírem do chalé da feiticeira, os dois haviam entrado na floresta para escapar
do calor abrasivo.
Claire dissera apenas:
— Se ela quiser, poderíamos levá-la conosco para Montsegur. A esposa de
William Belibaste já deve ter chegado. Devemos contar a todos. Todos
precisam saber a verdade.
Aimery concordara. O testemunho da feiticeira seria importante no
julgamento de Belibaste.
Embora a narrativa da feiticeira houvesse sido uma revelação para Claire,
o instinto lhe dizia que não fora uma completa surpresa. Enquanto ouviam a
velha mulher contar os acontecimentos de vinte anos atrás, estivera
observando Claire atentamente, notando suas pequenas reações. De sua parte,
jamais acreditara naquela história de morte na fogueira. Afinal, as Cruzadas
tinham chegado ao fim há quase cem anos! O julgamento de Belibaste atraía
tanta atenção justamente por isso, por ser uma aberração, algo fora do
comum. Jeanne, a feiticeira, terminara a história dizendo que os pais de Claire
estavam enterrados no pequeno cemitério da aldeia, atrás da igreja de Santa
Ana. Este era o ponto mais importante. Hereges mortos na fogueira jamais
podiam ser enterrados em chão consagrado. Suas cinzas eram espalhadas ao
vento, o espírito condenado ao desassossego eterno.
— Um acidente — explicara Jeanne, acompanhando-os até a porta. — A
morte de seus pais foi apenas isso: um trágico acidente.
— Posso me apoiar em seu braço? — Claire perguntou, ao entrarem na
floresta.
Aimery lhe ofereceu o braço, apegando-se à noção do dever para com sua
família e seu nome. Como cavaleiro, devia proteger a mulher a seu lado, não
desejá-la.
— Eles pensaram que eu também havia morrido no incêndio. Fizeram uma
lápide com meu nome. Eu tinha um irmão. Você a escutou mencioná-lo?
— Você se lembra dele?
André. Tão moreno quanto ela era loura. Sempre sorridente. Sempre
brincalhão.
— Ultimamente, sim. Apesar de serem lembranças vagas.
— Você gostaria de ir ao cemitério onde sua família está enterrada?
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 106

— Sim, por favor.


Seguindo as instruções da feiticeira, Aimery e Claire não tiveram nenhuma
dificuldade para localizar a igreja de Santa Ana.
No cemitério pequenino, os aldeões eram enterrados. Aos nobres de Foix,
ficava reservado o cemitério da catedral. Várias vezes dissera a Aimery ser
filha de camponeses. Agora sua ascendência simples ficara comprovada.
— Não é o que eu esperava — ela falou. — As histórias que me contaram,
falsas de acordo com o relato de Jeanne, envolviam meus pais numa morte
horrível. Os cátaros sempre me foram apresentados como pessoas pacíficas.
Mas quando eu pensava em meus pais, pensava em violência e queria
vingança.
"Realmente quisera vingança? Ou apenas desejara ver Belibaste livre?"
Não podia falar sobre isso com Aimery. Não ainda. Não até ouvir as explicações
de padre Pedro. Não até o padre ajudá-la a compreender.
"A Inquisição matou seus pais, mas eu a salvei. Trouxe-a em segurança
para cá e farei de você nossa Perfeita e nossa Madalena".
Todavia, sua família não ardera no fogo dos hereges. Estava ali reunida,
sob quatro cruzes. Pela primeira vez, desde que chegara a Foix, Claire sentiu-
se verdadeiramente em casa.
Naquela noite, Claire atravessou os corredores silenciosos do castelo de
Foix ansiosa pela quietude de seu quarto. Um membro da guarda de honra a
acompanhava, segurando um archote para iluminar o caminho. Aimery de
Segni permanecera no salão após o jantar, para discutir assuntos relacionados
à administração da fortaleza. Sir Emerico insistira em destacar um homem de
confiança para levá-la aos seus aposentos, em sinal de respeito. Considerando
os problemas recentes em Montsegur, como o ataque ao sacerdote, ele
preferira não correr riscos, ainda que a segurança reinasse no interior das
sólidas paredes de Foix.
"Preciso falar com padre Pedro", Claire pensava sem parar, aflita. "Preciso
ouvir o que ele terá a dizer sobre a história da feiticeira".
O fato é que se sentia profundamente abalada. Como explicar a gritante
diferença entre o que o velho padre lhe contara e o que agora descobrira como
sendo a verdade? O templário sempre afirmara que seus pais haviam morrido
por causa das crenças heréticas. Jamais falara de qualquer incêndio acidental.
Padre Pedro e madre Helene... Não, madre Helene, não. Fora padre Pedro
quem se encarregara de educá-la, de instruí-la, de alimentar nela o ódio pelos
francos e pela Inquisição. Fora ele quem insistira na retidão da causa catara.
Todavia, padre Pedro mentira. Se fosse assim, por que teria mentido?
"Ele fala a verdade. Ele fala a verdade. Ele fala a verdade", Claire repetia
mentalmente, como uma ladainha.
Lembrava-se dos ensinamentos do padre. Os francos eram maus. Não
passavam de assassinos e aproveitadores. Eram os culpados pela aniquilação
dos cátaros. Ela, Claire, poderia vingar os horrores aos quais os cátaros tinham
sido submetidos. E, ainda mais importante, poderia acabar com aquele
sofrimento para sempre. Devia ajudar Belibaste. Para isso precisava apenas...
Encontrar o tesouro! Apossar-se dele!
O tesouro...
Mas padre Pedro sempre insistira na inexistência do tesouro.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 107

CAPÍTULO XIII

— Administrar um castelo é o trabalho mais enfadonho que existe —


resmungou Aimery de Segni. Emerico de Foix concordou seu hesitar. Ambos
guerreiros, haviam conquistado seus respectivos castelos devido à grandes
vitórias em batalhas. Agora, em tempos de paz, viam-se às voltas com a
contabilidade de Foix.
— E uma tortura lidar com todas essas contas — lamentou-se sir Emerico.
— Eu preferia estar enfrentando hordas de sarracenos a ler essa papelada.
— Todavia é uma tortura a qual teremos que nos acostumar — Aimery
ponderou, sem disfarçar o tédio. — Não foi para isto que trabalhamos? Para
conquistar nossos castelos?
Ainda não passara das onze horas e sir Emerico já estava na segunda
garrafa de vinho.
— Conquistar é uma coisa — argumentou o senhor de Foix. — Administrar
é outra bem diferente.
Sem dúvida. O prazer da luta e da conquista é muito maior do que
qualquer outro. Pelo menos no meu caso. Decidi conquistar Montsegur desde a
infância, porque para minha família aquele castelo sempre foi um grande
símbolo.
— E agora Montsegur é seu, assim como Foix me pertence.
— Sim — o conde de Segni concordou baixinho. — Com certeza.
Sentada a seu lado, Claire transcrevia as informações que sir Emerico lhe
passava.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 108

— Vivemos em uma época de calmaria. Não creio que Languedoc esteja


ameaçada. — sir Emerico riu. — Nada de sarracenos, nada de cercos. Essas
especulações sobre uma possível rebelião catara não me parecem sérias. O
problema de William Belibaste logo será solucionado.
— O bispo Fournier acha que existe algo mais que simples ameaças.
Depois da morte da abadessa, considerou o assunto sério o suficiente para
buscar respostas em Paris.
— E ele logo estará de volta, trazendo consigo as peças que faltam desse
quebra-cabeça. — O conde de Foix sorveu um longo gole de vinho antes de
voltar a atenção para as contas. — Pelo menos você tem a linda donzela de
Foix para ajudá-lo na contabilidade, caro amigo. Quanto a mim, restam-me
empregados sisudos. Competentes é verdade, porém sem uma mão delicada
para executar a tarefa.
Claire sorriu ante o elogio, porque era isso o esperado. Contudo, apesar de
parecer concentrada no trabalho, seus pensamentos estavam fixos nos pais, no
modo como haviam morrido e em como a verdade fora distorcida por padre
Pedro e, talvez, por madre Helene também.
Porém, o que mais a afetava naquele momento era a presença de Aimery.
Desejava-o.
Queria beijá-lo. Ansiava beijá-lo. Abraçá-lo. Mas era tarde demais agora.
Sabia muito bem. Fora prometida à fé catara. Esperavam que professasse
certas crenças.
Crenças que não escolhera.
Após o almoço, lady Joanna sugeriu um passeio pelo pomar, onde
proliferavam laranjeiras. Aimery não tinha a menor vontade de dar outro
passeio na companhia da condessa de Foix, contudo, a presença de Claire o fez
mudar de idéia. Ela estava trajando um vestido verde e largo, com certeza uma
peça descartada pela roliça castelã. Se o verde desfavorecia lady Joanna,
funcionava de maneira inversa para Claire, acentuando a cor dos cabelos e o
brilho dos olhos enormes.
Sorrindo, o conde de Segni virou-se para a anfitriã.
— Eu adoraria ver as laranjeiras, milady. Seria um passeio perfeito.
Na verdade, a idéia acabou lhe parecendo mesmo perfeita. Não era difícil
livrar-se de sir Emerico e esposa. Assim que o casal o fizesse saber que as
sementes das árvores tinham sido trazidas da Sicília, protestariam cansaço e o
deixariam, e à Claire, livres para vagarem por onde quisessem.
— Permitimos que as crianças da aldeia venham apanhar as frutas uma
vez por semana — comentou lady Joanna, abanando-se encalorada. — Claro
que só as frutas caídas no chão. Mas naturalmente você, sir Aimery, pode
colher as que desejar.
— Obrigado, milady. Você é muito gentil.
Conforme esperara, sir Emerico e esposa, queixando-se do calor,
resolveram voltar para o castelo, permitindo que os convidados ficassem
sozinhos.
Em silêncio, os dois caminharam até a beira de um precipício, de onde
podiam enxergar o horizonte.
— Se você olhar atentamente, notará as montanhas da Itália. — Aimery
apontou-as, o pequeno gesto refletindo orgulho.
— Seu rosto se ilumina quando você menciona a Itália. Deve sentir
saudades de lá.
— Assim como você sentiria saudades de Languedoc se partisse?
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 109

Claire permaneceu um silêncio durante alguns minutos, o olhar nas


montanhas azuladas. Ao responder, surpreendeu Aimery.
— Não sei se sentiria saudades de Languedoc, porque nunca me imaginei
saindo de Montsegur. De fato, nem mesmo pensei que um dia viria a Foix.
Montsegur sempre fez parte de minha vida, parte de meu dever. O convento
de Santa Madalena é o único lar que conheci e madre Helene a única figura de
mãe. Creio que a coisa mais difícil para mim teria sido deixá-la. Agora que ela
está morta... Claro que ainda tenho padre Pedro.
— Padre Pedro?
— Um dos sacerdotes que ministram os sacramentos às freiras do
convento.
Aimery perguntou-se por que as feições de Claire haviam ficado sombrias
à simples menção do nome do padre. Todavia, não pôde se deter muito no
pensamento. Atônito, ouviu-a dizer, muito séria:
— Quero beijá-lo.
O conde deu um passo atrás, tamanho o espanto. Recuperando-se do
assombro, sorriu.
— Mas por quê?
— Porque quero beijá-lo. Porque escolhi beijá-lo.
Aimery não respondeu, nem argumentou. Simplesmente tomou-a nos
braços e a esmagou contra o peito forte.
Então, beijou-a nos lábios, gentilmente a princípio.
Beijar revelou-se um ato natural para Claire. Era como se, pela primeira
vez, seu corpo sobrepujasse a mente. Em um impulso, colou-se ainda mais ao
corpo dele.
— Claire — o conde sussurrou, aprofundando o beijo e deslizando as mãos
ao longo das costas delicadas.
Pressionando os seios contra o peito largo, Claire estava, exultante por
saber que ela, a catara, destinada a ser Perfeita, estava fazendo o que queria
fazer. O que escolhera fazer.
O beijo pareceu durar uma eternidade, tamanha a intensidade das
sensações provocadas em ambos.
Quando o conde, enfim, a soltou, ela precisou se apoiar nos braços
musculosos para não cair, porque seus joelhos tremiam.
E embora tudo ao redor permanecesse o mesmo, Claire mudara. Profunda
e fundamentalmente. Porém, apenas ela o sabia.
Padre Pedro percebeu a mudança em Claire. Por muitos anos, desde a
dispersão e a morte na fogueira de seus irmãos templários, quando fora o
único impenitente a ser deixado vivo, desenvolvera um profundo senso de
autopreservação.
Chegara à velhice porque aprendera a confiar neste dom, a notar as
mudanças mais sutis na atmosfera. E sentia uma alteração agora. De seu
esconderijo, no alto da muralha de Montsegur, escutou a risada de Claire
quando os grandes portões do castelo foram abertos para dar passagem ao
conde de Segni.
De súbito o monge se deu conta de que raramente a ouvira rir e o som
cristalino, tão inesperado após a morte de Helene, aliado à viagem repentina à
Foix, despertavam suas suspeitas. Perguntava-se o que causara essa
transformação repentina. Todavia, risadas pouco significavam. Ele, dentre
todas as pessoas, devia saber que uma face jovial freqüentemente escondia
um coração traiçoeiro. Claire mudara, porém não tiraria conclusões
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 110

precipitadas sobre a natureza dessa mudança até questioná-la, estudá-la.


Afinal, era sua Claire, a educara e guiara desde a infância. Ela lhe diria o que
precisava saber, mesmo se não tivesse tal intenção.
E não havia nada capaz de fazê-la virar-se contra ele e a causa dos
cátaros. Disso tinha certeza.
Observando o cortejo entrar no pátio do castelo, padre Pedro contou
dezesseis cavaleiros, um número expressivo. Então, sobre uma mula, reparou
em uma figura pequenina. Não fazia idéia de quem se tratava, mas acabaria
descobrindo. Novamente Claire riu, o som de sua felicidade ecoou pelo que
pareceu uma eternidade.
O que provocara essa mudança?
Pedro de Bolonha, o grande defensor dos cavaleiros templários, obrigou-se
a sorrir. Quaisquer que fossem as notícias de Foix, poderiam esperar. Deveriam
esperar. Seria paciente. Pelo menos até falar com Claire. Depois de muita
persuasão, William Belibaste finalmente lhe contara que a trilha do tesouro
ligava Montsegur a Foix. E Claire acabara de chegar de Foix, cheia de
novidades. Ele podia ser paciente. Aprendera bem essa lição enquanto estivera
nas masmorras do rei francês, ouvindo os gritos e gemidos de seus irmãos
torturados, ouvindo os próprios gritos. Ficaria tranqüilo. Alguma coisa iria
acontecer. Alguma coisa sempre acontecera no passado.
Claire foi procurá-lo à noite, conforme imaginara. Escutando os passos
leves no corredor, padre Pedro descartou a inquietude que o dominara desde a
manhã quando a vira entrar no castelo, feliz, sorrindo para o jovem conde de
Segni, seu inimigo. Inimigo de ambos. Todavia Claire e Aimery estavam
destinados a seguir rumos diferentes. Educara-a para ser Perfeita. E,
secretamente, a preparara para ser a Madalena dos templários. Tarde demais
para alguém mudar isso agora. Impossível reverter os planos.
Bastou Claire entrar no quartinho apertado, para um perfume delicioso se
espalhar no ar. "Rosas", o padre pensou. Outra novidade. Em silêncio, buscou
mais sinais de mudanças.
Alguns, porém pouco significativos: a ausência da touca, o belo vestido
azul, os cabelos presos por uma fita. Transformações exteriores não o
preocupavam. Estava apenas curioso.
Quando Claire sentou-se a seu lado, o templário abriu a boca para
interrogá-la sobre a viagem a Foix, sobre as descobertas feitas. Se é que ela
descobrira algo. Tudo ocorrera há tanto tempo. Não tinha medo. Quem restaria
para se lembrar da morte de aldeões?
Todavia a jovem tomou a palavra.
— Você tornou a ver Belibaste? A esposa dele chegou?
Padre Pedro não esperara a pergunta. Na verdade, assim que levantara
informações sobre o tesouro, pouco pensara em Belibaste enquanto Claire
estivera fora. Quanto à esposa do prisioneiro, dedicava-lhe total desinteresse.
— Eu não o vi — o padre devolveu áspero, não acostumado a ser
interpelado. — É perigoso me aproximar demais, ou mostrar muita curiosidade.
A esposa do réu chegou. O bispo Fournier a permitiu visitar o marido.
— Eu gostaria de vê-lo também.
— Mas por quê, criança? — Com dificuldade, o templário controlou a
irritação. — Já lhe disse que é perigoso se aproximar do acusado. Se o conde
de Segni descobrir, ou o bispo...
— Preciso vê-lo. Tem coisas que quero lhe perguntar.
— Por que não pergunta a mim? Não lhe ensinei tudo no passado?
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 111

