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OSMUNDO PINHO

“Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade” busca responder à pergunta: o que


significa a negritude em um mundo anti-negro? Pretende fazer isso em diálogo
com alguns contextos etnográficos e objetos de cultura, incluindo obras de
arte, e mobilizando duas tradições críticas da diáspora africana, o pensamento
afro-brasileiro da ancestralidade e o afropessimismo norte-americano. Dessa
forma, o pagode baiano, a tipologia racial de Albert Eckhout e as “Mãos de
CATIVEIRO
ANTINEGRITUDE E ANCESTRALIDADE
Epô” de Ayrson Heráclito, narrativas autobiográficas escravas, a mostra “O
Corpo e A Luta” de audiovisual negro no CachoeiraDoc, a economia política
da escravidão, as performances do Mardi Gras Indians e do Nego Fugido na
cena da objeção, e outros temas, são discutidos tendo em mente essa conver­
sação.
n
<
Esta obra é como o vento, depois de lê-la nada mais
ficará no lugar. A inquietação será sua companhia até
a última entrelinha. Não procure Osmundo Pinho no OSMUNDO PINHO
redemoinho, ele é o próprio! Que nos conduz para
dentro do espiral e ao mesmo tempo nos lança para
fora dele.
O autor nos leva para além da discussão afropessi-
mista, nos conduzindo para as entranhas da dor e do
extermínio da população negra, nos lançando para
fora da violência que medita nestes corpos e anula
toda e qualquer possível representação social desses
subalternos.
O racismo é só o ponto de partida desse redemoinho,
que ora se atenta às relações de poder e à seletividade
dos corpos racializados, ora às questões de gênero e
sexualidade. Girando, Osmundo segue seu caminho CATIVEIRO
por vias atlânticas, rodopiando por narrativas de vida
e morte entre a cultura afro-brasileira e afro-ameri- ANTINEGRITUDE E ANCESTRALIDADE
cana, locus centrais da brutalidade e da naturalização
do castigo.
O vento descortina o corpo negro como objeto de an­
gústia para aquele que não quer enxergar a violência
simbólica e física representada na morte social e an-
tinegra: modus operandi da branquitude. Osmundo
revela que para além da morte negra existe um corpo
negro que transborda pelas vias sensoriais emergindo
do âmago do mundo que os negam, reverberando sua
corporeidade na arte, na poesia, na música, na litera­
tura, na dança, pelos quilombos, cantigas de terreiro,
entre o segredo e o sagrado - e na intelectualidade, seja
ela acadêmica ou orgânica, através de uma razão críti­
ca, que se faz cri-ATIVA, instituída no Signo-Africa
símbolo de resistência e da vida social negra, que se
refaz na ancestralidade. Em um sopro, o redemoin­
ho comunica: “o afropessimismo assume o ponto de
vista do navio negreiro, e a ancestralidade o ponto de
vista do quilombo e do terreiro”.

PAULO RAMOS
CATIVEIRO
ANTINEGRITUDE E ANCESTRALIDADE
Copyright (c) Segundo Selo 2021 Osmundo Pinho

Coleção NA ENCRUZA

Coordenação editorial
Jorge Augusto

Conselho editorial
Ana Lúcia Silva Souza
César Sobrinho
Jorge Augusto de Jesus Silva
Maria Dolores Sosin Rodriguez
Silvana Carvalho da Fonseca
Sílvio Roberto Oliveira
Zoraide Portela Silva

Capa
Matheus Carvalho Melo

Diagramação
Santiago Fontoura

Revisão
Leona Santy

P654c PINHO, Osmundo.


Cativeiro: antinegritude e ancestralidade / Omundo Pinho.
1. ed. Salvador: Editora Segundo Selo, 2021.
300 p.
ISBN: 978-65-86754-13-1
1. Ancestralidade 2. Negritude I. Título II. Autor

CDD: 301

Este livro está dedicado à memória de meus avós, Dona Regina e Seu Moreno.
SUMÁRIO

PREFÁCIO - VÁCUO ANTOLÓGICO, EXISTÊNCIAS SUPÉRFLUAS 13


E OBJETO REBELDE - Jaime Amparo Àlves

INTRODUÇÃO 21
O REDEMOINHO NA ENCRUZILHADA

I
A PESSOA DO ESCRAVO: MORTE SOCIAL E IMAGINÁRIOS 41
POLÍTICOS DA DIÁSPORA AFRICANA NO BRASIL

II
ARRASTÃO: DESCOLONIZANDO O GÊNERO E A SEXUALIDADE 71
NO PAGODE BAIANO

III
“BLACK BORDER”: O CORPO E A LUTA NO AUDIOVISUAL 109
NEGRO

IV
“SANGUE ATLÂNTICO”: MORTE SOCIAL E ANCESTRALIDADE 143
EM ALBERT ECKHOUT E AYRSON HERÁCLITO

V
A CENA DA OBJEÇÃO: NARRATIVA, ECONOMIA POLÍTICA 181
E PERFORMANCE

POSFÁCIO - VOLTAS E VOLTAS AO REDOR DA PALAVRA 253


- Maria Dolores Sosin Rodriguez

REFERÊNCIAS 265

CITAÇÕES ORIGINAIS EM LÍNGUA ESTRANGEIRA 291


PREFÁCIO
CATIVEIRO

VÁCUO ONTOLÓGICO, EXISTÊNCIAS SUPÉRFLUAS E OBJETO


REBELDE

Jaime Amparo Alves


Departamento de Estudos Negros
Universidade da Califórnia, Santa Bárbara

Eu poderia começar por referir-me ao assassinato de Emilly e Re-


becca, duas meninas negras baleadas em uma favela do Rio de Janeiro, ao
linchamento de João Alberto, um homem negro espancado até a morte em
um supermercado gaúcho, à dor de Rute Fiúza consumida por anos em bus­
ca do corpo mutilado e desaparecido do pequeno Davi, ou à morte prema­
tura de vovó Aurora, na Bahia profunda, uma de tantas mulheres negras
vítimas da violência obstétrica. Mas a referência seletiva a estes encontros
ordinários teria o efeito sinistro de normalizar a dor, transformando o sofri­
mento negro em excessão e convertendo a aniquilação ontológica na palatá-
vel etiqueta liberal de violação de direitos humanos. Humano: o dicionário
Aurélio define o adjetivo como “relativo ao homem ou próprio de sua natu­
reza.”1 Como dar visibilidade ao terror escrito no corpo quando a alteridade
gênero-sexo-racial do titular do corpo em questão o bane do projeto branco,
proprietário, masculino e cisgênero de Humanidade? Como nos ensina Sai-
diya Hartman (1997, 4-5), em sua recusa em detalhar a tortura da escrava
Esther, o corpo negro resiste a inteligibilidade aos olhos da lei e da sociedade
civil porque é um objeto fungível que somente adquire o status de vivente
por meio da punição.
Sim, podemos argumentar com Hartman que a comunidade imagi­
nada branca e o estado de direitos são o domínio biopolítico onde o corpo
negro cativo adquire humanidade somente por meio da sua subjeção total:
a lei o reconhece como objeto do direito penal. Este é um biopolítico por-

1 Dicio. Dicionário Online de Português. Humano [adj]. Em https://www.dicio.com.br/aurelio-2/

13
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

que é um espaço jurídico-político da vida civil, da participação política, do perder de vista a longa tradição intelectual feminista negra que tem denun­
exercício de direitos... em uma palavra, é o espaço do jogo democrático. ciado a violência original da escravidão como o nascimento do mundo e o
Ao mesmo tempo é um espaço necropolítico porque depende da subjeção corpo sexualizado/generalizado das mulheres negras como o “interstício”
negra para a sua afirmação como biópolis. No domínio espaço-temporal entre o humano e o não-humano, o corpo e a carne, a liberdade e a escra­
da polis brasileira, a morte de Emilly, Rebecca, Davi, Alberto, as mortes já vidão. Ao trazer Sueli Carneiro, Denise Ferreira da Silva, Lélia Gonzalez e
vividas e as que viveremos podem até gerar algum protesto e provocar algu­ Beatriz Nascimento (assim como Mara Viveros) a um debate dominado por
mas concessões humanistas - uma comissão de promoção da diversidade, uma análise fanoniana muito particular sobre a condição negra, o autor abre
um relatório-denúncia, uma linha na imprensa - mas ao fim e ao cabo estas outras possibilidades de interpretação do drama negro na diáspora africana
reações não mudam a realidade trans-histórica da experiência negra. O ob­ e, espero, incita novas abordagens sobre a pós-vida da escravidão. Arrisco
jeto negro é a não referência espaço-ontológica que o cativeiro aprisionou a dizer-me que Cachoeira, como espaço da resistência negra, se posiciona
no horizonte intransponível da Outridade total e que, no léxico da filósofa aqui como promessa de uma nova referência epistemológica.
Denise Ferreira da Silva, é um sujeito marcado pela afetabilidade (o outro Pinho não toma atalhos e não recusa o convite inadiável proposto
racial, “no-bodies,” não-corpos, ou ninguém) sempre produzido em rela­ pelos afropessimistas/afro-otimistas, como se convencionou classificar, qui­
ção ao Eu Transparente do pós-iluminismo. A tese da transparência (e da çá, de maneira apressada, as contribuições recentes sobre a vida póstuma
afetabilidade) autoriza a subjeção gênero-racial, uma subjeção que produz da escravidão explicitada no terror racial paraestatal e na morte civil negra
identidade, que produz Lei, e que produz a nação brasileira. (DA SILVA, ordinária. Posicionando-se mais além do falso dualismo que tem marcado
2009,2007)
o debate, abraça a denúncia afropessimista com incisividade, não deixando
Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade é uma intervenção opor­ dúvidas sobre o seu posicionamento nos estudos sobre relações raciais nas
tuna neste debate. Com maestria e rigor, Osmundo Pinho põem em diálogo
ciências sociais brasileiras. Mostra que o que faz o brasil Brasil é a violência
o projeto de desestabilização do Humano - proposto por intelectuais ne­
antinegra,3 que não há mais espaço para a relativização do racismo antine-
gras como Hortense Spillers (1984) e Sylvia Wynter (2003) - e a polarização
gro na definição de titulares de direitos de cidadania e no nosso modelo de
teórica entre afropessimistas/afro-otimistas2 que tem dominado parte dos
sociabilidade cruel. Na pós-escravidão, o cativeiro continua sendo o nomos
estudos negros nas últimas décadas. Pinho produz um texto que reconhece
da democracia. Cidadania negra? No máximo, furtiva!
o recente giro ontológico nos estudos negros em uma parte do mundo, sem
Isto posto, o livro resiste ao nihilismo e reposiciona o objeto negro

2 Principais nomes neste debate estão suficientemente discutidos por Pinho nas páginas que seguem. na modernidade ontológica brasileira. Se na crítica afropessimista o porão
Não cabe uma revisão neste prefácio. Também me antecipo a qualquer omissão de autores/autoras
do navio negreiro é a referência epistemológica, Pinho resgata a centrali-
que convergem no todo ou em parte com o amplo debate em questão. De fato, o debate é amplo
e intelectuais com afinidades teóricas com os afropessimistas ou com os afro-otimistas não estão
necessariamente de acordo com estas rotulações redundantes, ainda que a abordagem acadêmica (e 3 A referência óbvia a Roberto da Matta busca questionar sua interpretação do Brasil como o país da
o léxico) comum em seus trabalhos autorize a identificá-los assim. Para referencia conceituai, ver sociabilidade excepcional. Segundo este autor, o jeitinho, a malandragem o sincretismo seriam prova
obrigatoriamente Saidiya Hartman (1997), Frank Wilderson (2010), Jared Sexton (2011), João Costa do nosso ethos nacional único. Sobre uma interpretação alternativa sobre a centralidade da violência
Vargas (2012,2017), Fred Moten (2003, 2013), and Christina Sharpe (2016). antinegra na sociabilidade brasil e no fazimento do Brasil, ver Alves e Vargas (2020) e Wink (2020).

14 15
COIVIUINUU MINHO CATIVEIRO

dada do quilombo e do terreiro como os espaços alter-nativos para concei- direção afro-otimista segundo a qual o objeto negro se rebeldia e não aceita
tualizar um ser negro que resiste à objetificação. Esse ser negro insurgente e ser definido apenas pela negação e pela morte. Ainda que resumir o projeto
contraditório que muitos/as de nós temos identificado em distintas formas afropessimista à obsessão com a morte seja forçar a barra - como o parece
que o protesto negro assume na democracia racial brasileira - no quilombo, fazer Moten -, é imprescindível interrogar até que ponto é politicamente
no movimento de mães de vítimas do terror policial, na rebeldia dos role- útil reduzir a condição negra ao terror da escravidão e a subjetividade negra
zinhos, no mundo do crime, nas práticas educativas dos pré-vestibulares aos mundos de morte. Concordo com Pinho que somos mais que “desonra
comunitários, nas reinvenções cotidianas das quebradas, na economia sub­ crônica” e mais que cativeiro, e atrevo-me a dizer o óbvio: o ser negro so-
terrânea das biqueiras - o autor identifica nas formas contra-hegemônicas cialmente morto é politicamente vivo. A questão é se estamos dispostos a
que jovens negras e negros articulam para viver suas identidades e práticas entender a pós-vida do escravo ou ficaremos apenas na vida-póstuma da
afetivas. Tomando a performance negra como uma praxis ontólogica (e aqui escravidão. Se considerássemos por um instante que a vida negra nos con­
o palco é a vida e a audiência é a polícia, a sociedade civil branca, os mode­ textos de precariedade urbana como os analisados aqui somente é possível
los terrocráticos de interpelação racial!), nos é oferecida uma análise con­ por meio da insurgência ontológico-espacial, seja “roubando” eletricidade,
tundente das práticas culturais negras no teatro de rua, no audiovisual, nos evadindo a tarifa de água e a catraca do transporte coletivo, ocupando ter­
paredões. Como a leitora verá, o que sobresai da análise é uma interpretação ras públicas ou participando no mundo do crime (ALVES, 2018, p. 13-14),
das políticas de resistência na qual raça e sexualidade aparecem como locus talvez pudéssemos abraçar sem temor ambas as posições neste debate in­
da agência negra. Os sujeitos “sujos” e “indignos” da vida brasileira abraçam telectual. Não são mutuamente exclusivos denunciar o trauma histórico (e
a abjeção por meio de “modelos alternativos de sexualidade e corpo, mascu­ o terror racial contemporâneo) que complica narrativas ingênuas sobre a
linidade e feminilidade, de sexualidade e identidades sexuais, que seriam a agência negra e reconhecer a rebeldia que produziu Palmares e que se rea­
base a partir da qual uma alteridade epistêmica moderna de corpos e povos firma a cada dia no grito de protesto: “Se Palmares não vive mais, faremos
coloniais poderia ser identificada (p. 57) ” Se a polícia e as agruras da vida Palmares de novo !”4
cotidiana emparedam a negritude em cativeiros raciais, o paredão (assim Portanto, uma maneira de conceber Cativeiro: Antinegritude e
como o terreiro, a rua, o funk, a performance do Mardi Gras e do Negro Ancestralidade é tê-lo como um convite a abraçar o que Pinho chama de
Fugido) aparece como uma recusa a ser aprisionado. “vácuo ontológico”; um vazio que assusta e desespera e que ao mesmo tem­
Fazendo jus à crítica evocada por Fred Moten (2008) no contex­ po cria condição de possibilidade para um projeto utópico de vida negra -
to estadunidense, o livro propõe, então, entender a fungibilidade em duas esse projeto alternativo é concebido pela militância negra como quilombo,
perspectivas convergentes: na direção proposta pela crítica afropessimista afrópolis/negrópolis, zona de refúgio - que reposicione o objeto no espaço
segundo a qual o corpo negro é objeto fungível/permutável não apenas do geo(onto)antrológico da nação brasileira. No contexto desesperador em que
ponto de vista da economia política, mas também a partir de uma economia o livro vem a público (e o país é governado pela aberração política e abo-
libidinal que alimenta incessantemente a catividade, permutabilidade e des-
4 Quilombos. Poeta José Carlos Limeira. Repertório, Salvador, no 17, p. 195-197, 2011.2 Disponível
possessão ontológica (daí a incomensurabilidade da experiência negra) e na
em https://periodicos.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/574l/4l47

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

minação ético-moral cujo nome indizível somente o é pela evocação aos Referências
neologismos guimarães-rosanos para descrever o não-sei-que-diga, o tris­
tonho, coisa-ruim), a curiosidade intelectual por estes imaginários de rebel­
ALVES, Jaime (2018). The Anti-Black City: Police Terror and Black Ur-
dia é ainda mais urgente. Mas todo o cuidado é pouco para não cair na fal­ ban Life in Brazil. University of Minnesota Press.
sa periodização que transforma a norma em excessão! O Nêgo Fugido que ________ .; VARGAS, João Costa (2020). “The spectre of Haiti: structural
antiblackness, the far-right backlash and the fear of a black majority in
habita em nós nos alerta, com Joy James (2000, p. xxxv), que democracia é
Brazil.” Third World Quarterly 41 (4): p. 645-662.
um regime de plantação (casa grande) que reatualiza e reitera a condição
escrava a cada eleição. É por isso que nos falta um léxico político alternativo DA MATTA, Roberto (1984). O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro:
para dar conta da experiência negra: racismo estrutural, direitos humanos, Rocco.

violência policial, inclusão social, humanidade... tudo colapsa frente a um


DA SILVA, Denise Ferreira (2009). No-bodies: Law, raciality, and the ter-
corpo que habita a geo-ontologia da necrópolis brasileira. Se seu status não- ritory of justice. In: Grifiith Law Review 18 (2): p. 213-236.
-humano e, portanto, sua vida supérflua dá coerência e afirma concepções _________. (2007). Toward a Global Idea of Race. Minneapolis: Univer­
sity of Minnesota Press.
de justiça, cidadania e vida honrada, quais os desafios e possibilidades para
uma existência negra plena na cidade antinegra? Leitura obrigatória, a aná­ HARTMAN, Saidiya. (1997). Scenes of Subjection: Slavery and Self-Ma-
lise de Osmundo Pinho aponta uma saída! king in I9th América. Oxford Press, p. 17-79.

JAMES, Joy (2000) States of Confinement: Policing, Detention and Pri-


sons. New York, NY: St.

MOTEN, Fred (2008). “The case of blackness.” Criticism 50(2): p. 177-


218.

SPILLERS, Hortense (1984). “Interstices: A small drama of words.” Plea-


sure and danger: Exploring female sexuality (4): p. 73-100.

WINK, G. (2020). “Jeitinho revisited.” In: BRANDELLERO, Sara; PAR-


DUE, Derek; WINK, Georg (eds.) Living (il) legalities in Brazil: Practices,
Narratives and Institutions in a Country on the Edge. Routledge, 2020.

WYNTER, Sylvia. (2003) “Unsettling the coloniality of being/power/


truth/freedom: Towards the human, after man, its overrepresentation—
An argument.” In: The new centennial review 3.3 (2003): p. 257-337.

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CATIVEIRO

INTRODUÇÃO
O REDEMOINHO NA ENCRUZILHADA

“Depois que meus inimigos estiverem satisfeitos, na vida ou na morte, voltarei a vocês
para servi-los como já servi anteriormente. Na vida serei o mesmo; na morte, serei o
terror para os inimigos da liberdade do negro. Se a morte tem poder, então conte comigo
na morte, para ser o verdadeiro Marcus Garvey que eu gostaria de ser. (...)
Procure por mim no redemoinho”11
Marcus Garvey, “First Message to the Negros of the World from Atlanta Prison”, 1925.
"Eu sou um velho
Filho de um guerreiro e curandeiro O projeto deste livro surgiu logo após o meu retorno, em dezem­
bro de 2014, de um período de 13 meses na Universidade do Texas, em
Pelo Sertão da Bahia Austin, mas especificamente no African and African Diaspora Departa-

Pelo Chapadão Mineiro ment Studies (AADS), onde, graças a uma bolsa Estágio Sênior concedida
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CA­
É Dandá, eu vivi PES) do Governo Federal Brasileiro, desenvolvi um projeto sobre masculi­
nidades negras, conectado ao Projeto Brincadeira de Negão: Subjetividade
Os tempos do cativeiro"
e Identidade de Jovens Homens Negros (BN), desenvolvido, naquele mo­
mento, com uma equipe de estudantes de graduação e pós-graduação da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em Cachoeira no estado da
Seu Marujo
Bahia.
Como discuto melhor nos capítulos que seguem, me impressio­
nou profundamente, não apenas a paisagem segregada e árida da cidade
sulista (e minha memória do primeiro inverno aparece desbotada, como o
cinza do céu, emoldurando os galhos retorcidos de árvores desfolhadas, sob
o grito estridente dos corvos e o ronco sombrio dos automóveis nas ruas
desertas), mas principalmente o contato com a obra de autores como Frank
Wilderson III, Jared Sexton, Lewis Gordon, Fred Moten, Hortense Spillers,
Saidiya Hartman e João H. C. Vargas, que me recebeu em Austin e com

1 Todas as traduções em língua estrangeira, salvo explícita indicação ao contrário, foram feitas pelo
autor. Os trechos na língua original se encontram ao final deste volume.

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CATIVEIRO

quem organizei em 2016 a coletânea “Antinegritude: O Impossível Sujeito não pode ser outra coisa que a incorporação da mais radical negatividade,
Negro na Formação Social Brasileira”. (PINHO & VARGAS, 2016) Esses que, como muitas vezes iremos discutir nesse livro, define a condição ne­
autores, e outros, mais ou menos identificados com o afropessimismo, de­ gra como fundamentalmente identificada à posicionalidade do escravo. E,
fendido mais explicitamente por Wilderson, atordoaram minha imagina­ obviamente, esse foi o grande choque. Porque tudo que a enorme mobili­
ção com um conjunto de categorias explosivas e com uma atitude intelec­ zação política, crítica, historiográfica, estética e cultural que os principais
tual que fazia enorme sentido, diante da percepção, já circulante no Brasil, e protagonistas da resistência negra promoveram, não apenas no Brasil, mas
incorporada à nossa própria reflexão em Cachoeira, da centralidade política em outras partes da América Latina, negava com todas as forças essa iden­
e heurística da violência estatal antinegra, do genocídio do povo negro e tificação entre a pessoa do negro e o escravo. Como na afirmação muitas
do lugar político que a morte negra ocupa na estabilização do projeto na­ vezes repetida de Makota Valdina2, líder religiosa afro-brasileira, “não sou
cional brasileiro. O movimento social negro e o movimento dos atingidos descendente de escravos, mas de seres humanos que foram escravizados”.
pela violência do Estado, assim como, principalmente, a obra de Abdias Como na reivindicação de Beatriz Nascimento, discutida no Capítulo I, e
do Nascimento, de um lado, e de Achille Mbembe, de outro, já haviam me seu incômodo com a fixação historiográfica no escravo e na escravidão.
alertado sobre o significado da violência, na circunscrição^da subjetividade Ora, não apenas o afropessimismo sustenta a identidade entre negritude e
e da política negra na modernidade ocidental e no Brasil. O contato com es­ escravidão, como faz dessa identidade o lugar de edificação de uma onto­
tudantes em Cachoeira, muitos oriundos de comunidades atravessadas pela logia definida, como em Saidiya Hartman, pelo látego, pela violência mais
violência, pela despossessão e pela morte, nas periferias urbanas ou em qui­ pura, pela identidade com a mercadoria, com a despessoalização. Depois
lombos rurais, outros assiduamente conectados com o movimento negro e entendi que, no contexto norte-americano, a memória da escravidão e a
com a cultura hip-hop, além, obviamente de minha experiência pessoal e a insistência em pôr lado a lado as condições de vida, ou de morte, com a es­
forja de minha própria subjetividade, temperada nas margens sociais e nos cravidão, são recorrentes na experiência comum e na sensibilidade afro-a-
interstícios urbanos dos guetos raciais-sexuais de cidades brasileiras como mericana, algo muito diferente do que ocorre no Brasil, onde a africanidade
Salvador, Recife, Campinas e Rio de Janeiro, prepararam, talvez possa dizer, é a matriz histórico-subjetiva-política da negritude ou afro-brasilidade, e
prospectivamente minha sensibilidade para o choque afropessimista. isso tudo faz parte da experiência comum, corriqueira de negros brasileiros.
E de um choque efetivamente se trata, porque, como veremos, a Lembro de uma discussão, com um grupo de intelectuais afro-americanos,
leitura que Wilderson faz de Frantz Fanon e de Orlando Patterson colocava sobre o significado da escravidão e da importância de garantir a memó­
como categoria central para a imaginação política da negritude (a princí­ ria dessa instituição peculiar, algo que para eles todos parecia óbvio e para
pio, norte-americana) a morte social, e seus corolários, a exclusão do negro mim, na verdade, desconcertante.
do mundo e da esfera pública, e a antinegritude, o antagonismo geral que
sustenta a incompatibilidade do negro com o mundo tal qual o conhece­
2 Valdina de Oliveira Pinto, falecida em 2019, foi líder religiosa, educadora anti-racista e makota,
mos. O mundo moderno criado pela expansão europeia, pelo colonialismo
auxiliar da mãe-de-santo, do terreiro Angola Tanusi Junsara, localizado na comunidade do Engenho
e pela modernidade. Nesse mundo, não há lugar para o negro e a negritude Velho da Federação em Salvador.

22 23
CATIVEIRO

Ora, é desse choque então que surge um conjunto de questiona­ encontro colonial, e trata-se de uma contingência transitória e inessencial
mentos que se articularam como o projeto desse livro. Um esforço tanto a escravização e a colonização. Podemos ver então que temos aqui um pro­
para considerar a (in)comensurabilidade da experiência negra nas duas blema sociológico e histórico, estético, ético e político. Porque sob o risco

maiores nações escravistas das Américas, como para desenvolver categorias de um resumo algo caricatural poderia dizer que o afropessimismo assume

críticas em um escopo comparativo, que reflitam a natureza histórica da o ponto de vista do porão do navio negreiro, e a ancestralidade, o ponto de
vista do quilombo e do terreiro.
produção de sujeitos, sensibilidades, formas estéticas, estruturas narrativas,
E é justamente nesse sentido que invoco o “cativeiro” e suas ca­
cenários sociais. O afropessimismo do lado afro-americano, e o que estou
tegorias. Cativeiro é a forma popular, tradicional, êmica, com que escravi­
chamando nesse livro de pensamento da ancestralidade do lado brasileiro.
zados e seus descentes se referem à instituição escravista e mais especifica­
Porque, nesse segundo caso, a ancestralidade parece ser a categoria central
mente à experiência sob a escravidão. Como na epígrafe desse livro e em
da imaginação política e não a morte social.
inúmeras canções de samba, ladainhas de capoeira e pontos de macumba.
Do ponto de vista afropessimista, ou da teoria da antinegritude, o Cativeiro é o modo como os próprios escravos históricos se referiam à pró­
negro é o escravo, a negra é a escrava. Ainda que “ser”, nesse caso, signifique pria escravidão. O que quer dizer que nesse livro busquei assumir um ponto
ser “como uma coisa entre outras coisas”, porque seguindo essa perspectiva de vista que se comunique com essa experiência, que em um sentido muito
seguimos flutuando, torturados, sobre um vácuo ontológico. Do ponto de difícil de ser suportado também é minha. O cativeiro é a condição, media­
vista da ancestralidade, entretanto, o negro é o africano, a negra, a africana. da pela passagem do meio e pela transposição atlântica no porão do navio
Assim, o afropessimismo assume o ponto de vista do mundo antinegro para negreiro, a que foram conduzidos sujeitos e saberes africanos, ancestrais. E

definir quem somos, escravos, e a ancestralidade assume o ponto de vista do que, como categoria, busca refletir essa passagem ou alternância inconclusa

mundo negro, dos candomblés, dos batuques, do quilombo, para reconhe­ e reversível (porque transtemporal) entre o escravo e o africano. Nesse livro
Imsco assim desenvolver o escopo do cativeiro através de outras categorias,
cer em nosso fundamento, subjetivo e político, o africano.
incorporadas em diversas instâncias.
Com as contradições, mediações e nuances que discuto nos ca­
Primeiro a ideia, encontrada em Fred Moten, da resistência do ob­
pítulos subsequentes. Porque é quase como se o africano não vivesse em
um mundo antinegro, construído pelo colonialismo, pela escravidão e pela jeto, uma perspectiva próxima, mas não totalmente identificada ao afropes­

supremacia branca. Como se não fosse esse o nosso mundo. Entretanto, simismo, porque reconhece na fungibilidade escrava, na sua identificação

vemos em Denise Ferreira da Silva, em Sylvia Winter e em outros auto­ com a mercadoria, uma localização para a ontologia política do negro. Essa

res (SILVA, 2019; WINTER, 2003)> como o pensamento (e a máquina de identificação, entretanto, não obstaculiza categoricamente a resistência, a
guerra) ocidental produziu/exigiu o negro, ou como o negro como sujeito subversão, a invenção, ou a objeção, como Moten e Harney desenvolvem
(coisa/nada) é dependente do pensamento ocidental e da supremacia bran­ em “Undercommons” (2013). A ideia de resistência do objeto, e de objeção,
ca, como fica tão óbvio na análise das narrativas escravas que desenvolvo conduz à consideração das estruturas históricas, sociológicas e formais para
no Capítulo V. Enquanto que no pensamento da ancestralidade a ontologia a resistência, basicamente configuradas sob a prevalência da performance
do negro já está dada e independe do Ocidente - o africano preexiste ao como forma cultural privilegiada em oposição a outras modalidades repre-

25
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

sentacionais, “logocêntricas”, ou cartesianas de produção de vida e senti­ social, como um certo tipo de relação sujeito-objeto, como
uma certa distância entre a linguagem e o seu objeto, como
do. A performance, como forma não-representacional, imanente, permite um determinado modo de especialização ou divisão do tra­
â resistência do objeto, sem recair ou retomar estruturas e epistemologias balho, como uma relação implícita entre as classes. (JAME­
SON, 1985, p. 270)
ocidentais, antinegras. Ora, a performance desenvolve uma cena - mediada
pelo “repertório”, pela experiência, pela transcendência e pela dissidência Ora, a “coisa” em questão aqui, nesse caso, é a morte social - e
epistemológica - que reage em meio e contra cenários institucionalizados suas transformações - como categoria central.
pelo “arquivo” e que operam para fixar, esvaziar, codificar a experiência Dessa forma, no Capítulo I, “A Pessoa do Escravo: Morte Social
trans-histórica da objeção negra. Entre a cena e o cenário da objeção negra, e Imaginários Políticos da Diáspora Africana no Brasil”, discuto, a partir
em meio - ou contra - o mundo antinegro, transita a morte social em suas da intervenção da historiadora e ativista Beatriz Nascimento na Quinzena
metamorfoses, tanto no campo estruturado de padrões sociais genocidas do Negro na USP, realizada em 1977, e registrada no filme “Ori - Cabeça e
como nas alegorias coloniais representacionais, e nas formas performáticas Consciência Negra”, de Raquel Guerber, a crítica à obsessão com a escra­

que exorcizam a passagem do meio e a escravidão, como o Nego Fugido do vidão na historiografia acadêmica e a subsequente proposição da África e

Acupe ou os Mardi Gras Indians em Nova Orleans. Contra a morte social, do quilombo como paradigmas imaginativos para a subjetividade políti­

a objeção invoca os ancestrais e a “boa morte”, como forma de impor sim- ca negra no Brasil. Um aspecto conectado à invenção da “cultura negra”
como cultura africana, processada com vigor criativo e político, por meio
bolização ancestral ao que permaneceria sem sentido, como um fantasma
do Signo-África, no âmbito das reinvenções reafricanizantes da tradição,
selvagem. A cultura negra, performada na cena da objeção, não pode, entre­
no contexto afro-baiano dos anos 1970 e 1980. E com profundo impacto
tanto, ser representada, e em Lewis Gordon, encontramos razões para negar
para toda a imaginação política diaspórica do a civismo negro brasileiro e de
a metáfora e insistir na irrepresentabilidade da cultura negra e da própria
suas subjetividades e sensibilidades associadas.
negritude.
Na medida em que Beatriz se refere à “pessoa do homem negro”,
Essas categorias atravessam este livro de diversas formas e nos
retraço criticamente a genealogia da “pessoa” tal como discutida na antro­
diversos capítulos que se seguem. Em um sentido ou ritmo que pode pa­
pologia clássica para confrontá-la ao “espaço da morte” colonial, como solo
recer ao leitor eventualmente repetitivo ou redundante, mas que na verda­
ou horizonte de onde emerge a construção de posicionalidades coloniais
de pretende ser fractal e espiral. Retomando em contextos e configurações marcadas pela morte social, pela violência paroxística e pela escravidão.
diversas conceitos e autores, de modo a expandir e testar a rentabilidade Dessa forma, defino a morte social em sua conexão à supressão da pessoa
crítica conceituai desse aparato em sua recorrência. Como de certa forma do escravo na configuração de um campo de pensamento crítico definido
diz Fredric Jameson: pela antinegritude, como elemento do antagonismo geral antinegro, assim
como aponto o campo alternativo de pensamento crítico, configurado na
...num certo nível de concretude a coisa propriamente dita
-... - pode ser descrita em qualquer um dos inúmeros códi­ tradição afro-brasileira como o pensamento da ancestralidade. Nesse sen­
gos alternativos, pode ser rearticulada em qualquer uma das
tido, as transições entre o “escravo” e o “africano” se manifestariam como
numerosas dimensões diferentes: como estrutura literária,
como uma verdade vivida de uma determinada organização metamorfoses e não como dualidades.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

No Capítulo II, “Arrastão: Descolonizando o Gênero e a Sexua­ ção não-simbólico, o que a cultura negra pode representar? Levo o debate
lidade no Pagode Baiano”, tenho oportunidade de discutir a prerrogativa para o campo do audiovisual negro, discutindo impasses éticos e estéticos
da performance no campo de uma teorização crítica da negritude como na leitura de quatro filmes, os clássicos “Alma no Olho”, de Zózimo Bubul,
experiência social, histórica e vernácula. A partir da tradução da oposição e “Now!”, de Santiago Alvarez, onde a natureza formal da representação vi­
consagrada em Diana Taylor entre o repertório (corporal e performático) e sual é tensionada pela relação entre conteúdos determinados e as gramáti­
o arquivo (letrado e institucional), transfigurados como a oposição entre a cas propostas para encená-los; assim como também discuto dois filmes, ou
cena, imanente e irrepetível, e o cenário, fixado e centralizado como uma es­ registros, contemporâneos, “Notícias de uma Guerra Racial Subnotificada”,
tratégia de poder, busco explorar a ideia de cena da objeção, encontrada em da Campanha Reaja ou será Morta, Reaja ou será Morto, e “Experimentan­
Moten. O locus da discussão é o chamado pagode baiano, entendido como do o Dilúvio em Vermelho”, de Musa Matiuzzi, nesse casos limites éticos
o conjunto performado de práticas, categorias e formas estéticas reprodu­ são atravessados e transfigurados pela materialidade da carne (flesh) negra.
zido no curso da história de objeção e resistência de sujeitos racializados e A coisidade ou nothingness da negritude que obstaculiza a simbolização de
gendered no ambiente colonial brasileiro. Discuto, dessa forma, primeiro um ponto de vista mais radicalmente fanoniano e fenomenológico, parece
esse ambiente colonial e sua articulação com processos de sujeição apoiados encontrar uma saída temporária e precária na fugitiviness dos undercom-
na produção racializada do gênero e da sexualidade, no registro das morali­ mons como está em Moten e Hearney. É justamente como um limite ou
dades coloniais e da miscigenação, como ideologia central para a invenção borda, instransponível, mas manejável, que a possibilidade de realização
da cultura nacional como um aparato discursivo de poder heteropatriarcal. de um conteúdo representacional - e ético - negro parece poder se realizar
Em segundo lugar, busco me valer do corpus etnográfico desenvolvido no sob essas formas tão instáveis e radicais.
âmbito do Projeto Brincadeira de Negão para explorar, do ponto de vista No Capítulo IV, “’Sangue Atlântico’: Morte Social e Ancestrali-
dos sujeitos, categorias e estruturas de sentimento, sustentadas entre i) o dade em Albert Eckhout e Ayrson Heráclito”, sigo discutindo a arte, ou a
“tiroteio” do Estado, ii) dispositivos de subjetivação, como o paredão de representação, negra, sob o signo de uma impossibilidade categórica fun­
pagode e iii) performances masculinas como o “botando a base”; para con­ damental, estabelecida pela passagem do meio como evento histórico-es­
siderar ao final a produção de uma cena de rebelião (de gênero, raça e se­ trutural para a mediação entre posicionalidades associadas à morte social
xualidade) no pagode baiano. e/ou à africanidade, nesse caso discutindo representações visuais definidas
No Capítulo III, “Black Border: O Corpo e a Luta no Audiovi­ em dois momentos muito distintos e por artistas tão diferentes como o
sual Negro”, o conceito de “border”, proposto originalmente por Paula von pintor neerlandês Albert Eckhout, integrante da comitiva de Mauricio de
Gleich, aqui é experimentado para interrogar as possibilidades e aporias Nassau-Siegen, governador do Brasil holandês no século XVII e Ayrson
para a representação da negritude e da cultura negra, tendo em mente a Heráclito, um dos artistas afro-brasileiros mais bem sucedidos contempo­
densa discussão encontrada em Lewis Gordon e Frantz Fanon sobre a coi- raneamente. Enquanto Eckhout, ao produzir sua série etnológica sobre os
sidade, e consequente irrepresentabilidade da negritude e do sujeito negro. tipos raciais da colônia, e em especial o espantoso quadro “Guerreiro Afri­
(GLEICH, 2017; FANON, 1983; GORDON, 1999) Se o negro é por defini­ cano”, produz, no registro alegórico, representações sobre a raça e o gênero

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

com recurso a epistemologias visuais marcadamente coloniais, não apenas Brasil, notadamente a discussão sobre o ser social do escravo, disputado

por seu conteúdo, mas principalmente porque baseadas na representação, entre as perspectivas do escravismo colonial de Jacob Gorender, e leituras

Heráclito, recusando o mimetismo da arte e a política metafórica das repre­ acadêmicas estabelecidas como as de Florestan Fernandes e Roberto Slenes,

sentações, propõe sua obra como uma intervenção material, baseada não no que discutem justamente o significado da pessoa do escravo, de sua agên­

símbolo, na representação ou na metáfora, mas na manipulação imanente cia, de sua capacidade histórica e subjetiva de construir laços familiares e

de materiais, como o azeite de dendê, reconfigurando a relação entre o sa­ continuidade cultural, o que seria em tese negado pelas definições de es­

grado, a arte e a vida por meio do reconhecimento da agência, no sentido cravidão encontradas tanto em Orlando Patterson quanto em Claude Meil-
lassoux (PATTERSON, 2008; MEILASSOUX, 1995); finalmente, na quarta
de Alfred Gell, de objetos de arte, análogos ao fetiche, como propõe, por
seção do capítulo, e última do livro, retomo o debate sobre performance e a
sua vez, J. L. Matory. (GELL, 2018; MATORY, 2018) A discussão em pers­
cena da objeção, para argumentar que se o negro pode ser em algum lugar
pectiva comparada dos dois artistas deve permitir-nos abordar, por outro
sujeito de sua própria representação no mundo antinegro, esse lugar é a
lado, duas formas epistemológicas para a produção da arte negra, em sua
performance socialmente instituída, e para tanto discuto, muito resumida­
ambiguidade como arte do negro e arte sobre o negro, uma baseada na re­
mente, duas tradições performáticas da diáspora negra, o Nego Fugido do
presentação, e nesse sentido alienada, alegórica e colonial, e outra baseada
Acupe no Recôncavo da Bahia e os Mardi Gras Indians em Nova Orleans.
na imanência, e nesse sentido coerente com a dissidência epistemológica,
Se no caso das narrativas o sujeito negro necessita da máscara branca das
que retira o negro e a negritude do espaço da morte ocidental e assume a
convenções literárias e da intercessão de seus mediadores brancos, se no
ancestralidade como paradigma epistemológico/cosmológico.
espectro da economia política escravista o negro pôde exercer agência sub­
Por fim, no Capítulo IV, “A Cena da Objeção: Narrativa, Econo­
jetiva, apenas em meio às contradições estabelecidas, através de sua redução
mia Política e Performance”, retorno à questão da pessoa do homem negro,
à condição de mercadoria, no campo da performance, na cena da objeção, o
desdobrada em um diálogo com campos diversos e com outras categorias
negro pode dispensar recursos e epistemologias ocidentais para constituir a
como personhood [pessoalidade]3 e subjetividade. Para tanto, interrogo três
si mesmo no espaço transtemporal e mitopoético da rua e da encruzilhada,
campos ou corpus, primeiro uma seleção de algumas das mais conhecidas e
domesticando a morte social pelos meios simbólicos e materiais que estão
influentes autobiografias ou narrativas escravas, como as de Frederick Dou-
disponíveis na tradição.
glass e Harriet Jacobs, discutidas ao lado de textos ficcionais, uma vez que é
Os capítulos deste livro, resumidos acima, têm origens heterogê­
possível reconhecer na imaginação, e na imaginação histórica, uma forma
neas, descrevê-las me permitirá também agradecer a pessoas e instituições
de situar o sujeito negro no âmbito da modernidade antinegra; em seguida,
que favoreceram de formas diversas a consecução de meus objetivos, deli­
discuto aspecto problemático e determinado da historiografia do negro no neados há seis anos.
O capítulo I foi escrito como um paperpara apresentação no Ins­
3 Na antropologia brasileira contemporânea a categoria personhood, encontrada em Marilyn Stra-
thern e em outros autores, tem sido traduzida por personitude. Aqui, entrento, estou traduzindo tituto Tepoztlán para História Transnacional das Américas, um seminário
por pessoalidade para marcar uma distinção relativa com relação a esse campo conceituai. Ver por
exemplo VIVEIROS DE CASTRO, 2018. multidisciplinar que ocorre todos os anos na bela cidadezinha de Tepo-

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0SMUND0 PINHO CATIVEIRO

ztlán, no estado mexicano de Morelos. O instituto tem sido, ao longo dos Encuentro Interdisciplinario de Investigación en Géneros y Sexualidades”,
anos que tenho participado, um espaço fundamental de reflexão crítica, de em agosto de 2014, em Bogotá; no “Quebrando Tudo II: O Pagode e os
um apaixonado diálogo multidisciplinar e transnacional em um ambiente Discursos em Torno de uma Produção Cultural Periférica”, em julho de
muito intensivo, muito democrático e muito rico. Devo a minha experiên­ 2015, em Cachoeira; no Seminário Consciência Negra em Debate - Episte­
cia em Tepoztlán o contato com diversos autores e autoras que se tornaram mologias da Resistência, em novembro de 2015, em Brasília, assim como na
referências fundamentais na elaboração das ideias reunidas neste livro. A “Brown Bag Series” do African and African Diaspora Department Studies,
apresentação do trabalho ocorreu em 2018, agradeço particularmente nesse da Universidade do Texas, em fevereiro de 2014, em Austin, e, por fim,
caso a Micol Siegel, que me apresentou ao Instituto pela primeira vez em no “Seminário Brincadeira de Negão 2.0”, realizado em agosto de 2014 na
2015, a David Kazanjian, dominatrix, ou seja, coordenador na linguagem UFRB, em Cachoeira. Agradeço também nesse caso a Franklin Gil Hernan-
de Tepoztlán, da sessão em que apresentei e a Megan Spencer e Tito Mitjans dez, Luz Gabriela Arango (in memorian) e Ana Flauzina, pelos convites
Alayón que foram debatedores nesta mesma sessão. para os encontros em Bogotá e Brasília, e a João H. Costa Vargas, Dora
O Capítulo II tem uma história mais longa e heteróclita. A pri­ Santana, Gustavo Mello, Agatha Oliveira, Luciane Rocha, Daniela Gomes e

meira seção foi escrita originalmente para esse livro, apesar de fazer refe­ Maria Andréa dos Santos Soares, pela discussão e todo o apoio em Austin.

rência a um trabalho publicado em inglês sobre o “rolezinho”, inédito em Este capítulo reflete basicamente o nosso trabalho no Projeto Brincadeira
de Negão, que é ligeiramente anterior às preocupações que deram origem a
português (2018) e apresentado em 2014 no New Sexualities Seminar do
esse livro. Na verdade, o BN e o projeto desse livro foram se desenvolvendo
Interdisciplinary Humanities Center da Universidade da Califórnia, em
de modos relativamente paralelos, e nesse sentido as questões ligadas à dis­
Santa Barbara, e no Global Moral Panics Symposium ocorrido também em
cussão sobre masculinidade e antinegritude foram construídas em diálogo,
2014 na Universidade de Indiana, em Bloomington. Agradeço a Paul Amar,
e em grande parte, durante minha estadia nos Estados Unidos, em 2014, o
Mireille Miller-Young, Justin Perez, Steven Osuna, Jennifer Tyburczy e Mi­
que se reflete nas apresentações que fiz nesse período, assim como se refle­
col Seigel pelos convites, comentários e sugestões; a segunda seção é uma
te na perspectiva geral que informa a discussão etnográfica nesse capítulo.
versão bastante modificada de um ensaio nunca publicado e que foi base
Dessa forma, também o espaço construído no âmbito do BN e a interlocu­
para uma conferência realizada no Congresso Internacional Epistemologias
ção com os estudantes, integrantes da equipe, foram fundamentais para o
do Sul: Perspectivas Críticas II, que ocorreu na Universidade Internacio­
desenvolvimento de muitas ideias aqui presentes, dessa forma quero agra­
nal da Integração Latino-americana (UNILA), em 2017, agradeço a Angela decer a todxs xs que em diversos momentos integraram essa equipe: Pau­
Souza, Marcos de Jesus Oliveira e Waldemir Rosa, colegas antropólogos da lo Roberto dos Santos, Gimerson Roque, Valdir Alves, Jefferson Parreira,
UNILA pelo convite e pela amável interlocução naquela ocasião; a tercei­ Amanda Dias, Maiana Brito, Lucas Santana, Beatriz Giugliani, Thais Gomes
ra seção deste capítulo resume dados e reflexões publicadas anteriormente Machado, Julio Cesar Cerqueira Araújo e Israel Cerqueira.
em outros lugares (PINHO, 2015; 2016), assim como reflete discussões e O Capítulo III foi concebido originalmente como um comentá­
apresentações realizadas em distintas ocasiões, no “Queering Paradigms rio à mostra “Corpos em Luta”, integrante do CachoeiraDoc, o festival de
V”, em Quito, no Equador, em fevereiro de 2014; no “FRONTERAS 2014: cinedocumentário que tem ocorrido todos os anos na cidade de Cachoeira

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

sob organização de Amaranta Cesar e Ana Rosa Marques, professoras do Além das pessoas e instituições citadas acima quero agradecer a
curso de graduação em Cinema e Audiovisual e minhas colegas na UFRB, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
em Cachoeira. Amaranta foi uma das curadoras da Mostra Corpos em Luta que me concedeu, em 2013, Bolsa Estágio Sênior, que permitiu a minha via­
e agradeço o seu convite para discutir o programa de filmes selecionado. gem e estadia em Austin, fundamental para o desenvolvimento de meu tra­

Agradeço também ao diálogo com Aline Nzinga, da Campanha Reaja ou balho e para o florescimento das ideias reunidas aqui. O Conselho Nacional

Será Morta, Reaja ou Será Morto! que dividiu comigo os comentários desse de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Governo Federal (CNPq)

programa no dia 09 de setembro de 2017. Os comentários, posteriormente e a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), em dife­

convertidos em um ensaio, foram publicados originalmente, e em versão rentes momentos ente 2014 e 2019, concederam bolsas de Iniciação Cientí­

ligeiramente diferente, como um capítulo na coletânea “Desaguar em Cine­ fica, Mestrado e Doutorado, que permitiram aos estudantes integrantes do

ma: documentário, memória e ação com o CachoeiraDoc”, organizado por BN desenvolverem adequadamente as suas atividades, inclusive permitindo

Amaranta Cesar, Ana Rosa Marques, Fernanda Pimenta e Leonardo Costa, que alguns trabalhos de conclusão de curso de graduação, dissertações de

e publicada pela Edufba. Agradeço aos organizadores a gentil autorização mestrado e teses de doutorados se realizassem no âmbito do Projeto. Parte
da discussão apresentada no Capítulo IV fundamentou o projeto que sub­
para republicação aqui.
meti em 2019 à seleção para a Richard E. Greenleaf Library Fellowships da
O Capítulo IV está sendo publicado aqui pela primeira vez aqui, e
Biblioteca Latinoamericana da Universidade de Tulane, em Nova Orleans.
também foi elaborado como um paper para apresentação no Instituto Te-
Ter ganho a bolsa, além de me permitir o aprofundamento na pesquisa so­
poztlán, desta vez no ano de 2019. Agradeço a David Kazanjian, novamen­
bre representações visuais da negritude no Brasil colonial, oportunizou o
te dominatrix na sessão em que apresentei, assim como a Ana Pohlenz de
meu contato, breve mas impactante, com os Mardi Gras Indians e com li­
Tavir e Christen Mucher que foram debatedoras. Paulo Ramos, Julio Cesar
teratura relevante sobre essa prática performática, que informa a discussão
Cerqueira Araújo, Christen Smith e Anderson da Mata contribuíram para a
da seção final do Capítulo V. Em Tulane, onde permaneci durante os dois
discussão com sugestões e críticas, pelas quais sou a eles muito grato. Uma
versão mais reduzida do mesmo trabalho, que excluía a discussão sobre a primeiros meses de 2020, tive o apoio institucional da Biblioteca Latinoa­
obra de Ayrson Heráclito, foi apresentada no Workshop: Future África - mericana e agradeço profundamente a Hortênsia Calvo, sua diretora, e a
Visions in Time, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos maravilhosa equipe da biblioteca: Rachel Stein, Penelope Ojeda, Verónica
Étnicos e Africanos da UFBA e pelo Bayreuth Academy for Advanced Afri- Sanchez e Christine Hernandez. A disponibilidade, a amabilidade e a ex­
can Studies, em Salvador da Bahia, também em 2019. Luis Felipe Ortega leu trema competência dessa equipe foram decisivas para o melhor aproveita­
e comentou uma das versões deste capítulo, desde o ponto de vista das artes mento de minha temporada em Tulane. Christopher Dunn, Marc Perry e
visuais, lhe agradeço os comentários e sugestões. Kim Butler foram em Nova Orleans interlocutores constantes e generosos
O Capítulo V foi redigido originalmente para este livro e esteve me apresentando, e discutindo, diversos aspectos da história e da vida cul­
até o presente momento inédito. tural da comunidade negra na Big Easy e tornando minha permanência na
cidade ainda mais aprazível com sua hospitalidade. Por fim, mas nenhum

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

pouco menos importante, agradeço a Eder Boaventura, companheiro, ami­ grupo construído historicamente como Outro, e experiência subjetiva da
go, cúmplice, comparsa. Pela paciência, alegria e todo o amor. opressão e do silenciamento. Assim, por exemplo, a 'pobreza a que estão
Uma vez que nos dias que correm o “lugar de fala” parece ser algo eventualmente submetidas mulheres quilombolas, as condições de traba­
tão importante, julgo que seria adequado, por fim, falar algo sobre o meu lho e de vida doméstica que as oprimem, e a negação de suas capacidades
próprio nesse momento. A discussão levada a cabo recentemente por Dja- intelectuais, beleza e estima própria, podem fazer sentido do ponto de vista
mila Ribeiro já está consagrada, e reivindica sua filiação ao feminismo negro de um sujeito em particular, uma mulher concreta, com nome e endereço,
de Patricia Hill Collins e de Lélia Gonzalez para enfatizar a importância do que reencontra as fontes da opressão que lhe afligem, não em alguma su­
reconhecimento do locus social do sujeito do discurso, para compreender posta inferioridade inata, como mulher e negra, como lhe ensinaram, mas
como hierarquias sociais se convertem em privilégios epistêmicos, usual­ em uma estrutura social injusta e desigual que tem uma história pelo me­
mente acionados pela invisibilização desse mesmo vínculo, entre uma posi­
nos tão longa quanto a história da sociedade nacional. Daí a autoestima,
ção sociológica de poder - vivida no mundo da vida e definida por estruturas
daí o cuidado e o autocuidado, daí a beleza negra e outras categorias que
sociais históricas - e uma prerrogativa de enunciação. Assim, por exemplo, a
politizam a experiência. Mas ora, há, entretanto, às vezes, como resultado
sobrerrepresentação de homens brancos em posições de poder na sociedade
/ algo inesperado desse discurso, uma certa inflação da subjetividade, que,
conduziu a uma situação qual que o cânone do pensamento acadêmico brasi­
' se é legítima diante da negação da pessoalidade do negro e da negra como
leiro sobre o negro fosse produzido por sujeitos que viam, em seu cotidiano,
veremos, não pode servir de escusa para a aderência irrefletida a padrões e
o negro como Outro. Então, não se trata de que brancos não possam falar de
modelos de subjetividade e entendimento que apenas simulam ser críticos.
negros, mas de que negros não podem ser reduzidos a objetos mudos, sendo
Essa inflação não tem exatamente a ver com o lugar de fala, mas com o lugar
descritos e explicados em terceira pessoa. Ou seja, a questão é o privilégio
do sujeito e de sua experiência, tomada como intrínseca e autônoma na re­
branco de falar sobre o negro, o que tem, é claro, e isso às vezes é mal enten­
lação de um indivíduo com seu lugar social. Por que é tão importante falar
dido, reflexos no tipo de conhecimento produzido. Quando Nina Rodrigues
julgava que os descendentes de africanos seriam incapazes, como povo, de de si? Por que é mais importante falar de si do que escutar o outro? Poque a

progresso social e de rporalidade individual ele confundia sua experiência e minha dor e martírio são tão relevantes? Senão por que essas dores e martí­

ponto de vista pessoal, eivado de preconceitos, sustentados na ordem objeti­ rios não dizem respeito exclusivamente a mim mesmo? O indivíduo, como

vada da sociedade, com a objetividade científica. Como Fanon já disse, aliás, usualmente o conhecemos, é uma artefato ideológico sócio-histórico. Um
“para o colonizado a objetividade está sempre voltada contra ele”. Porque a dispositivo do bio-poder. Pleno em sua autorreferencialidade, julga encon­
objetividade objetivada, digamos assim, do mundo colonial é uma ordem de trar os fundamentos da própria subjetividade, e as categorias para descre­
opressão, violência e negação, que cria um espaço de morte para o sacrifício vê-los nessa identidade entre o mundo e sua experiência nele, desprezando
da humanidade do “nativo” racializado. grossas camadas de historicidade e o labiríntico edifício de categorias e con­
Em Djamila, como em larga medida para o feminismo negro bra­ figurações epistemológicas que permitem que alguém diga “eu sou”. Que
sileiro e afro-americano, a questão da identidade é essencial, porque reve­ permitem reconhecer um projeto emancipatório apenas quando ele eman­
la a conexão entre uma determinada posição social, o pertencimento a um cipa a mim mesmo e faz com que alguém encontre o seu “verdadeiro eu”.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Uma vez, faz muitos anos, perguntei a um amigo, negro como eu: “Por que da justiça, contra todos os outros que não pensam exatamente do mesmo
você é contra o racismo?” A resposta dele me faz pensar até hoje, porque ele modo. O mundo em que vivem esses deve ser um mundo mais simples,
respondeu: “Porque o racismo me afeta”. Então, às vezes, onde imaginamos onde não há contradição entre a verdade e a justiça, o poder e o saber, o
encontrar um projeto emancipatório encontramos a afirmação do velho sujeito e seus desejos. Os deuses e os homens. A História e a própria vida.
projeto burguês, individualista, não meramente no sentido que se opõe ao Eu, intratável, não encontro, todavia, repouso em deixar inques-
coletivismo, mas no sentido que vê no indivíduo - tomado como entidade tionado o meu próprio “eu”, e sob o signo da negação e não da identidade
singular, original, indivisível e a-histórica - o alfa e o ômega da vida social, reconheço ou sou empurrado à própria condição de construção de um lu­
o parâmetro e paradigma para emissão de juízos ou plataforma para rein- gar de fala que é um lugar de negação. Toda a negação, e cada “não” que me
vindicação política. define é um marco que localiza a minha situação, que é certamente muito
E digo tudo isso para explicar certo desconforto em falar de mim, privilegiada em relação à maioria dos homens negros da diáspora, mas cer­
ou sobrevalorizar a minha experiência como parâmetro para meu juízo. E tamente não o suficiente para me salvar do cativeiro. Tudo que não sou e
isso não significa que eu desconheça meu lugar de fala - como poderia? -, não posso ser define a condição de produzir um lugar de fala e uma posi­
ou que subestime as contingências pessoais que fazem de mim alguém que ção de sujeito. Não sou heterossexual. Não tenho a pele retinta. Não sou
nasceu em uma cidade e não em outra, filho de certos pais e não de outros, de candomblé. Não sou comunista. Não vim da favela. Não sou um artista.
habitante de uma época histórica e não de outra. Mas que, na verdade, mi­ Não dirijo um carro do ano. Não sou filiado a um partido ou a organizações
nha experiência e biografia não são assim tão importantes, para além do que políticas. Não sou um homem como os outros. Sou exatamente um homem
delas eu possa converter em um ponto de vista, ou de partida, para o traba­ como qualquer outro. Talvez, na verdade, seja apenas um pouco igual a
lho intelectual crítico. Não que eu não tenha as minhas próprias histórias você ou ao cortejo de todos os meus antepassados sem nome.
de luto e de exclusão e que não tenha também chorado sozinho lágrimas Tudo aquilo que somos, tudo aquilo que sou, entretanto, parece
amargas em ruas escuras, coagido pelo racismo e aterrorizado pela homofo- frágil, combalido, cheio de ambições fúteis num mundo em desagregação.
bia. Não que eu não conheça o amargor do sangue na boca ao ser ofendido Tudo aquilo que imaginamos ser ou viver parece destinado à diluição im­
e humilhado. Negado e invisibilizado. Tratado como um animal exótico ou pessoal, como a voz de um fantasma, em meio ao redemoinho, em uma
demônio de estimação. Mas porque tudo isso seria tão importante diante de encruzilhada deserta à meia-noite.
oceanos de desolação e brutalidade que acompanharam meus ancestrais?
Às vezes, invejo alguns, em geral, os mais jovens. As certezas são fáceis, o
inimigo inconfundível e unificado. Com uma exuberante loura ao seu lado,
de terno, gravata e relógio importado, a busca pelo sucesso individual e pela
ostentação do progresso material não trazem constrangimento ou remorso.
A celebração da própria individualidade, ou a indubitável fé revolucioná­
ria em si próprio, que lhes faz sentirem-se como porta-vozes da verdade e

39
CATIVEIRO

I
A PESSOA DO ESCRAVO4: MORTE SOCIAL E IMAGINÁRIOS
POLÍTICOS DA DIÁSPORA AFRICANA NO BRASIL

“Agora é a hora da nossa morte


Vamos morrer na estética dessa antigrafia convencional
Vamos morrer neste poeta finalmente transplantado
Vamos morrer neste poema
Menor e mortal
Meu cruel assassino continental”.
Nelson Maca, “Diga aos vermes que fico”, 2015.

A ÁFRICA E A MORTE

Em 1977, na quinzena do negro organizada na Universidade de


São Paulo pelo sociólogo e ativista Eduardo de Oliveira e Oliveira (TRAPP,
2015), a historiadora e pioneira intelectual negra brasileira Beatriz Nasci­
mento observa:

Durante mesmo os quatro séculos de escravidão nós vamos


ver a atuação do negro brasileiro como um homem partici­
pante de uma sociedade, embora ele negando as vezes ele
mesmo a sua própria origem racial. Quando eu cheguei na
universidade, uma coisa que me chocava era o eterno estudo
sobre o escravo, como se nós só tivéssemos existidos den­
tro da nação como mão de obra escrava, como mão de obra
para a fazenda e para a mineração. (ORI, 1989)

Em outro momento desse encontro histórico, registrado no fil­


me “Ori - Cabeça e Consciência Negra” (1989), Hamilton Cardoso, ativista
negro e socialista, figura chave na reinvenção de uma retórica e posicio-
nialidade política negra no Brasil, que buscou conciliar-se com a crítica ao
capitalismo e ao regime militar brasileiro, por sua vez, pondera:

4 O título desse capítulo busca fazer eco a formulação de Beatriz Nascimento sobre a “pessoa do ho­
mem negro” discutida mais a frente.

