Branquitude e Crítica Literária
Branquitude e Crítica Literária
Branquitude e Crítica Literária
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Uruguay Cortazzo*
É Aimé Césaire que vai definir o povo negro como uma “comunidade de sofri-
mento”, “comunidade de opressão”, “comunidade de exclusão”, mas também como
uma “comunidade de resistência” e de esperança (CÉSAIRE, 2004, p.81-82), mar-
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cando assim as três linhas de força que sustentam a estética da poesia negra: pas-
sado humilhante, presente de discriminação e futuro de libertação.
A voz negra, ao aparecer no espaço literário, produz também dois ouvintes di-
ferentes, e esta é outra especificidade da escrita negra. Por um lado, aponta para
um leitor branco, procurando que se reconheça como dominador, responsável e co-
nivente com uma historia criminal. “Estamos vivos ainda, bwama” diz o poeta paulis-
tano Oubi Inaê Kibuko. Fazendo isso, a voz negra descortina a etnicidade invisível,
inconsciente, de branco que deve enfrentar-se com sua própria construção: o negro.
Por outro lado, o escritor negro tem que apelar à sua comunidade para praticar
um duplo movimento contraditório: primeiro, destruir uma máscara imposta: a identi-
dade de autonegação, para depois, num segundo momento, construir uma identida-
de desejada e criativa. Um mito guia este duplo movimento: morte e ressurreição.
O negro atual deve morrer, porque ele é só uma construção, feita por outros,
uma ilusão que só serve para não ser, um feitiço branco para não se achar, um fan-
tasma de si mesmo.
A essa morte de uma identidade imposta através da violência, deve seguir um
renascimento, uma nova identificação, que pode aparecer como uma viagem ou
uma decida. Uma iniciação na negritude.
A viagem é simbolizada pelo tema tradicional do retorno a África. Esta volta
não significa uma regressão. Trata-se de fazer o movimento histórico inverso: se a
vinda para América significou um esvaziamento da sua humanidade (o contrário da
visão do paraíso dos europeus), a volta para África significa a reconquista da pleni-
tude. É aí que estão os ancestrais primordiais: é aí que habita o antigo homem afri-
cano, o homem integral que vai insuflar-lhe a sua energia novamente. Essa África é
mítica e é uma criação da diáspora, uma “geografia interior”, como diz Césaire.
A outra imagem iniciática é a descida na própria escuridão. É aqui que vem ou-
tra característica: a inversão do simbolismo cromático; o preto, o escuro, as trevas, a
noite, são uma revigorante força espiritual. Já estão sendo realizados estudos sobre
o sistema de imagens da poesia negra, que mostram a inversão da simbologia do
Ocidente, onde a cor negra significa a ignorância, a morte, o mal, o domínio do
demônio.
Na poesia negra o branco, a luz, o dia pode significar a cor e o tempo da humi-
lhação, da negação. É a cor e o tempo do senhor, do proprietário do algoz. Tempo
branco.
A noite é o mundo que abriga os orixás, onde o humilhado se torna senhor, e o
homem exausto recupera seu potencial guerreiro e espiritual.
Isto explica porque o principal movimento literário – a negritude do Caribe fran-
cês – se identifica com a palavra négre, que é praticamente um insulto nessa língua.
Gostaria de fazer agora uma observação para encerrar esta primeira parte.
Trata-se de uma questão aberta que vem sendo debatida desde o momento mesmo
em que a negritude fez sua aparição nos anos 30: depois da viagem, depois da des-
cida, depois do renascimento, como retorna esse ser?
Será que volta negro ou já é uma pessoa onde a cor não tem mais importân-
cia? Em outras palavras: qual é a utopia negra que se quer construir?
Será uma sociedade de homens que conquistarão a harmonia e onde a cor da
pele não terá mais significado? Ou será uma sociedade onde o negro continuará
existindo, mas agora reconhecido como pessoa, como cultura, como espiritualidade?
Será uma sociedade sem etnias, constituída por homens que terão alcançado
sua plena universalidade, uma sociedade pós-racial, ou pelo contrário, será uma
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Como pode-se observar, essa oposição dos negros à opressão branca é con-
siderada um racismo anti-racista. Sartre não explica em nenhum momento em que
sentido seria um racismo. Além disso, esta afirmação entraria em contradição com
outras colocações anteriores. Só vou citar uma: “esta poesia que parece do início
racial é finalmente um canto de todos e para todos”. (SARTRE, 1968, p. 92).
Poderíamos nos perguntar agora: todo anti-racismo engendra um novo racis-
mo? Não posso entrar nessa discussão nem analisar as fortes contradições de Sar-
tre. O que me interessa destacar é que esta suspeita de racismo, mesmo colocada
em forma de um paradoxo, teve um impacto profundamente negativo, que se esten-
de até hoje na compreensão da negritude.
