Negritude e Humanismo
Negritude e Humanismo
Negritude e Humanismo
negritude
e humanismo
1964
EDIO DA CASA DOS ESTUDANTES DO IMPRIO
LISBOA
Apoios Institucionais:
ALFREDO MARGARIDO
negritude
e humanismo
1964
EDIO DA CASA DOS ESTUDANTES DO IMPRIO
LISBOA
apenas se refere a uma negritude, pela primeira vez expressa em lngua portuguesa por Francisco Jos Tenreiro,
no seu livro Ilha de Nome Santo, datado de 1942. E este, por sua vez, assim pretende definir a negritude:
porque a negritude pe de lado faces polticas e patriotismos de mal de pote, e repousa numa conscincia em
vias de renascimento, o Negro neste dilogo que agora se
inicia entre a Europa e a frica, estruturalmente claro
e directo nas suas falas, amargo e duro por vezes a dureza necessria para que os ouvidos de todos a possam
aperceber plena. No ficamos, na verdade, grandemente
elucidados quanto ao que a negritude no seu plano geral
e, ainda menos, quanto ao seu significado no vasto mundo
negro de expresso portuguesa. A falha vinha, porm, de
trs, tinha a sua origem nos tericos franceses que, ao
aceitarem o vocbulo como uma forma sinttica de designar o humanismo negro, acabavam por deixar tudo no vago, no indeterminado.
Aim Csaire e Senghor forneceram, contudo, as primeiras bases para esta incurso no plano do irracional. O
primeiro, num poema clebre (2), fala-nos em
(2) Cahier dun retour au pays natal, Gallimard, Paris.
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A relao tcnica com a Natureza revela-a como quantidade pura, inrcia, exterioridade: ela morre. Pela sua recusa altiva de ser homo-faber, o negro devolve-lhe a vida. J tive oportunidade de mostrar ( 4 ), o quanto de
apressado existia nesta concluso de Sartre, pois o homem
africano nunca poderia ser o homem de uma natureza pura. Tal posio conduz-nos, de resto, a uma involuo,
que nos leva s teses feuerbachianas do mito da natureza
pura. Ora sabemos que qualquer produo apropriao da natureza por parte do indivduo, dentro e por
meio de uma forma social (5). Porque, de facto, no existe nenhum produto da natureza que no possua um lado
natural, directamente ligado maneira como se implanta
no solo, se desenvolve, e ainda s formas que adquire,
e um outro que humano, pois que, ao considerarmos
qualquer produto da natureza, estabelecemos um exame,
uma comparao, inclumos tal produto na rea das formas utilizadas pelo homem. alis Engels quem observa,
na Dialctica da Natureza, que o simples acto de partir
uma noz j uma forma de analisar.
Obliterando, ainda e voluntriamente, todas as aquisies tcnicas das civilizaes africanas, podia Sartre ampliar o alcance da oposio entre o branco engenheiro e o
negro campons, entre a concepo cartesiana do universo
(4) Prefcio primeira edio da antologia Poetas de Moambique,
edio da CEI, Lisboa, s/d.
(5) K. Marx, Zur Kritik der Politischen Oekonomie, 10.a edio,
Pg. XVIII.
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do seu ensaio, nos diga ainda, num comentrio ao processo de julgamento por que tem passado a Europa no pensamento negro africano: Essa Europa, que esperava encontrar um pouco da sua grandeza nos olhos domsticos dos
africanos, veio a verificar que j no h olhos domsticos: h-os selvagens e livres que julgam a nossa terra.
Esta maneira de pr o problema releva do plano lrico-irracional em que Sartre sempre colocou a negritude, pois
que, na verdade, no h essa espcie de liberdade a que
o texto se refere, j que o julgamento do processo colonial
europeu depende, antes, da soma dos interesses nacionais
que intervm na sistematizao dos dados do colonialismo. No se trata apenas de interesses de uma classe, pois
que, neste primeiro momento do processo de liquidao
do colonialismo, as burguesias se ligam intimamente ao
proletariado para tornarem vivel a luta nacional. Mas tal
combate nacional apenas um meio transitrio, vencido
o qual o proletariado se encaminha para a revoluo.
