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Branquitude e Crítica Literária

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Branquitude e Crítica Literária

Uruguay Cortazzo*

A proposta que eu vou apresentar hoje é um primeiro intento de organizar al-


gumas ideias que têm surgido das reflexões sobre o conceito de literatura negra. Ela
é por isso, provisional. Mesmo que eu faça algumas afirmações, elas têm de ser in-
terpretadas como hipóteses de trabalho, as quais devem ser aprofundadas e com-
provadas com novos estudos.
Na primeira parte, fala-se da poesia negra e suas principais estratégias e nú-
cleos temáticos (me inspiro em Sartre, Bernd, e outros). Na segunda parte, analiso a
compreensão da crítica de Jean Paul Sartre e Zilá Bernd como estratégias de blo-
queio da Negritude. Utilizarei o conceito de Negritude em dois sentidos: o estrita-
mente histórico (movimento poético surgido a partir do encontro de Césaire, Senghor
e Damas, nos anos 30 em Paris) e no sentido amplo (produções literárias negras em
geral).
O discurso poético negro surge como uma disrupção, uma ruptura dentro de
um sistema literário que só reconhecia a voz branca como a única autorizada, a pro-
prietária natural e autêntica da escrita e da arte. O negro podia ingressar na literatu-
ra se não questionava essa legitimidade e apagava sua condição de negro; se ele se
tornava invisível na sua corporeidade.
Luis Gama (1830-1882) é considerado hoje o primeiro escritor negro brasileiro,
pois inicia uma desestabilização desse sistema, já que instaura um eu poético que
assume sua condição de negro, e, como conseqüência, revela indiretamente o sis-
tema branco que está por trás do discurso literário.
A escrita negra surge, então, como uma subversão: uma voz, não autorizada e
resistida, emerge no cenário literário. Como o próprio enunciador comenta no poema
“Quem sou eu?”, sua voz é um “repique impertinente” que não pertence ao lugar,
voz estranha, inconveniente e irreverente. Voz intrusa que vem a revelar que todos
na verdade são animais.
Mas a voz negra não é uma voz isolada, individual, intimista, única e privilegia-
da como propõe a estética ocidental. O eu negro aparece profundamente vinculado
à sua comunidade, a um nós. Não é a musa que fala através dele, nem o gênio da
sua pessoa: é a voz da sua gente, do seu povo que o leva até a voz dos ancestrais,
identificando-se assim com uma historia especifica e uma situação social de hostili-
dade e negação. Aimé Césaire (o poeta da Martinica) diz em uma reportagem:

Vocês me perguntam quem sou eu?Respondo: eu sou, primeiramente, o ho-


mem de uma comunidade historicamente situada, eu sou negro e isto é fun-
damental. Esta é a definição da minha identidade. Eu pertenço, pois, a uma
historia. É uma afirmação de uma fidelidade. Em meu espírito não há lugar
para a negação, é também a afirmação de uma solidariedade. Isto significa
que me sinto solidário com todos os homens que lutam pela liberdade, com
todos os homens que sofrem, e antes de todo com aqueles que mais sofre-
ram e que foram frequentemente esquecidos, eu falo dos Negros. (BERND,
1987, p.65).