No Brasil, à época das lutas anticolonialistas africanas, Gilberto Freyre, igual a
Sartre, declara a Negritude uma mística racista sem lugar no país, um intento de afi-
liar os negros “ao imperialismo étnico-cultural africano”, um sectarismo fanático, o-
posto à identidade brasileira, que seria uma “morenidade meta-racial”, um ser “luso-
tropical”.1
A idéia de Sartre continua sua carreira até os anos 80 do século XX, e será de-
senvolvida também por Zilá Bernd. Esta autora, além da sua tese de doutorado, tem
1
Ver, entre outros artigos, “Negritude, mística, sem lugar no Brasil” (1971). Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_cientificos/negritude_mistica.htlm>.
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Para evitar este perigo, Bernd procura definir a literatura negra por uma carac-
terística exclusivamente lingüística, e afirma, então:
Partir da evidencia textual nos parece ser o caminho que assegurará um mai-
or rigor científico á analise da questão. Assim, poderão ser considerados co-
mo literatura negra aqueles textos em que houver um eu enunciador que se
quer negro, que reivindica a sua especificidade negra. (BERND, 1987, p. 16).
[...] não é preciso ser negro para fazer poesia negra. É preciso, entretanto, si-
tuar-se como negro para que a poesia possa exprimir-se com uma dicção
própria, reveladora de uma intenção negra. (BERND, 1992, p. 274).
A raça pode ser entendida como um conjunto de relações sociais que permite
que os indivíduos e grupos sejam localizados, e lhes sejam atribuídos vários
atributos ou competências, com base em características de natureza biológi-
ca. As distinções raciais são mais do que formas de descrever as diferenças
humanas – são também fatores importantes na reprodução de padrões de
poder e desigualdade na sociedade. (GIDDENS, 2004, p. 248).
A cor da pele pode não ter nenhuma importância para a genética, mas importa
e muito para a semiótica social: os corpos negros e brancos são construídos não a
partir de dados genéticos, senão da aparência imediata à qual se atribuem valores,
interesses e significações históricas que permitem criar hierarquias corporais.
O corpo carrega essas narrativas e sentidos do mesmo modo que as tatua-
gens. O corpo negro é um corpo marcado. Na literatura negra, por isso, raça e cor
devem ser interpretadas como portadores de valores míticos, sociais, culturais, polí-
ticos e estéticos que se inscrevem e reescrevem na pele e que constituem um ima-
ginário social e artístico sólido e palpável para qualquer um.
Quando Bernd desconsidera esta corporeidade como signo social, substituin-
do-a por um traço enunciativo lingüístico, elimina uma das principais matrizes estéti-
cas e volta a invisibilizar o negro como sujeito produtor de textos específicos. Sua
intenção é construir um autor descorporificado, um puro formalismo lingüístico: um
“eu que se quer negro”, mas que não precisa ser negro.
Frente a esta posição, afirmamos que a literatura negra tem como fundamento
uma política corporal que se desenvolve como uma estética identitária. Isto quer di-
zer que a teorização desta literatura não pode separar corpo, identidade e escrita. E,
neste sentido, deve ser situada junto às problemáticas das literaturas indígenas, fe-
minina e gay.
Chegamos assim ao segundo principio teórico de Bernd: o enunciador da litera-
tura negra pode ser qualquer um, só é preciso “situar-se como negro”. Isto quer dizer
que a experiência íntima, pessoal, física, de ser negro, num mundo dominado por
brancos, estaria disponível para todos, como uma espécie de fantasia literária que
qualquer um pode vestir.
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A criação de uma identidade negra está baseada numa realidade que ele,
enquanto branco, não pode se arrogar e que de nada lhe serviria se o fizes-
se, já que não faz parte da sua vivência. [...] ele tem de admitir abertamente
que a natureza da sua vivência como branco é completamente diferente da
natureza da vivência do negro. (GORDIMER, 1992, p. 159).
[...] Bernd abraça a ideologia genocida apregoada por Freire, segundo a qual
a cor da pele de um negro é importante, desde que deixe de existir paulati-
namente, num processo de miscigenação induzido ideologicamente, a partir
da negação de valores do povo negro e massacre da auto-estima. (ALVES,
2002, p. 236).
Referências
ALVES, Miriam. Cadernos Negros (número 1): estado de alerta no fogo cruzado. In:
FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lanna e FONSECA, Maria Nazareth Soares. Poéti-
cas afro-brasileiras.Belo Horizonte: Mazza; PUC Minas, 2002.
BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aber-
to, 1987.
BERND, Zilá. Literatura Negra. In: JOBIM, José Luis. Palavras da Crítica. Rio de Ja-
neiro, Imago, 1992.
CÉSAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme suivi de Discours sur la Négritude. Pa-
ris: Présence Africaine, 2004.
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Uruguay Cortazzo é professor da UFPel – Universidade Federal de Pelotas e responsável pela
Biblioteca Negra de Pelotas.