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Voluntarios Do Martyrio

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UC-NRLF

B2 852 401
S

VOLUNTARIO DO MARTYRIO
S

FACTOS E EPIZODIOS DA GUERRA CIVIL

PELO

DR . ANGELO DOURADO
Coronel do exercito libertador

1896
TYPOGRAPHIA A VAPOR DA LIVRARIA AMERICANA
PELOTAS
1
7029 J

LOAN STACK
O que ahi vai não é a historia do esforço popular rio-gran-
dense contra o poder esmagador que tentou asphixial-o. E cedo *
ainda para escrever- se essa historia. A tinta em que deve-se mer-
gulhar a penna de fogo para escrevel-a deve ser de justiça, e para
isso é precizo tempo. Preciza-se estudar cada facto nas suas origens,
cada homem nos seus desejos.
Quem escrever essa historia, indagando a genese de todos estas
descalabros, se não conseguir accordar o paiz indicando o declive
rapido que o leva á destruição, conseguirá muito no futuro da hu-
manidade escrevendo a Biblia exacta de um povo que desappareceu
no interesse dos que se apregoavam de Messias da liberdade, da igual-
dade, da fraternidade, da ordem e progresso.
O que escrevo é a impressão da occasi , narrada a quem,
como eu, soffria, a quem teve tanto amor á causa que defendo que
se votou á mizeria, ás privações para não exigir de mim um acto
que me deshonrava , qual seria quietar-me emquanto os companheiros
que eu incitára á lucta morriam e soffriam. Esse acto de resigna-
ção- santificou-a para mim, fel-a martyr voluntaria. Nada modi-
fiquei nas impressões que sentia então e escrevia.
Seria tirar d'estas narrativas, o unico merecimento : a narra-
ção dos factos sob a impressão do momento. Não é portanto um
livro meditado, é um jornal de impressões. O que ahi está será
comprehendido pelos que commigo luctavam e pelos que luctavam
contra nós nos campos de batalha.

502
Era um conversar alegre, um estimulo para o progresso, e as
calhandras nos galhos do molhe ou do umbú applaudiam ás garga-
lhadas com uma melodia terna que adormece o espirito nas quen-
tes horas do dia .
Nunca um caçador interrompeu- lhes os cantares.
De repente aquelles homens levantaram-se sobresaltados e su-
miram-se. Não se via na campanha senão grupos que fugiam para
as bandas do sul. Onde iam elles ? porque abandonavam os pagos,
a casa que os vio nascer, ou que elles fizeram para verem nascer
os filhos ? Depois chegaram vultos estranhos.
A alegria e os risos, mudaram- se em silencio e medo. De re-
pente ouviram gritos, lamentos, preces, depois um gemido rouco no
leito do estupro, um gargalhar satanico, mulheres que fugiam , cri-
anças que não comprehendiam o que aquillo era mesmo depois do
horror, e lá um gritava : Viva a legalidade ! Viva Julio de Castilhos !
Não raras vezes o incendio mandou ás nuvens sua torre de
fumo. Por toda parte o mesmo espectaculo, e na terra onde buscava-
se um abrigo para conservar a vida, a lei da neutralidade, servindo de
instrumento ao braço dos verdugos.
Para cumulo de tudo, em todos estes horrores, em todas es-
tas infamias o nome brazileiro arrastado na lama do despudor, des-
honrado, aviltado !
Aquelles que abandonaram os lares, a fortuna e sabiam- n'a
destruida, voltaram para reivindical- a . Aquelles que acima da for-
tuna collocam o nome da Patria, por que o homem que não tem
Patria digna é na vida um estrangeiro que só poderá viver soffren-
do ou fazendo soffrer, voltaram para com o sangue protestarem con-
tra os patricidas...
As aves fugiram, aquelles que ali estavam não eram os que pre-
paravam os campos d'onde as ceáras verdejantes exhalavam perfumes
que embalsamavam os ares, produziam os grãos de que ellas se
alimentavam ; estes deixavam sómente após si cadaveres insepul-
tos que apodreciam o ar.

*
*

Nós paramos na coxilha emquanto se formavam os piquetes


de exploradores. A nossa invasão estava annuuciada ha muito ; o
inimigo devia estar proximo, era preciso descobril- o.
Emquanto o general Salgado dava ordens, eu percorri a columna
lentamente estudando cada physionomia, cada gesto. Depois de mar-
chas taes poder- se-ia notar alguma contrariedade, algum desanimo ,
e eu queria conhecer um por um todos aquelles em companhia dos
quaes ia jogar a vida.
Nem uma feição contrahida, nem um gesto de desconforto
5

n'aquelle punhado de abnegados quasi nús, desarmados , trazendo


as bandeirolas presas em madeira para fingirem lanças O frio era
intenso, mas o olhar d'elles fixava-se na campanha do Rio Grande,
no sólo da Patria, onde só poderiam viver d'ali em diante, ma-
tando.
Eu pensei então que a chamma do olhar com que fitavam
os vastos horisontes era tão intensa que bastava para aquecer-lhes
o corpo porque ella provinha de uma alma em fogo.
Eu desejava que ao respirarmos as primeiras ondas do ar bra-
zileiro os nossos clarins entoassem a aria de Diana. O clarim é um
instrumento sem claves variadas, mas suas notas agudas têem algu-
ma cousa de mysterioso que penetra até a alma dos voluntarios da
honra accordando idéas grandiosas de lucta e de victorias .
A campanha deserta deixaria que suas notas fossem echoar
de quebrada em quebrada nas coxilhas ; talvez, fossem mais longe ;
talvez fossem mesmo perguntar : Cains, porque e por quanto mataes
vossos irmãos ?

Não tivemos toque de clarim, o inimigo poderia estar perto,


era preciso descobril- o e não denunciar- nos .

Hoje tivemos de pousar na Serrilhada , onde Gomercindo ha


poucos dias, depois de ser constantemente perseguido desde S. Sepé,
resolveu desforrar-se do inimigo e, com arte e manha, pôde atacal - o
de flanco e fazer uma tremenda carga de lança da qual resultou seu
triumpho. No campo ha diversos fóssos onde foram sepultados os
soldados e no pateo de uma casa " os officiaes.
Li ali, escriptos em taboas que estão pregadas nas arvores,
--
alguns nomes conhecidos meus, são moços officiaes do exercito
que nunca tiveram politica e que não tinham parte nos lucros do
Sr. Castilhos e seus amigos , que lá estão em suas casas, no seio
de suas familias, ou nos Clubs, onde se calcula quanto renderá na
divisão dos lucros para cada qual cada centena de mortos na
campanha.
Pobres ! A Patria nutria -os para defendel-a contra o estran-
geiro, e para isso garantia-lhes o futuro das familias depois de.
mortos ; e o Sr. Floriano fez d'elles presente ao Sr. Julio de Cas-
tilhos para mandal-os ao matadouro contra seus irmãos que vingam
o insulto que receberam por terem querido protestar contra o avil
tamento da Patria.
Elles ali estão ; tinham mãe, tinham irmãs, tinham noivas.
Que importa isso ? se não morressem, se não tivessem coragem para
abandonar tudo isso em nome d'essa disciplina só lembrada contra
a Patria, como se mataria o Rio Grande ? Como se arredaria este
obstaculo do caminho d'essa sphinge que tem traçado seu plano
de dominio sobre este povo "bestialisado ?
Que descancem, e assim deixarão de soffrer o martyrio de
serem algozes de seus irmios que se ennobrecem pela altivez e co-
ragem com que defendem seus direitos contra o algoz que os quer
destruir. Descancem, e se triumphar a iniquidade, que ás voзsas
familias não chegue a paga que hão de ter os escravisadores do Rio
Grande é a paga de Judas Scariote, manchará eternamente.

*
**

Os diversos grupos que se achavam á nossa espera, vão se


chegando , alegres , animados .
Mas que cousa desoladora é o encontro d'esses parentes ,
d'esses amigos, d'esses irmãos, d'esses filhos, d'esses paes,
d'esses netos, d'esses avós ? Ha tempos que não se viam .
Uns estavam emigrados, outros em campanha, outros occultos
nos mattos d'onde só agora puderam sahir para se encorporarem
aos reivindicadores . Raro é o que não veste lucto, raro é o que não
tem para narrar a outro uma desgraça, um crime perpetrado pelos
agentes da legalidade. Mortes, incendios, destruição, estupros , são
cousas tão communs que, quem os ouve parece estar mergulhado
no inferno dantesco ; nem a figura do Conde Ugulino falta ali .
Depois, vêm os protestos de vinganças futuras juradas com
lagrimas nos olhos.
Outros, contam como em tal batalha ou combate já começára
a desforra. A degolla é a lei da guerra fratricida, o que não se faz
entre extranhos se faz entre irmãos !
E' que o insulto, a oppressão entre os da mesma raça, por
motivos futeis, ou pela sêde de poder, são mais odiosos .

Sahi d'ali acabrunhado .*


O que será de nossos filhos, se precisarem um dia lutar como
estou lutando ? O que acontecerá se triumphar esta iniquidade ,
que nos está matando se até lá houver um só ' homem da raça, bra-
zileira que não seja escravo de uma hierarchia de senhores ?
Muito me tem preoccupado isso.
Em que nos tornamos nós !
Que é feito d'essa Patria tão calma, tão nobre que nos en-
chia de orgulho no confronto com os nossos visinhos ?
7 -

Commettemos tamanho crime que o destino para nos punir


surprehendeu-nos com um governo que nos manda matar e nos leva
a esse excesso ? E' a pena Thalião "dente por dente, olho por olho . “
Mas ha provocadores, ha quem isto tenha feito na paz por surpre
sa e traição , e a nação cruza os braços a taes crimes e os crimi-
nosos são ainda galardoados !
Pobre Patria ! Despedaçaram os laços que te conservavam em
equilibrio, e n'esse declive medonho, n'essa vertigem da queda, onde
irás tu parar ? onde o abysmo mais profundo do que o em que te
achas agora senão a destruição completa ?
Não. Aqui está este punhado dos martyres da honra que te
hão de salvar. Confia.

Estamos acampados na margem de Santa Maria, em frente á


estancia do nosso amigo Custodio Brazil. Gomercindo depois dos
seus actos de heroismo, approxima-se de nós. Temos que esperal- o.
Aproveitando este repouso fui visitar a estancia. Está deser-
ta ; as portas abertas, as casas vazias ; nem uma rez se vê .
Aquelle vasto parque, tão cheio de aves e de animaes do-
mesticos, onde nossa comadre trabalhava o dia inteiro , está cheio de
erva maninha. Na cocheira apenas se vêem ossos de animaes que
ali morreram ou foram mortos . Fiz mal em ir á estancia.
Foi ali que tú convalesceste cercada das attenções dos nossos
amigos, foi ali que nossos filhos correram pelos campos, brincaram ,
tornando -se gaúchitos ; foi ali que, emquanto tù, descuidosa, tran-
quilla pelo futuro, conversavas com a comadre, tendo ella nos bra-
ços a nossa Laura, e nossos filhinhos ajudavam aos peães no tra-
balho do campo, eu communicava ao compadre todas as minhas
apprehensões sobre o futuro da Patria, sem com tudo pensar, por
que as almas leaes não prevêem a infamia, que esta guerra civil,
impreterivel, podesse ter por causa immediata tantos crimes e tan-
ta perfidia .
Debalde procurei ali um objecto que tivesse uma recordação
tua e de meus filhos ; nada encontrei , a propria relva é outra ;
mais de um anno passou-se. O ar que respiraste os ventos leva-
ram a outro hemispherio ; o chão da casa já foi pisado por pés
que devem ter feito crestar a propria gramminea que em torno vi-
cejava.
E para que procurar no exterior aquillo que se tem na alma ? o
que guardará mais a tua imagem, os teus risos, as tuas lagrimas,
todo teu ser do que o meu espirito ?
Uma luta cruel se estabelece em mim : de um lado estás tú,
pura e santa companheira que um dia te uniste á mim e acceitaste
17 8 —

compartilhar da minha sorte sem condições , porque deves te lembrar :


eu não te illudi, não fingi-me docil, obediente como hypocrita.
Minha vida foi sempre uma lucta, sabías ; lucta que nada ti-
nha para mim, mas sempre abraçando a causa do mais fraco, um
D. Quixote, talvez, mas um D. Quixote consciente, amando a justi-
ça e sobre tudo odiando tudo que poderia dar prova de que ainda
não eramos um povo capaz de emancipar-se. Mais de uma vez
tu assististe, e já minha esposa tú partilhaste os meus trabalhos
quando com prejuizo de toda a classe, menos da honra, me oppuz
á que uma familia potentada aniquillasse outra onde nos haviamos.
hospedado em nossa passagem pelo sertão.
Meu genio altivo, minha indole indomavel, tornavam- me refra-
ctario á doblez, e a vida só deslisa suave e lucrativa onde a doblez
se une á intelligencia. Tem a sorte das aguas que correm á som-
bra dos canniços. Não encontram obstaculos, não formam cascatas,
não espadanam ; permanecem tranquillas, mas lá no fundo ha lodo in-
fecto que surge ao menor movimento, e a sucuruiba que ali vive
apodera-se muitas vezes do que ousou revolvel- as.
Porque turval-as, se ellas vivem tão quietas a putrificarem as
folhas e as flores que as arvores deixam cahir insensivelmente ?
Tal é a alma dos villões.
Quando te uniste a mim já me conhecias e foi por isso que eu
te amei, não foi a tua belleza, não foi o teu nome tradicional de
familia, - amei o amor que tu me deste. Depois deste-me o
que pode encher de orgulho a um homem forte deste-me filhos
fortes, robustos, bellos de causar inveja.
Quando eu pensava na vida o meu pensamento chegava só-
mente até o ponto em que elles podessem viver por si ; vivo ou
morto eu, tu continuarias feliz vivendo d'elles, querendo- me mais
por t'os ter dado.
E eu te abandonei em terra extranha, sem ter certeza de que
os recursos com que conto te cheguem ás mãos porque, ausente eu ,
tudo se difficultará. Deixei meus filhos que, morto eu talvez, tenham
de se conservar inuteis como a larva que não consegue romper o
casulo onde se aninhou ! Um mundo de phantasmas passa-me pela
mente, até mesmo o insulto , a miseria, a fome eu vejo junto de ti.
Porque ? por acaso nossa porta, a nossa pobre bolsa fechou-se
algum dia aos necessitados ? não.
Entretanto, a idéa de que chegarás a soffrer miserias faz- me
quasi perder a razão. Depois me vejo resuscitado, porque a guerra
civil é um sepulchro de vivos e vou encontrar talvez um pouco de
terra onde se sepultára algum de meus filhos.

Do outro lado está a Patria. Seu antigo nome manchado ;


-- 9 ―

sua tradição de povo honrado, calmo, moderado porêm constante


no progresso desfeito .
Aquelles babitos de moderação e prudencia desapareceram .
As grandes luctas moraes que tiveram como armas a palavra
fogosa de uns, calma e reflectida de outros ; a imprensa , essa fecun-
dadora dos povos quando digna, onde, os amantes do progresso e
da liberdade exerceram um santo apostolado , tudo isso desappa-
receu .
De repente a insidia e a traição plantaram a lei da força que
exerce o aventureiro noturno contra o homem desarmado que dorme
tranquillo confiante na lei ; e esse acêrvo de ignominias espalhou-se
por toda parte. A nação sem luctar foi dividida em vencedores e
vencidos, e a corrupção que é a morte moral dos povos , peior do que
a morte physica, infiltrou-se nella com a propagação por contagio .
A força vio com surpresa que era senhora, e tinha razão.
Que valor pode ter o homem que o interesse obriga a beijar
a mão que acaba de esbofeteal-o ?
Que infamias, que baixezas não será elle capaz de praticar ?
Porque não se utilisar d'elle como instrumento para • execução dos
planos ? Foi isso o que pensou o Sr. Floriano que chegou a ser o
primeiro magistrado d'este povo . Seu plano está traçado : implantar
o terror e se fazer o deus omnipotente.
A' todo aquelle que ousar clamar elle mandará o raio que
fará callar.
O que será desta terra sem espirito patrio, sem laços que unam
os homens e que os tornem abnegados, stoicos ante o martyrio e re-
solutos na lucta ?
Os talentos mais salientes, as figuras mais sympathisadas ou
transigem para serem bem olhados, ou deixam destruir já que tudo
não lhes póde pertencer immediatamente.
Nessas condições a tyrannia se implantará para sempre em nossa
Patria.
Um a um d'aquelles que ousarem pensar e desejar a lei e
a liberdade, desapparecerão na voragem da ambição insaciavel desses.
homens que em torno de si não vêem senão o eu. -
A Ponte dos Suspiros, a Bastilha, serão rudimentos de oppres-
são n'essa tyrannia sul-americana onde a população rarea no
territorio em que se vive do trabalho e accumula- se nas cidades onde
se quer viver dos cofres publicos.
O que será de nossos filhos que, herdando o meu genio como
herdaram a minha physionomia, quizerem luctar e portanto , ou suc-
cambirão na lucta, ou procurarão as selvasonde decrescendo na edu-
cação moral, poderão encontrar a liberdade condicional? N'essa vida
social que levamos, os filhos vivendo só da herança paterna, ou rara-
mente surgindo um ou outro vulto progenitor de si mesmo, eu pen-
10 ---

sava em preparar os nossos para essa luta herculea do futuro , em


que os descendentes da actual familia brazileira para não desappa-
recerem ante a immigração europea já habituada a lutar pela exis-
tencia, teriam de conquistar terreno palmo a palmo no proprio sólo
onde nasceram .
Não era a fortuna material que eu desejava para elles, - era
a fortuna moral.
Mais de um descendente de familias riquissimas, e muito de
perto o sabemos , nós temos visto para viver não contar mais do
que com o trabalho quotidiano, ao passo que, emquanto uns vão
pelas ruas ou pelos arraiaes sertanejos arrastando na indolencia os
rôtos vestidos de seus avós, outros que em tempos idos eram seus
famulos, pela aptidão são senhores das terras que lhes formavam o
antigo patrimonio.
Para que um pae possa perpetuar a riqueza material na fa-
milia será preciso que, ou elle conte com a identidade dos seus
descendentes, ou que elle mesmo se perpetue na vida á frente da
fortuna ; ao passo que a riqueza moral n'um meio honesto nem só
poderá ser perpetuada como desenvolver-se ainda progressivamente.
Era essa riqueza que eu pensava dar a meus filhos contando
com os nossos habitos de povo honesto e com os nossos costumes de
povo morigerado.
De repente, porém, a ambição de poucos homens accordando a
vesania de muitos destruiu tudo.
O caracter, a tradição, o nome glorioso de muitos que a nos-
sa historia registra , desappareceu, foi tudo levado ao balcão onde
foi vendido.
Não bastava a vendagem - era preciso mais. No declive para
o crime, os degrãos são quasi como um plano escorregadio. Em um
momento cae-se do mais alto fastigio no lodo das cavernas mais
profundas.
E' um abysmo que não tem fim . Despenhando-se uma vez
tem-se que descer sempre , sempre, até que se perca a consciencia de
si mesmo.
Que haviam de fazer aquelles que observando isso contando
dia a dia todos os fastos d'essa hediondez, viam a patria que se
deshonrava e a familia que ia desapparecer ? Que haviam de fazer
senão o que estou fazendo? - Lutar para ver se é possivel pôr um
paradeiro a esse escombro anniquillador.
Foste testemunha das minhas vigilias, das minhas tristes appre-
hensões : sentiste commigo os meus brados de indignação e de dôr ;
viste- me com lagrimas nos olhos - bradar com a convicção de
que ainda era possivel accordar n'elles, o sentimento de que erravam ;
que uma vez cheia a taça da amargura d'esse povo não seria pos-
sivel contel-0.
11

Aos meus reclamos, aos meus gritos de angustia pela


Patria respondiam com um insulto, e para escarnecerem redo-
bravam de crueldade e de crime.

Então vi que só com sangue poder-se-ia lavar essa mancha
que nodôa nosso nome e pedi esse sangue.
E' preciso que elle se derrame, é preciso que essa guerra seja
cruenta para ensinar-nos a comprehender os nossos direitos, exer-
cel- os, defendel - os com os nossos actos moraes para não ser preciso
defendel-os com a vida.
Ο μονο indifferente é o povo que se deixa escravisar, e povo
escravo é por sua vez povo tyranno.
Aconselhei aos paes, aos filhos, aos esposos, aos noivos, aos
irmãos , a virem defender a Patria se querem ter o direito de ter
familia.
Penso que ao homem honesto não é justo nem digno acon-
selhar a outrem a arrostar o perigo sem ir com sua pessoa pro-
var que o fez com pureza de sentimento, com convicção .
Aqui estou com elles lutando e disposto a lutar até o fim.

Se eu morrer nesta luta em que julgo cumprir o meu dever,


dize a meus filhos que morri no meu posto de honra e que na
hora extrema eu os verei lutando como eu no futuro.
*
**

Eu só vi Gomercindo uma vez ahi em Melo quando na agita-


ção revolucionaria me procurou.
Conversamos um pouco sobre a revolução ; elle como um ho-
mem que resolve as questões por si mesmo, fez-me perguntas que eu
respondi.
Finalmente perguntou-me com que elementos contavamos para
a luta ; respondi-lhe : -com o nosso direito postergado e com a nossa
vontade a que esse direito serve de couraça .
- Você não sabe o que é a guerra contra o governo que
tem tudo, disse elle armas, munições e dinheiro ? E o dinheiro com-
pra adeptos .....
Compraveis, disse eu.
Sim, mas estes são muitos. Eu tenho pratica d'isso , tenho
passado minha vida nesta provincia e tomado parte em todas
as suas lutas.
O povo se levanta, mas o governo o abate não deixando- o
12

respirar. Ultimamente tiveram todos os elementos para uma lucta


séria, mas tiveram Quebracho. - Você não teme um Quebracho
na revolução ?
Não, respondi-lhe. Quebracho, na interpretação de muitos foi
uma traição, ou foi um descuido . Creio que fosse descuido.
Quando os filhos de uma terra pegam em armas com a convicção
de que defendem o seu direito, a idéa de traição , que sempre faz
suppor uma paga, não pode ser admittida. O futuro clareará esse
ponto obscuro d'essa lucta oriental .
Sim, ha de clarear.
-- A falta de armas .... disse eu .
Armas ? perguntou-me elle , bastam-nos poucas para o co-
meço. Precisamos é de cavallos e o Rio Grande os tem.
-Sim, senhor.
Eu tinha medo de uma desillusão ; sou um homem nedroso .
Falla-se-me n'um homem, se me diz coisas d'elle que me enchem
de esperanças .... procuro-o, vejo- o, corro para elle na minha boa
fé, na esperança de encontrar o que me fizeram crer....
Desillusão encontro um ser vulgar, sem irradiação propria,
creando para si uma zona artificial .....
Quando lhe vi tive medo de me desilludir, seria um mal para mim
que hoje de nada mais, penso do que n'essa lucta que espero rege-
nerará a nossa Patria. Me dóe viver n'um paiz estrangeiro contra
minha vontade.
Esta terra aonde me asylo é bôa, seus habitantes mostram
uma energia dos tempos antigos ; não são livres, mas se não fos-
sem dignos e viris seriam escravos.
Não ha muitos dias eu assisti á instalação de um collegio de
educação sob a direcção do Dr. Caixeiro , un medico intelligente,
que teria um grande futuro se procurasse um theatro mais vasto.
Ante aquella festa de civilisação eu não pude conter -me ; discursei
e prognostiquei para esta terra todas as grandezas futuras, porque
cuida da educação de seus filhos .
Mas, a idea de que estou aqui emigrado, os crimes, os horro -´
res que campeam impunes no sólo patrio, me fazem pensar que só
depois de ferido em combate teria o direito de pedir asylo em ter-
ra extranha .
- Muito bem, sim senhor, me disse elle. Eu tambem tinha
medo de encontrar em si um homem molle, um doutor. Tenho lido
seus escriptos e dizia commigo : Ahi está um que julga que guerra
é comer bifes e fazer discursos ; mas agora vejo que é um homem
que não ha de recuar.

Sim, estarei com os meus companheiros em todo o terre-
no e em todos os perigos .
Me agrada. Mas o que pensa sobre a terminação d'isso ?
13

E' difficil triumphar uma revolução n'uma patria onde tudo se aquie-
ta. A lucta é desigual entre nós e o governo que se appoia nos
outros Estados.
Eu respondi-lhe : "
Eu não encaro uma revolução como as guerras inter-
nacionaes em que as batalhas decidem num momento o direito do
mais forte. A revolução é um protesto do povo contra seu governo .
Sou medico e medico de pobres, portanto tenho visto mais enfermos
do que os de meu tempo e comparo a nossa terra a um enfermo.
Qual a molestia ? A revolução . Qual a causa ? O Governo.
Pois bem, se a revolução é um conjuncto de simptomas, o me-
dico que quer combatel-o deixará morrer o seu doente por inanição.
A lucta do medico é com a origem da molestia, lucta da vida
com a morte da qual elle é apenas mediador. Se a causa triumpha
o doente morre. Assim é a nação onde o governo que irrita só tem
direito de viver dos restos da destruição.
-
Sabe que lhe estou querendo bem. Você está falando uma
linguagem que eu sinto cá em mim .
Emfim, lhe disse eu , o meu pensamento é este : se esses
homens que assassinam e roubam em nome da republica, persistem
em nos mandar matar, em vez de se levantar a bandeira da sepa-
ração do Rio Grande, como pensam uns poucos que julgam que a nação
é a culpada da perversidade do caracter de uns poucos rio gran-
denses, eu preferiria que se levantasse a bandeira da restauração
da monarchia.
A separação seria isolar do todo uma parte pequeña entre-
gando-a a todos os perigos . Separar-se o Rio Grande, seria consti-
tuir uma congregação de homens que pediriam elementos para a
lucta vendendo a alma ao Diabo. De mais, teriamos contra nós to-
dos os Estados do norte.
O Rio Grande, que muito tem recebido da nação , é por sua
vez o orgulho d'ella porque ; é o Rio Grande o que recebe os pri-
meiros combates do inimigo : é a nossa guerrilha da vanguarda.
Não ha um rio - grandense que viage pelo norte que não conhece
quanto todos os brazileiros amam aos rio - grandenses.
Separal- o será converter esse amor em raiva .
Se a republica continua a ser assassina do Brazil, está com-
mettendo um suicidio ; portanto, para salvar a Patria só teriamos a
restauração da monarchia, ainda que nos viesse um Belzebuth , com
tanto que a unificasse sem sahir da lei .
Qual separação, amigo ! você não sabe o que é um paiz pe-
queno : é o mesmo que viver no meio da campanha cercado de ini-
migos. Vamos luctar pela republica. O Brazil póde ser grande ainda .
-
Sim, lhe respondi, mas para salvar a republica será preci-
14 ---

so lutar contra todos estes que se dizem republicanos . Elles não


farão a republica e nos matarão a Patria.
As orelhas de Midas servem -lhes de vela para a nave dos
seus interesses .
Perguntou-me o que é Midas.
Respondi. Deu uma gargalhada, e disse-me: voltarei, me agra-
da a sua conversa. Estou contente.
Não voltou. Seguio para a Coxilha Grande deixando -me um
abraço pelo Ibarluséa .

Foi o primeiro que se vio perseguido. Tivemos que mandar


Pedro Diogo para salvar as armas que lhe vinham. Para isso con-
correu o trabalho medico do nosso amigo Dr. José Adolpho Ferrei-
ra que, tendo feito uma operação na mulher de um negociante da
estrada, este em attenção á elle recebeu as armas e occultou-as para
entregal - as á Gomercindo.
Gomercindo foi o primeiro que pisou em armas o sólo rio-gran-
dense. Depois lutou no Salsinho, no Minuano , D. Pedrito , Santa
Anna, Bagé, Alegrete, Jararaca, Inhanduhy, Upamaroty, Bagé (to-
mada de mil e muitos cavallos ) de S. Sepé até á Serrilhada, salvan-
do assim a revolução e mostrando-se heróe em todos os seus actos.
E' elle que chega hoje, é elle que vou vêr : é o salvador .

*
**

Estamos acampados na margem do Sta . Maria. Chegou o nos-


so amigo coronel Severino Brazil que me vinha dizer que Gomer-
cindo se achava no Quartel general do general Salgado e que vi-
ria visitar-me. Esperei-o com um pouco de café ! Momentos depois
appareceu elle montado n'um cavallo zaino negro ; vinha triste . Ves-
tia um sobretudo comprido com golla de pello, que não sei quem
lh'o havia dado e tinha por baixo uma camiseta de lã . Já havia
chegado ao ponto de não ter no corpo senão a bombacha e um pon-
cho-pála. Demorou-se pouco .
Tinha passado apenas para ver-me e ia esperar a sua gente.
Ao retirar- se, eu ergui-lhe vivas que os que por ali se acha-
vam corresponderam com enthusiasmo.
E'este homem incontestavelmente o maior elemento com que
pode contar a revolução: activo, simples, misturando-se com os seus
--
companheiros elle só é chefe para cuida-los, para salval -os no
perigo e para leval-os á victoria. Os homens que saem de suas ca-
- 15 ---

sas para empunhar armas pela Patria - só podem ser mandados


pelos seus iguaes em habitos e costumes.
Quem tentar a um exercito de patriotas, dar disciplina militar ,
ficará sem exercito e sem disciplina.

Nossas marchas agora têm sido de commum accordo com Go-


mercindo. Tem-me agradado isso .
Parece-me que, se o general Salgado não tiver com elle al-
gum contratempo, nada impedirá nossa victoria que será proxima .
Felizmente nem um nem outro tem corypheus. Não ha nada peior do
que os amigos ursos, mais realistas do que o rei ; elles destróem tudo
para prepararem o terreno para si .
São como os gauchos nomadas capazes de destruír o rancho que
poderia abrigal-os em uma noite de tormenta, para poderem ter fogo
que aqueça a agua para o chimarrão.

Hontem ao sahirmos de Caçapava deu-se um facto que muito


contrariou- nos.
As passagens pelos povoados são sempre prejudiciaes. Por
maior que seja a vigilancia do chefe, não deixam de vender bebidas
alcoolicas, d'onde a embriaguez de muitos e d'ahi actos repugnantes .
Uma ordenança do general Salgado embriagou-se e , passando
por uma casa, tentou violar ou violou uma moça. O general man-
dou-o pôr nas estacas e ia mandar fuzilal-o, mas antes disso fez
vir a victima para ser examinada. Essa victima é uma creança im-
pubere. Examinei- a e não encontrei nada que indicasse o crime ou
ao menos tentativa d'elle. O que haverá n'isso ? Será essa crian-
ça tão perversa que chegue a imaginar coisas tão horripilantes ?
ou a victima uma outra, mandou-a para ser examinada em seu lu-
gar áfim de não se mostrar ou não ser conhecida ?
Em todo caso, cumpri o meu dever. Por causa d'esta não
havia motivo para uma punição extrema.

*
**

Hoje encorporou-se ao exercito o Dr. Carvalho, do Rio Pardo .


Parece ser disposto e será um bom elemento de ordem n'este meio
onde não ha pleito, mas que são precisos juizes .... de paz .
Não me agrada, porem, o modo familiar com que elle trata o
general. Trata- o por tù.
Se não sou amante da pragmatica militar, não o sou tambem
d'essa liberdade com o que tem de mandar e ser obedecido para
16 -

poder ser o unico responsavel. Oxalá não se reproduzam aqui as


scenas que nos iam anniquillando depois do Upamaroty.

As expedições mandadas de Caçapava produziram bons re-


sultados. A da Encruzilhada prendeu o chefe castilhista de nome
Porto, cunhado de um meu antigo affeiçoado,o Dr. Silveira, hoje pro-
vavelmente um dos meus infamadores, sendo castilhista, como cons-
ta-me.
Obediente ao meu systema de fazer o contrario de tudo o
que julgo um crime, dirigi-me ao acampamento do exercito de Go-
mercindo afim de reclamar o prisioneiro para mim, afim de tratal- o como
convinha. Esse acampamento estava distante do do general Salgado
onde me achava, cinco leguas. Em caminho passei pela' casa do ex-
tincto visconde de Serro Formoso. Uma casa grande, como uma das
nossas fazendas do interior da Bahia, tendo nas paredes os retratos
d'elle e de tres filhos, todos condecorados na campanha do Paraguay
Que digna familia essa ! rica, vivendo nos seus campos, aban-
donando-os para ir lavar o nome da Patria insultado pelo estran-
geiro. Que differença hoje que aquelles que são os prepostos da patria
para guial- a e defendel-a são os que a infamam!
Encontrei o prisioneiro contente e satisfeito. Declarei-lhe a
que ia e respondeu -me que estava bem ali na barraca do coronel
Estacio Azambuja que o havia aprisionado. Desejava porem voltar
se o general permittisse ; garanti-lhe que ia cuidar d'isso e que
elle havia de permittir.
Voltando para o meu acampamento perdi-me à noite e muito
custou-me a encontral- o.
Não deixou de ser um perigo, por que o inimigo, segundo as
explorações , não se acha muito longe.

O inimigo ao que parece quer metter-nos n'um circulo .


A'nossa rectaguarda , além de Cacapava, está a estrada de
ferro que passa pelo Rio Pardo e o Jacuhy, navegavel até Cachoeira.
D'ali facilmente poderão os que vierem de Porto-Alegre flanquear .
nos pela esquerda. Prucurando flanquear- nos pela direita acha-se a
chamada divisão do norte, gente do senador Pinheiro Machado, unico
adversario de prestigio real na região serrana, mas autor ou consenti-
dor dos crimes horrorosos que se deram ali.
Na Coxilha de S. Sebastião , em nossa frente, á esquerda , está o
general Bacellar com forças de linha. Em nossa frente à direita está
S. Gabriel com a guarnição de linha da cidade, com artilheria e as
dom 17 ----

forças do Dr. Fernando Abbott e coronel Portugal. Além de tudo isto


temos que lutar com a topographia do terreno serros alcantilados
e pedregosos, sangas de bordos escarpados, arroios e banhados.
Em nossas marchas encontramos sempre vestigios recentes de pique-
tes inimigos.

Acabo de chegar da casa do Sr. Antonio de Macedo, um


dos filhos do visconde do Serro Formoso e pae d'aquelles meninos,
amigos de Angelo e que sempre iam á nossa casa em Bagé ; estão
crescidos, perguntaram-me por Angelo.... Que lhes havia de dizer,
se não que está muito crescido, que deixei-o em paiz estrangeiro
e que em breve talvez , terá de ser o chefe da famila, aos 11 annos?

Hoje tive occasião de ver a execução das leis revolucionarias.


Gomercindo exige e impõe todo o respeito ás familias . A' noite
dois companheiros foram a uma casa e insistiam para que abrissem.
O modo da insistencia indicava más intenções : felizmente ali per-
noitavam alguns officiaés que abriram e os prenderam.
Um d'elles foi creado pelo proprio Gomercindo , que muito o
estimava e que em pranto o condemnou á morte.
Ao desfilar em frente dos cadaveres, o meu velho Guerreiro
Victoria mandou a columna olhar á direita e falou aos companhei-
ros mostrando-lhes os corpos d'aquelles valentes que no outro dia não
teriam a honra de enfrentar o inimigo e que ali ficavam mortos in-
gloriamente e infamados pelo máo comportamento.
O Sr. Porto, que nos vai deixar, admirou-se d'esse rigor pela
moralidade e disse mais de uma vez que nunca pensou que os re-
volucionarios fossem tão severos em sua disciplina, a que respondi
99 Se o Sr. Julio de Castilhos depois da deposição de armas em Bagé
tivesse garantido a palavra de seu amigo Arthur Oscar, palavra
de um militar que deve ser honrada mesmo quando não dê a sua

honra em penhor, como fez aquelle coronel do exercito brazileiro ,
e apesar de deshonrado ahi luta a favor dos que o obrigaram a in-
famar-se ; se elle se tivesse opposto á ida a Bagé das forças do ge-
neral Luiz Alves, incapaz de zelar até pela honra dos seres mais
caros ; se mesmo depois mandasse punir os assassinos. e ladrões , o
Rio Grande estaria em paz, porque a emigração não se daria e
um povo que não tem habitos de lutas politicas a golpes de sabre,
difficilmente se resolve a entrar n'essa luta somente para ir ao poder.
66
" O Sr. general Tavares não tendo querido derramar sangue,
2
18

apesar do esforço de seus companheiros que não queriam depôr


armas sem lavrar o protesto com o proprio sangue, havia procura-
do um asylo no estrangeiro para passar os ultimos dias de sua
vida. Os Estados Unidos têm os olhos sobre nós á espera de que
nos cretinizemos em favor d'elles ; em poucos annos talvez a familia
brazileira actual seja o que são hoje as antigas tribus indigenas. ,,
O Sr. Porto apoiou tudo quanto eu disse e pedio-me que o
occupasse em alguma cousa porque desejava servir-me.
" Pois bem, disse-lhe eu, diga là a seus amigos que os que
aqui estão não são bandidos nem estrangeiros , e nem defendem
suas idéas por amor ás arrecadações do erario publico. Se alguma
cousa fazem que não seja da lei da guerra é porque têm que fa-
zer justiça por suas mãos, já que a justiça escripta nos codigos
das nações civilisadas é interpretada pelos juizes d'elles de modo
que em vez de serem punidos os criminosos, aguça mais o desejo
do crime n'estes, punindo as victimas que reclamam . “
O Sr. Porto abraçou -me e retirou-se. Apenas elle sumia- se ao
longe , chegava o enviado de Gomercindo avisando o General Salga-
do que achava- se á vista o inimigo, no Serro do Ouro, em frente
ao qual escrevo estas linhas.
**

Que cousa extranha é esta de dizer-se : marchamos para a mor-


te ! Os semblantes não se alteram , ao contrario, parece que todos
se alegram. Será porque o fatalismo nos convença de que a nossa
hora não é chegada e portanto não teremos que morrer, ou porque o
homem que se atira a esta luta de martyres - heróes, sente pra-
zer em dizer que morreu pela honra de sua Patria ?
Não sei . Sei porem, que, na marcha accelerada que vinhamos
fazendo para enfrentar o inimigo, eu não pensava em mim, pensava
em ti, minha pobre amiga e no futuro de nossos filhos . Não
ponho em duvida de que tú saberás educal- os, mas terás forças para
isso com a indole de nossa familia, com os nossos costumes sem acção ,
não farás d'elles debeis para as lutas, esperando somente, como os
párias , junto ás escadas dos governos que lhes atirem um pouco de
pão n'um emprego publico, uniforme, arrastadiço, servil em toda a
vida ?
Por ventura, o espirito que lhes transmitti quando os gerei
não será um motivo de luta eterna para elles que terão de levar
ás costas esse rochedo de Sysipho que se chama a vida de funccio-
nario brazileiro , quando a educação não lhes amortece os sentimen-
tos, quando a necessidade não lhes atrophia a fonte da independen-
cia ? O que será d'elles ?
O que será de ti ? E minhas filhas ? A minha pobre Chi-
quinha que tanto precisa de uma educação fortificante !
19

A minha meiga Laura cantarolando quando veste seus han-hans


novos, o que serão ellas ? Estericas, imprestaveis até para a or-
dem commum da familia ? Perdoa-me se algum dia te chegarem ás
mãos estas linhas, se em frente ao perigo , eu que te abandonei
por amor de uma utopia, duvido agora do teu bom senso para a
educação d'elles. E'em frente ao perigo que a razão julga com
rapidez, e a minha razão não me accusa por te ter abandonado
pelo martyrio, pelo sacrificio e pela morte, talvez .
Se, por acaso, eu te abandonasse por gozos, por vaidade,
te juro que no primeiro momento, achando-me senhor de mini , pen .
sasse no meu crime, faria saltar os miolos que não funccionaram
com regularidade para mostrar-me que te maltratar, para gozo meu ,
não commettia somente um crime, mas um sacrilegio .
O que soffro, porem, me é agradavel por que diz-me que me
colloco em um nivel acima do commum dos homens, que sou digno
de minha Patria, que te mereço e que meu nome será uma herança
digna para meus filhos , se elles souberem comprehender os deveres.
do cidadão que não póde viver na humilhação do escravo ou na
aurea charneca dos mercenarios .
E minha mãe ! A minha pobre Laura ! os meus irmãos ,
os meus amigos !
Tão longe estão ! mas n'este momento extremo a todos elles
envio um pensamento cheio de saudades.
Suspendi essas locubrações ao ouvir os primeiros tiros das
guerrilhas da vanguarda.
Commanda-as Apparicio Saraiva, irmão de Gomercindo , que
foi plantar seu estandarte em frente ao inimigo. Ao sumir-se o sol
calou-se o tiroteio, cada qual guardando suas posições.
Eu estive nos diversos pontos de guardas e só ao anoitecer pro-
curei a minha barraca, que armaram no meio do campo, onde der-
rama-se à luz de um luar esplendido e começa a cahir uma geada
penetrante.
Em caminho comecei a cantar uns versos que um amigo ser-
tanejo pôz em musica, mas que nunca publiquei. Foram feitos a ti
nas minhas ultimas ferias na Baixa Grande. Nem tú acreditavas
que eu podesse pensar em ti então ; nem eu pensava que serias um
dia à minha companheira ; hoje mãe e martyr. Escrevel -os , por-
tanto, é justo, tú os lerás algumas vezes se isto te chegar ás mãos
e te lembrarás que eu já te amava quando tu pensavas que na tua
affeição por mim, no teu amor, nada mais havia do que o teu segredo :

Se um dia em teu leito mais branco que a neve,


Com a face apoiada no teu travesseiro
Ouvires no ar passando de leve
Um brando suspiro, da dor mensageiro,
20

Creança, não tremas não tremas de medo


-
Sou eu que saudoso vou ver-te em segredo.

Se adormecida, tu vires no sonho


Por entre as cortinas surgindo medroso
Um pallido rosto de aspecto tristonho
Fitando-te, oh ! virgem, subtil cauteloso ,
Creança, não tremas, não tremas de medo
-
Sou eu que saudoso te fito em segredo.

E se nessas noites de meigo luar


Fitares a lua, a virgem do céo,
Se alguma nuvem por ella passar
E a sombra envolver-te como um negro véo ;
Creança, não fujas, não fujas de medo
-Sou eu que saudoso te abraço em segredo .

Se acaso, na chacara, sentares sonhando,


Com teu pensamento baixinho a fallar ,
Se um colibry junto a ti voando
Os labios de rosa chegar- te a beijar ;
Creança, não cores, não cores de pejo
Sou eu que ousado te roubo esse beijo .

Estes versos foram cantados em muitos lugares por onde pas-


saste commigo ; mais de uma vez os ouvi sem te declarar que os
havia escripto.
Não têm valor litterario, mas foram feitos a ti no começo
do romance de nossa vida, da tua sobretudo, em que só eu 3 fui pro-
togonista. Terminarei o meu papel amanhã ?
Tu seguirás no teu que te dará no fim a aureola de santa.
Amanhã, 27 de Agosto, começará a batalha. Se vencermos, a
luta continuará por que o governo do Brazil tem bastantes rebanhos
n'este povo para mandar ao matadouro.
Se perdermos, a revolução estará adormecida por muito tempo
porque ella não cessará senão com a punição dos que a provocaram.

Difficil seria descrever o que é a vespera de uma batalha,


sobretudo numa guerra de irmãos, para aquelles que, sem recur-
sos, sem meios, levam suas vidas como um protesto ante a tyrannia
dos aviltadores de uma nacionalidade.
Os fogos em pouco são apagados . Não se ouve aquelle can-
- 21

tarolar de uns , o gargalhar de outros . Tudo torna-se severo, grave, <<<


só interrompe o silencio o tropel dos cavallos dos officiaes de ronda
е о - quem vem lá das sentinellas . Pouco a pouco parece que
tudo adormece ; o silencio ordenado estende-se melancholico sobre
o punhado de heroes, cobertos de andrajos, aos quaes a noite envol-
ve no seu manto de luar e gêlo. Só o tropel dos cavallos dos offi-
ciaes de ronda, o quem vem là das sentinellas o interrompe .
Quasi todos dormem ; os homens sem imaginação adormecem
descuidosos até ante os espectaculos mais grandiosos. Os que pen-
sam, porém, não podem dormir. Se fecham os olhos ao presente, se
fogem de pensar no futuro, a imaginação toma azas , aviva a memo-
ria e vôa por esse céo do passado, ora risonho como a luz suave
do sol matinal cahindo sobre a campina florida, ora tempestuoso
como os mares que o pampeiro açoita, ora triste e lugubre como a
perda de uma crença que se julgava unica .

Que longa noite é esta em que te escrevo ? Embalde busco o


somno e elle foge ; embalde procuro outras ideas, outras lembranças
que possam tirar - te do meu pensamento, mas tua imagem persiste
n'elle como estas figuras aereas que os pintores poetas collocam
nas paysagens onde o sol que se esconde derrama os seus ultimos
raios e a noite vem envolver a terra nas suas trevas.
Que fazer ? vamos, meu pensamento ! Já que o presente é
frio e tetrico como a humidade da minha barraca, jà que amanhã é
um acaso da sorte, dá-me na recordação dos dias felizes, mais al-
gumas horas que symbolisem annos . Essa recordação não esmorece
ao guerreiro convicto, ao contrario, fal -o á se esforçar para o trium-
pho ; e se morrer levará na ultima imagem, impressa nas retinas,
o retrato d'aquelles que o fizeram feliz ; triumphador, voltará ao lar
coberto de trapos, cheio de cicatrizes e de cans , e dirá : olhem-me bem ;
estes andrajos são emblema da vida do homem de brio ; essas cans
fazem-me velho ? pois minha alma se remoçou na luta, purificou-se
de todas as puerilidades, crystalisou- se no crysol dos soffrimentos.
Se o corpo enfraqueceu , se as feições se alteraram, ella se
remoçou para mais amar, para mais querer na concentração de todas
as suas faculdades.

Foi-se a noite. Sepulte-se o passado talvez para sempre. Já


nossa vanguarda tiroteia ; marchamos para a batalha ―― para a
victoria ou para a morte. Adeus !
22 ---

Vencemos. Nos fastos da bravura poucos casos se verão iguaes


a esse. Gomercindo combinára com Salgado o plano da batalha.
Tinhamos um pequeno arroio para passar, arroio que nos offerecia
grandes difficuldades por serem as barrancas muito altas e margi-
nado por mattos muito cerrados . Salgado com suas forças devia
passar no lugar onde havia uma pequena picada e atacar o inimigo
pelo lado do norte ; Gomercindo atacal- o -ia de flanco pelo lado de leste.
O inimigo occupava o serro que se estendia do sul para o
norte, cahindo sobre o arroio , como uma tangente, junto á picada
alludida. Do lado de léste havia parallelas ao serro muitas san-
gas que tornavam a marcha quasi impraticavel. Gomercindo durante
a noite fez uma picada e ainda com escuro transpoz o máu terre-
no, de modo que ao despontar do dia achava-se n'uma coxilha em
frente ao serro d'onde o inimigo abrangia- o n'um fogo incessante.
Ao clarear do dia chegou á minha barraca 0 coronel Se-
verino Brazil que ia em nome de Gomercindo dizer ao General
Salgado que elle já se achava empenhado na luta .
Salgado mandou montar marchamos em busca do passo.
Cinco minutos depois já desfilavamos debaixo de uma verdadeira
chuva de balas. O inimigo havia tido o bom senso de privar-nos a
passagem, por onde iriamos mettel- o em dois fogos, sem se lembrar
talvez, que Gomercindo ali estava e que havia de praticar caminhos
onde elles nunca esperavam. Fui logo chamado á retaguarda onde se
achava ferido o major Delfino Porto, e mais tres vezes tive de
voltar para vêr feridos, de modo que muitas vezes em idas e voltas
tive de passar no ponto onde era mais intenso o fogo do inimigo.
Depois de vermos que era impossivel vadearmos o arroio, o
General resolveu voltarmos pelo mesmo caminho sem darmos um
tiro porque não podiamos gustar a pouca munição que tinhamos, e
procuramos a picada que Gomercindo havia feito, tendo conseguido
porem , passar ali o tenente coronel Izidoro Dias Lopes com um
pequeno numero de atiradores atacando o inimigo com coragem . Ao
chegarmos junto á casa onde haviamos pernoitado, apeei-me para
extrahir uma bala de um companheiro e curar outros. O General
Salgado marchára com o seu estado maior e o exercito desfilava
em busca da picada.
Muito custou-me passar pela columna, para chegar ao arroio,
onde o barro já impedia os movimentos rapidos do cavallo , mas eu
tinha pressa porque deviamos ter muitos companheiros feridos na
columna de Gomercindo ; afinal consegui passar, e a galope procurei
o rumo d'onde vinha o som da fuzilaria. O caminho era máu , ora
uma sanga, ora um banhado, faziam-me afastar ou aproximar do serro
parallelo ao em que eu corria.
Nessa occasião descobri a columna que nos havia privado a
passagem e que já se dirigia para onde se estava brigando.
- 23

Era um reforço poderoso para o inimigo ; receioso pela sorte


dos bravos companheiros da columna de Gomercindo eu gritava para
a columna que me estava na retaguarda que apressasse a marcha que
o inimigo ia ter grande reforço. Os da columna que não me ouviam
e que tambem avistavam o inimigo gritavam-me que não me affastasse
tanto para não ser colhido por elle ; mas eu não os ouvia e quan-
do assim fosse tinha que seguir porque meu lugar era onde haviam
feridos , e quem se atira a uma luta destas olha a vida como uma
parcella insignificante no problema do dever. Ao aproximar-me
de uma coxilha não ouvi mais o fogo continuado da fuzilaria, nem
as balas inimigas sibilavam mais nos meus ouvidos .
Uma terrivel angustia, accommetteu- me. Nós tinhamos pou-
ca munição . Teria- se esgotado sem pronunciar- se a victoria ?
Ah ! se as forças de Salgado tivessem podido operar, tal não se da-
ria ! Aquella era a primeira batalha depois do Inhanduhy. Perdida
ella a desmoralisação seria o seu corollario e a tyrannia crearia rai-
zes n'esta infeliz Patria. Se tivessemos marchado uma hora antes
não teriamos encontrado obstaculo na passagem, e a victoria seria
infallivel. Por uma hora de demora da nossa columna ia perder- se
o sacrificio de milhares de martyres, e ia desapparecer toda a es-
perança de um povo opprimido. E eu galopava sempre.
Ao chegar ao cimo de uma coxilha o que vi, que seria n'uma
guerra internacional, digno de saudar como a dignificação de um
povo, fez-me tremer e lagrimas desceram-me pelas faces contrahidas.

A columna que me vinha á retaguarda, por meus movimen-


tos, comprehendeu que a victoria era nossa. Que terrivel espectacu-
lo se apresentou à minha vista ! Ha duas noites passadas, eu te
escrevia com phrases que sahiam-me da aima e humedeciam o pa-
pel com lagrimas de saudades de ti e dos tempos em que a vida
era um lutar constante, mas com a suavidade das aguas que des-
lisam em terreno propicio.
Sahir d'aquelle sonho despertando nesta lugubre realidade
onde se mata para não morrer ! E porque ? Qual a idea que obri-
gou o Sr. Julio de Castilhos a vender o Ric Grande ao Sr. Flo-
riano Peixoto para, destruindo- o, lançar sobre o Brazil as cadeias do
captiveiro ?
O espectaculo que vi não se descreve. Ouvia- se de todos os
pontos occupados por nossas forças os clarins a tocarem sem cessar
as notas lugubres, que ordenam carga e carnificina , como n'um ui-
var desolador.
Os nossos lanceiros subiam e desciam do serro como phan-
tasmas que vôam sobre os rochedos. Faziam lembrar as phantasti-
cas walckirias das lendas germanicas.
24 ―

As bandeirolas brancas das lanças pareciam azas de aves de


rapina que precipitam-se sobre a presa : era um baixar e erguer-se
sem cessar. Em pouco aquellas bandeirolas tomaram a côr do san-
gue em que se molhavam.
Gritos, lamentos , supplicas, promessas, gemidos , extertores,
---
imprecações, insultos formavam a harmonia d'esse cataclysmo que
se chama guerra civil, onde um mata para libertar-se, e morrendo
quasi que sorri, e outros matam ou morrem por obediencia, para
que os que mandaram matar ou morrer possam gosar ; onde não ha
quartel, onde não ha prisioneiros, onde a senha terrivel é mata
se não queres morrer. Depois os grupos se afastaram, uns cor-
riam para poderem viver e outros voavam após para matar.
O meu caminho era indicado pelos cadaveres e feridos. Aqui,
um que agonisava, ali outro que gemia, além outro coberto de san-
gue, sentava-se junto do cadaver de um irmão, de um amigo
e com o olhar feroz buscava além a victima para vingança. Cada-
veres nús em grande numero : eram dos nossos adversarios, por
que o revolucionario, o voluntario da honra e da miseria , cobre a
nudez, abriga-se do frio, com as roupas ensanguentadas dos que
são pagos para destruil- os .
Aqui estava um moço de feições sympathicas, mãos delicadas,
uma carteira de cirurgia perto d'elle.
Seria um medico, esse abnegado que leva a vida aos combates
para salvar a vida dos outros ?
Ali estava outro de barbas loiras, grisalhas ; era um chefe.
Adiante o cadaver do bravo Pedro Diogo ; jovem ainda, le-
vára o sangue ao Paraguay para desaffrontar a Patria. Velho , chefe
de numerosa familia que vivia do pão que amassava quotidiana-
mente com o proprio suor, veio dar a vida aqui para libertal-a.
Os cadaveres dos nossos accendiam o odio dos exaltados que
davam busca por todos os esconderijos .
O infeliz Annibal Maciel era o mais encarniçado n'aquella
busca. Afinal a arma de um que vendeu càro a vida poz termo
áquella insania .
Eu cuidava de um ferido quando ouvi tiros e gritos. Corri
para lá áfim de pôr termo aquelle espectaculo horrendo .
Deves te lembrar do velho Marcolino que em Melo procurou- me
quasi cégo, e depois de curado passava os dias fazendo versos a mim.
E'um poeta sem cultura, um rimador incansavel ; valente como
um tigre . Trazia comsigo um filho de 14 annos, tão valente quanto
elle. Perseguia a um rapazinho que defendeu-se mettendo-lhe uma
bala no ventre , que o levou á terra. Os companheiros que chegaram
quizeram vingal-o , mas ao mesmo tempo, chegava Marcolino que
gritava : não matem, não matem ! ,, - E' o matador de seu filho,
responderam -lhe. —— Sim, eu sei, por isso quero-o para mim.
25 -

Tive medo de uma vingança horrivel, não me lembrando que


aquelle valente é um poeta. Cheguei á elle e perguntei-lhe o que
vaes fazer, meu amigo ?
Adoptal -o , respondeu-me, em prantos. Matou meu filho ,
mas matou-o em sua defesa. São da mesma idade, virá para o lugar
d'elle.
Olhei - o com admiração. N'aquella hecatombe foi o primeiro
acto de sentimento humano que vi.
Depois na longa agonia do filho vi- o sempre a conversar com
elle, que o animou até exhalar o ultimo suspiro, e ali perto, ajudan-
do, trazendo um pouco d'agua fresca, o prisioneiro, o matador de
seu filho .
Um outro facto doloroso desta guerra, onde os pequenos se
matam para goso dos grandes, foi o seguinte :
Um pae, pertencente ás forças castilhistas , lanceou o filho,
de 16 annos de idade, mais ou menos, pertencente ás forças revo-
lucionarias . Ferido mortalmente, reconheceu o pae ao cahir, gritan-
do-lhe que o tinha morto . O velho , conhecendo toda a crueza do seu
acto, atirára-se do cavallo, abraçára-se ao corpo do filho moribundo
---
que já difficilmente articulava a phrase E meu pae, quando che-
gavam os nossos que, julgando que aquelle velho commettia a
carnificina propria dos homens da legalidade castilhista, mataram- o
á golpes de lança sobre o corpo do filho agonisante que nos ultimos
sopros de vida ainda dizia : E meu pae.

*
**

Eu percorria os lugares onde se achavam os feridos . Em cima ,


onde a estrada atravessa perto do cemiterio e onde mandei sepul-
tar Pedro Diogo, estava um grupo parado porque os cavallos preci-
savam resfolego. Haviam muitos cadaveres por ali.
A columna de Gomercindo se havia dividido para perseguir o
inimigo derrotado.
Um, dos que ali descançavam em meio dos cadaveres, tocava
n'uma harmonica que havia tirado de um morto, outros dançavam .
Estavam alegres ante tão rapida victoria e se esqueciam que todos
aquelles mortos eram irmãos. Tal é a moral das guerras civis ! Na
luta do matar para não morrer - a morte dos semelhantes , sejão
elles irmãos, é um degrao para a vida .

*
**

Pouco adiante alcancei o General Salgado que dava ordens


para que sua columna , que ainda vinha longe, tomasse uma direcção
afim de vêr se era possivel seguir a columna que nos havia priva-
26

do o passo e que vindo encorporar-se com a outra encontrou- a der-


rotada, e escapava-se, e poderia ser alcançada.
Tendo noticia de que havia feridos das forças de Gomercindo
dispersos e estando a columna d'elle longe ; e pelas sangas e nas
rochas occultos, naturalmente, destroços da columna derrotada, mandei
pedir ao General Salgado por intermedio do Dr. Carvalho, chefe de
seu Estado Maior, um piquete para ir procurar aquelles compa-
nheiros feridos.
Voltou o Dr. Carvalho dizendo que elle negava o piquete por
que na retaguarda não havia inimigo. Tive de organisar um pi-
quete entre aquelles que bailavam e tocavam.
Pouco adiante fizemos dois prisioneiros e encontramos um of-
ficial que me declarou que não havia por ali nenhum ferido, por-
quanto cada corpo levára os seus para diante.
Approximei-me de novo ao Estado Maior do general Salgado
que marchava longe do seu corpo de exercito que nem podia ser
visto por causa das serranias que se interpunham entre elles. Iamos
sós, portanto, avistando a columna inimiga composta talvez de 500
homens que retirava-se.
Uma volta rapida d'ella bastaria para nos esmagar. Fiz sen-
tir isto, quando Felippe Portinho, Israel Sá , Gayer e outros se pro-
puzeram a ir tomar a cavalhada e munições da columna fugitiva.
Aos primeiros tiros a columna accelerou a marcha da fuga por-
que a columna de Apparicio Saraiva seguia pela estrada e por-
tanto devia envolvel-a tomando -lhe o unico ponto de retirada . N'es-
ta fuga precipitada deixavam bagagens, carretas e munições, tudo o
que poderia privar-lhes a marcha.
O cavallo de Israel Sá cançou e eu tive de offerecer-lhe o
que trazia de reserva. E nós corriamos perseguindo os fugitivos,
e Apparicio corria pela estrada para tomar-lhes a frente.
Por onde passavamos, o triste rastro de um exercito em der-
rota feito de sangue e cadaveres era o que encontravamos.
Pelas casas não viamos mais do que physionomias de terror
nas mulheres e estupor nas creanças. Lagrimas e preces em toda a
parte, e só ouviamos esta phrase singella que exprime tudo :
" Irmãos contra irmãos, que é isto, meu Deus ?!

·
E nós corriamos . Era a perseguição louca do caçador á presa
que lhe foge. Eu não via meu rosto, mas pelo que se passava em
mim, calculo que estaria triste a causar dó.
Alguns se occultavam nas cazas, eu me approximava para
impedir as buscas.
Em uma d'ellas vi toda tremula e chorosa uma pobre moça ;
animci-a e ella chamou- me para dar-me uma chicara de café e
27 www.y

assim ter occasião de pedir- me protecção para o noivo que estava


occulto ali. Demorei-me um pouco e depois segui quando vi que
não havia mais perigo para elle.
Em outra casa os habitantes entregavam o que haviam prepa-
rado para o alimento da pequena familia durante o dia, aos nossos
companheiros famintos. Ali estavam duas senhoras de luto, ambas
viuvas , porque seus maridos haviam sido, ha pouco , degollados pela
legalidade.
O General Salgado e seu Estado Maior, bem montados, perse-
guiam o inimigo, chegando até ás portas de S. Gabriel onde ao
passar n'um banhado seria morto, se um companheiro não ferisse o
inimigo que atirava contra elle.
Fizemos muitos prisioneiros, entre elles o velho e respeitavel
tenente-coronel Marinho. Quando voltavamos vi que alguns dos
nossos dirigiam-lhe insultos. Corri para junto d'elle, marchei algum
tempo a seu lado e só retirei-me quando chegaram officiaes aos
quaes o entreguei para fazerem-n'o respeitar.
Não tinhamos comido em todo o dia. O meu bagageiro trazia
ainda uma lata com biscoitos que restava das que havia comprado
em Caçapava. Dividi-a entre os companheiros dando o maior quinhão
ao General Salgado a quem procurei occasião para dizer que
não estava correcto porque um general só póde desembainhar
a sua espada, para com seu exercito abrir caminho por entre
o inimigo, ao que elle respondeu-me se não fora isto não teriamos
uma victoria campal.
O burro que conduzia o meu cargueiro com o barulho havia
disparado atirando tudo fóra. Perdi tudo .
Felizmente a grande colheita do dia fez com que os que haviam
achado a minha mala entregassem-n'a a Gomercindo.

*
*

Gomercindo acampou perto do Serro do Ouro e Salgado


perto de S. Gabriel. Ia acampar-me junto a Salgado, como era meu
dever, por ser chefe do corpo de saúde e elle o general em chefe
do exercito, quando recebi um pedido de Gomercindo para ir ao
seu acampamento onde havia muitos feridos.
Começava a noite e o meu cavallo cançado. Tinha sabido da
recente passagem de Apparicio por ali e corri a ver se o alcançava .
Tive de ir só. Felizmente a lua começou a despontar vermelha como
a Deusa sangrenta dos povos escravisados.
O acampamento de Gomercindo estava a duas leguas de dis-
tancia . A lua que já illuminava a campanhia, fazia distinguir e reco-
nhecer aqui e ali os vultos que até então não pudera descriminar.
Eram cadaveres de homens e de cavallos, era portanto o caminho
- 28

que eu seguia em busca dos que era preciso fazer vivêr, o mesmo
que horas antes seguiam os meus companheiros em busca dos que
era preciso matar.
Paes de filhos que precisam de educação , esposos que traziam
n'alma o retrato das esposas, filhos unico amparo da decrepitude de
seus paes, irmãos unico sustentaculo do pudor de suas irmãs, que
viam fugir a vida n'esta luta cruel, n'este capricho insano dos par-
venus na desgraça de nossa Patria.
Um dia antes haviam passado por ali , alguns ufanos, sem se
lembrarem que eram instrumento vil dos infames que para lucro e
goso proprio mandam destruir a Patria ; outros obrigados, sentindo
o sopro da morte perto de si e sem coragem para fugirem d'ella. "
Cobardia ! A morte que elles inflingem aos que tentam de-
sertar é igual á que elles iam ter no campo da batalha, mas
ficar-lhes-ia a honra de terem morrido por não terem querido ser-
vir de algozes de sua Paria.
Quando ali passaram iam em festa, sabiam que eramos poucos
e desarmados, e a nossa posição má ; mas o que pódem praticar os
que entram em luta contra os governos que roubam, deshonram e
matam, nem Leonidas seria capaz de imaginar.
Depois, por ali passaram fugitivos, e os que elles pensavam
matar vinham -lhes no encalço tão proximos como um vento de des-
graça que sibilla nos ouvidos ; e os cavallos que cançavam ou mor-
riam deixavam que os cavalleiros fossem colhidos, para seus cada-
veres servirem-me de signal, na busca dos acampamentos.
Que triste cousa é passar-se sósinho á noite, á triste luz do
luar por um campo de batalha ! Que desolação ! que prostração do
espirito que negação d'essa civilisação hypocrita, quando esse cam-
po de batalha é o torrão sagrado da Patria que nossos avós crea-
ram, que nossos paes honra: am, e que nossos irmãos escravisaram !
Ali estão cobertos de sangue os cadaveres das victimas ! Os
olhos amortecidos mal reflectem os raios diffusos da lua. Parecem
almas que morrem , almas criminosas que arrependem-se tardiamente
ante a hediondez do crime que commetteram .
Pobres O que vos trouxe aqui ? - A idéa , dirieis vós.
Que idéas tinheis ? Será idéa que nobilite seguir- se o vilão
ambicioso que vende a dignidade propria a trôco das migalhas do
que hontem o enxotou e a quem chamou de - tres vezes trai-
dor ?
Do miseravel que esquecendo- se do nome heroico de sua ter-
ra , percursora da liberdade brazileira, mata-a como Herodes matara
Baptista, para ser agradavel á sua amante ?
Pobres ! Vossos cadaveres mudos, inertes, regelados , parecem
reviver, e n'esse quadro lugubre que representará esta phase negra
da Patria onde um punhado de martyres procura desfazer a nuvem
29

que tolda o patrio sol, eu vos vejo erguidos, redivivos, conhecedo-


res de todas as infamias que se vos mostravam como idéas di-
gnas, a esbofetear o infame patricida bradando-lhe em face :
Judas, por quanto vendeste tua mãe ! Caim, porque mataste teus
irmãos ? Traidor, quanto te pagaram para fazeres desapparecer
para sempre as glorias rio-grandenses ?
Seria o teu amigo a quem chamaste tres vezes traidor
que te comprou ? ou o estrangeiro querendo penetrar no sólo brazi-
leiro, te prometteu lucros futuros, o teu dominio absoluto sobre teus
irmãos que queres escravisar, e tú te vendeste por esse futuro ?
miseravel ! destruindo a tua Patria !
Este Rio Grande, cujos filhos pela dignidade civica , pela abne-
gação no heroismo, encheu de glorias as paginas da historia con-
temporanea ; esse torrão sagrado que te vio nascer, que te nutrio ,
é o que tu matas pela ambição de um poder que será teu só com
a destruição de todos que d'elle mesmo se nutriram e que por elle
dão a vida no martyrio .
Por acaso será possivel que descendas de algum escravo que
odiando ao que o escravisou beijava-lhe as plantas quando lhe dava
um manto velho para cobrir-se ? Quem poderá saber o que tú és e
para onde vens ?
Esses cadaveres estão mudos para sempre. Pobres, ignorados,
elles apodrecerão ahi onde estão, onde ficarão, onde lhes manda-
ram em vida servir de instrumento maldito para fortuna dos que
em suas casas calculam os lucros futuros da commandita .
E falan em Patria ; em lei , os miseraveis ! ..
Eu quizera que este triste campo que percorro podesse ser
visto pelos povos bestialisados , que elles sentissem a mesma impres-
são que eu sinto ; que nascesse n'elles o mesmo odio que me domi-
na contra esses monstros, que explorando a parte venal de um povo,
parte que elles conhecem porque foi n'ellas que nasceram, mandam
atar esses infelizes que viviam nos seus pobres casaes, vivendo
do pão do trabalho proprio.
Oh povo, oh misero instrumento, por que esse teu rugir que
assemelha a tempestade, recae sobre teus iguaes, sobre teus filhos,
sobre teus irmãos no martyrio ? Elles não são mais do que as victi-
mas da bestialisação , a causa de tudo isto lá está, e é a causa que
se deve atacar e destruir.
Tú vens aqui, oh homem, vender caro a vida n'uma carnificina
horrivel . Tú não tens medo da morte porque ella não faz tremer os que
marcham por dever. Pois bem, olha este espectaculo, e entristece - te
ante elle. Ali estão as victimas trazidas ao matadouro como rezes
manietadas ; a causa de tudo isto é sempre um homem só ! á homem ,
em vez de vires aqui te ennobrecer mostrando tua bravura, affron-
tando com a morte e matando teus irmãos, compra um punhal , pe-
30

netra nos palacios e no meio dos lacaios cobardes, mata o que,


para poder viver manda-te morrer.
Morrerás depois. Que te importa isso ? por acaso vens aqui
nestas lutas cruentas para voltar com vida ? A morte só faz medo
aos poltrões que se escravisam e aos infames que se vendem.
Para o homem de brio morrer aqui ou ali que importa ? E li-
bertar a Patria, de um tyranno, que gloria !
Poupar a vida de milhares de irmãos, que humanidade ! Chris-
to desappareceria diante de ti , ó homem, se n'essa marcha rapida
da escravisação désses a tua vida pela de milhares de irmãos, ma-
tando os que o mandam matar.

Felizmente cheguei ao primeiro acampamento onde havia feri


dos . Ali alcancei Apparicio Saraiva e em companhia d'elle percorri
todos os outros que se achavam distantes .
Quando chegamos ao acampamento de Apparicio, duas horas da
manhã, onde estava o quartel general de Gomercindo, fazia um frio
de arripiar.
Apparicio desde as 4 horas da manhã estava a cavallo, foi o
primeiro a sahir para a batalha e o ultimo a voltar. Estava rouco
de não se poder ouvir o que elle dizia.
Quando passamos pela sentinella que bradou quem vem
lá ? elle respondeu : companheiro, mas muito companheiro.
Sendo intimados a procurarmos outro caminho, porque havia
ordem de não se passar por ali onde se achavam os prisioneiros ,
nós nos approximamos do fogão do piquete, onde tomavam mate
e offereceram a Apparicio que acceitou com soffreguidão . Depois , no
melhor bom humor, disse para os seus commandados : " Minha barra-
ca está ali , mas para ir là precisó voltar e ir procurar um passo lá,
lá, muito longe. Vocês não querem que eu passe, passe , ficarei aqui e
dormirei ahi depois que me derem um churrasco, porque tenho uma
fome come de quinze dias. Para mim não é nada, vocês sabem que
onde vocês estiverem eu estou bem, mas aqui está o nosso Dr. Dou-
rado que andou por toda a parte vendo os nossos feridos ; onde é
que vamos mettel-o ?
Vamos fazer uma cousa, nossos cavallos estão cançados, e onde
ha cavallos cançados não se cumpre ordens ; nós vamos passar por
aqui devagarinho, sem barulho e amanhã ninguem se lembrará d'is-
to porque já estaremos marchando para brigar outra vez. A senti-
nella concordou e nós seguimos o nosso caminho depois de uma
gargalhada sonora de Apparicio Saraiva.
31

Niguem dormia no acampamento, cada qual pensava nas gran-


des scenas do dia.
O que teria sido de nós senão fôra aquella carga de lança ?
O que teria sido d'elles se as forças de Salgado tivessem entrado
em acção ao mesmo tempo que as de Gomercindo ?
Alguns riam -se do que haviam visto, outros choravam isolados
pelos parentes e amigos mortos ; muitos gemiam . Passei pela barra-
ca de Gomercindo que não dormia e já meditava no que deveria-
mos fazer no outro dia.
Era o heróe, o vencedor, o salvador de todos nós e da revo-
lução.
Sua physionomia, porém, nada tinha de extraordinario era a
mesma, calma, severa, risonha ás vezes por um dito jocoso de qual-
quer dos companheiros .
Ao chegar á barraca do coronel Brazil, onde ia descançar, este
mandou- me preparar ceia ou almoço . Nunca me havia repugnado os
cadaveres no meu tempo de estudante, ali, porem, não pude tragar
o churrasco que me trouxeram, porque me parecia que comia carne
humana.
Rejeitei- o apesar da fome que tinha, contentando-me com uma
grande porção de café feito n'uma panella. Depois estirei-me sobre
os arreios e dormi um longo somno de quatro horas.
Uma noite de vigilia, um dia de luta e quasi uma noite de
trabalhos, esse repouso de quatro horas era uma especie de correcção.
O corpo despertou prompto para lutar.
*
**
Conversando com Gomercindo sobre os successos do dia ante-
rior, procuramos advinhar qual seria a causa de não ter a guarni-
ção de linha de S. Gabriel auxiliado os castilhistas que lhe deve-
riam ter implorado protecção conforme as cartas que haviamos encon-
trado no bolço da blusa do Coronel Portugai , commandante da columna
derrotada, juntamente com cartas da esposa d'elle, escriptas na ves-
pera em que almejava-lhe mais uma victoria. O tratante mentia á
mulher provavelmente até em contar-lhe victorias que nunca obtive-
ra. Elles queixavam-se do General Bacellar que ha muitos dias es-
tava acampado nos Taboleiros , e que as forças de S. Gabriel não
os queriam proteger.
E' verdade que ao approximarmo-nos de S. Gabriel ouvimos
dois tiros de canhão, mas não sentimos o zumbido bem conhecido
das balas, o que indicava que, ou elles foram de polvora secca ou
mandados em direcção opposta a nós.
Nada mais, dizia eu, do que um aviso para privar- nos da impru-
dencia de perseguirmos os fugitivos até dentro de uma praça de
guerra.
32 -

Alguns prisioneiros contavam-nos que havendo ordem de mar-


char contra nós, as forças de linha se tinham recusado terminante-
mente. Seria util, dizia eu , uma tentativa chamando-as para se reu-
nirem a nós. Essa derrota dos castilhistas, essa mortandade, o de-
sespero das familias em S. Gabriel, vendo chegar o Dr. Fernando
Abbott fugitivo e o coronel Portugal que atirára fóra até a blu-
za com as cartas da mulher , e pelo que dizia aos que agora são nossos
prisioneiros arranja-te , que eu vou me escapando, - e por tan-
to entrando ali em mangas de camisa a gritar salve-se quem pu-
der ! - o luto que os cobre, o abandono dos companheiros que
elles deixaram no matadouro para onde os trouxeram, deve ter accor-
dado o espirito adormecido do exercito brazileiro para comprehen-
der que não pode servir de instrumento a cobardes dessa nature-
za. Elles conhecerão que não são soldados do governo, mas da Pa-
tria, e que ir contra esse governo é salvar a Nação .
" Mas como poderemos conhecer a disposição d'elles, pergun-
tou-me Gomercindo.
"? E' facil, disse-lhe eu, mandemos lá um d'estes moradores
que se dizem nossos companheiros. A familia estando aqui elle vol ·
tará. Eu me dirigirei ao medico da guarnição pedindo medicamen-
tos para nossos feridos, officialmente . Se elle responder-me é signal
de que não são contrarios a nós; então o general Salgado poderá
dirigir-se directamente á guarnição por carta, convidando-a a se
unir a nós ou eu mesmo irei mostrar-lhes a justiça da nossa cau-
sa accordando -lhes no espirito o amor patrio adormecido e a re-
volução triumphará em pouco. O Exemplo patriotico de Salgado
deve influir n'elles, e o espirito de classe leval - os-á para Salgado,
abandonando Castilhos .
De posse de S. Gabriel, de sua artilheria e petrechos bel-
licos, nossa marcha será triumphal sem essa mortandade repu-
gnante .
Gomercindo appoiou alegremente meu plano, e eu tratei de
dizia nosso
pol- o em pratica encontrando logo um homem que se
companheiro e que se offerecia não só como emissario, como pers-
crutador do animo da guarnição.
Dirigi - me ao acampamento do general Salgado ; entrei na mi-
nha barraca e fiz o officio para mandar a S. Gabriel, encarregando
de copial- o ao major Pianella, secretario do general.
Para não ser incorrecto falei ao general Salgado pedindo li-
cença para fazer o que havia combinado com o general Gomercindo.
Elle respondeu-me que mandar um homem a S. Gabriel era ir
dizer o estado em que nos achavamos.
Retruquei que o nosso estado era o melhor possivel, visto
como haviamos acabado de vencer uma batalha e tomado tudo do
inimigo.
33

O general, que me havia convidado a churrasquear em sua bar-


raca, disse- me : você não entende d'isto, eu vou fazer desfilar as
nossas forças diante de S. Gabriel e depois intimal- o a render- se.
Ao que respondi : uma intimação accorda brios, se não cedem, te-
mos que nos retirar. Entrada de leão, sahida de burro.

*
**

O trabalho com os feridos tem-me tomado todo o tempo ; de-


mais, os acampamentos são distantes uns dos outros ; procural- os de
barraca em barraca, esperar que vá buscar agua n'um copo ou n'uma
guampa para fazer os curativos é uma barbaridade. Creio po-
rém, que os chefes combinam alguma cousa importante, porque,
os Drs. Carvalho e Arthur Maciel, cruzam de um lado para outro
a toda a hora.
O nosso exercito depois d'esta victoria, recrudesceu no desejo
de lutas e combates que apressem o termo d'isto,
Eu nutro a esperança de que ao saber desta victoria revolucio-
naria, d'esta mortandade de brazileiros , d'este derramar de sangue que
nos enfraquece, o Sr. Floriano Peixoto mande dizer ao Sr. Castilhos
que arrume-se como puder.
Se tem força, se tem o direito a seu lado, que esmague seus
adversarios rio- grandenses sem o sacrificio dos pobres filhos do norte
que vestem uma farda para defenderem a honra e a integridade
nacionaes e não para servirem de meio de vida a arranjadores.
*
* *

Os planos de desfilamento das forças tiveram de ser alterados.


A approximação do general Bacellar podia collocar-nos em
sérias difficuldades.
Tivemos de nos retirar, desfilando quasi todo o dia, avistando as
barracas do acampamento do general Bacellar que provavelmente
procurou aquelle logar para poder sepultar os mortos que deixamos
no campo, pois os revolucionarios não sepultam os cadaveres dos
adversarios, por que os da legalidade até promettem punir os paren-
tes que sepultarem os parentes que elles matam á vista.
Contaram-me isto, que te vou narrar com pesar, porque é a
norma infeliz de um povo selvagem , - mas é verdadeiro o facto.
Envergonho-me de ser brazileiro n'esta triste actualidade.
O Brazil precisa de muito esforço, de muita abnegação, de
muita coragem, precisa ser espartano, para poder lavar a mancha
que lhe lançaram, para trilhar o caminho d'onde o desviou meia
duzia de scelerados em nome da republica.
Na volta do exercito revolucionario do Inhanduhy, depois do
3
34

Upamaroty, um tenente revolucionario procurou a casa de uns pa-


rentes que por ali tinham fazenda, afim de pedir-lhes alguma roupa
on algum dinheiro . Essa familia era conhecida sob o nome de Alle-
mão . Ao chegar a casa o tenente encontrou a velha tia senta-
da á porta e comprimentando- a, ella nem respondeu-lhe.
De espaço a espaço levantava-se a velha e ia enxotar os
cães e os corvos que sentavam-se perto da casa . O tenente, admira-
do , dirigiu-se para aquelle ponto para onde ella tanto fixava- se, e
vin ali um atravessado sobre o outro, os cadaveres do marido e do
unico filho de sua parenta, que erão f. deraes !
O exercito do general João da Silva Telles, composto de
soldados do exercito brazileiro, mas ao qual se uniram as forças de
Pedrozo e Motta , por ali passando, assassinou aquelles dois infelizes
camponezes, e de larou á viuva e mãe que se os sepultasse teria
a mesma sorte quando elles voltassem . Ella ali passava os dias ven-
do- os apodrecer, afugentando os cães e os corvos , mas vendo - os se-
rem devorados pelos vermes ! Hontem quando marchamos approxi
mei-me de um grupo de rapazes que contavam uns aos outros o que
havião feito na batalha. Um d'elles narrava como se tinha achado
Corpo a corpo com um inimigo robusto , com o qual lutara muito
tempo até que poude matal -o . e bebeu-lhe o sangue. Indignou-me aquil-
lo de tal maneira que tive de fazer-lhe sentir em termos asperos o
seu procedimento feroz . O Sr. diz isto por que nunca soffreu , me disse
elle.
- Nunca soffri ? Não é soffrimento ter de abandonar interes-
ses e familia, fugir á meia noite debaixo de tempestade , sem ter
tempo de providenciar sobre recursos, sem destino, para não ser as-
sassinado pela manhã ? Não é soffrimento saber diariamente os sustos
da familia sob ameaças cobardes ?
Saber que até os filhos, creanças, estavam ameaçados como re-
fens ?
Depois, o insulto em todos os seus jornaes , calumniado, infama-
do até nos actos mais dignos ; depois abandonar a familia no estran
geiro sem parentes, sem amigos, não é soffrer ?
-- E' verdade, disseram todos, é um dos que mais tem
soffri-
do e lutado.
--
Mas nós não temos o mesmo fim que o Sr tem aqui.
Não tem o mesmo fim que eu ? Então não é pela rehabi-
litação do nome rio- grandense, do Brazil , que lutam ?
- - A principio foi, hoje porem , não ; meu fim é outro é a vin-
gança.
Em Inhanduhy, me disse o moço, a quem havia censurado , -
meu pai, que o Sr. conheceu, foi o primeiro que cahio ferido no en-
contro que houve do general Guerreiro com os castilhistas.
29 Meu pae, por engano, tinha-se mettido no meio do inimigo
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pensando que fossem companheiros . O inimigo retirava-se, e eu sa-


bendo do que se passara corri para lá com outros companheiros a
ver se poderia salvar meu pae.
Encontrei-o morrendo.
Estava degollado, com o ventre aberto com um golpe de faca, e os
intestinos no chão.
A bala que o ferio, matal- o-ia, mas elles não contentes com
isso mutilaram-n'o ainda. "
Era o filho do major Faria que narrava-me este triste episodio
d'esta guerra de odios.
Quando este terminou esta triste façanha da legalidade, cada
um dos outros contou o que havia soffrido em seus parentes, em
suas affeições.
E' por tanto, esta guerra civil a mais horrorosa que o tempo
registrará. E quem o culpado, quem responsavel por tudo isso ?
O Sr. general Bernardo Vasques deve estar contentissimo con-
templando a sua obra ! Elle nunca pensou que a gente castilhista
correspondesse tanto e tão bem ao seu grande amor, a este Brazil
que elle juron purificar, porque S. E. não pode comprehender um
paiz sem derramamento de sangue... sem muito sangue. Se houver
guerra com o estrangeiro S. E. se reformará, ja está velho e com a
reforma poderá viver honradamente, -se não acceitar o sacrificio,
conforme consta, lhe prometteram de ser o substituto do Sr. Floriano.
Estão dados os primeiros passos para a nossa ruina. Quando o Sr.
Castilhos soltou na campanha seus ..... amantes da republica, não houve
quem não tivesse um desafeiçoado, um rival em amores, um vizinho
com gados melhores, para punir com suas próprias mãos e sua alta re-
creação, considerando o ser preferido por uma mulher, o ter trabalha-
do ou economisado para ter fortuna, uma traição á republica a
quem o Sr. Luiz Alves sempre consagrou amor intranhavel desde o
tempo que se encarregára de compras de mulas para o exercito no
Paraguay. E são tidos como brazileiros quem por interesse pro-
prio mata sua terra !
E não parava ahi. Quando um jornal mais ousalo denuncia-
va os crimes que commettiam em nome da legalidade , elles vi .
nham dizer que os criminosos eramos nós . Escarneciam assim das vic-
timas !.........

*
*

As miulias apprehensões sobre desintelligencia de chefes, desgra-


çadamente, vão - se verificando . O general Salgado depois da bata-
lha do Serro do Ouro não está satisfeito. D'isso resultou que tivemos
de marchar sem nada se ter tentado em S. Gabriel e á vista
do exercito do general Bacellar que acampara no Serro d'onde nos
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avistava. Triste cousa é uma guerra civil. -- Nem ao menos


se tem tempo de cuidar dos feridos.
Quando se precisa de repouso, quando se tem necessidade de
descanso, ahi está o inimigo á vista, é preciso marchar para não
augmentar o numero dos feridos . Em caminho fui a casa de um
castilhista, duas leguas distante, afim de medical -o . Fora ferido
no Serro do Ouro. Extrahi- lhe uma bala, dei-lhe remedios e deixei
uma ordem para que fosse respeitado pelos revolucionarios.
O estado d'elle é perigoso . Ainda uma vez cumpri com 0
meu dever de medico, pouco me importando de encontrar por ali
fugitivos que não me poupariam a vida .
Temos marchado sem accidente algum, muito trabalhoso, po-
rem , tem sido para mim attender os feridos de ambos os corpos
do exercito , que se acampam sempre afastados um do outro . Fe-
lizmente, na columna do general Salgado ha poucos feridos, e es-
tes mesmos sem gravidade ; na de Gomercindo porem, ha muitos e
quasi todos graves.
Lembrei -me agora de um incidente que me fez rir. Logo
depois da batalha, Gomercindo em pessoa fez prisioneiro um soldado
ferido. Para garantil-o deu-lhe o seu proprio ponche, que era
muito conhecido, para o prisioneiro levar como manto protector, e
que me procurasse para cural- o .
O prisioneiro sumiu-se levando o ponche, de modo que Gomer-
cindo teve de dormir sem ponche, apesar do frio que fazia ; 0
que o obrigava a descompor o ladrão do ponche e ao mesmo tem-
po rir-se da esperteza d'elle.
No outro dia encontraram o desertor que Gomerciado mandou
que me entregassem, não querendo mais o ponche que elle tinha
sujado todo de sangue, o que decerto não desagradou - lhe.

A chuva torrencial que caiu hontem á noite obrigou-me a


pernoitar na casa onde o general Salgado está acampado, e ali pude
saber até que ponto vai chegando a irritação entre elle e Gomer-
cindo pela troca de officios duros e já descortezes . Isto causou-me
uma triste impressão.
Pela manhã segui, apesar da chuva e da cerração , para o acam-
pamento de Gomercindo , encontrando-o já em marcha.
Vinha aborrecido . Não teve o costumado comprimento affavel
para mim.
Pela primeira vez chamou - me coronel.
Assobiava uma area camponeza. Já me tinha encontrado com
o coronel Ribas que declarou-me que o fim de Gomercindo era ir
operar só. Dirigi-me a elle fingindo não saber do que se passava.
37

Perguntou-me se não havia lido os officios do general Salgado . Res-


pondi-lhe que não ; que o general Salgado nunca mostrara-me cousa
alguma. Mandou dar-me para ler o officio que recebera. Li o officio.
que já conhecia e perguntei-lhe o que pretendia fazer. Ir- me sosi-
nho por ahi. A revolução não será prejudicada por minha causa. -Mos-
trei- lhe como seria prejudicial tal passo ; como a unica noticia de
uma desintelligencia seria bastante para fortalecer o inimigo, e que
assim seria perder tudo que haviamos ganho com a batalha do Serro
do Ouro ; que eu esperava modificar muito o espirito do Sr. Flori-
ano Peixoto se n'elle não estivesse morto de todo o amor da Patria.
Gomercindo calou-se um pouco, depois disse-me Bem, leve estes
papeis e vá a Salgado ; queimem todos estes papeis e que nunca mais
se fale n'isto. - Corri para onde estava o general Salgado , expuz-
The tudo e elle perguntou-me qual o meio de terminar o incidente.
Disse-lhe o que me dissera Gomercindo , a que elle respondeu
que era o que tambem desejava e que elle mesmo fallar-lhe-ia .

Marchamos para D. Pedrito onde deveriam passar a frontei-


ra alguns feridos, depois tomamos a direcção do Ibicuy. Eu estava
quasi a pé porque o serviço do Serro do Ouro e a visita diaria aos
acampamentos estragaram os meus cavallos.
O coronel Maneco Xavier mandou-me um cavallo excellente ,
mas imagina que ao amanhecer já não o encontrei.
Tinham roubado o meu unico cavallo e havia noticia do inimigo
nas proximidades. A chuva e o frio tinha posto o nosso exercito
quasi a pé, e iamos marchando lentamente na esperança de que o
inimigo appareceria. Na serra do Caverá deu- se um incidente que me
atrapalhou. A' madrugada apresentou- se uma pequena columna, e
como ali ha caminhos por toda a parte, Gomercindo julgou que fosse
inimigo, e gritou : A cavallo , temos inimigo, e em pello mesmo
com Apparicio correu a ir fazer o reconhecimento . Fui eu mesmo
ensilhar o meu cavallo, mas tão apressado que me esqueci de aper-
tar a sincha, e ao montar se foi tudo a baixo. Tornei a ensilhar
e, felizmente , não era inimigo, era uma pequena força do capitão
Juca Rodrigues que ia encorporar-se á columna do general Salga-
do.
Quando marchava vi longe uma casinha e um cavallo á porta.
Julgando ser por ali a nossa entrada dirigi-me para lá a ver
se poderia obter o cavallo.
O cavallo que ali estava era cançado já. Tinha dormido ali
um piquete que havia estragado toda a pobre casa, ia-me retirar
38 -

quando chegaram duas mulheres em pranto porque tinhão levado até


as cobertas do filho.
Dei-lhe dez mil reis para comprar outras, e tive que seguir
puchando o meu cavallo pelo meio da serra, po que a columna toma-
ra outro caminho, e marchava apressada. No outro dia arrebanharam
muitas eguas chucaras e Gomercindo em pessoa laçava-as para montar
os seus maragatos . E ' incrivel a rapidez com que esses homens do-
mam um animal por mais bagual que seja . Ali apresentara- se o
Dr. Nabuco que vinha como medico da Cruz Vermelha, do Rio de
Janeiro ; infelizmente, porem, tinha deixado em caminho não só a
ambulancia ; como instrumentos ; comtudo não deixou de alliviar- me
um pouco o trabalho. O general Salgado mandou uma expedição ao
Quarahym e outra ao Rosario ; esta traz a noticia de que as forças
do general Lima se aproximam de nós pelo caminho do Alegrete .
A expedição do Quarahym nada produziu. Depois da intimação
teve de retirar - se. Estas expedições incompletas, feitas com gente
insufficiente para, um ataque são prejudiciaes. Indicam ao inimigo que
estamos fracos. Á intimação devia seguir- se immediatamente o
ataque ; dar praso é um erro porque dá tempo ao inimigo a entrin-
cheirar-se e em guerra como esta a intimação deveria ser feita
depois da probabilidade da victoria , mas não havendo quartel, a
probabilidade da victoria só tem um fim, a matança.

Tres dias haviamos caminhado na serra do Caverá. Depois


de passarmos as catacumbas, abandonamos a estrada que leva ao
Quarahym, e marchamos em direcção do norweste.
Chegamos a uma casa de negocio onde se vendia café e al-
guns pasteis fritos em graixa , e tantos erão os pretendentes aos
pasteis que difficil foi-me obter alguns. Depois seguimos em direc-
ção ao Intanduhy, esse campo onde os bravos revolucionarios en-
frentaram a fuzilaria e artilleria da legalidade.
Sahiamos da serra em marcha lenta. Caminhamos dois dias.
Na manhã do terceiro dia eu vinha pensando em cousas muito dis-
tantes quando ouvi gritar : O Inhanduhy.
Senti um calafrio correr-me o corpo. O Inhanduhy ! Nome que
recordará sempre aos governos tyrannos a impotencia de seus solda-
dos, a inutilidade de suas boccas de fogo atroadoras, do crepitar ininter-
rupto de suas fuzilarias, contra estes corpos nus que servem de muralha á
alma do revolucionario sedento de liberdade e de justiça ; contra
esses homens desarmados mas dominados por um espirito tenaz no
querer. O Inhanduhy !
Foi ali que se feriu uma das maiores batalhas que hade ter
esta guerra cruel. Foi ali que se praticaram actos de bravura taes,
que um governo de homens amantes de sua patria diria : Basta !
ww 39

Poupemos esses heroes de que a Patria precisa !


Esta bravura, esta abnegação , esta coragem no sacrificio não
podem ser filhas de ambições bastardas; só podem ter origem ou na
alma dos crentes fanaticos, ou na conquista do direito, na reclama-
ção da justiça.
Entretanto aquella batalha foi um erro, pensava eu, percor-
rendo aquelle campo onde se viam cruzes aqui e ali, fossas onde
apodreceram muitos, craneos dispersos sobre a terra, sem um ves-
tigio ao menos da alma intrepida , que ali se formara. O revolucio-
nario não tem o direito de dar ou acceitar batalhas a não ser com
toda a probabilidade de victoria, ou nos casos extremos em que pre-
cize-se abrir um caminho para passar, ou formar uma barreira para
deter o inimigo na sua marcha. O revolucionario é sempre pobre.
Suas armas são poucas e más. Acceitar uma batalha pelo luxo
de mostrar bravura é collocar o governo onde possa esmagal- o . Esma-
gar o revolucionario é matar a revolução. A revolução é o direito
contra a força ; o direito vence pela convicção , a força destroe .
O fim de uma revolução é agitar o paiz , collocal- o em difficul-
dade de viver, não deixar o governo oppressor ter um dia de des-
canço, obrigar suas tropas a marchas forçadas, a alarmes constantes,
cançal - os, aborrecel- os emfim.
A nação comprehenderá que precisa de repouso para poder
progredir, indagando qual o motivo d'aquello mau estar, qual a
causa d'aquella enfermidade. Reconhecerá que a causa é a oppres-
são , é a violação dos direitos , é o anniquillamento de uma parte de
sua população ; que o oppressor é o governo, que o anniquillador ,
o violador, é aquelle a quem ella confiára a execução e distribuição
da justiça. Que esses crimes só têm por movel o interesse indivi-
dual e toda ella se levantará contra elle e os seus, que terão de ce-
der. As tropas canadas, maltratadas, começarão a comprehender
que se devem obediencia ás leis, os governos que opprimem, que auc-
torisam o latrocinio e o assasinato estão fóra da lei ; que devem
antes ser punidos a exigir d'elles que sirvam de carrasco para os
que reclamam contra taes crimes.