É Aimé Césaire que vai definir o povo negro como uma “comunidade de sofri-
mento”, “comunidade de opressão”, “comunidade de exclusão”, mas também como
uma “comunidade de resistência” e de esperança (CÉSAIRE, 2004, p.81-82), mar-
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cando assim as três linhas de força que sustentam a estética da poesia negra: pas-
sado humilhante, presente de discriminação e futuro de libertação.
A voz negra, ao aparecer no espaço literário, produz também dois ouvintes di-
ferentes, e esta é outra especificidade da escrita negra. Por um lado, aponta para
um leitor branco, procurando que se reconheça como dominador, responsável e co-
nivente com uma historia criminal. “Estamos vivos ainda, bwama” diz o poeta paulis-
tano Oubi Inaê Kibuko. Fazendo isso, a voz negra descortina a etnicidade invisível,
inconsciente, de branco que deve enfrentar-se com sua própria construção: o negro.
Por outro lado, o escritor negro tem que apelar à sua comunidade para praticar
um duplo movimento contraditório: primeiro, destruir uma máscara imposta: a identi-
dade de autonegação, para depois, num segundo momento, construir uma identida-
de desejada e criativa. Um mito guia este duplo movimento: morte e ressurreição.
O negro atual deve morrer, porque ele é só uma construção, feita por outros,
uma ilusão que só serve para não ser, um feitiço branco para não se achar, um fan-
tasma de si mesmo.
A essa morte de uma identidade imposta através da violência, deve seguir um
renascimento, uma nova identificação, que pode aparecer como uma viagem ou
uma decida. Uma iniciação na negritude.
A viagem é simbolizada pelo tema tradicional do retorno a África. Esta volta
não significa uma regressão. Trata-se de fazer o movimento histórico inverso: se a
vinda para América significou um esvaziamento da sua humanidade (o contrário da
visão do paraíso dos europeus), a volta para África significa a reconquista da pleni-
tude. É aí que estão os ancestrais primordiais: é aí que habita o antigo homem afri-
cano, o homem integral que vai insuflar-lhe a sua energia novamente. Essa África é
mítica e é uma criação da diáspora, uma “geografia interior”, como diz Césaire.
A outra imagem iniciática é a descida na própria escuridão. É aqui que vem ou-
tra característica: a inversão do simbolismo cromático; o preto, o escuro, as trevas, a
noite, são uma revigorante força espiritual. Já estão sendo realizados estudos sobre
o sistema de imagens da poesia negra, que mostram a inversão da simbologia do
Ocidente, onde a cor negra significa a ignorância, a morte, o mal, o domínio do
demônio.
Na poesia negra o branco, a luz, o dia pode significar a cor e o tempo da humi-
lhação, da negação. É a cor e o tempo do senhor, do proprietário do algoz. Tempo
branco.
A noite é o mundo que abriga os orixás, onde o humilhado se torna senhor, e o
homem exausto recupera seu potencial guerreiro e espiritual.
Isto explica porque o principal movimento literário – a negritude do Caribe fran-
cês – se identifica com a palavra négre, que é praticamente um insulto nessa língua.
Gostaria de fazer agora uma observação para encerrar esta primeira parte.
Trata-se de uma questão aberta que vem sendo debatida desde o momento mesmo
em que a negritude fez sua aparição nos anos 30: depois da viagem, depois da des-
cida, depois do renascimento, como retorna esse ser?
Será que volta negro ou já é uma pessoa onde a cor não tem mais importân-
cia? Em outras palavras: qual é a utopia negra que se quer construir?
Será uma sociedade de homens que conquistarão a harmonia e onde a cor da
pele não terá mais significado? Ou será uma sociedade onde o negro continuará
existindo, mas agora reconhecido como pessoa, como cultura, como espiritualidade?
Será uma sociedade sem etnias, constituída por homens que terão alcançado
sua plena universalidade, uma sociedade pós-racial, ou pelo contrário, será uma
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associação onde diferentes comunidades terão direito a se desenvolver por si mes-