41
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

em um escopo diferente agora, a tímida presença negra na universidade,


Então, na medida em que o negro pretende preservar a
a proposição do negro e da negra como sujeitos do conhecimento e como
própria cultura, ele tem todo o direito de se identificar com
toda a cultura africana. Se o caminho é correto na solução artífices de sua própria história. Ora, é justamente nesse momento, e esse
do problema do negro é uma questão, se o caminho é cor­
é 0 centro de meu interesse aqui, que o ativismo negro brasileiro rejeita,
reto ou não é uma questão, que só vai ter sentido de ser dis­
cutida dentro da comunidade afro-brasileira, na medida em ou rejeitaria, a identificação com o passado escravista e com a figura do
que a comunidade afro-brasileira está totalmente margina­
escravo como ideia-tema central para reconstrução de uma subjetividade
lizada do processo de desenvolvimento nacional. Mas agora
eu pergunto, quem fala da África no Brasil? (Idem) política. Então, convém dizer, esses novos intelectuais negros se reposicio-
nam e buscam reposicionar nossa sensibilidade e agenda emancipatória
Percebemos assim como se propôs uma opção política pela Áfri­ estendendo uma nova conexão em direção à negação da escravidão e uma
ca. Ambas as declarações convergem para definir o momento de inflexão afirmação da África e da africanidade. Tal movimento era, como ainda é,
discursiva na linguagem de elaboração para uma (nova?) identidade po­ amplamente possível em virtude da forte presença de tradições culturais de
lítica para os negros brasileiros. O contexto era o auge do regime militar origem africana, ou assim vistas. O legado difuso na malha da experiência
brasileiro, iniciado com o golpe militar deflagrado em 1964 com apoio de social, objetivado como estruturas formais, como na música e nas artes, e
amplos setores da imprensa, das elites econômicas e da classe média, ape­ em instituições como as casas da religião africana ou as irmandades reli­
gada, naquele momento como agora em 2020, infelizmente, a valores mo­ giosas negras, deixava evidente que o negro no Brasil, mesmo escravizado,
rais associados à família, Deus e à pátria. Tudo isso, obviamente, plasmado sempre foi mais ou menos africano ou esteve em contato concreto com a
como um ideal de nação. (ANDREWS, 1992; FIGUEIREDO&CHEIBUB, África, como veremos. De tal forma que, no horizonte de formação de mi­
1986-1987; SKIDMORE, 1985; 1988; PIRES, 2018) Personagens influentes nha própria sensibilidade política e subjetividade racializada, assim como
de momentos anteriores de mobilização política do negro, como Abdias na de milhões de negros brasileiros, a remissão à África e à africanidade
do Nascimento, estavam no exílio, outros sujeitos, como José Correia Lei­ sempre foi uma constante. E tudo isso com a negação do escravo - even­
te, egressos da mobilização negra da primeira metade do século, poderiam tualmente intitulado o escravizado - justamente como medida dessa ne­
exercer sua colaboração nesse momento de re-imaginação. (ANDREWS, gação da negação suprema, da condição mesma humana, de pessoa, desse
1992; FÊLIX, 1996; FONTAINE, 1985) Mas havia algo de novo. Dentre ou­ sujeito posto pela história como mercadoria por quatrocentos anos.
tros fatores já apontados, havia a influência da esquerda institucionalizada A partir, entretanto, de meu contato recente com a literatura asso­
em organizações como a Convergência Socialista, de inspiração trotskista, ciada ao chamado afropessimismo nos Estados Unidos, assim como com a
e da qual participava o referido Hamilton, nesse sentido havia o impacto emergência e consolidação do genocídio antinegro como categoria política
da retórica anticapitalista, fortalecida pelo efeito tanto da descolonização central para a política de emancipação racial no Brasil, a centralidade da
africana quanto da influência do Partido dos Panteras Negras. (CARDOSO, africanidade me pareceu, me parece, não mais recobrir todo o mapa possí­
1984; HANCHARD, 1994; NASCIMENTO&NASCIMENTO, 2000; GON- vel para sensibilidades negras insurgentes e críticas, e temos para isso um
ZALEZ, 1982; PINTO, 1990) Era nova também, naquele momento, como pano de fundo sociológico, para além das revisões no campo dos paradig­

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

mas críticos e interpretativos do pensamento social negro. (VARGAS, 2010; tual. O que os teria atingido? Uma mulher, um homossexual, um socialista,
2012; SEXTON, 2011; WILDERSON, 2016; 2010; DOUGLASS, TERREFE assemelhados no mesmo destino trágico e violento (um destino, aliás, co­
& WILDERSON, 2002) Dessa forma, a ideia de “morte social” e suas co­ mum a milhares de outros negros e negras no Brasil). A sombra da morte
nexões com o genocídio antinegro em sua multidimensionalidade, assim e do desespero lança luz sobre a (re)invenção de si como estratégia política
como o impacto do conceito de necropolítica, por um lado, associado à ên­ de salvamento subjetivo?
fase nas estruturas de despossessão em oposição à celebração de tradições e No que segue abaixo, como disse, antecipo parcialmente temas
identidades baseadas na cultura africana (declinada sob diversas modalida­ que serão em seguida melhor desenvolvidos, é dessa forma que passo a
des conceituais), parece definir uma passagem ou trânsito conceituai e po­ abordar o estatuto condicional do escravo como uma “pessoa”, no sentido
lítico que tem consequências para entendermos quem somos, como viemos antropológico, no âmbito da zona da morte colonial; em seguida, discu­
parar aqui e o que buscamos para o futuro. to o sentido político do signo-África como mobilizador dessa reconversão
Nesse sentido, esse capítulo é um primeiro ensaio de um esforço ou transfiguração do terror racial, para concluir buscando definir melhor
que pretende ser bem mais amplo, voltado a mapear e interrogar essas su­ os termos desse trânsito ou oscilação entre africanidade e escravidão como
perposições e alternâncias, a um só tempo sociológicas, subjetivas e estéti­ morte social.
cas, como buscarei desenvolver nos outros capítulos desse livro. Um mapa
de nossa experiência histórica e um plano de orientação para o presente, a A PESSOA DO ESCRAVO NO ESPAÇO DA MORTE
passagem África-escravidão parece central e capaz de, como uma estrutura
discursiva e interpretativa - um paradigma -, posicionar e fundamentar/ A escravidão, definida pela despossessão total, alienação radical
suplementar diversas instâncias da vida e da luta negras no Brasil. de si do sujeito ou supressão da autonomia e dignidade em suas formas
Eduardo de Oliveira e Oliveira morreu em 1980, segundo Rafael extremas, pôde ser caracterizada por Orlando Patterson ao fim e ao cabo
Trapp, “acossado pelo racismo e pela homofobia”. (TRAPP, 2017, p. 2) Se­ como uma forma de parasitismo social, ou de dominação social total. Mais
gundo se conta, entretanto, nos meios negros brasileiros, teria se suicidado precisamente, a escravidão poderia ser sintetizada, do ponto de vista da
ou se deixado morrer, sob intensa depressão. Hamilton Cardoso, após ter condição do escravo, como uma forma de morte social. Levando em con­
sido atropelado “em Io de maio de 1988, depois de uma festa na Escola de ta em primeiro lugar o ato original de violência que reduziu um homem
Samba Peruche, onde havia assistido com amigos a uma apresentação do ou mulher à escravidão. Esse ato, fruto da guerra, em termos mais ideali­
[bloco afro baiano] Olodum” (PEREIRA 2009), nunca se recuperou plena­ zados, mas também da trapaça e da rapina, afirmava-se ainda em termos
mente, e sofrendo de dores terríveis, de paranoia e de depressão, suicida-se ideais como uma alternativa histórica e individualmente concreta à mor­
em 5 de novembro de 1999. Beatriz Nascimento, ao defender uma amiga te. “Arquetipicamente a escravidão era um substituto à morte na guerra”
atacada por um companheiro violento, foi assassinada em 28 de janeiro de (PATTERSON, 2008, p. 24), que não significaria um perdão ou remissão,
1995. Três intelectuais e ativistas negros centrais para a reinvenção da ima­ mas “uma permuta condicional”. Uma permuta que cobrava um preço, o
ginação política negra, abatidos no auge da produção e maturidade intelec­ da dignidade pessoal e na verdade da existência social como uma “pessoa”,

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sem existência social reconhecida fora do domínio de seu senhor. Subtraído


das relações sociais que definem sua condição de pessoa, o escravo é alguém O que ele (o burguês cristão) não pode perdoar a Hitler não
socialmente desenraizado, sem vínculos estatutários e familiares, direitos é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilha­
ção do homem como tal, é o crime contra o homem branco,
ou obrigações civis, rituais ou seculares, o escravo estava assim seccionado a humilhação do homem branco, e o fato de ter aplicado à
da cadeia de relações sociais que integram sujeitos a sociedades. (PATTER­ Europa procedimentos colonialistas que até então eram re­
servados exclusivamente aos árabes da Argélia, aos coolies
SON; 2008, MEILLASOUX, 1995) Sem antepassados e sem descendentes, o da índia e aos negros da África. (CÉSAIRE, 2000, p. 36)m
escravo só poderia ser “ninguém”, sem herança ou legado. Na voz do poe­
ta Derek Walcott: “Agora cada homem era uma nação/Em si mesmo, sem
Mesmo um autor usualmente acusado de insensível para com o
mãe, sem pai, sem irmão”. (WALCOTT, 1990, p. 153)
drama do colonialismo e da escravidão como Marx, reconhece explicita­
Tal desvinculação esvazia o escravo de qualquer possibilidade de
mente a dimensão central, eu diria estrutural, da violência, e da desposses-
reivindicação de honra ou dignidade pessoais, seria assim, por definição,
são radical, como dispositivo central para o colonialismo e seu correlato
desonrado em termos gerais, sendo ademais tal desonra de caráter here­
escravista. Ainda que de certa forma reconheça a significância histórica da
ditário, seguindo usualmente descendência materna, sintetizada no adágio
invasão britânica das índias como uma etapa da evolução brutal da huma­
latino partus sequitur ventrem. O que Patterson diz, buscando caracterizar
nidade, não deixou de apontar a covardia, a brutalidade e a hipocrisia dos
a escravidão de um modo em geral, em um esforço de conceituação histó­
britânicos, e mais do que isso, para o fato central de que sem a violência e o
rico-sociológica, é válido também para a escravidão moderna dos africanos
terror não haveria colonização possível: “[...] a existência de tortura como
nas américas. Revelando assim “o que a escravidão realmente significava: a
instituição financeira da índia britânica é, portanto, oficialmente admitida”.
violência direta e insidiosa, a invisibilidade e o anonimato, a violação pes-
(MARX, 1964, p. I83)iv
soal infinita e a desonra crônica e inalienável”. (PATTERSON, 2008, p. 33)
Para Maldonado-Torres, a violência original e desmedida do pa­
O “ato originário de violência” tem especial relevância aqui, na
radigma de guerra é uma etapa necessária do processo de colonização, que
medida em que circunscreve o ato fundacional de instituição das socieda­
des, ou, no mínimo, das sociedades coloniais, sob o impacto daquilo que eu reconheceria também em sua dimensão estrutural, como a prevalência

Nelson Maldonado-Torres (2008) define como “paradigma da guerra”, de­ do modelo de guerra como elemento paradigmático de formação das socie­

finidor de um ethos civilizacional que tem na violência, na brutalidade e no dades coloniais baseadas no genocídio e na escravidão. Nesse sentido, “a vi­

terror modos de governança e de subjetivação. Tal ethos está implicado na rada de-colonial inclui a entrada definitiva das subjetividades escravizadas

naturalização da guerra como a suspensão de toda ética e política em nome de e colonizadas no reino do pensamento em níveis institucionais até então

uma “ética da morte que torna o massacre, e diferentes formas de genocídio, desconhecidos”. (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 8)

naturais”. (MALDONADO-TORRES, 2008, p. ll)H Lembramos aqui, todavia, Assim, o terror e a violência brutal, como experiência histórica,
a lição de Cesaire. O massacre colonial, tolerado no Congo ou no Haiti, seria deveriam também ser processados como categoria analítica e política para o
insuportável quando atingindo ao homem branco em solo europeu: r pensamento negro e anticolonial. Michael Taussig desenvolve o conceito de

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\A “espaço de morte” que é útil nesse sentido de estabelecer categorias críticas Com isto quero dizer que devemos pensar-através-do-ter-
ror, o que, além de ser um estado fisiológico, é também um
para pensar as formas de subjetivação baseadas na destruição da pessoa.
estado social, cujos traços especiais permitem que ele sirva
(TAUSSIG, 1993) como o mediador par excellence da hegemonia colonial: o
espaço da morte onde o índio, o africano e o branco deram
Taussig reflete sobre os relatos da violência colonial perpetrados
luz a um Novo Mundo. (TAUSSIG, 1993, p. 27)
no Putumayo colombiano nos primeiros anos do século XX, como uma
forma de interpelar o “ser social da verdade” e não a verdade do ser social.
No ambiente acadêmico norte-americano, o impulso crítico, pre­
O que de outra forma poderia ser abordado como a centralização da vio­
sente no chamado “ afropessimism”, repousa na incorporação da defini­
lência como definidora do ser social do corpo colonizado, sob a forma de
ção robusta de Paterson da escravidão como “morte social”. Extrapolando
uma ontologia do terror. Ou de consequências ontológicas para a produção de
dos contextos históricos originários, Frank Wilderson III e outros autores
subjetividades violadas e despossuídas em uma dimensão tão integral e total,
(WILDERSON, 2010; EDITORS, 2017) insistem em equacionar a condi­
tão avassaladora, capaz de mergulhar o mundo e o sujeito em uma dimensão
alucinatória. Taussig nesse caso é direto: “[...] o espaço da morte é importante ção negra na modernidade à escravidão, com todas as consequências e co­

na criação do significado e da consciência, sobretudo em sociedades onde a rolários políticos e subjetivos. Para tanto, ele “teoriza a relação estrutural

tortura é endêmica e onde a cultura do terror floresce”. (TAUSSIG, 1993, p. entre negritude e humanidade como um encontro irreconciliável, um an­
26) Nesse sentido, a proliferação hiper-sensorial da violência, do sadismo es- tagonismo. Não se pode conhecer a negritude como distinta da escravidão,
petacularizado, da tortura pública, define um espaço histórico de instauração pois não há temporalidade negra que anteceda a temporalidade do escravo
de uma hegemonia devastadora sobre corpos e consciência, mas também um negro”. (WILDERSON, 2018, p. 27)V1 A violência extrema e gratuita defi­
regime de significações para a narração da vida social e para a produção de niria a negritude, e o corpo negro como moldado e definido pela violência
subjetividades. Ora, como diz Orlando Patterson, “[...] não se conhece uma so­ originária, pela indignidade e desonra inalienáveis, e pelo desenraizamento.
ciedade com escravos em que o chicote não tenha sido considerado um instru­
Wilderson busca extrair consequências que chama de ontológicas para esse
mento indispensável”. (PATTERSON, 2008, p. 23) Dessa forma, a pedagogia
condicionamento, também entendido como tendo consequências graves e
social da violência e do terror conformam zona de instauração para uma nova
distintas para a esfera da atuação política, como tem desenvolvido João H.
ordem, objetivada, como diria Bourdieu, nos “cérebros” e no espaço social, aí
Costa Vargas (2012; 2017). Os negros não teriam condições de articulação
incluídas as instituições, como forma de materialização de uma ordem social
política no espaço conhecido na tradição gramsciniana como “sociedade ci­
que parece justamente objetiva porque presente nas categorias e nas estruturas.
vil”, assim como não há termo de comparação de seu “sofrimento” com re­
(BOURDIEU, 1999)
Vínculo histórico entre os colonizadores e sua ética de guerra, e os lação a outros sujeitos subalternizados inclusive sujeitos coloniais, como in­

colonizados/escravizados como não-pessoas, e vínculo estrutural entre a vio­ dígenas e árabes. Isso significa que as possiblidades de coalisão política são
lência carnal e formas de significação (ou não-significação), o espaço da morte limitadas, o que contrasta fortemente com a posição de outros paradigmas
colonial é o dispositivo dessa transição que instaura o escravo como categorial políticos afro-americanos, como no caso do Partido dos Panteras Negras,
colonial. inclinado a coalizões baseadas em uma perspectiva comum definida justa­

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mente pela condição colonial e pelo retórica terceiro-mundista inaugurada 2018; SEXTON, 2018; MOTEN, 2013) O vazio ou “void”, que aparece nessa
como o espírito de Bandung. (WRIGTH, 2008; DIAWARA, 1998) Na me­ abordagem, que em grande medida deve a Fanon, define os contornos não
dida, entretanto, que não toma a dimensão econômica - melhor dizendo, a meramente para a subjetividade negra, mas para sua ontologia antirrepre-
economia política - ou mesmo o espectro geopolítico mais amplo, colonial, sentacional. Em Lewis Gordon, por exemplo, “o negro, portanto, não sim­
para circunscrever as condições de subjetivação pra o sujeito negro, ou sua boliza crime e sexualidade licenciosa em um mundo antinegro. O negro é
ontologia, Wilderson insiste na dimensão antagônica (irreconciliável) da crime e sexualidade licenciosa, bestialidade e todas as matrizes de patolo­
experiência negra, como definida para muito além de constrangimentos gias sociais”. (GORDON, 1999, p. 79)vu Autores não exatamente identifi­
materiais, mas assediada por uma “economia libidinal” que conecta per­ cados com o afropessimismo, como Harney e Motem, insistem com maior
versamente desejo e significação, definindo um campo que não poderia ser vitalidade: “Negritude é o lugar onde a absoluta não existência (nothing-
capturado por uma análise de classe. Na verdade, a condição escrava que ness)e o mundo das coisas convergem”. (2013, p. 95) Ou em Jared Saxton,
define a negritude, justamente define o negro como não-humano, muito que longa e elegantemente desenvolve os paradoxos da “nothingness” para
mais, aliás, nesse sentido, do que uma não-pessoa. Tal condição escapa à a experiência da negritude. (SEXTON, 2011; 2018)
determinação econômica porque o escravo não teria apenas ou necessaria- Mas ora, eu sou um homem negro brasileiro, baiano em parti­
mente uma função econômica como demonstra longamente Patterson, mas cular, e em minha experiência sociocultural assim como para milhões de
atenderia a necessidade distintas - o parasitismo -, o que implica em ne­ outros afro-brasileiros e mesmo afro-latino-americanos e/ou caribenhos,
gociações complexas de humanidade/desumanidade; desejo/terror; honra/ o horizonte social e as categorias da experiência in ter subjetiva estão reple­
desonra; liberdade/cativeiro. tas de referências à África e a elementos de africanidade. Não há nenhum
Em meu contato com a literatura afropessimista, dois aspectos me vazio. Onde ele porventura poderia estar, está o suplemento do Signo-Á-
chamaram fortemente a atenção. Primeiro, a preocupação com a ontologia frica, como discuto mais à frente. As conexões, ligações e reinterpretações
- um debate que eu julgava superado ou irrelevante, graças ao meu contato históricas deixaram rastros palpáveis ademais. Na linguagem, nas formas
com o pensamento pós-estrutural (pós-metafísico)5. Em segundo lugar, o institucionais, em categorias simbólicas, na devoção aos orixás, na celebra­
esvaziamento de condições históricas e semióticas para (re)elaboração da ção corporal das diferentes modalidades de música negra e/ou efetivamente
subjetividade negra e de suas formas de identidade política, para além da es­ africana, como veremos nos próximos capítulos. Contra o relativo vazio ou
cravidão, da morte, da “nothingness” [nada]. (GORDON, 1999; GORDON, terra arrasada para a experiência negra nos Estados Unidos, como pare­
ce estar poetizado no poema “The Desolate City” [A Cidade Desolada], de
5 Sabemos como em Derrida o signo é sempre uma remissão ou retorno a uma origem inalcançável,
uma ausência que se recoloca sempre, o significante que se refere sempre a outro significante. Esta
Claude McKay.
constatação desconstrói a “metafísica da presença”, na qual o ente é o ser-aí. É justamente a idéia de
representação como significação - operada por um indicador qualquer de algo que estando em “outro
lugar” é representado pelo signo - que não mais resistiria à crítica. Nesse caso a separação entre um Meu espírito é uma cidade pestilenta,
conteúdo e sua representação aparece como um efeito ideológico da “metafísica da presença”, que Com a miséria triunfante em todos os lugares,
supõe como necessidade (ideo)lógica existir um fundo último concreto de conteúdo objetivo a ser Satisfeito com as esperanças frustradas e perdido para a piedade;
reencontrado ao final da cadeia significante. (DERRIDA, 1995) Agonias estranhas alojam-se silenciosamente ali.

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Seus esgotos explodindo escorrem desde baixo, Como estou antecipando, as interpretações e categorias que se lo­
E espalham sua substância repugnante pelas vias,
Inundando todas as áreas com seu fluxo maligno,
calizam no campo que enfatiza a conexão africana padecem, como não po­
E bloqueando todo o movimento de suas veias. deria deixar de ser, de certo culturalismo, o que faz, de modo surpreenden­
Sua vida está selada para o amor, esperança ou piedade;
te, a argumentação de Lélia semelhante à de Gilberto Freyre, quando ela,
Meu espírito é uma cidade pestilenta.
(MCKAY, 1995, p. 294)viii por exemplo, ressalta o passado “mouro” de espanhóis e portugueses como
uma preparação para a “articulação das relações raciais”, exatamente o que

De tal modo que a africanidade (ou ancestralidade), no mínimo, diz Freyre em “Casa Grande & Senzala”. (FREYRE, 1995) Do mesmo modo

ao lado da escravidão, faz solo para uma ontologia, ou subjetivação negra. como Lélia está claramente interessada em discutir formações nacionais ou

Como então denuncia Beatriz Nascimento, e como de um modo em geral como a “cultura brasileira” foi constituída, o que forma um certo paradoxo

diversos agentes do movimento negro definiram, a forma subjetivada de ou tensão com sua perspectiva hemisférica.

identificação política para os negros brasileiros está definida pela relação Para escapar então a essas dificuldades, Lélia propõe o conceito de

com a África e não com a escravidão e sua violação originária. Com todas as “amefricanidade”, capaz de l) deslocar a centralidade estadunidense, para

contradições - de natureza culturalista - advindas dessa formulação e que aproximar negros de diversas sociedades nacionais latino-americanas; 2)

discutirei mais à frente. para conectar a nossa historicidade à África, mas apontando os caminhos

Nesse sentido, o pensamento da ativista e pesquisadora afro-bra­ distintos para África e a Diáspora; tendo por fim vantagem metodológica,

sileira Lélia Gonzales oferece contraponto útil. Notadamente, a categoria 3) uma vez que poderia

de “amefricanidade”. (GONZALES, 1992/93) Fundamentalmente mobili­


resgatar uma unidade específica historicamente forjada no
zada para oferecer uma alternativa tanto à compreensão de que a América
interior de diferentes sociedades numa determinada parte
Latina seria de fato “latina”, ou seja, deveria as fontes de sua identidade e do mundo. Portanto Améfrica, enquanto sistema etnogeo-
gráfico de referência, é uma criação nossa e de nossos an­
rica vida sociocultural a fontes ou matrizes europeias. Ou de modo mais
tepassados no continente em que vivemos, inspirados em
significativo, para a compreensão de que na América Latina as “formações modelos africanos. (GONZALES, 1992; 1993, p. 77)

do inconsciente são exclusivamente europeias”. (Idem, p. 69) Inversamente


para Lélia a presença africana e ameríndia forma o substrato e o tecido ver­ No começo do capítulo, recordei como Beatriz Nascimento de­
dadeiro da cultura e da subjetividade dos países da América Latina. A outra nuncia o seu incômodo com a obsessão ligada ao estudo do escravo, sua
oposição interessante que faz Lélia se refere ao que ela chama de posição objeção refere-se fundamentalmente a negar a coisificação e desumaniza-
imperialista dos Estados Unidos, e em especial dos afro-americanos, o que ção, justamente apontadas como centrais na experiência negra por autores
transparece na terminologia, afro-american ou african-american, como se como Wilderson e outros, identificados com a abordagem que toma a vio­
os outros negros do continente também não fossem americanos, ou, nesse lência originária da escravidão como categoria política e analítica central. É
caso, melhor dizê-los amefricanos. nesse mesmo sentido que Beatriz se detém sobre o que ela chama de “pessoa

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do homem negro”. Como ela, então, reflete com grande acuidade e anteci­ mento), consideramos inatas. Ora, de inatas tais ideias não têm nada, e fiel à
pação: “A questão econômica não é o grande drama, percebe. Apesar de ser prevalência do social, definida por Durkheim, Mauss questiona e interpela
um grande drama, não é o grande drama. O grande drama justamente é o a universalidade da palavra “eu”. Confluindo numa só inquirição a gênese
reconhecimento da pessoa do homem negro que nunca foi reconhecida no sócio-historica da ideia de “sujeito”, de “eu” e de “pessoa”, reconhecendo
Brasil”. (ORI, 1989) suas superposições no equilíbrio entre universalidade e particularidade.
Vemos assim que a coisificação escravista e a desumanização ra­ Entre os índios Pueblo norte-americanos, por exemplo, veríamos
cista incidem sobre a interdição desse reconhecimento no pensamento de uma noção de pessoa na qual o indivíduo está confundido com o seu pró­
Beatriz. A interdição, a impossibilidade de o homem negro ser reconhecido prio clã. As funções rituais encenadas como cerimonial, e investidas na sig­
como uma pessoa, justamente o que o escravo - mercadoria fungível e ple­ nificação das máscaras, do título, da posição e papel social dos oficiantes.
na - não poderia ser. Deveríamos perguntar, todavia, como podemos de­ Nesse sentido, a encenação ritual clânica define o indivíduo por sua posição
finir uma “pessoa”. A tradição teórica da antropologia social estabeleceu o ritual, e Mauss toma isso como forma originária de personificação. Entre os
cânone interpretativo sobre o assunto a partir do ensaio clássico de Marcei Kwakiutl, estudados por Franz Boas no Noroeste norte-americano, encon­
Mauss (2003), com quem eu concluo essa seção. tramos a mesma realidade clânica, na qual classes, clãs e pessoas humanas
Um dos principais colaboradores da revista “L’Anné Sociologi- interagem e são produzidos por meios ritualísticos. Nesse sentido, “todos os
que” (1898), fundada por Emile Durkheim, fundador putativo da sociologia atores são todos os homens”, ocupados a encenar um drama a um só tempo
e da antropologia social, Marcei Mauss produziu ao longo da vida diver­ estético, cósmico, mitológico, social e pessoal. Um drama comprometido
sos ensaios hoje clássicos. Diferentemente da tradição funcionalista-em- com a existência positiva dos antepassados e com a perpetuidade das coisas
piricista posterior, Mauss aborda problemas conceituais por meio de uma e de seus espíritos. O conjunto ritual encontra sua expressão máxima no
perspectiva universalizante e comparativa (e nesse sentido flertando com “Potlach”, famigerada teatralização agonística das oposições políticas entre
o evolucionismo antropológico, exatamente nomeado de “método compa­ os chefes. Nesse caso, também, a “pessoa” ainda é a personagem de dramas
rativo”). Assim foi com o “Esboço de uma teoria geral da magia” (1904); cosmológicos.
com o célebre e nuclear “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas As sociedades indígenas norte-americanas fornecem um mode­
sociedades arcaicas” (1925); com “As técnicas do corpo” (1934); também lo para a forma social de elaboração da pessoa, precisaríamos, no entanto,
assim com “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de saltar para a linha de continuidade evolutiva identificada com as sociedades
‘eu’” (1938), de que me ocuparei aqui brevemente. ocidentais para seguir a genealogia maussiana da pessoa. Primeiro, entre os
Neste ensaio, percorrendo amplo espectro etnográfico e histórico, romanos, onde encontramos a “persona” latina, como uma categoria social
Mauss busca interrogar, de um ponto de vista que perceberíamos como ge­ do entendimento, a princípio ainda identificada à máscara trágica e ritual
nealógico, o que ele entende ser uma “categoria do espírito humano”, pres­ - e esse seria o significado da palavra persona, raiz de “pessoa”. Todavia,
supostos formais para o entendimento, e que, cegos pelo etnocentrismo, ou seria em Roma onde pela primeira vez a pessoa humana aparece como uma
alheios à historicidade das formas de pensamento (ou de pensar o pensa­ entidade completa (independente), sendo assim a pessoa torna-se mais que

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máscara (lugar na ordem social) - é também um fato fundamental do di­ todavia, o modo como, na tradição ocidental, o dominante e o dominado
reito, se inscrevendo na ordem jurídica do Estado. Nesse sentido, a cidada­ se articulam por meio do ethos da guerra, apontado por Maldonado-Torres
nia romana se transcreve no estatuto de persona civil, e a pessoa “jurídica” como envolvendo as dimensões ritualísticas, jurídicas, psicológicas, morais,
aparece como a verdadeira natureza do indivíduo. Mais especiíicamente, epistemológicas e políticas, desdobradas nesse caso na noção de pessoa, e
diríamos, do homem livre (quer dizer, nem um escravo nem uma mulher), que se superpõem justamente para definir uma categoria de entendimento.
proprietário de seu corpo. “Por outro lado, o direito à persona é fundado. Operando politicamente no contexto colonial, tais superposições constran­
Somente o escravo está excluído dele. Servus non habet personam. Ele não geriam os limites de definição da pessoa. E como diz Beatriz Nascimento,
tem personalidade, não possui seu corpo, não tem antepassados, nome, essa negação da pessoa está contida na figura do escravo, o que, ou aquele
cognmen, bens próprios”. (MAUSS, 2003, p. 189) que deveria em tese ser negado para permitir a afirmação de um “si mes­
A partir da influência do estoicismo, a noção de pessoa ganha uma mo”. Para fazer sentido, a genealogia evolucionista de Mauss, com seus en­
conotação moral, associada à “consciência”. Como em Dionísio de Helicar- cadeamentos, escravo deveria ficar de fora. Todavia, ainda tendo Mauss em
nasso, para quem, segundo Mauss, a consciência de si tornou-se o apanágio mente, podemos perceber que negar essa negação não parece poder estar
da pessoa moral. Ora, com a subsequente cristianização do império, a pes­ subsumida a um mero ato de vontade, haja visto justamente a objetividade
soa moral torna-se uma entidade metafísica cravada na unidade (substância de categorias históricas como a de “pessoa” ou “escravo”, que, como aponta
e modo/corpo e alma) da pessoa humana. Patterson, um autor muito atento à dimensão simbólica da vida social, não
No âmbito da modernidade e como um corolário e ao mesmo podem ser facilmente afastadas, notadamente porque exigidas para confir­
tempo pressuposto para a mesma, veríamos a emergência da transformação mar a humanidade do senhor, ao tempo que negam, parasitam ou coisifi-
da consciência moral metafísica em consciência psicológica. E é com base cam a humanidade, ou pessoalidade, do escravo.
nesse antropocentrismo psicológico que com Descartes uma nova episte-
mologia é fundada, assegurando ao homem o lugar de sujeito, não mais ri­ O SIGNO-ÁFRICA
tual ou moral, mas do conhecimento, o que constitui a base do pensamento
dedutivo cartesiano: cogito ergo sum. Tudo isso por fim, conclui Mauss, O movimento negro moderno, ou seja, aquele que teria surgido
culminando na definição política de pessoa como um sujeito de direitos no contexto do declínio do regime militar a partir dos anos 1970, no Brasil,
universais. Tendo cada um direito a seu “próprio eu” e cada um destes “eus” associar-se-ia a um movimento mais amplo de reorganização dos movi­
sendo portador de direitos inalienáveis, como na Declaração Universal dos mentos sociais e de politização da sociedade e do cotidiano naquele contex­
Direitos Humanos: “Todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade e à to. (FIGUEIREDO&CHEIBUB, 1986-87; FONTAINE, 1985; GONZALES,
segurança pessoal”. (2018) 1985) No caso baiano, que pude observar mais de perto, essa retomada do
Fácil perceber que há algo de evolucionismo nessa perspectiva movimento negro nacional, que vem demonstrando alguns de seus resulta­
genealógica, ainda que temperada com algum relativismo, e com o huma­ dos mais importantes em associação a políticas de cotas raciais na universi­
nismo característico de Mauss. (BRUMANA, 2018) Importaria-nos reter, dade e ao surgimento de dezenas de coletivos de jovens estudantes negros,

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

conecta-se ao movimento local mais amplo da reafricanização. (PINHO, Abdias do Nascimento é outro propositor precoce dessa reapro-
2005; 2003; RISÉRIO; 1981) Esta incorporação por sua vez dotou o movi­ priação do quilombo, apresentando um modelo de “práxis afro-brasileira”
mento baiano de características próprias, associadas a transformações rea- que ele chama de quilombismo. Esta práxis, enraizada na história de resis­
fricanizantes, mas também comunicou essas características ao movimen­ tência manifestada em vários níveis, é também um programa político de
to negro nacional, dentre estas talvez a centralidade da “cultura negra e ação transformadora, sintetizada no “ABC do Quilombismo”. (Nascimen­
a afirmação da africanidade, ou do que chamei de Signo-África como dis­ to, 1982;2002; 1980)

positivo discursivo de subjetivação. (CUNHA, 1998; PINTO, 1990) Dessa Parece claro como a narrativa de organização autônoma negra faz
forma, então, se observamos na Quinzena do Negro na USP, em São Paulo, parte de uma estratégia mais ampla de refundação das bases interpretativas
determinados desenvolvimentos, de negação do escravo, veremos também do presente que dê lugar a uma perspectiva sobre 0 passado nacional e sobre
na Bahia a proliferação de formas culturais e estruturas de representação 0 lugar do negro nesse passado, que fundamentalmente é uma capacidade
africanizadas que justamente irão suplementar, no sentido pós-estrutural, insurgente de crítica e de superação da opressão e da desigualdade. O que
o presumido vazio histórico, legado pelo rastro avassalador da escravidão aponto é a constante referência à África como elemento central dessa dis­

colonial. (BHABHA, 1998) posição, como uma estratégia efetiva de negação da escravidão, que negava
O quilombo de Palmares e a forma genérica “quilombo” têm sido à pessoa do negro o seu reconhecimento, ou seja, trata-se da negação da

ressignificados fortemente a partir desta reorganização do movimento ne­ negação.

gro nos anos 1970. Com essa ressignificação passa a representar cada vez A historiografia recente tem demonstrado a prevalência e extensão

mais um modelo alternativo de organização da sociedade que desafiou os do fenômeno dos quilombos durante todo o período escravista, assim como

poderes coloniais e reinventou um mundo africano baseado no trabalho as correlações entre os quilombos no Brasil e na África, em especial Angola,

livre, na propriedade comum da terra, em valores tradicionais holísticos e tem fornecido bases cada vez mais sólidas para desenhar-se uma história

etc. (NASCIMENTO, 2007; NASCIMENTO, 2002) Com a “reabilitação do que é uma contra-narrativa da escravidão. (CARDOSO, 1986; MNU, 1988;

quilombo”, a utopia afrodescendente passa a incorporar um modelo histó­ NASCIMENTO, 1982; REIS & GOMES, 1996) Nesta, o escravo e 0 africano

rico como referência no passado para a possibilidade de futuro. Sobre isso, não são meras peças inertes na engrenagem do sistema, mas artífices ativos

Beatriz Nascimento, em “O Conceito de Quilombo e a Resistência Cultural de sua própria libertação. Do mesmo modo, a historiografia das revoltas

Negra”, diz o seguinte: escravas ou negras, ou daquelas com significativa participação de pardos e/
ou libertos, como a Revolta dos Malês em 1835, e antes disso a Revolta dos
É o final do século XIX que o quilombo recebe o significa­ Búzios ou Alfaiates em 1798, estabelecem um patamar histórico de fundo
do de instrumento ideológico contra as formas de opressão.
para a resistência escrava e para a organização para libertação do negro bra­
Sua mística vai alimentar o sonho de liberdade de milhares
de escravos das plantações de São Paulo, mais das vezes atra­ sileiro. (REIS, 1988; CHALOUB, 1990; REIS & GOMES, 1996; REIS, 1993;
vés da retórica abolicionista. Esta passagem de instituição
1989, FREUDENTHAL, 1997; ANDREWS, 1992 e outros) Como coloca
em si para símbolo redefine quilombo. (NASCIMENTO,
2007, p. 122) um documento do Movimento Negro Unificado:

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Os escribas da historiografia oficial comprometida com os Em 18 de junho de 1978, aproximadamente um ano depois da
interesses das elites dominantes, afirmam que os negros
africanos eram dóceis e servis e se submeteram passivamen­ quinzena do Negro em São Paulo, e 34 anos após a fundação do TEN, o
te à escravidão. Pelo contrário, vamos constatar na história Movimento Unificado contra a Discriminação Racial (MUCDR) é fundado.
do negro brasileiro uma série de movimentos insurreições,
revoluções, rebeliões, de luta dos negros africanos contra o Realizando em seguida um ato público nas escadarias do Teatro Municipal,
regime da escravatura no Brasil. (...) A história do negro no em São Paulo, no dia 7 de julho. O MUCDR foi depois rebatizado em 23
Brasil é uma história de luta. São quase 500 anos de luta,
de resistência contra a escravidão, o racismo, a opressão e a de julho como Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial
exploração. (MNU, 1988, p. 54) (MNUCDR). Em dezembro de 1979, durante o Io Congresso, realizado no
Rio de Janeiro, passa a chamar-se Movimento Negro Unificado (MNU),
Muito antes da Quinzena do Negro na USP, em 1944, Abdias do nome que conserva até hoje. (NASCIMENTO & NASCIMENTO, 2000;
Nascimento, junto a outros intelectuais, funda o Teatro Experimental do BARCELOS, 1996; CARDOSO, 2002; FÉLIX, 1996; HANCHARD, 1994)
Negro (TEN) que, diferentemente dos movimentos anteriores, “reivindi­ O ato do dia 7 de julho foi convocado em protesto contra a morte
cava o reconhecimento do valor civilizatório da herança africana e da per­ do jovem negro Robson Luís. O jornal Versus noticiou com detalhe o caso
sonalidade afro-brasileira”. (NASCIMENTO & NASCIMENTO, 2000, p. de Robson Luís, e o protesto que marcou a aparição pública do novo mo­
207) O TEN teve importância fundamental na definição de uma contra-in­ vimento negro brasileiro. Por roubar com amigos que vinham bêbados de
terpretação ideológica na formação da política racial brasileira, agregando uma festa três caixas de frutas, Robson Luís, 21 anos, casado, morador da
artistas e intelectuais, mas também negros pobres, analfabetos e emprega­ Vila Popular, morreu no dia 28 de abril de 1978, no Hospital de Clínicas,
das domésticas. Além das peças que produziu, teve atuação fundamental seu rosto estava desfigurado e seu escroto fora arrancado na 44a Delegacia
na formação de quadros intelectuais e artísticos, além de organizar a Con­ de Polícia em SP. Segundo apurou o jornal Versus, o delegado, enquanto
venção Nacional do Negro Brasileiro, em 1945, um evento que se colocou batia, dizia: “Negro tem que morrer no pau”. (CARDOSO, 1978)
como uma resposta aos Congressos Afro-Brasileiros do Nordeste, organi­ Na Bahia, o embrião do MNU teria sido o grupo NEGO - Estudos
zados por Gilberto Freyre e Edson Carneiro, duramente criticados por exo- sobre a Problemática do Negro Brasileiro. No dia 5 de julho de 1978, este
tizarem o negro e o tomarem como objeto de estudo. (Idem, p. 211) grupo esteve ciente do ato do dia 7 e manifestou solidariedade, logo em
Principal líder do TEN, Abdias do Nascimento é sem dúvida a seguida o grupo tornou-se a seção baiana do MNU. Desse grupo participa­
figura chave na transição e consolidação de uma perspectiva determina­ vam Lino de Almeida, Gilberto Roque e Luiz Alberto, também líder sindi­
da, capaz de reinterpretar a história da organização do negro para antes de cal, fundador do Partido dos Trabalhadores e posteriormente parlamentar.
1945, influenciando a constituição de representação da política afrodescendente (SILVA, 1988) A movimentação precedente à fundação do MNU baiano es­
para depois de 1945. O quilombismo, e demais intervenções intelectuais estratégi­ teve recheada de elementos culturais, que caracterizaram a Reafricanização.
cas empreendidas por Abdias, introduziram a questão da identidade e da luta polí­ O bloco afro Ilê Aiyê havia sido fundado em 1974, a onda Black Soul que
tica em torno da representação e formação de um sujeito político negro, esta cons­ fez o pano de fundo para a politização racial no Rio e em São Paulo existia
trução aparece fortemente marcada pela centralidade do que chamo Signo-África. com menor força na Bahia, mas era complementada pela onda “afro soul”

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

representada pelo Ilê e outras organizações e tendências culturais. (RISÉ- sas e múltiplas tradições culturais africanas. O ambiente da reafricanização
RIO, 1981) A questão da identidade, chave para retórica deste moderno estava inteiro impregnado de referências “culturais”, associadas tanto aos
movimento negro, ganha assim na conformação da história da organização estudos afro-brasileiros acadêmicos, ou quase acadêmicos, quanto à pró­
negra na Bahia um de seus foros privilegiados. pria tradição discursiva afrodescendente manifestada no carnaval. Nesse
sentido, a torrente criativa de fluxo simbólico e de performance racial-cul­
Figura 1 - Panfleto da campanha eleitoral de Luiz Alberto à Assembleia Consti­ tural galvanizada pela reafricanização do carnaval forneceu os elementos de
tuinte. identidade para a formação do movimento e de um novo sujeito, o negro
como “homem novo”. (FLOR, 1992; SILVA, 1988; RODRIGUES, 1996)
Ou seja, o negro como o “homem novo”, ou o jovem sujeito negro
no palco das lutas políticas e das políticas de subjetivação, emergiu definido
pela relação com a África e a africanidade. Diferentemente do que ocorreu
em outros contextos, em que a referência à africanidade não foi tão central,
como no contexto do radicalismo negro norte-americano. E é obvio que
não nego o lugar da África na invenção da identidade afro-americana, mas
é difícil negar que ela seja tão central, abrangente e complexa como no caso
do Brasil e provavelmente de outros países latino-americanos e caribenhos
com forte expressão demográfica negra, como Cuba ou Colômbia. (FRA-
GINALS, 1977)
O movimento negro na Bahia teria surgido dominado por ten­
sões. A primeira delas diz respeito justamente à origem “cultural” de parte
da agenda ativista dos grupos, que se chocava com o projeto mais claramen­
te político, de inspiração marxista, da outra parte. Essa tensão dividiu o mo­
vimento nascente entre “políticos” e “culturalistas”. Por outro lado, alguns
militantes deste período tinham atuação como atores e também como edu­
Fonte: Arquivo pessoal do autor, 1987.
cadores, essa inserção de “classe média” ou universitária seria outro fator
de contradição para o grupo, que não conseguiria articular uma linguagem
Se a questão da identidade era crucial para outros movimentos so­
verdadeiramente popular que interessasse e atingisse a consciência do “ne­
ciais no Brasil e no mundo, não se furta também a incorporar-se no proces­
gro massa”.
so de construção de uma alternativa política racializada em Salvador. Uma
Ora, no centro da consolidação desse movimento político negro
cidade colonial, secular, de largo passado escravista, maioria negra e den­
institucional, estaria o sujeito negro, mas quem é o negro? Como podemos

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

defini-lo como um agente atuante na história, e que preserva memória e ou de identidade, que poderia lhes servir de conforto ante a hegemonia cul­
continuidade política? A resposta dos agentes negros que podemos con­ tural que negava tanto especificidade quanto valor às realizações culturais
siderar nesse momento construiu-se através da ideia de identidade negra negras. Por outro lado, é justamente essa “cultura” negra que tem conferido
como um conteúdo simbólico-cultural. Este conteúdo é, para o caso da um elo que permite falar de uma identidade negra brasileira, de um modo
Bahia moderna, principalmente a negritude reafricanizada, derivada da tra­ conectado às tradições populares seculares, como os batuques, o candom­
dição cultural - estrutura objetivada nas instituições e discursos - negra blé, a capoeira e outros. (HANCHARD, 1998) Conformada como uma
ou africana. Esta definição de um sujeito político como um sujeito cultural ideologia política, esta identidade cultural contém uma promessa utópica
atravessa o movimento negro e produz desenvolvimentos muito importan­ de realização futura de si como negro, e da história como emancipação do

tes, operando na referida tensão entre políticos e culturalistas. povo negro, manifestada exatamente como realização das promessas con­

É no carnaval que a vertente cultural do movimento ganha espaço tidas na tradição, o que nos permitirá falar eventualmente em contra-hege­

e legitimidade, articulando-se com formas de reinvenção da subjetividade e monia, ou, para usarmos um termo êmico, “resistência”. (PINHO, 2015)

permitindo uma reaproximação difusa dos afrodescendentes comuns (não Como apontei, essa reconstituição se apoia em tradição de longa

ativistas ou intelectuais) com as fontes de sua própria identidade cotidiana, duração, e a ruptura modernizante da Reafricanização dos anos 1970 foi

agora posta em questão e contestada pelos discursos conflitantes de iden­ uma ruptura no interior de uma tradição. Desde pelo menos o século XIX

tidade política. (BACELAR, 1989) Ora, estas tensões não se restringem à diversos registros documentam o modo como os escravizados, africanos ou

Bahia, como mostrou Hanchard, mas participam da formação da cons­ crioulos inventaram formas sociais de associação e estruturas formais esté­

ciência política do negro no Brasil moderno. (BAIRROS, 1996; FRY, 1995; ticas e culturais ao longo da experiência da escravidão e da despossessão e

HANCHARD, 1996; HANCHARD, 1996) violência totais. No século XX, pós-abolição, notadamente na Bahia, mas

A questão da cultura e da identidade tornou-se assim o núcleo em muitos outros contextos, a centralidade das referências africanas per­
manece.
contestado de uma reivindicação por reconhecimento, e a alavanca da mo­
bilização por igualdade econômica e social. Lélia Gonzalez dá bem a medi­ A presença da música negra, como presença africana, em forma
de samba e chulas, ao longo de todo o século XX, não se restringia ao car­
da do lugar da cultura como esteio de nossa identidade política:
naval e estaria presente na tessitura inteira da vida social. Jocélio Teles dos
As entidades culturais de massa têm sido de grande impor­ Santos traz vários exemplos destes “divertimentos estrondosos” que espa-
tância na medida em que, ao transarem o cultural, possibili­
Ihavam-se pela cidade, reterritorializando os espaços através da prática sig­
taram ao mesmo tempo o exercício de uma prática política,
preparadora do advento dos movimentos negros de caráter nificativa consciente: “Os batuques, definidos oficialmente como danças ou
ideológico. (GONZALEZ, 1982, p. 22) bailes dos negros africanos ou de seus descendentes, aconteciam nas ruas,
largos, casas e terreiros da cidade do Salvador desde o século XVIII”. (SAN­
A cosmologia do candomblé e a música dos blocos afro logo pas­ TOS, 1998, p. 17)
saram a representar para negros em todo o Brasil uma referência de raízes

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Acredito que é possível reconhecer um apelo continuamente rein­ to político. Num sentido análogo ao que estabelecem Edmund Gordon e
ventado em torno do que chamo de Signo-África. O conjunto de reverbera­ Mark Anderson para a diáspora africana como um todo, observamos aqui
ções deste apelo, manifesto nos diversos momentos descritos pela literatu­ um processo de agenciamento transnacional, e de autoinscrição subjetiva.

ra, registrados na ficção ou objetivados em práticas, pode ser descrito como (1999) Esse processo apresenta várias modalidades de conexão e reconexão

um discurso contra-hegemônico, instrumento na luta política continuada, à prática crítica do pan-africanismo, dos nacionalismos em África e princi­
palmente da cultura popular no Brasil. Ora, como o reconhecimento dessas
uma trama consistente o bastante para se definir como uma tradição con-
modalidades pode adequar-se à centralidade da violência, do genocídio, da
tradiscursiva e crítica, que apoia-se nas conexões históricas com a África e
escravidão e da morte social como categorias estruturantes para a subjetivi­
no reconhecimento da “personalidade africana” ou ancestralidade.
dade política negra?
Essa tradição pôde operar na História como um “suplemento”.
Como vemos em Derrida, e em outros autores de inspiração pós-estrutu-
METAMORFOSES
ral como Homi Bhabha, a suplementariedade repõe o centro ou funda a
significação em uma tentativa de suplementar, adicionar à ausência, ou fal­
ta originária que nunca poderá ser preenchida. (BHABHA, 1992) O que Como já apontado, busquei nesse capítulo construir condições

chamo de Signo-África tem cumprido justamente essa função estrutural iniciais para interrogar uma transição ou transformação, muito mais que

de suplementação. Através deste processo suplementar, discursos críticos uma dualidade, que dispõe como duas alternativas suplementares as figuras
e contra-hegemônicos podem ser (e têm sido) constituídos, como acredi­ do escravo ou do africano. Esse esforço significou um mapeamento pré­
to ser o caso para o processo de subjetivação africanizada. Por outro lado, vio da reflexão teórica crítica de intelectuais e do pensamento engajado de
a África ganha operacionalidade discursiva e política ocupando, em certo ativistas, significou ademais pôr em contraste formas inscritas na história
sentido, o lugar daquilo que, na sua introdução à obra de Marcei Mauss, para identificação negra e formas salientadas pelo esforço de revisão crítica
Claude Lévi-Strauss chamou de significante flutuante, entendido como um de uma epistemologia ou mesmo ontologias possíveis. O campo de pensa­
excedente de significação que amplia a relação de complementariedade en­ mento crítico que enfatiza a centralidade da escravidão põe relevo sobre a
tre significante e significado, permitindo que o sentido seja justamente su­ despossessão, a violência, o apagamento, o terror e o genocídio como cate­
plementado.6
gorias que nos permitiriam lidar com o mundo antinegro de forma crítica
Ao longo do século XX, e com nova ênfase após o regime militar,
e, eventualmente, enxergar, como Fanon, “um programa de desordem geral
encontramos intensa conexão com a África, por meio da elaboração do que
do mundo” (FANON, 1983); o campo que centraliza a africanidade, e que se
chamei de Signo-África, estrutura simbólica suplementar de agenciamen-
comunica forte e diretamente com tradições populares na América Latina,
6 Em seu esforço para compreender o mundo, o homem dispõe assim sempre de um excedente de põe relevo na resistência, e notadamente na resistência cultural e no resgate
significação (que ele reparte entre as coisas segundo leis do pensamento simbólico que compete aos
etnólogos e aos lingüistas estudar). Essa distribuição de uma ração suplementar - se podemos nos
de valores culturas e civilizatórios africanos, enxergando o povo negro na
exprimir desse modo - é absolutamente necessária para que, no total, o significante disponível e o sig­ diáspora não como descendentes de escravos, o que viemos a ser de modo
nificado assinalado permaneçam entre si na relação de complementaridade que é a condição mesma
do exercício do pensamento simbólico. (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 43) contingente e acidental, mas como descendentes de poderosas e vibrantes

66 67
OSMUNDO PINHO

culturas e civilizações africanas. Consequências e outros desdobramentos


dessas articulações ser^o discutidas nos próximos capítulos. Importa reter
neste momento, entretanto, como essa articulação conceituai reflete uma
transição histórica, que dessa forma tem sido teorizada como uma transição
ou transformação, também no sentido estruturalista, no qual cada versão
do mito é uma transformação de outra versão, sendo todas “verdadeiras”.
(LEVI-STRAUSS, 1975) A passagem de africano a escravo é a transição en­
tre autonomia subjetiva, relativamente incomensurável, porque formada
em outras bases culturais, e o desenraizamento total. Em distintas situações
histórico-sociológicas essas transições se realizaram como transformações
dessa expropriação ou violência originária, que é o fundamento das possi­
bilidades de desenvolvimento dessa mesma relação. Paul Gilroy insiste em
considerar a passagem do meio, o momento crítico da transposição forçada
no navio negreiro entre África e América, como locus para a experiência
dos novos sujeitos escravizados e assujeitados pela máquina do terror colo­
nial como fonte de teorização crítica, enfatizando nesse caso a instabilidade
e modernidade do terror racial. (GILROY, 2001) De certa forma, podería­
mos considerar a “middle passage” [passagem do meio] como rito de pas­
sagem histórico, que tem efeitos pessoais óbvios sobre os escravizados reais,
históricos, sepultados nos arquivos, mas que tem também efeitos políticos e
ontológicos mais amplos e complexos observados justamente na transição
estrutural que converte yorubas, ibos, fons e outros sujeitos em escravos.
Tal como na estrutura clássica do rito de passagem (separação - liminari-
dade - integração), a transformação implica em morrer (simbolicamente)
e renascer com um novo status social. (TURNER, 1974) Ora, aqueles que
realizaram essa passagem histórica, metafísica, mística, concreta e pessoal,
morreram nas praias da África e nos porões dos tumbeiros. O ponto seria,
após tal descida aos infernos do mundo antinegro, teríamos sido capazes de
um efetivo renascimento?

68
CATIVEIRO

II
ARRASTÃO: DESCOLONIZANDO O GÊNERO E A SEXUALIDADE
NO PAGODE BAIANO

“Temos aqui toda uma gama, desde a negação geral até reconhecimento singular e especí­
fico. É precisamente esta história fragmentada e sangrenta que devemos esboçar ao nível
da antropologia cultural”.
Frantz Fanon, Racism and Culture, 1956ix.

ARRASTÃO

Estamos em março de 2020, nos momentos iniciais da pandemia


do novo coronavírus (COVID-19) que impôs repentinamente drásticas al­
terações no cotidiano de milhões de pessoas em função da quarentena. O
rapper paulistano Rincón da Sapiência lança com o grupo baiano de música
eletrônica/pagode ÀTTOOXXA o clipe “Arrastão”. Celebrando a alegria e
a sensualidade típicas da experiência popular afro-brasileira e em particular
baiana, os artistas releem o corpus heteróclito que informa a experiência,
estrutura de sentimento (WILLIAMS, 1979), periférica e baiana, ao tempo
em que emulam a criatividade rítmica do pagodão, que atualiza - eletroni­
camente - uma trajetória secular de inventividade estética e resistência cul­
tural. A sensualidade táctil e multi-textural das peles negras, em um cenário
da “favela” ou “quebrada”, apresenta uma cena de rebelião racial/sexualiza-
da em um cenário que metaforiza o registro fenomenológico da insurgência
contracultural afro-baiana em cenário controlado.
Ora, o tropo do arrastão, como sua versão dos anos 2010, o role-
zinho, teatraliza aspectos centrais da antinegritude no Brasil em sua forma
racialmente fobogênica, codificada como pânico moral pela imprensa e pela
^opinião pública burguesa. Como então veremos abaixo.