As batalhas produzem mortes que a • amizade e o parentesco


procuram vingar, produzem desastres que o brio, o amor proprio
pedem desforra ; por isso as tropas que no começo de uma luta ci-
vil marcham con constrangimento, que sentem derramar sangue dos
que clamam por justiça, que relutão para não servirem de instru-
mento ás ambições alheias, depois de uma batalha tornam-se inte-
ressadas ao grito da selvageria que desperta n'ellas. Demais , havia
um grande erro que agravara a nossa situação .
40 MED

As forças de Pinheiro Machado passaram muito perto das de


Salgado que já haviam recebido as munições da encantada Carmelita.
Não foram batidas, e foram incorporar-se ás de Hypolito Ribeiro rece-
bendo armas e munições.

Se Pinheiro Machado tivesse sido destroçado ali, Hypolito Ri-


beiro não sahiria de Uruguayana, e o castilhismo receberia o tyro de
misericordia ali...
O exercito revolucionario regularmente armado e municiado
encontrando cavallos em toda a campanha se apoderaria d'ella e o Sr.
Floriano veria a inutilidade de suas pretenções no Rio Grande.
As forças de Salgado retiraram- se tiroteando o inimigo á reta-
guarda. Tavares sabendo d'isso mandou uma protecção de 700 homens .
Guerreiro chegara a falar com o inimigo julgando estar falan-
do com a gente de Salgado. Não fora a sagacidade e calma de Pe-
dro Diogo, que soube retirar sem se fazer conhecer, a força que
elle mandava seria envolvida completamente. Ao reconhecer-se o en-
gano a luta começou a tiros de revolver e arma branca.
Foi ali que ficou morto o major Faria. Começou portanto a
batalha no lugar onde o inimigo, alem das armas de que dispunha,
occupava a melhor posição.
A nossa cavallaria, que é o que nos dá victorias rapidas, não
podia operar ali. Nada disso influiu porem no animo dos nossos . Foi
sob uma abobada de balas que o valente Salgado, que abandonára
os galões dourados do exercito para envergar a blusa do revolucio-
nario, teve a sua primeira entrevista com o general Tavares.
Os revolucionarios viam a approximação d'aquelle moço patrio-
ta no cimo da montanha da vida, tendo ante si um caminho cheio
de glorias a trilhar, falar com aquelle velho já nos ultimos espi-
raes do declive da vida, com sua cabeça branca como a neve e seu
olhar ardente como sua alma, ali entregando a honra da Patria, os ul-
timos esforços dos que forão d'ella em toda a sua vida. Que melhor
exemplo de patriotismo do que aquelles dois homens ?
Que maior estimulo para conservar no mais alto grau a cora-
gem que animava aquelles martyres da dignidade patria ? Que me-
Thor fanal para guiar os homens no caminho do dever, no caminho
da honra ? Que momentos mais palpitantes nas glorias e no patrio-
tismo de um povo ? A energia, o calor, o orgulho com que enceta-
mos essa memoravel acção, foram a sagração d'aquelle amplexo
fraternal em meio do perigo, pela salvação do Rio Grande, e do
Brazil.

A larva que inconsciente elabora o casulo em que se occulta,


- 41

vive lutando porque a vida é sempre uma luta, seja qual for o in-
dividuo, seja qual for o meio onde vegete ; segrega muitas vezes a
fina seda de que os homens se vestem e com que se ostentam . Esse
luxo alheio, esse ostentar de riquezas só é obtido com a morte do
productor que não progredirá , não podendo multiplicar-se ; mas se
não o matam para aproveitar a seda, se a fecundação chega a seu
termo, ella rompe o casulo, desdobra as azas , busca o espaço , vôa,
deixa a semente que tinha em si e myriades de larvas em pouco en-
chem o espaço de bellas borboletas. O homem é como a larva. Conti-
do no casulo elle vegeta, segregando a força de que outros se apro-
veitam e se engrandecem, e n'esse engrandecer esmaga-o ; chega po-
rem a epocha da resistencia, da luta em terreno definido, luta de vida
contra vida, e apparecem homens como os que acabamos de ver ; o envolu-
cro que conservava os outros na timidez, rompe- se. O enthusiasmo da-
The azas, voa, corre, não pensa no perigo. O que poderia ver na
luta ? Uma ameaça á vida ? Mas o que é a vida para o homem que
se eleva acima de si mesmo ? Para a alma cavalheiresca que se
esquece de si para pensar no futuro da Patria, que é o da familia ?
O que é a vida para aquelles em quem viver é ser livre, é
ter vontade, é ter direitos ? E' ver essa vontade respeitada, esse
direito garantido ?
Quando lhes mentem, quando lhes poem tropeço á vontade,
quando lhes roubam o direito, que hão de fazer senão lutar ?
Lutar até que se comprehenda que elles conhecem que lhe
roubam os seus direitos, e os restituam, ou até morrer.
A morte é a liberdade para quem não pode viver escravo.

O terreno onde se travou a batalha é desigual. Uma cochilha


central de onde partem outras pequenas como os dedos de uma mão
aberta, terminando sempre em terrenos pedregosos e circumdados
por banhados e sangas em diversos pontos. O exercito Castilhista
occupava o alto da cochilha com sua fuzilaria , com sua artilharia ; os
nossos atiradores, occupavain as baixadas em diversos pontos. Não
podendo operar a cavallaria, nossas forças erão insufficientes para
levar-lhes um ataque á arma brauca, por isso a batalha tornou-se
prolongada ; mas o ardor dos nossos era tal que em pouco o exercito
castilhista teve de passar á defensiva e commetter verdadeiros actos
de bravura para defender-se da nossa temeridade. Posições perdidas
eram disputadas de novo .
O batalhão Antonio Vargas, o orgulho de Santa Anna do
Livramento, e que o é tambem do exercito libertador, mais de uma
vez desalojou o inimigo de sua posição. Um grupo commandado por
Vasco Alves foi até em cima de um canhão não podendo conduzil - o
por falta de cavallos .
O inimigo resistia ; porem, nos seus, começou a reinar a de-
42 ―

sordem. O 30 batalhão de infanteria, um punhado de heroes , cujo


chefe, o Sr. Arthur Oscar, por amizade ao Sr. Castilhos se tornara
partidario, era o que mais lutava e o que mais perdia, e assim aquelles
bravos soldados brazileiros de que à patria tanto necessita, morriam
ali pelas ambições ou pelas affeições de seu chefe.
As carretas desamparadas redemoinhavam , o movimento de
retirada parecia accentuar-se , mas a noite aproximava-se e o revo-
lucionario não tinha força para tornar real a lenda biblica de Josué
fazendo parar o sol. Algumas horas mais de luta e a victoria seria
nossa !
E a noite veio cobrir aquelles corpos cançados dando-lhes re-
pouso no seu manto .

Uma das primeiras victimas no exercito castilhista foi o Dr. Mo-


raes, clinico em S. Borja, onde gosava do melhor conceito como medi-
co, e do maior respeito como humanitario. Elle como brazileiro, ten-
do abandonado a politica castilhista por ver n'ella a marcha accele-
rada para destruição do Rio Grande, não pode ver seguir para a
luta seus patricios, sem um medico para cuidar-lhes dos feridos . De-
pois voltaria para o seio da familia com a consciencia de quem
cumprio com o seu dever.
Iria viver ignorado vendo os que para serem agradaveis aos
potentados destroom as reputações alheias; os corypheus, os lacaíos que
na ociosidade procuram na vileza o modo de serem agradaveis para
subir, destroem com a palavra voluvel dos que não conhecem o pe-
rigo, tudo que outros fizeram com o sangue e com a vida.
Cuidava de um official ferido mortalmente, e apenas terminou
o seu serviço , uma bala estendeu -o morto sobre o ferido .
La está elle sepultado á beira do arroio Inhanduhy. Colhi por
ali no banhado algumas flores de nypheas e fui depositar-lhe na
sepultura.
Para quem não soffre, para quem vê a vida atravez do pris-
ma de seus interesses, esse pouco de terra que occulta o cada-
ver de um martyr da humanidade, não é nada. Um homem de menos
e um homem honesto que amanhã clamaria contra as iniquidades.
Quando a 15 de Novembro o marechal Deodoro falava ao vis-
conde de Ouro Preto, então preso, dizia-lhe: O Senhor nunca soffreu ,
o senhor nunca dormiu nos banhados.
O marechal e todos os seus companheiros de armas, inclusive
os voluntarios que correram em defeza da patria , lutaram contra o
estrangeiro que insultara a nossa nacionalidade. O que diria um d'esses
martyres que lutam para não morrer, ou para vingar a honra dos
seus, ultrajada em nome da legalidade, e os que por obediencia vão
Aumate 43 -

ali servir de instrumento aos interesses de individuos , se os papeis


mudassem, e Deodoro fosse vivo para ver a calamidade que pesa
sobre nós ?

Muito se tem falado sobre a retirada de nossas forças na noi-


te que seguiu-se á batalha de Inhanduhy. Não perguntei ao general
Tavares d'onde lhe havia vindo a noticia da approximação do gene-
ral Telles .
Para mim tal noticia não veio. Foi o proprio general quem a
inventon, porque dizer a um exercito que se julga vencedor que vai
retirar-se, é difficil . Se o dia se tivesse prolongado, a victoria seria
nossa, porque o inimigo surprehendido ante tanta bravura , ante tanta
temeridade, procuraria retirar ; mas deixal-o repousar uma noite , accor-
dar brios ante a idéa de serem tidos como cobardes, accender- lhe-ia
a coragem, porque são da mesma raça, do mesmo sangue de seus
adversarios. Nos primeiros embates elles se resentem.
A maioria d'elles, ou a quasi totalidade, vai ali á força. Nada
tem a defender ; muitos d'elles são nossos companheiros de idéas ,
mas a idéa de uma derrota, o medo de serem tidos como cobardes ,
accende o animo de irmão contra irmão, de amigo contra amigo,
até nos prelios mais simples.
Sómente os aventureiros e os que fazem da guerra ou da revo-
lução um negocio, fogem, porque a vida para elles é um capital que
deve produzir, portanto, é precizo poupal - a. No outro dia recomeça-
ria a batalha. Não podendo pelo terreno operar nossos lanceiros te-
riamos de sustental-a só com a fuzilaria.
Nossas munições erão poucas, cento e vinte mil tiros, se gas-
taria em pouco, e para a longa retirada era preciso munição . A re-
tirada se faria de dia, e o inimigo desdobraria sua columna na
perseguição, e só as nossas cavallarias poderiam operar então, don-
de uma carnificina inutil. Conduzir feridos com tiroteio na reta-
guarda, seria o desanimo, e assim a nossa derrota seria infallivel .
Pensou bem o velho general em retirar-se à noite e se al-
guem lembrou-se de inventar a approximação do general Telles , esta
invenção foi providencial : salvou aquella legião de heroes que ha de ,
porque a justiça assim o quer, triumphar nesta luta, que ha de sal-
var o Rio Grande .
A retirada porem, foi desastrosa. Desfiladeiros , banhados e
excavações por onde tinham de passar as carretas cheias de feridos ;
gritos, lamentos d'estes.
Desintelligencias como prenuncio de desobediencias ; recrimi-
nações , imputações de culpabilidade pelos que se julgavam victoriosos ,
como de facto estavam. Chuvas torrenciaes, as inundações, a passa-
---- 44 ---

gem de rios transbordando, a cerração fazendo com que o nosso


exercito chegasse até á vista do general Telles. O velho Tava-
res em pessoa, de calças arregaçadas, sob a chuva fria ajudava a
passar os feridos nos arroios. As retaguardas feitas por corpos
desarmados : O desanimo de alguns e suas deserções, o egoismo de
outros e em cima de tudo isto , d'esse acervo de desolações, a po-
liticagem infame, hedionda como um fermento, apodrecendo todos aquel-
les animos que encetaram e continuavam a luta com tanta nobre-
za de sentimentos, com tanta abnegação pela santidade da causa,
com tanto orgulho pelo nome rio-grandense, lutando pelo seu di-
reito.
Foi ali que Gomercindo ganhou as suas esporas de cavalleiro ;
foi ali que, alheio ao pequeno espirito dos que destróem, collocou- se
á frente dos que deviam provar que a revolução não morrerá, que
ella será eterna, se eterno fôr no Rio Grande o flagello que lhe im-
puzeram .

Estamos no Ibicuy, no passo do Silvestre.


A columna do general Salgado que está na retaguarda, pro-
curará o passo do Mariano Pinto, mais acima. O Ibicuy é um rio
bastante caudaloso , onde já poderia haver uma pequena navegação
a vapor que pozesse em communicação rapida esta parte da cam-
panha com o Alto Uruguay. Só temos uma barca que supporta
quatro cavallos para passar tres mil e tantos ! e um barco para
passar a gente. Na noite da nossa chegada Apparicio passou com
toda a brigada de seu commando. Durante o dia continuamos n'este
trabalho incessante. Comquanto não haja noticias de inimigo na
retaguarda, comtudo não descançamos : na guerra como na guerra
e eu insisto para que apressem a passagem das munições. O exer-
cito dividido como está, o inimigo approximando- se pode- nos causar
prejuizo . Gomercindo tem servido até de remador, o que me fez
lembrar que já viajei pelo Alto S. Francisco onde aprendi a remar.
A passagem dos cavallos é um trabalho insano. A principio
atacavamos em grupo, mas assim, poucos alcançavam a outra mar-
gem ; muitos desciam o rio e perdiam-se e outros voltavam com tal
medo da agua que era impossivel fazel -os seguir outra vez .
Resolvemos passal- os atados á cauda uns dos outros, mas esse,
serviço era mal feito . Atavam entre dois cavallos fortes, muitas vezes,
um cavallo fraco que retardava a marcha e os que vinham após ven-
cendo a nado, embaraçavam-se e d'ahi o horror, o reboliço tremen-
do , o bater das aguas, o relinchar de muitos que se afogavam, fa-
ziam imaginar uma luta de monstros marinhos.
Felizmente, terminado este serviço tratamos de repousar um
45

dia e organisar o exercito. Apparicio com Torquato Severo e Au-


gusto Amaral , seguem em expedição para o Itaquy, na margem do
Uruguay, onde se acha a esquadra.
Acompanha-os o Dr. Arthur Maciel, como delegado de Gomer-
cindo. O resto da columna marchará á noite para não se distanciar
dos expedicionarios e prestar auxilio promptamente, caso a cidade
offereça grande resistencia.
Os expedicionarios marcharam para o Itaquy com o prazer de
quem vae para uma festa . E' que elles já antegustam a victoria .
Quantos dos que vão tão alegres poderão vêr o fim do com-
bate ? Ali vae Angusto Amaral a quem ha poucos dias ferio um
dos maiores golpes que se pode sentir .
Trazia consigo um filho de 16 annos . Valente como elle, era
o seu ajudante.
Querendo sahir n'uma commissão foi pedir a um amigo uma
arma emprestada e este experimentando se os cartuxos se adapta-
vam bem, o fez tão desastradamente que a arma disparando ferio
em pleno peito o amigo.
Tivemos de deixal- o sepultado ali . Pobre Augusto ! Vel - o
brigar tantas vezes junto a si sem o menor ferimento e vel- o mor-
rer tão estupidamente !
A guerra, incontestavelmente, modifica o caracter dos homens.
Augusto é de uma affabilidade caracteristica.
Tratava o filho com carinho em que demonstrava um affecto
enternecido . Entretanto , acaba de soffrer esse golpe e o seu exterior
nada demonstra. O que irá por aquella alma ? A superficie dos
mares não indica o redemoinhar das aguas nas profundesas onde
os rochedos submarinos as ferem. Assim foi Thimoteo Paim, no
Upamaroty. Levava comsigo um filho, uma creança . Vio- o cahir morto
a seu lado , continuou a luta até ser substituido. Retirou a sua
gente, depois voltou ao lugar e tomando nos braços o cadaver do
filho, levou-o sob as balas inimigas até o ponto onde com suas pro-
prias mãos cavou-lhe a sepultura.

Estamos no Itaquy. O ataque de nossas forças foi impetuoso


á madrugada.
Os defensores da cidade achavam-se fóra d'ella e esperavam-nos .
A cidade é plantada á margem do Uruguay e do lado da campa-
nha tem longos corredores de pedra, verdadeiras trincheiras ; é de
facil defesa e de difficilimo ataque .
Os revolucionarios, porem, não se encommodam muito com isso.
Quando atacam seguem sempre para diante, e foi assim que leva-
ram os castilbistas até a margem do rio onde esperavam auxilio da
esquadrilha e á qual finalmente se abrigaram.
46 ―

A esquadrilha mostrou ser dominada pelo espirito de patrio-


tismo . Está aqui para defender a fronteira e não para servir de ins-
trumento de individuos .
Chegando perto do arsenal de marinha tentaram resistir. Appa-
ricio perseguia- os . As balas passavam por cima das familias e dos
que procuravam asylo no arsenal ou a bordo. O chefe da esquadri-
lha mandou intimar para cessar o fogo e este respondeu que não
podia fazel-o emquanto o inimigo não fizesse o mesmo. Falou po-
rém em hespanhol, ao que respondeu o official que estava no Bra-
zil onde se fala lingua portugueza.
Pois bem, disse Apparicio em portuguez, para fazer cessar
o fogo dos meus é preciso que aquelles que se entrincheiraram de-
ponham as armas. Os castilhistas foram intimados por sua vez , re-
colhendo elles a bordo.
O Dr. Arthur Maciel procurou o Dr. Aureliano Barbosa, che-
fe castilhista, para tratar da capitulação , a que elle accedeu , mas
n'este caso seria preciso entregar as armas e estas já estavam em-
barcadas.
A esquadrilha negou-se a entregar as armas que ali foram
depositadas . E são vasos de guerra que ali estão promptos para
abrigar a todos que os procurem e por isso não se deu a capitula-
ção. Ficamos donos da cidade e elles emigraram uns para o Estado
correntino e outros para bordo.
Reinon completa tranquillidade, sendo todos os direitos res-
peitados . Nós haviamos marchado quasi toda a noite para não nos
distanciarmos da columna expedicionaria. A's 8 horas da manhã es-
tavamos sobre uma coxilha, dando descanço aos cavallos e eu que
conversava com Gomercindo ouvi ao longe do lado do norte um tiro de
canhão . Disse - lhe isso ; elle porém, que não tinha ouvido, julgou que
fosse illusão minha. De mais, o Itaquy ficava-nos em frente ; o ge-
neral Salgado lhe havia mandado dizer que o inimigo estava longe ,
portanto, não podia deixar de ser illusão minha. Apenas acabava-
mos este raciocinio foi ouvido por todos nós um tiro de canhão , e
vinha do mesmo lado . Como explicar isso ?
Se não havia inimigo na retaguarda como explicava Salgado
d'onde vinham aquelles tiros ?
Procurei explicar a transmissão pela agua, sendo propagada
por um pequeno arroio que passava perto e desagua no Uruguay.
Theoria absurda de acustica, mas acceitada, porque não tinha-
mos outra. Então, estão peleando, disse Gomercindo, e man-
dou tocar a montar a cavallo e marchar accelerado.
Uma hora depois avistamos os capitães Pedro Amaral e An-
tunes, que corriam para nós, annunciando que o Itaquy tinha sido
tomado de assalto. Haviam encontrado tres fugitivos e tomado - lhes
47 ---

as armas , e cada qual queria explicar ao mesmo tempo como se


tinha dado o ataque.
O certo porem , é que o Itaquy estava em nosso poder.
Gomercindo lamentou não terem elles trazido os fugitivos , que
poderiam esclarecer melhor a situação .
E os tiros de canhão ?
---

Eu disse a Gomercindo que precisava seguir para o Itaquy,


d'onde ainda estavamos a tres leguas de distancia, visto que deve-
ria haver muitos companheiros feridos.
Bem, disse elle , vou mandar dar-lhe um piquete para acom-
panhal- o . Mas quem sabe se os tiros de canhão não são da esqua-
drilha que agora começa ? Vou mandar e coronel Estacio Azambuja
en protecção, e você irá com elle.
Fui a uma casa proxima procurar um cavallo e a dona da
casa offereceu-me café e garantio estar o Itaquy em nosso poder.
O café demorou -se , porque ella resolveu dar- me um ligeiro almoço .
Quando cheguei ao acampamento, já Estacio, havia marchado. Como
o havia deixado carneando para almoçar, pensei que se demoraria
pelo menos uma hora, mas elle apenas recebeu ordem para seguir
en protecção, levantou acampamento e marchou.
Tive acanbamento de dizer a Gomercindo que não me acha-
va ali quando marchou Estacio e por isso deliberei seguir sem pi-
quete.
Perguntando quem queria ir commigo, apresentaram-se o bom
Grevy e um sargento companheiro de Pedro Amaral . Seguimos sem
saber o caminho, e Grevy, ora pilhereando , ora serio, notava a nossa te-
meridade em irmos por ali, passando por casas onde poderiam es-
tar occultos grupos de fugitivos, só o sargento levando uma carabi-
na. De quando em vez viamos passar ao longe, na coxilha, muitos
que fugiam. Então moderavamos a marcha dos cavallos para que
elles julgassem que não iamos com medo e que perto de nós deve-
ria vir alguma força . Perto da cidade Estacio fizera alto desde que
não era preciso a sua approximação .
E os tiros de canhão ?
Não houve tiro de canhão.
A esquadrilha conservou- se neutra .
Entrei na cidade onde os cadaveres dos inimigos ainda esta-
vam nas ruas. Immediatamente dirigi-me á Intendencia onde se
achavam os nossos feridos que já tinham sido cuidados pelos medi-
cos da esquadrilha e um d'elles declarou- me , em nome do chefe, que o
hospital de marinha estava prompto para receber a todos os nossos
feridos . Alguns relutaram, com receio que depois fossem justiçados.
48

Os chefes da legalidade plantaram esta desconfiança no espi-


rito dos nossos, não poupando nem a feridos, nem a prisioneiros.
Convenci-os de que podiam ir com confiança e mandei - os trans-
portar. Terminado esse serviço, fui a uma pharmacia em busca de
alguns medicamentos. O dono era um companheiro, estava emigra-
do e acabava de chegar.
Ouvi lamentos e perguntando o motivo, elle apresentou - me sua
irmã cujo marido era official castilhista e fora uma das victimas.
A guerra civil !...
Pedio-me ordem para mandar sepultal- o e eu mandei falar aos
homens da Intendencia para sepultarem os que se achavam nas ruas,
o que não haviam feito ainda com receio de nos desagradarem.
E' que elles nos julgam iguaes aos homens da legalidade e da fra-
ternidade que punem os que sepultam os cadaveres dos nossos com-
panheiros e desenterram-os para servirem de pasto aos abutres.
Falei com um ou outro adversario moderado que não havia
emigrado, entre elles, o redactor de um jornal. Aconselhei- os que
mandassem avisar as familias para não se retirarem de suas casas,
visto que nada lhes aconteceria, e fui ao hotel jantar.
D'ahi ha pouco chegava Gomercindo. Vinha alegre.
Uma esplendida victoria, ordem completa nas nossas forças, a
cidade tranquilla como em seus dias ordinarios, taes eram os
motivos d'aquella alegria.
Combinamos dar um passeic pela cidade, o que fizemos ao to-
que de clarins.
Na margem do rio em frente aos navios de guerra, ergui vi-
vas á nação, á armada brazileira e á esquadrilha . Grevy deu vivas
á Marajó.
Os officiaes nos olhavam com sympathia e a marinhagem pa-
recia querer responder mas não o podia fazer. Alguns, porém, chega-
ram a agitar os gorros .
Assim terminou aquella acção . Uma noite de marchas , um as-
salto nas trevas e um passeio triumphal ao som de marchas de guerra.

A noite e dia seguintes passamos sem a menor alteração. A'


tarde fui a bordo do navio chefe da esquadrilha agradecer á guarnição
ter recebido no hospital os feridos revolucionarios.
A minha roupa era velha e rôta ; não tinha tido dinheiro para
reformal-a e nosso costume geralmente é comprar quando temos com
que pagar.
Acompanharam- me o coronel João Manoel Barboza, veterano
do Paraguay, e um capitão. Para uma deliberação achava-se a bor-
do do navio chefe toda a officialidade da guarnição.
1
- 49

Era ali tambem que se achavam as familias de alguns officiaes ,


e muitas familias e chefes castilhistas .
Fazendo-me annunciar ao official do dia, notei que ao ser pro-
nunciado meu nome, o movimento de curiosidade mostrou- se em to-
dos os semblantes que estavam na tolda . O chefe mandou-nos con-
duzir á sala onde se achavam reunidos os officiaes . Todos elles se diri-
giram a mim e apertaram-me a mão.
Dirigi- me ao chefe em nome de Gomercindo Saraiva, agrade-
cendo- lhe os soccorros prestados aos nossos feridos a acceitação
d'elles no hospital, onde se achavam á sombra da bandeira da esqua-
drilba.
Respondeu-me que o que haviam feito não era mais do que
actos impostos pela humanidade e que o fizeram como brazileiros, por-
que a esquadrilha não differençava grupos n'uma guerra de irmãos .
Estaria terminada minha missão se o Sr. Alfredo de Barros
Falcão, um dos meus condiscipulos de academia , não pedisse permis-
são ao chefe para falar e, com palavras tocantes, não me apresen-
tasse á officialidade. Relembrou os meus tempos academicos , os meus
ensaios litterarios, as minhas sympathias na escola, o meu curso
academico, a minha correcção no trajar, depois medico, não me li-
mitando somente a ler, mas querendo pensar por conta propria, es-
crevendo e indagando, e via- me ali n'aquelles trajos, andrajoso, ou-
tro homem, sem aquella affabilidade de outr'ora, sem aquella alegria
dos outros tempos. Falou muito tempo e commovido.
Pedi licença para agradecer-lhe e disse entre outras phrases -
que aquelle estado em que me via era devido á angustia da Patria,
que elle sabia quanto eu mostrára amar desde a mocidade.
Que o meu estado era o de martyr, mas de martyrio suave ,
porque era voluntario ; que, como eu, eram todos os meus compa-
nheiros. Ali estava o velho coronel João Manoel Barbosa, que tam-
bem abandonára tudo, trazendo comsigo seus dois unicos filhos, para
desposarem a Patria no martyrio. O chefe mandára fechar a porta
e ordenou que ninguem se approximasse d'ella, para não nos ouvirem.
Ahi fóra, disse-me elle, ha avidez em saber o que estamos con-
versando aqui .
Um moço official de nome Americano, aparteou-me dizendo
que a revolução é restauradora da monarchia. O chefe declarou -lhe
que a minha visita era simplesmente de comprimentos, e portanto
elle não devia provocar uma discussão politica .
Pedi ao chefe para permittir- lhe que falasse, e que me per-
mittisse depois dar algumas explicações ; era uma boa occasião de
clarear- se pontos obscuros.
O unico argumento que apresentou foi que o Sr. Silveira Mar-
tins não tinha feito manifesto. Mostrei-lhe que sendo o Sr. Silvei-
4
50

ra Martins chefe civil da revolução, não podia fazer um manifesto,


sem ter de abandonar o logar onde se achava e onde trabalhava ,
que o chefe militar o general Tavares havia feito
festo na sua proclamação , e que quando começaram a explorar o
terreno da restauração para poderem justificar os crimes que com-
mettiam, todos os chefes militares haviam feito um manifesto , pro-
testando contra a idea de restauração, que se nos attribuia. Declarei-
lhe que por minha indole, e desde a mocidade, o que provei com
o testemunho de Barros Falcão, fôra sempre republicano, mas não
desejava uma republica militar, nascida de uma sedição que nos
levaria á sorte do imperio romano, pelas surpresas, pelas tyrannias
exercidas para se conservarem e a morte dos tyrannos para dar lo-
gar a outros. As republicas assim só tem uma maxima que é: Mata, se
não queres ser morto .
Mostrei-lhe o que nos tinha levado a pegar em armas.
Os nossos soffrimentos , os assassinatos, os roubos , as prisões
sem causa, e a falta de punição absoluta para os criminosos , e ao
contrario o elogio dos crimes como serviços prestados á republica ,
e finalmente o exodo de todos que não quizeram morrer. As nossas
esperanças de que o centro interviria por patriotismo, por humani
dade, mesmo para pôr termo a taes horrores, frustradas. O nosso appel-
lo aos homens hourados do castilhismo e a indifferença d'elles ante
o acumulo de elementos que desencadearia a tormenta sobre o Rio
Grande. Disse afinal que ainda podiamos por um paradeiro a isso .
A esquadra no Rio de Janeiro estava abertamente contra o
Sr. Floriano, e a revolução triumphante no Rio Grande . Se a es
quadrilha se declarasse a nosso favor em pouco a luta cessaria
porque tomariamos Uruguayana e ali fuudariamos governo, seriamos
reconhecidos belligerantes e a paz se imporia em breve .........

Disse-me o chefe que nada sabia officialmente sobre a posição


da esquadra no Rio de Janeiro . Acabara de receber um telegramma
via Montevideo, telegramma que mostrou-me, do ministro da mari-
nha e que para conhecimento d'elle tinha reunido a officialidade.
Que o tempo urgia , e que pedia - me para em seu nome e dos
officiaes agradecer a Gomercindo o modo de proceder das forças
revolucionarias , em relação á ordem e ao respeito com que se por-
tavão no Itaquy.
A eloquencia não é um producto da rhetorica nem da imagi-
nação . E' um producto do espirito como o raio o é das nuvens.
Quando vi que d'aquella reunião poderia nascer a tranquilli-
dade proxima de minha patria, senti em mim não sei o que, que me
commoveu, e meus labios pronunciaram phrases taes, com tal energia
- 51

de sentimentos, que fizeram humedecer os olhos a muitos d'aquelles


dignos brazileiros, d'aquelles homens creados no meio das tormen-
tas e dos perigos.
Sahi. Acompanharam-me o chefe e outros officiaes . Barros
Falcão apresentou-me a sua joven senhora que estava sentada en-
tre outras. Aqui está Angelo Dourado, o auctor do Medicos dos
pobres. Ella commovida perguntou-me : E sua mulher ?......
A essa pergunta, quasi que desappareceu o revolucionario
para dar logar ao esposo e pae. Contrariou - me a minha fraqueza e
com voz onde um soluço queria intrometter- se, disse : Não sei ;
hoje só tenho uma familia : é a brazileira, luto por ella......
Retirei -me d'ali . Aquella vista da esposa de um collega, cal-
ma, feliz, fez-me mal.
Esperava-me a canoa do commandante para levar-nos á terra .
Apertei-lhe a mão com expressão e disse-lhe : Depende de vós ...
Elle, correspondendo ao meu aperto de mão, disse -me : Seja
como for, e dizei a vossos companheiros, contae sempre que sabe-
remos ser brazileiros .....

Toda a tarde na cidade não se falou senão na minha visita a


bordo e na impressão que ella havia deixado. Chegaram-me mesmo al-
gumas phrases que deram motivos a que se esperasse dois ou tres
dias .........
Os companheiros se haviam retirado para os acampamentos, e
eu cheio de confiança fiquei só no hotel . Não podia dormir. Aquella
scena de bordo tinha sido muito expressiva para que um espirito
como o meu podesse esquecel-a depressa.
Eu via, quando dormitava, os uniformes d'aquelles officiaes , todos
elles sympathicos, de physionomia nobre, dedicados, mostrando uma
educação esmerada, e eu em frente d'elles, vestindo grosseiramente,
quasi andrajoso , ennegrecido pelo sol e pelo frio, com o olhar en-
durecido nas lutas e no soffrimento ; mas capaz ainda de fazer sen-
tir a nossa desgraça, de fazer vibrar as fibras do sentimento n'aquelles
organismos não envilecidos pelos interesses sordidos, pela agiotagem
da honra. Depois uma tenue esperança animava -me. Esperar é vi
ver no futuro, é esquecer o presente como termo do passado ; é sonhar
com o que não se vê, imaginar o que é hypothetico.
Como dormir quando o espirito tem necessidade de traba-
lhar, de ordenar, de fazer desapparecer o odio, as vinganças, tornan-
do tudo estavel, duradouro, pela benevolencia, pela rectidão na dis-
tribuição da justiça, na garantia dos direitos no futuro ?
52 -

Mas, está escripto, que para o revolucionario até a esperança é


uma chimera. O misero só tem um futuro a luta ; só pode ter uma es-
-
perança é a de não morrer; porque, para que elle triumphe, será
preciso que os outros pensem no martyrio d'elle pensem que
amanhã a mesma sorte pode caber- lhes ; mas quem vive no bem es-
tar, quem não calcula o valor da vida, porque não expõe a sua , não
comprehende o revolucionario . Julga-o a elle o martyr voluntario , um
criminoso, um bandido que perturba-lhe o somno.
Alta noite ouvi tropel de cavallo, e logo depois fortes panca-
das na porta. Abri resoahe endo a voz do Dr. Carvalho, chefe do
estado maior do general Salgado . O inimigo, ao mando do general
Lima tinha alcançado no passo do Ibicuhy a columna ainda passan-
do. Atacára o passo com artilheria, tomara- o, veio buscar a barca do
lado de cá e levou-a. Ismael Soares Cortes, Thomaz de Aquino ,
Carlos Libindo, achavam-se ainda d'aquelle lado. , A luta deveria
ter sido horrivel entre aquelles bravos companheiros e o exercito de
Lima. Provavelmente todos estariam mortos, esmagados contra o rio
ou afogados n'elle. Estavamos portanto sitiados .
De um lado o Uruguay e alem a Republica Argentina, por-
tanto a emigração, a perda de tudo que tinhamos ganho, a inutili-
sação do que haviamos feito ; do outro o Ibicuhy sem meios de pas-
sagem e do lado de lá o inimigo.
A ponte da estrada de ferro que atravessa o Ibicuy poderia
dar-nos passagem, porem ali perto está Uruguayana, e là o general
Hypolito que pode estar em combinação com Lima para nos ata-
car. Que cousa mais fugaz do que a alegria dolorosa de uma vic-
toria em guerra civil.
O Dr. Carvalho foi a bordo da esquadrilha, dizem que convi-
dal-a a adherir á revolução......
Hontem eramos vencedores, ella não adheriu ; hoje temos uma
columna derrotada , estamos quasi sitiados, e convida- se-lhe a
adherir ! Seria tornar verdadeiro o typo imaginario de Cervantes.
Gomercindo apezar do golpe que nos acaba de attingir, não se al-
terou. Ha um caminho ainda para sahirmos buscando o Boquei-
rão. N'elle ha uma difficuldade a vencer, é onde a estrada passa
por uma especie de estreito , -no logar denominado Tres Figueiras
que tem de um lado banhados, que vão até S. Borja, onde ha guar-
nição, do outro o Ibicuhy, no logar onde se acha Lima trest ou
quatro leguas distantes.
Se Lima passou o rio e occupa aquella posição , a luta vai ser
horrivel, porque teremos de abrir aquellas muralhas humanas com
as nossas lanças. Retiravamo- nos á tarde quando chegou o general
Salgado . Gomercindo voltou para conferenciar com elle, eu segui
para o acampamento onde só cheguei á uma hora da madrugada,
por me ter perdido e as forças terem marchado.
― 53 —

Marchamos parte do dia e descançamos emquanto se faziam


explorações que não traziam noticia do inimigo. A noite marchamos
em silencio, sem fumar. Felizmente ao despontar do dia estavamos
no estreito das Tres Figueiras sem ter- se visto senão um soldado
que ali devia estar, não sabendo da nossa approximação . Ali podia-
mos repousar, o que fizemos até a tarde .
Soube que o general Salgado intimara a esquadrilha a adhe-
rir por meio de um officio em que responsabilisava- a, caso não acce-
desse ao convite, por to lo o sangue que corresse d'ali em diante.
Creio que não teve resposta .....
A' tarde marchamos ; eu colloquei-me junto de Gomercindo pa-
ra ver desfilar a columna, em cuja frente marchava a nossa pequena
infanteria ao mando do Major Antonio Nunes Garcia, sargento de-
sertor do 5º regimento, corpo da maior confiança e a quem cabiam
as glorias da tomada do Itaquy. Quando a columna passou por nós,
calma, firme, alegre, Gomercindo disse commovido depois de um lon
go suspiro.
O meu Cardume !
Não podiam ter uma denominação melhor aquelles valentes que
seguião-n'o fosse por onde fosse, nos maiores perigos, nos ultimos
sacrificios. Assim marchamos sem encontrar inimigo.
Decididamente elles não querem brigar de frente, por que se
quizessem, ali era o logar onde ou nos esmagariam, ou nos deixa-
riam quasi inutilisados.

Para onde vamos ? Não sei .


Fala- se em Cruz Alta, Passo Fundo, Lagoa- Vermelha Vac-
caria ; mas a sahida ? Essa região serrana é ainda pouco povoada
e de terrenos perigosissimos para dar- se combates . De um lado
está o Uruguay com suas florestas extensas, seus rios de corrente-
zas rapidas, seus banhados, seus sorvedouros ; do outro está a serra,
parallela a ella, a estrada de ferro de Porto Alegre em busca de
Uruguayana, e as estradas coloniaes por onde a legalidade poderá
mandar com rapidez todas as tropas que se achem parali-
zadas na campanha, para nos atacarem por todos os flancos, se
quem os dirige tiver um pouco de tino .
Isto nos obrigará a buscar as matas missioneiras, ou passar-
mos a Santa Catharina ou Paraná, ou então a morrer até o ultimo.
Se não fosse crime julgar-se perfidia em homens de patriotis-
mo provado, poder- se-hia julgar que a nossa marcha por aqui tem
o fim de nos entregar nas mãos do inimigo, e assim terminar- se a
luta pelo nosso anniquilamento, porquanto ainda poderiamos voltar á
campanha, por Alegrete, dando alguma batalha em que a bravura e
54

o arrojo dos nossos, como no Serro do Ouro, nos abririam caminho.


A principal condição do revolucionario é ser stoico, por isso nada
indago, nada quero saber ; ao contrario, procuro justificar os chefes
ante aquelles que como eu, pensam que vamos mal, mas que como eu ,
não tem a calma necessaria para calar. Discutem, falam, julgam e
finalmente muitos ficam comprehendendo que vamos mal , o que é pre-
judicial. Seja para onde for, o termo será o mesmo, qualquer que
seja o caminho que o destino nos mande trilhar. Que importa por-
tanto que seja hoje ou amanhã ?
Na nossa derrota, se ella se der, não seremos sómente nós os
que mais hão de perder, são tão bem os que tudo esperam de nós .

No Povinho do Boqueirão havia uma pequena força . Foi ba-


tel-a o tenente coronel Izidoro Dias Lopes, que pela primeira vez fi
cou sabendo que a cor vermelha pode tambem significar - paz.
Como as divisas que usam os da columna do general Salgado são verme-
lhas , os habitantes pacificos do logar metteram-se em suas roupas
domingueiras,, ataram trapos vermelhos nas bengalas como signal de
parlamento e vieram ao encontro dos revolucionarios avisar-lhes de
que ali só haviam amigos ; e vinham a par uns dos outros como uma
linha em guerrilha, e que, não sei porque, quasi foram tomados como
piquete de observação.
Um desastre privou - nos de um bom companheiro morto por um
tiro casual.
Tivemos de sepultal- o . Um morador do logar querendo dar-nos
uma prova de apre ;o , mandou abrir o carneiro que um anno antes
mandara fazer para sepultar sua unica filha , e ali sepultamos o
nosso companheiro . Eu estava junto d'aquelle homem quando se
abriu o carneiro e vi sahir o caixão com o esqueleto da filha. De-
pois de collocarmos no carneiro o nosso companheiro, elle mandou
guardar o caixão com os ossos da filha. Colhi no pequeno jardim
do cemiterio algumas flores e fui collocal-as sobre aquelle esqueleto.
Elle agradeceu- me com um aperto de mão entre lagrimas e soluços.
Iamos nos retirår para o acampamento distante mais de legua, quan-
do vieram dizer-me que uma columna inimiga se aproximava ao
mando de Firmino de Paula, -o terror da região . Mandei chamar al-
guns officiaes que estavam ali, para irem explorar afim de poder dar
parte a Gomercindo, esperando - os na povoação onde as familias se
alarmavam e pediam que não brigassemos ali. Os exploradores vol .
taram ja noite, sem nada terem encontrado e seguimos para o acam-
pamento, onde só muito tarde chegamos .
55

Em Jaguaryaça estive na casa onde residiu o coronel Moura .


Fôra um dos bravos do Paraguay, e aqui vivia com duas velhas
irmãs, creando os parentes pobres, amparando todos os infelizes.
Era o genio tutelar d'estas parageus. Quando começou o castilhis-
mo na Serra, elle falou contra taes barbarias, por isso foi preso e
mandado para Porto - Alegre . Grifei o mandado, porque foi o verbo
mandar quem mais fez n'esta terra.
Um castilhista acordava de máu humor e mandava prender
pobre gente em suas casas, depois telegraphava . „, Prendi tantos ini-
migos da republica, mando- os ? Quasi sempre a resposta era : Man-
de. Esses desgraçados seguiam para o matadouro ; o campo da hon-
ra, como elles diziam , onde se matava homens patricios, atados
como rezes, e se a faca embotava- se, elles a amolavam em presença
das victimas.
*
**

Estamos na região serrana onde a crueldade foi tal, que repugna


narrar. No governo do general Barreto Leite houve uma tentativa
de revolta. Dizem uns que um chefe castilhista á frente de alguns
homens brigára e fora morto ; outros que esse chefe levava uma
tropa de gados roubados e que os donos indo em busca lutaram e
mataram- n'o para tomar o gado ; outros que fora assassinado. Esta-
vam em indagações quando o Sr. Castilhos foi posto á frente de
sua gente. Em vez de mandar processar, condemnar mesmo ao exter-
minio os que commetteram o crime, mandou forças para serem diri-
gidas pelo filho do mortó, um rapaz de pouca idade que se glori-
ava de já ter por suas proprias mãos, morto duzentos e tantos !
E elle não attingira ainda os 18 annos de idade !
Foi d'ahi que começou a destruição da população da serra.
Não se vê uma casa que não seja habitada senão por mulheres de
luto , ja quasi insensiveis á dór.
Reunem-se em grupos e vão habitar nas casas onde possam
escapar com mais facilidade da sanha dos legalistas ; as outras casas
abandonadas estão em ruina. Propriedades ricas com pomares esplen-
didos estão destruidas. Chega-se a uma casa habitada encontra- se
10 ou 12 mulheres, e muitas creanças. Pergunta-se- lhes : seu marido ?
degollaram-n'o . Seu pae ,? degollaram-n'o . Seu irmão ? degollaram-n'o .
Seu filho ? degolaram-n'o !
Estava em armas ? não, estava na roça, estava no campo .
Foi pegado á noite ; bateram na porta, conheceu a voz de um ami-
go que o chamava ; appareceu , ataram-n'o e degollaram-n'o ali mesmo .
No Rincão do Cadeado ha cento e oito viuvas de degollados , no Rin-
cão da Cruz contam-se pelos nomes, oitenta e seis degollados . Apo-
pulação d'esses pontos não podia exceder muito d'esse numero . Va-
mos entrar na Cruz Alta, a terra do bravo Felippe Portinho.
-- 56 -

O general Salgado já está ali, o inimigo em pequeno numero


dirigiu-se para as colonias. Tive occasião de ver o desprendimento
de Gomercindo para as ostentações. Sabes que o meu velho amigo
Guerreiro Victoria é um dos nomes mais falados entre os nossos.
Coronel honorario do exercito, feito no campo de batalha paraguayo,
foi o general em chefe de nossas forças em Bagé, quando Governa-
dor o general Tavares. Gomercindo na sua internacionalidade e luta
ganhára o logar que occupa ; Guerreiro, para não abandonar a revolu-
ção , não tendo um corpo de exercito para mandar, collocou-se á fren-
te de um grupo de amigos, entre elles Pedro Diogo e os filhos e so-
brinhos de Ladislao Amaro e marchou ás ordens de Gomercindo.
A Cruz Alta é a primeira cidade onde entramos em marcha de
parada ; pois bem, Gomercindo mandon dizer a Guerreiro que com-
mandasse a columna, e veio a mim convidar-me para ir a seu lado
no meio da columna.
Atei em uma lança a minha bandeira de seda branca com a
cruz vermelha, feita por ti nos dias de preparativos d'essa luta con-
tra a selvajaria. Quantas lagrimas cahiram de teus olhos quando a
fazias , que eu fingia não ver ?
Possa eu poupar aos outros tantas quantas derramaste, e esta-
remos pagos.
Nossa estada em Cruz Alta foi rapida ; marchamos logo
porque havia noticia de que o inimigo achava-se proximo e não nos
convinha brigar n'uma cidade.
Nossas forças são de cavallaria, é com ellas que fazemos a guer-
ra. Estar n'uma cidade é preciso deixar brigar só os atiradores, e
essa briga nos prejudicaria - gastariamos as munições. Marchamos . En-
tre a columna de Gomercindo e a de Salgado ha divergencias até so-
bre divisas ..... As forças de Salgado usão divisa vermelha e as de
Gomercindo divisa branca. Ao chegarmos á Cruz Alta , Felippe Por-
tinho convidou - me para irmos em uma casa vêr uma joven senhora ,
que a nossa chegada ali havia feito sahir da cadeia. Apenas acaba-
va de casar-se vieram prender o marido e ella, collocando - os em
carceres separados onde durante sete mezes estiveram incommunica-
veis, sem consentirem que ao menos a familia lhes mandasse roupa ! ..
O marido não tinha crime nenhum e em politica não tinha
outro crime a não sero ser federal . Com a nossa approximação
elles fugiram levando o marido que degoilaram ao sahir da cidade,
deixando presa a mulher, onde fomos buscal-a. E' moça, sympathica ,
quasi bonita, mas o seu soffrimento, o martyrio porque passou dão-
The tons de belleza tal, que o revolucionario chega a julgar mys-
tica. Não sabe ainda da morte do marido .
Procurei fazel-a acreditar que elle breve voltará , deu-me o
seu retrato e o d'elle, que talvez mais tarde illustrarão as paginas da
Historia dos Martyres Brazileiros .
57 -

Aqui na Cruz Alta enchiam a cadeia á noite, e pela manhã


sahiam os grupos para o matadouro .
Eram scenas horriveis, disseram-me, as despedidas dos que
sahiam e dos que ficavam. Sabiam que marchavam para a faca e
José Gabriel, o maior amigo do Sr. Julio de Castilhos no Rio Gran-
de, chefe na Cruz Alta, diz que nunca pensou que a carne hu-
mana fosse tão boa para engordar cães e porcos .
Dizem que o vigario fizera preces para moderar aquelles hor-
rores e que d'ali em diante já não tiravam em grupos da cadeia,
mas nem por isso a matança deixou de ser continua e progressiva .

**

N'esta região que percorremos ha dois grandes inconvenien-


tes ; a cerração, que dura até alto sol, privando de se avistar ao
longe e deixando que os grupos inimigos passem em busca da flo-
resta, bem conhecida d'elles, sem serem vistos ; e o fogo nos campos
que enche de tanto fumo o espaço , que o inimigo pode marchar
immediatamente na nossa retaguarda, sem ser apercebido.
Gomercindo não está alegre. Filho da campanha onde a vis-
ta abrange longinquo horizonte, vê-se obrigado a marchar por es-
tradas estreitas nas mattas e o fumo limitando o horizonte ao sahir
ao campo. •
Demais, este terreno é todo de alluvião . A chuva cava
verdadeiros sorvedouros, muitas vezes mascarados pela macega , de
modo que sahindo -se da estrada , no dorso da coxilha, arrisca-se a ir
parar em algum subterraneo ; portanto, uma batalha aqui , nos será
prejudicial, porque os nossos lanceiros não poderão intervir com a
rapidez com que operam, sob pena de ver-se desapparecer por essas
boccas de abysmos, esquadrões inteiros.
Depois da Cruz Alta, a nossa retaguarda, commandada por Au-
gusto Amaral , sendo alcançada pelo inimigo, tiroteou . Immediata-
mente Gomercindo mandou fazer alto e voltou em pessoa para ob-
servar a posição que occupava o inimigo. Já não o vio ; suppõe- se
que fôra algum piquete de vanguarda que depois metteu- se pelo
matto.
Paramos todo o dia sempre á espera, porem o inimigo não
apparecia. A ' noite marchamos. Parece que o inimigo espera que
alguma forte columna vinda de Porto Alegre nos tome a frente , para
então atacar-nos pela retaguarda.
Perto do Passo-Fundo ha uma pequena povoação com o nome
de Carasinho.
Os habitantes do lugar sabendo da nossa approximação e pelo
que diziam de nós os castilhistas, para aterrorizal - os, fugiram todos
para o matto , levando comsigo velhos e crianças.
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Só uma mulher ficou ali e nos dizia : que tinha ficado, porque
preferia nos vêr, a ir morrer de frio no matto e que afinal os outros
é que eram máus porque prendiam, açoitavam e matavam , e que
nós passamos sem nada fazer, sem arrombar uma casa .
Aconselhei-a que fosse ao matto, que não era longe , chamar
aquella pobre gente para suas casas.
Antes de me retirar já elles começavam a apparecer. No ce-
miterio do lugar ha um carneiro feito ha pouco tempo, onde por uni-
co ornamento ostenta-se com todas as suas cores e bem desenhado
o antigo emblema do Brazil com a coroa imperial.
O que ali está, dizem, vendo os horrores que se praticava
em nome da republica, se enfermára e conhecendo que ia morrer,
ordenára que lhe pintassen no tumulo as armas do imperio.

Entramos na cidade do Passo Fundo à noite. Immediatamen .


te procurei visitar as familias de muitos amigos emigrados e com os
quaes havia estado no estrangeiro e de quem ellas não tinham no-
ticia.
Prestes Guimarães, prestimoso chefe serrano, acha- se em Corri.
entes. No outro dia marchamos e fomos acampar no Matto Castelha-
no, tres leguas distante do Passo-Fundo. Tem este nome, porque
nas guerras ibericas, acampava aqui o exercito castelhano ; depois
segue-se o campo do meio, limitado pelo Matto Portuguez , onde
acampava o exercito portuguez e ali permaneciam mezes sem se
encommodarem. Ali no campo do meio, existe um grande fosso ,
onde os moradores sepultaram cincoenta e tantos cadaveres de com-
panheiros nossos assassinados.
Ali mesmo estivera acampado em 1835 o exercito revolucio-
nario nove mezes, sem ser encommodado. O que eram as guerras de
então e o que são as de hoje ! N'aquelle tempo poderam fazer capital
em Piratiny, onde até moedas cunharam ! Passavam até nove mezes
n'um lugar, sem verem inimigos. De anno em anno dava-se um
encontro sem grandes perdas, os prisioneiros eram respeitados, os
feridos medicados.
O vigario de Bagé querendo cantar um Te- Deum por uma
victoria obtida pelo barão de Caxias, este mandou dizer-lhe que as
victorias em guerra civil não eram para festas, porque os vencidos
são irmãos ; que, se quizesse rezar uma missa por todos os mortos,
elle iria assistil- a com todos os seus officiaes .
Hoje o trem de ferro vomita soldados por todos os pontos,
não ha dia em que não haja mortandade, ou nas lutas, ou em suas
proprias casas, em nome da legalidade. As guerras civis na actuali-
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dade devoram as nações e quem as provoca no Brazil é o governo


e esse governo diz que assim o faz por amor à republica.
Tartufo e scelerado !

Pela correspondencia que apprehendemos, soubemos que o Sr.


Castilhos insistia com o seu bom amigo Chachá Pereira, para en-
trincheirar-se no Matto Castelhano para nos impedir a passagem,
afim de sermos atacados pela retaguarda.
As autoridades do Passo Fundo, inclusive o juiz de direito e
familias, acompanharam a Chachá ; este porém, não confiando muito no
Matto Castelhano, foi entrincheirar-se no Matto Portuguez .
As forças de Lima seguem-nos de perto. E' preciso portanto,
abrirmos caminho para não sermos colhidos em dois fogos .
A' noite Gomercindo recebeu aviso de Salgado de que o inimigo
acha-se bem entrincheirado no matto portuguez . Gomercindo respon-
deu-lhe Lima achava-se proximo ao Matto Castelhano guardado á
vista por Guerreiro, que elle fizesse desoccupar o Matto Portuguez ,
que elle Gomercindo conteria Lima, até que se encontrasse campo
proprio para se dar uma batalha .
Sabendo que se ia brigar na frente e achando-se na columna
de Gomercindo o Dr. Nabuco da Cruz Vermelha, do Rio de Janeiro,
deixei-o ali e fui encorporar-me á columna de Salgado, de onde me
achava ausente desde o combate do Serro do Ouro. Fiz a viagem
só com um camarada que fora prisioneiro . Felizmente a approxima-
ção de um exercito afugenta todos, e as cinco leguas que percorri de
uma columna á outra , terreno cheio de bosques e de serros , eram um
verdadeiro deserto. Quando cheguei ao acampamento do general Sal-
gado este já estava em marcha ; Juca Tigre, na vanguarda, brigava com
Chachá Pereira. Uma hora depois recebeu -se communicação de Juca
Tigre, avisando que o inimigo tinha sido batido tendo abandonado
tudo : carretas, munições, objectos de uso de familia, joias, etc. , etc. ,
e que seguia em perseguição .
Fomos acampar junto á bocca da picada do Matto Portuguez
e no outro dia á tarde chegamos á Lagoa Vermelha . A' noite or-
ganisaram passeiatas com musica pelas ruas e em casa do Sr. Moge
onde hospedei-me, tivemos bailes, jantar, cercados de todas as atten-
ções, não só por elle como por toda a sua familia . Este cavalheiro
tem sido aqui, pelo seu prestigio, o amparo de muitos nossos com-
panheiros. No outro dia pela manhã chegou o Sr. Thimoteo Fei-
jó, vindo de Lages, em Santa Catharina, trazendo jornaes do Des-
terro, onde o governador, tenente Machado , declara-se francamente
a favor da revolução rio -grandense ; portanto , temos em vez de
inimigos, amigos no Estado vizinho. Temos una sahida para não
60

sermos esmagados entre duas columnas. Isto melhora a nossa condi-


ção e salva a revolução, porque aqui onde nos achamos com um
exercito numeroso na nossa retaguarda, com o do general Arthur
Oscar no Rio das Antas, em nossa frente á direita, podendo em
um momento nos tomar o caminho, campos pobres de cavallos , uma
batalha nos seria prejudicial. E' a fatalidade que nos ajuda, porque
entre estas duas forças sem sahida, aqui encontrariamos o nosso
tumulo e a revolução tambem.
Thimoteo Feijó pedio ao general Salgado uma força para per-
seguir Chachá Pereira, o que elle não concedeu.
Juca Tigre seguio para impedir a passagem de Arthur Oscar ,
caso elle queira nos sahir em frente.

Aqui, como em toda a parte, o assassinato, a tortura, tudo


• que a crueldade pode conceber , se tem posto em pratica. O capi-
tão Chachá Pereira a quem o Sr. Julio de Castilhos encarregou
de legalisar esta região, tem sabido cumprir as ordens d'elle . Uma
das victimas foi um pobre moço de raça allema, a quem elle inflin-
giu tantos castigos corporaes, que perdeu quasi toda a pelle . Um
boticario conservou no alcool alguns fragmentos que eu consegui
obter para fazer presente ao museu. E' uma boa preparação anato-
mica, porque sendo tirada do vivo, conserva todas as suas ramifica-
ções venosas, tendo tomado a côr negra. Irá com esta inscripção :
Pelle humana de um teuto brazileiro civiciado na Lagoa Ver-
melha, Estado do Rio Grande do Sul, no anno de 1893, por agen-
tes do governo do Dr. Julio Prates de Castilhos, no 4º. anno da
46
Republica e segundo do governo do marechal Floriano Peixoto.
Tres soldados nossos sahindo dispersos mataram um homem
para roubar.
Estão presos e vão ser fuzilados .

Na tarde do segundo dia da nossa estada na Lagoa Verme-


lha, ouvimos descargas no Matto Portuguez . O general Salgado se-
guio para lá com alguns ajudantes, ficando a columna em prompti-
dão. Voltou á noite.
Era o exercito do general Lima que brigava com o de Go-
mercindo.
A columna do general Salgado marchou cedo e Gomercindo
que chegára á Lagoa Vermelha, pedira-me que ficasse ali para ver
os feridos. Ao meio dia chegou a columna , trazendo grande numero
de feridos que só pude vêr no acampamento á tarde .
61 -

Gomercindo estava contrariado pela demora da columna e por


ter ella brigado sein necessidade. Essa contrariedade porem, desap-
pareceu, quando soube das proezas que haviam praticado. O comba-
te tinha sido renhido. O major Antonio Nunes Garcia, com seus
valentes infantes fazia frente ao inimigo, que corria sobre elle em
massas compactas para voltarem dispersas. Uma força inimiga veio
por dentro do matto para tomar- lhe a retaguarda, encontrando ali
desappercebida a nossa força que estava de protecção, fez-lhe fogo
e a dispersou. Apparicio, que havia deixado o seu cavallo ali e
achava-se observando o combate, acudio ao tempo em que dois sol-
dados dividiam entre si o seu poncho, como a tunica de Christo , e ,
com a espada, defez-se dos dois , conseguindo om vez do poncho --
dois trapos que ainda, lhe serviram .
A força que debandara os nossos, entretinha- se no saque das
nossas bagagens ; então Apparicio com а presença de espirito
dos grandes heroes, mandou tocar carga, e elle só com o clarim os
poz em fuga, matando alguns e salvando não só a bagagem, como os
nossos cavallos .
A columna do general Salgado tomou o caminho da Vaccaria,
deixando o da direita a Gomercindo, caminho horrivel pelos desfi
ladeiros e rios de passagens difficeis. Gomercindo mandára lhe pe-
dir para logo que encontrasse campo apropriado, o esperasse para
darem batalha ao general Lima, visto já não se acharem no passo
das Antas as forças de Arthur Oscar. O tenente-coronel Macedo
(Fulião) voltou á Lagoa Vermelha a ver se o inimigo tinha trans-
posto o Matto Portuguez ; encontrando-o já proximo á villa, tiro-
teou-o e retirou-se sem ser perseguido.
O tenente coronel Augusto Amaral que havia sahido dois dias
antes n'uma commissão, para vir se encorporar comnosco na Lagoa
Vermelha, ao chegar ali encontrou acampado o inimigo e atravessou
pelo meio d'elle ao toque de clarim.
Não posso comprehender porque não o atacaram, sendo a for-
ça d'elle pequena .

Na Vaccaria vim encontrar o Dr. Joaquim de Mello Rocha,


meu amigo de infancia. Casou-se ainda estudante em Pernambuco e
sua vida de magistrado atirou-o aqui.
Na organisação do Estado ficou avulso ; foi porem aproveitado
na organisação da magistratura de Santa Catharina, para onde ain-
da não pode seguir por causa dos movimentos da campanha. Espe-
rava-me. Almocei e jantei com elle. Estar ali parecia-me estar no
meio dos meus ; não quiz porem dormir ; elle e a senhora insistiam
para que o fizesse, mostrando-me o commodo que me haviam preparado ;
62

um leito com cortinado branco cheio de fitas, isto porém, em


de attrahir- me, afugentava-me ; minha roupa é tal, que sujaria aquelles
lenções bordados ; acceitei um lenço e um collarinho que creio que
nunca mais restituirei . Retirei - me à noite para o acampamento, pro-
mettendo voltar para almoçar no outro dia, o que não pude fazer
porque marchamos.

Estamos na região que limita o Rio Grande com Santa Catha-


rina. Chama-se campo dos ausentes. Pertenceu esta região aos
Jesuitas que aqui tiveram criações, de gados taes, que tornaram- se
baguaes ou alçados. Devido ao numero é que deram o nome de Cam-
pos da Vaccaria por onde passamos.
Aqui tivemos noticia de que a esquadra organizou Governo
Provizorio em Santa Catharina. N'elle acha- se como ministro
Dr. Annibal Cardozo, uma das figuras mais salientes no partido
dos Srs. Demetrio Ribeiro e Barros Cassal, os causadores de tudo isto
porque passamos, porque addiaram tanto a reorganização do Estado ,
conforme fora determinada pela revolução, até que não podendo or-
ganizar um partido forte, pessoal, deixaram que o Sr. Castilhos se
apoderasse do governo, e todos os adversarios foram postos no indi-
ce do soffrimento da morte.
Para muitos , a estada do Sr. Annibal no governo, já é
um presagio funesto, para mim porem, não. Intelligente, trabalhador
e honesto, elle comprehenderá que fazer politica de partido em epo-
cha como esta é um crime que ultrapassa a vilania, e feliz do ho-
mem que tem occasião propicia para corrigir um erro do passado ,
e quando não possa reparar o estrago feito, ao menos justificará
que não errou por perversidade. O coronel Laurentino Pinto acha-
se ali como commandante da Guarda Nacional.
Muitos torceram o nariz em galhofa sabendo disso, a mim po-
rem agradou, porque, com quanto não tenha elle capacidade militar
para dirigil- a, o que poderá obter em pouco, comtudo vejo n'isso
uma prova de deferencia ao exercito libertador do Rio Grande, de que
elle fez parte como secretario do general Tavares.
Meus companheiros de barraca são o coronel Israel Sá, de
Pelotas, um caracter distincto, uma alma boa, um dos maiores es-
tancieiros de Pelotas, sem um vintem no bolso. Tem casamento
tratado com uma filha do conde de Porto Alegre, para o qual con-
vidou- me para ser padrinho, e que devemos entrar n'aquella cidade
como verdadeiros gaúchos, de chiripá e palla ao hombro ; e que elle
dirá á sua respeitavel mãe e noiva : "Aqui está a sciencia, portan-
to , não tinham motivo de estarem a pensar em desgraças. " Promette
mais que ha-de dar-me depois casaca e roupa propria para gran-
68

des festas nacionaes. O outro meu companheiro é o Dr. Gusmão,


filho da Bahia, formado em sciencias juridicas ; veio para o sul onde
se casou na região serrana. Sua mulher comprehende bem a luta
em que nos achamos e por isso elle se conserva na altura de seu
dever de patriota.
Hoje o coronel Carvalho pretendeu fazer uma manifestação a
Gomercindo Saraiva em nome do 1º corpo de exercito . Vieram-me
falar para apresentar-me a esta manifestação e eu compareci a
ella. O coronel Carvalho á frente de todos os coroneis rio-grandenses
da columna dó general Salgado, marchou e emfrente do grande pa-
ladino rio-grandense, não encontrou outras palavras à dizer, senão :
que a musica da columna do general Salgado vinha comprimentar o
general Gomercindo Saraiva.
Immediatamente um official do estado maior de Gomercindo
me veio pedir para em seu nome agradecer aquella manifestação .
Dos manifestantes levantou -se a voz de Gayer pedindo-me para
em nome do Exercito revolucionario saudar a Apparicio Saraiva ,
o estrangeiro que abraçava a nossa causa e sacrificava todo o seu
bem estar, todo o seu repouzo pelo Rio Grande do Sul. Acceitei a
incumbencia. Fil-o com toda a convicção do homem que luta e que
encontra em homens estrangeiros á sua Patria , a vontade para lutar
comsigo.
Disse que na marcha em que vamos a nossa victoria será certa,
que seja qual for o meio pelo qual havemos de triumphar, eu hei
de propôr que Apparicio seja considerado cidadão brazileiro.
Nos retiramos depois, e Gomercindo que nunca deixou de mos-
trar a sua isenção em tudo que poderia exalçar a sua pessoa,
montou a cavallo e veio pessoalmente agradecer ao general Salgado ,
a fineza de mandar o seu estado maior comprimental-o.

O meu companheiro de barraca é Israel Sá. Puro , bom, como


não se pode imaginar alma melhor.
Da Lagoa Vermelha veio ser meu hospede o Dr. Gusmão ,
juiz d'essa região. E' parente proximo do bispo D. Antonio de Ma-

cedo Costa, que o levou para o norte e o educou. Eu tinha appre-
hensões muito serias contra D. Antonio, mas hoje aqui conversan-
do com Gusmão, modifiquei completamente a minha idéa. Pelo que
me diz Gusmão, D. Antonio era um grande brazileiro. Tinha a pre-
rogativa dos homens que se impõem . Era um grande brazileiro , sua
vida era pensar n'esta terra, na sua grandeza, na sua iutegridade.
As horas de que dispunha para a educação dos seus seminaris-
tas do Pará erão todas dedicadas ao amor da Patria brazileira. Gus-
mão me recita os versos compostos pelo bispo do Pará ; narra-me
64

os enredos patrioticos dos dramas que elle compunha para serem re-
citados pelos seus seminaristas e canta-me os hymnos, verso e mu-
sica d'elle, num extremo de patriotismo, onde só se ouve esta palavra
unisona :
66
Brazil, Brazil. „
Apesar das idéas que predominam sobre o homem, senão fô-
ra morto esse bom brazileiro, em vista dos seus actos, em vista da
sua boa vontade por nossa terra, em vista dessa hecatombe que
nos vae destruindo , eu iria a esse apostolo sagrado das crenças abs-
tractas, d'esse brazileiro digno , pedir de joelhos que fosse meu amigo.
Tinha dois fins : por ti , minha pobre amiga, seguindo todos os tran-
ses de tuas crenças, tendo por fin chegar ao ultimo ponto de uma
crença consolidada nos representantes das grandes autoridades. Por
mim, como homem , como revolucionario, buscando os representantes
do martyr da humanidade e dizendo -lhe : O esforço d'Elle nada va-
leu, o grande reformador em balde morreu sobre a cruz, porque nós
aqui estamos como os velhos hebreus morrendo n'esse deserto da
justiça que nos anniquilla e que fará desapparecer um por um todos
os que sonham com a igualdade e com a fraternidade humanas.
*
**

Eu não te posso dizer quanto dóe isto a um brazileiro. Nin-


guem pode comprehender qual o nosso sacrificio . O que somos nós ?
Victimas da vontade potencial dos outros .
O que queremos ? A garantia de nossa existencia . O que de-
sejamos ? A moralidade do nome de nossa Patria. Tudo isto des-
truiram.
Mortos, presos, sem o direito de falar, sem o direito de que-
rer, sem poder ao menos relutar por uma crença , qualquer que
ella seja, eis a que estamos reduzidos.
Calar, abafar os sentimentos, não lutar, nos occultarmos para
não sermos mortos , ahi está a legalidade.
E sobre tudo isto um grito de escarneo : Viva a Republica !

**
Os generaes Salgado e Gomercindo resolveram mandar em-
baixada ao Desterro. Salgado vai mandar o Dr. Carvalho, Gomer-
cindo o Dr. Arthur Maciel.
Gomercindo como sempre, veio à minha barraca de passagem ,
e disse-me o que se tinha resolvido. Sá e Gusmão insistiram para
que elle tomasse um pouco de café, o que acceitou.
Falando-me sobre a embaixada respondi-lhe : que achava incon-
veniente. Que estavamos na fronteira onde não tinhamos outro
remedio senão passar ao Estado de Santa Catharina.
65

Que a ida do Dr. Carvalho nos seria prejudicial, porque habituado


como estava a apresentar predicados ultra podia chegar ao Dester-
ro e querer impor sua vontade, ameaçando o governo provisorio
com as forças rio- grandenses em nome do general Salgado . Que a
ida do Dr. Arthur Maciel tambem não offerecia vantagem, por-
que na columna do general Salgado era elle tido como positivista,
com quanto seja um companheiro digno em todo sentido, desde
que não obtenha tudo que precisamos , se dirá que não o fez
porque é do grupo cassalista.
Gomercindo comprehendeu o alcance das minhas observações
e disse-me : Arthur é um bom companheiro. Não é capaz de sacri-
ficar a causa por amor proprio, mas eu tenho receio que isso se dê
como você diz porque nós não temos nada com politica, o que que-
remos é meio para a nossa luta no Rio Grande. Pouco me importa
que o governo seja aqui uma cousa ou outra. Que nos dê meios
para lutarmos e depois que se arrangem os politicos. E porque
não vai você n'esta viagem ? perguntou-me elle ."
Por que não estou n'isso por politica, e não quero me envol-
ver n'ella. Demais o inimigo está perto. Se eu for, poderão pensar
que fugi. Medroso como sou quero fingir que sou valente, que
estou prompto para a luta até o ultimo momento. Gomercindo deu
uma gargalhada, dizendo para o Dr. Gusmão :
Este bahiano é sempre dourado.
O general Salgado combinou com Gomercindo a marcha so-
bre a fronteira de Santa Catharina onde esperaremos a resposta do
Governo provisorio. Não temos outro remedio senão passarmos áquel-
le Estado ; mas o general Salgado quer que venha de lá o convi-
te. Não posso comprehender a necessidade de tal convite, se todos
trabalhamos para o mesmo fim.
Antes de nos retirarmos dos Ausentes o inimigo appareceu .
Izidoro Dias Lopes foi ao reconhecimento da posição, travando- se
forte tiroteio d'onde resultou um ferido, dos nossos. O inimigo de-
sappareceu e nós seguimos marcha , ficando eu á retaguarda para
medicar o ferido, um rapazinho indiatico, com um braço quebrado
por uma baia, cujo doloroso curativo supportou impassivel.
Ao chegarmos proximo da picada que vai ter ao rio Pelotas
e que divide com Santa Catharina, o general Salgado mandou acam-
par, apenas para dar pasto aos animaes, porque deviamos passar o
rio immediatamente. Depois chegou a columna de Gomercindo, e
combinou-se que haviamos de dormir ali . Sahindo á tarde para ver
os doentes, encontrei-me com Apparicio que me disse : - Tenho
que pedir-lhe um favor : Veja se influe para não passarmos a ou-
tro Estado sem brigarmos . Disse-lhe que achava máu o logar :
Serros muito altos, mattos onde a infanteria inimiga se occultaria
para fazer- nos fogo e que não tendo onde operar a nossa cavallaria ,
5
- 66

sahiriamos mal . O Serro do Ouro era assim, disse Apparicio, e nós


, carregamos lá. Mas não temos cavallos como lá , disse eu. Carre-
garemos a pé, respondeu- me. Falando sobre isto a Guerreiro elle
julgou que não era prudente acceitar- se batalha ali. Quando voltei
ao acampamento lá estava Gomercindo em conferencia com o gene-
ral Salgado d'onde resultou que esperariamos o inimigo.
Gomercindo foi acampar do lado por onde devia vir o inimi-
go. A columna de Salgado acampou em meio de serros taes que
para se visitar os acampamentos é preciso dar voltas extraordinarias .
. O divertimento de muitos tem sido atirar pedras de cima dos
montes para vel- as rolar. Eu desejava que ao passarmos a Santa
Catharina, Apparicio tivesse o posto de general . Combinei com
muitos officiaes para pedirmos isso . Falando a Gomercindo , este
pediu-me que não fizesse tal , porque podia ser motivo de reparo
entre muitos . Porque ? perguntei-lhe. Nós somos brazileiros, lutamos
pela nossa terra, official ou soldado cumprimos com o nosso dever,
Apparicio não. Apparcio é estrangeiro, mas abraçou a nossa causa,
soffre comnosco, abandonou a familia que só o dever patrio pode
mandar fazel -o . O que tem passado n'esta luta pelo maior soffrimento,
não o terá mais do que elle. Se alguem tem lutado até á loucura do
heroismo não o terá mais do que elle. Se ha alguns, que o possam
comparar em bravura, mesmo assim ficam áquem, porque são brazileiros ,
são rio-grandenses, lutam pela sua terra, e elle só luta pela causa
da justiça é portanto um paladino da humanidade, é um heroe da
causa dos opprimidos. Amanhã, triumphadores nós teremos a nossa
recompensa no bem estar da patria, no goso que dá ao homem o
trabalho sem surpresas, sem accidentes, no vasto caminho para as
aspirações honestas,sem peias nem imposições.
Todos os brazileiros honestos lucrarão , serão pagos , ao passo
que Apparicio voltará à sua terra lembrando apenas os seus sacri-
ficios, as suas victorias, não tendo como recompensa senão 0
devotamento dos que reconhecem seus serviços ; é justo por tanto
que o distingamos aqui já que no futuro nada podere nos fazer.
Gomercindo commovido disse- me : Obrigado, Dourado. Tu fazes
justiça a meu irmão, mas peço-te que não fales n'isso ; mais tarde ,
no fim, se não morrermos, quando elle voltar à Patria, talvez seja
util como uma lembrança dos serviços prestados.
Sim, disse eu, mas note que nós não queremos que Apparicio
seja nomeado, nós queremos acclamal- o, é uma divida que que-
remos pagar, é um reconhecimento do muito que lhe devemos.
Sim , sim, disse Gomercindo, mais tarde.
*
**
Amanhã, 1º. de Novembro, devemos brigar. No dia do teu
anniversario, ... tu , tão boa, tão santa,... devemos derramar sangue
67

irmão, para podermos obter justiça . No dia em que junto de nós


tudo era alegria, tudo era riso , eu vou talvez morrer, vou talvez
matar, vou talvez deixar- te viuva, deixar nossos filhos orphãos. Que
triste recordação se unirá no futuro á alegria d'elles quando te
beijarem os cabellos brancos ! Amanhã em vez dos risos de nossos
filhos, nossos beijos a ti, vou ter gemidos, agonias de muitos, cada-
veres por onde passarmos, sangue por onde olharmos.
Homens que arrastaes os póvos a estas hecatombes ; ambicio-
sos que os obrigaes a matar para poderem viver ; quem poderá pene-
trar n'essa charneca, n'esse pantano que se chama vossas almas ?
Então a vida dos homens, o futuro das familias, nada é, para sa-
crifical-os assim em vosso proveito ? Com que direito ? O que sois
vós para opprimirdes um povo até o ponto de collocal-o no dever
de morrer ou matar-vos ? Sois monstros ou loucos ? Insensiveis ou
perversos ? Sois perversos, porque loucos são os que têm coragem
para, vos obedecendo, arriscarem a vida pelo vosso interesse, e não
tem para vos destruir, seccando assim a fonte de todas as desgra-
ças da patria, estancando as lagrimas de milhares de esposos , garan-
tindo o pão a milhares de creanças, a honra de milhares de virgens.
Tendes filhos ? Não, não os tendes. O filho só o é quando faz
parte de nossa alma que dirige nossos actos. Os outros são da sen-
sualidade da besta. Quem tem filhos e os ama, por intensa que
seja a vaidade, não chama sobre elles o odio de muitas gerações,
como vós fazeis.
Para o vosso goso, para o vosso poderio , mandais matar, man-
dais perseguir, mandais destruir , mandais infamar. Não poupem o
adversario nem na sua pessoa, nem nos seus bens, - foi a vossa
senha. Criaes portanto para vós uma fortuna de lagrimas e sangue.
Hoje isto vos agradará, sentis o cheiro de sangue, ouvis os gritos
de dor e para vossas almas esse cheiro é perfume que enebria, -esse
grito é muzica suave ; preparaes com isso a herança para vossos filhos ,
o dote para vossas filhas.
Elles, os infelizes, que brincam hoje alegres porque vos vêm
cercados de corypheus, que vos deificam, amanhã terão horror de vós.
Mas que vos importa isso ? Vós os gerastes, não os creastes.
Que importa que o futuro os aponte como filhos de malditos,
se lhes deixaes ouro com que possam fazer o mesmo que estais fa-
zendo, perpetuando assim o vosso nome, os vossos feitos ? Os carrascos,
os executores da alta justiça são repudiados pelos homens do tra-
balho , mas entre elles o officio se perpetua, e vivem entre si, entre-
laçam-se, tornam-se parentes e o officio torna-se vitalicio n'aquellas
familias. A forca e a guilhotina constituem uma herança e um dote ;
elles não são senão os executores das ordens dos juizes e são re-
pudiados pelas outras classes ! O que seriam n'esses povos os que
- 68

mandam matar, roubar, deshonrar, para dominarem como senhores


sobre escravos !
Benemeritos, sois benemeritos porque vos mataes pensando que
mataes aos que não vos querem obedecer. Com calma e manha ma-
tal- os-eis lentamente ; não soubestes fazel- o . Alem da crueldade qui-
zestes enscenação, perdestes- vos.
*

1º. de Novembro..........
Como está triste o dia ! Uma chuva miùda, que apenas nos
molha a barba e as botas, e torna lamacento o terreno, no estreito trilho
que temos de percorrer flanqueando os serros, em busca das barracas
onde se abrigam os enfermos . Parece-me que o dia de hoje foi de-
signado pela fatalidade para representar o estado de nossas almas.
Tú, em terra estranha, longe de mim, longe dos teus, tendo em torno
de ti nossos filhinhos, unicos objectos de nossas esperanças e de nos-
sas apprehensões, julgando-os, talvez orphãos sem o arrimo do pae,
que os idolatra, e que para elles hoje só conta com a tua santa
guarda !
Que luta para ti, o pensar que esses thesouros, unicos que
te dei, n'esta epocha em que vivemos em meio de todas as corrup ·
ções, de todo despudor, do anniquilamento do caracter de um povo
que tende a desapparecer forçosamente, se n'um acto de desespero
não se votar a um sacrificio ingente, a um martyrio inaudito, porem.
transitorio, para fugir do martyrio lento, longo, anniquilador !
Como elles te beijarão hoje e tu como estarás triste !
Tu és a imagem d'esta Patria a quem cada affecto de um filho ,
cada prova de amor, cada affago, faz correr torrentes de lagrimas
dos que pertencem a esses devotados ! No dia de teus annos ver
correr sangue irmão ! Vêr abrir o templo dos sacrificios para o holo-
causto em honra da tyrannia !
Vêr um irmão, como o escravo matando ao seu irmão por or-
dem de um senhor ! Ver um irmão que luta, que morre, para, li-
bertando a patria, libertar da ignominia até aquelles que lhe vêm
trazer a morte ! Ver encharcar os campos de sangue, formado com
a seiva da patria , impellido por corações
corações formados
formados no seio de
uma mãe commum !
Que fazer ! Quando um povo cahe do seu pedestal, quando
a lei, a justiça, é o interesse de alguns sobre o direito de todos, as
festas nos lares só podem ser como a tua hoje ; o orvalho dos cam-
pos só pode ser como o que em pouco talvez derramaremos.

Tenho em minha bolsa tuas cartas fechadas. Não as abri por-


que não devo lel - as. Que supplicio de Tantalo este de poder ter
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uma noticia que se deseja, que se espera e não querer lel- a ! Eu


espero que nas tuas cartas venha a noticia de que nossos filhos
estão sãos. Que estejam vivos e tudo se esquecerá depois. Mas, se
em vez d'isso vem a noticia da morte de um d'elles ? Se vem a de
que estão enfermos e eu sem poder correr para junto de ti, para
ajudar-te a cuidal- os . Que martyrio ! Sabedor de uma d'estas noticias ,
o choque me seria tão duro que talvez não podesse superal-o, e aqui,
temos que estar attentos ao que se passa em torno de nós ; temos que
estar calmos, mostrar alegria no rosto para que os companheiros que
nos observam e tiram consequencias das nossas physionomias, não jul-
guein que temos medo ou que nos desanimamos, o que seria pre-
judicial.
Quando estamos na imminencia de um combate ou de perigo ,
eu as passo para o bolso para atiral- as ao fogo quando vir que esta-
mos perdidos, e os meus companheiros tem recommendações para
fazerem o mesmo, caso eu morra, sem o ter feito. Se não morrer nós
as leremos juntos e nos esqueceremos juntos do martyrio commum.
O inimigo não apparece ; portanto não será hoje.
2 de Novembro. Sahi para ver alguns enfermos, e em cami-
nho ouvi toque de clarim chamando officiaes ao quartel general. Em
caminho encontrei Gomercindo que me disse que havia ido exami-
nar o caminho até o rio, e que era de tal natureza , que uma retira-
da seria impossivel em caso de derrota. Que seus officiaes aos
quaes tinha exposto isto, eram de opinião que não se brigasse ali.
Que o inimigo não apparecia e o tempo ameaçava chuva. Qual-
quer crescente no rio, nos deixaria nas mãos do inimigo.
Quando cheguei ao quartel general já estavam ali quasi todos
os officiaes . Salgado expoz aos de sua columna o motivo da reunião .
Estacio Azambuja pediu para falar e expoz os motivos pelos
quaes os seus companheiros de columna haviam resolvido não bri-
gar ali. Que já, mais de uma vez, tinha mostrado que no cumpri-
mento do dever não conhece perigo, mas que fôra elle o primeiro a
julgar que não deviamos brigar n'aquella posição .
O general Salgado consultou seus officiaes e unanimemente foi
approvada a idea de não se brigar. Depois usou da palavra du-
rante alguns minutos, declarando que desejava brigar, que queria
mostrar com isso que ao menos um não queria passar a Santa Ca-
tharina sem brigar ............

O caminho que tivemos de percorrer para chegar ao rio é um


verdadeiro desfiladeiro. Poucos foram os que o fizeram a cavallo.
Depois entramos na matta cuja entrada com as chuvas se transfor-
mára em atoleiro . Um que cahia paralisava toda a columna que
lhe vinha após , e as quedas eram constantes.
― 70

Depois chegamos ao rio largo, pouco correntoso , porém tendo


apenas um estreito lageado por onde podia passar um a um ,
porque fóra d'ali eram as pedras cobertas de limo tão escorregadio
que nem infantes, nem cavallos se poderiam conservar de pé. As
quedas eram constantes e todos tinham de parar porque o cavallo
que cahia custava muito a levantar- se. Apezar disso, da pressa que
tinhamos em passar, porque tinha- se fome, esse serviço tomou ares
de comedia porque muitas vezes cahia um homem ou uma mulher
e a queda era saudada com uma gargalhada, nem só por ver a rai-
va dos que cahiam, o esforço que faziam para sahirem, e os que se
riam cahiam tambem ás vezes não tendo tempo de fecharem a bocca ,
d'onde uma figura muito exquisita. Esta passagem durou até à noi-
te. Guerreiro fazia a retaguarda.
A subida para a serra, já em Santa Catharina, era horrive] ;
um estreito caminho em zig-zag, mas tão ingreme que difficilmente
os arreios conservavam-se sobre o animal.
Em toda esta marcha eu observava os serros do Rio Grande
onde estivemos acampados , muito proximos, em linha directa.
Se tivessemos brigado, ou se o inimigo estivesse ali, difficil
seria escaparmos ás pontarias.
Estacio Azambuja acampou logo no planalto e os diversos cor-
pos foram-se acampando ao longo da estrada no dorso da serra. Foi
difficil obter-se gado para o consumo.
No outro dia marchamos e acampamos adeante, ficando a colum-
na de Gomercindo na retaguarda . Era a sorte de Gomercindo . Se
estava na vanguarda , o inimigo estava adeante, se estava na reta-
guarda, o inimigo estava atraz.
Fui ao pequeno povo ou Villa de S. Joaquim. Ali já se acha-
vam alguns do governo catharinense em movimento. A'tarde voltei,
e soube que o inimigo havia chegado ao acampamento onde o havia-
mos esperado dois dias. No outro dia pela manhã, Gomercindo veio
ao acampamento de Salgado, e logo depois tocou- se apromptar e mar-
char, - passando por Gomercindo, elle me disse : Não deixes os
meus feridos e eu respondi -lhe : Amanhã voltarei para o seu acam-
pamento. Marchamos á tarde e acampamos.
D'ali seguiram para o Desterro, Gayer e Gusmão .
No outro dia estavamos acampados quando chegou noticia de
que Gomercindo havia abandonado o passo e já se achava em S.
Joaquim, em direcção a Lages, e que o inimigo estava passando . O
general mandou apromptar, e marchamos, indo Israel Sá a S. Joa-
quim entender- se com Gomercindo sobre o occorrido. A' tarde pa-
rou-se para carnear. Eu me tinha demorado para curar o ferido de
Ausentes. Aqui ser m-dico é apenas lavar uma ferida quando póde e
lançar sobre ella um pouco de iodoformio, se tiver. Nas horas de
combates tem-se que estar na linha de fogo, porque os nossos com-
- 71

bates são sempre ataques rapidos para abrir um caminho. De modo


que un medico nas guerras civis, onde não ha repouso nem garantias
convencionaes, não é mais do que o altruista soffredor que todos os
dias arrisca a propria vida para salvar a vida de outros.
Quando procurava o meu acampamento para tratar de comer
alguma cousa, chegou Israel Sá de volta de sua commissão . Perguntei-
lhe se era verdade que Gomercindo tinha abandonado o passo , res-
pondeu- me que sim e que o inimigo passára . Apenas cheguei onde
estava minha gente, no quartel general tocou a apromptar e montar
a cavallo, logo depois.
Parecia portanto que o inimigo estava proximo .
Marchamos. Eu ouvia falar-se de Gomercindo , e pela primeira
vez senti alguma cousa que esmorecia o grande brilho em que sem-
pre o via. Ao anoitecer chegamos ao acampamento de Juca Tigre
que fazia a vanguarda . Ali tive de parar para ver um doente de
Carlos Libindo, e felizmente encontrei n'um fogão um churrasco que
offereceram-me e eu acceitei porque era todo o alimento que tivera
n'aquelle dia. Acampamos em meio da estrada, no cume da serra ,
onde difficilmente se achava um logar plano para fazer a cama.
Apesar de ser novembro, fazia um frio de arrepiar. No outro
dia via-se gelo por todos os logares onde havia uma poça de agua.
Tinhamos de marchar quasi todos a pé, porque os nossos cavallos
estavam completamente estropeados, e os caminhos erão horriveis .
Eu que tinha um optimo cavallo que me fôra dado pelo coronel
Paim, mas cujos cascos já sangravam, só aproveitava-me d'elle para
passar algum arroio ou sanga.
A ultima vez que lhe pedi um serviço foi na passagem de um
rio caudaloso , um dos affluentes do Uruguay e ao subir a barranca
elle sentindo dôr nas patas falseou e fomos ambos ao fundo do rio.
Seria um banho magnifico se não fossem as roupas pesadas e as
botas que trazia. Com algum esforço consegui sahir .
A'tarde acampamos perto da picada do Oratorio ; o general
tinha receio que alguma columna inimiga tivesse vindo por uma
das muitas picadas do rio Pelotas, para nos tomar a passagem. A
picada que vinha , a do Oratorio fôra explorada por Juca Tigre e
felizmente nada ali se encontrou .
Não contava que tivessemos de sahir da fronteira do Rio
Grande, procurando o littoral.
A volta será difficil por que o inimigo poderá tomar os pon-
tos de subida conservando -nos sempre prisioneiros na planicie , até
que o Sr. Floriano mande gente para nos metter em dois fogos.
Eu pensava que iamos guarnecer os passos, acampando-se em
logares apropriados, e recebendo do governo provisorio munições
e cavallos, poderiamos voltar ao Rio Grande de combinação com a
72

esquadra que atacaria a barra, e os que deixamos no Rio Grande se


organisariam na campanha.
Marchariamos directamente a Porto Alegre. As forças de Ca-
beda operariam entre Sant'Anna e Bagé. As de Tavares desde S.
Gabriel até Jaguarão, e os companheiros da região Serrana com
Palmeiro, operariam na região colonial. Com duas boccas de fogo
nós tocariamos por diante a columna que nos segue sem ter queri-
do dar batalha. De posse do Rio Grande e Santa Catharina, iriamos
ao Paraná, depois a S. Paulo, levantando em nossa marcha todos os
bons brazileiros que, opprimidos, supportam esta tyrannia que dissol-
ve a nossa nacionalidade. Communicára este meu modo de pensar
aos que viviam em intimidade commigo .
Não o fiz ao general Salgado porque elle não parece gostar
que se diga o que se pensa , parecendo que lhe isto faz desmerecer os
meritos de general. Só o Dr. Carvalho usa de franqueza com elle,
franqueza que ás vezes toma o caracter de familiaridade. Eu tenho
seguido o meu systema, fugir da intimidade dos que pela occasião
vêem crear em torno de si a intriga. Meu papel é outro ; é estar .
isento d'esta praga para em qualquer occasião poder animar os que
se desilludem, sem ser suspeito.
O abandono do passo por Gomercindo causou -me séria inquieta-
ção, a nossa marcha precipitada fez-me sérias apprehensões. Demais,
o general roceiando que o inimigo podesse nos tomar a frente, indi-
cava que muitos eram os passos do rio, e que portanto não podiam
ser guarnecidos só pela columna de Gomercindo ; e a columna de
Salgado ausentando- se, era sacrificar aquelles bravos companheiros .
Prevejo em tudo despeito, porque Sá disse-me que a resposta de Go-
mercindo a Salgado quando voltára a indagar a causa do abandono
do passo, tinha sido dura.
O que haverá para isso ? Terá Salgado offendido a Gomer-
cindo ? Estará este desde que entrou em um estado onde ha governo,
disposto a não querer seguir mais a Salgado a quem elle mesmo
entregou o commando ? Talvez tenhamos que dizer como o poeta :
Não nos matou a força do inimigo.
Foi a nossa fatal desunião.
A picada do Oratorio é a descida quasi vertical, da serra do
mar. As aguas , caudalosas em tempos longinquos abriram aquelle
caminho que os selvicolas os animaes accentuaram. E' o caminho
por onde a pouco povoada região serrana de S. Joaquim, communica -se
com as minas de carvão. Parallelo ao trilho corre um pequeno regato for-
mado pelas aguas que as terras que estão sobre as rochas receberam
das chuvas. Esse regato em certos logares cruza pelo caminho ,
em outros occupa o leito e em outros cahe em cascatas salpicando
os transeuntes .
73

Mais abaixo, a reunião das diversas lymphas formam um pequeno


rio que se despenha com fragor .
Já no valle é um rio de certa capacidade a que temos de
marginar até as minas onde se desagua n'um outro já caudaloso, o
Tubarão. A estrada é feita por linhas tão quebradas, que difficil-
mente cabe um cavallo em uma d'ellas .
Parece uma escadaria arruinada onde em vez de se descer de
degrào em degráo , segue- se ao longe d'elles passando de um para o
outro pelas extremidades. Ha n'esse lugar um phenomeno digno
de notar.
E' um obelisco esguio que tem a base no valle e cuja extre-
midade nivela com a serra. Uma vegetação rachitica forma-lhe capitel .
Essa grandiosa columna devia ter sido separada da serra pelas
aguas, porque se fôra por commoção , não ficaria de pé, por ser mui-
to delgada.
Valle do obelisco, deveria chamar- se esta região .
Nós desciamos já os ultimos declives quando encontramos um
correio que nos trazia noticias de acontecimentos no Rio de Janeiro
presagiando a proxima queda do marechal Floriano.
Hoje pela manhã estavamos no cimo da serra, na zona dos
pinheiros e dos fétos gigantescos . Ao declinar do sól já nos acha-
mos num valle fertilissimo coberto de florestas, onde se erguem
palmeiras de altura extraordinaria. O rio, que já caudaloso, corre por
elle, faz lembrar aquelle que corre na serra de S. Francisco , nas
minas de ouro de Mamonas, onde uma vez, para te dar uma pou-
sada agradavel, armei a nossa tenda n'uma pequena ilha e as chu-
vas da noite enchendo-o, nos prendeu ali durante o dia. Lembras-te ?
O nosso Angelo contava apenas 9 mezes .

Torna, tornando il sól ,


L'ombra simarrita ,
Má non ritorna piú,
L'êttá fuggita .

Aqui neste valle existem já alguns colonos russos que nos


olham admirados .
Uma vacca leiteira , gorda e um filho já crescido, pastavam á
beira da estrada.
O general mandou tocal-a para matar. Eu vi uma jovem mu-
lher loura com uma criança nos braços, correndo após, em prantos ;
era a dona da vacca. Galopei e fui ter com os conductores para
74

fazer soltar os animaes . Responderam-me que não o podiam fazer


porque os levavam por ordem do general.
Corri para alcançal- o e pedir que mandasse soltal -os.
Respondeu-me que a gente estava com fome. Contestei que
o soffrimento de um dia nada era em relação ás privações d'aquel-
les colonos para adquirirem uma vacca leiteira n'aquellas alturas.
O general autorisou-me a mandar deixal- as.
Quando cheguei onde estavam, a mulher tinha largado a cri-
ança e abraçava, chorando, a vacca.
Nada @ sabia de portuguez, mas comprehendeu que a vacca tinha
sido salva por mim, e apoderou -se de minha mão que beijava
com risco de ser pisada pela mula que eu montava, ou fazer- me
cahir ; e comprehendeu mais o conselho que lhe dei de esconder
a vacca para livral-a dos que vinham atraz. Tocou-a á pressa para o
matto, já alegre, e ao entrar ali voltou para dizer-me adeus n'um
aceno. Eu pensei então nos contrastes da vida. Un com um tra-
balho insano adquirem pouco que forma a felicidade d'elles ; outros,
para terem muito mandam matar, destruir, fazer milhares de or-
phãos e viuvas. Não terá filhos o Sr. Castilhos ? Não terá fi-
hos o Sr. Floriano ? Lembrem-se que estes embotarão os dentes
pelo maldito fructo que os paes comeram : será a realisação do ab-
surdo.
Um outro colono que ordenhava uma vacca e vio o que eu
havia feito, offereceu -me leite que eu acceitei . Perguntei-lhe quan-
to custava, fez signal negativo . Dei-lhe uma moeda de prata
que trazia no bolso desde o Estado Oriental. Elle acceitou- a , bei-
jando -me a mão com grata effusão .
A'tarde chegamos ás minas de carvão onde já se achava um
trem e gente da Laguna a nossa espera
Ali soube de um combate entre as forças do governo provi
sorio e as de Arthur Oscar, tendo sido ferido o 1º tenente Perry.
Telegraphei ao governo provisorio pedindo noticias do valente offi-
cial e a resposta foi que estava fóra de perigo.

