1. O documento discute a importância da literatura oral e da poesia como expressões da cultura e identidade negras no Brasil. 2. A poesia negra afirma a negritude e a experiência do povo negro, revertendo estereótipos e celebrando a beleza da comunidade negra. 3. Roger Bastide defende a "intuição poética" como método para compreender as realidades sociais de um povo, incluindo suas dimensões inconscientes.
1. O documento discute a importância da literatura oral e da poesia como expressões da cultura e identidade negras no Brasil. 2. A poesia negra afirma a negritude e a experiência do povo negro, revertendo estereótipos e celebrando a beleza da comunidade negra. 3. Roger Bastide defende a "intuição poética" como método para compreender as realidades sociais de um povo, incluindo suas dimensões inconscientes.
1. O documento discute a importância da literatura oral e da poesia como expressões da cultura e identidade negras no Brasil. 2. A poesia negra afirma a negritude e a experiência do povo negro, revertendo estereótipos e celebrando a beleza da comunidade negra. 3. Roger Bastide defende a "intuição poética" como método para compreender as realidades sociais de um povo, incluindo suas dimensões inconscientes.
1. O documento discute a importância da literatura oral e da poesia como expressões da cultura e identidade negras no Brasil. 2. A poesia negra afirma a negritude e a experiência do povo negro, revertendo estereótipos e celebrando a beleza da comunidade negra. 3. Roger Bastide defende a "intuição poética" como método para compreender as realidades sociais de um povo, incluindo suas dimensões inconscientes.
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Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16
Ax, Malungo! Roberto Zwetsch 1 Ya regressem los tiempos muy antiguos, la unidad recobrada, la recorteiliacin dei en, dei oro y dei rbol iliacin dei en, dei oro y dei rbol in dei en, dei oro y dei rbol 2 Quando iniciei a presente refexo, deparei com uma srie de alternativas. Como no poderia abranger tudo, tive de me decidir por uma delas. As alternativas eram as seguintes: literatura oral, msica, poesia escrita. Paulo Colina, na introduo de x, ntologia contempornea da poesia negra brasileira, diz que: Quando nossos ancestrais sofreram a tentativa de esterilizao de razes, para que se sujeitas- sem ao trabalho escravo, nossas Histrias/Estrias foram mantidas boca-a-boca. E, de fogueiras a bocas-de-fogo e mesas, perduram at hoje, questionando a verdade encapuzada da histria estabelecida. 3 A cultura do povo negro , em grande medida, uma cultura da oralidade. Uma pesquisa sria deveria, portanto, iniciar por a. Mas, concretamente, isto demanda- ria muito mais tempo e outros instrumentos que eu no me sentia preparado para utilizar. S para que se tenha uma dimenso do que estou dizendo, vale transcrever o que diz Lus de Cmara Cascudo: Cust informa que os africanos falam quinhentos e noventa e um idiomas e dialetos. Os bantos ficam com 168. Impossvel calcular a riqueza da literatura oral negra, infinito de suas variantes. Se pensarmos na inextinguvel tendncia para o canto e na seduo irresistvel do africano para a eloqncia, a mania dos discursos, a conversa sem fim, o prestgio dos contadores de estrias e cantores populares, profissionais, compreendemos como o problema do folclore africano ab- sorver um sculo de sistemtica e ser um esplendor no seu conhecimento total. 4 Se Cmara Cascudo entrev tamanha riqueza e esplendor no que ele chama de folclore africano, pode-se imaginar a riqueza teolgica ou o verdadeiro tesouro escondido no campo da oralidade negra que desafa a nossa inteligncia e argcia hermenutica. Porm, diz mais o mestre: dada a predileo dos africanos pelo con- vvio social, pela sua intensa sociabilidade, suas religies, via de regra, transmi- tiram-se oralmente, pelo ensino auditivo, pela orelha, pelos babalas, babalorixs e pais-de-terreiro (sic), machos, fmeas de respeitosa cincia velha na Bahia e Rio 1 Este artigo apareceu originariamente em Silva, Antonio Ap. Existe um pensar teolgico negro? S. Paulo: Paulinas, 1998. O autor pastor Luterano. Leopold Sedar Senghor, Poemas de La Negritud. Argentina, Emec, 1964, p. 45. Paulo Colina, (org.), Ax Antologia contempornea da poesia negra brasileira. So Paulo, Global, 198, p. 7. 4 Luis de Cmara Cascudo, Literatura oral do Brasil. a ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio/MEC, 1978, p.15. 46 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 de Janeiro, como no catimb nordestino e pajelana amaznica... 5 Quer dizer, o telogo que busca a experincia negra de Deus, necessariamente, deve levar em considerao esta caracterstica essencial da vida do povo negro. Cmara Cascu- do, no seu interesse pelo folclore, pela cultura popular, critica uma certa pesquisa etnogrfca por ter-se reduzido ao estudo do aspecto religioso do negro e sua con- seqente e excessiva valorizao. Poderamos objetar que, afnal, isto se deve no tanto aos pesquisadores, mas ao prprio povo negro que no distingue, de forma estanque, vida e religio, folclore e expresso de f. Na sua experincia cotidiana, expressa de modo intrincado a sua alegria e a sua f, numa simbiose que chega a ser chocante para espritos por demais ocidentais, cartesianos... Fique, pois, o re- gistro da importncia da literatura oral. Uma segunda alternativa seria procurar na msica, aliada poesia, respostas s perguntas: Quantos so os modos musicais que brotaram da comunidade negra? Desde onde se pode dizer que comeou a msica negra no Brasil? Desde a chega- da do primeiro escravo? O samba, o pagode, o maracatu, a congada e tantos outros tipos de msica negra descortinam um enorme campo de pesquisa. Sabedor dessa importncia, mas limitado como afrmei acima, tive de deixar de lado esta alterna- tiva. Indo por este caminho, um mundo se abriria minha frente. A terceira e ltima das alternativas me pareceu a mais acessvel e adequada aos objetivos deste trabalho. J conhecia alguns poetas negros. Alm disso, entendo que, na poesia, o inconsciente aparece com mais fora do que noutras formas literrias. E era justamente na fronteira entre o consciente e o inconsciente que eu esperava encontrar alguma coisa nova. No foi, portanto, difcil optar por este caminho. E o caminho, surpreendentemente, foi-se mostrando fecundo. Florestan Fernan- des j notara que a poesia, o teatro e a religio permitem chegar ao homem negro, s suas ambies e frustraes mais profundas, e ao que h de irremedivel e de irredutvel no empobrecimento humano e cultural de uma sociedade que conver- te a democracia racial em um falso idealismo. 