Esquecendo a existncia da necessidade, Sartre transferiu o problema para uma zona onde so voluntriamente
desprezados os problemas das relaes econmicas, no
apenas da Europa colonialista com a frica colonial, como ainda aqueles que so criados pelas relaes entre
o colono e o colonizado. Fazendo das sociedades algo de
inerte, que se define apenas por via de uma essncia negra, acaba por confundir as exigncias sociais, fora de
estabelecer uma distino entre o real e a exigncia de totalidade do humano.
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O RACISMO ANTI-RACISTA
Em muitas passagens de Orphe noir, Sartre aborda, de perto ou de longe, o problema da distino entre
o homem branco e o homem negro, que lhe parece fundamental. E, por isso, querendo significar a distncia a que
se colocam dos brancos os poetas negros, crioulos e malgaches, antologiados por Senghor, diz: O Ente negro,
o Ente de fogo, ns somos ocidentais e longnquos, temos de justificar os nossos costumes, as nossas tcnicas,
a nossa palidez de mal-cozidos e a nossa vegetao verde-cinza.
evidente a existncia de um mal-entendido; os europeus brancos no tero de justificar os seus costumes seno na medida em que possam constituir (e constituam)
um elemento que participe nas tcnicas de alienao.
Como sabemos, o colonialismo europeu interessa-se
mais pelos territrios do que pelas populaes, como foi
notado por A. Sauvy e, por consequncia, o indivduo
apenas lhe importa como produtor ou como mo-de-obra.
bvio que essa prtica colectiva da explorao aparenta no implicar uma responsabilidade pessoal, pois que
parece natural e normal agir como toda a gente. O carcter excepcional que se d s populaes de cor, assenta
ainda numa barreira intransponvel, que ao mesmo tempo social e econmica, uma implicando a outra, num cr12
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rior ultrapassando a fora vital de qualquer negro. A fora vital do branco tal que contra ela os manga, ou
a aplicao das foras eficazes naturais de que dispem
os negros, parecem desprovidas de efeito (9).
Se nos dermos ao cuidado de examinar o contedo
afectivo do mana, o que nele encontramos um verdadeiro conhecimento do destino e da eficincia dos objectos
de que dispe o grupo social, pois que o mana se encontra
localizado, a maior parte das vezes, num objecto comum.
Como bem mostra Tran-Dc-Tho, o mana de uma lana
consiste, apenas, de facto, no prprio poder dessa lana de
matar o adversrio pela aco da ponta. Mas como as determinaes reais so camufladas por uma fora sobrenatural, de pura eficcia mstica, essa mesma lana mata no
por ser pontiaguda, mas, muito pelo contrrio, por carregar em si o mana.
Aproximando estas observaes do que nos relata
o padre Tempels, constatamos que os brancos esto includos no quadro dos manas apenas por controlarem formas
e foras tcnicas que, at ento, estavam fora do quadro
dominado pelo homem. Pois que, com efeito, os seres legendrios, as figuras que formam o panteo e a mitologia
africanas, usam o mesmo tipo de armas, de utenslios e de
ferramentas, que os homens reais na vida quotidiana:
o punhal, a lana, o escudo. Ou seja, a aco mstica, como de resto sucede tambm nas mitologias gregas ou ro(9) Pre Placide Tempels, La Philosophie Bantoue, ed. Prsence Africaine, 2.a edio, pg. 45.
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manas (e mais atrs, ainda, no Egipto, ou na Sumria), reproduzem a estrutura das actividades reais.
Esta constatao, de resto, vem ao encontro de outra,
de um investigador portugus ( 10 ): o negro considera
o branco superior apenas pelo facto de este dominar as
tcnicas, por ser engenheiro-electrotcnico ou engenheiro-mecnico. Do mesmo modo se compreende que os inquritos realizados em tempos no Congo ex-belga, revelassem da parte dos autctones a sua preferncia pelas
profisses que tinham a ver com a lei (o advogado, o juiz,
so os elementos cupulares da administrao, no plano da
lei; equivalendo por isso ao chefe tradicional da vida tribal), ou com a tcnica (o mecnico o homem que domina a mquina, o avio, as ferramentas mecnicas, os escravos de ao que consubstanciam os manas dos brancos;
neste plano o mecnico equipara-se, em parte no dispicienda, com o feiticeiro).