71
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Por exemplo, em 30 de novembro de 2013, um baile funk ao ar atração turística e uma zona residencial para a classe média local. Segundo
livre na praia da Enseada do Suá, zona costeira da cidade de Vitória, no 0 jornal O Globo, 650 policiais militares, com o apoio da polícia civil e da
estado do Espírito Santo, foi dispersado pela polícia militar com seus mé­ guarda municipal, participaram da mobilização. O primeiro dia da opera­
todos usuais. Alguns alegaram que as brigas ocorreram; outros alegaram ção coincidiu com vários distúrbios públicos, incluindo ataques na praia.
que havia “menores e tráfico de drogas” no local; enquanto outros disseram Segundo o jornal, grupos de jovens vagavam na areia, roubando e aterrori­
que se tratava apenas de jovens pobres da região se divertindo e ouvindo zando banhistas. Um vendedor de cerveja de rua disse ao repórter da Glo­
música funk, a trilha sonora demonizada das favelas brasileiras. Como é bo que ‘o sentimento era de pânico”. Pelo menos 15 pessoas foram presas,
possível ver em um vídeo de telefone celular distribuído na internet, fica entre elas oito menores de 18 anos. A polícia usou gás lacrimogêneo e cães
claro que um grupo de meninos fugiu da polícia, refugiando-se no vizinho para conter a suposta turbulência. (LEAL & MENASCE, 2014)
Shopping Vitória. A polícia foi chamada e os jovens foram detidos e obri­ Podemos recuar ainda para a década de 1990, quando as praias do
gados a se alinhar. Os policiais, pesadamente armados, forçaram os jovens Rio testemunharam um fenômeno que preparou o cenário para essa reação
a sentarem-se sem camisa no chão da praça de alimentação, com as mãos histérica da mídia aos rolezinhos. Refiro-me aos infames arrastões (multidões

na cabeça, e depois os escoltaram em fila para fora do prédio sob os aplau­ de supostos saqueadores). Tudo começou em 1992, quando Benedita da Silva,

sos da assistência.7 (PINHO, 2018; BELCHIOR; BELCHIOR, 2013, KREEP, a primeira mulher negra candidata a governador do Rio de Janeiro, estava à
frente nas pesquisas eleitorais. Em outro adorável domingo de verão, surgiram
2013A; 2013B; MIRANDA, 2013)
Alguns dias depois, em 9 de dezembro, segundo vários sites de relatos de arrastões que depois se multiplicaram. Toda uma rede de conexões
com profundos significados históricos, ressuscitou naquele momento, cristali­
mídia, cerca de 6.000 jovens e adolescentes - 10.000, segundo a rádio CBN
zando-se nos arrastões, que eram principalmente um fenômeno da mídia que
(Central Brasileira de Notícias) - participaram de uma reunião organiza­
manifestava o medo com relação a multidões urbanas racializadas e “perigo­
da através de redes sociais na área externa do Shopping Itaquera, em São
sas”, que tem aterrorizado a opinião pública branca ao longo da história do
Paulo, a megalópole cosmopolita que é a capital financeira e industrial do
pós-abolição Brasil. O arrastão é, portanto, um tropo central na produção do
país, conhecida por sua segregação socioespacial particularmente grave. O
pânico moral do Brasil urbano contemporâneo, ajudando a articular o corpo
evento em Itaquera foi classificado como uma “festa do funk” pelos sites
do jovem negro com o crime, a favela e, é claro, com a música funk (ou seu
de notícias e como um “arrastão”, uma “debandada” e uma “invasão” por
correlato baiano, o pagodão) porque os meninos atravessavam a praia, do mes­
jornais e TV. Em Itaquera, a polícia usou formas de violência ainda mais ex­
mo modo em que “invadiram” os shoppings, cantando funk. (AMAR, 2013;
tremas do que em Vitória, incluindo balas de borracha e gás lacrimogêneo.
CUNHA, 2001)
(KREEP, 2013A; 2013B; CNN, 2013)
Em um domingo ensolarado de 2014, quase um ano após o sur­ Nesse capítulo, o pagode baiano é o centro do interesse, e é, na
verdade, tomado como indicador de estruturas e experiências, objetivadas
gimento do rolezinho, a Polícia Militar do Rio de Janeiro iniciou sua cam­
como categorias racializadas e gendered que pululam na vida social públi­
panha “Operação Verão”, nas praias da Zona Sul da cidade. A região é uma
ca e no registro histórico da invenção a um só tempo estética e política. A
7 www.youtube.com/watch?v=WoLal Rw42b8 objetivação de tais categorias, que serão em seguida descritas e discutidas,

72 73
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

se realiza sob modalidades essencialmente performáticas, transfiguradas Com uma ressalva importante, nosso projeto se desenvolveu
como determinadas “cenas” em que a “objeção” ou “resistência do objeto” como um projeto sobre masculinidades racializadas, e eu próprio tenho
(MOTEN, 2003) pode ser descrita. Antecipando a discussão a qual voltarei trabalhando nesse campo nos últimos anos. O que quer dizer que um ponto

no último capítulo, a “cena” poderá ser definida no registro performático, de vista masculino seria aqui mais visibilizado. Essa posição de sujeito, ou

experiencial e produtivo, do ritual ou da coordenação dos repertórios, na ênfase subjetiva na masculinidade negra, não se confunde com uma preten­

instauração de um contexto para a ação simbólica, não necessariamente re- são de universalização ou de apagamento da voz ou experiência feminina,

presentacional. Ou para a definição de sujeitos e recursos para a resistência pelo contrário, visa justamente reconduzir o homem a sua particularidade
ou reelaboração da morte social, genocídio ou antinegritude estrutural, em e precariedade contingente, estruturada e local. A voz masculina, que even­
termos da localização em um cenário, como parece sustentar Raquel Souza: tualmente fala aqui, fala apenas por si e reconhece, eu reconheço, de modo
“Em Salvador, Bahia, a violência mortal da polícia inscreve a raça no espaço inegociável o protagonismo das mulheres negras em contar a sua própria
e, com isso, produz a periferia da cidade como um espaço no qual o direito história.
do estado de matar é concedido”. (SOUZA, 2017, p. 34)x A violência do
Estado inscreve a raça - e o gênero, eu diria - através da violência e cria O CENÁRIO COLONIAL DA MISCIGENAÇÃO
uma cena na qual sujeitos são sustentados por meio de práticas, apoiadas
em repertórios, como também sugere Christen Smith (2016). Ora, contra “A história da negritude é o testemunho do fato de que os obje­
a dimensão “site-especif” (KWON, 1997) da cena, como coordenação de
tos podem resistir”, nos diz Fred Moten. (2003, p. l)xi E, de certa forma,
repertórios vernáculos, o Estado, o mercado ou outras instâncias instituem
a negritude como formação crítica no âmbito da “razão negra” implica o
um “cenário” codificado e regulado pela inscrição, vale dizer fixação e sub­
equilíbrio tenso entre duas fontes para a fundamentação do sujeito negro na
missão à lógica representacional do significado e não da experiência.
modernidade. (MBEMBE, 2014) Imagens arquetípicas, subjetivas e figuras
Como dizia, então, consideraremos aqui o pagode baiano como
conceituais para uma estrutura de significações, delineada também como
uma cena da rebelião subjetivada de raça e gênero, que nos fornece con-
uma economia política colonial. Essas seriam o “escravo” ou, alternativa­
traface crítica e vernácula para a monumentalização, codificação, das tra­
mente, o “africano”. Cada um destes vetores de articulação política e subje­
dições africanas e afro-brasileiras em um cenário ideologizado, no qual a
tiva guardam suas próprias potencialidades e contradições. No Brasil e na
“miscigenação” como categoria política e tropo central da cultura nacional/
América Latina, a africanidade tem sido o elemento central dos discursos e
colonial pode ser interpelada. Nesse sentido, na primeira seção busco de­
práticas críticas e emancipatórias, tanto vernáculas como eruditas. Todavia,
finir as articulações de raça e gênero que produzem a miscigenação como
conceito operador do cenário colonial; e na segunda, a partir da experiência o escravo, a escravidão e a morte social em contextos anglófonos têm adqui­

de pesquisa e intervenção do “Projeto Brincadeira de Negão: Subjetividade rido crescente importância. (WILDERSON, 2018, p. l)

e Identidade de Jovens Homens Negros no Recôncavo da Bahia”, buscarei A perspectiva da africanidade, e mesmo a africana, tem obvia­
definir em termos etnográficos a arquitetura da cena da rebelião - de raça, mente enorme relevância e se incorpora em longa e fecunda tradição de
gênero e sexualidade - no pagode baiano. pensamento político, social e artístico. Recentemente, inclusive, a crítica

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africana de categorias ocidentais e sua aplicação em África tem encontrado do instância, como se, sobre uma infraestrutura física e inquestionada, se
grande repercussão, como o trabalho de Oyeronke Oyewumi testemunha, depositasse sentido, é produzir um “esquecimento” sobre como a matéria
ele próprio já criticado como essencialmente “nativista” ou “autenticista”. corporal, tornou-se um tropo, território produzido, disputado, conquistado
(BAKARE-YUSUF, 2003) e saqueado pela empresa colonial. Significa esquecer-se de como ele, em
Nesse capítulo, entretanto, assumo uma perspectiva que busca suas variações e posições características, é construído discursiva e politica­
explorar as potencialidades críticas do conceito de morte social, para inter­ mente (inclusive e talvez principalmente pelo Estado); como ele é, assim,
rogar as possibilidades e condicionantes para uma crítica de-colonial do gê­ histórico e contingente. (BUTLER, 2003) Uma contingencialidade definida
nero e da sexualidade. Buscando reconhecer assim uma perspectiva negra, pela supressão do significado projetada sobre o escravizado ou escravizada,
afro-brasileira ou diaspórica, definida pela formação histórica da negritu­ o corpo negro se localiza assim naquele “grau zero de conceituação social
de sob o peso das formas de poder patriarcais, coloniais e essencialmente que não escapa da ocultação sob o pincel do discurso, ou os reflexos da ico­
anti-negras, como uma etapa definida da crítica de-colonial. Acredito que nografia”. (SPILLERS, 1987, p. 67)X11 Quer dizer, no ambiente do colonialis­
para tanto é preciso considerar o pano de fundo definido pela formação mo escravocrata, no mundo antinegro, o corpo negro precisa lutar, resistir,
discursiva da miscigenação em sua conexão estrutural com a racialização objetar em uma cena definida, para ser reconhecido como identificado a
do gênero e da sexualidade. uma subjetividade coerente e legível.
Como sabemos bem, no Novo Mundo, o que antropologicamente Ora, no âmbito entretanto da formação discursiva da miscigena­
chamaríamos de “parentesco” afrodescendente tem sido objeto, há muito tempo, ção, o corpo negro é totemizado para encarnar a representação da nação
de vigilância, admoestação, patologização e mesmo criminalização por parte do como essencialmente mestiça. Tal essencialização, todavia, se arma como
Estado. Do ponto de vista antropológico, a teoria do parentesco, principalmente uma grande fantasmagoria, organizada a partir das mesmas categorias ra­
sobre o estrutural-funcionalismo britânico, é, grosso modo, uma teoria da práti­ ciais do século XIX, revelando a triste feição colonial da ideologia racial
ca, que revela como as sociedades se autoinstituem ao longo do tempo mantendo brasileira. As contradições da própria estrutura social racializada devem
relativa estabilidade através de posições estruturais que incorporam e neutrali­ assim recair sobre a constituição de uma subjetividade fraturada, violada e
zam a mudança social. (Radcliffe-Brown, 1989) Nas Américas, entretanto, e em desterrritorializada, que se articula à objetificação do negro no discurso da
termos históricos, tal controle remete às interdições sexuais, ao Jim Crow, à cri­ nação, solidária a sua negação como sujeito e cidadão, como pessoa e como
minalização do homem negro, à invisibilização da família negra, e à “pureza de “humano”.
sangre” [pureza de sangue]. (STOLKE, 2006; COHEN, 1999; WINTER, 2003) A A preparação do corpo para o trabalho, e para o desfrute de ou­
escravidão, por outro lado, é o fantasma na máquina do parentesco, como está trem é o processo político-econômico que faz do corpo o repositório sim­
em “O Parentesco e Sempre Tido como Homossexual?” (BUTLER, 2003) bólico da dominação, por outro lado. E, como coloca Anibal Quijano, “a
Ora, o corpo escravizado, tornado carne, “flesh”, é muito mais e corporeidade é o nível decisivo das relações de poder”. (QUIJANO, 2007,
muito menos que o suporte empírico para a reprodução estrutural da socie­ p. 124)XU10 controle do corpo, e a condenação dos subalternos à “geografia
dade. Tomar o corpo como natural, ou como apenas significado em segun­ da pele e da raça” (CARDOSO, 1986) encarnada em seus corpos, vencidos,

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expropriados, despidos e abusados, está no núcleo da configuração que a Na obra de Gilberto Freyre a figura do mulato brasileiro incor­
crítica teórica deveria atacar, o que nos permitiria pensar o corpo colonial pora, como é bem sabido, especial relevância. É o mulato, e sua presença
como eixo de uma luta política secular. na cena urbano-histórica, assim como na paisagem discursiva de toda uma
Se é bem verdade que as culturas sexuais do Brasil, e de outros constelação que o mesmo Freyre ajudou a tecer, que torna possível - sendo
países latino-americanos, reservam lugar para a ambiguidade e a fluidez nas ele mesmo agente e resultante - o processo de acomodação de classes an­
relações sociais e nas identidades sociais, tal ambiguidade tem sido inter­ tagônicas, brancos e negros, seguindo a linguagem de Freyre; além disso, o
pretada como certa permissividade das fronteiras sociais, que se desdobram mulato bacharel é personificação da transição modernizante da sociedade
no caráter inventivo e de jogo, ou num sentido que associa a ambiguidade brasileira, que emergia do colonialismo “oriental” em direção à moderniza­
sexual à ambiguidade racial ou étnica mais ampla, sem o questionamento ção urbana; é por fim o mulato o tipo acabado do novo elemento “técnico”,
das fronteiras, elas próprias. fundamental para a transfiguração da sociedade brasileira, abandonando as
A construção da nação, como construção do sujeito negro gen- rígidas estruturas estamentais em benefício de um padrão societário supos­
dered, está, nesse sentido, invocada também nas artimanhas do discurso tamente aberto, ou de classe em oposição à casta. (FREYRE, 1995, p. 2000)
miscigenante, como aponta Sexton, o que para o caso brasileiro é altamente Sem deixar de ressaltar seus dotes físicos, ou o “prestígio puro
relevante, haja vista a centralidade da narrativa mestiça como paradigma dessa beleza”, Freyre voyeuriza seu corpo amorenado, mestiço e nacional,
interpretativo. (Sexton, 2008; Pinho, 2004) Sexton insiste, com razão, que a adornado com ideias francesas ou inglesas, e com a galante disposição para
miscigenação jamais foi impedimento para pleno funcionamento da supre­ usar o charme, ou a adulação, para galgar degrau por degrau o empinado
macia branca, nos Estados Unidos, no Caribe e em outras partes8. Assumir cume da ascensão social. Sendo assim, o mulato é a própria afirmação ou
o elogio da miscigenação e a ênfase no caráter sincrético, mestiço ou híbri­ testemunho das possibilidades de mobilidade social, de integração entre
do, quer seja para a caraterização fenomenológica ou ontológica de sujeitos mundos e de construção de um corpo nacional, de pele escura e máscara
coloniais, implica obviamente em reconhecer, no plano das demonstrações branca. O corpo nacional do mulato, todavia parece ainda encarnar muito
lógicas, a necessidade de um instante original de pureza, ou de um estoque mais do que mera acomodação de antagonismos, ou síntese erotizada de

não-miscigenado de raças puras para que a miscigenação faça sentido. Na uma contradição racial. A instalação dessa corporeidade significativa, no

medida em que, como também aponta Sexton, o fundamento último do registro da história e da cultura, é o estabelecimento do território irreconci-

elogio da mestiçagem é a recusa da negritude e o empenho determinado por liado para uma subjetividade habituada e definida pela crise.

sua supressão e silenciamento. (PINHO, 2004; SEXTON, 2008) Ou, como Ou outro nome que seria possível atribuir a essa inconclusão ou

já disse Mariza Corrêa, a negação da “negra preta”. (CORRÊA, 1996) indecidibilidade entre sistemas discursivos e políticos diversos e autocon-
traditórios, que na figura do mulato ganham personificação. É em torno
dessa crise, ou tensão constitutiva, que concorre de modo tortuoso para a
8 A propósito, e apesar da ênfase ideológica na mestiçagem, ao menos metade da população brasileira
formação da subjetividade negra, preta ou parda, no Brasil moderno que
se declara “branca” ao IBGE. Mais precisamente 47>7% segundo o censo demográfico de 2010 (http://
censo20l0.ibge.gov.br/sobre-censo). enfatizaria mais alguns aspectos.

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A articulação mestiça, como a produção de uma borda exterior social, ou seja, reprodutora. Mas o sexo, como uma relação social, é ele mes­
para a pureza racial, existe como um mito que exige a impureza, como fan­ mo produzido e ponto de articulação para a produção de corpos separados
tasia, ou como a fixação em burlar as mesmas fronteiras que vão instalar e e distintos sexualmente. (RUBIN, 1975) Ainda assim, ou por isso mesmo, o
definir uma identidade coesa para a branquidade. Ora, essa interação (mis- sistema sexual não é monolítico, mas está permeado por batalhas e conflitos
cigenante) está posta em movimento pela presunção heteronormativa que incessantes sobre valores, métodos, arranjos, privilégios e legitimidades. De
se acomoda à perfeição ao discurso da produção da diferença racial, e como tal modo que, em muitos casos, a batalha sobre regulação da vida sexual é

fundamento dessa lógica residual que poria a negritude como a escória - uma batalha para separar copos e sexualidades “aceitáveis”, daqueles ou­

resto - do processo de (des)estabilização de identidades e subjetividades tros corpos-sexos inaceitáveis ou inassimiláveis. Estes estão constantemen­

estáveis: o fruto mestiço como a fronteira viva da branquidade purificada. te conduzidos a formas guetificados, marginalizadas ou periferalizadas de

(MOUTINHO, 2004) vida social. (Idem, 1998)

A miscigenação como o ato secular heteropratriarcal funda (ou A dissolução dos binarismos sexuais, e a denúncia das bases dis­

funde), nesse sentido, a integridade da raça e a identidade da nação. Ora, cursivas e políticas para a representação social do dimorfismo sexual, deve­

essa mobilização aparece como uma “instalação estruturada no nexo entre ria ser considerada, dessa forma, não apenas como um capricho intelectual

sexualidade e violência” (SEXTON, 2008, p. 232), como as narrativas his­ pós-moderno, mas um instrumento crítico de ataque a estruturas opres­
sivas, de raça, classe ou nacionais, que não podem prescindir dessa oposi­
tórico-míticas da miscigenação colonial eufemizam. (CARNEIRO, 2011)
ção para construir suas práticas e discursos. As bases de tal transformação,
Como, por exemplo, na narrativa mítica de fundação da “Bahia” através da
ou sua inspiração, deveriam ser buscadas em modos práticos e vernácu­
união entre a indígena Catarina Paraguaçu e o náufrago português Diogo
los de vida social e sexualidade, notadamente naquelas situadas nas fron­
Alvares de Souza, o Caramuru. (POLITO, 2005; SANTOS, 2013)
teiras, periferias e “zonas de contato”, guetos sexuais nos centros urbanos

. Esposo (a bela diz), teu nome ignoro; das grandes cidades, experiências marginais e inventivas de reinvenção do
Mas não teu coração, que no meu peito corpo em condições de pobreza, segregação e violação de direitos. Notada­
Desde o momento em que te vi, que o adoro:
Não sei se era amor já, se era respeito; mente levando em conta como o processo de colonização/racialização foi,
Mas sei do que então vi, do que hoje exploro, tem sido, um projeto de gendering, introduzindo categorias de gênero, no
Que de dous corações um só foi feito.
espaço da morte colonial, como um expediente para dominação, operacio-
■ Quero o batismo teu, quero tua igreja,
Meu povo seja o teu, teu Deus meu seja. nalizada pela violência sexual contínua e extensa. (TERREFE, 2020) O que
(DURÃO, 2005, p. 80)
produz minha perplexidade ao perceber o afã com que jovens vozes negras,
usualmente masculinas, defendem fidelidade à complementariedade dico­
Não é, por outro lado, à toa que o pensamento popular está imerso tômica entre homens e mulheres negras como fundação política civiliza-
na crença de que a sexualidade é perigosa, e deve ser, se não suprimida, cional para a “família preta”, esquecendo, por conveniência patriarcal, que
ao menos controlada e mantida dentro dos estreitos limites de sua função a família nuclear, monogâmica, patriarcal é uma invenção ocidental e um

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instrumento para subjugação das mulheres, dos “pervertidos” e dos sujeitos Ora, a diferenciação dos corpos, e sua hierarquização colonial,

racializados e hiper-sexualizados. demanda a sua regulação, justamente por meio de dispositivos de raciali-
A consideração de questões como essa permitiu à cientista política zação e sexualização. Como um modo para proceder-se a distinção entre
Cathy Cohen fazer uma crítica “Black” aos estudos queer, cujo foco prin­ selvagens (negros, índios e mestiços) e civilizados, “metáfora constitutiva
cipal é a reprodução da dicotomia essencializada entre hetero e homosse­ do sistema colonial latino-americano”. (FIGARI, 2020, p. l)
xuais. (COHEN, 2004) Como diz Cohen, o desafio à heteronormatividade Nesse registro, o colonizador, retratado como branco e heterosse­
pressuporia uma abertura em direção à consideração de como variáveis xual, como o Caramuru, ocupou o lugar discursivo do macho penetrador
intersecionais produzem queer subjects de modos diferenciados. E deveria e civilizador, ativo sexualmente e produtor de história e cultura, reservan­
permitir, por outro lado, graças à abordagem interseccional, salientar como do para negros, índios, mulheres e “pervertidos” sexuais o lugar passivo de
outros sujeitos sociais são perseguidos e aviltados em função de comporta­ objeto da dominação e do disciplinamento, o lugar abjeto da sexualidade
mentos sexuais conjugados à raça e à classe, ou como as considerações de indomável e perigosa.

opressão, injustiça e violência conectam a experiências subjetivas de deter­ Esse processo de entronização do macho branco também é, na
minados atores sociais sem necessariamente pressupor sujeitos ou identi­ verdade, fundamentalmente um processo de legitimação da expropriação
dades estáveis, definidas como portadoras de sexualidades essencializadas econômica, dos bens, dos corpos, dos territórios e dos frutos do trabalho.

e autônomas. Assim, a escravidão, “fantasma na máquina”, preserva o seu caráter estru­


Para encaminhar as questões que a teoria queer coloca para a tural a um só tempo para as sexualidades e para as raças. (FIGARI, 2006)
América Latina, eu consideraria o contexto brasileiro, e mesmo latino-ame­ Modernamente, Estados e regimes autoritários, como ensaia ser o
ricano, e as formas locais de reprodução da desigualdade. Estas têm a marca governo brasileiro em 2020, têm dado muita atenção à sexualidade, consi­
fundamental da colonialidade de poder, que constitui marcos, estruturas derada, ao que parece, território a ser conquistado, mapeado e controlado
fundamentais, para definição do corpo racializado e para o controle, vigi­ pelos poderes masculinistas de Estados militarizados. (AMAR, 2013) En­
lância e disciplinamento das sexualidades. (QUIJANO, 2007) Como Carlos tretanto, no espaço das lutas coloniais que produziram corpos e sujeitos
Figari (2007) aponta, “os discursos e silêncios” sobre a sexualidade foram, racializados também foram produzidas formas de resistência contra-hege-
e são, fonte de injustiça, violência e privação de direitos na América La­ mônica, populares, vernáculas, dispersas, híbridas e irônicas, como o funk
tina. Ocupam mesmo um lugar de destaque em estruturas de dominação e o pagode. Modelos alternativos de sexualidade e corpo, masculinidade e
e estigmatização dos pobres, vistos, por exemplo, em alguns casos, como feminilidade, de sexualidade e identidades sexuais, que seriam a base a par­
promíscuos não-modernos, definindo-se seus modos de vida, no mais das tir da qual uma alteridade epistêmica moderna de corpos e povos coloniais
vezes justamente gerados pelos modos específicos de desenvolvimento da poderia ser identificada.
modernidade na região, como atrasados, hierárquicos, obscurantistas, pre­ Estas epistemologias e corporalidades alternativas ficaram de fora
sas passivas do passado e da tradição. dos pactos nacionais, simbólicos e políticos, sendo constituídas apenas
como resíduos, curiosidades, testemunho do passado e do atraso, ou sen­

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do incorporadas, canibalizadas, pelas elites criollas, ou quase-brancas, no sentados como fora do “pacto nacional”, párias urbanos, racializados e se-
esforço modernista de fagocitar as formas populares de expressão cultural. xualizados, recebem do Estado o tratamento que se julga adequado. A mo­
Antropofagizada, a cultura negra ou indígena torna-se assim, totem para dernização das sociedades latino-americanas caminhou, desse modo, lado a
exorcizar a presença real, física, não da cultura negra ou indígena, mas dos lado, com a reprodução de formas coloniais de dominação. Marcadas, ade­
próprios negros e indígenas. (LATIN AMERICAN SUBALTERN STUDIES mais, pela desigualdade e pelo autoritarismo “moderno”. A criminalização
GROUP, 1995; NUNES, 1994) dos pobres, notadamente dos homens pobres racializados, faz parte dessa
Esse aspecto colonial, ou racializante, das estruturas de domina­ economia política do corpo, para qual o “arrastão” e o “rolezinho”, o funk e
ção latino-americanas tem sido descrito como determinada colonialidade o pagode produzem a cena.
de poder. Os efeitos estruturais e ideológicos do colonialismo não cessaram As ações concretas de violência letal são parte, talvez a mais dra­
com as emancipações nacionais do século XIX, inclusive porque estas sig­ mática dessa disjunção, manifestada como o complexo geral do genocídio
nificaram outra subalternização, mediada pelo colonialismo interno, mas antinegro, originalmente apontado em sua multidimensionalidade por Ab-
foram transmutadas em outras formas, análogas e incorporadas na mística dias do Nascimento, e recentemente rediscutido por Ana Flauzina, João
das raças, nas hierarquias sexuais, no patriarcado colonial e em suas diver­ Costa Vargas, Jayme Amparo Alves e outros. (FLAUZINA, 2008, ALVES,
sas formas mutantes. (MALDONADO-TORRES, 2007; QUIJANO, 2007) 2013; NASCIMENTO, 1978; VARGAS, 2010) Ora, o genocídio antinegro
Estas formas também são formas de subjetivação. E como colo­ e a ação letal do estado colonial racializado no Brasil pode ser interpretado
ca bell hooks (2004), por exemplo, o homem negro, em sua luta por reco­ como uma das transformações ou metamorfoses da morte social.
nhecimento tomaria o modelo patriarcal ocidental, tal como incrustrado Em “Escravidão e Morte Social”, Orlando Patterson sustenta:
na escravidão capitalista moderna, como modelo de poder - o que hooks “Escravização, escravidão e manumissão não são meros eventos relaciona­
chama de “plantation patriarchy” [patriarcado da plantation] - para me­ dos; são um único e mesmo processo em diferentes fases”. (PATTERSON,
dir sua própria humanidade. (HOOKS, 2004) Ou ainda como define Maria 1982, p. 412) Dessa forma, a condição escrava definida pela alienação natal,
Lugones: “O colonizador branco construiu uma ponderosa força interior a indignidade essencial, em uma palavra, pela morte social, não se extingue
quando o homem colonizado foi cooptado para papéis patriarcais”. (LU­ com a manumissão ou abolição, mas se prolonga no tempo, se enrijece na
GONES, 2007, p. 200)xiv história, se reflete nas representações. (SEXTON, 2011)
Teresa Caldeira chama de “disjuntiva” a característica contra­ No mundo colonial, ou marcado pela colonialidade de poder, a
ditória dos processos de democratização brasileiros e latino-americanos. escravidão não acabou de fato, e permanece como uma sombra a definir
(CALDEIRA, 2000; 2006) Observa-se, nesse sentido, a militarização das os contornos para as possibilidades de subjetivação, de vida social, de par­
sociedades e criminalização dos pobres, herança dos regimes autoritários, ticipação na cultura ou na cidadania. Tal como podemos discutir para a
que, na forma de políticas repressivas e sob pretexto de combate ao tráfico formação racializada das subjetividades masculinas, designadas por essa
de drogas ou da criminalidade, promovem a violência e a criminalização de relação especular e perversa com o Homem Branco, o que define a centra-
masculinidades subalternas. (AMAR, 2003) Assim, aqueles sujeitos repre­ lidade política da sexualidade para a invenção de um poder (pós)colonial

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pornotrópico, assim como para a invenção da mesma negritude e de suas dominação e erotização. Na estrutura familiar do patriarcado colonial, a

contradições. (GORDON, 1999; MCCLINTOCK, 2010) sujeição do negro e da negra ao trabalho guardou, como não é difícil imagi­
A condição de morte social, que associa-se ao lugar estrutural da nar, elementos de uma erotização despótica realizada sobre o corpo do ou­
negritude como negação não só da branquidade, como da humanidade, tro. (AIDOO, 2018) Como até mesmo ele reconheceria: “Não há escravidão
torna os sujeitos negros matáveis, os corpos negros devassáveis, a cultura sem depravação sexual”. (FREYRE, 1995, p. 316)
negra expropriada como a emanação fantasmática de um cadáver bailarino, A própria educação sexual dos jovens senhores galgava a escada
que entretém, como no plantation (ou na Bahia moderna), os seus senho­ macia dos corpos negros, primeiro submetendo sexualmente os “mole­
res. (SEXTON, 2011; HARTMAN, 1997) . ques”, negrinhos que eram os acompanhantes de brincadeira dos “sinho-
O trabalho político de descolonização passaria assim necessaria­ zinhos”, depois as mucamas e mulatas bonitas disponíveis como escravas.
mente pela descolonização corporal, como uma emancipação política, o que
significa reconhecer os mecanismos históricos de produção de desigual­
O furor feemeiro do português se terá exercido sobre as ví­
dade, incorporados em cenários, trajetórias, identidades e performances timas nem sempre confraternizantes no gozo; ainda que se
saiba casos de pura confraternização do sadismo do con­
corporais. E nos modos específicos como esses interagem dinamicamente quistador branco com o masoquismo da mulher indígena
e de modo estruturado com a constituição dos corpos, sua representação ou negra. Isso quanto ao sadismo de homem para mulher
- não raro precedido de senhor para o de moleque. Através
e circulação. Uma vez que a economia política do corpo colonial parece da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos
baseada em uma economia política (libidinal) do abuso sexual. “Uma vez e expressivamente chamado de leva-pancadas, iniciou-se
muitas vezes o senhor branco no amor físico. (FREYRE,
derrotados na guerra, eles são vistos como servos ou escravos perpétuos, e 1995, p. 50)

seus corpos se tornam parte de uma economia de abuso sexual, exploração


e controle”. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 139)xv
Como Robert Young desenvolve, ademais, a produção de sujeitos
E voltamos a Gilberto Freyre, o fundador autorizado da principal
sexuados e racializados sob regime colonial não pode ser dissociada, dessa
matriz discursiva nessa constelação, e que apresenta a estrutura elemen­
forma, dos processos de produção material e econômica do mundo colonial
tar, conectiva, da racialização colonial do gênero e da sexualidade, na exata
e de suas hierarquias. Assim, a escravidão e a plantation teriam sido proces­
medida de nossa coisificação como escravos. A marca da colonialidade de
sados como cenário e laboratório para a racialização da sexualidade.
poder, definidora dos sistemas de representação e classificação, regimes de
verdade raciais/sexuais, impôs dessa forma, sob a pressão da violência e da
É óbvio que formas de intercâmbio sexual promovidas pelo
despersonalização, a vigência do sadismo escravista que o mesmo Freyre colonialismo eram elas próprias, tanto reflexo, como conse­
quência, dos modos de intercâmbio econômico constituti­
descreve. vos da base das relações coloniais” (YOUNG, 2002, p. 18l)
Tal como Gayle Rubin (1993), ao examinar a psicanálise e o es-
truturalismo, vê nessas teorias a diagnose útil, mas a interpretação política
enviesada, também reconheço em Freyre a diagnose inspirada que articula

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Como esclarece, por exemplo, Luiz Mott, talvez inadvertidamen­ A CENA DA REBELIÃO NO PAGODE BAIANO
te. O antropólogo é autor de relevante e originalíssima obra sobre sexuali­
dade colonial, que contribuiu para a emergência do horizonte das morali­ Uma noite quente e úmida, estou diante de um dos bares localiza­

dades e poderes do passado: “Há entre o gentio de Angola muita sodomia, dos na movimentada e vibrante orla do Porto, na cidade de Cachoeira. Pou­

e tendo uns com os outros suas imundices e sujidades, vestindo como mu­ cos metros adiante, encontra-se a Praça 25 de Junho, centro polifônico de

lheres. Eles chamam pelo nome da terra quimbanda, os quais no distrito ou uma re-territorialização “fractal” da cultura negra da diáspora, entremeada

terra onde os há tem comunicação uns com os outros”, diz Mott, citando da memória colonial e das discursividades fugitivas9 da experiência negra,
um tal Capitão Cardonega, que escreveu em 1681 essas linhas de escândalo. transatlântica, de transvaloração de todos os valores. (GILROY, 2001)
Ora, o trabalho desse autor também nos fez conhecer Xica Mani- Do interior da construção de alvenaria que abriga um pátio in­
congo, escrava - que hoje chamaríamos de transgênero - feiticeira acusada terno, o som ensurdecedor de um paredão de pagode - na época, eu não
pela inquisição de sodomia e de vestir-se de mulher. A voz autorizada de tinha bem consciência do que seria isso - me atinge como uma maciça onda
Mott por meio da qual entreouvimos a feiticeira quimbanda, reinscreve a sonora de vibração e sensualidade. Na porta de entrada rapazes negros de
incomensurável alteridade corporal, sexual, política (consubstanciada sob boné e batidão fazem uma espécie de barreira, alguns prendem o boné, mui­
domínio do terror escravista) no registro freyreano da “síntese de antago­ to grande, com presilhas coloridas de menina. Dançando e “trocando ideia”
nismos”. Ao descrever, em outro momento, o caso de Pero Garcia, senhor o grupo oferece uma antessala, prévia para o ambiente interior. Quando me
de um engenho em Peroaçu, 42 anos, casado, Mott nos revela como este
decido a entrar, no estreito corredor que me levaria até o salão, um estam­
fora levado à inquisição em 1618, acusado de cometer o pecado da sodomia
pido eletriza o ambiente, fumaça e cheiro de pólvora preenchem todos os
com dois mulatos forros, “moradores de sua casa” e com dois escravos, um
sentidos. Um tiro foi disparado. Correria e gritos em meio à fumaça e ao
dos quais, à época, teria entre 6 ou 7 anos de idade. Diante das fontes, Mott
estrondo aterrador da música percussiva: “Você quer? Tome! Quer? Tome!
pondera: “Nesse caso é impossível saber se houve ou não violência física ou
Quer? Tome! Quer?”.
constrangimento moral por parte do senhor em relação a seus subalternos”.
Somente alguns anos depois passei a compreender melhor a estrutura
(MOTT, 1988, p. 30)
performativa presente na cena que precariamente testemunhei. Alguns paredões
A sexualidade, o desejo e a erotização dos corpos racializados
depois, e em função do engajamento mais constante no Projeto Brincadeira de Ne-
emerge assim, e a despeito de interpretações mestiças, como uma das prin­
cipais linguagens do poder (colonial) e da dominação (racial) no Brasil, jus­ 9 Fugitive no sentido como desenvolvem Harney & Moten: “We’re in trance thafs under and around
tamente porque é na articulação de prazer e poder que a própria historici­ us. We move through it and it moves with us, out beyond the settlements, out beyond the redevelop-
ment, where black night is falling where we hate to be alone, back inside to sleep till morning, drink
dade racializada se encarna nos corpos constituindo-os como essa instância till morning, plan till morning, as the common embrace, right inside, and around, the surround”.
[Estamos em um transe que está sob e ao nosso redor. Nós nos movemos através dele e ele se move
ou dobra articulada da representação/produção da conexão self/corpo/so- conosco, para além dos assentamentos, além da reconstrução, onde a noite negra está caindo, onde
ciedade, definindo sujeitos despossuídos ou dominantes, nos jogos eróticos odiamos ficar sozinhos, de volta para dormir até de manhã, beber até de manhã, planejar até de ma­
nhã, como o comum abraçar, diretamente dentro e ao redor, o perímetro). (HARNEY & MOTEN,
que teatralizam o gozo e a violação, como veremos a seguir. 2013, p. 19)

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

gão, foi se tornando mais bem delineado o contorno, agudo de sentido e invenção, Em Cachoeira, na orla da Feira do Porto, como em diversos ou­
presente nas reuniões coletivas de jovens pobres - quase todos negros - em torno tros contextos, a música do pagode baiano ou pagodão, mobilizada a partir
do equipamento eletrônico, montado em uma cavalete de madeira, atado a um do que aprendi recentemente, se chama de “som automotivo”, ou dos “pa­
carro, como um reboque, que pode ser deslocado e arrastado facilmente. redões”, é a ocasião para a celebração ritualizada de determinados valores e
O Paredão de Som. Ou de pagode, mais propriamente. A invenção, cul­ estruturas formais, agenciadas nesse contexto como a performação rituali­
turalmente motivada e sociologicamente situada, é antiga, dos anos 1970, e remete zada de contradições sócio-históricas e estruturais. Tais valores e estruturas
ao sound system ancestral, que do Caribe até Nova Iorque transformou a música formais não têm nada a ver com o repertório de valores burgueses associa­
ocidental com a invenção do hip-hop e a reinvenção do uso público do corpo e dos à respeitabilidade e ao decoro. (GORDON, 1997) Pelo contrário, há o
da rua. No âmbito das políticas de representação da diáspora africana, o que re­ ambiente de devassidão e hipersexualização, a evolução coreográfica de su­
presentam os sound system, os paredões ou a “aparelhagem” do Norte-Nordeste jeitos inassimiláveis e “abjetos”, como travestis, e outros inconformistas de
do Brasil está implicado na assunção autoconsciente e reflexiva das contradições gênero e dissidentes sexuais; além de rapazes da periferia, portando a hexis
sócio-históricas, e do corpo negro racializado na moderna sociedade de classes corporal “vida loka”, boné, tatuagem, batidão. (PINHO & ROCHA, 2011);
global. e mulheres e garotas, perigosas ou “bandidas” que descendo até o chão e
“esfregando a tcheca no asfalto” escarnecem dos bons costumes e da mora­
2 - Paredão de em Cachoeira
lidade. Tais sujeitos “indignos” ou “abjetos” são usualmente identificados
de maneira agressiva com o pagodão, locus dessa “abjeção”, sujo, perigoso
e território da “baixaria” anticivilizacional.10 (PINHO, 2014)
Tanto do ponto de visto histórico quanto do ponto de vista estru­
tural, a indignidade fundamental, vale dizer desumanidade, dos sujeitos ra-
cializados passa ou depende de sua sexualização. A raça como sexualidade
é o que motiva tanto as denúncias que se repetem contra a impropriedade
dos negros e seus batuques quanto os esforços daqueles que pretenderem
convencer ao mundo branco que poderíamos ser tão respeitáveis como
qualquer raça, as mulheres honestas, os homens morigerados. (GORDON,
1997) Entretanto, no pagode, como em outros contextos, entendido como a
performance coletiva de uma dissidência subjetiva, observamos o alucinan­

10 Não é inútil lembrar que os aspectos rebeldes e fugitivos do pagode portam muitas contradições
e que, eventualmente, para as comunidades onde estes se realizam as vezes estas contradições são
difíceis de suportar. Notadamente a degradação do espaço e das condições de convivência, e a opor­
tunidade que os paredões as vezes dão, para a erupção da violência. É claro, por outro lado, que tais
contradições ou efeitos colaterais, são parte integral da cena de rebelião perpetrada.

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te cortejo de sujeitos obscuros que se movem em meio a cenários deteriora­ mos “nós” e os “outros”. Nesse contexto, a resposta, do ponto de vista das
dos: a “puta”, o “ladrão”, o “viado”. comunidades negras, tem sido muitas vezes de hiper-moralização e demo-
A sexualização da raça e a racialização do sexo dependem da ope­ nização de mulheres de comportamento sexual autônomo ou de homens
ração dessas fronteiras morais que são assim basicamente coloniais, definin­ com práticas homoeróticas. E, nesse sentido, o ponto que quero enfatizar é

do epistemologias corporais que produzem, tentam produzir, a docilidade o significado político da insubordinação sexual negra, como fonte de deses-

dos corpos, um novo habitus “assimilado”, mas em permanente contradi­ tabilização para políticas de integração, que elege a moralidade burguesa, o
patriarcado e a norma heterossexual como paradigmas.
ção com o fato fundamental, epidérmico, fobogênico, da negritude como
A indissociabilidade entre a negritude e a forma-mercadoria - ab-
Harney e Motem insistem (2013).
solute nothigness and the world of things [nada absoluto e o mundo das
Lewis Gordon insiste na articulação de gênero para a “preca­
coisas] - é histórica e estruturalmente estabelecida como o antagonismo
riedade ontológica” - nothingness - que definiria a negritude no mundo
racial geral, o que define uma condição estrutural para fungibilidade a que
antinegro ou colonial. Como outros tantos têm insistido, a racialização da
se referem Saxton e Hartman, como elemento definido da morte em vida,
sexualidade e a sexualização da raça são dispositivos fundamentais de uma
ontologia do escravo que persiste como modelo paradigmático de forma­
biopolítica pós-colonial. Desse ponto de vista, a negritude como condição
ção dos sujeitos racializados. Desse ponto de vista, a experiência do porão
estrutural que se conforma como uma estrutura de disposições subjetivas,
(hold) para esse corpus paradigmático é uma experiência de vertigem e fan­
essencialmente violentadas, é fundamentalmente uma ausência, ou vazio,
tasia - alucinação - em meio ao terror da opressão e a luta incessante contra
definida por uma precariedade ontológica baseada em uma fenomenologia
o próprio corpo. Como diz Frank Wilderson: “A subjetividade negra é uma
do racismo vivido no corpo, como “a experiência vivida do homem negro”,
encruzilhada onde as vertigens se encontram, a interseção do performativo
tal qual um esvaziamento, abandono de si mesmo, e a busca de reconheci­
e da violência estrutural”. (WILDERSON, 2011, p. l)xvii Ou como aparece
mento por meio do olhar branco, o único que poderia, malogradamente,
de modo distinto em Manthia Diawara (1996), para quem o imaginário ne­
oferecer ao Homem negro a certeza de que ele de fato “é”. (GORDON, 1999;
gro está longe de ser um espaço fixo, muito menos um mero repositório de
FANON, 1993)
estereótipos coloniais, ainda que não possa evitar dialogar com estes. Mas
Historicamente, as comunidades negras têm buscado escapar a
é, inversamente, um espaço em transformação e autoprodução em diálogo
esse dilema fugindo em direção às chamadas políticas da respeitabilidade.
com formas, estereótipos e/ou tradições não reconhecidas, que está impli­
Assumindo, para nossa própria desgraça, os mesmos valores eurocêntricos, cado em reinventá-lo continuamente. Como a sexualidade e a licenciosi­
burgueses, patriarcais que nos oprimem. Em ambos os lados da fronteira dade presentes na cultura negra, ou no imaginário da diáspora, podem ser
das preferências sexuais encontramos a mesma ansiedade em corresponder, canal de expressão, ou ponto de partida para desconstruções críticas e rein-
por negação, as expectativas de incorporação da cultura dominante, nota- venções é uma matéria aberta, definida pela “guerra de posições” em torno
damente do ponto de vista moral. E como Mara Viveros-Vigoya (2015), e da legitimidade sobre as representações do corpo negro, sua “respeitabili­
outros têm demonstrado, nas sociedades pós-coloniais da América Latina, dade” ou possibilidade de integração, assim como pela supressão de com­
a moralidade como uma fronteira, efetivamente colonial, define quem so- portamentos sexualmente inadequados, incompatíveis com a “civilização”.

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Edmund Gordon lança mão do conceito de “repertórios cultu­ Ao menos três significados para “dispositivo” estariam disponí­
rais”, para iluminar as políticas de identidade pragmáticas que organizam veis, e se comunicam nesse esforço de re-conceituação que faço aqui. O
subjetividades masculinas na comunidade afro-americana. (GORDON, primeiro significado aparece associado aos debates teóricos sobre a arte
1997) Tal “repertório” incluiria a “respeitabilidade”, com raízes em releitu- contemporânea, como em Carvalho (2008). Nesse caso, o dispositivo é um
ras patriarcais de tradições africanas e influenciadas por ideais cristãos de “ativador da experiência”, reconfigurando a tradicional posição contem­
decência e responsabilidade, e que visaria em larga medida, como aponta plativa que marcava a arte ocidental em benefício de um re-centramento
Cathy Cohen (2004), integração social e minimização dos efeitos do racis­ do corpo e da experiência, utilizando-se da tecnologia como esse intensi-
mo por meio da morigeração do comportamento e do controle da sexuali­ ficador de percepções não-lineares, ou “molares”, da experiência estética
dade e do corpo da mulher. e de si dos sujeitos (pós)modernos. Nesse caso, 0 “corpo torna-se o lugar
Ora, o paredão de pagode, com sua estrutura, móvel, portátil, privilegiado dessas experimentações”. (CARVALHO, 2008, p. 43) Há tam­
opera como um dispositivo site-specific (1997) que produz a sua própria bém o conhecido sentido, ou sentidos, encontrados em Michel Foucault,
ambiência ou cena que nega a respeitabilidade. Convencionalmente conec­ e resumidos por Agambem. Aqui o dispositivo é: l) a rede que unifica um
tado ao chamado “som-automotivo”, a estrutura tecnológica de produção conjunto heterogêneo de discursos, práticas, instituições; 2) uma rede que
do som em grande potência, destina-se a permitir amplificar e espetaculari- tem função estratégica em uma relação de poder; 3) uma rede que permite,
zar a experiência - ou essência - da “baixaria” do pagode em condições de por fim, a validação dos enunciados. Podemos ver como na ideia de dispo­
mobilidade. (CHAGAS, 2015) Na praia, nos finais de semana, em postos de sitivo da sexualidade esses elementos estão perfeitamente exemplificados:
gasolina, ou como eu testemunhei tantas vezes na orla do bairro da Ribeira, um conjunto de elementos heterogêneos, que se unificam na incitação aos
em Salvador, onde centenas de jovens se reuniam para dançar pagode, be­ discursos, como uma estratégia de poder que produz o sujeito moderno.
ber e se divertir ao som dos carros que estacionam em fila dupla formando (AGAMBEM, 2005; FOUCAULT, 2003) Ora, o mesmo Agambem acres­
um corredor, completamente repleto de adolescentes negros das redonde­ centa o terceiro sentido para dispositivo, que, segundo ele, reúne tudo aqui­
zas. A festa, que eu descreveria como “fugitiva”, se interrompe quando o lo que seria capaz de “capturar, orientar, modelar, controlar, assegurar os
carro da polícia atravessa o corredor e todos se imobilizam, como em um gestos, as condutas, as opiniões, os discursos”. (AGAMBEM, 2005, p. 14)
flash mob espontâneo, até que a polícia desaparece e tudo recomeça. (HAR- Nesse sentido, operando como uma “máquina que produz subjetivações”.
NEY & MOTEN, 2013; PINHO, 2014) Esse evento performático na Ribeira Considerando-se que no capitalismo moderno vivemos em um
repete-se em formatos análogos em diversos outros bairros periféricos de ambiente cada vez mais saturado de dispositivos, em um amplo processo de
Salvador. É essa experiência que conecta o uso transgressivo do espaço público, subjetivações e dessubjetivação, um ambiente que Agambem compara a um
através da articulação da sexualidade popular, encenada como a “baixaria” a “corpo inerte” atravessado por gigantescos processos de dessubjetivação.
que se refere Ledson Chagas (2015), que forma como um conjunto de práticas, Os três sentidos não parecem necessariamente excludentes, mas diferente­
discursos, símbolos e implementos tecnológicos um verdadeiro dispositivo. mente posicionados em uma rede de perspectivas que incluem fundamen­
talmente a relação entre o “sujeito” e o “poder” equalizados por meio do

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4 corpo”, objeto de uma “intensificação”, plataforma de uma subjetivação mia política. (HARTMAN, 1997) Então, é a sexualidade, como “baixaria”,
ou artifício do dispositivo da sexualidade. Como intensificador de conexões instrumento e desiderato da indignidade essencial desse objeto que ousa
entre o sujeito, a tecnologia e sua própria história - reunido como o “reper­ representar a si próprio, e deve ser calado. O sequestro da voz africana, qua
tório” de que nos fala Diana Taylor (2003) - de fragmentações e experiên­ negra, se deu e se repete em sua forma estrutural de despossessão e abuso,
cias, e como elemento de invenção, em uma cena eletrizante. O paredão e implica a produção distópica de uma sexualidade subjugada que ou se re­
de pagode é, dessa forma, um dispositivo para a modelagem, orientações e bela ou se domestica como respeitabilidade mestiça. A cena do paredão de
controle de processos de subjetivação articulados pelas mesmas contradi­ pagode, hiper-sexual e violenta é, assim, a cena de uma rebelião.
ções que lhes dão volátil substância. Essa objetivação “encenada” é o lugar Gêneros musicais associados com a cultura popular, negra, afri­
da sujeição, da regulação dos discursos, das sensibilidades e das estruturas cana ou “favelada”, e seus praticantes, apresentam um longo histórico de
de sentimento, sendo assim também, dessa forma, o locus da mesma resis­ presença nas páginas policiais, ou no registro jornalístico do crime, da de­
tência. , sordem, da violência, da imoralidade, do “aviltamento” dos valores ociden­
O que Paul Gilroy colocaria em termos da transvaloração híbrida tais - que poderíamos ler, brancos - no Brasil. O nexo semântico, sus­
dos elementos formais da experiência sócio-histórica da escravidão, como tentado por práticas discursivas, como discursos práticos, entre a cultura
terror inefável, transvalorado de modos sublimes, como a contracultura da “popular”, “negra”, “africana” ou “favelada” não é necessariamente óbvio
modernidade, Motem reposiciona como a insurgência do objeto - a mer­ ou automático, mas tem sido reinstituído historicamente como o lugar de
cadoria -, fungível encarnação torturada da aporia fundamental de um sis­ uma ambiguidade ou ambivalência de fundo, que funda a nação como o
tema econômico de produção social da vida, que esposada com a morte, lugar de um compromisso político e discursivo entres os descendentes dos
pressupõe e ao mesmo tempo nega o ser humano como uma mercadoria. colonizadores e os Outros da nação.
(GILROY, 2001; MOTEN, 2003) O chamado “pagode baiano”, que mobiliza multidões em eventos
Como então diz Gilroy: “Pensar sobre a música - uma forma não públicos populares; que preenche massivamente, junto com gêneros como
figurativa, não conceituai - evoca aspectos de subjetividade corporificada o “arrocha” e o “funk”, os soundscapes, paisagens sonoras da Bahia con­
que nãos são redutíveis ao cognitivo e ao ético”. (2001, p. 163) Não é de se temporânea; que conta milhares de acessos nos videoclipes disponíveis na
estranhar dessa forma que a sexualidade e o style tenham alcançado tanta internet; é, como o “funk carioca”, presença constante no registro policial
importância nessas assemblages coletivas, rituais e performadas, que des­ da violência, da degradação na esfera pública, e nos meios de comunica­
concertaram o ocidente ao re-centrar o corpo negro. A sexualidade e sua ção, como no caso do arrastão que vimos acima. (PINHO, 2016) Produzido
“representação conflituosa” impõe-se nesse caso como elemento de contato como uma abjeção, esse sujeito, negro, favelado, popular, é ao mesmo tem­
do poder disciplinar do ocidente moderno, com o corpo, matéria sensível, po instituído como fundamento do pacto político e ainda assim rejeitado,
suporte fenomenológico de si; como a máscara imposta a ferro e fogo para quando faz suas próprias escolhas culturais, demonizadas como signo som­
a contraditória objetificação mediada pela cena da sujeição escravista; ba­ brio de selvageria e “atavismos ancestrais”.
sicamente uma perversão sexual, como elemento integral de uma econo­

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No dia 24 de junho de 2014, na cidade baiana de São Francisco do Porque tem gente que ouve o Kannário: “Ah, esse cara não
tem letra, não sabe cantar”; não tem letra porque você não
Conde, a poucos quilômetros de Cachoeira, no mesmo Recôncavo da Bah­
sabe ouvir a música, a mensagem que o cara tá passando. É
ia, dez pessoas foram feridas e uma morreu em um tiroteio durante a passa­ que nem no reggae: tem gente que diz que reggae é coisa de
louco, de maluco, de drogado. Reggae não é coisa de droga­
gem do trio elétrico que tinha como atração um ícone do pagode baiano, o
do. Reggae é uma mensagem que o canto está passando para
cantor Igor Kannário, conhecido como “O Príncipe do Gueto”. aqueles que curtem reggae, aqueles que sabem entender a
O crime foi atribuído à disputa de gangues rivais da cidade pró­ mensagem do reggae. Igor Kannário faz isso, mas não com
o reggae, com o pagode... Ele passa mensagem; ele é a voz
xima de Santo Amaro, terra natal dos tropicalistas Caetano Veloso e Ma­ da favela; ele fala em voz alta pra todo mundo ouvir, o que
ria Bethânia. No site do jornal Correio da Bahia, o leitor que assina Peter várias pessoas da favela tentam falar e ninguém ouve. Por
isso que em qualquer favela do Brasil, Igor Kannário é abra­
Luna expressa com fúria indignada, certa opinião corrente sobre o cantor çado; ele consegue falar o que a favela quer. (ENTREVISTA,
em questão, sobre o pagode baiano de um modo em geral e sobre os seus São Felix, 2013)

aficionados:
Dessa forma, para muitos jovens em Cachoeira e São Felix, como
Muita gente pode não gostar da minha opinião aqui expres­
em toda a Bahia, artistas do pagodão, como Ed City (ex integrante da banda
sa. (...). Me contratam uma banda, que diga-se de passagem,
só toca porcaria, excita a violência, as músicas são imorais, “Fantasmão”) ou Kannário são valorizados porque falam a “verdade” da
um pancadão que deixa ainda mais loucos, os que já estão,
favela ou do gueto, e essa verdade é fundamentalmente definida pela violên­
drogados, a verdade é essa! Outra coisa, quem gosta e se­
gue essas coisas, a maioria, são gente da periferia, a maioria cia. Como diz um de nossos interlocutores em São Felix:
analfabetos, sem cultura, viciados em droga, bandidos, trafi­
cantes, prostitutas, gente que não tem nada a perder na vida!
pelas imagens dá pra ver, as mulheres, se é que pode chamar Pra Bahia toda saber o que se passa naquele local, tá ligado?
aquilo de mulheres, do tudo ou nada, participando da pati­ Por isso que ele e criticado [Igor Kannário], porque o go­
faria, igual aos homens, então, o que mais poderia aconte­ verno hoje em dia só quer saber de querer dinheiro, querer
cer? Que me desculpe este rapaz que se denomina: príncipe dinheiro e a favela tá toda arregaçada cheia de traficante, de
do gueto! De príncipe vc não tem nada velho. (CORREIO matador. (ENTREVISTA, São Felix, 2013).
DA BAHIA, 24 de junho de 2014)

Uma das categorias, ou tropos, recorrentes na fala dos sujeitos


Jovens que foram entrevistados nas cidades de Cachoeira e São
nesse âmbito, que aparecem nas letras das canções e nas representações da
Felix no âmbito do Projeto Brincadeira de Negão divergem da opinião aci­
mídia é “favela”. O tropo, no contexto do pagode baiano, é usualmente con­
ma sobre “o Kannário”. Para um destes, cantor de funk melody e assumi-
traposto a “orla”. Isso porque a cidade de Salvador localiza-se na entrada da
damente romântico, o cantor além de estimular a violência faz apologia do
Baia de Todos os Santos, a face norte da cidade, voltada para a orla atlânti­
uso de drogas ilícitas. Para outro, ogã em um terreiro de candomblé e ex-
ca, é mais valorizada, e é onde se encontram os bairros de classe média, ou
-praticante de Muay Thai, “Kannário” é quase um líder, a voz da favela
brancos, enquanto a face sul, voltada para a baía de Todos os Santos, con­
centra os bairros populares e históricos da cidade. Entre as duas, o chamado

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“miolo da cidade”, região de concentração de pobreza urbana mais radical, sociais, ademais, são carregados de intensidade emocional e simbólica, ad­
onde encontramos bairros como Cabula, Cajazeira, Fazenda Grande, Pau mitindo uma dimensão catártica e obrigando os antagonismos sociais a
da Lima etc., e onde concentra-se a maioria da população pobre e negra. perfilarem-se em formato agonístico. Como expediente metodológico para
Assim, a oposição “favela” / “orla” tem um caráter geográfico, mas também a prática etnográfica, Turner (1982) recomenda a atenção a momentos de
ou principalmente sócio-simbólico que permite a comutação entre “favela” elevada intensidade dramática, a um só tempo definidos, de modo estrutu­
e “periferia”. Dessa forma, a música oferece e reflete categorias vividas na ral, por estágios elaborados. Rituais religiosos, dramatizações teatrais, jogos
experiência cotidiana, dando formato objetivo à produção de identificação de criança podem ser tomados nesse sentido como textos simbólicos, que
social, e covalescendo subjetividades e categorias, estruturas de sentimento dizem algo sobre a cultura em questão, notadamente suas contradições e
faveladas em oposição àquelas outras da orla. tensões. O modelo de Turner permite tomar quase qualquer forma de com­
Outra categoria relevante que emerge do diálogo etnográfico no portamento coletivo padronizado como expressões rituais, quer sejam re­
Recôncavo e se caracteriza como “estrutura de sentimento”, incorporada ligiosos ou laicos, e interpretá-los como vias de acesso a estruturas centrais
como certa performação da masculinidade, é o “botar a base”. Essa incor­ da cultura em questão.
poração é literal, na medida em que o significado da masculinidade aparece Richard Schechner (2013) recentemente também nos lembrou do
condensado em uma pose, culturalmente regulada como a manifestação/ potencial heurístico dos estudos de performance. Fundamental para isso seria
realização de um sentido possível para o que é ser homem. “Botar a base” a incorporação da performance como modo de estabelecer, transmitir e questio­
significa uma postura corporal física, assumir uma posição de combate. nar conhecimento. E este é um ponto ao qual Diana Taylor (2003, 2006) dedica
Como faz Catchamer - um de nossos principais interlocutores no projeto - atenção. A autora está preocupada em como a performance, definida como ex-
com luvas de boxe em uma foto no Facebook. A pose mobiliza um sentido pressive behaviour [comportamento expressivo], pode transmitir e armazenar
metafórico claro, implicado numa afirmação da própria masculinidade e no conhecimento, notadamente em contextos não ocidentais ou “não letrados”.
desafio à masculinidade do interlocutor. A postura tem obviamente tam­ Nesse sentido, performances socialmente reguladas, como rituais ou encenações
bém algo de “teatral” ou performático. Trata-se de uma encenação, na qual histórico-dramáticas, como as que ela analisa em Tepoztlán, México, podem ser
se encena o destemor como atributo fundamental do que é ser homem. A consideradas como modos incorporados de transmissão de saber. Do mesmo
simulação da violência, sua teatralização, ameaças frequentes de agressão e modo como o Nego Fugido do Acupe, que iremos considerar no último capítulo.
o próprio enfrentamento físico são elementos, sabemos, constantes do uni­ Levar a sério a performance implica em redirecionar a atenção de mo­
verso cultural desses sujeitos e, na verdade, de toda a paisagem social. dalidades discursivas ou letradas e passar a levar em conta a dimensão da pre­
No âmbito da tradição antropológica os estudos de performance sença corporal e do cenário/cena - uma dualidade que em minha leitura remete
podem ser identificados à obra de Victor Turner (1982). Este autor ajudou à distinção arquivo/repertório, como veremos no Capítulo V - como estruturas
a definir a noção de social drama, como a encenação estruturada de con­ de transmissão de conhecimento. E em sentido análogo ao que discute Smith em
tradições sociais que podem tornar-se visíveis e passíveis de manipulação, “Scenarios of Racial Contact: Police Violence and the Politcs of Performance and
ou seja, objetivas, por meio do comportamento estereotipado. Os dramas Racial Formation in Brazil”:

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O diálogo entre atores sociais, papéis, localizações físicas, Quando reconheço o sentido político da postura, não me refi­
roteiros sociais, gestos, comportamentos e atitudes cria sub­
ro a nenhuma institucionalidade ou intencionalidade programática, mas
jetividades raciais informadas por epistemologias hegemô­
nicas de raça. Tudo isso surge de encontros tensos que são à expressão prática de uma contradição, mediada por estruturas simbóli­
preenchidos com distribuições desiguais de poder e infor­
mados por legados históricos, identidades sociais e paisa­ cas disputadas em uma sociedade conflagrada pela desigualdade social e
gens espaciais. (SMITH, 2019, p. 3)xvl" pelo racismo. Tal mediação é também corporal, na medida em que o corpo
como vessel of meaning [recipiente de significado] está simbolicamente
As modalidades letradas de conhecimento histórico-cultural es­ carregado por essas mesmas contradições que constituem assim os sujeitos.
tão associadas ao que Taylor chama “arquivo”. As modalidades “corporais” (HARTMAN, 1997)
ela entende como baseadas no “repertório”. Modalidades corporais que Diria, assim, que o “botar a base” aparece como: l) uma perfor­
demandam a presença, são características de sociedades não-letradas, mas mance do cotidiano no plano das interações interpessoais; 2) como uma
não apenas, é óbvio. Mesmo no mundo “letrado”, elas permanecem produ­ estilização dessa performance atualizada como modo de dançar na “agita­
zindo, armazenando e transmitindo conhecimento. No contexto da socie­ ção” do pagode; 3) como uma síntese - estrutura de sentimento - da pos­
dade de classes racializada podemos facilmente concluir que distinções so­ tura masculina, corporal, destemida e associada à favela e aos seus códigos
ciais e de poder interagem de modos criativos com ambas as modalidades, culturais próprios, onde o alcaguete não tem vez e “dar testa” à polícia é
como acreditamos reconhecer no caso do “botando a base”, no qual uma
“barril”. Na circulação entre esses diferentes registros culturais - que se in­
ideologia de gênero e raça toma corpo. (TAYLOR, 2003, 2006)
terpretam reciprocamente - o significado da postura parece se realizar em
Como aparece em uma canção do extinto grupo de pagode “Fan-
uma cena que transfigura a morte social e a antinegritude estrutural.
tasmão”, de grande sucesso, “botar a base” é um atributo masculino para
enfrentar contradições e assumir o papel de “homem”, no contexto da fave­
PAGODE, MORTE SOCIAL E SUBJETIVIDADE
la, como a canção “Não vá que é Barril” descreve:

Ô tiradinho a miserável não bota a base atrás do trio A morte social é a condição ontológica do sujeito negro em um
Não vá que é barril, não vá que é barril...
mundo “antinegro”, fundamentalmente a modernidade (pós)colonial ou a
Se um estuprador, pedófilo, na depressão caiu
Não vá que é barril, não vá que é barril... “Babilônia”. (SEXTON, 2011; WILDERSONIII, 2011) Seguindo as leituras
Ô carnaval, Alto das Pombas, Nordeste, Boca do Rio
fenológicas de Frantz Fanon, Lewis Gordon e outros, insistem sobre a im­
Não vá que é barril, não vá que é barril, não vá que é barril,
não vá que é barril. possibilidade (sobredeterminada, eu diria) para a existência do negro como
Troca tiro com a Rondesp, dá de testa com a Civil
efetivamente uma pessoa humana. (GORDON, 1999; 1996; FANON, 1983)
Não vá que é barril, não vá que é barril, não vá que é barril,
não vá que é barril, Não apenas há a inumanidade essencial do negro - definida pela condição
Não vá que é barril, não vá que é barril, não vá que é barril,
escrava, justamente descrita como “morte social”, com seus corolários fun­
não vá que é barril. (FANTASMÃO, 2009)
damentais de alienação natal, desonra geral, violência gratuita, indignidade

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

congênita e fungibilidade11 - mas, é que tudo isso significa que não há representa um verdadeiro continuum entre o gueto e a prisão. (VARGAS,
conciliação possível com as instituições da modernidade ocidental, a esfera 2010A; 2010B; SEXTON, 2007) Se não meramente como um quadro esta­
pública, a órbita do Estado e os mecanismos tradicionais de atuação política tístico de probabilidades, mas também como vetor estrutural da experiên­
no mundo das instituições brancas. cia e significação, a sensibilidade da prisão “vaza” da instituição estatal para
a favela através da presença real ou simbólica de grupos armados que con­
Que a vida negra não é a vida social no universo formado
trolam, ou lutam para controlar, o tráfico de drogas, e a consequente guerra
pelos códigos do Estado e da sociedade civil, do cidadão e
sujeito, da nação e da cultura, das pessoas e do lugar, da his­ com a polícia. E seria possível reconhecer aqui a produção social de uma
tória e do patrimônio, de todas as coisas que a sociedade
sensibilidade, “estrutura de sentimento”, articulada como modos de sub-
colonial tem em comum com o colonizado, de tudo o que o
capital tem em comum com o trabalho - o sistema-mundo jetivação e formas estéticas marcadas pelo genocídio/morte social, e pela
moderno. A vida negra não é vivida no mundo em que o
constante ameaça de violência, encarceramento e morte.
mundo vive, mas é vivida no subsolo, no espaço exterior.
(SEXTON, 2011, p. 28)xix A criminalização de todo um segmento populacional, homens jo­
vens negros da favela, o que no Brasil corresponderia a milhões de indiví­

Habitando a zona da morte (ou do “não-ser”)12, o “underground” duos, mostra dessa forma a amplitude dos processos de “sujeição criminal”

[subterrâneo], ou “outer space” [espaço exterior ou sideral] o negro, como que definem numa equação sinistra a “morte social” na sociedade brasileira.

o “colonizado”, vivendo a vida negra sob a morte social, olha com ironia Se todo favelado é bandido - ou conivente com a bandidagem - e todo

para as promessas da modernidade, da “inclusão social” ou da atuação ins­ “bandido bom é bandido morto”, então, os jovens integrantes do “Fantas-

titucional, como coloca aliás Fanon, em “Os Condenados da Terra”, sob mão” fazem a correta e irônica asserção de identidade ao se proclamarem
fantasmas. “Eu sou negão, eu sou do gueto / e você quem é? / Sou Fantas-
diversas formas. (FANON, 2005)
mão, eu sou do gueto / e você quem é?”
Como aponta por outro lado João Vargas e outros autores, a vida
Não é de se espantar, finalmente, que ao passo da “sujeição cri­
no “gueto”, ou sob condições materiais baseadas na segregação, na despos-
minal” (MISSE, 2011; MATTOS, 2015), que converte a toda a população
sessão, na precariedade de serviços, e na marginalização social e hipervigi-
da favela e em especial a todos os homens racializados em “bandidos”, po­
lância, compõem estágio em um ciclo de liberdade e aprisionamento que
tenciais inimigos do Estado, a cultura, linguagem, símbolos, categorias e
11 Fungibilidade seria uma propriedade da mercadoria, compartilhada na condição escrava: “the mesmo uma ética, forjada no “desgraçado” ambiente das prisões, se comu­
fungibility of the slave - that is the joy made possible by the vitue of the replaceability and interchan-
nique para formas sociais de expressão simbólica no gueto ou favela, o que
geability endemic to commodity” [a fungibilidade do escravo - que é a alegria tornada possível em
virtude da substituibilidade e da permutabilidade endêmica à mercadoria] e mais, que “the fungibility aparece também representado formalmente no chamado pagode baiano.
of the commodity makes the captive body an abstract and empty vessel vulnerable to the projection of
the others’ feelings, ideas, desires and values” [a fungibilidade da mercadoria torna o corpo cativo um Uma forma de subjetividade carcerária, definida pelo confina-
recipiente abstrato e vazio vulnerável a projeção dos valores, desejos, ideias e sentimentos de outros].
mento e resistência selvagem ao Estado, em meio à ambígua e contraditória
(HARTMAN, 1997, p. 21)
conexão vinculante, que usa a violência pura - tortura, intimidação e morte
12 Grosfoguel, seguindo a Fanon, define uma zona do ser como aquela região na vida social onde os
não-humanos são relegados. (GROSFOGEL, 2012)
- como linguagem para definir um espaço social - zona da morte - como

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

uma cena para a subjetivação. Como pode ser visto em um perfil no Face- - gravadoras, bandas, empresários, sites, as canções convertidas em merca­
book, intitulado “Polícia Baiana”, e que, como outras tantas plataformas, doria - quanto o evento, ou a “performance” do pagode. Esses dois sentidos
divulga incessantes notícias e imagens do mundo do crime em que vemos do pagode estão em conexão estreita, é claro, mas essa conexão se baseia na
um vídeo, ao que parece gravado pelos próprios retratados, em um presidio tensão e na alienação, por um lado, e na resistência e reinvenção de outro,
da cidade baiana de Feira de Santana13. No vídeo, um dos presos canta e uma reinvenção processada dentro de uma forma estrutural histórica, que é
acompanhado pelos outros detentos um pout-pourri de funlc/pagode que um modo de usar o corpo, a memória, a arte e a História no interior do cír­
exalta a facção criminal a que esses sujeitos demonstram lealdade. O jovem culo de indignidade, morte e despossessão, no “porão” ou “underground”.
que lidera o jogral, tatuado e de boné, ameaça os “alemão”. Cantando um Desse ponto de vista - que seria também “gnosiológico” (LUKACKS, 2010)
pagode conhecido14, os homens presos afirmam sua lealdade à “Caveira”, -, o pagode poderia expressar uma contradição entre a forma mercadoria e
segundo a imprensa, aliado local do PCC paulista, opositora mortal do CP a negritude, o sujeito que troca a si próprio com o Outro. Ou “objeto” que
(Comando da Paz). pode resistir, situando-se fora do pacto nacional mestiço.
O pagode, “in the void” [no vazio] ou no “porão”, apresenta uma
estrutura performática e só pode ser entendido adequadamente dessa for­
ma. Não meramente como um gênero musical de mercado, porque isso re­
duziria o potencial crítico da mobilização de sentido a uma formatação de
mercado - uma “logística”, nas palavras de Harney e Moten (2013) - que
busca dissimular as raízes contraditórias e explosivas das posições de sujeito
negras, definidas na conexão entre o pagode e a morte social.
O acesso a essa estrutura profunda, linha de fuga, ritualização fu­
gitiva de uma estética da desumanização radical, pode encontrar assim a
forma de sua constituição em modalidades performáticas. E nesse sentido
sustento que o “pagode” baiano como forma expressiva histórica, que põe
em conexão os próprios sujeitos com os recursos formais/estruturais para
sua agência, só pode ser adequadamente entendido por meio de uma abor­
dagem que leve em conta a teoria da performance. O que se costuma cha­
mar de “pagode” aparece duplamente representado no horizonte cultural
relevante. É tanto o gênero musical e o seu universo de mercado associado

13 https://www.facebook.com/l481366395470431 /videos/1609921072614962/?fref=nf

14 https://www.youtube.com/watch?v=S537pS6Y lCU

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CATIVEIRO

BLACK BORDER: O CORPO E A LUTA NO AUDIOVISUAL NEGRO

“Queremos uma arte revolucionária, não apenas pornografia [skin flicks). Somos os fi­
lhos de Malcom e queremos uma arte Malcom! Uma que seja em si mesma um exemplo
da convocação de Malcom X por Autodeterminação, Autorrespeito e Autodefesa negras,
além da verdadeira Autoconsciência deW.EB. DuBois”
Amiri Baraka, Emory Douglas: A “Good Brother” a “Bad Artist”, 2007xx.