As minas de carvão em Santa Catharina foram abandonadas


não sei se por extincção das jazidas ou se por imprestabilidade da
materia ; força é confessar, que esse carvão que aqui la em ca-
malas superficiaes do solo, não póde ter as qualidades do carvão
europeo sepultado ha seculos nas profundesas da terra. Se não exis-
tem jazidas profundas, como creio devem existir, este que ahi está
não pagará as despezas para a extracção.
Vê-se aqui, como em toda a obra abandonada, os destroços e as
ruinas de obras de arte que attestam o esforço do homem. Seja como
75 ---

fôr, ainda mesmo que as minas não tivessem deixado resultado ,


esta região de terras uberrimas que banham rios caudalosos , ina-
vegaveis ganhou com a construcção da linha ferrea que a vae po-
voando e transportando o producto do trabalho, generosa paga da
terra á quem a rega com o suor ; paga que os ociosos julgam ser
propriedade dos tyrannos que precisam de mercenarios, á quem tudo
concedem, para não serem por elles abandonados.
A locomotiva que nos transporta vertiginosa, apresenta-nos
sem interrupção, as casas dos colonos ora dispersas em meio das
lavouras como brancas ovelhas a pastarem em verdes prados , ora
agglomerados nas margens do rio , onde as crianças se banham ale-
gres umas, e outras pacientes, pescam com a linha, em quanto os
homens e as mulheres trabalham.
Esses dignos seres que cultivam a terra . onde vêem crescer
os filhos, terra que elles amam porque pertence-lhes e porque suavisa-
lhes as saudades do pobre lar onde nasceram e soffreram, olham admira-
dos para os passageiros d'esta locomotiva , cobertos de andrajos, mui-
tos já mutilados. Que pensarão elles de nós ? For ventura se lem-
brarão de quando chegaram, pobres , andrajosos , para destruirem
estas florestas e fazerem nascer a vida, a alegria, a fortuna do
seio da terra ?
Talvez Talvez comprehendam que nós tambem somos lavra-
dores que vamos destruir essa planta maldita que anniquila a Patria e
depois, sem que muitos de nós possam vêr o producto deste esforço
descommunal, a vida , a alegria, a fortuna , que dá a paz aos que
querem trabalhar, nascerão para os nossos successores.
O revolucionario pela causa da justiça é a larva que morre
para deixar que as borboletas alegres povoem os prados como as
estrellas o firmamento . Em frente a uma casa um homem de barbas
longas ajoelhou - se ao ver-nos passar, e saudou-nos com o chapéo e
phrases que não comprehendiamos era um polaco . Talvez seja um
dos soffredores em sua Patria, que a teve de abandonar, para não
ser escravo ; e comprehenda a grandeza dos martyres que tudo sacri-
ficam para libertarem os irmãos do jugo da tyrannia, e para um`exi-
lado esses luctadores sò podem ser saudados, de joelhos .

*
**

Pedras Grossas é um pequeno povoado colonial nas duas mar-


gens do rio, ligadas pela ponte da via ferrea. Ali esperava- nos al-
moço delicado e abundante. Ao descer do trem deparei com uma
moça em trajos de cidade, filha do dono da casa. Parei- me em fren-
te d'ella extactico ; parecia- se tanto comtigo que absorveu-me du-
rante muito tempo . Ella sentio a fixidez do meu olhar e julgou tal-
vez que en a quizesse namorar n'aquelles poucos momentos. Soube
76 -

quem eu era e as mulheres, não sei porque, inclinam - se para os


guereiros que julgam ser heróes.
Todas ellas são Desdemonas, todos elles bravos e soffredores
como Othelo . São heróes e martyres ! Que figuras para povoar a mente
de uma virgem que adormece e accorda na paz do trabalho !
Ao sahir apertei- lhe a mão e ella correspondeu -me com affecto .
Nos poucos minutos que ali estive cheguei a querer-lhe bem. Se al-
guem, que não sejas tú, lêr estas linhas, que não veja ahi o sentimen-
to do animal.
O homem vive pela alma, e quando esta está occupada por
uma idéa, por uma imagem, e essa imagem pertence a seres lon-
ginquos, a materia dominada por ella não é mais do que um auto-
mato que róla no espaço como o aerolitho luminoso pela luz que lhe
vem do sol.
Feliz do homem que desposar aquella moça, se como a figura ella
tiver uma alma como a tua. Feliz d'ella se este homem amando-a
como ella merece, puder viver na tranquilidade do lar, no afan glorio-
so do trabalho, sem causar-lhe os desgostos, as inquietações, os marty-
rios que o meu dever de cidadão obriga-me a causar- te.
A' tarde chegamos á villa do Tubarão , onde tivemos de demo-
rar algumas horas, porque ali deviam ficar as forças , seguindo o gene-
ral Salgado e o seu estado maior, acompanhando - os eu.
Atravessamos a extensa ponte da Laguna, em cuja extremidade
se achava um batalhão do governo provisorio que aguardava e que
nos apresentou armas.
O general Salgado vendo-o tão disciplinado, disse-me que sau-
dades me fez do meu batalhão ! Ouvindo-lhe esta phrase, eu pensei
na abnegação, no amor d'esse homem á sua terra natal, para aban-
donar uma posição brilhante e vir soffrer comnosco ; elle que podia
escravisar, vir lutar ao lado dos que não querem ser escravos !

**

Nossa chegada á Laguna, apezar de ser noite, foi triumphal.


Achavam-se na estação todos os officiaes da guarnição ao mando de
Laurentino Pinto, uma guarda de honra, musicas e muito povo.
Logo ao saltar, fui agradavelmente surprehendido com um abra-
ço do Dr. Luiz Carlos da Fonseca, meu antigo condiscipulo, que de-
clarou-me ter um leito em sua casa para mim.
Seguimos para o hotel onde esperava- nos o jantar, e ao cham-
pagne , o 1 ° . tenente Monteiro de Barros, em nome da marinha, sau-
dou o general Salgado e seus companheiros, saudação a que o general
respondeu com phrases de elevado patriotismo.
77

Logo depois , um grupo de senhoras veio trazer ao general uma


fita com a nossa divisa : Tudo pela Liberdade, bordada por ellas . Fa-
lou em nome d'ellas o Dr. Carvalho, chefe de Estado maior do ge-
neral, respondendo este. Tivemos de accompanhal-as as suas residen-
cias, com musica e fogos de bengala.
Eu estava vestido como o ultimo dos gaúchos e ouvindo uma
voz feminina que chamava-me por meu nome, apresentei- me toman-
do ella o meu braço . Pertence a uma das principaes familias do lugar .
Para attender a um ferido em caminho, eu trazia no bolso uma
caixa com iodoformio ; a caixa quebrou-se penetrando o iodoformio pelos
tecidos já adelgaçados do meu velho casaco . A pobre menina que
nunca tinha sentido tal perfume, por inais que quizesse conversar
commigo tinha que voltar o rosto . Comprehendi o motivo , ria-me e pro-
vocava-a a uma palestra que a obrigasse a falar-me. A pobre respon-
dia-me, mas antes de terminar a phrase voltava o rosto; felizmente
para ella chegamos á sua casa, onde ao deixal- a perguntei se não
era agradavel o perfume que usavam os revolucionarios . Respondeu-
me que não.
Dormi uma noite boa e tranquilla. Era a primeira vez que dor-
mia em leito macio depois de muito tempo, e adormecer-se sob o tecto
onde habita a familia de um amigo que nos conhecen nos bons tem-
pos, que foi testemunha das nossas lutas incruentas nos prelios da
juventude e que lembrando -se d'isto havia preparado o espirito da
população em nosso favor, pelo jornalzinho da terra, como é bom,
como é suave ; mas estar-se meditando n'esse lar amigo, lembrar- se
do passado, lendo folha por folha até a epoca em que a angustia da
Patria reclama o sacrificio dos seus bons filhos, abandonando a fa-
milia em solo estrangeiro sem ter d'ella uma noticia, sem saber se
a tornará a vêr, arfar o peito com um soluço e ao mesmo tempo ou-
vir tagarellar crianças que brincam no leito de seus paes, que falam
com elles, que lhes afagam em um quarto visinho e ouvir que n'esses
afagos vae de envolta o nosso nome, que se conta a nossa historia,
--- que tristeza ! ...
Corra o pranto ! Este suave orvalho da alma do esposo e pae
não indica fraqueza do guerreiro, ao contrario, dá- lhe mais vigôr para
supportar mais ; mais energia para lutar mais , para privar que ou-
tros paes, outras mães, passem pelas mesmas penas no futuro . Não
luta só pelos seus, luta por todos, é o altruismo do Christo, é
o martyrio dos abnegados.

Ao despontar do dia, segundo meu antigo habito, percorri a


cidade da Laguna de velha construcção, tendo de um lado a Lagu-
na e do outro vasta zona de dunas que a separa do Oceano ; mon-
78

tes de areias movediças que o vento transporta de um ponto a ou-


tro e que a viração cria uma athmosphera de pó como se d'elles
exhalasse tenue vapor. Seguindo- se pela praia entra- se n'um bair-
ro que é separado do oceano e da fóz da Laguna por outros montes de
areia de onde se avistam os serros do continente e um pharol ao
longe. N'esses serros vêem-se chacaras, casas bonitas, quasi todas
com mastros nas portas, indicando serem habitadas por praticos
d'aquellas costas perigosissimas , onde se vê aqui e ali destroços de
navios e vapores encalhados na areia.
Quasi todas estas paysagens são vistas atravez de ligeira cer-
ração formada da fina areia que o vento levanta e , cousa notavel,
são raras as ophthalmias aqui.
Depois de muito passear, fui ter á casa de um alfaiate que
prometteu- me arranjar roupa para este mesmo dia á tarde, o que
cumprio ; fui ao cabelleireiro e preparei-me para uma encadernação
mais decente .
O primeiro dia da minha estada aqui dediquei- o todo a Fon-
seca, á sua digna e boa familia, composta da mulher e filhos , uma
irmã e duas meninas, suas tuteladas. Na casa de Fonseca é onde
se reunem aquelles que, forasteiros na terra, precisam de um pon-
to para terem a palestra, que não seja relativa á politica .
Fonseca tem hoje o meu antigo habito ; ceia sempre tarde
da noite peixe ou carne fria ; os outros tomam chá e retiram-se ;
não se retirando a sua bôa irmã D. Rittinha para os seus aposen-
tos, sem o beijar como faz uma mãe com um filho .
Nossa palestra foi longa no , outro dia. Mostrou- me seus
sos, seus escriptos litterarios , seus pareceres em diversas questões
·
medico-legaes e de hygiene, tudo feito com o maior criterio e com
verdadeiro cunho profissional. Depois entramos na palestra ligeira ,
recordações do passado, narrativas alegres hoje, e que n'aquelle tem-
po seriam tristes . Eu fugia de contar-lhe cousas da guerra ; seria
derramar n'esse lar tão pacifico , tão calmo e tão bom , essa lia
cruel que chama - se a causa de uma guerra civil ; seria dizer-lhe
que n'este Brazil que elle tanto ama, ha homens que são mais in-
dignos do que os piratas e salteadores que matam e roubam arris-
cando a vida, porque mandam os outros que matem ou morram, para
sem perigo elles se locupletarem ; mais ferozes do que os cannibaes
que não tinham o dever de poupar os inimigos porque d'elles se
alimentavam, mas que so matavam na luta ou quando precisavam
de alimento, mas sem martyrisal- os .
Fonseca pedio- me em nome do redactor do jornalzinho da
terra, algumas linhas para publicar . Escrevi ali mesmo, no meio da
palestra. Foram estrophes guerreiras , uma pagina do soffrimento dos
revolucionarios, a sua tenacidade n'esse soffrimento.
A' noite fez-se um pouco de musica, tocou-se e cantou-se.
79

Uma familia rio-grandense aqui emmigrada, depois de muitos soffri-


mentos, tendo duas interessantes moças que tiveram de fugir de casa
sem destino, e aqui chegaram , graças á alma boa de um carreteiro que
não conhece a legalidade rio-grandense e por isso é humano , fre-
quenta a casa de Fonseca.
Estas duas moças cantaram ao pianno em duetto, accompanha-
das por uma irmã viuva : As Duas Flores, de Castro Alves. Eu
as fiz repetir muitas vezes.
Tinha necessidade de ouvir aquellas estrophes e aquella musica .
ouvindo -as cantar, dizia commigo : Se Castro Alves resuscitasse
e tambem ouvisse cantar essas duas meninas aquelles versos diria : —
" Ainda não ereis nascidas quando os escrevi, mas vós sois essas duas
flores, estivestes no meu cerebro antes de serdes geradas. Pobres
flores, que o tufão da desgraça formado do halito destruidor de sce-
lerados que entendem que para viver é preciso matar, arrancou do
verde canteiro, do bello tor: ão do sul e veio atirar n'estes areiaes,
sem recursos, sem seiva para viver, se a bondade dos outros não
vos bafejasse como o orvalho matutino, as rubras flores do cactus no
deserto.
Ouvindo estes versos cantados por estas fugitivas da deshonra
ou da morte, eu pensava que, se o autor d'elles fosse vivo já teria
empunhado a penna para escrever o poema dos martyres como es-
crevera o dos Escravos .
N'esta familia ha uma criança , filha da viuva. O chefe é um
teuto brazileiro que, com o trabalho fez a abastança , e n'esta edu-
cou as filhas. Tiveram de fugir abandonando tudo, e tudo que fizera
com o trabalho, os scelerados destruiram, roubaram em nome da lega-
lidade para consolidarem a republica. Pobre Republica ! bello sonho
do utopista, cahiste nas mãos dos Tartufos crueis que te apunha-
lam, que te deshonram que te anniquilam, que te tornam eternamente
inviavel n'esta patria que hão de esphacellar. E te matam dizendo
que te querem salvar, e te destroem dizendo que te querem con-
solidar, e te roubam dizendo que te fazem prosperar, e te tornam
assassina em nome da humanidade ! Quem sabe se não têem razão ?
Matar de uma vez não será mais humano do que matar len-
tamente, todos os dias, e afinal quando se estingue, em vez de dizer :
Morreu, dizer-se : Deixou de morrer ? Quem sabe se a Providencia
dos crentes não é que dirige esses humanitarios , para, destruindo
a raça actual no Brazil, livral- o de maiores martyrios em proximo futuro ?
Os párias , atiram na India os seus, aos tigres e aos chacaes
para livral-os de serem maltratados pelos das outras castas ! ......
*
**

A Laguna foi um dos pontos onde Garibaldi foi triumphador pela


sua audacia e intelligencia.
80

Aqui foi elle heroe, aqui foi prisioneiro , e d'aqui escapou-se


n'uma fuga arrojada . Foi aqui que elle encontrou Annita , a mulher
que o amou pela sua bravura, que o acompanhou sem descanso em
todas as suas lutas, heroina no Rio Grande, heroina na Italia que lhe
consagrou um monumento. Fosse uma Annita presa pelos castilhistas
serviria de repasto a todos os seus bons amigos salvadores da repu-
blica e depois quem sabe a sorte que lhe caberia ? O Rio Grandense
esqueceu Garibaldi ; entretanto se não fora o auxilio do grande caudilho
que sem o minimo interesse, por mero cavalheirismo lutára, quem sabe
o que seria o Brazil ? quem sabe se esses annos de paz e prosperi-
dades que tivemos, existiriam ! D. Pedro não teria começado o seu rei-
nado hoje glorioso , no meio de lutas que fez cessar, e não teria sido
o fiscal incansavel do progresso de sua patria. Hoje o lutador é um
bandido, aventureiro, ambicioso . Amanhã elle será reconhecido heroe,
grande, generoso, terá estatuas, terá biographias que accordem as ima-
ginações fogosas para imita-los. Esses bandidos, esses aventureiros , que
nada tiveram para si, que arriscaram a vida para repellir os insultos
dirigidos a outros, foram os diques que impediram que a lava vomitada
pelos insaciaveis destruissem continuamente tudo que se achava no
seu caminho. Insultam hoje, atam ao poste da ignominia , amanhã fal- os-
hão Deus os que viverem, porque se vivem è porque elles morreram
para salval-os.'

Logo que o alfaiate trouxe-me a roupa, sahi para pagar as visi-


tas que me haviam feito. Chegando á casa do Dr. Cabral, vi na ja-
nella a moça que me havia dado o braço na noite da nossa chegada
e que não me reconheceu. Perguntei- lhe como se tinha achado na fes-
ta ; respondeu- me bem, mas que havia dado o braço ao Dr. Dou-
rado e voltára tão impregnada de iodoformio que as roupas não po-
deram ficar no mesmo aposento. Disse-lhe que havia feito mal em dar
o braço a elle, revolucionario e medico de um exercito de farrapos.
Não, disse ella , fiz bem ; diz o Dr. Fonseca que elle é muito bom
medico que escreve e fala muito bem, que é poeta e muito valente.
Ri- me da ingenuidade com que ella acceitava e reproduzia o que
um amigo havia dito de mim. N'esta occasião chegou o Dr. Cabral
que conhecendo-me, convidou- me a entrar. Ao saber que era eu, a
menina ficou alegre e eu disse-lhe : veja como é bom não se falar mal dos
outros. Se tivesse falado mal de mim, agora estaria sem poder con-
versar commigo.
Approveitei a minha ida ali pedindo a ella e suas duas primas,
filhas do Dr. Cabral para em meu nome, pedirem ás senhoras da La-
guna fios e ataduras para poder attender os meus feridos nos com .
bates. Tendo chegado do Tubarão a nossa columna, fomos ao acam-
81

pamento. Ali recebeu o general Salgado um telegramma do governo


provisorio, nomeando -o general de brigada. Não me agradou aquelle
acto principalmente pelas referencias n'elle contidas a respeito de já
não ter sido nomeado general pelo Sr. Floriano por causa das suas
manifestações a favor da nossa causa. Ora, a preterição do general
Salgado era necessaria, visto achar- se elle desligado do exercito e
lutando contra o governo. Muito tinham feito não eliminando-o e collo-
cando -o fóra da lei, considerando-o apenas ausente, benevolencia que o
Sr. Floriano nunca teve nem com o simples paisano sobre o qual
recahisse a menor suspeita de adhesão á nossa causa, e que mandava
metter nas suas masmorras, nem com muitos militares que foram refor-
mados sem culpa formada, sem conselho de investigação e de guerra
e presos nos quarteis.
O governo provisorio está fóra da constituição ; não póde, portan-
to, pôr em pratica leis que emanam d'ella.
Consideramos o Sr. Floriano dictador, mas o revolucionario
contra essa dictadura não se pode julgar executor da lei. Do choque
da revolução e da dictadura é que ha de nascer a marcha normal
do paiz pelo reconhecimento dos prejuizos que causa a vontade de
um homem que colloca o seu egoismo acima de sua Patria. Demais ,
o general Salgado é chefe de um exercito revolucionario ; teve a sua
nomeação dos chefes da revolução . Acceitar uma nomeação inferior
é reconhecer a legitimidade dos que agora o nomeam , dando-lhes
assim uma chefia para a qual ainda não conquistaram direitos, sobre
tudo, quando esse governo nem um passo deu ainda em relação ao
Rio Grande do Sul, e quando n'elle se acha um dos que mais con-
correram para a conflagração d'aquelle Estado . Desde hoje, portanto,
este exercito tem que obedecer ao governo provisorio, uma vez que
c seu chefe é um agente d'elle.
O general Salgado respondeu que acceitava o lugar menos o soldo,
emquanto as finanças do governo não fossem prosperas.
Falando-me sobre a sua nomeação, respondi-lhe nada adiantou,
porque, como chefe nosso já era general ; demais, na lei militar pre-
domina a antiguidade. O general Piragibe que opera ao norte é
mais antigo, portanto seu superior. Disse-me elle que se o governo
quizesse, não se importaria de servir ás ordens de Piragibe.
Respondi-lhe que isto não era possivel, que o exercito rio-gran-
dense antes de tudo tinha que cuidar do Rio Grande ; que se poderia
operar onde podesse tirar proveito para lá. Que o general Piragibe '
nada tinha dito ainda sobre a nossa revolução e que, fito muito di-
verso, o deveria ter obrigado a pegar em armas e que o Exercito Li-
bertador só deveria ser commandado por aquelles que com elle começa.
ram a luta.
Logo depois recebeu elle telegramma em que nomeava- o chefe
6

A
- 82

do exercito do sul, devendo seguir para o Desterro afim de con-


ferenciar.

A nossa ida á capital era esperada com anciedade. Veio a bordo


receber nos o governador Lorena e seus ministros. Quando lhe fui apre-
sentado, disse, abraçando-me, uma phrase de grande elogio .
Conhecia meus escriptos e sabia quanto tinha feito pessoal-
mente, executando tudo quanto aconselhei, como meio de oppor á im-.
plantação da tyrannia no Brazil. Na lancha conversou sempre commi-
go. Em terra o povo agglomerava- se no caes. As familias atiravam-nos
flores. Salgado foi recebido em apotheose. Uma intelligente senhora,
das maiores distincções, reciton versos heroicos em honra d'elle e seus
companheiros. D'ali seguimos para palacio onde de novo ella se fez
ouvir, cognominando-o O Libertador.
O general, commovido, agradeceu . Eu me achava na sala e sendo
apresentado áquellas senhoras, soube que essa eximia poetisa com
quem eu conversava então, era esposa do desembargador Caldas.
Dirigi-me para o hotel em procura de um commodo e ali travei
conhecimento com muitos revolucionarios do norte, entre elles , Aufrisio
Fialho, um esforçado propugnador no Congresso por nossa causa ;
o poeta Luiz Murat, deputado e jornalista e Guimarães Passos, o poeta
mais mavioso que conheço na actualidade. Ali encontrei tambem antigos
condiscipulos e amigos . Paula Freitas, medico do exercito, Franco
Lobo, seu companheiro, Barata, medico da marinha, o Dr. Santos,
viuvo de tua amiga Ernestina, Serafim dos Santos Souza , Apollinario
Porto Alegre, Francisco Costa, Dr. Leopoldo e a familia Orosimbo,
a valente irmã de Felippe Portinho, que estivera presa em Porto
Alegre por ordem da legalidade .
Como é natural, procurei approximar-me da familia do desem-
bargador Caldas, e ouvi ali falar a nosso respeito, com enthusiasmo
indescriptivel ; e as referencias que faziam a mim, à minha procla
mação, às minhas cartas revolucionarias, penhoravam-me.
Fui ao hospital visitar o valente Perry. Visitei logo à tarde
as familias do Dr. Leopoldo e de Santos Souza, a Alexandra, irmã
de Damazio e mandei fazer uma visita a uma antiga tua compa-
nheira de collegio, viuva do Dr. Cordeiro, meu infeliz amigo, que
. morrera de uma bala, dizem que proposital , quando o Sr.
Floriano mandou depôr o governador. Ella mandou-me de presente
a espada de Cordeiro, que espero conservar até o fim. Entre outras
pessoas, encontrei-me com o coronel Caldeira, que conheci quando
major do 4°. regimento de artilheria . Perguntei-lhe porque não se
encorporava a nòs para apressar a terminação desta guerra que
depaupera o Brazil.
83 --

Respondeu-me que havia assignado a capitulação do Desterro


e por tanto julgar- se-ia pouco digno apresentar- se, quando antes não
havia manifestado as suas sympathias pela nossa causa, e que tendo
o governo provisorio declarado não pagar o soldo aos capitulados
que não se apresentassem para o serviço , isto só bastaria para pri .
val- o de se unir a nós, ainda mesmo que fosse nosso partidario,
porque feria a sua dignidade, podendo-se julgal-o um mercenario .
Concordei com elle. Se o exercito brasileiro pensasse todo como
este official, nada haveria que podesse privar o engrandecimento de
nossa terra
Fui a um baile em casa da irmã de Portinho , apenas para
attender ao seu convite, porém não dansei. Convidei a Exma . Sra . do
desembargador Caldas para ir á Laguna vêr os nossos farrapos .
Ella está disposta a isso , depende porém, da annuencia do marido.
Os nossos camponezes , sobretudo o gaúcho, de vida quasi no-
mada, têm pouco conhecimento destas pessoas de fina educação.
Pousando de estancia em estancia, sempre nos galpões, onde os es-
tancieiros lhes , fornecem carne e matte, elles passam a vida quasi
sem contemplar o trabalho e a ordem que reinam no seio das fa-
milias . Quando se encontram em alguma festa, o lugar d'elles é
nas barracas ou nas aldeias onde se entregam aos jogos da taboa,
da telha, dos dados on das cartas. Se lhes falam em sentimentos,
elles procuram na guitarra ou nas dansas captivar a rapariga que
lhes agrada e apoderar - se d'ella . Por quanto tempo ? Elles não sabem.
A's vezes por poucos dias. O espaço que medeia entre uma carreira
e outra, onde se inclina por uma outra e ella por outro. Outras vezes
casam-se.
Ha uma particularidade no gaúcho é o amor dos filhos varões .
Apenas começam a andar, ensinam a montar a cavallo ; depois, quan-
do ginetes, a atirar o laço e as boleadeiras e está completa a educa-
´ção paterna.
A guitarra, as canções, o versejar, o namoro, é a educação que
elles adquirem por si, para poderem concorrer ás festas onde o jogo
è usual e a embriaguez rara.
As raparigas, por seu lado, aprendem a cevar o matte, a fa-
zerem o assado e não raro cantam e tocam guitarra ou harmoni-
ca e bailam com perfeição , desde as valsas inglezas mais vertigino-
sas até as havaneiras mais languidas, mais sensuaes, quasi lubri-
cas, pelos requebros, usando sempre o perfume activo do almiscar.
A ida de uma senhora de distincção à presença d'esses ho-
mens destemidos será util . Elles comprehenderão como as mulheres
de educação podem ser revolucionarias , agitadoras ; e se ellas são co-
mo esta de que falo, que têm filhos que pegam em armas, elles
terão idéa do que fora Lucrecia, mãe dos G acchos, sem nunca terem
ouvido falar d'ella .
-- 84

Não é possivel obter o que desejo.


Telegrammas da Laguna annunciam a approximação do coro-
nel Arthur Oscar, ao Tubarão, á frente de forças das tres armas,
e o general Laurentino que ficára na Laguna, já seguio para lá e es-
pera ser auxiliado pelo general Salgado .

**

Marchamos apressados e sem tocarmos na Laguna , dirigimo-nos


para o Tubarão, onde chegamos á noite. O general Salgado não
julgava conveniente esperar o inimigo ali, visto, segundo elle, não
ser o ponto estrategico.
Não encontrando lugar para dormir, dirigi-me para a estação
que fica fóra da cidade, no caminho por onde devia vir o inimigo,
e ali passei a noite n'um carro.
No outro dia cedo voltei e percorri os pontos occupados pelas
forças de Laurentino . A collocação de sua artilheria em posição de de-
ter o inimigo, caso quizesse atacar a cidade que fica entre uma
garganta de serra e o rio do Tubarão, cortado apenas pela punte
da estrada de ferro, e que já nos tinha afogado um companheiro.
O general Salgado se oppunha á permanencia ali e por isso fo-
ram os dois chefes para o telegrapho, onde estiveram em longa confe-
rencia com o Desterro ; conferencia de que não quiz tomar indaga.
ções, tal é o meu proposito de nunca querer saber o que se discu-
te. Estou sempre prompto a marchar para a luta seja ella a mais
encarniçada, sempre calmo, risonho até, mas o menor acto que de-
monstre egoismo ou politicagem exacerba- me, porque não posso com-
prehender como diante de um inimigo forte e tenaz, n'uma luta em
que o menos que se joga é a vida do guerreiro, se possa pensar
nas individualidades, desde que ellas uão sejam ultrajadas, não se-
jam offendidas, no que lhes caberá no futuro, sem o que não concor- `
rerão para o triumpho.
Esquecem-se de que as convenções aqui nada influem , porque
o futuro será segundo a vontade da Patria, sendo ella livre e só para
isso trabalhamos . Depois, cada qual trabalhará para obter o que
desejar, tendo como elemento para esse trabalho o esforço empregado
em beneficio da libertação d'ella e o sacrificio, a que submetteu-se .
Querer d'aqui preparar partidos, cercar- se de elementos promet-
tendo remuneração, é vender a pelle sem matar o urso ; é preparar
uma situação muito mais deprimente do que é a actual ; é fazer der-
ramar sangue de milhares em proveito de poucos , e o paiz continuará
sempre subjugado. As facções e os descontentes tornados elementos
fluctuantes, augmentarão o grupo dos cahidos ; a guerra tornando- se
permanente, as deposições diarias, as agitações constantes, e nenhum
governo podendo contar com a estabilidade, não poderá ser juiz recto
-85 -

nos pleitos; tornar-se-á subserviente ás forças armadas, instrumento do


partido que o eleger, tornando-se oppressor dos desarmados que
reclamam. Tal foi a sorte de Roma no Imperio, que chegou a ser
batida pelas patas dos cavallos barbaros ; tal será a sorte do Brasil ,
se os seus homens não tiverem abnegação e não comprehenderem
que a Patria é mais alguma cousa do que as suas pessoas ; que a
vida dos brasileiros deve valer mais do que suas posições , suas am-
bições de poder e de fortuna .

Emquanto os generaes conferenciavam, eu percorria a villa : é uma


antiga sede de colonia allemã ; poucas ruas e muitas chacaras á mar-
gem do rio e da ferro-via. Depois entrei na igreja . Um vasto tem-
plo ainda não concluido. A nossa approximação afugentou os traba-
lhadores. Um padre allemão acabava de dizer missa e retirou- se .
O templo ficou deserto.
Meus passos ali observando as obras d'arte do estylo semi-
gothico, resoavam melancholicamente ; parei em frente a um quadro
que representa Magdalena no martyrio do Redemptor. E' uma pintura
maravilhosa na expressão da physionomia e das emoções.
A belleza dos contornos é arrebatadora . Sentei -me no degráo de
uma escada e absorvi-me inteiramente em contemplal- o . Rem sabes
quanto eu sou christão, quanto eu amo esse Divino Voluntario do
martyrio, sem comtudo pensar n'esse mysticismo de que o Creador,
podendo por sua vontade, imprimir em todas as almas o sentimen to
do bem, precisasse de um instrumento e este instrumento fosse um
bom , santo, justiceiro, altruista além da comprehensão, e consentisse
que o matassem para com sua morte redimir os vindouros, deixando
impunes os assassinos , e isto porque os prophetas, os pensadores vendo
a corrupção do povo hebreu, a luxuria, a crueldade, o roubo, a si-
monia, a cobardia e a doblez, previram a sua divisibilidade e por-
tanto o enfraquecimento e como consequencia a oppressão dos pode-
rosos sobre os fracos, e por sua vez a oppressão dos estranhos so-
bre elles , receiosos de que a intervenção estrangeira a favor dos
opprimidos mudasse os papeis .
Isto se vê hoje n'um paiz sul-americano; portanto , aquelles
pensadores que amavam a Patria, que clamavam e não eram ouvi-
dos, tiveram de predizer o futuro infallivel de todo povo que se
transforma em algozes e victimas, em senhores e escravos. O pri-
meiro aventureiro pòde dominar ; era por isso que Isaias clamava
-- riram-se d'elle.
e ninguem ouvia, afinal ameaçou,
Do meio d'este povo sae sempre um que se salienta . Se é
um estulto, um ambicioso , porém capaz de, comprehendendo o
espirito d'elle, leval- o á conquista de glorias, poderà destruil - o sen-
do sempre acclamado.
86

Será um Napoleão. Si perverso, anniquilará sua Patria para


não ser anniquilado. Si bom, si humano, deixar- se-á matar, para com a
seu sangue plantar a moral, — será Deus, é Christo.
Perdoa-me, se estas palavras vão de encontro ás tuas crenças.
Eu fui educado n'ellas. Minha razão , porém, modificou essa educação
e sem preoccupar- me da theologia, respeitei -a sempre, e sempre procu-
rei fazer respeitar a todo sacerdote d'essa religião salutar. Nunca,
porém, pude olhar com bons olhos essa resignação fatal de que nada
acontece sem a vontade de Deus, de modo que todos os crimes , to-
dos os horrores estão escriptos no Livro do Destino, traçado por
Elle, tornando-se cumplice de tudo que é mau, Elle, o Ser creador,
a origem de todo o bem, que deve ser o producto natural do esfor-
ço humano, o fim do homem que póde marchar livremente para a
diante sem prejudicar a marcha do seu semelhante, que segue a
seu lado a mesma direcção. Desde, porém, que elle se desvie d'essa
directriz, priva o passo do congenere e a luta é o resultado .
Foi por isso que os prophetas annunciaram a vinda de um que ha-
via de pregar no deserto, porque não ha maior deserto do que o bor-
borinhar de um povo cheio de crimes, cheio de vicios , feroz em frente
das victimas, cobarde em frente ao valor. Depois viria o que havia
de o encaminhar. Não seria mais insultando, querendo tornar limpidas
aquellas almas de lôdo? Não. Pregaria a lei para o futuro, para os
povos que cançados d'essa vida de hyenas, d'esse mata ou morres,
procurando a subsistencia no trabalho, a felicidade na paz ; e Isaias
predizia O que havia de vir para realisar isso que os seculos completa-
rão. O prophetisado apparecen calmo como a onda transparente de um
lago entre juncaes ; sabio como todos que comprehendem a natureza das
cousas no meio dos ignorantes ; bello como a imagem da redempção
no meio do captiveiro ; e todos aquelles que tinham sede de liberdade ,
todos os que clamavam por justiça - amaram-n'o. Eram os pobres,
eram os fracos, eram os opprimidos. Viram n'elle o rei de Israel ,
d'esse povo arrancado ao captiveiro por Moysés, tornado miseravel
pela venalidade , pela cobiça, pela crença de que não haviam de
lutar contra o que tinham dito os prophetas.
Odiado pelos poderosos que viam n'Elle o derrocador de suas
potestades, pelos mercenarios que temiam o azorrague com que Elie
lhes fustigava as faces, pelos luxurientos, a que Elle elevava á par
das bestas, sua luta foi herculea. Si todos os opprimidos o amaram ,
porque uma mulher, joven, bella, não havia de adorar a Elle, moço ,
a Elle bello , a Elle casto, a Elle trabalhador, a Elle pregador da
verdade, a Elle justiceiro, a Elle absolvedor das culpas, a Elle que
curava os enfermos, a Elle que podendo estar no meio dos doutores
e dos scribas, ia pelas aldeias suavisar as dores physicas e moraes
dos miseraveis , sentar-se à sombra dos sycombros com os hu-
mildes ?
87

Demais, as almas bôas tornam -se amantes das victimas, e Elle


que vinha pelos opprimidos, devia ser a victima de todas as injurias
dos que se viam descobertos pelas suas palavras ! Foi por isso
que ali, meditando ante aquello quadro, onde a bondade e a justiça eram
sacrificadas, suggerio-me o plano de um drama, Magdalena, e ali mesmo
tracei- o na minha carteira; e como talvez não seja executado, deixo- t'o
n'esta carta.
Talvez mesmo se o tivesse de escrever teria de modifical- o , mas
como foi a minha primeira impressão , ahi fica escripto. E' apenas o
ovulo de um pensamento de quem tem lutado e ha de lutar pelo
bem de muitos, com sacrificios pessoaes e dos seus e que emquanto
uns pensam na guerra, pensa no dia da redempção de sua Patria
e d'essa humanidade que teve um martyr, que se tornou Deus e
que apesa d'isso vive no captiveiro de alguns appoiados na venali-
dade de outros .

No castello de Magdalo á noite acham-se muitos rabbinos e


velhos scribas que conversam. Annunciam ao velho castellão , pae
de Maria, que Antipas mostra-se irritado com elle, por certos moti-
vos e que não duvidam que o mandará buscar para dar-lhe a mesma
sorte do Baptista ; que essa irritação de Antipas cresce, porque, dizem
que pelos lados de Cafarnaum appareceu um mancebo de belleza
fascinadora, de sabedoria incomparavel, que cura os cegos e os
paralyticos e que o povo, segundo a prophecia, vê n'elle o filho de
Deus promettido para rei dos Judeus. Antipas, que era inimigo de
Pilatos , veio a Jerusalem para angariar a sua graça e poder contar
com a protecção de Cezar contra o usurpador. E'preciso portanto que
o castellão procure livrar- se da perseguição de Antipas. Para isso
ha um meio Pilatos é dissoluto e tem um grande tributo das bellas
filhas de Israel. Mais de uma vez tem requestado Maria e ella o
tem repellido...
Mande-lhe Maria e ella o defenderá contra o odio de Antipas.
O castellão reluta , prefere morrer a entregar a filha que elle adora,
unico consolo de sua velhice, ultimo ramo da sua raça altiva.
Lembram- lhe afinal Rachel e Mardocheu e convencem-n'o.
Apparece Maria a quem narram o que se passa e o que é preciso fazer.
- Entregar-me ? infamar- me ? pela vida de meu pae, já velho,
quasi ás bordas do tumulo !.. De que lhe serviriam estes dias, sendo
eu infame, respirando, porque sou escrava ?
Lembra-te de Sára ... dizem-lhe.
Lembrem-me de Judith, d'essa, sim ; eu penetraria no leito
desse romano, como ella, de punhal em punho, para matar o oppressor
de minha terra, já que os homens por infames a deixaram escravisar.
88 -

Ao sahirem os rabbinos aconselham o velho que tenha cui-


dado com Maria, cuja vida altiva dá lugar a que já se murmure
de que ella não pòde mais vestir-se como as virgens de Israel.
Um velho scriba que se demora declara a Maria que a ama. Ella
repelle-o, elle ameaça de fazel -a apedrejar. Maria responde que su-
zana tambem foi ameaçada.
José de Arimathéa, sendo nobre, senador, apresenta-se, fala-
lhe do seu amor. Ella declara-lhe que entre todos é elle o unico
para quem sua alma se inclina ; mas, quando o vê n'aquelles trajes
de nobreza, sendo de um povo escravo , quando o vê como senador,
humilde, obediente aos tyrannos do seu povo, ante os escrivisado-
res de sua Patria, tem-lhe repugnancia. Manda-o sahir para não
odial- o .
Só, Maria n'um monologo, recorda as grandes phases do povo
hebreu, sua edificação, sua gloria, sua queda, seu anniquilamento ,
se não surgir um Moysés, um Messias libertador, um homem capaz
de dar brio áquellas almas acobardadas para enfrentarem os escravi-
sadores, os mercenarios . Ouve um canto fóra e pára absorta . Reco-
nhece a voz de Arimathéa e fal- o entrar. Elle apresenta- se vestido
como os populares. Maria sorri e o afaga. Elle , fala-lhe do seu amor,
ella o crê, tambem o ama, mas ser sua esposa, nunca ! Ser esposa
ser mãe e ella odial- o- ia se a fizesse mãe, porque seu filho seria es-
cravo de Antipas, vivendo n'uma patria escrava dos romanos
Quer viver só, supportar o seu isolamento, soffrer, mas não ver
soffrer o que ella gerasse em seu seio.
Pergunta-lhe se sabe alguma cousa d'esse mancebo de Nazareth,
de quem tanto se fala.
Arimathéa narra os seus actos. Maria pede-lhe para accompa-
nhal-a fóra da cidade afim de ouvir algumas das suas lições ; irão
disfarçados .

No vestibulo da casa de Lazaro agrupa- se o povo; homens de


todas as classes e de todas as idades, paralysados no atrio, conversam
sobre Elle, contam os milagres que fizera, como sua physionomia
se alterava e se commovia quando se lhe apresentava um doente
pedindo para que o curasse. Um paralytico tomou o leito às costas
e caminhou uma cega que tinha os olhos immoveis enxergou apenas
Elle a tocou ; outras narram como as creanças agarravam a sua tunica
e apoderavam-se de suas mãos e como Elle sorria para ellas. Quando
as creanças brincavam em torno d'elle, ficava abstracto e parecia olhar
longe, muito longe as creanças tornadas homens e felizes. Um velho
narra que ha trinta e tres annos apparecera uma estrella e como
os prophetas predisseram que com essa estrella viria o Messias, o
Filho de Deus que havia de salvar o povo de Israel .
89

Ora Elle tem trinta e tres annos, Elle é bom, faz milagres como
propheta nenhum nunca fez ; quem poderá negar que Elle seja o Mes-
sias ? Como Elle defendeu a adultera ? Ali estava ella sentada na
porta, segue-o por toda parte, parece que renasceu para a vida . Elle
disse se é lei que ella seja apedrejada, que se cumpra a lei, mas
que atire a primeira pedra o que nunca tiver peccado .
E ninguem atirou, e todos recolheram-se em si, e reconheceram
que todos temos culpas que é preciso corrigir ; que é preciso implo-
rar o perdão e perdoar.
Quem entre os rabbinos daria esta sentença ? Salomão não
daria igual , porque, se nenhuma daquellas mulheres , que disputavam
a criança, era mãe d'ella como poderia succeder, porque a criança era
roubada, certamente morreria e Salomão não lhe daria a vida ainda
mesmo que matasse as duas mulheres. Elle diz :
Não faças a outrem o que não queres que te façam a ti dá
a cada qual o que é seu . Maria sae do interior com José de Arima-
théa, fala de Jesus n'uma exaltação adorativa : " E' Elle, é o Salva-
dor ! Nunca vio expressão tão divina, nem tanta sabedoria, e tanta
modestia, mas Elle veio cedo de mais, já que não podia ter vindo antes.
A corrupção do povo hebreu, seus crimes, seus vicios, sua pusilla-
nimidade, sua doblez ante os potentados e este por sua vez diante
de Antipas que é escravo dos romanos. Como levantal-o ?
Quando um povo torna-se obsecado é surdo a toda palavra
pelo bem, é cego a todo o acto que seja util á communhão. Cada
qual procura para si, procurando destruir os fracos, vendendo- se aos
poderosos , que afinal fazem d'elle seus instrumentos para o anniqui-
lamento dos que lhe poderiam servir de obstaculo ; e ás vezes tam-
bem morrem ás mãos dos que ensinaram a matar, dos que, varridas
as consciencias pelo crime constante para poderem gosar, levam esse
goso até fazerem crer que o crime é uma virtude.
Tal é a historia d'essa Roma até Cezar que os opprime e
cuja sorte será tambem a de seus antecessores.
Si os decuriões sérvem-se dos soldados para matarem os Impe-
radores a fim de elegerem um que lhes seja propicio, ou accla-
mar um d'elles mesmo Imperador, os soldados por sua vez matarão
os decuriões para substituil-os tambem, e assim a força que se tor-
nou absoluta se anniquilará pela sua divisibilidade, pela ambição, pela
indisciplina, pelo crime.
Os povos bestialisados têm o mesmo fim. A traição e a cobiça
é que os dominam.
Hoje um denuncia a Antipas o seu proprio irmão para man-
dal-o matar. Amanhã um outro denuncial - o-á e elle terá a mesma
sorte.
E' d'isso que nasce a tyrannia sobre os povos ; é d'isso que
por sua vez nasce a sujeição dos tyraunos aos seus auxiliares; 9
90

dahi vem a destruição de uma nacionalidade. E' para privar essa


destruição que Jesus se esforça . Como Elle deve soffrer ! Ser bom e
viver no meios dos máos ! ser justo e só ver a pratica da injustiça ,
ser sabio e só ver a ignorancia dominar ; ser altivo pela pureza da sua
consciencia e viver no meio da doblez e da escravidão, pelo crime
e pela infamia, lodo inextinguivel em que se mergulham essas
almas.
Fôra este povo digno, fôra ao menos capaz de comprehender
a sua miseria, como lhe seria facil libertar-se d'ella . Como Elle com-
a sua palavra santa, com os seus conselhos , leval-o -ia á Terra da Pro-
missão ! Cezar não é mais poderoso do que fora Pharaó e Elle é
mais sabio do que Moysés, e um povo que quer libertar-se encon-
trando quem o conduza, libertar- se- á.
Mas o povo é isso ....
Soffredor até á infamia, preferindo a morte , lenta com todo
seu cortejo de horrores, de angustias e miserias, á morte rapida da
luta ou á vida altiva e digna depois da victoria.
O seu caminho é sempre o da escravidão ; que importa a um que
caia o azorrague nos lombos de seu irmão ; que o sangue poreje
em suas carnes, se o senhor o alimenta e promette poupal - o ?
Que importa que deshonre a esse irmão, que lhe prostitua as filhas,
que lhe torne a mulher adultera, se paga bem a si e lhe dá pode-
res sobre os outros escravos ?
Mas amanhã, irritado o senhor contra elle, cahido da sua
graça, por sua vez será victima e seus irmãos algozes.
Oh ! bello Nazareno ! para esse povo, para essa raça de escravos
não é que Tu viestes, não. Tú falas no bem e elle só vive do mal.
Tú falas no direito e elle só vive do crime. Falas na lei , e
elle só vive da força.
Falas na igualdade, elle só vive da oppressão dos fortes
contra os fracos. Falas na liberdade como resultado do bem , do
direito, da lei , da igualdade e elle se deixa escravisar. "
Fôsses um hypocrita, um charlatão, um dissoluto ; louvasses o
crime, a infamia, a luxuria, a dissolução, sabio e bello como és, elles
te fariam um Deus mais querido, mais adorado do que o Appollo
dos gregos ; mas Tù és bom, Tú és justo, Tú buscas o bem de todos,
elles te insultarão, te infamarão, te matarão : serás o Christo !
José faz comprehender a Maria que suas palavras podem com-
promettel-a .
Que lhe importa isso ? que lhe poderão fazer mais do que
farão a Elle ? Softrer com Elle, soffrer como Elle, que delicia !
" Tú o amas, então ? pergunta - lhe José.
--- Amo- o, sim. Amo-o como nunca mulher alguma pôde amar,
com um amor santo como só entre os anjos pode-se pensar que
exista.
91

Queres ser d'Elle então ?


Louco , José ! ser d'Elle ? o que quer isso dizer ? Porventura
baixará Elle os olhos sobre uma mulher quando tem a alma cheia
de amarguras, vendo sua raça que se vae extinguir, vendo seu povo
escravo ! pode pulsar o coração, pode querer, quando a alma vaga
n'esse oceano de dores, n'esse mundo de miserias, e tenta allivial- os
e não póde, e quer e tenta mostrar o caminho por onde poderão
livrar- se e respondem-lhe com uma gargalhada, com um insulto, com
o sarcasmo ? E ella , que vida seria a sua , se ousasse imaginar que
poderia compartilhar do seu leito, ella , que só sonha com a liberdade
do seu povo, tornar-se-ia mesquinha, porque a alma que adora não
deseja. E tú não o amas, José ?
Sim , amo-o.
- Amal -o-ão juntos, e crê que se elle triumpha, ella o amará
com verdade porque ambos serão livres por Elle.

II
No portico de Bethsaida. O povo agglomerado pelas ruas atropella
para vel o passar. Grupos narram seus feitos, sua bondade. Em cada
grupo um velho procura nas prophecias a predição dos seus actos.
Um velho levou-lhe um burro para montar ; era a sua unica fortuna.
Elle bondoso como é, acceitou . Que lhe importa montar em um ani-
mal sem estar ajaezado, se com isso causa prazer áquelle pobre bo-
mem, que se exulta, por ter Elle, tão sabio, tão milagroso, baixado sobre
elle os seus olhos.
Não é isso, responde um outro ; Elle acceitou para que se
cumpra o que estava escripto. Outros narram como Elle multiplicou
o alimento e todos sahiam satisfeitos, porque o espirito d'elles se
confortava com a esperança de uma proxima redempção. Alguns
scribas procuram fazer desmerecer seus actos E' um charlatão,
um embusteiro, um prestidigitador.
--
Qual o seu lucro ; quanto ganha para isso ? perguntam-lhe.
Pode- se julgar mal de quem tudo faz em proveito dos outros, sem
descanço, sem lucros ?
Charlatães sois vós. Charlatães são os que se dizem executores
da lei, vendendo -a.
São os que dizem defendel-a encarcerando, matando aquelles
que clamam por justiça; estes sim, são charlatães, são embusteiros ,
só. veem o interesse pessoal e dos seus.
Exturquem ao povo o que é preciso para pagarem aos que
protegem os seus negocios.
Os que praticam o bem por abnegação, por amor á justiça ,
pelo desejo de que o homem deixe de ser opprimido, só têem um
fimé a salvação da familia. Loucos os chamareis vós, martyres os
chamaremos nós.
92

Christo, Deus, chamarão os que hão de vir, que hão de poder


calcular o esforço , a luta, o soffrimento das almas bôas, que viveram
entre vós , phariseus, hypocritas.
O scriba chama o velho de blasphemo que quer encarnar n'esse
homem o Filho de Deus de que fala a prophecia . O povo responde
em tumulto que não blasphema, que Elle é o Messias, e apedreja
o scriba que foge.
Apparecem mulheres risonhas com flores e com ramos ; narram
como estiveram perto d'Elle; çomo lhe beijaram a tunica e como
Elle lhes sorria dizendo : ,, Sêde boas, que vossos filhos serão dignos
de vós. , Outra traz os cabellos soltos e diz que lhe servirão de
toalha para Lhe enxugar os pés . Contam como todos os infelizes lhe
causam pena, como todos os maus lhe causam pesar . Porque serem
maus ? porque não olham para Elle ? porque não deixam penetrar em
suas almas endurecidas um unico som de sua voz , unico raio do
seu olhar.
Apparece Maria com Claudia, mulher de Pilatos, e outras
mulheres nobres que vieram disfarçadas para vel- O. Todas narram
sua affabilidade, sua castidade.
Claudia diz que Elle é mais magestoso do que Cezar ; que
em Roma seriam capazes de fazel-o Imperador. Maria responde - lhe
que em Roma Elle faria aquelle povo guerreiro e forte derrocar as
estatuas dos templos e o proprio Cezar se curvaria ante Elle.
E porque não o faz o teu povo ? pergunta-lhe Claudia.
-
E porque um povo escravisado é sempre vil para lutar pelo
bem ; não tem outro sentimento a não ser o da luxuria bestial :
outro desejo senão o de ver o soffrimento de seus semelhantes.
Tem a ferocidade do tigre preso na jaula quando se lhe atira
uma victima.
Ao longe ouvem-se vozes de homens, mulheres e crianças que
gritam hosannas ! hosannas ao Filho de David ! hosannas ao que vem
em nome do Senhor !
Rabbinos disfarçados dizem : E' preciso que morra ; si não o ma-
tamos Elle nos destruirá abrindo os olhos a esse povo, e ai de nós,
e ai de nossos filhos , ai de nossas mulheres, não terão mais ouro, nem
sedas e nos abandonarão . Será o fim da nossa raça .

III

No portico da casa de Pilatos.


O povo agglomerado fala, e ouve-se a voz de um centurião
dizendo : Sois uns canalhas. Hontem falaveis que Elle é um pro-
pheta, que é o Messias, que é o filho de David, que é Elias que
desceu para libertar- vos ; hoje que Elle está preso e sabe-se que
Antipas o odeia, vós o abjuraes, o maldizeis, o julgaes criminoso
93 -

e impostor. Nós somos soldados romanos, obedecemos porque para


isso nos pagam, mas vós que sois hebreus, que não jurastes obe-
diencia e que não sois pagos para obedecer, porque occultaes hoje
o que hontem manifestastes ?
E porque, já que não tendes coragem para arrostar as iras
de Antipas, não vos calaes e, ao contrario, vindes aqui adherir a
essa monstruosidade, a essa condemnação de um Justo porque Elle
prejudica os interesses de vosso Tretarcha, os lucros de vossos Scri-
bas e de vossos doutores ? Sois mais alguma cousa do que cobar-
des, sois infames.
Ouve- se uma voz dizer :
Nós não somos infames, nós não somos cobardes , nós .... ,„
Vozes Calai- vos ! Não vedes que quem fala é o centurião ?
que elle é romano e soldado de Cezar ?
Ainda que não fosse verdade o que elle diz nós não temos
direitos de responder- lhe, porque os romanos são os nossos protecto-
res, são os bemfeitores do povo hebreu ; são os que sustentam o
throno de Antipas. Viva Cezar !
Viva o povo romano ! Vivam os consolidadores do poder de Tre-
tarcha !
Um rabbino ouvindo a voz do centurião declara que é preciso
promover meios para gratificar os centuriões, porque elles não
tendo interesses nos seus planos, comprehendendo afinal que são
cumplices na condemnação de um innocente, podem revoltar-se e
tudo estará perdido .
Outro responde que não é preciso. O povo applaude sempre
os actos consummados.
Não ouviram como o centurião falava dos que já estão contra
o Rabbino de Nazareth, sendo hontem seus admiradores?
Sim , respondem ; mas se Pilatos se declara por elle , esse mesmo
povo o aclamará e o fará rei.
Outro Rabbino . -- Não! Elle é muito nobre para querer ser rei ,
sendo escravo de Cezar.
Não o tentastes , não o convidastes a seguir o nosso caminho,
os nossos costumes; ensinar a doutrina sem que sejam prejudica-
dos os nossos interesses?
Não teria Elle , sabio como é, bom e formoso , jovem ainda,
a certeza de, se acceitasse, que seria acclamado pelo povo, que o
proprio Cezar faria d'Elle presidente? Que respondeu-vos?
Que o seu reino não é d'este mundo. Porque? porque
nada quer para si, quer sómente plantando a moral, ensinando a
pratica do bem, fazer com que a sua lei seja eterna na humanida-
de.
(Entra Pilatos) .
Começa um Rabbino a accusar: " Elle vem derrocando as nos-
94

sas leis . Derrocal- as, e derrocar o poder de Antipas , sobre o


qual repousa o poder de Cezar na Galiléa. "
Como? diz outro rabbino .
Não foi elle mesmo que vos respondeu quando o arguistes:
a Cezar o que é de Cezar?
Sim, mas isto é a sua hypocrisia . Não resta duvida que
Elle conspira , por tanto deve morrer.
-
Porque conspira?
Se não conspirasse não estaria no meio d'esta plebe igno-
rante que nada faz senão dizer que a espoliamos, e que a roubamos ;
que já não quer pagar os dizimos, que clama por Elias e pelo Mes-
sias, não se lembrando que temos mulher e filhos , que somos
obrigados a sustentar o luxo, imposto pela nossa posição e que os
dizimos deviam ser augmentados porque os tributos pagos a Cezar
não hão de sahir das nossas costas. Que depois que Roma di-
gnou-se impor-nos suas leis, tivemos que augmentar as nossas despe-
pezas, para seguir seus nobres costumes, portanto, deve morrer.
E se não conspira hoje, ha de conspirar amanhã, por isso
é justo que morra, para conjurar - se o perigo.

Pilatos. Eu não sei que motivos tendes para matal- o . Quan-
do o mandastes prender, alguns desembainharam as espadas para
defendel-o e quando viram que a prisão era feita pelos soldados
romanos, embainharam-n'as dizendo : que não luctariam contra o exer-
cito de Roma ; é portanto um amigo dos romanos.
Minha esposa o vio e disse que é um homem bom.
Rabbino. Se a excelsa Claudia quer-lhe a vida, que se
lh'a dê. Que somos nós para contrariarmos a vontade da esposa do
procurador de Cezar?
Sabemos o que nos aguarda: a destruição dos nossos direi-
tos, de nossos interesses; a pobreza de nossos filhos, que serão obri-
gados a trabalhar para poderem viver, mas, se vossa mulher quer
que ella ache graça em vós como Rachel achou em Assueiro, sol-
tai- o, porque nós preferimos todas as desgraças a contrariar a
esposa de quem representa Cezar, nosso senhor.
Pilatos responde que nada póde fazer, que Elle é judeu e
que por isso deve ser julgado por Antipas, a quem manda que se
apresente .
Maria fala a Claudia.
Vê se tu pódes salval- o .
Tú o amas tambem , tu és bôa, porque encontraste n'elle a
bondade, a pureza. Tú pódes tudo . Pilatos te ama , não será ca-
paz de te negar o que lhe pedires . Claudia responde que tudo
fará para salval- o, mas que não convem que Pilatos saiba que ella
tem ouvido suas licções. Ella é romana, e os romanos não podem
adorar o Deus que elle diz existir. Mas, porque esse povo que
95

hontem o ouvio, que lhe beijava as mãos, que o adorava, não o arre-
bata das mãos dos scribas?
-- Oh! o povo, diz Maria, o povo é sempre o mesmo no sof-
frimento. Arrancam-lhe tudo , suas crenças, sua garantia, sua paz,
o seu ouro, e elle bestialisado cala-se ou applaude e só quando o
latego do senhor cabe-lhe sobre os lombos, quando a dôr fustiga-o ,
elle se levanta . Muitas vezes heroico, altivo, elle sabe repellir
a affronta, sabe impor-se como a força nascida das grandes massas,
mas este heroismo, essa altivez , não salvam a victima, a punição
não attinge aos algozes, vai cahir sobre terceiros, muitas ve
zes tambem victimas inconscientes dos algozes mercenarios,
se o povo perde toda esperança de reparação, torna se cruel , inconve-
niente, capaz de tudo destruir para encontrar um só dos que o
fizeram soffrer. Oh muito fez e pediu, rogou, procurou levantar-lhe
o espirito, todos se quietavam .
Afinal, alguns empunharam as espadas, mas Elle appareceu e
mandou embainhal- as " Não derrameis sangue por mim, " disse.
Esses soldados são romanos, são pagos para obedecer, não é jus-
to que morram quando cumprem com o seu dever Elles não de-
vem pagar os crimes dos outros .
Buscais-me? perguntou. Eis-me aqui . Cumpra-se o que está
escripto.
Claudia retira-se sentindo aproximar- se Pilatos .
Es tù, bella hebrea, que vens á minha Casa ! Sinto que es-
te ambiente se perfuma como se aqui houvesse um jardim mais flo-
rido do que o de Semiramis.
E ' que tu encerras em ti o perfume de todas as flores .
Em Roma terias sido a rainha de Capua , aqui eu serei teu sør-
vo. Diz o que tu queres e eu o farei, se fores minha .
Na tua raça as mulheres são bellas , mas são tristes .
Alegra-te pois , joven e formosa ; todo o brilho do mundo se-
--
rá para te illuminar. Diz pois , Maria, que não continuas a ser
esquiva, que tua mocidade não se evaporará inutil , como o fumo
do incenso nas pyras de teus templos. Que a tua belleza não se
fanará sem fructo como a flôr do lothus .
Poncio, diz Maria, eu não vim aqui para te ouvir. Bem
sabes, que eu nunca te quiz ouvir em outras occasiões em que a
alma se abre ás lisonjas, por mais casta que ella seja, quanto mais
hoje que a minha se debate n'uma agonia mortal.
Vão sacrificar um justo, vão fazer desapparecer o primeiro que
teve coragem para com seus actos arrostar os crimes de um povo
vil e dissoluto . Este povo é o men, mas elle é filho d'esse povo.
Tu não és judeo, tu não tens direito a ter odios, porque nin-
guem te offende . A vida d'elle está em tuas mãos . Quererás tu
96 ----

ter um gozo ineffavel em toda tua vida , salvando um innocente ,


poupando o sangue de um bom que os maús querem sacrificar ?
Que interesse mostras tu por esse mancebo nazareno? E'
verdade que elle é bello, é sabio, mas modesto , triste, absorto ; pò-
de elle te occupar a mente, a ti a formosa das formosas?
Quando nós vivemos no meio do tumulto , no meio da agi-
tação, nossa alma busca asylo no deserto , quando mesmo esse deserto
nós o creamos em torno de nós em meio dos tumultos fazendo nosso
espirito ir além, longe, sonhar no que não vemos; gozar do que não
sentimos. Quando vemos risos por toda parte, disfarçando o ran-
ger dos dentes na desgraça, quando vemos em cada physionomia
uma mascara risonha para os fortes, para occultar a face terrivel
que apresenta - se aos fracos, nossa alma respira ao ver, na suavida-
de da modestia, o rosto puro inalteravel do ser que Jehováh creou
á sua semelhança para ser bom , humano, fraternal para com seus
semelhantes. Quando vemos o luxo, a ostentação dos que extur-
quem ao povo o seu suor, dos que lhe fazem derramar lagrimas, dos
que lhe fazem derramar sangue para não perderem o bem de que se
apossaram, nossa alma prostra - se para beijar a tunica do justo , do pro-
bo, do honesto, porque essa tunica singella enchuga todos os pran-
tos, falando -lhe da esperança ; cura todas as chagas moraes, mostrando
as chagas incuraveis dos que, para serem senhores dos fracos, tor-
nam -se escravos dos poderosos.
E' por isso que esse mancebo chama a si todas as almas sof-
fredoras, que em vão buscam allivio ! E' por isso que elle attrahe
todos os desgraçados, porque elle sabe implantar-lhes na alma o
desejo de um bem mais aprazivel, mais duradouro, mais calmo do
que esse bem que só proporciona o goso material, em quanto o
espirito se chafurda nas crateras da insaciabilidade.
- Tu o amas então?
-
Como não amal- o , se elle é luz para toda alma que busca
sahir das trevas, se elle é oasis para todo o perdido no deserto?
- E elle ama-te?
Ama , sim. Ama como ama a Claudia tua mulher, como ama
a todos que d'elle se aproximam , porque são bons!
E' por tanto um homem perigoso o teu Nazareno .
Se fora imperador romano, Capua desappareceria.
Sim. Desappareceria tudo que torna o homem indigno , tu-
do o que é vil, tudo que rebaixa , porque elle sò busca elevar. Sò
busca igualar, só busca libertar os que não têm força 兼 para com
os fortes.
Pilatos convida Maria a ser sua amante, em troca da vida
de Jesus.
Maria insulta- o . Quer apoderar- se d'ella á força, ella esbo-
97 -

fetei-o. Apparece Claudia que faz fugir Maria . Chegam os


conductores de Jesus.
Pilatos, da janella diz: Levai- o, crucificai -o.

IV

No Golgotha.
Maria junto ao sepulchro agradece a José de Arimathea o
ter por seu pedido obtido o Corpo de Christo para dar-lhe sepul-
tura. Josè responde- lhe que elle tambem o amava. Que nunca
mais sahirão do seu pensamento sua doutrina e seus conselhos . Os
discipulos vão apparecendo receiosos ; junto ao sepulchro ajoelham
e beijam a terra.
Vão-se dispersar, por que é preciso para não serem persegui-
dos, mas todos elles serão eternamente unidos pelo martyrio do Mes-
tre. Maria diz-lhe que agora é que sua obra começa, que a elles
compete propagal - a indo por toda parte, levando seus conselhos,
o seu exemplo. O que soffrerdes nada será em vista do que elle
soffreu. O martyrio vos santificará.
Os criminozos, os cobardes, os tyrannos inartyrisam , mas o sa-
crificio dos dignos abre os olhos aos bons adormecidos, que não po-
dem acceitar para si aquelles crimes, aquellas infamias, sanccionando-
as com o silencio . Comprehenderão a final que esse martyriologio
sò tem um fimo luxo, a riqueza, o dominio dos algozes. Deixa-
me gozar ou morres, dizem elles , porque nós somos os represen-
tantes da lei, que fizemos para nós, e por tanto devemos ser obede-
cidos. Porque não protestastes então? Tinheis medo ? Logo, sois
cobardes, e os cobardes são escravos. Porque clamais ?
Porventura não se vos deixa viver desde que só cuidais em
cultivar a terra sem levantardes os olhos sobre nós ? Que mais
quereis da nossa magnanimidade, se, tendo força para vos matar,
vos consentimos viver?
Se, podendo vs obrigar a trabalhar sò para nós, na nossa be-
nevolencia consentimos que tenhais um pouco do producto do vosso
trabalho? Querieis que nós tambem trabalhassemos? Quem cuida-
ria da vossa felicidade? Mal agradecidos ! Tendo a fortuna publi-
ca, que nos fornece instrumentos para vossa ruina, as multidões que
nos applaudem em cada acto da nossa energia, não vos destruimos
no corpo, e vós vindes perturbar o nosso socego ; por tanto sereis
punidos. Não vos importeis, irmãos, diz Maria, dirigindo- se aos
discipulos ; quando a alma é forte e animada pelo bem e pela ver-
dade o corpo não sente o martyrio. Quem morre n'essa luta morre
immortal. Hoje são poucos, suas palavras, porem, germinarão em
todas as almas boas e o triumpho será certo amanhã ; ide. Se
nas portas dos palacios os mastins vos mostrarem os dentes,
7
98

procurai os povos incultos, os homens do trabalho ; e n'essas almas


boas lançae a semente, que, no momento da luta, as arvores que
d'ella nascerem, jà terão fructos.
Apparece Judas. Não sabia que lhe queimaria tanto a-
quelle dinheiro, que recebeu, para entregal- O . Pensou que com elle
viria a felicidade, e desde então não teve um só momento de des-
canço.
Não vê senão cadaveres por toda parte, não sente senão san-
gue em tudo que toca . Tem horror de si mesmo .
Por dinheiro, por interesse, fazer matar a um irmão , ao
seu Mestre ! Quiz dar aos passantes aquelle dinheiro ; ninguem o
quiz, nem os mendigos. Amargaria o pão que comprasse com
elle, seria amassado com sangue: A paga de um traidor ! só os
traidores poderiam acceital-a.
Entregou o dinheiro a um para comprar um terreno onde se
sepultem os mortos ; o que custou a vida de um, só pode servir pa-
ra os cadaveres . A traição causa a morte e o ouro com que se
compra os traidores, em vez de dar vida, mata . Quer morrer.
- Não morrerás, Judas. A morte é um allivio para os que
soffrem e tu não pódes ter allivio . Tu te eternisarás, OS
teus descendentes serão tão infames quanto tu. Em toda parte
onde a luxuria, o gozo, a inveja, a ingratidão, a cobardia, se ma-
nifestarem, tu estarás presente. Serás tu, habitando em cada qual
d'elles.
Os teus trinta dinheiros se multiplicarão. Milhares de or-
fãos , de viuvas , chorarão de miseria, mas tú gozarás das desgra-
ças d'elles . Nações inteiras chorarão, porque tua obra está feita .
Póvos bons, morigerados, probos, livres, se tornarão máus, ferozes ,
escravos, por fim desapparecerão, porque tu estarás encarnado nos
que os querem dominar. Vai, segue o teu caminho , mas lem-
bra-te que nem um momento sequer sahirá de tua mente o teu cri-
me - é a tua punição .
Os discipulos se retiram com José de Arimathea. Maria pa-
rece adormecer, depois desperta e vê ante si um espectaculo estra-
nho todas as raças reunidas no trabalho ; vê o progresso hu-
mano, 0 vapor, a electricidade, a alegria de todos no trabalho,
a igualdade e a fraternidade humanas no esforço que cada qual
emprega para adquirir, sem prejudicar ao que está junto a si,
e em cima.
Christo, risonho , empunhando a Cruz , onde se lê a maxima :
" Não faças a outrem o que não queres que se faça a ti,,.
Maria brada : Resuscitaste, eis o teu reino na tua obra, tu és Deus.

**
*
99 ---

A' tarde quando acabava de escrever este plano de drama,


ouvi toques de clarim das forças que marchavam. As conferencias
dos generaes Salgado e Laurentino com o Governo Provisorio, tinham
dado razão a Salgado, e as forças voltavam á Laguna.
Durante as tres horas de marcha, eu meditei sobre o que
poderia escrever, se fosse pôr em pratica o meu plano .
Veio- me a mente um facto da infancia : A primeira vez que
fui ao theatro, na Bahia, representava-se a Filha do Lavrador.
Tinha ou então 14 annos. Logo depois fui acommettido de typho,
e na convalescença, n'um longo subdelirio , de que ainda hoje me
lembro, eu via no theatro um grande drama, onde apparecia
Christo na Cruz. Voltando ao sertão para convalecer- me, tratei de
escrever um drama . Lendo- o a minha mãe, ella me disse simples-
mente que aquillo não era mais do que o que eu lia para minha
avó, nos livros sagrados, e que não se devia pensar que se fazia
uma cousa, quando outros já a haviam feito, e que minha letra estava
muito feia.
Lendo para minha avó ella achou muito bom, e até compa-
rava a minha declamação com a do Vigario Villas- Boas. Que eu
bem podia ser padre para pregar sermões. Mas eu padre, com
quem se casaria Clemencia ? .... Passaram os tempos e se minha
avó lesse este esboço, ficaria mal commigo ! Sunt lacrimae resum !

O meu viver, aqui, na Laguna, é muito circumscripto. Vou


ao hospital onde se acham alguns feridos ; almoço e janto no hotel-
zinho do lugar, visito os acampamentos e á tarde vou á casa do
Sr. Cabral, onde ouço um pouco de musica bôa, executada pelas
filhas d'elle , duas meninas interessantes , naturaes, creio, do Rio de
Janeiro, onde se educaram. A mais velha é pianista eximia, tem
execução admiravel e pronunciado gosto artistico . A mais moça
não tóca sosinha ; senta-se ao piano apenas para as peças que re-
querem execução a quatro mãos.
Antes d'isso porém, é preciso que se rogue, que a irmã exi-
ja, que o pae ordene, e executa bem com a irmã o seu Guarany
e os Huguenottes, mas é necessario que não se fale, que não se
mostre que se observa, porque senão atrapalha-se toda.
A minha companheira de passeio que se perfumou de iodo-
formio, ainda não tem coragem de sentar- se ao piano em presença
de extranhos . Fonseca é casado n'esta familia.
As catharinetas são geralmente bonitas. Tem um modo
de falar, porém, cantando de tal maneira, sobretudo aqui, que de
longe se póde distinguil-as entre outras.
Aqui na Laguna os costumes parecem querer conservar
100

as tradições antigas, apesar de ser um porto de mar e ter uma


estrada de ferro e boas colonias proximos , do seu progresso mate-
rial e da educação, já bastante desenvolvida, para o que muito con-
corre Fonseca, que creou uma escola gratuita, bastante frequentada
e uma bibliotheca de obras bôas para os frequentadores da escola.
Em geral, o caracter do povo e os antigos costumes fazem lembrar
os nossos habitos de outr'ora.
Laguna é igual á cidade da Barra, no rio S. Francisco , com
a differença de que, aqui , dansa - se a valsa, a polka, por toda parte,
e na Barra, quando lá estive, dansava- se a roda de S. Gonçalo, ao
som de um tamborzinho e de uma viola, com cantigas apropriadas ,
dansas em que as raparigas têm occasião de mostrar, sem offensa
ao pudor, os movimentos rapidos dos pés e do corpo .
Creio que estas dap as são peculiares ás bayadéres da Indo-
china, e foram importadas pelos portuguezes. N'ellas tomou parte
o Joãosinho, que depois se chamou Barão de Cotegipe, e ali ainda
encontrei velhas matronas, que foram suas companheiras nos baila-
dos. Encontrei tambem, ali uma senhora, já idosa, que censurava
a Roda de S. Gonçalo lembrando-se dos seus bailes de quadrilha em
Jacobina, onde dansara com um moço muito sèrio, muito calado ,
que era promotor publico, um doutor muito bonito, chamava - se Jo-
sé Antonio Saraiva .
Perguntei-lhe se sabia noticias d'elle ; disse-me que não ; que
provavelmente teria morrido.
Disse- lhe que era vivo e contei -lhe o que era o conselheiro Sa-
raiva no Brazil.

E' possivel, disse-me ella, que eu tivesse daasado com um
homem que havia de ser tudo isso ?
A' hora do pombo beber, é um dos bailados mais caracteristi-
cos da Roda de S. Gonçalo, por que tem que imitar o movimento
da ave quando se approxima da aguada, quer nos passos, quer no
cóllo. Se ainda voltar áquella terra tão bôa , talvez já não encon-
tre isso, talvez ali vá encontrar, não as dansas que servem de
divertimento ás familias, sejam as rodas ou as valsas, mas o des-
apparecimento de tudo que era tradicional .
A corrupção de costumes não se deve comprehender sómente
á licenciosidade, mas sim, quando se quer adaptar rapidamente a
um povo, que não està preparado, costumes novos, que poderiam
ser productivos em tempo opportuno, mas que sem se acclimata-
rem , fazem desapparecer os existentes, d'onde um producto hy-
brido, predominando os predicados máos, que no homem são os
mais resistentes .
O proprio ferro fundido, o chrystal mais limpido fende-se, se
passa rapidamente de uma temperatura á outra ; e esse estrago é
101

sempre irreparavel por mais delicada que seja a soldadura, que lhe
queiram dar.
Um povo que não está educado, para dirigir-se por si mesmo,
precisa de guias , directores, que sejam bons e honestos, como os
menores precisam de um tutor, para que, quando cheguem à maio-
ridade, nem só tenham tido uma educação capaz para se dirigirem ,
como encontrarão a fortuna augmentada e com intelligencia e tra-
balho poderão fazel-a crescer.
Se é máo o tutor, o orphão serà abandonado a todos os seus
instinctos e na maioridade, nada encontrando, seguirá o caminho, que,
fatalmente, leva- o ao presidio.
Assim é o povo ; dão-lhe tutores máos, que roubam, que o
maltratam . Afinal elle reluta. Vencedor, é horrivel o que acontecerá
depois , mas é preciso vencer, se não quizer transformar-se em besta.
O mais forte, ou o mais hypocrita será o seu chefe.
Tome-se um homem ignorante, porém forte, habituado a fazer-
se respeitar pela força; tome- se um cacique valent-, feroz, insensi-
vel às dores alheias, adornando - se com os dentes e os cabellos dos
inimigos ; tome-se um antigo senhor de escravos , calculando o tem-
po de vida dos seus escravisados emquanto baste, o que lhes darão
no trabalho, o lucro e os juros correspondentes ao capital empregado
e diga-se a qualquer d'elles :
„ Este povo é ignoraute e docil, fazei d'elle o que quizerdes ,
governai porque sois o mais forte ,, O primeiro governal -o -á a pau ,
o cacique á faca e o economico fazendeiro mandará os feitores que
o exterminem, comtanto que o trabalho d'elle dê para si e
seus amigos.
Dando-se mesmo o caso de que o homem que tenha de governar
este povo, segundo seu modo de pensar e não segundo as necessi-
dades que o habito e costumes d'elle exigem, esse homem ainda
mesmo que seja bom, intelligente e illustrado, nada conseguirá. Será
como o inglez a educar africanos explicando-lhes os deveres n'uma
lingua que elles nunca ouviram. O resultado de tudo isto é sempre
negativo.
O que é certo , porém, é que o povo perde seus antigos
costumes e o governo o seu programma apregoado.
Tornado incerto o exito, a surpresa, muitas vezes assombrosa,
é o resultado.
Chateaubriand nas suas viagens na America, diz ter encontrado
um francez que ensinava a dansar : En avant, mrs. les sauvages ,
maintenant vous, mes dames les sauvagesses ; e tocava flauta e os
selvagens dansavam.
Chateaubriand, sempre delicado no seu estylo , não nos diz
como eram executadas aquellas dansas.
Mas, se a graça da dansa de salão é o movimento das roupas,
102 -

comprehende-se que aquellas dames sauvagesses não encontrariam


encauto em arrastar os pés conforme queria o francez, e sendo a
dansa selvagem uma mistura de marchas guerreiras e movimentos
lascivos, é bem provavel que em um balancé, mrs. les sauvages e
mes dames les sauvagesses, se lembrassem dos seus costumes naturaes
e o francez que não podia se fazer comprehender, tivesse de
fazel-o por signaes e por acenos, e para não contrariar em tudo os
modos de mes dames les sauvagesses em um balancé, fizesse com
ellas o mesmo que faziam mrs. les sauvages.
Demais, o homem é sempre imitador de tudo que sae fóra
das convenções sociaes .
As mudanças rapidas dos habitos de um povo em relação ao
poder publico, têm o mesmo effeito que as lições de dansa d'aquelle
professor aos pelles vermelhas da America do Norte.
Acabada a musica, os selvagens cançados, nada mais recordavam
do que haviam executado , e sem allusão aos grandes salvadores da
Patria brasileira, o mestre de dansa, francez, pouco se importava
com isso, porque o que queria era o seu pagamento em bôas pelles
de castor, cuja venda lhe daria com que passar algum tempo, como
grande capitalista, nas cidades onde se aprecia o dinheiro, sem olhar
a immunda carteira que o conduz .
E triste d'elle se quizesse ser rigoroso para impôr aos discipu-
los a bôa execução das figuras choreographicas.
O resultado seria levar uma tunda de pau, perder as pelles
de castor, se não perdesse a do proprio corpo.
Ha porém, em nossa raça o habito de se acreditar que
o homem deve saber tudo ; se alguem confessar sua ignorancia sobre
alguma cousa cahirá immediatamente no ridiculo.
Fala-se em medicina, não ha quem não a saiba ; não ha quem
não tenha lido Chernoviz e os autores.
Fala-se em politica , todo o mundo é politico, e predomina so-
bre elles o que leu um artigo n'um jornal, e repete uma phrase pi-
cante de qualquer orador inutil e chato, mas que faz chégar ao gotto
do populacho, segundo o que na occasião lhe agradava.
Ha differença ? Eis um orador. Desmanche-se a differença, eis
um outro orador.
Fala-se em electricidade, como não conhecel-a, se por sua fa-
zenda passa um fio telegraphico ?
Por isso, não raro vemos homens que mandam tirar o couro
a seus compatriotas que não se submettem a elles, falarem no tem
plo da humanidade, e quando falam na republica que elles torna-
ram inviavel no Brasil, dizerem : "Esta republica que eu sei amar. ,,
Amor de quadrupede, cujos affagos são couces è dentadas.
E o povo bestialisado acceita o que elles dizem, e diz por sua vez :
Pois, senhores, estamos na republica. Sahir d'ella é confessar-
103

mo-nos ignorantes, o que nos prejudicaria diante do povo europeu ,


que não nos daria mais nada para vivermos , nem ао menos nos
consentiria plantar feijão e abobora para comer, nem pescar nos
nossos rios, porque não somos civilisados . ,,
E se a republica é isso, porque não havemos de ser republi-
canos ? O que ha de melhor do que roubar, matar, ou mandar ma-
tar e ser depois um salvador da Patria ? Acabar com esses pertur
badores do socego ? N'esse systema, se um garoto grita na rua ,
manda-se punir.
E' preciso que não interrompam o soeego dos que meditam
sobre o bem- estar dos amigos.
Precisamos pensar, isto é o melhor meio de sermos temidos e
respeitados. Que os outros calem-se, que comprem mordaças, sob
pena de serem considerados sebastianistas. Que mal existe em eu
levantar um esperto qualquer, enriquecel-o, tornal - o dono do Bra
sil ? E' da republica.
Esperto como elle é, estava escondido, nunca demonstrou seus
merecimentos e collocado no poder, rico, ousado, elle nos venderà
à Argentina, e que cousa melhor do que ser territorio argentino ,
se aqui n'esta terra levaram uma vida sem progresso e sem gran-
dezas ?
Visionarios, que julgam que isto não é bom.
Viva a republica !
E o povo diz : Viva ! e se não o diz, ahi vem o sabre dos re-
presentantes das liberdades patrias.
Que havemos de fazer ? Dizem que a palavra só serve para
occultar o pensamento, é o rótulo para indicar justamente o contrario
do que apregoa.
Ordem e progresso quer portanto dizer : guerra civil , anniquila.
mento proximo da maior nação sul-americana .
E não é de hoje esta aberração do senso. Ha um seculo fizeram
de Nôtre Dame, em Pariz o templo da deusa Razão.
Tiraram d'ali as estatuas dos homens bons a que se dava o titu-
lo de santos, signal de que a França tinha chegado ao apogeo da
perfeição ....
Se a Razão já tinha templo...
N'uma praça ergueu-se o altar da Patria, onde a guilhotina
mandava diariamente centenas de cadaveres porque a Patria d'elles
era como a deusa Kalli, nutria - se de sangue e tinha por adornos das
orelhas cadaveres humanos.
Porque o Brasil, um seculo depois, não ha de imitar a França ?
E o povo dividido em duas partes, uma que gosa e diz que
esta é a grandeza, que é o progresso, que é a lei , que é a disci-
plina, que é o nivelamento dos fortes ; e a outra que cala-se, que
não respira, que diz --- isto é que é bom, isto è que é o progresso,
104

esta é que é a verdade ! E é preciso dizel-o com expressão muito


significativa das emoções, porque, se não fôr assim, desce uma espada
luminosa, virgem ainda nas lutas, para que foi confiada, a separar
a cabeça de um corpo .
Pobre povo !
Emquanto não comprehenderes que o soffrimento e a morte
na luta, são mais nobres e mais dignos do que este soffrimento dia-
rio, marcado hora por hora, instante por instante, d'essa luta sem
reacção ; tú, escravo, contra o senhor a quem julgas que os lamentos
e os pedidos podem commover a alma de féra, serás eterna victima.
Levanta-te de uma vez, se te queres salvar.
O' homem, tens uma esposa ? se não queres ser escravo, elles
amanhã penetrarão no teu lar, farão d'ella uma viuva, uma martyr ,
e emquanto as mulheres d'elles tripudiam de luxo e de grandeza ,
fazendo de joias o sangue derramado e as lagrimas chrystalisadas
nas gemmas offuscantes que ostentam, ella, a tua viuva, martyr, mor-
rerá de fome.
O ' pae, aquelles filhos que geraste, que tù viste crescer
como a planta que o lavrador afaga e cuida pelos fructos que lhe
ha de dar, serão victima ou escravo dos simoniacos pat ios .
O' filho, tua velha mãe chora de soffrimento : ella te criou na
lei do bem, ella te viu crescer na lei da honestidade ; e hoje que
tu lutas para não seres escravo, hoje que relutas jogando a vida
para não morreres, chamam- te bandido !
Sobre seus cabellos brancos não cahirá mais o teu riso , tuas
caricias ; teu sangue bebel -o-á a terra insaciavel, teu nome será
manchado, porque triumphou a iniquidade, porque n'essa patria bra-
zileira, para ser digno, para ser bom, é preciso ser infame.
Ainda mesmo que o individuo tenha idéa republicana e amando
a sua patria , deseje para ella um governo sério, um exercito dis-
cip.inado e patriota, logo dizem é sebastianista, matem-n'o porque
a republica é isso. Na França foi assim. Mentira ! Na França ella
fui sanguinaria, é verdade, porém os criminosos, os que por interesse
tornavam a republica inviavel, ali pagaram com a cabeça ; ao passo
que aqui as victimas são os que clamam por justiça e os algozes
são remunerados na razão directa da crueldade, do roubo e da
infamia.
Que importa a esses Srs. donos da patria, que ella se aniquile,
que desappareça mesmo ? O governo é restricto a pequeno espaço de
tempo ; não tem necessidade de preparar terreno para seus succes-
sores serem bem succedidos , ao contrario, erissar de espinhos o ca-
minho que tem de percorrer o que vier, para que seja peior do que
elle, parece ser a preoccupação d'elles.
Que bom dizer : depois de mim virá quem bom me fará ! ser
saudado pelo povo como o tyranno pela velha de Syracusa !
105 -

O Sr. Floriano não fez do Sr. Deodoro um grande patriota ?


Pois bem, ha de vir quem faça do Sr. Floriano o typo da candu-
ra, um santo, um martyr ; a estrada é longa e os viajantes innu-
meros, e o povo por necessidade achará bom ainda a este que fi-
zer do Sr. Floriano o typo dos bons governos, e como os antigos
escravos será considerado -- cousa .
O senhor é máu, manda- os açoitar, receba os açoites com obe-
diencia porque elle póde mandar matar. Se mandar matar, caminhe
resignado para o patibulo ; póde ser que elle, vendo essa resignação,
conceda-lhe a vida. Se reluta a sentença se cumprirá ; morrerá, por-
que o senhor deve ser obedecido e sem terror não ha obediencia .
Tal é a lei dos que querem viver á custa do trabalho alheio ;
mas a resistencia é a lei da conservação. Venham os oradores mais
insinuantes, os escriptores mais convincentes falar ao povo sobre li-
berdade, sobre direitos do homem, sobre ditadura scientifica, sobre
o governo monarchico e elle dirá que me importa isso, se vivo
tranquillo, se posso trabalhar e criar a familia, se o meu direito
é respeitado !? Isto de dictadura scientifica quem mais a exerceu foi
Francia, no Paraguay, e se sabe o que foi o povo paraguayo .
Tivessemos uma republica honesta, sem exercito permanente ,
porque na hora da luta externa todo cidadão é soldado ; sem fortu-
nas rapidas feitas á custa das revoluções, os proprios monarchistas
viveriam satisfeitos dentro d'ella, porque para o homem não é a
fórma de governo que o preoccupa , - é a honestidade d'esse
governo, é a equidade da justiça.
Mas, collocar-se um sujeito no poder e ter a força para eleger
ou nomear o seu substituto eternisando -se, portanto, um partido no
poder até que o outro empunhe armas para derrocal- o , ainda mesmo
que se queira convencer o povo de que isto é a republica e que
a republica é o governo a que o povo deve aspirar, esse povo res-
ponderá, que prefere a autocracia da Russia que tem o dever de
conservar inteira a nacionalidade, a essa republica de surpresas, de
ciladas, onde ninguem póde estar tranquillo no presente, nem me-
ditar sobre o futuro.
Por ventura, os homens bons, amantes de sua terra, honestos,
que têm de julgar, que têm de ser os garantidores do que
pregaram, poderão ser homens de partido, obedecendo em tudo
que se lhes ordene, e se relutam nem só terão de cahir como talvez
terão de morrer ?
O desapparecimento de uma nacionalidade pela guerra civil ,
que plauta odios, que divide as familias para sempre é infal-
livel.
Tal foi a sorte de Roma no imperio, tal foi a sorte da Gre-
cia, tal é ou será a sorte da India .
Tome por outro lado um homem o trabalho superfluo , porque
- 106

tendo força para mandar, não se procura convencer e vá o povo e


diga- lhe que elle gosa de liberdade, quando até ter uma idéa é um
crime, que elle se dirige por si, quando para transitar nas ruas é
preciso parar, para deixar passar um patriota, que elle vive a vida
da civilisação, quando raro é o dia que não o ameace a autoridade,
por culpas imaginarias, que elle póde viver segundo a sua vontade,
mas que essa vontade tem de ser modelada pelo Sr. Julio de-
*Castilhos, -- esse povo dirá que obedece, porque não tem uma es-
pingarda para repellir. Isto só bastará para que os garantidores das
instituições venham a campo para matal-o, porque elle não quer a
republica, que é tão boa e que elles sabem amar.
Começa então uma luta de morte, contra quem ? contra o
invisivel, portanto contra todos.
N'essa modernissima civilisação trabalha a faca nas gargantas
dos que se deixaram ficar em casa e dos que foram pegados
na fuga.
Mata-se. As almas mais ferozes chegam a horrorisarem-se de
tanto sangue, chegam a dizer que não autorisaram tantos horrores ,
tantas infamias, mas abraçam e elogiam os autores d'esses horrores e
d'essas infamias. E o ar se impesta , não se respira mais senão odio
e vingança, mas o oppressor, o causador de toda essa hecatombe,
precisa salvar o principio de autoridade, precisa dignificar 0
algoz e para isso manda matar.
E' preciso que o sangue corra para poder ser obedecido . A
autoridade, para elle, não pode ser uma cousa benefica , organisadora,
moderadora ; precisa ser temida, ter os raios de Jupiter Tonante,
não se lembrando que a força da reacção é na razão directa da
compressão, e afinal, para não confessar que errou , commette erros
maiores ; para não dizer que praticou um crime, que, reparado
em tempo, seria perdoado, esquecido , tornando -a boa, querida, por
ser leal, commette crimes maiores.
Procura consolidar, estraga ; quer salvar e perde , quer
fazer viver e mata. O presente anceia e o futuro escuta.
O que virá d'ahi ? ninguem sabe. Garante-se porem, que
nada de bom.
O povo é um terreno fertil para o bem ; se porêm , tenta -se
cultival- o com plantas exoticas, tornar-se-á maninho.

*
**

Não me tem agradado a marcha das cousas.


As forças do coronel Arthur Oscar se conservam no Tuba-
rão. Uma exploração feita pelo valente Felippe Portinho verificou
isso.
O general Salgado mandou preparar o vaporzinho que aqui
107

está ao mando do capitão - tenente Damazio, para ir pelo rio , obser-


var a posição do inimigo.
Sahimos cedo da Laguna. Navegamos o dia quasi todo pelo
estreito rio que serpeia pelo meio de um banhado, e á tarde en-
calhamos, avistando ao longe as dunas e as torres da cidade . Ahi
pernoitamos, comemos todos os mantimentos de bordo, prendeu-se
o pratico, por ter deixado encalhar o vapor e o general voltou para
a cidade, n'uma canôa. Pouco depois desencalhamos e voltamos á
cidade um passeio de recreio e muito insipido.
O general resolveu tomar o Tubarão. Toda a força da guar-
nição marchou ao som da musica.
Junto á cidade ha uma ponte de ferro carril que o coronel
Arthur Oscar destruio . Ao chegarmos perto, fomos recebidos com
fuzilaria.
O muito serviço medico e a necessidade de attender não sò
aos enfermos do hospital como dos acampamentos, fizeram com que
eu convidasse o Dr. Fonseca para fazer parte do corpo de saúde
do exercito, bem como os pharmaceuticos Aranha Dantas e Luiz
de Acampora .
Aranha Dantas pertence á politica opposta ; convidando -o quiz
demonstrar que nada temos com a politica local e que o nosso fim
é outro obedecer a um plano elevado, podendo depois cada qual
disputar nas urnas o triumpho de suas idéas .
Fonseca e Aranha Dantas ficaram encarregados dos doentes
do hospital e Acampera accompanhou- me ao Tubarão.
Quando começou o tiroteio na vanguarda, eu desci do vagon
e segui para lá accompanhado de Acampora e um individuo que
ali vinha desarmado. As balas sibilavam fortes por ali : ao passarmos
uma curva, ellas vinham mais directas.
Perguntei ao individuo se ia em algum serviço, respondeu-me
que não.
Então, porque vem se arriscar sem necessidade ? perguntei-lhe.
E' verdade, respondeu-me, que tolice a minha, eu que preciso
tanto de viver ! e voltou correndo.
Acampora, com quanto seja um valente rapaz, perguntou-me
se era obrigado a accompanhar-me ; respondi-lhe que não e que
podia voltar, o que fez e depois declarou peremptoriamente no vagon,
que, se fosse obrigado a accompanhar-me nos dias de combate,
deixaria de pertencer ao corpo de saúde.
Durante muitos dias não cessou de narrar o que havia acon-
tecido .
O sibilar das balas lhe causára extranheza ; era a primeira
vez que se achava em frente ao inimigo , e por mais valente que
seja um individuo , a estréa é um pouco desagradavel, e se não o
contém o brio, pode fazer figura pouco digna.
- 108

lamos dispostos a atacar, mas o general receiando que of


inimigo nos pudesse tomar a retaguarda, resolveu voltar. Allegava
elle que Arthur Oscar, como elle, sabia a arte da guerra, e que
portanto áquella hora deviamos ter a nossa retag arda cortada ; e
para privar isso tivemos de fazer guerrilhas ambulantes, n'um trem de
vae e vem.
No tiroteio só tivemos um morto, um pobre enfermeiro . Feliz-
mente , parece que o coronel Arthur Oscar, como temia Salgado ,
não está muito a par da arte da guerra , e lá se deixou ficar, sem nos
encommodat a retaguarda.
Chegamos á Laguna á 1 hora da manhã, mortos de fome e
assim estivemos até o outro dia, porque o hotel só preparou comida
para os estados - maiores que dispunham do telegrapho para prevenir
isso .
O general Salgado seguiu para o Desterro, ficandó Laurentino
no commando da praça .

**

A foz da Laguna é estreita e d'ali pòde-se ir, atravessando


o estreito, ao Tubarão, o que motivou receios de que Arthur Os-
car viesse bombardear a cidade por ali, o que nos obrigou a mandar
collocar artilheria para defender aquelle ponto e a ponte.