Em tal caso no se trata de uma submisso cultural,
pois que dentro das culturas tradicionais que essa preferncia se verifica, sem significar corte com os elementos
filosficos, familiares ou outros. evidente que o branco
pode desejar fundamentar esta noo de superioridade,
evitando a criao de escolas e de universidades, mas
o humanismo negro explica-nos que tal noo se esboroa
(10) Jos Redinha, Etno-sociologia do Nordeste de Angola, ed.
Agncia Geral do Ultramar, Lisboa.
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nmico que o obrigam a ser apenas produtor de mais-valia. O domnio poltico est directamente ligado aos
modelos econmicos, e estes exigem, por sua vez, o domnio das tcnicas.
O SENTIDO DO COLECTIVISMO
O colectivismo de Jean-Paul Sartre parece querer dizer que as sociedades africanas desconhecem a explorao
do homem pelo homem. Concluso deveras fcil, que esquece toda a longa movimentao social da frica anterior ao domnio colonialista e dele contempornea. Decerto a ocupao europeia criou profundas fracturas sociais e,
mais do que isso, forou o aparecimento de um individualismo que as prprias tabelas de salrios reforaram, mas
isso no impede, porm, que anteriormente a tais perturbaes, no existissem formas de alienao, formas de explorao descaroveis.
No deixa de ser certo, porm, que este colectivismo
uma das constantes das sociedades africanas, que nem
a cidade consegue destruir inteiramente. Georges Balandier, nos seus estudos sobre as sociedades africanas ao
tempo sob administrao francesa, mostra como as relaes cidade-mato se mantm relativamente firmes, mal-grado a distncia que separa estas duas formas de sociedade. Mas, note-se, este facto no sucede apenas com as
sociedades africanas, verifica-se tambm nos grupos europeus de tipo campesino, que permitem ainda, apesar de
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tudo, um esboo de famlia extensa (11). De facto o operrio oriundo dos meios campesinos, mantm ligaes estreitas no apenas com os elementos da sua famlia j radicados na cidade, mas tambm, com aqueloutros que se
mantiveram na aldeia natal. O emigrante galego ou portugus, abandona a famlia na sua terra natal, gasta trinta ou
quarenta anos a trabalhar em algum ponto afastado do
globo, e regressa depois a essa mesma aldeia, alquebrado,
mas com alguns capitais acumulados.
Quer isto dizer, portanto, que tal colectivismo no
constitui um elemento caracteristicamente negro mas se
encontra, em graus diversos, nas sociedades cujo padro
econmico se identifica com o das sociedades africanas.
Quando nos encontramos perante economias de subsistncia, funcionando de acordo com padres econmicos
rudimentares, deparamos com este colectivismo, que exige do indivduo uma entrega total s necessidades do grupo. Tais grupos fechados, transferidos para as zonas urbanas, identificam-se com um tipo de necessidades, de
opinies, de reaces psicolgicas, do mesmo carcter,
pelo que a sua unio, procurando um mesmo local para
habitar, trabalhos de caractersticas idnticas, e tanto
quanto possvel na mesma empresa, mais no faz do que
tentar preservar um sentido comunitrio rudemente amea(11) Ver meu prefcio a Tempo de Guerra, de Vasco Pratolini, edio
Arcdia. No que se refere a comunidades agro-pastoris, ser de interesse
consultar as obras de Jorge Dias e, nomeadamente, a que se refere a Rio de
Onor, edio do Instituto para a Alta Cultura, Lisboa.
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ado, mas que intilmente se tentar preservar. A destruio das bases econmicas que garantiam a permanncia
desse colectivismo, propicia o aparecimento da famlia de
tipo ocidental, constituda por marido, mulher e filhos,
a que, por vezes, se associam os ascendentes directos dos
cnjuges. O salrio individual, exige o encurtamento das
responsabilidades dos indivduos para com a famlia e,
pouco a pouco, esta vai-se reduzindo, at que a famlia
extensa desaparece, fragmentada pelas exigncias econmicas do novo padro de vida.
Estas constataes no pretendem negar que o colectivismo africano no seja autntico, mas to s que o humanismo negro o deve considerar como sendo a directa
consequncia de padres econmicos de tipo comunitrio,
que limita as suas exigncias subsistncia. Logo que
aparecem as economias de mercado e o salrio consegue
vencer a resistncia dos grupos tribais, o colectivismo comea a ser ameaado e acabar por ruir. O aparecimento
de um individualismo negro, corresponde de perto ao individualismo branco provocado pelos mesmos motivos
e percorrendo o mesmo caminho. A desapario da famlia extensa a prova imediata e concreta do facto.