— Sim, aprendi tudo com você. — Claire ficou em silêncio alguns


segundos, como se refletisse. Então repetiu, determinada: — Preciso ver
Belibaste.
Pela primeira vez, padre Pedro sentiu-se apreensivo.
— Arranjarei um encontro. Não será fácil, ou barato, porém creio que será
possível.
— Quero falar com a esposa de Belibaste também.
— Ela está hospedada na aldeia. É fácil localizá-la.
— Então irei procurá-la. — Claire se afastou do sacerdote e fitou as
paredes escuras. — É urgente descobrirmos uma maneira de libertar o
prisioneiro. E para tal, necessitaremos da ajuda da esposa.
Libertar Belibaste tornara-se a coisa mais importante na vida de Claire. De
fato, só conseguia pensar nisso, só se permitia pensar nisso, porque não
ousava pensar nos pais, nem no motivo pelo qual padre Pedro poderia ter
mentido sobre a morte dos dois. Tampouco tinha coragem de pensar nos beijos
trocados com Aimery. Desde que partira de Foix, obrigara-se a acordar
pensando em Belibaste e a ir dormir tramando sua libertação. Ele devia ser
libertado. Haviam planejado e trabalhado para alcançar este objetivo. E,
conforme começara a suspeitar, fora essa a razão da morte de madre Helene.
Além do mais, era muito mais fácil pensar em Belibaste do que deixar a mente
vagar porque, invariavelmente, seus pensamentos voltavam-se para Aimery,
para a segurança encontrada entre os braços fortes, para o desejo profundo e
primitivo que ele despertava em seu corpo. Ou então poderia pensar em padre
Pedro e na escuridão que parecia agora cercá-lo.
Mas por quê?
Por que o monge mentiria sobre como seus pais haviam morrido? Se
Jeanne falara a verdade, seus pais e irmão haviam sido mortos não numa
fogueira, mas quando o chalé em que moravam pegou fogo. Embora trágica, a
morte de sua família fora um acidente e não fruto de uma conspiração gerada
pela Inquisição com o intuito de esmagar a revolta cátara. Talvez seus pais
nem houvessem sido cátaros. Não existiam provas de que professassem essa
fé. Jeanne não os considerara membros do culto.
Entretanto padre Pedro sempre insistira que sua família acabara
assassinada por ser herege.
O templário mentira-lhe. Era simples assim. E se ele mentira sobre algo
tão importante, que outras mentiras poderia ter lhe contado ao longo dos
anos? Que outras mentiras estaria lhe contando agora?
Se ao menos pudesse expor suas dúvidas a Aimery. Se ao menos pudesse
discutir o assunto com ele.
Não, impossível. Padre Pedro poderia estar se tornando seu inimigo,
porém isso não fazia de Aimery de Segni um amigo. Tampouco o fato de
haverem se beijado apagava a óbvia diferença entre os dois: ela era uma
camponesa, ele, nobre. Pior ainda: ela fora treinada para se tornar Perfeita e
ele fora incumbido pelo papa e pelo rei da França para esmagar a revolta
catara em Languedoc. Se Aimery descobrisse a verdade a seu respeito, se
descobrisse seu segredo, seria obrigado a entregá-la aos inquisidores.
Não, não podia contar nada a Aimery. Os beijos não bastariam para fazê-lo
ignorar o dever para com o rei, ou esquecer os votos de lealdade à Igreja. Ele
era honrado demais para abandonar seus princípios.
Mas ela queria poder confiar no conde de Segni. Ou então parar de pensar
nos beijos. A verdade é que ansiava por mais. Com a ameaça de morte
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 112

pairando sobre sua cabeça, a idéia de beijar Aimery e ser correspondida a fazia
se sentir viva, vibrante. Os lábios de Aimery sobre os seus a tinham despertado
para a realidade de que possuía um corpo capaz de experimentar sensações
antes inimagináveis. Nunca supusera que o calor das mãos fortes pudessem
incendiá-la, que a boca sensual a fizesse desfalecer de puro prazer.
E o desejo que os consumira fora recíproco. Em Foix, sempre que tinham
tido a chance de ficar sozinhos, haviam buscado refúgio nos braços um do
outro. Extasiara-se ao constatar que o atraía tanto.
Adorava beijá-lo.
Quisera amá-lo.
— Isso não — Aimery murmurara, evitando que ambos trilhassem um
caminho sem volta. — Ainda não.
Claire ajustou os olhos à penumbra do grande salão. Enormes estandartes
haviam sido dependurados sobre as janelas, barreiras inúteis à penetração do
calor da tarde. A luz também acabara filtrada, criando uma atmosfera
estranhamente melancólica. Como de hábito, o local estava repleto. Cavaleiros
e soldados distraiam-se jogando cartas, conversando e bebendo, tentativas vãs
de escapar do calor opressivo. De pé, junto à mesa principal, Aimery
conversava com alguns de seus comandados. Ao avistar Claire, ele sorriu e fez
menção de ir a seu encontro. Porém a noviça balançou de leve a cabeça.
Antes, devia falar com Minerve e depois procurar William Belibaste.
A condessa de Montfort, cercada pelos filhos, a aguardava no pequeno
terraço reservado às damas, logo acima do grande salão. O impossível parecia
ter acontecido em poucos dias: a barriga da linda condessa ficara ainda maior.
— Venha sentar-se perto de mim — Minerve falou, abandonando o
bordado. — Ainda não tivemos um momento juntas desde seu regresso. Meus
filhos estavam ansiosos para vê-la e eu desejando saber sua opinião sobre
Foix, sobre sir Emerico e sua simpática esposa. Ele continua gostando tanto de
vinho, ou curou-se do hábito agora que passou a morar em Languedoc?
— Dificilmente. — A noviça acomodou-se em um banco de madeira. — Sir
Emerico é um homem de sorte por ter tantos vinhedos à disposição.
Minerve riu com prazer.
— Você sempre encontra uma maneira de expressar as coisas com
delicadeza. Deve ser porque foi educada no convento. Eu o chamaria de
bêbado e ponto final.
— Então você o conhece bem.
— Eu o conheci em Paris — corrigiu a condessa. — Antes que se casasse.
— Lady Joanna pareceu-me uma grande dama. Juntos, os dois
transformaram o castelo de Foix em um templo de maravilhas.
— Sem dúvida é um lugar perfeito. — Minerve torceu o nariz. — E,
provavelmente, entediante.
— Exatamente a palavra que seu irmão usou para descrevê-lo.
— Imagino que sim. — A condessa de Montfort calou-se, pensativa. —
Entretanto, essa é a vida que Aimery está preparando para si. Isabel de Valois
encherá Montsegur de objetos caros, de mobiliário rico e vistoso, que façam jus
à fortuna da família. Estou certa de que Foix é um belo castelo e
extremamente bem administrado. Contudo não tenho a menor intenção de
visitá-lo um dia. Receio que ficaria morta de inveja diante de tamanha
organização e competência. Imagine qual seria a reação de meu marido diante
de tal perfeição! Huguet poderia decidir me pôr de lado! — Minerve riu e
continuou: — Tenho tentado ao máximo ajudar meu irmão a administrar esse
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 113

castelo, mas você pode ver a bagunça. Minha própria casa não é muito
diferente. E difícil conciliar tarefas domésticas e filhos pequenos. Além do
movimento incessante de cavaleiros, soldados, convidados...
— Imagino que a maioria das pessoas diria que o castelo de Foix funciona
com absoluta perfeição. A prataria está sempre polida, os criados
impecavelmente vestidos, as refeições servidas na hora certa. O assoalho é tão
assombrosamente encerado, que me fazia pensar se não seria uma afronta
que camponeses como eu transitarem por ali, naquele chão nobre. Entretanto,
havia uma frieza no ambiente. Foix é uma magnífica moradia, mas não me
parece um lar. Montsegur é muito mais aconchegante. Senti-me bem-vinda
desde o primeiro instante.
Somente quando as palavras saíram de sua boca, é que Claire se deu
conta de sua veracidade. Desde o primeiro dia, quando fora chamada a exercer
a função de escriba durante o julgamento de William Belibaste, sentira-se bem-
vinda. Sentira-se como se aquela fosse realmente sua casa, o lugar ao qual
pertencia.
— Ainda bem — Minerve falou, rindo.
Então, um dos meninos caiu e começou a chorar. As duas correram para
acalmá-lo. Quando, enfim, as crianças sossegaram e retomaram suas
brincadeiras, o assunto referente à Foix fora completamente esquecido.
— O bispo já voltou da viagem? — Claire indagou inocentemente,
apanhando o bordado.
— Não — respondeu a condessa de Montfort. — E, para ser sincera, estou
feliz que Jacques Fournier tenha viajado. A ausência dele significa um recesso
deste julgamento absurdo. Não apenas posso desfrutar de sua companhia sem
ter que dividi-la com as sessões de interrogatório, o que me agrada demais,
como fico livre da tensão provocada pela presença dos inquisidores. Em minha
opinião, é um julgamento injusto, que está acontecendo em um momento
particularmente infeliz.
— Infeliz para quem?
— Para todos nós e, em particular, para meu irmão. — Minerve fez uma
pausa para passar a linha na agulha. — É difícil para qualquer um tomar posse
de um castelo com uma história tão tumultuada. Como se não bastasse o peso
do passado, Aimery ainda tem que enfrentar o julgamento de um herege.
Impossível negar o óbvio: todos se lembrarão dos acontecimentos trágicos
ocorridos em Montsegur há cem anos. É impossível não fazer um paralelo.
Claire manteve a atenção fixa no bordado. A condessa de Montfort
continuaria a falar sobre o assunto com, ou sem encorajamento. O problema
era que não sabia se queria escutar o que Minerve tinha a dizer. E se isso iria,
de alguma maneira, ajudar William Belibaste.
— Dizem que aqueles que foram mortos impiedosamente assombram o
lugar onde morreram — continuou a condessa, animada. — Neste caso
Montsegur, e toda Languedoc, ira fervilhar com a idéia de vingança. É uma
coisa terrível William Belibaste ter sido levado a julgamento. Sei que na opinião
de muitos ele está recebendo a punição merecida, pelo crime de heresia. Mas
por que alguém tem que ser massacrado apenas por que suas crenças são
diferentes? Há algo terrível acontecendo aqui. Huguet o percebe e creio que
Aimery também. É quase como se os dois estivessem sendo chamados a
responder pelos pecados de seus ancestrais. E como se meu marido e meu
irmão estivessem sendo sentenciados por algo que não cometeram. Somente
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 114

um louco quereria esse tipo de julgamento, onde o réu é acusado de bruxaria.


Odeio isso tudo. Depois de um longo silêncio, Minerve prosseguiu.
— Não creio que seja mera coincidência as três famílias estarem
novamente reunidas após um século. Meu marido Huguet é descendente direto
de Simon de Montfort, que liderou a Cruzada contra os cátaros de Languedoc.
Meu irmão e eu somos Segni, assim como Inocêncio III, o papa que autorizou a
guerra contra os hereges. E você, minha querida, é parente do conde Raymond
de Foix e sua irmã, Esclarmonde, a Perfeita catara.
— Impossível — reagiu Claire, um arrepio percorrendo-a de alto a baixo. —
Meus pais eram camponeses. Vi suas sepulturas em Foix. Eram pessoas
comuns, não aristocratas.
— Acredite-me, sua extraordinária semelhança com Esclarmonde atesta
algum tipo de parentesco — Minerve afirmou, fitando-a firmemente. — Você
deve ter alguma ligação com o Defensor de Languedoc, ou sua presença aqui
não teria nenhum sentido. Estando os agressores reunidos, os Montfort e
Segni, é natural que o defensor também possa contar com um descendente
representando-o. Creia-me, você tem algum parentesco com Raymond Roger.
Só não sabemos ainda o grau.
— Meus pais não eram hereges — insistiu Claire, desviando o olhar. — Os
dois estão enterrados no cemitério a igreja de Santa Ana, em Foix. Morreram
em um acidente, durante um incêndio na vila. Não eram cátaros. Tampouco eu
o sou.
Na primeira oportunidade, Claire correu para a floresta. O calor abrasador
deixava o ar pesado, quase irrespirável, a terra, seca e áspera, dificultava o
avanço. Entretanto corria como se tivesse asas nos pés.
Corria para Aimery. Para o lugar secreto de ambos.
"Você tem algum parentesco com Raymond Roger. Só não sabemos ainda
o grau".
As palavras de Minerve continuaram assombrando-a, mesmo depois de
discutirem outros assuntos, como as travessuras dos meninos e o iminente
nascimento de uma menina. A condessa de Montfort continuava convicta de
que teria uma filha desta vez. Porém, apesar de atenta à conversa, mal
conseguira esperar a chance de escapulir. Precisava da paz e quietude do lago
no meio da floresta. Precisava pensar.
No trajeto, avistou o tronco caído onde se sentara junto de padre Pedro,
na véspera de sua viagem a Foix. Tinha a sensação de que aquele encontro
acontecera há uma eternidade, tão diferente se sentia agora. Tudo mudara,
principalmente ela mesma.
Ao chegar ao lago, Claire finalmente experimentou algo semelhante à paz.
Descobrira o local por acidente, quando, certo dia, madre Helene a incumbira
de colher amoras na floresta. Perdera-se no caminho e, enquanto andava em
círculos, tentando achar a saída, acabara deparando-se com a paisagem
mágica. O lago e a pequena cascata cercados de uma vegetação densa e
luxuriante. As regras do convento sempre haviam sido rígidas e sua vida se
restringira ao universo criado dentro daquelas quatro paredes. Todavia,
durante anos a fio buscara a solidão e o sossego do lago sempre que possível.
Jamais fora perturbada. Até Aimery encontrá-la.
E ele tornaria a encontrá-la ali. Sabia-o com certeza.
Duvidava que alguém mais tivesse conhecimento do local. Nunca
percebera sinais da presença de terceiros. Nem pegadas no chão, nem galhos
partidos, nem sujeira na água. Por alguma razão, não falara a madre Helene da
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 115

existência desse lugar. Também não contara a padre Pedro. Esse fora o único
segredo que guardara para si, que não partilhara com seus dois grandes
amigos. Não conseguia entender por que agira assim, mas agora se sentia
grata por não ter revelado nada. Ali era o único lugar onde ficava
completamente só. Ninguém podia achá-la. Exceto Aimery.
Inquieta, Claire tirou os sapatos e molhou os pés na água, o friozinho
fazendo-a estremecer. Depressa, despiu-se e caminhou para o meio do lago,
esforçando-se para arrancar da mente todas as preocupações. Queria
aproveitar o momento para simplesmente se esquecer de tudo, para não
pensar em nada exceto em aproveitar o dia de verão.
Conforme Aimery a ensinara, deitou-se de costas e flutuou, os olhos fixos
no céu muito azul.
Então, um peixe prateado roçou suas pernas e a fez olhar para baixo.
Claire contemplou o próprio corpo por um breve instante antes de desviar o
olhar, conforme a tinham ensinado: O corpo não devia jamais ser alvo de
atenção, não quando estava se preparando para se tornar Perfeita.
Entretanto, aquela não fora sua escolha.
Não era mais catara, nem Perfeita. Talvez nunca o tivesse sido.
Com esforço, desafiando anos de treinamento, tornou a observar seu
corpo. Os contornos arredondados dos seios pequenos e firmes, os pelos
avermelhados que cobriam o vértice da feminilidade. Impressionava-a
constatar que para se analisar precisava vencer uma enorme resistência
interior. Mais impressionante ainda era notar as transformações que ocorriam
em seu corpo ao pensar em Aimery. Certas partes pulsavam, enquanto outras
ficavam rígidas.
Bastava pensar nele para ter a sensação de que ia desfalecer.
Sentia falta da presença viril, do gosto da boca sensual, do toque das
mãos fortes. Enquanto vivesse, não se esqueceria nunca da emoção
experimentada quando ele a enlaçara pela cintura pela primeira vez.
Se ao menos pudesse contar a Aimery.
Não, tratava-se de um pensamento perigoso que precisava ser posto de
lado. Ignorado. Sufocado. Ele podia beijá-la, ela podia beijá-lo, porém, jamais,
poderia existir entre os dois, confiança, partilha, total comunicação. Se lhe
contasse uma coisa, teria que contar todas as outras. Teria que falar sobre o
grupo secreto de cátaros em Montsegur, do qual fazia parte. Teria que explicar
a verdade sobre madre Helene, sobre a missão de ambas. Teria que falar sobre
padre Pedro e, assim, expô-lo. E não podia, jamais, expor padre Pedro. Não até
que suas suspeitas se tornassem certezas. E, talvez, nem mesmo assim. Afinal,
ele fora a única família que conhecera, aquele que a criara como a uma filha.
Principalmente, teria que convencer Aimery a libertar William Belibaste. E não
seriam os beijos de uma camponesa que levariam o nobre conde de Segni a
enxergar a necessidade de libertar um herege. A força de seu nome o impeliria
a agir como seus ancestrais. Aimery mandaria lançar Belibaste na fogueira e
massacraria os cátaros que, porventura, se rebelassem. Padre Pedro afirmara
que seria assim e embora estivesse começando a alimentar certas suspeitas,
sabia que o monge não mentiria sobre o destino de Belibaste, ou sobre a
reação violenta do lorde de Segni, porque... "o templário desejava
derramamento de sangue".
A compreensão da verdade atingiu-a com a força de um raio. Padre Pedro,
que sempre enaltecera os valores cátaros como a mansidão e o pacifismo,
ansiava por uma demonstração de violência.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 116

De repente, Claire sentiu medo. Muito medo.


Não tinha para onde ir.
Não tinha em quem confiar.
Exceto em Aimery. E Aimery, conde de Segni, era seu inimigo. Seria dever
dele mandar queimá-la ao lado de William Belibaste, caso viesse a descobrir
sua verdadeira identidade.
Entardecia quando Claire, finalmente, saiu do lago e começou a secar-se.
Ao apanhar o avental, notou um movimento à esquerda. Mas não percebeu
nenhum vulto. Sem dúvida um truque da luz.
Fechando os olhos, jogou os cabelos para trás e desembaraçou-os com as
pontas dos dedos. Enquanto se vestia, seus pensamentos voltaram-se para
Aimery.
De súbito, a sensação de não estar mais sozinha.
Virando-se, abriu os olhos. À sua frente estava Aimery.
Sorrindo, ele lhe mostrou um pêssego maduro.
Instintivamente, Claire retribuiu o sorriso. E estendeu a mão para apanhar
a fruta.