Todas as tardes saio a cavallo e vou passear á barra , lugar


deserto onde o mar agita-se sempre com furia . O mar na sua ma-
gestade é sempre melancholico, como um deserto movediço que nos faz
recordar quasi sempre os primeiros sonhos da mocidade ; um vapor
que fumegava, levando alguma cousa que nos pertencia, ou que nos
levava debruça do na popa, fixando a esteira de espuma que parecia
fugir-nos , para se abrigar na terra d'onde partiamos , onde deixava-
mos o objecto que devia ser o centro de todos os nossos pensa-
mentos. O nosso chapéo que o vento arrebatára julgavamos um men-
sageiro.
Hoje, o mar é a imagem da Patria ; calmo quando as brizas
ligeiras roçam lhe a surperficie ; mas se o vento o comprime, se o
tuphão desperta no espaço elle ruge enfurecido . As ondas che-
gam ás praias e afastam-se, quasi não deixam rastro ; mas na
constancia d'ellas, na incançabilidade, se os ventos continuam a or-
denar-lhes, liquidas, como são, destroem muralhas, modificam ou fa-
zem desapparecer continentes e os elementos que a vontade do ho-
mem parece querer fazer dominar as forças naturaes, são tragados
por ellas, e o nauta que em loucura quiz affrontal-as, ou que não
109

conheceu o perigo, ou não teve tempo de procurar um porto de


abrigo, amanhã terá o corpo mutilado pelos vorazes maritimos, ar-
rojado sobre a praia deserta, onde ninguem lhe poderá erguer um
monumento de gloria, mas terá um monumento de odio na alma de
todos aquelles que choraram a morte, dos que elle sacrificou .
Dois elementos sem cohesão : o vento e a agua, pódem des-
truir o que se julgava mais forte, mais resistente. Illudem -se os que
pensam que as couraças, que as bayonetas, podem destruir um povo.
Pobre Patria ! Quem te salvará d'esse medonho cataclysmo
em que a insania de alguns filhos desnaturados te arrojou ?
N'aquella praia deshabitada, ás vezes me entretenho a falar .
O marulho, o quebrar das ondas me abafani a voz e minhas pala .
vras perdem-se no espaço, como se perderiam as do que quizesse
accordar este povo bestialisado, ensinando-lhe o caminho do dever
e graças a este deserto, ninguem me vê, nem me ouve e por isso,
não me poderão julgar louco ou ébrio.
Cousa esplendida é o oceano ! as ondas movem-se de longe,
tangidas por branda viração e vêm sem um flóco de espuma, len-
tamente, beijar as areias brancas da praia. E' o estado physiologico
do mar ; paciente, enorme, docil a ponto de deixar-se cortar pelas
náos, objecto mesquinho em relação à sua grandeza. E os ventos
propicios lhes enfunam as velas, sem perguntar-lhe d'onde vêm,
para onde vão , que porto buscam, em qual dos hemispherios seus
tripulantes deixaram suas habitações. Não ouvem elles senão a
voz mysteriosa dos ventos que sibilam nos velames e o choque
daş ondas que batem no costado do navio, como a batuta que dirige
uma orchestra ignota.
Ninguem sabe a vida d'esses homens que as tripulam, emba-
lando- se sobre as ondas, como n'um leito de paz. D'onde vêem elles ?
o que querem ? o que desejam ? qual a historia da sua infancia ?
qual o motivo de suas lagrimas, de suas dores, dos dissabores por
que tem passado ?
Ninguem sabe , ninguem póde ler na alma d'aquelle que mono-
loga longinqua tradição de povos heróes, cheios de glorias , que hoje
nada mais tem do que um nome, como mumia, na historia. Ninguem
lhe pergunta se meditou solitario nas ruinas da Acrópole, nem se
ouvio o canto das virgens, que para não serem odaliscas bailavam
cantando hymnos no declive dos abysmos ; para não serem escravas
de um aga ou de um Ennucho ; ellas preferiam a morte a viverem
assim, olhando o céo da Grecia, cuja belleza plantára nos seus avós
aquelle heroismo que não se descreve, aquella inspiração que o
tempo perpetuou, aquellas leis que Lycurgo soube escrever.
Um outro d'essa raça honrada que fecundou mundos, que re-
lembra D. Henriques e Vasco da Gama, e a legião assignalada que
o soldado poeta eternisou , que do pequeno " jardim á beira mar
110

plantado, por mares nunca d'antes navegados " voavam como ousadas
gaivotas em busca de portos em terras ignotas, onde o nome luzita-
no tornaram sublimado.
Na praia a que aportavam erguiam um solar e em breve uma
familia ali edificavam ; viviam para a guerra, mas ali no lar, as sãs
ideias, a honra somente fecundavam. Portugal, ó grande creador,
se o tempo tudo gasta, tudo destroe e consome , na vasta zona que
aquece o sol do Equador, os seculos não poderão destruir nem tua
raça , nem teu nome.
Eu amo teu povo ingente, como emblema do passado , d'essas
raças nobres, heroicas de força e honra formadas. Tua historia é
um poema, que devia ser cantado na agonia torpe das raças desna-
turadas. Emquanto a minha Patria guardava a tradição das tuas leis,
dos teus costumes , gosavam meus irmãos de paz . Na hora da afflic-
ção de uns, todos se erguiam, como provou-se um dia em que os
filhos do sul viram seus lares invadidos pelo estrangeiro e os filhos
do norte bradaram o insulto é feito ao povo brazileiro.
Um outro canta os versos de Tasso e Dante, lembrando -se da
patria, então humilhada ; mas o brio, a vontade, o batalhar constante,
libertou-a dos tyrannos, tornou- a respeitada.
Mazzini, Garibaldi, o rei cavalheiro, deixando o amor proprio,
que a politica gerou, unidos como um homem, como um só guerreiro,
que as armas empunhando, a Italia unificou.
Ali vae o hespanhol ardente e folgasão, tangendo a guitarra,
bailando sobre a vaga, quer sopre briza fagueira, quer agite o oce-
ano o raiveso tufão, sorri pensando da patria, nas meigas plagas.
Os hollandezes meticulosos , pensam na terra creada pelo esfor-
ço herculeo dos avòs. Filhos do mar, nasceram como a alga e como
os diques, que fizeram, elles lá vivem sós .
O' mar, quando eu te vejo, ora calmo e suave, como o desli-
sar da infancia , lembro-me do povo que docil e tranquillo dei-
xa-se dominar. Quando eu te vejo agitado, raivoso, lembro- me
d'esse povo de quem se abusára um dia, que ergue- se furioso para
vingar, affronta por affionta, insulto por insulto, os que na sua loucu-
ra julgaram que quem é docil e bom, é digno de ser escravo.

*
**

O telegrapho annunciou a chegada de Custodio de Mello ao


Desterro. Telegraphei dando-lhe as boas vindas. Respondendo- me
affectuosamente , logo depois.
A' noite fizeram passeiatas pelas ruas e pediram-me para
falar, o que fiz de uma das janellas do hotel.
Amigos, disse eu terminando meu discurso, mais um esforço ,
111 --

mais um sacrificio, mais um pouco de abnegação e nossa victoria


será certa e proxima .

**
*

7 de Dezembro.
Hoje o meu passeio foi mais prolongado á barra. Atei o meu
cavallo á cerca de uma casa de banhista, deshabitada e passei
longo tempo na area endurecida pela maré vasante.
A revolução ausentou d'aqui ate os navios mercantes ; nem
uma vela branqueia ao longe.
Que triste deserto é este mar ! Deserto como a minha pessoa
dos teus carinhos e dos de nossos filhos, hoje, e dentro em mim, o
espirito move-se, como estas aguas, e o pensamento agita-se, corren-
do ora para vós, ora para a Patria, como estas ondas que vêm, que
banham as areias da praia e recuam, para de novo voltarem. Ellas
serão eternas , e nòs ... Talvez este corpo que hoje produz a alma ,
que te dirige estas linhas , que prefere o soffrimento á quietação
condicional dos seres subordinados ás vontades alheias, amanhã já
não exista e nem ao menos meus filhos poderão saber o lugar em
que a bala fratricida privou -me da vida.
Ao entrar em casa encontrei reunida e alegre a familia de
Fonseca ; eu porém, não podia accompanhal-os, como sempre, n'a-
quella alegria intima das familias modestas e de limitadas ambições.
Dirigi-me para o gabinete d'elle e ali conservei-me.
Fonseca, além de sua bondade incomparavel, é um poeta que
sabe comprehender as dores alheias, como os que soffrem ; sabe sen-
tir, por isso deixa-me só, entregue ao meu pensamento, que agora
fecha os olhos ao presente, foge de pensar no futuro, mergulha- se
todo no passado, n'esse passado em que foste a parte integrante do
meu ser, a protogonista da minha existencia , a fonte unica dos
meus sonhos de futuro....
O mundo é isto .
O homem chega a um ponto em que é obrigado a pensar
I seriamente no futuro. Amanhã tem que entrar na vida real do tra-
balho , com responsabilidades e resultados immediatos ; sonhador, en-
cara- o e vê diante de si um horizonte vasto , sem limites , onde o
trabalho ha de dignifical-o, onde o esforço e a coragem, nas lutas in-
cruentas , lhe darà um dos primeiros lugares entre os seus confrades.
Parece que tudo está disposto ; mãos á obra e o resto ao futuro.
Mas elle sente que alguma cousa lhe falta . Marchar só, não é justo,
porque, para esse futuro, essa fortuna que tem ou que pensa ad-
quirir, para quem deixar? esse nome, que ambiciona , a quem o ha de
legar ? Pensa na próle, mas para isso precisa de uma companheira.
Procura com cautella ; pela primeira vez na vida, com calculo ;
112

encontra afinal no seio de uma familia um ser que lhe agrada, por-
que reune em si os predicados que buscava. Amam-se, unem-se.
Leva- a consigo . Se a primeira noite que passa fóra do tecto paterno
vê-a chorar no sonho e desperta-a, tendo remorsos de leval-a para
longe, a ella tão criança, tão meiga , tão querida dos seus, resolve
a contrariar- se, a deixar de ser dos primeiros , onde pensa viver,
para şer dos segundos , onde ella vivia. Desperta-a e pergunta- lhe :
queres voltar ?
-- Não.
― Porque choravas, então ?
-Eu sonhava que via minha mãe enferma e por isso chorava.
E cercando-lhe a cabeça com os braços diz- lhe ao ouvido : -Eu sou
tua, eu te seguirei para onde quizeres . E elle sente- se orgulhoso
'd'esse amor, d'essa dedicação .
Ser amado por uma alma de anjo, que mais pode desejar o
homem ?
Vêm depois os filhos, fortes, robustos, bellos, sadios .
Para fazel - os felizes não precisa mais do que educal - os e
mostrar-lhes o caminho extenso a percorer n'uma patria de direitos
garantidos . Já os vê no futuro, n'essa luta do progresso, sem saltos ,
sem commoções -- Progredior.
De repente, sente que o horizonte da patria se obscurece ; não
imperará mais n'ella o trabalho, o esforço, o merito ; o que vae do-
minar é a força, é a surpresa, é a intriga, é a cilada, é a traição .
E essas calamidades são como os entozoarios - pullulam na
reproducção .
O que será, portanto, dos filhos por quem tanto sonhára ? o
que lhes esperará na patria, se ella não for digna, para que os
movimentos d'elles sejam voluntarios e methodicos ?
Tudo perdido ! A esposa embala nos joelhos o mais novo d'elles ,
tem oito dias de nascido apenas ; o esposo aconselha- lhe dar- lhe
o nome de Telemaco, ella sabe a lenda de Fenelon e por isso olha- o
surpresa. Os outros dormem, elle beija- os todos como de costume.
---- Onde vaes ? pergunta. Uma pequena viagem, voltarei breve ;
adeus.
Onde vae elle ? leva uma arma occulta, lagrimas nos olhos,
mas um raio de energica vontade no olhar. Vae aplanar o cami-
nho para os filhos, vae lutar pela Patria ; e luta, e soffre e não
sente o cansaço , nem as dores; mas á noite, quando todos dormem ,
o espirito toma azas e vôa. Para onde ? não sabe.
A esposa e os filhos dos proscriptos , dos que lutam contra a
tyrannia, não têem morada certa ; quem os ampara ? Talvez ninguem ,
talvez uma alma boa entre os extranhos, mas seja onde fôr que
estejam, a alma chega ali, vê- os, beija-os, consola-os, enche-os de
esperanças ....
113 ----

Toca á alvorada, começa a luta e os perigos ; quando os verá ?


logo . Muito longo talvez ainda o tempo a percorrer, talvez inter-
minavel, e lá nos pontos onde nasce a oppressão, onde se forjam
os planos de anniquilamento, dansa -se e festeja-se, e as esposas d'elles,
talvez bôas, talvez megéras, não se lembram o que soffrem as des-
ditosas, e as mães rindo -se para os filhos, não pensam no futuro ,
n'esse amanhã mysterioso, e não dizem a esses paes : Abandona essa
loucura de querer dominar á força, não é a elles que estão matando,
porque não se mata um povo ; é o futuro, é a tranquilidade de 曹 teus
filhos que estás destruindo. Se o futuro é a recompensa para uns,
é a punição para outros ....
8 de Dezembro.
Entrei hoje na igreja onde havia uma pequena festa á Con-
ceição .
A arte fez bem em crear imagens que representam o mar
tyrio e o triumpho dos martyres ....
Santa, quanto pensei em ti !...

O coronel Gaspar Barreto veio mostrar-me um escripto, que


deve ser assignado por todos os officiaes da columna do general
Salgado, compromettendo-se a accompanhal- o em todo o terreno .
Consultando-me a respeito d'isso, respondi- lhe que julgo inconveniente
tal manifestação, visto não haver quem se manifeste contrario ao
general, e que n'este corpo de exercito tem elle sido sempre obede-
cido, respeitado , podendo tal manifestação dar idéa de que ha
alguem contrario a elle.
Julgo portanto, superfluo isto, e será prejudicial se o fizerem ,
porque, ou servirá para demonstrar que elle já não gosa da nossa
inteira confiança, ou como consta , que elle no Desterro está em
luta aberta com o governo provisorio, e por tanto esta manifestação
servirá para que elle se imponha e não conseguindo , ficará este
corpo de exercito inutilisado, obrigando-se a acompanhal-o para
onde för e elle não podendo operar por si sò .
Iamos para o espectaculo no theatrinho e por isso adiamos
a nossa conversa para o outro dia. No theatro, o coronel Felippe
Portinho falou- me a respeito, e eu respondi-lhe que Gaspar já me
havia falado, e expuz-lhe as minhas idéas. Soube depois que o ma-
nifesto tinha sido assignado e enviado, negando -se sómente o coronel
Vasco Alves que, sem conversar conmigo, tinha pensado como eu.
Noto que as coisas continuam mal, visto o coronel Lerina, do
estado maior do general Salgado , ter recebido ordem d'elle para se
postar na estação telegraphica, onde, segundo uns, fiscalisa os tele-
grammas, segundo outros, tira as copias dos telegrammas da cor-
8
114

respondencia do general Salgado, o que não acredito, porque o


general máis de uma vez disse- me que só o que é escripto tem valor
e exige a titulo de documento, papeis insignificantes, e portanto,
não pode deixar de ter guardado copia de sua correspondencia.
Por outro lado, no Desterro, ha tambem fiscalisação , porque,
indo eu passar um telegramma para ali, respondeu -me o estacionario
que o telegramma só seria entregue depois do visto do chefe dos
telegraphos, se o governo provisorio achasse conveniente. Debalde
procuro, nas visitas que faço aos accampamentos, fugir de entrar
n'essas pequenas coisas que, como um atomo de ar mephitico, podem
anniquilar o corpo mais sadio. Debalde busco, generalisando os factos,
mostrar como nossa marcha até aqui foi uma epopéa, que, se nos
esforçarmos, perseverarmos , o nosso triumpho será certo.
A inacção, o máo passadio , o clima, as areias , e as aguas
estagnadas dos acampamentos, concorrem para irritar os animos ;
uns lamentam terem vindo do Rio Grande, outros accusam os que
julgam causadores do nosso estado aqui, outros ainda, segundo
antigo costume, calam-se, delegando o direito de pensar a outros ;
emfim , isto faz lembrar a lenda biblica, a confusão das linguas em
Babel, ou as scenas do deserto quando Moysés escrevia no Sinai o
codigo que devia conservar forte o povo, que elle arrancara do ca-
ptiveiro dos Pharaós, com a differença de que, voltando elle, pode tudo
corrigir e organisar ; e , se nós temos a desordem, falta-nos um
Moysés.

Dançava-se em casa de Fonseca e eu lia no meu quarto , aonde


procurou-me um amigo para avisar-me de que telegrammas do
Desterro annunciavam que Guerreiro Victoria e Apparicio Saraiva
lutavam energicamente com as forças do general Lima e Pinheiro
Machado , no Itajahy, e que as forças de Laurentino seguiriam ás
3 da madrugada para ali, afim de auxilial- os .
Encommodou-me saber d'essa luta, sem que elles tenham là
um medico junto de si . Immediatamente preparei-me para ir com-
partilhar com elles os soffrimentos e as glorias.
O general Salgado ainda se acha no Desterro. Perguntei a
alguns officiaes se as forças d'elle não receberam ordem de estar
em promptidão. Responderam-me que não. Se essa columna marchasse
para o Itajahy, todas as pequenas coisas desappareceriam, mas des-
graçadamente ella vae ficar aqui, o que prova que as desintelligencias
cada vez se accentuam mais.
Apesar de se ter marcado para as 3 horas da manhã, só
podemos sahir ás 9 , deixando eu encarregado do serviço sanitario
o Dr. Fonseca .
-- 115 ---

Ao passarmos pelo acampamento das forças do general Sal-


gado, os officiaes da expedição foram ao quartel general do coro-
nel França, com musica, comprimental-o, e eu lá fui despedir-me
d'aquelles bons companheiros, aos quaes declarei que espero em
breve vel- os marchando para diante.
Muitos vieram perguntar-me se deviam ir para onde estavam
brigando os companheiros do sul ; respondi-lhes que não, que pre-
ciso não sahir fóra das ordens do chefe e que caso fossem preci-
sos mais recursos, sem duvida alguma elles teriam de ir, porque
o general não abandonaria seus companheiros.
Que se eu ia para ali, era porque, como medico, meu lugar
deve ser sempre onde se trava o combate, e apresentei lhes o Dr.
Fonseca, que me substituirá com vantagem.
*
**

A nossa demora foi grande no Porto do Imbituba.


Tivemos de esperar um trem vindo da Laguna, trazendo ,
creio , papeis que lá se esqueceram, de modo que, sendo urgente
a marcha para poder-se chegar ao Itajahy a tempo de se poder
soccorrer os companheiros , só à tarde a emprehendemos.
No outro dia pela manhã ancoramos no porto do Desterro,
quando se julgava que nem por ali deviamos passar, indo directa-
mente ao Itajahy.
Houve prohibição de desembarque, porque não nos deviamos
demorar. A resistencia dos nossos, conforme telegrammas, continua-
va tenaz e brilhante. As nossas forças, porém, estão cançadas e
não têem artilheria, portanto, qualquer auxilio que lhes levemos
fará pronunciar-se a victoria em nosso favor.
Tive occasião de notar um facto que vae ser motivo de
desagrado nas forças . O major Azevedo, alumno da escola militar,
que, com outros companheiros, desertaram das fileiras do exercito,
para compartilharem dos soffrimentos dos revolucionarios e a quem
o general Salgado distinguia como aos seus companheiros , dando- lhe
immediatamente o posto de major, abandonou as forças d'elle e se
apresentou a Laurentino, que lhe tirou os cadarços da majoria entre
os companheiros do sul e deu-lhe um galão de alferes, que os seus
companheiros modernos lhe pregaram no braço, como honra.
No salão do vapor, quando só com elle e Laurentino , eu quei-
xei-me d'isso. Elle tinha sido um companheiro d'aquelles gauchos
durante quasi cinco mezes. Conhecia o esforço e sacrificio d'elles,
sacrificio que se tornava mais intenso, abandonando a terra natal .
Ali estavam officiaes e soldados que nada percebem de lucros e
nenhuma honra têem senão os postos, em muitos ganhos com sacri-
ficio . Se vieram para o norte é por que julgavam que vinham para
o meio de revolucionarios.
- 116 --

O facto de elle abandonar seu posto de major, acceitando o


de alferes no exercito do governo provisorio, dá a entender que
os revolucionarios do sul não são mais do que instrumentos , que
serão aproveitados hoje e abandonados amanhã, quando não sejam
precisos. Se elle tivesse passado com as mesmas honras, como o
major Pianelli e outros, estaria bem, e a isso o general Salgado não
se poderia oppôr ; mas baixar da graduação que a revolução lhe
deu , ficando na revolução, é indicar a seus ex-companheiros, já ap-
prehensivos, que elles não gosam do conceito que merecem .
Respondeu-me que, como militar, procurava as forças regula-
res . Respondi-lhe que aquellas forças não são regulares, que o go-
verno provisorio é a mesma cousa que qualquer chefe de forças ;
que as de Laurentino, que elles chamam regulares, são compostas
de marinheiros que lutam por uma causa justa, mas que, em rela-
ção á disciplina , são considerados revoltosos ou rebeldes , se não tri-
umpharem .
O batalhão Fernando Machado é de patriotas, e 0 25° de
linha capitulou á força de armas, portanto, não vejo onde está a
regularidade, principalmente sendo o chefe d'essas forças um pai-
sano.
Ficando só com Laurentino , elle falou-me na conveniencia de
passar-me eu para as forças d'elle, para organisar um corpo de saú-
de regular e n'este posto conservar-me no exercito no futuro.
Respondi-lhe que não, que não tenho estas pretenções futuras ,
que aqui estou pura e simplesmente como brazileiro, como cida-
dão e que depois do nosso triumpho hei de trabalhar para termos
um exercito alheio ás lutas politicas , o que não pode ser formado
d'este que luta por uma causa e que portanto é partidario .
N'esta occasião chegou a bordo o almirante Mello e depois
o Dr. Annibal Cardoso, ministro da guerra do provisorio. Custodio
abraçou-me com affecto e conversamos algum tempo.
Eu disse-lhe que precisamos marchar quanto antes, a auxiliar
os nossos companheiros cançados de uma marcha tão longa e de lu-
tas desde Fevereiro até Dezembro.
Referindo-se a mim, disse Laurentino : Aqui está o Dr. Dou-
rado que veio sem ser convidado por mim, e o general Salgado ha
de pensar que eu o convidei para vir.
"Perdão, disse-lhe eu, não vim comsigo, pedi-lhe apenas passa-
gem no transporte ás suas ordens até o Itajahy ; demais eu sou o
chefe do corpo de saúde que vem do sul, meus companheiros es-
tão brigando, precisam portanto de mim.
Não vim aqui para ser agradavel a ninguem, por que não
sigo a homens , sigo a ideas e obedeço a mim mesmo , e é por isso
que estou na guerra. Se o general Salgado se encommodar, pouco
117 -

importa ; não foi elle quem me trouxe cá e não commetti indis-


ciplina vindo para junto dos companheiros que lutam."
O almirante appoiou - me, dizendo se todos pensassem assim,
tudo iria bem.
Ao retirarem-se, eu falei ao Dr. Annibal sobre a inconveni-
encia do serviço sanitario com esta differença de corpos irregulares
e regulares ; que no Itajahy talvez tivessemos de sendir isso. Que
provavelmente eu seria chamado a prestar serviços a tropa de li-
nha, e se minhas ordens não fossem cumpridas, eu não poderia
prestar taes serviços .
Respondeu-me que ia pensar, e eu disse-lhe note que eu não
pretendo effectividade.
Eu insistia n'isso porque sabia o desgosto que ia nascer entre
os nossos por causa d'estas excepções, depois que elles vissem o
major Azevedo com o galão de alferes.
Só á tarde levantamos ancora em direcção ao Itajahy.
O canal da Bahia muito estreito e muito cheio de curvas, e
a maré tão baixa que o movimento do navio revolvia as areias a
ponto de toldar as aguas, o que demorava a nossa marcha, de modo
que, só ao sol poente , podemos sahir d'aquelle labyrintho .
Ao sahir do estreito, avistamos o Aquidabam e o Republica
ancorados. Este, na sua qualidade de cruzeiro agil e parecendo re-
soluto a emprehender as commissões mais rapidas, mais arriscadas ;
aquelle, como um gigante adormecido , parecia resonar pelas val-
vulas de suas caldeiras, sempre aquecidas, a espera da hora de ser
chamado para a luta, consciente de que no seu primeiro bocejo im-
primirá tal vibração na athmosphera que o inimigo não terá ar para
respirar na sua approximação .
A marinhagem cuidava dos navios. Uns limpavam os ferros
e os metaes, outros debruçavam - se como em afago sobre aquelles
canhões monstruosos ; afago do atomo consciente ao colosso instru-
mento.
Nosso navio passou por entre elles. Os marinheiros nos
olhavam, os officiaes subiram ao toldo. Eram quasi todos moços,
a maior parte, crianças .
Sabe-se a bravura que essas crianças têem desenvolvido e
estão promptos a desenvolver. São rebeldes, mas com a rebeldia
dos que ainda sentem na alma o fogo santo do amor da patria,
que interesses sordidos aviltam, afagando a tyrannia que na sua
insensibilidade a destroe . A rebeldia dos que tudo abandonaram ; o
lar, o bem- estar, o futuro, para irem só com os corpos e a vontade
pela trilha dos sacrificios, levar a vida em holocausto ao altar da
Patria cujo nome é preciso reinvindicar com a serenidade dos
martyres, esquecendo o soffrimento e a morte que actuam sobre
elles, olharem para o futuro e dizerem : " Não viemos por intereses
118

mesquinhos. " Sacrificios como estes não se podem medir çom a


medida dos interesses individuaes. 1

Debruçado no canhão de tiro rapido, na prôa do nosso navio,


eu olhava para aquelles nobres abnegados, e monologava enthusias-
mado Brasileiros, são brasileiros, todos estes são brasileiros ; " e
os olhos se me enchiam de lagrimas lembrando-me de que, se meus
filhos fossem mais avançados em idade, estariam juntos a mim, nobi-
litando-se n'este mar yrio.„.
Pela manhã avi-tamos um vapor com a nossa bandeira ; ao
approximarmos sonbemos que trazia forças do exercito de Gomer-
cindo. Que haveria acontecido ? que desgraças teriam succedido ?
seriam todos elles feridos ?
O mar um pouco cavado e as ondas divergentes produzidas
pela manobra dos dois vapores, tornou o embarque em um bote um
pouco difficil, por isso n'uma anciedade cruel, esperei os que lá ti-
nham ido. Afinal voltaram. Uma desintelligencia entre Guerreiro e
Apparicio, diziam uns ; entre Arthur Maciel e Guerreiro, diziam
outros, tinha dado em resultado embarcarem- se, e o inimigo entrar
na cidade .
O meu amigo Vasco Martins, ferido, alguns companheiros
mortos.
Voltavam para o Desterro e Apparicio com as outras forças
seguira para onde estava Gomercindo. Voltamos tambem para o
Desterro.
Sempre isto. Sempre uma pequena trave embaraçando a sce-
leridade de nossa marcha triumphante em que a vontade mais de uma
vez tem superado todos os obstaculos, em que só a nossa bravura
tem dominado o furor das balas inimigas ; e quando pensamos que
tudo vae encaminhar-se, que cada qual vae comprehender a respon-
sabilidade propria, portanto, tornando-se homogeneas as nossas von-
tades, um dito, um gesto, desfaz tudo no meio dos maiores perigos,
nas proximidades de uma victoria talvez decisiva.
Crianças a brincarem com bolhas de sabão. E por que demora.
mo-nos tanto ? porque não marchamos da Laguna ás 3 horas, como
se havia dito, por que passamos pelo Desterro, quando se dizia
que iamos directamente ao Itajahy ?
Se ali tivessemos chegado, talvez esse triste incidente não
se tivesse dado.
Foi isto que me preoccupou o espirito depois.
No outro dia pela manhã, no porto do Desterro, ainda não
havia ordem para desembarque. A's 8 horas mais ou menos, o
general Salgado com o seu estado- maior embarcou-se n'um trans-
porte e seguio para a Laguna , onde se acham suas forças.
Tenho esperança que n'esse mesmo navio elle voltará com
ellas, para, encorporados, destroçarmos o inimigo. O major Theophilo
― 119

Cardoso, casado com uma parenta da mulher de Fonseca , exigio


que eu fosse para sua casa, ao que accedi, por achar-me completa-
mente sem recursos para hospedar-me no hotel. Encontramos um
filhinho d'elle doente e tomei a mim medical-o . Contraria-me porém ,
a estada em sua * casa, comquanto sua digna familia se desvele em
obsequiar-me, mas comprehendo que tendo um filho doeute , ter se
um hospede è alguma cousa importuno.
Acha- se no hotel o Dr. João de Menezes Doria que diz nu-
trir por mim, ha muito tempo, as mais vivas sympathias. Convidou-
me para hospedar-me ali com elle e eu acceitei, sendo para isso
preciso acceitar-lhe tambem alguma roupa, porque a que ha pouco
mandei fazer tive de a distribuir pelos companheiros nús, e a que
me ficou já não serve para sentar- me com ella n'uma mesa de
hotel.

Doria é um dos chefes paranaenses ; é medico intelligente e


bem preparado.
Sua vida desde a infancia tem sido uma luta de quem tem
sahido sempre triumphante ; isto só bastou para tornar-me amigo
d'elle.
Apenas nos aproximamos um do outro, nossa conversa cahio
sobre a situação.
E' a peior possivel, ninguem se entende. O general Salgado
abertamente em opposição ao governo provisorio ; a marinha abor-
recida com isto, e o governo, por seu lado, procurando crear um
partido official. Já alguns companheiros distinctos como Seabra,
Anfrisio Fialho, Dermeval da Fonseca, se retiraram entristecidos
por verem a marcha babelica da revolução aqui.
Parece que já não ha mais guerra, que nada resta mais do
que montar os partidos e, para cumulo de tudo isto, o almirante
Mello enfermo ; foi examinado por Doria que me fez exposição do que
encontrara e o seu diagnostico me poz em séria cogitação .
O seu estado a bordo, logo depois de declarada a revolta, as
apprehensões, as traições, a duvida, tinham sido causa d'essa affe-
cção que diminuia-lhe as forças, e quando mais preciso é elle ,
para com sua autoridade uniformisar a marcha da acção, temos que
receiar que sua vida se estinga de um momento a outro.
Em todo o caso convém não deixar transpirar os nossos te-
mores.
Nas poucas horas que saio, ouço relatar publicamente o que
se passa aqui.
No hotel, ao almoço e jantar tem havido discursos enthusi-
astas como em meetings.
- 120

Alguns rio-grandenses distinctos immigrados aqui, prevêem um


desastre infallivel e já ante- soffrem o que se lhes prepara no futuro.
Indo á casa da irmã de Felippe Portinho, senhora energica e
intelligente, ella, aborrecida, disse- me.
"Os que moram nas cidades não sabem o que soffrem os da
campanha. E' por isso que vêem para cá fazer politicagem e acabar
com tudo ."
Ao que respondi : os que procedem assim não é por mo-
rarem nas cidades, mas sim, ou por que procuram meios para se
retirarem, ou para se tornarem sympathicos aos adver-
sarios.
A não ser a intriga, nada mais se faz. O chefe Lorena visi-
tou me no hotel e eu não lhe paguei a visita com receio de que a
minha conversa não seja agradavel.
Achava-me à tarde á janella e elle passava com o almirante
Mello e vendo - me, perguntou-me quantas visitas seriam precisas fa-
zer-me, para que eu me digne ir a palacio, pois já duas vezes
me tem procurado.
Respondi-lhe que julgo estarem muito occupados e espero
que se desoccupem para lá ir.
Maior razão para ir, disse elle, nos ajudará, é um dos maiores
patriotas que conheço e póde calcular quanto nos será util na
palestra.
Felizmente chega-nos a noticia da grande batalha do Rio Ne-
gro, no Rio Grande do Sul. Pelo que narram, é um feito de armas
excepcional na historia das revoluções, em que homens quasi desar-
mados , dando batalha a forças regulares, commandadas por um mare-
chal de bravura provada, vencem.
Eu esperava que o governo provisorio fizesse manifestações
publicas de acto tão encorajador para a revolução ; manifestações que
despertariam o animo adormecido de muitos e, fazendo nascer a
esperança do proximo triumpho, poderiam harmonisar todos estes,
que parecem desejar um termo pela defecção , e quando assim não
fosse, estimulariam aos retardatarios , levando- os a procurar lutas onde
sejam vencedores, para no fim poderem mostrar os louros colhidos nos
combates.
Estas demonstrações não se fizeram, e eu não quiz escrever
uma linha sobre aquella batalha. Comprehendo que a nossa victoria
depende somente da acção, que as palavras já não servem .
Conversando com Doria, este mostrou-me as vantagens de
seguir para adiante o exercito revolucionario .
Nossa demora é prejudicial. A victoria do Rio Negro porá
em pouco o Rio Grande em nossas mãos, e occupados os Estados
do Sul, a esquadra bloqueando todos os portos, o Sr. Floriano será
obrigado a abandonar o governo e o paiz se organisará. Nossa volta
121

para o sul é difficil por falta de recursos para a grande jornada ;


destroçado na campanha o Dr. Julio de Castilhos se fortificará na
serra, onde , nas condições em que nos achamos, não poderemos
entrar.
A zona, que devemos percorrer para chegar ao Rio Grande ,
está completamente exhausta de recursos .
As forças do Sr. Floriano que se acham no Paraná, marcha-
rão na nossa retaguarda e entrarão no Rio Grande com elemen-
tos para a luta, quando nós já não os temos ; portanto, só ha um
caminho a seguir, para não parecermos fugitivos da posição em
que nos achamos é seguir para o norte, destroçar as forças de
Lima, avançar sobre o Paraná de combinação com a esquadra, amea-
çar S. Paulo cuja maioria da população é favoravel a nós.
Os gaúchos do sul chegando á capital federal, para mostrar
que não têem valor somente montando em cavallos e agitando as
lanças na campanha.
Um poema digno dos tempos mais heroicos que a historia re-
gistraria.
Escrevi ao general Salgado pedindo para conversar com o
Dr. Gama a quem encarregaramos de narrar tudo que não devia-
mos confiar ao papel. Doria escreveu-lhe tambem um cartão que
foi dentro de minha carta.
Dependia d'elle abandonar aquelle pequeno lugar, onde as
recriminações apagam os sentimentos bons, para sò darem lugar á
desconfiança.

Acaba de chegar o Dr. Arthur Maciel e com elle o capitão


Alvaro, filho do conselheiro Silveira Martins. E' um rapaz valente
e intelligente. Costuma sempre falar-me sobre o que pensa. Veio
dizer-me que aqui se procura desprestigiar o nome e a influencia do
chefe rio-grandense.
Respondi - lhe que isso não tem importancia alguma, que seu
pae tem um nome universalmente conhecido no Brazil e que o seu
prestigio no Rio Grande, não pode ser destruido em pequenas ma-
chinações, que o que é preciso é fugir de trazer o nome d'elle para
as discussões e que os que procuram appoiar- se n'elle para seus
planos, são amigos ursos ; que o que é preciso , é lutar e vencer.
Vencido o Sr. Floriano cada qual occuparà o lugar que de direito
lhe pertença, porque depois de uma luta como esta, o povo quererá
eleger e não obedecer ás designações.
Mas, o governo provisorio é cassalista, disse elle.
Que nos importa isto ! respondi-lhe . Se elle pensasse em
nossa situação, veria que, triumphando comnosco, poderia marchar a
- 122

nosso lado, mas querer desde já criar partido official, é não vêr que
quem luta contra o Sr. Castilhos, appoiado pelo Sr. Floriano, lutará
contra quem quer que seja que queira se oppor ou desviar a sua
vontade.
Alvaro ficou satisfeito e eu recommendei ainda que se esforce
para não envolverem o nome de seu pae nas discussões.

**

O Dr. Santos emprestou- me cem mil reis. O Dr. Alfredo


Benjamin , um bom amigo de outros tempos, deu- me cincoenta mil
réis. Doria me pagará as despezas do hotel. Como estou rico ! Te-
nho 150$000 no bolso ! apalpo - os a toda hora, parece que nunca
tive tanto dinheiro em minha mão.
Só assim se poderá calcular a riqueza dos que só precisam do
necessario para viver.
Costa, um amigo que conheci no Rio Grande, offereceu-me um
jantar em sua casa, onde móra com a familia de um seu irmão , já
morto, que tambem conheci em Porto Alegre. Deixou duas filhas :
uma está casada com um militar, a outra attinge os seus 17 ou 18
annos.
E' morena , de olhos grandes e negros, cabellos longos e ex-
pessos ; é bonita, mas de uma boniteza triste e modesta. Creio que
à nossa Chiquinha, quando crescer, se parecerá muito com ella hoje.
Olhando-a, parece-me vêr nossa filha d'aqui a 7 ou 8 annos.
Vel-a... poderei contar com isso ? Imagina a afféição que
consagrei a essa moça em quem parece-me ver agora minha filha ,
quando tiver a sua idade e talvez como ella orphã....
A vinda do Dr. Arthur em nome de Gomercindo, produzio
algum movimento, porque temos ordem de marchar hoje mesmo á
tarde.
*.

Fui a palacio, já prompto para a marcha, despedir -me do chefe


Lorena e do almirante Mello . Encontrei ali o Dr. Annibal Cardoso.
Perguntei-lhe pelo Sr. Mourão, ministro da marinha .
- Aqui não ha mais ministro, nem da marinha, nem de
guerra ; sou eu só, respondeu-me com ar pilherico.
-
Bem, disse eu ; que não nos faltem armas e munições e
tudo irá bem.
Segui para o porto em companhia de Doria que vae assumir
a chefia do corpo de saúde do exercito do norte, ao mando do
general Piragibe, por nomeação do governo.

*
123

O embarque de forças para uma batalha é sempre digno de,


observação. Em todos que ali vão, dois sentimentos dominam : um
é o da saudade, a incerteza de quem marcha para o desconhecido ; on-
tro, o do dever, o do brio, o do desejo da victoria e do nome de heróe
no futuro.
O nosso embarque ali tinha sobre tudo uma nota caracteris-
tica Vinha comnosco o batalhão Fernando Machado, organisado
na cidade do Desterro, composto de filhos d'ali, quasi todos rapazes
das melhores familias, vivos, sadios , bellos como Telemaco , já senho-
res de todas as manobras, promptos nos movimentos, physionomias
francas e o olhar vivo .
Commanda- o o jovem militar João Nepomuceno Costa , depu-
tado estadoal.
E' uma verdadeira ala dos namorados, disse eu, quando os vi
marchando.
Quando cheguei ao porto, ja elles embarcavam ; musica em
terra, musica a bordo ; o cáes cheio de gente, de familias , falas,
ditos, saudades que molhavam os olhos, esperanças que alegra-
vam as faces.
Gritos que já não se ouviam partidos do vapor, phrases de
terra que já não chegavam lá. Todos de terra tinham o pensamento
n'aquelle navio, todos d'aquelle navio deixavam a alma n'aquella
terra.
Mas era preciso partir.
Quanto mais rapida é a acção nas guerras, mais depressa
voltam os que podem voltar.
O almirante e Lorena achavam-se ali. Conversei com elles um
pouco , depois vendo que muitos me olhavam e falavam de mim ,
me dirigi aos diversos grupos, conversando com uns e com outros .
Conversando alegre com as senhoras, para mostrar como o sa-
crificio pela Patria não dóe, e que os esposos, os irmãos, os noivos,
e os filhos voltariam em breve ufanos pelo muito que fizessem.
Uma senhora pallida, bonita, com longas transas pendentes,
dava o braço ao marido e creio que me ouvio, e por isso passou-
lhe o braço pela cintura como para retel -o , como quem dizia : tu
não irás.
Deve-te ser mais agradavel estar perto de mim, do que estar
lutando por essa Patria, de que fala este homem.
Eu te prefiro aqui a te ver voltar heroe e mutilado.
Se o meu pensamento é realmente o que se passava n'ella,
quem sabe se não tem razão !
Mas não. Não póde ser.
A mulher que ha de ser mãe n'uma Patria, preferirà, sem du-
vida, ser viuva ou esteril a ter esposo que lhe dê filhos para vive-
rem na ignominia. Eu creio que deixaria de te amar se quando
- 124 ―

empunhei as armas para a luta, em vez de me dizeres como dis-


seste Vae, eu trabalharei para nossos filhos, que não hão de mor-
rer de fome ; tù me dissesses fica , deshonra-te, porém fica .
Olhando para o lado da casa de Costa cujo pateo dà para o
mar, lá vi sentada n'uma pedra a sobrinha d'elle . Fui dizer-lhe
adeus . Estava chorando ; com a face appoiada na mão, olhava
o navio.
Porque está chorando , perguntei-lhe. E' porque vês estes
bravos que se dignificam, ou porque ali vae tua alma com teu noivo ?
Ella difficilmente me pôde responder : Não, não tenho noivo : é
meu irmão que ali vai .
Tranquilisa- te que elle ha de voltar, disse-lhe e afastei-me.
Minhas filhas chorarão tambem pelos irmãos, se não trium-
pharmos contra a tyrannia, se não forem punidos os indignos , que
pelo interesse proprio lançaram-nos n'esta guerra fratricida, em que
nem depois das victorias tem-se um momento de prazer.
Ao cahir da noite levantamos ancora e a cidade sumiu-se ao
longe, mas aqui comnosco vêm os seus habitantes na memoria dos
que marcham, que falam com elle nas lagrimas silenciosas que vertem .
O navio que nos conduz é o Urano, commandado pelo bravo
Costa Mendes. Urano é a Salamandra tornada uma verdade. En-
trar n'este navio depois de saber a sua historia, sua sahida do Rio
de Janeiro, debaixo de um fogo cruzado de todas as fortalezas, de
canhões monstruosos , - elle um navio mercante, todo de madeira ,
sem ao menos ter armas capazes de responder ao bombardeio , atra-
vessado de lado a lado pelas balas, voando tecto e paredes em es-
tilhaços, pelo explodir das granadas, fazendo agua por todos os
lados, os gritos dos feridos, o horror d'aquelle punhado de bravos
martyres, vendo voar por toda a parte os pedaços de companhei-
ros, o sangue a correr tornando escorregadiço o assoalho, parado em
frente ás fortalezas por se ter arrombado a caldeira, resignação
d'aquelles héroes que tinham em plena luz a morte pela metralha,
em baixo a morte, no fundo do oceano, ouvindo em terra as festas,
os gritos de victoria, por julgarem mortos aquelles brasileiros
abnegados, e um pobre machinista, um bahiano, a dizer ao com-
mandante " que não se encommode, o navio ha de marchar, temos a
caldeira pequena e ella ha de servir. "
E em pouco segue esse navio phantasma, com a marcha len-
ta dos mutilados, em busca do alto mar, - é sentir- se alguma cou-
sa fóra do natural, um sonho que nos absorve accordado. Ouvem-se
as narrativas, vêem-se os destroços, contempla-se os marinheiros
com as cicatrizes das queimaduras ainda abertas, se crê porque se vê,
mas é tão extraordinario , que ainda mesmo vendo-se, parece mentira .
E o que ia ali fazer no alto mar, se parecia inutilisado para
vogar até nas aguas placidas de uma lagôa ?
- 125 -

O que ia fazer ?.. disse-o depois, porque elle levava homens


cuja vontade é a força e o triumpho.
Se a lei da crença dizia •"tende fé que transportareis mon-
tanhas. ,, aquelles bravos poderiam dizer : persistamos em nossa
vontade que chegaremos ao termo de nossa jornada, n'esse navio
esphacelado ;,, E trabalharam, remendaram, improvisaram machinas e
amuradas, arrostaram as ondas dos mares do sul e chegaram, re-
divivos como n'uma resurreição . Sahidos d'aquelles dois elemen-
tos de morte, - as balas, as metralhas, as lanternetas bailando com
uma musica funebre de sibilos, de roncos, de trovões, clareados
pela luz mortuaria sahida com a detonação de centenas de boccas
de fogo, como cratéras, e do fumo que enegrecia o horizonte, - o
mar revolto, ondulante, n'um bramir constante como quem esperava
os naufragos e dizia : aqui no meu seio repousareis , jà que na ter-
ra de vossa patria não podeis viver.
Os marinheiros do Urano, esses intemeratos lutadores do mar,
têem medo ainda hoje de passar sosinhos á noite por alguns dos
compartimentos do navio, sobretudo n'aquelle, onde uma granada só,
matou a todos que ali se achavam, fazendo espadanar a carne e o
sangue d'elles, como a espuma de uma onda, que se quebra no costado.
O navio, que ainda não foi pintado, mostra as paredes enne-
grecidas pelo sangue, e no tecto vê- se pedaços de carne humana, que
ali aglutinou- se e seccou. Ainda se tropeça em balas monstruosas que
The foram arrojadas pela Santa Cruz e pela Lage, mas que chegan-
do já frias, não causaram outros damnos senão os rombos do costado .
Marchamos á noite e esse navio que no Rio de Janeiro foi
tido como submergido, com seus pharóes de diversas côres , como
olhos de pyrilampos monstruosos, parece phantastico, conduzindo
estes homens que buscam a morte, já que lhes tolheram a liberdade .
Doria e eu, nos accommodamos em um beliche de um dos
officiaes de bordo, que o commandante obteve para nos ; difficil po-
rém era transitar, porque até os corredores estavam cheios de sol-
dados e officiaes que ali dormiam.
Tendo necessidade de sahir á noite, tive de saltar pela ja-
nellinha.
Pela manhã dirigi -me para a prôa, onde cuvia a conversa de
diversos. E' de grande vantagem ouvil-as dos soldados nas suas
palestras intimas, para conhecer- se-lhes o animo e as disposições .
Quando voltava para o meu beliche vi sentado na amurada
um marinheiro, que lia um livro com muita attenção . Approximei-
me e reconheci no livro uma grammatica portugueza, em que elle
estudava as conjugações dos verbos . Quando cheguei à minha janel-
la ali encontrei Laurentino Pinto, conversando com Doria. Narrei-
lhes o que acabava de vêr. Digno de elogios, disse Doria.
Sim, respondi. Honra-nos mais um só d'esses marinheiros
― 126 ----

que trabalha para falar bem a lingua da sua patria, do que milha
.
res d'esses philosophos que mandam matar em nome da religião
da humanidade.
O Itajahy, onde chegamos cêdo, estava abandonado ; apenas
avistamos nas ruas alguns individuos de calças com listas vermelhas,
que fugiram com a nossa approximação.
Disseram-me serem desertores de Pinheiro Machado. As for-
ças d'esse caudilho da legalidade que se achavam na margem, ha-
viam fugido em caminho de Blumenau acossadas pela artilheria do
brave commandante Moraes Ancora que, aproveitando-se da cres-
cente do rio, subio até o ponto em que ellas acampavam, não se
lembrando que uma vasante rapida poderia conservar seu navio ali
encalhado e que n'este caso a sua pequena tripulação seria victima
d'aquellas numerosas forças.
Moraes Ancora saltou no Itajahy e indo fazer um reconheci-
mento, encontrou cento e tantos cadaveres das forças inimigas que
ali ficaram insepultos, producto da batalha com Guerreiro.
Accompanhei Costa Mendes a uma chacara onde uma familia
nos offereceu café, e onde vi uma creança que haviam posto o nome
de Urano, para commemorar a bravura de seus tripulantes n'aquelle
feito sem par na historia.
Logo depois seguimos para S. Francisco, pequena cidade,
antigo emporio colonial. Ali reside o Dr. Abdon Baptista , filho da
Bahia, que, por seu caracter, intelligencia e trabalho, adquirio fortuna,
tornando-se um dos primeiros homens do Estado, tendo já sido
por mais de uma vez, no Imperio, sua primeira autoridade e è
idolatrado pela colonia allemã.
Ali acha-se tambem o Dr. João Gualberto, meu condiscipulo,
um dos mais dignos filhos da Escola de Medicina da Bahia.
Abdon é nosso companheiro ; Gualberto, nosso adversario, mas
a politica aqui é moderada, não leva a luta até o exterminio dos
contrarios.
A' bordo de um vapor encontrei o Dr. Gomes com a mulher
e filhos, todos da Bahia, que não quizeram ficar em Itajahy depois
da retirada das nossas forças. Declarou-me querer accompanhar-nos.
Perguntando eu á Sra. d'elle se annuia a isso, ella, com a
dignidade da esposa e mãe que sabe comprehender a situação de
nossa patria , respondeu-me que -— sim.
Falei a Abdon que providenciou sobre casa para accommo-
dal-o , e logo que essa accommodação seja concluida, Gomes seguirá
para junto de mim .
Ali ficou o general Laurentino com a sua brigada e eu segui
para Joinville n'uma pequena lancha por estar ali o quartel general
de Gomercindo, que se achava no cáes á nossa espera no acam-
pamento do velho Fulião.
127

Apenas abraçou-me Gomercindo е cessaram os alegres


comprimentos, eu perguntei porque motivo havia abandonado o passo
de Pelotas seguindo para Lages, o que tão triste impressão me
havia causado .
"Pede ao coronel Brasil, me disse elle, o officio que Salgado
me dirigio, leia - o, e veja se era possivel supportar por mais tempo
as ordens d'elle. Guarda-me, porém, o papel e não vá perdel -o .

**

Joinville é uma colonia allema bastante adiantada. Um bello


jardim á margem de um rio, cortado de diversos arroios, cheios de
pontes, ruas machadamisadas, bosques espessos, collinas cobertas de
plantações.
Em frente da casa da princeza de Joinville, que aqui se chama
Palacio, ha duas linhas de palmeiras magnificas. Ha casas que
a hera occulta completamente tecto e paredes , um monte de ver-
duras com janellas e portas envidraçadas .
Estar-se aqui, onde o homem tanto fez e o trabalho tanto
produzio, agrada a vista, mas entristece o espirito, lembrando que,
depois de tanto progresso, voltou o Brasil á barbaria, no fim do
seculo XIX .
Abdon Baptista convidou- me para sua casa oude se hospedam
Gomercindo e outros . Não acceitei, vindo hospedar-me no hotelzinho
onde se acha Jacques Ourique, um dos typos mais sympathicos dos
revolucionarios do norte ; é um dos homens mais instruidos que tem
tido o exercito brazileiro.
E' deputado no Congresso, onde muito trabalhou por nós, as
victimas rio-grandenses ; esteve desterrado no cucuy e sahia do Rio
de Janeiro á bordo do Urano ; foi secretario do marechal Deodoro
na dictadura e é pobre.
Doria teve de seguir para o Rio Negro, onde se acham as
forças de Piragibe, portanto , travar conhecimento com Jacques Ou-
rique, foi para mim uma felicidade.

Gomercindo planeja atacar as forças de Pinheiro Machado e


Lima.
E Juca Tigre guarda a estrada que vae de S. Bento á Lapa.
Augusto Amaral na estrada de Ambrozios, na divisa do Paraná.
Torquato Severo e Estacio Azambuja em Itapocú, caminho de Blu-
menau.
As forças de Laurentino, em Itajahy, para onde seguio Gomer-
cindo. Apparicio irá pelos mattos de Jaraguà, para atacal-os de
- 128

frente, caso elles procurem sahir de Blumenau, em busca das for-


ças florianistas, que se acham no Paraná. Eu devo accompanhar
Apparicio.
Recebi telegramma de Pianelli, em nome de Laurentino, para
providenciar sobre medico que deve accompanhal-os . Apesar de não
pertencer as forças legaes provisorias, telegraphei ao Dr. Gomes
que o accompanhe e encarreguei do serviço dos enfermos em S.
Francisco ao Dr. João Gualberto, que a isso se prestou promptamente.
O lugar para onde vamos, dizem que é horrivel, e só sendo ha-
bitado por pobres colonos, tudo teremos de comprar, por isso, em
telegramma, dirigi-me ao ministro Mourão , que respondeu-me man-
dando dar-me 300$000. Infelizmente o coronel Brasil acha- se bas-
tante enfermo. Aconselhei - o seguir para o sul , mas acha -se sem di-
nheiro e eu dei -lhe 200 $ 000 dos 300$000 que recebi, o que não
chegará para isso .
Algumas consultas medicas, cem mil reis que me ficaram dos
que recebi e alguns que me restam ainda dos meus cento e cincoenta,
são uma grande fortuna.
A colonia de Joinville é cortada de boas estradas machada-
misadas, com suas pontes e aterros, aos lados estão situados os lotes
coloniaes, e em quasi todos elles uma boa casa, engenhos e fabricas,
signal de que o trabalho e a economia fizeram a abastança d'a-
quelles que aqui chegaram proletarios, e desposaram com amor a
terra que os recebeu, tornando- a fecundissima. Sargetas profundas,
marginando as estradas, levam as aguas pluviaes e dos banhados
para os rios, que vão desaguar no oceano.
Uma lei municipal, antiga, obriga a cada proprietario a lim-
par estas sargetas, a arrancar-lhes as grammineas, de modo que
nenhum obstaculo possa privar o curso das aguas e por dar as arvo-
res que, plantadas ha tempos, hoje formam cercas vivas, parallelas
ás estradas.
Estas arvores são ordinariamente acacias frondosas que no
norte chamam- se rosas da Turquia e no sul sina- sina. Estes cuida-
dos dão um aspecto de avenida ás estradas, onde se vêem as casas
dos colonos com suas janellas envidraçadas, cortinas em todas as
janellas, e o trabalho das mulheres, porque os homens quasi todos
se empregam em carretear, e raro é o que não tem uma ou mais car-
retas e os meninos vão para as escolas.
O trabalho da lavoura consiste em dirigir o arado , fazer as
plantações e a colheita, cuidar das vaccas, fabricar o queijo e a
manteiga ; o cuidar das aves é serviço extremamente léve, quasi
sempre entregue às crianças.
Quem vio o que era o antigo trabalho dos escravos e vê
esses colonos já abastados, as mulheres, as filhas, aceiadas , penteadas,
com um avental de fazenda fina, algumas de avental bordado ou de
129

seda, entregues a esse labôr constante, ordenhando as vaccas,


amassando pão, cuidando da cosinha, servindo os carreteiros que
voltam cançados , dando agua e forragem aos cavallos , servindo aos
hospedes extranhos com risos e afagos, que cousolam os infelizes a
quem tudo destruiram, fazendo -lhes, ellas mesmas, a cama de rou-
pas limpas, trazendo - lhes o café, sem uma contrariedade, sem um
màu gesto, obtendo assim mais um pequeno lucro diariamente ,
para a fortuna commum que dá-lhes a abastanga , fica contente
de ter sido um dos lutadores pela liberdade dos escravisados e
sente-se orgulhoso do que soffre actualmente, por que, livre a
patria dos seus tyrannisadores, em alguns annos poderá ver por
todos os pontos , onde corra uma lympha de aguas perennes , se ergue-
rem esses tugurios da paz, das ambições rasoaveis, do nivellamento
social.
Ha n'estas colonias nucleos já com caracter de villa , com sua
capella bonita.
A casa do padre, que tambem é lavrador, só se distingue da
dos outros pelos livros que se vé nas estantes.
Ha casas que recordam aquellas grandes habitações dos fazen-
deiros no norte, com seus parques e suas dependencias . Outras , ten-
do grandes lojas de fazendas e de generos ; outras que são verda-
deiros chalets sobre as collinas, cercadas de jardins , com uma es-
trada em zig-zag, separadas das plantações por cercas de reseiras,
bem cuidadas.
Raro é não se encontrar n'ellas uma ou muitas Margaridas,
louras, bellas, fortes, coradas e que felizmente para ellas, se dedi-
cando ao trabalho quotidianamente, fazem com que aquella atmosphera
não produza os Faustos, e o trabalho transforma -se em cruz symbo
lica que priva os Mephistopheles de penetrarem ali.
Em cada ponto d'aquelles ha um grande salão com um corê-
to, prateleiras com garrafas e uma outra sala perto da cosinha com
mesas e cadeiras. São destinadas aos bailes.
Aos domingos, ou dias especiaes , ali se reunem para dansar.
A musica é paga pelos dansantes com uma pequena esportula, de-
pois de cada execução.
O dono da casa vende as bebibas e as comidas .
Ali entra desde a filha do colono abastado , já trazendo saia
de seda e corpete de velludo, algumas trazendo joias, onde já se
vê um diamantesinho como pequena gotta de orvalho, até a cria-
da e a lavradora que ainda não pode ter uma saia para baile e ou-
tra para o trabalho .
Desde a que calça borzeguins de alto tacão ou sapatinhos
que deixam vêr as meias finas, até o pè estragado nas plantações ,
apenas bem lavado para não manchar o soalho ; desde o cabello
louro e secco, brilhando como meiada de seda , até o cabello unta-
9
130

do de oleo ou pomada para tirar - lhe o cheiro do suór ; desde o ra.


paz que veste roupa de panno bom, calça botinas finas e já traz
cadeia de ouro no relogio , até o que ainda não pode mudar as
calças de belbutina classica e as botas de sola grossa ; todos
porém bailam.
O vestido fino não se encommoda de sentir o contacto da man-
ga de uma blusa de trabalho. Aquelles cabellos fluctuantes como
as crinas de esbelta potranca a corcovear alegre nas campanhas do
sul, não se importam de serem contidos por essas mãos calosas , por
que o que estes são hoje , seus paes foram em outros tempos , e se-
rão amanhã o que seus paes são hoje.
O caminho a seguir é um só, é longo, mas não tem saltos ,
não tem surpresas, não tem acasos, não depende de sedições nem
de deposições ; é seguil-o, seguil-o sempre com methodo, com per-
severança, e ai do que se distrahir.
Nenhun dos gosos que têem aquelles que já se fazem ver, lhe
será permittido, elle encontrará punição mesmo ali entre os seus,
não será preciso encommodar a opinião publica e esperar que o jury
de honra dê a sua opinião sobre a sua honestidade.
Muitas vezes , vê- se o bailante sentar-se á mesa, comer, be
ber, pagar e sahir d'ali de braço com a serventa para uma valsa
agitada, rapida ou para um schotisk, todo figurado , todo cheio de
surpresas. Outras, a cosinheira vêm á sala agarra um pelo braço ,
leva- o na valsa como n'um turbilhão ; deixa-o porém, depressa e
volta á cosinha, para não deixar de ter promptas as eguarias pedi-
das. Outras é um rapaz robusto que do fundo da sala de jantar
traz uma rapariga tambem forte e robusta suspensa nos braços ;
entra valsando com ella assim, depois vae deixando- a descer e con-
tinuam a valsa sem interrupção . Outras, é uma velha mãe de
bellos completamente brancos , que tem uma duzia de filhos e cada
qual quer dar uma volta com ella. Toca- se então para isso uma
mazurka lenta, suave e ella dansa e ri orgulhosa, beijando- os sempre.
Lembra-se talvez de seus dias da mocidade, n'um trabalho
continuo e vê que elle nada foi em relação á essa fortuna enorme,
que ella gerou, nutrio, creou e que hoje ampara-a, adora-a . Todos
estes filhos são bons , são honestos ; todos trabalhadores e por isso
felizes .
Outras, é um velho que quer dansar com a que elle diz ser
a mais formosa. Quer dansar uma valsa ligeira como as que dan-
sava para aquecer se nas margens do Rheno, mas com a condição
de não abandonar o longo cachimbo ; si não for assim não dansará,
prefere uma fumarada ao contacto d'aquelle corpo .
Mais tarde já a dansa se desfigura. Um quer valsar tendo
um grande copo de cerveja na mão sem derramar, mas lá se vae
a cerveja, molhando o vestido do par. Outro offerece para mostrar
-131

que é mais firme , que não derramará, e á primeira volta sem


interromper a valsa derrama-a pelo esophago .
O que é para admirar é que não é n'esses bailes, que nas-
cem os consorcios .
O baile para elles é uma necessidade, é uma hygiene , movi-
mentos e esforços feitos diversamente dos methodicos, constantes,
no labor quotidiano.
As mães não levam ali as filhas em busca de marido , ellas
comprehendem que as affeições nascidas n'um baile atravez de roupas
elegantes, de uma camada de pó, de um halito misturado com
perfumes fabricados - são bem ephemeras ; e os consorcios nasci-
dos ali serão em breve um sacrificio, se os contrahentos não tive-
rem qualidades que possam prender um ao outro pela estima, pas-
sada a paixão com o habito dos perfumes ou pela ausencia
d'elles.
Entre as pessoas de trabalho a affeição nasce da observação,
da cogitação, porque ali procura -se um companheiro, um socio para
a vida.
Os allemães agricultores não dão dote aos filhos que se ca-
sam. Elles começaram a vida cavando a terra e amalgamando a
seiva d'ella com o seu suor, formaram uma fortuna , e por isso sabem
poupal-a, sabem conserval-a, sabem fazel -a progredir lentamente.
O pouco para elles é muito , por isso o filho deve começar
do mesmo modo, se antes de se casar não fez algumas economias
do seu trabalho, que já lhe permittam estabelecer uma casa com seu
moinho ou engenho , com suas carretas.
A filha, por seu lado, vae economisando, poupando - se quantoɔ
ao luxo, accumulando o dote, - uma ou mais vaccas ou outros
animaes domesticos e o necessario para uma casa.
No dia do casamento lhe dão muitos ramalhetes, muitas flores ,
e como extraordinario, um objecto de uso diario. Alguns paes dão
um berço onde se embalarão os netos.
Se o noivo è pobre e já escolheu e combinou com quem se
vae casar, afasta-se d'aquelle ponto e vae no fim da linha colonial
escolher o lote de terra para si. De posse d'ella, começa a desbravar
a mata, trabalho insano para um homem só, no meio d'aquellas
florestas virgens , a investir contra arvores gigantescas de fibras
tão fortes quanto o ferro.
Feita a roçada o fogo auxilia-o e em pouco brota ali a semen-
te que ele confiou á terra. Vae então cuidar da casa, vem a pri-
meira colheita e com ella a companheira que vae ajudal- o . Trazem
sempre comsigo alguns animaes domesticos. Um cavallo é indispen-
savel e se podem ter uma vacca que aproveite as pastagens da roça
e a quem prodigalisam o affecto de irmão, o casal já se considera
em começo de prosperidade.
132

Segue-se um trabalho arduo ; plantar todos os annos n'aquelle


terreno e não buscar lenha, senão nos tocos e nas raizes que
o fogo não pôde destruir. Para obter essa lenha gastam muito tem-
po e entretanto a floresta está ali , servindo de cerca á roça ; mas é
preciso isso porque em quanto os tocos e as raizes ali estiverem,
a terra não poderá ser arada.
No fim de tres ou quatro annos o producto da lavoura , dá
para comprar uma junta de bois e um arado e então o trabalho
torna-se mais suave.
E' regra geral que no fim de um lustro, um grupo de crian-
cinhas louras sente- se á porta, os mais velhos cuidando dos mais
novos, e uma pequenina no berço .
N'esse tempo tambem, a vacca jà tem uma ou duas filhas que
já têem filhos.
O leite fornece o alimento para elles e a sobra dá para o
queijo e manteiga, cujo producto chega para a roupa e o assucar.
Ali tudo se aproveita . Os restos da comida, ou antes, dos
vegetaes, engordam os porcos . O feno colhido e bem guardado para
a epoca em que o gado não possa andar solto nas roças . Tudo ali
progride como juro do grande capital, o trabalho.
No fim de oito ou dez annos , aquella casa tem mudado de
aspecto , está mais vistosa, pintada envidraçada , com cortinas nas
janellas e uma boa mobilia de vime. Muitos arados americanos pu-
chados por possantes juntas de bois revolvem a terra, e nos lugares
onde as aguas podem ser desviadas do leito do rio, o engenho ou
moinho quebra o silencio da noite, misturando o seu ruido com o
do vento que passa na floresta intacta, ali ao pé, como um thezouro
que se guarda para o futuro .
Alguns annos mais e tudo aquillo está organisado.
Os filhos maiores cuidam da lavoura , as irmãs ajudam- n'os
algumas vezes e cuidam do serviço domestico, do fabrico do queijo
e da manteiga, do leite, do gado, de que são pastoras e vão aos
mercados vendel-os.
Na epoca de semear e colher todos se reunem ; o pae que já
tem uma carreta e por tanto não precisa mais lavrar, deixa este serviço
aos filhos e se tem mais de uma, o filho mais velho é quem se
encarega d'ella ; e assim vivem até que os filhos e as filhas , como
as aves, entendem ser tempo de prepararem um ninho para os seus .
A politica d'elles é muito simples, G pouco se encomodam
com as bandeiras dos partidos . Elles sabem que estas bandeiras
téem uma significação intrinseca criar consumidores ; por isso, a
politica d'elles é seguir aquelles que lhes dêem paz e não alterem
a ordem, se não se os offendem em seus interesses.
Quem lhes garante isso , é para elles um homem de bem.
Algumas vezes apparecem alguns letrados socialistas, falando
133

dos grandes capitaes, mas nenhuma importancia se lhes dá. Elles


não comprehendem que se possa ter fortuna, senão trabalhando
muito, durante muitos annos e com muita economia. As fortunas
rapidas que se lhes diz ter feito este ou aquelle com a politica,
elles consideram como conto phantastico igual ao d'aquelle ser mys-
terioso que tinha thezouros no fundo do Rheno, com que obsequiava
as suas visitas, não deixando- as, porém, nunca mais, voltarem à tona .
d'agua.
Eram ricos, mas eteruamente mergulhados n'aquella caudal ,
sem descanço, sem ar para respirarem. De que servem taes thezou-
ros, senão para deixarem aos filhos , privando- os assim do trabalho
que fortifica e ennobrece ?
Tal é a vida d'este povo que parece um fructo apetecido , pen-
dente de uma arvore que se eleva n'esta charneca immunda, em
que se transformou a familia brazileira , n'esta Ordem e Progresso ,
que em pouco fará anniquillar toda a nossa geração, para que este
povo estrangeiro possa estender-se em toda a superficie do Brasil,
tornal- o grande, rico, calmo , humano, sem degollações , sem mas-
morras, sem exilios, sem incendios e sem desrespeito ás familias.
E os poucos que restarem da raça actual, terão a sorte que hoje
têm as tribus selvagens , resto das grandes nações que habitaram
estas florestas, que se destruiram umas ás outras, por causa de
uma arvore fructifera ou uma caça , até que o estrangeiro termi-
nasse a obra começada por ellas.
Que importa isso, porém, se n'esse tempo já não viverão os
que promoveram estas desgraças ?
Patria, que quer isso dizer se elles tão pouco tempo podem
governar e vivem tão pouco !
Familia ! o que é a familia, senão os que lhes rodeiam de
perto, para cuja riqueza elles promovem a guerra ?
Nacionalidade ! O que é isto, se ella não comprehende que se
a destróe dizendo fazel-a livre, feliz, civilisada, progressista ?
Povo ora, mande-se-lhe para a frente das boccas de fogo.
Deve ser destruido , é ignorante e por isso não comprehende que
quem não foi eleito, quem não foi acceito tem o direito de dispor
do seu trabalho em beneficio dos que dizem que sabem amar esta
republica.
Mas este povo é bom, é calmo , ajuizado e é por isso que o
paiz está tão prospero e tão normal que um homem só pode gover-
nal- o e dirigil- o e um outro, verdade é que de intelligencia collos-
sal e illustração nunca vista igual , póde em um só tempo occupar
quatro pastas, resolver todas as suas questões , attender a toda as
suas necessidades.
E' um paiz que perse mouve. Nada mais precisa do que
humedecer-lhe os eixos com sangue.
134

Déem sangue, e elle só paralysará quando fôr preciso o san-


gue da familia, dos amigos, dos que governam, porque então elles
fugirão, dizendo que entregam isto aos inglezes por ser um povo
ingovernavel, e por isso merece a sorte do Egypto ou da Indo - china.
Mas, para onde irão elles ? Oh! para onde ?
Para onde foram esses grandes patriotas das republicas la-
tino -americanas ?
Só Lopez morreu na luta, morreu com sua Patria. Os ou-
tros, emquanto preparavam a guerra civil, transportavam para a
Europa o thezouro publico, e lá vivem ou viveram, lá vivem os
seus descendentes, emquanto a terra que os vio nascer, continúa
n'esse progredir constante do devorar irmãos a irmãos, e elles o
que fazem é rir.
E' o gargalhar de Mephistopheles na agonia da incauta Mar
garida.

As forças de Gomercindo estão assim divididas : Estacio Azam-


buja em Itapucú, guardando um caminho que vai ter á Blumenau.
Augusto Amaral, no Rio Negro, divisa do Paraná, caminho de Ti-
jucas , onde se acha uma guarnição florianista, preparando uma estra-
da de rodagem .
Piragibe, depois de repellir as forças do general Argollo,
marchou sobre a Lapa, pelo rio da varzea. As posições que occupam
nossas forças são todas determinadas pelas exigencias do momento.
Uma marcha pela Tijuca buscando as estradas coloniaes pode
em combinação com Pinheiro Machado, metter- nos em dois fogos ,
o que se daria tambem com as forças da Lapa. Aqui, em Joinville,
acha-se o estado maior e escolta de Gomercindo, as forças dos coro-
neis Riquinho e Macedo, Fulião ; e perto da cidade as de Appa-
ricio Saraiva. Gomercindo resolveu marchar para o Itajahy, onde se
devem encorporar as forças de Laurentino com as de Estacio Azam-
buja, para atacarem Pinheiro Machado , tomando-lhe a retirada. Appa-
ricio segue para os sertões de Jaraguá, para recebel- o de frente,
privando-os de buscar encorporação com as forças peixotistas, no
Paraná.
O sympatico Jacques Ourique, nomeado commandante da ar-
tilheria, segue comnosco, levando dois canhões de tiro . rapido , cuja
guarnição conta muitos ex-alumnos da escola militar, entre elles, Azam-
buja, Maia e Armando Sampaio Ribeiro, um rapaz de que muito
se deve esperar, pelo desprendimento que tem de sua pessoa .
Arthur Maciel segue como delegado de Gomercindo n'esta
expedição arriscadissima, em que nos vamos metter nos inhospi-
tos sertões, onde poderemos ser colhidos em dois fogos ; mas
135

vamos com a confiança de sempre , des le que guardam as fronteiras


do inimigo Augusto Amaral, Piragibe e Juca Tigre, que hão de con-
tel-a. Apparicio marcha a cavallo, as forças, porém , marcham em
carretas dos allemães. Arthur, Jacques Ourique, Gentil e eu , mar-
chamos n'um carro, temos pressa de chegar, porque longe deve estar
a vanguarda ; entretanto os allemães fazem a marcha , como se se .
guissem para uma feira onde em dia determinado devem vender
suas mercadorias .
Em todo arroio param e vão com o balde buscar agua para
os cavallos, que mergulham n'elle a bocca e pouco bebem, e depois
o conductor leva o balde á bocca e bebe a agua que os cavalios
deixaram . O cavallo, para elles, tem regalias fraternaes. Quasi nun-
ca os castigam. Para marchar tem um grito especial, que os cavallos
devem comprehender : Ilúh ! para parar outro : Brrr... e elles param .
Ea me rio dos nossos companheiros do sul, acostumados a mon-
tarem em seus cavallos, ageis , obedientes , e agora marchando amɔn-
toados n'essas carretas, olhando cara a cara uns com os outros.
Pedem , rogam aos allemães para darem uma troteada ; estes,
porém, não os entendem ou fingem não entender, e quando chegam
a um declive onde é forçoso correr, agarram - se uns aos outros,
gritam, gargalham, e pedem ao conductor para parar.
Uns cantam, outros jogam, outros conversam com os que estão
nos outros carros ; é assim que aqui marchamos contra o inimigo.
A' tarde chegamos junto á ponte de Jaraguá, onde termina
a estrada de rodagem. D'aqui em diante temos de marchar a ca-
vallo, os que o tiverem, e a pé.
Temos, porem, de levar artilheria e carros manchegos , em um
dos quaes colloquei a ambulancia .
O dia chuvoso, à espera de communicações de Joinville, nos
tem demorado aqui , onde acaba de apresentar- se o capitão Rocha ,
que se achava em Lages, e com alguns homens internou-se nos ser-
tões, com a aproximação de Pinheiro Machado. Esta gente parece
disposta, visto que já está prompta, a seguir comnosco.
Visitei-os anm de providenciar sobre a ida dos doentes para
Joinville.
A' tarde acompanhei o general Jacques Ouriques , na visita
que fez ao acampamento da artilheria ; duas boccas de fogo, guar-
dadas por um punhado de rapazes valentes, sympaticos, resolutos.
Vendo-os, a minha pessoa de guerreiro se alegra, eu prevejo o he-
roismo que elles vão desenvolver n'essa luta desigual, de força de
vontade, contra forças bem pagas , bem nutridas. Quando digo a
minha pessoa de guerreiro, é porque ha em mim duas entidades bem
distinctas uma é o homem, desde sua infancia procurou sempre
ser humano, altruista, a ponto de ser considerado prodigo, mas que tú
bem conheces, pouco se importando com sua pessoa e bem- estar , a
136

ponto de ser imprevidente ; a outra é o cidadão, amante de sua Pa-


tria, lutando , e esperando vencer, para dignifical- a.
No outro dia marchamos. Consegui um cavallo bem supportavel,
indo o meu assistente n'uma carroça. Emiliano, o meu assistente, é
um soldado do 25 ° batalhão, capitulado no Desterro. E' um negro ,
alto , corpulento, conversador, amavel, dentes muito brancos e bocca
enorme. Cuida de suas roupas como um dandy. E' filho da Bahia ;
optimo cosinheiro, e segundo diz , filho de antigos serviçaes do
Conde de Pereira Marinho ; foi ajudante de cosinheiro na sua casa.
E ' porem muito gastador, inventa pratos especiaes, doces ba-
hianos, o que faz com que a minha barraca seja uma especie de
restaurant, não se lembrando o maldito que aqui é preciso muito
cuidado, porque não se ganha, e , terminado o pouco dinheiro que
tenho não ha onde se obter, porque eu continuo no meu systema
de viver por mim mesmo, mas o diabo do Emiliano entende que
sendo um bahiano , e esse bahiano o dr. Dourado, o meu coronė ,
como elle diz, nada poderá faltar.
Nós marchamos com o tempo chuvoso, que em pouco tornou
um lamaçal toda a estrada. Depois de duas leguas de marcha tive-
mos de acampar. Apparicio que havia sido atacado de colica intes-
tinal, acampára n'um engenho de assucar, propriedade de um col-
lono allemão. Ali fui ter com elle, e vendo que nada havia para
receiar, demorei numa palestra, e acceitei uma porção de agua quen-
te assucarada, que o allemão, dono da casa, me offereceu com o ti-
tulo de café.
Na minha palestra com Apparicio falamos no velho pae d'elle
que dizia quando perguntava pelos filhos no Estado oriental :
Gomercindo está no seu dever, defende sua patria, mas Appa-
ricio é oriental, se morrer, morre fóra de seu paiz ; e Apparicio ou-
vindo isto chorou , dizendo : pobre viejo .
Eu desviei a conversa, mostrando com citações historicas , que
a luta pela justiça é dos homens.
Que os que a abraçam se dignificam, que só os que por in-
teresses mandam brigar contra os opprimidos , podem dar um termo
de comparação aos que brigam pelos fracos. Aquelles são a abjecção ; o
sangue que derramam, lançado na conta que deve ser paga ; estes der-
ramando o proprio sangue e dando a vida por um lucro negativo :
o bem-estar de um povo, martyres miserentos, surgindo mutilados
n'uma apotheose luminosa, utopistas ; aquelles a rebolcarem- se na
lama, como os porcos que se engordam ; muitos escapam á salchiche-
ria dos engordadores, e até chegam a ser considerados dignos , he-
roes mesmo , sem nunca sentirem o cheiro da polvora . Terão estatuas
amanhã e estas estatuas não serão feitas de lodo . Serão de bronze,
de marmore e o paiz as pagará.
*
137

Quando cheguei ao acampamento, encontrei Emiliano junto de


uma porteira, á minha espera.
Uma pequena plantação de milho, algumas arvores fructiferas,
recentemente plantadas, um pequeno jardim de flores communs,
quasi selvagens e uma casinha nova, era o que havia na pequena
colonia de que se tinha apoderado Emiliano . Esta casinha tinha
uma sala na frente e por uma porta alta sahia - se na cozinha feita
de estacas.
Habitava-a um jovem casal de teuto , brasileiros. O inarido um
rapaz corpolento, baixo, ruivo como um allemão do norte, não fala
uma palavra em portuguez , nem o comprehende ; a mulher esbelta ,
de feições delicadas, os cabellos castanhos, quasi negros , a côr pal-
lida, quasi morena. Estão casados ha onze mezes ; ella chama-se Maria ,
elle Frederico , Fritz .
Não pareciam estar alegres com a invazão do Emiliano. Fritz ,
quando cheguei , conservou- se distanciado , pallido, como se eu fora
um barbaro que atacasse, para destruir, o que tanto lhe havia custado
fazer. Cahia uma chuva lenta e fria, com intermitencia . Era impos .
sivel deixar de pousar na casa , visto que não havia um logar onde
se podesse armar a barraca. Emiliano fez logo suas queixas, tinha
procurado com que fazer almoço mas os diabos dos gringos diziam
que nada tinham, até as gallinhas que elle via pela roça lhes di-
ziam que não tinham.
E' que não te entendem, disse eu . Vais ver que tudo appa-
recerá. E tirando do bolso o pouco dinheiro que tinha, procurei dez
mil reis e dei ao homem para fornecerem o que fosse precizo para
almoçar. O ruivo allemão correu presuroso apoz as gallinhas para
agarrar a mais gorda; appareceram óvos, manteiga fresca, café, as-
sucar, um esplendido salame. Emiliano ria-se e descompunha com
certa familiaridade a sympathica Maria.
Então não lhe dizia eu, siá gringa, que tinhamos dinheiro
para pagar ? Pensava que vinhamos roubar ? E ella apenas sorria- se,
escrevendo n'uma lousa o que havia fornecido, e muito triste, por-
que não attingia a 5 $. Approximei-me e disse-lhe que o resto seria
para pagar a lavagem do soalho , que minhas botas, cheias de barro ,
haviam humedecido .
Maria, contentissima, perguntou-me se queria descançar, que
ella me cederia sua cama. Respondi-lhe que não, e que quando
quizesse descançar me deitaria sobre a mesa. Vendo um berço junto
da cama, perguntei-lhe se já tinha filho ; respondeu-me que não , que
aquelle berço tinha sido um presente de noivado. Toda a mobilia da
casa consistia na cama do casal , uma mesa, duas cadeiras e um
armario . Preparado o almoço, mandei chamar alguns companheiros
para fazerem- me companhia, e Emiliano, por sua vez , convidou ó
casal para almoçar na cozinha, o que foi acceito de boa vontade , e
138

comiam alegres, ouvindo os desaforos, que por amabilidade lhe dirigia


Emiliano, sempre offerecendo- lhe mais um pouco de fritada ou de
gallinha, e a final convencendo- os de que deviam comer do meu
molho de pimenta, molho da Bahia, sendo improductiva a logica
empregada.
A chuva continuava. A' noite arranjei-me sobre a meza, elles
na cama e Emiliano na cozinha .
Eu lia. Fritz já resonava e Maria ainda não se tinha dei-
tado, conservando- se sentada á borda do leito. Comprehendi o
motivo. Estavamos na mesma sala, portanto, só as trevas poderiam
servir de meio de recato ; apaguei a vela, e pouco depois senti que
Maria se accommodava, dando-me de lá um amavel „ bôa noite ,, .

A cama dura em que estendera o corpo pouco fatigado , não


consentiu que eu dormisse. Uma noite de insomnia. Bem longa noite ,
a ouvir cahir nas telhas a chuva, constantemente, triste, monotona,
e de longe em longe ouvindo o surdo ruido de um trovão. Para
nòs, os sertanejos do norte, a chuva e o trovão accordam todas as
saudades. E'a chuva de trovoadas que enverdece os nossos campos,
como por encanto, depois de oito mezes de sol ardentissimo ; é ainda
ella que faz florescer as nossas arvores fructiferas ; e as croanças
accordam alegres, ouvindo aquelles trovões annunciadores da bonança,
e ninguem mais dorme; cada qual forma o seu plano ; alguns pensam
que no outro dia já poderão encontrar jaboticabas ou guabirobas,
outros insistem em que se deve ir á serra onde sem duvida deve
haver mangabas e puçá ; outros julgam que o imbù custa muito a
amadurecer, mas là está um, já crescidinho, que sabe onde ha um
imbuzeiro, que no dia de natal tem imbús maduros .
E' no Morro da Mandaçaia, mas não ensinará a ninguem, é sò
para elle ; mas se lhe pagam, se lhe dão doces, se lhe dão um
gallo bonito que elle deseja, então sim, levará aquelle que mais lhe
der a comer dos seus imbùs, e para mim, só esta promessa custava
caro. Um cavallo, um casaco, um chapéo, e eu julgava pouco o
que exijian ; daria muito mais para ir no dia de natal, dois mezes
depois , comer um imbú maduro no Morro da Mandagaia. Estas
chuvas das primeiras aguas erão a nossa alegria . Os homens pen-
savam no gado que deixaria de morrer d'alli em diante, nas plan-
tações, na vida emfim, que renascia. A's vezes , quando a chuva se
prolongava, ouvia -se pela madrugada, o canto das arirys e dos patu-
rys que haviam emigrado ou se occultado, não se sabe onde, que
chegavam. Era signal que a lagoa já estava cheia. Cheia a lagoa,
a imaginação infantil voava logo ás colheitas dos óvos dos aquati-
cos, ou á caça dos pintainhos , ao gado no curral, seus mugidos
139

ensurdecedores ncs primeiros dias. Os cantos dos vaqueiros, e o


aboiar saudoso dos moleques, chamando as vaccas retardatarias que
respondiam ao longe com o mugir annunciador de que se appro-
ximavam.
Quando o pensamento foge do presente para voejar no ca-
minho já percorrido, não repousa . Uma por uma são lidas todas as
paginas d'esse livro -- o passado, sempre cheio de alegrias e tristezas,
scenas vivas de tragedias infantis , vistas depois como hilariante
comedia. Por pequeno que seja o lugar onde se viveu, por obscu-
ros que sejam os personagens d'esse drama da mocidade, guardadas
as proporções, ali se representam os factos mais ardentes, mais
risonhos e mais lugubres da vida. Quantas vezes pareceu- me que
tudo estava terminado para mim ? quantas vezes, dois dias depois ,
já não me lembrava d'aquelle caso fatal ?
Hoje aqui elles me perpassam pela mente , como a suavida-
de do perfume de uma flor, que nos faz recordar a essencia que perfu
mava o lenço de alguma moça que nos attrahiu n'um baile, que nos
fez durante alguns dias formar castellos , que se desfaziam com a idéa
da edificação de outros .
E o somno foge-nos por mais que o busquemos . E a chuva cahe
lenta, constante, melancholica ; e o trovão longinquo mistura o som com
o das cachoeiras que as aguas do rio augmentadas, augmentam o
ruido, cortando assim o silencio desta selva deserta.
Um outro ruido, a não ser o resonar dos meus visinhos , interrompeu
o meu pensamento. E' Fritz que sonha, falando alto, mas em allemão .
Parece que discute, que o contrariam. Que diabo estará elle a dizer ?
pergunto eu a mim mesmo. Oiço uma risada baixa de Maria que
accordada. Felizmente ella accor-
me ouviu e que tambem estava accordada.
dou o marido, contou-lhe o que elle sonhava, mas não m'o quiz tra-
duzir por mais que eu pedisse. Ria-se quando eu perguntava o que
estava elle a sonhar.
Emfim, quasi manhã, adormeci . Era ja bem adiantado o dia
quando acordei, sem ter coragem para me levantar, e ainda som-
nolento, ouvi a voz de Emiliano, que conversava com Maria a meu
respeito. Sancho não exaltaria com mais eloquencia o cavalheiro an-
dante. E' doutor, dizia elle, doutor da Bahia . E' coronel tambem.
Valente, muito valente. Briga como os outros, depois vai cuidar dos
feridos. As balas respeitam a elle. Na Laguna era uma chuva de
balas, e elle a caminhar para deante .
Emiliano estava ha poucos dias a meu serviço .
Nunca tinha estado commigo em nenhum dos nossos comba-
tes, e no Tubarão onde se achou, o tiroteio não durou quinze mi-
nutos .
Mas eu sou da Bahia e é preciso que um bahiano seja uma
figura legendaria, no entender d'elle. Quando me levantei, Maria trou-
140 ..

xe-me, ella mesma, um pouco de café com leite, com pão de centeio,
e crême de leite. Era domingo e ella havia vestido uma roupa me-
lhor, penteado os bastos cabellos castanhos ; parecia assim mais uma
senhora de cidade do que uma pobre colona . Fritz tinha ido
a mandado de Emiliano procurar o que lhe era preciso para seu
desempenho de cosinheiro que se preza e que queria que quando
viesse o Jaques Ourique ou outro, onde eu estava, encontrasse um
jantar digno de ser elogiado. Orgulho e ambição, unico de cozinheiro .
Tivemos de demorar aqui alguns dias á espera da exploração
da vanguarda.
A chuva continúa. Fritz cuida de suas vaccas e Maria, tal-
1 vez com receio de que lhe roubemos a cama ou o armario, conserva-
se em casa. Alguns companheiros vem ver- me e jogamos o solo.
Emiliano visita , os acampamentos e eu quando estou sò , leio ou
escrevo. Maria ensina- me algumas palavras allemas, e ri- se como
uma creança, ouvindo minha pronuncia, e repete-me muitas vezes até
que eu pronuncie bem . A'noite, depois de jantarmos, senta-se na
porta que sahe para a cozinha e com Fritz somma o que já devo .
A lousa ja está cheia de um lado e outro . Até a lenha está ali ,
mas só attinge a seis mil reis. Para não dar- lhes pezadelo de tan-
ta somma, dei- lhe vinte mil reis para pagar o que jà se devia e
para ir pagando o que se fosse gastando .

Sim senhor, disse ella . Deus permitta que fique aqui mui-
tos dias até gastar tudo ; e foi guardar os vinte mil reis n'uma cai-
xa que collocava no armario. À' noite chegou um emissario que tra-
zia noticia de que o inimigo estava na frente, entrincheirando -se.
Tivemos de marchar pela manhã. Emiliano dirigiu-se a Maria,
reclamando o troco.
-Não comprehendo, disse ella.
-O troco dos vinte mil reis que sô coronel deu hontem para
tirar os seis mil reis. Não comprehendo.
O dinheiro, o dinheiro, gritava elle no ouvido d'ella , e ao mes-
mo tempo fazia signal com os dedos . Não comprehendo .
Eu ria-me, vendo o esforço de Emiliano para se fazer compre-
hender e a impassibilidade d'ella em não querer comprehender.
Bem, disse eu, já estão marchando, vamos, toca a marchar, é
justo que elles cobrem o aluguel da casa.
Ouvio ? disse elle apertando -lhe a mão com physionomia sau-
dosa. O coronel disse que é o aluguel da casa .
Sim, sim ja ouvi, disse ella.
E despedindo- se de Fritz , este riu- se alegre e o Emiliano dis-
se com gravidade : E o ladrão ainda ri.
Ao despedir-me de Maria ella desejou- me felicidade na expedi-
ção, e que quando voltasse demorasse ali muitos dias .
141

Podéra, disse Emiliano, como falando para si mesmoo ; se não


recebe trocos .

Nossa marcha foi penosissima . Não ha estradas do ponto em


que estivemos para diante. Serros ingremes, baixadas pantanosas ,
pelos mattos cerrados . Ora escorrega- se na descida de um monticulo,
ora se submerge na lama dos corregos. Emfim chegamos ao rio onde
ainda temos de esperar para saber se deve- se seguir ou se se deve
occupar esta posição como mais estrategica. Apparicio vadeou o rio e
seguiu pela mata a dentro. Jaques Ourique se impacienta porque
se demoram as boccas de fogo , e apezar do máu caminho, antes da
noite ellas foram collocadas em posição de impedirem a passagem
do rio, caso o inimigo obrigasse Apparicio a uma retirada. Arthur
Maciel que seguira até o acampamento de Apparicio voltou para
combinar com Jaques o que devem fazer.
Sendo quasi impossivel levar artilheria para diante, combinou-
se em esperar aqui. Arthur Maciel adoeceu e nós passamos os dias
a espera de noticias. Aqui não ha colonos , apenas duas ou tres fa-
miiias indigenas , sujas, trapentas, preguiçosas ; os chefes canoeiros que
esperam que o rio encha para ganharem alguns vintens na passa-
gem de alguns colonos que já povoam a margem opposta. Entre
estes colonos ha um pastor protestante. Não tendo o que comer ,
porque o gado que nos vem de Joinville ainda não chegou , man-
dei no pequeno nucleo colonial comprar alguma cousa . Encontraram
um pequeno porco, gordo e o dono , que é o padre, veio em pessoa
trazel- o ; um bom homem; sympatico . Trouxe comsigo uma porção de
creanças louros, seus filhos, a mulher , uma allema gorducha ficou
do outro lado vendo com pezar passar o porco, era sua cria, es-
timava-o muito, mas vinte e cinco mil réis por um bacorinho, ainda
quasi leitão , não é para causar pena em vendel-o . Emiliano tratou
logo de preparar um bom jantar, e salgou o toucinho e carnes para
os dias que tinhamos de ficar ali, e para a marcha. No outro dia
porem, veio dizer- me que haviam roubado tudo. Tinhamos portanto ,
de sujeitarmo-n'es á carne magra do gado cançado que acabava de
chegar. Entre os companheiros, acha-se um ajudante do Dr. Arthur
Maciel, de nome Grevy. E' gago, geniozo, mas de uma alma boa
e dedicada .
Não é positivista, não aprova os actos de governicho de Por-
to Alegre, mas é cassalista por ser amigo do Cassal, e é esta a sua
logica. As vezes conta historias aos gaúchos com tal seriedade, que el-
les propendem a acreditar. Foi a uma caçada de bujios apontou a
arma para uma bujia , ella mostrou-lhe o filho, elle baixou a arma ;
tornou a apontar, ella tornou a mostrar-lhe e elle tornou a baixar;
afinal apontou com resolução de não baixar sem disparar, quan-
142

do ouviu a bujia dizer a um bujio : Toma Gregorio, teu sobrinho ;


por que o Sr. Grevy vai me matar. Não atirou porque não devia
matar aos conhecidos .
Quando fala no Jornal de Porto Alegre, do partido dissiden-
te elle diz o meu jornal. Escreveste n'elle ?
Não, respondeu, mas era onde ia ler noticias.
Referindo - se aos burros e elle diz esta nação de animaes é mais
estupida do que a dos cavallos.
Perto do nosso acampamento ha uma cachoeira que torna o leito
do rio bastante profundo , a corrente muito rapida. A tarde fui banhar-
me ali em companhia de Jaques Orique, Gentil, Maia, Grevy. Eu
banhava- me junto a cascata quando ouvi gritar. Era Grevy que
ia arrebatado pela corrente sem saber nadar, e os outros que tam-
bem pouco nadavam ficaram, indecisos. Venci a distancia e pude agar-
ral- o ainda , levando-o a um rochedo onde tentei collocal- o, mas ha-
via tanto limo e resvalava tanto, que de novo elle foi arrebatado
e eu ja via sua sorte duvidosa, pela impetuosidade da corrente .
Aproveitei uma madeira que passava , colloquei- o agarrado a ella, e le-
vei-o até um outro rochedo onde os companheiros o agarraram e le-
varam-n'o para cima.
Grevy estava pallido como quem sahe do terror, mas suas pri-
meiras palavras foram : vocês não vão agora dizer por ahi que eu
não sei nadar, porque eu sou um bom nadador.
Tendo noticia de que o nosso piquete de exploração tiroteiava
com o inimigo, segui sosinho para o acampamento de Apparicio,
tres leguas distante, no interior da mata. O caminho era apenas
uma picada onde em tempos tentaram fazer uma estrada, e pontes
ou estivas nos arroios e lamaçaes, estrada que o abandono fez desa-
parecer, e as pontes que o tempo destruiu tornaram-se em verda-
deiro perigo para passar-se a cavallo. Havia n'esta extensão apenas
duas casas de colonos italianos, na primeira encontrei um cazal de
velhos que se mostraram muito cortezes e pediam para não deixar
que na volta lhe comessem o milho verde, a outra estava deserta .
Entristeci-me encontrando ali mappas da Italia, livros italianos, dis-
persos e atirados pelo chão.
Entre estes livros havia I promesse sposi , de Manzoni e o Episto-
lario, de Sylvio Pellico. Aquelle trabalhador que abandonara a pa-
tria para conquistar a vida, era portanto um homem de alguma edu-
cação, e lia os livros em que se conhece o que é a prepotencia
des senhores n'um povo escravizado, negando ao pobre até o direi-
to de amar, e a tyrannia dos que matam e encarceram pelo direito
da authoridade. Só a tarde cheguei ao acampamento. Era no meio
da selva ao longo da picada. Apparicio tinha feito para dormir um
giraú, com medo das cobras, eu dormi sobre um monte de palhas.
A madrugada, uma chuva miuda veio tornar mais aborreci-
143 -

do aquelle acampamento. Depois de mim chegou o Dr. Arthur Ma-


ciel que voltou a noite mesmo. No outro dia fui até o ponto onde
se tiroteiava e voltei logo, tivemos dois feridos e eu uma ferida
no pé.
O inimigo que tinhamos, erão allemães que Pinheiro Machado
conseguira convencer que iamos por alli para destruir suas colo-
nias. Elles se defendiam, occultos no mato , mas apenas os nossos se
aproximavam davam alguns tiros de emboscada, corriam a procurar
outro esconderijo.
Era esta a peior guerra que poderiamos ter ; voltamos por-
tanto a occupar a posição na margem do Jaráguá, onde poderiamos
contel-os se viessem acossados pela gente de Estacio Azambuja e
Laurentino Pinto.