UM CENÁRIO DEVASTADOR

De acordo com Renato Sérgio de Lima, diretor do Fórum Brasi­


leiro de Segurança Pública, ouvido pelo jornal britânico The Guardian, o
crescimento dos homicídios no Brasil configura um “cenário devastador”,
63.880 pessoas assassinadas apenas em 2017. À ação do Estado, direta ou
indiretamente, se atribui responsabilidade por essas mortes. (PHILLIPS,
2018)
Com assombro, podemos observar que, entre os anos de 1980 e
2014, aproximadamente um milhão de pessoas foram assassinadas no Bra­
sil por disparos de arma de fogo, sendo que, nos últimos dez anos, os ho­
micídios têm sido a principal causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos,
sobretudo, homens negros moradores de periferias de grandes centros ur­
banos. Dados do Mapa da Violência apontam ademais para que, dos 42 mil
mortos por homicídios em 2014 no país, 29 mil eram jovens negros e 94%
desses jovens eram do sexo masculino. (WAISELFIZ, 2014)
O cenário é efetivamente devastador - “a devastating crime sce-
ne” [uma cena de crime devastadora] (Idem, 2015, p. 7) como veremos, e
a devastação que ele abriga é o horizonte de referência para a experiência da
negritude no mundo colonial e antinegro em que vivemos. Devastação, des-
possessão e morte. Atributos de uma “estrutura de antagonismos” que defi­
ne as condições de possibilidade para a enunciação formal de significados e

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

subjetividades. De um ponto de vista fenomenológico, a consciência corpo- Em “Red, White & Black - Cinema and the Structures of U.S. An-

rificada da vulnerabilidade racializada perfaz um alinhamento de sentidos tagonisms”, Frank Wilderson é claro nesse sentido. A morte social, definida

e sensibilidades sob o impacto do que eu mesmo já chamei de “tiroteio”15, por Orlando Patterson (2008) como elemento central da condição escrava,
em termos universais, aparece redefinida como elemento central da defi­
a convivência cotidiana com a morte e a violência. (PINHO, 2015) O “cor­
nição da negritude no contexto norte-americano. Na medida em que tal
po negro caído no chão” (FLAUZINA, 2008) como elemento da paisagem
condição escrava tem na morte social - transcrição política, semiótica, sub­
subjetiva e da pedagogia do terror que constitui a zona da morte, inimiga
jetiva e fundamentalmente ontológica - a natureza central de sua posicio-
íntima das quebradas e vielas periféricas. A geografia da morte, a topografia
nalidade. (WILDERSON, 2010) A gratuidade da violência, a desonra natal e
da violência, o “tiroteio”, medo, dor e confusão, a matéria viva da experiên­
inalienável, o desenraizamento e a condição liminar - pessoa humana e pe-
cia da morte social em nosso contexto. (Idem; ALVES, 2013) ça-da-guiné - configuram uma modalidade de circunscrição, produção, da
O que eventualmente aparece representado, ou performado, nas pessoa do escravo, que nega fundamentalmente a sua humanidade, como
instâncias da vida popular cotidiana, ou em formas culturais expressivas um modo de conferir legitimidade e talvez principalmente legibilidade ao
como o hip-hop ou mesmo o pagode, pode ser elaborado como experiência mundo branco anticolonial, de um modo, e isso é fundamental, irreconci­
pelo sujeito, e representado como forma expressiva, capaz de objetificar, e liável. A oposição, estruturada, na experiência e nas categorias da intelegibi-

nesse sentido traduzir, o medo e o desamparo constantes dessa linguagem lidade e de sentimento - como o “tiroteio” e a “baixaria” -, entre o negro e o

da violência e do terror? Essa interrogação poderia ser também caracteriza­ mundo ocidental, não pode ser descrita meramente como uma contradição
de solução dialética, mas como um antagonismo, cuja solução implica na
da, em termos tanto históricos como estruturais, em uma linguagem teórica
“obliteration” [obliteração] de uma das posições. Como, de outra forma,
mais abrangente. Como encontramos configurada no afropessimismo, tal
coloca Spivak para a condição da mulher colonial, não há dispositivos de
como na obra de Frank Wilderson, ou em leituras balizadas pela “antine-
compromisso ou superação para a incomunicabilidade, e essencialmente
gritude”, como em João Costa Vargas, como tenho buscado discutir aqui.
in-humanidade projetada no corpo (do) negro, subsumido à condição on­
(WILDERSON, 2010; VARGAS, 2017) tológica do escravo, socialmente morto. (SILVA, 2019; SPIVAK 2014) E
A violência teatralizada no cotidiano, como discute Christen Smith, que, nesse sentido, não está no mundo, nem pode ser convenientemente re­
e a definição de estruturas de sentimento, formas de subjetivação da violência, presentado, o que é muito relevante para nossa discussão. Como Wilderson
como atributos transitórios do sujeito, podem ser refletidas, ou melhor, enquadra­ dessa forma, então, conclui:
das, dessa forma, se a considerarmos em termos histórico-formais mais amplos.
O conhecimento de que a posição negra é de fato uma po­
(SMITH, 2016) Ou como discute com eloquência Ricardo Aleixo com relação à
sição, não uma identidade, e que seus elementos constituin­
voz poética de Alex Simões, o desafio seria mover-se, em tempos necropolíticos, tes são contíguos e inextricavelmente ligados aos elementos
constituintes da morte social - o que quer dizer que para a
entre o Sujeito e a Poesia, ou entre o Sujeito e a poiesis, eu diria. (ALEIXO, 2018)
negritude não há momento narrativo anterior à escravidão.
(2010, p. 27)™
15 Referência a canção do pagodeiro Ed City: “Vai começar o tiroteio, vai começar/Clack, Clack Bum/
Clack, Clack, Bum” (2013).

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

A morte social, como categoria vivida da articulação estrutural discutir em outros capítulos desse livro. Como chave analítica, esse trio me
entre o mundo antinegro e a negritude como impossibilidade irreconciliá­ permite colocar dessa forma um conjunto de questões de natureza teórica,
vel e realmente existente; a antinegritude, como categoria descritiva da na­ política e estética e esse é, em alguma medida, o desafio que assumo nesse
tureza histórica de um antagonismo estrutural central, que nega em termos capitulo, para revisitar a minha experiência e diálogo com a mostra Corpos
empíricos a coexistência entre o negro e o mundo, ou entre a negritude e a em Luta do festival CachoeiraDoc 2017 que, sob a curadoria de Amaran-
atuação civil e política na esfera pública; encontram uma terceira expressão ta Cesar, interpelou a todos que assistiram à exibição, programa em mais
complementar na manifestação concreta de muitas mortes e de uma cena- uma noite quente no belo Cine Theatro Cachoeirano, na cidade baiana de
rização da morte como objetivação estrutural, o que Abdias do Nascimento Cachoeira, emoldurada pelas ruinas da colônia. A bela e devastada cidade
no passado, e um número crescente de ativistas e intelectuais negros no de Cachoeira é, aliás, paisagem adequada para as questões que pretendo
presente tem chamado de genocídio. (BOURDIEU, 1999; NASCIMENTO, apontar em seguida, ao buscar produzir uma leitura dos filmes exibidos -
1978) Como desenvolve Ana Flauzina, por exemplo: “Alma no Olho”, “Now!”, “Notícias de uma Guerra Racial Subnotificada”
e “Experimentando o Diluvio em Vermelho”16 -, como uma forma de in­
É preciso reconhecer que o genocídio é uma categoria que tervenção crítica, desde a zona do não-ser, sobre as possibilidades e poten­
não pertence exclusivamente aos restritos circuitos do Di­
reito. Na verdade, o aparente sólido terreno estabelecido
cialidades de interpelação para o corpo negro, que não está apenas em luta,
pela Convenção de 1948 consiste em um espaço de intensas mas é a confluência objetivada desse concerto de massacres sem reparação.
disputas políticas, no qual a própria noção de genocídio e as (GROSFOGUEL, 2012)
questões correlatas levantadas pela criminalização da práti­
ca estão em jogo. (FLAUZINA, 2014, p. 122)
BLACK BORDER

Como um conceito disputado, o Genocídio do Povo Negro, vem


sendo então produzido como uma categoria política, que ultrapassa tanto Em um ensaio algo datado, apesar de ser talvez por isso mesmo
as fronteiras do universo jurídico como demográfico, para operar na in­ um clássico, Susan Sontag investe contra a “interpretação”, em um apelo a
corporação das categorias intratáveis da morte social e da antinegritude, favor de uma “erótica da arte”, em oposição a uma hermenêutica do fato es­
cobrindo um amplo espectro conceituai e simbólico, como ferramenta heu­ tético. A função da crítica, insiste dramaticamente, jamais deve ser mostrar
rística de intervenção política, ou como um dispositivo gnosiológico embu­ “o que algo significa”. (SONTAG, 1987, p. 23) A objeção de Sontag baseia-
tido na experiência dos sujeitos sociais: donas de casa e intelectuais, artistas -se numa crítica à teoria aristotélica, mimética, da arte como representação.
e operários. De modo sensualista, ela clama ao final pela recuperação dos “sentidos”.
Ora, a antinegritude (I), a morte social (II) e o genocídio do povo
(SONTAG, 1987)
negro (III) ajudam a descrever a formação desse cenário devastado, enten­
O que interessa recuperar aqui do argumento de Sontag se refere
dido em sua completa objetividade, como estrutura formal de significação
à distinção entre o modelo, ou forma artística, e sua capacidade de repre­
e como horizonte histórico de sentido, codificado em formas legíveis por
meio do Estado e do Mercado, e em oposição à cena da objeção, como busco 16 Além destes foram também exibidos “Now Again” e “Monangabee” que não serão discutidos aqui.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

sentação de um conteúdo. Ou, como ela coloca, uma interrogação sobre a Ora, corpo negro, sob o regime de representação ocidental, diferi­
questão do “valor da arte”, quer seja como acuidade formal, mas principal­ do pela distinção entre a representação formalizada e seu conteúdo objeti­
mente como a necessidade imperiosa da arte de justificar a si mesma sob o vado, permanece, todavia, no abismo especular que resiste a ser apreendido
registro da teoria aristotélica da mimese. A arte, como representação, pode pelas artimanhas do simbólico. Talvez justamente por isso melhor aborda­
ser adequada ou inconsistente, e os instrumentos para sua avaliação seriam, do como “carne” ou “flesh”, como em Hortense Spillers: “Antes do corpo
dessa forma, exteriores a ela própria. está a carne, aquele grau zero de conceituação social”. (SPILLERS, 1987, p.
67)xxüi
O nosso é um tempo em que o projeto da interpretação é Lewis Gordon e outros autores, em intenso diálogo crítico com a
em grande parte reacionário, asfixiante. Como os gases ex­
pelidos pelo automóvel e pela indústria pesada empestam a obra de Frantz Fanon, têm elaborado repertório crítico para considerar a
atmosfera das cidades, a efusão das interpretações da arte negritude in-corporada a partir de dois elementos principais. Primeiro, o
hoje envenena nossa sensibilidade. (Idem, p. 16)
corpo negro - que é o próprio negro - é denunciado como uma “coisa entre
outras coisas”. Em segundo lugar, o negro, e seu corpo fantasmático e tão
Tal seria o excesso interpretativo, traço característico de episte-
objetivo, é “pura ausência”, resistindo dessa forma à simbolização. (GOR­
mologias ocidentais “pós-mitológicas”, que, como ela mesma coloca, se­
DON, 1999) Onde está a Razão, ou o mundo antinegro e sua racionalidade,
param representação e mundo, produzindo a cisão ou ruptura fundadora
0 negro não pode estar, onde está o negro, ou “quando” está o negro, este
do significado como elemento ideológico do poder do Estado, da Lei e da
mundo antinegro não pode se materializar. O antagonismo insolúvel entre
Escrita (código dos códigos). Não é assim que Pierre Clastres nos sugere
o negro e o mundo na obra de Fanon é paradigma interpretativo para uma
quando fala de “sociedades primitivas”, sem Estado, ou melhor contra o Es­
vacuidade ontológica categórica - o negro é, em suma, absoluta negativida-
tado? (CLASTRES, 1990, p. 130) Ou como vemos na ética representacional
de -, mas também para uma interpelação política. Nesse sentido, ser “nada”
mesoamericana e pré-hispânica, e em seus fabulosos códices de pele de vea­
e ser “uma coisa” encontram estranha coincidência, em um meio definido
do. Livros escritos sobre a pele do animal sagrado, livros que simbolizam a
por esse universo relacional onde um termo é pura ausência - o negro - e o
si mesmos. Em particular, o veado, animal ritualístico e que se oferece em
outro é pura presença - o branco. (Idem) Gordon diz ainda que, em um mun­
sacrifício ao caçador, que por sua vez ritualmente se identifica com a pró­
do antinegro, o negro habita a forma ausente da presença humana. Sendo essa
pria vítima. Ora, os livros de pele de veado são o próprio veado. O conceito
ausência definida para muito além da economia política - observada no regis­
e o veículo, a imagem e o que ela representa são uma e a mesma coisa.
tro da produção das formas sociais, sob a intervenção da categoria trabalho,

Existem muitos indícios de que, ao contrário do que conhe­


como discuto no capítulo V - mas, muito mais por uma economia libidinal.
cemos das religiões monoteístas, esses deuses dificilmente Nos termos de Wilderson: “A economia libidinal da modernidade e sua car­
existem independentemente de suas imagens, que pode­
riam ser encontradas em códices ou esculturas ou que pode­ tografia concomitante (...) alcança sua estrutura de troca inconsciente sob a
riam ser personificações em rituais e danças. É por isso que
forma de uma tanatologia em que a negritude sobredetermina a personificação
as imagens não são re-presentações, são os deuses. (NEU-
RATH, 2013,p.5l)xxii da impossibilidade, incoerência e incapacidade”. (2011, p. 44)xxiv

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Ora, sob a sobredeterminação dessa economia libidinal, diz Gor- sência de subjetividade. (SONTAG, 1987; SPILLERS, 1987) Gordon avan­
don, a consciência do negro está saturada na carne (flesh), com a qualidade ça politicamente, ressaltando o já apontado por Wilderson, a divergência
de ser uma coisa, uma forma de ser em superposição com o que é meramen­ ou discordância, antagonismo irreconciliável, entre o negro e sociedade
te um objeto. Ser ao final, em total objetividade, sem a cisão ou separação civil: “Deveria ser claro que teorias políticas que separam a sociedade em
como a fundação do significado, implica em habitar um mundo pré-sig- sociedades civil pública e política privada oferecem nenhum recurso para

nificado, ou ser nesse mundo aprisionado como “uma coisa dentre outras negros”. (GORDON, 1999, p. 82) Interditado à representação. Interditado

coisas”. Essa condição é um obstáculo para representação e interpretação, para a ação na esfera da sociedade civil. Uma vez que, apesar de ser um ente
do mundo, o negro não está no mundo, no “nosso mundo”, como poderia
notadamente porque pressupõe justamente um conteúdo, que no caso da
ser um parceiro, agente político, de uma sociedade que demanda para sua
“pessoa” negra é a negação da autoconsciência objetivada. (SILVA, 2019)
própria estabilidade a negação ou obliteração da mesma negritude?
Interditada ou obliterada por aquela condição fobogênica e ansiogênica ob­
Levando em consideração a interdição estrutural para a signifi­
servada por Fanon, a autoconsciência reflexiva da negritude (true self-cons-
cação ou representação do negro como modo de existência definido pela
ciousness) [verdadeira autoconsciência] é uma projeção rumo à ausência,
ausência no mundo, interrogaríamos como, na prática, no vivido e no con­
de si e de qualquer contorno sólido para a estabilidade ontológica. Nesse
creto, o sujeito negro, confinado e em contradição com o próprio corpo
sentido, fora da dialética, ou de uma dialética que permitiria o surgimento
pode ser produtor de sentido e agente de significados estáveis ou estabele­
da intersubjetividade e ao fim e ao cabo do próprio sujeito. Como insistem
cidos em modo de-codificáveis? Nos capítulos IV e V volto a essa questão,
os afropessimistas, para negar a humanidade e o reconhecimento para o ne-
por ora vale dizer que na gramática da significação afropessimista - que
gro/escravo, como ente irreconciliável com o “mundo”. Ora, para Gordon
insiste na posição opaca do negro à significação - esta seria, em última ins­
tal condição fobogênica, epidérmica, material, inscrita como código gélido
tância, uma inquirição sobre o impossível. Porque a semiótica dos signi­
na carne ardente - olhe, um negro! - significa que o negro não vive em
ficados racializados está fundada na tradição que opõe signo e significado
um nível simbólico: “Está aprisionado nos verdadeiros valores materiais do
ou conteúdo e representação na tradição epistemológica ocidental. E mais
real”. (GORDON, 1999, p. 79)^
que isso, como diz Denise Ferreira da Silva, o pensamento ocidental e seus
O negro é seu próprio corpo e seu corpo é pré ou não-simbóli­
pilares onto-epistemológicos pós-iluministas, articulados na categoria da
co. Nesse sentido, o negro e seu corpo não podem ser representados ou
interpretados, aprisionados na vil materialidade da carne (flesh) defini­ “Negridade”, produz o sujeito racial como “destinado a obliteração”. (SIL­

da pela fungibilidade imposta pela violação brutal, gratuita e repetida na VA, 2019, p. 133) E nesse caso, o negro não pode ser representado. Porque

História - da escravidão -, e em todas as camadas da estrutura social e da em sua negatividade ele é pura imanência. Nada e uma coisa. Ou um objeto
simbolização, tal como estas são vividas em um mundo antinegro. Dessa que incorpora - não representa - a própria vacuidade estrutural necessária
forma, uma “erótica da arte”, como em Sontag, pode ser negada pela “ir- para a coerência do mundo antinegro.
resistible sensuality” [sensualidade irresistível] do corpo negro como em Outra forma de abordar essa dificuldade - o negro como auto­
Spillers, justamente porque a pessoa do negro e da negra se define pela au­ consciência subjetivada pode ser representado? - é encontrada na propo­

116 117
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

sição de uma categoria ou chave interpretativa: “black border” [fronteira, planos de fuga, vivendo agora, aqui, a possibilidade de algo que está além
borda ou limite negros]. Paula Von Gleich se pergunta se o afropessimis- e que não admite compromissos, como uma fissura no espaço-tempo da
mo estiver mesmo correto e a existência do negro no mundo ocidental é cartografia epistemológica ocidental. A negritude, entendida dessa forma,
uma não-existência, definida pela morte social e pela interdição à atuação não exatamente afropessimista, como essa recusa radical do “mundo” e
na esfera pública e na significação, como podemos explicar que pessoas e sua incompatibilidade com a branquidade, mas que projeta, ainda assim,
tradições negras persistam (resistam) e, mais que isso, que floresçam histo­ um horizonte fugitivo, como o paredão de pagode na praia da Ribeira. Um
ricamente? Como explicar a cultura e a arte negra, “popular” e “erudita”? horizonte onde nós, os “embarcados”, alienados ao nascer (do ponto de
Dois caminhos podem nos ajudar a responder essa questão. Primeiro, aque­ vista ontológico), estamos aqui e mais além, e em nenhum outro lugar. No
le definido pelo trabalho de Mary Louise Pratt e sua definição de “zona de Quilombo. Ou, como sugere Beatriz Nascimento, em “Ori”, em uma aven­
contato”, e, em seguida, a abordagem de Stefano Hearney e Fred Motem, tura transatlântica, que busca reconciliar corpo e território, nossa ances­
sobre “fugitiviness”, encontrada em “Undercommons”. (GLEICH, 2017; tralidade, nosso cabeça, ori. (1989) Navegando no “espaço da morte” ou
HARNEY 8c MOTEN, 2013; PRATT, 1991) Comecemos pelo último. “zona de contato” colonial, podemos assim interpelar o fato da negritude
Em “Undercomms: Fugitive Planning & Black Study”, Harney & como paroxismo vertiginoso, e autodefesa, de modo menos “pessimista”.
Moten interpelam a imagística colonial do cinema. Em “Shaka Zulu” (um Reinventando práticas informais de fuga por meio do “study” [estudo] e
filme de 1987), o colono é cercado pelos bárbaros nativos. O estereótipo é do “planning” [planejamento], que, como dizem os autores, é “the futurial
ultrajante. Mas o cerco é estratégico. “Nossa tarefa é a autodefesa do perí­ presence of the forms of life” [presença “futurai” de formas de vida], que
metro em face às repetidas expropriações direcionadas por meio das incur­ tornam a fuga possível.
sões armadas do colonizador”. (HARNEY & MOTEN, 2013, p. 17)xxvu No Mary Louise Pratt, por sua vez, e argumentando contra a ideia de
Brasil do século XXI as incursões armadas dos colonizadores estão longe comunidade como base ou fundamento unificado ou unificador para “lan-
de ser mera metáfora, como se sabe. E nossa “morte-em-vida” se repete guage, comunication, and culture” [linguagem, comunicação e cultura]
como condição de possibilidade para a branquidade na nação “mestiça”, (1991) de grupos sociais, desenvolve a influente noção de “zona de conta­
como discuto no Capítulo II. Ora, a narrativa da nação no Brasil é a nar­ to”. Tomando como ponto de partida textos heteróclitos, escritos em inter­
rativa do “settler” [colonizador] e de sua fortificação. A guerra contra os faces histórico-culturais estabelecidas entre conquistadores e conquistados
índios, o massacre dos quilombos, o Monumento aos Bandeirantes, no Par­ - mais especificamente o texto híbrido, escrito em 1623 por Felipe Guáman
que do Ibirapuera etc. Mas a nação, o Estado nacional e a “cultura nacio­ Poma de Ayala, em quéchua e espanhol - a autora descreve um modo de
nal”, como aparato discursivo de poder, está “surrounded” [cercada] por produção de sentido não definido pela unidade, ou coerência, entre uma
mil quilombos, pela cena da objeção, a rebeldia no pagode, a ancestralidade população, uma língua, uma cultura ou experiência sócio-histórica, mas
no Nego Fugido, como veremos. Stefano Harney e Fred Moten falam ain­ inversamente como modelo ou tradução imperfeita, e que transcende as
da em “study” [estudo] e “fugitive planning” [planejamento fugitivo]. Em “speech comunities” [comunidades de fala]. Mais claramente, a autora de­
trabalhar junto, “com e para” os sub-comuns, que constroem rupturas e fine zona de contato como

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

se caso, como nas narrativas escravas discutidas no Capítulo V, a questão da


espaços onde as culturas se encontram, se chocam e se en­ audiência ou dos modelos metropolitanos de consciência é crucial.
frentam, muitas vezes em contextos de relações de poder Ora, mas o que acontece se considerarmos a “zona de contato”
altamente assimétricas, como colonialismo, escravidão ou
suas consequências, como são vividas em muitas partes do como definida e estruturada pelo que o Michael Taussig (1993) chamou de
mundo hoje. (PRATT, 1991, p. 2)xxviii “espaço da morte”, discutido no Capítulo I? Como vínculo histórico entre
os colonizadores e sua ética de guerra, e os colonizados/escravizados como
Nessas regiões conflagradas, e em diversas combinações de tempo não-pessoas, e como o vínculo estrutural entre a violência carnal e formas
e espaço, tanto no Peru colonial como na Nova Iorque cosmopolita, novas de significação (ou não-significação), o espaço da morte colonial é o dis­
formas de narrar o “encontro” são elaboradas, notadamente sob a forma positivo dessa transição que instaura o escravo como categorial colonial,
do que a autora chama de autoetnografia, modalidades narrativas - descon- impossível de ser adequadamente representada, como diz Taussig.
formes com relação a comunidades nacionais ou interpretativas - que se Ora, o que Gleich então propõe como um modo de incorporar à
apresentam como textos em que as pessoas descrevem a si mesmas - e a sua perspectiva do criticismo radical do afropessimismo com possibilidade de
cultura e valores - em formas que dialogam com representações que outros significação e agenciamento, ainda sob a morte social, seria justamente uma
possuem deles, sendo que, estes que os representam, os representam como revisão do conceito de zona de contato em direção ao reconhecimento da

os “Outros”. Representações autoetnográficas são construídas como res­ dimensão fugitiva da invenção da cultura negra sob o impacto da zona da

postas - que implodem as fronteiras entre gêneros e línguas - que os Outros morte e da objetividade esmagadora da antinegritude. (GLEICH, 2017) E

hetero-representados oferecem como autorrepresentações. Considerado nesse sentido, a ideia de “border”, fronteira, margem ou limite é invocada.

nesse caso, ao menos temporariamente, que o sujeito negro autoconsciente “Fugitiviness entail borders” [fugitividade implica em fronteiras], ela diz,

possa se autorrepresentar, exatamente como forma de autorreconhecimen- fronteiras que devem ser atravessadas ou limites superados, para que, com

to. E que seja possível suspender a cisão formal entre sujeito/objeto que go­ a ultrapassagem, novas condições limítrofes se estabeleçam como horizon­

verna a representação e obviamente a autorrepresentação. Ora, como a au­ te para a significação diferida na história e na história das representações.

tora adverte explicitamente, essas formas representacionais não são formas Na medida em que o afropessimismo proporia uma demarcação estrutu­

“puras” ou regressivas, mas já intensamente produzidas como resultado de ralmente incomensurável entre negritude e o mundo antinegro, o dentro e
fora da sociedade civil e dos regimes de significação, uma fronteira, ou bor­
contatos violentos e assimétricos. Frequentemente dirigidos a audiências
da epistemológica está pressuposta. Uma borda, ou ultrapassagem como
duplicadas ou múltiplas, as autoetnografias - como os testimônios latino-
uma travessia, como a passagem do meio da escravidão transatlântica, que
-americanos17 - são esses relatos “fundidos ou infiltrados em vários graus
esvazia a “pessoa” do negro de qualquer conteúdo ontológico exterior a esse
com idiomas indígenas para criar auto-representações destinadas a intervir
mesmo processo de desenraizamento natal, mas que permite a emergência
nos modos metropolitanos de compreensão”. (PRATT, 1991, p. 3)XXIX E nes­
de outras estratégias para além da representação, como a performance.
17 Sobre testimônios ver Yúdice (1992).

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Há problemas na teorização de Pratt, obviamente. A materializa­ Em resumo, Back Border pode ser considerado aqui como uma
ção do antagonismo, ou da estrutura do antagonismo antinegro, resiste a categoria de natureza metodológica, que aponta para uma impossibilidade
ser conceituada adequadamente como uma tradução pós-colonial das zo­ de consolidar uma posição para a representação que seja coincidente com
nas de contato. Inversamente, as noções de fortificação e de settler encon­ a autoconsciência reflexiva de um sujeito que não encontra fundamentos
tradas em Wilderson e em Moten me parecem mais frutíferas, na medida ontológicos sólidos para seu estabelecimento fora da zona de contato, como
em que enfatizam a noção de interioridade x exterioridade - no sentido zona da morte. A coisidade do negro/escravo implica assim na opacidade
colonial/espacial, mas também semiótico/ontológico, próximo ao encon­ do simbólico, ou resistência à significação, na cena da objeção, o que impõe
trado em Deleuze & Guattari. (1986, 1996; VIVEIROS DE CASTRO, 2014) limites teóricos e incompatibilidades com noções de cultura baseadas no
No modo como Pratt as define, as relações entre colonizadores e significado ou na interpretação. Nesse sentido, a “cultura negra” poderia
colonizados (incluindo-se os escravizados) seriam relações de subalterni- ser abordada não em termos semióticos, representacionais, como volto a
zação, um vocabulário que não se adequa ao aparato conceituai de Wilder­ discutir no Capítulo IV, mas em termos performativos, operando de modo
son. Na medida em que a subalternização indica construção de hegemonia fugitivo em meio a cenários de violência e racialização para produzir conhe­
e contra-hegemonias, como formas de dominação baseadas na produção cimento e beleza de modos não remetidos a uma epistemologia simbólica,
de um consenso simbólico/ideológico, ou seja, em alguma medida de reco­ mas baseada no corpo/flesh que emerge da zona da morte colonial como
nhecimento. Ora, no caso do escravo a dominação aparece como expres­ matéria imanente de um intervenção, ou objeção, rumo ao “fora” do cam­
são “natural” - e o modo como Viveiros de Castro (2004) define o “na­ po onto-epistemológico do pensamento e da estética ocidentais.
tural” como aquilo que é preciso negar para que a Cultura ou a Sociedade Veremos agora, nas duas seções seguintes, como estes pressupos­
se instituam, é relevante - da violência gratuita e extrema, sem apelação tos nos ajudariam a produzir uma leitura fugitiva dos filmes exibidos em
ou remorso. A ideia de border em Pratt pressuporá ainda algum “contato”, Cachoeira em 2017, na mostra Corpos em Luta.
ontologicamente interditado para pessoas negras em situação no mundo
antinegro. Desse ponto de vista, seria difícil explicar, como apontado, as ALMA NO OLHO, NOW!
formas de invenção e resistência do povo negro e, nesse sentido, o conceito
de “fugtiveness” é útil. “Podemos imaginar a fugitividade conceitualizando Com restos de material de outra produção, Zózimo Bulbul monta,
a experiência vivida da negritude como uma prática constante de recusa em em 1973, o filme de curta metragem “Alma no Olho”, considerado por mui­
aceitar e permanecer na posição ostracizada da morte social”. (GLEICH, tos o mais acabado e um dos mais importantes experimentos audiovisuais
2017, p. ó)*™ Concebida dessa forma, a fugitividade guerrilheira tenciona e produzidos de uma perspectiva negra no Brasil. Críticos chamam atenção
ultrapassa as bordas, as ataca e se evade, sem necessariamente alcançar uma para as preocupações formais do autor e para a sua experiência de vanguarda,
superação efetiva. “Desta forma, a fugitividade pode ser entendida como que, sem recurso à palavra, resume, em pouco mais de onze minutos, a trajetória
esbarrando na fronteira absoluta e impermeável entre a morte social e a do homem negro, das savanas idílicas da África, ao cativeiro no mundo, literal­
sociedade civil que, no entanto, permanece intacta”. (Idem, p. S)50™ mente, branco e a consequente libertação. (FERREIRA, 2016; DE TAL, 2014)

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0SMUND0 PINHO CATIVEIRO

O corpo é o centro de gravidade onde as promessas de liberdade de da integralização do homem negro, condenado a simbolizar apenas por
podem ser retesadas - ou ressentidas - nesse filme, e como tenho discutido, meio de sua dissecação. Ou de sua desintegração na coisidade da matéria
a própria materialidade da negritude, representada no corpo negro, objeti­ carnal, “flesh”, ou “that zero degree” [aquele grau zero] para o significado
va-se contra fundo branco. “O cinema é uma arma, nós negros temos uma intersubjetivamente mediado. Onde há o corpo magnificado não há, nesse

AR 15 e com certeza sabemos atirar.” Zózimo teria dito. Com a alma no caso, a pessoa. A mise-en-scène é evocativa da africanidade perdida, onde

olho, a autoconsciência na carne, o corpo negro é a arma, o projétil e o alvo o corpo, o homem, a natureza e a divindade estariam integradas, como nas
utopias mitopoéticas e quilombistas de Abdias do Nascimento (2002). O
de uma narrativa, que avança a imanência como recurso estético de deslo­
amplo sorriso, a alegria luminosa do ator que simula correr, faz convergir
camento semiótico, como uma reapropriação e reaproximação do próprio
a fisicalidade com a integridade essencial de uma personagem ainda sem
corpo.
contradições. Com trajes africanos, cantando e dançando contra a música
Contar por meio de gestos teatrais, e com signos familiares, a nar­
de John Coltrane, o corpo negro de Zózimo remete a uma era de plenitu­
rativa de autorreconhecimento, alienação e libertação, supostamente sem
de incorporada, ainda que genérica ou alegórica. A beleza autoconsciente
as mediações que a estrutura formal da significação diferida permite, se de­
do ator, tão bem explorada por Antunes Filho em “Compasso de Espera”
fine como um meta-comentário, operado em um registro entre o estrutural
(1973), amplifica a densidade ontológica de um corpo reconciliado con­
(sintático) e o simbólico (semântico), ou entre o código e o texto, como sigo mesmo. Então, a escravidão e a passagem do meio, objetivadas como
discute Azzan (1993) para as antropologias de Lévi-Strauss (estrutural/ correntes brancas de grande efeito plástico nos pulsos negros do ator. O
sintática) e de Clifford Geertz (hermenêutica/semântica). Ou ainda, como desespero e a agonia em contorções acrobáticas. O trabalho desumanizante,
diria Ricoeur, entre a “língua” (sem sujeito ou história) e o “discurso” (in- o esporte e a arte como transformações da condição escrava, ainda acor­
tersubjetivo e histórico): rentada ao mundo branco, cartesianamente diagramado como um grande
quadrado branco - horizonte infinito - de fundo. De óculos e terno, assume
Enquanto que os signos da linguagem só remetem a outros por fim as máscaras brancas. Com um livro na mão, sorri como um animal
signos, no interior do mesmo sistema, e fazem com que a
domesticado, para ao final despir-se peça por peça até que se livra das cor­
língua não possua mais mundo, como não possui tempo e
subjetividade, o discurso sempre é discurso a respeito de rentes e preenche, com o seu novo corpo negro libertado, toda a superfície
algo: refere-se a um mundo que pretende descrever, expri- da tela.
i mir ou representar. (RICOEUR, 1990, p. 46)

As cenas iniciais revelam um interesse em detalhar as partes cor­


porais - coincidência entre corpo e narrativa, ou comentário irônico à feti-
chização colonial? (MERCER, 1994; BHABHA, 1998) -, a língua, a orelha,
os dentes, as axilas e uma gota de suor que escorre como índice da materia­
lidade inescapável do corpo que se representa assim, como os sinais de sua
concretude. O que enfatiza, também, de modo paradoxal, a impossibilida-

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do nosso horizonte de expectativas, somos expostos a um


vislumbre das regras invisíveis que normalmente funcio­
nam para consertar o excedente polissêmico que dá à arte
o potencial de introduzir algo diferente e novo no mundo.
(MERCER, 2016, p. 10)xxxii

Produzido em apoio à luta pelos direitos civis dos negros nos Es­
tados Unidos, para introduzir algo diferente e novo no mundo, e montado
sobre a música de mesmo nome interpretada pela cantora norte-americana
Lena Horne, “Now!” se apoia na heroína das lutas por emancipação racial,
Horne, que brilhantemente deu vida à canção que clama inequivocamente
por ação direta:

O cineasta cubano Santiago Alvares com seu curto filme “Now!”, Se aqueles senhores históricos voltassem hoje
Jefferson, Washington e Lincoln
de 1965, investe formalmente para explodir convenções políticas e visibili­ E Walter Cronkite os colocasse no Canal 2
dades codificadas, elementos que justificam a si mesmos no campo sintáti­ Para descobrir o que eles estavam pensando

co, mas que demandam intepretação em um sentido histórico-hermenêuti­ Tenho certeza de que eles diriam
Obrigado por nos citar tanto
co nesse filme, considerado o avô dos videoclipes. O formalismo estrutural
Mas não queremos reverências
impedira a interpretação de natureza semântica, como no formalismo an­
Chega de citações
tropológico Levistraussiano, onde o mito, por exemplo, é “uma forma em
Coloquem essas palavras em ação
busca de conteúdo”. (LÉVI-STRAUSS, 1975) Como em “Alma no Olho” E nós queremos dizer ação agora

observa-se também aqui recurso narrativo de tomar-se a música como fio


Agora é o momento
condutor do filme. Em “Alma no Olho”, o artista escolhido foi John Col- Agora é o momento
Vamos, nós adiamos isso por tempo suficiente
trane, no caso de Santiago, a artista é Lena Horne. Em ambos os casos uma
tensão entre montagem (sintaxe) e narrativa (semântica) amplifica a per­ (...)
Agora é a hora
turbação estética que prende nossa atenção. Como coloca Kobena Mercer
Agora é a hora.3™
para a arte de um modo em geral e para a arte negra em particular:

De acordo com Sérgio Henrique Carvalho Vilaça, Santiago Alva-


Se cada significante tivesse uma relação invariável com um
rez foi o principal cinecronista da Revolução Cubana; cineasta eleito por Fi-
significado, a inovação formal seria impossível. Isso quer
dizer que quando a arte nos tira do comum interrompen­ del Castro para registrar e difundir os ideais e feitos revolucionários a partir

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de 1959. (VILAÇA, 2013) Sendo intensamente prolífico, também se nota­ e descobriria que Washington estava na linha:
Washington: O que você tem para o almoço - oh, digamos
bilizou por invenções formais como em “Now!”, onde o ritmo da narrativa
amanhã Jim?
é definido por uma edição ágil, “videoclípica”, centrada em superposições Jim: Oh - por que? - acho que estou livre.
Washington: Por que você não pega um voo até aqui? Man­
irônicas e ácidas, tornando visível a discriminação racial e a violência con­
damos um carro para o aeroporto. Tudo bem às uma?
tra os negros nos Estados Unidos. Jim: Claro. Estarei lá.
Escrevendo sobre o “zapping” no começo dos anos 1990, Arlindo Washington: Ótimo. Feliz em vê-lo.
Assim, lá eu estaria no dia seguinte, um bom soldadinho,
Machado diz: sentado (junto com outros bons soldadinhos) ao redor de
uma mesa de almoço em Washington. O primeiro movi­
Uma narrativa nova começa a tomar forma, a partir dos ca­ mento não seria o meu, mas eu sabia muito bem por que
cos de gêneros, das sobras de outras narrativas. Sem conse­ me pediram para estar ali. Finalmente, alguém diria - nós
guir se completar nunca. Em que pese sua aparência exótica provavelmente já teríamos chegado na salada - “diga, Jim, o
e desconcertante, talvez seja essa a única forma sintagmáti- que vai acontecer esse verão? (BALDWIN, 2016, p. 6)
ca capaz de resistir ao trituramento implacável do zapping.
Essa forma narrativa limítrofe toma corpo sobretudo nos
videoclipes. (MACHADO, 1993, p. 161) E o no próximo verão, os rituais da repressão e da violência poli­
cial consequente tornariam a se repetir. Como mais uma vez se repetiriam

A iconografia “limítrofe” da repressão policial ganha com “Now!” as “riots” [motins] como as que ocorreram em 1943 em Detroit e em 1965
em Los Angeles.
uma recopilação sugestiva, fazendo de cada queda ou embate, de cada jato
Uma após outra, no filme de Alvarez, vemos cenas de crianças e
d’água ou cão raivoso, a performação de uma resistência incorporada, mas
mulheres que se sucedem e são interrompidas por jatos de água em tons de
principalmente significando cada cena ou quadro em suas relações, no con­
prata sobre corpos negros que caem no chão, cachorros sanguinários e “law
junto, ou no eixo da contiguidade, como uma série, do modo como Etienne
enforcement officers” [policiais] que saltam sobre corpos de rapazes negros
Samain (1995) discute as imagens clássicas feitas pelo antropólogo funcio-
que tentam salvar a própria pele enquanto se engajam na revolução. Mãos
nalista Bronislaw Malinowski na Melanésia.
para cima com correntes, jovens universitários se rebelam. Uma jovem ne­
A cena de abertura, antológica foto de uma reunião entre o grupo
gra se contorce como em um número de teatro de revista, arrastada por inú­
liderado por Martin Luther King, e o presidente Lyndon B. Johnson, evoca
meras mãos de policiais brancos. Muitas imagens, de jovens manifestantes
as observações ferinas de James Baldwin em “Relatório de um Território
agarrados e jogados para lá e para cá, atacados por policiais de arma em
Ocupado”.
punho, encurralados por feras de dentes afiados, parecem em êxtase ou em
transcendência insuspeita, com a cabeça para trás, de olhos cerrados, des­
Havia um jogo, jogado por algum tempo por pessoas al­
tamente posicionadas em Washington e por mim mesmo, maiados nos braços de camaradas, remetem a transes religiosos ou carna­
antes que a administração mudasse e a “Grande Sociedade” valescos, como os capturados por Arthur Ornar em “Antropologia da Face
alcançasse o estágio do planejamento. O jogo era mais ou
menos assim: por volta de abril ou maio, que é quando o cli­ Gloriosa” e acentuam a fragilidade corporal no abandono produzido pela
ma começa a esquentar, meu telefone tocaria. Eu atenderia violência de Estado e pelo misticismo revolucionário. (OMAR, 1997)

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rada como entre os Guayaki, e como no conto de Kafka, “A Colônia Penal”,


citado por Clastres (1990). Ora, parecer ser a abolição da distância entre o
representado e um conteúdo presumido, entre o mundo e as formas de sua
representação, o que permite a constante resistência à unificação e à centra­
lização política e semiótica. Como discute Viveiros de Castro, a “sociedade
primitiva” existe “impedindo a projeção de uma convenção totalizadora,
uma figura do Um que a encarnasse e sobrecodificasse. A transcendência
heteronômica da origem [mítica] serve então como garantia de imanência
e autonomia do poder social”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 325)
No moderno mundo antinegro, todavia o corpo negro é marcado
por sua condição epidérmica que resiste a simbolização, como vimos. A
tensão entre irrepresentabilidade do corpo negro, e do negro como seu
corpo, forma uma fronteira, border. Entre a lei e o corpo. O Estado e o sen­
tido. A imanência e a transcendência. O mito e a História. A sociedade civil
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=bd-IZvAUosc. Acesso: 25 jan 21.
e a morte social. O fato de persistir entre os povos indígenas latino-ame­
ricanos a “lei não-separada”, não divorciada do mundo, implica em reco­
E, finalmente, as monstruosas cenas de linchamento. O corpo car­
nhecer em profundidade, na transição pós-mitológica, as ambiguidades já
bonizado sobre as brasas sugere que a negritude não pode de fato ser toma­
apresentadas por G. Spivak para a política da representação. A dualidade
da como uma representação, no registro do signo, ela encontra seu limite
verificada na separação do mundo de seu “conteúdo”, e entre a coisa inerte
no corpo/flesh que arde sob o holocausto racial.
e a presença diferida como sentido, se reconcerta como a delegação de po-
O significado político da carne também está discutido, sob lente 1
der necessária à centralização política. As formas rituais de negação do Es­
antropológica, em “A Sociedade Contra o Estado”, onde Pierre Clastres in­
tado, e sigo com Clastres, exigem que o corpo seja a superfície de inscrição.
terroga como e porque determinadas formações sociais resistem a centrali-
A imanência imposta ao negro em sua dimensão fobogênica, nega como
dade do Estado, e quais a consequências políticas e ontológicas para tanto. um antagonismo perfeito a vinculação do negro ao mundo da sociedade
(CLASTRES, 1990) O regime de significação parece intrinsecamente co-de- civil e da esfera pública mediada pelo Estado. E essa negação, afirmam os
terminante para esse processo. Como discutido no próximo capítulo, negar afropessimistas, funda o mundo, a esfera pública e a legitimidade do Estado.
o Estado implica inscrever a lei no próprio corpo, e abolir nesse sentido a Puro corpo, o negro está desde sempre fora da lei. E representá-lo seria de-
separação entre a representação codificada da lei e sua experiência imanen­ volvê-lo ao regime de afirmação de si como pura negação ou pura ausência.
te, que se imporia. Mergulhando nos “sentidos”, ou em uma “erótica”, sob Porque aquilo que é ele não lhe pertence. (DERRIDA, 1995, p. 123) A borda
a qual a dor e a violência da lei são produzidas na superfície da pele tortu­ negra entre o seu corpo e o sentido não é, por fim, a fronteira a partir da

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qual as representações sobre cultura Negra e negritude perdem o sentido? No caso específico dos dois filmes discutidos nessa seção, impor­
A razão de ser? taria reter a tensão, limítrofe, entre formas de significação de natureza sin­
O que se representa em “Alma no Olho”? A narrativa está incor­ tática, ou por contiguidade - a série de imagens que se produzem como
porada e performada com o recurso virtuosístico do corpo negro contra o código - em oposição a formas de natureza metafórica ou simbólica, que se
fundo branco. Cada momento da narrativa, por exemplo, a luta de boxe, produzem por substituição. (LEACH, 1978) Ora, no plano sintático, o cor­
remete para algo que não está ali, como um símbolo, que luta para oferecer po é a própria carne, suporte da alienação materializada, a máscara branca
des-representação ao estereótipo fobogênico por meio da pantomima cor­ em “Alma no Olho”; no plano metafórico, o corpo é a pessoa do homem
poral. A imanência do corpo que não é representado como a “brutalidade”, negro, capturada pela escravidão e pela morte social. E esse limite formal
mas é a própria brutalidade (GORDON, 1999), parece fragmentar-se para - black border - parece ser o lugar onde a arte negra é conceitualmente
resistir à significação. Entre a imanência brutal, pré-significada, da morte
social e a inventividade fugitiva da pantomima de Zózimo, uma fronteira
ou limiar se estabelece. Entre uma pessoa, que só pode ser um tipo, e o seu EXPERIMENTANDO A TRAGÉDIA RACIAL
corpo, quase um espécime, responsável por toda uma raça, como descreve
de modo definitivo Fanon, e que ainda assim busca representar a si mesmo.
O poeta Alex Simões é o transcritor inspirado das agruras da posi-
(FANON, 1983) Ora, tal autorrepresentação é uma negação. Para “ser” o
cionalidade negra e queer em um mundo antinegro, no qual a objetividade
negro precisa negar o mundo, para representar o mundo, negar a si mesmo.
do fato estético está acuada contra o necropoder formador das paisagens
E no caso de “Alma no Olho” a mise-en-scène depende, é claro, da pré-sim-
sociais onde nossa subjetividade busca, em meio a fogo e fumaça, interrogar
bolização do corpo negro, porque um artista branco não poderia, digamos,
a si própria.
representar esse papel.
Mas ora, como diz G. Spivak, “as distinções que se alteram entre
quero poder cantar impunimente
a representação no âmbito do Estado e da economia política, por um lado, sem ter de agradecer por estar vivo
ou problematizar por que se sente
e da Teoria do Sujeito, por outro não devem ser apagadas”. (2014, p. 41) A medo de ter tesão, tédio, convívio
subjetividade do povo afro-americano, ou afro-brasileiro, não está apartada onde estão meus amigos, minha gente,
mortos por mil & tânatos motivos
da devastação do Estado, e das violações à integridade da pessoa negra que
ou quase vivos quando assim de frente
constituem a própria negritude. Entretanto, como acentua Gleich, na zona qual das verdades que nos traz alívio?
não ter respostas pode ser apenas
de contato - entre o mundo antinegro e as formas de subjetivação negra
o início de certa indignação
- existe a fugitividade. Que não resolve o antagonismo estrutural nem a mas disfarçada e em doses pequenas
na militante estética do não
emancipação do negro em sua condição irrepresentável, mas significa in­
se apresentar nem pra salvar o mundo
ventividade, ruptura e objeção. Consciência corporal e insurgência históri­ nem pra trazer à tona o que, no fundo
(SIMÕES, 2018, p. 16)
ca de uma positividade definida pela negação.

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No fundo, não há solo seguro para os significados estabilizados, que provoca, o desconforto e a repulsa, a náusea diante dos cadáveres ensanguen­
como um referente, centro ou lastro para o sentido. No fundo está uma tados compõem síntese de significados atordoados, que procuram representar o
fratura, ou melhor, uma borda ou limiar que define a opacidade totalizante insuportável.
da morte social, que garante ao negro um lugar fora do mundo e fora da lei. O corpo de Davi jamais foi encontrado, em seu lugar ouvimos a
Ora, estando fora da lei, na fronteira ou zona de contato, estamos ao mesmo voz entrecortada de sua avó: “Davi, ele foi levado por 23 homens da polícia
tempo dentro e fora do mundo - de sentido e poder - criado pelos setllers, militar. Matar bicho, quebrar pescoço, quebrar o braço, tomar nove tiros e
e nesse sentido poderíamos significar apenas de modo “fugitivo”. dizer que meu neto enfrentou a RONDESP”. A mesma mulher completa:
O limite do corpo, em seu sentido mais carnal, fisiológico, apro­ “[...] ninguém aqui em embaixo tem cacife para enfrentar a RONDESP”18.
xima para mim, como para muitos críticos, a exposição de cadáveres a um A triste hipótese de sua mãe parece horrivelmente mais plausível: “O que eu
ato pornográfico, obsceno, profano. Notadamente porque infenso à sig­ penso é o seguinte, é que destes dezenove que estavam em formação... tem
nificação e definido por esse exílio perecível e malcheiroso da carne. Um aquela coisa do batismo que se fala, naquele momento eles decidiram fazer
corpo despido e ensanguentado, desfigurado pela violência e humilhado
um holocausto de meu filho, Davi passou por um holocausto e depois disso
pela nudez não representa nada. Ou melhor, representa justamente o nada,
eles foram agraciados, entrando na polícia militar da Bahia”. Como eu mes­
a vacuidade e o vazio. Uma não pessoa, uma coisa entre as outras. Ora, os
mo já apontei em outro lugar, parece haver nesse caso uma dimensão sacri­
dois filmes que irei discutir agora justamente põem em cena esse limite ou
ficial (holocausto) quase totêmica na morte negra e na espetacularização da
clausura, que obriga o corpo a ser ele mesmo e, de modo quase obsceno,
violência que a acompanha. (PINHO, 2018) O corpo negro barbarizado é,
resistir à interpretação.
nesse sentido, a “parte maldita”.
“Notícias de uma Guerra Racial Subnotificada”, o primeiro des­
tes, é, segundo seus produtores, “um documentário anticolonial, um filme
A vítima é um excedente retirado da massa da riqueza útil.
de terror, de terrorismo racial, que conta as histórias de um povo desgraça­ Ela só pode ser retirada para ser consumida sem lucro, con­
sequentemente destruída para sempre. Ela é, a partir do mo­
do pelo Estado brasileiro. O curta é dor e força; é massacre e organização;
mento em que é escolhida, a parte maldita, prometida ao
é corpo tombado e corpo que afronta; é choro e é urro de raiva”. Produzido consumo violento. (BATAILLE, 1975, p. 97-98)
pela campanha “Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta”, é elemento
do que poderíamos chamar de guerrilha semiótica. Busca chocar, como­ O corpo negro em sua materialidade pornográfica deve ser consu­
ver, constranger e convocar para a luta. Está centrado no caso do que ficou
mido em sacrifício, para que a vida social e a vida interior da antinegritude
conhecido como a chacina do Cabula, onde policiais militares executaram
global faça sentido, para que o Estado nacional encontre um modo de ob-
12 jovens no bairro do Cabula em Salvador. Assim como no caso de David
jetivação em negativo que reúna e concentre as antinomias de sua própria
Fiúza que, segundo a imprensa, teve o corpo barbarizado por 22 policiais
perdição, na forma de um corpo negro, objeto vicário das projeções fan-
militares, dezenove destes cadetes em formação. (BAHIA MEIO-DIA, 2018)
O filme está atravessado pela morte social sob as formas mais ultrajantes, e o ultraje 18 RONDESP é a sigla pra Rondas Especiais da Polícia Militar da Bahia.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

tasmáticas do poder branco. Os valores sociais, como exemplarmente de­ Obviamente que esse debate tem a sua própria tradição. Susan Son-
monstrado no caso em questão, estão garantidos porque o corpo negro foi tag, em “A Imaginação Pornográfica” nos alerta: “O tema da pornografia
estilhaçado, o braço quebrado, a cabeça arrancada, os restos destruídos na não é, em última instância, o sexo, mas a morte”. (1987, p. 64) Na medida
pira do esquecimento. Tudo isso, como diz Dr.a Andreia Beatriz, ativista da em que implica em extroversão e des-pessoalização total, retratada na este-
Campanha Reja, para lembrarmos “o que significa ser negro”. Uma coisa, reotipização das emoções, e em certa suspensão moral, “apenas na ausência
como um cadáver no asfalto. Nada, como a negação da pessoa do homem de emoções diretamente observadas pode o leitor de pornografia encontrar
negro. espaço para suas próprias respostas”. (Idem, p. 59) Recentemente, Judith
David Marriott discutindo as fotografias de linchamentos racistas Butler voltou ao tema, de uma forma que se articula a nossa discussão aqui,
no sul americano durante a segregação, pergunta-se: “E se o tráfico cultural discutindo a difusão das imagens da tortura ocorridas na prisão de Abu
de imagens dos negros como objetos fóbicos - espancados, desfigurados, Ghraib. As fotos chocantes, de homens e mulheres, militares norte-ame­
linchados - for traumática o suficiente?” (2000, p. 13)XXX1V E, se as imagens ricanos, torturando e humilhando prisioneiros, inclusive de várias formas
dos corpos desfigurados dos jovens negros representados em “Noticias sexualizadas, foram tomadas como representações obscenas. O que Butler
configurarem, elas mesmas, mais violência e desumanização, ou a violên­
pergunta é como a dor é representada e como essa representação pode nos
cia do arquivo”, como em Hartman (1997), completando o trabalho ritual
afetar. O que desse modo significara considerar as imagens como “estrutu-
de exposição e humilhação do corpo negro? Confesso que essa foi a minha
radoras das representações”. No regime de representações sob o capitalis­
percepção imediata sobre o filme. Uma profanação. Se as mortes negras
mo, ou a “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1998), as imagens não nos
cumprem uma função ritual, de exorcizar violentamente todos os pesadelos
aproximam do sofrimento, na verdade, nos distanciam mediante operação
do mundo antinegro, a exibição dessas mortes não seria uma confirmação
voyeurística de gozar com o sofrimento alheio, e nesse sentido cancelar
dessa expiação? Completaria ou se oporia ao trabalho da violência, que sec­
qualquer possibilidade de empatia. Na medida em que o sofrimento não
ciona o corpo negro, e separa o negro de seu corpo? Como Marriott mais
humaniza, mas nos torna “animais humanos”.
uma vez aponta: “Uma imagem de identidade branca emerge de um espetá­
culo de aniquilação”. (2000, p. 6)xxxv Não é o poder confortador da branquidade
O problema aqui não é, contudo, a prática da visão erotiza-
que sai fortalecido desse espetáculo miserável? Acreditando denunciar, como­ da, mas sim a indiferença moral da fotografia somada ao seu
ver, desestabilizar o filme do Reaja não faria mais do que confirmar a dimensão investimento na continuação e reiteração da cena como um
ícone visual. (BUTLER, 2015, p. 137)
objetai, obscena e sacrifical das mortes negras. O que distingue a exibição do
sangue sobre a bermuda cyclone na viela, da exibição de corpos massacrados
na imprensa sensacionalista e punitiva? A fixação no corpo - cadáver - negro Ora, tal ícone visual é nosso corpo morto - o cadáver no chão -,

não meramente repete a coisificação da pessoa negra? Não fala a mesma lin­ abismo da significação. E a interdição de qualquer ontologia possível diante

guagem? O corpo infenso à significação ou à agência subjetivada é um resto, desse objeto profanado.

um fardo putrefato de um fantasma que se dissolveu no tempo (i)reversível.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Musa Matiuzzi, em sua performance “Experimentando o Dilúvio mente antinegra. Ao tomar a própria carne como matéria para elaboração
em Vermelho”, se acerca desses problemas de outra forma, mais reflexiva da insubordinação, Matiuzzi busca humanizar-se revelando ser uma pes­
e autoconsciente das contradições, antagonismos e tensões envolvidas na soa, escondida em meio a sua própria carne. Se a negação da humanidade
representação do corpo negro sobre o registro da antinegritude global. do negro se refere à intratabilidade de seu corpo, como carne, além de qual­
quer significação, é com a própria carne que Matiuzzi pretende significar,
escrevendo com sangue um comentário que explica a si mesmo. Ele mes­
mo, imanente em sua materialidade, e outro, transcendendo em sua signi­
ficação. Como coloca Hartman: “O significado do performativo não está na
capacidade de superar essas condições ou providenciar remédio para elas,
mas em criar um contexto para a enunciação coletiva da dor”. (1997, p. 52)
XXXV1 E, nesse sentido, a performance de Matiuzzi opera no sentido inverso
ao filme do Reaja.
A “alma no olho” ou a integridade do “ser”, recontada através de
uma narrativa corporal que afirma a corporeidade para negar a farsa da
História; a montagem formalizada e ágil de “Now!” decodificando o corpo
negro e sua luta, no êxtase revolucionário decupado em quadros animados
pela luta revolucionária; o panfleto visual da campanha “Reaja”, aprisio­
nado nas mesmas aporias da representação do corpo negro como abismo
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=VNSbWM4aCDg. Acesso: 25 jan 21. mortal para sua humanidade; e o vermelho sangue, matéria corporal re­
conquistada, não para suplantar a contradição, mas para viver o antagonismo
A performance é apresentada como “um dispositivo para a cria­ na própria carne. Os elementos formais mobilizados para assumir e tratar tais
ção de contranarrativas (...) de pessoas, invisibilidades no espaço”. (RIBEI­ antinomias são um salto na escuridão, inconcluso e perpétuo, suspenso em

RO, 2017) A artista, em diversos lugares públicos, perfura partes sensíveis um limite, limiar, borda ou fronteira. O corpo objetivado em sua carnação,

de seu corpo com agulhas. Sangue em profusão. Um dilúvio em vermelho não está distinto dele mesmo. A lei do Estado como “lei separada” não pode
prescindir desse sacrifício, intervindo na significação do corpo negro, como o
de sangue negro. Como ela explica: “Eu vivo sobre as ruínas do que cha­
corpus da sociedade que anseia por sentido. Tornada objetiva na própria carne,
mam civilização”. Em meio às ruínas e a evocações ancestrais, se reivindica
diante das fronteiras do Estado e da sociedade civil, a negritude performada
uma sacerdotisa que sacrifica o próprio corpo. É nesse sentido a carne (fle-
entende que afirmar a si mesma é dessa forma negar o mundo e a sua imagem.
sh) que parece ascender ao lugar de dispositivo de subversão, ou objeção.
No caso da performance de Matiuzzi e do filme do “Reaja”, o limite
É o corpo negro em sua imanência que é (des)feito ali, para jorrar sangue e
(border) não é, entretanto, apenas formal/epistemológico, código versus signi­
sentido, sobre o vazio, ou por sobre as ruínas de uma civilização essencial­
ficado, corpo ou flesh, mas também ético e ontológico.