CAPÍTULO XIV

— Eu provavelmente deveria dizer que acabei de chegar, que não a vi


flutuando. Afinal, teria sido errado observá-la às escondidas. Uma atitude
pouco cavalheiresca. — Aimery fez uma pausa. — Porém, se o dissesse, estaria
mentindo. Cheguei aqui há algum tempo. Estava te observando. De fato,
"deleitando-me" seria a palavra mais adequada para definir o prazer que
experimentei ao espreitá-la. A princípio, pensei em tomar a iniciativa correta e
ir embora. Incapaz de me afastar, pensei em dar minha presença por
conhecida. Todavia, permaneci em silêncio. Apenas observando-a.
Os dois estavam frente a frente, na beira do lago. Claire balançou a
cabeça tentando ganhar alguns segundos, tentando raciocinar. Entretanto,
parecia ter perdido a capacidade de pensar com clareza. Os olhos de Aimery,
tão azuis e profundos, a consumiam, impedindo-a de emitir quaisquer sons.
— Eu queria vê-la como você realmente é — o conde continuou. — Queria
descobrir a verdadeira mulher por trás da fachada que você adotou para si.
— E qual é essa fachada? — Claire estava curiosa. Como Aimery não
respondesse de imediato, insistiu: — Você acha que obteve o que desejava?
Conseguiu me ver como sou?
— O bastante. — Breve pausa. — Perdoe-me se a ofendi.
— Não, não estou ofendida. Às vezes eu também queria me enxergar
como realmente sou.
— Você é um mistério, minha Claire. — A voz baixa e rouca soou aos
ouvidos femininos como uma carícia.
O instinto a avisou para se afastar, para romper o encantamento no qual
estava caindo prisioneira. Mas não foi capaz de mover um único músculo.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 117

Trêmula, com a respiração entrecortada, fechou os olhos. Estar perto de


Aimery era como vislumbrar a paz. O medo constante a abandonava, assim
como toda a insegurança e confusão interior. Não se preocupava com o que
devia ou não fazer quando o tinha perto de si. Não pensava em sua missão,
nem no futuro que lhe fora reservado como Perfeita. A vida tornava-se muito
simples quando junto de Aimery. Apenas respirava e se sentia viva. Sentia-se
feliz.
Determinada a conservar aquela felicidade, ainda que por um curto
período de tempo, indagou:
— Posso comer o pêssego agora?
— Claro que sim.
Aimery estendeu a capa sob a sombra de um carvalho e ajudou-a a sentar.
Então desembainhou a faca que trazia presa à cintura e cortou uma fatia da
fruta madura. No mesmo instante a noviça estendeu a mão.
— Não. Feche os olhos primeiro.
Alarmada, ela negou-se.
— Confie em mim.
Relaxando, Claire fechou os olhos, entreabriu os lábios e permaneceu
imóvel. De repente, um silêncio pesado a envolveu. Era como se toda a floresta
houvesse emudecido, como se tudo houvesse desaparecido, restando apenas
ela e Aimery no mundo.
Quando, enfim, sentiu o gosto da fruta, abriu os olhos e contemplou a face
do conde.
— Mais? — indagou Aimery.
— Não. É minha vez agora. Feche os olhos.
O conde hesitou por um segundo, mas obedeceu.
Depois de cortar uma fatia do pêssego, Claire o levou à boca do conde,
aproveitando o momento para deslizar os dedos ao longo dos lábios sensuais.
Quando ia afastar-se, ele a segurou pelo pulso.
— Você é um mistério, milady.
Porém Claire estava cansada de mistérios, cansada de se esconder. Queria
se deixar desvendar, apesar de todos os riscos.
O cheiro de Aimery a intoxicava. Podia se embriagar apenas aspirando o
perfume másculo. Todavia, ele transpirava algo mais. Algo quase indefinível.
Amor. Aimery a amava. Sentia-o nos ossos.
Entretanto, ao se aproximar para beijá-lo, o conde se retraiu, dando a
impressão de vacilar.
Não o queria hesitando, se afastando. Essa era, finalmente uma escolha
sua e sua apenas. Desejava Aimery e, pela primeira vez, teria algo que
realmente queria para si, algo que não lhe fora imposto por terceiros, que não
lhe fora ensinado a adotar como verdade absoluta.
Segurando-o pelos ombros, inclinou-se e o beijou na boca como se não
fosse se saciar jamais. Nunca, antes de Aimery, pensara em beijar um homem,
em amá-lo.
Agora descobria-se amando.
— Eu te amo — confessou baixinho.
Novamente o percebeu hesitar. Ignorando o sinal de resistência, falou com
firmeza:
— Eu disse que te amo, não que você tem que me amar.
— Não é isto.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 118

Mas Claire sabia que o problema era esse sim. Todavia, não tinha
importância. Estar junto de Aimery a fazia se sentir segura, protegida; a fazia
se sentir especial, não Perfeita. E tornar-se Perfeita pertencia a um futuro
distante.
Aquela era sua escolha no momento. Aquilo era o que queria.
O instinto, velho como o tempo, a induziu a deslizar as mãos pelas costas
largas, numa carícia leve e sedutora. Olhando-a com um ardor que parecia
queimá-la, Aimery a despiu devagar, livrando-a da túnica ensopada e das
roupas íntimas. Depois, ainda sem deixar de fitá-la, cobriu seus seios firmes
com as mãos e massageou os mamilos rosados. Quando ambos estavam
rígidos, tomou um deles na boca e sugou-o.
Ouvindo-a gemer, depositou-a sobre a capa que estendera sobre a relva.
O toque de Aimery tinha o poder de fazer seu sangue ferver nas veias, o
poder de transformá-la em uma nova pessoa, mais completa, mais inteira,
mais dona de si. A própria nudez não a embaraçava, assim como não se
envergonhava de contemplar a nudez do corpo viril. Pelo contrário. Como uma
criatura faminta, não se fartava de admirar os contornos das pernas
musculosas e bronzeadas, dos braços fortes, do peito firme.
E quando Aimery a tocou no centro de sua feminilidade, naquele ponto
que haviam lhe ensinado ser imoral, gritou, completamente alucinada de
prazer.
— Você é tão linda — ele sussurrou. — Eu poderia ficar ao seu lado para
sempre.
Claire, a catara, a Perfeita, nada respondeu. Ofegante, enlaçou-o pelo
pescoço, temendo que o contato entre os dois se desfizesse.
— Bela Claire. — Aimery beijou-a na boca, continuando a acariciá-la. —
Tão límpida e fresca quanto o ar da manhã.
— Nunca imaginei que algo assim podia existir — ela falou.
— Claire, você tem mesmo certeza do que quer? — O conde teria parado,
teria respeitado a decisão da jovem dama, por mais difícil que fosse conter o
desejo avassalador.
— Nunca estive tão certa em toda minha vida. — E era verdade. Queria
Aimery. Queria-o desesperadamente, com todas as fibras de seu ser. Sim,
sabia que fora encarregada de uma missão. Sabia que precisava libertar
Belibaste. Não se esquecera do destino para o qual a tinham preparado. Um
destino que, talvez, pudesse contar a Aimery depois daquele momento. Talvez,
então, ele fosse capaz de entender.
Mas isso seria depois. Por enquanto, queria somente saciar a sede
torturante, aplacar a fome dilacerante. Formariam um só corpo, uma só carne.
E não se importaria se o mundo acabasse logo depois.
— Estou certa — repetiu, decidida.
— Eu poderia machucá-la — ele sussurrou. — Não quero machucá-la, mas
receio que isso possa acontecer.
— Você não me machucaria jamais.
E Aimery não a feriu. Penetrou-a lentamente, gentilmente, despertando,
com sua masculinidade, sensações inconfessáveis em lugares secretos. Claire,
perdida em um turbilhão de emoções ardentes, ergueu os quadris numa
reação instintiva, oferecendo-lhe amplo acesso ao interior de seu corpo e de
seu coração. Enlouquecida de desejo, ela se sentiu ser arrastada por uma onda
avassaladora de prazer.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 119

Então, de repente, a terra pareceu tremer e o céu explodir em milhões de


partículas cintilantes. Por um instante, Claire teve a impressão de estar
suspensa no ar, apenas os braços de Aimery a sustentá-la.
Terno, o conde de Segni a beijou de leve nos lábios, trazendo-a de volta à
realidade.
— Estou completa — ela murmurou, lânguida. — Estou em casa.
E tudo era perfeito.
Claire adormeceu. Ao acordar, dali a vários minutos, deparou-se com
Aimery observando-a, com uma expressão ansiosa no rosto. Antes mesmo que
ele dissesse o que o preocupava, ela se apressou a tranqüilizá-lo, acariciando-o
nos cabelos.
— Eu queria o que houve entre nós. Foi minha escolha.
— Você não entende — ele falou apreensivo, em um tom que talvez
costumasse usar quando se dirigia seus comandados para explicar-lhes algo
difícil.
Enternecida, Claire sorriu-lhe. Não era um dos cavaleiros do conde de
Segni e sim uma mulher. Ele a tinha feito mulher. Por escolha sua.
— Você era virgem — ele continuou, inquieto. — Eu a deflorei. Tenho-a
desejado desde o primeiro instante em que a vi. Eu te amo, mas nunca deveria
tê-la possuído aqui. Eu deveria ter pensado em...
Não, não poderia permiti-lhe arruinar aquele momento perfeito. Não o
deixaria se consumir pelo remorso, pela culpa, quando, deliberadamente,
procurara seduzi-lo.
— Não, Aimery — sua voz soou firme e decidida. — Não vamos lamentar o
que aconteceu. Não sou criança. Sei muito bem o que estou fazendo. Amar
você foi o que escolhi fazer.
— Eu te amo — repetiu o conde. — Não estou certo sobre que atitude
tomar em relação a isso. Porém sei que a amo. Juro-o. E a luz desse amor
guiará minha vida.
Emocionada, Claire se aconchegou ao peito largo, abraçando-o quase com
desespero.
Pela primeira vez na vida sentia-se absolutamente segura. Fora recebida
no coração de Aimery e ali nenhum mal poderia atingi-la. O conde de Segni
havia sido honesto, sincero. Não lhe prometera a lua, não lhe propusera
casamento, mas lhe entregara seu amor.
Por enquanto, e talvez para todo o sempre, isso bastaria.
Fechando os olhos, saboreou o prazer de se saber amada, resguardada.
Aninhada entre os braços fortes, permitiu-se esquecer de tudo, ainda que por
breves instantes. Deixaria para o dia seguinte as preocupações relacionadas ao
futuro de William Belibaste e a amargura causada pelas recentes desilusões.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 120

CAPÍTULO XV

Todavia Belibaste ainda precisava ser salvo. Já passava da meia-noite, a


hora habitual em que o grupo de rebeldes se reunia, porém Claire e padre
Pedro permaneciam sozinhos na pequena cela.
— Então ele a beijou — disse o monge fitando-a atentamente, suspeitando
de que mais, muito mais, acontecera nos últimos dias. Entretanto, como de
costume, manteve as conclusões para si. A jovem estava mudando, e mudando
depressa. Contudo, existia a possibilidade de que essa transformação se
provasse útil no final.
— Onde estão os outros? — indagou Claire, ignorando o comentário do
templário, mais um sinal inequívoco de mudança. — Você mandou me avisar
que deveríamos planejar a fuga de Belibaste, que deveríamos nos reunir aqui.
— E de fato estamos todos reunidos aqui — o sacerdote retrucou,
aguardando alguns segundos até que o significado de suas palavras fosse
absorvido. — Nós dois somos os que restaram. Os outros, assustados,
desertaram, abandonaram nossos ideais.
— Depois da morte de madre Helene?
— Na verdade, antes. A captura de William Belibaste e seu julgamento
provou ser um acontecimento desencoraja-dor para muitos que se diziam
dispostos a seguir o líder de nossa causa até o inferno, se preciso fosse.
Todavia, agora que madre Helene está morta e Belibaste prestes a ser
condenado à fogueira, bastando apenas o regresso do bispo Fournier para que
a sentença seja dada, creio que o martírio já não parece uma bênção aos olhos
de nossos antigos companheiros.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 121

Sentada diante do monge, Claire novamente vestia o hábito branco de


noviça. Somente os cabelos ruivos, soltos às suas costas, marcavam a
diferença entre aqueles primeiros dias de verão, quando fora iniciado o
julgamento de Belibaste, e os atuais. Porém, as transformações ocorridas iam
muito além de alterações meramente físicas, como o abandono da touca que
lhe cobrira os cabelos durante anos a fio. Tratavam-se de modificações
profundas e padre Pedro, o grande templário, o sabia.
— Pensei que teria oportunidade de vê-la com mais freqüência, desde seu
retorno de Foix — ele comentou, num tom deliberadamente neutro.
— O conde de Segni tem me mantido ocupada. — Claire desviou o olhar,
grata pela penumbra ocultar seu rubor, misto de culpa e desconforto. — O
conde de Segni tem me mantido ocupada — repetiu —, transcrevendo
anotações sobre as modificações que pretende implantar em sua propriedade.
Ele sabe que falo o dialeto dos aldeões e me considera útil para fazer com que
os camponeses compreendam perfeitamente as novas instruções para o
plantio e o uso das terras. Isso é tudo. Tenho a impressão de que ficarei
envolvida com essas questões até o regresso do bispo Fournier.
— As coisas estão transcorrendo da melhor maneira possível. — A voz de
padre Pedro soou entre benigna e divertida. — Mas o conde de Segni não fez
nenhum comentário sobre o julgamento? Não disse nada sobre quando o
bispo-inquisidor retornará a Montsegur?
— O bispo Fournier enviou um mensageiro de Paris com a informação de
que estará de volta dentro de seis dias. Lorde Segni me contou que o bispo
está investigando uma possível conexão entre o julgamento de William
Belibaste e a extinção dos cavaleiros templários. Pelo visto, o bispo Fournier
está convencido da existência de uma ligação entre essas duas coisas.
"Estaria ela o estudando?", o padre se perguntou. "Estaria esperando uma
reação minha?"
Padre Pedro obrigou-se a sorrir e a falar com despreocupação.
— Não existe conexão nenhuma. O que aconteceu aos meus amados
irmãos templários destruiu-os e também à nossa causa. Fui o único que
escapou com vida a não abjurar. Jacques Fournier é um tolo. Está
desperdiçando tempo ao procurar uma ligação entre os eventos atuais, como o
julgamento de William Belibaste, e o que houve tantos anos atrás em Paris.
Porém nosso prezado bispo é um tipo perigoso. Nunca confiei nele.
Não precisamos confiar para conseguir libertar Belibaste.
Pedro de Bolonha fitou-a durante alguns segundos antes de indagar:
— Você ainda está interessada em William Belibaste? Ainda pretende me
ajudar a libertá-lo?
— Nunca vacilei em minha determinação — Claire retrucou firme. — É a
única coisa que permanece verdadeira para mim.
— Fico me perguntando... — O padre fez uma pausa e então deu de
ombros, como se desconsiderasse a idéia. — A esposa de Belibaste está em
Montsegur, aguardando o regresso do bispo. Entretanto ela já esteve com o
marido e me falou de seu estado.
— Posso vê-la? Você é capaz de arranjar um encontro entre nós duas?
— A sra. Belibaste é tímida — falou padre Pedro depois de um longo
silêncio. — Prefere manter uma certa reserva e evitar aparições públicas. A
pobre mulher está amedrontada. Teme que, eventualmente, acabe sendo
acusada de feitiçaria também. Mas sim, arranjarei um encontro. Providenciaria
tudo. Dentro de um, dois dias no máximo, conseguirei reuni-las. Agora vá fazer
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 122