Dois dias depois, recebemos telegramma do Dr. Abdou Baptis-


ta, avisando de que Pinheiro Machado tomara a estrada dos curi
tibanos em busca do Rio Grande.
Que suas forças iam mal, núas e famintas e que Laurentino
Pinto ia perseguil- os , devendo causar- lhes serios estragos senão o
completo desbarato. Podiamos portanto voltar a Joinville.
O estado do meu pé não me permittia fazer o regresso a
cavallo sem muita dor. Os dois feridos forão n'uma canoa. Uma outra
canoa levava um canhão, algumas bagagens e Emiliano ; esperava- se
ainda uma outra que não appareceu , e eu tive de metter-me n'uma
pequena, tripulada por um homem só, e levar n'ella um canhão, e a
carreta, que enchi- a completamente. Nos rapidos tinhamos que
descer e segural - a com as mãos para não virar. Mais de uma vez
tive receio de que o nosso canhão, fosse para o fundo do rio : esta
preoccupação fez- me esquecer das dores do pé, e o estar sempre
mettido n'agoa concorreo para isso . O rio tem apenas um estreito
caual navegavel, e o canoeiro , a toda hora, sahia d'elle encalhando
na arêa, e eu tinha de baixar nem só porque era preciso alliviar o
peso, como para ajudal- o a fazel a fluctuar. A vida não é mais de
que um contraste constante entre o dia de hontem e o de hoje. Lem-
bras- te quando uma vez iamos da America Dourada por Canna Brava
e o rio encheu - se, e eu tive de arranjar uma ligeira canoa , uma
gamella para te passar, e em quanto os rapazes puchavam as cor-
das, nadando, eu nadava perto de ti, que te zangavas julgando que
ia affogar-me, sem saberes que o que eu fazia era para estar alli
onde te ameaçava um perigo ? Hoje, aqui vinha cuidando de uma
arma destruidora, com a mesma cautela que cuidava de ti, ser
creador, alma suave e casta, deposito santo de todas as crenças
do futuro. E' que esta arma, que destroe, é para nós um elemento
de vida na patria, onde só poderá viver quem podér matar.
-- 144

O sol era ardentissimo, pouco a pouco porem, foram appare-


cendo nuvens pezadas que o occultavam, e em pouco uma chuva
torrencial, um verdadeiro desmoronar de nuvens, turvava as aguas
do rio.
Não contando com ella, o meu ponche, que ia enrolado, ficara
por baixo de uma roda que não podia remover, e se vestisse - o ar-
riscaria a virar a canoa. Supportei a chuva, e o meu rosto alegre,
levava um pouco de conforto ao canoeiro que não era revoluciona-
rio, e não sabia que era preciso chegar.
As aguas cresciam. Aquelle rio que, ha pouco, prendia a nos-
sa canoa em suas areas, agora negava-se a deixar tocar o seu leito
com as varas longas dos canoeiros . E cresciam as aguas como n'um
diluvio. Madeiras monstruosas desciam como uma serpente phantas-
tica que segue em busca de uma presa. Arvores gigantescas des-
ciam, trazendo comsigo todos as arvores pequenas que os cipós
prenderam a ella, como uma ilha fluctuante. E o rio crescia e se alar-
gava. A chuva já não nos deixava ver as margens .
Só viamos agua. O canoeiro se aterrorizava ; quiz amarrar a
canoa , mostrei -lhe como as aguas crescendo como iam, levar-lhe -iam
a canoa durante a noite. Tornei -me alegre , de uma alegria commu-
nicativa. A cada jogo da canoa, a cada trovão eu respondia com
um grito , ou com uma apostrophe jocosa, em pouco o canoeiro me
imitava. Tomei um remo para ajudal- o a desviar a canoa da cor-
rente que poderia submergil- a e assim nos entregamos á mercê
das aguas. Deveria ser um d'esses espectaculos das nossas regiões ,
que fez nascer em José de Alencar, aquella bella ficção do Pery
e Cecy nas aguas do Parnahyba, e para um Pery como eu , que aban-
donara, esposa, filhos , mãe e irmãos, para não ver morrer a pa-
tria? Sò esta Cecy destruidora, esta bocca de fogo inconscient das
desgraças , com um só dos seus affagos, poderia ser minha compa-
nheira n'este deserto selvagem, n'esta terra primitiva que viu a tra-
gedia dos que matavam uns aos outros, para saberem quaes erão
mais bravos, e assim se anniquillaram, e hoje, no que chamam ci-
vilisação matam , para gozarem uns, e outros matam para não mor-
rerem. Contraste dos povos . Civilisação hedionda , hypocrisia infame .
Não nos querem deixar dispor da patria como cousa nossa ? Mate-
OS -- Viva a Republica.
"Estamos matando. Viva a Republica. "
*
**

Já ao anoitecer chegamos a estrada que devia alcançar para


seguir viagem por terra.
A ponte que dias antes passaramos, tinha desaparecido de-
baixo d'agua . O rio transbordára e ella tinha muitas braças de agua
145

passando por cima, se é que seus destroços já não iam longe. Abri-
guei-me n'uma casa abandonada onde haviam outros revolucionarios
e nada havia para comer. Emiliano estava ali com uma cara de diabos.
Nada achara para comprar e o coronel nada comeria, tendo
almoçado mal .
O Emiliano pensava mais em si do que em mim, mas lamen-
tando por mim, mostrava dedicação. Que bom politico seria o Emi-
liano...
Dormi n'uma canoa velha e felizmente o pé não me encommodou.
A agua fria tirando o calor deu -lhe uma especie de insensibilidade.
Ao amanhecer soube que em uma pequena casa, tambem des-
habitada, achavam-se o general Jacques Ourique e o tenente- coronel
Gentil . Fui vel-os . Apezar de tudo , de toda esta vida que levamos ,
a minha natureza não se modifica, continúo a ser 0 homem que
procura ser amigo dos que lhe causam boa impressão. As desillusões
desde a infancia não me poderam destruir esta natureza, aqui neste
grande scenario de sacrificios ella se accentuou, por isso tomei por
Jacques Ourique uma verdadeira affeição, quasi que diria a elle
como o poeta .
Te voglio bene.
*
**

A casa em que pernoitou Jacques era tambem, como a do


italiano que encontrei nos matos dos Jaraguá, de um homem educa-
do. As paredes estavam cheias de payzagens pintadas por elle, e mui-
tos quadros de oleographia cobriam-n'as. Felizmente nossa gente
não se lembra de conduzil- os. Entre estes quadros predominavam os
dos adeptos Christãos , dos amantes da familia humana. Christo que
na sua singeleza , plantou nas almas boas a arvore da justiça que,
como o carbonato que no seio da terra crystalisa-se transformando-
se em diamante, cujos prismas decompoem a luz, no decorrer de
annos, de seculos, mostra que as causas pódem ser más e o meio
tornar bons os effeitos, pódem ser boas e o meio tornal- as impro-
ductivas, ou máos os effeitos, era em quasi todos os quadros a fi-
gura saliente.
Magdalena, a heroina, era tambem o thema de outros.
*
**

Tive que marchar a cavallo, mas apenas comecei a viagem, o sol


ardente reflectia- se nas aguas estagnadas na estrada e aos lados , e o
meu pé começou a inflammar-se a ponto de não poder supportar o
peso da bombacha. Felizmente Apparicio não tinha caminhado muito,
e vendo o meu estado, quando fui á casa em que acampara, deu-me
um chiripá, vestido que nunca eu havia usado , e que elle mesmo
veio collocar- me.
10
146

A marcha me arruinava a ferida. Tinha febre , e na primeira


casa onde vi que se poderia tomar um pouco de café e algum ali-
mento, pagando, apeei- me. A dona da casa, uma allema que na
especie poder-se-hia chamar bella , recebeu-me, e não sei se porque
sabia que lhe havia de pagar bem os seus serviços, tratou -me com
carinho.
Quando te digo isto é porque em muitos lugares vi verdadei-
ras explorações aos pobres revolucionarios, extorções que elles julga-
vam um crime e os habitantes um dever aproveitar o martyrio dos
outros para fazerem fortuna . Por uma camisa dez mil réis , por um
café dois mil réis . Se o revolucionario dizia : Não lhe pago, está me
roubando, elle ia queixar- se que tinha sido roubado em um mil réis ,
quando havia querido roubar quatro.
Depois de algum tempo de descanço a febre cedeu.
Tive uma regular ceia servida pela proprietaria em pessoa,
tendo ella duas creadas, que traziam os pratos até a porta
onde ella os recebia . Depois fez-me ella mesma uma cama na sala
e conversou commigo muito tempo. O marido tinha muitas carretas
que estavam alugadas para conduzir a nossa gente. A' noite voltou
a febre, e com a febre uma terrivel insomnia. A boa senhora não
se acommodou durante a noite, nem nenhuma das suas creadas ;
ora um pouco de chá, ora uma limonada , me trazia ella para mi-
tigar-me a sede ardente, fazia ella mesma a applicação de pannos
de agua fria no meu pé, sentava-se junto do leito, falava-me de ti,
indagava como eram tuas feições, e mais de uma vez pedi- lhe por
favor que deixasse-me em paz ; não basta as dores physicas que
estou soffrendo porque vir revolver-me as feridas da alma ? Revol-
vel-as ? quando ellas viviam sempre abertas, quando nem um mo-
mento podia esquecer-me de ti ! Um ligeiro somno pesou-me sobre
as palpebras , quando acordei estava ella sentada junto ao leito .
Eu tinha sede, e ella ja tinha um grande copo , dos que os
allemães usam para beber cerveja, cheio de limonada, e apresentou-me.
Bebi a longos tragos, e levei aos labios sua mão bemfazeja que
ella retirou enchendo de lagrimas seus grandes olhos azues. No ou-
tro dia era preciso marchar, chegar a Joinville, onde caso fosse
preciso, encontraria recursos. Nada me quiz receber pela hospedagem e
seu trabalho, e ainda deu -me um retrato para ti .
,, Diga a ella que cuidei de si, lembrando-me como ella estaria
afflicta, se o visse soffrendo . Suave balsamo é este que dispensam as
almas boas aos que soffrem. Bemdita foste tu ó dôr, que me fizes-
te sentir, quantas vezes vi voltar-se para mim esse olhar terno da
gratidão, que eu nunca havia sabido comprehender.
*
**

Cheguei á tarde a Joinville, e ahi encontrei um irmão do


-- 147

Dr. Menezes Doria que vinha do exercito do general Piragibe, e o


Dr. Colombo Lione que viera a pé de Paranagúá, para dizer- nos que
tudo ali estava preparado, a nossa espera. Gomercindo estava no
Itajahy, onde se achava tambem o general Salgado .
Ali ia resolver- se se deviamos voltar ao Rio Grande ou se
deviamos ir tomar o Paraná, onde já se achavam forças rio-granden-
ses ao mando de Juca Tigre. Jacques Ourique seguiu para Itajahy
afim de assistir a conferencia, eu não podia seguir, disse-lhe, po-
rem, qual a minha opinião. Não tinhamos nem armas, nem cavallos
para invadir o Rio Grande, onde as forças castilhistas deviam vir
encontrar-nos, visto que, depois da batalha do Rio Negro, elles de-
viam ter procurado a serra. Procurar o Rio Grande por caminhos
tão difficeis, entrar n'uma zona, já empobrecida, e cujos ultimos
recursos seriam retirados para nos prejudicar, e seguir assim até
a campanha, era impossivel ; um absurdo tentar-se.
O Paraná tinha recursos, aproveitariamos d'elles e assim po-
deriamos voltar em pé de guerra.
Depois de expor minha opinião , combinei com Jacques para
avisar- me a resolução pelo telegrapho. Seu silencio indicaria que ti-
nhamos de voltar, o que eu considerava a nossa derrota, caso
porem, Gomercindo resolvesse progredir em nossa marcha triumphante,
elle me passaria um telegramma dizendo : Tavares marcha. Dois dias
esperei esse telegramma, dois dias pensei que iamos perder tudo que ha-
viamos ganho, voltando ao Rio Grande n'uma marcha que seria a ago-
nia da revolução, e mais me inquietava porque sabia que das forças
do general Salgado partia uma grande caballa convidando as de
Gomercindo a seguilos. Telegramma, havia visto , que se dizia : Quem
ama o Rio Grande deve vir. Sem armas e a pé, quando haviamos
abandonado o Rio Grande por falta de recursos na região serrana ,
onde fomos levados ! Felizmente no terceiro dia recebi o telegram-
ma, no quarto dia, chegou Gomercindo . Veio ao meu quarto, falou-me
no que tinha resolvido. Que Salgado dissera que ia voltar, mas
que elle julgava impossivel. Gomercindo tem n'estes poucos dias
perdido seu caracter alegre e prasenteiro. Grandes apprehensões
pesam - se n'aquella mente, sempre prompta em conceber planos arro-
jados , que o tem levado á posição brilhante que occupa entre os
que lutam por amor à causa. Disse-me que corria em Itajahy que
eu por doente, abandonaria o exercito. Immediatamente passei um tele-
gramma para um jornal do Desterro declarando que apesar doente, es-
tava prompto para seguir a cruzada libertadora, até onde fosse o ul-
timo companheiro enfrentar ao tyranno.

Nosso objetivo era o Paraná, onde o dictador concentrava to-


dos os seus recursos disponiveis. O general Argollo tinha se retira-
- 148 -

do. Mais de uma vez ouvi falar-se a seu respeito com insinuações
de cobardia . Tenho protestado contra isso. Argollo é brasileiro,
Argollo é bahiano. Argollo tem um nome heroico, a defender a pro
pagar, a idéa de cobardia é um absurdo.
Ha uma certa injustiça nos grupos das guerras civis , contra
os adversarios. Fugiram, dispararam ! Não se lembram que n'essas
forças ha irmãos que lutam contra irmãos e que a perversidade che-
gou ao ponto de que os prisioneiros não têm direito de vida ?
Não ha o abraço fraternal dos vencedores e vencidos ; não
ha as forcas caudinas que humilham officialmente, mas abraçam depo-
is. Ha esta lei dos que para viver precisam do deserto em torno
de si . Mata , dizem elles e o revolucionario triumphante busca
pôr em pratica a lei que elles decretam ! Vergonha de uma raça
que se anniquilla. Argollo é apenas o brasileiro que guarda o seu
sangue para as lutas nobres em defeza da Patria contra o estrangei-
ro, como o seu grande parente.

Se nos annuncia, em frente, um chefe, que segundo versão, é


amigo pessoal do dictador. E' portanto contra um defensor de
interesses individuaes que nos vamos bater. Nas mesas do jogo,
entre o ganho e a perda, repousa um punhal muitas vezes. Ou dá- me
o ouro ou mato-te , e a vida de muitos desapparece por aquelle boca-
do de ouro que no tempo se gastará. Tal é a abnegação dos que,
por amizades aos potentados, levam a vida nos combates ; vida mui-
tas vezes preciosa, muitas vezes necessaria à familia ou á patria.
O inimigo tem seus reductos na Lapa, em Ambrozios, e Parana-
guá. Em caminho da Lapa está o general Piragibe, e com elle
Torquato Severo e Juca Tigre. No caminho de Ambrozios está
Augusto Amaral, vigiando o preparativo de uma estrada de rodagens
por onde elles pensam passar com artilheria, para nos atacarem.
Reunir todas as forças para um ataque decisivo , seria um erro.
Gomercindo combinou um plano com Custodio de Mello : Piragibe,
ameaçará mais de perto as forças da Lapa . A esquadra atacarà Pa-
ranagúa, a brigada de Apparicio atacará Ambrozios, ficando na es-
trada geral uma força de protecção ao mando de Fulião . A noticia
que temos é que a guarnição de Ambrozios é apenas de trezentos .
homens, forças muito pequenas para fechar porta tão importante.
A divisão de Laurentino Pinto lá está por Blumenau, e o corpo de
Estacio Azambuja , o valente Estacio, deixou - se levar pela exploração
do amor ao Rio Grande e lá ficou-se com o general Salgado que
nada poderá fazer , e perderá todas as partes de gloria que por
direito lhe pertencem. Te estou escrevendo do Kilometro 62 , na
estrada D. Francisca . Nossa viagem para cá foi, como tem sido
- 149-

ultimamente, em carros e carroças. Choveu muito durante o dia e


a estrada que é feita em zig zag, no flanco da serra, desmoronou
em muitos pontos . Gomercindo tem estado aborrecidissimo . Falton
conducção para trazer as forças que ficaram espalhadas em diversos
pontos, e faltou tambem alimento. Para quem habituàra- se à luta
da campanha, a cavallo, parando e carneando onde quizesse , este
estado de coisas, o estar a vontade dos carreteiros, a espera dos
fornecedores, é desolador. A estrada que vai a Ambrozios, onde
está o inimigo, é quasi intransitavel por carretas . O tenente coronel
Gentil, ajudante de Jacques Ourique, encarregou- se de revizal- a , e
o fez em poucos dias, formando pontilhões e estivas, de modo que
podemos conduzir , não só as nossas boccas de fogo, metralhadoras,
como carretas com munições.
O serviço do transporte foi mal feito, ficando para traz ar-
tilheria e carretas cujos cavallos cançaram. O Major Victorino Sil-
veira que vinha commigo, voltou a noite do meu acampamento e vi
passar depois com a artilheria soturna e funebre toda coberta de lama.
No outro dia chegamos ao acampamento do Augusto Amaral, ja no
Estado do Paraná . A chuva não deixava fazer-se fogo para o almo-
ço ; e tinhamos fome, mas n'este genero de guerra nada se pode deli-
near. Acabamos de ouvi tiroteio muito proximo. O valente Peixotinho,
filho de João Maria Peixoto, de Bagé, está para diante, é portanto
elle quem está tiroteiando.
Levantamos acampamento e tivemos de marchar . Não tardou
em que chegasse a communicação do Major Peixoto . Encontrara-se
com um piquete inimigo e tiroteava- o . Já tendo feito dois prisioneiros
que entregara a um official . Um dos prisioneiros escapara, o outro
morrera. Pouco depois chegou um negro alto, habitante do lugar,
muito satisfeito , contando que havia degollado o prisioneiro. Todos
nós reprovamos o acto e eu não pude conter a minha indignação
contra aquelle individuo que, sendo morador do lugar, não se encom-
modava de plantar ali os habitos que a gente do Sr. Castilhos
plantara no Rio Grande do Sul , razão pela qual a guerra civil ali
perdeu todas as prerogativas concedidas á humanidade . Não achan-
do apoio em nós, arrependido jà do que havia feito , elle se humi-
Ihara ante minhas palavras, e da ameaça de ser punido se tornasse
a praticar outro acto igual, me respondeu : „Elles queimaram mi-
nha casa, senhor , me destruiram tudo sem eu estar envolvido em
nada, e estragaram todas as casas dos visinhos . ,, Realmente, todas as
casas que havia no lugar estavam estragadas, excepto uma, que ti-
vemos de mandar guarnecer por conter grande porção de fazendas e
generos. Em uma destas casas, abandonadas, estragadas, encontrei um
diploma de socio da protectora da Santa Infancia. Era de um fran-
cez. Mesmo n'aquelle sertão quasi deshabitado, havia uma alma bôa
que pensava no soffrimento dos orphãos infelizes .
150 ---

A' tarde chegamos a uma pequena casa de negocio onde já


encontramos Apparicio, que vinha da frente do inimigo.
Tinha ido observal- o , e avistara-o em pequenas trincheiras
junto ao mato, n'uma cochilha. A vontade de Apparicio era que
atacassemos aquella tarde mesmo. Marchamos immediatamente.
A chuva tinha tornado os caminhos quasi impraticaveis, e subir
as ladeiras levando carroças e artilheria era o cumulo do exforço.
Na casa onde encontramos Apparicio, teve de ficar uma força para
guardar uma picada que ia ter á povoação de Tijucas, ao mando
do bravo Major Victorino Silveira . Contavamos tão certo a victoria
immediatamente, que Arthur Macie! pedira-me para mandar uma pes-
soa avisar. Victorino que logo que ouvisse 21 tiros poderia mar-
char. Os 21 tiros seriam a saudação da nossa primeira victoria no
Paraná ?
Jacques Ourique calculava aquella batalha igual a uma das
que tivemos no Paraguay onde elle, no começo de sua vida de mi-
litar, teve os primeiros ensinamentos ; acção de artilheria e depois
acção das outras armas ao mando do conde D'Eu , em pessoa.
Acampamos ao longo da estrada, fazendo a vanguarda as
forças de Augusto Amaral. Apparicio, Arthur Maciel, Jacques, eu e
muitos outros officiaes superiores, fomos ao ponto de observação
do inimigo que ainda lá se conservava em actividade. Jacques es-
colheu a posição que devia occupar a artilheria no inicio da batalha ,
e voltamos ao acampamento, desejosos que as horas da noite passas-
sem rapidas.
Eu tinha mandado armar a minha barraca proxima a de Au-
gusto Amaral, na vanguarda.
Ao chegarmos ali, conversando com o official de dia, um ra-
paz de 18 a 20 annos, de olhos negros e vivos, de cor morena san-
guinea, um typo de belleza masculina brazileira, um dos companhei-
ros, disse-lhe algumas palavras sobre as observações que devia fazer
durante a noite ; a collocação dos piquetes, os signaes de alarma.
Durmam descançados, o serviço será feito como é preciso, disse
elle. Esse rapaz, Leovegildo de Mello é um desertor de 5º. regimento
de cavallaria. Desertor ! Desertor do bem estar, de todas as regalias na
luta, do futuro da familia se elle morrer, do futuro brilhante se viver,
para vir libar a taça da amargura com seus irmãos que escravizam e
matam, a quem opprimem e amordaçam, que soffrem fome e miserias
e elles insultam ! Desertor para a dignidade humana, é o que elle é.

A noite passou - se sem accidente. Logo cedo tivemos de mar-


char, e Emiliano brigava com o allemão, dono da carroça que levava
a minha bagagem e ambulancia por ter elle escondido um cavallo .
151-

Sabia que iamos brigar, e isto não lhe agradava. Afinal marchei,
deixando a ambulancia ao cuidado de Emiliano. Ao chegarmos ao
ponto de onde se avistava o inimigo ficamos surpresos. As trinchei-
ras estavam abandonadas...
O terreno onde nos achavamos, muito ondulado, a pouco tempo
começara a ser desbravado. A estrada serpenteia, acompanhando os
declives . Uma roçada nova cheia de madeiras que o fogo não des-
truiu é o que temos diante de nós, terminando- se no matto ; alem, no
outro declive, está a villa de Tijucas. O caminho é um só, é a estra-
da de rodagem que elles estavam fazendo. Fugiram, diziam as forças
que vinham chegando emquanto os exploradores marchavam. Fugiu a
bahianada, sentiu a nossa catinga . La nos pagos amigos, no churrasco e
chimarrão o homem ganha almiscar que se sente longe... Me doia ver
que homens da mesma raça, da mesma familia se gloriavam ante provas
apparentes de cobardia de seus irmãos. Vamos a Villa tomar café,
e nada arranjaremos, nem um ponche, nem uma carabina , é preciso
dar- lhes caça .. vão levando nosso soldo.
Não pensem assim, dizia-lhes eu , esperem um pouco e tenham
cautela. A nossa exploração seguia pela estrada tortuosa como quem
vai a uma caçada ou a ceifa, entrava na bocca da mata cortada pela
estrada , justamente quando eu terminava a minha phrase ; esperem.
Na mata produzio -se um ruido igual á queda de uma arvore
gigantesca que vai levando comsigo as arvores menos fortes, presas
pelos sarmentos e esmagando as outras que lhe são subpostas , e afi-
nal ouvindo o som abafadiço da arvore quando se despedaça ao esten-
der- se no solo, eu disse: Que monstruoso pinheiro cahio ! mas os movi-
mentos dos nossos, os tiroteios das guerrilhas, e o sibilo das balas
que já passavam por nós, modificou a minha phrase: Estão brigando: ahi
estão os bahianos; cuidado e para diante: Tudo isto passou- se no cur-
to espaço de segundos.

Apparicio e Augusto Amaral achavam- se no ponto onde se


empenhava a luta. Jacques Ourique e Arthur Maciel precipitaram - se
para lá acompanhados de Carlos Nogueira da Gama e todos os
companheiros que, como sempre corriam para o lugar da acção aos
primeiros signaes de alarma.
Mandei dar pressa a Emiliano para seguir com a ambulancia
e encontrei já muitos feridos em umas casas de taboas, onde depois
de ter sido o inimigo desalojado do matto, procurara resistir, sendo
d'ali desalojado pelos nossos que os acompanharam até dentro da
povoação, onde dias antes haviam feito trincheiras. Augusto Amaral
chegou até as trincheiras e ali , deixou mortos, entre outros , o bravo
rapaz, Leovegildo de Mello , de quem falei que havia sido o official do
.152 -

dia, na vespera. A protecção que devia ir a Augusto Amaral levada


pelo Major Varella, não chegou a tempo, e Augusto seria victima
com seus bravos companheiros, em cima das trincheiras, se o Major
Antonio Nunes Garcia, com a sua pequena infanteria não lhe pro-
tegesse a sahida daquelle circulo .
Os florianistas brigavam com denodo, dando vivas a Floriano, ao
que Augusto Amaral, apesar do perigo em que estava, respondia
dando vivas aos homens de honra, e abaixo os protectores de la-
drões . Emiliano quasi maltratou ao allemão da carroça que não que-
ria seguir por causa das balas. Havia chegado a tempo com a am-
bulancia, porque muitos ja eram os nossos feridos . A fonte estava
longe da casa, e para lá ir passava- se a descoberto à vista do ini-
migo. Emiliano ia e voltava, trazendo agua n'um pequeno balde,
não só para dar de beber aos feridos como para os curativos . Já
estava muito amigo do allemão, que tanto medo mostrara de
chegar ali e que entretanto o ajudava a conduzir agua, e que per-
guntando-lhe porque ja não tinha medo, este respondera que o medo
não era por si, mas pelos seus cavallos que felizmente estavam abri-
gados pela casa.
Muitos eram os feridos que chegavam. Uma das casas não
podendo contel-os todos, tivemos de abrigar os outros em uma ou-
tra casinha mais proxima da linha inimiga. O chão tinha-se tornado
lamacento com o sangue que corria. Os maiores estragos eram fei-
tos por explosões das granadas inimigas. Chegavam feridos sem per-
nas que, sendo despedaçadas pelas balas , elles mesmos cortaram-n'as,
e eu tinha de ligar as arterias, cerrar os ossos lascados , fazer os
curativos. Sozinho, esse trabalho tornou-se pesadissimo porque era
feito de joelhos, quasi deitado, porque o chão é que era o leito da-
quelles infelizes .
Quasi já não me podia erguer, tal era o cançaço proveniente
d'aquella posição, e as balas cahiam nos tectos de taboas como chu-
va de granizo. Depois chegou Grevy, arrimado por dois companheiros ;
trazia uma perna oscilante, estava pallido pela dor e pelo sangue
que perdia, mas seu olhar não esmorecia. Mandei collocal - o em um
canto, emquanto acabava o curativo dos que haviam chegado pri-
meiro. Um official a quem eu fazia a recessão de calcaneo , gemia
e lamentava-se. Grevy interrogou-o : porque estava gemendo ? Não
sabia d'isso ? Quem vem cá é para soffrer e não para gemer, por-
tanto, tivesse paciencia. Realmente, aquelle rapaz é de uma coragem
extraordinária. Supportou todo o curativo sem gemer. A perna com-
pletamente esmagada, requeria amputação, mas ali era impossivel .
Colloquei- lhe apparelhos antisepticos, para poder esperar.
De mais, aquella posição era má. Uma investida do inimigo ,
um recuar dos nossos, incidentes constantes nas batalhas, todos nós
seriamos colhidos ali.
- 153

Afinal, cuidando de um ferido junto à parede, uma granada


veio, mas felizmente deu na grossa madeira que sustentava o tecto, e
explodiu, cahindo longe os estilhaços . Algumas pollegadas para a direita
ou esquerda o ella teria perfurado a fragil parede de taboas e todos
nós seriamos victimas. Com tudo, o choque foi tão forte, que, eu que me
ia erguendo cahi de bruços sobre o ferido. Em meio daquelle horror
eu me entristecia de ver a que ponto tinham plantado o odio na
familia brasileira pelo interesse de alguns, e convicto de que havi-
amos de vencer, lembrava-me da provocação na Forza del destino
e cantarolava ouvindo os gemidos de meus companheiros : 0 fratel
pietá, pietá.

O fogo recrudescia e a luta parecia prolongar- se, O inimigo


entrincheirado não permittia um 1 ataque rapido, um golpe de ouza-
dia que é o que põe termo a esse morrer lento . Nossas boccas de
fogo, de calibre pequeno, e de balas rasas, pouco estrago causavam- lhes
porque perfuravam as paredes sem demolil-as . ao passo que a arti-
lheria adversa nos causava estragos . Apparicio a cavallo, corria de ,
um lado para outro onde estavam os nossos, não precisando da lança ,
sua arma unica, por ali não poder operar, abriu um guarda chuva
e assim andava.
Vendo isto censurei-o, porque assim offerecia um bom ponto
para alvo . Respondeu- me :
Pois se está chovendo mosquitos , assim posso livrar-me d'elles....
Era impossivel deixar pernoitarem ali os feridos ; por isso mandei
armar barracas, um pouco distante, junto do arroio, para transpor-
tal - os para lá. O transporte foi difficil, porque a estrada em terreno
desigual, deixava á descoberto os que por ali passavam a conduzir
feridos em carretas e padiolas, sentindo o sibilar das balas era
como podes imaginar bem desagradavel ; apesar d'isso não deixei,
de ir e voltar todas as vezes que foram precisas para accommodal- os
nas padiolas . A' tarde o fogo começou a espaçar e só a nossa
artilheria respondia-lhes, ou elles respondiam a ella. Eu estava no
meio da estrada, fazendo o curativo do capitão David Montanha,
e cercado por muitos outros que vinham chegando a espera de serem
curados, quando vi apparecer Gomercindo que chegava, acompanhado
do Dr. Annibal Cardozo. Gomercindo mudava sempre de aspecto ,
quando via companheiros feridos. Que tolice esta de atacar trinchei-
ras ? perguntou-me elle, isto se faz ?
Não foi nada , disse eu e disse para o David a quem curava :
Dá um viva a Gomercindo.
David obedecen-me e foi correspondido por todos os feridos .
Gomercindo commoveu-se, esporeou o cavallo e seguiu, dizendo- me :
Cuida bem d'elles , Dourado .
- 154

Pouco depois começaram a chegar nossas forças ficando só uma


á retaguarda. Depois passou Gomercindo que me disse que tinha man-
dado retirar, porque tinha sabido que no dia convencionado para o
ataque simultaneo, à esquadra que devia atacar Paranaguá ainda
se achava en S. Francisco e que Piragibe não havia atacado a
Lapa, porque ainda se achava longe, conforme soubera pelo major
Doria. Que ia resolver se deviamos permanecer ou irmos embora , vis-
to que era impossivel lutar, onde ninguem cumpria o que se combi-
nava.
Apparicio passou a noite na retaguarda e nós ali onde nada tinha-
mos para comer, e de uma gallinha que Emiliano havia preparado como
fiambre, só ficara a farinha que servira - me de alimento por todo dia com
Jacques Ourique, porque havia distribuido a gallinha pelos feridos que
pediam comer. Abundante nutrição depois de um dia de combate e
depois de perder-se tanto sangue ! Mas havia agua e o ferido é só o
que deseja, e eu estava bastante meditativo sobre aquellas scenas do
dia, para sentir fome.
A noite passou- se sem accidente, sem um ruido que a pertu-
basse. Silencio profundo d'aquellas selvas, onde dormiam ' dispersos
pelo matto ao longo da estrada, aquelles guerreiros que
te um dia lutaram como loucos, não se ouvindo senão os gemidos dos
feridos que já não eram ouvidos por um d'elles, que ao sumir- se o
sol , adormecera eternamente.
Ao amanhecer do dia 12, recebi recado de Apparicio para
fazer marchar os feridos porque elle ia marchar, abandonando a
posição . Iamos portanto, perder todo aquelle sacrificio, todo aquelle
heroismo. As forças que levaramos para atacar Tijucas eram pou-
cas, porque o que se nos havia asseverado era que Tijucas tinha
pouca guarnição, e não tinha artilheria, entretanto, tal não era. Per-
dermos tempo e munições não convinha. Arthur Maciel tinha man-
dado pedir a Gomercindo para mandar-lhe mais atiradores.
O major Victorino Silveira, que ficara guardando a picada na
nossa retaguarda, chegara até perto do inimigo com poucos homens.
Não pôde atacal-os pela retaguarda nem só porque eram poucos, como
porque suas balas iriam tambem até nós, e não póde conservar-
se ali porque nossas balas attingiam-n'o. O reforço que mandara- se pe-
dir, poderia, entrando pela picada, atacar o inimigo , desviando-lhe a
attenção e a luta tornar-se-ia rapida á baioneta, entretanto este re-
forço não podera vir porque Gomercindo soubera do não compri-
mento da combinação feita para os ataques simultaneos, e assim era
perder elementos sem proveito. Viera elle em pessoa, e nós retira-
vamos. Mandei fazer padiolas de madeiras e ramas para conduzir
os feridos, e marchamos. Apesar do sol ardente que fazia e o ca-
lor dos mattos, nenhum morrera n'aquelle dia.
O cançaço de nossa gente, o transporte dos feridos em padio-
155 ―

las grosseiras e pesadissimas, o estado dos caminhos, que com o movi-


mento das forças tinham creado atoleiros em todos os lugares , onde
havia agua, a destruição das estivas feitas para dar passagem a ar-
tilheria, pela passagem da cavallaria, retardavam-nos a marcha e por
isso tivemos de pernoitar no Rio Negro , divisa de Santa Catharina
com o Paraná.
No outro dia pela manhã seguimos . Quando achei -me só na
picada por me ter demorado um pouco, pude ouvir tiros de canhão
muito longe. Não podia ser na Lapa pela direcção em que elles
vinham, era portanto a esquadra que atacava Paranagúa. Man-
dei um emissario avisar disso a Gomercindo, que encontrou- se
com um ajudante de ordens d'elle que vinha mandar suster a mar-
cha, porque havia chegado noticia de que a esquadra seguira para
Paranaguá, e que Piragibe atacara a Lapa, e ali havia chegado a
columna de Laurentino Pinto.
Os nossos, que vinham tristes, alegraram-se com estas noticias ;
iam tirar a desforra pela humilhação de ter abandonado uma posi-
ção tomada e occupada durante um dia ; eu porem tive de seguir
com urgencia por causa dos feridos , muitos dos quaes precisavam
ser operados, entre elles Grevy. Era meu plano leval- os a Joinville,
operal- os ali, deixal-os aos cuidados de um collega e voltar a Tijucas.
Eu mesmo ia assistir ou fazer toldos de folhas de feto para
priva-los do sol. Grevy ia bem e com o seu transporte era
lhor, adiantou-se ficando eu com os outros. A' tarde comecei a en-
contrar as forças que seguiam, entre ellas a do coronel Fulião que
ia furioso por não ter ido comnosco, levando sua gente a pé, mesmo
como agora fazia. Depois cheguei ao quartel do general Lau-
rentino Pinto onde soube de uma noticia que muito contristou - me . Que
tinham mandado chamar os medicos de sua columna para amputa-
rem a perna de Grevy. Mas elles não o farão , disse eu , ali onde es-
tão não ha lugar, é um deposito de couros, xarque, ervas, e tudo
que produz a terra, uma amputação ali será a morte do operado .
Mas, dizem que já está com o pé frio. —Que importa isso , se nada
temos com o pé onde o sangue não pode mais chegar ? Segui apres-
sado á ver se seria preciso privar a operação e apressar a marcha
para Joinville. Em caminho encontrei um companheiro que disse-me
já ter sido feita e que Grevy estava salvo, porque depois falou .
Cheguei contrariado ao acampamento. Jacques Ourique veio ver-
me e explicou- me o que se havia feito, declarando- lhe eu que Gre-
vy não poderia escapar ali, e que os meus collegas não haviam si-
do culpados, que operavam por ordem. A amizade sobresaltada exi-
gira isso. Mas os amigos não são medicos, não conhecem as condi-
ções.... do enfermo.
Estava resolvido a seguir para o Desterro e de lá para o Paraná ;
não podia estar n'um meio onde o meu sacrificio não tinha utilidade.
156 ---

No outro dia pela manhã foram operar outros em uma casa immun-
da. Eu não podia prival- o, porque, operado Grevy, ou todos tinham
de ficar ali, ou algum ficar sem medico. Meditei e vi que meus po-
bres companheiros não tinham cul, a do que se passava ; abandoral-os
seria peior para elles, e entre tantos sacrificios que mais era aquelle ?
uma gotta mais na taça da amargura... que devia tragar. Dirigi-me
para a casa onde operavam, e assumi o meu papel de medico de
.revolucionarios.
Os feridos precisavam assistencia . Parte das forças seguia
para Tijucas, outra para Lapa e ali, aquelle Kilometro 62 da Es-
trada D. Francisca, tornou- se o centro de todo movimento revolucio-
nario. Era d'ali que se devia registrar as marchas progressivas
das nossas columnas. Grevy parecia satisfeito, eu porem não o es-
tava. Conversava commigo o meu pobre amigo. Falou-me bem dos
medicos que o operaram, sentindo, porem, que não tivesse sido
eu o seu operador. Recommendava-me para não deixar perder o
seu pé, que não sabia onde o tinham enterrado. Queria leval- o
depois a sua mãezinha. E' o melhor presente que pode dar á uma
mãe rio grandense, um filho revolucionario , dizia elle. Depois ria-
se, lembrando-se do seu futuro emprego. Um invalido de muletas
vendendo pelas ruas : O Rio Grande, o seu jornal .
Estas impressões sobre o futuro doiam-me, porque só um acaso
poderia salval-o. O Major Nunes, commandante da infauteria, tam-
bem ali estava, e nos ajudava o capitão Roberto Silva que tinha
por Grevy a maior dedicação . Escrevi ao Dr. Abdon , em Joinville,
pedindo roupas e alimentos para os feridos . Devendo este pedido.
ser demorado, fui eu mesmo a S. Bento, a ex-capital provisoria do
general Argollo, procurar esses recursos. Infelizmente nada achei de
medicamentos . A casa do medico do lugar tinha sido aberta ę ti-
nham levantado todos os medicamentos e instrumentos . Encontrei so-
mente ali uma preparação para combater o veneno ophidico, e o nu-
mero de vidros cheios indicava ser bom o remedio.
Durante tres dias ouvimos os canhões fratricidas no seu rouco-
gemido em Tijucas. Nossas forças atacavam com energia, sobresa-
hindo-se como sempre os valentes marinheiros. O inimigo res stia com
bravura e tenacidade taes, que causava dó ver como n'esta luta sem
nome, sem interesse geral, se anniquillam vidas de que tanto a patria
precisa. Chamar- se de inimigos a irmãos que deviam juntos mar-
char para diante, ou pelo progresso moral da patria, ou para defen-
del- a, e aqui se destroem, se insultam, enfraquecendo a nação ,
deshonrando-a !
Emquanto em Tijucas morria o bravo capitão Mineiro, cortado
ao meio por uma bala de canhão, sobre o canhão a seu cargo . junto
de mim, morriam os dois officiaes operados e no outro dia, dia da
rendição do Tijucas, morria o infeliz Grevy, todos de septicemia . Tal é
-- 157

a guerra ; o prazer de uma victoria amortecida pela tristeza da perda


de companheiros , pela morte de um amigo.
Resolvi transportar os outros feridospara Joinville, a fim de
deixal- os em S. Francisco, sob os cuidados do Dr. João Gualberto.
Em Joinville demorei-me tres dias a espera da lancha á va-
por, que me devia levar a S. Francisco, onde devia estar o Urano
a nossa espera para levar-nos á Paranagua. Um incidente curioso
deu-se em Joinville. Por não poder fazer despezas no hotel, aquar-
telei- me n'um salão da Philarmonica do lugar, cuja directoria o ha-
via posto á minha disposição com o maior cavalherismo. Estava com-
migo o tenente coronel José Garcia . A tarde eu sabi , passeiando pe-
las alamedas, e quando voltei estava sentada á porta uma pobre
mulher cega e mendiga, que me havia ido procurar.
Ao chegar, pensando que vinha fazer alguma consulta , fui tra-
tando de examinal-a . Não foi para isso que eu vim cá ; eu vim
saber se o Sr. tem familia . Tenho, mas está longe. Que saudades
deve o Sr. ter ?
Que lhe importa isso ? disse-lhe eu aborrecido e retirando-me.
O doutor não gosta que se fale na familia, disse Garcia.
- E o Sr tem familia ? perguntou ella.
Não, respondeu-lhe Garcia.
Pois se o Sr. quizer me levar eu vou comsigo, eu gosto dos
revolucionarios.
Eu parei para ver a calma com que aquella pobre cega se
offerecia para compartilhar a sorte de um revolucionario, e a cal-
ma com que Garcia acceitou o offerecimento, dizendo-lhe que no ou
tro dia estivesse no ponto de embarque. E no outro dia , quando nos
embarcamos ouvimos as gargalhadas dos nossos companheiros , que
vinham nas lanchas rebocadas, por verem chorar uma cega, que di-
zia que um homem a tinha convidado para vir e a tinha logrado,
deixando-a em terra.
Ao aproximarmo -n'os de S. Francisco vimos foguetes que subiam
ao ar em girandolas. Era o Urano que chegava trazendo os filhos
do lugar, que vinham do Paranagúa , em cujo assalto haviam tomado
parte, cabendo- lhes portanto parte d'aquelle feito. O Urano estava
embandeirado em arcos, e na principal rua da cidade haviam arcos
de folhas verdes e bandeiras por todos os lados . Almocei e seguilo-
go para bordo.
A' noite, Costa Mendes convidou-me para jantar em casa da
familia de umdos exp edicionarios do Paranagúa , o que acceitei de
de boa vontade. A mãe do companheiro que havia chegado mandou-
me no outro dia um perú, doces e vinhos para a viagem . Pen-
savamos marchar no outro dia e só o fizemos a noite. O Dr. João
Gualberto mandou trazer-me a bordo, o vatapá que queria que fosse
comer em casa d'elle, mas, a todo momento parecia que iamos le .
158

vantar ferro por isso não fui. Já em marcha, Emiliano veio dizer- me
que não tinha podido levar nem a cesta, nem os pratos e guardanapos
do João Gualberto. Roubaste, não ? Emiliano riu- se como quem dizia :
é um meio de termos estas cousas sem comprar.
Pela manhã começamos a ver esse esplendido panorama que
apresenta a serra do mar nas costas do Sul ; é a serra dos orgãos
por toda parte , sempre cobertas de nuvens brancas, brilhantes, sem-
pre azues, as gigantescas pyramides.
As oito da manhã chegamos em frente ao porto de Paranaguá
onde ha uma guarnição . Tendo de ir ali um official levar communi-
cações , eu fui tambem. Ali vi peças de bronze ainda com dragões
esculturados .
Vi tambem a casa da polvora e o reducto feitos na base do roche-
do , onde uma granada chocando-se, não deixarà de explodir .
Quando fizeram aquelle forte, não se lembraram que a arte de
matar chegaria ao ponto de descobrir as balas explozivas .
Ao meio dia chegamos a Paranaguá. Demoramos o dia quasi
todo , a espera de trem para nos transportar á Curitiba, e a final á
tarde marchamos. A estrada de ferro de Paranaguá á Curitiba, di-
zem, é uma maravilha da arte, mas nada pude ver porque os pon-
tos de obras notaveis foram transpostos á noite.
Chegamos á Curitiba á uma hora da manhã. Não sei se pela
hora ou se pelo cansaço , a cidade não me causou impresão agradavel.
Ia commigo o coronel Severino Brasil, adoentado. Procuramos o
hotel mais proximo a estação . Nem um conhecido apparecia para nos
guiar.
Estavam em um baile em casa do Dr. Doria, governador. Sa-
bendo que tarde, da noite chegaria um trem com revolucionarios
que não conheciam a cidade, e por parte do governo , ou da guar-
nição, não apparecesse na estação uma unica pessoa para ensinar- lhes
o caminho do lugar, onde se deviam alojar, causou- me pessima impressão.
Julgam talvez que tudo está terminado , que podem entrar na vida nor-
mal, e eu julgo que nada está feito ainda, e se estivesse terminado
essa terminação seria contra nòs .
O dono do hotel, Agostinho Leandro, deu-me um bom commodo.
Pertence ao partido adverso, mas parece-me um bom homem e estou
resolvido a não sahir de sua casa , emquanto aqui estiver.
Pela manhã tive a visita de Doria,que me veio dizer que tinha em
casa d'elle um lugar para mim , e que exige que eu acceite. Disse-lhe
que não é possivel. Que, de mais, sei que Laurentino Pinto lá está
hospedado com todo seu estado maior. Disse - me que junto aos apo-
sentos de sua familia ha um commodo occupado por seus filhos e
que ali pretende collocar-me. Respondi francamente, que não .
Que tinha pecessidade de trabalhar, que sou toda hora pro-
curado pelos companheiros, e demais uma familia separada do che-
159

fe durante muito tempo precisa estar só na sua volta. Ha muitos


cousas que dizer e que se lembra a toda hora. Fazer-se de sua
casa quartel ou hotel, é não comprehender as necessidades da
vida.
Achava- me sem dinheiro e Doria emprestou- me quinhentos mil-
reis, com que posso vestir-me.
Doria narrou -me como havia sido acclamado governador, a
sua chegada á Curitiba. Disse -lhe que alegra-me o apreço que seus
conterraneos demonstraram- lhe acclamando-o, mas que no caso d'elle ,
não seria governador um minuto .
,,Nas revoluções os governos devem ser juntas executivas. Um
homem como tu, estimado, que tens no futuro de organisar o Estado,
sendo governo n'ama revolução onde tudo é dictadura, onde ha
actos de que difficilmente se poderá assumir a responsabilidade, é um
prejuizo para o futuro . ,,
Doria retirou-se exigindo que fosse jantar com elle , para apre-
sentar- me á familia.
Jacques Orique e Gentil vieram com outros visitar-me. Jac .
ques está feito chefe do districto militar. Não achei tambem razoa-
vel esta creação . Operam aqui as forças revolucionarias ao mando
de Gomercindo, Piragibe e Laurentino, sitiando a Lapa. No estado
se organizam corpos ás ordens do governo estadual, de modo que
Jacques Orique que tem merecimento proprio e muito poderia fazer ,
fica por assim dizer inutilisado, limitando a sua pratica e intelli-
gencia a uma zona muito diminuta. Não vejo n'isso senão o desejo do
governo provisorio em querer realisar o que está disposto nas leis
em relação ao tempo de paz . Neste caso , si se considera governo pro-
visorio do paiz e não de Santa Catharina onde tem sua séde, deveria no-
mear commandantes de districtos para todos os estados , ainda que
elles não fossem lá, como faz o Papa com seus bispos in partibus,
in fi de lium. Mas querer executar as leis do paiz como em tem-
pos normaes, falar na constituição, quando infringe- a separando Es-
tados, porque estes dois que occupamos estão separados da communhão,
é difficil de se poder comprehender .

**

Os hospitaes aqui continuam a serem dirigidos pelos medicos


militares ; portanto, posso descançar alguns dias, porque no sitio da
Lapa acham-se dois medicos, e eu não tenho serviço senão n'um
quartel, onde estão forças do Rio Grande.
Apresentaram- se para prestar serviços uma senhora e duas
filhas, de familia distincta. E' um acto de humanidade que muito
as recommenda, sobre tudo pela perseverança no serviço do hospi-
tal, onde cuidam dos feridos como verdadeiras irmãs de caridade.
- 160 -

A grande mania aqui é dos photographos. Tem vindo pedir-nos


para nos retratar ; ja tive pedido de duas photographias.
Recebi de S. José dos Pinhaes telegramma de felicitação dos
nossos partidarios e uma commissão d'ali veio avisar- me de que o
batalhão que se forma n'aquelle municipio se denominará Angelo
Dourado ; tenho por tanto de arranjar uma bandeira para ir offe-
recer-lhe e terei de ir áquella villa assistir á sua marcha para a
campanha.

O sitio da Lapa continúa.


O coronel Carneiro offerece uma resistencia heroica. Em um
dos combates morreu um official de marinha de nome Cotrim . Veio
para ser sepultado aqui. Fui recebel - o no trem , e convidei a diver-

sos para conduzirmos a padiola , o que fizemos dando prova do nosso
apreço pelos nossos compheiros.
Gomercindo resolveu atacar a Lapa mesmo em suas trinchei-
ras ; é provavel que tenhamos muitos mortos e feridos, e por isso
sigo hoje para lá em trem expresso.

A Lapa e uma pequena cidade de campanha, situada n'uma


lomba de terra, de norte a Sul, de modo que, domina uma vasta
zona. A leste corre-lhe parallelo um alto serro, o do Monge, que por
sua vez domina toda a cidade.
Este serro está occupado pelas nossas forças ao mando do
Juca Tigre. Ao sul estão as forças de Torquato Severo ; a oeste as
forças de Apparicio, na estação da estrada de ferro, já na cidade.
Ao norte as forças de Piragibe ; ao noroeste, já dentro da cidade
as de Laurentino Pinto. O batalhão naval ao mando de Perry e o
25º ao mando de Izidoro Dias Lopes. Gomercindo , tem o seu quar-
tel general na cochilha do norte, mas passa todo o tempo na estação ,
quartel general de Apparicio. Piragibe tem o seu quartel n'uma
estação da estrada de ferro, ao norte avistado tambem da cidade.
Do quartel de Piragibe é que partem os caminhos que com-
municam com o serro do Monge e com a posição de Apparicio e
quartel general de Gomercindo, general em chefe das forças sitian-
tes. Estabeleci o meu quartel junto ao quartel general de Piragibe,
por ser central e poder attender ás diversas forças. Accommodei-
me na casa da estação.
Este sitio da Lapa é o producto da ousadia revolucionaria.
Piragibe estabeleceu-o com muito pouca gente. Sua columna
não attingia a 600 homens. Ao tempo que brigavamos no Tijuca e
161

a esquadra atacava Paranaguá, elle se apresentou em frente á Lapa.


Não posso comprehender como o coronel Carneiro que tem dado
provas de bravura extraordinaria e pundonor militar inexcedivel ,
deixou-se sitiar por forças insuficientes e mal armadas para se
baterem com as suas. Será que lhe cause remorso ter- se de bater
com esses valentes filhos do Sul, que tudo sacrificam para restaurar
o antigo nome desse torrão tão caro ao Brasil ? Talvez.

A historia, tão prodiga em realçar as figuras que se tornam


salientes pela posição que occupam, e que é tão parca em relação
aos modestos, aos pequenos, verdadeiros factores anonymos da for-
tuna ou gloria dos que pelo nome ou posição absorvem seus feitos,
difficilmente registrará n'um homem modesto, feitos de valor como os
de Torquato Severo. Torquato depois da nossa volta de Jaraguá
e da resolução de progredirmos em nossa marcha, fôra mandado por
Gomercindo para auxiliar o general Piragibe, n'aquelle ponto
d'onde dependia o bom exito das operações. Em frente á Lapa,
depois de ostentarem a posição de sitiantes, reconheceram que as
nossas forças erão inferiores em numero e elementos bellicos ás do
coronel Carneiro.
Muitos foram de opinião que deviam levantar o sitio e mar-
char para Tijucas, afim de auxiliar-nos.
Torquato se oppoz declarando que tinha ordem de guardar
aquelle ponto e que ali ficaria. Só depois pôde- se comprehender o
valor d'essa resolução . Retirado o sitio da Lapa, Carneiro marcha-
ria para Tijucas com sua columna bem armada, com sua coragem
inaudita e reunido áquelles valentes defensores de Tijucas, a victo-
ria não seria nossa, e teriamos de retirar apressados em busca do
Rio Grande, onde a columna de Pinheiro Machado nos receberia
de frente, tendo nós a columna de Carneiro em retaguarda ; ou en-
tão Carneiro passaria a Santa Catharina e reunido com Pinheiro
Machado, nos atacaria por diante para sermos esmagados no Itararé,
se a esquadra não podesse nos receber.
Estabelecido o sitio , Torquato protegia as mulheres que fugiam,
fazendo de seus companheiros muralhas vivas contra as balas dos
sitiados ; outras vezes, elle em pessoa e seus officiaes tomavam as
creanças d'essas mulheres e derreados sobre ellas como escudos pro-
tectores levavam-n'as até ás vallas e as escavações da estrada de
ferro ; por ali ellas seguiam sem perigo até os acampamentos. Mui-
tas d'essas mulheres que voltaram á cidade em busca dos maridos,
narraram aos sitiados o modo porque tinham sido salvas e tratadas, e
dahi a deserção que devia reduzir as forças do coronel Carneiro
impossibilitando-o , talvez por isso, de uma retirada em busca de um
11
162

ponto onde podesse encontrar ou receber reforços para então tomar


a offensiva.
No mesmo dia em que tomavamos Tijucas e que o general Pego e
Vicente Machado procuravam asylo na Lapa , Torquato Severo mandou
uma expedição ao mando do Tenente-coronel Bruno Jacintho, apode-
rar-se de uma estação central da estrada de ferro.
A força que fez esta expedição não era superior a cincoenta
homens.

O general Pego e sua comitiva antes de chegar áquella es-


tação soube da nossa estada ali e fugio, acompanhando-o o Sr. Vi-
cente Machado, governador.
Estava portanto o Paraná em nosso poder, excepto este osso
da Lapa que nos atravessava a garganta.
Tomada a Tijuca, Gomercindo fez convergir suas forças para
aqui, seguindo Augusto Amaral para a cidade de Castro , emfrente
ao Itararé, na divisa de S. Paulo. Depois deliberou -se restringir o
circulo das nossas forças. A brigada de Laurentino Pinto approxi-
mou-se da cidade e n'ella acampou ao som de musica, debaixo de
uma fusilaria medonha, ao troar dos canhões e metralhadoras . Mar-
chavam na frente os bravos marinheiros em passo de parada, e
todos da columna imitavam seu exemplo. Amanhã talvez não res-
tará um só delles. Sentirão elles a morte ? não . Nos combates o
homem de brio não se lembra que vai morrer. Quem hade sentir
hade ser a Patria, quando amanhã tiver de chamar seus filhos ,
para defenderem-lhe a honra e não encontral- os . Irá o Sr. Floriano ?
Irá o Sr. Julio de Castilhos ? Irão estes que mandam matar para
que possam ter um mando ephemero ?
Não, não irão. Bem longe do Brasiì, oxalá que assim seja,
desfrutarão a fortuna ganha com a nossa morte. Os que hão de
ir, serão esses que lutam. Inimigos hoje, elles serão amigos ante
o insulto que fizerem á Patria.
? Apparicio com os seus gaúchos apoderou-se da estação da
cidade com o mesmo denodo. Fulião á frente de poucos homens
apoderou-se do cemiterio nos fundos da igreja, onde o inimigo tem
atiradores, e Torquato Severo apoderou se da embocadura das ruas
ao sul. Os sitiados ficaram immobilisados . Uma guerrilha nossa che-
gou a apoderar-se de um canhão inimigo, mas teve de abandonal - o
porque o inimigo , reforçando- se, atacou-a com energia.
Apparicio foi a um acampamento inimigo , fóra das trincheiras.
Os que ali acampavam deixaram as barracas armadas e foram para
o combate. Apparicio mandou desarmar as barracas, conduzil- as e
depois mandou tocar, ,, desarmar barracas,, o que foi ouvido por Car-
neiro que lhes mandou fazer fogo ao que Apparicio respondeu entre
gargalhadas.
163

Raro é o dia que no meio d'esta luta de horrores não apare-


ça uma dessas pilherias, onde se morre entre gargalhadas.
E' triste uma guerra civil, triste porque os actos de bravura
de lado a lado, em vez de serem saudados com applausos o são com
imprecações. O acampamento de Apparicio está tão proximo das
trincheiras que os soldados que não estão nas linhas de fogo dansam
ali ao som de harmonicos, e as balas vêm interrompel- os um mo-
mento emquanto retiram o ferido ou o morto, e o baile continúa. E'
bravura ou loucura ?
Pode-se bem comprehender aquelles homens de Saint Just
que representavam no theatro, e, nos intervallos, iam ás trincheiras
brigar, e voltavam feridos a continuarem a representação ; e as mulhe-
res de muitos , nelles ganhavam nome de grandes artistas pelo
sentimento com que representavam seus papeis. E' que no meio de
uma scena recebiam noticia de que o marido ou um parente acabava
de ser transportado morto.
Em fim, resolveu- se um ataque , ás trincheiras ! Que luta titani-
ca ! Que horror ! Que carnificina selvagem ! Morre- se, mata-se, e depois
as cousas continuam no mesmo ; apenas as fileiras sentem falta dos
bravos que, impavidos , affrontaram a morte e por ella foram colhi-
dos, e os hospitaes se enchem !
Quaes os mais bravos, quaes os mais valentes ? não se pode
dizer ! Uns lutam por de traz dos abrigos , dos saccos de area, dos
montes de terra. Lutam para não morrerem. Nesta guerra de horro-
res, para fazerem desapparecer toda a clemencia, para obrigarem á
luta até à morte, como na defeza da vida, elles incutiram no animo
dos soldados da tyrannia, que nós matavamos os prisioneiros .
Os outros atacam a peito descoberto. As fileiras rareiam, mas
as lacunas são prehenchidas e assim marcham até ás trincheiras,
trepam nellas, combatem a sabre e a couce d'armas ; mas num ponto
retardam, o inimigo afflue para os outros pontos . As granadas, a
metralha, a fusilaria trabalham como n'um brinquedo infernal, e vol-
ta-se ás posições occupadas antes, lembrando-se dos mortos, ouvin-
do os gemidos dos feridos.

*
*

Ao toque de alvorada, começa o fogo de artilheria, depois a


fusilaria nas linhas que se approximam. E' uma saudação. Bom dia,
irmãos.
O fogo continua durante o dia sem descanço. Antes de come-
çarem, ha uma palestra de parte a parte : Queres carne fresca ? Vem
buscar, estão passando só a xarque e feijão ! cá temos bolacha,
café.... Vinde para cá... nós somos bons rapazes, foge, anda, corre de-
pressa, não vens, pois então lá vae ? E o fogo começa .
164

O meu velho amigo coronel Macodo Fulião, é o mais carate-


ristico. A' tarde faz a sua gente rezar ao terminar o fogo, pela ma-
nhã faz o mesmo antes de começar.
Para principiar o fogo elle tem uma pratica imprescindivel :
Viva S. M. o Imperador ! - Viva a antiguidade do Imperio ! -
Fogo - e sua gente, os seus negros como elle diz , brigam como
leões.
Uma vez que assisti junto d'elle ao inicio do combate, fiz no-
tar-lhe que isto não era correcto ; que não temos imperador e sim
republica. Que está você a me dizer ? Eu sei lá o que é republi-
ca ? Na provincia, em Buenos Ayres, no Paraguay onde sempre
briguei, se fala em republica e nunca vi nada que prestasse. Vo-
cê conhece o Floriano ? Pois eu conheço-o do Paraguay. Quem é
que acredita em republica com Floriano ? Eu faço assim porque
era assim que nós faziamos n'aquelle tempo ; e note que havia ho-
mens que podiam ser até Imperadores se quizessem, e todos davam
vivas ao imperador .
E' impossivel conversar com Fulião , sobre tudo em hora de
combate. Os ouvidos difficilmente suportam seus improperios . Uma
vez tive de ir ao cemiterio onde elle se intrincheirou e Gomercindo
mandou que lhe dissesse que a posição não era boa ; que estava
isolado, e uma sahida rapida do inimigo podia prejudical- o Tive
que arrostar o perigo das balas dos caçadores, como denominamos
os que se occultam nas casas para não deixarem transitar em certo
perimetro. Chegando là disse- lhe o que Gomercindo me havia dito.
Diga-lhe que se elle soubesse quanto me custou para chegar
aqui, não dizia esta asneira. Que eu aqui estou e aqui ficarei até
que isto leve o diabo.
Ao escurecer, depois de um fogo renhido, onde em vez de se
ver o fumo dos canhões, se vê o fogo, cessa o combate.
Boa noite, irmãos !
A calma porem não é absoluta ; ha como uma especie de
somnambolismo da guerra. Ora é um tiroteio dos sitiados, ora um
tiroteio dos sitiantes e o alarme chama tudo a postos. Foi um vul-
to, um animal que passou a galope, fugindo ; um que deserta ; uma
familia que procura fugir d'aquelles horrores , e os sitiados pensam
que vão ser atacados e os sitiantes pensam que elles fazem uma
sortida.
Para se ir ao acampamento de Torquato Severo é preciso
procurar uma estrada distante, onde só o canhão alcança ; mas em
certos pontos temos de passar perto da cidade de onde os que es-
tão no sobrado da cadea ou no côro da igreja fazem uma caçada
diabolica. Tive que ir lá, acompanhado por um alferes, meu as-
sistente e o capitão Gaspar, ajudante de Gomercindo, que elle man-
Cou acompanhar me. Iamos bem tranquillos, a passo, pela estrada,
- 165

quando uma granada veio cahir a algumas braças de nós, fazendo ex-
plosão e os projectis passaram assobiando sobre nossas cabeças . Logo
depois outra que passou subindo por cima de nós e outra e outra.
A pontaria era certeira, corremos para diante, mas ao aproximarmo-
nos de um passo, uma chuva de balas ; ao passarmos por uma rua,
outra.
Felizmente nenhum de nós soffreu. Percorri o acampamento ,
vi os innumeros feridos dos bravos companheiros de Torquato . Vol-
tamos á noite e nos perdemos, e com receio de sahirmos nas posi-
ções inimigas, nos affastavamos e mais nos perdiamos . Depois avis.
tamos uma luz exquisita, como um pharol de muitas côres.
Approximamo- nos com cautela e afinal reconhecemos que estava-
mos no meio dos nossos, e um companheiro que havia retirado de
uma casa a tal lanterna de côres estava ali chiamando a attenção
dos sitiados para ver se elles teriam uma pontaria tão boa que que-
brasse a lanterna com uma bala de canhão ; esquecia- se que onde
elle estava a bala que quebrasse a lanterna ou mesmo que não
a quebrasse, matalo-hia. Cheguei ao meu acampamento á 1 hora da
manhã e achei o meu quarto fechado e um official que eu não co-
nhecia dormindo em minha cama.
Tive de dormir ao relento.

No serro do Monje temos assestada uma bocca de fogo contra a


cidade. Quem se encarrega d'ella é o Dr. Julio Cezar de Castilhos,
filho da Bahia, advogado em S. Paulo . Elle tem a barraca no acam-
pamento do general Piragibe , mas come em casa de uma familia
de colonnos italianos, onde está um ferido , que tive de operar. Qua-
si sempre almoço com elle, depois sigo para o acampamento de Juca
Tigre para cuidar dos feridos, e elle para onde está o seu canhão.
A's vezes sigo com elle até lá. Assisto ás pontarias, mas nun-
ca quiz disparar um tiro, apezar da insistencia que elle faz para
ver se o tiro que eu dispare causa estragos.
Hoje quando voltava fazia um calor abrazador. Pela estrada
atravessa um pequeno regato que cahe em cascata nos mattos
que ficam na base do Serro. Desci , atei o meu cavallo e metti-me no
matto em procura da cascata , desejoso de tomar um banho.
Afinal encontrei-a, um banho esplendido que com pesar dei-
xei depois de muito tempo. Eu não sabia bem a posição das forças
de Laurentino porque lá estava o Dr. Gomes e por isso nunca foi
preciso ir ver feridos ali.
No banho ouvi conversar discussões, logo do outro lado
do matto. Quasi chamei pelo Dr. Gomes e Pianelli para virem ali, mas
a ideia que me faziam demorar, tendo ainda feridos para ver, privou- me
166 -

d'isso . Quando sahi meu cavallo que tinha-se soltado pastava no


meio do campo. Fui pegal- o quando ouvi tiros e tanto sibillar de bal-
las que o cavallo espantou-se e correu e eu segui-o até que nos
mettemos por meio do Serro.
Observando a posição, e indagando onde era o acampamento
de Laurentino conheci que tinha tomado banho onde o devia tomar
tambem o inimigo, porque Laurentino estava muito a baixo. Se tives-
se gritado por Pianelli , era uma vez a minha garganta.

Tive de vir com Gomercindo a Curitiba.


Aqui as cousas continuam no mesmo pè.
Enthusiasmo na população para a formação de corpos, nunca
porem, deixando de haver esse prejuizo congenito do nosso povo .
Para o commando de um corpo não se procura o mais apto, sim, o
de mais representação, donde nasce uma certa anarchia porque sen-
do o chefe, de direito, um inepto, e governado pelo chefe de facto,
o mais apto, seu subordinado, muitas vezes em posição, um dos al-
timos. Gomercindo olha desolado para as fronteiras de S. Paulo.
As noticias que temos d'ali são que com a nossa aproximação o
Estado se revoltará tambem. Mas o sitio da Lapa se tem prolon-
gado, e as forças organisadas aqui não estão em condições de mar-
char assim sem habitos de guerra e sem armas.
Se o general Salgado não o tivesse demorado em Laguna
com questões byzantivas , já estaria de posse de S. Paulo, ja esta-
ria bloqueando o Rio de Janeiro. Mas que havemos de fazer ? Ha
homens que são capazes de perder fortunas, e brigam em casa por
um prato que se quebra. Hoje em palacio eu vi que é preciso amea-
çar S. Paulo sem perda de tempo, por isso vencendo escrupulos
telegraphei ao general Salgado , pedindo-lhe para vir. Dizendo- lhe
que o seu lugar está vago e que um homem como elle que tudo
sacrificou pela patria, não tem o direito de inactivar- se.
Não sei se o meu telegramma será attendido. Se for, tudo
irá bem.
A columna que elle commanda é da melhor gente possivel.
Basta que ella chegue ao Itararé e S. Paulo se levantará.
Recebi resposta do general que me diz. " Sei que a Lapa offe-
rece resistencia Se os generaes veem que sou preciso ali porque
não me chamam?" Doeu-me deveras ver um chefe revolucionario como
Salgado dizer que para correr como os paladinos a occupar o seu
lugar no perigo fosse preciso que o chamassem. Mostrei o tele-
gramma a Gomercindo que com os outros dirigiram-se a elle cha-
mando-o, não para a Lapa, porque esperamos que em poucos dias
ella esteja em nosso poder.
- 167 -

Segundo me diz o general no seu telegramma, ja tem uma brigada


na front ira do Rio Grande. O que irão fazer senão venderem caro
a vida, sosinhos e a pé como estão !
*
**

Recebi um cartão da Sra. D. Adelaide Meirelles , do Rio


Pardo , que aqui está. Fui visital-a. Quando a vi no Rio Pardo ,
pouca importancia liguei- lhe ; erão os tempos normaes onde tudo
se nivela e o que sobresahe é sem esforço . Aqui tive occasião de
aprecial - a. E' uma mulher intelligente e patriota , amando o Brazil
como filha do grande cidadão que foi , amando o Rio Grande acima
de tudo . Conversei com ella sobre o estado das cousas, as minhas
apprehensões . as discussões pueris que nos estão prejudicando , e con-
videi- a intervir já pela sua autoridade de sogra do dr. Carvalho ,
a quem accusam como causador de todos os atritos, já como amiga do
general Salgado .
Ella mostron-me os telegrammas que tinha d'elle onde mostrava
que já estava trabalhando nesse sentido. Sahi contente, nem só por-
que acabava de estar com uma brasileira digna, como porque
sabia que havia quem trabalhava para modelar os nossos actos.
Voltamos á Lapa onde continuam as refregas e os bombar-
deios diarios . Consta que n'um desses ataques fôra ferido o coronel
Carneiro, mortalmente, mas não podemos dar credito, porque o fogo
continúa com a mesma intensidade.
Hoje esteve no meu acampamento uma jovem senhora que
estava dentro da cidade ; tinha o pae doente na cama. Collocaram.
lhe em casa uma bomba de dynamite que a destruiu, morrendo todos
excepto ella, que pode escapar- se pelo meio das balas. Esta jovem
senhora sentiu tal commoção, que conta este facto horroroso sem
emoção alguma. Pertence a uma distincta familia e os parentes vie-
ram buscal-a para a campanha. Serão brazileiros , serão representantes
da auctoridade os que praticam taes actos?
Apezar da demora no desenlace disto, ainda se brinca.
Apparicio teve a idea de atar na cauda de um burro chucro e de
uma egua, latas que tiveram kerozene e mandou soltal-os dentro da ci-
dade. Os animaes dispararam, as latas faziam barulho, os gritos dos
que assistiam produziram o effeito desejado ; com a escuridão da
noite os sitiados , creio que julgaram estarem sendo atacados e por
isso sustentaram um nutrido fogo contra os animaes, emquanto Appa-
ricio gritava que apostava pela egua tordilha. Não deram menos de
dez mil tiros, nos pobres animaes.
*
**

Houtem passamos o dia sem novidade. A' noite, porem , ouvi


168 -

toques de clarim ; pensei que fosse alvorada, e deixei-me ficar na cama ,


quando ouvi a conversa dos telegraphistas que diziam estar proximo
o inimigo. Perguntando o que havia, responderam-me : que o inimigo
tinha feito uma sortida e por isso tinham tocado alarma no quartel
general. Levantei- me e realmeute tudo estava alarmado . Emiliano
já tinha embarcado tudo n'um carro da estrada de ferro. Di igi-me
á barraca do Dr. Lavrador, este respondeu-me que um soldado que
estava de sentinella havia corrido até ali dizendo que o inimigo tinha
sahido da cidade. O soldado era da policia de Curitiba. Nós tinha-
mos forças em todos os pontos.
Para que o inimigo pudesse sahir seria preciso lutar e ouvir-
se-ia o tiroteio . Suppozemos que o pobre soldado tivesse dormido
e accordasse quando passava alguma patrulha nossa , e corresse jul-
gando ser inimigo. Em todo caso mandou-se o soldado com um pi-
quete verificar e nós, apezar de não acreditarmos, passamos a noite
em promptidão.

Acabava eu de tomar café com Julio Cezar , e conversavamos


sobre o silencio da noite. Somente a nossa arthilheria tinha dado
alguns tiros. Silencio completo nas fuzilarias. Seria que já faltasse
munição aos sitiados ? Não, porque ali era o deposito de todo a que
veio do Rio de Janeiro .
Contavamos que a rendição se desse pela fome ou com a
morte de Carneiro, porque os desertores que nos vinham, davam no-
ticia de que elles estavam todos brigados e que a principal briga
dos patriotas do coronel Lacerda era porque o coronel Carneiro
não quiz deixar sahirem as familias . Montei a cavallo para ir visi-
tar os acampamentos e encontrei Juca Tigre que vinha.
Perguntei -lhe se do seu lado havia acontecido alguma cousa .
Disse-me que não, que não havia novidade nenhuma, a não ser que,
os sitiados tinham levantado bandeira branca. Não era nada isso !
Procurei um ponto donde se avistava a cidade, não vi a bandeira
branca, porem no pequeno espaço que medêia entre o cemiterio e
as casas, havia grande movimento de transeuntes, sem que se desse
um tiro sem a menor precaução. Desci o serro por ali mesmo para
saber ao certo o que havia. Na estrada que costeando o serro vai
ter á cidade, não encontrei ninguem. Mais a baixo ao sahir da mato
estavam insepultos cadaveres de mulheres e de raparigas . Erão de
fugitivas que elles caçavam a balas. Uma vez uma familia fugia
debaixo de tal perseguição que teria sido victima, se Torquato
Severo não mandasse um piquete collocar- se entre ella e os perse-
guidores , servindo os corpos dos bravos gauchos, dos quaes morre-
ram dois n'essa occasião, de muralha para impedir a morte d'aquella
familia, que felizmente escapou-se.
- 169

O coronel Carneiro pode ser considerado um dos homens mais


valentes que temos tido . Mereceria uma estatua pela sua bravura e
constancia ; mas esta bravura tornada instrumento da tyrannia dei-
xa de ser nobre ; porque a tyrannia exige de seus adeptos a cru-
eldade que os deshonra.
A bravura de Carneiro não compensa a prohibição da retira-
da das familias de uma praça sitiada, a destruição de casas habi-
tadas, pela dynamite, o fazer fogo sobre mulheres fugitivas, o mandar
atirar pelas costas em pacatos negociantes que lhe iam dizer que o
seu sacrificio era inutil, porque todo o estado estava em poder de
seus inimigos. Levantar- se uma estatua a um homem d'estes que
sacrificou a sua bravura, de que a Patria devia se orgulhar, para
fazer calar os que o seu amigo ou chefe quer destruir e humilhar,
seria dar lugar a que os que soffreram se oppuzesem, e uma estatua
só pode ser a commemoração de actos dignos em favor da Patria .
Tal é a sorte dos que ambicionam o dominio sobre os seus :
mandam matal-os para poder estabelecel- o .
**

Quando cheguei ao quartel de Laurentino Pinto, chegava


tambem Gomercindo a quem elle havia mandado avisar de que
falavam em negociações de capitulação . Uma senhora sua parenta
tinha mandado dizer que se elle se dirigisse á guarnição, que ella
capitularia . Laurentino immediatamente dirigiu - se escrevendo uma
carta onde promettia todas as garantias e dizia que todo estado
estava em nosso poder, e que elles nada tinham a esperar para
continuarem a luta. A preta medianeira voltou trazendo cartões de
visita de diversos, e dizendo que elles iam deliberar.
Gomercindo esperou durante algum tempo e não apparecendo
nada, disse : Bem, eu vou para o acampamento para privar estas pas-
seiatas antes de tempo. Ja sabem como devem fazer e fica Dourado
ahi em meu logar. Se for preciso ir lá e elles quizerem fazer algum
buchincho, a Dourado elles não matarão, porque é medico e elles
são muito humanitarios.
Ja lo creo, disse eu.
Gomercindo retirou -se e eu fiquei ali. Laurentino mostrou-me a
copia da carta que tinha escripto .
Toda ella bôa, mas um ponto me desagradou : era o em que
elle dizia, que ali estava representando o governo provisorio á frente
de forças de linha regulares, e por isso podiam contar com 0
respeito.
Eu vi n'isto o que de longe ja principiara a ver. A creação
de uma classe militar, que briga com denodo, é verdade ; mas que
pequena e composta em sua maioria , de capitulados, não podia ainda
exercer predominio .
170

Parece-me pelo que se vai seguindo, n'esse interesse de se-


lecção, que o Brasil tem uma Djanira a quem se encarrega de
transmittir a tunica de Nessus. Não me convinha portanto fazer notar
aquelle trecho, mostrar que nós os revolucionarios seguiamos sem-
pre o nosso caminho , sem precisarmos de governo problematico,
mas guiados pelas leis revolucionarias que procuravamos modificar
pela humanidade com que procediamos , não podendo ser responsa-
veis pelos actos particulares de vingança ou desforço. Percorri com
Laurentino e Izidoro Dias Lopes todos os pontos em que as nos
sos tinham brigado. Esses pontos chegavam até ás trincheiras.
As casas de paredes delgadas onde elles passavam dia e noite,
eram em frente e proximas das em que os sitiados tinham suas me-
tralhadoras, com as bocas sahidas pelas aberturas feitas nas pare-
des. Se me perguntassem quem mais brigou n'esta luta encarniça-
da, eu só teria para responder : Todos. Qual o mais valente ? a res-
posta seria a mesma .
Visitavamos as trincheiras feitas pelas forças de Laurentino , quan-
do se apresentou ao longe um grupo de officiaes, agitando lenços
brancos. Dirigi-me immediatamente para o passadi o, que era pelo
quintal de uma casa, e encontrei - me com elles ; apertei-lhes a mão .
Vieram tratar da capitulação ; estiveram com Laurentino algum tem-
po, depois seguimos para dentro da cidade. Antes de vir a commis-
são, já tinha-se apresentado grande numero de soldados de linha
que diziam que ainda mesmo que não se entregassem, ninguem mais
brigaria.
Nós fomos ao quartel general dos sitiados que era em casa
do coronel Lacerda, casa exquisita porque na sua biblioteca havia o
culto das teias de aranhas, dizem porque seu pae tinha o mesmo
culto ; de modo que os livros, e bons livros eram, as estantes ti-
nham uma tela que negra os occultava .
Ali se achavam reunidos todos os officiaes. Laurentino entrou
para uma sala reservada afim de entender-se com os chefes ; eu fi-
quei na sala, conversando com aquelles valentes que se mostravam
tristes pelo resultado do sacrificio a que se tinham submettido . Mos-
trei-lhes que aquelle resultado não devia entristecel-os porque elles
tinham lutado com bravura e resistido até o extremo.
Que a capitulação só deshonra quando era feita por cobardia ou
traição. Disseram-me alguns que lutaram, porque se dizia que nós luta-
vamos pela restauração . Respondi -lhes que quem lutava pela restauração
eram elles. Que a republica tinha sido denominada no Brasil, mas não
estabelecida . Que o povo brasileiro sempre calmo, sempre gozando
de liberdades, que poderia ser considerado como ordeiro na ordem
moral , não podia, passada a bestialisação , supportar o jugo que lhe
langaram .
Que as republicas só podem viver com a justiça ; mas chamar
171

republica onde o governo mata o adversario para ficar só, eterno,


é não conhecer o que se chama o viver pela força que tem seu
termo , seu estado natural. O proprio ferro gasta-se com o uso . Póde
destruir muito, mas cada golpe que dá , diminue a sua força cohe-
sitiva.
Nós lutamos pelo direito de viver. Nossa luta foi no Rio
Grande do Sul e ella ter- se -ia limitado lá, se o elemento que nos
mata , não fosse mandado do centro, fornecido por todo Brasil ; por
isso é justo que a nação inteira participe do nosso soffrimento.
Disse- lhe mais que a continuar assim, querendo viver por exclusão
dos outros, só a restauração poderia salvar o Brazil .
Seria uma vergonha, disse um. Não ! lhe respondi .
A nação não fez a republica ; acceitou- a porque julgou- a boa.
Os que a fizeram se esforçam para mostrar que a republica é o inte-
resse de individuos. Ora, as nações não se podem deixar sacrificar por
individuos, e conhecendo que republica é o interesse do mais forte,
que não poderá viver n'ella quem não tiver paciencia para soffrer
o azorrague, o resultado será fugir d'ella.
Um moço official declarou-me que ia deixar de ser brasileiro
Tocando-lhe no hombro, eu disse-lhe Não diga isso. O amor da
Patria não pode ser esquecido pelo amor , dos partidos. Quem sabe
se amanhã não estaremos juntos lutando para salval-a mesmo con-
tra estes que são meus companheiros hoje, se elles no poder não
seguirem o caminho que pode salvar - nos !
Não tive coragem de apertar a mão do coronel Serra Martins.
Um coronel do exercito brazileiro que capitulou pela segunda vez...
As negociações demoravam-se e o dia avançava. Recebi duas
vezes recado de Gomercindo para apressal- as porque ia ser noite e
seria difficil fiscalisar os corpos para não entrarem na cidade, por-
que no armisticio combinou- se que não se entraria na cidade senão
depois de tudo terminado.
Era porem impossivel.
Os sitiantes ja tratavam aos sitiados como velhos amigos.
Havia escavações na terra onde elles ficavam para nos impedir os
ataques ás trincheiras. Em uma d'ellas estava um allemão de barbas
grandes, engajado em S. Paulo. Um dos nossos se aprouximou d'elle
e perguntou-lhe : Amigo , de que raça é você ?
Ainda não somos amigos , disse o allemão , por isso não sei
o que está dizendo.
Recebendo o segundo recado de Gomercindo, avisei a Lauren-
tino, que era quem estava tratando de protocollo da capitulação
Ouvi toque de alarma na porta da rua e um official veio a
mim dizer que ainda a capitulação não estava feita e ja os nossos
entravam em grupos armados d'onde poderia dar- se algum conflicto ;
sahi á rua e realmente vinha o Major Vieira á frente de um piquete,
172

atravessando a cidade. Perguntei-lhe quem o havia authorisado vir-


ali, respondeu me , que ninguem ; que precisava ir ao quartel de Go-
mercindo e por isso vinha por ali. Disse-lhe que ainda não era
permittido o transito, e que convinha voltar pelo mesmo caminho, no
que fui obedecido , ficando assim calmos os espiritos.
Pouco depois outro alarma provocado por um outro grupo que
se aproximava de uma casa. Corri para lá e fiz com que o coronel
que ali vinha para visitar um amigo que havia sahido da cadea ,
se retirasse.
Demorando- se a conclusão do protocollo tive de retirar-me por
ser longe o meu acampamento e ameaçar chover. Apenas sahi da
cidade começou a chover fortemente, com ventania, relampagos e
trovões.
Nunca me hei de esquecer, creio, a impressão que causou-me
uma vacca morta pelas balas que estava atravessada no meio do
caminho. Era uma vacca leiteira, provavelmente a que fornecia
alimento ás creanças e aos doertes sitiados.
O que se passara n'aquelle dia tinha posto o meu espirito no
estado de tristeza que sempre se acha, quando vejo um desastre
moral para o nome brasileiro ou vejo sangue de irmãos, n'esta luta
feroz, mesmo quando esse desastre, esse sangue annunciem o proxi-
mo termo deste cahir do Brasil.
Os estragos da cidade sitiada ; os cadaveres insepultos, as
sepulturas rasas nos quintaes e pelas ruas, algumas contendo ca-
daveres expostos ás vistas ; aquelles bravos que defenderam a
praça com tanto valor, humilhados, porque para o homem de brio
por mais honrosa que seja a capitulação, por maior que fosse a
resistencia , é sempre uma humilhação, porque indica que ha vence-
dores e vencidos ; os sobresaltos de alguns quando viam penetrar
na cidade os nossos armados , pelas noticias que no norte se faz
espalhar de que somos degolladores que a nada respeitamos, o que
fazia temer pela honra até as familias de adeptos nossos , e o que
fizera morrer entre elles muitos inoffensivos por não terem coragem ,
de se exporem a se apresentarem a nós ; o terror manifesto no rosto
de alguns , pelos crimes que commetteram, a alegria dos soldados
pela terminação do sitio e a satisfação com que eram recebidos
nos nossos acampamentos onde vinham ficar, e cada qual falando
dos seus ex- chefes, como os roubavam , como os maltrata vam,
como os mandavam matar pela desconfiança de que elles erão
nossos companheiros , e ali estavam obrigados ; bastaram para trazer-
me ao espirito essa nuvem de tristeza em face da decadencia da
nossa nacionalidade. Escravos que matam por obediencia, homens
que matam para terminar a obediencia d'elles.
Aquella vacca que ali estava morta, tinha um aspecto tão lugu-
bre que chegou a fazer-me desviar a vista . Os olhos sahidos das
173

orbitas, as pernas distendidas pela inchação pareciam conserval -a


no espasmo terminal de uma convulsão . Eis a imagem d'este Brasil,
pensei eu , que morre pelo interesse de poucos, como este animal ,
pelas balas que nem podia conhecer.
Cheguei á minha barraca já á noite ; ha dois dias me havia
mudado da estação. Nos acampamentos reinava o maior silencio.
Nem um signal de festa .
A luta fora tão encarniçada e tão mortifera que ao terminal -a
não houve festa, foi apenas a consciencia de um dia de repouso, de
uma noite sem alarma, porque ella continúa, e o revolucionario
amanhã tem de esquecer os perigos de hontem , porque novos e
maiores o ameaçam.
Lutar portanto , lutar sempre !

Apenas despontou o dia segui para a cidade. O meu primeiro


cuidado foi visitar os hospitaes de sangue. Ali se achavam como ci-
rurgião o Dr. Albernaz e pharmaceutico Guimarães, ambos da
Bahia. Visitando os feridos e inquirindo pelo estado d'elles soube
que ha dois dias não lhes era fornecida alimentação ; indagando quem
era o fornedor disseram ser o coronel Lacerda. Mandei chamal- o
e disse-lhe que se o fornecimento tinha sido sustado pela capitula-
ção ou falta de dinheiro, mandasse fazel-o e apresentar-me as con
tas para serem satisfeitas . Immediatamente foi distribuida dieta
regular aos feridos.
O coronel Lacerda pediu-me para ir á sua casa, onde estava
sua Exma. Senhora que vivia em labor continuo desde a vespera, para
attender a todos os officiaes que ali iam, onde jantavam, almoçavam
e tomavam café incessantemente. Offereceu- me almoço a distincta
senhora, eu recusei . Offereceu- me café ; iria ella mesma fazer-me
uma chicara de café . Acceitei aquelle offerecimento. Ella declarou-
me ser irmã do meu amigo Mooge da Lagoa Vermelha e que de-
sejava fallar-me porque queria retirar-se para Curitiba ; pedia- me
que obtivesse isso. Immediatamente declarei-lhe que poderia seguir
á hora que quizesse, que no trem que partisse, haveria lugar para
ella.
Sahi para ver um ferido dos capitulados que se achava n'uma
pharmacia e recommendar que não consentissem desacatos a pessoa
alguma . As familias iam sahindo do fundo das casas, dos esconderijos ;
uma resurreição na vida.
Em trem expresso chegou o Dr. Doria, vindo de Curitiba .
Ao chegar queixou-se -me de que Gomercindo queria ficar com to-
das as armas para voltar para o Rio Grande, segundo lhe ha.
via dito Laurentino. Disse- lhe não ser isto possivel, que Gomer-
174

cindo é incapaz de uma deslealdade. Indo indagar d'isso , encontrei- me


com Gomercindo , muito aborrecido commigo. Tinha- me encarregado
de represental-o nas negociações e eu tinha deixado que se lavras-
se uma acta onde só Laurentino e sua força eram tidos como os tri-
umphadores.
Disse- lhe que não tinha assistido ás negociações , porque jul-
gava- as cousa tão simples e tão clara que não reclamava , entre
companheiros, uma fiscalisação . Tinha-me occupado em outras cousas .
Felizmente este incidente desappareceu, assim como verifiquei que
nada havia sobre as armas , estando encarregado de recebel- as o gene-
ral Piragibe. Isto porem indicou-me que hoje, como hontem, não exis-
te uma união absoluta entre os grupos revolucionarios . É Gomercindo,
o que não busca repouso , sempre mal visto. E' da lei das cousas .
Quando um sobresahe é preciso fazel-o obscurecer, ainda mesmo que
nisso venha o mal de todos .
Voltando de novo á praça encontrei Doria que seguia para a
Estação, dando o braço á senhora do coronel Lacerda e este ao lado.
Satisfez-me aquillo porque sabia que Doria era não só inimigo,
politico de Lacerda, como o era pessoal. Portanto depois de um
sitio onde as familias dos nossos companheiros foram obrigadas a
permanecer, supportando todos os horrores, elle conduzindo pelo braço
a esposa de um dos mais encarniçados adversarios . sobre quem re-
cahiam graves accusações, era demonstrar como terminada a luta. Nós
nos regosijamos em nos aproximarmos do adversario. Esta mani-
festação, porem, era desagradavel a companheiros que esperavam o
momento propicio para a desforra.
Fui chamado ás pressas porque um official com praças per-
corria as casas em busca de armas, e n'essa busca aproveitavam
para se munirem de roupas e calçado. O proprio hospital de san-
gue tinha sido victima, e o Dr. Albernaz já estava sem roupa e
sem botinas. Fiz restituir os objectos e ordenei ao official que ces-
sasse a sua commisão. Contrariado , declarou- me que ia dizer ao
general que eu havia privado de comprir suas ordens . Respondi-
lhe que sim, que podia dizer isso, porque eu ia avisal-o do que se
estava passando. Despedidos estes chegou- me noticia de que Ce-
zario Saraiva havia arrombado o bahú do coronel Carneiro , que
tinha sido guardado com tudo que lhe pertencia, para enviar á fa-
milia. Procurando quem havia visto isto para poder dar parte a
Gomercindo , não appareceu uma unica testemunha .
Fui chamado á estação onde outras scenas aborrecedoras me
esperavam . Ali estava a bagagem do coronel Lacerda.
Era este o fornecedor, as praças se queixavam d'elle. Diziam
que n'aquella bagagem havia mais de trezentos contos em dinheiro.

Diziam uns que devia-se arrombar, outros que deviamos sequestral-a.
Mandei o estacionario que recolhesse a bagagem, sob a guarda
175

do official que recebia o armamento . Este respondeu-me que não


podia se responsabilisar por aquillo, onde se dizia haver tanto di-
nheiro, a não ser com uma guarda reforçada. Não havia trem de
carga. Mandei que se procurasse introduzil- a nos carros de passagei-
ros, o que se fez.
Achavam- se na estação muitos officiaes dos capitulados que pre-
tendiam seguir para Curitiba, mas que não encontravam lugar porque
o trem que seguira levara a brigada de Laurentino . Elles me procu-
raram para ver se conseguiria fazel- os seguir, mas não havia carros ;
tinhamos ali somente uma machina.
Na capitulação elles só tinham conversado com Laurentino, chefe
das forças legaes provisorias. Ha no homem o triste deffeito de, para
fazer realçar o seu valor ou prestigio, deprimir os outros, pouco
importando que sejam os deprimidos os que cercam de garan-
tias e preparam o terreno onde elles marcham. A retirada de Laurentino
cansou profundo desanimo n'aquelles officiaes que ficavam ali, onde
só as forças de Gomercindo e Piragibe estacionavam. N'um gal-
pão proximo , no acampamento de Apparicio, Gomercindo falava alto
e ria-se. Elles viam caminhar por ali aquelles gaúchos de bombachas
o Xiripá, com esse olhar severo que a luta cria a expressão , não
sendo essa expressão, muitas vezes, a da alma, quasi sempre boa
e sensivel quando não se lhe fala dos que lhes causaram males pes-
soaes, cuja vingança é o seu sonho, o seu fito . Conversei com elles
algum tempo, disse-lhes que podiam estar tranquillos, e offereci - lhes
se quizessem a minha barraca, mas esta estava longe ; quiz ir leval-
os ao acampamento de Apparicio onde poderiam pernoitar ; não
acceitaram. Alguns companheiros que se apresentaram ali e que tinham
commodos , levaram-os para casa. Antes que se retirasem apresentou- se
um grupo de homens bem vestidos, com divisas longas e vistosas
nos chapéos e vieram a mim dizendo, que um dos que estavam ali é
um infame. Foi elle que metteu a dynamite na casa onde pereceu a
familia, estando ali pessoas, entre elles , que eram parentes das
victimas.
Foi elle que recebera doze contos de reis de uma mãe, para pou-
par a virgindade da filha.
Fora um antigo palhaço de circo, era major das forças patrio-
ticas. Chama- se Barreto.
Ao ouvir isto uma indignação misturada de repulsão por aquelle
individuo se apoderou de mim, mas tive bastante força para não
deixal -a transparecer. Disse áquelles homens que tal individuo era
um capitulado e que por isso, fosse como fosse, tinha de ser
respeitado .
Elles se exaltavam cada vez mais. Os officiaes olhavam a scena
um pouco receosos . As palavras d'elles, as narrativas, chamavam
para ali os gaúchos que indagavam d'aquelles horrores ; o accusado
176 ---

se encostava a mim como queren lo esconder-se no meu corpo . Eu


previa uma scena de brutalidades.
Aquelles crimes eram muito grandes para não exigirem a lei
de linch. Mas era preciso fazer respeitar o que haviamos combinado .
Perguntei aos do grupo que faziam as exigencias , a que forças per-
tenciam. Responderam-me que a nenhuma. Perguntei onde tinham
brigado, responderam- me que nunca tinham brigado, mas que eram
companheiros que tinham soffrido.
Então, senhores , disse eu levantando a vóz, queiram retirar-se
porque nós não viemos aqui brigar e soffrer para servir de instru-
mento a vinganças pessoaes. Os gaúchos ouvindo- me, se enthusias-
mavam. 1
Sim, senhor coronel, quem quizer tirar vinganças que venha
romper o pelego para então poder fazer o que quizer. Esta mani-
festação dos gaúchos desconcertou os planos do grupo que se reti-
rou . Os officiaes ficaram tranquillos e mostravam- se satisfeitos, re-
tirando-se. Ia- me retirar quando o tal major me disse : Por favor
mande-me d'aqui . Fil-o embarcar n'uma machina e leval -o ao ge-
neral Piragibe em meu nome, para tel-o até que houvesse trem
para Curitiba . Pouco depois encontrei-me com um homem de influ-
encia na terra, que disse-me estarem os amigos pouco satisfeitos com-
migo , por não lhes ter entregado aquelle scelerado. Respondi- lhe
que tinha comprido com o meu dever. Que realmente aquelles cri-
mes, eram horrorosos , mas que eram crimes particulares. Já tinham
organisado a magistratura no Paraná , portanto nada mais, simples
do que fazel-o reclamar pelas authoridades civis ; no que elle con-
cordou. Já era tarde e eu precisava ir ao acampamento de Tor-
quato Severo, afim de determinarmos o meio de transporte dos feri-
dos até á estação . Era distante o acampamento de Torquato, e eu
devia voltar para o meu , uma legua áquem da cidade.
Em caminho encontrei - me com Albernaz e Guimarães que me
procuravam para fazel- os sahir d'ali. A cidade estava ficando de-
serta e isto atemorizava-os. Officiei aos dois medicos da localidade
para cuidarem dos feridos emquamto eu não os fizesse remover , e
dei ordem ao medico e ao pharmaceutico para se apresentarem em
Curitiba.
Quando voltei do acampamento de Torquato era já noite
escura. Uma ou outra casa aberta. Grupos pequenos pelas ruas.
Uma casa saqueada . Era a vingança que podiam tirar os que soffre-
ram . Felizmente chegou Carlos Libindo com um piquete para
policial-a. Disse-lhe o que havia, elle tratou de providenciar.
Visitei o Dr. Manoel Pedro, um velho medico, bom e huma-
nitario que gosa do respeito do primeiro profissional de sua terra.
Tinha estado na cadea todo o tempo do sitio . Foi a elle e a
um outro collega que encarreguei do serviço. Carlos Libindo deu-me
177

um sargento de sua confiança , para acompanhar-me até à minha


barraca onde cheguei ás 11 horas da noite, sem ter comido cousa
alguma, mas tão cançado que nem acceitei a ceia que o Emiliano guar-
dara-me. Emiliano tinha ido á cidade onde me vendo, escondeu- se.
Trouxe doces e biscoutos que mandavam para mim. Não acreditei .
- Tu pediste em meu nome, ou roubaste ? perguntei-lhe.
- V. S me obriga assim a dar aos outros o que mandam para
Vossa Senhoria, porque eu não estou acostumado a que me cha-
mem de mentiroso.