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OSMUNDO PINHO

Em “Onticide”, Calvin Warren desenvolve os parâmetros por


meio dos quais podemos divisar os problemas da representação no mun­
do antinegro como problemas éticos, definidos pela violência gratuita, pela
violação dos corpos, pela fungibilidade da carne negra, como medidas es­
truturais, estruturadas pelo antagonismo geral racial e pela passagem do
meio.

O sofrimento negro é ilegível e incomunicável porque care­


ce de uma gramática de enunciação adequada. O sofrimen­
to pertence ao humano; é uma característica inescapável da
condição humana. A “violação da carne”, no entanto, é uma
prática assassina sem um ‘nome próprio’ ou qualquer nome
que seja reconhecível no interior do Simbólico. (WARREN,
2015, p. 10)xxxvii

Irrepresentável, porque escapa ao regime semiótico das represen­


tações, a negritude é (des)ontologizável do mesmo modo, ou por isso mes­
mo. O limite do sentido para a cultura negra (“Alma no Olho” e “Now!”)
é o limite ético para a pessoa do homem negro (“Noticias” e “Dilúvio em
Vermelho”), o que a ambiguidade do termo “representar” insinua. (SPI-
VAK, 2014) A fronteira negra é um limite, como o único lugar onde o negro
pode “ser” aprisionado na materialidade fobogênica, e eticamente irrepre­
sentável no mundo. Tal suspensão, ou tensão, do ponto de vista do mundo
antinegro, parece um beco sem saída, onde buscamos escape nas práticas
fugitivas que se equilibram nessas bordas perigosas entre ser uma coisa e
não ser nada. Ou, alternativamente, na imanência da ancestralidade, como
iremos discutir no próximo capítulo.

140
CATIVEIRO

IV
“SANGUE ATLÂNTICO”: MORTE SOCIAL E ANCESTRALIDADE
EM ALBERT ECKHOUT E AYRSON HERÁCLITO

Pode a beleza ser um antídoto para a desonra,


E o amor uma maneira de “exumar gritos enterrados” e reanimar os mortos
Saidiya Hartman, “Venus in Two Acts”, 2008.

SANGUE ATLÂNTICO

Neste capítulo, retomo a reflexão sobre arte negra, para rediscutir


epistemologias e formas discursivas práticas tensionadas pela passagem do
meio e suas metamorfoses, configuradas como dois momentos ou posições
para as formas políticas de subjetividade e imaginação negras: a “ancestra-
lidade” e a “morte social”. No centro, ou ponto médio dessa constelação
repousa, sobre as águas vermelhas do atlântico escravista um problema em
dupla entrada, e que se refere a (im)possibilidade da representação para o
negro, como muitos autores, dentre os quais Lewis Gordon, como vimos
anteriormente, tem insistido (1999). Não só negro não pode ser representa­
do, porque imerso na coisidade, e fundamentalmente na imanência, “uma
coisa entre as coisas”, mas a própria negritude não poderia, do ponto de
vista definido pela morte social, ser representada. Ora, como assim, dessa
forma, poderíamos falar em arte negra? A contraposição entre “escravo” e
“africano”, ou “morte social” e “africanidade” parece dessa forma projetar-
-se como a tensão entre representação e imanência. Nesse sentido, buscarei
retraçar esses rastros na consideração da obra dois artistas muito diferentes,
e que em épocas, e de desde pontos de vista muito distintos, abordam a
conexão entre a transposição forçada e formas de representação, imanência

143
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

e posicionalidade negra. Estes são Albert Eckhout e Ayrson Herclito e é jus­ Figura 6 - “Sangue Atlântico”, Samuca, 2018.
tamente a distância entre os dois que me interessa ressaltar aqui.
Lewis Gordon, como vimos, tem considerado a incorporação da
negritude a partir de dois elementos. Primeiro, o negro e/ou o seu corpo é
descrito como uma “coisa entre outras coisas”. Em segundo lugar, como
“pura ausência”, resistindo dessa forma à simbolização. (GORDON, 1999)
Nesse sentido, o negro é seu próprio corpo e seu corpo é pré ou não-sim­
bólico. O que implica dizer que a negritude, que não pode ser representada
ou interpretada, encontra-se aprisionada na materialidade da carne (flesh),
como está em Spillers (1987), e como discutimos no capítulo anterior. Tal
aprisionamento conforma, em termos fenomenológicos o mundo antine-
gro. A emergência desse mundo é costurada pela passagem do meio e pela
transposição forçada, que é um desenraizamento, uma anulação, uma rup­
tura sem volta, definida pela economia política do mercantilismo colonial,
que instituiu os meios materiais e simbólicos para uma conversão tal que
impôs uma ruptura ontológica essencial. Definida pela violência avassala­
dora, mas principalmente pelo mergulho sem volta em um mar de morte,
um mar de sangue, depois do qual a pessoa do africano deteriorou-se ao
tempo em que todo reconhecimento seria negado. A passagem do meio,
instaura na História a forma da morte que define subjetivamente a condição
Fonte: Foto do autor, 2018.
escrava. O mar de sangue, a transcendência final que pode ser lida como
definida por uma estrutura ritual: separação, liminaridade, ou morte, e re­
Sacrificada e morta no meio do atlântico sanguíneo a pessoa do
integração. Ou de um modo sacrificial, como a parte maldita que que deve
africano, renasce esvaziada como o negro escravizado. O cenário deliran­
ser lançada fora para produzir prestígio, poder e beleza, como aparece no
te, para tanto, não é inócuo, ou estéril, e como tropo e paisagem histórica
Capítulo III. (BATAILLE, 1975)
é representado ou tomado como limite da representação em sua própria

i materialidade, como na gravura de Samuca, que dá título a esse capítulo.


O jovem artista, grafiteiro em Salvador da Bahia (FALCON & GARCIA,
2014), que usualmente inscreve nos muros da cidade faces e máscaras, nes­
sa obra de contrastes diretos entre o céu azul profundo e o mar vermelho

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

sangue, concentra toda a sua energia criativa no emblema simbólico do Etnografisk Samling do Nationalmuseet em Copenhague. (COSTA, 2011;
navio negreiro, e com a dramaticidade plástica das gravuras retrata o turbi­ BELLUZZO, 1994; BRIENEN, 2004; 2006)
lhão violento que é o caminho sem volta da destruição, ruptura ou sacrifício
estrutural que prepara a cena para um sujeito impossível, que submerso na Figura 7 - “Guerreiro Africano” - Albert Eckhout, 1641.
aniquilação marítima busca reencontrar-se. No sangue, através do sangue,
em meio ao mar: morte líquida, avermelhada como o dendê, apropriado na
obra de Ayrson Heraclito.
Veremos então como podemos retomar esses temas na obra dos
dois artistas referidos, primeiro na tipologia alegórica de Albert Eckhout,
inaugurando no século XVI uma gramática visual da raça e da colônia; e em
segundo lugar, no investimento na materialidade dos elementos simbólicos,
como uma transmutação da experiência escrava e colonial em Ayrson He-
ráclito.

“GUERREIRO AFRICANO”

Chegando ao Brasil holandês em 1637, o pintor neerlandês Al­


bert Eckhout permaneceu no território recém-conquistado até 164419 como
parte da comitiva que acompanhou o Conde Mauricio de Nassau-Siegen,
governador do que era a capitania de Pernambuco. Com fama de ilustrado
e humanista, Nassau também se fez acompanhar de outros artistas e sábios,
como Franz Post, pintor de grandes cenas e paisagens, além de Eckhout,
dedicado, de modo “verista”, a representações de teor naturalista e “etnoló­
gico”. Em 1654, Nassau presentearia o rei Frederico III da Dinamarca com
26 obras, sendo 23 da autoria de Eckhout, dentre estas uma pintura em ta­
Fonte: Brienen, 2006.
manho natural, que representa um dos “tipos” raciais da colônia, conhecida
como “Guerreiro Africano”. Datada de 1641, a pintura hoje se encontra no
Muito já se disse sobre o quadro, tanto do ponto de vista de uma
19 A dominação da Companhia das índias Ocidentais Neerlandesas no nordeste brasileiro durou de história das transposições coloniais ou “trocas”, observadas nesse horizon­
1630 a 1654.

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te, quanto do ponto de vista formal, de uma análise pictórica ou de compo­ américas - é bastante robusta e estabelecida, e se espraia e se conecta jus­
sição, típica da história da arte. Definiríamos nosso problema interrogando, tamente com o campo da representação e suas artimanhas. Em “Scenes of
todavia, tal qual muitos outros já o fizeram, o lugar central das imagens para Subection”, Saidiya Hartman discute a formação da subjetividade negra a
a imaginação colonial no Brasil. A criação de imagens neste contexto nada partir da cena primordial, retratada em Frederick Douglas, do suplício de
tem a ver, por óbvio, com qualquer tipo de transparência epistemológica, sua tia Hester, em 1845: “Este espetáculo horrível dramatiza a origem do
ao contrário, mostra como as convenções paradigmáticas da representa­ sujeito”. (HARTMAN, 1997, p. 3)xxxix A cena é primordial porque localiza
ção engendram significados políticos e como estereótipos sociais forjaram a “carne” (flesh) negra no centro de uma articulação entre representação
como que uma máquina visual, que cria, na minha hipótese, uma gramática e despossessão. Uma conexão que vemos repetida nas representações do
para a interpretação/produção de corpos negros no horizonte (pós) colo­ Brasil escravista.
nial brasileiro. No chão, na litografia de Jean-Baptiste Debret (elaborada a partir
Desse ponto de vista, tomo o quadro de Eckhout como instância, de uma aquarela de 1828), o homem rola com feições deformadas pela dor,
ou modelo provisório, para discutir alguns elementos possíveis dessa gra­ imobilizado por uma vara entre as pernas, aguarda o golpe do açoite. (DE­
mática colonial racializada e de gênero. Tendo sempre em mente como a BRET, 1989; BANDEIRA & LAGO, 2009) A tradição consagra essa e outras
imaginação colonial estabeleceu as matrizes da cultura contemporânea bra­ cenas como parte do cânone iconográfico do suplício escravo. A violência
sileira - como um aparato discursivo de poder - e seus possíveis futuros. O da cena retratada e a dimensão indiciai - ainda que obviamente não seja
que se conecta com nosso interesse sobre a racialização da masculinidade, possível desprezar as convenções técnicas e escolhas estilísticas para a cena
desenvolvido em outros campos. (PINHO, 2006; 2015) - dão testemunho da agenda do artista, e de uma paisagem sociocultural
A escravidão tem sido apontada como marco fundamental para onde o escravo poderia ser reduzido à própria carne (flesh) ensanguenta­
a estrutura das significações, e para as condições de possibilidade de uma da. Assim como de outro lado estabelece um motivo e tema, tropo, para
subjetividade como posicionalidade política, como estamos vendo aqui. representação do suplício em si mesmo, e como contraparte negativa da
(WILDERSON, 2010; SEXTON, 2011) A mim me interessa interrogar a condição humana. (HARTMAN, 1997)
invenção do “negro”, que deveria satisfazer a requisitos estruturais/ subjeti­
vos, para fazer um corpo histórico assujeitado caber em uma posição social
estruturada simbolicamente. O vínculo material entre o corpo negro e o
trabalho, e o vínculo simbólico entre o corpo negro e uma episteme ou regi­
me de representações, definem o foco de minha inquietação. Em ambos os
casos, a escravidão, ou a condição escrava, é teoricamente flexionada para
localizar africanos no espaço colonial do Novo Mundo.
Para o caso african-american a expansão desse argumento - que
reconhece na escravidão o fato fundamental para a experiência Negra das

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Figura 8 - “Feitor castigando escravos”, Jean-Baptiste Debret, 1835. Ora, a questão é, como coloca James Baldwin, se haveria algum momento
em que o homem negro teria “estado presente em sua própria vida”. (BALD­
WIN, 2018, p. 157) Ou de outra forma, em que lugar poderíamos identificar
a agência negra nesses jogos e confrontações coloniais, o que aponta para a
dimensão indiciai da obra de arte. Como diz então Cunningham: “O afro-
-americano como corpo cativo, material e metaforicamente, é público e está
em leilão; a ser arrematado em um circuito de troca linguística, discursiva e
axiológica fora do controle de sua própria agência”. (1996, p. 137)xl
Desse ponto de vista, é justamente sobre a representação ou ob-
jetivação que deveríamos fazer incidir a análise, porque nesse emaranhado
podemos dirigir questões adequadas para a relação entre convenções vi­
suais, fatos sociais objetivos, estruturas de mediação e representações que
transitam, ou se “deslocam”, no espaço colonial projetado como o vínculo
entre corpo racializado/gendered e a paisagem. Nesse sentido, e antes de
ensaiar mais algumas observações sobre o “African Warrior” de Eckhout,
convém lembrar mais uma vez como a crítica decolonial contemporânea
aborda questões de gênero e sexualidade.
Sabemos muito bem como a colonialidade do poder e o racismo
científico se conjugaram no Brasil, de um ponto de vista histórico, para

Fonte: Pedrosa et al„ 2018. construir mundos pré-coloniais (sexuais) como a fossa dos atavismos ra­
ciais e perversões sexuais. Ora, contra essa abjeção “bárbara” se institui a

A violência e violação do corpo negro, para além ou concomitan­ heterossexualidade e sua normatização, em direção a branquidade hete-

temente à suas funções econômicas - apontadas, por exemplo, mesmo por rossexualizada, como recentemente colocou Richard Miskolci, discutindo

Karl Marx (MARX & ENGELS, 1964) não esgotam a rentabilidade, ou a formação de um ideário de nação como ideal de heterossexualização e

plasticidade política e semiológica para o espetáculo da tortura e degrada­ embranquecimento. (MISKOLCI, 2012)

ções públicas. Como David Marriot (2000) insiste para o caso dos lincha­ Ou não teria sido possível a invenção da nação como “formação
mentos racistas do Sul dos Estados Unidos, o espetáculo de destruição e ani­ racial”, articulando raça e sexualidade em um projeto nacional de poder e
quilamento físico dos negros, e sua consequente devastação moral-pessoal, subjetividade. Como podemos divisar relendo a obra de Gilberto Freyre.
são essenciais para produzir a estabilidade da raça branca como um cons- Notadamente, “Sobrados e Mocambos” (2000), onde a discussão sobre mo­
tructo sócio-histórico. A redução do negro, seu corpo e integridades, a algo dernização da sociedade, sob as mudanças trazidas pelo império vis-à-vis
não humano ou pouco humano, é a confirmação da humanidade branca. o período colonial, se desdobra na formação de uma personagem mascu­

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lina, sujeito de gênero e raça, o bacharel mulato, síntese personificada da Essa referência sobre a escravidão é relevante, porque, como ve­
transição das formas de poder rurais, patriarcais e orientalizantes - porque remos, um dos aspectos controversos sobre o “Guerreiro Africano” relacio­

definidas justamente em uma teia de intercâmbios estruturada pelo império na-se exatamente ao estatuto de escravo, ou não, do homem representado.
Como parte da ocupação holandesa no Nordeste brasileiro, como
colonial português - em outras ocidentalizantes e modernas. O bacharel,
já disse, Eckhout teria sido incumbido de retratar a diversidade natural e
mulato europeizante, aparece descrito em Freyre como o homem de “ho­
humana da nova possessão colonial. Como Ana Belluzo e outros apontam,
mem de meia raça”, também assim feminizado, numa operação Freyreana 0 registro se inscreve na fabulação imaginária do Outro exótico, domina­
típica na qual a sexualidade, o desejo e o corpo parecem operadores centrais do por natureza exuberante e surpreendente. Os “tipos brasileiros”, grandes
da racialização. (FREYRE, 1995; PINHO, 2004) figuras de tamanho natural e figuração alegórica, que escorregaríamos ao

Em um livro tardio, “Modos de Homem & Modas de Mulher”, co­ dizer etnológico, justamente porque fundamentalmente alegóricos e tipo-
lógicos, estão construídos, como já apontado, como exemplos pictóricos,
leção de ensaios publicados em 1987, Freyre insiste em aplicar sua grade de
ou testemunhos, de diferentes estágios civilizatórios. O par de índios Ta­
gênero para interpretar o Brasil e sua configuração como sociedade racia-
puias, a mulher carregando membros humanos e o homem nu, encarnando
lizada, ou em suas palavras, “meta-racial”. É, entretanto, com relação aos a selvageria canibal; o casal Tupi aculturado, com tanga e faca na cintura; os
anúncios de escravos fugidos nos jornais, que Freyre se aproxima mais de mestiços sexualmente ambíguos; e, finalmente o par negro, a mulher, com a
nossa discussão, abordando por meio dessas descrições chocantes, a consti­ criança de pele mais clara, insinuando a miscigenação, e seu chapéu “asiáti­
co”; e o homem, que me interessa mais aqui. (BRIENEN, 2006; BUVELOT,
tuição de um corpo gendered, dividido nos modos (extravagantes) de vestir:
2004)
Olhando frontalmente para o observador, a personagem mascu­
No mesmo jornal, num dos quais de Io. de maio de 1848,
lina impressiona pela fisicalidade esmagadora, aspecto magnificado pelas
noticia-se o escravo ter fugido com “camisa de madapolão,
com casa de botão de ouro nos punhos e colete de seda roxa dimensões da imagem (273.00 cm x 167.OO cm). Com uma tanga de pa-
bordada...” Em anúncio do mesmo ano - de 13 de maio - dronagem africana (Akan), que acaba por chamar mais a atenção do que
diz-se de outro escravo fugido ter “levado calça e camisa dissimular os genitais, traz na cintura a espada Akrofena dos guerreiros me­
de riscado azul”. Em anúncio de 14 de abril de 1836 já se dievais Akan, povo da África Ocidental, que constituiu o Império Asante no
dizia do escravo Jose ter fugido “com calça de riscadinho século XVII. (M'BOKOLO, 2008; DARKWAH, 1999; QUARCOOPOME,
azul”. Em 1838, em anúncio de 12 de janeiro, fala-se de um
1997) Não podemos, obviamente, entretanto, assumir que Eckhout pintou
escravo fugido levando “jaqueta de riscado azul”. Já Elias,
o que via diante de si. Primeiro porque sabemos que outro artista - Zacha-
segundo anúncio de 13 de setembro de 1838, à calça branca
juntava “jaqueta de chita roxa”. Azuis e roxos brilhando em rias Wagener - preparou esboços para os tipos, ao menos para a “negra”,
trajes de escravos. (FREYRE, 2009, p. 198) colocando questões sobre a autoria original da composição e dos temas.
(BELLUZZO, 1994; BRIENEN, 2004) Sobre isso, aliás, como mais uma vez
apontado por muitos, os tipos seguem convenções de representação visual

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de matriz europeia, clichês, a exemplo das conhecidas representações alegó­ be um pássaro de origem africana (Agapornis pullarius) e uma espiga de
ricas da América e de outros continentes gendered. De pé, figuras femininas milho, indiscutivelmente americana, interpretados como signos do deslo­
olham de soslaio para o expectador e seguram algo com a mão, algum obje­ camento e intercâmbios coloniais (nesse momento, a Companhia das ín­
to alegórico, se posicionando em meio a símbolos de autoridade e estranhe­ dias Ocidentais buscava impor seu domínio na África, com a invasão de São
za, organizando o “olhar europeu colecionista”, como discute James Clifford Paulo de Luanda, justamente em 1641).
(2008). Por fim, sabemos que Eckhout, como outros artistas, tendo realiza­
do esboços in loco, teria ao que parece concluído suas obras na Europa. O
Figura 9 - Mulher Africana e Criança, Albert Eckhout, 1641.
que reforça o problema que estamos tentando definir, ou seja, a mobiliza­
ção de convenções visuais para definir um conjunto articulado, ou estrutura
para a representação racializada do negro sob o olhar colonial. Como coloca
Lilia Schwarcz, nesse sentido, é necessário:

...desmistiíicar a pretensa objetividade das gravuras então


produzidas, na medida em que se evidenciam interesses ou
mesmo padrões de intenções (...). Estamos diante, pois, de
uma verdadeira política de imagens, que justificava no limi­
te, a própria necessidade de domínio diante de povos com
costumes considerados tão distintos. (SCHWARCZ, 2018,
p. 527)

Então, menos etnologia e mais fantasia colonial. Uma fantasia me­


diada por convenções.
Cabe dizer que os quadros de Eckhout são considerados alguns
dos primeiros a retratar in loco os habitantes (racializados) do Novo Mun­
do; assim também a dimensão alegórica já citada é evidente; e nesse caso, a
alegoria da raça e do gênero nos interessa em particular20. No caso da mu­
lher negra, aponta-se a unanimidade em reconhecer nela uma alegoria da
“beleza e da força” da mulher africana. Os acessórios e adereços permitem,
por outro lado, múltiplas interpretações. Ao seu lado, a criança mestiça exi­

20 Thedor de Bry e outros produziram representações de povos indígenas anteriormente, mas não
exatamente racializados, uma vez que o próprio conceito moderno de raça se formou com base em
representações de africanos e escravos no Novo Mundo, como as que foram produzidas por Eckhout. Fonte: Brienen, 2006.
(BRIENEN, 2006)

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Assim também com relação ao representante masculino da raça ne­ A escravidão transatlântica foi e é o desastre. O desastre da
sujeição dos negros foi e é planejado; o terror é um desastre
gra. A presa de marfim, no chão, ao lado direito, é uma remissão clara à África,
e “o terror tem uma história (...) A história do capital, inex­
assim como a tamareira. Na cintura, a espada Akrofena, ao fundo, o mar. Ocea­ tricável da história da escravidão no Atlântico. O desastre
no desabitado, em contraste ao que aparece nos outros quadros, onde ao fundo e a escrita do desastre nunca estão presentes, estão sempre
presentes. (SHARPE, 2016, p. 5)xli
se veem inúmeras atividades. Como no quadro da negra, onde vemos barcos
e homens trabalhando. O vazio em torno de sua presença parece acentuar o
Nesse sentido, a troca, o intercâmbio, a circulação são centrais
aspecto de exotismo e selvageria, e aumenta a dúvida sobre a real locação da
para a circunscrição da posicionalidade escrava. Mas também, como apon­
personagem. Seria o Quilombo de Palmares?
Descalço como um escravo, o homem está armado como um guerrei­ ta Peter Mason, a “troca” como reciprocidade, no sentido de Marcei Mauss,

ro, e seu olhar duro e seguro reforça a percepção de que não se trata de um cativo. mais do que do ponto de vista da economia política, é central para a defi­

Segundo o músico e historiador Spirito Santo (2019), não há dúvidas, “Guerreiro nição do sentido no ambiente colonial. (MASON, 2001) O antropólogo,
Negro” é uma representação ou alegoria dos guerreiros negros ou africanos, que conhecido especialista em Eckhout, argumenta que três níveis, ou registros
se aproveitando da desordem provocada pela invasão holandesa estabeleceram de troca, definem o significado dos tipos brasileiros de Eckhout. Primeiro,
o Quilombo de Palmares (1580-1654) décadas antes. Pensando assim, o homem a doação dos vinte e seis quadros feita, em 1654, ao rei Frederico III da
retratado não seria um escravo, mas bem poderia mesmo ser uma representa­ Dinamarca, filho de Cristiano IV por seu parente João Maurício de Nassau-
ção de Ganga Zumba, líder dos quilombolas, que segundo Décio Freitas teria ido -Siegen. O contexto da troca de presentes entre os príncipes, sendo regido
pessoalmente ao Recife, .já reconquistado pelos portugueses em 1678. O ponto pelos princípios da reciprocidade, como definidos por Mauss (2002). Outro
de visita de Spirito Santo é, todavia, oposto ao do antropólogo Peter Mason, para nível das trocas está coalescido na própria engenharia interna da obra, ou
quem a figura retratada é um escravo: “A quase-nudez do homem na pintura nos elementos pictóricos relacionados, como o chapéu asiático da negra ou
leva-nos a assumir que ele é escravo. Há, portanto, uma incongruência óbvia
a presa de marfim, remetendo aos intercâmbios coloniais - também enfati­
entre sua situação e seu retrato com uma espada acã [sic], que era um símbolo
zados por Freyre na composição orientalista do ambiente sociocultural do
importante de status para dignitários e mensageiros”. (MASON, 2001, p. 239) Na
brasil colonial - que ligavam por meio do tráfico diferentes regiões e cultu­
verdade, sabemos que de fato o retratado deve representar um guerreiro ou dig­
ras. Sobre a “negra”, aliás, de quem se tem certeza ser uma escrava, justa­
nitário Akan (provavelmente imaginado), da atual Ghana, onde no século XVI
mente em função do esboço realizado por Zacharias Wegener, que mostra
também havia presença colonial e interesses holandeses. (KLOOSTER, 2016)
uma marca de ferro quente com a letra “M” próxima ao seu seio, Mason diz
Na constituição da posicionalidade escrava no mundo colonial a di­
significativamente: “Como uma escrava, a mulher estava envolvida numa
mensão mercadológica tem sido explorada e mereceria maior discussão. O que
troca econômica entre diferentes culturas, como mãe de um mestiço, ela
na condição de mercadoria, ou fungibilidade, define a identidade escrava para os
estava envolvida numa troca sexual entre culturas”. (MASON, 2001, p. 239)
africanos? Como Anna More (2018), por exemplo, tem discutido, e todo o debate
sobre a passagem do meio e o “wake” da transposição forçada tem acarretado, Por fim, há um terceiro nível, que refletiria o “valor” dos objetos trocados,

como em C. Sharpe: e nesse caso a pergunta é: que tipo de objetos são estes? Não podendo, ob­

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viamente, ser considerados como retratos em função da dimensão alegó­ te mundo colonial; como locus de uma imbricação de elementos coloniais
rica. Mason pergunta então, por fim, qual a economia visual presente nos reterritorializados capturados pela economia visual da raça, que compõem
tipos de Eckhout?21 Nesse caso, as três dimensões da troca parecem implicar diferentemente, e sem equívoco, o corpo da mulher negra - com a criança
necessariamente em “deslocamentos”: “O lugar onde esses elementos são mestiça ao lado - e o do homem negro - de espada na cintura - como, final­
montados é, desse modo, não uma locação qualquer no Brasil, mas a pró­ mente, um retrato-fetiche que não se desprende do conjunto de possibilida­
pria tela do artista. Em outras palavras, o próprio ato de pintar nesse caso é des históricas que o tornaram possível em sua fantasia e verossimilhança ale­
um ato de deslocamento”. (Idem, p. 246) górica; o que se converte e se configura como o “valor” da própria obra, como
Observamos nesse caso uma desterritorialização e recomposição documento “etnográfico” fantasioso, mas principalmente como um operador
de elementos visuais e ideológicos montados como em uma “assemblage” do imaginário colonial.
[reunião ou montagem] que produz a percepção de deslocamento espacial, Como, por exemplo, vemos o Outro que é representado em Eckhout
geográfico, mas também cultural, político e religioso. Uma desorganização como africano, selvagem e feroz, e em Debret, como o escravo supliciado. O
ou deslocamento por critérios, convenções e modalidades que justamente que, na verdade, como tentamos formular, coloca questões para a construção
quero interrogar, levando em conta os efeitos que a relação de deslocamen­ da ideia de liberdade, civilização e humanidade. Acredito, dessa forma, que
to que a obra provoca, como índice da presença europeia - e não africana, é essas representações materializem estereótipos, convenções, temas e recur­
obvio - no horizonte colonial e da colonialidade de poder. sos narrativos visuais para reduzir a experiência do encontro colonial - que
Alfred Gell talvez nos ajude, com sua teoria da arte antropológica, moldou a raça e o gênero - a determinadas formas de representação para o
a colocar algumas questões que levem em consideração a presença da obra negro, estas formas preservam uma dimensão indiciai22, como diz Gell, que
ela mesma como desencadeadora de processos sociais, e não meramente traduziriam a agência conflitiva, submetida a esse encontro, ao mesmo tempo
como reflexo destes, considerando como ele faz que “o outro imediato de que se conecta e traduz o “olhar ocidental”. Como, em certa medida, o “olhar
uma relação social não tem de ser outro ser humano”. (GELL, 2018, p. 47) colonial” moldou sujeitos coloniais, interrogar formas de representação é
Mas poderia ser uma representação deste, tão arbitrária, convencional e outra forma de interrogar formas de assujeitamento e subjetivação política
alienada como outras formas de objetivação, onde a agência social de um como formas de objetivação.
artista, ou tradição artística, se realiza e manifesta através de uma “prolifera­
ção” de efeitos. Ora, no caso do “Guerreiro Africano”, quais seriam estes, e MATÉRIA SAGRADA
onde estariam se não no feixe de intercâmbios e deslocamentos que Mason
aponta como a “coisa dada”, entre os príncipes, de modo que os tipos for­ Ayrson Heráclito Novato Ferreira é um artista visual contempo­
necem um vínculo indiciai entre a glória das coroas europeias e o fascinan­ râneo. Natural de uma pequena cidade do interior do estado brasileiro da

21 Tomamos aqui a expressão “economia visual” como se referindo a um campo de visão organizado 22 Indiciai no sentido semiótico que Gell explica: Na semiótica pierciana, um ‘índice’ é um ‘signo natu­
de modo sistemático, campo que implica relações sociais, desigualdade e poder - de um modo que o ral’, ou seja, uma entidade a partir da qual o observador pode fazer uma inferência causal de algum tipo,
termo ‘ cultura visual’ não pode tematizar. (MASON, 2001, p. 244) ou uma inferência sobre as intenções ou capacidades de outras pessoas. (GELL, 2018, p. 41)

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Bahia, tem se consagrado com um dos principais artistas negros de sua ge­ pasta de dendê, as mãos coreografam a dança simbólica de diversos orixás
ração. Realizou inúmeras e importantes exposições individuais como “Pé­ em quadros sintáticos. Egum, Oxum, Iemanjá etc., como que ideografica-
rola Negra”, Blau Projects Galeria, São Paulo, 2016; “Genealogy of Mate- mente sintetizados pelo par de mãos que dançam. Como diz o artista, “um
rials/Généalogie des Matières”, Raw Material Company, Dakar, Senegal, balé de mãos sobre o azeite de dendê”, o óleo de palma, que se presta a uma
2015; “Atlântico Negro”, Central Galeria de Arte, São Paulo, 2013; “Ecolo­ “semiótica”, que analiticamente decompõe a iconografia coreográfica dos
gia do Pertencimento”, Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador, 2002. deuses africanos. O artista nesse sentido codifica, no rastro metafórico, o
Além de ter participado em coletivas tão importantes quanto a 57a Edição sentido de uma simbologia gramaticalizada, sendo assim, mais uma vez em
da Bienal de Veneza, Veneza, Itália, 2017; “ 10 Rencontres de Bamako”, Bie­ suas palavras, “bastante didático”; e esse aspecto sintético é muito relevante
nal Africana de Fotografia, Bamako, Mali, 2015; A Nova Mão Afro-Brasi­ em sua dimensão contraditória em relação a profundidade cosmológica, e
leira, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2013 e muitas outras. Foi também um não semiológica, da religião dos orixás. (HERÁCLITO, 2014; 2020; SAL­
dos curadores da megaexposição “Histórias Afro-Atlânticas” que reuniu, GADO, 2014; SOUZA, 2017)
no Museu de Arte de São Paulo e no Instituto Tomie Ohtake, mais de 400
obras assinadas por cerca de 200 artistas e datadas desde o século XVI até os
Figura 10 - As Mãos do Epô - Ayrson Heraclito, 2009.
dias de hoje. A mostra foi um desdobramento da exposição “Histórias Mes­
tiças”, organizada pela antropóloga e professora da Universidade de São
Paulo, Lilia Schwarcz, e por Adriano Pedrosa, ocorrida no Tomie Ohtake,
em 2014. (REINA, 2018) A exposição “Histórias Afro-Atlânticas” acabou
sendo eleita uma das melhores do ano pelo jornal norte-americano The
NewYork Times. (COTTER, 2018)
Vou considerar aqui mais detidamente uma das obras do artista,
que, como veremos, está interessado em “traduzir” a experiência religio­
sa afro-brasileira como matéria de experimentação artística amplificada.
Por outro lado, o que é fundamental para a nossa discussão, o artista está
comprometido com a reflexão sobre “materiais”, no que segue a influên­
cia sempre reconhecida da obra e pensamento de Joseph Beuys. (ROSEN-
THAL, 2011; RODRIGUES, 2019; ZMÁRIO, 2019; SOUZA, 2017) A obra
em questão é o audiovisual “As mãos de Epô”. Definido pelo artista como
uma forma de “ressignificar a iconografia dos deuses africanos”, o vídeo se
vale principalmente da densidade material do dendê, o epô, como maté­
ria plástica para essa ressignificação. Contra o fundo dourado brilhante da

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Antes de abordar as contradições ligadas à estrutura do sentido, mica, petróleo, besouros, óleo de cravo, formol, terra, mariposas, xerox, ra­
que é tomada como veículo para a discussão e experimentação que o artista padura, tecido, madeira, azeite de dendê”, re-elaborados como matéria para
pretende desenvolver, quero enfatizar a importância da dimensão material. significação. (Idem, p. 1610) O poema de Gregório de Mattos em questão
Em diversos momentos, o artista e seus críticos enfatizam esse aspecto, o chama-se “À Cidade da Bahia”, como também é conhecida Salvador, e po­
interesse nos materiais, notadamente orgânicos, como forma estético-po­ pularizou-se quando foi incorporado a canção do artista baiano Caetano
lítica de abordar a escravidão e o passado colonial. (HERÁCLITO, 2008; Veloso, “Triste Bahia”, gravada em 1971, no LP “Transa”. O poema original
ZMÁRIO, 2019; CLEVELAND, 2013) E de exorcizar o trauma histórico do diz: Triste Bahia! Ó quão dessemelhante/ Estás e estou do nosso antigo es­
cativeiro, e principalmente da passagem do meio. É nessa poética dos mate­ tado! /Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,/ Rica te vi eu já, tu a mi abun­
riais que o dendê, epô, sangue dourado vegetal têm o seu lugar. dante./ A ti trocou-te a máquina mercante / Que em tua larga barra tem
O interesse pela investigação de materiais se aproxima da pers­ entrado/ A mim foi-me trocando, e tem trocado,/ Tanto negócio e tanto
pectiva apresentada por Joseph Beuys e seu “conceito ampliado de arte”. negociante. (MATOS, 2006, p. 103)
(RODRIGUES, 2019; ROSENTHAL, 2011) Heráclito esteve interessado
Gregório de Mattos e Guerra foi filho de um fidalgo português,
inicialmente em refletir sobre uma experiência baiana “mestiça e comple­
que morreu em 1696 na cidade do Recife, e é considerado, ao mesmo tem­
xa” (VIDEOBRASIL, 2020) e posteriormente em deslocar a perspectiva
po, o primeiro poeta brasileiro e o maior poeta barroco, conhecido por sua
para um ponto de vista que enfatize a violência colonial, mergulhando no
sátira poética aos poderosos da época e também por suas referências à cul­
trabalho dos materiais, que teriam ressonância cultural profunda, ligada ao
tura negra e à negritude, que oscilam entre o racismo mais desbragado e a
horizonte cultural baiano e/ou negro, e/ou do candomblé. Como ele coloca,
erotização, tão precoce quanto recorrente nesse ambiente colonial.
trata-se de através de meios simbólicos purgar a violência da escravização e
da passagem do meio. Nesse sentido, em sua trajetória, tem trabalhado com Crioula minha vida,
açúcar, carne de charque e dendê, materiais que combinam a dimensão or­ Supupema da minha alma,
Bonita como umas flores,
gânica e o mutável-perecível, presentes já na obra de Beuys, às referências
E alegre como umas páscoas.
culturais negras e baianas. Não sei que feitiço é estes,
Que tens nessa linda cara,
Em sua dissertação de mestrado, articulada à realização de três
a gracinha, com que falas.
instalações artísticas, esses temas se definem fortemente, ainda sob o para­ O Garbo, com que te moves,
o donaire, com que andas,
digma mestiço, para qual a identificação de uma “simbiose cultural” seria
o asseio, com que te vestes,
relevante para identificar o “paradigma indiciário de uma certa baianidade”. e o pico, com que te manhas.
(HERÁCLITO, 2008, p. 1605) A partir da releitura de um poema do poeta Tem-me enfeitiçado,
que a bom partido tomara
barroco Gregório de Mattos, Ayrson busca desenvolver as potencialidades curar-me por tuas mãos,
do material para estabelecer relações sintáticas, transformando “objetos em sendo tu, a que me matas. (MATOS, 2006, p. 185)

conceitos sensíveis”; e manipulando materiais “coloniais” como “enxofre,

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E vemos que o fascínio sexual-colonial pela mulher negra, ou pelo ção de uma identidade baiana, que, apesar de embebida de “questões ne­
corpo negro, tornado um “lugar de sensualidade irresistível para o captor” gras”, seria mestiça, quer dizer, não-negra. “Barrueco” é nome que se dá a
(SPILLERS apud WARREN, 2015, p. 09)xlii tem longa tradição na Bahia, e pérolas imperfeitas, e nesse sentido exalta-se aqui a imperfeição, a comple­
que o poema tem mais sentido quando considerado em conjunto com ou­ xidade, a mistura, em suma, a “hibridez”. Realizado com o videoartista Da-
tras peças do mesmo Gregório. nillo Barata, faz uso dos mesmos elementos usados em “As mãos de epô”,
notadamente o próprio dendê, que aparece em outros trabalhos do autor,
Quais são seus doces objetos .... Pretos como um expediente que busca “reinterpretar a nossa história através de
Tem outros bens mais maciços .... Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos .... Mulatos uma criação artística”. Barata desenvolve melhor:
Dou ao demo os insensatos,
Dou ao demo a gente asnal
O dendê interessou a ele porque era uma metáfora do corpo,
Que estima por cabedal
e o dendê, dentro de sua poética, oxigena esse corpo cultu­
Pretos, Mestiços, Mulatos.
ral, corpo negro, baiano, com forte influência das questões
(MATOS, 2006, p. 61)
negras. Para Ayrson, o azeite de dendê era signo desse san­
gue ancestral que oxigenava o corpo, da carne seca resisten­
te. Nesse sentido estabelece alguns pressupostos. A primeira
As obras em questão - apresentadas em conjugação à conclusão ideia era trabalhar o dendê como sangue, como se o sangue
dessa etapa acadêmica - foram as instalações “À Bahia”: Io Pressuposto do fosse o oceano, a imagem de um mar de dendê como metá­
fora do atlântico negro, o oxigênio que impulsionaria esse
Açúcar; “Segredos Internos”: 2o Pressuposto sobre o Açúcar; “O Pequeno corpo resistente na América. (BARATA, 2016, p. 67)
Principado”: 3o Pressuposto do Açúcar; “Aula”: 4o Pressuposto sobre o
Açúcar. O objetivo estético-político das obras é discutido pelo artista:
Barrueco faz referência, a partir da incorporação “multimodal”
(FREITAS, 2016), ao poema “Divisor”, de Wlamira Albuquerque, à expe­
Sempre foi do meu interesse trabalhar com materiais “in­
termediários”, ou seja, a matéria em estado bruto - matéria riência da passagem do meio. O poema referido diz:
para reflexão. Intermediários, porque estão em constante es­
tado de transformação pelo seu caráter físico ou simbólico. Era atlântica a solidão negra.
Materiais que promovessem uma associação direta com de­ E nestes dias atlânticos sabemos ser nosso o que está distante,
terminada temática e, ao mesmo tempo, provocassem uma submerso em travessias absurdas, em náuseas intermináveis.
ampliação de diversas outras interpretações(...). Seguindo o
caminho traçado por Beuys quero atingir a methexis - a ex­ Foi atlântico o medo do mar, a adivinhação da tempestade,
pressão concreta de uma ideia ou espiritualidade. O Azeite a expectativa da rotina.
de dendê é um deles. (HERÁCLITO, 2008, p. 1613) Foi atlântica a dissimulação de esperança

Nestes dias, sabemos ser nosso o que está distante.


A videoinstalação “Barrueco” poderia ser tomada como uma radi­ Ela disse ser Esperança da Boaventura,
calização - e uma transição - desde essa fase inicial, em direção a um novo como os Aleluia, os Bonfim, os da Cruz, os do Espírito Santo.

vocabulário mais afro-diaspórico, e menos comprometido com a sustenta­

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Com tantos outros, mergulhamos num flagelo atlântico. fins educativos e políticos, insiste que arte é vida e vida é arte e que, assim,
Desde então, estamos todos assentados no fundo do oceano.
todo ser humano é uma artista. Com a proposta de “escultura social”, Beuys
(ALBUQUERQUE, 2009, p. 7)
buscava visibilizar a criatividade intrínseca à atividade social humana, e al­
Como já referi, grande parte da estratégia estética de Ayrson está
mejava um modelo de intervenção como uma plataforma política de trans­
baseada na obra e teorização de Joseph Beuys, conjugada de modo exitoso
formação da sociedade, materializado em diversas inciativas institucionais,
a referências culturais e ao universo simbólico yorubano, nagô, na Bahia. A
como o Partido dos Estudantes, criado em 1964, e a Universidade Livre,
performance, ou ação, na linguagem de Beuys, “Transmutação da Carne”,
criada em 1974. (RODRIGUES, 2019; ROSENTHAL, 2011)
se apropria exemplarmente desses pressupostos. Notadamente da própria
De modo muito interessante, e muito relevante para a nossa dis­
ideia de ação em oposição à performance. No caso de “Transmutação da
cussão, Beuys propõe uma discussão sobre o papel social do elemento ma­
Carne”, que alcançou grande repercussão, o artista produz roupas e ade­
terial, coerente com sua ideia de conceito ampliado de arte e de plástica so­
reços com carne de charque e reproduz em diversos espaços públicos, ou cial (ROSENTHAL, 2011); e com a percepção do papel dos materiais, como
semipúblicos, os abusos e mutilações que estão registradas em documentos
testemunha dos processos de transformação e mutabilidade, também for­
históricos que retratam as torturas e suplícios inimagináveis e incrivelmen­
temente influenciado pela experiência religiosa. Como no caso de Ayrson,
te sádicos perpetrados nos corpos escravizados por Gabriel D‘ávila Pereira
que usualmente se apresenta como devoto dos orixás. Poderíamos entender
e outros senhores coloniais. (Mott, 2010) Ayrson reproduz sobre a carne de
nessa chave metafísica ou transubstancial, transcendental, a ideia de que os
charque os suplícios, inclusive as queimaduras e as marcas de ferro quente,
materiais acumulam energia potencial, que se metamorfoseia em múltiplas
com grande efeito sensorial sore a plateia que sente o cheiro da carne e o
formas. Dessa maneira, deveríamos encarar o uso de substâncias materiais
calor do fogo, como diz ZMário: não como uma estratégia simbólica para a representação, mas como forma
de apresentar as teorias tornando-as concretas, materiais, atingindo direta­
Camadas de sons, cheiros, temperaturas foram apresenta­
das nessa proposta artística a partir de ações como marcar mente, e não meramente, de modos metafóricos ou simbólicos, as pessoas;
a ferro as vestes de carne e andar sobre brasas com calça­ e induzindo a transformação social e a consciência dos materiais como a
dos feitos com o mesmo material orgânico, assim como as
ações de cortar e assar a carne de charque (alimento muito consciência da plasticidade e da criatividade intrínseca aos processos de es­
consumido no nordeste brasileiro). Notamos que as ações truturação da sociedade e da sensibilidade. Como de outra forma coloca
representavam os suplícios públicos dos que foram tortura­
dos e queimados vivos no passado - a carne seca foi exposta Heráclito, “optei pelo meio de expressão artística que estabelece uma re­
como uma metáfora da própria carne humana, do corpo lação orgânica com o espaço: a instalação, nas palavras do crítico Baitello,
humano fragmentado, esquartejado. (ZMÁRIO, 2019, p. 7)
reunião de objetos em uma relação sintática definida, propondo uma tese,
ilustrando ou materializando uma ideia”. (HERÁCLITO, 2008, p. 1607)
A aproximação com a obra de Beuys é evidente e claramente reco­
Nesse caso em particular, a “ideia” circula entre o registro do sa­
nhecida. O artista alemão que transita de obras performáticas para a “ação”,
grado e da arte, e como já apontado, há aqui espaço para uma leitura da
para intensificar a relação com os materiais e a interação com público com obra de arte que a destaque dos quadros estreitos do universo artístico e

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a entenda, como Alfred Gell, como um artefato que materializa a agência tamente manipulá-lo ou contê-lo ou transmiti-lo simbolicamente, mas não
estendida do artista ou da tradição cultural, como a “pessoa distribuída”. exatamente ou apenas, porque na verdade a oposição simbólico-material
(GELL, 2018) Como diz o antropólogo sobre o “fetiche”. Entendido tal qual parece deslocada nesse caso, como discutiremos mais à frente. Notadamen­
a obra de arte, como um “índice” da personitude que se desdobra em seus te, o àse está “assentado” no terreiro de candomblé, o templo dos orixás,
efeitos práticos reais e não meramente como a representação de conteúdos em sua complexidade arquitetônica, ecológica e mística e está também nos
abstratos e exteriores. Tal qual objetos sagrados, que tem efeitos sociais ob­ ancestrais, e em seu legado, e com toda a força possível, está também nos
jetivos e conecta “pessoas” de diversas naturezas, como “fetiches”, deuses,
orixás. Entretanto, há uma característica, essencial no sistema Nagô, “a cada
sacerdotes e devotos, como discute recentemente Matory (2018). Tal qual
elemento espiritual ou abstrato corresponde uma representação ou locali­
também, do mesmo modo, Ayrson que entende sua obra como um des­
zação material ou corporal”. (ELBEIN, 2012, p. 41) Assim, as substâncias
dobramento de sua inserção em uma cosmovisão religiosa do mundo: “Eu
e materiais são materializadoras e transmissoras de àse. E estas, e isso é o
acredito na energia dos rituais, do poder de transformação que eles têm no
que nos interessa principalmente, podem ser divididas em três categorias:
mundo”. (TESSITORE, 2019, p. 2) Tudo isso, é claro, nos lembra mais uma
l) sangue vermelho; 2) sangue branco; 3) sangue preto. Todo o universo de
vez Antonin Artaud e sua concreta loucura sagrada:
coisas materiais pode ser classificado a partir dessa distinção tripartite, ela
1 Digo que a cena é um lugar físico e concreto que pede para mesma por sua vez tripartida em termos vegetais, animais e minerais. Por
ser preenchido e que lhe faça falar sua linguagem concreta. exemplo, o sangue vermelho pode ser ou vegetal (mel, sangue das flores e
Digo que essa linguagem concreta, destinada aos sentidos e
independente da palavra, deve primeiro satisfazer os senti­ principalmente o nosso conhecido epô, ou dendê), ou animal (sangue hu­
dos, digo que existe uma poesia para os sentidos assim como mano ou animal), ou mineral (cobre, bronze). Isso vale para o sangue preto
há uma poesia para a linguagem e que esta linguagem física
e o branco, assim divididos e multiplicados. Os orixás também se dividem
e concreta a qual me refiro só é verdadeiramente teatral na
medida em que os pensamentos que expressa escapam à lin­ entre as três cores ou sangues essenciais, compartilhando propriedades, e
guagem articulada. (ARTAUD, 1987, p. 51)
modalidades em diversas combinações complexas, com importantes efeitos
cosmológicos e éticos. O sangue vermelho parece mais plenamente iden­
Por fim, algumas palavras sobre a cosmologia nagô, de onde gran­ tificado com o poder de realização do àse, enquanto o branco simboliza a
de parte da gramática visual do artista advém. Interessa notadamente o sig­ existência genérica não individualizada e o preto o segredo e o indecifrável.
nificado do dendê, epô. O fundamental nesse caso seria reconhecer o àse Roger Bastide lança mão da velha ideia antropológica de “parti­
como princípio fundamental da filosofia yourubana. Entendido como “a cipações” para entender não só o sincretismo nagô-católico, presente na
força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o de­ Bahia, como em Cuba, mas principalmente o modus operandi das formas
vir”. (SANTOS, 2012, p. 40) O àse, ou na ortografia aportuguesada, axé, é de pensamento africanas, como uma epistemologia. (BASTIDE, 2001) O
o princípio vital da existência de todas as coisas, tudo aquilo que é, só é por debate sobre participações remete a James Frazer (1982) e a Lucien Levy-
causa do asé, que deve ser assim mantido acumulado e desenvolvido. Ora, -Bruhl (2008). O primeiro preocupado em explicar regularidades mitológi­
o àse está presente em diversas manifestações materiais que permitem jus­ cas, encontradas entre diversos povos, em associações tão estranhas quanto

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longevas. O carvalho, o verão, o rei que deve morrer e renascer todos os Do ponto de vista antropológico, uma abordagem sólida ou con­
anos, o Deus varonil, despedaçado por suas adoradoras. Frazer desenvol­ sagrada para o problema da simbologia “primitiva” pode ser encontrada
ve a teoria da magia simpática para explicar esse conjunto de problemas ainda em Victor Turner (1974). Lévi-Strauss, em “Pensamento Selvagem”
também apontados por Levy-Bruhl. Porque os “primitivos” acreditam que (1989), se preocupava com a “ciência do concreto”, a estrutura do pensa­
manipulando uns objetos interferem sobre outros objetos, sobre a vida hu­ mento primitivo, análoga ao mito, e definida pela comparação com a ativi­
mana ou sobre o humor dos deuses? A magia simpática por contágio (con­ dade da bricolagem. O bricoleur e o “engenheiro” distinguem-se em função
tiguidade) ou similaridade (substituição) constitui uma forma de operação do princípio lógico de subordinação que privilegiam. O “engenheiro”, ou o
do pensamento “primitivo”, que não se opõe sistematicamente em reco­ pensamento ocidental, trabalhando em termos de um projeto prévio, sele­
nhecer as coisas em sua individualidade empírica, mas as pensa por meio de ciona materiais que se adequem as estruturas pré-definidas, já o “bricoleur”
repartições cosmológicas e míticas, participações. Como então aparece em se vê diante de objetos de natureza diversa e heteróclita, resíduos, diz em
Levy-Bruhl, a lei da participação ou o princípio que rege ligações lógicas ou algum lugar Lévi-Strauss, cujas relações concretas e virtuais são utilizáveis,
cadeias de causalidade (2008). ou perceptíveis, apenas por meio de sua conformação ad hoc a um tipo
A noção de “categoria do entendimento” em Emille Durkheim simbólico definido estruturalmente. Ou como ele coloca, de outra forma,
(2003) - como uma “representação coletiva”, ou seja, uma forma simbólica no pensamento primitivo, temos uma forma (estrutural) em busca de um
ou uma categoria classificatória - conecta-se à ideia de Lucien Lévy-Bruhl, conteúdo e não um conjunto de itens ordenados segundo relações subordi­
de que o pensamento primitivo não obedeceria ao princípio da não-con- nadas a uma intencionalidade prévia, com consequências para o significado
tradição e ao mesmo tempo ressalta o caráter místico desse pensamento, que Lévi-Strauss atribui à arte. “A arte procede, então, a partir de um con­
carregado de afetividade, que de certa forma se opõe à mentalidade oci­ junto (objeto + fato) e vai à descoberta de sua estrutura; o mito parte de uma
dental, mas que também se orienta como uma forma lógica, “racional”, em estrutura por meio da qual empreende a construção de um conjunto (objeto
seus próprios termos. E assim chegamos a Bastide: o africano pensa por + fato)”. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 41)
participação ou o africano não leva em conta contradições “objetivas”. De Turner, entretanto, trata dos símbolos em um contexto ritual,
modo que vê identidade entre o dendê, o sangue, o axé e uma divindade. As como elementos de uma ação ou mobilização pragmática simbólica, nes­
participações, que só podem se formar no interior de categorias pré-estabe- se sentido, os símbolos são para ele as moléculas da construção do ritual,
lecidas, preveem um enquadramento prévio, justamente definido por uma encarado, desse ponto de vista, de uma forma processual e não meramente
epistemologia religiosa que tem nos símbolos - como os três sangues - seus estrutural (a-histórica e sem sujeito). Como elementos de uma operação
elementos operacionais. Todavia, se essas estruturas classificatórias e ope­ prático-mítica, os símbolos valorizados por sua contingencialidade ma­
ratórias, que não são apenas lógicas, mas afetivas e místicas, são uma “gra­ terial têm, ao menos entre os Ndembo, a propriedade de revelar ou fazer
mática” ou “linguagem”, é outra história. Se regidas ou não pelo princípio aparecer, nas palavras de Turner “corporificar”, elementos profundos da
semiológico da separação ou representação (signo/significado), é matéria cultura. O que se corporiíica, mais concretamente, seriam as contradições
ainda em aberto, como discutiremos à frente. mediadas, presentes na própria estrutura social ndembo. Ou, como ele diz,

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

vemos “na semântica desse símbolo a união da ecologia e do intelecto, cujo Vimos, acima, como Ayrson Heráclito situa a própria obra como
resultado é a materialização de uma ideia”. (TURNER, 1974, p. 43) Turner, uma ponte entre a cosmologia religiosa nagô e formas de expressão artística
em diálogo com Lévi-Strauss, insiste em que para além das dimensões mais autoconsciente e reflexiva. O objeto ritual é um símbolo sagrado-proces­
estruturais, organizadas como homologias e correlações formais em um ní­ sual, que materializa uma categoria, o objeto artístico um artefato repre-
vel não-consciente, há uma dimensão experiencial para os símbolos, que sentacional ou, melhor dizendo, nesse caso, um deflagrador da experiência
não são apenas categorias do entendimento, feitas para pensar, mas que se e da reconversão de sensibilidade e percepção, assumindo a forma prática
tratam de objetos “sensivelmente perceptíveis” que se confrontam na expe­ intervencionista da ação, como em Beuys, e como na “Transmutação da
riência nesse sentido mais do que elementos da estrutura social são elemen­ Carne”, performance do artista comentada acima. Haveria, todavia, ana­
tos da ação social. (Idem, p. 59) logia entre a forma artística e a forma ritual se assumíssemos a perspectiva
Na antropologia contemporânea, Roy Wagner defende a auto­ da antropologia da arte como está em Alfred Gell, que vê no objeto ritual e
nomia dos símbolos no campo da “invenção da cultura”, como o trabalho no objeto artístico índices com efeitos práticos. O ponto crítico aqui é a na­
de analogias que se baseiam e/ou subvertem outras analogias, entendidas tureza desse objeto ou prática, trata-se de um signo que representa alguma
como metáforas centrais que atuam por meio de enquadramentos sucessi­ outra coisa? Trata-se de uma “pessoa distribuída” que recolhe a agência so­
vos, através dos quais a cultura inventa a si mesma. Uma metáfora ou “tropo cial ou metafísica como um feixe de símbolos e perceptos para-semióticos
cultural”, que simboliza a si mesmo, se amplia para enquadramentos cada e/ou ritualísticos? Trata-se de substância, matéria sagrada, que se comunica
vez mais amplos e distendidos, constituindo a cultura por meio da “percep­ a profundos e complexos níveis cosmológicos e metafísicos, agindo na con­
ção do sentido” dentro dos pontos de referência cultural, um modo de Wag­ fluência entre mundo empírico e mundo transcendental?
ner dizer que a cultura é autorreferenciada sem seguir a modelos estruturais Na próxima seção, levarei um pouco mais longe essas questões,
(binários), preservando espaço para uma agência contingente e “holográfi- definindo um modelo para a abordagem do problema da arte negra - sus­
ca”. Ou seja, que os símbolos, metáforas, agem no campo da invenção cultu­ pensa em sua ambiguidade como arte “de” negros ou “sobre” negros - que
ral como perspectivas através das quais os objetos podem ter sentido. Dessa leve em conta as tensões entre representação e imanência, a partir da consi­
forma, “o argumento segundo o qual os enquadramentos culturais básicos deração desses dois artistas tão distintos, Eckhout e Heráclito.
são formados como tropos de larga escala, basicamente como mitos, impli­
ca que os sentidos culturais vivem em um fluxo constante de recriação con­ REPRESENTAÇÃO E IMANÊNCIA
tínua” (WAGNER, 2017, p. 169) e que os símbolos têm agência, fazem ou
produzem algo, como as obras indiciais em Gell, rastros da agência humana Vimos no capítulo anterior como o antagonismo insolúvel entre o
como pessoa distribuída, ou como no conceito ampliado de arte de Beuys23. negro e o mundo, presente em Fanon e discutido por muitos autores, pode
ser tomado como paradigma interpretativo para a precariedade ontológica
23 Sabemos também, como bem resumido em Stuart Hall, que a semiótica das representações tem
sido tensionada pelo historicismo do materialismo histórico e pela teoria das formações discursivas
como em Foucault (HALL, 2016) de modo a ressaltar o lugar conceituai do “poder” e do “sujeito” como categorias no campo da produção sociológica do significado.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

do negro, que aparece assim como absoluta negatividade e/ou coisidade. Claro que a impossibilidade a que se refere Gordon e Fanon é
(FANON, 1983; GORDON, 1999) Sobredeterminado em sua materialidade também principalmente a impossibilidade de articular-se um sujeito, a pre­
por uma economia libidinal, a (verdadeira) consciência do negro está satu­ cariedade ontológica fanoniana, ou, diria eu próprio, a impossibilidade de
rada na carne (flesh), como uma coisa, ou um objeto, que, todavia, resiste, completar-se o ciclo ontológico, mas também político, de constituição de
como estamos vendo, para “ser”, ao final, de modo completamente objeti­ uma pessoa, como discutido anteriormente. O que quero sugerir aqui é que,
vo, sem pressupor a cisão semiótica como a fundação do significado. Habi­ para além disso, a ruptura com a representação é uma escolha, dissidência
taríamos dessa forma em um mundo pré-significado, aprisionados, como epistemológica, que nega ativamente a cisão representacional que é a pedra
muitas vezes já disse aqui, na materialidade do mundo, como “uma coisa fundamental da epistemologia ocidental, a teoria do signo. Como vemos

dentre outras coisas”. (GORDON, 1999) então em Ayrson Heraclito, que não por caso aproxima sua obra de uma di­
Ora, isso nos devolve ao centro de meu questionamento. Como mensão religiosa, para a qual os signos são a própria coisa e não meramente

pode ser representada a negritude e como a obra dos dois artistas conside­ uma representação. Inversamente, em Albert Eckhout, temos uma situação

rados nos ajudam a encaminhar essas questões? quase que exemplarmente oposta, porque o Guerreiro Africano nada mais

O capítulo presente faz parte de um esforço mais amplo, como é que sua representação. Uma alegoria, não de si mesmo ou de uma instân­
cia reflexiva de formação de um sujeito, muito menos de sua consciência,
tenho desenvolvido nesse livro, e que busca situar dois momentos ou posi­
mas uma projeção eivada de contradições, uma coisa re-presentada, algo
ções para as formas políticas de subjetividade e imaginação negras: a “an-
para ser lido e interpretado, confeccionado com os recursos visuais con­
cestralidade” e a “morte social”, como assinalei inicialmente. O que aparece
vencionais e historicamente disponíveis (ainda que preserve, como disse,
sugerido até aqui é a abertura para pensarmos no desdobramento dessas
uma condição indicial-colonial). Nesse sentido, a representação parece ser
metamorfoses tal como (re)configuradas pela tensão entre representação e
o dispositivo epistemológico colonial por excelência para a construção da
imanência. Uma problemática ensaiada em outros termos no capítulo an­
raça e da negritude como definida pelo antagonismo geral antinegro.
terior, e tratada por meio do conceito de “black border”, e que será também
Mas o que é representar algo? Uma velha pergunta várias vezes
retomada, em sua transformação, no último capítulo, ao falar de autobio­ respondida. Na antropologia, onde há uma resposta possível, a influência
grafias escravas, onde também poderemos discutir melhor a relação do “su­ da linguística estrutural obteve grande alcance através da obra de Claude
jeito” com a “representação”. A cultura negra pode ser representada? Sendo Lévi-Strauss. Como, dentre tantos outros, discute Edmund Leach (1973),
representada ainda é negra? O sujeito, ou a “consciência” negra, se constitui a distinção de Saussure entre langue e parole é adaptada por Lévis-Straus
nessas representações, ou apenas se refletem, espelhados pelo olhar bran­ para dar conta da dimensão ao mesmo tempo inconsciente e universal das
co? A arte negra pode produzir verdadeira autoconsciência? Ou, de outra estruturas de significação, que são ao fim e ao cabo as estruturas da cultu­
forma, a condição autônoma e forte do ponto de vista de uma verdadeira ra, e da condição humana, justamente binariamente divididas, como está

alternativa civilizacional, “mitopoética”, como diria Abdias do Nascimento, dividido o signo saussureano, entre significante e significado. Um regime

radicaria nessa ruptura epistemológica que nega a representação? de verdade no qual o signo remete para algo que ele não é. (HALL, 2016;
LEACH, 1973)

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

As formas de operação do sentido, como a aplicação de uma grade sociedades primitivas são dizem-no com veemência os au­
tores do Anti-Édipo, sociedades da marcação. E, nessa me­
classificatória, como uma forma em busca de um conteúdo, desdobram-
dida, as sociedades primitivas são, de fato, sociedades sem
-se em dimensões paradigmáticas (metafóricas) ou sintagmáticas (metoní- escrita, mas, na medida em que a escrita indica acima de
tudo, a lei separada, distante, despótica, a lei do Estado (...).
micas) e estamos quase de novo as voltas com Frazer e a magia simpática
(CLASTRES, 1990, p. 130)
(1982). Entretanto, como Celso Azzan discute, a lógica do significado em
Lévi-Strauss não é uma lógica do sentido, ou semântica, mas uma lógica
Sociedades sem Estado, sem centralização política instituída
do código ou propriamente sintática, na qual a posição estrutural define o
“contra” a sociedade, são possíveis porque também não separam o sentido
sentido (1993). Como na análise dos mitos, onde afastando a ilusão nomi­
de seu veículo, ou o nome da coisa. A reconciliação cosmogônica do mundo
nalista que identifica som e sentido, palavra e coisa, Lévi-Strauss em nome
com a sua “apresentação” e não representação é a trava que impede o poder
da arbitrariedade do signo, noção que ele importa da linguística estrutural,
político de autonomizar-se nas sociedades sem Estado sul-americanas.
identifica o significado a partir da relação entre as partes - mitemas - e não
Em grande medida, a reinvindicação por “ancestralidade” anima
em função de um conteúdo presumido objetivo, que o mito representa ou
a formação de subjetividades políticas e de um imaginário da negritude no
veicula como um conteúdo. O mito extrai o sentido de sua própria estrutu­
Brasil, como vimos no Capítulo I. Diferentemente da abordagem fanoniana
ra formal. E não da correspondência entre mensagem e verdade, como no
que reconhece o regime de significação para negá-lo ao negro, a ancestra­
discurso de natureza semântica, vale dizer, histórica.
lidade clama por imanência e por um regresso ou reconciliação com um
Classicamente, por outro lado, a célula da representação se define
regime de significação não-separado. Como parece materializar-se no in­
como algo que substitui alguma outra coisa, e como o poeta Décio Pignatari
teresse de Ayrson Heráclito pelos materiais sagrados, ainda que talvez de
relembra a origem etimológica da palavra “signo” remete a cortar ou seccio­
modo não exatamente consciente, porque informado também pelo “teoria
nar. (PIGNATARI, 1969) O signo é o que está separado e dessa separação
da arte” de Beuys, que de certa forma se compromete com a metáfora, e
extrai seu poder de constituir sentido. Ora, mas não é esse o efeito de uma
por isso me pareceu haver uma contradição em “As Mãos de Epô”, entre
epistemologia, para não dizer ideologia, alienada, separada, binariamente
um registro semântico ou metafórico interpretativo, para qual as mãos são
cindida entre corpo e alma, razão e emoção, essência e aparência, coisa e
signos, e um registro paradigmático, como disse anteriormente, quase ideo-
conceito, sujeito e objeto, forma e conteúdo?
gramático, para o qual o balé das mãos forma uma grámatica ou código.
Pierre Clastres em “Da Tortura nas Sociedades Primitivas” asso­
Essa tensão poderia ser interpretada justamente como uma tensão entre re­
cia a um regime de significação “não-separado”, não cindido ou secciona­
presentação e imanência na obra de Ayrson, que como todo grande artista
do, um regime político. Ele diz:
explode os meios convencionais que utiliza e queima as caravelas.
No campo da ancestralidade encontramos no filósofo da liber­
Toda lei, dizíamos, é escrita. Eis que se reconstitui, de certa
maneira, a tríplice aliança já identificada: corpo, escrita, lei. tação, Eduardo Oliveira, uma síntese talvez dessa demanda ancestral por
As cicatrizes desenhadas sobre o corpo é o texto inscrito da
imanência:
lei primitiva, é, nesse sentido, uma escrita sobre o corpo. As

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OSMUNDO PINHO

Influenciados por uma cultura ocidental - somos levados a


pensar alternativas para o nosso futuro, reificando o pensa­
mento escatológico de encontrar o paraíso no devir. Essa ar­
madilha cultural tem nos privados e reconhecer nossa pró­
pria história e os modelos criativos que inventamos ao longo
do tempo e em diversos territórios do planeta. Reféns das
dicotomias reforma-revolução, moderno-arcaico, progres­
so-tradição, não valorizamos os modelos socioeconômicos
e político-culturais fabricados pela complexa tradição afri­
cana, a qual não obstante espalhou-se pelo planeta levando
consigo uma cosmovisão includente, imanente, dinâmica e
alterativa”. (OLIVEIRA, 2002, p. 16)

Como então estou ao final sugerindo, a perspectiva da africanida-


de está em tensão, mediada por distintas transformações, com o campo que
centraliza a morte social e a escravidão como categorias centrais para uma
subjetividade política e imaginação estética. Estruturada como uma repre­
sentação - alegoria - o quadro monumental de Eckhout é a materialização
de um feixe de trocas coloniais que centraliza o negro e o seu corpo, a raça e
o gênero, como uma forma de invenção baseada na separação fundamental,
no campo da representação, entre um conteúdo e sua forma ontologica-
mente separada, e que duplica outra célula-base da modernidade capitalista
hetero-patriarcal, porque, nesse caso, o africano é o escravizado, a pessoa
convertida em mercadoria. Em Heráclito, entretanto a representação é, no
mínimo, desafiada pela ênfase nos materiais, na ação e na incorporação da­
quilo que Alfred Gell reconheceria como a agência dos artefatos artísticos,
e dos fetiches sagrados que exercem influência transformadora sobre os
sujeitos, os espaços, os sentidos, transformando a imanência numa forma
material de transcendência a um só tempo estética, ética e histórica. (GELL,
2018; MATORY, 2018)

178
CATIVEIRO

V
A CENA DA OBJEÇÃO: NARRATIVA, ECONOMIA POLÍTICA
E PERFORMANCE
“Pois não vês que morremos todo dia
Debaixo do chicote, que não cansa?”
Castro Alves, “Os Escravos”, 1883.