suas preces e dormir, querida criança. Você deve estar sempre descansada e
desperta junto de Aimery de Segni para não deixar escapar nenhuma
informação, ou detalhe relevante. Somos apenas nós dois agora e precisamos
descobrir tudo o que for possível para levar a cabo a fuga de nosso Perfeito.
Claire assentiu e levantou-se, pronta para partir. De súbito, o velho padre
a segurou pela mão, a expressão do rosto enrugado revelando urgência.
— Estou tão feliz que você não tenha me desertado. Estou tão feliz que
pelo menos nós dois continuamos decididos a libertar William Belibaste.
Mas será que ela realmente não desertara? Será que, realmente,
continuava ao seu lado?
Padre Pedro recostou-se no espaldar da cadeira dura e fechou os olhos.
Sozinho na pequena cela escura, permitiu que todas as suas dúvidas viessem à
tona.
Era óbvio que Claire ainda permanecia bastante interessada em promover
a fuga de William Belibaste. Todavia, ela nada falara sobre a revolta catara que
deveria ser desencadeada no processo de libertação do prisioneiro. E haviam
passado anos sonhando e planejando essa rebelião! Para seu desapontamento,
a jovem noviça parecia considerar como objetivo final a obtenção da liberdade
de Belibaste, em vez de encará-la como o início da insurreição. De acordo com
a visão de padre Pedro, assim que Belibaste escapasse, a causa catara
recuperaria a antiga força em Languedoc. Não apenas voltariam para a seita os
que a tinham abandonado recentemente, como surgiriam novos adeptos em
uma velocidade espantosa. Logo, seriam milhares de seguidores, prontos para
retomar Montsegur. Estava tão perto de realizar seu sonho agora, tão perto de
descobrir a chave para o poder! Faltava apenas ficar a par da informação que
Fournier com certeza traria de Paris. A informação que lhe permitiria localizar o
tesouro cátaro. De posse do tesouro, seria fácil fazer com que William Belibaste
fosse libertado.
Caso falhasse, William Belibaste estaria condenado a morrer...
Padre Pedro abaixou a cabeça, pensativo. Uma idéia nova. A morte de
Belibaste. Nunca explorara essa possibilidade antes, porém, talvez, a tragédia
acabasse se provando útil. Desde o início, levara em consideração somente a
libertação do prisioneiro e a conseqüente rebelião dos simpatizantes da causa.
Todavia, as circunstâncias tinham mudado de maneira drástica nos últimos
dias. Primeiro Helene e agora, Claire...
O templário suspirou fundo, abatido por um súbito cansaço. Helene fora
uma mulher simpática, prestativa até. Mas Claire era diferente. Nascera
predestinada a um futuro grandioso. Sua Madalena secreta, seria, um dia, a
maior de todas as Perfeitas. Durante anos a preparara para assumir esse papel
perante o mundo quando chegasse o momento. A possibilidade de que ela
pudesse facilmente desistir de tudo aquilo pelo qual ele tanto lutara o feria na
alma. Por um instante o padre odiou Aimery de Segni, o usurpador, com um
fervor cego, um fervor que já não julgava possuir. Entretanto, logo recuperou o
controle. Ódio sempre fora uma emoção estéril, ineficaz.
A vingança, sim, produzia frutos e exigia frieza para ser posta em prática.
E há muito aprendera a ser frio. Lidaria com Aimery de Segni quando chegasse
a hora. E lidaria com Claire também.
Padre Pedro sorriu. Sim, ela voltaria a ser sua Madalena. Talvez não mais
uma cátara Perfeita, mas a Madalena original também não fora virgem. Não,
não era tarde demais. Ainda poderiam conquistar Montsegur e governá-lo.
Porém, antes que os tempos felizes se instalassem, muitas outras coisas
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 123

precisavam ser feitas. Devagar, o padre levantou-se e dirigiu-se para sua cela.
Lá fora, o galo cantou, anunciando um novo dia.
Jacques Fournier ainda permaneceu em Paris durante vários dias de
agosto. Claire, na função de escriba, tivera nas mãos muitos pergaminhos
selados, enviados pelo bispo. Jamais os abrira, passando-os imediatamente ao
conde de Segni. Não quisera ficar a par do conteúdo. Todavia Aimery
partilhava as notícias sem hesitar.
O bispo-inquisidor descobrira um elo entre o caso de Belibaste e um
homem muito misterioso. Mais informações apenas pessoalmente, ele
escrevera na última mensagem, expressando seu desejo de que a onda de
violência em Montsegur houvesse cessado.
— Não tenho do que me queixar da vida em Montsegur — Aimery dissera,
beijando-a na base do pescoço.
O conde parecia fascinado por ela e Claire se permitiu saborear a
sensação de se sentir amada, desejada, pois seria por um breve período. Assim
que Belibaste fosse libertado, teria que fugir, Claire começar uma nova vida em
alguma outra aldeia bem distante de Languedoc. Não lhe restaria outra
escolha. Ao ajudar o prisioneiro a fugir, perderia Aimery para sempre, disso não
tinha dúvida. Mas William Belibaste devia ser libertado. Essa fora a única
certeza que trouxera consigo de sua vida antiga para a nova. Secretamente,
sem alarde, e sem mais mortes, Belibaste seria libertado. Descobriria uma
forma de consegui-lo. Bastaria aguardar que a situação propícia para agir se
apresentasse. A liberdade de William Belibaste seria sua primeira missão como
Perfeita. E também a última.
Depois...
Depois descobriria o que fazer consigo mesma, que rumo dar a sua
existência.
Até então, amaria Aimery de corpo e alma, apaixonadamente. Desfrutaria
do conforto e da segurança que encontrara entre os braços fortes, viveria
apenas para os momentos passados naquele recanto especial, sob a copa das
árvores, ouvindo o murmúrio do lago. Não sabia o que Aimery sentia a seu
respeito e não queria saber. Uma ou duas vezes, quando repousavam
abraçados, contentes e saciados, ele tentara abordar o assunto, tentara expor
seus sentimentos, falar de seus planos. Porém sempre o calava com um beijo.
Preferia o silêncio.
— Você é a criatura mais estranha que jamais conheci — ele dissera,
fitando-a intrigado. — Em geral, a primeira coisa que uma mulher deseja saber
é se é amada, ou não.
— Isso não tem importância para mim. — E Claire fora sincera. — A
realidade é como é. Você é nobre, eu não. Tal fato não pode ser mudado.
— Mas você poderia me deixar expressar meus sentimentos — o conde
contestara, exasperado.
Embora curiosa sobre o motivo da irritação masculina, Claire não o
questionara.
— Deixemos as coisas como estão.
Como poderia Aimery amá-la se não a conhecia? E Claire tinha perfeita
consciência da impossibilidade de revelar os seus planos. Precisava guardá-los
apenas para si. Assim, em vez de lhe dar a chance de falar dos sentimentos,
sempre preferira contê-lo. A vida inteira agira de acordo com as escolhas de
outras pessoas. Libertar William Belibaste era uma escolha sua,
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 124

responsabilidade sua e não a dividiria com ninguém. Nem sequer com o


homem a quem amava.
Para sempre Claire se lembraria daqueles dias ensolarados de agosto,
antes do regresso do bispo Fournier. Para sempre ficaria gravado em sua
memória o prazer de descobrir um universo novo, cheio de perfumes,
sensações e emoções intensas. Nunca, até então, prestara muita atenção ao
mundo que a cercava. Enfim, percebia que este mundo podia ser também o
paraíso.
Seu relacionamento com Aimery pouco a pouco fora se estreitando. Os
dois raramente se separavam. Após o término dos afazeres diários,
refugiavam-se na floresta. O conde ia encontrá-la levando um cesto cheio de
coisas gostosas: pães frescos, frutas, doces. Além de uma garrafa de vinho,
que mergulhavam providencialmente no lago para manter na temperatura
ideal. Depois de comerem, conversavam um pouco e então faziam amor.
Ele cobriria cada centímetro de seu corpo com carícias e beijos. A
princípio, ficara passiva, sem saber muito bem o que devia fazer. Aimery,
entretanto, fora guiando-a com sua voz e suas mãos e Claire logo se mostrara
uma aluna aplicada. Ao perceber a própria capacidade de fazê-lo ter prazer,
regozijara-se.
Pela primeira vez na vida sentira-se verdadeiramente poderosa. Toda
aquela força que padre Pedro dissera ser prerrogativa dos Perfeitos,
descobrira-se possuir. Tornara-se forte porque amava Aimery de Segni.
E ele também a amava. Bem no fundo do coração, tinha essa certeza,
apesar de jamais perguntar-lhe sobre seus sentimentos. Não ousava perguntar-
lhe. Aqueles dias gloriosos logo chegariam ao fim e ela queria, e precisava,
desses momentos de felicidade absoluta. Seriam as lembranças desses dias
que a sustentariam pelo resto de seus anos solitários.
Certa vez, Aimery levara alguns manuscritos da época das Cruzadas para
mostrar-lhe.
— Ainda tenho mais guardados em um baú — o conde dissera, notando o
interesse com que ela manejava os pergaminhos orientais. — Infelizmente não
possuo nenhum conhecimento de árabe e não posso decifrá-los. Na verdade,
só os trouxe comigo da Terra Santa porque os achei maravilhosos. As cores e
os desenhos beiram a total perfeição.
Aimery não contou que Isabel, ao vê-los, demonstrara desprezo. "Teria
sido melhor você ter trazido perfumes, ou jóias", a herdeira dos Valois
reclamara. "Um verdadeiro desperdício ocupar espaço na bagagem com coisas
sem valor".
— Oh, mas são lindos! — Claire exclamara, maravilhada. — Quisera que
meu trabalho tivesse metade dessa grandeza.
Feliz por ter sido capaz de lhe proporcionar esse pequeno prazer, Aimery
sorrira. Claire nunca imaginaria como ele costumava planejar cada um dos
encontros, para que fossem sempre uma ocasião única. Tarde da noite,
enquanto revirava na cama incapaz de dormir, ansiando tê-la junto de si,
ocupava a mente planejando as pequenas coisas que faria para agradá-la. Um
pêssego maduro, uma flor... Claire se mostrava grata por cada gesto simples,
dava valor a tudo.
Ao descobrir que os manuscritos a fascinavam, juntou-os e levou-os para
um dos encontros na floresta.
Sentados sob a sombra de um carvalho centenário, Aimery discorrera
sobre Saladin, o líder árabe, e seu maior inimigo, Ricardo Coração de Leão.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 125

Saladin, o príncipe árabe e Ricardo, o rei inglês, eram retratados no


pergaminho quase como figuras idênticas, ambos trajando vestes azuis, tendo
sobre suas cabeças o sol e a lua, pintados em ouro e prata.
— Os dois realmente eram semelhantes — explicara Aimery a uma atenta
Claire. — Ambos cultos e educados, homens que prezavam o cavalheirismo
acima de tudo, mesmo na arte da guerra. Lembro-me de ler certa vez, na
biblioteca de uma abadia em Jerusalém, que os turcos chamavam os soldados
cristãos de guerreiros de ferro e os odiavam porque suas armaduras pareciam
torná-los invencíveis. Porém Saladin não pensava assim. Queria aprender tudo
o que pudesse dos estrangeiros.
Claire estudou o pergaminho, reparando nos desenhos minuciosos que
retratavam arqueiros e cavaleiros vestindo armaduras prateadas.
— Ricardo Coração de Leão e Saladin eram inimigos, com menos em
comum do que William Belibaste e o bispo Fournier. Entretanto foram capazes
de respeitar um ao outro e de construir uma espécie de amizade — ela falou,
depois de alguns minutos de reflexão.
Aimery abriu a boca para argumentar, para explicar rapidamente por que
dois reis, embora de crenças diversas, tinham conseguido ser amigos, algo que
um bispo e um camponês, apesar de partilharem basicamente a mesma
religião, mostravam-se incapazes de conseguir. Todavia o conde de Segni se
deu conta de que sua explicação seria insatisfatória porque não exprimia a
verdade. Assim, ouviu-se dizendo: — Jacques Fournier é um homem justo. Ele
sempre deseja que a justiça prevaleça. Este julgamento pode ser errado, como
é errado querer que William Belibaste passe o resto da vida na prisão. Antes de
qualquer coisa, precisamos esperar o regresso do bispo Fournier. Escutar o que
ele tem a dizer.
Um mensageiro, sujo e exausto, chegou a Montsegur no meio da noite,
trazendo notícias de Fournier. O bispo deveria chegar dali a dois dias e
requisitava, desde já, uma audiência com o lorde de Segni em caráter de
urgência. Aparentemente, Fournier conseguira levantar informações
interessantes durante a estada em Paris e ansiava levá-las ao conhecimento do
senhor do castelo.
Mas Aimery não se sentira muito entusiasmado com as novidades, em
especial com certos detalhes contidos na carta de Fournier. Pensara apenas
em como aproveitar seu último dia livre na companhia de Claire. O resto
poderia esperar.
Em num bilhete mandado ao convento bem cedinho, pediu à donzela de
Foix para encontrá-lo no portão depois das preces do meio-dia, conforme o
habitual. Àquela hora, seus cavaleiros costumavam dormir devido aos efeitos
do vinho, consumido durante o almoço, e os camponeses faziam a sesta para
fugir ao calor intenso. Os dois, livres dos olhares alheios, se dirigiam então ao
lago, onde desfrutavam de total privacidade.
Inquieto, o conde aguardou Claire no local combinado. Vendo-a se
aproximar, seu coração começou a bater mais forte. Adorava o modo como ela
andava, adorava contemplar os cabelos vermelhos brilhando sob o sol. Ela lhe
sorriu timidamente quando se puseram a caminhar lado a lado. De repente,
mas não pela primeira vez, ocorreu-lhe o quanto a jovem escriba era diferente
de Isabel, que sem dúvida o teria cumprimentado com algum comentário
vulgar sobre os prazeres carnais partilhados no dia anterior. Fazer amor com
Claire não a privara da pureza que a caracterizava, muito pelo contrário.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 126

O bispo Fournier colocara uma observação inquietante na carta. Afirmara


que o rei e o papa estavam decididos a sufocar quaisquer tentativas de revolta
no sul. Ambos mostravam-se determinados a não tolerar insurreições e seria
dever de Aimery assegurar a lealdade de Languedoc à Coroa. Para tal, se
desejava mesmo manter a suserania de Montsegur, cabia-lhe se casar com
Isabel sem demora. Pensar no que o destino lhe reservava o fez franzir a testa,
desgostoso.
— Alguma coisa errada? — perguntou Claire, enquanto estendiam a manta
sobre a relva.
Aimery balançou a cabeça. Sentia-se culpado por não expressar o que o
afligia, porém não se tratava de algo que pudesse partilhar. Evidentemente,
como todo mundo, Claire sabia sobre seu futuro noivado. Entretanto não podia
falar sobre o conflito que nascera em sua alma, revelar o segredo que o
consumia. Ela não iria compreender. Às vezes nem ele mesmo compreendia.
Isabel representava tudo àquilo que sempre quisera, tudo aquilo que buscara a
vida inteira.
Mas amava Claire.
Não se tratava de uma surpresa, esse amor. O sentimento fora ganhando
força dia após dia, florescendo, tornando-se a razão de sua existência.
Acomodando-se sob a copa da árvore, o conde não tirou o punhado de
pergaminhos do alforje, como de costume. Neste último dia juntos, queria
apenas conversar.
O céu, muito azul, o fazia pensar na Itália, e em seu lar. Estranho ainda
considerar a Itália seu lar, quando, casando-se com Isabel, estava prestes a
fixar residência em Languedoc para sempre.
Tão imerso estava em seus próprios pensamentos, que a princípio não
ouviu as palavras de Claire. Ela precisou repeti-las.
— Por que você simplesmente não o liberta?
Alguns segundos se passaram antes que Aimery entendesse o significado
da pergunta. Saindo da perplexidade inicial, indagou:
— Você está se referindo a William Belibaste? Mas ele sofre um processo
movido pela Inquisição. Deve ser julgado e receber o veredicto de culpado ou
inocente. E uma questão fora da minha alçada. Não possuo poder para
interferir no caso.
Claire, contudo, o pressionou.
— Ainda assim, você poderia libertá-lo, pois tem esse direito. Você, lorde
Aimery, é o senhor deste lugar, designado para essa posição tanto pelo papa
quanto pelo rei da França. Eles escutariam sua opinião sobre esse assunto e
lhe concederiam o droite de Seigneur, o direito inerente de um lorde para
escolher. O bispo Fournier o apoiaria, pois é visível seu pouco entusiasmo pelo
julgamento de Belibaste. Acho que, de fato, o bispo está cansado de mandar
queimar camponeses por causa de crenças tolas.
— Você sabe que eu não concordo com essa caça às bruxas. Nunca
concordei. O problema é que Belibaste não acredita que suas idéias sejam uma
tolice. Diariamente lhe é oferecida a chance de abjurá-las e, diariamente, ele a
rejeita. Prefere manter-se agarrado às suas convicções equivocadas. Ninguém
o está forçando a nada.
Porém, Claire tinha razão numa coisa. Estava farto desse julgamento e o
bispo Fournier também. William Belibaste e esposa aguardando o desfecho em
Montsegur não era a cerimônia de boas-vindas que imaginara para si ao tomar
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 127