*
**

A cidade da Lapa ficou completamente damnificada. As nossas


balas eram quasi sempre certeiras, e os sitiados destruiram por
meio da artilleria as casas onde suppunham que estivessem os nos-
sos, ou aonde se podessem entrincheirar. O sepultamento dos ca-
daveres fora malfeito. Aqui via - se um em sepultura tão rasa que a
pequena camada de terra que a cobria, mostrava todos os relevos
do corpo ; ali uma outra onde lançaram cadaver, deixando a terra
do lado de fora.
Creio que estas eram para receber outros que deviam vir-
talvez dos mesmos que cavaram aquelle fosso, e não poderam mais
voltar ali pela modificação constante das posições dos sitiantes,
sempre para diante. Quando falou-se em capitulação veio tambem
a noticia da morte do coronel Carneiro. Muitos não acreditaram.
Viam n'isto um embuste para poder elle fugir e ir de novo colio-
car-se". á frente de forças para vir tirar a desforra.
Outros julgavam que elle fingira-se morto, para fugir á ver
gonha da capitulação.
Eu mesmo tive este pensamento. A resolução de muitos era
ir fazer a exhumação do cadaver , que se dizia ser o delle e verifi
car a identidade com os soldados que estavam comnosco . Havia
já quem se encaminhava, para lá . Eu dirigi-me aos medicos pergun-
tando-lhe qual tinha sido o ferimento, como a morte.
A reposta dos medicos bastou para dissipar as duvidas dos
apprehensivos, e ninguem disse uma unica palavra mais a respeito,
e os que visitaram a sepultura não tiveram uma palavra que po-
desse offender a memoria do morto. Era um valente, e os bravos
respeitam os seus iguaes no infortunio. As poucas vezes que pude
falar com os habitantes da Lapa, que obrigados supportaram o sitio ,
sò ouvi queixas, lamentos, narrativas de desgraças, de aggressões, de
ameaças, de fome, de abandono. Todas as almas de lucto sem terem
podido fazer as roupas para enluctarem o corpo. O modo pelo qual
narravam os golpes soffridos, a morte dos parentes, me acabrunhava.
Teriam chorado tanto que as glandulas lacrimaes se haviam atrophia-
12
178

do, ou aquelle soffrer constante, aquella agonia permanente parali-


zara a sensibilidade n'um estupor ? Não voltei mais á Lapa e no
outro dia em companhia de Gomercindo, levando os nossos feridos ,
o trem nos conduzia, n'uma marcha lenta, para Curitiba.
Eu olhava para a cidade que se afastava, para o Serro do
Monge e sua fralda de verduras onde ainda continuavam, e conti-
nuarão a cahir as aguas que formam a cascata onde uma imprudencia
me levou, e onde por uma facilidade ia sendo victimado. Lembra-
va-me dos companheiros que lá ficaram sepultados, dos irmãos que
morreram por nos terem querido tornar escravos.
Todos valentes, todos dignos diante do perigo, e pusilanimes
ante a vontade que os mandava destruir, destruindo- nos. Amanhã,
pobre Brasil, que falta te farão esses filhos ! Esse Carneiro que po-
deria se immortalisar nas lutas dignas, e ali ficado como n'una
penumbra onde sua bravura não desfará o negro fumo que envolve
os que lutam em favor dos tyrannos. E eu lembrava-me da hecatom-
be que seria se as minas de dynamite feitas em todas as ruas ex-
plodissem quando assaltamos.
No carro vinha o clarim de Gomercindo ; mandei- o tocar mar-
chas que elle sabia , que eu ouvira tocar quando desfillavam os regi .
mentos, em plena paz na familia brazileira . Paguei-lhe para tocar
sempre e o trem marchava mais rapido por ter sahido das curvas , e
o clarim tocava sempre. E os companheiros chegavam á bocca dos
feridos um pouco d'agua para matar-lhes a sede devora dora.
Chegamos a Curitiba á tarde. A estação regorgitava de fami-
lias. Era o enthuziasmo de sempre . Seria o prazer de ver um homem
obscuro, filho do povo, sem educação ; mostrar aos que provocam o
derramento de sangue o valor como meio de fugir ao supplicio e a op-
pressão ou a simples curiosidade para ver se esse homem tão falado,
esse heróe que julgam os imaginativos fora do commum, tem a mesma
configuração dos outros homens, se como elles fala e respira ?
Na estação já se achavam os medicos do hospital com padio-
las para transporte dos feridos.
Eu lhes havia telegraphado da Lapa. Tomando elles conta dos
feridos eu podia ir ao hotel onde me hospedaria, mas só poderia
fazel-o depois que Gomercindo seguisse para o quartel onde se hos-
pedava, e onde lhe ia a comida de uma casa de pensão , em porta-
viandas.
No salão onde estavam os admiradores ou curiosos, um com-
panheiro subiu a um movel e começou a falar. Era um discurso
longo, em que de hora em hora elle mesmo se exaltando falava em
bravura, em heroismo.
Ameaçava chuva e a sala repleta não dava lugar para a
passagem dos feridos. Gomercindo pediu-me para ver se se terminava
o discurso . Eu fazia signal ao orador para terminar e creio que
―― 179 -

elle tomava os meus signaes como approvação, e o discurso continuava


mais caloroso, mais promettedor de longo curso. Falei a um compa-
nheiro para interrompel-o quando parecesse que elle fazia ponto.
Em uma das pausas o companheiro prorompeu em vivas, a multi-
dão secundou- o e pozemo -nos em movimento. O orador desceu aos
saltos , derrubou o chapeu de uma senhora, abalroou outra que foi
sobre outras e veio collocar- se a meu lado, muito contrariado com
o que deu os vivas. Estupido que não comprehende como as pala-
vras enthuziasticas de um orador são um complemento das victorias.
Soube depois que esse orador é um dos capitulados no Desterro.
Não deixei de notar uma certa frieza por parte das autori-
dades civis e militares de Curitiba, não comparecendo ali á chegada
de Gomercindo, depois da rendição da Lapa. Julgariam por ventura
que rendida a Lapa estava tudo terminado e que por tanto já po-
diam dispensar a actividade, a prévisão , o golpe de vista, o pres-
tigio do nome do grande chefe ? Quem sabe ? quem sabe mesmo se
não julgariam util que elle se fosse, para no proximo futuro não
lançar sombras sobre os que pensavam occupar o primeiro plano
nos proveitos ?

Em Curitiba reinava uma certa dissolução latente, que não


tardaria em se manisfestar. O commandante de artilheria do governo-
provisorio, sem se dirigir a Gomercindo ou a Piragibe, telegraphara
a um sargento na Lapa para arrecadar a artilheria tomada e trazel- a
para Curitiba.
Laurentino reclamava todas as praças de linha, quer da capi .
tulação, quer desertadas, que se achavam na columna de Gomer-
cindo , a titulo de que sendo elles de linha de direito pertenciam ao
exercito regular provisorio . Entretanto a fronteira de S. Panio es-
tava desoccupada . Chegavam-nos companheiros d'ali, avisando que
tudo estava prompto para secundar-nos logo que ali penetrassemos.
Piragibe e Lavrador insistiam para invadirmos . As forças de
Gomercindo cançadissimas. De Fevereiro de 93 até agora, fim de
Fevereiro de 95 não tiveram um dia de descanço. Alem d'isso es-
tão núas , descalças, os corpos desfalcados pelos mortos e pelos innume-
ros doentes que enchem os hospitaes. Para descançar elles acam-
param na Estancia do Major David Araujo, um dos companheiros
que mais trabalhara no sitio da Lapa.
Sabendo Gomercindo que aquella estancia era d'elle, e que
não era possivel abater gado somente d'ali, perguntou-lhe onde ha-
via estancia proxima que se podesse mandar buscar gado. Em quan-
to aqui houver uma rez, respondeu o Major David, considere -me
como adversario, para não ser preciso ir buscar de outros.
180

A revolução consistia agora somente em formação de batalhões


patrioticos.
Ja tinhamos o Deodoro, o Doria, o Generozo Marques , o
Gomercindo Saraiva, um outro que não me recordo do nome, uma
confusão de fitas e de rotulos. Outros muitos se formavam ainda.
Em S. José dos Pinhaes o Angelo Dourado recebia instruções de um
moço ex- militar que sempre ven á Capital e me apparece para di-
zer-me os progressos do batalhão, e levou um retrato meu que pe-
diu para que os que vão brigar levando o meu nome por divisa,
conheçam a minha physionomia.
E S. Paulo nos espera , em quanto o Marechal Floriano pre .
cisa de todos os recursos que tem, para se oppor a Saldanha da
Gama.... E Salgado não vem ! .....

Entramos no periodo das festas.


Tivemos missa pelos mortos, funeraes pomposos, onde se deu
um contraste digno de notar. As forças regulares provisorias ao man-
do de Laurentino apresentaram-se formadas, bem uniformizadas , offi-
ciaes trajando brilhantes uniformes. Apparicio veio com uma briga-
da para assistir aos funeraes e collocou-a em linha em frente da
igreja. Lastimava vel- os .
Eram os lutadores que ha um anno deram o primeiro combate
na fronteira do Rio Grande, e de marcha em marcha , de batalha
em batalha, sempre no soffrimento aqui chegaram . Alguns quasi nús,
outros descalços, outros de tamancos, passando por povoações cujas
casas commerciaes encontravam e deixavam cheias de fazendas ; eram
os bandidos sublimes, os voluntarios martyres da dignificação hu-
mana. A brigada de Apparicio retirou - se no mesmo dia para o acam-
pamento. A' noite houve sessão funebre. Um official do batalhão
da marinha veio pedir- me para falar em nome d'elles .
Eu não pretendia falar.
Estava aborrecido com a marcha dos negocios. Havia chegado
ali o Sr. Mourão, ministro da guerra e da marinha, e devia presidir
a sessão sentavain-se na meza Doria, Laurentino, Annibal Cardozo .
O orador official não quiz falar . Foi designado Jacques Ourique , que
teve a delicadeza de vir ao banco onde me achava, convidar- me
para ser eu o primeiro a falar. Pedi -lhe para ser elle, que pronun-
ciou um discurso na altura do seu talento .
Chamaram-me depois.
Lembro-me que as minhas primeiras palavras foram que, o
unico meio digno que via para commemorar a morte de compa-
nheiros mortos no combate, quando o inimigo ainda predominava era
o toque de clarim ordenando os vivos aos combates .
- 181 ---

Seguiu- se Luiz Murat, e depois Annibal Cardozo , que diser-


tou longamente, com entonação didactica , fazendo uma licção sobre
a Ordem e Progresso.
Depois seguiu - se um coronel que fora commandante dos
Franco-atiradores, demittido depois por Floriano, e lançado no
ostracismo. Apresentara-se ao governo provisorio que o aproveitou
para o commando do mesmo batalhão capitulado na Tijuca. Seu
discurso foi longo. Mostrou como tinha sido dedicado a Floriano ,
deu a entender como o seria ainda se não fora a ingratidão ...
Agora estava com a revolução.
Um despeitado, leal a todos .... E foi aproveitado para lutar ao lado
dos que fazem abnegação de si mesmo...
Terminou-se com isso a sessão funebre. Depois tivemos os bai-
les onde cada conviva deixava alguma cousa para os feridos. Eram
moças que pediam. Uma tira de papel e um alfinete ; chegavam á um
e diziam : dê uma alfinetada no meu cartão. Como não ? Eu dei mui-
tas alfinetadas , cada alfinetada correspondia a uma pequena quantia.
E assim brincando aquellas interresantes meninas, obtinham o
allivio para os meus infelizes companheiros .
Tivemos depois um grande baile ; a inauguração de um club.
Apezar de fugir sempre de festas tive de ir porque fui avisado
que nas paredes do club achavam-se cartões de ornamentação ten-
do cada cartão o nome de um dos salientes revolucionarios e que
o meu era um dos primeiros . Pediram-me para falar porem eu ne-
guei-me. Discursaram alguns. Falou- se muito em girondinos, mar-
selheza, André Chenier, e que os mortos governam os vivos.
Entre os divertimentos se annunciou um espectaculo de Fan-
toches. Uma grande scena da Lapa ; mata, mata, era o que diziam os
bonecos ; depois um boneco creança aos pulinhos a procurar a mamãe
boneca que tinha sido morta.
Seguiu- se a grande scena de apotheose . Uma antiga corista de
companhia lyrica , que aqui dissolveu- se, enrolada n'um panno branco
trepada n'uma meza de pedreiro, toda cheia de cal, segurava n'uma
vara de andaime onde estava atada uma bandeira já gasta, com a
ordem e progresso de pernas para o ar. Um grupo de sujeitos , creio
que trabalhadores do theatro , uns de casaco preto outros com a
roupa suja do serviço cantavam em coro. Um velho allemão de barbas
brancas, encasacado, cantava versos em portuguez , escriptos por
elle na musica da marselheza. Creio que elle julgava que era um dos
grandes da republica porque escreveu e cantou muitos versos. Com
isso terminou-se o espectaculo de gala . Apesar de não se ver pelas
ruas senão batalhões que passam, uns de camisa vermelha á Gari-
baldi, commandados em lingua italiana, outros em lingua polaca.
Doria, Governador, mandou cantar um Té- deum, por se achar
pacificado o Paraná , e apezar d'essa paz as dissenções continuam. Eu
182 -

tenho escripto nos dois jornaes da terra ; n'um delles escrevi uma
especie de lenda sobre as desgraças da India, devidas á divisão do
seu povo por causa de ambições ; divisão que obrigou - a á ser domi-
nada por um punhado de estrangeiros . Creio, porem, que elles lêem
os meus contos indús, julgam ser uma historia para passar o tempo e
não se compenetram de que o que eu digo ter-se passado ha muitos
annos na India é o que se está passando entre nós, e que o resultado
será a nossa desgraça.

Curitiba é uma cidade nova, que pela sua posição topographica


e geographica, será no futuro uma das mais bellas cidades , como
o Paraná será um dos mais ricos estados do Brasil, se até lá ainda
houver uma nação que se chame brazileira.
Por toda parte ve- se fabricas a vapor ; uma verdadeira cidade
industrial. Sua população é boa, educada, progressista. Ha um ver-
dadeiro cunho de caracter amavel em toda ella, sem licenciosidade . Com
quanto esse caracter seja proprio para se entreter relações, e ser
mesmo solicitado para isso, eu esquivo-me a ellas. Meu espirito vive
n'uma apprehensão constante, e portanto irritativo. Vivo quasi misan-
thropo. A casa de Doria, onde poderia encontrar um pouco de pales-
tra familiar, é onde mais se trata de politica, nem só em relação ao
Estado como em relação á revolução. Demais continuam os atritos
entre a gente do governo provisorio e Gomercindo. Esses atritos já
tem chegado ás proximidades do extremo .
A minha convivencia aqui é com o general Jacques Ourique ,
Gentil, Luiz Murat e Guimarães Passos. Ali nossas palestras ver-
sam sobre tudo que possa deleitar o espirito, sem comtudo, de vez
em quando deixar de se metter n'ella o travo amargo dos soffrimen-
tos dos ausentes ...,
As noticias que temos é que em S. Paulo se organizam forças
para a fronteira. As forças que temos em Castro, porem, bastarão
para detel- as. Hoje a nossa attenção toda é Saldanha da Gama, que
pede que se lho mande gente. Seguiram o Republica e o Aquidabam
para là; mas não me consta que tenham levado gente de desembarque.
Custodio acha -se aqui , e sua presença modificou a ordem das cousas,
porque elle mostra- se conciliador, moderado, e tem por Gomercindo
verdadeira affeição . Aqui veio o reporter do Times. Conversando
commigo disse que a posição de Saldanha é a mais precaria possi-
vel. Que se não mandarmos recursos elle estará perdido apesar do
esforço nunca visto que emprega com os seus para sustentar-se. Nar-
rou o combate da armação, feito digno de Leonidas. A ida do Aqui-
daban e o Republica, porem, deve tiral-o do perigo . Custodio outro dia
disse-me que pensava ir á Bahia buscar os navios que lá estão.
183 ----

Declarei-lhe que, caso se realise o seu projecto , eu serei seu compa-


nheiro. Quem sabe, se levantando-se a velha terra, o resto do Bra-
sil não nos secundará n'esta luta ingente !


* *

Voltaram o Aquidabam e o Republica ! ... Nada fizeram. O


Republica estragou-se e foi preciso mandar-se fabricar aqui as pe-
ças que faltam . Ja temos pouca munição . Felizmente aqui encontrou-se
serralheiros para fabricar granadas e lanternetas, e quem fabrique
polvora.
*
**

Saldanha abandonou o Rio de Janeiro a bordo de navios es-


trangeiros.

Muitas vezes dormindo, quando dores crueis nos pungem, nós


sonhamos que essas dores que sentimos não existem . Nos movemos ,
nos agitamos, mas ellas persistem. Como sentil- as, porem, se nossa
mente mergulha-se n'um ideal risonho, separado do corpo soffredor ?
Despertos, nós sentimos mais. Todos os soffrimentos se concentram
para revelarem-se no momento em que temos consciencia da dor.
Dahi a prostração , d'ahi o desejo de um allivio immediato.
A dor persiste sempre, mas a esperança do allivio não nos
abandona.
Tal foi o meu estado ao saber do desastre de Saldanha . Mas
é preciso lutar. Resta-nos ainda a esperança , que só abandona aos
mortos.
*
**

O desapparecimento de Saldanha e d'aquelles bravos abnega-


dos, que causaram assombro aos estrangeiros, pela bravura que apre-
sentavam n'aquelles combates descomunaes, teve para mim o mesmo
effeito que apresentam os ramos da viçosa arvore quando o macha-
do destruidor corta-lhes as raizes . O tronco guarda por muito tem-
po a seiva que por elle passava para nutrir os galhos ; esses porem
fenecem logo. Nós, os lutadores, somos o tronco, os galhos a revo-
lução . Nós lutaremos , mas o ponto principal, que se tornára o Rio
de Janeiro, desde que sahimos do Rio Grande, desapparecendo, esta
luta vai ser de novo titanica, com o axioma do inicio : Vencer ou
morrer. E no isolamento do espirito, na meditação sobre os aconte-
- 184

cimentos, nós perguntamos : O que fez esta esquadra ? O que fize-


ram esses valentes ? Nada. Deram a vida com uma simplicidade de
estoicos, lutaram como na humanidade não se encontrará luta igual
senão nos loucos, e todo esse sacrificio, toda essa abnegação , todo
esse amor patrio predominando e vencendo a disciplina e o interes-
se, só terá um nome : Revolta subjugada. Vencedores elles seriam
heroes . Essas creanças mortas teriam o nome de Grenhalg, essas
creanças vivas seriam comparadas aos Horacios ou Curiacios. Venci-
dos elles não serão senão rebeldes dignos de punição. Deodoro foi
Generalissimo porque venceu , sem luta. Se na turba louvaminheira
que o acclamou apparecesse o sargento Sylvinio para acclamal -o im-
perador elle seria imperador. Washington na America do Norte
teve de declarar quando o quizeram acclamar rei, que seria infame
quem tal lembrasse. No Brazil seria um procer da grandeza da pa-
tria quem a tornasse aviltada. Se Deodoro perdesse não seria mais
do que um scelerado, um prejudicador da causa que por ambição
sacrificou.
Nós tinhamos uma esperança : Poder na victoria declarar, e
sermos cridos, que o nosso fim não era senão a restauração do nosso
antigo nome, do nosso pun lonor. Vencidos não seremos mais do que
bandidos . Os mesmos que viram a nossa isenção nas questões de
interesses, os que nos viram andrajosos e julgaram n'esses andrajos
a existencia da tunica inconsutil das sãs ideas, verão em
mãos o sangue do crime, em nossas feridas a cicatriz dos scelerados
nas lutas criminosas.
Isto não importa, porem. Estamos nas fronteiras de S. Paulo.
Temos de um lado o mar onde nos poderão dar caça como se fo-
ramos animaes indefezos. Depois temos a serra com seus caminhos
singulares, onde teremos que dar batalhas, em que o vencedor só
encontrará cadaveres, e pelo lado onde o inimigo não nos poderá
tolher o passo, temos as florestas virgens, o deserto , o desconhecido ,
as sorprezas do terreno, a solidão .
Por acaso porem, quando um homem empunha uma arma con-
tra a força que compra adeptos, que tem dinheiro, que tem quem
The diga que os maiores crimes são virtudes, pensa na vida ? Não .
Morrer de um modo ou de outro é sempre morrer, mas na morte
em luta contra o oppressor, na troca da vida pela honra do tumulo ,
ha alguma cousa que eleva, que diz a esses voluntarios do sofrimento
que para os que morrem assim ha uma lagrima de saudade, e para
os que vivem na ignominia só ha o azorrague do desprezo , mesmo
daquelles que vivem da villeza delles. Serão mortos que authoma-
ticamente transitam, mumias nobilitadas pelo ouro que borda -lhes a
mortalha.
185

Uma vez pordi-me nas mattas do Orobó. Veio a noite, sem que
eu podesse sahir na estrada . Era uma noite chuvosa e escura . Quanto
mais exforçava-me para encontrar o caminho, mais me perdia. Ouvia
sons que indicavam o movimento das atafonas, onde ralam a mandioca,
procurava aquella direcção e tudo silenciava ! eram as cantilenas dos
sapos que eu ouvia e elles se calavam com a minha approximação.
Voltava buscando orientar-me de novo, via uma clareira, luzes que
pareciam sahir pelas janellas de uma casa. Corria para lá e cahia
n'uma charneca enterraudo-me na lama até o pescoço. As luzes
que vira eram dos pyrilampos, a clareira a charneca. Afinal, exte-
nuado, pouco importando-me que os queixadas e os tigres que lhes
seguem sempre, me viessem sorprehender, adormeci recostado a
uma arvore. Pela manhã os meus rapazes encontraram-me . Me ha-
viam buscado toda noite, mas eu não os ouvia e elles não me viam .
Entretanto mais de uma vez eu tinha passado pela estrada que busca-
va, sem reconhecel- a porque a noite não me deixava ver a trilha
feita no solo pelos pés dos transeuntes, unica cousa que indica a
direcção que deve seguir o caminhante. Assim estamos nós. Mais de
uma vez tivemos em nossas mãos a victoria, sem nos aproveitarmos
d'ella. Mais de uma vez tomamos as apparencias pela realidade,
afinal tivemos que resignarmo-nos á nossa sorte, sem nos importar
com o triumpho .
Mas se os tigres e os queixadas me pouparam n'aquella noi-
te tormentosa, os homens da legalidade não pouparão os que , des-
apercebidos, cheguem ao alcance delles. Mas morrerão lutando . Ou-
tros morreram n'um afago, n'um abraço com um punhal nas costas
como em Piratiny depois que confiamos nas palavras do Sr. Arthur
Oscar, em Bagè .

*
**

Perdidas as esperanças no norte, Custodio de Mello prepara uma


expedição ao Sul . Gomercindo quer fazel-a. Chegou a mobilisar as
forças para embarcarem em Paranaguá.
Mandou chamar-me ao quartel, nos collocamos na sacada e
elle fechou as vidraças nas nossas costas, para não ser ouvido . Par-
ticipou-me que estivesse prompto, porque de um momento a outro
embarcariamos .
Eu disse-lhe, francamente, que não julgava conveniente a nossa
-
ida na esquadra, desde que o general Salgado se propunha a ir.
Mas Salgado não tomará o Rio Grande, me disse elle.
- Porque ? perguntei-lhe.
-Não sei, mas tenho um presentimento que não tomará ; e se
fracassa esta tentativa, estamos perdidos. Nos tomaremos porque che-
garemos ali, atacaremos de um golpe, e se formos infelizes, nos to-
186

caremos para S. Victoria, porque eu conheço aquillo palmo a palmo ,


e tenho recursos na fronteira . E assim continuaremos como até
agora.
Eu fiz- lhe notar os inconvenientes. No momento em que nos
retiremos d'aqui, Floriano despejará no Paraná todas as suas for-
ças que irão de marcha batida por terra, até o Rio Grande, nos con-
frangindo no littoral.
-Os d'aqui que estão formando batalhões, guardarão a fronteira.
-Não, disse-lhe eu, no momento em que nos ausentemos , todos
esses batalhões desaparecerão. E tomando o Rio Grande, estando nós
aqui , os tres estados do Sul estando em nosso poder, S. Paulo se le-
vantará e Floriano abandonará o lugar para não ver o paiz divi-
dido .
-- Sim, mas isto é se for tomado o Rio Grande.
-Será tomado, disse eu com convicção. O general Salgado ain-
da não teve occasião de mostrar-se n'uma luta , onde toda a gloria
seja sua, aproveitará esta para glorificar - se .
Demais eu temo uma cousa. Tomado por nós o Rio Grande ,
as forças de Castilhos procurarão a serra, buscando incorporação
com as forças de Floriano .
Salgado está na Laguna d'onde só poderá procurar estreitos
caminhos que qualquer força impedirá . Opprimido pelas forças de
Castilhos e de Floriano, não escapará um só dos nossos companhei
ros que se acham ali.
Ao ouvir isto, Gomercindo soltou uma imprecação .
-
Deixarem-se ficar n'uma mangueira atoa, sem fazer nada !
Gente que poderia ter feito tanto ! Isto é uma desgraça.
Bem, disse elle, não é possível que deixemos sacrificados tão
bons companheiros. Não tomarão o Rio Grande, mas nós teremos
caminhos para ir lá. Vou pensar sobre isto, e vou a Paranaguá en-
tender-me com Custodio .
Chegando em casa, escrevi a Doria, dizendo- lhe que tinha con-
versado com Gomercindo mostrando-lhe a inconveniencia de fazermos
a expedição. Que se elle tem chave telegraphica com Custodio, avi-
se-o que aperte com Gomercindo que ja vai quasi resolvido , e que
leve Salgado .

Começa a debandada. Doria seguio para Montevidéo em com-


missão, mas seguiram com elle Jacques Ourique , Generoso Marques ,
Motta, Gentil, Luiz Murat, Guimarães Passos, e outros muitos que
representam na politica local . A sahida de Doria foi um brado de
alarme para todos os que se achavam organisando forças no Estado .
Cada qual procura obscurecer - se. Ja não se vê aquelle extra-
ordinario reboligo de divisas.
187

Pelo seu lado os adversarios da localidade que pareciam indif-


ferentes à politica, gosando de toda tranquilidade, até parecendo
querer se unificar comnosco, ja se vão manifestando, formando gru-
pos. Antes pouco falavam. O Dr. Meyer que exprimiu-se em ter
mos um pouco revoltosos, foi preso á ordem de Gomercindo. Apenas
tive conhecimento d'essa prisão, corri ao quartel e fiz com que fosse
elle transferido do carcere para o aposento do coronel Severino Brasil,
onde se conservou tratado com toda attenção até que veio ordem para
pol-o em liberdade, resposta que deu Gomercindo ao meu telegramma .
Ao chegar ao hotel mandei dizer á senhora d'elle, que podia
estar tranquilla, que no outro dia elle voltaria para casa.
*
**

Doria passou o governo ao general Cardozo Junior, que veio


ao hotel visitar- me e avisar-me que tinha assumido o governo, con-
tando com as nossas forças. Garanti-lhe que as forças Rio-Granden-
ses tudo fariam para ajudal- o a bem desempenhar o seu melindroso
encargo. Dias depois, tendo Apparicio marchado para Garapuava,
ponto estrategico para Palmas, espalhou- se a noticia de que Go-
mercindo retirava-se. Indo a Palacio, perguntou-me o general Car-
dozo se era verdade.
Respondi- lhe que não.
Disse- me elle que confiava em mim. Que caso tivessemos de
nos retirar, que eu lhe avisasse com tempo, porque apesar de ve
lho, elle acompanharia, Gomercindo.
Prometti-lhe que avisal-o-hia.
Poucos dias depois o general declarou-me que seguia para o
Desterro. Alguns officiaes do sul que aqui tem suas familias tam-
bem seguem, o que acho justo. Abandonal-as aqui seria sacrifical- as .
D. Adelaide Meirelles veio a mim perguntar o que devia fazer,
visto que nos retiramos. Respondi-lhe que nada ha por emquanto.
Que o que se faz nada é mais do que estrategia, porem que tornando-se
difficil o transporte por mar convem aproveitar e puz-me à disposição
d'ella para providenciar sobre sua viagem. Afflictissima, disse que
ia pensar e que me avisaria. No outro dia veio dizer-me que estava
resolvida a ficar. Tinha sua nora em estado adiantado de prenhez ,
e não pode abandonal- a. Que por ella está disposta a ir até ao sa-
crificio. Commoveu-me sua dedicação , e procurei tranquillizal -a,
animando-a com a esperança de que Salgado tomarà o Rio Grande
e tudo irá perfeitamente para nós .
N'essa occasião eu mentia. Um desanimo horrivel se apodera
de mim , vendo esta debandada. E' o prenuncio de nosso desastre. Mas ,
para nós os companheiros de Gomercindo, haverá sempre um caminho
para sahir, seja por onde for . Mas, esses pobres que aqui ficam, o
que será d'elles ?!
188

Retirado o general Cardozo Junior, a muita instancia nossa,


acceitou o cargo o Dr. Ferreira Braga, de S. Paulo. E' homem dost
moldes antigos. Intelligente, illustrado, criterioso, com pratica de
governo porque foi mais de uma vez presidente de provincia, no
Imperio, e deputado. Sua entrada para o governo tem sido util, por
que nem só elle regularisa o serviço, como tem dispensado todos os
funccionarios dispensaveis, que foram nomeados por patronato politico .
Esse acto tem poupado, ou poupará, ao thezouro estadoal trinta contos
mensaes, se não me falha a memoria.
Ferreira Braga disse- me, quando avisei-lhe que ia seguir
para Ponta Grossa, onde se acha Gomercindo, que deseja que eu
permaneça ao lado d'elle para auxilial-o, e que vai reclamar isso
de Gomercindo. Respondi-lhe que não é preciso, que eu virei á
capital sempre que meus serviços sejam precisos . Se temos no go-
verno um homem como Ferreira Braga, temos como chefe da guar-
nição Cezario Saraiva que, por qualquer denuncia manda prender,
encarregando d'esse serviço a pessoas pouco criteriosas, que não com-
prehendendo a delicadeza da missão penetram nas casas, fazem phy-
sionomia de carrascos, aterrorisam as familias.
Almoçava eu . quando vi entrar uma senhora idosa , em prantos, á
minha procura. Tinham-lhe prendido o filho; tinham- o levado para o
quartel do 8°. Prometti - lhe que la iria vel-o , mas que não se assustasse.
Immediatamente entrou uma outra senhora com uma filha, tambem
á minha procura . Era a esposa do prezo. Sua phisionomia indicava
terror. Ali mesmo cahio de joelhos a meus pés para que salvasse o
marido. Fulião almoçava commigo. Cheio de indignação por actos
que provocavam taes scenas, tranquillizei- a a respeito d'elle, e que,
iria ao quartel. Quando lá cheguei ja estava ella acompanhada de duas
sobrinhas do Dr. Ferreira Braga. O pequeno carcere estava cheio de
presos ; o que eu ia ver, Vergolino, se chama, chorava em presença
da mulher.
Quando me viu, eu senti que seu animo se reanimava, que
nascia-lhe a esperança . Subi a procura de Cezario ; não o encontrei :
Recommendei aos companheiros que faziam a guarda do quartel toda
a attenção para aquelles homens o que elles prometeram-me.
Fiz retirar as senhoras, levando-as em meu carro até á casa
da cunhada, viuva, de Ferreira Braga
Sahi á procura de Cezario e fallei - lhe sobre os presos. Não
podia soltal- os porque estavam presos á ordem de Gomercindo que
não tardaria vir. Disse-lhe o que sabia sobre o modo que procediam
os agentes d'elle nessas prisões, atterorisando as familias ; e que não
convinha proceder por tal modo. Respondeu -me que não tinha dado
taes ordens e que ia prohibil- os de sahirem em diligencias.
Gomercindo na vinha, e não passava um dia que não me pro-
189

curassem muitas vezes a mãe e a mulher de Vergolino , e os paren-


tes dos outros.
Uma madrugada bateram-me na porta. Era o sargento Affonso,
um preto de Bagé, que me vinha avisar de que haviam retirado os
presos do quartel levando-os para a Estação, por ordem de Cezario .
Corri ao quartel, estava fechado. Bati, perguntei por Cezario .
Não estava. Corri á estação que é longe, la cheguei ao amanhecer
do dia.

Os presos estavam n'um carro. Chamei o capitão que com-


mandava a escolta e perguntei onde ia leval- os.
-A' Ponta Grossa respondeu- me, se elles não escaparem-se.
Esta phrase fez lembrar me aquelle estribilho usado pela lega-
lidade castilhista no Rio Grande, quando se perguntava, ou quando
annunciavam uma prisão . „Escapou- se ou escaparam-se. " No Rio
Grande conta-se por centenas esses escapados para sempre.
Disse ao capitão que era preciso que aquelles homens chegas-
sem até á presença de Gomercindo .
Chegaram n'aquella occasião nem só a esposa e a mãe de Vergo-
lino , como as dos outros presos . As caricias, os adeuzes eram tro-
cados pelas portinholas do vagon ; nesta occasião me viram e todos.
se voltaram para mim. Supplicas de uns, recommendações de outros.
Dei ordem ao capitão para deixar descer aquelles homens , afim
de falarem com os seus. Respondeu-me que tinha ordem de não
deixal-os saltar.
Ordenei-lhe sob minha responsabilidade e elle accedeu . A
scen tornou-se mais significativa .
Eram abraços e beijos, como n'uma despedida eterna. Depois
voltavam-se para mim apoderavam- se de minhas mãos, beijavam-n'as ;
outros por terra abraçavam-me as pernas, e não me ouviam dizer - lhes
que fossem sem receio que voltariam, que eu lhes garantia , que não
somos bandidos.
E os pedidos , as lamentações augmentavam-se e o trem a
apitar, e elles sem se despegarem uns dos outros.
Afinal disse-lhes que era preciso partir e elles obedeceram .
Ja no vagon, Vergolino apoderou -se de minha mão e beijando - a disse .
Minha mulher e meus filhos , ahi ficam.
Ouvi uma voz em italiano que chamava-me e repetia a mesma
phrase.
O trem partio, ouvi um grito agudo, e olhando donde vinha ,
vi a mulher de Vergolino atirala na sala sem sentidos.
E o trem partio levando aquelles infelizes que pensavam nunca
mais verem os entes caros que deixavam, e os que ficavam pensavam
tambem nunca mais velos .
Ali mesmo pedi papel e na janella do telegrapho, que ficava
190

ao pè, passei um telegrama a Gomercindo dizendo- lhe que tinha pro-


mettido que no primeiro trem aquelles homens voltariam .
O telegraphista que assistio á scena, passava cada palavra
a proporção que eu a escrevia. Quando terminei o telegramma elle
terminou a transmissão.
Està escripto que n'esta infeliz Patria não se verá mais se .
não scenas como esta de hontem, como hoje no Rio Grande, hoje aqui,
amanhã onde serão ? Pesava-me na alma uma densa nuvem de
tristeza .
Todas aquellas scenas do Rio Grande, em nome da legalidade,
de que eu tive noticia, desfilavam vivas , palpitantes, reaes , ante meus
olhos . Era Terencio Saraiva no Herval, tirado de sua casa a titulo
de que iria para a capital e por isso precisava levar todo o dinheiro ,
e logo depois despido, vendo abrir o poco onde iam sepultal- o , e
depois ver añar a faca para o degolle e depois sentil- a na garganta.
Cezario que aqui está é seu irmão. Era Serengo tirado da cadeia
de Jaguarão, despedindo-se dos outros porque sabia que ia morrer .
Era no Piratiny, no Cangussú, todos aquelles homens inoffensivos , e
que por isso ali permaneceram, mortos em suas casas, em presença
das familias. Era na Cruz Alta aquellas scenas constantes de des-
pedidas dos que sahiam para irem morrer, dos que ficavam para
em poucas horas seguirem o mesmo caminho . Era a luta de Facundo
Tavares, deixando dois filhos mortos, a espoza quasi louca , esvain-
do-se em sangue, marchando para o martyrio, á tarde , ao desfillar do
prestito dos dois cadaveres, o Sr. Abott e Moacyr rindo-se das
janellas do palacio.
E aquelles desgraçados, victimas da força deviam rogar, pedir ,
supplicar sem que ninguem lhes desse uma esperança, e nos transes da
dor, na agonia, ouviam ainda o escarneo do algoz, e o gargalhar
dos mandantes que diziam : E' para consolidar a republica que nos
garante ordem e progresso, saude e fraternidade !
Eu sentia em mim uma voz que dizia: E tu és brazileiro, tu
pertences a esta nacionaldade onde em vez de juiz se tem algozes,
em vez de lei se tem a força , em vez de pundonor e bravura para
o inimigo se tem a crueldade para as victimas e amanhã tu irás no
estrangeiro dizer : eu sou brazileiro ... sem te lembrares que esse nome
se sepultarà para sempre se os autores dos crimes, se os que não ti-
veram pena das victimas, os que mandaram matar para gozarem os
que obrigaram as victimas a matar por sua vez para poderem viver,
não forem punidos ........
Tres dias passaram-se sem que voltassem os homens e sem que as
pessoas d'elles não me viessem a toda hora saber se vinham ou se não
vinham . Não houve nenhum trem n'esses dias, e por isso elles não
vinham .
Eu garanti-lhes que elles hão de voltar. Eu conheço Gomercindo .
· 191 -

Sei que n'aquelle corpo que não estremece diante do perigo,


habita uma alma boa, compassiva, tão forte no querer, tão pertinaz
para o triumpho, quanto sensivel para os fracos.
E' natural. Todo heróe é sempre bom para os vencidos quan-
do o seu heroismo não é o instincto felino que se torna sangui-
sedento em presença da victima.
Afinal uma noite eu fui á estação, a serviço , e encontrei , ape-
zar do adiantado das horas, o salão cheio de familias. Ao entrar
reconheci - os logo pelo reboliço que fizeram, pelos abraços que me
davam, os comprimentos agradecidos .
Elles abi vem. Vem todos, diziam.
Os telegraphistas das estações intermediarias avisavam á pro-
porção que o trem avançava. Desde cedo que contavam as horas
e a marcha vagarosa do trem. Tinham-me mandado aviso em casa,
mas eu tinha passado todo o dia fóra. A final o trem apitou.
Todos correram. Mal o trem parava atiravam- se nos braços uns
dos outros. Estou vivo dizia um. Estás vivo ? perguntavam vozes
femeninas. Depois os abraços foram para mim ; e falavam de Go-
mercindo .
,,Que homem bom. Estava sentado na porta da barraca churras-
queando quando chegaram. Convidou-os a churrasquear ; elles tre-
mulos, recusaram. Insistio, quasi obrigou- os a comer, depois tomaram

mate. Só lhes perguntou porque foram presos.-- Não sabiam. Son-
ceiras de Cezario que lá está bobeando, disse. Perguntou quando eu
seguia para lá.-- Não sabiam. Está feito advogado de causas perdi-
das escrevendo nos jornaes atôa , disse Gomercindo .
Isto não se faz mais com imprensa. Ja se foi o tempo, hoje só
se pode fazer é com armas e com a vida. Conversou mais com elles.
Cada qual repetia-lhe uma phrase de franca amabilidade. Mandou
que procurassem na cidade onde ficariam até que houvesse trem para
voltarem. Podiam andar livremente que ninguem os encommodaria.
Durante os dias que ali estiveram o praser d'elles era ir conversar
com Gomercindo .
Vergolino pediu me para acompanhal- o até á casa, onde de
novo se repetiram as scenas dos comprimentos dos amigos, e as
narrativas das palavras, dos modos, dos ditos de Gomercindo . Este
homem superior, que os inimigos tem criado em torno uma atmos-
phera de horrores, tornou- se para aquelles homens o que são os he-
róes generosos .
Estas scenas que a principio me aborreceram, me satisfize-
ram no fim, porque elles ficaram sabendo que Gomercindo é incapaz
de uma baixeza, de um crime. Se os homems da legalidade fratri-
cida presenciassem-n'as, talvez ficassem conhecendo quanto é agrada-
vel o ser bom, porque eu creio que na alma d'elles deve haver ao
menos, uma penumbra de humanidade, que nunca foi clareada por-
192

que o interesse e os instinctos ferozes absorvem toda a luz que


pode avival-a.

**

Segui para Ponta Grossa que passou a ser o quartel general


de Gomercindo, e centro de operações .
O general Piragibe havia tambem embarcado para Montevi-
déo, e Augusto Amaral que commandava a guarnição de Castro se-
guiu para Curitiba afim do guarnecel-a.
Augusto é um dos companheiros mais dignos que temos . Va-
lente até o despreso da vida , calmo, modesto, garantidor de todo
prisioneiro ; severo no cumprimento do dever, não consentindo que
seus commandados, quasi nús como andamn, commettam a menor falta.
A sua ida para Curitiba é a continuação dos actos de Gomercindo
para não se darem atropellos ou faltas. E' a meu ver um correctivo
que elle manda para os actos de Cezario Saraiva, lembrado talvez
pelas ultimas prisões que fez.
Augusto queria pedir dispensa desta commissão por estar sua
gente toda núa. Convenci-o que devia acceital- a, e que honra aos re-
volucionarios apresentarem na capital homens quasi nùs, acampados
ou passando sempre por cidades commerciaes como Castro, Pon-
ta Grossa, signal de que não são ladrões . Quando Gomercindo fa-
lou-lhe para seguir, elle declarou que não desejava porque tinha
receio de um conflicto com Cezario Saraiva.
Vá, disse elle, quem vai commandar é Você. Cezario nada tem
com isso.
E' uma das grandes vantagens de Gomercindo . Sò na hora
dos combates elle ordena , fora d'isso todas suas ordens são como
consultas, mas nunca deixam de ser obedecidas religiosamente.
E' meu companheiro de barraca aqui, em Ponta Grossa, o
coronel Dr. Pereira Pinto, fazendeiro em S. Paulo. Quando elle
chegou a Curitiba , eu o vi, nasceu- me uma forte suspeita de que
fosse espião. Approximou-se mais de mim para tratal- o de um olho
affectado de keratite e na hora dos seus curativos indagava dos
movimentos revolucionarios , dizendo que caso marchemos para S.
Paulo elle quer um lugar no exercito para que diz ter habili-
tações .
Quasi bom da vista, adoeceu gravemente de uma angina cuen.
nosa, que muito o atrapalhou. Curei- o d'ella. Falando-me sobre paga-
mento disse que está sem dinheiro aqui , porem que em S. Paulo
onde pretende fazer-me comprar uma de suas fazendas, eu saberei
quem é elle . Falando ao almirante Mello sobre elle, este fez-me o
seu elogio.
Apresentei-o a Gomercindo que prometteu nomeal- o coronel
193

commandante da vanguarda para S. Paulo. Afinal feita a nomeação


veio comigo . E' um bom companheiro, alegre, illustrado tendo via-
jado quasi toda a Europa d'onde trouxe impressões de toda classe,
inclusive uma bala na cabeça , recebida em um duello em S.
Petersburgo, por ter querido, como D. Quixote, defender uma senho-
ra, que não conhecia, contra as imprudencias de um sujeito, no theatro.
Essa senhora que não cessou de visital -o durante o tempo que guar-
dou o leito, é, segundo as apparencias, uma aristocrata .
Ainda escreve -lhe. Aqui mesmo recebeu elle uma carta d'ella
que mostrou-me, datada de S. Petersburgo .
Pereira Pinto perdeu a mulher, e logo depois os filhinhos. E'
um nevrostenico . A's vezes, pára absorto e depois diz- me : Estava
ouvindo perfeitamente o choro e os gemidos de meu filho. Gomer-
cindo come sempre em minha barraca. Na barraca d'elle não se come
senão churrasco e toma-se mate amargo ; na minha se passa regular-
mente ; os doentes que vejo mandam-me presentes de ovos, gallinhas,
perús, doces , e o Emilianno prepara bem uma gallinha, alimento unico
que em campanha faz com que Gomercindo abandone o churrasco.
Quando elle elogia a comida Emiliano, mostra os dentes brancos, e
mais alegre fica quando Gomercindo lhe diz : sei apreciar um bom
cozinheiro ; em minha casa quando eu lá vivia e era rico, tambem se
comia bem, tambem se dansava. Pensas que só os doutores bahia-
nos se sabem tratar ? Nós os gaúchos, ás vezes tambem nos trata-
mos. Pereira Pinto é uma distração para Gomercindo . Conta-
The casos de duellos, de altas cavallarias don juanescas que lhe pro-
vocam as mais gostozas gargalhadas. Gomercindo bebia um calice
de vinho ás refeições, e Apparicio nem isso. Pereira Pinto insiste
para elle beber outro. Não coronel, se bebo mais de um, sou capaz
de dizer-lhe os meus planos e eu só os digo na hora que tenho de
encarregar a cada qual o que deve fazer, diz elle rindo- se.
Pereira Pinto mandou fazer para si uma lança enorme a que
prendeu uma bandeirola de seda azul e branco, com o lemma tudo
pela liberdade, bordado a ouro. Azul e branco são as cores de
Apparicio Saraiva, e isto agradou a Gomercindo , que não deixou
de rir-se dizendo a Pereira Pinto : Amigo, manejar uma destas pica-
nhas não é tão facil como julga ; o que obrigou a Pereira Pinto
nem só a manejal -a, como a mostrar como é habilitado não só no
manejo da lança como da espada , sabre e florete , o que muito agra-
dou a Gomercindo.
Eu sou o cadete ruivo da cavallaria do Rio Grande, disse
Pereira Pinto, cheio de si.
Bem, disse Gomercindo, Quem como cadete ruivo aprendeu
tudo isso, como coronel de maragatos hade fazer prodigios . Breve
creio que havemos de ver isso .
*
13
191

Gomercindo teve de vir a Curitiba e convidou-me a acompa-


nhal- o , ficando eu aqui alguns dias afim de preparar ambulancias é o
pessoal que é preciso para o serviço do exercito em marcha. O
Dr. Ferreira Braga está aborrecido . Querendo não só fornecer
o exercito de roupas com os dinheiros arrecadados nas repartições ,
como fazel.o com economia de que elle já tem dado provas, vê- se
tolhido pela junta governativa que continua a conservar a doutrina
de Estados federados, em dois Estados que não tinham combinado
para isso nem pediram tal governo provizorio, em nome da con-
stituição. De palacio mesmo telegraphei ao Dr. Westfallen, que faz
parte da junta, mostrando-lhe o inconveniente de tal medida ; que
homens de caracter e rectidão reconhecida como Ferreira Braga,
collocado no governo do Estado, não pelo governo provizorio, nem
por eleição popular, mas pelo exercito revolucionario, devia ter carta
branca para proceder como convir á todo momento de acção. Recebi
do Dr. Westfallen um telegramma em que diz-me que responderá
o meu telegramma com vagar porque deverá ser longa a resposta ,
nem só porque precisa clarear aquelle ponto, como por nossa
affeição. No outro dia Ferreira Braga recebeu um telegramma da
junta dizendo que a esquadra expedicionaria havia entrado no Rio
Grande, e que constava Castilhos haver fugido de Porto Alegre.

Um telegramma de Pereira Pinto annuncia- me que o inimigo


passa ao Paraná, pelo Itararé, e que elle segue para Castro como
commandante de Vanguarda.
Telegraphei -lhe para Castro pedindo- lhe para arrecadar todo
o iodoformio existente nas pharmacias, por ser genero que já não
se encontra, recebendo resposta de ter obtido um kilo de iodoformio .
Vim para Ponta Grossa pensando que as forças marchariam para o
Itararé, mas ao chegar aqui encontrei noticia de que o inimigo
atacára Castro guardado apenas por cem homens ao mando de
Carlos Libindo, que retirou-se, vindo acampar na bocca de uma pica-
da onde se conserva sem ser perseguido, e que Fulião se encor-
porava a elle com um contigente das forças de Vasco Martins. Perei-
ra Pinto chegou sem trazer o iodoformio. Deixara-o no quarto do
hotel donde sahira para reconhecer o inimigo e onde não voltara.
Gomercindo espera com anciedade noticias do Sul ; realisada
com proveito a expedição elle atacará as forças de Castro fortifi-
cando -se na fronteira de S. Paulo até que a esquadra volte, ou
para continuar a guerra no norte ou para levar-nos por mar para o
Rio Grande.
195

Um telegramma do Desterro certifica-nos que o Rio Grande


está em nosso poder, que Custodio e Salgado recebem festas e ova-
ções como os libertadores de um povo opprimido.
Na cidade, aqui em Ponta Grossa, se organisam festas.
Povo com musica á frente, veio saudar a Gomercindo. Tive
de falar, agradecer-lhes, essa sympathia espontanea pelo nobre chefe.
N'esta occasião recebeu Gomercindo um telegramma muito curial do
velho Fulião, em que diz : Os bichos estão acampados em Castro ;
me dê ordem para atacal-os , eu quero destroçal- os, mande-me a or-
dem. Tenha pena de seu negro.
Singular epoca, disse eu a Gomereindo ! Ter pena é dizer vai
morrer talvez !

A nossa vida não é mais do que um lutar constante. Os oren-


tes esperam uma outra, mais calma, mais digna para os bons, mais
terrivel, mais desoladora para os máos, e tudo isso n'uma eterni-
dade ! O goso prolongado produz sempre a inacção, ou a divisibi-
lidade dos que gosam pela natureza de cada espirito ; a punição
eterna não aproveita ; não corrige, não exemplifica.
A lei devia ser clara, absuluta . Cada crime punido na ra-
zão directa dos males causados, mas que todos tivessem conhecimen-
to dessa punição .
Mas para isso seria preciso Juiz, e onde encontral-o ? Chris-
to destruiu a condemnação mandando que só podesse exercer justiça
quem fosse puro. A punição eterna não edifica, nem corrige. O mo-
vel de um crime é muitas vezes ephemero . Se encontra a victima
elle se cumpre, se não a encontra pode desapparecer. Lembrou- me
que, quando estudante de philosophia, quando o meu sabio professor
Dr. Ernesto Carneiro falava sobre a premeditação, eu objectei- lhe
dizendo que a premeditação só é agravante no iniciador da serie de
crimes, que desenvolver- se-ha, como a proliferação de sementes em
terreno proprio.
O primeiro crime, por simples que seja , uma falta venial pro-
priamente, pode ser causa de crimes horriveis, interminaveis.
Ao passo que, os que soffreram uma injustiça, uma oppressão,
a premeditação é sempre atenuante. No homem o sentimento é pro-
gressivo.
Commette-se um crime, insulta-se ; no momento, elle insultado
absorto cala- se, depois vem a reação. Como supportou tal insulto. A
força que o abateu é como os elephantes de Pyrrho. Quer vingar-se
d'ella, quer mostrar como o homem, só pode honrar- se lutando , e os
elephantes se vão e a vingança se dilata em campo prospero.
E' então que elle calcula como se amesquinhou deante de si
196

mesmo, não dando a resposta devida na mesma occasião . Parece- lhe


que todos se riem d'elle, que todos o julgam cobarde, e mesmo sen-
do cobarde lá um dia o brio accorda-se vendo elle que a differença
entre o valente e o pusilanime está somente em que um tem brio
e o outro não tem. A premeditação accorda esse brio.
Ella só poderá ser aggravante n'aquelles que abusam da força,
calculam o golpe com que deve ferir a quem descuidado confia-se
na lei . Se os homems da republica tivessem punido no Rio Grande
os assassinos que em nome d'ella matavam e roubavam, quantas
vidas se teriam poupado ? Quantos soffrimentos, e quantos crimes
que a vida exige ? E não podemos calcular até onde elles chegarão !
Quem o responsavel por tudo isso ? Um homem só : O Sr. Julio de Cas-
tilhos. Não teve coragem para lutar desde que sentiu faltar-lhe o
apoio que julgava ter em Deodoro, teve coragem para ordenar o
exterminio dos adversarios desde que na alma insensivel do Sr. Flo-
riano Peixoto encontrou outra egual á sua. Destruir tudo e todos :
eis o sonho d'elles. A batidos os inimigos, quem dos seus terá cora-
gem para enfrentar-lhes com a força que elles consolidam, já com-
prando os que se vendem, jà aterrorisando os que viram a sorte
que tiveram os que quizeram lutar ? Qual será a sorte do Brasil
se o Sr. Floriano se eternisar no governo e para que haja quem
o faça bom depois de morto, legue o ao Sr. Castilhos que ainda é
moço e poderá viver muitos annos ? O Paraguay se vingará de nós
por termos libertado - o dos Lopes.

Ao chegar aqui fui chamado para ver um francez que se acha


muito mal. E um engenheiro que teve previlegio para explorar
minas de cobre no Iguassú, previlegio que, segundo a familia, outro.
explora a venda e este vive na mizeria. Tem duas filhinbas, a mais
vella, Emma, de 12 annos , morena, viva ; a outra de 10 annos , loura.
Ambas tomaram-me amizade e logo pela manhã vem para minha
barraca trazendo rami!hetes com que ornam a taboa que me serve
de meza. Almoçam e jantam commigo. Emiliano prepara- lhes uns
doces de leite de que ellas são gulozas . Pereira Pinto escreve - lhes
versos em francez, chamando- as de feias, pondo defeito em tudo
que ellas ten de mais bonito. A principio, quando Gomercindo
chegava, ellas mostravam-se um pouco desconfiadas, mas depois toma-
ram-lhe ta liberdade que se lhe sentam nos joelhos, mettem flores na
sua velha bluza . O pae chegou a tal pobreza que a vida da familia é
difficil.
Eu mando-lhes carne todos os dias, e Gomercindo deu -lhes
algumas libras trazidas ainda do Estado Oriental , porque elle até
hoje só recebeu , para si, duzentos mil reis que perdeu n'uma das
descidas de estação, onde o povo em barulho o acclama sempre.
197 -

Até esta alegria que me causava Emma , me fazendo lembrar


n'ella minha filha auzente, desappareceu.
O pae de Emma morreu. Será que o fado não queira que nem
a menos eu possa ter aqui os afagos d'essa creanga ? Emma não
me trarà mais flores, por isso as ultimas que me trouxe são con-
servadas.
Já estão murchas e sem perfume . Tal é a nossa vida tal o
que chamamos prazeres . Em pouco sahiremos d'aqui, provavelmente
nunca mais verei essa creança ; quando nada, nunca mais a verei
em idade de sentar- se nos meus joelhos e afagar-me a barba com
suas pequenas mãos .
**
**

Mandei meus officiaes assistirem ao enterro .


Não quiz ir para não ver Emma chorosa . Recebi um recado
da pobre mãe, dizendo que fosse ver a Emma que está doente e
quer sahir para vir me ver.
Fui lá. Estavam no fundo da casa. As salas da frente estavam
desertas, tudo desarrumado , os leitos ainda nos logares onde estavam
quando o enfermo reclamava que sempre estivessem perto d'elle os
que deviam cuidal-o dia e noite. Encontrei Emma coberta de negro
em um canto, acocorada, com um chale pela cabeça. Quando me
viu levantou - se, abraçou-me chorando , eu beijei-a e sentando- me col-
loquei-a nos meus joelhos. Ella enclinou a cabeça no meu hombro ;
seus olhos grandes, d'onde sahia longo pranto, me fitavam como se
eu fosse alguem que lhe pertencesse. Tal é a alma das creanças. Te-
nue ainda o affecto é assimilado rapidamente por ella, a desassemi-
lação por sua vez é rapida. Em pouco Emma não se lembrará mais
de mim. Sahi de sua casa sem lhe ter ouvido uma palavra ; ao des-
pedir-me, quando beijei- a ella lançou os braços em torno de meu
pescoço e beijou-me muitas vezes em soluços . Ella presentiu que
é a ultima vez que me vê, porque a sua vista me fez mal. Eu lem-
brei-me de minha filha tão parecida com ella , talvez de luto, ama-
nhã, nas mesmas condições.
Véla por ella, minha amiga, tu és o orvalho unico e bemfazejo
para estas flores que te deixei.

Telegrammas do Desterro rectificam que navios chegados do Rio


Grande trazem a confirmação do desastre da nossa esquadra. Não
se tomou o Rio Grande, devido a desintelligencia dos chefes, e para
cumulo de infortunio, aquella phalange de bons patriotas ao mando
do general Salgado, depois de tanto sacrificio , de tantos soffrimentos ,
sem nada terem feito , lá se foi para o estrangeiro , e todos os re-
198

cursos que tinhamos na esquadra desapparecidos ! Eu nutro porem


a esperança de que Saldanha, que se acha em Buenos Ayres, assu-
mirà o commando da esquadra, porque não é crivel que elles tenham
entregado-a ao estrangeiro que a entregará a Floriano, quando nós
aqui estamos , e o Aquidabam só, no Desterro.
Um esforço de boa vontade poderá encaminhar de novo a
nossa marcha .....

Desgraças, sobre desgraças ... A esquadra de Floriano que


parecia fugir do Aquidabam, mandou uma torpedeira que o sorpre-
hendeu, ferindo-o. O telegramma que nos veio porem, garante que o
estrago foi pequeno, que facilmente concertar- se-ha, e que então
o Aquidabam sahirá para dar combate á esquadra, esperando vencel-a.

*
**

Gomercindo move as forças. Apparicio que se achava em


caminho de Garapuava, voltou para aqui. Caso triumphe o Aquida-
bam, fortificaremos Paranaguá, e daremos combate ás forças de
Castro.

Um outro telegramma annuncia- nos que o Aquidabam já está


prompto para o combate. Temos falta de noticias, e algumas que nos
vem são contraditorias. Na fronteira de Palmas não ha noticia, de
inimigos. Um enviado de Prestes Guimarães que aqui veio, um va-
lente rapaz que teve coragem de vir do Rio Grande do Sul aqui,
pelas matas dar noticia das forças de Lima, alem do Passo Fundo.
Prestes Guimarães pede munições para resistir-lhe.

Estavamos no telegrapho procurando orientar-nos, quando o te-


legrapho começou a trahir-se. Os telegrammas, passados em cifra, não
eram comprehendidos. Gomercindo teve idéa de dizer para Joinville,
que logo que chegasse ali, Cezario Saraiva, que ia para prender
um capitão desertor, ( o capitão estava comnosco no telegrapho )
e o telegraphista, contrario a nós que lá tinhamos deixado , e que
suppunhamos ser o que estava então communicando comnosco, nos
avisasse. Falando em Cezario era plantar o terror ali, dizer-lhes
que Cezario estava proximo d'elles era pôr em debandada algum
pequeno grupo, que houvesse por acazo se apoderado do telegrapho.
O telegraphista respondeu que tinha ordem de não obedecer
199

senão ás forças do governo de Peixoto, que se achavam no Desterro


e em S. Francisco, e que o Aquidabam tinha ido a pique.....
*
**

A nossa situação é perigosissima. Estamos no centro do Paraná ,


perto de S. Paulo . A primeira idéa de Gomercindo foi encorporar o exer
cito e marchar sobre Palmas, e d'ali por Nonohay chegar ao Rio
Grande. Mas esta idéa foi abandonada, porque o inimigo que se acha
em Castro póde seguir por Garapuava e de combinação com as
forças do Rio Grande que se acham na fronteira, e as do coronel
Borman no Xanxeré, nos demorarem a marcha, em quanto as forças
que podem vir por mar, nos alcancem subindo a serra pelas estradas
coloniaes. Afinal resolveu - se, em definitivo , dividir o exercito em tres
columnas. Uma, ao mando de Juca Tigre, seguirá por Garapuava,
em direcção a Palmas, para privar a marcha do inimigo que se
acha em Castro. Outra ao mando de Apparicio e Torquato Severo
seguirá, pela Lapa , pela estrada da Serra, guardando o inimigo que
por acaso tenha desembarcado nas colonias de Itajahy e Joinville.
Conhecida a posição critica em que nos achamos, a possibili-
dade de já nos acharmos bloqueados, Gomercindo, como sempre de
resoluções promptas e momentaneas, resolveu dividir o exercito em
tres columnas para seguirmos em busca do Rio Grande.
Apparicio e Torquato Severo com tres boccas de fogo Krupp,
e duas metralhadoras, uma de calibre 25 , outra de 11 , tomarão o trem
até à Lapa d'onde emprehenderam marcha para o Sul. Esta columna
é a que vai cortar toda a communicação das forças que já se devem
achar no littoral, conduzidas por mar, para pôr- se em combinação
com as da fronteira de S. Paulo e as que a esquadra de Peixoto
desembarque no Paranaguá . Juca Tigre e Vasco Martins, cujas
forças se acham guardando os caminhos de Castro, seguirão por
Guarapuava em busca de Palmas que fica perto de Xanxeré, em
Missões, e no caminho do Rio Grande pelo Nonohay. Pahim á frente
dos batalhões, Gomercindo Saraiva (polacos paranaenses) Italo- brasi-
leiros, 9.º (o ex de policia de Curitiba) um outro de Paranaguá, todos
os que não podem permanecer n'este Estado, seguirão para o Porto
da União, no Iguassú, onde Gomercindo com o seu Estado maior o
esperará, para, seguindo pela estrada estrategica que vai aos campos
de Palmas, dirigir- se aquelle ponto onde se unirá a Juca Tigre
e esperará Apparicio ali onde, com a retaguarda livre, poderemos
enfrentar o inimigo se elle nos buscar, por mais numeroso que seja
ou tomaremos a estrada do Nanohay, e, voltando sobre o Rio Pelo-
tas collocaremos em dois fogos o inimigo que tente privar a passagem
de Apparicio, que para isso precisa ser numeroso.
No Xanxeré está o coronel Borman que parace não ser mui-
to affecto á dictadura, porque tem se conservado em seu posto sem
200 -

manifestações hostis , e consta que ha tempos escrevera um artigo em


um jornal, onde declarava que a intervenção do exercito na politica
nem só trará a morte da republica , como a do proprio exercito . Caso
porem as forças de Pinheiro Machado se achem por ali, as duas co-
lumnas , com a artilheria que leva Juca Tigre, serão bastantes para
desfazel-as , em quanto Apparicio oppõe-se a toda e qualquer junc-
ção. Commanda a artilheria de Juca Tigre, o doutor Julio Cezar
de Castilhos . Não se confundam os nomes. O Julio de Castilhos de
Rio Grande, pelo seu interesse, mandou matar, mandou exterminar,
depois obteve do Sr. Floriano a quem denominára de Marechal tres
vezes traidor, que se matasse o Brazil inteiro, comtanto que salve-
se os interesses Castilhistas, que matando a republica elle declara
que é para bem d'ella ; o Julio do Castilhos que aqui está sacri-
ficou tudo, até a pessoa, em beneficio da communhão. Se os nomes
se approximam, os sentimentos se distanciam em absoluto.

Seguem commigo todos os enfermos, e Gomercindo ainda fi-


cou em Ponta Grossa onde espera o Dr. Lavrador, que foi nomeado
seu chefe de Estado maior, afim de providenciar-se sobre o paga-
mento das despezas feitas ali, e para estar ainda em communicação com
as forças que vão fazer parte da expedição por Guarapuava, que nas
modificações de plano achavam- se áquem de Ponta Grossa. O trem que
me conduziu fez a viagem demorada porque em todos os pontos
havia gente que queria embarcar, que fugia de suas casas nos acom-
panhando . Vinham tambem dois ofliciaes que tinham dado signal de se
quererem passar para o inimigo , começo de adhesão ao sol nascen-
te, desde que para o Paraná o nosso amortece. Na villa da Pal-
meira encontramos o trem vindo de Curitiba onde vinha o coronel
Lavrador que seguio para Ponta Grossa. Ali estava já á sua espera
um telegramma de Dr. Ferreira Braga que dizia que lhe avisasse
quando seguiam nossas forças para Curitiba afim de vir em trem
expresso encontrar-nos. Era um meio de poder retirar- se de Curitiba,
sem ser conhecido que se retirava de uma vez. Os estacionarios
pediam-me para dizer-lhes se nos retiravamos ou não, que elles
tinham compromissos , que soffreriam se os abandonassemos ali.
A intervenção d'elles na revolução era devida á força revolu-
cionaria a que elles não podiam deixar de obedecer ; portanto desde
que os outros cheguem e elles os obedeçam, nenhum crime commettem ,
e portanto não podem ser punidos por elles, por isso nunca lhes
disse qual a nossa marcha.
Quando chegamos á Cochilha Secca, d'onde devemos nos diri-
gir para o Porto das Larangeiras, no Iguassú, ja era tarde. Ali
estava acampado Pahim com a sua brigada. As forças que se acha
201

vam em Paranaguá e pontos intermediarios , deviam chegar no outro


dia, vindo com ellas Ferreira Braga e todos os companheiros que se
acham compromettidos. Dirigi - me para o Porto a fim de esperar Go-
mercindo que se demorava. Correndo noticia de que o trem em que
vinha, com poucos companheiros , havia sido atacado, organisou- se im-
mediatamente uma expedição para ir em seu auxilio , que encon.
trou-o já em caminho . A demora havia sido motivada por descarri-
lamento.
Causou grande constrangimento a Gomercindo , o ter Cezario
Saraiva ao retirar-se de Curitiba , levantado cavallos de raça das
coudelarias, cavallos que não servem para marcha, nem para comba-
tes, constituindo portanto um roubo ; mas infelizmente não ha mais
trem para Curitiba afim de devolvel- os.

Temos apenas trez vaporzinhos para descer o Iguassú. Em um


delles vai Gomercindo com o estado maior, Ferreira Braga e os que
o acompanham. Um outro leva viveres e os arreios das praças que
marcham a pé até o Porto da União onde se nos deve esperar
com cavallos. No outro, ja muito velho, D. Pedro, vou eu com os
meus ajudantes e uma porção de allemães, enfermeiros , serventes que
o Dr. Fritz, major, traz comsigo . Entre os retirantes vem o coronel
José Gomes da Trindade, chefe de Paranaguá, aleijado de uma perna.
Quando ali fui, elle cercou -me de todas as attenções, por isso pro-
curou-me, e acceitei-o convidando-o a não separar- se de mim. O em-
barque demorou- se, e como levamos conosco peças das locomotivas e
aparelhos telegraphicos de todas as estações, não ha receio de que
elles possam car ao corrente do que estamos fazendo, nem mandar
explorações para isso .
Accommodei os doentes em lanchas que vão a reboque, alguns
d'elles bem graves. Houve ideia de deixal- os em Ponta Grossa, mas
abandonar companheiros em um ponto d'onde nunca mais elles
poderão dar noticias de si aos seus no torrão onde nasceram e vi-
veram obscuros , e d'onde sahiram para só voltarem quando possam
viver sem que a legalidade por capricho os mande degollar, sem
crime, por qualquer bandido, que dê vivas á republica , não é justo .
Falei a Gomercindo que leval- os- hei até onde seja possivel e elle
concordou.

O Iguassú é um rio caudaloso, porem de leito navegavel muito


estreito. As margens completamente desertas e cobertas de florestas.
Encontram-se comtudo tres pequenas povoações, uma d'ellas séde de co-
- 202 -

lonias de polacos onde a legalidade paranaense commetteu tantas


oppressões , que os polacos se levantaram e organisaram o batalhão,
Gomercindo Sairava, cujo chefe chama-se Budiziach, que esteve em
serviço no Paraná e agora nos acompanha .
O vapor em que vamos parece não querer chegar. Tem uma
marcha lenta, arquejante. Pela chaminé sahe tanta fagulha que
queima-nos a roupa. Os allemães levam fiambres, e quando um vai
comer chama os outros , e se reunem todos de um lado o vapor
pende tanto, que a roda do lado opposto fica toda fora d'agoa, e
isto se faz a todo instante.
Emiliano tomou conta do pequeno fogão que fica á prôa.
Em Ponta Grossa, as pessoas a quem prestei serviços medicos
mandaram-me grande fornecimento de cafè, assucar, biscoitos e
toucinho. O Emiliano compra gallinhas e leitões nas povoações e leva o
tempo na cosinha com dois ajudantes ; os allemães cercam- n'o. Tomam o
que elle faz destinando a mim. Elle por seu lado descompõe a todos,
mas elles não o entendem ou fingem não entender.
A segunda noite que dormimos na margem do Iguassù não
encontramos um porto para desembarque. O vapor tinha enca-
lhado em ramos de arvores que vegetam nos barrancos ; mais de uma
vez isto se deu, n'uma d'ellas correndo risco de ir a pique uma das
lanchas de doentes. Os tripolantes são apenas tres, e os allemães
jogam as cartas, de modo que eu é que tive de ir com um machado
cortar os galhos que nos prendiam . Isto nos demorou . Consegui , tre-
pando por arvores, subir á barranca e ali dormir ; outros fizeram o
mesmo.
Emiliano, com os allemães, obteve agua ardente e embriagou- se.
Falava como um louco, descompunha a todos . Que elle não é es-
cravo , dizia, para cozichar para gringos que a toda hora bebiam
o café que elle fazia para o seu coronel, e as pessoas descentes
que vinham. Se continuassem assim não cozinharia mais. Depois
de muito ouvil- o, conhecendo o estado d'elle, falei -lhe com calma
para que se calasse. Que estavamos n'uma mata e que assim podiam
vir os tigres.
Embraveceu . Que eu é quem sou o culpado, que elle quer pou
par o que é meu, o que custou meu dinheiro e que eu não quero
que elle fale, porque eu não passo de um bobo, que entende que
sou obrigado a sustentar a todo mundo.
Respondi- lhe que me agradava seus principios economicos e
por isso julgava que elle podia ser um deputado, mas que me dei-
xasse dormir.
Ser deputado não, não quer.
Sabe que pode ser até presidente da republica porque é mi-
litar, mas que não quer porque é monarchista. Que estava na Ba-
hia quando se fez a republica. Que um dia seu batalhão fez baru-
203

lho quando foram levar a bandeira nova, porque queria a bandeira


velha, e levantou-a e elles levaram tres dias com ella. Que elle não
se importou de fazer sentinella de dia e de noite, porque todos que-
riam ir buscar o imperador ; depois veio um coronel e disse que o
imperador é que não queria mais ficar, e que agora tudo ia ficar
rico, e tudo cidadão ; mas o que elle viu foi tudo sahir para bri-
gar, e todos os dias vara no lombo, por isso elle e todos os do
batalhão prometteram que não seriam republicanos, ainda mesmo
que seja para todos serem presidentes de republica.
Felizmente esta prelecção era n'um deserto e todos já dor-
miam, e Emiliano, emquanto falava, fazia um bom café que me
trouxe, agarrando-se n'um ramo de arvore, e quando me perguntava
se não queria café, tentava saber minhas opiniões politicas. V. S. é
republicano ? Que nada ! Pois eu vejo V. S. ahi ter pena de todo
mundo, trazendo para cá tudo que não tem onde ficar, como é que
V. S. é republicano ? Republicano só fala em matar .
Até n'essa alma grosseira, porem dedicada, esta republica de
saude e fraternidade cavou um sulco de repulsão !
Ao apparecer o dia começamos a navegar, á toda hora, porem ,
tinhamos de modificar a marcha por causa dos rochedos ; outras para-
vamos porque o vaporzinho encalhava na area . Soltavamos as lanchas
para onde passava parte dos allemães, para depois tornar a atal-as.
Ao chegarmos a uma pequena povoação, não encontrei carne.
Tinham passado por ali as forças que vinham por terra. Caminha-
vam por tanto mais do que o meu vapor. Soube que haviam de-
sertado companhias inteiras, incluzive clarins e officiaes.
Deixaram ali as mulheres que não se mostravam contrariadas.
Emiliano teve de comprar um pequeno porco, por trinta mil reis , e
não deixou de resmungar, quando passou por mim : Elle compra
tudo caro e depois os gringos comem tudo de uma vez , amanhã não
tem mais nada para comer.
A' tarde d'esse dia tivemos de atracar n'uma praia arenosa,
onde todos encontraram lugar para dormir, excepto uma familia do
Porto do Amazonas que me pedira para leval-a até o Porto da
União de onde é filha, e onde esperava encontrar o marido. Vinham
com ella dois filhinhos e um irmão . Pereira Pinto que é exquizito
e secco, tomou a si o cuidar das creanças. Brinca com ellas , vai
buscar-lhes comida, acalenta -as quando choram . Uma vez falando .
me da famillia, elle me disse que quasi enlouquecera quando viu mor-
rer o ultimo filho . E' neurasthenico, elle ainda sente ás vezes no ouvi-
do o choro e os gemidos do filhinho . Vendo ali aquella senhora que
vinha confiante collocar-se sob nossa protecção , para não soffrer onde
se achava, e aquellas creanças, é justo que se lembrasse dos filhinhos.
Acampamos dispersos, cada qual fazendo um fogo como para
cozinhar, mas todos com os olhos no Emiliano que não deixava de
204

olhal-os com rancor e fazer-lhes acenos descortezes. Apenas porem


sentiram que Emiliano mandava o que me devia tocar e aos poucos
que comiam commigo , elles iam se chegando e Emiliano sempre a
dizer-lhes. Pensam que isto é de fornecimento on carcheado ? Não
senhor, isto aqui custou dinheiro, e o dinheiro foi ganho por elle cu-
rando gente. Mas não deixava de dividir com elles o que havia , e
logo cuidar em outra cousa, para os que não tinham comido. O re-
conhecimento de que alguns rastos que via- se na árêa eram de tigres,
fez com que muitos mudassem de acampamento vindo para perto
uns dos outros, e outros fossem dormir a bordo.
Pela manhã continuamos a descer sem termos visto tigres ,
conforme a previsão quasi infallivel de muitos. A' tarde, veio um
rapaz me avisar que em uma das lanchas onde vinham os doentes,
vinham barris de polvora e bombas de dynamite com os caralhetes,
tudo a descoberto, e que ali se fumava e que a toda hora cahiam
brazas e fagulhas da chaminé do vapor. Que só n'aquelle momen-
to haviam visto aquillo. Mandei atracar, prohibi que fumassem , e
mandei caçar vaccas, para tirar os couros e envolver aquelles obje-
ctos que não convinha perder. Fora Cezario Saraiva que maudara
embarcar aquillo sem prevenir- me. Muitos atribuiram que elle tinha
em mente fazer saltar a lancha com todos, porque julgava que os
doentes iriam fazer demorar a marcha ; isto porem não era admissi-
vel porque podiamos ter deixado os doentes e não quizemos .
Os allemães foram com Hilario Montiel á caça e em pouco
mataram, a tiro , duas vaccas muito gordas. Trouxeram os couros , e
toda a carne. Quando acabamos o serviço de resguardar aquelles
explosivos era já tarde e tivemos de passar a noite ali. Os alle-
mães fizeram grande fogo em torno do qual se sentaram e comiam.
Cada qual tinha um espeto de carne, mas comiam juntos, depois
cantavam córos allemães ora sacros, ora profanos. O fogo dos alle-
mães reflectia no rio confundindo a agua com a area da barranca ;
em pouco todos os que estavam em terra e que queriam ir á lan-
cha pela prancha que dava passagem, cahiam n'agua . Era uma gar-
galhada constante, sobretudo Emiliano, que era quem ia ser encom-
modado com estas visitas. Apesar de prevenidos, a reflexão da luz
nivelava tanto a barranca com a agua, que por mais que elles se
acautelassem, cahiam sempre. Afinal cahio o pobre do coronel José
Gomes, cahiu Pereira Pinto soltando uma praga. De José Gomes
ninguem se riu, teve-se pena ; de Pereira Pinto riram com a mão
na bocca. O ultimo foi um telegraphista . Emiliano tinha-lhe antipa-
thia. Bebia café a toda hora ; uma vez Emiliano negando -lhe café
elle puchou revolver para exigil- o .
Emiliano mandou- o guardar o revolver, senão agarral- o -ia pelo
pescoço, atiral- o-ia ao rio, e me viria dizer que elle se tinha atirado.
por estar louco. Dali em diante denominou- o : Café-revolver. Eu de
205

nada sabia, mas ao ouvir as gargalhadas e os gritos de : Café revol-


ver foi ao fundo, procurei saber quem era e me contaram a historia.
Pouco a pouco o fogo foi se apagando e o silencio se estabeleceu.
Da minha barraca eu via sombras que passavam ou se moviam na
amortecida luz da fogueira allemã .
Afinal , tarde já, tambem adormeci . O corpo cede sempre ao
cansaço por maior que seja a preocupação do espirito , seja pelos
perigos da occasião, seja pela recordação do que está longe , que o
silencio da noite , uma musica melancholica que commove sem se
entender as frases que n'ella se repete , n'um chorar prolongado
interminavel das aguas do rio , divididas por um tronco de arvore ,
por um rochedo ou pela quilha de um barco ancorado ali , n'aquelle
deserto selvagem, accordam e fazem doer .
A' madrugada mandei tocar alvorada e signal de marcha ; ali
não havia perigo de ser ouvido longe o clarim . Na hora de em-
barcar , Emiliano disse- me :
-----
Não sei de que hei de fazer almoço para V. S.
Como ? perguntei- lhe, -
- não se matou hontem duas vaccas ?
Sim senhor , mas os gringos comeram esta noite todas duas.
E não mentia .
Quatorze pessoas não tinham deixado senão as carnes cheias
de tendões das duas rezes .
Emiliano sahiu triumphanteall tinha afi-
nal mostrado como elle tinha razão em bri gar com os , emã es , e
me disse com ama bil idade : pode mandar largar . V. S. não ficará sem
almoço .
E a sua maior satisfação apresentar-me almoço ou jantar
bom, quando as cousas se tornam difficeis. O tratante vira os alle-
mães devorando a carne e não se importou, não reclamou . Prepara-
va -se para accusal- os de comilões e accusal os com provas , por isso
logo que accordou foi ao logar onde haviam carneado e trouxe os figa-
dos e rins das vaccas com que nos alimentou a todos, até os alle-
mães , juntando os guizados ac feijão com xarque que cozinhára
durante a noite. Tivemos de parar á tarde porque abaixo havia um
rapido que só com cautela poderiamos passar e pela marcha do
vapor só á noite ali estariamos . De bordo com uma arma de caça eu
atirava nas capivaras que estavam em terra ou passavam nadando
perto do vapor. Tinha recebido a bordo Mello de Rezende e outros
que sahiram perseguindo desertores para tomar as armas não os
alcançando , e tendo de voltar a pé por ficarem os cavallos cançados .
Desceu Rezende com o telegraphista e outros em uma canoa , não só
para chegarem mais depressa, como para avisar a Gomercindo , que
já devia estar impaciente com a nossa demora , que no outro dia
chegariamos .

7
206

A nossa chegada ao Porto da União era anciosamente esperada


porque o coronel Cezario achava- se gravemente enfermo dos olhos.
Estava acampado um pouco longe do porto e apenas ancorou o va
por vieram a bordo chamar-me, tendo de montar a cavallo e seguir
para onde eile estava. Ali encontrei Gomercindo seriamente con-
trariado. Não tinha noticias de Apparicio, nem de Juca Tigre ; ao
contrario constava que as forças de Pinheiro Machado achavam- se
em Palmas e os cavallos com que conta va para marcha não appa-
reciam. Era preciso seguir, sahir no campo antes que o inimigo po
desse penetrar na picada e privar-nos a passagem nas gargantas
e escavações da estrada . Apenas voltei ao acampamento da minha
gente, veio ver-me um homem amigo, do Carlos, quando aqui esteve
como medico da commissão estrategica. Disse-me quem é, e que
tem a mulher doente .
Immediatamente fui vel-a. Ali falou-se de teu irmão, de ti e
de mim, nos conheciam portanto. Yôyó e Elvira, segundo elles, não
deixavam de falar em nós a todo o momento . Disseram- me que el-
les haviam perdido um filho aqui , e que achava- se sepultado em uma
carneira. Providenciei para tirar os ossos. Quero leval- os . São res-
tos de um teu sobrinho deixados aqui nestas regiões onde só se
vem uma vez na vida . Leval- os commigo è levar alguma cousa
minha , visto que foram deixados com as lagrimas, dos que eu amo,
porque tu os amas como teus irmãos, e eu amo Yoyo como meu
filho porque o vi crescer e fazer - se homem .
Podesse eu condensar o ar que respiraste, materialisar os
teus risos, e transportal-os commigo por toda parte !
Fosse tudo isso um cilicio com que prazer eu o uniria ao cor-
po, com que alegria eu sentiria o pungir de suas agulhas !

*
**

Ha dois dias que aqui estamos sem poder emprehender viagem,


nem só por falta de conducção, como por não terem chegado todas as for-
ças que devem formar esta columna. A ' tarde Gomercindo veio jantar
commigo no meu acampamento e disse-me que esteja de sobre aviso,
porque é provavel que ao sahirmos á picada, já nos encontremos com
o inimigo ; pouco depois seguiu acompanhado sómente do piquete já
em marcha. No outro dia pela manhã nós emprehendemos marcha
vindo pousar á margem do Rio Jangada, onde termina a parte da
estrada estrategica já concluida. Até aqui trouxemos viveres em carre-
tas, mas estas não podendo seguir, tivemos de abandonar tudo . Os
allemães do Dr. Fritz vendo que a cousa não vai bem, desertaram
todos no Jangada.
Exquisita a columna de Pahim . O batalhão Deodoro ao mando
do coronel Jesus seguio na vanguarda com Gomercindo. Ficou
207

um, commandado pelo tenente coronel Rossani, rio-grandense ,


porem educado em Napoles. Esteve no Paraguay onde se mostrou
valente. Traz consigo um filho, Miguel, rapaz bem educado, calmo,
o contrario do pae, bom homem, porem rusguento. Vem como secre-
tario do Pahim . O pae o idolatra, e por isso declara estar prompto
para entrar em todos os combates com a condição de que o filho
não entre em nenhum. Prevenção pouco curial, porque no genero
de guerra em que nos achamos, não ha uma só pessoa que não es-
teja exposta ao perigo. Nossos combates foram e serão sempre rom-
pendo as fileiras inimigas para passar adiante. Todos estão sujei-
tos ao perigo, quer seja homem de armas quer não, morrem sem ma-
tar, o que na quadra actual é ser deshumano morrer assim. Temos
o 9. batalhão , composto de alguns desertores do exercito, de
allemães e hespanhoes, quasi todos malaguenos, cuja cantoria no fa-
lar torna- os insupportaveis com os seus óóóí e a ááás no fim de
cada palavra, e se cantam a nota final tem uma aspiração de legua
e meia. Commanda este batalhão o tenente- coronel Jorge Caval-
canti, tenente desertor do exercito. Intelligente, sympatico elle tem
meios de fazer andar correcto este batalhão babel . Entre os allemães
d'esse batalhão ha muitos que são agrimensores, engenheiros, pro-
fessores, e alguns que usam oculos de vidros tão grossos que fazem
lembrar pinturas chinezas . Tem este batalhão uma muzica regular.
Jorge Cavalcanti trata bem a sua gente, exercita-a todos os dias,
tem muzica á noite e quando qualquer commette uma falta, elle
pune- o depois de fazer um discurso . Para completar o cosmopoli-
tismo ou universalidade do 9. ° batalhão, ha nelle um indio, alto ,
corpolento, domesticado.
E' uma especie de escravo dos outros , o que demonstra a ra-
zão do servilismo entre nós pela origem. E' quem vai buscar lenha
e agua para todos ; apezar disso maltratam-no, não o deixam dor-
mir que não o despertem , ora a pranchadas, ora com agua pelo
rosto. Afinal, cançado de soffrer o paciente e serviçal selvicola, foi
queixar-se a Jorge que não lhe davam descanço. Jorge aconselhou-
o que repellisse . Elle na sua lingua atrapalhada perguntou se não
seria castigado, se repellisse. Jorge respondeu-lhe que não , que po-
dia repellir.
Pouco depois elle descançava e vieram dois maltratal-o. Levan-
tou-se o indio com aspecto selvagem, e esbordoou tanto aos dois , que
elles tiveram de retirar, e d'ahi em diante ninguem mais o encommo-
dou. Este indio não representa bem o nosso povo, docil, soffredor
por convenção, por ignorancia ou por medo de não ser civilizado ,
reagindo contra o que fazem em nome da republica, mas resoluto ,
ousado, valente, capaz de enfrentar tudo, quando comprehende que
tem o direito de reagir ?
Temos o ex-corpo policial de Curitiba ao mando do coronel
208 --

Garnier, major reformado. Temos o italo-brasileiro ou Garibaldinos ,


commandado pelo tenente- coronel Colombo Leoni, socialista agitador,
mas que como chefe de uma força , tem que estar a descompor sempre
os seus soldados em todos os dialectos italianos. Ouve-se á toda
hora o porca madona, fiuol d'un cane, sacramento ; parece-me po-
rem, que em occasião opportuna esse batalhão se portará bem. Te-
mos o batalhão de Polacos , Gomercindo Saraiva, commandante co-
ronel Budziach, cujos officiaes tem nomes mais compridos do que a
Polonia. O Italo tem um clarim que só sabe tocar uma cousa, de
modo que aquella cousa que toca, serve para tudo, para marchar,
para fazer alto , para revista, para armar e desarmar barracas para
carnear, para apromptar, etc.
No acampamento é uma confusão de linguas faladas e de
linguas convencionaes da guerra, e para nada faltar em cousas so-
noras o meu velho amigo o bravo Pahim que commanda a columna ,
doente da garganta està tão rouco que para se lhe ouvir uma pala-
vra, é preciso levar o ouvido junto á bocca d'elle.
Acompanham a columna de Pahim o coronel Manoel Lavra-
dor, chefe do estado maior do exercito, e seu estado maior ; coro.
nel Domingos Ribas, Quartel mestre General e seu estado maior ;
e eu, o chefe do corpo de saúde ; os meus officiaes, tendo nomeado o
coronel José Gomes chefe dos officiaes de saúde.
Acompanham a Pahim, como seus ajudantes o Dr. Fabio Azam-
buja, capitão de artilheria do exercito, tenente - coronel chefe do
estado maior do Pahim e Delicardense Maia, ex-alumno da escola
militar, ajudante de ordens.
Ao meu estado maior vai chegando tudo que não tem corpo-
ração, entre estes apresentou-se um major que fora commandante
da ultima policia de Curitiba. Passava todos os dias enfrente do
hotel em que eu morava e tinha garbo em mandar apresentar- me .
armas. E' polaco, e em uma das estações da estrada de ferro onde
esteve destacado, tornou -se noivo de uma menina bonita filha do
dono de uma venda.
Quando passavamos ali todos pagavam o café que tomavam ,
menos eu , e se Gomercindo ia, não era só café, havia um almoço
ou jantar á espera, o que elle nunca acceitou . Um dia ouvi uma
phrase , naturalmente para ser dita por mim.
F... tem feito muito ; já devia ser tenente- coronel. Eu fiz-me
surdo . F... referia-se ao meu major que era o noivo da filha . Usa
oculos e veste uma farda de fazenda cinzenta com canhões verdes
e ligas douradas. Ficando sem corporação veio a mim.
Queria ser alguma cousa junto de mim. Na lanchasinha no
Iguassú os allemães o repelliam, e elle como todo homem pratico, con-
servava- se isolado , lendo, mas nas horas de refeição fechava o li-
vro e vinha muito serio para junto de mim. Esta seriedade valia-
- 209 __

lhe comer commigo, o que Emiliano não deixava de censurar, fa-


zendo uma careta e mostrando os dentes . Gringo feio aquelle dia-
bo, comendo na mesa do Sr. coronel, como se elle fosse gente, e
falam de republica .... e uma cantilena de ditos que eu fingia não ouvir.
Não tendo lugar para esse major de oculos e fazenda , ver-
de, deixei -o á vontade, mas elle veio a mim e com toda gravidade
disse-me coronel, estou disposto a acompanhal- o por toda parte,
como não tem um lugar para mim , quero ser seu secretario. Eu
ri-me disso, e perguntei-lhe : Sabe escrever portuguez ? Não , res-
pondeu, mas escrevo em polaco ou ailemão e depois se passará
para o portuguez ..... Bem, disse- lhe eu, não será meu secretario,
será meu annotador. Tomará nota de tudo que se passar. Sim Se-
nhor, sim senhor , eu já fui reporter do jornal allemão de .... Não
sei escrever o nome que elle falou- me.
Marchamos do rio Jangada muito cedo, e eu tive de ir á casa
de um engenheiro militar da estrada estrategica, onde almocei . Era
um pouco fóra do caminho , mas elle me havia feito esse pedido por
ter um filhinho doente, a sogra e o sogro. Com a suspensão dos
trabalhos elle se entrega em serrar taboas de pinho. Vive n'uma
casinha de taboa, no trabalho, feliz e satisfeito .
Se todos os dignos officiaes do exercito brasileiro , se dedi-
cassem ao trabalho que no resumo de tudo, dá mais do que as com-.
missões onde se gasta quasi tanto quanto se ganha , o Brasil pros-
peraria, e na hora do perigo todos estariam nos seus postos com a
dignidade do cidadão que obedece á natureza , que manda que se de-
fenda a Patria e não como o soldado que só é pago para isso .
O exercito de um paiz é o que representa a sua grandeza
pela abnegação, a sua educação pela disciplina ; sahindo fóra d'esse
caminho o exercito é um corpo sequestrado no organismo, que, sem
accumular as forças que a assimilação produzem, desorganisa todo
movimento vital. Alavanca que em vez de impulsionar, repulsa, e do
choque resulta o descarrillamento.
Não escrevo aqui o nome d'esse sympatico operario, Dr. ca-
pitão de engenheiros, porque não sei qual a sorte que nos aguar-
da, e não quero que a simples citação de um nome, venha prejudi-
cal-o por ter offerecido em sua casa tão calma, tão laboriosa, tão
modesta e tão digna, um pouco de alimento a um scelerado, a um
bandido como eu.
Não córes, minha amiga, que eu me chame bandido e scelera-
do, repetindo o que elles dizem e disseram de mim. Os que me co-
nhecem sabem o que sou, mas se a normalidade é o que está, se
a moralidade no Brasil é o que elles executam, se viver como el-
les é viver na lei, se a honestidade é a delles, eu me glorio de ser
bandido e scelerado.