“PERSONHOOD” E SUBJETIVIDADE

Em larga medida, as formas sociais do conhecimento, como epis-


temologias socialmente configuradas, quer sejam em modalidades repre-
sentacionais ou imanentes, tal como temos discutido nesse livro, definem as
formas do ser. A ontologia e a epistemologia são colhidas associadamente
como matéria de reflexão crítica, nessa chave, que, do ponto de vista que me
parece possível, nos permite formular e responder a perguntas como: quem
somos e como nos reconhecemos? Essas são perguntas obviamente fun­
damentais para os descendentes de africanos escravizados nas Américas.
Tomar em conta as formas de representação ou simbolização, como formas
do ser, parece ser um expediente possível para um reencontro com um si
que parece fugidio ou elusivo, se levarmos em consideração os quadros his­
tóricos que formaram os Estados Nacionais e suas contradições, sujeitos e
linguagens. Mas que, de outro modo, parecem formações quase-naturais
sob o peso odioso da raça e de suas prerrogativas. A raça, e suas violências
correlatas, parece localizar os sujeitos no plano fenomenológico das intera­
ções cotidianas, como em Fanon, assim como constituir, com o afterlife da
escravidão, o rastro até onde podemos seguir o nosso destino através das
trevas da História, rumo à África, ou à passagem do meio. (HARTMAN,
1997)
Nada disso é pacífico, obviamente. Um movimento como o nor­
te-americano “American Descendants of Slavery”, apesar de chocante, não
causa estranheza. Um de seus fundadores, Antonio Moore, coloca a coisa

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

em termos claros: “Você não imigra voluntariamente para uma comuni­ mologia negra nas Américas; II) a (in)comunicabilidade ou (in)congruên-
dade que é supostamente segregada e, em seguida, reivindica as lutas das cia da experiência e da política da negritude nos Estados Unidos e na Amé­
pessoas que estiveram aqui acorrentadas à escravidão por várias gerações”. rica Latina. Frank Wilderson e Lélia Gonzalez.
(ADJEI-KONTOH, 2019, p. l)^1 Ora, parece então que o tema de quem nós somos e como nos
Moore se expressou assim ao não reconhecer o direito da Senado­ reconhecemos permanece, apesar de tudo, como um problema ainda em
ra Kamala Harris, filha de imigrantes jamaicanos e indianos (assim como aberto. Notadamente quando a construção dessas perguntas e respostas
de outros negros, imigrantes ou descendentes de imigrantes do Caribe, da ocorre dentro e contra o mundo antinegro, que é paradoxalmente também
América Latina ou mesmo da África), o direito de perfilar junto a sujeitos 0 mundo negro, no exílio, ou ejetado de si mesmo. O si mesmo e o mundo
e comunidades afro-americanos, em sua luta por direitos. Ou seja, a expe­ são termos problemáticos nesse caso e é para essa configuração problemá­
riência da escravidão, no contexto histórico dos Estados Unidos da Amé­ tica que gostaria de dirigir minha atenção nesse momento, a partir de um
rica, e não a raça ou africanidade, define para esse movimento a identidade ponto de vista negro, afro-brasileiro, que é ele próprio matéria central do
do sujeito e seus vínculos políticos, históricos e ontológicos (ADJEI-KON­ problema que nos persegue aqui, porque como podemos, como posso eu
TOH, 2019). Em seu site, o grupo se explica: encontrar um ponto de vista estável para definir essa posicionalidade: na
história da negação absoluta, que define a negritude como morte social e a
ADOS - que significa American Descendants of Slavery
morte social como estrutura fundamental da escravidão e de seu afterlife;
- busca recuperar / restaurar o caráter nacional crítico da
identidade e experiência afro-americana, fundamentada na ou na vinculação mitopoética à africanidade, enraizada na cultura popular,
linhagem única de nosso grupo e que é central para nos­
na subjetividade e na vida social e familiar dos negros brasileiros? Essa é a
sa luta contínua por justiça social e econômica nos Estados
Unidos. (...) #ADOS #AmericanDOS se propõe a deslocar pergunta formulada aqui de tantas formas diferentes e em diferentes regis­
o diálogo em torno da identidade do que é ser afro-america- tros, que busca responder quem sou interrogando de onde vim.
no, no esforço de deslocar a discussão da melanina e centrar
adequadamente a discussão em torno da linhagem, (https:// Os modos historicamente possíveis de formular essas perguntas se
adosl01.com/)xliv articulam a estruturas formais de significação, a tradições, tropos, gramáti­
cas, estilos, sujeitos e cenários. Tendo em mente a proposição de Fred Mo-
A teoria weberiana da etnicidade encontraria campo fértil de de­ ten, em “In the Break” (2003), buscarei articular a partir de um corpus es­
senvolvimento aqui, mas a teoria garveysta do “race first” [raça primeiro] pecífico e limitado - narrativas escravas - a correlação desconjuntada entre
ou as conexões terceiro-mundistas do Black Panthers Party se esvairiam objeção/negação/objetivação e construção de subjetividade, questão crucial
envergonhadas. A escravidão, e em particular, a escravidão entendida den­ para o reconhecimento da pessoa do escravo e das formas objetivas que
tro dos quadros de formação do estado nacional norte-americano, são as essa “personhood” [pessoalidade] poderia assumir estruturalmente, como
estruturas de referência para essa mobilização. Nesse caso, dois pontos de condição de possiblidade de enunciação de um sujeito, que a princípio pa­
partida fundamentais para a motivação original em escrever esse livro se rece ser um sujeito da representação. E aqui está outro problema recorrente,
reencontram, algo perplexas: I) o lugar da escravidão na ontologia/episte- porque representar-se, sob certo registro epistemológico, significa tornar-

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

-se objeto para si mesmo, em meio a uma “cena” definida pela violência e, nesse caso, levaremos em conta a performance popular conhecida como
absoluta: “A negritude - o movimento estendido de uma sublevação espe­ “Nêgo Fugido”, que, ocorrendo todos os anos no mês de julho no distrito
cífica, uma irrupção contínua que organiza todas as linhas - é uma tensão de Acupe, no Recôncavo da Bahia, nos mostra como é possível significar,
que pressiona a suposição de equivalência de pessoalidade e subjetividade”. produzir e reproduzir conhecimento para além das modalidades estruturais
(MOTEN, 2003, p. l)xlv Nesse sentido, as narrativas autobiográficas, assim definidas pelo mundo antinegro; e assim também a historiografia resumi­
como ficcionais, de escravizados, nos permitirão discutir o problema, re­ da dos Mardi Gras Indians, de New Orleans, que no horizonte do Sul dos
presentar a si mesmo como esse Outro, o “estrangeiro” de que nos fala, de Estado Unidos, reencena, em contexto comparativo, temas e modalidades
modos tão distintos, Toni Morrison e Claude Meillasoux. (MORRISON, análogas à contraparte baiana da performance negra na Diáspora Africana
2019; MEILLASOUX, 1995) no Novo Mundo.
Todavia, a questão não é apenas literária, porque as políticas de re­
presentação também fazem parte da economia política e esse é um tropo só­
“ONDE O EU QUE NÃO ERA EU FEZ SUA MORADA”24
cio-histórico de grande relevância. Do ponto de vista da economia política
da escravidão, que não pode esquivar-se de confrontar o materialismo his­
Uma questão central na discussão atravessada nessa seção é a cor­
tórico, o problema é a ontologia social e sócio-jurídica do escravo: coisa ou
relação possível entre ficção e não-ficção na imaginação do mundo escravo
pessoa? Ou, de outro modo, sujeito de sua própria emancipação ou peça na
e de suas formas subjetivas. Uma imaginação que é por vezes autobiográfica
engrenagem econômica do escravismo? Nesse sentido, o debate historio-
e as vezes histórica. A linha divisória entre narrativas biográficas factuais,
gráfico brasileiro e a crítica afropessimista do marxismo são conclamados a
baseadas na memória, e narrativas ficcionais que reconstroem uma voz que
contribuir a essa profilaxia epistemológica, ainda sob a sombra do mundo
nos fala desde um passado presumido, é problemática e poderia ser enca­
antinegro e seu repertório, para interpretar a partir de outro lugar a subjeti­
rada como uma tensão produtiva. Desde as proposições de Walter Benja­
vidade negra, a morte social e a ontologia do sujeito negro.
mim em “Sobre o Conceito de História”, onde a consciência de um sujeito
Todavia, e por fim, como deve estar claro, tanto a economia política
histórico que em um “momento de perigo” se apega a um flash momentâ­
como as estruturas narrativas letradas operam dentro do mesmo registro,
neo carregado de sentido e dramaticidade. Até Trouilllot, que nos diz como
coincidente com formas de significação, epistemologias, baseadas na repre­
a consciência da História é ela própria histórica e sujeita a esse relampejo
sentação, na teoria do signo ou na teoria do valor. As respostas que podem
oferecer estão nesse sentido já pré-condicionadas pela objetividade dos 24 Trecho de “Amada”, de Toni Morrison. (2007) O trecho completo diz: “Não se discute. E nem
meios de subjetivação ocidentais e burgueses, como veremos. Há, entre­ adiantava, porque a tristeza estava no centro dela, no desolado centro onde o eu que que não era eu
fez sua morada. Por triste que fosse não saber onde seus filhos estavam enterrados ou que aparência
tanto, alternativas, e na seção final irei justamente considerá-las, tal como tinham se vivos, o fato é que ela sabia mais sobre eles do que sabia sobre si mesma, porque nunca teve
o mapa para descobrir como ela própria era”. (2007, p. 193) E no original em inglês: “No question.
elas se apresentam, não mais sob a lógica representacional do signo ou do And no matter, for the sadness was at her center, the desolated center where the self that was no self
valor, mas sob a lógica imanente da performance, baseada em repertórios made its home. Sad as it was that she did not know where her children were buried or what they
looked like if live, fact was she knew more about them than she knew about herself, having never had
comunitários, iletrados, cosmológicos ou mitopoéticos (MARTINS, 1997) the map to discover what she was like”. (MORRISON, 1988, p. 140)

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

imediato do presente, que exige uma resposta por meio de formas transi­ sucessivas migrações e deslocamentos promovidos pelo capitalismo global
tórias de produção de sentido, como as narrativas autobiográficas escravas. racializado. (SUNDIATA, 2003; GARVEY, 2004, GILROY, 2001; 1987)
A reminiscência histórica emerge em meio a um contexto de luta, e a vi­ Como aliás as narrativas de Frederick Douglass, Ouladah Equiano e Mah-
tória do inimigo ameaça mesmo os mortos. O estado de exceção que que omma Baquaqua mostram com clareza. (DOUGLASS, s.d.; EQUIANO,
vivemos é uma “ordem consumada” e um regime de verdade que se baseia s.d.; BAQUAQUA, 2017)
não apenas em um determinado conteúdo para a narrativa histórica, mas Definir a cena primordial para emergência de um sujeito na his­
também em determinada modalidade válida para contá-la, e essa história tória e de uma narrativa histórica autêntica, ou autenticada, passa pela pro­
perigosa tem um sujeito “a própria classe combatente e oprimida”. (BEN- dução ativa de um arquivo, que significa escolher algo e deixar algo de fora,
JAMIN, 1996, p. 228) assim como submeter as fontes à crítica e à seleção. Como diz David Scott
Como Trouillot (2016) alega, parte da historiografia oficial se ape­ (2008), o arquivo não está aí, dado, esperando para ser acessado, mas deve­
ga ao factual, como “ingênua ilusão positivista”, desconhecendo que a “his­ ria ser construído por um sujeito, em um momento relampejante, cheio de
tória”, em seu sentido vernáculo banal, se refere tanto aos fatos ocorridos, medo e perigo. Em uma correlação de escalas, que implica em uma varia­
como a sua narração. De modo que é difícil desentranhar o que ocorreu do ção qualitativa, a história não se confunde com a memória, na medida em
modo como é contado. Distinguir-se uma narrativa ficcional, ou “falsa”, que a última preserva outros critérios de validação para além da autentici­
de uma histórica é, no fundo, uma questão de autoridade, definida even­ dade factual, mas está associada também a dimensões afetivas, fragmentá­
tualmente por modos convencionais, como a autenticidade. (CLIFFORD, rias, alusivas, não-lineares e pouco referenciais. No caso do povo negro na
2008) Ou como Benjamim diz: “A história sempre é produzida num con­ Diáspora, a memória é também um antídoto contra a desumanização e a
texto histórico específico. Os atores históricos também são narradores, e aniquilação mais profunda, justamente baseada na negação da linhagem ou
vice-versa”. (1996, p. 52) Como no exemplo acima do ADOS, importa re­ parentesco, como tanto Orlando Patterson quanto Claude Meillassoux afir­
conhecer, nas disputas políticas de hoje, a autenticidade histórica de uma mam. (PATERSON, 2008; MEILLASOUX, 1995) Reconstruir um vínculo,
“lineage” [linhagem] que garanta direitos a um sujeito excluindo outros, uma narrativa ou lugar, onde o corpo, “máquina da memória” (SCOTT,
levando em conta a determinação de um contexto, ou cenário primitivo, 2008, p. 15), possa relembrar é, assim, essencial.
onde um drama coerente se desenrolou: a escravidão negra nos Estados No cenário histórico, e em suas disposições estruturais, a escravi­
Unidos. Entretanto, não é difícil perceber que a cena considerada - como dão negra é a cena primordial para a narrativa de si de um sujeito que busca
uma cena do crime devassada por policiais violentos e corruptos - é altera­ 0 seu lugar na História. Saidiya Hartmann retoma a questão do arquivo,
da para esconder as pistas e borrar a possibilidade de identificação de auto­ sempre provisional, por ser feito para construir as condições de possibili­
ria. A cena primitiva, geradora de direitos, porque reposiciona o sujeito em dade para representar a situação dos subalternos. Considerando-se que isso
uma linhagem, é uma cena arbitrária-ficcional, porque a escravidão negra seja possível apenas no sentido em que apontou Spivak: “Não há acesso à
nos Estados não foi produzida historicamente, nem vivida subjetivamente consciência subalterna fora das representações dominantes ou documen­
como um isolado nacional em relação ao tráfico negreiro, à diáspora e às tos da elite”. (HARTMAN, 199, p. 10)xlvi Ou fora da cena produzida pela

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narrativa escrava autobiográfica ou ficcional, e é nesse sentido que a auto­ p. 9) A narrativa em questão é extraordinária o bastante para levantar des­
ra reconhece a necessidade de uma “historical ficcion” [ficção histórica]. confiança. Sete anos escondida em um sótão minúsculo, por tanto tempo
Como em “Venus in Two Acts”, onde Hartman explora a figura ubíqua da que o corpo da narradora se deformou para sempre. Inverossímil, também,
Vénus escravizada encontrada em locações como a “senzala, o porão do desde certo ponto de vista, que uma preta escrava fosse capaz de uma nar­
navio negreiro, o sanatório, o bordel, a cela, o laboratório do cirurgião, a rativa tão complexa e articulada, com tantos sobressaltos e exortações mo­
prisão, o campo de cana, a cozinha, o quarto do mestre” (Idem, 2008, p. l) rais. (0'NEILL, 2018) O texto de Harriet Jacobs é considerado fundacional
3dvü, para também explorar os limites e perversões do arquivo e da economia para o desenvolvimento das letras negras nos Estados Unidos, e tendo sido
libidinal da escravidão. Vénus, figura ubíqua e obscura, pode ser, dessa for­ publicado em 1861, é um antecessor poderoso para o pensamento femi­
ma, uma ou várias meninas negras aprisionadas no arquivo, flagradas por nista negro norte-americano, na medida em que fornece um modelo para
meios indiretos como “uma sentença de morte, uma tumba, uma exibição a reconstrução de si por meio da narrativa. O'Neill sugere considerar esse
do corpo violado, um inventário de bens, um tratado médico sobre gonor- texto em conjunção a narrativas ficcionais, “Kindred”, de Octavia Butler,
réia, algumas linhas sobre a vida de uma prostituta, um asterisco na grande “Amada”, de Toni Morrison, que também incluímos em nosso escopo aqui,
narrativa da história”. (HARTMAN, 2008, p. 2)^ Mas ora, como tornar e “Sister Mine”, na Nalo Hopkinson, que não será considerado aqui. Em to­
visível a violência do arquivo sem reviver a violência da cena da violação. dos esses casos a autora vê o emprego crítico da “black speculative ficction”
Toda essa violência e violação encenada está enterrada no coração da his­
[ficção negra especulativa] ou “visionary ficcion” [ficção visionária]. (Idem)
tória e nos corpos de tantas Vénus, permanecendo, todavia, como histórias
A palavra-chave nessa abordagem seria a imaginação, que teria permitido
não contadas, silêncios escandalosos e aterradores. Até que alguém decida
a Harriet ou Linda (seu pseudônimo) transformar-se a si mesma pela ima­
contar uma história. Alguém como Toni Morrison. Em “A origem dos Ou­
ginação da liberdade e transformar a sua experiência, quase irreal, em uma
tros”, ela diz: narrativa coerente.
Podemos agora conhecer as narrativas em questão e seus perso­
Em meio a toda essa luta, a todo esse caos e ao conflito in­
destrutível causado pela distribuição de poder dentro das nagens principais, protagonistas ou narradores. Primeiro, os dois cubanos,
classificações de raça e gênero, eu esperava chamar a aten­
o cimarron25 Esteban Montejo e o “poeta-escravo” Juan Manzano, persona­
ção para indivíduos específicos que estão tentando fugir da
violência e mitigar os próprios fracassos, uma narrativa por gens que não poderiam ser mais distintos. Manzano, autoidentificado como
vez. Individualmente, de um para um. (MORRISON, 2019,
“mulato”, foi “cria da casa” e tratado como animal de estimação por sua ve­
p. 103)
lha senhora, que o “tomou como um tipo de entretenimento” (MAZANO,
2015, p. 32), até que iniciaram os seus padecimentos, que foram muitos e
Dentre as narrativas que vamos considerar, uma se equilibra ex­
muito cruéis. E Montejo, que nascido crioulo como Manzano, foi descrito
plicitamente na tensão entre verdade e ficção. “Incidentes na Vida de uma
como uma personalidade aguerrida e bravia, pelo antropólogo Miguel Bar-
Menina Escrava” principia não casualmente com a afirmação: “Os leitores
podem ter certeza de que esta não narrativa não é ficção”. (JACOBS, 2019, 25 Escravo fugitivo que se refugia na floresta ou montanha.

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net, que assina a narrativa, baseada em entrevistas realizadas quando Mon- As convenções narrativas são um aspecto importante a ser comen­
tejo já tinha 104 anos de idade. Publicado em 1966, o livro apresenta Mon- tado, assim como o trabalho de intermediação ou intercessão, como apon­
tejo como uma espécie de rebelde pré-revolucionário e testemunha ocular tado por Stephanie Youngblood (2013). Com exceção do livro de Equiano,
de fatos significativos da narrativa nacional cubana. (BARNET, 1986) Outro todas as narrativas se passam no século XIX, uma época já marcada pelo
“transcrito” é o “brasileiro” Mahommah Gardo Baquaqua, africano, nativo abolicionismo, “a maior besteira” nas palavras de Rufus, o ancestral branco
de Zoogoo, protagonista de inúmeras aventuras e como o outro africano e senhor de escravos no romance de Butler, que se surpreende com um livro
de nosso grupo Ouladah Equiano, engajado na vida marítima, perfazen­ de história do Século XX que fala de negros livres. (BUTLER, 2019, p. 226)
do uma subjetividade intensamente marcada pelo cosmopolitismo negro Jacobs, Douglass, Manzano escrevem diretamente em alinhamento com a
transatlântico. (BAQUAQUA, 2017; GILROY; 2001; OKONKWO, 1980) agenda abolicionista, e para tocar ou mobilizar a opinião pública branca
Baquaqua também inscreve sua voz ou, a tem inscrita, pelo compilador Sa­ sobre a injustiça da escravidão. Jacobs se dirige às “mulheres do Norte”:
muel Moore no coro do abolicionismo novecentista, assim como Frederick “Desejo despertar nas mulheres do Norte a consciência da condição de 2
Douglass, personagem icônico do movimento abolicionista anglo-saxão. milhões de mulheres do sul, ainda em cativeiro, sofrendo o que eu sofri”.
Oualadah Equiano, distintamente, entretanto, produz a si mesmo como su­ (JACOBS, 2019, p. 10) Douglass, imbatível em apontar as contradições mo­
jeito em meio a uma jornada espiritual rumo ao cristianismo mais perfeito, rais do escravismo, ainda que enredadas naquilo que Morrison chamou de
com uma distância de quase um século com relação às demais narrativas. “romantização”, apela à religião para chamar, embalde, à razão os trafican­
(EQUIANO, s.d.) tes de escravos e escravistas:
Não gratuitamente, poucas são as narrativas escravas de próprio
punho, e mais raras ainda as produzidas por mulheres. Já citei Harriet Ja- Temos ladrões de homens como ministros, chicoteadores de
mulheres como missionários e saqueadores de berço como
cobs e iremos considerar três outras narrativas ficcionais femininas. Os já membros da igreja. O homem que empunha o chicote man­
citados “Kindred”, o livro de ficção cientifica que narra as viagens no tem­ chado de sangue durante a semana, enche o púlpito no do­
mingo e afirma ser um ministro do manso e humilde Jesus.
po de Dana, uma jovem negra dos anos 1970, que retorna no tempo para O homem que rouba meus ganhos no final de cada sema­
salvar, e ao final matar, um ancestral branco; além de “Amada”, a obra es­ na, encontra-se comigo como líder de classe no domingo
de manhã, para me mostrar o caminho de vida e a estra­
tonteante de Toni Morrison, que ficcionaliza a história real de Margaret da da salvação. Aquele que vende minha irmã para fins de
Garner, que mato os filhos em 1856, para não devolvê-los para escravidão. prostituição, destaca-se como o piedoso defensor da pureza.
Aquele que proclama ser um dever religioso ler a Bíblia, ne­
(MORRISON, 2019) E por fim, duas autoras e histórias brasileiras, a nar­
ga-me o direito de aprender a ler o nome do Deus que me
rativa de Ana Maria Gonçalves sobre Kehinde, a africana de Savalu, perso- criou. Aquele que é o advogado religioso do casamento, rou­
ba milhões de sua sagrada influência e os deixa entregues
na ficcionalizada de Luiza Mahin, mãe do abolicionista Luís Gama, que foi
à devastação da poluição por atacado. O caloroso defensor
vendido pelo próprio pai; e o romance “Úrsula”, escrito por uma mulher da sacralidade da relação familiar, é o mesmo que dispersa
famílias inteiras, separando maridos e esposas, pais e filhos,
negra, Maria Firmina dos Reis, filha de uma forra, e nascida no Maranhão.
irmãs e irmãos, deixando a cabana vazia e o lar desolado.
(GONÇALVES, 2016; REIS, 2018) (DOUGLASS, s.d., p. 43)xlix

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A verve insuperável de Douglass contra a escravidão explora as livre, Manzano, como aliás, e, de modos diferentes, todos os outros autores,
contradições do cristianismo, em sua inequívoca mensagem universalis- tiveram vidas relativamente privilegiadas como escravos, ao menos na in­
ta, e do liberalismo econômico e político. Como Equiano um século antes, fância. Ou seja, toda a crueldade e injustiça, que vemos com tantos detalhes
que se esmera em demonstrar como o tráfico de escravos, e a escravidão relatadas, não davam pálida ideia do que se passava, de muito pior, com os
africana, mantendo deprimidos e alienados da “civilização” e do mercado negros nos campos, o que seguidamente Manzano e Jacobs lembram. Além
milhões de seres humanos, impediria o desenvolvimento pleno dos inte­ disso, por óbvio, os autores que consideramos aqui conseguiram a liberda­
resses comerciais europeus em geral e britânicos em particular. A mesma de, por fuga ou alforria, alfabetizaram-se e, alguns casos, como Douglass,
verve abolicionista aparece em Manzano, em outro tom ou nota, todavia. tiveram expressiva atuação política e reconhecimento social, tudo que sem­
Como apontado na excelente apresentação de Alex Castro à edição brasi­ pre esteve muito longe da maioria dos escravos, que morreram analfabetos
leira, Manzano, como outros de nossos autobiografados não escreve exa­ e anônimos no cativeiro.
tamente de voz própria. (CASTRO, 2015) A autobiografia de Montejo foi Esses privilégios relativos revelam hierarquias e diferenças no
escrita por Barnet, o livro de Jacobs foi “revisado” por Maria Childs, o relato mundo dos escravos, diferenças materializadas na pele clara, como a de Ja­
de Baquaqua compilado por Samuel Moore e o relato do poeta-escravo foi cobs e de Manzano; na inteligência e sagacidade extraordinárias como em
escrita de encomenda a pedido de um grupo de literatos cubanos, um grupo Douglas e Equiano. Nenhuma dessas diferenças, entretanto, livrou nossos
qual fazia parte Nicolás de Prado Ameno, filho de uma de suas proprietá­ sujeitos da violência, da exploração e do desprezo mais brutais, tão típicos

rias, a Marquesa de Prado Ameno. Como Lopes então indica, Manzano, ou da escravidão. Ainda assim, ou por isso mesmo, Montejo, ou Barnet, não

seus “revisores”, teriam a tarefa complexa de condenar a escravidão, sem poupa críticas e desprezo pelos negros da casa:
condenar os senhores de escravos. Carmen Cosme em sua tese, afirma mais
Quando um negrinho era lindo e gracioso era mandado
precisamente que o texto de Manzano escrito por encomenda de Domingo
para dentro. Pra casa dos amos. Aí começavam a agradar a
dei Monte, abolicionista cubano, foi depois editado por Anselmo Suarez ele...Sei lá! O caso é que o negrinho tinha que passar a vida
inteira espantando moscas, porque os amos comiam muito.
y Romero. Buscando alcançar a sensibilidade dos leitores brancos o texto E o negrinho ficava na ponta da mesa enquanto comiam.
se moldaria ao estilo picaresco, segundo Cosme uma “simulação biográfica Davam para ele um abano grande e comprido de folha de
palmeira. E diziam: ‘Vamos lá, não deixe cair moscas na co­
em ambientes sociais mesquinhos”. (COSME, 2014, p. 4) Ora, Manzano mida!”. Se caia alguma mosca num prato, eles ficavam bra­
descreve nesse texto cheio de silêncios e ambiguidades, inclusive sexuais, a vos e com ele e batiam. Eu nunca fiz porque não gostava
de me misturar com os amos. Era selvagem de nascença.
relação com a Marquesa a quem chamava de “mamãe”. (BARNET, 1986, p. 22)
Como disse anteriormente, a narrativa e a “subjetividade” de
Manzano se prestam a contrastes muito interessantes com relação ao ou­ O romance de Maria Firmina dos Reis também se insere nesse
tro cubano, Montejo, que aparece descrito como possuído por um “espíri­ registro abolicionista e com maior sutileza talvez, na medida em que não se
to selvagem”, em oposição ao dócil e aculturado Manzano, o protótipo de trata de uma autobiografia escrava stricto senso, e nem tem escravos como
escravo da casa. Filho de uma escrava mestiça de estimação e de um negro personagens principais. Entretanto, com habilidade e tato muito típicos, os

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personagens escravos coadjuvantes são apresentados de modo não apenas mento ainda como escravizado (Lima, 1990), transitam nesse ambiente de
humanizado, mas heroico. Considerado por Eduardo de Assis Duarte o pri­ grandiosidade tropical que tem a majestosa cachoeira de Paulo Afonso, na
meiro romance abolicionista brasileiro, publicado em 1859, “Úrsula” ante­ Bahia, como cenário e personagem.
cede, por exemplo, a produção romântica e extravagante de Castro Alves,
atuante na década de 80 do século XIX. (REIS, 2018) Em “Úrsula”, logo nas Que bela testa espaçosa,
Que olhar franco e triunfante!
primeiras páginas, o escravo Túlio, apresentado como “infeliz, mas virtuo­ E sob o chapéu de couro
so” é, na verdade, o salvador do protagonista Tancredo, o romântico galã Que cabeleira abundante!
De marchetada jiboia
apaixonado pela infeliz Úrsula, presa a uma cadeia de ódios e paixões anti­ Pende-lhe a rasto o facão...
gas. O romance tem um final triste, com a morte injusta dos dois apaixona­ E assim... erguendo o machado
Na larga e robusta mão...
dos, derrotados pelo ódio e pelo desejo do cruel tio de Úrsula. Antes, toda­
Aquele vulto soberbo, — vivamente alumiado, —
via e além de Tulio, outros personagens negros aparecem de modo pouco Atravessa o descampado
Como uma estátua de bronze
comum, dentre estes a incrível Mãe Susana, justamente destacada por Assis
Do incêndio ao fulvo clarão. (ALVES, 1983, p. 11)
Duarte como a voz mais aguda e lúcida na narrativa e que vem explicar a
Túlio o sentido da “verdadeira liberdade”, em terras africanas, não como
Todavia, como em Úrsula e outros tantos romances e poemas da
escrava ou mesmo forra em uma sociedade escravista. (DUARTE, 2018)
época, o amor entre dois estava marcado pela tragédia, porque um “segredo
Final infeliz também aparece no incrível “A Cachoeira de Pau­
horrível” ronda a felicidade do casal. A “flor das escravas” havia sido viola­
lo Afonso”, de Castro Alves, que narra as desditas amorosas, e a desgraça
da, violação a que se atribui a revolta de Lucas e sua fuga e adesão ao bandi­
advinda do amor entre escravos em uma sociedade escravista, por meio
tismo. Todavia, como o poeta cruamente define, o que significa a rebeldia e
de uma série de 32 poemas de formato e estilos variados, demostrando a
o crime quando se é escravo: “E vens falar de crimes ao cativo?/Então não
expertise e o virtuosismo técnico do autor abolicionista morto, muito ro­
sabes o que é ser escravo”. (ALVES, 1983, p. 36) O crime primeiro é, obvia­
manticamente, ainda aos 24 anos. O cenário é deslumbrante, e a nature­
mente, a escravidão, que além de tudo produz arranjos perversos e vínculos
za como nas gravuras de Thomas Ender, e outros viajantes do século XIX,
amaldiçoados entre os escravos e seus senhores. Porque o violador da escra­
emoldura uma experiência de grandiosidade, paz e harmonia exuberantes:
va enamorada é o irmão branco de Lucas, uma vez que sua própria mãe fora
“Hora meiga da tarde! Como és bela/Quando surges do azul da zona ar­
anteriormente violada pelo seu senhor e pai, do próprio Lucas, assim como
dente!”. (ALVES, 1983, p. 3) A bela mucama, “mimosa flor das escravas”,
de seu irmão branco, rival e algoz de sua amada, assim como fora o pai o
e seu amante enamorado, ninguém mais ninguém menos que o legendário
próprio algoz de sua mãe!
bandoleiro e ex-escravo baiano, Lucas da Feira26, apresentado nesse mo­
Violações, estupros, abusos e assédio como estes são apontados
26 Eu estou assumindo aqui, ainda que provisória e especulativamente, que o Lucas que aparece no seguidamente, como o dia a dia da escravidão, por todos os autores que
poema é o mesmo “bandido escravo”, Lucas da Feira. O poeta nasceu no mesmo ano em que Lucas
foi enforcado, 1847. consideramos. Sabemos disso também pela narrativa histórica, apesar dos

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esforços em “reabilitar a escravidão”. Mesmo em Gilberto Freyre, o abu­ Jacobs, Equiano e Dana sucumbem diversas vezes à desonesti­
so sexual e homossexual está bem documentado. (FREYRE, 1995: MOTT, dade branca. Comerciantes nas índias Ocidentais por repetidas vezes rou­
1988; AIDOO, 2018) Mas escutar a voz de quem viveu e experimentou tal bam Equiano e o enganam, tentam mesmo re-escravizá-lo em meio a suas
cotidiano tem, naturalmente, outro significado: “Fantasmas sem pele en­ tortuosas peripécias. Flint, assim como Rufus, mentem para Dana e Linda,
fiavam seus dedos nela e diziam amada no escuro e vagabunda no claro”. jurando dizer ajudá-las, prometendo libertar seus filhos, ou tratar melhor
(MORRISON, 2007, p. 320) Em “Kindred” e em “Incidentes na Vida de uma os outros escravos. Mesmo o pobre Manzano, “o mulatinho da marque­
Menina Escrava”, o tepia aparece, centralmente, no primeiro caso como sa”, tão comprometido com o mundo branco, a tal ponto de buscar distan­
leitmotiv de um esforço desesperado e alucinadamente inútil de manter o ciar-se dos outros pretos, é enganado e traído muitas vezes e muitas vezes
“passado a distância” e em Jacobs, de um modo mais persistente e estru- brutalizado injustamente. Sendo mesmo eventualmente forçado a mentir
turante da narrativa. Toda a luta de Linda se equilibra em fugir do assédio para satisfazer a sede de verdade de seus algozes: “Nove noites padeci desse
constante de Dr. Flint, seu senhor, e em salvar suas crianças da escravidão.
tormento. Nove mil coisas diferentes dizia, pois ao dizer-me: "diga-me a
(O'NEILL, 2018) Apesar de relativamente privilegiada - nunca tendo sido
verdade’ e me açoitar, já não tinha o que dizer que fosse plausível para que
açoitada, por exemplo (sorte que não teve Dana em suas viagens no tempo,
não me castigassem mais”. (MANZANO, 2015, p. 63) Ainda assim, todos
nem Manzano apesar de tão inteligente e gracioso) -, Linda é, entretanto,
os autores, e em diversos momentos, encontraram entre os brancos, ami­
constantemente assediada, ameaçada e chantageada para ceder ao impulso
gos, e elogiam com ênfase a bondade, caridade e espírito cristão de alguns.
de Flint, de tal modo que ela prefere entregar-se a outro homem branco,
pai e senhor de seus filhos mestiços, antes de entregar-se aos caprichos que Equiano - que trabalhou ele próprio no tráfico de escravos -, mesmo tantas

considerava insuportáveis. O comportamento sexual de Jacobs é motivo vezes traído, encontrou em seus senhores, “amigos”, como Mister King, que

de constante embaraço e vergonha, acusada, mesmo por outras mulheres ao final o libertou. E Dana, casada nos anos 1970 com um homem branco
negras, de imoralidade. Kehinde, ou Luiza, também se relaciona, já livre, e que paradoxalmente, como Manzano, nutre sentimentos empáticos por
com um homem branco e nesse caso não parece sucumbir à tentação da Rufus, seu ancestral-algoz. Nenhum destes, todavia, supera Manzano: “Eu
autocondenação moral: “Ele era bastante carinhoso e me deixou à vontade, a amava [A Marquesa] apesar da dureza com que me tratava”. (Idem, p. 79)
como se também estivesse gostando de ficar comigo, como se estivesse me Em muitos destes casos, é óbvio que 0 fato de que os autores sabiam que
vendo como mulher e não como uma preta”. (GONÇALVES, 2016, p. 342) os seus leitores em potencial seriam brancos, sugere a interpretação que
Então, obviamente, as relações com os brancos, quer sejam de natureza se­
não seria prudente, nem seguro, desafiar ou confrontar aqueles com poder
xual ou outra, são constantemente retratadas nas narrativas. E esse é um
absoluto sobre o corpo, se não a voz, dos (ex)escravizados narradores. Isso
ponto que gostaria de enfatizar, a relação com os brancos, como o aspecto
não afeta, entretanto, a Baby Suggs, a sogra profética de Sethe em “Beloved”,
central da cena estruturada da subjetividade escrava. O que deveria ser ób­
que sabia que não seria lida por nenhum branco e que também sabia que
vio, mas às vezes parece ser um aspecto negligenciado, tanto do ponto de
vista de uma fenomenologia política quanto de uma política epistemológi-
ca, como certamente Fanon já demonstrou muito bem. (1983)

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qualquer branco podia pegar todo o seu ser para fazer qual­ Por fim, chamam a atenção, para o caso dos africanos Kehinde,
quer coisa que lhe viesse à mente. Não apenas trabalhar,
Baquaqua e Equiano, as descrições da África e da passagem do meio, tropos
matar ou aleijar, mas sujar também. Sujar a tal ponto que
não era mais possível gostar de si mesmo. Sujar a tal ponto fundamentais da imaginação política da diáspora africana contemporânea
que a pessoa esquecia quem era e não conseguia pensar nis­
e que aparecem graficamente descritos. No caso da África, as descrições
so. (MORRISON, 2007, p. 333)
chegam a soar etnográficas em seus detalhes. Lovejoy busca relativizar ou
desqualificar as pretensões de estabilidade e coerência identitária ou étnica
Não apenas do ponto de vista feminino, a sexualidade, em seu
para Baquaqua, duvidando mesmo que o africano tenha sido autor de um
equilíbrio tenso de terror e prazer, afeto e abjeção, define-se centralmente,
relato tão vivo de tantas aventuras em três continentes. Mas ainda assim
mas também pelos silêncios. Douglass e Eqúiano são absolutamente dis­
reconhece sua “forte identificação com a África e sua terra natal” Zoogoo
cretos sobre suas vidas sexuais e amorosas. Manzano, que aparece no texto
ou Djogou. (BAQUAQUA, 2017, p. 15) Filho de uma família islâmica ilus­
sempre sentimental e chorando, dá mais pistas de um silenciamento sobre
tre, tendo sucumbido ao cativeiro por imprudência motivada pelo abuso
temas vexatórios: “Desde meus doze anos dou um salto até a idade de ca­
de álcool, Baquaqua foi batizado cristão em 1848 e ainda assim manteve o
torze, deixando em seu intermédio o que se verifica como minha fortuna
ardente desejo de regressar a sua terra Natal, que ele descreve assim:
era instável”. (MANZANO, 2015, p. 37) Muito mais eloquente era Este-
ban Montejo, que dedica inúmeras páginas a comentários sobre mulheres,
A cidade de Zoogoo encontra-se no meio da área mais fér­
amantes, paixões e desejo frustrados de seus dias escondido no mato, e til e agradável do país. Seu clima apesar ser extremamente
mesmo jogos eróticos, descritos com voyeurismo etnográfico. O mais sur­ quente é aprazível. Ali existem colinas, montanhas, planí­
cies e vales, tudo muito bem regado. Cerca de uma milha
preendente, entretanto, é a referência à homossexualidade nos barracões
da cidade há um fluxo de água branca como leite e muito
(senzalas): formosa. (Idem, p. 18)

De qualquer jeito, a vida era solitária mesmo, porque as mu­


Kehinde, ou Luiza, ademais da descrição dos costumes e da cul­
lheres eram poucas. Para ter uma a gente tinha que ter 25
anos ou agarrá-la no campo. Os próprios velhos não que­ tura de seu povo, enreda a própria história em quadros interpretativos cos-
riam que os jovenzinhos conhecessem mulher. Eles diziam
mológicos fon: “[...] meu nome é Kehinde, porque sou uma ibêji e nasci
que só aos 25 anos é que os homens tinham experiência.
Muitos homens não sofriam porque estavam acostumados por último. Minha irmã nasceu primeiro e por isso se chama Taiwo. Antes
com essa vida. Outros faziam sexo entre eles e não queriam
tinha nascido meu irmão Kokumo e o nome dele significava ‘não morrerás
saber nada de mulheres. Era a vida deles: sodomia. (...) Para
mim isso não veio da África; os velhos não gostavam nada mais, os deuses te segurarão. O Kokumo era uma abiku, como minha mãe’”.
disso. Viviam brigando com eles. Para ser sincero isso nun­
(GONÇALVES, 2016, p. 19) A configuração mítica de parentesco seguirá a
ca me incomodou. Eu sou da opinião que cada um faz de
sua vida o que quer. (BARNET, 1986, p. 40) autora por toda a narrativa e o fato de ser Ibêji e filha de uma abiku terá con­
sequências na trama, concorrendo como modelo explicativo interno para
o desenrolar da história e seu significado atravessado pela busca do filho

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desaparecido, um tema, aliás, como estamos vendo, recorrente, a religação outros já as discutem, mas também para não sucumbir à “violência do ar­
de laços familiares - “kindred” [parentesco] - destruídos, ou alimentados, quivo”. (HARTMAN, 1997)
pela escravidão. Muito significativamente, Gonçalves toma provérbios afri­ Quero concluir essa seção ainda com Equiano, para voltar ao tema
canos como epígrafes para os capítulos do volumoso livro de 951 páginas, da representação, ou da articulação da subjetividade escrava ou africana no
que coloca a narradora como protagonista de diversas passagens icônicas interior e sob os ditames de estruturas e modelos convencionais europeus
da história negra, como a revolta dos malês, em 1835, sempre alternando e brancos. Assim como também chamando a atenção para o que deve es­
leituras históricas com leituras míticas. tar já óbvio, a diversidade, menos de experiências ou situações, e mais das
O terceiro africano de nosso grupo, Equiano, que inclusive, ao que personalidades - “personhood” - dos retratados, que resiste apesar da me­
parece, escreveu do próprio punho a sua narrativa, tendo sobre ela em tese diação ou intercessão dos revisores, compiladores, e entrevistadores, como

mais controle, também principia sua narrativa ascensional, rumo à liberda­ mais um testemunho da invencível humanidade dos escravizados, percep­

de e a cristianismo descrevendo o seu país natal: tível mesmo através da uniformidade dos estilos narrativos. Que seguem
convenções, buscando, por exemplo, explorar a empatia feminina como em
Aquela parte da África, conhecida pelo nome de Guiné, “Incidentes”, ou apelando para as contradições de cristianismo, como em
para a qual é feito o comércio de escravos, estende-se ao
Douglass. Como não reconhecer, entre o traço humano tão idiossincrático
longo da costa acima de 3400 milhas, do Senegal a Angola, e
inclui vários reinos. Destes, o mais considerável é o reino de de destemor e cupidez de Montejo, que quase se parece com pretos velhos
Benin, tanto em extensão e riqueza, a abundância e cultivo
que conheci, e a covardia e o desalento de Manzano, que não encontra sos­
do solo, o poder de seu rei, e o número e disposição guer­
reira dos habitantes. Ele está situado quase abaixo da linha sego ou lugar em nenhuma parte, odiado pelos pretos e desprezado pelos
e se estende ao longo da costa por cerca de 170 milhas, mas brancos, o mesmo lampejo de individualidade - força e fraqueza - que nos
se volta para o interior da África a uma distância até então
inexplorada por qualquer viajante; e parece apenas ser limi­ faz humanos?
tado pelo império da Abissínia, a cerca de 1.500 milhas de Lisa Lowe, em “Autobiography out of the Empire”, chama a aten­
seu início. Este reino está dividido em muitas províncias ou
distritos: em um dos mais remotos e férteis dos quais, cha­ ção para os limites dos gêneros narrativos no escopo da representação da
mado Eboé, nasci, no ano de 1745, em um charmoso vale diferença racial e de sua historicidade. Comentando a narrativa de Equiano,
fecundo, chamado Essaka. (EQUIANO, S.d., p. l)1
a autora a vê como mediação entre estruturas históricas distintas, a escravi­
dão e o trabalho livre com os correspondentes sujeitos assujeitados a estas
Estes africanos todos descrevem, com detalhes aterrorizantes, a estruturas conectadas. Dessa forma, a autobiografia de Equiano estiliza a
passagem do meio, o medo terrível do destino desconhecido, a sujeira e o “conversion from chattel to liberal subject” [a conversão de um bem móvel
mau cheiro, insuportáveis além de quaisquer limites, a dor, o desespero, em um sujeito liberal]. (LOWE, 2009, p. 28) Sendo este o primeiro texto
a loucura, as tentativas de suicídio. Mas não gostaria de me deter nesses de um africano escravizado a ser publicado, e a ganhar circulação no mo­
aspectos, assim como não me detive nas cenas de terror e sujeição, tão mar­ mento em que se exigia, ou se tornava possível, a emergência desse sujeito
cantes nas narrativas de Douglas, Manzano e Equiano, não apenas porque (escravo) e de sua relação com a liberdade, definida como uma “structure

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of feeling” [estrutura de sentimento] conectada a própria invenção da liber­ A já citada Stephanie Youngblood (2013) apela à noção de inter­
dade moderna no século do Iluminismo, inaugurando a longa trajetória das cessão, emprestada de Jacques Derrida para ler a autobiografia de Manza-
metáforas que se opõe como a dialética do senhor e do escravo. “Essa su­ no, como uma narrativa na qual o self (that was no self) [que não era um

peração dialética é o mecanismo central da historiografia liberal, em que a self] pode ser narrado e ao mesmo tempo rejeitar essa mesma objetificação.

negação humana violenta da escravidão colonial é reconhecida e assimilada Porque, e esse é o problema, ou parte dele, como apresentado acima: como
dizer a si mesmo, sem tornar-se para si um objeto representado, exterior,
em uma narrativa que supera a violência em uma consolidação do regime”.
alienado, e justamente construído como outro de si, confeccionado por
(LOWE, 2009, p. 105)11 A genealogia da liberdade liberal é assim a genealo­
meios alheios aos fundamentos ontológicos, presumidos de um sujeito que
gia da raça e de sua redenção. Como de certa forma também diz Orlando
é completamente definido pela negação? Ou como definir um equilíbrio
Patterson:
entre o sujeito que narra e o objeto narrado. E como fazer isso sem recair na
outremização que deplora Morrison, baseada muitas vezes em colorismos
Trata-se do problema da liberdade. Além das conclusões só­
cio-históricas, está a desconcertante descoberta de que um fáceis. (MORRISON, 2019) E é aqui que a figura de intercessão pode ser
ideal amplamente acalentado no Ocidente, acima de todos útil. Interceder é falar por alguém, “em nome” de alguém, alguém que não
os outros, emergiu como consequência necessária da degra­
dação da escravidão e do esforço em negá-la. Os primeiros pode falar por si mesmo, porque eventualmente não é um “sujeito” e não
homens e mulheres a lutar por liberdade, os primeiros a se possui prerrogativas estruturais e uma posição estável no interior de um
pensarem como livres no único sentido significativo do ter­
sistema representacional suficiente para ser lido como uma voz ou sujeito
mo, eram libertos. E sem escravidão não haveria libertos.
(PATTERSON, 2008, p. 469) coerente, como no caso do sistema jurídico escravocrata que discutiremos
mais à frente. Ora, essa configuração não é meramente representacional e
simbólica, mas profundamente enraizada na economia política e nas es­
Ora, o que acrescentaria aqui é que esse pensamento ou figura­
truturas de representação (políticas): “O ato de intercessão, ao falar em ou
ção histórica da liberdade, em um momento de perigo, foi manufaturada
pelo nome de outrem, emerge da incapacidade do narrador de participar
com os recursos e estruturas desenvolvidas e comandadas pelos mesmos
do mercado como uma figura que, em seu próprio nome, pode mover-se da
opressores, que faziam do sonho da liberdade uma luta selvagem, inglória,
escravidão para a liberdade”. (YOUNGBLOOD, 2013, p. 418)Hi
incerta e constante como vimos nas narrativas. Foi usando a língua do ho­
Dessa forma, há uma dependência analógica, digamos assim, en­
mem branco, suas formas expressivas convencionais, como a autobiografia,
tre a posição do sujeito em uma estrutura narrativa e sua posição numa
apelando a seus sentimentos e buscando sua empatia, que a voz escrava, estrutura de antagonismos que é política e econômica, repousando em
indicadora de formas subjetivas tão particulares e tão universais em sua hu­ dimensões estatutárias que têm alcance verdadeiramente civilizacional. E
manidade, pôde se constituir e chegar até nós, dessa forma, nesse momento tudo se refere à relação desses sujeitos com o mundo branco. E com a má­
histórico. quina do tráfico transatlântico, que produziu a primeira desterritorializa-
ção, desenraizamento brutal. E com a encomia mercantil da plantation, o

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modo de produção escravista-colonial, e, paradoxalmente, por fim, com as Nesse sentido, precisamos reconsiderar a economia política da
promessas de liberdade universalista e transparência epistemológica, basea­ escravidão moderna nas Américas para desenvolver nosso problema com
das em uma recém-inventada humanidade comum. Ora, essas correlações relação à subjetividade e à personhood escrava. E serei óbvio mais uma vez.
tortuosas e incongruências, esse ancestral, odioso e cruel, como Rufus para A questão não é se os escravos eram de fato humanos, porque, em verdade,
Dana, é o avatar antagônico que não tenho alternativa senão reencontrar e obviamente o eram, ao menos tanto quanto nós mesmos ou seus senhores
matar: brancos, mas que o próprio significado de “humanidade” não é assim tão
óbvio, muito menos a distinção entre coisa e pessoa, ou agente e paciente,
Senti a faca em minha mão, ainda escorregadia por causa
sujeito e objeto. (STRATHERN, 1990) Como estamos vendo nesse capítulo
do suor. Uma escrava era uma escrava. Qualquer poderia
ser feita com ela. E Rufus era Rufus, errático, dividindo-se e em outros momentos desse livro. A questão é que a “humanidade” que era
entre generoso e cruel. Eu podia aceitá-lo como meu ances­
sustentada e promovida historicamente dependia da desumanização negra.
tral, como meu irmão mais novo, meu amigo, mas não como
meu senhor, e não como meu amante. (BUTLER, 2019, p. E que estruturas políticas sustentavam a exploração econômica mais tota-
416)
lizante e solapavam as condições estruturais de autorrepresentação negra.
De tal forma que a negritude pode ser descrita como negação incorporada,
O ESCRAVO COMO AGENTE SUBJETIVO e a morte social estabelecida como matéria de definição de um sujeito jus­
tamente definido por sua violação. Ou, de modo mais prosaico, pergunta­
Deslocando o ponto de vista das narrativas escravas, de sua triste ríamos, quem era o escravizado e a escravizada? Aproximamo-nos acima
riqueza e contradições agudas, interrogo o mesmo problema articulado em de uma perspectiva em primeira pessoa, ainda que alienada; busquemos,
outro âmbito correlato. Como a obliteração da liberdade, encarnada para­ agora, retomar a pergunta de outro ponto de vista, principiando exatamen­
doxalmente na figura do liberto, que não pôde abrir para si espaço de re­ te pela alienação ou alienabilidade.
presentação autônoma, porque não poderia ser reconhecido como o sujeito Para tanto, volto brevemente ao debate clássico na historiografia
autônomo das trocas econômicas, que o habilitariam como “proprietário”, brasileira da escravidão, e para o modo como interpretações historiográfi-
vale dizer cidadão, se choca com as mesmas condições para a representação. cas influenciaram leituras sociológicas e políticas sobre a escravidão, e seu
Ou como a vacuidade ontológica do negro torna ridículas ou ingênuas as rastro no Brasil, na formação de sujeitos políticos e sensibilidades. E, prin­
pretensões de participação, por exemplo, na esfera pública ou na sociedade cipalmente, para como a economia política pôde fornecer elementos para
política. definição ou descrição de um sujeito e de uma subjetividade.