posse daquela fortaleza. Na verdade perguntava-se se teria gostado de


Montsegur se não houvesse conhecido Claire.
— Não posso ir contra os deveres que me foram imputados. Não posso ir
contra o Tribunal do Santo Ofício.
Entretanto, a semente da dúvida fora plantada em sua alma. Ao puxar
Claire para junto do peito e beijá-la, parte de si questionava toda a situação.
Será que Belibaste não poderia, e não deveria, ser libertado?
O bispo Fournier chegou na manhã seguinte acompanhado de um
verdadeiro séquito. Liderando a pomposa comitiva, sir Valois de Bonne,
reconhecidamente o primeiro cavaleiro do reino, o favorito do rei e defensor da
rainha. Sua Presença deixava clara a intenção do rei em resguardar seus
interesses e confirmava a importância de Fournier no atual cenário político.
Junto de Minerve, Claire assistiu à entrada do cortejo no pátio do castelo,
uma procissão interminável de cavaleiros escudeiros, soldados e pajens. O
bispo seguia sozinho em uma carroça e ao passar por Claire, fitou-a fixamente
com um olhar impenetrável.
— O julgamento será retomado em breve — murmurou Minerve.
— Sim — a jovem escriba concordou, observando as muralhas de
Montsegur se fecharem sobre os homens de Paris. — E cada um de nós será
forçado a retomar suas antigas alianças.
A condessa de Montfort apertou-lhe a mão, como se quisesse confortá-la.
Do lado oposto, padre Pedro também acompanhava cuidadosamente o
desfile. No total, havia agora treze cavaleiros reunidos em Montsegur, incluindo
Aimery de Segni, Huguet de Montfort e ele próprio, o cavaleiro templário. Um a
mais que o necessário. Doze era o número perfeito, sempre o fora. Numa vida
passada, Pedro de Bolonha tinha sido bastante supersticioso e a ironia da
presente situação não lhe escapava. De fato, achava-a deliciosa.
Claire não correu ao encontro de Aimery naquela tarde. Mas brincou com
os filhos de Minerve para que esta pudesse descansar.
— Eu não necessito de atenções especiais — a condessa resmungara. —
Depois de cinco gestações, sei mais sobre o assunto do que qualquer parteira.
E estou certa de que minha hora ainda não chegou. A parteira está enganada
se pensa que o bebê vai nascer já. Tenho algumas semanas de espera pela
frente.
Todavia Claire insistira em permanecer no castelo para não deixá-la
sozinha, pois concordava plenamente com a parteira. Segundo a respeitada
mulher, o novo membro da família Montfort chegaria antes da data prevista.
Aliás, mostrara-se até disposta a apostar sua reputação nisso.
A gravidez avançada de Minerve inspirava fascínio e admiração em Claire.
Havia algo de primitivamente belo em gerar uma vida, algo que descobrira ser
tão maravilhoso quanto os beijos de Aimery.
Reconhecendo o cansaço da amiga que, muito teimosa, não o admitia,
Claire se oferecera para cuidar dos pequenos Montfort. Para sua surpresa,
constatou adorar a tarefa. Durante os anos passados no convento, nunca tivera
contato com crianças e jamais se imaginara do tipo que pudesse se divertir na
companhia delas. Mas estava se divertindo.
Da sacada onde brincava com os meninos, viu Aimery entrar no salão,
seguido pela guarda de honra. Claire ficou imóvel, os olhos fixos na figura
máscula. Apesar do salão lotado, não enxergava ninguém, exceto o homem a
quem amava. Aimery ergueu a cabeça e, reconhecendo-a, sorriu-lhe. Porém
logo ocupava seu lugar à mesa principal.
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Mesmo distante, Claire pôde sentir o peso da autoridade se alojar sobre os


ombros largos quando, mais uma vez, Aimery assumiu a posição de conde de
Segni, cavaleiro do rei da França e embaixador diplomático do papa, cuja
missão consistia em manter unida e governar essa terra.
Aquele era seu Aimery. E aquele era o lugar onde ele deveria estar. Onde
sempre desejara estar.
— Pelos céus, ele deu um chute!
Com um gritinho, Claire afastou a mão do abdômen dilatado de Minerve.
— Não "ele" — a condessa de Montfort a corrigiu, complacente —, ela.
— Como você pode saber?
— Porque sou a mãe. E isso basta. — Minerve riu e tomou o copo de leite
que a serva lhe servira momentos atrás. — Sem dúvida é uma menina, porque
se mexe muito para ser um garoto. Contrariando a crença geral, as meninas
são sempre mais ativas quando ainda estão no útero.
Claire limitou-se a concordar. Criada entre as quatro paredes do Santa
Madalena, pouco conhecimento possuía a respeito de crianças, enquanto
Minerve, com sua prole, parecia, com toda razão, uma especialista no assunto.
— Você verá um dia, quando for mãe. Depois de dar à luz o segundo filho,
saberá tudo o que está acontecendo dentro de seu corpo. Já não será uma
estranha sob sua pele. Terá ser tornado familiarizada consigo mesma.
"Como se algum dia viesse a ter filhos, como se algum dia viesse a dar à
luz", Claire pensava com uma ponta de amargura.
— Fui prometida à vida religiosa — ela falou, desviando o olhar. — Nunca
darei à luz uma criança.
— Oh, minha querida, não tenha tanta certeza disso. Antes que Claire
pudesse argumentar, a condessa de Montfort desconversou.
Ela sabia que as coisas tinham mudado para os dois agora e que Aimery
procurava à noite. Assim, após o jantar, permaneceu em seu pequeno
aposento e vestiu-se cuidadosamente com a túnica de seda que Joanna de Foix
lhe dera de presente. Quanto aos cabelos, prendeu-os com um laço dourado.
Horas antes havia se banhado e o odor de rosas continuava impregnado
em sua pele. Sentia-se pronta. Sabia o que queria. Durante toda a celebração
de boas-vindas ao bispo, não tirara os olhos de seu amado, certa de que ele
iria procurá-la.
Com passadas rápidas e decididas, Aimery atravessou os longos
corredores de pedra de sua fortaleza. Ansioso, deixava para trás os últimos
sons de música e risadas vindos do salão principal. Gostaria que não houvesse
ninguém no castelo, exceto Claire e ele.
Quando se preparava para subir a escadaria que conduzia ao andar nobre,
olhou pela janela e avistou uma pequena roseira no jardim, carregada de
botões vermelhos. No mesmo instante, pensou em Claire. Depressa, Aimery de
Segni, normalmente tão pouco inclinado a rasgos de romantismo, correu para
apanhar as flores. Também reuniu no buquê um punhado de jacintos e alguns
ramos de alfazema. Lembrava-se de que ela apreciava esses aromas.
Outra vez no interior do castelo examinou o ramalhete à luz das tochas.
Infelizmente, por causa da escuridão, não fora capaz de escolher as flores mais
bonitas. As rosas pareciam um pouco murchas, os jacintos ressecados devido
ao calor intenso do dia e os ramos de alfazema também "aviam perdido parte
do perfume. E embora soubesse que agradaria Claire, lamentava-se por não
poder presenteá-la com um buquê maravilhoso. Gostaria de lhe oferecer
apenas a perfeição.
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Como a porta do quarto não estivesse trancada, empurrou-a de leve.


Somente depois de fechá-la atrás de si, é que Aimery se deu conta da
impropriedade de suas ações. Hesitou por um segundo, mas avançou, a
penumbra espessa engolfando-o.
— Claire — chamou baixinho.
Ela não respondeu. Devagar, sentou-se na cama e puxou o lençol até os
seios, a cabeleira ruiva se espalhava como uma cascata sobre os travesseiros.
— Claire — o conde repetiu.
— Aimery.
Ouvi-la murmurar seu nome foi o bastante para fazê-lo se aproximar da
cama, o coração batendo descompassado dentro do peito.
— Trouxe-lhe essas flores. — Mas não era o perfume das flores que o
intoxicava, e sim o cheiro de Claire, feminino, delicado, sedutor. Como um
homem faminto e sedento, aspirou-o com avidez.
— Eu estava esperando você — ela falou simplesmente.
Claro que sim. Os dois haviam se tornado tão próximos nos últimos dias
que davam a impressão de adivinhar os pensamentos um do outro. Se ele
pensara em procurá-la, sem dúvida ela o estaria aguardando.
Notando um jarro com água sobre a cômoda, Aimery arrumou as flores.
— Obrigada, são lindas. Agora chegue mais perto, por favor.
— Por quê?
— Porque quero amá-lo.
Apesar da felicidade intensa provocada por essas palavras, o conde irritou-
se. Claire nunca o permitiria falar de um futuro juntos? Nunca lhe diria o que
esperava daquele relacionamento?
— E quanto aos seus escrúpulos de noviça? — ele a questionou. — E
quanto à sua intenção de se manter intocada?
— O passado está esquecido. — Apesar de uma certa tristeza no tom, não
havia sinal de arrependimento.
— Esquecido? Tem mesmo certeza?
— Aquela vida estava encerrada para mim desde o dia em que o beijei
pela primeira vez. Eu o quis desde sempre. Você foi uma escolha minha. A
partir do instante em que o vi, desejei-o. Nosso relacionamento foi uma escolha
minha — repetiu —, não do padre...
— Não do padre...?
— Nosso envolvimento diz respeito apenas a mim e a você — ela o
interrompeu.
Claire abaixou o lençol, expondo os seios. Para Aimery, o mundo lá fora
deixou de existir. Tudo se concentrava na mulher a sua frente. Todos os seus
sentimentos, todas as suas emoções, o próprio ar que respirava, tudo dependia
de Claire.
Entretanto, devia parar. Os dois deveriam parar por ali. Pelo menos até
que alguns planos fossem feitos. Pelo menos até que discutissem algo sobre o
futuro.
Todavia, a Aimery não foi dada escolha.
Nada de promessas — Claire decretou. — Vamos apenas nos amar mais
uma vez. Esta noite.
Durante minutos intermináveis, os dois se fitaram. Mergulhando nos
magníficos olhos verdes, o conde de Segni reconheceu a verdade, reconheceu
a importância daquele momento. Pela primeira vez na vida de ambos, não
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estavam vivendo no passado, não estavam vivendo em função do futuro, mas


se entregando de corpo e alma ao presente.
E era importante que vivessem este momento presente sem medos.
Novamente Claire abaixou o lençol. Nua até a cintura, banhada pelo luar
que entrava pela janela estreita, mais do que nunca ela estava convencida de
que vivia a sua escolha. Queria estar nos braços de Aimery, queria se entregar
sem reservas e sem pensar no amanhã. Quanto ao futuro, tinha somente uma
certeza: já não desejava ser uma Perfeita. Aceitava esse fato sem nenhuma
hesitação e sem pesares.
Então, os pensamentos sucumbiram ao ardor das sensações. As palavras
perderam a importância. Existia apenas o agora.
Em segundos, Aimery estava nu ao seu lado, os corpos colados, as bocas
unidas. Claire sabia exatamente o que queria do amado e ele sabia
exatamente como satisfazê-la.
Sem pressa, Aimery a reverenciou primeiro com os lábios, deliciando-se
com o sabor da pele acetinada. Depois, percorreu cada centímetro do corpo
sinuoso com as mãos, estimulando-a, provocando-a. Ao senti-la úmida,
lânguida, penetrou-a de uma só vez. Porém as investidas foram vagarosas no
início, quase delicadas. Enquanto murmurava palavras doces e afetuosas,
Aimery deitou-se sobre ela, arrastando-a em um turbilhão de sensações
alucinadas.
A beira do êxtase, Claire se agarrou aos ombros fortes e gritou o nome do
amado para o infinito, certa de que lhe pertenceria para todo o sempre.
No silêncio da madrugada, Aimery aconchegou Claire junto ao peito e
apertou-a com força, como se não fosse soltá-la jamais.
Quando as primeiras luzes da manhã tingiram o céu, ele soube ter feito
uma falsa promessa. Não poderia trocar Claire por Isabel. Nem agora. Nem
nunca.

CAPÍTULO XVI

— O nome dele é Pedro de Bolonha. — revelou o bispo Fournier, num tom


solene. — Um cavaleiro templário.
— Pensei que os templários houvessem se dispersado e suas terras e
títulos retomadas pela Coroa da França. — Aimery observou verdadeiramente
intrigado.
— Trata-se de um renegado — continuou Fournier. — Um dos poucos que
escaparam da prisão. Creia-me, é um homem perigoso. Em certos aspectos,
tão perigoso quanto o próprio diabo.
Claire manteve o olhar abaixado, fixo no pergaminho. Os três eram as
únicas pessoas em todo o vasto salão principal. O bispo requisitara aquela
audiência particular e exigira a presença da escriba, com o argumento de que
queria deixar claramente registrado tudo o que dissesse.
— Com certeza você sabe do julgamento dos templários.
— Como eu poderia não sabê-lo? — o conde de Segni retrucou. — A
história de sua queda e desgraça é de conhecimento geral.
— Infelizmente a desgraça não foi apenas uma prerrogativa dos cavaleiros
templários, mas de toda a cristandade. O que aconteceu durante aquele
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 131

período negro da história da Igreja foi um equívoco terrível desde o início. As


pessoas envolvidas agiram movidas pela ganância, não pela bondade.
— Se não me engano, Felipe, o Belo, iniciou a perseguição aos templários.
— Sim — concordou Jacques Fournier. — Felipe e Clemente V, o primeiro
papa depois do cisma a subir ao trono papal em Avignon, se uniram e
acusaram os templários das maiores abominações, bruxaria não era a menor
delas. Comentava-se, porém, que o rei e o papa não estavam muito
interessados em salvar o espírito imortal dos templários e sim em se
apossarem do tesouro. — O bispo fez uma pausa, uma expressão entristecida
no rosto. — A ordem dos templários, chamados de "os monges guerreiros",
ganhou notoriedade durante as Cruzadas, quando seus membros defenderam
a Terra Santa. Todavia não tardaram a se revelar negociantes competentes.
Logo se tornaram prósperos e poderosos, fixando residência em Paris, em sua
formidável cidadela, o Templo.
— Eles não pensaram em garantir a própria proteção com seu dinheiro e
influência? — Aimery questionou. — Afinal era esse o comportamento típico da
época. Fortuna em troca de segurança.
— Os templários eram cavaleiros, guerreiros e, em geral, homens de
pouca instrução. Não tardaram a ficar intoxicados com o próprio prestígio e
com suas conexões com os Poderosos. O último chefe da Ordem, Jacques de
Molay, era padrinho da filha do rei. Você sabe, sir Aimery, que pouquíssimos
cavaleiros possuem o seu grau de instrução. A esmagadora maioria, mesmo
atualmente, continua iletrada. Não apenas Jacques de Molay era analfabeto,
como parecia ignorar o perigo que corria. Ele estava jantando com o rei Felipe
quando o primeiro ataque a seu amado Templo foi deflagrado. Em questão de
horas Jacques de Molay e seus cavaleiros-monges eram lançados nas
masmorras do Louvre, onde permaneceram durante muitos e muitos anos sem
ver a luz do dia.
— Eles não foram julgados? — o conde de Segni insistiu. — A lei é clara.
Todo homem tem direito a um julgamento justo.
— Naturalmente houve um arremedo de julgamento — retrucou Fournier,
com certa impaciência. — As leis civis e religiosas desta terra o exigem. Mesmo
um pobre camponês como William Belibaste não pode ser sentenciado à morte
sem ser julgado, quanto mais alguém poderoso como Jacques de Moley. Depois
de torturados e forçados a confessar crimes imaginários, os templários foram
levados à presença do rei, no grande salão do Louvre, onde acabaram
publicamente acusados e julgados. Talvez a semelhança entre aquela situação
e a atual, envolvendo Belibaste, seja uma pista para o perigo que agora nos
espreita.
Um pesado silêncio caiu sobre os três.
— Você se lembra — continuou Fournier —, de me ouvir mencionar a falta
de instrução dos cavaleiros. Porém eu também deveria ter acrescentado que
os templários, embora celibatários, não eram sacerdotes e sim monges. Poucos
deles costumavam ser ordenados padres.
Aimery concordou com um aceno de cabeça.
O bispo prosseguiu após mais uma pausa.
— Todavia, um dos irmãos templários sobressaía-se pela rara inteligência:
Pedro de Bolonha, reconhecido pelo alto grau de instrução e vasta cultura. A
ele coube defender os companheiros diante do rei e do papa.
— Imagino que tenha sido uma tarefa monumental. E ingrata.
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— De fato, acho que foi uma situação muito pior do que nós dois podemos
supor. Imagine ser o único templário capaz de perceber a seriedade da
situação e a tragédia que os aguardava. Imagine saber que seus irmãos
cavaleiros dependem de sua defesa para serem salvos. Imagine sentar-se
frente a frente com seus algozes, durante infindáveis interrogatórios,
convencido de que o veredicto já fora dado desde o início e que a morte seria
inevitável. Imagine saber que não havia esperança para ninguém, nem para si
próprio, nem para os companheiros. É uma situação capaz de enlouquecer
qualquer homem. E parece que Pedro de Bolonha perdeu a razão, devido à
tristeza, à desilusão e ao medo.
— Pobre homem! Eventualmente ele foi condenado como os outros? —
indagou o conde de Segni.
— Oh, não. Pedro de Bolonha conseguiu escapar.
— Havendo conhecido o Louvre, em Paris, acho impossível acreditar que
qualquer pessoa pudesse escapar de suas masmorras. Basta observamos como
Belibaste tem sido cuidadosamente vigiado aqui, em Montsegur, para
compreendermos quão infinitamente mais difícil teria sido burlar a vigilância
dos soldados do rei e do papa — argumentou Aimery. — o julgamento dos
templários durou anos. Sem dúvida Felipe e Clemente estavam preparados
para enfrentar tentativas de fuga.
— Pedro de Bolonha apenas... desapareceu. E, creia-me sua ausência
provocou imensa consternação.
— Por que ele escapou? — indagou Aimery. — Por que o Tribunal
encontrou dificuldade para achar uma outra pessoa capaz de substituí-lo na
defesa dos réus?
O bispo sorriu e, fitando o conde com inegável afeição, deu-lhe um tapinha
nas costas.
— Meu filho, apesar de todas as suas conquistas, apesar de seu passado
como guerreiro, você ainda conserva uma certa ingenuidade. Nada conseguiu
destruir sua bondade inata. Quem se daria ao trabalho de fazer prevalecer à
justiça, quando havia um tesouro envolvido?
— Tesouro?
Diante do genuíno assombro de Aimery, Claire sentiu o coração
transbordar de amor.
"Então o tesouro continua sendo a única coisa realmente importante", ela
pensou desalentada. Fora sempre assim, desde o começo.
— O sagrado tesouro dos templários — Jacques Fournier replicou, com
uma ponta de tristeza. — E algo mais. Quando os cofres foram abertos,
descobriu-se que continham muito menos do que o esperado. O tesouro foi um
dos motivos pelos quais Jacques de Molay e seus irmãos tinham sido
torturados. Felipe e Clemente desejavam se apossar das riquezas, mas parece
que o grão-mestre dos templários os enganou. Ele jamais lhes contou o
segredo. Porém o contou a Pedro de Bolonha.
— O mesmo Pedro que conseguiu escapar das masmorras do Louvre.
— O mesmo Pedro que Jacques de Molay ajudou a escapar — Fournier o
corrigiu. — Ao ser preso, Jacques de Molay já era um homem velho e sabia que
não resistiria à tortura por muito tempo. Também sabia que a esmagadora
maioria de seus companheiros não possuía nenhuma instrução e que, portanto,
faltava-lhes condições de enfrentar o poder da Coroa e da Igreja. Existia
somente um único homem entre eles capaz de fazer renascer as sementes de
sua Ordem, quando as perseguições aos templários chegassem ao fim. Jacques
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 133