mas?
Será um mundo de iguais ou uma comunidade de diferentes?
Este é, provavelmente, uma dos grandes desafios que tem colocado a literatura
negra para a crítica e a teoria literária. E, com isto, estou entrando na segunda parte
da minha proposta: analisar certo tipo de recepção da negritude poética que intenta
desativar seu potencial político e cultural. Escolhi dois nomes que me parecem muito
significativos: o de Jean Paul Sartre, por ser o primeiro teórico da negritude, e o de
Zilá Bernd, “pioneira” (Maximilien Laroche) nos estudos de literatura negra na Améri-
ca Latina no Brasil.
Jean Paul Sartre, escreve em 1948 o famoso prólogo Orfeu Negro para a Anto-
logia da poesia negra e malgache, organizada por o escritor senegalês Leopold Se-
dar Senghor. A Antologia mostrava para o público europeu uma valiosa produção
literária negra da África e do caribe francês. O prólogo de Sartre virou um clássico
da crítica literária sobre a negritude, e não pode ser desvinculado desse conceito.
Marcou, e marca ainda hoje, a discussão sobre a poesia negra.
No Orfeu Negro, o filósofo reconhece que a poesia negra é a grande poesia re-
volucionaria desse momento, e que tem uma transcendência que vai além da cria-
ção de uma consciência negra poética, política e cultural. Com efeito, a consciência
negra revela também a existência de uma consciência branca, sustentada na crença
da sua superioridade. A consciência branca é a matriz desde onde se observa a to-
talidade do mundo, se estuda, se ordena, se classifica e se avalia. Sartre diz de for-
ma magistral: “o branco desfrutou durante três mil anos o privilegio de ver sem que o
viessem”. (SARTRE, 1968, p. 89). Ele não comenta, mas essa pretensão de uma
visão integral abarcadora do planeta inteiro provém do expansionismo europeu, dos
conquistadores, dos colonizadores, das expedições científicas: uma visão não situa-
da em nenhuma geografia, em nenhuma cultura: uma visão universal.
Porém, a poesia negra revela que esse olho totalizador é branco e europeu. E
mais: ele é agora considerado como um outro e transformado em objeto. O branco
volta assim a ser situado num lugar e numa cultura. Ele é racializado (como no sécu-
lo XIX) e devolvido à sua etnia. A mirada negra, ao aparecer, é um espelho onde o
branco se reflete e se descobre como tal. A invisibilidade do observador europeu
acaba: por trás do olho universal existe um homem material com sua cor e seus inte-
resses. A pretensão totalizadora desaba: “[...] nós somos acidentais e longínquos,
devemos justificar-nos por nossos costumes, nossas técnicas, nossa palidez de mal
cozidos e nossa vegetação azinhavre. Somos roídos até os ossos por estes olhares
tranquilos e corrosivo [...]”. (SARTRE, 1968, p. 91).
Estas reflexões de Sartre ajudam a entender um elemento essencial para os
estudos negros: a questão do negro está intimamente atrelada a questão do branco.
Negro e Branco são identidades interligadas, produzidas reciprocamente.
Mas Sartre, ao mesmo tempo em que exalta a poesia da negritude, acaba por
limitá-la e, no final, liquidá-la. Com efeito, a poesia negra nasceu para morrer: é só
um momento na conquista de uma consciência geral da opressão da humanidade
toda. Sartre usa o mito de Orfeu com duplo sentido: ele é o cantor que consegue
transformar o mundo com seu canto, mas também é quem fracassa na missão maior
da sua vida: resgatar sua amada Eurídice do mundo da morte. Na interpretação de
Sartre, Eurídice é a Negritude:
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Assim a Negritude é para se destruir, é passagem e não término, meio e não


fim último. No momento em que os Orfeus negros abraçam mais estreitamen-
te esta Eurídice, sentem que ela se desvanece entre seus braços. (SARTRE,
1968, p. 122).

A consciência negra é, então, um “particularismo”, e está destinada a se dis-


solver na “raça universal dos oprimidos”. Por trás de todo negro e negra, está final-
mente a imagem do proletário, na qual a cor desaparece e a luta se transforma no
grande combate final.
Ao utilizar um paradigma marxista de interpretação, deve entender necessari-
amente esse movimento poético como um momento de antítese, frente à opressão
branca, que seria a tese. Portanto, o processo culminaria numa síntese, quer dizer,
uma sociedade sem raças e sem classes. Ou seja: a sociedade comunista entendida
como a sociedade universal final.
Sartre descobre, com certeza, as limitações da consciência branca e seu uni-
versalismo falso, mas as reduz ao período capitalista. Assim, consegue salvar e
manter o universalismo ocidental através do marxismo: ou seja, conservar como
propriedade da cultura branca o conhecimento e o controle das leis da história e do
futuro da humanidade. O branco é, mais uma vez, quem ensina ao negro o caminho
correto que deve percorrer.
Vamos nos deter agora num ponto específico da estratégia dialética sartreana:
como é que este filósofo interpreta a antítese negra frente a tese da opressão bran-
ca?
Vou citá-lo:

A unidade final, que aproximará todos os oprimidos no mesmo combate, de-


ve ser precedida nas colônias por isso que eu chamaria momento de separa-
ção ou de negatividade: este racismo anti-racista é o único caminho capaz de
levar à abolição das diferenças de raças. (SARTRE, 1968, p. 94).

Como pode-se observar, essa oposição dos negros à opressão branca é con-
siderada um racismo anti-racista. Sartre não explica em nenhum momento em que
sentido seria um racismo. Além disso, esta afirmação entraria em contradição com
outras colocações anteriores. Só vou citar uma: “esta poesia que parece do início
racial é finalmente um canto de todos e para todos”. (SARTRE, 1968, p. 92).
Poderíamos nos perguntar agora: todo anti-racismo engendra um novo racis-
mo? Não posso entrar nessa discussão nem analisar as fortes contradições de Sar-
tre. O que me interessa destacar é que esta suspeita de racismo, mesmo colocada
em forma de um paradoxo, teve um impacto profundamente negativo, que se esten-
de até hoje na compreensão da negritude.
No Brasil, à época das lutas anticolonialistas africanas, Gilberto Freyre, igual a
Sartre, declara a Negritude uma mística racista sem lugar no país, um intento de afi-
liar os negros “ao imperialismo étnico-cultural africano”, um sectarismo fanático, o-
posto à identidade brasileira, que seria uma “morenidade meta-racial”, um ser “luso-
tropical”.1
A idéia de Sartre continua sua carreira até os anos 80 do século XX, e será de-
senvolvida também por Zilá Bernd. Esta autora, além da sua tese de doutorado, tem