6 Num mundo que negou o negro como ser humano, este permaneceu sempre condenado a no ser. Terrvel situao que obrigava o negro a se autonegar para se afrmar. F. Fernandes chama isto de uma terrvel provao. Se os negros durante muito tempo sofreram um processo de padronizao e uniformizao que os fazia negar as razes, verdadeiro processo de branqueamento, interessa aqui saber e detectar por que algo to avassalador no conseguiu se impor absolutamente. claro que um processo de mudana cultural ocorreu. inegvel. Mas, de onde vem esta resistncia negra que hoje desponta cada dia com mais fora por todo o pas? Onde este povo negro foi encontrar a sei- va que nutre a sua reafrmao como humanidade outra, diferente, bela e livre aos seus prprios olhos? Que os poetas nos ajudem a encontrar as razes de tamanha e persistente ousadia. 1. A poesia como afirmao da negritude Falando em poesia como expresso das realidades da Comunidade Negra, vem- me mente a fgura de Roger Bastide. Em fevereiro de 1946, Roger Bastide escre- Roger Bastide. Em fevereiro de 1946, Roger Bastide escre- Bastide. Em fevereiro de 1946, Roger Bastide escre- Roger Bastide escre- escre- veu um artigo, intitulado A propsito da poesia como mtodo sociolgico, publica- do pelo Dirio de So Paulo, em duas partes. 7 Nele, Bastide estabelece um dilogo entre o crtico (pensador cartesiano) e o socilogo, no qual revela a sua postura 5 Idem, p. 157. 6 Florestan Fernandes, O negro no mundo dos brancos, So Paulo, Difuso Europeia do Livro, 197, p. 1 e 15. 7 Roger Bastides, Sociologia, So Paulo, tica, 198, pp. 81-87. 47 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 cientfca e a sua proposta metodolgica nova. Neste artigo, ele prope a intuio potica como forma de se aproximar da experincia social de um povo. Trata-se, para o socilogo, de no se colocar fora da experincia social, mas de viv-la, se no totalmente, transformando-se em operrio e patro, empregado de banco e malandro, entregador de loja e missionrio, aproximando-se destas realidades pelo menos por um esforo de simpatia... Trata-se de uma transfuso de alma. Precisa- mos nos transformar naquilo que estudamos multido, massa, classe ou casta. 8 Isto necessrio porque as sociedades no so ajuntamentos mecnicos, elas tm um sentido, um signifcado que s se compreende apelando para um ato de amor. preciso, continua Bastide, transcender nossa personalidade para aderir alma que est ligada ao fato a ser estudado. Superando nossos precon- ceitos burgueses, de funcionrios ou de proletrios, Bastide, ento, acredita que s a poesia capaz de nos fazer sair dessa sociologia do saber... Pois, se o conhecimento uma reconstruo do real, precisamos estar muito atentos para o fato de que o real resiste, s vezes, a se submeter s leis do esprito. Cabe ao pesquisador, neste caso, procurar compreender e interpretar essa parte irracio- nal que, no fundo, o inconsciente coletivo de um povo. Bastide conclui que no h outro meio para chegar a esta regio profunda, seno atravs da expres- so potica. Pois, na prpria sociedade, h um elemento de poesia, sendo a expresso potica um esforo de fdelidade em relao prpria verdade das coisas. Foi dessa forma que ele pde entender o candombl da Bahia, pois s assim chegou a alcanar uma fdelidade mais precisa. Gostaramos de acrescentar ainda um ponto. Segundo Zil Bernd, h uma pre- dominncia da poesia sobre o conto e sobre o romance, na literatura negra do Brasil. 9 Isto se deve ao fato de que ainda no se deram as condies de maturao para o romance negro, como o resgate de sua participao na Histria do Brasil e a defnio de sua prpria identidade. Para ela, o que temos um discurso potico que revela um processo de transformao da conscincia negra. Buscando assumir- se como sujeito da enunciao, o negro liberta-se da imagem quase sempre estere- otipada com que foi apresentado desde sua chegada ao Novo Mundo. 10 Entre as caractersticas dessa poesia, a principal a afrmao do sujeito negro. A autora ressalta um dado importante para o nosso estudo: Na grande maioria dos casos o eu individual funde-se no ns coletivo, evidenciando um empenho em delinear uma identidade comunitria... Como no seguinte exemplo: E cravo, finco fundo o eu que escapou, se somou e deu ns. 11 Ao me defrontar com a poesia feita por autores negros, percebi que, por trs da poesia, h uma comunidade negra que se expressa de diversas maneiras, uma das quais esta poesia em que os sujeitos negros falam orgulhosamente de si prprios. Ancorados em suas comunidades, procuram reverter tudo. O que era negro abjeto, passa a ser negro belo, expresso da identidade reconquistada e assumida em toda a sua dignidade. Como nestes versos de Geni Mariano Guimares: 8 Idem, p. 8. 9 Zil Bernd, Introduo literatura negra, So Paulo, Brasiliense, 1988, p. 75. 10 Idem, p. 76. 11 Idem, p. 78. 48 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 Ser Negra Na integridade Calma e morna dos dias. Ser negra De carapinha De dorso brilhante, De ps soltos nos caminhos. Ser negra De negras mos, De negras mamas, De negra alma. ... Negra Puro afro sangue negro, Saindo aos jorros Por todos os poros. 1 Poderamos buscar na literatura muitos outros exemplos em que a poesia uti- lizada como expresso da fora e resistncia do negro. Entretanto, antes de con- tinuar com este tema da nossa refexo, quero fazer presente uma outra realidade que considero importante. Trata-se do discurso teolgico. Se a poesia expressa a vitalidade presente em cada negro e na Comunidade Negra, a refexo teolgica mostra as referncias fundantes desta vitalidade. Portanto, nas pginas seguintes, queremos explicitar alguns aspectos do pensamento teolgico afro, ou, mais pro- priamente, da Teologia Negra. 2. Teologia e negritude Ao relacionar Teologia e Negritude, foroso o surgimento de algumas questes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a questo que a Teologia Negra se coloca a seguinte: o que tem o evangelho a ver com a luta dos negros pela libertao?, 1