O RITMO
Tambm Senghor nos previne quanto fora da influncia do ritmo na vida do homem negro: quando assisto a um jogo de equipa, a um desafio de futebol, por
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exemplo, participo no jogo com o corpo inteiro (12). Evidentemente, Senghor exagera os particularismos do homem negro africano, pois bem sabido que entre os espectadores brancos se d o mesmo fenmeno, isto , os
espectadores participam no jogo, com todo o corpo, imitando nas bancadas os movimentos dos jogadores, aplicando por vezes alguns violentos remates... nas costas dos
vizinhos da frente. Poderemos dizer que esta participao
se verifica porque, nos genes destes jogadores de bancada,
esto presentes alguns elementos negroides? Seria pelo
menos singular servirmo-nos de uma argumentao deste
tipo para darmos ao homem negro africano o seu domnio
integral do ritmo.
Decerto existe um ritmo caractersticamente africano,
e E. Bornemans constata que quando se ensina a um negro uma msica ocidental, este a submete a trs fases de
transposio:
1 Batimento dos tempos fortes 1 e 3 com o p
e dos tempos fracos 2 e 4 com as mos. (Estes
constituem j uma sncope rudimentar).
2 Desapario dos tempos fortes 1 e 3 batidos pelos ps.
3 Interrupo momentnea das mos, ligao intensa na voz do tempo 2 com o tempo 3 e do tempo
4 com o tempo 1 (13).
(12) Lopold Sdar Senghor, De la ngritude, Diogne, 37, Paris, 1962.
(13) E. Bornemans, Les racines de la musique americaine, Paris, 1948.
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Mas, seja como for, estes ritmos correspondem a formas de trabalho que exigem a participao colectiva do
grupo. Por isso estas canes de trabalho ou so cantadas
em coro, ou por algum que, de fora, comanda o ritmo do
esforo muscular. Tal tipo de canes ritmadas, feitas para
ordenar um esforo fsico pesado e lento, encontram-se
ainda hoje, por exemplo, nos pedreiros que arrastam ou
levantam uma pedra, nos camponeses que ajudam um carro de bois, etc.
Porque, na evoluo geral do som, e considerando
a sua passagem para a linguagem articulada, no difcil
verificar que o grito animal (ainda hoje caracterstico dos
grandes smios), transitou para a linguagem humana estruturando-se de acordo com o trabalho produtor. E este,
era, como no podia deixar de ser, colectivo, tendo ainda
como caracterstica prpria o uso de ferramentas cujas
consequncias materiais, na rea do trabalho, eram idnticas. O canto, a palavra ritmada e organizada em funo do
trabalho, eis o primeiro ponto de articulao da linguagem.
No custa por isso aceitar que A. Schaeffner (14) v ao
ponto de afirmar que a msica negra est em atraso sobre
o desenvolvimento da civilizao africana, se bem que
(14) A. Schaeffner, A msica de frica, in Histria da msica, Larousse,
Paris.
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nos encontremos j perante uma srie mltipla de alteraes, que surgem na medida mesma em que os sistemas
de trabalho e as ferramentas utilizadas se modificam.
por isso com alguma estranheza, que registamos as
afirmaes de Sartre: o ritmo, com efeito, que cimenta
estes mltiplos aspectos da alma negra, ele que comunica a sua leveza nietzscheana a estas pesadas intuies
dionisacas, o ritmo tam-tam, jazz, estremecimento
destes poemas que figura a temporalidade da existncia negra.
Incapaz de ligar as formas do ritmo a formas peculiares de produo, Sartre est em pleno delrio verbalista.