de Molay precisava de alguém como Pedro de Bolonha. Um homem inteligente,


sagaz e inquestionavelmente devotado à causa.
Mais uma vez o silêncio.
O bispo Fournier retomou a palavra.
— Mas para onde iria Pedro? Onde encontraria o lugar ideal para replantar
as sementes de sua ordem e vingar seus mártires?
— Ele não podia se refugiar em nenhum lugar da Europa — afirmou
Aimery. — A ordem dos templários havia sido desmantelada.
— Uma possibilidade seria a Inglaterra, pois um pequeno grupo de
templários vivia em reclusão na Cornualha. Todavia, por que ir tão longe?
Afinal, a tragédia que se abatera sobre seus irmãos fora rápida e fatal.
Precisamos ter isso em "tente para entender como Pedro de Bolonha deve ter
pensado na época. Ao serem atacados de surpresa, os templários não tiveram
tempo de se organizarem, de ensaiar uma oposição, de tentar uma revolta.
Entretanto, existia um lugar, bem aqui na França, onde a oposição ao rei e à
religião estivera fervilhando há mais de um século.
— Um lugar arrasado pelas Cruzadas — completou Aimery. — Mas cujo
povo jamais fora totalmente esmagado.
— Os cátaros. — Fournier levantou-se devagar. — E lembre-se, meu caro
lorde de Segni, que também sempre se ouviu rumores sobre um tesouro
cátaro. Diz à lenda que Esclarmonde de Foix trouxe o tesouro para Languedoc
antes de Simon de Montfort iniciar o cerco à fortaleza de Foix.
Aimery deu de ombros, desinteressado.
— O povo de Languedoc sempre fomentou rumores sobre os cátaros e
seus tesouros. Essas histórias ficaram tão banalizadas ao longo dos anos, que
ninguém jamais as levou a sério. Tornaram-se simples superstições.
De repente, o conde de Segni se deu conta de que palavras como
superstição e magia não mais lhe soavam como antes, como simples
bobagens. Algo intrigante acontecia ao seu redor, algo que ainda não
conseguira entender. Instintivamente fitou Claire, que continuava debruçada
sobre o pergaminho, trabalhando sem cessar.
Havia algo em Claire que permanecia um mistério. Algo em sua pura e
inocente Claire...
Coisas demais tinham mudado durante este curto verão em Montsegur e
ele, para sua completa surpresa, mudara também. Exploraria essas mudanças
mais tarde, tentaria descobrir sua profundidade e importância. Por enquanto,
devia se dedicar ao dever. Devia proteger sua suserania. Devia agir de acordo
com seus juramentos.
— Pedro de Bolonha — o conde de Segni murmurou. -— De alguma
maneira, sinto que ele está perto.
— Oh, sim, muito perto — afirmou o bispo Fournier. — Perto e preparado
para deflagrar sua vingança. Eu sei. Porque o vi.
Padre Pedro sorriu para as duas mulheres a sua frente. Ambas fizeram
uma rápida reverência e tornaram a sentar nos degraus de pedra do casebre.
Pedro de Bolonha não teria sido capaz de sobreviver à infames sessões de
tortura, à morte de tudo aquilo que mais amava e aos perigos de levar a vida
secreta, que abraçara depois da tragédia que se abatera sobre a sua ordem,
sem o auxílio de uma forte intuição. E a intuição lhe dizia para agir com
cuidado, porque os predadores o rondavam. E cuidado significava mudar de
tática, para que o inimigo perdesse seu rastro.
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O inimigo sabia que ele estava por perto. Tivera certeza disso ao
testemunhar a chegada do bispo Fournier a Montsegur, acompanhado de um
cortejo real. Disfarçara-se e misturara-se à multidão; porém, por um instante,
quando seu olhar se cruzou com o de Fournier, dera-se conta da verdade.
Entretanto, do alto de sua vaidade, de sua presunção, padre Pedro
duvidava que Jacques Fournier o tivesse reconhecido. Aliás, a idéia era ridícula,
absurda. Fournier, Huguet de Montfort, Aimery de Segni, todos eles se
consideravam poderosos, inatingíveis. Tolos! Não demoraria a vê-los
esmagados como insetos no chão de Languedoc.
Fora o que planejara. Mas agora...
O cavaleiro templário fitou a esposa envelhecida de William Belibaste e
então Claire, a sua Claire. Por um momento 0 ar lhe faltou dos pulmões. Talvez
Fournier não tivesse Percebido o elo de ligação entre o passado e o presente.
Mas Claire sim. Conhecia-a muito bem para ignorar os sinais. Claire teria que
ser sacrificada, como a família dela o fora, para que seu dever fosse cumprido.
Apesar da dor dilacerante que essa certeza lhe causava, padre Pedro continuou
a sorrir. De súbito, ainda que por breves segundos, sentiu-se jovem outra vez.
Jovem, cheio de esperança, de fé, de entusiasmo para defender a justiça. Tão
diferente do velho e amargo assassino no qual se tornara.
A tortura o mudara. Nunca mais fora o mesmo.
— Verei meu marido hoje? — indagou a camponesa, forçando-o a mudar o
rumo dos pensamentos.
Padre Pedro contemplou as duas mulheres. Sim, iria usá-las para alcançar
seus objetivos. Em nenhuma hipótese, falharia. Nada, no céu ou na terra, o
impediria de concluir o plano que traçara anos atrás. Ultimamente Claire
começara a questioná-lo, a discordar de suas idéias, assim como acontecera
com Helene. Bem, dera um jeito em Helene e daria um jeito em Claire também,
quando chegasse a hora.
Com um sorriso cativante, dirigiu-se à futura viúva.
— Minha querida, claro que você verá seu marido hoje. Por que tanta
ansiedade? Nunca devemos perder a esperança.
— Mas o bispo Fournier voltou de Paris. — A expressão da esposa de
Belibaste revelava pavor. — E lorde Segni pediu à jovem Claire para se
apresentar no castelo amanhã cedo. O julgamento será retomado às primeiras
luzes da manhã. Nunca ouvi falar de interrogatórios que começassem à essa
hora. Pode ser sinal de que desejam encerrar essa história o quanto antes.
— Pode não ser sinal de nada — acalmou-a o templário, num tom calmo e
confiante. — Não devemos abandonar a esperança. Não devemos permitir que
esse infiéis influenciem nosso bom senso.
— Não existe esperança para William. O bispo foi a Paris em busca de
provas contra meu marido, provas que o liguem à conspiração catara. O bispo
viajou para se consultar com alguns monges dominicanos.
— O que a leva a pensar assim? — indagou padre Pedro, ríspido.
Porém, vendo o rubor cobrir as faces de Claire, soube de onde partira a
informação. Sua Claire. Sua esplêndida Madalena. Há anos não experimentava
dor tão profunda.
— Lorde Segni me contou ter sido este o objetivo da viagem de Jacques
Fournier — Claire explicou sem se alterar. — O bispo desejava se aconselhar
com especialistas, com estudiosos. Achava que através dessas conversas
poderia encontrar uma explicação para o que está acontecendo aqui.
— Jacques Fournier falou sobre quais especialistas seriam esses?
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— Historiadores. — Claire ergueu o olhar. — Homens capazes de


esclarecer o que realmente aconteceu aos templários.
Furioso, Pedro de Bolonha dedicou a Claire sua total atenção. Já não havia
lugar para a dor em sua alma, restava apenas o desejo de vingança. No fim,
ela, como todos os outros, receberia somente o merecido.
— Por que você não me contou nada disso antes?
— Porque não me pareceu importante. O bispo mencionou o fato de
passagem.
Apesar da voz firme, estava claro que Claire mentia. Desde o início, padre
Pedro soube que sua antiga pupila não dizia a verdade; pelo menos, não toda a
verdade. Descobriria os detalhes depois. No momento, precisava cuidar da
esposa de Belibaste.
— Não nos esquecemos de seu marido — falou, cada palavra soando cheia
de simpatia. — Ele será libertado de um jeito ou de outro. Prometi-o a você no
passado e volto a prometê-lo agora. Todavia as circunstâncias mudaram e
receio que seremos obrigados a nos adaptar à nova realidade. É imperativo
libertarmos Belibaste o quanto antes. Seu marido tem que ser libertado já —
repetiu, enfático. — E vocês duas devem se preparar para fugir.
— Mas o bispo Fournier prometeu um julgamento justo a meu marido — a
camponesa argumentou, retorcendo as mãos no auge do nervosismo. — Você
mesmo disse que nós deveríamos esperar até William ter chance de pedir
clemência ao Tribunal, de implorar por sua vida. Você disse que não
deveríamos tomar nenhuma atitude precipitada.
Padre Pedro não estava disposto a ouvir alguém repetir suas próprias
palavras, especialmente em se tratando de uma aldeã ignorante.
— O fato de Jacques Fournier exigir que os interrogatórios recomecem
amanhã cedo só pode significar que ele trouxe novas provas de Paris, provas
que incriminam seu marido e que serão fatais à nossa causa. Não podemos
correr o risco de deixar que o julgamento chegue ao fim.
— Então você acha que devemos libertar William Belibaste pela força? —
Claire o pressionou.
— Somente se necessário — o monge retrucou, conciliador. — Não
podemos permitir que eles nos derrotem agora, como aconteceu no passado.
Não podemos participar de nossa própria destruição escolhendo a passividade
em vez da ação.
— Conheço meu marido muito bem — protestou à camponesa. — Em
nenhuma circunstância, nem mesmo para se salvar, William aprovaria
derramamento de sangue. Meu marido permanece fiel aos ideais dos cátaros.
Ainda assim ele não hesitou em tomá-la para esposa, padre Pedro teve
vontade de gritar. Todavia, limitou-se a dizer:
— Eu também continuo fiel às crenças cátaras e não quero que sangue
inocente seja derramado. Asseguro-lhe, será fácil evitá-lo. Claire conseguirá a
chave da cela de Belibaste para nós. O conde de Segni confia em nossa
querida escriba agora.
"Sim, é verdade", Claire pensou. Porém Aimery não guardava as chaves
das masmorras consigo e sim o bispo-inquisidor. E Jacques Fournier também
confiava nela. Seria muito fácil se apossar das chaves, sempre deixadas
próximas aos pergaminhos.
Fácil roubá-las. O difícil seria viver com o que fizera. E com o que
planejava fazer. Iria fazê-lo por Belibaste. Para libertá-lo.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 136

Iria fazê-lo por todos eles. Pela esposa de Belibaste, por Huguet, Minerve e
as crianças. Por Aimery, seu amado Aimery, e por si mesma. Seria a única
maneira de evitar que todos acabassem mortos. Porque padre Pedro se
encarregaria de matá-los a todos, sem piedade. Assim como havia matado
seus pais, pondo fogo no chalé, assim como matara o monge inicialmente
destacado para a função de escriba no vigamento de Belibaste e como matara
a doce madre Helene. Padre Pedro estava louco. Disso não tinha a menor
dúvida. Mas o que o levara a perder a razão? Ainda não encontrara resposta
para essa pergunta.
Tinha certeza de que acabaria descobrindo a verdade. Todas as peças do
quebra-cabeça se encaixariam quando libertasse William Belibaste.
Claire estendeu a mão para padre Pedro, sabendo que essa seria a última
vez.
— Tenho-a comigo — falou, mostrando a enorme chave enferrujada. — É
noite. Podemos libertar Belibaste rapidamente.
O velho templário tentou disfarçar a decepção, porém Claire o conhecia
bem.
— Libertá-lo? — A voz áspera do padre Pedro ecoou pela noite escura,
onde os cátaros costumavam se reunir quando madre Helene ainda vivia.
Todos haviam desertado.
— Não era isso o que queríamos? — Claire estreitou os olhos, ainda
segurando a chave. — Desde criança, os princípios cátaros foram a única coisa
sobre a qual ouvi falar. Devemos amar a liberdade, devemos honrar a vida e
protegê-la. Devemos viver com simplicidade, preservando-nos. Devemos
permanecer bons e justos. Devemos sempre amar a paz. Não foi isto o que
você me ensinou, padre Pedro? Não foi isto o que você sempre disse?
— Claro. — Cansado, o padre já não disfarçava a impaciência. — Claro que
a paz é tudo o que sempre desejei.
— E você viveu a paz? Viveu o que pregou?
— O que você está insinuando?
— Oh, padre Pedro, acho que você sabe muito bem.
E de repente ele soube. Soube que Claire descobrira a verdade. Por um
segundo, o chão pareceu fugir sob seus pés e Pedro de Bolonha quis se agarrar
a uma tábua de salvação, a qualquer tábua de salvação, enquanto o mundo
rodopiava sem parar. Mas não demorou a se recompor. Afinal, era Pedro de
Bolonha e já havia feito coisas piores do que aquelas que planejava fazer
agora.
— Você pensa que sabe tudo. Entretanto não sabe nem da metade.
— Você matou meus pais — Claire o acusou, a voz trêmula a princípio
ganhando força. — Você os matou e matou meu irmão. Você matou o monge
designado para a função de escriba. Matou madre Helene, a doce e gentil
madre Helene, que sempre acreditou nos ideais que você pregava apenas da
boca para fora.
— E quanto à boneca de cera no portão do convento? — padre Pedro a
provocou, irônico. — Vai se esquecer de acrescentá-la à lista de meus pecados
capitais?
Os dois se fitaram durante longos e tensos minutos.
— Faça-me entender — ela pediu. Se ele pudesse...
Por um instante o templário perguntou-se se seu plano inicial ainda podia
ter sucesso. Talvez não fosse tarde demais se conseguisse fazer Claire, sua
Madalena, entender.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 137

Mas estava cansado. Era inútil. O orgulho e a vaidade o cegavam para


qualquer outra coisa que não fosse o próprio sucesso.
— Você, menina tola e idiota, não tem idéia de tudo o que realizei. Você
não tem idéia do que poderia ter se tornado. Meu plano não começou com seus
pais, nem terminará com você, ou com William Belibaste. Imagino que eles
tenham lhe contado sobre o julgamento dos templários. Claire limitou-se a
concordar com um aceno de cabeça.
— Imagino que tenham lhe contado o que acreditavam ser a verdade:
como fui escolhido para defender os membros da ordem, como o destino de
meus companheiros estava em minhas mãos. — Padre Pedro tinha o olhar
distante, perdido no passado. — Jacques de Molay, embora grão-mestre, não
passava de um homem estúpido. Sem instrução, ignorante, incapaz de
perceber o perigo que corria, de entender que o que eles queriam destruiria a
nós todos no final.
— O tesouro?
— Oh, sim, o tesouro. "Que importância tem a fortuna se podemos usá-la
para salvar nossos irmãos da fogueira?" — indagou o padre, destilando
sarcasmo. — Você precisava ouvir o velho patético discursar. Como se Felipe
fosse poupá-lo, ou aos outros. O tesouro era apenas o começo. O rei desejava a
morte de todos os templários.
— Todavia Felipe e o papa ofereceram clemência a Jacques de Molay.
Afinal, os três sempre foram amigos. Se o grão-mestre houvesse se declarado
culpado, teria sido poupado das chamas. Foi ele quem escolheu morrer como
mártir.
— Sim, o tolo escolheu.
Algo no tom monocórdio de padre Pedro despertou as suspeitas de Claire.
— Você foi o responsável pela escolha de seu superior.
— Jacques de Molay escolheu o próprio destino, apesar de precisar de um
empurrão. Compreenda, querida Claire, ele não tinha talento para a liderança,
mas eu sim. Que importava se o grão-mestre e meus irmãos fossem
sacrificados desde que o Templo permanecesse? Fiz um acordo com alguns
homens do rei. Homens invejosos, que lucrariam com a queda do líder dos
templários. Meu preço foi módico. Propus entregar-lhes Jacques de Molay em
troca da minha liberdade. Afinal, eu não passava de uma criatura destituída de
valor que, após horas de tortura, não lhes proporcionara nenhuma informação
relevante. Meu único valor consistia na minha capacidade de influenciar, de
persuadir o grão-mestre. Jacques de Molay confiava em mim.
— Mesmo essa confiança conduzindo-o à morte.
— É fácil para você me julgar, jovem donzela. Ou será que não devo mais
usar o termo "donzela", uma vez que Aimery de Segni já se apossou de seu
corpo?
— Foi escolha minha. Eu decidi me entregar. Pela primeira vez na vida,
escolhi meu próprio caminho.
— Ignorando a missão de se tornar uma Perfeita! Ignorando seu dever de
se tornar a Madalena dos templários! Como a Jacques de Molay e os outros —
padre Pedro a acusou, enojado. — "Salve os membros da ordem! Entregue o
tesouro a Felipe!" Porém eu não pude fazê-lo. O tesouro seria a única coisa que
me permitiria reconstruir o Templo.
— Só que você nunca se apossou dele — Claire devolveu, zombeteira. —
Depois de trair seus irmãos, você não conseguiu pôr as mãos no tesouro. Aliás,
foi a busca do tesouro que o trouxe a Montsegur.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 138