1
Ver, entre outros artigos, “Negritude, mística, sem lugar no Brasil” (1971). Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_cientificos/negritude_mistica.htlm>.
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publicado vários livros e artigos sobre a literatura negra: “A questão da Negritude”


(1984); “Negritude e literatura na América Latina” (1987); “Introdução à literatura
negra” (1988); “Poesia negra brasileira” (1992), e até uma obra de divulgação sobre
“Racismo e anti-racismo” (1994).
Na sua teoria, Bernd se opõe a definir a literatura negra a partir da cor do autor
e sugere que essa definição seria racista:

Esta classificação de base racial ou epidérmica se constitui ao meu ver, a


partir de bases cientificamente falsas e ideologicamente perigosas. (BERND,
1992, p. 274).

Para evitar este perigo, Bernd procura definir a literatura negra por uma carac-
terística exclusivamente lingüística, e afirma, então:

Partir da evidencia textual nos parece ser o caminho que assegurará um mai-
or rigor científico á analise da questão. Assim, poderão ser considerados co-
mo literatura negra aqueles textos em que houver um eu enunciador que se
quer negro, que reivindica a sua especificidade negra. (BERND, 1987, p. 16).

Aqui radicaria a diferença entre o discurso sobre o negro e o discurso do negro,


como sujeito que procura redefinir agora a representação convencional e preconcei-
tuosa que se tem formado do negro na instituição literária.
Mas, continuando a aprofundar a teoria literária de Bernd, somos conduzidos a
uma conclusão pelo menos surpreendente: o denominado discurso do negro não é
necessariamente de um sujeito negro, físico, histórico e socialmente situado: é de
qualquer um que se apresente no discurso poético como negro, um puro efeito de
sentido vazio de referente racial.

[...] não é preciso ser negro para fazer poesia negra. É preciso, entretanto, si-
tuar-se como negro para que a poesia possa exprimir-se com uma dicção
própria, reveladora de uma intenção negra. (BERND, 1992, p. 274).

Finalmente, a teoria berndiana vai anunciar a morte da Negritude. Retomando


as ideias de Sartre, Depestre e outros, a teórica entende que a consciência negra
proposta pela literatura dos negros é limitadora e insuficiente. Seguindo ao crítico
Hookoomsing, afirma:

[...] a Negritude fracassou porque permaneceu prisioneira de uma duvidosa


mística da raça. Longe de ser uma questão de comunidade de raça, trata-se
essencialmente de uma comunidade de condição. A da opressão. (BERND,
1987, p. 12).

Bernd propõe então superar a Negritude por um novo programa estético-


político, que ela denomina Negridade, onde o negro amplificaria a sua luta identitá-
ria:

[...] paralelamente a sua reivindicação de ser reconhecido como negro, ele


também quer ser reconhecido como operário, como brasileiro, como latino-
americano ou como mulher, nos casos dos membros femininos do grupo.
(BERND, 1987, p. 44).
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A Negridade de Bernd é, como pode se apreciar, uma exigência de que a litera-


tura negra supere a sua consciência racial e desenvolva também a consciência de
proletário, a consciência nacional e, finalmente, a de latino-americano, para partici-
par “na crença de que os homens venham a constituir uma fraternidade universal”,
como propõe Depestre. (BERND, 1987, p. 43).
Estes seriam, de modo extremamente sintético, os pontos fundamentais da re-
flexão de Bernd sobre a literatura negra. Passo a comentar agora esses pontos.
Primeiro princípio: a literatura não pode ser definida pela raça, pois raça não
existe cientificamente falando. Minha posição é que sim, pode. O conceito de raça é
questionado na biologia, mas não na sociologia. Raça é uma categoria social, atual
e atuante, com efeitos reais no cotidiano das pessoas, e que continua sendo o fun-
damento do racismo do século XXI.
É uma crença poderosa que ajuda a manter as hierarquias e os espaços soci-
ais delimitados. Anthony Giddens, em um livro de sociologia recente (2004), define
raça da seguinte forma:

A raça pode ser entendida como um conjunto de relações sociais que permite
que os indivíduos e grupos sejam localizados, e lhes sejam atribuídos vários
atributos ou competências, com base em características de natureza biológi-
ca. As distinções raciais são mais do que formas de descrever as diferenças
humanas – são também fatores importantes na reprodução de padrões de
poder e desigualdade na sociedade. (GIDDENS, 2004, p. 248).