James Cone, renomado telogo negro, entende que tal teologia s pode surgir de uma comunidade oprimida, pois s ela levanta este tipo de preocupao. A Comunidade Negra precisa entender a razo do seu sofrimento, o seu lugar na histria, pois nela que se manifesta a sua salvao. Considerando sua realida- de, o telogo negro vai em busca das expresses de f e de vida do seu povo, mas parte de uma premissa que a prpria experincia lhe coloca, de maneira drstica: quando o senhor e o escravo falavam sobre Deus, possivelmente eles no podiam estar se referindo mesma realidade. Quando o escravo falava sobre Jesus Cristo, ele falava abertamente da profundidade do sofrimento, do desespero e da dor.... 14
Quando escuta os sermes, o negro se d conta de que a Palavra mais do que palavras sobre Deus. A Palavra de Deus um acontecimento potico, evocao de uma realidade A Palavra de Deus um acontecimento potico, evocao de uma realidade indescritvel na vida de um povo. 15 Considerando a realidade do povo negro em seu pas, Cone afrma que a situao histrica da escravido pode ter forado o negro a prestar culto com e como o senhor branco, mas de muitas maneiras sutis, 1 Cit. por Oswaldo de Camargo, in O negro escrito. Apontamentos sobre a presena do negro na literatura brasileira, So Paulo, Imprensa Oficial do Estado, Secretaria do Estado da Cultura, 1987, p. 16. 1 James H. Cone, O Deus dos oprimidos, So Paulo, Paulinas, 1985, p. 15. 14 Idem, p. 19. 15 Idem, p. 7. 49 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 o escravo transcendia as limitaes da servido e afrmava um sistema de valores religiosos que diferia do seu senhor. 16 Os cnticos negros, nos Estados Unidos, revelam que a religio dos negros no fca limitada ao sentido literal das palavras. Quando convenientemente cantados, segundo o ritmo prprio e a tonalidade certa, eles despertam uma verdadeira paixo na Comunidade Negra. Diz Cone: O gemi- do, o grito e as respostas coletivas orao, ao cntico e ao sermo so projees artsticas da dor e da alegria experimentadas na luta pela liberdade. Faz parte da habilidade do povo negro expressar o lado trgico da existncia social e ao mesmo tempo, expressam a recusa de serem aprisionados por suas limitaes. 17 Muito provavelmente, sem discordar do seu irmo black, o telogo negro no Brasil falaria de outro jeito. Pois aqui no Brasil, as religies africanas e outros com- ponentes tiveram um peso muito maior na manuteno da identidade negra do que na Amrica do Norte. O trabalho do telogo negro no Brasil eminentemente crtico quanto pastoral da Igreja em relao aos negros, como afrma Joo Ma- noel Lima Mira, num texto sobre a evangelizao no perodo Colonial. 18 Em sua opinio, a Igreja catlica foi por demais etnocntrica e no soube compreender e aceitar o universo religioso negro. Na pressa em evangelizar, imps uma forma de cristianismo que no passou de um verniz; uma crosta de gelo que o sol do tem- po haveria de derreter. 19 A sombra da Igreja crist, foresceram os cultos africanos que resistiram at hoje. com estas constataes que o telogo negro apela para a libertao da Igreja e a desafa a assumir a questo tnica negra, nica forma de se redimir das omisses do passado. Vemos, assim, que entre ns h que se considerar o tipo de colonialismo im- posto pelos portugueses e a forma de evangelizao empreendida pelo tradicional catolicismo ibrico. Avaliaes estimativas do conta de que os negros caados e feitos escravos na frica e, depois, transportados para o Brasil at 1850 somavam aproximadamente 4 milhes, enquanto outros milhes foram levados Amrica hispnica. Um grande nmero de negros morreu na travessia do Atlntico, dadas as condies de transporte nos infectos pores dos navios negreiros. Os negros constituram a mo-de-obra predominante que substituiu o indgena, e isto por quatro sculos da histria do Brasil. A dvida para com eles impagvel. Foram os negros os responsveis pela produo e gerao da riqueza dos senhores da terra e das minas. O trfco negreiro foi uma rentvel fonte de capitalizao em favor, sobretudo, dos pases dominantes, como a Inglaterra, por exemplo. 0 A escravido, como sistema econmico, no respeitou etnias, laos de paren- tesco, idade, sexo. Foi cruel. Os negros foram submetidos a um regime de trabalho forado, cujas seqelas permanecem at hoje. No surpreendem, portanto, os sui- cdios voluntrios praticados para fugir tortura, humilhao e, assim, voltar frica perdida. Este o contexto, resumidamente, no qual se deu a evangelizao dos negros no Brasil. Ela foi parte preponderante do projeto colonial, pois o lema era expandir a F e o imprio. A cristandade colonial foi um instrumento a servio desse projeto. Nele, os negros no tero qualquer especifcidade. Sero parte discriminada da 16 Idem, p. 9. 17 Idem, p. . 18 Joo Manuel Lima Mira, A evangelizao do negro no Perodo Colonial Brasileiro, So Paulo, Loyola, 198, p. 14. 19 Idem, p. 1. 0 Suely R. R. de Queiroz, Escravido negra no Brasil, So Paulo, tica, 1987, p. 14. 50 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 massa amorfa de fis e sero assimilados, revelia, na religio dos senhores. No houve escolha. Uma velha escrava conta que, aps a tortura no tronco, vinha o padre dar a bno. Ela prossegue: reza e cura no sabia nada, s dizia pr ns se cala, que era assim mesmo. Nosso Sinh tinha sofrido e nego tinha que sofre tambm pra chega no paraso... Ora criana, ns queria chega era na frica, onde tava o nosso passado e no no paraso que ns nem sabia o que era. Mas tinha que agenta. Agent at que aprendia a fica calado na frente dos sinh e fala: Seja louvado o Sinh Jesus Cristo, ouvi reza em lngua enrolada e bota pano fino na cabea. Inv se podia? Nosso santo era outro, no aquele. 1 Este depoimento eloqente expressa bem a difculdade do povo negro. Mau- ro Batista, telogo negro brasileiro, falecido recentemente, afrma que a Igreja catlica em razo de sua intolerncia, teve enorme difculdade para penetrar no mundo cultural-religioso da populao negra. 22 Esta difculdade foi uma constante na histria do negro no Brasil. S muito recentemente h sinais de abertura, principalmente depois das Conferncias de Medelln e Puebla, nas quais os bispos catlicos acolhem as afies dos pobres, a includos os negros. Mas tudo muito tmido ainda. Quanto s religies negras, fcaram at bem pouco tempo sujeitas perseguio sistemtica. Se houve certa tolerncia s danas dos negros no perodo Colonial, nunca deixou de existir a represso aos cultos, e, sobretudo aps o processo de romanizao da Igreja catlica no Brasil, a prtica do candombl, da macumba e de outros rituais se transformaram em caso de polcia. Como diz Joana dos Anjos, nas barbas do branco o Candombl sobreviveu e hoje se assume. Foi este o ins- trumento divino que Olorum concedeu a seu povo para que ele permanecesse de uma certa forma ligado s suas razes. 