Vamos colocar isso de forma direta: a violência contra o cor­ O tema de certa forma pode parecer superado, mas certamente
po negro é a pré-condição para a existência da entidade úni­ não de meu ponto de vista. Jacob Gorender, um autor muito particular,
ca de Gramsci, “o moderno estado burguês” com seu aparato
dividido, sociedade política e sociedade civil. Isso quer dizer com uma obra monumental e densa, coerente e combativa, produzida fora
que a violência contra os negros é ontológica e gratuita, e
da universidade e, em alguns casos, contra ela, busca desenvolver, do pon­
não apenas ideológica e contingente. (WILDERSON, 2003,
p. 229)nii to de vista do materialismo histórico, o conceito de “escravismo colonial”,

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para superar uma antiga dualidade, bem ao gosto da esquerda, entre feuda­ Nesse sentido, a sujeição é pessoal e a alienação completa, impli­
lismo e capitalismo no Brasil. (Maestri, 2016) A dicotomia definia uma lei­ cando na anulação total da autonomia do escravizado. A negação da auto­
tura do processo histórico e da formação social brasileira, mas também uma nomia do escravizado é coetânea à completa dependência colonial do mer­
estratégia de luta política, o que certamente preocupava Gorender, militan­ cado externo. O escravismo colonial reconhecia o mercado, e parte de suas
te histórico do Partido Comunista Brasileiro (PCB) por mais de 30 anos. O leis econômicas, quando não deformadas pelo protecionismo colonial, mas
conceito de escravismo colonial é, na acepção de Maestri, uma “revolução não possuía a categoria central do capitalismo: o trabalho livre convertido
copernicana”, porque define o escravismo colonial como um modo de pro­ em mercadoria. Ora, como é evidente, o próprio trabalhador era a principal
dução novo, distinto do feudalismo e do capitalismo, com suas categorias mercadoria. “Sendo mercadoria livremente alienável, o escravo se tornava
históricas próprias. Aspecto central refere-se à autonomia dos escravos e o objeto de todos os tipos de transações correntes nas relações mercantis”.
lugar da chamada “brecha camponesa”, a produção de gêneros alimentícios (Idem, p. 109) O trabalho livre e seu sujeito presumido, o trabalhador, esta­
por escravos, ex-escravos e sua família, e seu lugar na (re)produção econô­ ria ausente ou presente de modo residual, o que impediria, segundo leituras
mica da sociedade. Gorender é categórico, a “brecha” seria residual e não afropessimistas contemporâneas, a fundamentação na economia política
estrutural ao modelo. Leva-o a implicações relevantes sobre o significado para o radicalismo negro. (WILDERSON, 2003; 2010) Inversamente, o tra­
amplo da escravidão e da vida escrava em conexão à reprodução desigual da balhador, no escravismo, era a própria mercadoria, em sua dimensão mais
sociedade. (GORENDER, 2016; 1990) pessoal e paradoxalmente humana.
Central também é a categoria “escravo” como explicadora, e não Além da referida crítica à “brecha camponesa”, entendida por ou­
explicada pelas análises históricas do Brasil colonial. Nesse aspecto Goren­ tros autores como Ciro Flamarion Cardoso como um embrião capitalista
der faz eco a Karl Marx, que nas “Grundisse” escreveu: “[...] deve ser criado em uma economia escravista, o que Gorender nega categoricamente, um
um modo de produção correspondente ao escravo” (MARX, 2011, p. 52), outro aspecto da perspectiva crítica de Gorender e que me interessa aqui
tarefa a que se dedica Gorender. Definindo-se como propriedade de ou­ mais centralmente tem a ver com a natureza da agência escrava, sua auto­
trem, o escravo, e sua posse, deveria ser considerado como fundamento de nomia ou subjetividade, como o autor desenvolve em “A Escravidão Reabi­
um modo de produção, de uma ordem econômica e de uma formação so­ litada”, e em menor medida em “O Escravismo Colonial”. Intervindo desde
cial histórica singular. Esse sujeito, todavia, habitava uma contradição nos­ fora dos espaços acadêmicos institucionais, Gorender reage ao que chama
sa conhecida ao ser definido ao mesmo tempo como “coisa” e “pessoa”. E de “reabilitação da escravidão”, perpetrada por autores comprometidos
também como um “trabalhador”, ademais de um tipo muito específico, de com a ideia de uma escravidão maleável, flexível, que preservaria espaços
quem se extrai riqueza não por meio da coação econômica, mas da violên­ de liberdade, como a família escrava, em um ambiente no qual se articula­
cia física direta “resulta então que o econômico é tratado como acessório, riam “negociação” e “conflito”, alcançando, para grande revolta do autor,
enquanto o extraeconômico se torna o essencial”. (GORENDER, 2016, p. uma dimensão quase contratual e não meramente baseada na violência e na
115) coerção. (GORENDER, 1990)

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Primeiro, é preciso dizer que parte importante da historiografia momento de desagregação do sistema escravocrata, diz o autor, as classes
reconhece o escravo como um sujeito pleno, não só com autonomia, mas dominantes teriam buscado, ao menos em São Paulo, garantias na transição
com vínculos familiares, genealógicos e culturais, e não meramente como para o trabalho livre, que encontrou o liberto como senhor de si mesmo,
o desenraizado absoluto, socialmente morto, ou a personificação anômi- lançado à competição, como agente individual na economia competitiva.
ca de uma vida fragmentada e precária. Ou seja, os autores que Gorender Desse ponto de vista, a abolição foi uma espoliação perversa e cruel, en­
acusa de pertencerem a “escola paulista”, como principalmente Florestan tendida como uma condenação (branca) do antigo regime na qual o negro
Fernandes, teriam produzido uma “coisificação” do escravo, que pareceria teria papel como coadjuvante (aríete) do processo. De tal modo, inclusive,
incongruente com o resultado das pesquisas históricas posteriores. (FER­ que as massas libertas foram reabsorvidas no sistema em condições análo­
NANDES, 1978; ARRUDA, 1996) Por outro lado, autores identificados gas à escravidão, o que vale dizer que as alternativas econômicas compro­
com o que Gorender julga ser a escola da UNICAMP, notadamente Ro- metiam a posição do negro nas relações de produção (e na vida social). E,
bert Slenes, ao negar a coisificação do escravo e ao afirmar sua humanidade, fundamentalmente, em Florestan Fernandes, as condições psicossociais de
capaz por exemplo de reconstruir laços familiares e étnicos, acabaria por adequação prejudicaram imensamente os ex-escravos, em tese, pouco pre­
negar também a centralidade da violência e do conflito na sociedade escra­ parados para um estilo de vida individualista e competitivo. Nesse cenário,
vista colonial, fazendo um eco a Gilberto Freyre que, como sabemos, via, Florestan divisa duras escolhas para o negro, cristalizadas na incorporação
apesar da crueldade, na escravidão, margem não apenas para negociação e à escória por meio da vagabundagem e da criminalidade. Para tanto pesaria
espaços de liberdade, mas também para “congraçamento” e “síntese” entre a presumida irracionalidade do comportamento do negro motivada pela
o mundo branco e o rqundo negro por meio da miscigenação e do desejo degradação da escravidão, que teria destruído, pelas condições estruturais
sexual, como discutimos no capítulo II. Ora, para Gorender: “O escravo- da vida escrava - a venda constante, a separação das famílias, a imoralidade
-vítima cede lugar ao escravo-sujeito e o resultado é o mesmo: a nulificação sexual, a associação de trabalho e coerção -, a condição moral da pessoa e
da resistência”. (GORENDER, 1990, p. 26) Ou seja, estariam errados tanto da liberdade. (FERNANDES, 1978) Ora, justamente contra essa perspecti­
a “escola paulista”, que negava agência ao negro, como a “escola de campi­ va anômica e desumanizante é que escrevem autores como Robert Slenes.
nas”, que via negociação na escravidão. Autores como Kátia Mattoso, João Insistindo que a família não seria apenas um expediente de domesticação
Reis e Robert Slenes são duramente acusados de reconstruírem um pon­ dos escravos, contribuindo para a “paz nas senzalas”, ao conceder-lhe um
to de vista freyreano, essencialmente condizente com o ponto de vista da pedaço de terra para cultivar - a brecha camponesa -, mas que as famílias
classe dominante senhorial e de seus ideólogos, para os quais a escravidão dos escravos e outros laços sociais e comunitários permitiriam reais espa­
não tinha na violência pura e simples o seu dispositivo estrutural, mas dava ços de liberdade: “[...] o cotidiano no cativeiro tendia entretanto a valorizar
também lugar ao consenso e à “paz social”. (MATTOSO, 1990; SLENES, a construção de identidade sociais outras que não aquelas impostas pela
2011; REIS & SILVA, 1989) condição cativa”. (SLENES, 2011, p. 63)
Convém retroceder resumidamente ao argumento desumanizan- Então, nesse sentido, a vida sexual e os laços de família seriam o
te de Fernandes, contra o qual se insurgem os autores da “reabilitação”. No pomo da discórdia de uma inflamada divergência discutida pelos historia­

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dores a partir da evidência presente nas fontes, como as que Slenes discute, Claramente há aqui uma questão formal, mais ampla, que se re­
de natureza demográfica, que buscam provar que muitos escravos cons­ fere ao próprio estatuto do ser escravo, ou a uma ontologia regulada jurí­
tituam, sim, família - lembremos, inclusive, de experiências diferenciais dica e politicamente para incluir razões econômicas, concedendo aqui que
como a de Manzano e Jacobs, que descendiam de famílias escravas e de as razões econômicas possuem um nível de determinação estruturante, ou
Esteban que testemunhou crianças escravas serem vendidas como “leitõe- que seriam o “segredo interno” da vida social. (SCHWARTZ, 1995) Nesse
zinhos”. (BARNET, 1986) Mas, entretanto, e como mais uma vez diz Go- sentido, o arcabouço jurídico nos permite acessar as definições socialmente
render, é preciso distinguir “a coisificação social, que é diferente da coisi- aceitas e os valores normativos que regulariam do ponto de vista formal,
ficação subjetiva. A condição social se chocava com a pessoa do escravo sob a sanção do Estado, a produção de escravos e as relações sociais adven­
(pessoa = subjetividade humana)”. (GORENDER, 1988, p. 23) E nesse caso, tícias ao escravismo como modo de produção.
seguindo uma perspectiva antropológica, como discutido no capítulo I, eu Publicado em 1758, quase três décadas antes da autobiografia
diria pessoa subjetividade humana. A condição escrava negava a pessoa, mas
mais antiga considerada aqui, a de Equiano, pelo padre jesuíta e advogado
não poderia negar a subjetividade. A brecha camponesa e a brecha subjetiva se
português radicado na Bahia, Manuel Ribeiro da Rocha, o manual “Etíope
chocavam contra as fronteiras móveis e terríveis dessa conjunção paradoxal, que
Resgatado, Empenhado, Sustentado, Corrigido, Instruído e Libertado” pre­
também obviamente se reflete no ordenamento jurídico superestrutural, como
tende justificar a escravidão africana e orientar os senhores a como tratar
veremos abaixo, importa apenas aqui e agora lançar luz sobre o desdobramento
de modo cristão os seus escravos. Como em Equiano, a religião cristã, a fé e
do reconhecimento acima esboçado por Gorender, da distinção entre uma im­
as sagradas escrituras são as fontes fundamentais. E a tentativa de uma jus­
posição social de coisificação, ou morte social, e a contradição fenomenológica
tificativa esclarecida para o cativeiro parece bem típica do século das luzes
incontornável e obviamente reconhecida por todos os envolvidos, escravos, se­
e suas contradições e paradoxos, como também discute Susan Buck-Mors
nhores e historiadores, de que o escravo era portador de uma consciência hu­
para o caso da obra de Hegel (2017). Ribeiro, também de modo muito in­
mana, ainda que alienada e alienável em sua fungibilidade. Mas essa condição
teressante, e tal qual Equiano, está preocupado com questões econômicas e
humana, que deveria ser justamente negada por razões econômicas, seria por sua
com um ordenamento e equação entre civilização e ordem econômica. E,
vez também negada por contradições e veleidades morais.
como França e Ferreira salientam corretamente em sua apresentação, Ro­
Nesse sentido, o escravo, como outros trabalhadores, diz Gorender,
deve personificar as relações de produção, que põem as condições objetivas para cha seria “um intérprete respeitoso e criativo da tradição católica e não um

desenvolvimento de uma subjetividade e personalidade, definindo um “modo precursor do abolicionismo”. (FRANÇA E FERREIRA, 2017, p. 26) E nesse

histórico de existência do ser humano”. (GORENDER, 2016, p. 216) Este encon­ caso, e por razões óbvias, parece divergir de Equiano, para quem “o valor de

traria assim em sua coisificação a condição histórica de sua existência como su­ uma alma não pode ser dito”. (EQUIANO, s.d., 97)hv
jeito, e como sujeito do processo de trabalho, ainda que sob coação ou violência, Para Ribeiro, em primeiro lugar, a condição escrava é obviamen­
porque mesmo coisificado, ou objetificado ele é o “agente subjetivo” do processo te desgraçada e os escravos mereceriam a compaixão dos cristãos. Sendo
de produção. Notável e tristemente por meio justamente de sua sujeição mais ademais uma condição humana que é contrária às leis naturais e aos de­
brutal. (MAESTRI, 2005) sígnios que Deus estabeleceu para os homens, e aqui está claro que não há

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presunção de que os africanos não seriam humanos ou interditados à graça Ora, o ponto então para Rocha é se os escravos foram adquiridos
de Deus, mas sim pobres-coitados colhidos por uma relação econômica in­ legalmente ou ilegalmente.
justa, com todas as consequências pessoais e morais dessa injustiça. Ou seja,
Muitas vezes tem chegado aos ouvidos dos comerciantes e
estamos distantes das justificativas raciais para a escravidão e próximos do dos mais habitadores do Brasil que pessoas doutas e timo­
mercantilismo colonial. ratas reprovam a negociação, compra e possessão dos pretos
cativos africanos em razão de não serem legitimamente ca­
tivados em guerra públicas e verdadeiras, senão em uns fur­
A maior infelicidade a que pode chegar a criatura racional tivos e repentinos assaltos, que aqueles bárbaros praticam e
nesse mundo é a da escravidão, pois, com ela, lhe vem ad­ consentem seus vassalos. (ROCHA, 2017, p. 63)
juntas todas aquelas misérias e todos aqueles incômodos
que são contrários e repugnantes à natureza e condição do
homem; porque sendo este pouco menos que o anjo, pela
Ora, mesmo que, todavia, a procedência dos escravos fosse injus­
escravidão tanto desce, que fica sendo pouco mais do que
o bruto; sendo vivo, pela escravidão se juga morto; sendo ta, se alguém pagou por estes, de boa-fé, o direito à propriedade deveria ser
livre, pela escravidão fica sujeito; e nascendo para dominar
preservado e Ribeiro, candidamente, propõe uma solução de compromisso,
e possuir, pela escravidão fica possuído e dominado. (RO­
CHA, 2017, p. 41) o escravo além de tratado com humanidade, deve ser manumitido assim
que restituir ao senhor o que ele gastou em sua compra. A contradição é

Na verdade, o registro da guerra e das guerras justas emerge como por demais evidente, porque o contrato de compra e venda não fora sagra­

quadro de referência fundamental. Assim como outros autores, como Pat- do entre o comprador e o escravo, mas entre este primeiro e o traficante.

terson e Meillasoux, Ribeiro vê o escravo como aquele que, derrotado na “O direito que proíbe a compra de homem livre não proíbe, antes permite,

guerra, se vê diante da alternativa: a morte física ou a morte social como es­ vender-se aos escravos a liberdade por dinheiro”. (ROCHA, 2017, p. 81)
cravo. A escolha presumidamente mais covarde, se é que se trata de uma es­ Contrariamente ao que pensava Equiano, a alma humana teria assim um
colha, aparece como justificativa e um novo nascimento para o sujeito que valor, chamado por Ribeiro de “resgate”. Ou como verseja, entre cínico e
abandona a liberdade e a si mesmo para viver como um escravo, apêndice metafísico, o Padre Manuel Xavier S.J. em uma poesia-epígrafe do livro: “A
de seu senhor. (PATTERSON, 2008; MEILLASOUX, 1995) O problema é se liberdade será aquilo pelo que costuma ser vendido”. (ROCHA, 2017, p. 45)
a guerra em questão seria “justa” ou “injusta” e conhecemos, por exemplo, No século XIX, no Brasil império, já sob as pressões abolicionis­
o debate no que se refere aos povos indígenas americanos. (TODOROV, tas, o impacto das ideologias políticas europeias e o processo de construção/
1993) Se cativados em guerra justa, fundamentalmente baseada em razões imaginação do Estado Nacional alteram em grande medida o registro reli­
religiosas, a guerra e a consequente escravidão seriam justas. O mesmo tipo gioso que encontramos tão fortemente em Ribeiro e Equiano. Como o ex­
de debate aparece na reconquista ibérica e na expansão islâmica na África, celente “Manual Jurídico da Escravidão” desenvolve, ressaltando que para
como se sabe, uma vez que o islamismo em tese proibiria a escravização de além da relação de força interpessoal de um indivíduo sobre um grupo, tra-
outros muçulmanos. (M'BOKOLO, 2008) tava-se de um sistema social legitimado pelo direito. (CAMPELLO, 2018)

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No momento da independência do Brasil, havia 1.140.000 escra­ dade foi consagrado como um dos principais direitos individuais e nesse
vos dentre uma população total de 3.690.000 indivíduos, ou seja, aproxi­ sentido acabou servindo para justificar, não exatamente a escravidão, mas
madamente um terço da população. E a tradição da legislação sobre a es­ os direitos dos senhores de escravos. Nesse sentido, o escravo é condição de
cravidão seria muito antiga, lembra o “Manual”, e é herdada de posturas do possibilidade para o sujeito burguês e seus corolários.
direito romano e medieval, apesar destas em geral se aplicarem a um fenô­ Não sendo um cidadão, quem era exatamente o escravo nesse
meno análogo, mas muito distinto, a servidão, e assim como, por exemplo, contexto? Definido como uma coisa - “objeto material suscetível de uma
o código Justiniano autorize a escravidão em caso de guerra, como alterna­ medida de valor” (CAMPELLO, 2018, p. 127) - como o escravo pode ter
tiva à morte dos indivíduos, o que fundamenta a ideia de guerra justa. estatuto civil no interior da polis? Ora, o estatuto jurídico do escravo seria
As “Ordenações Filipinas” de 1603, são consideradas a codifi­ justamente definido pela conjunção de dois atributos ontológicos: “perso-
cação mais pertinente para a realidade colonial, e se referem não mais a na” e “res” - pessoa e coisa. O autor cita o Conselheiro Joaquim Ribas, que
“servos”, uma categoria distinta, mas a escravos, concedendo ao escravo por sua vez cita o direito romano, para produzir uma distinção entre do-
africano particular, segundo o autor, a natureza de coisa vendável. O im­ miniun - que se refere a coisas (res) - e potestas - que se refere a pessoas
pério herdou em grande medida a legislação colonial sobre a escravatura (persona), como no caso do poder paterno sobre os filhos. Ora, no caso
e chega à constituição de 1824, outorgada após muitas perturbações pelo do escravo haveria a confluência do dominiun, poque o escravo é um bem
Imperador D. Pedro I, e marcada por uma contradição que atravessa todo o alienável, e potestas, porque o escravo é um ser humano consciente. O que
período: como conciliar a manutenção da escravidão com uma constituição tem diversas consequências jurídicas, porque nesse caso o escravo teria, por
que se pretendia liberal? Ora, acontece que a escravidão não estaria prevista exemplo, direto a alimentação adequada, mas não a representar juridica­
em nenhum dispositivo da nova constituição da nova nação. Há, entretan­ mente contra seu senhor. Assim, “os escravos teriam natureza jurídica para
to, uma referência implícita. No art. 6 se diz: “São cidadãos brasileiros: I. fins de aplicação de leis civis e comerciais, de bens semoventes submetidos
os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos [nascidos livres] ou a um regime jurídico especial”. (Idem, p. 136)
libertos, ainda que o pai seja estrangeiro...”. (CAMPELLO, 2018, p. 55) Ou A triste analogia com animais domésticos e gado era recorrente e
seja, como diz o autor, “os escravos não integravam a comunidade política escravos eram vistos como “animais humanos”, e assim como nós hoje re­
do país”. (Idem, p. 56) conhecemos personalidade, inteligência e sentimentos em nossos animais
O aspecto é paradoxal e ressaltado pelo autor ao longo de todo o domésticos e ainda assim os vendemos, como também suas crias, assim
livro. Não haveria fundamento jurídico para a escravidão no Brasil. Duran­ julgava a sociedade escravocrata. E tal como animais, a estes não seria re­
te o império, nesse sentido, o Estado e a sociedade toleravam uma “mani­ conhecida, ao menos não legalmente, a família e os vínculos familiares. O
festa ilegalidade”, além de injustiça flagrante. Com inúmeras contradições, que estaria presente já no Direito Romano. O escravo não tinha família, não
por exemplo, se o escravo não era cidadão como poderia pegar em armas haveria entre escravos casamento, mas apenas contuberniun, união natural
em uma guerra para defender o país? Se, entretanto, havia no mínimo am­ ou de fato. E, mais importante, ou significativo, entre escravos não poderia
biguidade no que se refere à legalidade da escravidão, o direito à proprie­ haver direito pátrio, o que é muito significativo das conexões entre escra-

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vidão e negação do parentesco, principalmente nesse viés patriarcal. Assim e da sociologia para definir a escravidão como um modelo conceituai de
também, no direito brasileiro não se reconhecia no direito civil o exercício ampla universalidade, o que faz muito sentido, porque a escravidão, em
do pátrio poder pelo cativo. Além disso, o escravo não poderia reunir nem modalidades muito diferenciadas, que Paterson procura exatamente des­
transmitir patrimônio, quando fazia isso, o que por vezes ocorria seria so­ crever, acompanha inúmeras sociedades humanas em quatro continen­
mente por graça de seu senhor, que lhe permitia, ou não, ao seu bei prazer tes. Meillasoux se propõe a algo mais modesto, e ainda assim abrangente,
esse desfrute. E podemos ver como, nas narrativas escravas, muitas vezes, porque se refere à escravidão pré-colonial na África Ocidental. Ambos os
os senhores desconheciam, negavam ou mentiam sobre essa concessão aos livros desenvolvem argumentos complexos em meio a sustentações empí­
seus escravos, simplesmente roubando o dinheiro ou o bem destes e não ricas detalhadas e densas que não é caso aqui de repetir. Diferentemente de
havia nada diante da lei que o escravo pudesse fazer sobre isso. (CAMPEL- outros autores aqui discutidos, Meillasoux enfatiza a dimensão individual
LO, 2018) da dominação, e vê o direito e as comparações de escravos com animais
Fundamentalmente, então, os escravos estariam inscritos nos có­ domésticos como “ficção contraditória e insustentável”. Categoria central,
digos normativos como uma “coisa”, regida por relações contratuais e co­ todavia, seria a despersonalização, advinda da alienabilidade, quer seja por
merciais de compra e venda, para as quais o próprio escravo, apesar de reco­ meio da guerra ou do mercado, as duas estruturas produtoras de cativos.
nhecido como humano, não figuraria como sujeito do contrato, mas como A oposição fundamental que aparece, do ponto de vista estru­
mero objeto, ele e suas faculdades e frutos, no caso das mulheres, inclusive, tural, no âmbito da escravidão doméstica ou de subsistência africana, diz
os filhos. A historiografia e as narrativas oferecem diversos exemplos de tal Meillassoux, é a que distingue parentes e estranhos. Sendo o escravo o não-
alienabilidade, como em “Úrsula”, em que os escravos são os únicos bens -parente por excelência. O “estranho” ou o outro. O autor usa a linguagem
de pessoas pobres, como da pobre mãe inválida de Úrsula, e que com seu e a teoria do parentesco para situar o escravo fora do sistema de posições e
trabalho garantem a subsistência de sua senhora, como também aparece status que permitem que o parentesco seja um instrumento de reprodução
aliás na historiografia da escravidão no Brasil. De modo que relações eco­ social e, inclusive, ou principalmente, econômica. Nesse sentido, o escravo
nômicas, ainda que manifestadas como fatos sociais totais (MAUSS, 2003; é o estranho submetido ao núcleo familiar desde fora da estrutura das li­
PATTERSON, 2008), estruturavam como quadro regulatório formal a po- nhagens, o que explica porque o escravo não pode constituir descendência,
sicionalidade escrava. nem ser reconhecido pelos ancestrais: “[...] descobrimos aqui, em estado
latente, uma característica que aparecerá em todas as formas de escravidão,
O SER SOCIAL DO ESCRAVO COMO NÃO-SER um traço que é a sua própria essência: a incapacidade social do escravo de
se reproduzir socialmente, isto é a incapacidade jurídica de ser parente”.
Por diversas vezes aqui me referi aos livros de Claude Meillasoux e (MEILLASOUX, 1995, p. 28)
Orlando Patterson, em ambos encontramos obras de fôlego que buscam de­ Diferentemente da antropologia marxista de Meillasoux, que bus­
finições de largo alcance para a escravidão. Mais larga no caso de Patterson, ca explicar articuladamente a reprodução dos grupos sociais com a pro­
que faz percurso impressionante através da historiografia, da antropologia dução das condições sociais de reprodução social, fazendo eco à tradição

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que se inicia com Engels na consideração da família e do parentesco como Em tempos modernos, ou mesmo na antiguidade clássica euro­
elementos da economia política, Patterson prefere uma abordagem decla­ peia, apenas a negação da humanidade do escravo e de sua existência social
radamente weberiana, com grande sensibilidade para as dimensões ritua- independente permitiriam que “pessoas de bem” ou “homens bons” acei­
lísticas e simbólicas da vida social humana, e principalmente para a funesta tassem a flagrante injustiça da escravidão. Para tanto, rituais de escraviza­
complementariedade entre escravidão e liberdade, já salientada aqui e que ção, como os rituais de separação discutidos pela antropologia, permitiriam
obviamente remete a Hegel (2002). Complementaridade que aqui Patterson retirar o indivíduo de seu lugar social e genealógico e entregá-lo à desper-
prefere denominar de “parasitária”, para a qual o desiderato mais impor­ sonalização absoluta. Uma despersonalização ademais transmissível, mani­
tante seria a honra atribuída ao senhor, como contrapartida da desonra do festada no caráter perpétuo e hereditário da perda de liberdade. Em resumo,
escravo, que alimenta a própria ideia de liberdade. O autor então considera escravos seriam pessoas desonradas de modo geral, sem nome (honra) a
a escravidão sob o crivo das relações de poder. Ou seja, relações de desigual­ zelar, exceto a do senhor. E, na verdade, os aspectos simbólicos e estatuá­
dade e dominação, dentre as quais a escravidão como forma extrema, e em rios da escravidão é que lhes confeririam o caráter de universalidade, e não
certo sentido paradigmática, e que contém três conjuntos de características: a dimensão econômica, central, entretanto na escravidão africana moder­
l) singularidade, ou poder em intensidade máxima, manifestação histórica
na ou no escravismo colonial. O significado estrutural e não meramente
da dialética hegeliana do senhor e do escravo; 2) o papel da violência como
histórico da escravidão se manifestaria então através dos seguintes atribu­
o ato político primordial de sociedades estratificadas e, nesse caso, o chi­
tos, comuns, mas não exclusivos da escravidão da plantation americana: l)
cote, o látego, o açoite aparecem como ferramentas essenciais, em sua cruel
Violência direta; 2) Invisibilidade e anonimato; 3) Violação pessoal infinita;
aspereza simbólica e material, de controle social; 3) A condição individua­
4) Desonra crônica e inalienável. A escravidão então será isso: dominação
lizada da dominação escravista.
permanente e violenta de pessoas desenraizadas e geralmente desonradas.
A escravidão, como em outros autores, aparece como alternativa
(PATTERSON, 2008)
à morte violenta motivada pela guerra - ainda que o mercado seja o outro
É em grande medida lendo criticamente a produção de Patterson,
“ventre” do escravo, e temos visto como, uma vez vendido o escravo, tor­
assim como a de Frantz Fanon, que Frank Wilderson III desenvolve sua
na-se “res” (coisa) e passa a ser regido por razões contratuais e pelo direito
econômico, que solapa sua condição humana. Como uma permuta con­ crítica ao materialismo histórico e sua descrição da posicionalidade escrava

dicional - sua vida por sua liberdade -, a escravização produz uma não- como matriz da negritude no mundo moderno, definida fundamentalmen­

-pessoa, o antiparente de Meillasoux, completamente alienado e alienável, te por uma economia libidinal - “a economia, ou distribuição e arranjo,

e submetido a radical desenraizamento natal. Assim, o escravo é alguém do desejo e da identificação, de energias, preocupações, pontos de atenção,
socialmente morto (afastado de todos os direitos ou reinvindicações), um ansiedades, prazeres, apetites, repulsões e fobias - toda a estrutura da vida
“isolado genealógico” que possui um passado, mas não é uma herança, sen­ psíquica e emocional - que são inconscientes e invisíveis, mas que têm
do por isso mesmo a ferramenta humana perfeita - maleável e disponível um efeito visível no mundo, incluindo a economia monetária” (EDITORs,
- capaz de preencher qualquer função, a partir dessa plasticidade que é ver­ 2017, p. 7)lv - e não necessária ou exclusivamente pela economia política,
dadeiramente humana e potencializada pela contradição coisa/pessoa. porque, nesse caso, o aporte fanoniano descola a figura do escravo de suas

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determinações como uma categoria econômica, em primeiro lugar, e mais


que isso, desloca a primazia da classe sobre a raça para interrogar a natureza Na relação de escravidão ou de servo (...) uma parte da so­
e o destino do sofrimento negro no afterlife da escravidão. Diferentemente ciedade é tratada pela outra como simples condição inor­
gânica e natural de sua própria reprodução. O escravo não
de autores mais absolutistas, digamos assim, que veem a raça e o racismo está em qualquer relação com as condições objetivas de seu
antinegro como elemento estruturante de toda a história do homem no Ve­ trabalho; mas o próprio trabalho, seja na forma de escravo,
seja na de servo, é arrolado entre os demais seres naturais
lho Mundo (MOORE, 2010), Wilderson é mais cauteloso e situa seu hori­
como condição inorgânica de produção, ao lado do gado ou
zonte de análise no mundo antinegro moderno e mais especificamente na como apêndice da terra. (MARX, 2011, p. 401)

sociedade norte-americana. (WILDERSON, 2010)


Karl Marx e o materialismo histórico fizeram inúmeras referên­ Não é assim, obviamente, sujeito para si mesmo, porque não pode
cias ao racismo e ao colonialismo, como já discuti nesse livro, usualmen­ objetivar-se, sob as condições sociais e históricas da própria reprodução da
te, entretanto, como metáfora - “pedestal”, na expressão de Matory (2018) sociedade. Todavia, não é meramente como trabalhador, ou capital, que
- para a opressão da classe trabalhadora europeia, ou enxergando na es­ Willderson invoca a figura do escravo, este ser que, como diria Cesaire, é
cravidão mais uma etapa do progresso inexorável e violento da humani­ “o homem-fome, o homem-insulto, o homem-tortura/Que a qualquer mo­
dade, propulsionado pelas contradições entre relações sociais de produção mento pode ser abusado e espancado /A murro, ou morto - sim, matá-lo
e desenvolvimentos tecnológicos e materiais, forças produtivas. (MARX, - sem a ninguém dar contas nem /Apresentar desculpas”. (CESAIRE, 2020,
1998; 2011) Tais contradições, como sabemos bem, encontram solução em p. 1)
transformações violentas, assim todo a história humana é uma história de Inversamente, este estaria melhor descrito pela referida economia
lutas, massacres, violêqcias e revoluções. Do mesmo modo com a África e libidinal, que justamente exige a violência gratuita, a fetichização, o terror e
as sociedades “atrasadas” do Sul, como a índia, arrastadas brutalmente pelo
o desejo. Willderson, todavia, não rejeita exatamente o marxismo, mas sua
carro de Jangrená do fluxo da história universal. (MARX & ENGELS, 1964)
primazia ou exclusividade na elaboração da resposta à pergunta “O que é
Assim, em “O Capital”, comentando sob a “conveniência da jornada nor­
um negro? Um sujeito? Um objeto? Um ex-escravo? Um escravo?”. (WIL­
mal de trabalho”, ele compara trabalhadores “livres” a escravos empregados
DERSON, 2010, p. 1 l)lvi Em uma entrevista ele diz:
na Geórgia para dizer: “Mudemos os nomes. Em lugar de tráfico negreiro,
leia-se mercado de trabalho; em lugar de Kentucky e Virginia, Irlanda, e os
Às vezes sou mal interpretado por dizer que abandonei o
distritos rurais da Inglaterra, Escócia e País de Gales; em lugar da África, a marxismo. Às vezes sou interpretado como tendo dito que
Alemanha”. (MARX, 1998, p. 308) Dana, em “Kindred”, também compara, o mapa cognitivo que Marx nos deu deveria ser jogado fora.
Não é isso que estou dizendo. Como você joga fora um
aliás, a agência de empregos onde arruma trabalho, e onde conheceu seu mapa cognitivo que explica a economia política tão bem?
marido, a um “mercado escravista”. (BUTLER, 2019, p. 85) (Idem, 2017, p. 17)lvii

Dessa forma, então, apenas como comparação, ou como exemplo


máximo de exploração e violência, como uma metáfora extrema da domi­ O problema, entretanto, é que a economia política não explica
nação, a escravidão é figurada. Nas “Grundisse”, Marx diz ainda: tudo. E não explicaria o que Fanon teria sugerido como a diferença entre

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opressão social e sofrimento estrutural. (FANON, 1983) Nem permitiria a conflitual que oporia correntes políticas distintas dentro do mundo bran­
tarefa fundamental de teorizar a impossibilidade (ontológica) negra, basea­ co ou da “zona do ser”. (GROSFOGUEL, 2012) A coerência indispensável

da no “ardil” da analogia que julga que os negros estão no “mundo”, quando para a branquidade na modernidade radica nossa imunidade ao genocídio

na verdade haveria uma incompatibilidade essencial, segundo Fanon, entre (se não como experiência histórica concreta, como uma modalidade de po­

o negro e o “mundo”. Nesse sentido ele aponta o que já está indicado acima sicionamento). É claro que povos brancos podem experimentar o genocí­

como uma gramática do sofrimento (negro), definitivamente irreconciliá­ dio - mas isso não os constitui - e não é isso que faz dos brancos, brancos

vel com a sociedade civil, na medida em que negros e negras estão fora do (quer dizer, humanos). Algo muito distinto ocorreria com os negros, jus­

“mundo” em função da “fobogenia” ou do fato da negritude apontado mais tamente definidos pela passagem do meio ou pelo nascimento no ventre

uma vez por Fanon, “eu não sou escravo da ideia que os outros têm de mim, do mercado ou da guerra como não-humanos, estranhos, antiparentes ou

mas de minha aparência”. (Idem, p. 96) O que produz o conhecido dilema socialmente mortos, apenas válidos ou significativamente lidos como essa

impossível para um negro - ser é não ser negro. Na verdade, como em sua maldita “parte inorgânica” ou como um bem de capital. Ora, o trabalha­

sujeição criminal, é a violência que reposiciona o negro no vazio (void) de dor (branco) trabalha sobre a mercadoria, enquanto o negro é ele mesmo a

um movimento histórico que não tem analogia com os ontologicamente própria mercadoria (e nesse sentido fungível). Uma mercadoria que pode,

vivos, uma vez que a violência gratuita contra negros é a primeira instância entretanto, como veremos, e isso é fundamental, resistir.

ontológica. Os judeus entraram e saíram de Auschwitz como judeus - um


holocausto humano. Mas os africanos entraram nos navios negreiros e saí­ A CENA DA OBJEÇÃO: PERFORMANCE E MORTE SOCIAL

ram como negros - um holocausto metafísico, diz Wilderson. (2010)


Distantes mais de sete mil quilômetros uma da outra, a cidade de

A violência que torna um corpo carne, literalmente e ima­ New Orleans na Louisiana e a região do Recôncavo da Bahia, mais especifi­
ginativamente rasgado, destrói a possibilidade de ontologia camente o distrito de Acupe, pertencente à municipalidade de Santo Ama­
porque posiciona o negro em uma infinita e interminavel­
ro da Purificação, estão conectadas pelos desdobramentos globais do tráfi­
mente horrível e aberta vulnerabilidade, um objeto tornado
disponível (o que quer dizer fungível) para qualquer sujeito. co de escravos e da plantation colonial. A face externa, econômica, histórica
(Idem, p. 38)lviii da expansão colonial e do tráfico negreiro abriga uma caudalosa corrente
de invenção cultural e de formas objetivamente subjetivadas de resistência.
Para Fanon e, como vemos em Marx, o negro é comparação e nes­ Nas sessões acima, deste último capítulo, re-discutimos, a partir
se sentido a humanidade reconhece-se a si mesma no Outro que não é. Um de outras entradas, a questão colocada no capítulo inicial sobre a subjeti­
outro definido pela violência gratuita e pela morte social, o que exigiria uma vidade, a “pessoalidade” e a agência dos africanos, escravizados no Novo
tanatologia: a negritude é incorporação de uma impossibilidade, incoerên­ Mundo, sob a forma paradigmática da morte social, e em contraposição à
cia e incapacidade. O que nos permite distinguir entre o antagonismo es­ exuberante produção de resistência estruturada sob o signo-África. As nar­
trutural que governa a existência negra no mundo antibranco e a harmonia rativas escravas revelam um limite, como a “blackborder”, para a represen­

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tação de si, ou a produção de um sujeito sob quadros estáveis e autorreco- uma negação tal que não estaria localizada alhures em um futuro utópico,
nhecíveis, uma impossibilidade a um só tempo histórica e epistemológica, mas entre as camadas da própria ordem escravocrata-colonial. Ou na cena
porque a voz do sujeito negro que reflete sobre a dura objetividade da ordem da objeção.
social só se reconhece por meio da negação da autonomia ontológica e epis­ No dia 25 de fevereiro de 2020, último do Mardi Gras, o carna­
temológica. A constituição do sujeito escravo nas narrativas autobiográfi­ val de New Orleans, em uma esquina, ou encruzilhada, das ruas Henriette
cas - atravessadas pela intervenção de “transcritores”, “incentivadores”, ou Delille e Governor Nicholls, bem pertinho ao Louis Armstrong Park, onde
fórmulas narrativas convencionais - é, dessa forma, uma contradição, por­ se encontra a Congo Square, território sagrado e ancestral das tradições
que o self que diz a si mesmo nessa estrutura nega, ao mesmo tempo, a si afro-diaspóricas em New Orleans, tive a sorte de acompanhar uma “prati-
mesmo, e qualquer autonomia epistemológica ou cultural para poder “ser”. ce” [prática], ou performance, de uma das famosas e fugitivas Mardi Gras
Transitando entre o lugar da negação e da opacidade como escravo, para se Indians Tribes. Um pouco mais à frente, na rua Henriette, se encontra o
converter, por meio da negação de seu valor como coisa, em seu valor como Backstreet Cultural Museum, centro de referência e resistência das tradi­
sujeito ou pessoa. O mundo branco, antinegro, e suas máscaras, é assim ções negras na cidade. A rua é paralela à grande avenida North Rampart,
parte integrante da invenção do sujeito negro - como discute o filme de que separa o French Quarter, os quarteirões históricos da cidade - com a
Zózimo, “Alma no Olho” -, como um limite estrutural e estruturado, que bela arquitetura que testemunha o passado francês e espanhol da cidade -,
não podemos com exatidão saber como é ou onde se encontra. do bairro de Tréme, tradicional território african-american. Hoje em dia,
Bloqueado de “ser” nas narrativas literárias, o sujeito negro, e o French Quarter, em geral, e a Bourbon Street, em particular, são uma
sua pessoa como uma possessão jurídica, arbitrada pelo Estado e preen­ “paisagem de poder” da turistização e mercadificação da tradição “creole”
chida pela densidade ontológica - fungível - do mercado, pôde emergir da cidade, e o Tremé tem passado pela gentrificação pós-katrina27 que tem
no campo da ontologia materialista através da definição de seu “ser social”. transformado a cidade, como veremos um pouco mais abaixo. Em paralelo
A coisidade do escravo, contradição aparente, se reflete na ambiguidade a North Rampart, mas relativamente escondido, o museu está de fato loca­
essencial da superestrutura escravista brasileira, que reconhece o escravo lizado na backstreet [rua de trás], metáfora espacial-urbana para a periferi-
como consciência atuante, mas lhe nega o estatuto de pessoa moral, cidadão zação da população negra da cidade. É, aliás, impossível para alguém que,
ou fundamento da polis. (CAMPELLO, 2018; VARGAS, 2017) Ao mesmo como eu, veio de Salvador da Bahia, não tecer comparações entre as duas
tempo, bem semovente e ser humano, o escravo permanece imobilizado cidades, e um aspecto que desde meus primeiros dias na cidade me chamou
nessa tensão entre não ser e ser nada, um objeto de valor intercambiável, a atenção, foi a grande presença negra no espaço público, assim como a
trocável e negociável, justa e paradoxalmente em virtude de sua ambiguida­ evidente subalternização das pessoas negras, ocupadas em funções de servi­
de essencial, carne (flesh) e “valor”. Como agente subjetivo do trabalho, e ço ou desvalorizadas em toda parte, como condutores de ônibus, caixas de
como mercadoria, o escravo produz, dessa forma, a sociedade, do ponto de
vista material, ao produzir sua própria negação como pessoa, e sua negação 27 Em 2005, o furacão Katrina atingiu a cidade deixando milhares de desabrigados e milhões de dó­
lares de prejuízo. A cidade ainda não se recuperou totalmente do trauma e a memória do desalento e
como pessoa é a produção da própria sociedade. Esse sujeito realiza assim da destruição está presente em todas as conversas em todos os momentos.

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Mc’Donalds ou limpando as ruas e prédios. Em contraste com a população Warriors, o grupo que “africanizou” a performance dos Indians. A Fi Yi-Yi
branca, majoritária em Uptown e na Universidade de Tulane, onde eu pas­ tribe foi fundada por Victor Harris, um antigo flagboy da Yellow Pocahon-
sava parte do dia trabalhando. tas Tribe, em 1984. A Yellow Pocahantas gang tem lugar central na tradição
Sabia muito pouco sobre os Mardi Gras Indians quando cheguei a dos Mardi Gras em virtude do grande destaque de seu “Big Chief’, Alisson

Nova Orleans, e sabia menos ainda sobre a performance que estava prestes “Totie” Montana, a quem se atribui numerosas inovações estéticas, e na

a assistir. Havia assistido por duas vezes antes do carnaval a Indian Prati- própria tradição e modus operandi das gangs, que abandonaram o tradicio­
nal comportamento agressivo e as disputas de território, pela ritualização e
ces, nesse caso da Wild Magnolias Tribe, em Dryades Street, no bar Sports-
competitividade estética. Montana morreu de forma trágica e heroica em
men Corner e em um outro local, o Handa Wanda. Apesar de minha igno­
2005, durante um depoimento no City Council, de New Orleans, que discu­
rância inicial, o impacto foi profundo ao me deparar com a multidão negra,
tia mais um episódio de violência policial contra os índios, ocorrida, neste
homens jovens, mulheres, crianças, pessoas mais velhas, movendo-se com
caso, em 15 de março deste mesmo ano, dia de São José, quando os indians
graça ao som percussivo da música antifonal - o chamado e resposta - tão
também performam pelas ruas dos bairros negros da cidade. (WEHME-
familiar para quem está acostumado com o samba, a capoeira e outras for­
YER, 2010)
mas culturais afro-brasileiras.
Harris explica que fundou o Spirit of Fi Yi-Yi graças à direta inter­
No carnaval, entretanto, pude assistir a uma performance dos in­
venção espiritual de uma entidade que lhe pedira que os índios se tornas­
dians em full regalia. Saindo de uma garagem, um a um, os personagens
sem mais africanos. E, na verdade, essa foi a minha impressão ou emoção
dessa performance, procissão, ritual ambulante, ocupavam a rua, dispu­
naquele momento, que a África estava ali reterritorializada, assim como foi
tando o espaço com uma multidão de fotógrafos e cinegrafistas, e não é à
assim que senti em Dryades Street, mesmo se os Wild Magnolias não se
toa que alguns “chiefs” reivindiquem o reconhecimento monetário para o
apresentassem de forma tão africanizada. Tal qual as reuniões de samba
enorme e apaixonante trabalho dos índios ao preparar suas incrivelmente
e/ou pagode onde estive, tal qual nos paredões em Cachoeira, me sentia
elaboradas e extravagantes vestimentas, chamadas por eles “suits” [trajes]
transportado para outro lugar, ou temporalidade, onde a música percus-
e consideradas apropriadamente como “performative objects of cultural
siva, a maciça presença corporal negra, a dança, o riso, a bebida alcoólica,
mediation” [objetos performativos da mediação cultural]. (BECKER, 2013,
tudo criava uma ambiência de sacralidade profana. No Mardi Gras, diante
p. 36) Um a um, como dizia, faziam sua aparição na rua, o Spyboy, o Fla-
das máscaras cobertas de búzios, claramente referidas à tradição da África
gboy, o “big chief ’ e cortejo onírico e esfuziante de homens negros e de suas
ocidental que monetariza/sacraliza as conchas, como incorporação, tanto
plumas, contas e lantejoulas iridescentes aplicadas nos trajes, que exibem
da riqueza multifária quanto da morte e dos mortos supranumerários, era
iconografia mística e ancestral, retratando, índios das planícies norte-ame­
evidente, para mim, a africanidade. Movendo-se de forma sinuosa entre os
ricanos (plain indians) e, nesse caso em particular, insígnias de uma ances-
fotógrafos, o mascarado, como um Egum despersonalizado, conduzia a um
tralidade africana, que, depois entendi, não seriam tão comuns assim em
mergulho em um espaço transtemporal mediado pela ressignificação da
outras “tribes”. Notadamente o uso da máscara, uma inovação.
morte.
Eu não sabia naquele momento, mas aquela “gang”, que assisti­
mos performar na “backstreet”, era o Spirit of Fi Yi-Yi and the Mandigo

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Figura 11- The Spirit of Fi Yi-Yi A dimensão espiritual, ou mística, dos Indians é evidente. A prati-
ce [prática] é vista como conectando-se a dimensões espirituais ou místicas,
de tal modo que Tootie Montana recusou-se, segundo as palavras de seu
filho, a tocar em um grande Festival de Jazz em função da profanação que
isso significaria. (BECKER, 2013) VanSpanckeren enfatiza também como
os índios - Inju - veem suas práticas como religiosas (1990). Conexões es­
pirituais entre indígenas e afro-americanos em New Orleans, como aliás
entre afro-brasileiros e índios (Caboclos), são dessa forma bem conhecidas.
(SANTOS, 1995; PINTO, 2014)
Stephen C. Wehmeyer discute essas conexões de um ponto de
vista histórico e mítico para o caso da Spiritual Church, uma denomina­
ção sincrética com dezenas de comunidades em Nova Orleans. Apesar de
cristã, essa igreja espiritualista cultua com grande destaque o espírito de
Black Hawk. Um herói indígena, Suak Fox, que lutou ao lado dos ingleses
na guerra de 1812, quando os britânicos apoiaram as nações indígenas con­
tra os norte-americanos. Posteriormente, em 1832, capitaneou o conflito
contra o exército americano na Black Hawk War, sendo derrotado no ano
seguinte. Em 1883, publicou uma autobiografia e tornou-se após a mor­
te uma figura sacralizada, um espírito. Atualmente, é visto por alguns em
New Orleans como uma força invisível que controla as ruas. (WEHME­
YER, 2010; LIPSITZ, 1988) As mesmas ruas disputadas e reinventadas pela
agência performativa dos Indians, como espaços marginais possuídos pelos

Fonte: Foto do Autor, 2020.


ritos de desterritorialização, que, como diz George Lipsitz, mostram como
uma identidade “fictive” [fictícia] pode dar voz e lugar a crenças e valores
mais profundos. (LIPSITZ, 1988, p. 102)
Usar um traje de índio é uma forma de personificação que
Duas versões básicas circulam para dar conta do surgimento dos
muitas vezes facilita a entrada “no espírito”. Tambores, can­
tos, pandeiros e ritmos cadenciados estão todos associados Mardi Gras Indian em New Orleans. Uma destas enfatizaria uma conexão
à performance do Mardi Gras Indian, que é uma reminis­ ou descendência maroon (quilombola) entre povos indígenas, africanos e
cência de estados espirituais, xamânicos e de transe de ou­
tras tradições. “Mascarar” permite a expressão de dissidên­ afrodescendentes no período colonial. Versões de natureza mais mística e
cia. (EHRENREICH, 2004, p. U7),xix espiritualista convergem para essa interpretação, que teria uma feição assim

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mitopoética, mais que histórica, ainda que obviamente a mitopoesia faça em que no Brasil buscava-se reprimir ao entrudo e aos “divertimentos es­
parte da história e, na verdade, como discutimos para o caso da memó­ trondosos”, batucadas dos negros, com a introdução dos bailes de carnaval
ria escrava recontada nas narrativas, faça a própria história. Versões como e dos corsos públicos, de estilo “veneziano”, importados como uma festa da
estas também enfatizam a africanidade e a continuidade de tradições, en­ civilização, em New Orleans, elites anglo-americanas disputavam e exibiam
fatizadas por exemplo no uso das plumas e penas, uma característica pre­ sua hegemonia cultural e política com a criação das Krewes nos novos bair­
tensamente herdada do reino do Kongo. Como uma forma de expiação do ros anglicizados de Uptown.
trauma da passagem do meio, tais análises “enfatizar propositalmente uma Mais jovem do que Salvador, ou outras aglomerações urbanas no
conexão africana, mesmo que tal conexão não possa ser comprovada his­ Recôncavo, New Orleans foi fundada em 1699 pelos franceses e incorpora­
toricamente”. (BECKER, 2013, p. 40)lxDe uma forma ou de outra, o ponto da pelos espanhóis em 1764, finalmente vendida aos norte-americanos em
de vista que muitos índios enfatizam tem a ver com conexões não só espi­ 1803. Entre 1809 e 1810, a população da cidade duplicou com a chegada de
rituais, mas também familiares, como coloca Breunlin: “Lil Walter Cook, refugiados de Santo Domingo, vindos de Cuba, após a revolução haitiana, e
Grande Chefe da tribo, contesta essa afirmação, argumentando que as his­ divididos em três grupos: brancos de origem francesa, pessoas de cor livres
tórias orais transmitidas em sua família traçam o envolvimento na tradição e escravos negros. (DUNN, 2008) Essa rica e complexa história alimenta a
do mascaramento pelo menos até a década de 1830”. (BREUNLIN, 2009, p. identidade cultural - mercadificada (PERRY, 2015) - da cidade atualmente,
66)kl Essa periodização é contrastada com a presente em outro conjunto de e define o lugar da cidade no imaginário norte-americano como uma cidade
versões, mais históricas. E que atribuem a criação dos Mardi Gras Indians exótica, “europeia” - o que eu escutei por lá de mais de uma pessoa, o moto­
a data de fundação da primeira “tribe”, os Creoles Wild West, criada após rista do Uber, a caixa da CVS etc. - e relativamente mais tolerante do ponto
o impacto da apresentação de Buffalo Bill e seu show “Wild West” em New de vista racial em função da miscigenação. Ora, as disputas culturais entre
Orleans, em 1884-1885. Esta tribo foi criada por Becate Batiste, nascido anglos e creoles se refletiram também na afirmação ou criação da branqui-
em uma família creole de origem martiniquenha e tio avô do Grande chefe dade através do carnaval, e Krewes, como “Bachus” e “Endymion” tiveram
Allison “Tootie” Montana, o que ademais demonstraria uma conexão dos papel importante nessa história. Como no período da chamada “reconstru­
Mardi Gras Indians com tradições caribenhas encontradas na Martinica, ção”28, quando a relativa ambiguidade racial e o lugar particular das pessoas
no Haiti e em outras ilhas do caribe com forte presença africana ou Kongo. livres de cor foram ameaçados pela nova ordem birracial imposta pelo Jim
(BECKER, 2013) Crow. Ora, a segregação também operou no carnaval, desenvolvendo uma
Os anos 80 do século XIX, que teriam sido, dessa forma, o cenário mitologia “aristocrática” bem simbolizada na estranha prática - ao menos
histórico de criação dos Indians, foi marcado por intensa segregação e vio­ de meu ponto de vista - de atirar colares de contas e outros objetos ao públi­
lência racial. E como ocorreu no Brasil, na Bahia e no Rio de Janeiro, espe­ co - “vulgus profanus” -, que assiste e não participa do desfile dos Krewes,
cificamente, também em New Orleans, a segregação racial e seu cortejo de
violências moldou a história do carnaval. Como podemos ver resumido na 28 Como é chamado o período posterior a Guerra Civil Norte-Americana (1861-1865), e a conse­
quente integração dos Estados Confederados do Sul na União, ou nos Estados Unidos da América,
excelente revisão que faz Christopher Dunn (2008). No mesmo momento com as consequentes tentativas, posteriormente frustradas, de integração dos ex-escravos.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

que até hoje enchem as ruas no carnaval com carros alegóricos monumen­ Como coloca Marc Perry, discutindo a dualidade da presença ne­
tais e fantasias satíricas. gra em New Orleans pós-Katrina, a descartabilidade de corpos e sujeitos
Essas Krewes, surgidas no século XIX, além de exclusivamente negros que não se acomodam à mercadificação da cultura e dos corpos é
brancas, se aproximaram de ideais supremacistas brancos e eugenistas da um dispositivo estrutural e articulado. A matabilidade de alguns corpos ne­
época como Dunn documenta bem (2008). Ora, essa é a mesma época de gros absorve o “excedente”, a “parte maldita” que não cabe nas narrativas
criação dos Indians, o que configura um contraste estrutural-formal evi­ exotizantes, sexualizadas e fetichizadas para a cultura negra. A fugitividade
dente. Enquanto as krewes são brancas, os Indians são negros, enquanto as dos Indians, que seguem um roteiro estrito de práticas performativas im-
Krews desfilam para uma audiência mesmerizada através das ruas princi­ provisacionais com suas personagens - flagboys, spyboys, chiefs etc. - tal
pais da cidade - basicamente Uptown -, em um desfile que teatraliza ideias qual o Nego Fugido, e suas “nêgas” e “caçadores”, improvisa e re-interpreta
aristocráticas de referência clássica, literária ou greco-latina, os indians não a negritude no fio da navalha, sobre a linha mortal que separa a zona do ser
obedecem a um roteiro prévio, envolvem toda a comunidade local dos bair­ da zona do não ser.
ros, Tremé ou 9th Ward, em “aparições” não anunciadas. Como no Nego
Fugido do Acupe, discutido a seguir, aparições organizadas em torno de Eu sugiro que os negros de Nova Orleans são frequentemen­
te representados sob dois modelos aparentemente concor­
diálogos ritualizados transcendem a violência e o terror racial, reterritoriali- rentes do espetáculo racializado, que impactam os campos
zando as ruas, um “espaço de fronteira” sob controle de “nômades”. (WEH- sociais de oportunidade, e a vitalidade mais ampla da clas­
se trabalhadora negra de Nova Orleans. O primeiro deles
MEYER, 2010, p. 429) é baseado em sujeitos negros comercialmente assimiláveis
Em um trabalho muito citado por outros autores, Joseph Roach se e, portanto, “bons”, como facetas instrumentais da indústria
cultural orientada para o turismo de Nova Orleans; o outro,
apoia na tradição dos Indians para criticar os estudos de performance e/ou vinculado àqueles considerados inassimiláveis e, portanto,
teatro em sua insistente eurocentricidade, e também para “re-interpretar a desviantemente “maus” e dispensáveis. (PERRY, 2015, p. 95)
Ixiii
cultura americana como uma série de fronteiras políticas marcadas e con­
testadas por performances”. (ROACH, 1992, p. 462)lxii Uma iniciativa com Ou seja, as formas sociais que a morte social assume nesse con­
relação a qual expresso profunda solidariedade. A “pratice” - “performative texto, tão local e tão diaspórico, assume uma duplicidade: ou a dispensa-
spheres of black vernacular culture” [esferas performativas da cultura ver­ bilidade, morte física, despossessão, apagamento, indignidade e morte; ou
nácula negra] (PERRY, 2015, p. 95) - dos indians no espaço contestado e a autoconversão em mercadoria e estereótipo de si mesmo. O corpo negro
liminar das ruas, nas “backstreets”, improvisacional ainda que calcada nos adquire, nesse caso, sobrevida, se “faz” sentido com a narrativa exotizante
quadros abundantes de uma tradição e epistemologia africana, ou Kongo, é da New Orleans creole, mestiça, latina ou europeia. O que a horrível tragé­
uma prática “fugitiva” (HARNEY & MOTEN, 2013) que desloca o confron­ dia do Katrina deixou claro, como Perry discute com exatidão numérica,
to, a luta, a dor e a violência para a liminaridade da rua ou da encruzilhada, demonstrando as mudanças demográficas e da topografia racializada das
onde eu mesmo encontrei o Espírito de Fi Yi-Yi e os Guerreiros Mandigos. classes em meio as quais os indians precisam se virar. O contraste/compa-
ração com Salvador - e a região do recôncavo - é mais impressionante de­

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

vido às enormes diferenças na história das duas regiões. Mas como Chris- entre artes cênicas, antropologia, história, memória e poesia para interro­
ten Smith descreve, em Salvador, vivemos paradoxo, ou dualidade, muito gar o Nego Fugido e sua própria formação como sujeito crítico, brincante,
semelhante à celebração, exaltação da cultura negra e ao genocídio do povo pesquisador, ativista e “nativo”. Aos 8 anos de idade, ele teve o seu primeiro
negro. (SMITH, 2016) contato com as aparições que invadem o distrito de Acupe no mês de julho,
Do ponto de vista performático, enfatizo, como outros autores, e quando as atividades de pesca e de mariscagem, base da economia quilom-
em preparação para o nosso salto rumo ao Recôncavo da Bahia, a relação bola local, estão em pausa.
da performance com a “rua”, como produtora de uma cena que teatraliza a
morte social e ancestralidade de uma maneira a um só tempo incrivelmente Vi uma figura misteriosa, com o rosto pintado de preto, a es­
pingarda em punho e a boca escorrendo sangue que circula­
criativa e “flamboyant”, pautada na epistemologia africana. Para o qual, por va em meio à agitação festiva, nas ruas do distrito de Acupe,
exemplo, tanto a rua, ou a encruzilhada, como o segredo são dimensões numa tarde de domingo do mês de julho. Naquele dia, logo
pela manhã, enquanto toques frenéticos de atabaques ecoa­
essenciais. “As ruas, como ‘espaço de fronteira ’urbano, são o ambiente na­ vam das festas de caboclo em terreiros de candomblé, ouvi
tural para as manifestações dos espíritos indígenas”. (WEHMEYER, 2010, rumores sobre apresentações de grupos de capoeira, samba
de roda e aparições de mascarados que corriam às ruas ten­
p. 434)htiv
tando chicotear pessoas, gritos e gemidos de mulheres enro­
Comentando sobre o roteiro imprevisível das “aparições” dos ín­ ladas em lençóis, figuras de cabeças grandes e pernas curtas
que invadiam as ruas da comunidade para fazer algazarras.
dios nas ruas, Larry Bannock, Big Chief dos Golden Star Hunters, diz: “The
(MONILSON, 2014, p. 1)
map has to be in our heart” [O mapa tem que estar em nosso coração].
(ROACH, 1992, p. 471) O mapa no coração permite a reconquista, repos-
Em meio a essa atmosfera fantástica, onírica e mítica, que irrom­
sessão, retomada, do território físico das ruas como um lugar sobre o qual os
pia nas ruas do Acupe, se estabelece o interesse original do autor com rela­
espíritos ancestrais têm poder. Notadamente poder de resistir a conquista,
ção a essas “aparições”, primeiro como brincante e em seguida como pes­
dos corações e dos territórios, pela supremacia branca e pela morte social.
quisador e ativista.
Para a minha aproximação ao Nego Fugido do Acupe, no Re­
Em termos resumidos, o Nego Fugido é uma tradição de encena­
côncavo da Bahia, conto fundamentalmente com o trabalho de Monilson
ção popular que ocorre de forma mais espontânea no Distrito de Acupe, e
dos Santos Pinto, intelectual orgânico do Nego Fugido, ele próprio um dos
que conta a história de luta e de libertação dos escravos de um modo di­
brincantes e pesquisador acadêmico do campo das artes performáticas.
ferente de como aparece nos livros de História. No Nego Fugido, as “ne­
Monilson é natural do Acupe, um distrito da cidade de Santo Amaro da
gas”29 - em geral crianças do sexo masculino, que incorporam os escravos
Purificação, que, como outras do Recôncavo Baiano, é contexto para di­
-, os “caçadores” que perseguem as “negas”, com o rosto pintado de preto
versas manifestações das tradições africanas, ou amefricanas, no território
colonial brasileiro. Em sua original dissertação de mestrado, “Nego Fugido e a boca de vermelho sanguíneo, o “rei de Portugal”, com a ajuda de “sol­

Teatro das Aparições”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ar­


29 Como discute Maria José Villares Barrai Villas Boas (2019), chama a atenção o fato de que os
tes Cênicas da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Monilson transita escravos-personagens são chamados “negas” no feminino, ainda que tradicionalmente e ainda hoje
sejam em sua extensa maioria do sexo masculino.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

dados”, e a madrinha Dona Santa, compõem o conjunto das personagens lombolas”. A “dança dos quilombos” das cidades de Limoeiro de Anadia,
definidas tradicionalmente. A performance, ou dança dramática, segue um em Alagoas, e o “lambe-sujo” de Laranjeira, no Sergipe30. (REIS, 1996) Há
roteiro estabelecido, no âmbito do qual os brincantes improvisam, intera­ diferenças no roteiro ou estrutura dramática, mas a rememoração ritualiza-
gem com o público e o provocam. Os caçadores - capitães-do-mato - per­ da ou dramatizada da experiência do cativeiro é uma constante. O fato de
seguem os escravos fugidos, as “negas”, e toda a perseguição é marcada por que essas manifestações persistam em comunidades consideradas quilom-
paroxismos artaudianos, as personagens se jogam no chão, gritam e se con­ bolas nos dias de hoje, reforça o argumento do autor, de que a encenação
torcem, pedindo dinheiro para a sua alforria enquanto os caçadores tentam de um passado imaginado reflete as lutas e contradições do presente, e em
vendê-los. Há uma rebelião, uma cena de subversão no interior da cena da um nível mais radical esfuma a diferença entre passado e presente por meio
objeção, e os escravos sequestram o Rei, exigindo como seu resgate a alfor­ de evocações míticas e rituais. As diferentes camadas históricas e disputas
ria de todos. A subversão da narrativa oficial é total, não há aqui meramente políticas envolvidas na consolidação dessas manifestações são complexas, e
a lei áurea concedida pela Princesa Isabel, mas uma revolta, sublevação que no caso do Lambe Sujo, por exemplo, em que os escravos-quilombolas são
mimetiza, nos estágios dramáticos, a própria subversão narrativa. derrotados pelos índios, Demian Reis sugere uma manipulação moralizan-
te, na forma de intervenção na narrativa dramática, para fazê-la um “auto”
que ensinaria o conformismo aos ex-escravizados. (Idem)
Figura 12 - Still do vídeo “Nego Fugido de Acupe - da Bahia para o Centro de São
Paulo”. No Acupe, entretanto, os escravos, as negas, saem vencedores e 0
Rei concede a todos a alforria em meio ao batuque e à performance extática,
sob a forma do transe que acomete os brincantes. Monilson chama aten­
ção para as conexões do Nego Fugido com as tradições religiosas locais, em
particular o culto a Xangô, assim como para o quase-transe que acomete as
Negas. O terreiro dedicado a Xangô na localidade do Vai-quem-quer, local
de importância central na narrativa que define o Acupe como quilombola,
no pé do morro do Alto do Cruzeiro, foi durante muitos anos comanda­
do por Vovó Loriana, que morreu em 1997 com idade incerta. Alguns lhe
atribuíam à ocasião 123 anos, e ela se recordaria da abolição da escravidão.
Dizem alguns que ouviram-na dizer que “quando aconteceu a alforria, eu
era menina, ouvi muitos foguetes e gritos de alegria, foi uma festa!” (PIN­
TO, 2014, p. 25) Tal como entre os Indians, a conexão da manifestação com

Fonte: SESC São Paulo, 2018. tradições religiosas é clara e talvez ainda mais estruturante.