A cor da pele pode não ter nenhuma importância para a genética, mas importa
e muito para a semiótica social: os corpos negros e brancos são construídos não a
partir de dados genéticos, senão da aparência imediata à qual se atribuem valores,
interesses e significações históricas que permitem criar hierarquias corporais.
O corpo carrega essas narrativas e sentidos do mesmo modo que as tatua-
gens. O corpo negro é um corpo marcado. Na literatura negra, por isso, raça e cor
devem ser interpretadas como portadores de valores míticos, sociais, culturais, polí-
ticos e estéticos que se inscrevem e reescrevem na pele e que constituem um ima-
ginário social e artístico sólido e palpável para qualquer um.
Quando Bernd desconsidera esta corporeidade como signo social, substituin-
do-a por um traço enunciativo lingüístico, elimina uma das principais matrizes estéti-
cas e volta a invisibilizar o negro como sujeito produtor de textos específicos. Sua
intenção é construir um autor descorporificado, um puro formalismo lingüístico: um
“eu que se quer negro”, mas que não precisa ser negro.
Frente a esta posição, afirmamos que a literatura negra tem como fundamento
uma política corporal que se desenvolve como uma estética identitária. Isto quer di-
zer que a teorização desta literatura não pode separar corpo, identidade e escrita. E,
neste sentido, deve ser situada junto às problemáticas das literaturas indígenas, fe-
minina e gay.
Chegamos assim ao segundo principio teórico de Bernd: o enunciador da litera-
tura negra pode ser qualquer um, só é preciso “situar-se como negro”. Isto quer dizer
que a experiência íntima, pessoal, física, de ser negro, num mundo dominado por
brancos, estaria disponível para todos, como uma espécie de fantasia literária que
qualquer um pode vestir.
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Levando ao absurdo este principio, poderíamos também dizer que a literatura


feminina é aquela onde qualquer um se situa como mulher e a literatura brasileira é
produzida por aqueles que se situam como brasileiros.
Além desta impossibilidade, temos que relembrar aqui que a literatura negra
escrita por brancos já tem sido teorizada como “negrismo”, para diferenciá-la da ne-
gritude. E o negrismo (onde também aparece um eu que se quer negro) é uma cele-
bração folclórica do negro, sem projeção política, elaborada dentro do sistema domi-
nante.
A ideia de Bernd de que qualquer um pode situar-se na pele de um negro des-
conhece ou pretende desconhecer a importância da experiência vital, da subjetivida-
de como matéria-prima artística. Sartre, que foi o primeiro profeta da morte da Negri-
tude, não chega a esse extremo e reconhece, com maior humildade, que o branco
não pode escrever como um negro:

[...] um branco não poderia falar convenientemente a respeito dela, (a Negri-


tude) porquanto não possui experiência interior dela e nos idiomas europeus
faltam palavras capazes de descrevê-la. (SARTRE, 1968, p 110).

Nadine Gordimer, escritora sul-africana branca e ativista anti-apartheid, deixa


bem clara essa dificuldade para o escritor branco:

A criação de uma identidade negra está baseada numa realidade que ele,
enquanto branco, não pode se arrogar e que de nada lhe serviria se o fizes-
se, já que não faz parte da sua vivência. [...] ele tem de admitir abertamente
que a natureza da sua vivência como branco é completamente diferente da
natureza da vivência do negro. (GORDIMER, 1992, p. 159).