23 No protestantismo, a experincia no foi muito diferente. Nas Igrejas histricas, a ideologia da superioridade racial ou a ideologia pequeno-burguesa liberal predo- minaram durante muito tempo, afastando os negros dessas comunidades de f. S neste sculo, pode-se encontrar expressiva participao negra e a, de modo espe- cial, no pentecostalismo, ou seja, no brao popular do protestantismo no Brasil. A Comunidade Negra importante para a refexo teolgica, seja pela situao em que viveu no passado e vive no presente, seja pela sua expresso demogrfca. O Brasil, como se sabe, a segunda maior nao negra do mundo, com cerca de 70 milhes de negros. Segundo o telogo negro Antnio Aparecido da Silva, padre Toninho, o primeiro desafo para a teologia negra o lugar a partir do qual se faz teologia. Isto signifca que preciso descobrir o especfco da Comunidade Negra, sem o que se fca numa viso classista ou genrica que pouco ou nada acrescenta refexo teolgica. Um segundo desafo o necessrio enegrecimento da teologia e o conseqente enegrecimento do telogo. Pois este deve partir de situaes concretas em sua re- fexo, nas quais a opresso e o racismo so os problemas principais do cotidiano da comunidade negra. Mas preciso tambm admitir que esta comunidade o mais autntico smbolo dos sem-vez e sem-voz. 24 Padre Toninho defende que necessrio situar a cristologia a partir da experincia de sofrimento, escravido e 1 Cit. por Joana dos Anjos, in Ouvindo histrias na senzala, So Paulo, Paulinas, 1987. 22 Revista Tempo e Presena, jan-fev/88, n. 7, p. 16. 23 Joana dos Anjos, op. cit., p. 0. 24 Antnio Aparecido da Silva, Desafios teolgico-pastorais a partir da causa dos afro-brasileiros, in Inculturao e libertao, CNBB/CIMI, So Paulo, Paulinas, 1986, p. 181. 51 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 holocausto da Comunidade Negra. Ou, em outras palavras, patentear que Jesus negro, porque... assumiu a causa da vtima. 5 Uma nova refexo teolgica exige tambm uma nova leitura da Bblia. A Co- munidade Negra tem uma interpretao muito concreta das mensagens da Bblia. A esperana manifestada pelo Reino de Deus entendida como uma Utopia que requer ao em vista de uma nova sociedade, justa e fraterna. Esta vinculao estreita entre teologia e Comunidade Negra to importante, que seria um contra-senso pens-las como realidades separadas. Os povos negros da dispora brasileira e afro-americana viram rompidas as linhagens das aldeias africanas, viram suas famlias desmembradas, os casamentos difcultados nas fa- zendas, infames condies de vida e de trabalho; viram a enorme desproporo entre os sexos, j que por um bom tempo havia mais homens que mulheres. No obstante tudo, resistiram e conseguiram formar comunidades centradas no conv- vio, na solidariedade e na integrao social. 6 esta Comunidade Negra no exlio que se torna o locus da resistncia negra. dela que surge a esperana como possibilidade de libertao. E nela, portanto, que o telogo encontra as razes de uma f que move montanhas e derruba dos tronos os poderosos. Em princpio, tal comunidade no nem crist nem no-crist. simplesmente a Comunidade Negra. a ela que os negros cristos se referem e a ela que desejam servir com o que tm de melhor. Para exprimir o sofrimento e as lutas da Comunidade Negra, a teologia e a poesia se confundem numa s expresso. No so duas linguagens diversas. , na verda- de, o mesmo grito e anseio de libertao. 3. Poesia e povo negro J dissemos anteriormente que o povo negro ama a eloqncia, a conversa e as histrias que passam de boca em boca. no convvio social que os conhecimentos so disseminados e aprendidos, sobretudo no contato com os mais velhos, que so os verdadeiros mestres. Trata-se de uma experincia tradicional. surpreendente ver como tais valores resistem ao tempo e, ainda hoje, se fazem presentes. Zil Bernd nos informa que o surgimento da literatura negra est ligado com- preenso do conceito negro. Negro pode tanto remeter ofensa e humilhao, quanto pode ser assumido como expresso de orgulho. 7 Obviamente, da tica da negritude, o termo negro sempre expresso positiva. O discurso potico torna-se o lugar da criao do conceito de negritude e da tomada de conscincia de ser negro. 8 A poesia negra gera uma nova ideologia, necessria e libertadora, porque quer expressar a verdade da Comunidade Negra. Ela no se deixa aprisionar pelo discurso dominante, mas, ao contrrio, cobra um lugar na sociedade, o lugar prprio e digno para o negro. A literatura potica tem sido o veculo do protesto negro, como, por exemplo, na expresso de Carlos Assumpo: 5 Idem, p. 18. 6 Ronaldo Vainfas, Ideologia e escravido. Os letrados e a sociedade escravista no Brasil Colonial, Petrpolis, Vozes, 1986, p. 7. 7 Zil Bernd, op. cit., p. 96. 8 Idem, p. 97. 52 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 ... Meu irmo, fica sabendo Piedade no o que quero Piedade no me interessa Os fracos pedem piedade Eu quero coisa melhor Eu no quero mais viver No poro da sociedade No quero ser marginal Quero entrar em toda parte Quero ser bem recebido Basta de humilhaes Minha alma j est cansada Eu quero o sol que de todos Ou alcano tudo o que quero Ou gritarei a noite inteira Como gritam os vulces Como gritam os vendavais Como grita o mar E nem a morte ter fora Para me fazer calar! 9 A literatura potica negra est tambm de alguma forma presente nas formas religiosas. As religies negras, tradicionalmente, foram transmitidas por via oral. Atravs de estrias, contos, cantos e rituais, a Comunidade Negra assimilava e passava adiante a sua experincia do Sagrado. Quando um negro descia do tronco, as costas lanhadas e rubras de sangue pelas vergastadas do chicote do feitor, diz uma velha escrava que as mulheres passavam macela e cantavam baixinho, assim: Na aru ob naru oba (o que em portugus vem a ser: No outro lugar se ter paz). 0 Este povo negro, destitudo de tudo, preservou o seu canto. E o canto era tudo. Como dizia vov Consuelo, a nossa vida o canto. Com tamborim e afox, ataba- que e agog nossa vida canto. Ou vov Emlia, que contava assim a sua histria: Ns cantava em tudo. Era o modo que ns podia falar. Branco no entendia nossa lngua. Ns cantava e enrolava. O canto era nossa fora. Se ns no pudesse cantar era o pior que havia. O canto era comunho de ns. Se nascia um, ns cantava e oferecia ele a Olorum. 1 Os jesutas, talvez, tenham sido os nicos a entenderem a fora que vinha das cantorias e danas dos negros. Por isso mesmo eles as combatiam e depreciavam como culto aos dolos. Outros pensavam que, enquanto cantavam e danavam, os negros permaneciam submissos. 32 Creio que seja importante aludir a alguns outros aspectos da poesia negra, s suas formas, por exemplo. A poesia negra regida por algumas leis fundamentais que Zil Berad identifca como sendo 4: Primeiro: A emergncia de um eu enunciador que afora na poesia como eu- que-se-quer-negro. Vejamos um exemplo: 9 Cit. por Oswaldo de Camargo (org.), A razo da chama, Antologia de poetas negros brasileiros, So Paulo, GRD, 1986, p. 5. 0 Cit. por Joana dos Anjos, op. cit., p. . 1 Idem, p. 4. 32 Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 11. 53 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 Eu Com injustia Negro. Estupefato. Eu Eu De fato. Tentando ser eu mesmo Eu Negro de fato. Antnio Vieira 33 Segundo: A construo de uma epopia negra, cujo exemplo maior a recupe- rao da memria de Zumbi. 34