14
210

Nossa marcha nesta picada é um pouco desordenada . A' tar-


de acampamos ao longo da estrada . Os companheiros, que iam
adiante, tinham-me deixado morta no caminho uma vacca que tive
de mandar carnear lá mesmo onde fora morta, alguns kilometros
distantes.
Em quanto se esperava carne, o meu major polaco veio mos-
trar-me as suas notas do dia. Por serem um specimen no genero
deixo aqui o grande trabalho delle :
Rio Jangada, coronel chegou , jantou e foi dormir. De manhã co-
ronel toma banho moinho, almoça , marcha, cavallo coronel Gomes fugio,
coronel fica bravo...
O meu major depois de comer seguiu um pouco com um alle-
mão que havia sido ferido na Tijuca e por isso ainda anda perto
de mim, e foram armar a barraca n'um pequeno campestre um pou
co distante do meu acampamento ; mais tarde porem, voltaram e
vieram dormir entre as nossas barracas. Perguntei-lhe o que havia,
respondeu-me Bugres, muitos bugres. Elle tinha ouvido o assobiar
dos bugres, que é o meio de se communicarem ao longe. Duvidei
d'isso, porem no outro dia verifiquei o facto, quando me approximei
do lugar onde estavam os restos da vitella, vendo alguns que apro
veitavam aquillo e que fugiram para o mato ao avistar- me.
Vinhamos marchando na esperança de que Gomercindo na
bocca da picada nos esperasse, para nos dirigirmos a Palmas, mas
desgraçadamente tudo parece conspirar contra nós . Gomercindo
recebeu noticia de que Juca Tigre fora batido pelo inimigo quando
tentava passar o rio em caminho de Palma, morrendo ali o meu
amigo Major Victorino Silveira, sobrinho do conselheiro Silveira Mar-
tins, um dos nossos mais bravos companheiros. Alem disso não teve no-
ticias de Apparicio. Com Juca Tigre veio um piquete que devia
levar animaes que já tinhamos arrebanhados nos campos de Palmas
para Apparicio que vem por uma região já sem recursos condu-
zindo artilharia. Portanto esta falta pode ser- lhe fatal.
Gomercindo á frente de poucos homens atravessou o campo
de Palmas tiroteando piquetes inimigos, em busca da picada do
Rio do Peixe afim de sanir em campos novos na margem de Pelotas
(Uruguay) na divisa do Rio Grande em busca de Apparicio. Man-
dou dizer a Pahim que siga com urgencia, e que dissolva sua
columna.
Esta ordem é porque a demora da columna que é quasi toda do
Paraná lhe faz suppór que não querem ir para o Sul, porque muitos já
se tem deixado ficar e outros tem desertado. Sahimos ao campo
de Palma já á tarde. Apenas sahiram os ultimos pozemo -nos em
marcha em ordem de batalha, com piquetes, flanqueadores porque
os piquetes inimigos se mostravam nas coxilhas. O meu major de-
sapareceu, creio que voltou , ou talvez se fosse apresentar ao inimi-
211

go . Ao anoitecer acampamos com precauções . Começou a chover , o


que muito nos contrariou porque o acampamento era n'uma varzea.
Ainda não tinhamos dormindo quando ouviu-se um tiro, depois ou-
tro e outro. Os gritos das sentinellas, toque de alarma o ini-
migo, gritavam. Tivemos que ensilhar, desarmar barracas e estar-
mos assim de promptidão, debaixo de chuva todo o resto da noite.
Ao amanhecer reconheceu-se que um polaco atirara assustado
n'um vulto , e as outras sentinellas imitaram-n'o, donde o alarma.
Iamos marchar quando o piquete de observação veio avisar que
se approximava um forte piquete inimigo com o qual trocára tiros. Su-
bimos para a coxilha e estendemo- nos em linha de batalha. Jorge
Cavalcanti fazia tocar a muzica do batalhão que commandava.
O piquete inimigo retrocedeu e nós marchamos sempre em
ordem para acceitar combate onde elles o offerecessem. Felizmente
do inimigo só viamos os piquetes em cima dos serros . Depois de
marcharmos algumas leguas acampamos para descançar e comer.
Sempre os piquetes inimigos, nos serros. Jorge Cavalcanti depois
de refeição exercitou seu batalhão com a muzica e com todas as re-
gras necessarias para a defeza e o ataque.
Aquelle exercicio, apezar do cançaço de nossas forças era para ser
observado pelo inimigo que ficaria sabendo que estavamos promptos
a recebel- o. Os officiaes formaram um piquete de exploração, e fo-
ram até proximo do serro onde se achavam as vedetas inimigas ; eu
fui tambem .
Voltamos já á tarde. Accendemos as fogueiras dos acampa-
mentos e ao escurecer, marchamos deixando os fogos accesos. Acam-
pamos á meia noite , e pela manhã emprehendemos marcha, até á
bocca da picada do Rio do Peixe onde podemos descançar um pouco,
carnear e comer, porque ali si o inimigo viesse, tinhamos livre a
nossa frente, e dentro do matto poderiamos lutar sem sermos en-
volvidos por elle..
No outro dia marchamos sem que o inimigo apparecesse . Os
caminhos são horriveis. Ladeiras ingremes que parecem levar- nos para
o ceu, sem nunca sahirmos d'este inferno. A tarde chegamos n'um
camposinho , de S. Pedro , ponto muito alto. Aqui acampamos.
Um proprio de Gomercindo trouxe-nos ordem de aqui per-
manecer, guardando a picada , emquanto venham noticias de Appa-
ricio. Depois soubemos que elle mesmo em pessoa sahira em pro-
cura do irmão, cuja demora o agoniava, e que o Dr. Ferreira Braga
tinha voltado para o Porto da União pela estrada de S. João. Que
os que tinham chegado ao Rio do Peixe por aquella estrada diziam
que Juca Tigre seguia para lá, que só tinha sido batida a vanguar-
da d'elle. Que Gomercindo mandára-lhe dizer que caso não podesse
alcançar- nos, porque o inimigo poderia privar- lhe o passo, descesse
212

o Iguassú e procurasse o Paraguay para não sacrificar vidas sem


resultado .

Minha barraca está armada entre seis pinheiros que for-


mam um exagono tão perfeito como se propositalmente fossem plan-
tados . Pahim armou a d'elle mais abaixo. Em frente de mim está o
batalhão do Jorge, que vem fazendo a vanguarda, os outros, acam-
param em diversos pontos da campina, nas costas do matto.
Começam as supposições. Ha quem julgue que a noticia de Juca
Tigre ter sido batido foi forjada pelos habitantes da Palma para não ir-
mos lá, e que elle pode ainda atacar a Palma, tomal- a e mandar-nos
viveres. Que gloria para Juca Tigre se isto acontece ?
Outros julgam que nem só Juca Tigre foi batido , como a
esta hora Apparicio pode estar-se batendo e ser obrigado a mudar
de caminho ; outros que Gomercindo encontrando Apparicio se vá com
elle nos abandonando aqui ; e n'este ponto começa o olhar vesgo
dos pessimistas a verem traições , infamias, deslealdades .
Eu tenho que me oppôr a isso, mostrando como o que faz
Gomercindo é correcto. Que elle não podia se demorar somente para
não se separar de nós quando é preciso saber onde se acha a unica
columna forte que nos resta. Demais, se elle atravessou o campo
com custo e poucos homens, não podia pensar que nós com trezentos e
tantos não o atravessariamos.
Felizmente os meus argumentos calmam as apreciações e todos
esperam confiantes, porque a unica idéa de que Gomercindo pode
já não estar comnosco bastaria para desorientar tudo. O coronel
Garnier guarda a retaguarda , por isso podemos estar tranquillos,
porque se o inimigo se aproximar immediatamente seremos avisados
e teremos tempo de nos preparar para a defeza .

O toque de alvorada n'um acampamento tem alguma cousa de


alegria. Foi uma noite passada sem perigo e o despertar do somno,
nos que ainda dormem para dizer-lhes que começa o dia para as
mesmas marchas, para as mesmas precauções.
A alegria em poder abandonar o pedaço de chão onde du-
rante a noite o corpo estendeu-se inerte , emquanto o pensamento
fugia da barraca para ir longe, muito longe viver a vida já vivida,
ou pensar na outra que hade viver n'esse paiz mysterioso onde tudo.
se edifica, onde se vê payzagens encantadoras, cheias de alegrias e
de trabalho methodico, productivo, onde as creanças de hoje são
homens serios, laboriosos , honestos, onde os que lutam hoje são ve-
lhos respeitados , exultando por verem os que elles geraram, já ge-

-
213 -

radores, seguindo uma vida mais regular do que tiveram, tendo cada
dia uma licção da experiencia paterna, vivendo porem sem sobre-
saltos, nem apprehensões, porque a lei do paiz é que os governa, por-
que essa lei é a arma de todos, é a fortaleza onde se abrigam, e
não é como hoje a arma com que matam a uns para que os outros
se possam perpetuar. Lei para o bem dos scelerados, dos assassi-
nos, que para gozarem matam aos que os chamam de vendilhões
da patria, que assassinam para roubar. Esse paiz chama-se o futu-
}
ro. E se esse toque de alvorada annuncia que apenas as nuvens
se mostrem no espaço, coradas pelos raios que o sol de longe lhes
envia, cono flores que a atmosphera cria nos jardins do ceo , a
luta começará, talvez a vida vai chegar ao termo, o toque de al-
vorada é ainda um estimalo para os que lutam pelo dever de ci-
dadãos contra os que lutam pela obediencia aos senhores.
O toque de silencio , porem, n'um acampamento é lugubre. Do
quartel general é que elle parte como uma ordem absoluta para
que cesse o rumor, a agitação ; nos corpos, se repote a ordem, o
mais proximo ouvio primeiro e primeiro responde ; depois outro, outro
até o ultimo, o que està mais longe. As notas d'essa muzica, gra-
ves , prolongadas, imitam o som difuso do vento que passa pelas
grutas, ou se perdem nas folhagens das florestas virgens, gemebun-
das nas vibrações produzidas pelo contacto com os troncos annosos.
E se esse silencio é ordenado por esse toque melancholico a
um punhado de homens que hontem cheios de esperanças, ardendo
no desejo da luta pela causa santa, só pensavam na victoria, e hoje
já sem contar com as victorias brilhantes, só pensam na luta pela
defeza da vida, só pensam na vida para poderem lutar até o fim.
Se o toque de silencio sôa no meio dos pinheiraes, onde esses
valentes repousam como sombras que o luar limpido, magestoso que
a lua no seu trajecto, por um espaço sem nuvens, projecta filtran-
do sua luz por entre os galhos dos pinheiros, esse toque tem melancho-
lias que não se pode comprehender ; produz sensações que pare .
cem fugir a perceptibilidade dos sentidos. O corpo repousa ; mas
o espirito que parece querer evolar-se, não vai mais longe do que
onde termina a zona em que as ultimas notas se perdem. E a ul-
tima nota de um clarim, prolongada pela ultima do mais proximo ,
esta pela do vizinho e assim consecutivamente até á ultima vibra-
ção mais longinqua, assemelha - se a alguma cousa que a arte não
pode exprimir, mas que a nossa imaginação figura aquelles sons
continuos com que os pagés accordavam o espirito dos seus para
a luta, fazendo com que os ventos passassem pelos canaes subterra-
neos que era a voz de Tupán ordenando a Guerra, com que os
gaulezes accordavam nas florestas druidicas o animo dos seus em
nome de Theutatés. Mas ai ! essa luta foi improficua. Os selvicolas
desappareceram em nome da civilisação e a civllisação só teve para
- 214

dar ao mundo em que elles habitaram o requinte da selvageria, a


oppressão em nome da liberdade, o assasinato para roubar em nome
da republica.
Os barbaros que viviam nas lutas sem interesses, foram con-
quistados. Não importou que elles conquistassem Roma, a grande
conquistadora que com os despojos opimos edificavam a familia ro-
mana em Capúa ; Roma morreu, mas a raça nobre que a abateu an-
niquillou-se tambem. A luxuria é nos ambiciosos como a tunica de
Djanira. Hercules mesmo não se livrará d'ella.

**

Estabeleceu-se o silencio . As ultimas vibrações das notas dos


clarins perderam -se ao longe. Não se ouve senão o ruido dos den-
tes dos cavallos que pastam . Em roda dos fogões os que não tem
barracas , nem somno conversam em voz baixa emquanto torram al-
guma espiga de milho que arranjaram na pequena roça proxima
ou esperam que a abobora que entregaram ao borralho esteja assa-
da, para servir-lhes de ceia. Opiparo manjar para quem durante o
dia, nada teve para comer.
Muito tempo decorrerá em minha vida, se ella não se termi-
nar breve, sem que possa esquecer- me da impressão triste que me
produziu esse toque de silencio que ouvi no S. Pedro , na Picada
do Rio do Peixe. Meu espirito se debate entre a vontade e o de-
sanimo. Por mais que me mostre firme ante o desanimo dos com-
panheiros, por mais que procure incutir- lhes no espirito que nossa
situação é boa, que breve nos encontraremos fortes pela agglomera-
ção de nossas forças dispersas, eu sinto em mim que tudo que pro-
curo para convencel- os e encorajal- os, é falso, que não podemos
contar senão comnosco. Vendermos caro a vida, lutar até morrer,
é muito preferivel para um homem de brio que viver, n'uma patria
onde perguntar porque lhe maltratam é ter lavrado a sentença de
morte, onde sem duvida em pouco terão os que sobreviverem atado
ao pescoço a coleira dos servos de gleba, unico meio que poderá
privar de que a faca assassina não deixe n'elie o traço rapido com
que os consolidadores da republica se livram dos que a simples pre-
sença lhes perturba um instante o seu progredir na ordem , d'elles.
Depois o silencio tornou-se absoluto . Não se ouve n'esta noite
clara, de luar esplendido , nem a voz de um passaro nocturno ; não
se vê se não os nossos animaes que tambem repousam, as barracas
que branqueam nas clareiras, os companheiros que dormem ao re-
lento, como cadaveres, immoveis , e as folhas das arvores brilhan-
tes como laminas de prata, pelos raios da lua que nellas reflectem.
Sahe-se da barraca porque n'ella parece que se afoga, tal é agi-
tação em que o espirito se mergulha . Olha-se para todos os lados,
215 ―

caminha- se aftoa, de um lado para o outro , só, abandonado pela pro-


pria alma que foge para longe. Se um vento ligeiro agita a folha-
gem, as sombras marchetadas pelas manchas de luar semelham- se
ás panteras que caminham subtis.
Mais longe onde a floresta é mais densa, uma luz maior que
clarea, um pequeno espaço dá idéa de um cadaver envolvido em bran-
ca mortalha. Isto accorda-nos no pensamento todos es horrores . As
centenas de companheiros mortos , deixados insepultos, dos quaes não
resta senão os ossos que os fogos respeitaram na campanha , e as
familias, os filhos, pobres orphãos creados na miseria condensando
n'alma infantil essa fatal vingança que innundará de sangue a in-
feliz patria, até desapparecer o ultimo dessa descendencia de victimas
hoje e algozes amanhã !
E nas cidades onde o flagello da guerra não chega, onde a
impunidade campea, os senhores a mandar que recrudesça o castigo,
para que os servos aprendam a obediencia ás auctoridades, aos
dignos representantes d'essa lei nova que deixa matar a quem não
reconheça o ladrão como o typo da honradez, o assassino como o re-
presentante da justiça .
E a noite torna- se longa, e a insomnia excita cada vez mais a
mente, e tem-se desejo de que batalhas crueis se travem que, ou
dê de uma vez o triumpho ou termine esse martyrio pela morte.
Um cataclysma que fizesse desapparecer de uma vez essa vergonha
que classificaram de progresso de um povo. E se triumpharmos ?
não serão talvez os mesmos actos praticados, as mesmas vezanias
não quererão ser satisfeitas. Não estarão aqui os martyres que se
sacrificam por um ideal, emquanto outros no repouso ante-gostam
os proventos, promptos para no primeiro alarma fugirem para apre-
ciar de longe o incendio dos materiaes que accumularam ? Onde ire-
mos parar, portanto, se esse pobre povo não fôr mais do que o ins-
trumento das ambições dos que não podem calcular quanto custa
este soffrer, quanto doe esse morrer, e portanto para estarem fir-
mes, para estarem no poder como o Sr. Castilhos não se impor-
tarão que o sangue jorre, que a nação se extingua pela desunião da
familia, comtanto que tudo isso produza alguma cousa para si ?
Felizmente o dia se approxima. Não tenho relogio, nem ao
menos ha moradores no lugar, para que um gallo annuncie a sua
approximação .
O meu relogio, o que indica-me não as horas, mas a marcha
da noute, é o Cruzeiro do sul pela sua inclinação, e quando não es-
tamos em marcha ou as nuvens não o deixam ver, são os cavallos
que me indicam a approximação do dia , começando a pastarem. Já o
Cruzeiro está quazi immergido no horizonte, e os cavallos estão des-
pertos . Deve ser portanto pouco mais ou menos, quatro horas da
manhã, e só então me recolho á barraca para descançar o corpo
216

e talvez no sonho o espirito encontre alguma cousa suave, alguma


realidade mais grata, mais humana.

Aviso da retaguarda nos diz achar-se o inimigo na bocca


da picada . Já trocaram alguns tiros, tendo o nosso piquete repelli-
do o piquete d'elle até alem de uma casa d'onde nos trouxe sal. O
dono da casa declarou que no dia anterior ali tinham passado com
artilharia em nossa perseguição ; mas que essa artilharia havia retroce-
dido com a força ficando só os piquetes que tirotearam. Outro aviso
diz que o inimigo marcha de novo contra nòs. Pahim seguiu para lá,
depois de ter mandado uma protecção tirada do batalhão de Jorge Ca-
valcanti ao mando do capitão Weber. Essa protecção não foi feita por
designação . Jorge reuniu o batalhão e perguntofi quem queria ir e
apresentaram-se muitos ; entre estes foi que elle escolheu. Eu estava
n'esta occasião no seu acampamento, porque desde que soube que
era d'alli que sahiria aquella gente fui vel- os . Mania, ou obrigação
moral, eu gosto sempre de ver os que marcham para a luta, e gos-
to que elles me vejam.
E' talvez o derradeiro olhar, a derradeira palavra que trocamos.
Disseram-me que para chegar aqui ha outras picadas . Montei a
cavallo e fui caminhar um pouco. Lembrar-me do meu tempo de
rapaz a romper matos a cavallo .
Depois de algum tempo retrocedi . Caso haja alguma picada, o
que acredito, elles não terão forças capazes para dividir, separando
tanto uma das outras, e virem nos atacar em pequeno grupo.

**

Um enviado de Gomercindo dá-nos ordem de marcha. O ini-


migo retrocedeu . Mais uma noite passada aqui, mas a agitação do
dia absorveu-me todo, por isso pude dormir, só me despertando ao
toque de alvorada.
Pela manhã marchamos. A estrada é má, ladeiras e atoleiros
por toda parte. Uma legua depois do nosso acampamento salimos
em uma roçada com madeiras muito grossas atravessadas no caminho
e uma cerca de madeiras tambem grossas em forma de labyrintho . Fo-
ram companheiros nossos de Palmas que vieram fazer isso aqui
para se opporem á passagem de Pinheiro Machado para os campos
de Palmas, visto, dizem elles, não ficar nem um folego, quer de
gente, quer de animaes por onde elles passam.
Foi o que lhes disseram os habitantes de Lages . Infelizmente,
para os habitantes de Palmas, nós tambem ganhamos esse nome.
Gomercindo confiado na apparencia de alguns individuos, con-
217

fiou-lhes a guarda d'aquella região, e elles commetteram depredações


que compromettem a revolução.
Se não mandaram os gados para Corrientes e as tropas de
mulas para a feira de Sorocaba, comtudo não deixaram de com-
metter actos que repugnam . Essas trincheiras foram feitas sem a
menor tactica. Uma abertura onde as madeiras derribadas impediriam
a marcha de cavallarias em ordem da batalha, porem o espaço com-
prehendido entre o mato que limita a roçada é menor do que o
que percorre uma bala de fuzil, de guerra , qualquer que seja o seu
modelo, e a trincheira feita no alto, no meio de um mato cheio
de clareiras, de modo que se o inimigo se occultasse no mato fron-
teiro mais denso, poderia desalojar os que the quizessem impedir
a passagem, sem perigo. Eu me pozera em marcha logo cedo, e
Pahim com a columna ficou um pouco distanciado. A' tarde acam-
pei no meio da estrada, na margem de um arroio de aguas limpi-
das e cheio de cascatas. Mandei acampar a minha gente em pontos
onde não permitissem a fuga dos nossos animaes nem para diante,
nem para traz, não havendo perigo de fugirem pelo rio por serem
as barrancas muito escarpadas, e o unico ponto praticavel estar
occupado por Emiliano com o seu fogão, e do outro lado o mato
era tão cerrado pelos taquaraes e sarmentos que era impossivel pe-
netrar. O resto da tarde passei no arroio.
Como nas noites do estio
Ao soprar do vento brando
Rola o selvagem cantando
Na correnteza do rio.

Alem de alguns enfermos que não quiz deixar, vêm commi-


go dois alferes que em caminho se uniram ao meu comboio . Um
d'elles matou um leitão que encontrára na estrada. O dono veio a
mim todo queixoso , é companheiro (todos elles são das forças que
passam) e portanto eu lhe devia pagar o porquinho que o meu ho-
mem matou.
Pediu-me apenas 12 $ 000 que tive de pagar para cançado como
estava, não lhe estar ouvindo as queixas até ao pranto.
Mandando preparar o leitão Emiliano veio dizer-me depois que
não servia , que a carne estava toda cheia de bolinhas brancas, trichi-
na. Mandei atirar fóra, e que não comessem nada d'elle, porque po-
deria fazer mal. O alferes porem não se encommodou, mandou o seu
camarada preparal- o e comeu- o quasi todo, donde resultou- lhe uma
tremenda indigestão que o fez gemer a noite inteira . No terceiro
dia de marcha chegamos ao Rio do Peixe. Pouco caudaloso, porem
largo e o passo difficil por ser em lageado muito escorregadio . Acam-
pamos um pouco abaixo do passo e ahi passamos o resto do dia .
Ha por ali algumas engenhocas, tão pequenas porein, que o mel que
218 -

fabricam não chegou para a gente que passára antes, de modo que
tivemos de mandar distante comprar algumas garrafas. A mulher
do telegraphista de Palma, que é tambem telegraphista e se com-
promettera em nosso favor, fugiu e veio esconder- se aqui onde en-
controu-se com o marido que estava em Ponta Grossa e veio com-
nosco.
Não a vi ; ella porem escreveu me e mandou- me alguns biscoitos
e mel. A' tarde fomos pescar em um poço fundo ; uma bomba de dy-
namite nos fez recolher oitenta e dois peixes que poucos aprecia-
ram, mas que o Emiliano preparou um de modo que offereceu-
me magnifica ceia, o que foi providencial porque aqui não tivemos
carne .
Pela manhã seguimos chegando á tarde n'uma pequena aldeia
de fabricantes de erva mate.
Aqui começam os dominios de um celebre monge que tem per-
corrido toda a região missioneira, plantando cruzes em frente das
casas, designando arvores, que diz serem sagradas onde os crentes
habitantes d'estas regiões vão em certas noites rezar, levando cada
qual um rolo de cera que accendem ali.
Quem não conhece as tradicções d'esse monge, assusta-se ven-
do alta noite no meio do matto aquella porção de luzes em redor
de uma arvore e aquelles vultos silenciosos prostrados e immoveis
ali. Criminam muitos estas praticas grosseiras ; ellas porem são uteis
para os povos poucos educados ; são um correctivo para seus actos.
Que differença poderá haver entre as pessoas crentes de uma gran-
de cidade ajoelhados ante a estatua de um santo, no meio de luzes
profusas onde o brilho do ouro, o fumo do incenso, a figura do
Sacerdote parecem leval- as a esse paiz mystico que chamam Ceu, e
esses pobres ignorantes que acreditam que em certo dia á certa
hora, Deus repousa n'aquella arvo e que lhes indicaram, e elles ali
vão e oram, na simplicidade da linguagem quasi rudimentar crendo
que Dens os ouve, os vê, os protege, os perdoa ?
Esses pobres crentes não dissolverão sociedades, não anniquilla-
rão costumes tradicionaes de familias, não comprehenderão o que seja
ordem e progresso, senão no trabalho de cada qual para viver e no
respeito mutuo porque o que faltar a esse respeito será punido .
O monge è um typo especial que convem ser conhecido. Ca-
minha só por esses sertões, nada conduz, nada pede. Se chega á
uma casa, dão-lhe que comer, elle só acceita o que é mais fru-
gal e em pequena quantidade ; não dorme dentro das casas , a não
ser nas noites de chuva torrencial. Conversa com os moradores sem
ostentação, sem impostura, sua conversa é calma , como quem fala
para si só, porem todos o ouvem, todos lhe obedecem ; sua figura é
humilde, porem todos o respeitam e estimam. Nunca diz para onde
vai, nem quando. Anoutece, e não amanhece ; raramente porem, passa
219

por um lugar mais de uma vez . Quer chova, quer os rios estejam
transbordando vai-se. Não ha canoas e elle passa , ninguem sabe
dizer como passou . Alguns garantem que não se molha quando pas-
sa os rios, outros que passa por elles caminhando, em pé sem se
afundar. Uma reminiscencia talvez da lenda de Christo sobre as on-
das em Cafarnaum .
Os que passam a vida nos gozos, ainda mesmo que esses go-
zos sejam empregnados de sangue e lagrimas de seus proprios ir-
mãos, os que julgam que a pureza da mulher só consiste na inte-
gridade anatomica, porque só d'esta a estupida lei dos tartufos se
procura defender, e vão aos bailes, em toda parte desvirginar a al-
ma das creanças, plantando-lhe pelos ouvidos a arvore da dissolução,
da hypocrizia, da mentira, da traição, preparando-as portanto para
todas as desgraças da vida, como um Mephistofeles toldando tudo
que é limpo, como uma abelha venenosa fazendo emmurchecer a flor
mais bella apenas com o seu contacto, dirão que esse pobre monge,
esse authomato é um embusteiro, um charlatão, um velhaco, porque
prega mentiras que em vez de matar ensinam a viver, ensinam a
respeitarem-se, ensinam a ser modestos e honestos, ensinam que n'u-
ma arvore do bosque ha um olho de justiça suprema indefectivel
que não se compra por alguns contos de reis annuaes, ainda mesmo.
que esses contos sejam tantos quanto os trinta dinheiros porque tra-
hio ao seu mestre o Judas Escariotis, que não foge diante das es-
padas de Holofernes, que os observa, que os punirá, que os premiará.
E tudo isso elle faz sem paga, sem ser para se mostrar agra-
davel a quem quer que seja. E' humilde, ignorante talvez. Não edi-
ficará um templo á humanidade, a tanto por cabeça mas seu nome
será lembrado eternamente no meio d'esse povo que não comprehende
senão as cousas simples, naturaes ; e as gerações que se succederem
sem conhecerem a ordem e progresso, se lembrarão sempre d'elle ,
como uma lenda do justo, que passava consolando, animando , ensi-
nando a ter fé, dizendo que a esperança no que é possivel é sem-
pre realisavel, e assim seu rasto se perpetuará, sem sangue, sem
crimes, sem lagrimas , sem odios. E se elle é um louco, sua loucura
é absolutamente opposta a do Sr Julio de Castilhos que faz tudo ao
contrario d'elle, que alem de tudo tem exercito, tem dinheiro para
mandar matar a quem diga que é assim que se cumpre a ordem e
progresso, porque é d'essa ordem e d'esse progresso que os louva-
minheiros se locupletam.
E elle, o louco , é absolutamente mais feliz do que o seu con-
genere que, vivendo n'um palacio, tendo algozes para executar suas
sentenças não goza um unico momento de descanço, porque só o
teria nos banhos continuos de sangue, e o sangue que lhes poderia
fornecer evapora- se na campanha e nas casas distantes de seu palacio.
*
*
220

A' noite chegaram dois homens que Gomercindo mandou para


vaqueanos de Juca Tigre, que segundo noticias deve se achar nos
campos de Palmas . Procuraram-me e eu escrevi a Juca Tigre e Vas-
co Martins um bilhete, porque sendo minha letra conhecida d'elles ,
e falando- lhe de factos insignificantes que nós sabemos , elles não
porão em duvida de que os vaqueanos são realmente nossos. Pro-
metti a um d'elles que se trouxerem os companheiros por quem vão ,
um dia eu o farei recompensar .

Apparicio e Torquato Severo já se approximam e a vanguar-


da de Gomercindo já brigou e tomou conta do passo no Rio Pelotas
( Uruguay. ) Gomercindo logo que se encontrou com Apparicio ,
e viu que no Passo do Barracão havia pequeno numero de forças ini-
migas, deixou ali Torquato Severo, ameaçando passar, e desceu cinco
leguas, abriu uma picada, passou com alguns homens em una canoa
poz em fuga um piquete inimigo que guardava a estrada que vem
ter áquelle passo, e tornando - se dono d'elle deu começo á passagem
das forças para o Rio Grande. Quem commanda essas forças é o
General Menna Barreto porque foi apprehendido um officio d'elle em
que diz ao commandante da força derrotada : Finjam que estão fortes.
Em vista da modificação de plano de direcção, tivemos de se-
guir por uma picada que vai ter ao lugar onde se acha Gomercin-
do. Marchamos quatro leguas sem encontrar agua ; afinal chegamos a
uma capoeira onde a encontramos e ahi acampamos. Toda a tarde
e a noite chegavam companheiros retardatarios .
Muitos não chegaram, mas creio que se perderam ou deserta-
ram ; o peior porem é que em caminho já nos deixaram um car-
gueiro de munição .
As compensações da natureza são sempre viciosas. Durante
o dia viajamos com um sol terrivel, mortos de sede ; acampamos á
margem de um pequeno regato de pouca agua, porem limpida, á
tarde começou a chover, e essa chuva nem só nos molhou como
turvou a pouca agua do regato, e poz em difficuldade a marcha dos
companheiros retardatarios que se perderam e que para orientarem-
se, atiravam a todo instante para que respondessemos .
No 4º dia de marcha chegamos ao ponto onde deviamos es
perar ordem de entrar na picada. Ali estava acampado o tenente
coronel Fragozo que fazia observações no campo . Falando com elle
disse-me muitas cousas, muitos boatos : " Custodio não tinha entregado
a esquadra ao Governo Argentino, ao contrario Saldanha da Gama
que tinha assumido o commando d'ella se approximava da de Floriano
Peixoto e ia dar-lhe combate , segundo diziam uns que passaram por
Lages e que os do Governo já fugiam de Santa Catharina.,
221

Que : Menna Barreto tinha- se retirado da margem do Pelotas ,


porque forças nossas marchavam sobre a retaguarda d'elle. " Quando
se ouve essas narrativas sabe-se que ellas não partem senão da ima-
ginação de visionarios, mas mesmo assim, ellas consolam, é a espe-
rança no impossivel.
Tivemos de acampar á espera de ordem porque no porto onde
Gomercindo está passando a gente da vanguarda cabe apenas OS
que vão de uma vez nas quatro pequenas canoas, dos pobres lavra-
dores d'ali.
A nossa estada aqui devia ser aproveitada para preparar
xarque para a viagem, porem a chuva privou-n'os disso, e a falta de sal.
Aqui veio o Dr. Hungria, medico do Aquidabam . Alguns
marinheiros que vieram com elle e alguns officiaes já estão com
Aparicio. O coronel Brazil veio ver- me com Pereira Pinto ; esse
cadete ruivo é um caipora. Sahio a serviço levando um assistente
com a mala de roupa e o ponche, perdeu-se e o assistente desap-
parecen levando tudo .
Tive de dar-lhe roupa, e o ponche d'elle appareceu, menos a
roupa e o assistente . O ponche foi achado por um companheiro .
Recebemos ordem de approximarmo'nos da bocca da picada e no
outro dia penetramos n'ella, indo acampar duas leguas a dentro. O
chasque que se mandou em busca de Juca Tigre voltou ; o que viu
foi uma columna inimiga passando o Rio do Peixe , nos seguindo ,
porem não temos receio de que ella se approxime tão rapidamente.
Depois de um dia de espera nos approximamos do Uruguay.
Aqui já nos faltam animaes por isso tive de reduzir a ambulancia ,
deixando uma com medicamentos que não são muito precisos . Tive de
deixar as madeiras da minha barraca, presente de um engenheiro
francez de Ponta Grossa . Escrevi n'ellas :
Quem quer que seja que guarde esta armação , poderá um dia
vendel-a caro a algum muzeu porque ella serviu para armar a tolda
que privava da chuva ao coronel Dr. Angelo Dourado, que de cer-
to não sahirá com vida d'esta luta, e então o acharão bom , hones-
to, patriota. Ninguem o chamará mais de bandido, nem de alma
negra da revolução , e seu nome servirá para levantar o animo dos
poltrões e para dizer aos governos infames, que o povo sempre accor-
da
para tomar a desforra do que lhes fazem os tyrannos.
Ao approximarmo'nos do rio, onde a descida é difficillima, encon-
tramos as carretas e os armões da nossa artilharia. Apparicio a ti-
nha trazido até ali, os bois porem cançaram-se e por isso teve de
abandonal- as. Desmontou teda, enterrou- a, dispersou as munições , só
ficando montada uma metralhadora de calibre 25 , mas sem o cubo
onde se carrega para as descargas.
Perder a artilharia que tanto nos custou a obter, quando para
sermos senhores do Rio Grande, só nos faltou uma bocca de fogo , é
222

doloroso, acabrunhante, mas os soffrimentos nos tem endurecido tanto


que nem ao menos prendeu- nos isto a attenção, por mais de cinco
minutos . Vamos para o Rio Grande, ali encontraremos cavallos , e
com as armas que nos restam, faremos tudo . Sempre lutamos sem
artilharia... é o que nosso espirito encontra para não perder tempo
.
em pensar n'isso.

**

Apezar do esforço que Gomercindo emprega para regularisar


a passagem do rio, ella tornou- se uma verdadeira balburdia.
Os caminhos difficeis para chegar até aqui, a demora de uns,
quer concertando cargueiros, quer levantando cavallos cahidos , ou-
tros que tomavam por atalhos para livrarem - se dos saltos , sabindo
na retaguarda dos que vinham após , mas que seguiam o caminho sem
desviar, produziram a divisão dos corpos e das companhias, de modo
que um corpo ou uma companhia tem que esperar os seus apezar
dos protestos dos que se amontoam ali e, ou pedem passagem nas canoas,
ou querem tomal- as á viva força .
Alem d'isso , do lado em que chegamos não ha nem pasto para
os animaes , nem o que se comer. Os bois que puchavam a artilha-
ria, magros e cançados já foram mortos ; tocou-me um ; mas indo ver
carneal- o , vi tanto puz no pescoço devido a canga, nas juntas, que
sahi d'ali com nojo , preferindo passar o dia sem comer a tocar n'a-
quella carne ; e do outro lado ha algumas roças de pobres lavradores ;
vê-se uma engenhoca, alguns pequenos cannaviaos . E. já no terri-
torio rio-grandense e elles pela perspectiva, muito pobre, comtudo
julgam aquillo o paraizo . Esta balburdia , esta impaciencia faz- me
lembrar as scenas, que Virgilio e Dante imaginaram a bordo do
Stige ; nem os andrajos nos faltam, nem a incerteza da nossa sorte ali no
territorio rio-grandense onde a não sermos vencedores, devemos
affrontar a morte matando, para não abdicar os nossos direitos de
homem até no morrer, como aconteceu aos centenares que confiados na
legalidade e na esperança de que os executores da lei no Rio Gran-
de , tivessem ainda um pouco de humanidade, e sobre tudo um pou-
co de brio , para se lembrarem que reunir forças para matar a
• homens desarmados, em suas proprias casas é uma infame cobar-
dia, foram mortos como rezes ou como cães.
Avista de terra rio-grandense, porem, seja qual for a sorte que
nos espera, me alegra. E' uma terra martyr, é a joia brazileira sepul-
tada n'um lodaçal de sangue e de infamias. E' uma victima entre as
garras ferozes de algozes que pedem bolça ou vida. E' a mãe de
heroes que se perpetuaram na historia patria, atada ao poste de
ignominia selvagem pelos proprios filhos, e por muitos descendentes
d'aquelles que a tornaram digna, não se lembrando que arruinal- a é
223

anniquillar o prestigio proprio. Para os que tem a vida como um


meio de gozos ; para os indifferentes, para os que vendem a consci-
encia como as barregans os affagos nos prostibulos , tomar armas
para deffender essa terra, para libertal-a ou morrer, é uma loucura,
para as almas nobres de qualquer nacionalidade que sejam , mas
que sentem que não pode haver homem digno n'uma patria avil-
tada, é uma virtude. E' destes que eu espero o meu julgamento no
futuro.
Apparicio tem a sua barraca perto da minha. Aproveitei o dia
em que esperamos que os Carontes nos transportem á outra margem,
para ouvir d'elle e de outros companheiros as narrativas dos torpe-
ços e das difficuldades porque passaram desde a Lapa até aqui . Foi
uma luta digna d'elles .

Logo ao sair da Lapa elles tiveram noticia detalhada dos


desastres da esquadra no Rio Grande e do Aquidabam no Desterro.
Traziam comsigo tres canhões Krupps, uma metralhadora de calibre
25 tão pesada ou mais do que um canhão, pela pyramide de ferro
em que repousa ; uma metralhadora 11 , e trazendo uma do mesmo
calibre, o batalhão de veteranos, nome que Gomercindo deu á infan-
taria de suas forças commandada pelo major Antonio Nunes Garcia ,
rapaz de pouca idade, filho do bravo majer Joaquim Nunes, ajudante
do Joca Tavares na expedição que terminou - se em Aquidabam, nos
outros tempos. Esse rapaz era cadete do 5° regimento de cavallaria.
Desertou com outros, entre elles o Peixotinho que nos levaram por
meio de seduções para o exercito regular provisorio. Tem sido tão
bravo, tão disciplinador que Gomercimdo olha como um dos grandes
elementos do seu exercito. Foi ferido em Tijucas, conforme creio ,
já te disse. Esta infantaria de veteranos é uma especie de ajustador
das nossas negociações nas batalhas , os nossos lanceiros são a espa-
da de Breno.
Esta infantaria foi creada como um meio de corrigir aos delin-
quentes de faltas pequenas. Se um official commettia uma falta, Go-
mercindo tirava- lhe os galões , e o collocava como simples soldado na
infantaria. Se o fogo na macega ameaçava incendiar o acampamento ,
como nos aconteceu mais de uma vez, e em uma d'ellas tive eu
mesmo de desarmar a barraca , arrastar tudo para longe, os meus
arreios e os de minha gente que ajudava a apagar o fogo de um
lado, e tudo salvei excepto um vidro de pimentas, perda bem sensi-
vel para quem tem de comer bifes, feitos , Deus sabe com que acceio,
porque as caronas é que servem de taboas para preparal- os ;
Gomercindo mandava tocar carga de infantaria, e em vez de ca-
rabinas levam ramos e couros para apagar a sanha do inimigo. Em com-
224 ---

pensação quando chegavam estropeados elle mesmo de laço na mão


ia pegar os cavallos para os infantes, e emquanto não os montava
a todos não deixava nenhum cavallariano tirar um. Você é cavallariano ,
dizia elle , é muito aragano, em todo logar encontrará cavallos , e os po-
bres infantes que não sahem da forma não hão de marchar a pé.
Esta infantaria que fora uma especie de presidio tornou- se cavalhe-
resca. Ganhou esporas de ouro nos combates, e hoje pensa -se d'ella
fazer parte , tal é a estima que Gomercindo lhe dispensa, e Appari-
cio que a olha como o escolho de sua brigada para o inimigo . Eram
poucos , hoje é um corpo de 530 homens armados a Mamlicher.
Quasi todos os soldados capitulados da Lapa e Tijucas se encorpo-
raram a ella. Nos combates são os que mais soffrem, mas as filei-
ras se enchem logo.
A marcha de Apparicio com a sua columna seria digna de
uma odyssea, mas hoje no tempo da civilisação, as distancias desap-
pareceram. As armas de destruição não permitem vestir coraças,
capacetes, levar escudo e movendo um montante ou um franchisk,
uma clava nodosa , vencer pela força ou ter coragem para supportar o
embate, do inimigo destemido. Hoje não. A arte da Guerra dá
bravura a quem em outros tempos se chamaria cobarde. O soldado
não precisa mais do que conduzir uma carabina, e dizer : Vai, mata ;
que elle não me venha cá. E os mancebos são valentes porque veem
essa descarga mortifera, sobretudo quando a descarga é feita contra uma
legião quasi desarmada. Então dirão : Fomos bravos, defendemos a
republica. Pobres rapazes ! Vossa alma é pura , boa, juvenil ; não
comprehende o que é ser instrumento de seres perversos. Quando qui-
zerdes retrogradar será tarde.
Logo ao começar a marcha Apparicio sentiu que a deffecção
de nossas forças começava. Nós tinhamos levado ao norte um punha-
do de bravos, tinhamos lutado. As balas inimigas passavam pela flor
de nossa gente, como a foice do ceifador em trigal amadurecido ; nosso
triumpho ali nos tinha dado não a vida de nossos companheiros , mas
a Victoria e com ella todos os que nos julgando heroes vinham
com o espirito de heroes se unir a nós todos os que nos , julgando
vencedores, vinham com o espirito de conservação e lucro se collocarem
á nossa sombra para occuparem os primeiros lugares. O Major Co-
lonia que se apresentára em Curitiba como desertor do exercito ,
e que eu olhára como um espião e que só me convenci do contrario
quando o vi em casa de Doria, como bom companheiro e que o
Tenente Coronel Bezerra me declarou que era um bom companheiro,
e quando Gomercindo o nomeou chefe da nossa artilharia , desertou .
O coronel Felicio que na Lapa lutou como valente, não quiz
seguir com todos os seus. Ficaram portanto com gente que nunca
tinham visto canhão ; e com cinco ou seis marinheiros que nunca
tinham visto bois, começou a marcha.
-- 225

Não sei se nos Alpes, Hanibal vadeando - os, ou Napoleão 1°


transpondo -os , poderiam levar em trajecto , victoria a elles. Hanibal
teve a surpreza do ataque. Napoleão teve a gloria de suas hostes.
Caminhava como um flagello devastador, um Atila civilisado . Appa-
ricio era o opposto de tudo isso . Era um retirante esperando sempre,
a toda hora, a todo momento , um ataque : Não tinha mais nem uma
retaguarda protectora , nem em frente um paiz onde podessem che-
gar e repousar . A' retaguarda o inimigo , no flanco esquerdo o inimi-
go, em frente o inimigo , e no flanco direito onde os companheiros
poderiam ajudal - o , a noticia do desastre da columna de Juca Tigre,
dizia-lhe que, se aquella columna que era forte desappareceu , o que
seria da outra, fraca, onde vinha seu irmão ?
Foi n'essas condições que elles emprehenderam a marcha em
direcção de Campos Novos, na fronteira rio-grandense, onde deviam
se achar os generaes Arthur Oscar e Menna Barreto, segundo jor-
naes floreanistas chegados do Desterro onde depois de ennumerar
suas forças e disposições diziam : Os bandidos estão n'um circulo de
ferro, onde serão esmagados sem escapar um só . A columna que
não conta mais de mil homens, sem cavallos capazes para batalha,
seguiu portanto com essa resignação de quem marcha para o seu
fim. Na serra do Espigão tiveram de desfazer o calçamento a pi-
careta, por ser muito escorregadio e a subida muito a pique. Appa-
ricio em pessoa trabalhava n'isso , e em pessoa arrastava ou empur-
rava a artilheria, rompendo n'esse trabalho toda a roupa . Depois
tiveram a passagem do Rio Maromba, cheio de rochas, de corrente-
za extraordinaria . Deixaram Curitibanos á esquerda .
Ali o allemão Fischer, official de saude que levava as ambu-
lancias, desertou .
Tendo sido designado para fazer a vanguarda o coronel Car-
los Nogueira da Gama, e tendo se demorado, Nunes com sua infan-
teria seguiu fazendo a vanguarda até á serra onde foi alcançado
por Torquato Severo que d'ali em diante ia fazel- a.
Apparicio ficara longe com o resto da columna.
Ali elles souberam que Gomercindo percorria os Campos No-
vos apenas com um piquete, e mandaram essa noticia a Apparicio
que apressou a marcha. Tristes apprehensões preocuparam-n'o.
Gomercindo só com um piquete n'aquella região onde nossas
forças nuuca haviam estado e oude o inimigo podia estar, era um
perigo ; demais chefe sem o seu corpo de escolta não indicaria uma der-
rota das forças que o acompanhavam ? Mas elles tinham confiança ,
e sabiam que para por em pratica um plano, Gomercindo não cal-
cula o perigo que pode correr sua pessoa ; vai elle mesmo, onde o
risco é maior. E se a columna que o acompanhava tivesse desap-
parecido, elles ali estavam, eram poucos, mas com o denodade che .
fe á frente, nem os passos do Pelotas, nem as columnas inimigas
15
226

em frente lhes causavam receio, tal é o prestigio de um chefe que


torna-se querido pela bravura e dedicação, que mesmo ao morrer
o seu companheiro de lutas tem ainda um olhar de saudade para
elle, e morre triste por não poder ajudal- o até o fim. Felizmente
para elles um mensageiro de Gomercindo calmou-lhes as inquieta.
ções . Só não se sabia da columna de Juca Tigre, mas ainda se a
esperava.
Torquato marcharia para o passo do Barracão, ameaçando
passal- o . Apparicio desceria para a picada que já estava feita, cujo
passo já se achava desempedido .
As forças que guarneciam o Barracão recuaram, a nossa van-
guarda seguiu para guarnecer a picada por onde temos de passar.

A balburdia continuava, e Gomercindo tendo marchado depois


que Apparicio passou, ella recrudesceu . Felizmente um dos meus ra-
pazes desceu um pouco, marginando o rio e achou uma canoa oc-
culta entre os galhos de uma arvore.
Passei com o coronel Brasil e os meus e fui mandando pas-
sar outros que não tinham corporação e que por isso estavam con-
demnados a serem os ultimos.
罾 A engenhoca nada mais tinha para vender ; nem canna, nem
rapadura ; de uma outra que havia ali perto nos traziam rapaduras
para vender por preço exorbitante, e mesmo assim para se poder-
obter uma, pedia - se como favor. Comprei um porquinho muito caro,
mas foram tantos os que se approximaram do fogão de Emiliano
que só chegou para uma refeição . Um dos meus cargueiros can-
çou. Eu tive de reduzir a ambulancia, dando á dona da engenho .
ca um par de bahús novos que não podia conduzir ; em paga ella
deu- me um metro de fumo e dois litros de feijão.
No outro dia, á uma hora da tarde não tinham ainda acaba-
do de passar. Mandei apromptar a minha gente para marchar e fui
subindo a ladeira a pé, por ser quasi impossivel subil- a, a cavallo , sem
cahir- se pela garupa do animal .
Ao chegar em cima, junto á matta, d'onde se descortina um
panorama esplendido de serros cobertos de florestas, em ambas margens
do rio, que desce tão suave que suas aguas parecem stagnadas
n'um vasto canal que parece terminar na primeira curva onde a
serra se assemelha a um dique gigantesco feito pelos titães selvi-
colas , sentei-me á espera de minha gente. Principiava a chover ; de-
pois comecei a ouvir um barulho continuo, como de aguas que for-
tes massas agitam. Julguei que fossem os restos de cavalhadas que
ainda se achavam do outro lado , que se atiravam ao rio, e ao mesmo
tempo sentia o zumbido de insectos que eu não via, muito seme-
lhante ao sibilar de balas.
227

Depois ouvi toques de clarins dando signal de fogo, e vi em


baixo o 9° batalhão ao mando de Jorge Cavalcanti estendido em
linha de atiradores ; não podia ver o fumo da polvora por
causa da chuva e admirava- me da exquisitice de Jorge fazendo exer-
cicio em tal occasião , quando chegou um companheiro que me de-
clarou que o inimigo achava se do outro lado , que já tinha morto
um polaco, que Pernambuco que se achara envolvido por elle, pode
se escapar matando dois e dando vivas com um outro companheiro
que fora ferido, mas que já havia passado e ahi vinha . Foi então ,
que reconheci que o ruido que ouvia era das descargas, cujos sons
tornavam-se uniformes e prolongados pelo echo que repercutia-os nos
montes e no rio . Pouco depois cessou tudo, e chegando a minha
gente dando noticia de que o . inimigo retrocedera, segui sendo alcança-
do pelo coronel Budziach, que me declarou, que estavamos perdidos
porque o inimigo ja nos devia estar adiante por haver muitos passos
que elles sabiam. Disse-lhe o inconveniente de taes alarmas e para
tranquillizar aos que ali estavam declarei-lhes que ia fazer a vanguar-
da , e marchei. Apezar da chuva tivemos de caminhar mais de
legua por caminhos cheios de atoleiros até alcançarmos uma capoeira
abandonada, onde havia um pequeno rancho que serviu- me de abri-
go. Ali chegou mais tarde Pahim e muitos outros, tendo ficado guar-
dando o passo o capitão Molina do 9° batalhão.
Fragozo, que fazia a retaguarda ,
Sabia-se já que o capitão Fragozo,
conhecedor do logar, tinha conseguido escapar-se sem prejuizo . Pela
maula marchamos com tempo sempre chuvoso, até o ponto onde se
achava a guarda que o general Menna Barreto collocara para de-
fender a picada e que fora desalojada pela nossa gente. Ali estava
sepultado um companheiro nosso que, agarrado por ella, fôra degollado .
Os nossos sepultaram-n'o plantando uma cruz com o nome d'elle e
adiante a palavra - Libertad.
Foi portanto um estrangeiro quem lembrou-se d'essa palavra
em terra brazileira, onde elle luta sem remuneração . Ali achava- se o
general França que commandara a columna do general Salgado e
que ficára no Desterro por molestia e pode escapar com o filho, por
meio dos maiores perigos. Conversava com elle, quando ouvimos á
nossa direita um tiro de canhão, ao longe. Onde seria ? Não tinha-
mos forças brigando por ali .
O inimigo não podia ter trazido artilharia até o passo, mar-
chando com tal rapidez . Os canhões que tinhamos deixado, quando
mesmo podessem ser encontrados, não estavam em condições de fun-
cionar. Attribuimos á queda de algum pinheiro. Outro tiro, porem, veio
confirmar o primeiro, podendo atê o Dr. Fabio Azambuja, precisar, por
elle, qual o canhão que o disparara.

•*
- 228

Nossa marcha não teve nenhum caso extraordinario. Chegar ao


acampamento de forças que passaram antes, aproveitar os restos
que deixaram, uma cabeça de rez , os mocotós, fazer d'isso um cal-
do, uma sopa , para enganar ao estomago, é cousa tão constante, en-
tre nós, que até já se diz entre os que chegam onde passaram os
primeiros loca rancho e os clarins tocam, e cada qual procura algo
para comer, nas carniças que os outros deixaram .
Na marcha não contava com um accidente muito commum :
Tinha que passar um atoleiro, minha cavalgadura não me obedeceu.
Apeei- me e puchando pela redea convidei-a a passar ; já esta-
va eu no meio do banhado, e o estupido animal fez tal esforço ,
que me atirou sobre os troncos, quasi quebrando- me as pernas.
Incontestavelmente é uma nação muito estupida, como dizia
Grevy, esta dos burros. Não comprehende este animal que devia
me passar aqui, sem corcovear ?
Tive vontade de dar pancada no pobre animal, que não tinha
culpa de que eu quizesse ter forças para arrastal-o, estando em pé
sobre uma madeira escorregadia, mas contive-me a tempo para não
commetter tal crueldade. Se o fizesse seria egual ao Sr. Julio de
Castilhos para o grande povo rio-grandense, querendo obrigal- o a
faca e bala a achal-o bom republicano .
Felizmente chegaram companheiros que me ajudaram a obri-
gar o animal a passar, atravessando eu o atoleiro com lama até os
joelhos. A marcha por alli foi sem accidente a não ser algumas
vezes a falta de alimento , outras termos de deixar cargas de mu
nições porque, cançando os animaes que as conduziam não se encon-
trava outros para substituil- os . Ora nos approximavamos dos campos
de Lagoa Vermelha, ora nos afastavamos d'elles.
Afinal, chegamos onde Gomercindo nos esperava, quasi a com-
pletar 24 horas que não comiamos . Gomercindo estava alegre. Na
porta da barraca ria- se e dirigia uma pilheria aos que iam passando. Já
havia gado para comer-se . Quando cheguei perguntou-me se tinha fome :
----
Pero mucha, amigo , lhe respondi.
Apeie-se e venha churrasquear commigo, que aqui temos
um churrasco digno de ser comido por um doutor guerreiro.
Ali ao pé, estava o commandante do Aquidabam, Alexandri-
no de Alencar, comendo uma costella. Comprimentamo nos , era
a primeira vez que nos viamos, e eu ri-me vendo um capitão de
fragata a comer sem talher, sem pão e sem sal.
E um naufragio, disse-lhe eu, mas parece-me que breve en-
contraremos terra.
**

Marchamos sem outros encommodos, a não ser a falta de ca-


vallos e de alimento .
229

Falta- nos até o sal e a herva mate. Nestas matas não encon
tramos pinhão ; ha porem um sarmento espinhozo que dá fructos
doces como a uva, em pequenos cachos, amoras ; de que os europeus
que vem comnosco são vorazes.
Mas a colheita d'isto demora a marcha, e a nutrição é nulla ,
porque uma vez que me tinha adiantado muito , parei durante duas
horas á espera de minha gente, e todo este tempo empreguei em
comer essa frutilha, abundantissima alli, e depois de muito comer,
sentia a mesma fome.
Lembrava-me porem , que quando podessemos viver tranquillos
em uma chacara, trataria de cultivar essa planta , porque as frutilhas
com creme de leite darão uma excellente sobre-meza . Pensando
n'isso lembrava- me que se estivesse te falando a respeito, tu te
ririas, e me repetirias aquella historia da cafeteira .
Uma vez, eu tinha conseguido comprar um pouco de feijão e
carne de porco a um companheiro que tinha sahido ao campo e de
là trouxera aquillo para negocio, porque no exercito , se negocia
muito com pequenas cousas ; preparava o Emiliano o nosso feijão , quan
do chegaram ao acampamento dois soldados que foram da nossa extin-
cta artilharia, conduzindo em páu uma pesada barraca, por ser gran .
de e estar molhada, porque n'estas matas chove todo dia. Senta-
ram-se perto, e na occasião da comida mandei o Emiliano que os
chamasse, porque deviam estar com fome.
Depois Emiliano veio dizer- me que um d'elles è da Bahia , e
que me conhece de lá. Chamei-o , perguntando - lhe quem era e disse
ser Franklim de Almeida Lima, irmão de meus dois collegas e
amigos, Benjamim e Virgilio Franklim de Almeida Lima, o primeiro
ja finado. Que uma vez que fora á capital com o pae, que queren-
do me conhecer fora á minha casa e levara- o tambem. Estava eu
no 2º anno de medicina e o pae d'elle que era negociante em Santo
Amaro, lá fora realmente à minha casa e levara- o . Muito viva cre-
ança e muito travessa.
Lembro-me que o sentei nos meus joelhos e mandei o creado,
ao Lourenço Devoto, comprar doces para dar-lhe. Morto o pae , sen-
tára praça como cadete, mas a republica que fez generalissimo , que
promoveu, por serviços relevantes, a todos os parentes e amigos, dos
factores, que fez a fortuna de milhares á custa da fortuna dos outros,
que deu commissões honrosas e lucrativas no estrangeiro, a individuos
que só
só nos cafés e nos theatros de moralidade duvidosa poderiam
ter representação ; para o pobre soldado, para essa massa anonyma
que sabe dar a vida pela patria sem pensar no quanto lhe pagarão
para isso , e que serve de instrumento para a fortuna dos espertos ,
nada teve senão ò castigo corporal, infligido diariamente, e as or-
dens de marcharem para fazerem calar os irmãos que, assasinados
lentamente por ordem do governo, entenderam não se deixarem mais
230

matar, sem matar tambem. Tiraram-lhe a estrellinha de cadete, e


tantos castigos soffren que chegou a enlouquecer, sendo recolhido.
ao asylo, d'onde sahio curado para se vir bater na Lapa onde teve
de passar ás nossas forças. Ordenei-lhe que acampasse sempre jun-
to a mim para partilhar do pouco que eu tivesse.
A presença d'este rapaz, a historia de seus soffrimentos me
teriam posto hypochondriaco todo o dia, se um incidente não viesse
distrahir-me. Affonso tinha descoberto uma arvore de herva matte
e trouxera uns galhos.
Fizemos fogo para seccal-a, e eu mesmo me encarreguei d'esse
serviço. O coronel José Gomes, como paranaense, apresentou- se
para fazel-o, porque a herva é a industria de sua terra, e portanto
a elle pertencia preparal-a . Mas as folhas incendiaram-se, elle pro-
curava apagar as chammas batendo com os galhos no chão : não
conseguindo, quiz fazel- o com o chapéo e suffocado pela fumaça reti-
rou-se deixando tambem o chapéo no fogo, que eu tive tempo de
salvar. Uma cousa simples, mas o ar comico que tomou o José Gomes,
fez-me rir o dia inteiro, apezar de ficarmos sem herva.

Gomercindo com Torquato Severo acha-se já na casa do


major Claro , dentro da mata, perto do rio Forquilha, cuja passagem
nos fará chegar aos campos de Lagoa Vermelha. No ponto em que
se acha ha uma estrada que depois de uma legua de mata sahe- se
no campo, porem áquem do Forquilha. O general Arthur Oscar
occupa esse ponto, tendo forças guarnecendo o passo do Forquilha,
rio caudaloso, que demanda tempo para a passagem.
Cremos que essa força que o guarda é a do general Menna
Barreto.
Apparicio e Pahim, tiveram ordem de se demorar aqui, onde
ha uma estrada que tambem vai ao campo e que está sendo guarda-
da pelo coronel Carlos Nogueira da Gama.
Creio que Gomercindo pretende, fazendo-nos sahir ao campo, d'a-
qui, sahindo lá com Torquato Severo, metter as forças de Arthur Os-
car em dois fogos.

Esperamos ordens tres dias, porem em vez de sahirmos ao cam-


po, tivemos ordem de seguir para o Major Claro onde elle se acha.
Torquato Severo está já no campo tiroteando as forças de Ar-
thur Oscar ; essas, porem, em vez de se apartarem do rio, se appro
ximaram mais d'elle. Esse tiroteio tem durado alguns dias ; jà temos
um morto e tres feridos. O plano de Gomercindo modificou-se ; elle
231

pensa em fazer uma sortida na retaguarda do inimigo, fazendo ao


mesmo tempo seguir uma columna para ameaçar o passo do Forqui-
lha, chamando a attenção dos que ali se acham, e caso elles se reti-
rem para proteger a columna atacada , a nossa passará o rio, seguin-
do-lhe pela retaguarda, mettendo- os portanto em dois fogos. Esta co-
lumna será a de Apparicio.
*
**

Os nossos impacientam-se para sahirem ao Campo . Ha muito


tempo que marchamos pelos matos, soffrendo todas as mizerias e ali
no campo ha tudo ; portanto uma batalha, em que elles não admit-
tem a hypothese de perdermos, nos collocará em molhores condições,
nem só em relação à alimentação, como transporte.
Gomercindo por sua vez arde em desejos de enfrentar o ini-
migo . Essas marchas pelo matto abatem o animo, amolecessem os
guerreiros , diz elle .
Para muitos é preferivel a luta, é preferivel mesmo a morte
a este estado de incerteza e inacção ; d'essa luta pode nascer of
triumpho. O revolucionario que tem tido a nossa marcha, que tem
lutado como nós , habitua-se a encarar a morte como um termo na-
tural. Parece que o fumo que o envolve nos combates, forma a tela
onde se retratam os heroes , por effeito da luz da imaginação. Para
elles, os que morrem são puros como os vapores que formam as nu-
vens no espaço ; os que ficam são como o lodo que apodrece nas
charnecas.
Se de um lado, porem, ha esse desejo de lutar, do outro
apresenta-se um problema que amortece esse desejo : são os fe-
ridos.
Não se póde marchar para um ataque, sem ter certeza de que
muitos serão os feridos. Que faremos d'elles ? Nestas regiões não
temos meios para conduzil - os. Deixal- os é entregal- os á morte não
só pelo abandono, como porque os legalistas não poupam a vida dos
prisioneiros , nem dos feridos. Que desespero para os que sabem que
caso não possam marchar serão mortos ? Como entrar assim em
combate ?
Mais de uma vez , mutilados nossos que soffriam nas marchas e
que viam a probabilidade de serem deixados, pediram aos parentes
ou amigos para matal- os, antes que o inimigo se approximasse ; ou-
tros pozeram termo á propria vida, para não soffrerem a morte len-
ta, escarnecedora que os legalistas davam aos que agarravam.

**

Explorações nos trouxeram a certeza de que se avistam for


tes columnas inimigas no campo.
232

Tudo isso fez com que Gomercindo resolvesse mudar de ca-


minho, internando-nos na mata em busca de uma picada de bugres ,
para passarmos o Forquilha muito mais abaixo.
O coronel Lavrador, encontrando -se commigo, disse- me : Cada
qual levando dez espigas de milho para comer em dez dias, a colum-
na sahirá em terreno bom. Lavrador, é um optimo companheiro.
Hyperbolico como um hespanhol, elle nunca desanima, e isso influe
no animo dos que o ouvem.
E' portanto preciso ir ás roças dos pobres lavradores em
busca de milho, para alimentar - nos durante dez dias. Felizmente en-
contrei quem me vendesse um porco que Emiliano transformou em
linguiças e fiambres, mas não se poderá comer escondido e portanto
minha barraca se tornará o lugar das distribuições .

Iamos jà em marcha, quando ouvimos descargas .


Torquato havia recebido ordem para retirar-se. O inimigo sen-
tindo isso acompanhou-o , mas ao chegar ao lugar onde estiveramos
acampados, e onde Gomercindo deixara Augusto Amaral para pro-
teger a retirada de Torquato, travou-se um pequeno combate, cujo
tiroteio ouvimos em marcha por mais de uma hora. O inimigo re-
trocedeu e elles marcharam. Ali onde estivemos acampados ouvia-
mos a muzica d'elles, portanto elles deviam ouvir os nossos clarins .
Irmãos tão proximos uns dos outros, que em vez de se abraçarem,
buscam o momento para se despedaçarem enfraquecendo a patria,
enchendo-a de orfãos e viuvas, pela causa de um homem que por
meios indignos se apossou do direito de matar on premiar, como um
senhor de escravos, nos tempos barbaros !

Para sahirmos na picada que deviamos seguir tivemos de to-


mar uma outra em direcção noroeste, que ia dar no rio Pelotas ,
depois chegando á picada tomamos a direcção do Sul . Esta pica la
foi a que o Barão de Capanema fez , quando veio estudar o terreno
contestado de Missões. E ali que está a celebre pedra, cuja in-
scripção foi feita em nossos dias, e os argentinos quizeram remon•
tal-a aos tempos coloniaes. Eu não a vi , e bem senti, quando alguns
companheiros disseram-me tel-a visto ; mas nem ao menos copiaram
a inscripção e a data que ali está gravada. Não se encontra aqui
vestigio algum da passagem da commissão. Jorge Cavalcanti que
veio n'ella é que diz terem chegado até um certo ponto não po-
dendo seguir apezar de bem montados, e bem suppridos.
-
Pois seguiremos nós agora, lhe disse eu.
-233 ---

Estas matas são habitadas pelos selvicolas que se tornaram


nomadas depois da revolução. Tinham feito seus aldeamentos perto
do Passo Fundo onde Prestes Guimarães, a quem elles adoram, como
um ser superior, ia cathechizando- os a ponto de ja serem quasi se-
dentarios. Pinheiro Machado, segundo elles dizem, passando por ali
incendiou-lhes as cabanas e destruiu-lhes as roças, razão pela qual
internaram- se na floresta, guardando um odio de morte a Pinheiro
Machado e se tornando adeptos de nossa causa. Elles dizem , os que
sabem alguma palavra em portuguez : Sou federá : Sou papae Pretin
(Prestes Guimarães. )
Na primeira aldea á que chegamos estavam elles todos parados
para verem passar os nossos maltrapilhos, quasi tão nús como elles.
N'uma pequena clareira uma porção de raparigas olhavam para todos
que passavam. Quando passava alguma mulher com seus trajos ex-
quisitos, ellas tinham vontade de rir, mas levavam a mão á bocca
para não se ver ; se porem, uma ria-se, outra olhava-a com severidade ,
como prohibindo-a d'isso. Parece- me que ellas já comprehendem que
não se deve rir dos que soffrem. As raparigas não são bonitas , mas
não são mutiladas, nem tatuadas. Algumas já são bastante claras,
signal de que ha muito tempo que essas tribus tem relações com estra-
nhos. As velhas são hediondas, e a velhice entre elles deve co-
meçar aos 30 annos porque aos dez já se podem casar.
Approximou-se de mim uma velha e pediu-me dinheiro . Dei-lhe
dois mil reis. Em pouco me vi cercado por um enxame de velhas a
pedir. Trazia algum dinheiro trocado para as despezas e fui dando
28000 a uma, 1 $ 000 a outra e o grupo de pedintes augmentava.
Eu tinha uma porção de notas de 500 reis que trazia ainda de Cori-
tiba para a compra de óvos e fructas pelo caminho.
Comecei então a dar d'ellas, que erão novas, o que fez com
que as a quem tinha dado as outras viessem trocar ; queriam d'a-
quellas.
Lucrei no negocio. Não sei se essa troca foi devida á côr
vermelha da nota, se por serem novas, ou se porque ellas julgavam
valer mais aquellas.
Em vista d'esta liberalidade, a mulher do cacique que jà ti-
nha pedido e recebido, veio a mim em sua meia lingua, fazer-me per-
sou coronel,
guntas. Se sou o maior posto que conhecem, se tenho
coronel , o
piquete, se o meu piquete é muito grande .
Perguntou-me se tenho mulher.
Ella tem uma filha viuva, muito bonita. Está viuva desde
a lua passada e ainda chora na sepultura do marido ; chamou a
filha que estava no grupo de raparigas para mostrar-me, a boa viuva
de 29 dias e que ainda chora o marido .
O luxo d'ellas consiste nos cabellos, podem estar nuas, porem o
cabello bem penteado n'uma longa trança. Vi uma na porta do rancho,
234-

vestindo apenas um cazaquinho branco , e penteando-se em um espelho ;


deve ser uma hectaria da tribu. Esta é bastante clara.
Os homens são feios ; cabellos cortados rentes , ou antes tosquea-
dos. Se vão à alguma povoação onde pedem ou roubam alguma
roupa trazem-n'a até o ultimo fio, sem nunca lavarem .
As mulheres lavam a roupa, que arranjam, e parece-me que so
a vestem nos dias que tem de demorar n'um logar.
O cacique d'essa tribu, tinha uma pequena espingarda de
caça que, creio, se o comprehendi bem, foi Prestes Guimarães quem
lh'a dera.
E' com essa arma que elle pretende brigar com Pinheiro
Machado, conforme disse-nos. Alguns soldades desertores, todos ne-
gros, vivem no meio d'elles. Perguntando d'onde eram, respondeu o
Cacique E brazileiro. De modo que elles que são e foram os da
terra não o são, porque não viveram no meio dos taes civilisados
Mais dois ou tres governadores como o Srs . Floriano e Julio de
Castilhos, e em poucos annos os que restarem da familia brazileira
andarão assim pelas selvas, e quando se lhes perguntarem de quem
são os filhos dos allemães e italianos que passarem, elles dirão
como estes são os brazileiros, se esse patronymico não se tornar tão
desprezivel que precise ser mudado , talvez em nova Germania ou
nova Lombardia .
Quando essas terras foram occupadas por aquellas tribus que
se extinguiram, não se chamava, Brazil.
Esse nome deram-lhe os conquistadores.
Um moço de boa familia, que se acha occulto nos matos d'esde
a passagem de Pinheiro Machado, e que sempre convive com os bu
gres e sabe-lhes a lingua, explicou- me os costumes d'essa pobre
raça que foi destruida em nome de civilisação. Mas elles não po-
dem se queixar porque a civilisação é boa, serviu para ennobrecer
a patria comquanto d'ella elles só tivessem o desprezo, o exter-
minio, comtudo, ella é a civilisação. Tenho bem sérias appreliensões
de que esta republica será para os brazileiros actuaes o mesmo que
foi a civilisação para os selvicolas. Lembro-me ter lido algures que
o meio unico de extinguil-os era cortarem- lhes a cabeça, mas antes
d'isso um padre deitava-lhes agoa na cabeça para morrerem chris-
tãos.
O mesmo se dá hoje, mas em vez de agua na cabeça se dá
vivas á republica e a faca trabalha, e depois de longas matanças
em vez de Te- deum, sahe - se em passeiata pelas ruas ao som do
hymno nacional.

A mulher entre elles não se encommoda para ter um abrigo na


occasião do nascimento do filho.
235

O unico preparativo para isso é uma pequena confa, ordinariamen.


te uma casca de páu , mas as mais caprichosas a fazem trançada
de cascas de taquara, ou de junco . Têm o filho muitas vezes em
marcha, colloca -o na coifa, dependura-a na cabeça e segue a marcha.
Se a hemorrhagia é abundante, mastiga e engole a casca de uma ar-
vore, que elles conhecem, casca que conduzem sempre comsigo.
Não pude ver essa arvore, e pelas cascas que vi, ja preparadas,
difficilmente se poderia saber qual era ; pareceu-me, com tudo, a
casca de uma myrtacea.
As mulheres são que conduzem tudo que elles possuem ; mas
nada collocam sobre os hombros ; por maior que seja o pezo, amar-
ram o objecto com cordas , penduram-n'o na cabeça e recebem o
peso sobre os lombos. Um pouco curvadas para diante marcham com
rapidez.
Os homens caçam, ou dormem. Apenas a creança masculina
sabe atirar com o arco, que corresponde ao tamanho do caçador
emancipa-se ; os pequenos caçam as aves pequenas ; os periquitos e
as rolas são suas victimas.
As creanças são alegres e travessas, as masculinas ; mes-
mo no meio dos estranhos ellas brincam e saltam com os outros
como cabritos, mas se vão á caça e voltam sem nada, vem surum-
baticas ; é talvez porque para casar- se não precisa mais do que ser
caçador.
As meninas são quietas, dir- se-hia melancholicas e pensati-
vas. Apenas podem cortar ramos para fazer uma ramada, podem- se
casar. O casamento é simples. Ella faz a ramada, elle vai á caça.
Comem juntos aquella caça e dormem n'aquella ramada, sem se
encommodarem com o consentimento dos paes, mas não se separam
mais senão por morte. Se porem o homem for forte, pode procurar
uma outra mulher, mas ella tem de vir para junto de si publica-
mente. São duas on tres para fazerem a choça e o fogo, elle um
para cuidar no alimento de todas ; tem portanto que trabalhar mais.
Talvez devido a esse trabalho excessivo a poligamia ou mesmo a bi-
gamia é muito rara. A polyandria não existe entre elles. O adul-
terio com o forasteiro, sobretudo com um homem branco, não é cri-
me, ao contrario parece uma virtude ; e com individuo da
mesma tribu é um grande crime ; a mulher fica repudiada e nenhum
homem olha mais para ella . Tem que fazer sua choça e buscar o
que comer, torna- se um ser desprezivel ; o homem que provoca o adul
terio, é castigado. Atado e açoitado por todos, muitas vezes ao
dia. Algumas vezes morrem d'esse castigo. Se o homem tenta sedu-
zir a mulher de outro e ella o denuncia, a morte é o rezultado do
castigo.
Se morre a mulher o homem toma immediatamente outra para
cuidar dos filhos ; se morre o marido, todos os da tribu são obriga-
236

dos a sustentar á viuva e os orfãos ; mas se um homem pernoitar


com ella, torna se seu marido, e a tribu deixa de concorrer para ali-
mental-os. Elle terá de sustentar a mulher e os filhos. Sepultam os
mortos, e ninguem mais fala nelles . A viuva porem deve ir alli na
sepultura chorar uma vez, ainda mesmo que ja esteja casada, o que
pode acontecer no mesmo dia em que ficou viuva.
Se porem ella vai muitas vezes chorar ali, torna- se digna de
respeito e estima. Foi por isso que a velha cacique para me elogi-
ar a filha declarou que ella durante a phase da lua chorara o marido.
E eu quiz ir ver a sepultura, e ella levou- me lá para vel -a chorar.
Nem uma flor, nem um signal de saudade n'aquella terra apenas
revolvida. Apenas chegamos ella prorompeu em gritos, procurava
tornar os gritos melancholicos para commover-se a si mesma, mas
talvez a minha presença não a deixasse concentrar-se na recordação
do morto e por isso nem uma lagrima correu . Era portanto uma
mà artista. Admirou -me nunca ter ido ali um padre para a cathe-
chese desses selvagens mansos. Isto talvez por serem os padres no
Rio Grande quasi todos estrangeiros que vêm para o Brazil somen-
te como commerciantes. Para que cathechizal-os tambem ? Elles nas
suas florestas , com suas leis , vivem mais calmos nas leis de
humanidade do que os desgraçados brazileiros que são considerados
bandidos quando fogem para não morrerem, ou quando não se dei-
xam matar como cordeiros. Deixem- os ahi ; elles são mais felizes do
que os civilisados a quem derão o nome de cidadãos como ironia pela
escravidão em que vivem.
Ao menos que o Sr. Pinheiro Machado deixe viver a esses
pobres diabos.

A passagem no rio Forquilha foi difficil. E' bastante caudalo-


so e largo. Em alguns logares os animaes nadavam. Tinhamos tres
canoas que os bugres trouxeram para ali, porem a barranca do rio
era alta e escorregadia, e em pouco a sahida unica no outro lado.
começou a atolar, de modo que os animaes difficilmente conseguiam
sahir. Gomercindo em pessoa trabalhava de machado para fazer uma
rampa de madeira, mas este serviço só terminou ao anoitecer, hora
em que me tocou a canôa. Depois de passar a minha gente passei
eu. Gomercindo estava junto a um fogo e chamou me . Veja amigo,
quanto trabalho, quanto sacrificio sem proveito, por causa de maús
homens ! Mas nós não havemos de morrer, e Você se prepare para
escrever, é o que lhe peço , e que narre um dia todos os nossos de-
sastres e suas causas.
Procurei desviar a conversa para vel- o calmo, e ali demorei- me
um pouco, tendo seguido minha gente para procurar lugar onde podes-
237

sem acampar. Depois segui pelo meio do barro ; a noute chuvosa


e escura. Pelo caminho ia perguntando pelos meus , me diziam : estão
para adiante, e assim caminhei quasi meia legua até que cheguei
ao ultimo acampamento .
Estavam para traz porque para diante não havia ninguem . Vol-
tei pelo mesmo caminho cahindo ora nos buracos, ora nos páos atra-
vessados no caminho. Perto do rio mesmo elles tinham entrado no
mato e ali acamparam. Cheguei cançado . Tinha caminhado quasi uma
legoa a pé. Contentei-me en passar-lhes uma descompustura por não
terem collocado um na beira da estrada para avisar - me .
Felizmente a barraca estava armada e os arreios estendidos .
Atirei-me sobre elles e dormi até pela manhã para marcharmos . Aqui
onde marchamos não ha senão um pequeno trilho que indica a direcção
que devemos seguir. Se para um na frente todos tem de parar . Não
podemos estar muito longe do campo porque ha indicios de que ha
dias passou gado por aqui, e os nossos vendo esse indicio conversam
alegres antesaboreando o churrasco , se por acaso encontrassem alguma
vaquilhona gorda . Ou magra mesmo, diz um outro. E n'esta conversa
elles vão se lembrando de tempos melhores, e a memoria vai lhes
apresentando todos os phases do passado ; mas como sempre chegam
ao ponto cruel da vida, o que soffreram, o assasinato dos seus e como
se hão de vingar . N'este dia ouvi eu uma jura tremenda.
Um negro robusto, valente disse : Eu não tenho nada com a
gente da campanha elles fizeram porque forão mandados. Se eu não
morrer hei de arrancar a lingua do tal Julio de Castilhos, ainda que
elle vá no inferno. Elle é o culpado de tudo que nos fizeram. Logo
que elles começaram, eu quiz ir a Porto Alegre e matava -o . Elles
me matavam tambem, mas estava tudo acabado. Não tive dinheiro
para isso, e ninguem quiz me dar, por isso, hoje tudo que rebusco
eu guardo para me vingar.
Tremenda cousa é o odio, mesmo nas condições em que nos acha-
mos, n'esta incerteza sobre o dia de amanhã, n'essas almas rudes
que não pensam no futuro da patria, que se expozeram aos soffri-
mentos actuaes para se desforrarem .
Depois de 4 ou 5 horas, de marcha, chegamos á uma capoeira
onde havia uma casa abandonada e uma roça com algum milho e
abobora. Ali havia sido acampamento de gente castilhista porque
haviam restos de carniça . Estamos distante do campo meia legua.
Uma espiga de milho secco assado foi o meu alimento. Perto do
meu acampamento havia uma cabeça de rez que ali deveria ter sido.
morta, ha mais de oito dias.
Um companheiro aproveitou- a, tal era sua fome ou o seu pouco
escrupulo.
O bugre que nos servia de guia, nos abandonou . São excessi-
vamente desconfiados, e comprehende- se que achar-se só no meio de
238

tantos desconhecidos, sem lhes comprehender bem a lingua, ouvindo


suas pragas, seus gestos denunciando um odio concentrado, não é
facil. Tivemos de seguir um pequeno trilho , sendo preciso ir-se
abrindo caminho a machado, serviço de que o coronel Budziach se
encarregou com seus polacos. Este caminho que abrimos é no dorso
da serra, dorso tão estreito, que não tem dois metros de largura,
em muitos pontos, e para qualquer dos lados que se olhe vê-se os des-
penhadeiros. E' uma verdadeira crista de serra , e é n'ella que nós abri-
mos o caminho para nossa marcha. A' tarde, já quasi noite, chegamos
junto a um arroio onde acampamos. Então faziamos a vanguarda . Eu
marchava n'essa occasião junto á brigada de Pahim. No outro dia
cedo Gomercindo acompanhou -nos e marchei junto com elle que con-
tou- me que Torquato acampára, na roçada onde estiveramos , e que
indo gente sua ao campo buscar milho , ali chegara ao mesmo tempo
que forças de Arthur Oscar, que os sorprehenderam e suppõe- se que
os mataram, indo entre elles um menino sobrinho de Torquato. Que
o inimigo viera onde estava Torquato, mas este prevenido pelos
tiros , já se achava prompto para contel- o e vinha retirando -se
pela picada, perseguido por forças de infantaria, mas não os deixa-
va adiantar- se.
Gomercindo n'este dia estava alegre, communicativo.
Ao chegarmos á uma queimada acampamos á espera da co-
lumna. Alli chegou um homem de Prestes Guimarães que se inter-
nara nas matas á nossa procura. Trazia uma ordem do dia em que
elle dava o resultado do combate dos Tres Passos , com forças
de Lima, derrotando-os completamente . Esta noticia nos alegrou por
sabermos que tinhamos companheiros em armas, á nossa espera , boa
gente, disposta, valente e provavelmente bem montada.
Em toda esta região a nossa alimentação é sómente o pinhão ,
porque o milho mesmo já acabou nas pequenas plantações de lavrado-
res que fugiram do campo e aqui vieram se esconder para escaparem
á furia do capitão Chachá Pereira. No outro dia tivemos de descer a
serra para passar o rio Ligeira , de fundo escorregadio. Quando passa-
va eu, um pobre companheiro com receio de ser arrebatado, ampa-
rou-se na cauda de minha mula, mas isto fez com que ella cahisse e
o pobre diabo sahindo do logar raso por onde se passava, foi se ao
fundo. Felizmente pude ainda agarral- o a tempo, e trazel-o a reboque.
Quando acabava-se de passar o rio, tinha- se logo que procu-
rar caminho para passar um arroio affluente d'elle, estreito , porem
fundo, de barrancas muito altas, onde raro foi o animal que não ca-
hio ; é tão estreita a nesga de terra para se trilhar que o menor
descuido poderia levar-nos ao Ligeira, bastante fundo alli .

Giá era in loco ove sudia 2 rim bamba .


Dell'acqua che cadeva nell' altro giro.
239

Depois tivemos de subir outra serra tão alta quanto a que


acabavamos de descer. Nós marchamos na crista da serra, e 0
rio passa no fundo do valle. Não se pode descrever o soffrimento
dessa marcha , com fome, cançados , e sempre a caminhar. Caminha-
se o dia inteiro, sobe-se e desce-se montanhas, atravessa- se rios . O
cançaço faz com que o somno nos tire a idéa da fome ; á madruga-
da desperta- se, vamos marchar, caminha-se. O dia começa a clarear,
a adiantar-se mas não se vê o sol, tal é a espessura d'essas matas .
Ha quantos dias viajamos assim ? Ha muitos. Quantos ainda faltam?
Muitos. Quando comeremos ? Ninguem sabe dizer. Quando brigaremos ?
Breve. Apenas saiamos ao campo, porque o inimigo que nos flanquea,
por melhores caminhos deve nos esperar a sahida no campo. A marcha
n'esta floresta, faz-me lembrar aquelle relogio imaginado por um poe-
ta, marcando o tempo no inferno. Cada oscillação do pendulo mar-
cava um seculo, e quando um alma penada perguntava a outra :
- Que horas são ?
A eternidade, respondia ella .

**

Um dia, chovia muito, eu me havia adiantado dos meus com-


panheiros. Chegando n'uma queimada , uma india fazia uma cabana
de palha, era uma rapariga de 14 ou 15 annos , e do matto chegava
o marido, um rapaz de 16 a 17 trazendo pinhão .
Ella que já tinha concluido a cabana, accendeu fogo e assou
as amendoas do pinheiro. Eu parei ali, á espera de minha gente, e
dando palha á minha mula . A india convidou-me por aceno para
abrigar-me da chuva na cabana que acabara de fazer.
Era tão pequena que mal abrigava duas pessoas. Depois trou-
xe os pinhões, assados, n'uma cuia ; deu -me e sentou-se alli para
comer commigo , emquanto o marido admirava a minha mula, os
pelegos, os arreios. Depois ella levantou-se, com uma cabaça , foi ao
arroio e trouxe agua que me offereceu . Nunca banquete nenhum me
satisfez tanto em minha vida ; nunca hospitalidade das mais ricas
que tenho tido se gravou no meu espirito com mais douçura. E não
The pude dizer uma palavra, porque ella nada comprehendia , e
não lhe pude entender uma só das que ella me dirigia.
Mas ha no olhar, no gesto uma linguagem que se entende, quan-
do não se quer exprimir senão o que é natural, por isso creio
que ella ficou sabendo quanto lhe agradeci , eu homem civilisado ,
eu, homem da republica proclamada pelo exercito e armada, acceita
pelo povo, no fim de seculo XIX lutando para não morrer, ou para
não ver escravisar-se para sempre a patria onde meus filhos devem
viver, a ella pobre selvagem, vivendo ali como um simples animal ,
descendente talvez de uma tribu poderosa, hoje quasi extincta, por-
240

que os civilisados impuzeram -lhe a morte ou a escravidão, e ella


preferiu a morte.
Os bons sentimentos não são filhos dos costumes, nem da edu-
cação ; são innatos, não destruil- os é tudo ; foi o que pensei diante
da alma boa d'aquella pobre selvagem.
A civilisação requinta os sentimentos perversos, não os mo-
dera, é o que pode -se concluir em vista da selvageria barbara des-
ses moços que, como demagogos, pregavam a liberdade e a fraterni- .
dade, e como governo, por lei da força, da trahição e da venalida-
de, só tem uma palavra : Matem. Só tem uma idéa , destruir.
Nas marchas eu me acho ora entre um grupo , ora entre outro .
De todos ouço as lamentações, as queixas .
Se são rio grandenses , eu lembro-lhes a sorte dos nossos com-
panheiros, mortos em suas casas , e como elles , já não viveriam se
lá tivessem ficado, portanto a nossa sorte é boa em relação a d'el-
les, e que, se não lutassemos, senão lutarmos, o plano da legalidade
será executado . O exterminio de todos os chefes e chefetes,
tremendos castigos para pelo terror plantarem a obediencia incon-
dicional. Demais devem lembrar- se que o Rio - Grande é tido no
Brazil como a patria de um povo altivo e heroico, e que submetter-
se ao Sr. Castilhos levado ao poder pela traição do Sr. Bernardo
Vasques, o nome que lhe restará será o de cobardes para uns, e
de mercenarios para outros . Que d'esta luta sahirá a salvação do
nome rio -grandense já manchado. Se é um filho de outro estado ,
eu mostro -lhe como o brazileiro sempre foi cavalheiresco, empunhan-
do armas em defeza de outros povos, e ali não ia somente o sol-
dado de linha, muito pequeno é o exercito para uma guerra com o
estrangeiro, muito grande è para escravisar o Brasil a um hom-
mem como o Sr. Floriano Peixoto ; eram os voluntarios que iam
lutar, depois voltavam pobres ou mutilados a irem viver do trabalho.
Contava-lhes a historia de um homem que vi na cidade da
Barra do Rio- Grande, no sertão da Bahia.
,, Eu me achava ali de passagem uma vez que os habitantes
festejavam o dia 2 de Julho . Nomearam-me commandante dos ba-
talhões que deviam em procissões percorrer as ruas n'aquelle dia .
Acceitei tal nomeação e pedi que se me apresentassem todos os
commandantes de corporações para combinarmos. Apresen tou- se-me
como commandante do batalhão , de homens do rio, um pescador,
que todos os dias me vinha á porta vender peixe . Aconselhei-lhe
que levasse por armas do seu batalhão, os remos das canoas. No
dia da festa, quando já se achavam na minha casa os do meu es-
tado maior, e Fernando, um bom sertanejo , me havia trazido o me-
lhor cavallo da terra para montar, apresentou -se-me o pescador ves-
tido pobremente, mas trazendo no peito uma commenda da roza.
241

Fiz-lhe sentir que aquella commenda não sendo d'elle, era um ador-
no de pouco valor.
O homem sahio ás pressas e voltou trazendo - me sua fé de
officio . Lutára no Paraguay até o ponto de ser condecorado com aquel-
la alta commenda , sem saber ler e ali vivia da pesca como um outro
que nas mesmas con lições vendia lenha . Depois de ler a fé de offi-
cio apertei a mão d'aquelle sertanejo . Terminado o passeio civico
voltei para casa e ali encontrei um lauto banquete que as familias
do lugar tiveram a idéa de levar á minha casa, na minha ausencia.
Sentavamos à mesa, e ali se achava á minha espera toda a fidal-
guia da terra, predominando em numero os parentes do B. de Cote-
gipe, quando chegou o meu commandante do batalhão de homens
do rio. Fil-o sentar- se a meu lado, o que elle não queria acceitar ,
e o que parecia contrariar aos generosos cavalheiros que me ti-
nham preparado o banquete e me honravam ali na minha casa
de forasteiro .
Obriguei o meu homem a sentar- se e tomando um copo brin-
dei-o, narrando todos os seus actos de brazileiro, a honra da terra,
que elle salientára. Seus sacrificios pessoaes, sua abnegação ante o
altar da Patria . Meu brinde produziu o effeito desejado e todos
aquelles grandes homens da terra julgavam- se honrados ao lado do
pobre pescador. D'ahi em diante vinha-me peixe de que não se re-
cebia paga, e isto porem, não o prejudicou . ,,
Esta minha narrativa faz nascer o animo nos filhos do norte
que nos acompanham e elles commentam esses factos heroicos dos
tempos passados e dizem comsigo : Vale mais isso do que se ganhar
soldo hoje e amanhã estar sem dinheiro e precisando trabalhar para
viver.
Aos italianos eu narro a historia de Garibaldi, vindo à Ame-
rica lutar, pela liberdde , sem ambições, sem lucro. Cantando no violão
modinhas brasileiras, vencendo depois as maiores difficuldades.
Tido como salteador , bandido , depois indo ajudar a unificação
da Itatlia, esquecendo- se para salval-a , de que era republicano, mas
que só uma dynastia poderia salval- a.
Velho , já rheumatico, fugio de Caprera para ir nos Alpes lu-
tar pela França que se libertára do trahidor de Dezembro, do
negociador de Sedan.
Aqui perto está o Campo do meio onde com os seus , elle pas-
sou 9 mezes, e onde comeu até as caronas dos arreios.
Aos hespanhoes eu falo de Cid e narro-lhes o que li nas
tragedias e elles dizem ; tudo é verdade. Quasi chegam a dizer que
assistiram. Mas são valentes esses diabos dançadores.
O capitão Molina do 9. ° batalhão, era soldado do Carneiro na
Lapa.
Desertou e foi agarrado.
16
242

Foi condemnado á morte, mas Carneiro commutou a pena em pau.


Quasi mataram- n'o. Desertou segunda vez e no primeiro fogo foi fe-
rido . Julio Cezar me levou a extrahir-lhe a bala, e elle só me pe-
dia que curasse-o depressa porque quería ir brigar. Uma vez que
os hespanhoes estavam em desordem eu me apresentei para calmal-
os. Disse- me Molina : Querem brigar, não encontram inimigo, bri-
gam entre si . Foi Molina quem guardou o passo de Pelotas .
As minhas palestras, em marcha, animam os companheiros ;
e é por isso que ora estou na frente dos peregrinos , porque não
se pode julgar esta marcha de um corpo de exercito, ora no cen-
tro, ora na retaguarda .
Afinal tivemos de passar o Rio do Peixe, ultima caudal d'esta
vasta selva. O rio bastante cheio, e o dia chuvoso.
Um companheiro , cujo cavallo no nado não conseguiu alcan-
çar a margem, fóra de encontro a uma arvore, fraturando a perna .
Minha gente tinha-se perdido, vindo commigo o coronel José
Gomes. Passamos a noite n'uma cabana de indios, mas tão malfeita
que supportamos a chuva durante toda a noite. Ali já havia um
morador que tinha alguns porcos. Os nossos mataram alguns que
Gomercindo pagou , prohibindo que matassem mais, porque os donos
declaravam que nada tinham para comer senão aquelles porcos .
Apezar da fome a ordem foi obedecida . Pela manhã Alvaro Silveira
Martins me trouxe um pedaço de toucinho. Fizemos fogo e levamos
o toucinho as labaredas, não tinhamos sal, mas em compensação não
davamos tempo a que o toucinho assasse. Apenas aquecia, comia-
mos e nem só eu como José Gomes notamos, pela primeira vez, que
o toucinho cru e sem sal não é má comida pela manhã. Fui á casa
do morador pedir para preparar-me uma gallinha, o que fizeram ; cus-
tou- me porem, cinco mil- reis.
Approximamo- nos da sahida.
Gomercindo estava numa casa ; comia feijão quando eu che-
guei e ajudei- o. Tinhamos tido noticia de Prestes Guimarães. Dois
dias mais e estariamos no campo, porem as munições e ambulancias
tinham ficado na picada. Ali estavam muitos selvagens e o mo-
rador era uma especie de Cacique. Combinou com Gomerciudo que
os indios iriam buscar tudo na cabeça, pagando - se dois mil reis por
cada caixão de munição. Uma estrada que vai ter ao campo do meio
foi guardada , não se tendo porem noticia de Arthur Oscar. Suppomos
que elle seguiu pela estrada para se encorporar com Lima e nos espe-
rar. Segui um pouco e parei á espera dos meus ; a chuva torrencial
não os deixou procurar- me, e passei a noite exposto á chuva, mas o
estomago estava satisfeito. Os hespanhoes que acamparam perto de
mim, fizeram grandes fogueiras, e não tendo o que comer, nem onde
se abrigarem, passaram toda noute dansando e cantando .
Demoramos ali um dia á espera de munições , chegaram os
-P 243

primeiros caixões que foram destribuidos e no outro dia marchamos .


Ao meio dia cheguei a uma casa onde comprei alguns ovos e tou-
cinho, e fui eu mesmo para a cozinha, fazer um escaldado .
Apenas comecei o meu officio de cozinheiro, appareceram
capitão de Fragata Alexandrino de Alencar e dois officiaes, que
não tinham achado nem ovos, nem toucinho. Eu , muito serio , fingia
que não me havia agradado a visita, e elles tambem muito serios
mostravam se resolutos a não abandonarem a posição . Augmentei
agua na panella, e com bastante farinha tivemos um almoço ma-
gnifico.
--Qualquer que seja a posição que occupe um dia, disse Ale-
xandrino , não poderá negar que jà cozinhou para mim.
-Qualquer que seja a posição que occupe um dia , disse eu , não
poderá negar que já matei-lhe a fome.
Felizmente n'esta marcha , nunca uma desintelligencia nos pertu-
bou a harmonia que tanto suaviza o soffrimento commum.
A' tarde chegamos a casa do coronel Verissimo, cuja mãe es-
tava de luto pela morte de um filho no combate dos Tres Passos.
Ali encontramos gado que a gente d'elle trazia para nos en-
contrar. Augusto Amaral esperava me com um magnifico churrasco.
Comi com voracidade. Os que iam chegando iam atirando a carne
sobre as labaredas e a cinza, e apenas aquecia comiam ! ... Para
comprehender a impressão que causou-nos a sua vista seria preciso
lembrar que durante 40 dias não se comeu senão duas ou tres vezes,
á não ser pinhão e milho secco, e muitos durante este tempo só
tiveram alguns dias esse alimento, e quasi todos durante muitos, na-
da tiveram para comer.