A despeito de si mesmo padre Pedro sorriu, satisfeito com a argúcia da


antiga discípula. Afinal, fora ele quem a criara, quem a educara. Transformara
aquela filha de camponeses em uma jovem tão culta e instruída que os
próprios pais não reconheceriam, se tivessem sobrevivido.
— Sim, Jacques de Molay e seu primeiro-tenente, ao voltarem da Cruzada
na Terra Santa, resolveram levar o tesouro para o Sul, onde conheciam um
lugar secreto para guardá-lo. Este lugar era Languedoc, uma região dominada
pelos cátaros há várias gerações. Aliás, segundo a lenda, os cátaros também
tinham um tesouro escondido aqui; sua localização era um segredo que
somente os Perfeitos conheciam. De alguma forma, o grão-mestre soube do
segredo dos cátaros e pediu que o tesouro dos templários fosse escondido
junto ao deles. Isto aconteceu logo antes da queda dos templários.
— E você acha que William Belibaste sabe onde o tesouro está guardado?
— Por qual outro motivo eu teria feito com que o bispo Fournier saísse ao
encalço dele?
— A prisão de Belibaste é obra sua?
— Na verdade o traidor Sicre foi só um peão. Eu planejei a coisa toda. Fiz
com que a Inquisição descobrisse rastros de Belibaste e conseguisse prendê-lo.
— Porque Belibaste é o último Perfeito.
— E ele conhece o segredo.
De repente padre Pedro lançou-se sobre Claire, as mãos como garras
prontas para segurá-la. Todavia, jovem e ágil, ela conseguiu escapar e, ainda
segurando a chave da cela, correu para o corredor, batendo a pesada porta de
madeira atrás de si e fechando-a com o ferrolho.
O som do ferrolho levou o padre a recuperar a razão. Com uma voz
insidiosa, chamou-a:
— Minha querida criança, você está agindo como uma tola. Você pensa
que Aimery irá ignorar a seriedade da situação? Acha que tornará a levá-la
para a cama depois de descobrir suas mentiras? Depois de saber que você é
uma cátara, uma Perfeita, cuja missão é libertar o prisioneiro da Inquisição? Ou
então, como a maioria das mulheres, acredita que ele a ama só porque se
deitaram juntos e que esse amor superará todos os obstáculos, fazendo-o
abandonar tudo aquilo pelo qual lutou a vida inteira? Você acha que por ser
instruída o conde de Segni a colocaria no mesmo patamar de Isabel de Valois,
a futura noiva?
Claire parou no meio do corredor úmido e abafado.
— Não tenho pretensão de merecer o amor de Aimery de Segni — falou
baixinho; padre Pedro teve dificuldade para escutá-la atrás da pesada porta. —
Porém, jurei a mim mesma que William Belibaste seria libertado.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 139

CAPÍTULO XVII

— É a única coisa que permanece imutável para mim — Claire falou


enquanto, na companhia da esposa do prisioneiro, avançava pelas masmorras
de Montsegur.
— O quê? — a camponesa perguntou. Na verdade, não ouvira o que a
escriba dissera e não se interessava. Um milagre acontecera: estava a caminho
de libertar o marido e era tudo o que importava. Claire explicara-lhe que do
lado de fora das muralhas um jumento, carregado de provisões, os aguardava.
No alforje, um mapa que os conduziria pelas montanhas até a Andaluzia. —
Depressa, senhora. Por favor, depressa.
Porém Claire não necessitava de que a incitassem a agir. Algo ali não
parecia certo. Onde estavam os guardas? Onde estavam as pessoas
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 140

encarregadas de vigiar o prisioneiro? Indagações sobre as quais se debruçaria


no futuro, quando teria tempo de sobra para tentar encontrar respostas. Não
lhe faltariam anos de solidão para analisar o que quisesse, depois de ter
completado sua missão, depois de ter enfrentado Aimery com o relato do que
fizera. Depois de ter libertado William Belibaste.
A chave enferrujada custou a girar na fechadura. Intermináveis minutos de
apreensão até que a pesada porta fosse aberta.
Após alguns segundos para os olhos se ajustarem à penumbra, Claire
examinou a cela. Não era tão ruim quanto imaginara. Sobre o chão coberto de
palha, uma cadeira perto da janela pequenina e um catre.
— A escriba veio libertá-lo — a esposa do réu estava dizendo, agarrando-
se ao marido com a ansiedade dos desesperados.
Pela primeira vez, Claire viu-se frente a frente com o objeto de sua
missão.
Tratava-se de um homem de estatura mediana, de cabelos grisalhos e
aparência frágil. Não havia nele nada de especial, nada que o destacasse como
Perfeito.
Apesar do inusitado da situação, com a chegada repentina das duas
mulheres, Belibaste não se mostrou assombrado diante da boa sorte.
Simplesmente fez uma única pergunta à escriba.
— Você já sabe sobre padre Pedro?
— Sim. E você?
— Eu o soube quase desde o princípio, antes mesmo de vir para cá. Eu
sabia que ele havia traído os outros. E sabia que me trairia.
— Ainda assim você veio para Languedoc.
— Eu tinha minha missão, como você tem a sua. E nós, cada um de nós,
tem que se esforçar para levar a própria missão até o fim. Você não tem
nenhum interesse no tesouro?
— Não.
— Foi o que pensei. — Belibaste sorriu, cansado. — Ótimo, porque não
existe nenhum tesouro.
— William, precisamos partir! — a esposa o pressionou, impaciente.
Sem se alterar, o Perfeito continuou dirigindo-se a Claire.
— A existência do tesouro é somente um mito. Os cátaros inventaram a
lenda deles, Jacques de Molay inventou a dos templários. Entretanto não há um
pingo de verdade nessas histórias. Pedro de Bolonha traçou planos, traiu e
assassinou por nada.
— Ele diz que agiu assim por um ideal. O ideal de conservar o Templo
vivo, depois que os templários desaparecessem.
— Não existe nada — repetiu Belibaste, num murmúrio.
— Nada!
— William, por favor!
Desta vez o último Perfeito atendeu aos apelos da esposa e, tomando-a
pela mão, rumou para o corredor. Notando que Claire continuava parada no
meio da cela, indagou:
— Você não vem conosco?
— Não. Ainda tenho algo a fazer.
— Contar a verdade ao conde de Segni?
— Sim.
Casado e com uma vida de indiscrições atrás de si, William Belibaste lhe
parecera, a princípio, um estranho candidato a Perfeito. Todavia, percebendo a
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 141

bondade nos olhos escuros, não teve dúvidas de que ele desempenhava o
papel de sacerdote dos cátaros com empenho e dignidade.
— Você cometeu um ato de traição ao me libertar e ninguém, nem o
conde de Segni, nem o bispo-inquisidor, terá o direito de absolvê-la. Você
tomará meu lugar na fogueira. Está ciente disso?
Claire sorriu, tristemente.
— Não tenho nenhum desejo de morrer, mas devo contar-lhes a verdade.
Devo-lhes pelo menos isso.
— William! Vamos!
— Não vou me unir a sua tolice. Estou farto da prisão, dos interrogatórios,
de ver minha vida por um fio. Você está sendo tola de permanecer aqui.
Porém...
Desesperada, a esposa o segurou pelo pulso e obrigou-o a se mexer. O
último som que Claire jamais ouviu de Belibaste foi o de seus pés descalços
deslizando pelo corredor, rumo à liberdade.
Daquele homem, nunca mais teria notícias.
Mas não tardou a ter notícias de Aimery, conforme imaginara. Dali a meia
hora escutou-o se aproximar, as passadas firmes e decididas rompendo o
silêncio sepulcral da masmorra.
Muito calma, abriu a porta da cela para recebê-lo. Surpresa, deparou-se
com dois servos, que portavam tochas. Não percebera que a noite havia caído.
Esperara sozinha no meio da escuridão, tentando calar a voz interior que a
urgia a oferecer explicações, a pôr em palavras as razões que a tinham levado
a agir como agira. O herege William Belibaste fora libertado. Quem o libertara
ficara para trás.
Isso era tudo que a escutariam dizer.
Embora não quisesse, obrigou-se a fitar Aimery. Nos olhos azuis, notou um
lampejo de esperança, como se ele, de alguma maneira, aguardasse uma
explicação, uma justificativa sobre por que ela os tinha traído, por que ela o
tinha usado e traído.
Infelizmente só podia lhe oferecer a verdade. Uma verdade destituída de
esperança.
Com a entrada do bispo Fournier na cela, os dois servos, a um sinal do
conde, colocaram as tochas nos suportes presos à parede e se retiraram, sem
um único olhar para Claire. De fato, davam a impressão de não a enxergarem.
— Nós sabemos o que houve — informou-a Jacques Fournier, quando os
três ficaram a sós. — Recebemos uma carta de seu confessor.
— Ele era Pedro de Bolonha — Claire falou, esforçando-se para encarar o
bispo.
— Nós o sabemos agora, apesar de ser tarde demais.
— Ele está aprisionado num cubículo no convento.
— Não mais. — Aimery se manifestou pela primeira vez. — Parece que
William Belibaste não foi o único a escapar hoje.
— Você gostaria de se sentar, Claire? — Fournier indagou.
— Não, obrigada.
— Mas eu sim. — O bispo se acomodou no pequeno banco. — Estou velho
e cansado. Os dias em Paris foram difíceis e a viagem ainda pior. Descanso
sempre que posso.
O conde de Segni aguardou o sacerdote se instalar antes de tomar a
palavra.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 142

— Saímos imediatamente à procura de Pedro de Bolonha assim que


recebemos seu bilhete, antes mesmo de dispararmos o alarme sobre Belibaste.
Porém, ao chegarmos ao convento, ele já havia escapado, embora a porta do
cubículo, continuasse trancada. Deve existir alguma passagem secreta. O
monge deixou uma carta no local, contando o que acontecera. — A voz de
Aimery soava baixa, destituída de emoção, seus olhos ignorando os de Claire.
— Pedro de Bolonha culpa você — disse Fournier. — Ele foi esperto o
suficiente para confessar o assassinato de sua família e de madre Helene.
Afinal, teria sido ridículo responsabilizá-la por aqueles dois crimes. Quando a
abadessa morreu, você estava na companhia do lorde de Segni e por ocasião
da morte de seus pais, era pequena demais para ter feito qualquer coisa.
Todavia, ele afirmou que você sabia desses delitos e, o mais grave, acusa-a de
tê-los inspirado.
— Porque sou a Madalena.
— A santa, ou o ídolo, dos templários — o bispo concordou. — De acordo
com o que aprendi em Paris, esse é um título que tem passado de geração em
geração, começando com a própria Maria Madalena. Segundo a lenda, ela fugiu
de Betânia com Lázaro e os dois se instalaram na França. O mito começou aí.
— Padre Pedro pouco me contou da lenda de Maria Madalena. Nós
conversávamos sobre os cátaros, sobre reconstruir o que havia sido perdido.
Ainda sem fitar Claire, Aimery tomou o pergaminho das mãos do bispo.
— Essas acusações não teriam nenhum peso num tribunal. Seria somente
a palavra de Pedro de Bolonha contra a dela.
— Mas não estamos falando de lendas e mitos. Estamos falando de
heresia. Diga-me, criança, você é catara?
— Eu o fui no passado.
— Você planejava rebelião?
— Sim.
— Você libertou William Belibaste?
— Sim, eu o libertei. Tomei a chave de Pedro de Bolonha e, acompanhada
da esposa de Belibaste, vim até esta cela. Assumo total responsabilidade.
— Por quê? — indagou Aimery, num tom quase de súplica. — Por que você
não me contou nada disso? Você conhece minha posição aqui. Sabe das
minhas responsabilidades. Por quê?
— Eu tinha prometido que William Belibaste seria libertado. Dei minha
palavra.
— Não é de se estranhar que você...
O conde calou-se, lembrando-se da presença do bispo. Jacques Fournier
envolveu-os num longo olhar. Então, pigarreou.
— Eventualmente terei que tomar uma atitude sobre essa questão. A
donzela de Foix cometeu um ato de traição ao libertar um prisioneiro do rei e
do papa. Todavia o fato de ter sido membro de um grupo que planejava uma
revolta catara é uma ofensa ainda mais grave, apesar das circunstâncias
atenuantes. A donzela de Foix terá que ser levada diante do Tribunal do Santo
Ofício e julgada. Se condenada, será sentenciada à morte.
Claire sentiu o coração parar de bater. Mas não era nenhuma surpresa.
Sempre soubera que se libertasse William Belibaste e não tentasse fugir,
ouviria essas palavras e enfrentaria um futuro tenebroso. Entretanto, existia
algo que precisava fazer.
— Posso falar com meu lorde de Segni? — perguntou ao bispo. — Sozinha?
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 143

Jacques Fournier pareceu aliviado ao deixar a cela. Em segundos,


desaparecia no corredor sombrio. Porém, assim que a porta se fechou, Claire
não conseguia pensar no que dizer, como explicar.
Foi Aimery quem rompeu o silêncio.
— Imagino que você tenha planejado isto desde o começo. Você e seu
bom amigo, o templário. — Uma pausa antes de continuar, cheio de amargura
e desprezo. — Desde o começo ele lhe disse o que fazer e você obedeceu, não
é?
— Escolhi fazê-lo. Porém não faria a mesma escolha agora, claro. Não
sabendo tudo o que sei. Fui educada para acreditar no que padre Pedro me
ensinava como sendo a verdade e sempre achei que ele queria trazer de volta
um tempo em que se dava valor a honra e à justiça, um tempo em que os
cátaros eram livres para professar suas crenças.
"Não me passava pela cabeça que Pedro de Bolonha, e não a Inquisição,
fosse o responsável pela morte de minha família", Claire teve vontade de
acrescentar. Mas não, não importavam as razões pelas quais agira. Devia
assumir a responsabilidade por seus atos.
— Fiz parte do grupo que planejou a fuga de William Belibaste — ela
prosseguiu, obrigando-se a falar com firmeza.
— Suponho que você ainda não saiba que foi Pedro de Bolonha quem
avisou o bispo sobre o esconderijo do último Perfeito. Pelo menos é o que
imaginamos. Fournier recebeu uma carta anônima com um mapa detalhado de
como chegar ao local e o nome de Arnold Sicre como um informante desejoso
de prestar serviços à Coroa. Fournier, que durante anos caçara Belibaste em
vão, enfim encontrara alguém tão disposto quanto ele próprio a mandar o
herege para a fogueira. A informação de Aimery não a assombrou. Seus pais,
madre Helene e agora William Belibaste. As traições do templário nunca
cessariam?
— Por que padre Pedro faria isso? — Claire perguntou, confusa.
— Creio que ele queria o tesouro.
— Mas o tesouro é só um mito. O próprio Belibaste me confessou antes de
fugir.
O conde de Segni sorriu sem alegria.
— Acho que nós dois aprendemos como é fácil construir um sonho,
planejar uma vida em cima de algo que nunca realmente existiu.
— Eu te amo — disse Claire.
— Que conveniente. Você só pronunciou essas palavras uma única vez
antes. Noite após noite, você se deitava comigo e jamais, nem uma vez,
perguntou sobre nosso futuro juntos. Mesmo sabendo que eu deveria desposar
Isabel de Valois, você nunca desejou ficar comigo para sempre, nunca desejou
que pudéssemos ter uma vida juntos.
Claire sentiu lágrimas virem-lhe aos olhos. Porém não ia chorar, não
quando ainda havia tanta coisa a ser dita.
— Sempre desejei ficar com você. E fiquei ao seu lado, de corpo e alma.
Entretanto, eu havia sido encarregada de uma missão. Pensei que depois de
cumpri-la, poderia começar uma nova fase. Pensei que seria livre para escolher
meu destino.
— Por que você não me procurou? Por que não confiou em mim? Você
sabia que eu não queria a condenação de Belibaste. Sabia que eu teria feito
todo o possível para ajudar a libertá-lo.
— Cabia a mim cumprir meu dever.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 144

— Creio que talvez exista outro motivo para você ter agido como agiu.
— Qual? — Claire indagou num fio de voz, notando a frieza dos olhos
azuis. Nada entre os dois jamais voltaria a ser como antes. Perdera-o para
sempre.
— Acho que você e seu bom amigo, Pedro de Bolonha, planejaram tudo
desde o início. Ambos julgaram que seria fácil me enganar, me fazer cair
prisioneiro de um encantamento. Afinal, uma das acusações contra os
cavaleiros templários não é a de feitiçaria? Sendo a Madalena, com certeza
Pedro de Bolonha lhe ensinou alguns truques, como a utilidade de certas ervas.
— Sim, ele insistiu para que eu usasse certas ervas, porém nunca as usei.
Esqueci-me até de que existiam.
— Se eu acreditasse que você me enfeitiçou, seria mais fácil para mim me
eximir de toda responsabilidade do que aconteceu entre nós. Sou tão culpado
quanto você. Mesmo se seduzido, entreguei-me de livre e espontânea vontade.
— Eu te amo.
— Fácil dizer essas palavras agora. — Aimery deu-lhe as costas. — O fato
é que não posso deixá-la arder na fogueira. E você será queimada pelo que fez.
A fuga de Belibaste antes de ser sentenciado apenas o confirmará como
herege. Você tê-lo ajudado a transforma, na melhor das hipóteses, em traidora.
Ambos ouvimos o que Jacques Fournier disse a respeito. Naturalmente, sendo
pura, Perfeita, você não se incomodará de perecer no fogo dos hereges.
— Eu não quero morrer.
— Enfim você fala a verdade sobre alguma coisa. Acho que...
— Acho que você devia se virar e olhar para mim — Claire falou com tal
firmeza que ela mesma se surpreendeu. — Acho que seja lá o que tenhamos a
dizer um ao outro deve ser dito olho no olho.
Não mais noviça. Não mais Perfeita.
Claire permitiu que a própria raiva finalmente viesse à tona e engolfasse
Aimery de Segni. Não sabia o que havia desencadeado aquela torrente de
emoção, mas experimentava um certo alívio.
— Foi escolha minha salvar William Belibaste. Um compromisso que me
dispus a assumir porque quis e estou pronta para arcar com as conseqüências
de meus atos. Para você é fácil murmurar palavras de amor agora, milorde.
Porém, que tipo de vida em conjunto suas promessas evocavam para nós?
Você planeja se casar com outra. Eu não passo de uma simples camponesa,
instruída, é verdade; hábil no domínio do latim, mas não o tipo de mulher que
você desejaria ver carregando o ilustre nome de sua família, o ilustre nome de
seu pai.
Embora notasse a súbita palidez do conde, embora o percebesse cerrar os
dentes para conter a fúria, prosseguiu.
— Você me ofereceu uma vida clandestina, uma vida de dissimulações,
exatamente como a que padre Pedro planejou para mim há vinte anos. Só que,
desta vez, eu estaria servindo-o e a seus interesses, não à causa dos cátaros.
Você está decidido a se casar com Isabel de Valois, uma mulher a quem
despreza. Você governa Montsegur, uma fortaleza que detesta. E quem iria
ajudá-lo a suportar tantas pressões? Quem o apoiaria para que não desabasse?
A pequena donzela de Foix, como você gostava de me chamar. Eu estaria
destinada a cumprir esse papel. Você é um grande lorde, um homem rico,
poderoso e respeitado. E eu deveria me sentir grata por ter a honra de ser sua
amante, de ser a futura mãe de seus filhos bastardos. Pois bem, não concordo
com isso.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 145

Com duas passadas largas, Claire venceu a distância que os separava.