Exemplos temos no Canto dos Palmares, de Solano Solano Trindade, ou em Quilombos, de Jos Carlos Limeira, do qual seguem alguns versos: Negro correndo livre colhendo, plantando por l se Palmares ainda vivesse em Palmares queria ficar. 5 Terceiro: A reverso dos valores, na qual o que era negativo tornado positivo. 6
o que vemos na poesia titude, de Oswaldo de Camargo: ... S duro, negro, duro Como o poste em que mil vezes te chicotearam. S negro, negro, negro Maravilhosamente negro! 7 Quarto: Expressa uma nova ordem simblica na qual o mundo virado pelo avesso. 8
Um bom exemplo nos d Oliveira Silveira: E a noite foi nos guardando Em seu materno aconchego A noite placenta grande Como um continente negro. Ou nestes versos de Cuti (Luiz Silva): Parece que meus dentes que encerram o Verdadeiro sentido da paz. ... E que a noite traz uma rede de sonhos Para pescar esperanas que me faam cafun. 9 Quanto ao estilo, a poesia negra eminentemente popular, concreta e objetiva. H nela uma certa melodia que leva o corpo a balanar quando se declama ou se escuta. No falta tambm a ironia e o humor bem negros. Na poesia de cunho mais religioso, encontramos uma espcie de responso, ou seja, oraes curtas e repeti- tivas em forma de jaculatrias. Alis, uma das caractersticas da poesia negra mais popular a economia de versos e palavras, e, em contrapartida, uma profuso de repeties. 33 Cit. por Bernd, Zil, op. cit., p. 77. 34 Zil Bernd, op. cit., p. 80. 5 Cit. por Paulo Colina, Ax Antologia contempornea da poesia negra brasileira, S. Paulo, Global, 198, p. 41. 6 Zil Bernd, op. cit., p. 85. 7 Cadernos negros, n. 1, Ed. dos Autores, So Paulo, 1978, p. 144. 8 Zil Bernd, op. cit., pp. 89-90. 9 Cadernos negros, n. 1, Ed. dos Autores, So Paulo, 1978, p. 48. 54 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 Por ltimo, trata-se de uma poesia situada. Normalmente, recitada na roda de poesia ou na roda de canto e dana. Com acompanhamento de atabaques e ago- gs, quem sabe, o poeta negro devolve comunidade, artisticamente, o que dela recebeu como estmulo e vivncia. 4. Poesia negra e temas teolgicos Tobias Barreto, negro, pernambucano do Recife, pressentiu com muita viso os dilemas dos negros aps a Abolio. Ele sabia que se tratava de algo muito alm da mera questo do status jurdico do escravo: era uma questo de carter socioecon- mico. Mas interessante que ele expresse o problema numa linguagem teolgica: Dizem que o Cristo, o filho de Deus vivo... Veio ao mundo remir do cativeiro, E eu vejo o mundo ainda, to cativo! Se os reis so sempre os reis, se o povo ignaro No deixou de provar o duro freio, Da tirania e da misria o travo, ... Se o homem chora e continua escravo, De que foi que Jesus Salvar-nos veio? 40 Com fora e ironia, no fundo o poeta questiona a ordem escravocrata, que se utiliza do cristianismo para justifcar sua posio social. Tobias Barreto se utiliza do mesmo discurso dos senhores, s que o faz revertendo o sinal em favor do povo ignaro. Resta saber como este povo, escravo, se apropriou de Jesus para conseguir sua liberdade. Mas o grande poeta negro do sculo I, por sua ironia fna e popular, por sua I, por sua ironia fna e popular, por sua por sua ironia fna e popular, por sua coragem e argcia, Luis Gama (180-188). No famoso poema Quem sou eu?, Luis Gama (180-188). No famoso poema Quem sou eu?, Gama (180-188). No famoso poema Quem sou eu?, ele funda uma linha de indagao sobre a identidade do negro que ser retomada bem mais recentemente pelos poetas negros contemporneos. Utilizando a pardia como arma, ele revoga no imaginrio o sistema escravocrata e a reverncia clas- se dominante dos senhores de terra. No poema, baseado no epteto dado em tom jocoso aos negros bode , ele o devolve aos brancos, assim: ... Se negro sou, ou se bode Pouco importa. O que pode? Bodes h de toda casta, Pois a espcie muito vasta... ... Bodes negros, bodes brancos, E, sejamos todos francos, Uns plebeus, e outros nobres, Bodes ricos, bodes pobres, Deputados, senadores, Gentis-homens, vereadores; Belas damas emproadas, Frades, Bispos, Cardeais, Fanfarres imperiais, Gentes pobres, nobres gentes Em todos h meus parentes. Entre a brava militana Fulge e brilha alta bodana; 40 Cit. por Roger Bastide, Estudos afro-brasileiros, So Paulo, Perspectiva, 197, p. 4. 55 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 ... Rutilantes Generais, Capites de mar-e-guerra, Tudo marra, tudo berra. 41 este humor fno e sarcstico que comea a reverter o esquema tradicional da sociedade escravista. Ele vai destronando todas as elites e vai abolindo a desigual- dade social que, por certo, era a sua realidade presente. Por isto mesmo, a sua fora quase proftica aponta para uma humanidade comum porque, queiram ou no os senhores, tudo bodarrada. 42 Na busca pelos temas teolgicos relevantes, vamos, nos deixar seguir por esta pista da identidade negra. Mas ela no se revela sem mais. H outros temas que a precedem. o que veremos a seguir. 4.1. O martrio enquanto poesia e Teologia Segundo Oswaldo de Camargo, o negro escravo s aparece inteiro na literatura brasileira a partir de 180. Antes disso, ningum se lembrou do negro, nem como ente humano, nem como escravo. 43 Ele cita Lus Gama como o primeiro poeta a se assumir plenamente negro. Segundo Camargo, Lus Gama j afrmava na poca: os escravos tm o direito de se revoltarem e todo escravo que mata o senhor, seja em que circunstncia for, mata em legtima defesa. 