Como Monilson nos lembra, a performance encontra paralelos 30 E desconfio que outras existam. No carnaval de 2008 ou 2009, visitando a praia de São Tome de
Paripe, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, me deparei com um grupo de rapazes negros com 0
com outras manifestações, que o autor chama de “danças dramáticas qui- rosto pintado de preto e amarrados pelo pescoço com uma corda.

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Sobre o transe, Monilson se aproxima das ideias de Artaud, para de identidade podem ser sentidas e vividas, e nesse sentido, contestadas e
quem o transe construirá um “corpo sem órgãos”, subvertendo as prerroga­ submetidas à prova material da performance mítica do Nego Fugido nas
tivas da razão linear e desincorporada31. Em Artaud, o teatro irrompe vida ruas do Acupe. (PINTO, 2017)
adentro, ou afora, destruindo e demolindo a distância entre representação e Esse distrito de Acupe é uma pequena comunidade, de aproxima­
existência, realizando assim a utopia de uma vida re-encantada pela arte, e damente 7.000 habitantes, localizado às margens da Baía de Todos os San­
de um teatro que, cruelmente, fosse meio de inserir na vida o extraordiná­ tos, na região do Recôncavo da Bahia, é cercado de mangues e faz parte do
rio, o fantasmagórico, o onírico e o incomum, algo que permitisse “a entra­ município de Santo Amaro da Purificação, como já disse. A comunidade,
da em cena de fantasmas”. (ARTAUD, 1987, p. 71) Neste teatro, os recursos de origem negra e indígena, teria surgido a partir do assentamento de ex-
cênicos permitem que um “duplo” se descole dos atores e da encenação, um -escravizados egressos das fazendas Engenho Murundu, Engenho São Gon-
outro fantástico e aterrador que não é uma “representação” da realidade, çalo e Engenho Acupe. É considerado por muitos um território quilombo-
mas sua virtualidade paroxisticamente alcançada. E tal como processado
la, na medida em que negros alforriados e livres, após 1888, constituíram
no eixo história-ficção, discutido para o caso das narrativas negras, a imagi­
ali suas comunidades, nos interstícios da ordem senhorial escravocrata. A
nação em um momento de perigo arranca o sujeito de sua fixação no tem­
comunidade é permeada por diversas narrativas que remetem ao período
po histórico da coerência entre corpo-subjetividade-identidade, e produz o
escravocrata, ao tempo do cativeiro, e ao “outro mundo” onde encantados,
sujeito como o Outro de si mesmo - promovendo a síntese anti-maussiana
cobras gigantes, eguns e aparições fantásticas fazem parte do cotidiano.
entre pessoa e personagem - em um argumento semelhante ao desenvolvi­
Uma das narrativas mestras da comunidade relembra a figura do
do por Augras.
perverso senhor de escravos Francisco Gonçalves, que hoje sobrevive como
um fantasma. Tia Neném conta que
A dualidade constitui a estrutura permanente do ser. Jogo,
dança, teatro, revelação do um e múltiplo, manifestação do
duplo, da sombra, do estranho fraterno ou do reflexo angus­ os moradores de Acupe sempre ouviam na boca da madru­
tiante, imagem de Deus ou do demônio. (AUGRAS, 1983, gada um som angustiante e lamentoso em forma de trote
p. 22) de cavalo que cruzava as ruas da comunidade. Na montaria,
ia um velho imponente vestindo fraque preto e cartola. Era
a alma penada do senhor Francisco Gonçalves. (MONIL­
Ou como coloca Bastide: “A máscara é o sucedâneo dos deuses”. SON, 2014, p. 18)

(2016, p. 97) E nesse mesmo sentido, coloca Monilson, ao interpretar a pin­


tura corporal das negas não como Black Face, mas como a produção de uma Como Monilson insiste, as narrativas fantásticas sobre Francisco
duplicidade que descola o sujeito do tempo-espaço histórico em direção ao Gonçalves e sua crueldade para com os escravos fazem parte de um dis­
tempo mítico, comunitário e não-linear, onde as contradições e as máscaras positivo de memória social que mantém viva a presença extraordinária do
“terror”, instrumento de controle da população escrava e de criação de uma
31 Sobre o corpo sem órgãos, expressão originalmente cunhada por Artaud, Deleuze & Guattari di­
zem em “Mil Platôs”: “o corpo sem órgãos não é um corpo morto, mas um corpo vivo, e tão vivo e tão
“zona de morte”. (TAUSSIG, 1993) Um terror materializado no sangue dos
fervilhante que ele expulsou o organismo e sua organização”. (1996, p. 43)

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

escravos supliciados que ainda escorre, de quando em vez, de um bananal Como salienta Juana Elbein dos Santos e outros, na cosmologia
que crescera no mesmo local onde os negros eram enterrados. nagô e no seu repertório mítico, esse mundo material - o ayê - e o mun­
A violência, o “terror” e a morte são personagens centrais na do transcendental - o orun - convivem como realidades paralelas e mu­
narrativa da comunidade. Outra das fascinantes histórias compiladas por tuamente influentes que se interpenetram. Nesse sentido, o significado da
Monilson tem em Iku a personificação da morte na cosmologia nagô, o morte deveria ser reconduzido a esse modelo paradigmático que não se

personagem principal que explicaria inclusive por que no mês de julho de esgota em uma fenomenologia do visível, ainda que se valha dela, como

cada ano aparecem o Nego Fugido e outras entidades fantásticas, como os no conceito de “olharidade” proposto por Monilson, que visa ressaltar os

Mundus e as caretas nas ruas do Acupe. Segundo um dos interlocutores de aspectos sensoriais, visuais, táteis, olfativos para a fenomenologia da vida
social no Acupe: “O teatro das aparições é o teatro da “olharidade”, da pre-
Monilson, Paulo Henrique da Cruz, tatá da casa de angola Inzo Tumbalê
sentificação dos sentidos que desmascara as realidades mais obscuras da
Junçara em Acupe,
vida em sociedade”. (PINTO, 2014, p. 157) A morte, entretanto, possui di­
versas formas e um poder quase invencível. Pode ser ritualmente tratada,
(...) Os escravos do Engenho Acupe que eram de nação mas nunca negada.
haussás, (...), faziam muitos cultos a mando do senhor de
engenho, oferecendo até mesmo pessoas em sacrifício, para Júlio Braga, em seu livro sobre a devoção a babá egum, cita Wi-
adquirir bens e dinheiro. Os escravos teriam perdido o con­ liam R. Bascon:
trole da situação, pois faziam muitas macumbas e, não ten­
do mais pessoas para oferecer, teriam parado as oferendas.
Iku, a morte, teria ficado furioso e lançado uma praga no De quatro em quatro dias, ela descia do céu e invadia o
mês de agosto. Desde então, sempre nesse mês, passaram mercado de Ojalfé; matava, ela e sua gente, tantas pessoas
a morrer muitas pessoas da comunidade. Todos temiam a quantas conseguia, com a ajuda de grandes cajados. A
chegada do mês das tragédias. Os sacerdotes da época, diz maioria dos habitantes de Ifé foi em breve massacrada. Os
o tata, teriam se juntado e feito uma oferenda para afastar a sobreviventes voltaram-se então para os orixás, invocando
praga de Acupe. Os mandus, espíritos bons, saíram às ruas Lafogido (que nessa época se chamava Oni), Oduá, Orixalá,
em julho, um mês antes, para afastar os espíritos maus e Ijugbe, Alass e todos os demais orixás existentes, para que
atrair os bons, livrando a comunidade da praga do mês de viessem salvá-los. Mas os orixás nada podiam contra a mor­
agosto. (PINTO, 2014, p. 37-38) te”. (BASCON apud BRAGA, 1992, p. 106)lxv

Monilson uma vez mais recorre a Artaud para interpretar o mito A narrativa em questão é um dos mitos que explicam como a
e o rito como formas de “exorcismo total que assola a alma”, nesse caso, a morte - Ikú - foi “domesticada” por um homem chamado Ameiygun, que
alma da comunidade, assediada por fantasmas e pragas, que, longe de esta­ a enganou e a vestiu com panos coloridos e espelhos, de modo que a morte,
rem mortos, estão bem vivos, lembrando a cada ano que a morte e a violên­ devastação impessoal, coletiva e irracional, passou a ser cultuada na figu­
cia absoluta estão plantadas no coração subterrâneo da comunidade, como ra individualizada do ancestral divinizado, o egum, que em Itaparica, na
um fundamento enterrado no mapa-coração do Acupe. Bahia, dança nas noites sagradas, vestido com o poderoso opá multicolori-
do. A morte, terrível flagelo masculino, que não se curva a ninguém, nem

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mesmo ao ardiloso Exu, pode ser, se não derrotada, transcendida, uma vez Figura 13 - Bone Gang

simbolizada e individualizada, efetivamente incorporada, como guardiões


ancestrais e masculinos. (PRANDI, 2001)
A velha morte, que aparece em New Orleans travestida na forma
de “bone gangs” [gangues de ossos], grupos de homens negros vestidos de
esqueletos que perambulam pelas ruas, acordando as famílias na madru­
gada dos dias em que os Indians desfilam. Segundo Helen Regis, a prática
se conecta a manifestações similares encontradas no Haiti, em Trinidad e
entre os yourubanos (2009), revelando mais uma vez a conexão afro-caribe-
nha - diaspórica - da cultura negra em New Orleans. Apesar do que advoga
o ADOS, a experiência negra norte-americana, sabemos, nunca foi apenas
nacional. O trauma fatal que as linhagens african-americans vivenciam tem
um escopo global.

Fonte: Foto do autor, 2020.

Entre junho e julho de 2018, um coletivo de artistas foi contempla­

do por meio de um edital do governo do Estado da Bahia para a realização

de uma residência artística no distrito de Acupe, com a intensa colaboração

de Monilson dos Santos. O projeto “Bily the Kid - Expedição III: Nego Fu-

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

gido, Acupe/BA” produziu experiências, oficinas e registros, reunidos na através do diálogo com a tradição estabelecida entre Victor Turner e Ri-
publicação sui generis “Terra Quente”, publicada em 2020, e que também chard Schechner, e em direção a uma “nova partilha do sensível”. (MON­
nos ajuda aqui. Nessa publicação, Monica Santana qualifica a experiência TEIRO, 2013, p. 382) A forma popular de encenação dramática, próxima
de assistir à performance nas ruas como “um apaziguamento das forças da ao ritual, como já apontei aqui tantas vezes, poderia oferecer novos desafios
morte” (SANTANA, 2020, p. 4)> produzida, o que é fundamental para todo para teorias teatrais como as de Brecht e Artaud. Justamente em função
o argumento desse livro, não como representação. “A oralidade está no cor­ do lugar da experiência, que nesses dois autores tem significados distintos,
po, que materializa a resistência - não como metáfora, mas como coisa em mas convergentes na relação da representação teatral - ou sua implosão - e
si”. (Idem, p. 7) É dessa forma, aliás, que parece referir o mesmo Monilson, a vida. Quer seja a vida social, no caso de Brecht, o que se media através da
quando relembra que, quando sob a máscara da nega, o regozijo pela alfor­ proposta de um teatro “didático” para o qual, por exemplo, a distinção entre
ria alcançada o golpeia com a força de uma experiência atual, verdadeira, público e atores é questionada, e nesse caso Mariana cita Walter Benjamin
completa real e não como uma encenação. (PINTO, 2014) Uma experiência para explicar como na peça didática cada “espectador é ao mesmo tempo
“sem órgãos” de tal natureza ou ordem que incorpora o invisível e fantásti­ observador e atuante”. (Idem, p. 376) Quer seja em Artaud, para quem a
co. O poeta Alex Simões faz às vezes de etnógrafo para nos aproximar dessa vida aparece em uma significação mais transcendental, e, neste caso, o ho­
experiência “presentificada”: “observar o que está ao redor. E o que está ao rizonte seria “tornar infinitas as fronteiras do que chamamos realidade”.
redor é visível e tem o invisível ao seu redor”. (SIMÕES, 2020, p. 14) (ARTAUD, 1987, p. 22) Ora, os pressupostos radicais de artistas tão den­
O Nego Fugido tem chamado a atenção de outros artistas, para sos como Brecht e Artaud estariam já presentes nessa manifestação popular
além dos envolvidos no Projeto Billy the Kid. Notadamente em função da produzida e sustentado por e para “pessoas que nunca foram ao teatro”. A
atuação acadêmica e militante de Monilson Santos Pinto, em seu desloca­ vanguarda artística de São Paulo, Paris ou Berlin teria assim algo a aprender
mento do Acupe para São Paulo. Como o próprio aponta, ele tem realizado com o Nego Fugido e com a comunidade de Acupe que materializou de
oficinas com base em sua experiência e investigação com o Nego Fugido forma consistente objetivos artísticos radicais, que apontam, ao fim e ao
para artistas e pesquisadores, desenvolvendo cooperação com sua orienta­ cabo, para a suspensão das fronteiras entre vida e arte, sujeito e objeto, cena
dora Marianna Monteiro e estabelecendo um diálogo entre os estudos de dramática e cenário sócio-histórico.
performance/arte cênica e a antropologia. Monteiro, por sua vez, descreve Como sugere Diana Taylor, as formas de produzir sentido e co­
como a sua trajetória como artista, pesquisadora e ativista a levou do traba­ nhecimento, de armazená-lo, transmiti-lo e manipulá-lo para comunidades
lho com movimentos sociais e com comunidades populares urbanas até o não-letradas ou “tradicionais/primitivas” estão baseadas na performance,
Nego Fugido. Nesse sentido, também uma trajetória de deslocamento teó­ ou em performances, usualmente de natureza dramática entendidas como
rico em que a “noção de representação dá lugar à noção de presentificação”. compondo o “repertório”, definido como distinto, e eventualmente oposto
(ABREU E MONTEIRO, 2016, p. 3) Como Monilson, em sua dissertação, ao “arquivo”, modalidade de objetivação do conhecimento, saber ou expe­
Mariana, ao refletir sobre o Nego Fugido, busca pôr em relação a reflexão riência, típico de sociedades letradas e com Estado. (TAYLOR, 2003; 2006)
crítica sobre teatro e encenação e a teoria da performance na antropologia, Para Victor Turner, como para outros autores, a dimensão reflexiva e in­

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ventiva da performance, como ritual principalmente, é central. (TURNER, a partir de uma grade definida pelo mesmo princípio da separação encon­
1982; DREWAL, 1992) Através do ritual, e de suas formas dramáticas, a so­ trado em Clastres e discutido no Capítulo IV. Mas a cena da performance
ciedade toma conta de suas contradições e valores mais profundos, postos não pode ser capturada sem que algo essencial se perca ou seja transforma­
em cena, ou movimento ritualmente, por meio da incorporação de agen­ do em outra coisa. A performance experiencial e multivocal, definida pela
tes coletivos, transcendais, sob a forma encarnada de personagens míticos. “olharidade”, transforma-se em um registro, um vídeo, uma palestra, um li­
“Em outras palavras, o drama induz e contém processos reflexivos e gera vro, quando transita do repertório para o arquivo. Essa transposição é uma
estruturas culturais nos quais a reflexividade pode encontrar um lugar legí­ operação de poder que nega a imanência das formas culturais da diáspora
timo”. (TURNER, 1982, p. 92)lxviO foco na experiência, inclusive ou prin­ africana ao pretender justamente representá-la.
cipalmente de base sensorial, corpórea, total, dissolve, ao invés de reificar, No horizonte de eventos que se desenrola no teatro de operações
o indivíduo como o sujeito da cultura ou do entendimento, porque a expe­ fractais da antinegritude global em sua dimensão a um só tempo estrutural
riência está baseada na dissolução do self no corpo maleável da cultura, per­ e multitemporal, a escravidão é o pano de fundo das cenas primordiais.
meada por símbolos poderosos que atuam rompendo limites entre o Eu e o Quando os recursos existenciais, políticos e estéticos da ancestralidade en­
Outro, como no transe, e entre o passado e o presente, como no mito, sub­ contram forma de se fazer disponíveis operam, como aponta Joanice Con­
vertendo a linearidade temporal em sua irreversibilidade ocidental, como ceição discutindo a aparato mortuário no plano das cosmologias youru-
os exemplos do Nego Fugido, e as tradições do candomblé exemplificam. banas no Brasil, como forças “reparadoras da ordem social e espiritual”.
A morte, no âmbito dessa cosmologia ancestral, é a passagem, o umbral (CONCEIÇÃO, 2017, p. 59) Como os Indians em New Orleans que corte­
fundamental, que despersonaliza o indivíduo que retorna para o domínio jam e rejeitam as forças do História, ou o Nego Fugido, que exorciza a mor­
indiferenciado dos ancestrais e se posiciona em um ciclo de muitos níveis e te social no Recôncavo da Bahia. Diante da violência gratuita e da incons­
conexões. (CONCEIÇÃO, 2017) tância dos senhores brancos, às vezes paternalistas, às vezes cruéis, como
Ora, o ritual, a performance, produz uma “cena” para estabelecer vimos nas narrativas escravas, diante da superestrutura desumanizante do
a sua efetividade, uma cena que, como vimos, desenrola na rua os múltiplos escravismo colonial e de seu cinismo histórico, diante da brutalidade fobo-
níveis da temporalidade e da existência, confundindo o passado, os tempos gênica do fato da negritude, diante do açoite que não se cansa e do tronco,
do cativeiro, e o presente, o capitalismo racializado, e dissolvendo a dico­ que não se afasta, a morte social, como alienação final e solidária à supre­
tomia entre observador e performer. Qual o significado da “cena”? Diana macia branca, encontra na cena do suplício escravo o cenário para fixação
Taylor fala em “cenários” como a forma codificada na qual uma narrativa de uma ordem material/libidinal que nos aprisiona nesse duro cativeiro.
“grab the body” [agarra o corpo], inserindo-o em um quadro interpretativo, Conforme desenvolve S. Hartman, a subjetividade escrava, que
de tal forma que o repertório - performático e irrepetível, apesar de rever­ informa as formas objetivas da subjetivação negra na modernidade, está
sível - possa ser transferido para o arquivo, como nas cenas históricas do circunscrita pela violência, às vezes adiada, mas muitas vezes direta, bru­
descobrimento, ou da abolição da escravatura. Codificado e imobilizado, 0 tal e sem culpa. (1997) Ora, nesse sentido, a experiência da brutalidade,
feixe de eventos, sujeitos, atos, símbolos e sentidos ganha uma forma legível muitas vezes além de qualquer significação formal, pode encontrar na per­

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

formance contexto para enunciação coletiva da dor. Uma dor materiali­ Isso é o que é objeção, o que é performance - uma complica­
ção interna do objeto que é, ao mesmo tempo, sua retirada
zada exemplarmente no modo como Frederic Douglass relembra o seu para o mundo externo. Esse afastamento possibilita a co­
encontro com a consciência da escravidão por meio do martírio de sua tia municação entre espaços, tempos e pessoas aparentemente
intransponíveis. (Idem, p. 253)lxviii
Hester. (HARTMAN, 1997, p. 3) Ou como representado nas pinturas que
retratam o escravo açoitado no Pelourinho, como em Rugendas ou Debret.
Uma performance coletiva, um repertório, como a cena da rebe­
(WOOD, 2014) A cena primordial do suplício se converte no cenário de
lião no pagode baiano e seu desprezo pelas convenções morais burguesas
instauração de ordem codificada para regular o corpo e a experiência racia-
que produziram historicamente e no tempo presente o corpo negro como
lizada. Ora, a insurgência no interior da cena produz uma objeção.
hiper-sexualizado, amoral, baixo e sujo e por isso mesmo tão desejado; um
Fred Moten, mais uma vez visitando a cena primordial do su­ cenário como o trópico holandês, reencarnado na série “etnológica” de
plício, narrada em Douglas, discute a resistência do “objeto”, o escravo, Eckhout, que assume como o próprio modus operandi epistemológico a
negociado como mercadoria ou bem semovente, mas que, entretanto, representação, como alienação racializada; uma trajetória artística como a
pode resistir ou objetar, como já lembrei nesse livro, ao discutir a cena da de Musa Matiuzzi que atravessa a carne negra para estilhaçar os limites da
rebelião no pagode. E ele pode fazer isso exatamente porque objetificado representação e da dor. Tudo isso, e muito mais, compõe o cortejo de ten­

ou apreendido nas malhas de objetivação material da escravidão. O que sões e recursos através dos quais a morte social se reencarna em diversas

obviamente está bem atestado na discussão sobre a subjetividade escrava transformações que compõem o mesmo locus infundido de toda a tensão
por meio da qual sujeitos retiram a si mesmos do cativeiro dos códigos re-
na historiografia brasileira. O escravizado poderia e pôde significar, cons­
presentacionais, como uma forma de negar sentido ao que não pode ser
truir relações familiares e uma tradição que é uma objeção à sua própria
representado, um sujeito impossível, que só na destruição do mundo pode
objetivação, mas a constituição de sua subjetividade, e de sua “pessoa”, se
sonhar em ver exterminado o seu próprio e familiar cativeiro.
equilibra nessas tensões violentas que desfiguram a relação entre subjetivi­
dade - a possessão do sujeito sobre si mesmo - e pessoalidade como uma
categoria formal, jurídico-estatal. O que então autoriza a consideração de
uma “força de resistência ou objeção que sempre excede os limites da su­
jeição / subjetividade”. (MOTEN, 2003, p. 242)lxvii A cena primordial da
escravidão - fixada em cenários codificados - é o quadro para a formação
de uma subjetividade em objeção como uma forma de resistência, muitas
vezes recuada em relação ao mundo normal da experiência racional bur­
guesa, e, nesse sentido, a performance é o dispositivo adequado ou possível
para essa retomada ou re-possessão de si, do corpo e da cena.

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POSFÁCIO
CATIVEIRO

VOLTAS E VOLTAS AO REDOR DA PALAVRA


Maria Dolores Sosin Rodriguez

“[...] a negritude enquanto matéria aponta para o um outro mundo: a saber, aquele
que existe sem tempo e fora do espaço, na plenitude”,
Denise Ferreira da Silva.

Este texto não partirá de uma falta. Não fará um resumo. Não cir­
cunscreverá a obra dentro de um espectro definido e definidor de ou por
uma lógica. Não analisará a vontade do autor, nem se debruçará em de­
fini-lo, descrevê-lo, contestá-lo - só se, indefinidamente, num movimen­
to de nebulosas de sentidos temporários. Hoje parece o dia perfeito para,
finalmente, concluí-lo. Mesmo que, para isso, tenha deixado de lado tudo
que fiz até aqui. Voltei em Derrida e sua ideia de suplemento. No glossário
organizado por Silviano Santiago, dizem que suplemento é uma adição. Um
significante disponível que se acrescenta para substituir e suprir uma falta
do lado do significado e fornecer o excesso de que é preciso. Isso parece
soar, pra mim, como se eu nunca tivesse realmente compreendido a lógica
da suplementariedade derridiana. O que me tranquiliza é o que é dito a se­
guir, quando aludem a possibilidade do suplemento à ausência de centro, o
nosso velho conhecido, então, descentramento derridiano. A ideia de um
posfácio, talvez, seja pra mim a ideia de um suplemento. Ainda assim, me
recuso a imaginar um centro. A farejar um centro, a admitir a possibilidade
de sua existência. Não sei se minto para mim. É preciso, talvez, uma erótica
da teoria. (SONTAG, PINHO) Uma falta de vontade de circunscrever o nos­
so desejo. Deixando o desejo mais latejante em algo parecido com a fome
e menos próximo de uma gramaticalidade, detentora do sentido. O grande
sentido. Não direi o que o autor quis dizer, ainda mais porque o autor está
sempre encoberto sobre algum desejo híbrido entre a penumbra de si e a
vontade de uma expectativa aparentemente ululante.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Nesse exato momento, são 23:13, tenho dezessete abas abertas em Pensando um pouco no sentido e no lugar da experiência, penso em

meu navegador e este é meu sexto documento de Word. Fiz tentativas abs- “Nossos Feminismos Negros Revisitados”, onde Luiza Bairros narra:
tracionistas, contorcionismos que demonstrariam para a pessoa que me lê
Certa vez em Salvador Bahia vi na televisão um quadro so­
o quanto eu realmente sou a pessoa mais indicada para realizar esta tarefa. bre culinária. Era um programa matinal dirigido ao público
Mas eu mesma não me sinto suficientemente certa disso. E é cafona dizê-lo. feminino onde se demonstrava como preparar um prato
do qual já nem lembro. Naquele momento o que prendia
A inclinação para pensar que isso também pode parecer frívolo, pequeno e minha atenção estava atrás da imagem imediatamente vi­
fracassado também me chega nesse momento. Li sobre o que é um posfácio, sível na tela de TV. O cenário era uma cozinha e o perso­
nagem principal uma apresentadora que não parava de dar
mesmo tendo, a esta altura, já lido diversos deles em vários momentos da
instruções e conselhos. Em contraposição uma jovem negra
minha vida. Muitos, tantas vezes, desnecessários. Essa pode ser a matéria participava da cena no mais completo mutismo (BAIRROS,
de minha hesitação. Um posfácio pode ser o que queremos fazer dele. E 1995, p. 458).

essa extensa negatividade a respeito dele pode ser uma curva no desenho do
meu desejo. Afinal, o que eu quero aqui? Pensei nessa forma do dicionário, Ela pensa sobre os conceitos: a) mulher, b) experiência e c) política
do glossário ou das palavras-chave. Quais seriam as insígnias deste livro? pessoal. Trazendo uma vivência sua, ela a incorpora a sua escritura, adian­
Todas bastante evidenciadas. Eu também me recuso a nomear o que eu acho tando o que irá discutir. A forma de percepção que ela traz sobre a mu­
que deveria ter estado aqui e não esteve. Existe uma marcação metodológica
dez da mulher negra, na cena que assiste, traz consigo um olhar particular
realmente admirável neste livro de Osmundo Pinho e é fascinante percorrer
de alguém que teoriza, mas também vive a experiência do silenciamento.
essas páginas tendo um conteúdo tão explicitamente colocado. Em outras
A capacidade de distinção dos lugares e significados reservados para cada
circunstâncias, pensando sobre ele, desejei dizer sobre outras característi­
uma das duas mulheres na cena já relativiza a experiência como sendo capaz
cas dessa forma metodológica. O rigor é uma delas. Penso na necessidade
de conectar todas as mulheres sem distinção. Luiza Bairros expõe o lado
urgente de redefinirmos o que tomamos como rigor científico. Quais são
mais inconsistente dessa generalização, relativizando a concepção unívoca
os mecanismos teórico-metodológicos que dizem respeito ao rigor ou estão
de que todas as mulheres compartilham experiências de modo igual e de
associados a ele?
O que mais parece surpreender as pessoas é o fato da experiência que a opressão contra a mulher seria definida independentemente de ou­

negra aparecer e ser reivindicada como importante nas produções acadê­ tros marcadores, como raça, classe, território e sexualidade, por exemplo.
micas. Mais do que fazer uso da primeira pessoa, falar sobre nossos lugares É igualmente marcante o modo como Lélia Gonzalez escreve, como epí­
de fazimento, pensando, sobretudo, os pertencimentos raciais, de gênero e grafe, o início de “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”. Nela, a autora
sexualidade, soa, em muitas circunstâncias, como um ato por demais auto- constrói uma pequena narrativa em que a fala de uma mulher negra causa a
centrado ou ensimesmado. Isso aparece como pergunta em Cativeiro: “[...] interrupção de uma farsa, subjacente ao cenário antinegro imposto. O rom­
a pergunta formulada aqui de tantas formas diferentes e em diferentes regis­ pimento do mutismo é o ponto central da história onde pessoas negras são
tros, que busca responder quem sou interrogando de onde vim”. (PINHO, convidadas para o lançamento de um livro em que os brancos falariam sobre
2021, p. 128)
os negros e onde “[...] Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

coisas pro crioléu da plateia, que nem repararam que se apertasse um pouco ll) Essa forma de elaboração, que diz respeito também a uma construção e
até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa”. dimensão estética-ética, organiza a produção intelectual a partir da impos­
(GONZALEZ, 1980, p. 223) sibilidade de separação entre teoria e prática, como nos mostra a autora: “De
A busca ou a expressão dessa voz parece desagradar. Já sabemos que modo geral, para as mulheres negras, pensamento e ação estão conectados
a construção de uma identidade não nos faz mais suspeitar de uma centra- entre si [...] Assim, historicamente, para as feministas negras, o pensamen­
lidade ou de uma unidade, muito menos de uma forma inalterada e única. to e a ação, ou a teoria e a prática, constituem parte do mesmo processo’”.
Pensar a experiência negra não é fixá-la em um espaço de redução, mas de (Idem, p. 16) Ela conclui que este é um dos maiores desafios para as mulhe­
multiplicação e de possibilidades, dificilmente sintetizada e urgentemente res negras intelectuais de toda a diáspora africana: a negação do emprego da
viva e ambivalente, sem fechamentos de significados. Interessa-nos pensar experiência enquanto instrumento de produção de conhecimento.
em dissensos, em afastamentos e em aproximações. E interessa também a No primeiro mês em que comecei a frequentar um terreiro de um­
Osmundo Pinho, que realiza movimentos de retomada do conteúdo expos­ banda, foram iniciados atendimentos que aconteciam separadamente em
to para mais uma vez olhá-lo, avaliá-lo, com maior ou menor afastamento, um dia específico e eu fui uma das primeiras a serem atendidas dentro da­
aproximação, discordância, buscando, como ele diz, uma rentabilidade teó­ quele formato. Eram conversas com um preto-velho que, desde a primeira
rica. Esta não é uma profissão de fé. E Cativeiro mostra extremo rigor ao se vez, me recebeu e passou a me chamar de afilhada. Muitas foram as dis­
negar o encontro com essa torrente de absoluta cegueira que ocupa os de­ tâncias que me fizeram me afastar dessa religião. Dentre elas, a percepção
bates dentro e fora da academia, muitas vezes mais preocupados em eleger de que muitos entes, seres e espíritos, considerados mais evoluídos pelas
novos totens, mitos, almejando resoluções fáceis, e projetando uma super- pessoas que dirigiam a casa, eram entes, seres e espíritos retratados como
vontade de credulidade e de totalização sobre todos os assuntos, sobretudo, brancos. Os orixás, por sua vez, eram lidos como energias e, portanto, sem
em relação à elaboração de conhecimento negro. raça, sem origem, sem qualquer vinculação com um povo ou uma localida­
Nas citações feitas aqui, fica bastante evidente a recorrência à ex­ de específica. Ainda dentro dessas inúmeras inconformidades, as entidades
periência como método e como a sua importância vai além de meramente reconhecidas como pretos-velhos, pretas-velhas, caboclos e caboclas, por
exemplificar, mas de trazer as vozes que ainda insistem em colocar no com­ sua vez, eram percebidas coletivamente, ainda que em um nível menos ob­
pleto terreno do mutismo, além de abalar o núcleo mais duro, suspeito, do jetivo do que os primeiros elementos que narrei, como entidades menos
discurso científico. Em “Feminismo Negro Diaspórico”, Sônia Beatriz dos esclarecidas ou entidades evoluídas que estavam trabalhando dentro da fa­
Santos conceitualiza como característica central dos feminismos afro-latino lange que eles representavam, quase que arquetipicamente, para expressa­
americanos, afro-caribenhos, afro-americanos, feminismos das mulheres rem a sua humildade e capacidade de adaptação em meio às adversidades,
negras britânicas e feminismo africano, a prática política e intelectual forja­ como uma forma de se aproximarem do público que procurava o terreiro de
da a partir da articulação entre raça, gênero, classe e sexualidade, produzida umbanda, mas também como modo de acelerarem a sua jornada em busca
e desenvolvida por mulheres afrodescendentes - “as múltiplas dimensões de “iluminação espiritual”.
das experiências das mulheres negras com a opressão”. (SANTOS, 2007, p.

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Sempre ouvi que “preto-velho é o psicólogo do pobre”. São tantos os Embora Descartes nunca tenha definido quem é esse “Eu”,
está claro em sua filosofia que o “Eu” substitui Deus como
dissensos, as discrepâncias de sentido entre mim e essa experiência que nar­ a nova fundação do conhecimento e seus atributos cons­
tituem a secularização dos atributos do Deus cristão. Para
rá-la agora me parece ainda mais absurdo. E também é cafona dizê-lo. Mui­
Descartes, o “Eu” pode produzir um conhecimento que é
tos dos elementos que aparecem quase como chistes nisso que conto, sobre­ verdadeiro além do tempo e do espaço, universal no senti­
do que não está condicionado a nenhuma particularidade e
tudo, quando pensados juntos ao livro de Osmundo Pinho, são elementos “objetivo”, sendo entendido da mesma forma que a “neutra­
lidade” e equivalente à visão do “olho de Deus”. (GROSFO­
que dizem respeito a esta obra. Poderia começar comentando essa apari­
GUEL, 2016, p. 28)
ção de sentidos que são aparentemente inegociáveis entre si, e de danças do
pensamento que me trouxeram a essas lembranças de quase dez anos atrás,
Pensar nisso me faz lembrar uma cena da montagem teatral “Pele
falando sobre uma cantiga que sempre me chamou muito a atenção quando
Negra, Máscaras Brancas”, da Escola de Teatro da Universidade Federal da
eu ainda era umbandista e me sentia, como acontece com frequência ainda
Bahia, dirigida por Onisajé, codirigida por Licko Turle e com texto de Aldri
hoje, um pouco distante, desencaixada, desalojada do mundo: “Vovô não
Anunciação. Na peça, de explícita inspiração fanoniana, há um momento
quer casca de coco no terreiro. Vovó não quer casca de coco no terreiro, só
em que o elenco, formado integralmente por pessoas negras, usa, literal­
pra não lembrar dos tempos do cativeiro, só pra não lembrar dos tempos do
mente, máscaras brancas. É uma aparição estética, digamos, muito bem re­
cativeiro...” O que me fez lembrar dela não foi exatamente a coincidência
solvida. Nesse momento, todas as pessoas em cena estão trajadas de branco
entre o cativeiro da canção e o cativeiro do título do livro, mas a sua epígrafe:
e cantam, em um uníssono que me soou hipnótico e, às vezes, descompas­
também uma cantiga, só que assinada por Seu Marujo. Nela, ele também
sado: “eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu”. Esse eu categórico conversa com a anti-
traz o cativeiro como lembrança, como ordenadora, de algum modo, de sua
negritude, pois, diz o autor de Cativeiro junto a Fanon e com Lewis Gordon:
experiência.
“a coisidade, e consequente irrepresentabilidade da negritude e do sujeito
Existe aqui uma dimensão de corpo que, estranhamente, não con­
negro”. (PINHO) E aí que podemos pensar no corpo como localidade, como
vence, apesar de ser conveniente para a explicação de certas realidades con­
espaço, talvez, como território, como escrita, como existência que se impõe.
flitantes e de experiências para as quais o corpo aparece camuflado como
Esse desalojamento, essa impossibilidade de experiência aparece
algo desimportante ou menor. Deflagrando exatamente a impossibilidade
assim expressa: “Ora, estando fora da lei, na fronteira ou zona de contato,
discutida aqui pelo autor: não há experiência negra fora do corpo (“A re­
estamos ao mesmo tempo dentro e fora do mundo - de sentido e poder -
dução do negro, seu corpo e integridades, a algo não humano ou pouco hu­
criado pelos setllers, e nesse sentido poderíamos significar apenas de modo
mano, é a confirmação da humanidade branca”, PINHO, 2021, p. 112). Eu
“fugitivo”. (PINHO, 2021, p. 90) O corpo-experiência negra como cárcere,
diria que não há qualquer experiência longe dessa dimensão porque, como
no entanto, encontra desconformidades porque há nisso uma dimensão que
sabemos, conceber que as coisas possam ser assim é assumir que é possível
me parece ser esquecida facilmente pelas tímidas vozes que nos chegam do
que haja aquele eu-divino, como explora Grosfoguel:
afro-pessimismo: “Mas ora, eu sou um homem negro brasileiro, baiano em
particular, e em minha experiência sociocultural assim como para milhões

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

de outros afro-brasileiros e mesmo afro-latino-americanos e/ou caribenhos, há nele uma pessoa dizendo “vem comigo, escaparemos do afogamento, da
o horizonte social e as categorias da experiência intersubjetiva estão repletas inundação”. Promessas.
de referências à África e a elementos de africanidade. Não há nenhum va­ Numa aula da professora Florentina Souza, líamos o já mencionado
zio”. (Idem, p. 27-28) texto “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, de Lélia Gonzalez, e tudo
A cantiga dos pretos-velhos e das pretas-velhas me chega como aquilo que hoje me parece bastante óbvio era uma novidade. Não sei se pela
epistemologia direcionadora para essa minha incisão ou, talvez, sutura, dimensão do que ela dizia. Talvez, menos por isso. E mais pelo modo como
como nomeia Rosana Paulino. Pois elas e eles são, a um só tempo, entidades ela dizia. Algum tempo depois, o que era dito e o modo de dizer já não me

transcendentes e imanentes, espirituais, mas presas a um corpo e a uma ex­ pareciam duas coisas distintas. Na verdade, me parecem hoje uma coisa só.

periência, ainda que por vontade própria - poderiam escolher, supostamen­ Na verdade, na verdade, não lembro quem as separou pra mim. Mas tratei

te, qualquer roupagem reencarnatória, mas escolhem vir com as marcas de de juntá-las quando eu me dei conta da dimensão que essa falsa cisão pro­

um corpo que se apresenta cativo à experiência dos tumbeiros, como traço duzia. A crítica à representação é a crítica ao desejo de uma atribuição de

deflagrador de sua própria significação, sendo esse significado também cati­ verdade que só existe na ficção da profundidade em oposição à superfície, é

vo de marcas ontológicas moralizantes e próximas da tradição judaica-cris­ a crítica da redução do corpo ao que dizem ser a redução do corpo - essas

tã, pois parece ser inconcebível que um homem negro velho pudesse ser, por todas aqui neste livro, colocadas por Osmundo Pinho, mas também em De-

exemplo, letrado, deslumbrado e até mesmo esnobe, ser um preto-velho, nise Ferreira da Silva, quando diz “trabalho criativo > crítica”; em Sontag, na

necessariamente, passaria por uma experiência de diminuição de sentidos e crítica à ficção de profundidade. Como em Paul Valéry, “o mais profundo é

possibilidades, recriando o cativeiro na obrigatoriedade de uma figura hu­ a pele”. É o corpo.

milde, iletrada e sofredora. Se te perguntarem de onde tudo vem,

É um duplo conflitante que não produz, ao meu ver, a rentabilidade responda:

teórica perseguida por Osmundo Pinho que vê no afro-pessimismo e na do corpo,

ancestralidade duas formas, duas maneiras que não são percebidas como do corpo,

meramente excludentes ou revanchistas. A forma como sempre percebi o do corpo.

trabalho de Osmundo Pinho, antes de ler este livro, sempre teve a ver com a Noutro dia, escrevi sobre Cativeiro em um dos meus cadernos: “ca­

percepção de algo em seu estilo. Quero dizer, apetite. Assim como o fogo da tiveiro em cantigas de pretos-velhos; historicizar a produção de Osmundo

fome. Penso que o rigor pode ser discutido de um modo menos impossível trazendo o Ilê Aiyê e seu trabalho sobre reafricanização, além de outros tra­

agora. E isso pode parecer que não é bem-vindo neste momento. E quando ços de suas pesquisas e obras; epígrafe de marujo e a figura do preto-velho

eu disse rigor, eu também digo fome. Rigor é para dizer que ele deixa-se como aqueles que habitam não apenas dois mundos míticos, mas concei­

demorar em ver - menos contido do que faminto -, rigor é pra dizer que é tuais (estão na ancestralidade, mas presos a um paradigma temporal-his­

melhor, talvez, recusar-se à dança e aos cânticos mudos do que abandonar à tórico, “não como dualidades, mas como metamorfose” - PINHO, 2021);

própria fome - é também necessário saber-se para saber se há fome e muita seria interessante pensar a partir de uma experiência narrativa de terreiro

gente perde-se tentando se segurar em qualquer pequeno bote, só porque minha?

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OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Esta escrita, como todas as outras, se faz com o corpo. Se já entende­ como difíceis e até mesmo sinuosas, isto é o que eu tenho a oferecer neste
mos que dança é discurso, assim como a capoeira e uma roda de samba são momento. Este é apenas um texto sobre um livro que, depois de ter chegado
enunciações de saberes que, por vezes, habitam algum mistério, mas nem até aqui, você, assim como eu, apenas uma leitora desta obra, sabe que Cati­
por isso são menos legíveis, o texto, este fazer sobre o qual muitas e muitos veiro muda as paisagens teóricas e críticas não apenas das Ciências Sociais e
de nós desenhamos a nossa vida, é um fazer do corpo. da Antropologia, mas, com vinculações na tradição do Pensamento Radical
O que quero aqui, então, é pensar sobre a negação veemente à cisão Negro, do “african-american studies” ou até mesmo do que propõe Fred
estrutural que ainda se impõe por meio da exigência, da premissa ilusória, Moten, os “black studies”, aponta ruas, viadutos e avenidas (e não apenas
de uma distinção entre corpo e mente ou entre corpo e espírito ou, ainda, saídas, como cantou Itamar Assumpção citando um poema de Paulo Le-
entre mente e espírito. O que quero aqui é reencarnar a palavra, não apenas minski) para uma mirada indisciplinada sobre os temas que se propõe.
porque eu assim deseje, mas porque assim são as coisas e assim as percebe­
mos: nós, comunidades negras.
A inflexão que, talvez, traga algo de inédito neste momento, embora o
ineditismo não seja exatamente uma característica valorada por mim como
sendo imprescindível para a construção de um trabalho, é reivindicar, por
assim dizer, o corpo como instrumento complexo para a escrita e para a
produção intelectual que se dá por meio da palavra. Não apenas da pala­
vra, é óbvio. Mas me parece que já nos aproximamos de um entendimento
maior quanto ao fato de que o corpo é inteligente, mas parece que ainda não
temos tantas certezas assim quando dizemos que um poema, assim como o
livro de Osmundo Pinho e este texto, são feitos com o corpo, pelo corpo. O
corpo que também aparece nas obras artísticas pensadas por Pinho. Que são
obras que não estão lá para serem decifradas, com o desejo de exposição ou
revelação de um segredo.
Este posfácio, estabelecendo interlocuções com o livro Cativeiro, não
é também o oferecimento de uma conclusão ou um receituário, muito me­
nos de uma prescrição, mas a tentativa de pensar um pouco sobre o que
senti-pensei quando li o livro, tentando ir um pouco além. Jogando com
o tempo, com a própria ideia deste gênero textual, o posfácio. Com o que
sei e com o que sei pouco e com o que nada sei, mas estou aprendendo.
Ou desaprendendo. Muito embora as aproximações possam ter sido vistas

262 263
CATIVEIRO

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2008. to be. (...) Lookfor me in the whirlwind”. (MARCUS GARVEY, “First Message to the Negros
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cana, n° 36, La voz dei otro: Testimonio, subalternidad y verdad narrativa, 1992, p. 211-232. man, the humiliation of the White man, and the fact that he applied to Europe colonialist pro-
cedures which until then had been reserved exclusively for the Arabs of Algeria, the coolies of
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vista Performatus.
iv“Laexistência de la tortura como instituicion financeira de la índia britânica queda asi oficial­
mente admitida”. (MARX, 1964, p. 183)

v“The de-colonial turn includes the definitive entry of the enslaved and colonized subjectivities
into the realm of thought at previously unknown institutional leveis”. (MALDONADO-TOR-
RES, 2008, p. 8)

vi“Theorizes the structural relation between Blackness and Humanity as an irreconcilable en-
counter, an antagonism. One cannot know Blackness as distinct from slavery, for there is no
Black temporality which is antecedent to the temporality of the Black slave”. (WILDERSON,
2018, p. 27)

Vli“The black therefore does not symbolize crime and licentious sexuality in an anti-black
world. The black is crime and licentious sexuality, bestiality and all the arrays of social patho-
logies”. (GORDON, 1999, p. 79)
viii

“My spirit is a pestilential city,


With misery triumphant everywhere,
Glutted with baffled hopes and lost to pity;
Strange agonies make quiet lodgment there.
Its bursting sewers ooze up from below,
And spread their loathsome substance through its lanes,
Flooding all areas with their evil flow,
And blocking all the motion of its veins.

290 291
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

Its life is sealed to love or hope or pity; wanted a Malcom Art! One that was in itself an example of Malcom X's call for Black Self-De-
My spirit is a pestilential city”. termination, Self-Respect and Self-Defense plus W. E. B. DuBois's true Self-Consciousness”.
(AMIRI BARAKA, EMORY DOUGLAS: “A ‘Good Brothef, a ‘Bad Artist’”, 2007)
(MCKAY, 1995, p. 294)
xxi“The knowledge that the black position is indeed a position, not an identity, and that its
ix
constituent elements are coterminous with and inextricably bound to the constituent elements
“We have here the whole range from overall negation to singular and specific recognition. of social death - which is to say that for Blackness there is no narrative moment prior to sla-
It is precisely this fragmented and bloody history that we must sketch on the levei of cultural very”. (WILDERSON, 2010, 27)
anthropology”. (FRANTZ FANON, “Racism and Culture”, 1956)
x “In Salvador, Bahia, the police’s deadly violence inscribes race into space and, in doing so, ^"“Hay muchos indicios de que, a diferencia de lo que conocemos de las religiones mono-
produces the city’s outskirts as a land in which the state’s right to kill is given”. (SOUZA, 2017, teístas, estos dioses dificilmente existan independientemente de sus imágenes, que podían
p. 34) encontrarse en códices o esculturas o que podían ser personificaciones em rituales y danzas.
Por eso no son re-presentaciones las imágenes son los dioses”. (NEURATH, 2013, p. 51)
xi “The history of blackness is testament of the fact that objects can do resist”. (2003, p. l)
xxiii
“Before the body there is the flesh, that zero degree of social conceptualization”. (SPIL­
xii“Zero degree of social conceptualization that does not escape concealment under the brush LERS, 1987, p. 67)
of discourse, or the reflexes of iconography”. (SPILLERS, 1987, p. 67) “The libidinal economy of modernity and its attendant cartography (...) achieves its struc-
xiii “La
ture of unconscious exchange in a way of a thanatology in which Blackness overdetermines
corporalidad es el nivel decisivo de las relaciones de poder”. (QUIJANO, 2007, p. 124) the embodiment of impossibility, incoherence and incapacity”. (WILDERSON, 2011, p. 44)
xiv“The White colonizer constructed a powerful inside force as colonized men were co-opted
into patriarchal roles”. (LUGONES, 2007, p. 200) “It is locked in the serious, material values of the real”. (GORDON, 1999, p. 79)

xv “Una vez que los tales son vencidos en la guerra, se les ve como perpetuos sirvientes o es- “It should be clear that political theories that separate Society into public political and pri-
clavos, y sus cuerpos vienen a formar parte de una economia de abuso sexual, explotación y vate civil societies oífers no resource for blacks”. (GORDON, 1999, p. 82)
control”. (MALDONADO-TORREs, 2007, p. 139)
xxvii
“Our task is the self-defense of the surround in the face of repeated, targeted dispossessions
“It is clear that the forms of sexual exchange brought about by colonialism were themselves
through the settlefs armed incursions”. (HARNEY & MOTEN, 2013, p. 17)
both mirrors and consequences of the modes of economic exchange constituted the basis of
colonial relations”. (YOUNG, 2002, p. 181) xxviii
“Spaces where cultures meet, clash, and grapple with each other, often in contexts of highly
xvii
“Black subjectivity is a crossroads where vertigoes meet, the intersection of performative asymmetrical relations of power such as colonialism, slavery, or their aftermaths as they are
and structural violence”. (WILDERSON, 2011, p. l) lived in many parts of the world today”. (PRATT, 1991, p. 2)

xviii
“The dialogue between social actors, roles, physical locations, social scripts, gestures, beha- xxix “Merged or infiltrated to varying degrees with indigenous idioms to create self-represen-
viors and attitudes creates racial subjectivities informed by hegemonic epistemologies of race. tations intended to intervene in metropolitan modes of understanding”. (PRATT, 1991, p. 3)
All of these emerge from tense meetings that are filled with uneven power distributions and
informed by historical legacies, social identities and spatial landscapes”. (SMITH, 2019, p. 3) ™ We may imagine fugitivity as conceptualizing the lived experience of blackness as constant
practice of refusal to accept and to remain within the ostracized position of social death”.
xix“That black life is not social life in the universe formed by the codes of state and civil society, (GLEICH, 2017, p. 6)
of citizen and subject, of nation and culture, of people and place, of history and heritage, of
all the things that colonial society has in common with the colonized, of all that capital has in “In this way, fugitivity might be understood as running up against the absolute and imper-
common with labor—the modern world system. Black life is not lived in the world that the meable border between social death and civil society that nonetheless remains intact”. (GLEI­
world lives in, but it is lived underground, in outer space”. (SEXTON, 2011, p. 28) CH, 2017, p. 8)

“We wanted a revolutionaiy art, not just skin flicks.We were Malcom's Children, and we xxxii “If every signifier had an invariant relationship to a signified, formal innovation would be

292 293
OSMUNDO PINHO CATIVEIRO

impossible. This is to say that when art takes us out of the ordinary by interrupting our horizon xl“The African American as captive body, materially and metaphorically, is public and on the
of expectations, what we are exposed to is a glimpse of the invisible rules that ordinarily work block; to be bid upon in a circuit of linguistic, discursive, and axiological exchange outside the
to fix the polysemic surplus which gives art the potential to introduce something different and control of its own agency”.
new into the world”. (MERCER, 2016, p. 10)
xli“Transatlantic slavery was and is the disaster. The disaster of Black subjection was and is
xxxiii
planned; terror is disaster and “terror has a history (...) The history of capital inextricable from
“If those historie gentlemen came back today the history of Atlantic chattel slavery. The disaster and the writing of disaster are never present,
Jefferson, Washington and Lincoln are always present”.(SHARPE, 2016, p. 5)
And Walter Cronkite put them on channel 2
xlii “Site of irresistible sensuality for the captor”. (SPILLERS APUD WARREN, 2015, p. 9)
To find out what they were thinkin’
lxiii
“You don’t voluntarily immigrate into a community that is supposedly segregated, and
Tm sure they’d say then claim the struggles of people who have been here chained to chattel slavery for multiple
Thanks for quoting us so much generations”. (ADJEI-KONTOH, 2019, p. l)
But we don’t want to take a bow
xliv“ADOS—which stands for American Descendants of Slavery—seeks to reclaim/restore the
Enough with the quoting criticai national character of the African American identity and experience, one grounded in
Put those words into action our group’s unique lineage, and which is central to our continuing struggle for social and eco-
And we mean action now nomic justice in the United States.(...) #ADOS #AmericanDOS sets out to shift the dialogue
around the identity of what it is to be African American in an effort to move the discussion
Now is the moment from melanin, and properly center the discussion around lineage”. (https://adosl01.com/)
Now is the moment
Come on, we’ve put it o ff long enough xlvBlackness - the extended movement of a specific upheavel, an ongoing irruption that ar-
ranges every line - is a strain that pressures the assumption of equivalence of personhood and
(...) subjectivity”. (MOTEN, 2003, p. 01)
Now is the time
Now is the time”. xlvi “There is no access to the subaltern consciousness outside dominants representations or
300117 w
elite documents” (HARTMAN, 1997, p. 10)
What if the cultural traffic in images on the black men as phobic object - beaten, disfigu-
red, lynched - is trauma enough”. (2000, p. 13) xmí“Barracoon, the hollow of the slave ship, the pest house, the brothel, the cage, the surgeon’s
laboratory, the prison, the cane-field, the kitchen, the master’s bedroom”. (HARTMAN, 2008,
xxxv “An image of White identity emerges from a spectacle of annihilation”. (2000, p. 6) p. D
xlviii
“A death sentence, a tomb, a display of the violated body, an inventory of property, a me­
“The significance of the performative lies not in the ability of overcome those condition or dicai treatise on gonorrhea, a few lines about a whore’s life, an asterisk in the grand narrative
provide remedy but in creating a context for the collective enunciation of the pain”. (1997, p. of history”. (HARTMAN, 2008, p. 2)
52)
xHx have men-stealers for ministers, women-whippers for missionaries, and cradle-plun-
xxxvu derers for church members. The man who wields the blood clotted whip duringthe week fills
“Black suffering is illegible and incommunicable because it lacks a proper grammar of the pulpit on Sunday and claims to be a minister of the meek and lowly Jesus. The man who
enunciation. Suffering belongs to the human; it is an inescapable feature of the ‘human condi­ robs me of my earnings at the end of each week meets me as a class-leader on Sunday morning,
tion.’ The “violation of the flesh,” however, is a murderous practice without a ‘proper name’ or to show me the way of life, and the path of salvation. He who sells my sister, for purposes of
prostitution, stands forth as the pious advocate of purity. He who proclaims it a religious duty
any name that is recognizable within the Symbolic”. (WARREN, 2015, p. 10) to read the Bible denies me the right of learning to read the name or the God who made me. He
xxxv,u
who is the religious advocate of marriage robs whole millions of its sacred influence and leaves
“Can beauty provide an antidote to dishonor, and love a way to “exhume buried cries” and them to the ravages of wholesale pollution. The warm defender of the sacredness of the family
reanimate the dead?” (SAIDIYA HARTMAN, “Venus in Two Acts”, 2008) relation is the same that scatters whole families, separating husbands and wiyes, parents and
children, sisters and brothers, leaving the hut vacant, and the hearth desolate”. (DOUGLASS,
“This terrible spectacle dramatizes the origin of the subject”. (HARTMAN, 1997, p. 3) s.d., p. 43)

294 295
0SMUND0 PINHO CATIVEIRO

1 “That part of África, known by the name of Guinea, to which the trade for slaves is carried kiii“I suggest that black New Orleanians are often figured within two seemingly competing
on, extends along the coast above 3400 miles, from the Senegal to Angola, and includes a va- frames of racialized spectacle that impact social fields of opportunity and the broader vitality
riety of kingdoms. Of these the most considerable is the kingdom of Benin, both as to extent of black working-class New Orleans. The first of these is predicated on commercially assimila-
and wealth, the richness and cultivation of the soil, the power of its king, and the number and ble and therefore “good” black subjects as instrumental facets of New Orleans’ tourist-driven
warlike disposition of the inhabitants. It is situated nearly under the line, and extends along cultural industry; the other tied to those deemed unassimilable and hence deviantly “bad” and
the coast about 170 miles, but runs back into the interior part of África to a distance hitherto dispensable”. (PERRY, 2015, p. 95)
I believe unexplored by any traveler; and seems only terminated at length by the empire of
Abyssinia, near 1500 miles frota its beginning. This kingdom is divided into many provinces lxiv
“The streets, as urban ‘frontier space’, are the natural environment for manifestations of the
or districts: in one of the most remote and fertile of which, called Eboe, I was born, in the year Indian spirits”. (WEHMEYER, 2010, p. 434)
1745, in a charming fruitful vale, named Essaka”. (EQUIANO, S.d., p. l)
lxv“Every four days, she descended from the sky and invaded the Ojalfé market; She killed, she
II“This dialectical overcoming is the central mechanism of liberal historiography, in which the and her people, as many people as she could, with the help of large staffs. Most of the inhabi­
violent human negation of colonial slavery is both acknowledged and assimilated in a narrati- tants of ífé were soon massacred. The survivors then turned to the orixás, invoking Lafogido
ve that overcomes the violence in a consolidation of the polity . (LOWE, 2009, p. 105) (then called Oni), Oduá, Orixalá, Ijugbe, Alass and all other existing orixás, so that they would
come to save them. But the orixás could do nothing against death”. (BASCOM, in Braga, 1992,
Ui The intercessionary act as speaking in or by the name of others emerges in the inability of the p. 106)
narrator to participate in the market as a figure who, in his own name, can move himself out
lxvi“In other words, drama induce and contain reflexive process and generate cultural frames
of slavery into freedom” . (YOUNGBLOOD, 2013, p. 418)
in which reflexivity can find a legitimate place”. (TURNER, 1982, p. 92)
1,11“Let us put a finer point on it: violence towards the black body is the precondition for the
existence of Gramsci s single entity ‘the modern bourgeois-state6 with its divided apparatus, lxv"“Force of resistance or objection that is always already in excess of the limits of subjection/
political society and civil society. Tnis is to say violence against black people is ontological and subjectivity”. (MOTEN, 2003: 242)
gratuitous as opposed to merely ideological and contingent”. (WILDERSON, 2003, p. 229)
|XV1“ “This is what objection is, what performance is—an internai complication of the object
Uv “The worth of a soul cannot be told”. (EQUIANO, s.d., p. 97) that is, at the same time, her withdrawal into the externai world. Such withdrawal makes pos-
sible communication between seemingly unbridgeable spaces, times, and persons”. (MOTEN,
lv“The economy, or distribution and arrangement, of desire and identification, of energies, 2003, p. 253)
concerns, points of attention, anxieties, pleasures, appetites, revulsions, and phobias—the
whole structure of psychic and emotional life—that are unconscious and invisible but that
have a visible effect on the world, including the money economy”. (EDITOR’S, 2017, p. 7)
lvi
“What is a Black? A subject? An object? A former slave? A Slave?” (WILDERSON, 2010, p.
11)
[vii
“Lm sometime misunderstood to be saying that I have left Marxism. I 'm sometimes misun-
derstood to be saying that the cognitive map that Marx gives us should be thrown out. That's
not what Lm saying. How do you throw out a cognitive map that explains political economy
so well”? (WILDERSON, 2017, p. 17)
Mn «q-^e vioience which turns a body into flesh, ripped apart literally and imaginatively des-
troys the possibility of ontology because it positions the black in an indefinite and indetermi-
nately horrifying and open vulnerability, an object made available (which s to say fungible) for
any subject”. (WILDERSON, 2010, p. 38)
lix“Wearing an Indian suit is a form of embodiment that often facilitates entering “into the
spirit.” Drums, chants, tambourines, and cadenced rhythms are all associated with Mardi Gras
Indian performance, which is reminiscent of spiritual, shamanic, and trancelike states from
other traditions. “Masking”permits the expression of dissent”. (EHRENREICH, 2004, p. 117)
lx “Purposefully emphasize an African connection, even if such connection cannot be proven
historically”. (BECKER, 2013, p. 40)
1x1“Lil Walter Cook, Big Chief of the tribe, disputes this claim, arguing that oral histories pas-
sed down in his family trace their involvement in the masking tradition to at least the l830s”.
(BREUNLIN, 2009, p. 66)
“Re-interpret the American culture as a series of political boundaries both marked and con-
tested by performances”. (ROACH, 1992, p. 462)

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www.editorasegundoselo.com.br

Fonte Adobe Devnagari 12


Papel Pólen 80g
202210280400440

Fotografia: Éder Boaventura

Osmundo Pinho é Doutor em Ciências Sociais


(UNICAMP, 2003), bolsista de produtividade do
CNPq e professor na UFRB em Cachoeira. Atua na
graduação e na Pós-Graduação em Ciências Sociais
da UFRB e no Programa de Pós-Graduação em Estu­
dos Étnicos e Africanos da UFBA. É pesquisador as­
sociado do Instituto de Estudos da África da UFPE e
coordenador do Grupo Territorialidade, Violência e
Patrimônio no Recôncavo da Bahia (UFRB/CNPq).

um
livro
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