No concebe, nem por um momento, que no haja no ritmo negro africano a menor parcela de pesada intuio
dionisaca, mas sim total obedincia s formas de produo. E s assim se pode chegar aceitao e explicao
das alteraes introduzidas no corpo musical da frica
negra. As formas precisas dos cantos, das danas ou dos
jogos, correspondem a destinos bem definidos. Tanto
o grupo social como as entidades tribais adoptam frmulas colectivamente utilizadas, que mantidas inalterveis
se transmitem de gerao em gerao (como sucede com
os manas, ou com os muquixes). O j citado E. Bornemans classificou estas frmulas em oito tipos fundamentais: 1 Cantos de rapazes para agir sobre as raparigas:
amor, provocao, desprezo; 2 Cantos de guerra: combate, exortao, medo; 3 Cantos de trabalhadores: resistncia, coragem, cansao; 4 Cantos dos padres, feiti27
A CONCEPO SEXUAL
Trata-se de uma das afirmaes mais comuns a respeito do homem negro, a de que ele possui impulsos sexuais
mais violentos, e menos possveis de dominar, de canalizar, do que os do homem branco. Isto querer significar
que a vida do negro africano, e do negro em qualquer parte do mundo, dominada pelo sexo, e que toda a sua
movimentao social se processa tendo apenas em vista
a satisfao de apetites sexuais que, pela sua mesma violncia, o impedem de dar ateno a qualquer outra coisa.
No falta ainda quem, para alicerar esta teoria, procure
no comportamento de algumas populaes negras ou mestiadas (casos de Cabo Verde, do Brasil, das Antilhas),
uma razo adicional que justifique esta tese.
E, no entanto, no ser difcil verificar que o comportamento sexual livre de tais populaes tem a sua raiz
nas prticas colonialistas da escravatura, que no hesitavam em destruir as famlias, em separar os cnjuges, de29
J atrs verificmos que Sartre considera que os versos de Csaire so uma recusa da tcnica por parte do ho32
mem negro e que tal recusa consubstancia uma vitria sobre os quadros tcnicos a que o homem negro esteve
(e est) alheio. Perigosa posio esta que, na sua simpleza, estreita o mundo das relaes do homem com a natureza. Por isso no nos pode admirar que Sartre afirme ainda: do utenslio, o branco sabe tudo. Mas o utenslio
arranha a superfcie das coisas, ignora a durao, a vida.
A negritude, pelo contrrio, uma compreenso por simpatia.
Para recorrer apenas ao trabalho bem conhecido de Jomo Kenyatta (Facing mount Kenya the tribal life of the
Gikuyu) encontramos esta afirmao: os kikuios sabem
extrair o ferro da areia desde h sculos; deste modo
o uso dos utenslios metlicos remonta neles a tempos
imemoriais. Ora a produo de tais utenslios obriga, naturalmente, a uma tcnica de recolha de matria-prima,
a uma outra de elaborao dessa matria-prima, at produzir o objecto-acabado e, finalmente, a uma tcnica complementar, que ser a da sua distribuio. Por consequncia, a anlise da produo do homem mostra-nos que
a essncia humana corresponde aos momentos desta produo. Assim, o termo produo envolve todas as etapas da racionalizao dos sistemas de trabalho, de modo
a criar a ideia e, logo, a forma e a funo do objecto;
a recolher as matrias-primas e, finalmente, produo
desse objecto. O que significa, ainda, que as relaes do
homem negro com a natureza se no processam de acordo
com o idealismo que lhe empresta Sartre.
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De resto, para considerarmos tal pureza perante a natureza, teramos ainda de considerar que o negro africano
no possui habitao, a qual, sendo um instrumento, com
uma determinada eficcia no tempo e no espao, prope,
como no pode deixar de ser, a utilizao de materiais de
acordo com as caractersticas ecolgicas e assim por diante. Por consequncia, a tcnica o conjunto dos gestos
e das operaes que tm em vista um resultado objectivo,
que produz objectos de acordo com uma srie determinada, a qual, por sua vez, se inscreve no conjunto geral das
operaes sociais.
Porque bem vemos ns que a uma determinada forma
operacional que consiste em arrancar natureza, com instrumentos caractersticos, um determinado conjunto de
substncias, corresponde uma outra que depende de instrumentos diferentes, a qual consiste em preservar essas
mesmas substncias. O agricultor negro utiliza uma enxada para trabalhar a terra, para lhe extrair o milho ou
a mandioca de que se sustenta, e vai arrancar a essa mesma terra os materiais com que faz o celeiro, ou as panelas
de barro, onde guardar esse milho ou a farinha extrada
dessa mandioca, para se alimentar durante um perodo
mais ou menos longo. Encontramo-nos perante operaes
tcnicas, perante instrumentos que constituem movimentos da actividade do homem, do grupo social ou tribal.