44 Mas curioso que a Histria da Literatura Brasileira dedique o ttulo de Poeta dos Escravos a um branco, Castro Alves. Com Navio negreiro e Vozes dfrica, ele se tornou o poeta revolucionrio por excelncia do movimento abolicionista. Neles, pinta de forma dramtica os sofrimento dos negros, mas interessante que tambm a aparea a linguagem teolgica em forma de apelo a Deus: Senhor Deus dos desgraados! Dizei-me vs, Senhor Deus! Se eu deliro... ou se verdade Tanto horror perante os cus... Quem so estes desgraados, Que no encontram em vs, Mais que o rir calmo da turba Que excita a fria do algoz? 45 Zil Bernd, sem diminuir a importncia de Castro Alves, faz a seguinte crtica. Castro Alves fez um discurso sobre o negro sem nunca ter entrado na pele do negro para ser seu porta-voz. O negro foi, em sua poesia, uma temtica. Ele denunciou o martrio negro, sim. Mas a denncia da escravido como sistema foi Lus Gama quem a realizou. Porque Lus Gama era negro? bem provvel. Zil Bernd afrma que a fala de Lus Gama corresponde a uma fala transgressora da ordem instituda, enquanto Castro Alves representa a fala instituda, que se condi da sorte dos es- cravos, num tempo em que o trfco j fora abolido, mas que no chega realmente a implicar-se no processo da sua libertao. Esta a diferena. 46 41 Cit. por Oswaldo de Camargo, A razo da chama, Antologia de poetas negros brasileiros, So Paulo, GRD, 1986, p. 1. 42 Zil Bernd, op. cit., p. 5. 43 Oswaldo de Camargo, O negro escrito, So Paulo, 1987, p. . 44 Idem, p. 44. 45 Castro Alves, Antologia potica, a ed., Rio de Janeiro, Cia. JosAguilar, 1975, p. 148. 46 Zil Bernd, p. 57. 56 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 Mas o tema do martrio reaparece sempre de novo, e voltamos a encontr-lo com muita fora nos versos de Solano Trindade no seu Solano Trindade no seu Trindade no seu Canto dos Palmares: Eu canto aos Palmares Odiando opressores ... Fecham minha boca Mas deixam abertos os meus olhos Maltratam meu corpo Minha conscincia se purifica. ... Meu poema para meus irmos mortos. 47 4.2. Esperana: expresso potica e teolgica das lutas negras A esperana outro tema que emerge na poesia negra, que ao mesmo tempo expresso teolgica. Sedimentada a conscincia do martrio, do sofrimento, brota como for nova da primavera a esperana que fura o bloco monoltico da escravido. claro que esta esperana tem sua histria tambm. A luta abolicionista no foi um acontecimento gratuito, nem se restringiu promulgao da Lei urea. A abolio foi uma lei vinda de cima para baixo, sem contemplar os mnimos direitos de cida- dania que os negros reivindicavam, e sem os quais a liberdade esfumaou-se em re- trica. Portanto, a esperana no podia terminar a. A esperana se expressa quase como um grito de protesto, como vemos no poema Senzala, de Henrique de Resende: Senzala da fazenda... As tuas runas ainda esto impregnadas Do sangue machucado dos negros que Gemeram nos teus troncos, Sob o chicote ameaador dos homens brancos Feitores da fazenda. Mas tudo isso h de desaparecer um dia. ... Mas bendito seja Deus! as tuas runas Desaparecero um dia na bruma longnqua da Histria dos tempos. E ento se apagar tambm, esse dia, Na minha memria, a lembrana angustiosa das Atrocidades dos meus avs. 48 Nesta mesma direo, vai o poema da brilhante Miriam Alves, Carregadores: ... Carregamos nos ombros Feito carga O ferro da marca do feitor. Carregamos na mo Feita lana A esperana do que vir. 49 Neste poema pode-se perceber claro que a esperana negra nada tem de passiva. , ao contrrio, uma esperana militante, de lana na mo, disposta a combater pela liberdade que vir. Esta certeza ningum pode tirar do povo negro. 47 Solano Trindade, Cantares ao meu povo (Poesia), So Paulo, Fulgor, 1961, p. 9. 48 Cit. por Oswaldo de Camargo, O negro escrito, So Paulo, 1987, p. 16. 49 Cit. por O. de Camargo, O negro escrito, So Paulo, 1987, p. 04. 57 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 H ainda um poema de Solano Trindade, que eu no poderia deixar de mencio- Solano Trindade, que eu no poderia deixar de mencio- Trindade, que eu no poderia deixar de mencio- nar. Chama-se Para que vim, e o reproduzo por inteiro: Eu vim para cuidar de jardins Plantar coloridas flores Reg-las ao sair do sol Fazer lindos buques E ofert-los aos deuses e s mulheres. Mas h ameaa de guerra E os jardins no sobrevivero ao fogo Ento no cuidarei de jardins No levarei flores aos deuses Nem s mulheres Pregarei a paz. 50 Aqui o poeta apresenta o contedo da sua esperana. Cuidar de jardins, oferecer fores aos deuses e s mulheres. Trabalho, liturgia e amor. Uma s esperana. Mas, em tempos de guerra, isto seria uma temeridade. preciso mudar de atitude. Os jardins provavelmente sero destrudos. O fogo consumir a terra. O contedo da esperana ser outro: o seu nome ser a luta pela paz. Em cada poca, o contedo da esperana precisa ser atualizado, ou construdo de novo na histria. No h respostas prontas. Nem o prprio Deus est a presente como uma mo invisvel para preencher o nosso lugar. A tarefa de fazer a histria humana. E nela que Deus se manifesta. isto que o poeta negro parece querer dizer-nos. 4.3. Identidade: linguagem potica, clamor teolgico O tema identidade no poderia fcar ausente na refexo teolgica e na poesia negra. De fato, ele est presente como fulcro de toda a refexo. Depois de todo um passado marcado pela escravido, a tarefa maior com a qual o negro se defronta a reconstruo da sua prpria identidade. Efetivamente, trata-se da reconstruo da identidade coletiva, na qual os indivduos se inserem plenamente como sujeitos. Os exemplos so recorrentes. J mencionei antes o poema Protesto, de Carlos As- sumpo, no qual o poeta diz claramente: Piedade no o que eu quero ... Eu quero coisa melhor. Na linha da afrmao da identidade, Lino Guedes foi um dos primeiros poetas negros deste sculo que se coloca na primeira pessoa como contradio perante o esquema vigente. 51 Ainda que encontremos nele uma excessiva preocupao em apresentar decncia perante a sociedade branca dominante, sua estratgia de reverter simbolicamente o que parecia ser o negativo, nova e revolucionria. E o que se pode ver no poema Negro preto cor da noite: Negro preto cor da noite Nunca te esqueas do aoite Que cruciou tua raa Em nome dela somente Fazes com que nossa gente Um dia gente se faa. 5 50 Solano Trindade, op. cit., p. 78. 51 Zil Bernd, op. cit, p. 68. 5 Idem, p. 7. 