— Não concordo com isso de jeito nenhum — repetiu, enfática. — Porque
não vejo diferença entre essa vida e a que padre Pedro me impôs. Eu
continuaria sendo um instrumento, continuaria sendo uma marionete num jogo
de interesses. Talvez eu tenha escolhido a morte ao libertar William Belibaste.
Talvez, como você disse, acabarei tomando o lugar dele na fogueira.
Entretanto, terá sido uma escolha minha, não sua, nem de ninguém. Jamais
entregarei meu destino mansamente nas mãos de terceiros outra vez. Jamais.
Aimery, conde de Segni, admirado cavaleiro da França, não era um
homem acostumado a tolerar rompantes de rebeldia de seus comandados,
muito menos de uma mulher. Fora à procura de Claire já elaborando um plano
para libertá-la. Afinal, como o lorde do castelo, tinha o direito inquestionável de
decidir o que fazer com seus vassalos. Imaginara que ela ficaria impressionada,
grata até. Assim, o comportamento beligerante e desafiador irritava-o mais do
que julgara possível.
— Como quiser, milady. — Ele fez uma breve reverência.
— Não me interessarei mais por seu bem-estar. Tornaremos a nos
encontrar durante seu julgamento.
Evidentemente tal coisa não iria acontecer. A fúria de Aimery, que o fizera
atravessar o salão principal e subir até a torre mais alta de Montsegur como
um possesso, não era suficiente para levá-lo a abandonar Claire à própria
sorte.
— Claire, não — ele falou em voz alta, o olhar fixo no horizonte.
Ninguém, nem mesmo o bispo-inquisidor, desejaria esse destino para a
jovem escriba. Fournier sabia muito bem que William Belibaste, vivo e liberto,
seria preferível a um mártir morto. Fora Pedro de Bolonha quem quisera o
sacrifício, fora Pedro de Bolonha quem orquestrara a captura do Perfeito e seu
eventual julgamento. Somente Pedro de Bolonha teria tido a ganhar com uma
insurreição catara. Melhor os cátaros voltarem à clandestinidade, livres para
professar suas velhas crenças se assim o escolhessem. Melhor que não
houvesse mais derramamento de sangue em Montsegur.
Ao agir como agira, Claire começara, sem o saber, a ajudá-lo a curar as
velhas feridas.
Fitando as montanhas longínquas, atrás das quais ficava sua querida
Itália, Aimery começou a esboçar um plano. Um plano que necessitava de
aperfeiçoamento, de cuidados com os detalhes, mas que já lhe proporcionava
um pouco de paz.
Ainda existia esperança.
Claire não aceitaria sua ajuda e ele não iria oferecê-la. Porém havia
alguém em quem ela confiava, alguém que poderia, e iria, ajudá-la.
Ao caminhar pelos corredores vazios do castelo de Montsegur em direção
aos aposentos da irmã, Aimery sentiu o coração se aquecer outra vez. Sim,
ainda existia esperança.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 146

CAPÍTULO XVII

Segni, 1333

Iolande, condessa de Segni, estreitou os olhos ao fitar a colina verdejante.


Então acenou para a mulher que corria na sua direção.
— Não consigo mais enxergar como antes — ela murmurou para si
mesma. — Porém reconheceria Claire a qualquer distância.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 147

Como se em resposta, a jovem tirou o chapéu de palha e o agitou no ar,


recomeçando a correr com redobrada energia, seguida por um bando de
crianças.
Por um instante Iolande perguntou-se se deveria partilhar as notícias que
recebera. Boas notícias de fato. Mas acabou decidindo-se contra. Melhor deixar
as coisas acontecerem naturalmente. Uma mudança ocorrera em Claire de
Foix. A pobre moça, enfim, começara a se sentir em paz. Ela sempre queria
saber novidades sobre Minerve e os filhos. Todavia, desde que chegara a Segni
há um ano e meio, não abrira a boca para tocar no nome de Aimery.
Entretanto fora Aimery quem, determinado a protegê-la, a mandara para
Segni. No íntimo, Claire devia sabê-lo.
"Sorte minha ela ter vindo para cá", Iolande pensou, não pela primeira
vez. "Sorte minha".
Olhando para o céu sem nuvens, a condessa aspirou o ar perfumado. Sim,
era um dia perfeito para o regresso de seu querido filho.
A carta de Minerve fora muito clara.
Estamos indo para Segni. "Todos nós ".
Essas duas últimas palavras haviam sido bastante significativas.
Com certeza os Montfort e filhos rumariam direto para o pequeno castelo
cercado de campos férteis. Mas Aimery não. Conhecia-o bem. Seu filho, ao
chegar à propriedade da família, buscaria refúgio no lugar que sempre fora seu
favorito.
Tornando a acenar para Claire, já a poucos metros de distância, Iolande
lembrou-se do passado com uma nitidez impressionante. Como a jovem,
também viera de Languedoc e amara a Itália desde o primeiro momento.
Aquela terra rica a tinha nutrido, confortado, sustentado quando seu marido
caíra vítima da própria desmedida ambição, ambição que acabara
contaminando o coração de Aimery. As colinas, antigas como o tempo, a
tinham encorajado a conservar a esperança, mesmo quando tudo parecera
perdido. O amor venceria, afinal.
Iolande sorriu e abriu os braços para acolher uma radiante Claire. No
último ano e meio, a donzela de Foix se transformara. A palidez do rosto
delicado dera lugar a um rubor saudável, a expressão distante tornara-se
alegre, vivaz. Os pesadelos que costumavam fazê-la acordar aos gritos no meio
da noite, com medo de alguém chamado Pedro, não mais a atormentavam.
Também não a ouvia mais chamar o nome dos pais e de madre Helene
enquanto dormia.
Abraçando-a apertado, com sincera afeição maternal, Iolande não teve
dúvidas de que a jovem seria a próxima dona do castelo dos Segni. E nada a
fazia mais feliz.
— Querida menina, conte-me tudo o que você andou fazendo.
— Bem, as crianças e eu fomos passear pelo bosque das oliveiras. Mário
me disse que algumas árvores são do tempo dos romanos. Imagine só! Essa é
uma terra tão antiga! Sei que crianças da aldeia estão sempre achando
moedas e artefatos da época dos etruscos. Mas uma oliveira do período de
César é simplesmente mágico!
— Preciso que você vá até o rio, minha querida — a outra pediu-lhe. — O
agrião cresce saboroso por ali, nas margens do córrego, e eu gostaria de
preparar uma salada para o jantar. Mas vá sozinha, porque está na hora da
sesta das crianças. Elas devem descansar para no fim da tarde terem
disposição de colher os últimos figos do verão.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 148

Claire se afastou sorrindo. Essa era uma das muitas qualidades que
admirava em Iolande. Apesar do grande número de servos em Segni, a velha
dama não fugia ao trabalho. Quem quer que estivesse disponível realizava a
tarefa necessária, inclusive ela própria. Muitas vezes, vira-a lado a lado com os
camponeses nos vinhedos, durante a colheita das uvas. Ou, então, ajudando os
empregados a apanhar o trigo, ou a preparar as várias misturas de ervas
medicinais. Assombrada, observara-a tirar mel da colméia, sem temer um
possível ataque das abelhas. Incentivada pelo exemplo, vencera o medo e se
aventurara a imitá-la.
Porém, em breve, Claire sabia que teria que partir. Sentia o cheiro de
mudança no ar. Não podia simplesmente ficar ali para sempre, abusando da
hospitalidade de Iolande. Uma das coisas que aprendera durante sua estada
em Segni, um dos presentes que recebera daquela terra e daquela gente, fora
o de não recear transformações. Afinal, transformara-se também. Por dentro e
por fora.
Estava feliz. Durante os primeiros meses ali, não reconhecera a sensação.
Acreditara que a serenidade, a paz interior, fosse apenas resignação depois de
tantas perdas sofridas: madre Helene, o convento, a luta pela causa cátara e...
padre Pedro.
Por direito, deveria odiá-lo e de fato o odiara nos primeiros meses. Ia
dormir odiando-o e acordava odiando-o. Vivera consumida por esse sentimento
dia após dia. Mesmo agora, depois de um ano e meio, ainda experimentava
uma certa insegurança quando se lembrava do templário. Contudo, à medida
que se sentia emocionalmente mais forte, s esse medo irracional parecia se
dissolver, modificado pelo amor que dedicava a Segni. E a Aimery.
No início, apesar de morar no lar do conde, junto da mãe dele, não fora
capaz de pensar em Aimery sem raiva. O último encontro dos dois, em
Montsegur, havia sido terrível, marcado pelas coisas cruéis que disseram um
ao outro.
Sem dúvida ele estava casado com Isabel de Valois agora, o casamento
tendo lhe assegurado a suserania definitiva de Montsegur. Aimery devia estar
satisfeito por haver realizado todos os sonhos do pai.
E ela nunca fizera parte desses sonhos.
Então, aos poucos, a raiva e o ressentimento foram desaparecendo e
dando lugar à verdade. Aimery jamais lhe mentira, jamais lhe fizera falsas
promessas. Aliás, quando tentara falar do futuro, impedira-o. E embora ele não
mais lhe pertencesse, devia se sentir grata pelas recordações que guardaria
pelo resto da vida.
Ao chegar perto do rio, Claire ouviu ruídos inesperados. Aproximando-se
devagar, quase perdeu o fôlego. Era Aimery quem nadava nas águas límpidas
e frescas.
Como ele não a notasse, deixou-se ficar imóvel, observando-o.
Muitos meses tinham se passado desde que experimentara a emoção de
estar entre aqueles braços fortes. Dominada por uma emoção súbita, Claire
fechou os olhos.
Ao tornar a abri-los, Aimery estava de pé no meio do rio, a água cobrindo-
o até a cintura, os olhos verdes fitando-a fixamente.
Como o amava!
— Eu te amo — ele falou apenas.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 149

Como poderia ele amá-la, quando se casara com Isabel de Valois? Doía-lhe
pensar nisso. Cortava-lhe a alma saber que Aimery era um homem casado e,
portanto, inacessível.
Sem mais uma palavra, o conde de Segni saiu da água, o corpo musculoso
brilhando sob o sol de verão.
Com a respiração suspensa, Claire o viu desaparecer atrás de uma árvore
e voltar dali a segundos, inteiramente vestido
— Acabei de chegar — Aimery explicou. — Com Minerve, Huguet e as
crianças. Minha mãe não a avisou que estávamos para chegar?
Claire balançou a cabeça, sabendo, instantaneamente, que Iolande
planejara aquele momento. Mas por quê? Não havia razão para a velha
condessa desejar colocá-los frente a frente, pois levavam vidas muito
diferentes agora. Vidas paralelas, que jamais voltariam a se cruzar. O
casamento de Aimery pusera um fim a seus sonhos mais secretos. Entretanto,
o casamento não o mudara. Não havia sinal exterior de que houvesse se
transformado num homem amargo, infeliz. Pelo contrário, sua simples
presença continuava transmitindo-lhe a mesma sensação de paz, de
segurança. Sim, Isabel de Valois podia tê-lo como marido, porém a rica prima
do rei da França jamais conheceria o Aimery que ela conhecera. Fitando-o, não
teve mais dúvidas de que o conde de Segni só havia revelado a alma, e
entregado o coração, a uma mulher: Claire de Foix. Que essa certeza a
satisfizesse pelo resto de seus dias, porque não podia sequer fingir que ele lhe
pertencia.
— Minha mãe não lhe contou nada? — o conde repetiu, os dois pondo-se a
caminhar lado a lado na direção do castelo.
— Sua mãe não disse nada. Não mencionou nem Minerve, nem as
crianças, quanto mais...
— A mim? — Aimery sorriu pela primeira vez. — É, imagino que não. Minha
mãe não iria querer estragar a surpresa.
Sem uma palavra, os dois deram meia-volta e entraram outra vez no
bosque. Foi Claire quem rompeu o silêncio.
— Minerve veio com você?
— Estamos todos aqui.
— Inclusive sua esposa? Inclusive lady Isabel?
No mesmo instante ela se arrependeu de ter falado aquelas palavras em
voz alta. Vermelha até a raiz dos cabelos, armou-se de coragem e fitou-o.
— Não tenho esposa.
Atônita, Claire não conseguiu emitir um único som, embora se
perguntasse se havia mesmo entendido direito.
— Lady Isabel decidiu cancelar o casamento — Aimery continuou —,
depois de ouvir certos argumentos. Ela finalmente compreendeu que o rei, seu
tio, jamais toleraria qualquer tipo de escândalo envolvendo pessoas da família
por medo de perder o trono. Lady Isabel acabou se dando conta que, para
voltar a morar em Paris, conforme ambicionava, iria precisar da permissão do
rei e que essa permissão só aconteceria se passasse a adotar um
comportamento discreto. Para levar uma vida discreta, Isabel teria que se
casar com o homem a quem de fato desejava. Ela não tardou a se convencer
de que, com o empenho do rei, não seria difícil obter a anulação do primeiro
casamento do amante, Eustache d'Alembert.
— E quem apresentou esses argumentos a lady Isabel? Teria sido
Minerve? Sua irmã jamais aprovou Isabel de Valois.
CHE 237 – Encontro com o Destino (Maiden of Fire) – Deborah Johns 150

— Fui eu quem convenceu lady Isabel das vantagens de se casar com o


homem certo.
— Você? — Claire gritou, assombrada. — Mas o casamento com Isabel de
Valois significava a realização total de seus sonhos. Como você pôde desistir
dela? Como?
Aimery segurou Claire pelos ombros, obrigando-a a fitá-lo.
— Acho que a pergunta correta seria: como eu poderia me casar com
Isabel depois de ter conhecido você? Depois de vir a amar você?
— E Montsegur? — Claire insistiu num fio de voz, temendo começar a
acreditar no impossível.
— Dei-o a Huguet e aos meninos. Eles são franceses. Montsegur faz parte
de sua herança. O ancestral de Huguet, Simon de Montfort, morreu tentando
tomar Languedoc a força e perdeu tanto à vida quanto as terras. Parece-me
justo que o neto de Simon de Montfort realize o sonho do avô e possa a vir a
reinar em paz.
— Entretanto Montsegur sempre foi a fortaleza que você ambicionava
possuir. Eu... nós todos sabemos quantos sacrifícios você fez para obter a
suserania.
— Sim, eu queria Montsegur, mas a "escolha" nunca foi minha. Levei
algum tempo até descobrir quais eram minhas verdadeiras escolhas. Você é
uma delas. Espero que você ainda se importe comigo e que possa me amar,
como sempre a amei. Amei-a desde o primeiro dia, quando a vi entrar no salão
atendendo à convocação do bispo-inquisidor.
Atordoada por uma felicidade sem limites, Claire o escutou murmurar
palavras doces e amorosas antes de pedi-la em casamento.
— Eu te amo — ela falou baixinho, lágrimas de alegria correndo-lhe pelas
faces. — Desejo ser sua esposa.
De mãos dadas, os dois saíram da floresta e rumaram para o castelo, para
o destino que os esperava.
Ao se aproximarem da construção imponente, foram recebidos pelas
risadas dos filhos de Minerve e Huguet. Crianças que representavam o futuro
dos Montfort.
Ela e Aimery estavam apenas começando a escrever a própria história
juntos. Mas de uma coisa tinham certeza: essa história renderia muitos frutos.

FIM

Deborah Johns já viajou por todos os países da Europa, em busca de


inspiração para escrever romances históricos. Cada detalhe descrito em seus
livros é resultado de muita leitura e pesquisa. Para Deborah. a melhor maneira
de adquirir cultura é através dos livros. E as maiores emoções também...

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