A vivência negra é, então, intransferível, e é a matéria bruta a partir da qual a li-


teratura se vem construindo. Um fazer de conta de que se é negro não passaria dis-
so, um travestismo literário, uma paródia ou um exercício de solidariedade política.
Mas o problema maior na teoria de Zilá Bernd (como em Sartre) é afirmar, sa-
bendo que se está num espaço de enunciação dominante, que a Negritude tem que
ser superada por uma nova fase que, no caso de Bernd, é chamada de Negridade,
ou seja, a exigência de que o escritor negro tem que se identificar com o proletário, o
brasileiro e o latino-americano, para aceder a luta geral contra a opressão e conquis-
tar uma arte mais humana. É necessário, de acordo com nossa teórica, se liberar da
consciência racial (obviamente particular e inferior) para chegar a uma consciência
política de classe (obviamente superior). A Negritude não consegue chegar a esse
universalismo.
Portanto, é imprescindível dissolver-se numa luta maior que o branco sabe qual
é. Porque é o branco que conhece as leis gerais da história. Só nós, os brancos,
podemos construir a sociedade perfeita, “esse outro mundo possível”, que só a nós
cabe determinar qual é como chegar a ele.
Só nós conhecemos o verdadeiro sentido da liberdade, e é isso o que deve ser
ensinado para todos os negros revoltados que ainda confundem negritude com liber-
tação.
Como percebe-se, usei um discurso irônico para, de modo mais rápido, procu-
rar mostrar que a teoria da literatura negra mais desenvolvida até hoje no Brasil pro-
cura na verdade neutralizar um movimento estético desafiador e assimilá-lo ao gran-
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de discurso brasi-universalista. Miriam Alves, escritora negra, vincula, e com toda a


razão, a teoria de Bernd à ideologia de Gilberto Freyre:

[...] Bernd abraça a ideologia genocida apregoada por Freire, segundo a qual
a cor da pele de um negro é importante, desde que deixe de existir paulati-
namente, num processo de miscigenação induzido ideologicamente, a partir
da negação de valores do povo negro e massacre da auto-estima. (ALVES,
2002, p. 236).

Considero que as estratégias que venho de descrever são emergências da


branquitude dentro da teoria e crítica literárias. As principais características seriam
as seguintes:
a) falar desde um espaço de enunciação pretensamente não marcado por inte-
resses étnico-raciais, portanto mais autorizado que aqueles discursos atrelados a
políticas raciais;
b) instaurar a suspeita de racismo nos discursos étnico-raciais, reservando pa-
ra si o autêntico anti-racismo;
c) defender uma literatura, uma crítica e uma teoria literária, baseada em crité-
rios universalistas (sem adjetivos), por tanto superiores aos critérios étnico-raciais.
Aplicados à literatura negra, estes critérios produzem a desarticulação entre
políticas étnico-raciais e escrita, reduzem o conflito racial num conceito de opressão
abstrato e acabam diluindo a diferença da literatura negra em um projeto internacio-
nal de libertação, que é o velho projeto branco ocidental colonizador.
Assim, os desafios colocados pela reflexão sobre a literatura negra são blo-
queados; a concepção da identidade brasileira não será problematizada; a historia
literária que se fundamenta nela não será questionada e, finalmente, a teoria literária
continuará sendo apresentada como livre de toda determinação étnico-racial. Desta
forma, pode-se continuar mantendo o controle institucional sobre a literatura, deter-
minando as verdades estéticas e os rumos que a escrita deve seguir.
Encerro com uma última reflexão: teorizar e interpretar a literatura negra não se
faz dentro de um espaço neutro e incontaminado. Falamos, queiramos ou não, den-
tro de um território atravessado por interesses e conflitos étnico-raciais, onde a gen-
te adota uma posição de enunciação.
Afirmá-los, negá-los, silenciá-los, forma parte desse conflito. E a teoria tem a
obrigação de deixar claro até que ponto esses interesses atuam na compreensão
dos fenômenos literários.

Referências
ALVES, Miriam. Cadernos Negros (número 1): estado de alerta no fogo cruzado. In:
FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lanna e FONSECA, Maria Nazareth Soares. Poéti-
cas afro-brasileiras.Belo Horizonte: Mazza; PUC Minas, 2002.
BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aber-
to, 1987.
BERND, Zilá. Literatura Negra. In: JOBIM, José Luis. Palavras da Crítica. Rio de Ja-
neiro, Imago, 1992.
CÉSAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme suivi de Discours sur la Négritude. Pa-
ris: Présence Africaine, 2004.
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GIDDENS, Anthony.Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.


GORDIMER, Nadine. O gesto essencial. Literatura, política e lugares. Rio de Janei-
ro: Rocco, 1992.
SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1968.

*
Uruguay Cortazzo é professor da UFPel – Universidade Federal de Pelotas e responsável pela
Biblioteca Negra de Pelotas.

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