58 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 Na poesia de Abelardo Rodrigues encontramos uma fora enorme de expresso muito contida, exata, cortante, como vemos nos versos abaixo: H muitas histrias (no ditas) no comprimento de um chicote ou Agora choraremos ... Choraremos como pinheirais Em noites de nuvens Avanadas. At que se abata A marreta do tempo De nossos punhos De nossas sombras E se faa o novo. 5 Mas h uma entidade bem maior no poema de Oliveira Silveira, Encontrei mi- nhas origens: Encontrei minhas origens Em velhos arquivos, livros Encontrei em malditos objetos Troncos e grilhetas Encontrei minhas origens no leste No mar em imundos tumbeiros Encontrei em doces palavras cantos Em furiosos tambores, ritos Encontrei minhas origens Na cor da minha pele Nos lanhos da minha alma Em Mim Em minha gente escura Em meus heris altivos Encontrei Encontrei-as enfim Me encontrei 54 Aqui sentimos como se d a tomada de conscincia do poeta e como a auto- identifcao o liga com o destino de sua gente escura. Est claro que aqui no se encontra a busca doentia da identidade burguesa romntica ou individualista. Nada disso. uma experincia pessoal que ganha o seu destino histrico no corpo da Comunidade Negra. Assim, a experincia do poeta por fora do prprio ato de escrever, uma experincia de isolamento, de distanciamento simbolicamente transcende e se junta ao todo do seu povo negro, tanto dos seus heris altivos do passado como dos seus companheiros, malungos, que hoje, ainda e sempre, batem frmes, furiosos, os tambores da liberdade. Gostaria de completar este item com um trecho de um poema que traduz ma- gistralmente a palavra-smbolo da luta do povo negro: Negritude, de Geni Mariano Guimares: 5 Paulo Colina, op. cit., p. 49. 54 Cit. por Oswaldo de Camargo, O negro escrito, So Paulo, 1987, p. 16. 59 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 ... Mas contudo, Apesar de tudo, E muito mais por tudo, Restou-me invulnervel, Um imutvel bem: Ultrajadas as razes, Negados os direitos, Ningum roubou-me o lacre da pele. Nenhum senhor. Ningum! 55 4.4. A vingana enquanto reclamo justia Entre os temas presentes na poesia e na teologia negra, encontrei tambm uma vertente que se poderia caracterizar como apocalptica. Trata-se da vingana no como dio, mas como reparao de justia. recorrente o tema da vingana contra todos os opressores. Constatamos esta realidade, por exemplo, no poema Odissia, de Ele Semog: ... Hoje dia de vitria e vingana Tragam suas mulheres amordaadas E tragam os tesouros da corte Tragam tudo que for visvel Para jogar numa imensa fogueira Tragam rosas, jasmins, lrios Para enfeitar nossa bonana Acordem nossos antepassados E mais, todos os homens Que foram escravos e suas almas vagantes Tragam o chicote e o mouro Pois a justia no h de escapar de nossas mos. Tragam a cruz crist Para que ela no nos deixe mentir Tragam o corao do rei Para que eu possa com-lo E ensangentar os meus dentes to valiosos Tragam as flores do campo Para que sejam regadas com as lgrimas do inimigo. Pois at hoje Elas eram regadas com o nosso sangue, Com a seiva de nossas ambies de gente. 56 A desforra imaginada pelo poeta vai fundo e chega ao corao do rei, num ver- dadeiro rito antropofgico, enquanto a cruz de Cristo servir de testemunha. Qual o testemunho que o poeta espera de Cristo? Ser aquele que aparece na parbola do Juzo Final, em Mateus 5,1-46, em que os pretensos piedosos sero escorra- ados da presena do Filho, enquanto acolhidos sero os que praticaram a justia para com o faminto, o sedento, o forasteiro, o nu, o encarcerado? interessante perceber aqui que a questo fca aberta e quem deve decidir o leitor atento. Na mesma linha, segue um breve poema de Cuti (Luiz Silva), Medo medular: Todo mundo tem medo Da vingana do preto, At o preto. 57 55 Cit. por Paulo Colina, op. cit., p. 71. 56 Cit. por Oswaldo de Camargo, O negro escrito, So Paulo, 1987. p. 198. 57 Cit. por Oswaldo de Camargo, O negro escrito, So Paulo, 1987, p. 0. 60 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 4.5. Solidariedade: horizonte da poesia e da teologia negra H um tema que aponta para as possibilidades que se abrem diante de uma luta de libertao que e ser difcil, exigente, cansativa, desanimadora s vezes, frus- trante outras, mas que o nico caminho para no se perder a dignidade. Trata-se do tema da solidariedade. Aqui poderamos dividi-lo em duas vertentes: 4.5.1. A solidariedade interna da comunidade negra Neste caso, encontramos poemas que visam inspirar a vida e as lutas da Comu- nidade Negra, levantar o seu nimo, como ocorre em Oswaldo de Camargo, nos versos que seguem: Ento chegado o tempo Do amanho, a poda e a safra ... Negro, negro, pedao de noite, Pedao de mundo, ergue-te! Deixa essa mansido nos olhos Tua delicadez E o fcil riso jovial. S duro, negro, duro, Como o poste em que mil vezes Te chicotearam. S negro, negro, negro, Maravilhosamente negro! 58 Qual o negro que, ao escutar estas palavras, no sente um verdadeiro arrepio? Digo isto porque os versos batem em meu corpo como uma onda eltrica. difcil fcar imune, impassvel a essas palavras. Fiquemos, porm, neste ponto, com um poema de Solano Trindade. Trechos de Solano Trindade. Trechos de Trindade. Trechos de Nem tudo est perdido: Nem tudo perdido irmos Nem tudo est perdido amadas O sol voltar a nos trazer calor Esta a mensagem nova Que o poeta nos traz Para que desperteis para a luta Na hora da vossa angstia Irmos e amadas do meu sculo! ... H medocres Imbecis Preconceituosos Mas grande o nmero dos puros Dos simples Dos que crem no amor A gua no secou em todos os rios Nem todas as mulheres so estreis Se algum dia ainda querem guerra grande a esperana de paz... 59 58 Idem, p. 154. 59 Solano Trindade, op. cit., p. 90. 61 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 4.5.2 A solidariedade com a Comunidade Negra Jorge de Lima um poeta branco que, de certa forma, assumiu um compromisso com a Comunidade Negra. Mas, segundo Zil Bernd, o seu discurso ainda sobre o negro. O poeta no chega a assumir a identidade negra. O negro dos seus poemas tema, aparece sempre na terceira pessoa, como no conhecido Essa negra Fulo Ele no difere muito da vertente de Castro Alves, Machado de Assis, Cruz e Souza, grandes autores, mas identifcados com o mundo dos brancos. 