Podemos remontar ao momento em que o instrumento,
a ferramenta, o utenslio, passou de mero acidente, exigido por uma forma de trabalho, para uma forma de traba34
indivduo que, por qualquer circunstncia, se tenha notabilizado no grupo social. Os antepassados servem de intermedirios para que as foras, os manas, se incorporem
nas ferramentas, nos utenslios, nas armas. A coeso do
grupo garantida pelos antepassados e o seu culto persiste
enquanto as formas de produo se mantm ao mesmo nvel. Ou seja, logo que as foras de produo so obrigadas a orientar-se para outros regimes, por influncia de
foras externas, os antepassados perdem pouco a pouco
a sua influncia e acabam por desaparecer, abandonados
por um grupo que j lhes no reconhece nenhuma autoridade nem influncia.
Georges Balandier, em frica Ambgua (18), conta-nos que em algumas regies da Repblica do Congo lhe
ofereceram a venda de alguns muquixes que, ainda h
poucos anos, ningum se atreveria a vender. O que significa que, sob a presso de novas formas de produo (economia de mercado, salariato), os antepassados deixaram
de influir nos padres morais.
Vale dizer, finalmente, que o culto dos antepassados
caracteriza, portanto, uma determinada forma de produo
e que, por isso, querer atribu-lo como valor especfico da
negritude, releva de uma falta de ponderao dos autnticos valores dos grupos sociais. Releva, ainda, de um idealismo burgus, que voluntriamente se deseja alhear da
realidade das formas de produo.
(18) Georges Balandier, LAfrique ambigu, Plon, Paris.
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CONCLUSO
cantilistas na destruio dos valores sociais da frica negra, devemos verificar que, onde quer que conquistou
o poder, a burguesia destruiu as relaes feudais, patriarcais, idlicas. Todos os laos complexos e variados
que unem o homem feudal aos seus superiores naturais,
foram por ela impiedosamente destroados, para s deixar subsistir o frio interesse nos laos entre o homem e o
homem (20).
No podem restar dvidas, portanto, aos proletariados,
tanto brancos como negros, que todas as formas idealistas
ou espiritualistas tradicionais, so, perante a sua experincia prtica, formas de alienao que, provocadas como
so pelos meios de produo, encerram em si prprias
a negao sistemtica das essncias do proletariado. Tais
formas espiritualistas procuram reforar-se, no sentido de
resistir ao aparecimento de uma humanidade nova, e isto
nas zonas que deram origem e forma ao capitalismo imperialista (isto , a Europa e parte da Amrica), como em todas as regies do mundo onde permanece a alienao imposta pelas formas de trabalho. E isto, quer se trate do
trabalho agrcola mais tradicional, efectuado por meio de
tcnicas ultrapassadas, quer daquele que se realiza no mbito das grandes indstrias que se baseiam num conhecimento cientfico cada vez mais amplo.
Porque o progresso das foras produtivas s pode atingir o seu plano mximo por via do seu completo desen(20) K. Marx, Manifesto Comunista.
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volvimento, sem entraves artificiais determinados pela necessidade de criar, pela rarificao, preos de venda que
permitam garantir um grande juro aos capitais empenhados nas formas de industrializao e comercializao dos
produtos. Mas logo que se atinja um estdio onde seja
possvel proceder a uma apropriao das formas de actividade produtora, sem qualquer excluso, h-de desaparecer
toda e qualquer tentativa de impor a alienao atravs da
produo da mais valia. S alcanado este plano nos poderemos encontrar perante um homem novo, quer se trate
do homem africano quer do europeu.
Para isso necessrio fazer progredir os vrios mercados existentes no mundo, at se chegar criao de um
mercado mundial, nica forma de alcanar a integrao da
totalidade dos produtores numa nica forma de trabalho
comum. Porque caminhamos hoje para formas de produo idnticas, graas a um tipo de mquinas iguais, fabricadas ou pela mesma empresa ou por empresas congneres, e que, naturalmente, funcionam da mesma forma,
estejam onde estiverem. Compreendemos ainda aqui que
a recusa da tcnica, ou do conhecimento da tcnica, como
faz Sartre, impediria o homem negro africano de dominar
as prprias formas de produo.
Decerto ainda no atingimos neste momento um plano
em que se possa entrever uma absoluta identidade das tcnicas e dos sistemas de produo, se bem que, por exemplo, a distribuio de mquinas e ferramentas fabricadas
por um pas para muitos outros, suponha, desde logo, uma
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