60 Talvez a melhor expresso dessa poesia que se solidariza com a Comunidade Negra vamos encontrar no verdadeiro poema que a que a a Missa dos quilombos, de Dom Pedro Casaldliga e do poeta Pedro Tierra. A sim, mais uma vez, o potico e o teolgico se misturam. O eu lrico se identifca totalmente e sem sofsmas com a Comunidade Negra. Quem no se lembra da introduo? Estamos chegando das velhas senzalas Estamos chegando das novas favelas Das margens do mundo ns somos, viemos danar. Estamos chegando dos trens de subrbios. Estamos chegando nos loucos pingentes, Com a vida entre os dentes chegamos, viemos cantar. Estamos chegando do cho dos Palmares, Estamos chegando do som dos tambores: Dos novos Palmares ns somos, viemos lutar. Os dois poetas aqui se jogam por inteiro na recuperao da memria proftica e perigosa de Jesus, e cantam com os negros: Unidos procura dos quilombos Da libertao, Celebramos a memria perigosa Da Pscoa de Jesus, comungando a fora Do seu corpo ressuscitado. Recolhemos na mesma comunho O trabalho, as lutas, o martrio Do povo negro de todos os tempos E de todos os lugares. E invocamos sobre a caminhada A presena amiga Dos santos, das testemunhas, dos militantes Dos artistas E de todos os construtores annimos da Esperana Negra. No fm, apontam para uma unidade na luta, uma fraternidade isenta de hipocri- sia, baseada no corpo negro-po-da-vida de Cristo: Todos unidos Num mesmo corpo Nada no mundo nos vencer. Todos unidos em Cristo Jesus, Oxal. Como um ltimo exemplo na presente refexo, permito-me transcrever um po- ema de minha autoria. Eu o escrevi h alguns anos, quando refetia na realidade da populao negra com a mesma preocupao potica e teolgica aqui apresen- tadas. Trata-se de uma intuio, mas tambm de uma posio conscientemente assumida: 60 Zil Bernd, op. cit., p. 64. 62 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 Negro, sculos de violncia marcaram teu corpo teus olhos tua boca teu ser. Negro, sculos de resistncia te fizeram mais forte mais duro mais belo mais lcido. Negro, tuas danas e cantos enfeitiam teus pretensos senhores, e nas tuas noites celebras a tua alforria. Por isto, negro, se me permites, te digo de corao: tua luta minha luta tua morte minha morte tua vida minha vida. E se me pergunto como cheguei a este discernimento, s posso dizer como na Escritura: isto no foi nem a carne, nem o sangue que me ensinaram, mas o Santo Esprito do Senhor, como alis li certa vez num texto de Adlia Prado. 61 5. Reflexes finais A refexo sobre poesia e teologia, a partir da Comunidade Negra, certamente longa e minuciosa. Este trabalho que agora apresentamos, ns o entendemos apenas como uma introduo a este tema to denso. Teologia e Poesia foram entendidas por ns como mediaes capazes de expressar de forma imanente e transcendente a realidade do povo negro na dispora. legtimo unir numa mesma refexo estes dois temas? Algum poderia objetar que muitas expresses poticas que tomamos ao longo desta refexo nada tm de explicitamente crists. Na sua maioria, sequer nomes sagrados aparecem. E verdade. E seria forar os textos querer ver neles o que eles no oferecem nem desejam transmitir. Mas eu gostaria de apontar para uma outra possibilidade de interpretao. Vim afrmando todo o tempo que a teologia crist s faz sentido para o povo negro, se der conta de sua experincia histrica. Por esta razo, creio ser legtimo procurar interpretar esta experincia histrica com os olhos da f. Perguntar, por exemplo, com Oswaldo de Camargo, no seu poema Rumo: 61 Referimo-nos obra de Adlia Prado, Cacos para um vitral, a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 1. 63 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 s vezes ergo os olhos, interrogo O seco cu sem urubu, sem ndoa De nuvem: Deus Que queres? Que eu me atropele Com minha prpria sombra, que embranquea Meu dorso e voe? 6 Por outro lado, no nos parece de forma alguma que a aproximao dos dois temas teologia - poesia seja forada ou indevida. O telogo, no af e in- dignado com a realidade que est diante dos seus olhos, encontra na linguagem teolgica tudo aquilo que quer dizer e que no consegue de outra forma. Mas tam- bm o poeta, frequentemente, toma por interlocutor o prprio Deus. E, ento, no poucas vezes, no fcil perceber at onde vai o poema, e onde comea a orao. Ele Semog nos d o exemplo quando assim se expressa: Senhor, Dai-nos Vosso corpo Industrializado E vossos ps cansados. Dai-nos Senhor, Sem piedade Razo de viver. Dia destes, Dai-nos tambm, A hora da ceia, Com tranquilidade 6 Ademais, a teologia e a poesia negra s se justifcam verdadeiramente enquan- to expresses de uma realidade muito concreta. Neste caso, a realidade mesma precede tanto a linguagem quanto a f. Portanto, poesia e teologia constituem, na verdade, momentos segundos. Mas, estes momentos segundos, elaborados a partir da concreta realidade da gente negra, tornam-se, pela transcendncia da materialidade dos fatos, momentos primeiros. Assim, pois, poesia e teologia que so momentos segundos, sem deixar de serem momentos primeiros, so tam- bm os momentos ltimos apontando para a comum utopia. O poema Pequena balada insurgente, de Paulo Colina, patenteia esta utopia buscada: No h rancor nem dio: H apenas esse clamor surdo Que rebenta em meu corao Ante nossas mos to inteis Que sustentam essa alegoria Crua de senzala, favela e sarjeta. ... A se decidir. H que se decidir, senhores, pois mesmo entre as noturnas sombras Desse imenso vu As asas negras de meu nariz Continuaro insistindo em ganhar O espao aberto dos cus. 64 6 Cit. in Schwarze Poesie/Poesia negra, org. Moema Parente / Angel, Ubrs. Johannes Angel, St. Gallen/Koln/S. Paulo, Di, 1988. 6 Alta tenso, in Ebulio da escravatura - Treze poetas impossveis, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1978, p. 15. 64 Paulo, Colina, Plano de vo. So Paulo, Roswitha Kempf, 1984, p. 5. 64 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 16 Evidentemente, tanto na poesia quanto na teologia negra, est claro que a rea- lizao da utopia a recuperao da plena dignidade do negro e da superao de toda forma de racismo. Portanto, a realizao de tal utopia que brota da dura reali- dade do povo negro , na verdade, uma tarefa que se estende a toda a humanidade. Ficam a pergunta e o convite: quem est disposto a escutar o povo negro, dar-lhe as mos e construir com ele um destino comum? Esperamos que a resposta possa concretizar o sentimento expresso por le Semog: Juntaremos tantos grilhes Quanto for possvel E mais quatrocentas misrias Ento trocaremos tudo por flores Para enfeitar o enterro Dessa coisa estranha: racismo. 65 65 Cit. Oswaldo de Camargo, (org.), A razo da chama, in op. cit., So Paulo, GRD, 1986, p. 106.
Se não é a canção nacional, para lá caminha: a presentificação da nação na construção do samba e do fado como símbolos identitários no Brasil e em Portugal (1890-1942)