Ha dois mezes, 22 de Junho, que caminhamos sem descanco, sem


allivio, quasi sem ver céo. Hojo sahimos nos campos do Passo Fun-
do. A chuva que nos perseguio nas duas leguas de picada que tive-
mos de percorrer pela manhã, cessou apenas sahimos no campo, e
um sol esplendido se apresentou, como quem dizia já que estaes
alegres, sahindo no campo onde podereis lutar, eu vos venho sau-
dar, martyres heroes dessa jornada phantastica ! venho enxugar os
vossos andrajos.
Gomercindo estava n'uma pequena casa para não consentir
que os que iam sahindo ali fossem encommodar os moradores, em-
quanto não chegava a policia que devia vigial-a. Dirigi-me para lá .
Apenas apeei-me e elle me viu, dissemo-nos ao mesmo tempo, como se
houveramos combinado :
- Um abraço, amigo.
E nos abraçamos. Eu disse-lhe Xenofonte narra um facto
244

que tornou-se classico na historia. E'a retirada dos dez mil . Mas
estes dez mil erão homens que abandonavam a Patria como merce-
narios, e batidos voltaram a ella .
A alegria d'elles ao avistar o mar da Patria, devia ser egua!
á nossa avistando o campo, mas elles tiveram apenas a retirada,
sem que o inimigo os perseguisse por muito tempo, vindo para
onde os seus os esperavam, offerecendo-lhes repouso. O illustre Tau-
ney, carra, uma pagina brilhante do antigo exercito brazileiro, sa-
hindo de Matto Grosso e indo ter á Laguna. Se aquelles abnegados
romperam as difficuldades do terreno, com tudo, o inimigo não os
perseguia e elles vinham para o seio da Patria, onde tudo lhes sor-
ria, onde todos se desvaneciam em ser-lhes agradaveis. Nós sahimos
da fronteira de S. Paulo, cercados de inimigos, chegamos ao Rio
Grande do Sul . Não viemos para nossas casas. Nenhum de nós sabe
o que é feito dos seus, quantos ainda vivem, quantos morreram ,
quantos foram assassinados e apenas chegamos onde deveriamos respi-
rar, sò ouvimos a voz de Preparem- se para brigar.
--- Sim, me disse elle, talvez amanhã mesmo tenhamos de
brigar. Mas aqui é campo, aqui podemos ver o que se passa em
torno de nós, aqui poderemos lutar até o triumpho.
-
Sim, disse- lhe eu, e esse triumpho, o tornará o primeiro
heroe da America do Sul, se essa retirada , quando for escripta , não
bastasse para sagral- o heroe !
E tu has de descrevel-a, Dourado !
Sim, se não morrer.

Durante o dia e a noite não cessou aquella bocca escura de


floresta de vomitar no campo , ora soldados, ora em grupos, os seus
peregrinos habitantes de durante dois mezes.
Cada qual procurava o corpo a que pertencia, e n'esse corpo
os companheiros de rancho. E então o vozear constante, a alegria
em todos, o praguejar dos italiamos e hespanhoes, os convites para
o assado gordo ; outros a offerecerem pinhão e abobora, ou milho ,
como escarneo, esquecidos , já na abastanza, de que aquelles poucos
e rudimentares alimentos lhes conservaram a vida ; lei natural no
homem, de esquecer-se sempre las pequenas cousas que sommadas
dão em resultado a vida que conservam, ou a posição que occupam,
formavam um concerto exquisito , mas animador para os que, pelo
habito, se alegram vendo-se livres dos perigos de hontem, sem se
preocuparem com os de amanhã.
Junto ao logar, onde sahimos no campo, ha uma canhada que
tomou o nome de Guamerim na revolução . Foi ali que uma força cas-
tilhista atacou uma pequena força de Verissimo, desarinada porque
245 -

as unicas armas que tinham erão porretes de guamirim , uma myrta-


cea, que assemelha - se muito a sua congenere, a guayubeira . O combate
foi renhido, e os revolucionarios triumpharam. Não escapou nenhum
castilhista. A força de Verissimo se armou, e junto de cada cadaver
deixou o porrete com que lutara, levando a arma de precisão com que
vinham matal-o para honra e gloria do grande humanitario homem
da republica, o moço Julio de Castilhos. Eu vi ali ainda aquelles
esqueletos, e perto os instrumentos de guerra d'aquelles rio- gran-
denses que sem paga , sem promessas , levaram os corpos nús contra
os fardas da legalidade, e n'um golpe de energia , disserão : Se sois
escravos, nós somos homens, e é por isso que irmãos , filhos da mes-
ma terra, nutridos pela mesma seiva, vivificados pelo mesmo ar, nós
desarmados vos vencemos, porque nós lutamos pela nossa dignida-
de, vos sois pagos para nos matar.
Não sei se na historia do heroismo, nos fastos da dignidade
humana, se registra ou registrará um egual a este, não é de heroes que
se deixam matar nas Thermopylas , não é de quem se envolvendo na
bandeira de sua nacionalidade para amortalhado nella sepultar- se
no fundo do oceano, mas na luta pelo direito , no sacrificio da vida,
para poder viver, lutar sem armas contra homens armados , e ven-
cel -os. Este facto teria muito ensinamento para aquelles que de posse
das armas que o povo paga para lavarem as affrontas que lancem
sobre a communhão, fazem d'ellas instrumentos para os gozos pessoaes
dos que sobre- vivem, porque os que morrem, e são muitos, não en-
tram no inventario dos despojos opimos da propria Patria , de que
elles se dizem defensores, e os que ali vão , desvirtuando por indi-
viduos o nobre mister a que parece que se dedicaram , não podem
contar se voltarão ou não .

No outro dia mudamos apenas de acampamento , á espera dos


que ainda não haviam apparecido . Ainda uma vez, combinando com os
coroneis do exercito, em sua maioria, pensei em pedirmos o trata-
mento de general para Apparicio .
Gomercindo soube e veio a mim pedir que tal não fizesse.
E' um tributo de gratidão nossa, disse- lhe eu.
Sim, eu sei, mas é uma excepção que desgotará alguem, e de
vemos fugir de tudo quanto para nós trouxer um desgosto. .

Nossa estada ali não era conveniente. Deviamos nos apressar


a encorporarmo-nos com Prestes Guimarães, porque os nossos pi-
quetes annunciavam a proximidade de Arthur Oscar que tinha
246 -

mandado um piquete a uma picada meia legua distante do nosso


acampamento, e tendo voltado esse piquete provavelmente elle sahi-
ria no campo pela estrada do Matto Castelhano ; convinha por tan-
to acharmo-nos em frente delle. Durante este tempo os nossos iriam
sahindo , e ali deixavamos carretas para conduzir as munições que
trouxessem os bugres.
Gomercindo sempre previdente, esperando que o inimigo sa-
bendo do nosso estado de fraqueza pela longa marcha,
e pela mizeria, procuraria uma occasião para nos derrotar, fez uma
ordem do dia, ordenando a marcha em ordem de batalha. As baga-
gens, e tudo que não fosse utilisado immediatamente em caso de
ataque, marchariam no flanco direito. A vanguarda seria feita pela
brigada de Torquato, as infantarias ao mando de Apparicio e Pa-
him seguiriam depois, e Augusto Amaral faria a retaguarda com
sua cavallaria, e os outros diversos corpos d'esta arma.
Ao despontar do dia marchamos . Um dia frio, os campos bran-
queando de geada. Todos porem iam alegres. Os clarins tocavam
marchas guerreiras.
Vendo- nos assim, ao sahir do sol marchando resolutos, um pin-
tor teria um excellente motivo para um quadro da resurreição.
Apparicio estava radiante, passando por mim quando se ia
collocar em frente de sua columna, me disse alegre até o riso :
Agora sim, amigo. Cavallaria, na frente, infantarias no centro
cavallaria na retaguarda. Que venham, e vamos ver se somos
ou não os mesmos homens.
A' tarde d'esse dia, 24 , os nossos piquetes de exploração já se
falavam com os de Prestes Guimarães, e em pouco avistamos os
acampamentos delle, com as bandeirolas das lanças e os seus estan-
dartes vermelhos como sangue.
Gomercindo foi immediatamente ao encontro d'elle e eu se-
gui para dar um abraço no grande rio-grandense e ver os seus
bravos companheiros . Cheguei justamente quando acabando de abra-
çar Gomercindo, elle perguntou- lhe por mim.
- Vem ahi, disse Gomercindo.
-
Estou aqui, respondi eu.
E fomos um para o outro para nos abraçar. Um abraço difficil
porque minha mula cançada não avançava e o cavallo de Prestes
talvez nunca tendo visto um guerreiro montado em mula, inquieta-
va-se. Seguimos para a barraca d'elle. Ali encontrei muitos conheci-
dos pessoaes, e muitos que eu já conhecia de nome pelos seus actos
de bravura.
Entre elles estava o major Leonel, o valente rapaz que fora
como emissario á Ponta Grossa.
Entramos para a barraca e a multidão se agglomerou na porta,
e cada vez tornava- se mais compacta . Queriam ver Gomercindo, o
247 ---

genio da guerra, saber se era o mesmo, que muitos conheceram an-


tes, se seus feitos não o tinham mudado de forma , outros me apon-
tavam .
Ter ido ao Paraná e voltado, era um feito que a imaginação
torna phantastico, principalmente se essa imaginação é de homens
destemidos , de heroes acostumados ao soffrimento, que podem calcu-
lar e aquilatar os soffrimentos alheios. Urgia que os chefes conferen-
ciassem e cada vez augmentava o numero dos que nos observavam .
Então dispuz-me a sahir e Prestes convidou-me para pernoitar em
sua barraca. Eu disse-lhe :
Não. Vocês precisam ficar a sós e nós, amigos, disse eu diri-
gindo me aos que ali estavam, vamas tratar de preparar-nos porque
agora precisamos ver quem ama mais esta terra. Se os que cá fi-
caram sempre lutando , se os que voltam de longe para lutar ainda.
Todos, todos, responderam eiles, e se dispersaram .

**

No outro dia marchamos cedo para Passo Fundo, acampando


um pouco áquem da cidade.
Fui á cidade visitar a familia Loureiro , cujo chefe acha-se
emigrado muito antes do começo da revolução e de quem ella não
sabe noticias . Ali tomei café para satisfazer a minha vesania de
quasi dois mezes .
Na cidade nada se achou para comprar. Phosphoros mesmo
encontrei um pacote com difficuldade, uma familia porem deu-me
alguns biscoitos e queijo .
Estava ainda eu ali, quando chegou Gomercindo apressado
com o coronel Lavrador. Iam verificar se o inimigo andava por
ali, porque constava terem visto um piquete , sem poder reconhecel- o.
Voltaram não tendo visto nada. No outro dia marchamos . Eu
achava me na cidade em casa da familia de um companheiro quan-
do as nossas forças desfillaram . Comquanto não houvesse aliˇuma
familia que não tivesse uma pessoa nas forças de Prestes, familias
companheiras, e a marcha d'elles causasse apprehensões até ás la-
grimas, comtudo ao passarem os maltrapilhos vindos do norte , aos
sons da musica, todas aquellas lagrimas cessaram, para succeder nas
physionomias a expressão de enthusiasmo.
- São uns heroes , disse - me uma respeitavel senhora.
- E revolução que conta com gente d'esta natureza , ou trium-
pha ou não se termina senão com a morte do ultimo, respondi-lhe
eu e despedi-me, para occupar o meu lugar na columna.
Perto da cidade do Passo Fundo ha uma pequena capella de-
dicada á S. Miguel. A columna serrana de Prestes, de mil e tantos
homens , passando por ali, quasi toda, foi beijar aquelle santo .
248 -

Chegando perto para saber qual era o padroeiro , respondeu


me um serrano :
- "Este santo é nosso companheiro , coronel. Não vê ? Tem uma
espada e uma balança para pezar os crimes dos pexatos. Nós não
marchamos para brigar sem entrarmos aqui para elle nos ver. 99
Quando passamos o arroio, e eu procurava o logar onde estava o
meu acampamento, um rapazinho, uma creança das forças do coro-
nel Verissimo me disse : Isto aqui é nossa cancha, coronel, foi aqui
que nós demos - lhes uma tunda que até hoje elles se lembram .
Foi o combate do. Umbù , porque tal é a denominação do sitio.
Realmente, em toda a costa onde nós acampamos haviam ossos huma-
nos. E esses ossos são de brazileiros, mortos por brazileiros ! ...
Se perguntarem aos nossos porque matam, elles responderão :
Para não morrer, ou porque mataram os meus ; mas se perguntar- se
a elles porque nos matam elles dirão : E' pela legalidade e por ordem
do chefe Julio de Castilhos.
Passamos o dia sem inquietação. Um piquete tomou um reba-
nho de gado dos castilhistas que vinha do lado do norte. Parece
que o general Lima pretendia atacar as forças de Prestes Guima-
rães, mas sentindo a nossa approximação modificou o seu plano. Alem
disso , elle já deve saber da aproximação das forças de Arthur Os-
car, que se acham no Matto Castelhano, d'aqui a tres leguas. Go-
mercindo inquieto, receia que uma das forças só se approxime de
nós quando a outra esteja proxima e não podemos procural-os por-
que nem só as nos as munições ainda não chegaram, como falta- nos
grande numero de companheiros, que ainda estão na picada e a
força de Prestes é quasi toda armada só de lanças, o que requer
escolha de campo para operar a cavallaria, difficil aqui, n'esse terre-
no cheio de sangas e banhados .
O guerreiro torna-se um pouco supersticioso . O appareci-
mento de cobras no acampamento , o que é muito natural pelo gran-
de numero de fogos, o relinchar dos cavallos, indicam-lhes proxi-
midade de combate. Alguns levam a superstição até em prognosticar
o resultado da batalha, conforme a direcção que leva a cobra quan-
do elle a vê. Outros não consentem que se mate uma cobra,
é mao agouro.
Aqui no acampamento do Umbú, tem apparecido muitas co-
bras, e os cavallos têm relinchado muito, talvez por ouvirem a musica
do batalhão de Jorge Cavalcanti que fez exercicio durante a tarde .

**

Na manhã do dia 27 de Junho ninguem se movia, como na


eminecia de uma grande batalha , certamente a mais sangrenta
desta cruel guerra entre irmãos. Acabavam de chegar alguns compa-
249 --

nbeiros e uma carreta com alguns cunhetes de munição . Gomercindo


havia ido ao acampamento de Prestes Guimarães, cuja columna
dava os piquetes para o serviço d'aquelle dia. Eu montei a cavallo
para ir á barraca do coronel Brazil, que era no alto junto da de
Gomercindo e apenas cheguei avistei - o ao longe correndo a todo
galope para nós, e apenas chegou ao alcance da voz gritou : O cla-
rim que toque apromptar depressa. Dei a ordem e immediatamente
todos os clarins deram signal de apromptar accelerado. Gomercindo
chegou onde estavamos e disse : Vamos brigar, os bichos ahi vêm ,
já um piquete tiroteou com elles. E voltando - se para mim perguntou :
--- Que dia é hoje ?
- Quarta feira, respondi .
Mau dia, disse elle, não me agradam as quartas feiras , são
aziagas para mim.
---
Em compensação estamos a 27 , que é data feliz para nós .
Jararaca, Serro do Ouro, Itaquy.
Bem, disse elle, pode ser que a data compense o dia.
N'isto chegavam os seus ajudantes e elle começou a dar or
dens e os corpos começaram a subir para a cochilha.
Eu estava com elle quando chegou a columna de Prestes
Guimarães. A' nossa direita havia um arroio marginado de matto
serrado. Gomercindo falou a Prestes para mandar un corpo atra
vessal- o para privar o inimigo de se approximar por ali, mas para
isso seria preciso caminhar uma legua para traz, unico logar onde
havia um passo. Bem, disse Gomercindo , então mande um corpo
collocar-se em linha de atiradores aqui para não deixal- os procurar
o passo .
Tendo chegado as forças, elle mandou deitar fogo n'um
ponto para o inimigo não ver a manobra de nossas forças, mas en-
tenderam tão mal a ortem, que em vez de lançarem o fogo do lado
direito da estrada somente, porque iam marchar as forças pelo lado
esquerdo, lançaram em ambos os lados, de modo que em pouco, nem
só o fogo como a fumaça nos encommodava
Eu colloquei-me ali para ver desfilar as forças. Nunca as vi
marchar para o combate com tanta alegria.
Pareciam collegiaes que correm para o recreio.
Os que iam chegando, mal tinham tempo de pedir, a algum
enfermo, a arma e já se collocavam nas linhas. Todos elles ao pas-
sarem por mim, erguiam vivas que en correspondia e retribuia.
Apparicio, brincava com o cavallo dando vivas que a sua in-
fantaria respondia com enthusiasmo .
Torquato Severo, o calmo e silenciozo Torquato, que por falta
de cavallos transformára todos os seus lanceiros em atiradores ao.
passar por mim ergueu vivas que eu retribui vivando a elle e aos seus.
Jorge Cavalcanti marchiava alegre, depois de ter discursado
250

em frente do seu batalhão. Foram os ultimos vivas que ouvi. Em


pouco aquelles heroes semi-nus, sumiram se no meio da fumaça. Os
bagageiros e as mulheres, vieram para cima da cochilha, eu porem ,
ordenei-lhes que fossem para uma canhada, porque em pouco o ini-
migo deveria estar atirando do lado opposto, porque eu via galopar
os vedetas em todas as direcções.
Não tardou em chegarem feridos. Nada tinhamos para cural-
os, recorri ás mulheres e ellas deram-me nem só fazendas brancas
que tinham, como alguma roupa branca, e eu encarreguei- as de faze.
rem ataduras. Já Apparicio tinha perdido um cavallo, e o seu aju-
dante major Pietro tinha morrido a seu lado.
Comtudo, recebemos ordem de avançar
Alguns se alegraram, julgando que o inimigo batia em reti-
rada. - Não se alegrem. Elles têm artilharia e ella ainda não traba-
lhou, portanto elles nos chamam para terreno apropriado, disse eu .
Realmente quem havia retirado, era a vanguarda, que deixava no
campo un major . Iamos marchando quando ouvi o primeiro tiro de
canhão. Presente d'isse eu, já vamos ! Este dito provocou ditos chis-
tosos dos que marchavam commigo.
Nossas forças não estavam completas. A brigada de Appari-
cio que era de 530 homens, só tinha ali 300. Torquato teria quan-
do muito 200. Pahim 150. O batalhão do coronel Jesus e polacos 150 .
Teriamos portanto no maximo 700 atiradores, e as munições
poucas. As forças de Prestes Guimarães quasi todas de lanceiros
poderia ter 800 homens promptos para combate. Com a nossa appro-
ximação cessou a artilharia.
A infantaria ao mando do jovem Antonio Nunes, ao subir a
cochilha avistou uma pequena columna. Na mesma occasião che-
gava Gomercindo, e Nunes perguntou -lhe senão seria conveniente
fazer fogo sobre elles ; Gomercindo mandou que fizesse pontaria se-
gura e calma porque temos poucas munições. Foram disparados os
cinco tiros de um estojo de Manlicher pela linha. Quando se desfez o
fumo a força tinha desaparecido, mas ficaram tantos mortos e feridos
que Pedro Amaral que vinha commandando uma guerrilha, mudou
de caminho julgando ver ali uma força deitada na macega. Só mais ,
tarde notou-se que a immobilidade d'elles era para sempre. Depois
disso surgiu na cochilha a força inimiga formando tres quadrados ;
calculamos estes quadrados em mil homens cada um.
As nossas forças ficaram dispostas do seguinte modo :
Torquato Severo á direita, Apparicio e Augusto Amaral no
centro, Pahim à esquerda . Préstes Guimarães flanqueava-os pela di-
reita procurando logar e esperando ordem para carregar.
Inconveniente horrivel para forças sem cavallaria, que sendo
ameaçadas de carga conservam - se sempre em quadrados onde a fu-
zilaria faz destroços horriveis Durante tres horas seguidas a nossa
251

infantaria fazia moverem-se aquelles quadrados que apresentavam


claros visiveis, porem que immediatamente eram fechados . Os offi-
ciaes inimigos mostravam uma bravura digna de brazileiros , senão
fossem instrumentos de um poder tão tyranno, de uma causa tão ne-
fanda ; corriam de um lado para o outro, de espada desembainhada
ordenando e organisando os quadrados e a chuva de balas que ca-
hia sobre elles não lhes alterava a marcha nem a compustura. Es-
sas vidas, que a Patria tanto afagaria para os seus dias de luta
guerras a favor dos
honrosa, ali se expunham na mais cruel das
oppressores, contra os opprimidos.
Poucos, e de pouca gravidade foram os feridos que tinham
vindo para a canhada onde me achava, junto á carreta de muni-
ção. Ali se achavan agglomeradas as mulheres e as pessoas inuteis ,
mas as balas caliam em grande quantidade, por isso ordenei -lhes
que se retirassem.

Em vista das nossas condições, Gomercindo conferenciara


com Prestes e combinaram um ataque simultaneo de infantaria e
cavallaria. A infantaria marcharia sobre os quadrados inimigos,
obrigando-os a se desdobrarem em linhas de batalha e a cavallaria
cahiria sobre ellas, cujo desbarato seria immediato. Esse plano ou-
sado de um recurso extremo, era exigido pela certeza da approxi-
mação das forças de Arthur Oscar, que, desde às 10 horas da ma-
nhã, deviam ouvir as descargas, achando- se a quatro leguas de
distancia, e portanto pondo-se logo em marcha não tardariam em
atacar- nos a retaguarda. Depois dissera a Torquato Severo o que
iamos fazer, cuja gente enthuziasmada ardia em desejo para atacar,
e recebera a noticia com gritos de alegria, veio Gomercindo para a
coxilha onde se achava Apparicio , já impaciente.

*
**

O dia declinava, nossas munições escaseavam. Arthur Oscar


poderia estar perto , e o inimigo continuava firme. Gomercindo man-
dou a Prestes Guimarães para que ordenasse carga, e os valentes
serranos marcharam para isso .
Mas um profundo vallado privou-os de mostrar a bravura que
tantas vezes provaram, ali . O fogo no campo occultava completamen-
te o inimigo, a ponto de elles irem alem, mas ali era matto cerrado
servindo-lhe de retaguarda . Gomercindo veio e disse a Nunes : Ar-
thur Oscar deve estar perto. Ou rompemos estes quadrados, ou esta-
mos mal . E' preciso carregar, ao que Nunes respondeu : Carreguemos.
Gomercindo mandou tocar signal de chefe e sentido. A infan-
taria apezar do toque de sentido , conservou- se deitada, ao que Nu-
252

nes disse-lhes : Não ouviram toque de sentido ? levantem-se e va-


mos atacar. Guardadas as proporções, a phrase de Wellington em Wa-
terloo , quando a cavallaria de Ney avançava : ,, Levantai- vos, guardas,
e preparai ,,, não tem mais valor do que estas palavras do jovem bra-
zileiro.
Ao ouvir o signal de carga eu corri para a cochilha e ali vi
o espectaculo mais lugubremente grandioso que só a presença, e a
vista podem dar idéa. Nossas forças marchavam calmas , methodicas
contra os quadrados, como somnambulos que não vem o abysmo para
onde se dirigem .
Dos quadrados sahia um fogo continuo de fuzis e metralhadoras
e os nossos caminhavam com a impavidez das ondas que vem do
mar para se despedaçarem nos rochedos, que immoveis as esperam.
Alguns feridos fizeram- me voltar a meu posto, entre elles Nunes
com uma bala que atravessou- lhe a garganta perdendo o uzo da
palavra. Appliquei- lhe com urgencia um apparelho e elle ainda vol-
tou para commandar por meio de acenos. Depois chegou Alvaro
Silveira Martins com um ferimento no pé, depois Mello de Rezende,
mortalmente ferido.
Estava- o curando quando a carreta começou a marchar por ter
visto passar a cavallaria em retirada desordenada.
Mandei collocar os feridos que não podiam marchar a cavallo ,
na carreta e subi para a cochilha. O combate tornára-se medonho.
Em frente de dois quadrados havia um profundo vallo que
privou a marcha dos nossos ; á esquerda porem, podia se marchar e
os que se achavam naquella posição seguiram. O 3º. quadrado ini-
migo se desdobrando veio sobre os nossos e a luta se travou á faca
e coice de armas, pelos nossos que não tinham sabres, e a sabres
pelo inimigo ; e essa columna perseguindo os nossos envolveria as forças
de Apparicio e Torquato, se Gomercindo que ali chegára não tives-
se uma das suas inspirações guerreiras, mandando tocar carga e
avançando com o seu estado maior, obrigando o inimigo a formar ,
de novo, em quadrado.
Nessa carga cahio fulminado por uma bala na cabeça e outra
no peito o meu amigo Pereira Pinto, e mais dois officiaes .
Emquanto se procurava organisar uma retirada em ordem,
a cavallaria que não tinha podido operar e que tinha tido tres mor-
tos, e muitos feridos, retirava- se em desordem. Colloquei- me ali e
convidei aos que passavam a formarem uma linha cominigo, porque
os companheiros ainda estavam brigando, e a nossa presença ali
conteria o inimigo sempre em quadrado. Nesta occasião uma gra-
nada que veio explodir junto de nós, e as balas que sibilavam por
nossos ouvidos, desfez a minha linha. Tratei de formar outra, e
passando por mim o general França, pedi-lhe que contivesse os que
iam adiante. Uma outra granada que nos matou um homem, desfez
253

de novo o que eu havia feito. Corri para organisal- os mais adian-


te. Ali estava Prestes Guimarães, que, já rouco, pediu-me para
ajudal- o a organisal - os naquelle ponto. Nisto porem, chegou Gomer-
cindo que mandou que seguissem um pouco mais para se estende-
rem na cochilha proxima, e voltando- se para mim, disse : Apparicio
está ferido, vae vel- o.
Voltei em procura de Apparicio. A fuzilaria inimiga continua-
va, e a artilharia tambem.
Ao chegar mais perto ouvi musica . Julguei que fosse do ini-
migo. Felizmente não era. Era Jorge Cavalcanti que em cima da
cochilha fazia tocar a banda de seu batalhão para reunir os com-
panheiros dispersos . Sabendo que Apparicio jà tinha seguido vol-
tei, indo alcançal - o já fóra da zona das balas. Ali mesmo examinei
a ferida. Por felicidade a bala resvalou por uma costella e foi se
collocar no lombo . Appliquei-lhe um apparelho e fui falar a Gomer-
cindo que esperava-me n'uma anciedade cruel . - Não ha perigo, dis-
se- lhe eu, a ferida é encommodativa, mas não tem gravidade. Ali
mesmo cuidei de outros feridos, e ao passar pelo acampamento de Go-
mercindo em procura do logar onde tinha mandado reunir os feri-
dos, este pediu ao coronel Lavrador para vir saber de mim se era
grave ou não a ferida de Apparicio. Respondi a Lavrador que po-
dia tranquillizal- o , porque a ferida não tinha gravidade.
Se o dia tinha sido todo de trabalho para mim, a noite não
o foi menos .
Quarenta e tantos feridos esperavam-me para cural- os, com os
poucos elementos de que dispunha.
Felizmente o coronel José Gomes e tenente Ribeiro, meus en-
fermeiros, ajudaram me n'essa triste missão.
Pouco depois veio Gomercindo procurar-me a titulo de saber
onde estava Prestes Guimarães, para combinar o que se devia fa
zer, mas ainda uma vez perguntou-me se era grave o ferimen-
to de Apparicio . Respondi-lhe que não, que elle sabia quanto eu
estimo Apparicio em quem vejo um dos maiores elementos da re-
volução, e se julgasse grave o estado d'elle, o teria feito vir para
perto de mim .
A's 11 horas da noite ainda trabalhavamos quando de
novo appareceu Gomercindo. Veio dizer-me que vinha preparar
lugar nas carretas para Apparicio e que tinha resolvido que segui-
riamos para a Soledade. Julgava que a força de Lima não tivesse
ficado onde a deixamos,
deixamos , porque o corpo de Verissimo, que ficára
em frente do campo de batalha, não descobria fogos de acampamen
to . Elle julgava que as forças de Lima deviam ter tido mais de
mil homens fora de combate. Atacal- os no outro dia em terreno
melhor poderia dar-nos uma victo : ia completa, porem Arthur Oscar
poderia chegar, e os nossos feridos seriam victimas, portanto deve-
254 --

riamos marchar de madrugada afim de passar o rio, e irmos alem


do Veado Pardo, onde sahe uma estrada que vem do Campo do Meio,
e por onde Arthur Oscar poderia ter seguido, para nos flanquear.
A's tres horas puzemo-nos em marcha ; eu portanto e os meus au-
xiliares não tinhamos nem comido, nem dormido durante todo o dia
da batalha e toda a noute que seguiu - se a ella. Uma viagem triste .
Os feridos amontoados nas carretas, sem coberturas, sem se pode-
rem mover. Gemidos e lamentos, e um frio intenso que cobria o
campo de geada . Os caminhos máos, a noute escura , as carretas
dando saltos, e em cada salto os gritos dolorosos dos infelizes com-
panheiros ; arroios e lageados, onde cahiam os cavallos escorregan-
do nas pedras. E assim marchamos até á tarde sem parar para vencer-
mos aquella distancia perigosa . Alguns morreram durante a marcha.
A' tarde finalmente podemos acampar, mas apenas eu dispu-
nha-me a apeiar, fui chamado para ir ao acampamento da brigada
de Apparicio , onde havia muitos feridos que não tinham sido cu-
rados. Estavam a meia legua de distancia. Quando terminei o tra-
balho eram 9 horas da noute.

A's tres da madrugada marchamos. Quando nos acampamos


ás 11 horas, tive de seguir para a divisão de Prestes Guimarães,
para ver os feridos d'ella, extrahir balas, reduzir fracturas . A's tres
marchamos ; no acampamento de Torquato Severo tive de apeiar-me
para operar alguns, e indicar o tratamento dos outros . Felizmente o
capitão Pedro Severo, irmão de Torquato, moço intelligente e cui-
dadoso, cuidava dos feridos como um enfermeiro de primeira ordem.
Nesse dia, pela manhã , passamos no campo de batalha onde
Prestes derrotara as forças de Lima, nos Tres Passos .
Os mortos que elles sepultaram ás pressas estavam todos ex-
postos . Contamos oitenta e tantos , na beira da estrada.
Um d'esses infelizes fôra sepultado vivo, porque depois ven-
cendo a grossa camada de terra que o cobria, morrera agarrando-
se ás raizes proximas sem conseguir arrancar-se da valla.
Dizem que elles , os da legalidade, matam os estropeados que a
negam á marcha, e os feridos. Nunca dei credito á tanta deshu-
manidade, mas este cadaver, cuja posição muitos verificaram, deixou-
nos o espirito muito inclinado a crer ser verdade o que se diz .
No logar denominado Tope, recebemos communicações do coro-
nel Verissimo que continúa no Passo Fundo, tendo sepultado os nos-
sos mortos. Elle calcula o numero de cadaveres deixados pelo ini-
migo em oitocentos, não podendo saber ao certo, porque muitos es-
tavam confundidos com os nossos. As nossas perdas, incluindo os
polacos que nos faltam, montam a 214. Temos porem cinco feridos
que não poderão viver.
255 -

Na Soledade demoramos dois dias, onde não só compramos


peças de chita para ataduras , por não haver fazenda branca, como
alguns medicamentos. D'ali viemos para o Campo Comprido onde
estamos, para poder cuidar dos feridos.

Estamos a duas leguas distantes de Jacuhy, em caminho de


Sta. Maria da Bocca do Monte, e perto da zona colonial que vai até
á Estrella. Dois dias antes, Gomercindo tinha mandado, para as
Quatro Leguas reducto de companheiros nossos onde a maior parte
das familias dos federaes tinham-se abrigado , alguns feridos que
não poderiam marchar em caso de perigo. Esta ordem causou pro-
funda sensação. Era a primeira vez que abandonavamos companhei-
ros feridos no territorio do Sr. Julio de Castilhos . Os amigos ou
parentes viam n'isso uma deshumanidade. Alguns feridos pediam
que os matassem antes a deixal - os para serem mutilados pelos homens
da legalidade Eu procurei convencel- os.
As Quatro Leguas é terreno dentro da serra, só com duas
entradas. Ali vive o bom companheiro coronel Baptista, á frente de
quatrocentos cavalleiros que zelam pela vida de todos os que, não
podendo tomar armas, se foram asylar sob á guarda d'aquelles va-
lentes que só abandonarão a defeza d'elles com a vida. Baptista fez
recolher bastante gado e generos para o caso de sitio.
Elle mesmo mandou um piquete buscar os feridos.
Afinal alguns resolveram ir. Não foi sem dôr que vimos as
despedidas, de amigos e parentes, que na luta em que nos achamos ,
não é outra senão Adeus. Este adeus é quasi o mesmo que dizer :
Nunca mais nos veremos, porque os que marcham só vêem diante de
si a morte, os que ficam esperam-n'a a todo momento.
Gomercindo em pranto disse ao official que os levava quando
os viu partir : Diga ao coronel que faça tudo por elles e dé - lhes
tudo quo elles precisarem, que se eu não morrer pagarei.
Já em marcha, junto á bifurcação do caminho tornou a dizer :
Diga-lhe que se eu não morrer, ihe pagarei.
Esta phrase repetida por Gomercindo, que eu nunca ouvira
falar em morte, me impressionou ; superstição de guereiro.

**

Aqui, no Campo Comprido, temos podido cuidar dos enfermos,


apezar, dos poucos recursos ; em compensação ha bastante gado, e
algumas casas de negocio onde se encontra café, assucar e tabaco.
Na casa de um companheiro, dono de uma serraria encontrei uma
pequena botica onde pude fornecer-me de alguns medicamentos , que
já faziam falta imprescindivel, porque Alvaro que veio para junto de
mim, com um ferimento gravissimo no pé, gemeu a noite inteira.
256

Amputar-lhe é impossivel para marchar em carretas sem uma uni-


ca condição hygienica, e sem esses medicamentos ser- lhe-hia impossivel
resistir.
O Tenente coronel Mello de Rezende, um dos mais bravos
companheiros que tinhamos, morreu devido ao ferimento ; Apparicio
porem, vai bem , já tendo vindo à minha barraca a pé ; está portanto
prompto para marchar a cavallo.
Umas das maiores provas de dedicação dos nossos uns para os
outros é no transporte dos feridos.
Raro è o corpo em que não se conduza um ou dois feridos
em padiola, se o ferimento não o permitte soffrer os baques das car-
retas, de modo que alem das marchas prolongadas, alem do serviço
de guerra, são ainda esses abnegados os transportadores de seus
companheiros.

As noticias que nos vem aqui é que Pina se acha na Mar-


gem, e que Salgado está na fronteira com um corpo de exercito.
Comquanto a descrença já se tenha apoderado de nós, e não con-
temos senão com o nosso esforço, comtudo estas noticias nos agradam .
Temos jornaes de Porto Alegre onde vem a noticia do com-
bate do Passo Fundo . Achamos graça no telegramma do general
Lima dizendo que nos iria atacar no nosso esconderijo. Ora, sahir
ao campo, marchar de dia, acampar nas cochilhas, tocar muzica an-
dar de um lado para outro sem ver inimigo , e afinal atacar, vel- o
fugir até onde se embuscavam com artilharia , no meio de sangas e
vallados, onde a cavallaria não poderia atacar, e apezar disso resistir
sempre em quadrados dando logar á grande mortandade dos seus,
é ser atacado no esconderijo .
Decididamente era o caso de perguntar a esse velho valinte,
o que lucra em ser mentiroso .
Um ajudante de Gomercindo tinha uns arreios prateados com
as iniciaes G. S. Emprestou o cavallo a um ferido, e elle não sei
como abandonou o cavallo . Levaram os arreios e creio que fizeram
exposição d'elle .
Nunca nenhum Gregorio Souza pensou que os arreios de um
simples alferes, merecessem taes honras. Os taes valintes que só fa-
zem guerra de lingua e fogos de bengala quan lo tem noticia da
morte de muitos brazileiros, serão capazes de não passarem senão
armados de carabina, espada, revolver e punhal pela porta onde es-
tão os arreios . Pues, senõres, queden- se Uds tranquilos. Los recaus non
son los de Gomercindo.
Uma boa pilheria aconteceu tambem ali ao capitão Soa es,
ajudante de Pahim.
-- 257

Fez um prisioneiro, um rapazinho. Estava cançado e assusta-


do. Penalisado por ver o medo do pobre , tomou -o para seu assisten-
te, animou-o, mostrou-lhe como não somos ferozes, como por lá ; e
para mostrar quanto se interessava por elle, coitadinho, deu-lhe o
cavallo para montar e mandou-o ir para a retaguarda, e o prisio-
neiro fugio levando cavallo , arreios e ponche de Soares que teve de
marchar a pé e com frio . Crueldade de maragato.
Se n'esses jornaes vem esses nadas da vaidade humana vinha
tambem uma phrase bem deponente para a humanidade no Brazil ,
neste fim de seculo, se a humanidade podesse ser julgada pelos
monstros moraes que surgiram com o Sr. Julio de Castilhos..
Ja sabemos a terrivel carnificina do Passo Fundo, e elles mes-
mos que nunca dizem ter perdido gente em combate, chegaram a con-
fessar que o campo ficára juncado de cadaveres. Pois a parte official
do Sr. Pinheiro Machado para o Sr. Moura , ministro da guerra da
nação brazileira, ás ordens do Sr. Julio de Castilhos, começa assim :
„ Depois de um churrasco "... e narra então aquella tremenda luta.
Mais tarde, quando o Sr. Pinheiro Machado pensar quantas
desgraças acabrunharam o Rio Grande, pela insania do Sr. Julio
de Castilhos, terá repugnancia de si mesmo.

Na nossa marcha para aqui, tive occasião de ver o tal monge.


Elle soubera da eminencia da batalha e veio para assistil- a ; chegou
tarde, porem. Tem uma bandeira branca com a figura de uma pom-
ba vermelha no centro.
Em um dos combates que tiveram elle se achou, dizem, com
sua bandeira e isto sò bastou para que os nossos lutassem até ven-
cer, quasi sem armas.
Esse povo serrano é fanatico. Uma questão de religião poderia
produzir aqui lutas extraordinarias, e o que é mais notavel é que
os padres gosam de pouca sympathia, devido a serem todos extran-
geiros , que fazem do sacerdocio uma profissão lucrativa, todos
elles são negociantes.
No Itaquy vi o vigario, no balcão, vendendo . Creio que é ita-
liano.
O monge é moço ainda, figura sympathica ascetica. Onde elle
passa acompanham-n'o descobertos . Veio falar- me, conversamos pou-
co, porque estava eu muito occupado no curativo dos feridos e por
ser já tarde.
Elle pediu-me para deixar tocar a sua bandeira nos
feridos ao que accedi de boa vontade.
Disse-lhe que sabia que elle advogava a nossa causa, e que
ja se tinha encontrado no lugar onde se brigava, e por isso agra-
17
258

decia-lhe . Elle respondeu-me que não era por nós, mas pela justiça, e
Deus manda que se soffra com os que soffrem.
Quando proclamaram a republica elle annunciava por onde
passava grandes calamidades, e que para preservarem-se d'ella plan-
tassem cruzes nas portas. Que haviam de matar e roubar, porque
todos estes teriam em si o diabo. Depois, esses crimes trariam uma
guerra cruel, sem quartel. Que os animados pelo diabo teriam for-
ças e dinheiro, mas que os outros venceriam, mesmo sem armas.
Ora, tudo isso deu-se e o pobre visionario tornou - se propheta
para aquella gente que vive sempre animada na esperança de ven-
cer, porque elle disse que Deus assim o quer.
As cruzes porem, em muitas casas, não privaram a entrada
dos possuidos do diabo, porque, lá estão ellas em pè onde as casas
são ruinas e onde os esqueletos mostram que os assassinados não
tiveram quem ao menos os sepultassem ali junto d'aquella cruz , em-
blema do triumpho do homem sobre os crimes, antes da moderna
civilisação.
Um outro homem, que me chamou a attenção tambem, foi um
allemão das colonias de Santa Cruz, o coronel Altinoble. Tinha vin-
do encontrar-se comnosco no Passo Fundo com o fim de obter mu-
nições para suas lutas na , Estrella, onde mais de uma vez tinha
tido combates renhidos .
Esteve na batalha do Passo Fundo,, conservando-se sempre
onde o fogo era mais vivo, com a calma de quem observa. Ouvia
falar como brigava a gente de Gomercindo, não acreditava e por
isso foi ver, ficando convencido , disse elle, que o que se dizia nada
era em vista do que elle viu . Não podendo obter munições man-
dou reunir todos as capsulas de cartuchos inutilisados para ir pre-
parar novas para brigar por lá.
*
**

Não temos noticias de força nenhuma nossa, na campanha ; es-


tamos portanto sós.
As forças de Prestes tem diminuido porque os serranos não
querem abandonar os pagos .
Aqui é que elles tem brigado , aqui é que querem brigar. A
idéa de ir para a campanha lhes desagrada e por isso desertam
para se irem encorporar com os que ficam.
O rio Jacuhy está guardado por uma força castilhista na mar-
gem direita e por uma força nossa, de gente do logar, na margem
esquerda. Gomercindo tem mandado gente ás colonias para saber
noticias.
De lá nos trouxeram jornaes, e a noticia de que Pina està nas
immediações da Cachoeira. O Jornal do Commercio, de Porto Alegre,
transcreveu da A Federação jornal do Sr. Castilhos, esta noticia :
259

Seguiram de Uruguayana para o Umbú as forças do gene


ral Hypolito, sendo seguidas , muito de perto pelas forças revolu-
cionarias de Raphael Cabeda , Chamei a attenção de Gomercindo
para esta noticia. Parece- me uma cillada para nos chamar para
aquelle ponto. A A Federação nunca deu uma unica victoria nossa.
Até a do Serro do Ouro ella deu , como nós, completamente derrotados .
Como explicar-se esta noticia de que Cabela persegue a
Hypolito ?
Tens razão, me disse Gomercindo. Querem talvez nos rinconar.
Eu não acredito n'essa historia de Pina, nem de forças nossas, na
campanha .
Deixam tudo sobre nós, mas Deus não ha de permittir que
ainda d'esta vez não nos escapemos.
Mandei o irmão de Carlitos que reuna alguns companheiros
e inutilise 1 a estrada de ferro. Logo que elle me avise que está
prompto, e portanto não pode vir soccorro de Porto Alegre, nos
metteremos por aqui e a força que encontrarmos vamos levando
por diante. Os nossos sabem que devemos empregar o ultimo es-
forço , e então chegando na campanha eu mandarei vir recursos dos
meus, no Estado Oriental e a guerra começará de novo mais forte
do que nunca esteve porque a gente que temos já sabe brigar. ,,
Eu então disse-lhe : Trabalhemos até vencermos , espero que de
15 de Novembro em diante teremos modificações n'esta guerra de
exterminio . Prudente de Moraes não é militar para quem a bravura
consiste em ser cruel, e a honra em matar. Elle verá que se conti-
nuam as cousas assim, em breve não será só a republica que ha de
desapparecer, é a familia brazileira a quem Floriano parece votar
um odio de morte.
-
Floriano não entrega o poder, disse elle .
--
Se não entregar, temos a dictadura e os outros Estados
lutarão tambem.
-
Não creio , disse elle . O povo brazileiro é indifferente, só luta
quando o maltratam physicamente.
- Não, disse eu, luta, e nós veremos, não descreia. Mas o
que me parece é que Floriano entregará o governo, virá collocar-se
á frente do exercito na esperança de vencer- nos , e depois então vol-
tará com as honras da guerra e se perpetuará no governo .
Isso é que eu não creio , me disse elle. Homens como Flo-
riano não vêm á campanha, mandam os outros, e esperam para gozar
do sacrificio alheio.
E que venha e estejamos nós na campanha e bem montados ,
que havemos de trazel -o n'um buchinche. Separando-nos, disse- me
Gomercindo que iria ver o passo do Jacuhy.
260

Fai ao acampamento de Prestes Guimarães que ha dias an


dava em excursão, e que acabava de chegar com Verissimo . As
forças de Verissimo conservavam-se sempre no Passo Fundo.
O general Lima tinha se retirado apressado como nós , man-
dando apenas piquetes de observação ao logar ; piquetes que não se
approximavam dos de Verissimo.
Felizmente chegou-nos uma carreta com munição, e mais alguns
companheiros sem que nada os encommodasse até aqui .
Arthur Oscar seguiu para Porto Alegre, dizem que conduzin-
do muitos feridos, provavelmente feitos nas guerrilhas comTorquato
Severo, no campo da Lagoa Vermelha . Outros dizem que foram feitos
em briga com a força de Menna Barreto, visto Oscar não querer
dar a Menna Barreto o soldo de sua gente que elle tem em seu poder.
Lima em todos os pontos onde acampava deixava sepulturas
cheias de cadaveres .
Dizem alguns moradores, ou transeuntes, que não tendo car-
retas para conduzir tantos feridos, mandavam matar os que estavam
em peior estado para alliviar a marcha.
Esta narrativa, que repugna a natureza, desgraçadamente pode
ser acreditada , pela selvageria com que procedem os homens da
legalidade não só com os adversarios, como com todos que não lhe
podem ser mais uteis nos seus planos de viver á custa da vida dos
outros.

Prestes Guimarães quiz propor a Gomercindo a nossa perma-


nencia aqui, visto não termos mais inimigo na retaguarda, e tornar- se
esse ponto apto para permanecermos, não só porque ha gados para
o alimento, e assim, poderemos esperar que os nossos na campanha
se levántem.
Não creio que Gomercindo concorde n'isso. Quando conversou
commigo a ultima vez sobre essa região, disse-me que o seu unico
desejo é sahir d'ella, custe o que custar. Aqui, me disse elle, entre
estes mattos, estes rios , estes terrenos cheios de escavações , onde
não se pode ver ao longe, onde a cavallaria não póde operar, e a
infantaria luta só, eu sinto que me falta o ar, me afogo.
Lembro-me que em nossa marcha no meio da mata conversan-
do commigo, elle dissera-me : Quando tú tomares conta disso dá to-
dos estes mattos aos argentinos, e nos deixes só a campanha.
Então teriamos de dar quasi todo o Brazil.
Como, perguntou-me, o Brazil é toda assim ?
---
E ' , respondi.
Diabo, e eu que pensava que isto fosse só n'este inferno ?
Então não temos remedio senão nos tornarmos montezes.
261

O Jacuhy é coberto, em sua margem direita de mattos que


chegam até à barranca ; é este lado occupado pela guarda inimiga ;
do lado esquerdo não ha matto n'aquelle ponto, de modo que nossa
guarda tinha que estar acampada em longa distancia , para se li-
vrar das balas que elles mandam-lhes de dentro do matto .
Gomercindo chegou ali e quiz em pessoa verificar o passo ,
e ao approximar- se viu que uma columna inimiga, de forças de li-
nha, com artilharia já o havia transposto . Julga ser a columna
de Arthur Oscar, Menna Barreto e todas as forças do littoral
que, transportadas pelas vias , acceleradas nos vêm dar uma batalha
decisiva. E porque não ? Sabem que esgotamos quasi todos os nossos
recursos no Passo Fundo, que ali tivemos officiaes mortos e feri-
dos, o proprio Gomercindo julgam ferido ou morto. Como perder
essa occasião para dar uma batalha de forças de linha das tres ar-
mas, contra um punhado de homens brazileiros , estropeados, feridos
e a pé?
Gomercindo voltando, combinou que marchariamos no outro dia
pela manhã, para um ponto melhor onde poderiamos observar o nu-
mero de forças inimigas, e se não fossem superior ás nossas , dar-
mos batalha, mandando para isso preparar uma metralhadora que
nos restava e acabava de chegar.
O inimigo era contido sempre agglomerado, marchando em
quadrado, pelos nossos que guardavam o passo, e nós marchamos .
A cautela da força governista indicava receio, mas podia ser tam-

bem tactica para esperar outras forças .
Caminhamos duas leguas em busca de um passo do Jacuby,
n'uma estrada quasi parallela á em que vinha a força governista
e acampamos. Ali soubemos que no passo que buscavamos havia
um piquete inimigo, e as forças de Lima que já tinham tempo de
refazerem-se dos estragos ou prehencher os claros, porque o gover-
no, tem em toda a nação os grandes rebanhos para o matadouro,
deviam se achar ali. Resolveu-se marchar em busca de um outro
passo, onde nos poderiamos achar somente em frente de uma força ,
e não entre duas ou tres, o que ha muito nos succedia. Verissimo
marcharia pela estrada, e nos campos da Cruz Alta poderiamos
acceitar a luta.
A carréta em que vinha Alvaro Martins, tinha se quebrado.
Mandei pedir providencias, e até 11 horas da noute não tinha res-
posta. Montar a cavallo era impossivel para elle ; leval- o em padiola
difficilimo, porque os homens estavam cançados , e vinham condu-
zindo um official de Torquato Severo, ferido no Passo Fundo, e já
moribundo , -o valente capitão Acacio. Accommodei-me na espe-
rança de que á hora da marcha viriam as providencias. Apenas
adormeci, ouvi o toque de apromptar. Erão duas horas da madruga-
da. Nunca aquelle toque me causou igual impressão á que sen-
262

ti então. A ultima nota, uma nota aguda e prolongada , pareceu- me


plangente como um gemido.
Montei a cavallo e fui ao acampamento de Gomercindo. Tinha
sahido em observação, e as forças jà marchavam, ninguem lhe tinha
dado o meu recado. Voltei ao meu acampamento e as forças que
acamparam proximas ja tinham marchado. Fiz conduzir Alvaro
para as carretas de munições, e marchamos pelos caminhos maos. O
campo queimado, negro, confundia-se com as forças que marchavam, de
modo que difficilmente podia orientar-se quem se tivesse demorado
um pouco. Depois um arroio de passagem difficil, onde era pre-
ciso esperar muito tempo.
Felizmente a estrella da manhã começou a dar-nos um pouco
de claridade, e afinal despontou o dia , justamente quando nos acha-
vamos no peior logar onde mesmo com a luz, difficilmente se pas-
sava, sem risco , n'um atoleiro. Ao meio dia chegamos no Passo do
Butiá, um dos galhos do Jacuhype.
Ali acampamos. A' tarde deviamos marchar, porem o Jacuhype
estava cheio, era preciso esperar. Por seu lado Gomercindo ,
achando boa a posição pensava em esperar o inimigo ali , se elle
nos seguisse o rasto. As carretas deviam ficar.

Os coroneis Borges e Bueno, da columna de Prestes, vendo


que tinhamos de ficar ali disseram-me : ,, Deus que quer que espe
remos aqui para brigar, porque a victoria será nossa. Deveriamos
tel- os atacado lá mesmo no campo, e seriamos vencedores. "
Mas tivemos de marchar. Precisavamos sahir das emboscadas.

**

Fui do outro lado do Butiá e obtive de Torquato Severo


mandar conduzir Alvaro até o outro lado onde a brigada de Pahim
se encarregaria de transportal- o em padiola .
A gente de Torquato accedeu de boa vontade. Já o valente
Acacio tinha ficado sepultado.
No mesmo dia chegamos á margem do Jacuhy cujas aguas
já começavam a decrescer, e ali acampamos, em uma pequena quei-
mada, amontoados . A ' tarde choveu torrencialmente ; e a queimada que
era n'uma depressão do terreno tornou-se um lago, e a chuva durou
toda noute. Em vista d'isso tivemos que passar o rio, antes que no-
vas aguas o enchessem. Foi uma passagem difficil. Era um logar
sem estrada . Tinhamos de descer uma barranca, atravessar o leito do
rio a nado, seguir por um banhado onde em alguns pontos os animaes
nadavam, depois subir outra barranca em cuja base já os primeiros
263 --

que passaram tinham formado atoleiros, e cuja rampa era escor-


regadia. De modo que o cavallo que sahia do atoleiro, difficilmente
podia firmar- se para chegar em cima, e ali agglomeravam- se por um
cavallo atolado ou cahido, e durante este tempo os que se achavam
no leito do rio não achando caminho arriscavam-se a serem arreba-
tados pela corrente e o seriam, se não fossem as arvores que ali
havia, nos logares que deviam ser a margem quando as aguas
do rio conservam-se no leito .
Uma pequena canôa transportou as munições e os feridos, alguns
ponches porém foram levados. Entramos n'uma picada, cheia de ato-
leiros, e dormimos dentro do matto.
Felizmente n'esta mata, pela ausencia de moradores e bu-
gres, havia abundancia de pinhão que nos fornecen alimento.
Junto á arvore onde me acampei, acampou tambem um ferido ,
antiga praça de linha capitulada na Lapa. No Passo Fundo, já elle
estava ferido, quando um official atando na espada uma bandeira
do Imperio correu para nossas forças . O sargento que estava n'uma
sanga occulto vendo- o caminhar por ali, teve receio de que elle o
visse e o matasse . Fez-lhe pontaria e matou- o e arrastando- se foi
até ao cadaver revistar os bolsos, soldo da nossa gente, e de lá
trouxe a bandeira da monarchia.
Os soldados, que, creio, não morrem de amores pela republi-
ca pelo muito que os homens que a prostituem lhes tem feito sof-
frer, não se encommodam em mostrar saudades pelos outros tem-
pos. Quando eu extrahia a bala e fazia o curativo, elle gemia, e
logo dizia-me :
Mas, veja Sr. coronel, o desaforo, aquelle bandido usar da
nossa bandeira ! Elle dizia nossa, julgando que ninguem que soffre
actualmente tenha o direito de querer outra bandeira a não ser aquella.
Não posso atinar até hoje qual o motivo de ter aquelle
official de linha hasteado aquella bandeira.
Seria para voltar depois para suas forças e dizer que tomou-a
de nossas mãos ? Não é crivel . Elle vinha só, e difficilmente poderia
voltar. Demais para dizerem que tinhamos aquella bandeira , não era
preciso arriscar-se , porque, mais de uma vez, elles têm dito que nos
têm tomado bandeiras monarchicas, quando as unicas que usamos
são as vermelhas que fazemos, ou as da republica que lhes temos to-
mado por toda parte. Seria pensando que realmente lutamos pela
monarchia e assim poderia chegar até nós ? Creio que sim. E n'este
caso o infeliz foi victima da calumnia dos seus que, para terem di-
nheiro e adeptos de outras terras que não lhes conhecem as manhas ,
lembram-se d'isso , de que nunca cogitamos nesta luta, sem se lembra-
rem que podem accordar essa idéa e as idéas adquiridas no soffri-
mento podem ser duradoras e tenazes, se não se eliminarem as cau
sas, e os causadores d'esse martyrio .
- 264 -

Caminhamos quatro dias n'essa mata, vindo afinal, no terceiro


dia, encontrar casas de lavradores habitadas só por mulheres e
creanças, porque até ali trabalhára a faca destruidora da legalidade,
e os outros para não morrerem, ou não viverem occultos , sempre em
perigo, preferiram deixarem-se agarrar para servirem nas forças
dos consolidadores.
Ao sahir no fundo do campo do Carazinho, logar denominado
Não me toques, deparei com um desses espectaculos, que se fossem
presenciados por aquelles que obrigam o povo a pegar em armas
para readquirir seus direitos, e que obrigam aos outros a morrerem em
favor dos seus interesses pessoaes, muito deveriam concorrer para
normalizar-lhes a conducta, se elles tivessem um pouco de sentimen-
to de humanidade , o que não se póde admitir ante a crueldade que
desenvolvem na vida feroz em que se rebolcam .
Em uma velha casa, em escombros, estava uma pobre velha
septuagenaria. Sujas, trapentas, seis creanças sentavam-se em torno
d'ella.
Eram orphãos. O pae, filho da velha, fora levado, á força, para
servir a legalidade, e morrera no primeiro combate.
A mulher enlouquecera, e desde então percorre a região acom-
panhada por um filho de 10 annos, para não deixal-a perder- se, e a
quem ella maltrata ás vezes, querendo atè matal - o ; mas apezar disso
elle não a abandona e já tem conseguido dominal-a em certas occa-
siões .
Cada vez que se ausentam, a avó julga nunca mais ver o neto,
mas não podendo conter a louca, o filho segue com ella, dando essa
sublime prova de amor filial em tão tenra idade.
E ali vivem aquelles desherdados da sorte. A velhice impo-
tente a cuidar da infancia fragil, o unico que os amparava deu a
vida, não por amor da patria que tudo justifica, mas pelo interesse
de alguns que, no meio das riquezas que a desgraça dos outros lhes
fornece, nem se lembram das desgraças, das dores, do desespero
dos que elles levaram á morte. Que lhes importa isso ? Ha
meio cabalistico para justificar as infamias, e esse meio é a desmo-
ralisação da mais nobre aspiração de um povo. Mas que lhes im-
porta isso ?
Morra essa aspiração, prefira o povo a tudo, menos isso que
elles tornaram hediondo, o que querem são os lucros, e matando a
republica, elles dizem que o fazem para salval - a .
Os homens filhos das cidades , n'ellas educados, limitam suas
vistas aquelle meio, porque ali tudo se modifica rapidamente, e as
sensações de hoje fazem esquecer as sensações de hontem. Seria para
desejar que essas almas sensiveis que observam as desgraças mas-
caradas nos risos contrafeitos , debaixo das sedas, vissem essas sce-
nas bruscas proprias das idades primitivas, mas sentidas na idade
265

moderna. Que de horrores teriam elles de escrever ! Que tyrannos,


que Regulos, que Barba Roxas poderiam igualar a esses homens
da legalidade no Brazil moderno ? E a vida anniquilla- se n'esta in-
feliz Patria ; e 9 odio torna-se constitucional na alma d'essas cre-
anças que sobre a fome e a nudez vêem a loucura materna , sentem
horror aos seus afagos. E a fortuna do Sr. Julio de Castilhos , e seus
asseclas, que pensam fazer a felicidade dos seus, leva amalgamado
tudo isso.
Bon appetit messieurs.
**

Tivemos de demorar n'este funebre logar dois dias.


A' pobre velha que não tinha mais uma rez vaccum, porque
tudo tinham levado em nome da legalidade, para salvarem as in-
stituições. Restava-lhe, alguns suinos , e aves domesticas.
Gomercindo mandou collocar ali uma guarda para não se ti-
rar um unico objecto d'aquella gente.
Na minha estada alí, durante alguns minutos, apezar da minha
pobreza dei-lhe algum dinheiro para comprar roupa para os netos ;
ella deu-me um perú, que eu paguei tres vezes mais caro do que
valor d'elle .
Acampei junto ao matto, para aproveitar um esplendido banho
de cascata n'um regato que passava por ali .
Uma chuva tempestuosa nos encommodou . Uma faisca eletri-
ca abateu um pinheiro que teria cahido sobre minha barraca , se
não fôra o declive do terreno.
O perú que a pobre velha me deu, serviu de pomo de dis-
cordia no meu acampamento. Emiliano preparou-o, a modo das gran-
des casas, para que eu durante muitos dias comesse uma fatia, mas
os hospedes comeram todo o perú e Emiliano teve um accesso de
eloquencia tremenda. Nunca pensei que houvesse na actualidade um
cidadão brasileiro , que protestasse com tanta energia contra a espo-
liação dos direitos alheios, desde que o Sr. Floriano prohibiu , sob
pena de morte, que alguem fale senão que elle é sabio como
Salomão, patriota como Washington e puro como Aristides .
A discussão foi acalorada, e Emiliano veio pedir-me para ir
para a infantaria. Que havia de fazer ? apoial-o era desgostar aos
que vieram confiados comer o perú que era meu. Seria tido como suvina.
Dar razão a elles era dizer que a anarchia devia reinar na
minha barraca. Emiliano foi-se.
Fiquei quazi reduzido, alem de cuidar dos feridos , a cuidar tam-
bem de mim .
Affonso, o sargento, que tinha zelos de Emiliano , como se elle
fosse um ministro, nas nossas mizerias, declarou altamente que o
coronel Dourado , o que cuidava de todos, não ficaria sem ter quem
266 -

lhe fizesse um assado quando achasse carne ; que Emiliano era um


ingrato, e que Deus o puniria .
Não deixou de fazer-me falta o Emiliano, por mais que Affon-
so se esmere em me ser agradavel. Mas que havemos de fazer ?
Emiliano dizia a todo mundo que terminado isso iria pedir baixa
para ser meu cozinheiro, para contar á D. Francisca o que tinha
sido esta campanha, e que elle até não deixava chegar à minha
barraca gentes más .
**
Sahimos na estrada que vai do Passo Fundo á Cruz Alta.
Em todos os pontos do acampamento das forças de Lima, e estamos 20
leguas do campo de batalha do Passo Fundo, ha sepulturas de
mortos por ferimentos recebidos naquella batalha.
Antes de sahirmos na estrada, eu conversava com um amigo n'um
dos flancos da columna, quando ouvi gargalhadas na frente. Adiantei - me .
Era a louca que chegava ali. Os companheiros riam -se em
The ouvir as palavras e as cantigas. Disse -lhes que era uma louca,
mas elles continuavam a rir.
-Quantos dos que riem-se agora não irão encontrar, em casa
algum dos seus neste estado , pelo que soffreram ? Minhas palavras
cahiram no espirito d'aquelles companheiros, de tal maneira que aos
risos e galhofas succedeu immediatamente um silencio funebre.
Me approximei da louca que saltava, e cantava phrases das
quaes só entendi :
" Quando eu vejo um cavallo, quando eu vejo uma espada ,
quando vejo uma lança, vejo mortos, vejo sangue. „,
O pequeno chamava-a : Vamos, cala a bocca. E ella a falar :
,,Ataram meu marido e gritavam : Viva o Julio de Castilhos ; levaram
para a guerra e mataram-n'o. ,, Depois continuava n'um accesso furioso a
praguejar ; e a pobre creança sempre a dizer : Vamos, cala a bocca.
Olhei para o menino e não vi naquelle rosto infantil, um traço
de medo em presença de tanta gente desconhecida, de caracter en-
durecido na luta .
Creio que n'aquella idade já o sentimento do medo desappare-
cera. Se não fosse tão bom filho, poder-se-hia imaginar nelle a futu-
ra personificação do Han d'Islandia que Victor Hugo imaginou como
typo da crueldade por vingança.
Um companheiro que trazia um cavallo petiço, que não serve
para a guerra, deu-lh'o, e aconselhou-o de andar sempre montado
para fugir nas occasiões de accessos para não ser maltratado ou morto.
Pobre creança ! Não sei o teu nome. Sei porem que és um
heroe infantil Qual será a tua vida ? Pode-se apenas imaginar. Or-
phão, e guarda de loucos, na infancia, e um louco amado ; e a tua
orphandade foi causada por interesses de individuos que tu nunca
conheceste e que nunca se lembrarão de ti, porque teu pae não
267

foi para elles senão um instrumento para chegar a seus fins e a


loucura de tua mãe foi a parcella que te coube. Quando crescido ,
no meio das tuas irmãs, se a voragem não as arrebatar, quaes se-
rão as vossas conversas na pobre vivenda nas longas noite de in-
verno ? Quaes as recordações da infancia, brisa suave que arrefece e
calor na luta pela vida ?
Entretanto, n'essa mesma occasião, os descendentes dos que
fizeram fortuna á custa do vosso soffrimento, gosarão de tudo que a
riqueza dá, e cheios de honras se orgulharão de descenderem dos
que por interesse individual mandaram matar.
Talvez sejam esses nomes queridos por vós que vos esquecereis
que si a bala que vos fez orphão foi disparada por nós , foi por-
que, condemnados á morte, tivemos de lutar pela vida, e que teu
pae foi um instrumento para nos matar.
E tu descendes do povo pobre que um só aceno uniforme
bastaria para fazer serem-lhe restituidos todos os direitos conspurcados ,
mas que, ignorante e bestializado, tornou-se o servo de gleba tan-
gido como rebanho para produzir a fortuna de alguns, e é donde
sahem os que elles encarregam de serem algozes dos que lhes dão
o sustento , aos que lhes confiaram armas para defendel-os em
quanto trabalham para elles !

Ao sahirmos na estrada, encontramos todas as casas, por onde


passavamos , desertas e arruinadas . Dez mezes antes passaramos
por ali em direcção ao norte e deixaramos todas habitadas, lojas e
armazens cheios. Depois de nós passou a columna de Pinheiro Ma-
chado, que como uma praga nada deixava em sua devastação .
Gafanhotos monstruosos !
A linguagem era : „ Os maragatos passaram aqui e não nos es-
tragaram. E' porque voces são maragatos, á quem se deve destruir
vida e interesse. "
Um piquete nosso encontrou uma carreta com generos que
apprehendeu. Ia para uma pequena guarnição d'elles.
Um homem que ali lutou e foi ferido , foi recolhido ás forças
de Prestes Guimarães onde fui cural- o. O official que o prendeu
mesmo depois da luta, prometteu garantia de vida , o que Gomercindo
louvou. No acampamento de Prestes os serranos conheceram - n'o.
Era um do maiores faccinoras da região. Em todas as casas onde
encontrava homens, degollava- os, e os que soffreram d'elle em suas
familias exigiam a punição .
Gomercindo relutava. Conduziram -n'o durante dois dias sempre
exigindo, os que soffreram, a sua punição e Gomercindo sempre negando.
Afinal encontrou- se uma carta d'elle escripta a um amigo da
Palmeira em que dizia : Venha, ainda ha por aqui moças donzellas
que não fugiram . Mostrada esta carta a Gomercindo, este consentiu
268 -

que o justiçassem . ,, Se nós matamos os nossos que commettem esses


crimes, como havemos de poupar os contrarios ? 99
Na Cruz Alta ha forças, segundo as informações. As forças
de Lima acham- se proximas. Poder-se-hia atacar essa cidade, porem
Gomercindo resolveu não brigar senão quando for obrigado a isso,
ou então onde uma batalha traga resultado. Perder- se um com-
panheiro, é mais do que tomar-se uma cidade onde não se pode per-
manecer. Por isso resolveu mandar uma expedição á Palmeira on-
de ha companheiros que precisam de auxilio para sahirem dos es-
conderijos ; uma outra irá até á vista da Cruz Alta, e a columna
marchará passando á direita da cidade, tambem á vista, como
quem ameaça um cerco, e depois marcharemos direito pela estrada
colonial afim de sahirmos adiante, em busca do Ibicuhy , para
entrarmos na campanha. A região que atravessamos é cortada de
rios, alguns profundos onde se passa em balsas, outros rasos,
porem de correntezas fortissimas .
O primeiro passamos em balsa , na região colonial , sem o me-
nor accidente; o segundo tambem passamos em balsa, o Ijuhy Gran-
de, em frente de Santo Angelo , antiga missão dos jesuitas. Paralle-
la a todos esses rios desce uma estrada que vem da estrada geral
em busca dos povoados de Missões.
Quando passavamos o rio os piquetes avistaram inimigos . Apres-
samos a passagem e Gomercindo em pessoa ajudou a tanger a balsa.
Faltava passar a columna de Prestes, e a noticia era que o
inimigo approximava. Gomercindo para proteger a passagem de Pres-
tes entendeo estender uma linha de atiradores no alto para não dei-
xar que o inimigo descesse até ao rio.
Já tendo seguido todos os ajudantes tive eu de servir-lhe de
ajudante para determinar a posição que deviam occupar os atiradores .
O inimigo não se approximou e a columna passou sem tropeço .
Acampamos á uma legua, distante do rio.
Um dos factos , mais graves da nossa marcha, ia-se dando ali ,
donde resultaria ou uma luta entre companheiros , ou a divizão de
forças que poderiam tomar pelas missões e emigrar pelo alto Uruguay.
Eu tinha-me acampado perto da brigada de Pahim. A' noite
elle mandou -me chamar pelo tenente coronel Rossani . Quando che-
guei ao seu acampamento estavam todos os officias reunidos e elle
disse-me que Gomercindo na passagem do rio tinha dito palavras
grosseiras a seus officiaes por demorarem a passagem na balsa, e
que elles reunidos queriam uma satisfação de Gomercindo por escripto .
O que já é questão vencida , disse o Dr. Fabio Azambuja , ex-
capitão de artilharia do exercito .
Medi o alcance e a gravidade do assumpto , e felizmente con-
venci a Pahim que tal passo seria desastroso, naquella região, e que
quem como nós tanto tinha soffrido , e em presença de nossa situa-
269.-

ção, e pela cansa a que tudo sacrificaramos, não tinha o direito


de prejudical-a por pequenos nadas que só poderiam offender a sus-
ceptibilidade dos que já estivessem cançados e arrependidos ou dos
que desejassem a nosssa derrota, e não via ali entre os seus ne-
nhum que podesse ser julgado assim .
Felizmente fui comprehendido e tudo desappareceu.
Depois do Ijuhy Gomercindo resolveu descançar um dia. Aqui
veio ter Tupi Portinho, irmão do incançavel Philippe que tinha con-
seguido invadir com alguns homens depois dos martyrios porque
passaram na debacle da expedição ao Rio Grande. Philippe está
com Dinarte Dornelles, no Passaretan, alem da estrada da Cruz Alta .
Ignacio Cortez um dos mais valentes revolucionarios rio-gran-
denses, acha-se nas immediações de S. Francisco de Assiz, nesta
região (Missioneira .)
Apezar das grandes columnas de gente de armas postas no
Rio Grande pelo Sr. Floriano, das forças de Nico Coronel e Cabello,
occupando a fronteira á custa do thezouro publico, esses destemidos
companheiros que viram todo o seu ardor e sacrificios patrioticos
perdidos, e inutilisados ante o amor proprio de alguns, poderam in-
vadir pelas fronteiras orientaes e argentinas, e chegarem ao ponto
onde um punhado de companheiros quasi desarmados, lutavam com
essa abnegação stoica que só sabem comprehender os que collocam
acima de si o amor da Patria que se não for digna, a nenhum de
seus filhos pode caber outro titulo a não ser o de infame ou infamado.
Gomercindo mandou dizer a Dinarte que se sua gente tem
meios e cavallos , para entrar em uma batalha, venha retirando em
direcção do Jaguaryaça para nos encorporarmos .
Aqui, como já disse, os arroios e rios são de difficil passagem.
Temos tido alguns cuja correnteza é tão rapida que a agua che-
gando apenas acima dos joelhos, nos tem arrastado gente. Feliz-
mente são tão estreitos que podemos amarrar uma corda pelas extre-
midades, em uma e outra margem e a gente vai passando seguran-
do- se n'ella, e se por acaso resvala, fica fluctuando sem conseguir
vencer a liquida torrente para apoiar-se no leito d'ella ; n'esta posição
os pobres martyres assemelham-se a um trapo que encontrára um obs-
taculo na corrente, e ali encalhara ora fluctuando, ora redemoinhan-
do, conforme a direcção centripeta ou centrifuga da corrente.
A cada rio corresponde uma estrada, em cada estrada ha
uma força inimiga que converge sobre nós . A qualquer d'essas co-
lumnas poderiamos bater, mas poderiamos n'esse caso sermos colhi-
dos em dois fogos, n'algum desses passos difficeis.
Marchamos de dia e de de noite para sahir desse labyrinto,
d'essa garganta impacientadora. N'esta marcha continua tivemos um
dia de pura comedia.
Pela manhã chegamos a uma engenhoca onde se fabrica
270

aguardente. Sem terem almoçado ainda os que iam chegando, com-


pravam uma porção. Gomercindo estava já adiante. O Italiano ven-
dia ; porem era tal o atropelo que não tinha tempo de receber o pa-
gamento de todos. Eu tinha seguido com o coronel Domingos Ribas
para uma pequena casa de negocio a ver se encontravamos alguma fa-
zenda que servisse para ataduras. Quando voltavamos os que iam
chegando estavam agglomerados na porta, porque um capitão aju-
dante de Pahim , se oppunha a que elles comprassem, e eu ouvindo-
lhe a voz fazendo uma prelecção sobre o direito de propriedade, man-
dei chamal-o e disse-lhe que convinha fiscalizar , mas não impedir a
compra, e que discurso era inutil. Immediatamente ouvi a vóz de
outro, o coronel Leoni, que sentado, em cima da pipa, dizia que es-
tava ali para garantir o dirito de seu compatriota.
Adiante ouvi musica. Era o 9 que marchava, com um sol tre-
mendo os soldados, dispersos , e a musica a tocar ; um musico aqui,
outro alem, um começando as primeiras notas quando outro já finali-
sava um compasso.
Um italiano, capitão engenheiro da Lapa, corria para pegar
uma cabra, cuja carne dizia muito gostar.
Ao chegar á minha barraca, um meu pharmaceutico brigava
com o cozinheiro, porque ainda não tinha o almoço prompto, che-
gando a ameaçal-o de pancadas. Aconselhei-o que fosse dormir, mas
elle generalisou a invectiva até a mim.
Mandei a um corpo proximo buscar uma guarda para leval- o
para a infantaria. Ouvindo isto sahiu correndo e cahindo até á barraca
de Pahim que voltou com elle pedindo que o dispensasse da prisão .
Dissera a Pahim que eu mandara prendel-o por não consi
deral- o de accordo com a sciencia moderna. Felizmente á tarde tudo
tinha entrado de novo em calma, e nós podomos marchar em ordem.
Resta-nos passar o Una Capetum, rio um tanto caudaloso.
Ainda mesmo que não fosse a necessidade de nos encorpo-
rarmos com Dinarte, para darmos uma batalha que vencida modifi .
cará em absoluto a nossa condição, temos de apressar a marcha
' para sahirmos d'esta região , onde não podemos brigar e onde dia
riamente são degollados os companheiros que cançados, ou perdidos
ficam para traz.
Hontem 8, foram degollados vinte e tantos que se achavam
em uma casa descançando e o inimigo cahindo de surpresa, depois
de, por astucia, verificar que estavam sós , usou das suas attribuições
de authoridade da justiça de Sr. Julio de Castilhos, não fazendo pri-
sioneiros. Creio que o Sr. Julio de Castilhos tem um plano matar
todos os rio-grandenses, porque matando os adversarios sem reser-
va, obriga-os a matar aos d'elle. Qual será o fim d'esse plano ? Tal-
vez para ver depois o aspecto do Rio- Grande deserto.....
*
**
271

10 de Agosto de 1894 , (Carovy)

Orgulho humano ,

sonhos de gloria , nome immortal , liberdade


da patria , punição dos criminosos ,
glorificação das victimas ,
familia ,
amigos , companheiros de lutas ,
de soffrimentos e de glorias , parai na vossa
marcha ! arrefecei vossos ardores !
cobri -vos de luto !

A carreira do heroe chegou


a seu fim .
-- 272

Nós tinhamos marchado á noite chegando à margem do Una


Capetum pela madrugada, e ali acampamos. De manhã começamos a
passar. Quando eu passei Gomercindo estava do outro lado já.
Estava triste e distrahido, a ponto de, elle que se tornava in-
quieto e agitado em todas estas occasiões, falando, gritando para
não haver atropelos, viu uma carreta quasi derribar a mulher do co-
ronel Colombo Leoni, que imprudentemente se collocára na frente, e
para não se dar o accidente, o bom carreteiro quazi fez virar a
carreta, e elle não disse uma palavra. Quando cheguei perto d'elle
entregou-me um cartão de Dinarte Dornelles que viera para mim
dentro de uma carta que recebera .
Marchamos juntos e elle me disse : „Dinarte vem seguido por
uma columna. Amanhã devemos nos juntar. Elle tem pouca munição
e armas, mas em compensação sua gente vem montada e devem ser
bons lanceiros. Amanhã bateremos a columna que o persegue, e de-
pois bateremos esta que vem em nossa retaguarda. Livres dessas
columnas, mandarei a Sta. Maria inutilizar as communicações rapi-
das com Porto Alegre, bateremos estas forças que houverem na ser-
ra e depois iremos á campanha. ,,
- Ou a Porto Alegre, disse eu .
-
Talvez, mas não gosto de cidades, estraga a gente, perde-se
tempo, e nada se adianta, porque na hora que chegarmos lá, logo
apparecerá governo, e cada qual quererá collocar- se, esquecendo - se do
inimigo. Santa Catharina e Paraná ensinaram-me mais do que tudo
que aprendi, em minha vida, em relação a esses filhos que só cui.
dão de si.
Toda vez que se approxima um combate, eu tenho medo ...
disse eu.

Medo ? não pensava que um bahiano de bombaxa e espada
tivesse medo ... disse elle galhofando.
- Tenho medo das imprudencias de Apparicio.
Já no Passo Fundo ia elle morrendo, e a morte de um de vo-
cês seria um desastre.
Nós aqui não somos militares que mandam os pequenos
brigarem e ficam os grandes para ganharem as glorias. Aqui somos
todos iguaes e os companheiros animam-se vendo os chefes na fren-
te. O medico deve estar longe, entretanto nos dias de combate você
está na linha, e isto é bom, creia amigo, não se morre senão quan-
do chega a hora.
Chegou o coronel Ribas que interrompeu a nossa palestra, tra-
tando de outro assumpto. Paramos apenas o tempo preciso para o
almoço e marchamos.
Pouco adiante estava Prestes Guimarães á espera da columna
d'elle, e eu tinha que esperar a minha gente para mudar o meu
278

cavallo. Deitamo - nos sobre a gramma e nossa conversa re nontou ás


tristezas do exilio.
Prestes Guimarães mostrou-me uns versos que escrevera no
exilio, em Corrientes . Eu os lia quando chegou um ajudante de Go-
mercindo que mandava apressar a marcha, que Dinarte vinha perto ,
e já se ouviam os tiros. Marchamos immediatamente. Ao chegarmos
n'uma baixada vimos as nossas forças estendidas em linha de ba-
talha, n'uma curva, olhando para a estrada por onde tinhamos
vindo, e ordem de se afastarem d'ali , seguindo para a direita tudo
e todos que não tinham que fazer n'aquelle ponto .
Gomercindo mandara dizer a Dinarte que retirasse apressado,
e que fosse sempre fugindo para voltar á frente quando o inimigo
se achasse no ponto onde os nossas podessem tomar- lhe a retaguar-
da e o flanco direito .
Nesta occasião, 4 1/2 horas da tarde, chegaram- me feridos de
Dinarte, e eu tive de procurar um arroio para cuidal- os. Acabava
de fazer o ultimo curativo quando chegou -me o capitão Hilario
Montiel, ajudante de Gomerciudo, que me mandava dizer que estava
ferido e que fosse a toda pressa.
-Elle foi no meio das guerrilhas ? perguntei eu correndo para
o logar.
Montiel contou-me o que se tinha passado .
,,O inimigo tinha presentido a nossa approximação e começou a
empacar. Só a vanguarda proseguia. Gomercindo vendo isto resolvera,
por já ser tarde, reunir as forças, marchar para a direita afim de dei-
xar se encorporarem as duas columnas inimigas , e no outro dia
esperal- as, e atacar a ambas de frente. Foi avisar disso a Dinarte ;
este porem , vendo chegar Gomercindo , talvez para mostrar a bravu-
ra dos seus , ordenou uma carga de lança, destroçou a vanguarda
que fugiu, mettendo - se alguns no matto, tomando-lhe trinta Mauzers,
papeis , etc.
Em cima de uma cochilha estava uma outra columna . Appa-
ricio para corresponder á saudação da gente de Dinarte, veio pedir
a Gomercindo para deixar-lhe ir fazer tambem uma carga, e apezar
de ser tarde elle consentiu.
Apparicio chamou Augusto Amaral e ia costeando a cochilha,
para apresentar-se já na proximidade, e Gomercindo seguiu pela
cochilha para assistir á carga quando do matto partiram os tiros que
o feriram, matando-lhe o clarim e o cavallo , sendo conduzido depois
pelo Major Pianelli que o acompanhara . ,, Quando cheguei á carreta , che-
gava tambem Apparicio que, sabendo do desastre desistira do seu
intento, e a quem Gomercindo queria ver immediatamente, com receio.
de que tivesse tambem sido victima. Ao entrar na carreta, Appari-
cio, Gomercindo , ao vel- o , levou a mão aos olhos e fechou- os.
Apparicio voltou sem dizer palavra, mas lançou me um olhar
18
974

que tudo exprimia. Foi a ultima vez que se viram aquelles dois
heroes que se amavam mais do que á vida .
Quando me approximei já ali estava o Major dr . Fritz, tendo
os primeiros curativos sido feitos pelo dr. Hungria, medico da ar
mada . O dr. Fritz tiuha preparado uma injecção de ergotina para pri-
var a hemorrhagia interna, porem elle não consentiu que fizessem
sem eu chegar , e falando me Fritz , elle me disse : Amigo , não deixe me
darem nada para dormir, tu sabes que eu não devo dormir.
Não é para dormir, disse-lhe eu .
Então pode fazer o que você quer... e entregou o braço.
-
Onde é o ferimento ? perguntei eu . Elle mesmo levantou a
camisa ensanguentada e mostrou- me.
Um pequeno orificio entre a 6. e 7. costella esquerdas, pro-
ximo do externo, por onde sahia o ar na expiração ; portanto fora
interessado o bordo do pulmão. A pallidez da face indicava que não
havia asphyxia, e a respiração era pausada. Seu nariz aquilino esta-
va fino como uma lamina. Tomei-lhe o pulso ; era mizeravel quazi im-
perceptive!, portanto, pensei, a bala penetrou no pericardo, e tal-
vez mesmo na parede do coração , e a assystolia em pouco o matará.
Perguntou por seus arreios ; estavam ali. Não deixem os bi-
chos leval- os ,,, disse.
Movendo-se soltou um gemido. Lembra-se, disse eu, que
quando Apparicio foi ferido e gemia você me disse que todos vocês
são fracos para a dor ?
Não amigo , não é a dôr , eu estou perdido , me disse.
Não é nada , vamos marchar. Eu vou buscar um apparelho
para applicar-lhe e em pouco estará bem .
Sim, me disse, não é nada, deem - me agua, tenho sede,
agua fria, muita agua fria.
Quando viu que ia sahir disse-me : „ Dourado, que organizem
a marcha já. Torquato que faça a retaguarda, e Apparicio que te
nha muito cuidado com o flanco esquerdo . ,,
Montei a cavallo para ir procurar os companheiros que com-
mandavam, em quanto se preparava a padiola para transportal- o.
Quando transportaram- n'o para a padiola elle disse aos meninos
Garcia, netos do famigerado Candido Garcia, de Bagé, seus ajudan-
tes de ordens, e inseparaveis companheiros, e a Hilario Montiel :
,,Ah ! meus filhos, vocês estão sem mim, elles me mataram . ,,
Muito custou-me n'aquella mistura de corpos, alguns desconhe-
cidos, encontrar alguns, os amigos com quem queria falar. O fogo no
campo occupava uma extensão de mais de legua , e os que estavam
ali não viam nada alem, pela escuridão que tornava-se mais pro-
nunciada para os que estavam perto do fogo.
Encontrando- me com Fabio Azambuja que até ao escurecer
275

tinha estado com Pahim em frente do inimigo, este me disse : Faça


apressar a marcha, estamos perdendo um tempo precioso.
Elles vinham marchando conduzindo-o em padiola ,

O coronel Brazil que me procurava porque o Dr. Hungria


queria falar-me, perguntou-me se era grave a ferida.
Perguntei-lhe se elle tinha gemido. ? Não. Tossiu ?
Não ; vinha quieto como se dormisse .
- Talvez já esteja morto, disse eu e o coronel Brazil teve um
soluçar tão compungido , e a dizer : Meu general, o nosso general,
que eu fui obrigado a dizer- lhe que, não fosse creança, que esta-
va alarmando.
Por onde eu passava todos vinham saber o estado d'elle, e
eu era obrigado a dizer-lhes que não havia perigo .
Quando cheguei junto da padiola o dr. Hungria disse- me que
julgava conveniente fazer- lhe uma injecção de ether. Mandei bai-
xar a padiola , accendi uma vela e levantei o ponche que lhe cobria
a cabeça. Estava deitado sobre o lado direito . Calmo como n'um
somno tranquillo, e depois de tres annos de luta sem descanço , era
o primeiro que elle dormia trauquillo, porque não tinha mais de
cuidar da vida e salvação dos seus companheiros. Seu papel esta-
va terminado.

Falei para que marchassem apressados para aproveitar em-


quanto elle dormia.
Garcia, quando o viu morto não se pode conter, eu porem
collocando-lhe a mão na cabeça e apertando com força fiz-lhe com-
prehender que era preciso calar-se, e elle calou-se. Por muito tempo
marchamos ao clarão do incendio que devorava o campo , e esten-
dia-se como uma monstruosa serpente luminosa . Eram as luzes de
sua camara ardente....
Para elle o filho nobre e altivo da campanha, para elle que
nella passara toda sua vida cheia de affectos e dedicação, para elle
que o coração trouxera à esta luta gloriosa , e que pelo coração
morrera, para elle que surgira da obscuridade e crescera tanto, que
em pouco tempo, quando desapparecerem os seus companheiros de
armas, talvez em poucos dias, sua epopéa não será mais do que
uma lenda, para elle que sò poderia viver respirando o ar da cam-
panha, onde a pata de seu cavallo deixara pegadas indeleveis, para
elle cuja lembrança, bastará para dizer aos tyrannos que o povo
opprimido, terá amanhã, como teve hontem, um Gomercindo Saraiva,
que não surge das convenções, da troca de interesses reciprocos,
que não é feito por ninguem, e por ninguem proposto, que não
278

sacrifica a causa de todos pelo egoismo de poucos, só mesmo o vas


to incendio da campanha poderia servir para illuminar-lhe o cata-
phalco que tinha por aboboda o céu e por lagrimas alegoricas as
estrellas do firmamento , brilhando na escuridão da noute que cahia
sobre nós como a negra cortina do nosso destino .
Marchamos até á madrugada , repousando um pouco, para
recomeçar ao despontar do dia. Não tivemos toques de clarins. Os
que jà iam em marcha accordavam os que dormiam ainda. O cada-
ver do chefe ia n'uma carretinha, e dentro, dois dos seus ajudantes.
Elle que nos levou tão longe, e de lá nos tirou por sua energia
inquebrantavel ; elle que sempre se achou no ponto onde o combate
era mais crú e as balas formavam aboboda á sua figura ; que nos
deu victorias incriveis ou nos arrancou á morte certa, ia ali im-
movel, já sem prestimo , sem valor.
Apparicio, o bravo dos bravos , não se approxima da carreta
funebre, leva um lenço de seda negra cobrindo o rosto como se
grave enfermidade dos olhos o attingisse.
E' que o pranto não cessa, e elle não quer que se o veja chorar.
Só ao approximarmos de um arroio , de mao passo , como todos
os innumeros desta funesta região, pude ver Dinarte Dornelles,
Philippe Portinho e os bravos companheiros que não tinha vis-
to ainda.
Pianelli deu-me noticia de que os meus tinham abandonado
o Estado Oriental, e seguido para a Bahia.
No profundo desgosto em que me acho, esta noticia foi um
allivio . Não tenho esperança de sahir vivo d'esta luta, e o que mais
doie- me é imaginar que terás noticia da tua viuvez em terra
extranha, o abandono em que te acharias ; ali não, na terra que
nos viu nascer e que ainda não se esqueceu de nós, ao menos terás
a teu lado rostos amigos que te dêem coragem para a vida e te
farão comprehender que a morte na guerra é igual á morte entre
os seus, quando ella é pelo bem da Patria , quando á ella não se
foi levado pela paga com que se compra a vida aos que servem
de instrumento aos algozes de seus irmãos !
Sei que o soffrimento te fará me julgar ingrato por te ter
abandonado para empunhar armas para a luta, mas bem sabes
que se o não fizesse seria um homem descaracterizado, e para o ho-
mem de coração a vida é incompativel com a descaracterização . Só
os cynicos podem viver assim , porque n'este caso a vida para elles
não é mais do que - o viver .
Meus filhos, os meus pobres filhos, talvez se esqueçam de
quanto os amo, porque na alma infautil as affeições não deixam tra-
ços ; mas, tenho fé que quando homens, elles me comprehenderão, e
seguirão o meu caminho, tal é o dever do homem que queira ter
uma patria digna .
277 -

E te escrevo estas cousas, como se ao menos nutrisse a es-


perança de que isto te chegue às mãos !
Não creio, porque só commigo poderia salvar o que escrevo .
Mas, elles talvez , os que me matarem , mostrem isto a alguem para
aquilatar a minha perversidade, e por esse meio saberás que n'esta
luta sem nome , pensava mais em vós do que em mim..

Depois de dois dias de marcha , n'uma noite de luar, fria e


silenciosa, porque nos nossos não se ouve mais aquelles gritos ale-
gres de uns chamando pelos outros, dirigindo-lhes galhofas por
maior que fosse o perigo que os ameaçasse, deixamos o grande che
fe sepultado n'um pequeno cemiterio á beira da estrada.
Para elle está tudo terminado ! A luta cessou com a vida !
Para nós, os vivos , a morte continua com o nosso viver. Apezar
porem, de todos os perigos que nos ameaçam, ninguem, creio, pensa
n'elles.
Tal é a insensibilidade do espirito, quando um golpe profundo
o abala.

Felizmente nenhum incidente veio perturbar a nossa harmonia .


Não temos mais o chefe querido, todos porém são accordes em
que seu irmão é digno de substituil-o , e á sua bravura e dedicação
une-se o direito d'esta herança sagrada, que quando não fosse o
nosso desejo, nos obrigaria como um tributo de saudade e gratidão
ao grande morto .
Na noite seguinte á do sepultamento, uma tormenta horrivel
acompanhada de chuva torrencial , cahio no nosso acampamento , de
modo que eu e os companheiros de barraca tivemos de passar a noite
toda segurando - a para o tufão não leval-a.
Logo cedo chegamos á estancia do coronel Moura, uma das
primeiras victimas, na paz, da legalidade.
Ali encontramos o coronel Cortes com trezentos homens bem
montados e armados a lança. Todos elles tinham feito a expedição
até Santa Catharina de onde voltaram na expedição da esquadra,
e atravessaram de novo a Republica Oriental para procurar os com-
panheiros que continuavam lutando.
Seguia-nos de perto uma columna inimiga.
Com o encontro de Cortes resolvemos dar-lhe combate .
Nossa gente marchou para as posições, sombria, porem reso-
luta. Eu tive medo do horror que se daria naquelle combate. Seria
a luta do odio.
A columna inimiga metteu-se no mato, logo que os piquetes
278 -

viram as nossas linhas. Cercamos o matto, elles porem não sahiram


e assim passamos o dia todo.
A' noite um piquete veio annunciar que pela estrada do Povi-
nho do Boqueirão, á nossa esquerda, marchava sobre nós uma forte
columna ; resolvemos marchar para passarmos o Jaguaryaça . A'
madrugada acampamos, sem ordem, sem sabermos onde estavam os
nossos bagageiros. Eu dormi n'uma baixada sozinho, segurando o
meu cavallo. Cahia neve em abundancia.
Pela manhã, marchou-se. Não tinhamos mais toques de cla-
rins . Dirigindo -me a uma tapera onde havia laranjas que me iam
servir de jantar e ceia do dia anterior e almoço n'aquelle, vi chegar
uma pequena força que vinha do S. Borja, cidade que estava
em nosso poder, mas que havia sido retomada pela esquadrilha do
Alto Uruguay. Portanto falta-nos aquelle ponto de apoio na margem
do Uruguay.
Ali nasceu a desintelligencia . Prestes e Dinarte queriam que
esperassemos o inimigo , Apparicio pensava ao contrario.
Não tinhamos munições capazes para uma batalha com uma
columna grande, de infantaria , porque as duas columnas que deixa-
mos no Carovy, deviam se terem unido com a que vinha do Boqueirão .
O Camaquam cheio , S. Borja em poder d'elles, uma batalha
ali nos faria perder muita gente, se poucos não fossem os que con-
seguiriam salvar- se , em caso de derrota . Apparicio propoz dividirmos o
exercito em pequenas columnas, e marcarmos um ponto de reunião
em dia aprazado, e então operariamos com mais liberdade. Essa
proposta não foi acceita
Os serranos em sua maioria queriam voltar a seus pagos cus-
tasse o que custasse. Resolveu-se portanto separar a columna de
Gomercindo das de Prestes e Dinarte, procurando aquella o Ibicuhy
para passar para a campanha .
Dinarte convidou-me para ir com elle, me mandaria sem perigo
pôr em S. Thomé, na Republica Argentina. Recusei. Tinha sido
companheiro d'aquelles em todas as provações : abandonal- os para sal-
var-me era uma ingratidão .
A sorte que os esperava devia ser a minha - viver ou mor-
rer com elles, ja que não podiamos marchar todos juntos .
Aos separarem- se as columnas, muitos da de Gomercindo fica-
ram com a de Dinarte, por estar proximo o Uruguay e do outro
lado a Republica . Argentina, o Canadá para os perseguidos.
Ao passar alguns officiaes me disseram adeus, como quem di-
zia que nunca mais nos veriamos, e accresentavam : Devia vir com-
nosco, e passar o Urugauy ; por abi vai morrer. Paciencia, disse-
lhes eu.
99, Adeus amigos e se eu morrer , ao menos vocês poderão dizer que
cumpri com o meu dever até á morte. "
279

Alguns companheiros vieram perguntar-me o que deviam fazer,


seguir a columna de Prestes ou a de Apparicio ? Respondi -lhes : Eu
sigo a de Apparicio .
Dar um conselho n'esta occasião , quando ninguem sabe o que
The espera amanhã , seria falta de criterio. O Dr. Pires Ferreira
que me pedira esse conselho, em vista da minha resposta resolveu
vir comnosco, já tendo na outra columna sua bagagem.
Guimarães, pharmaceutico que vinha commigo , e que ha mui-
tos dias eu não via, mandou-me dizer que estava a pé e por isso
acompanhava a columna que ficava na Serra.
Doeu-me esta separação . Guimarães era pharmaceutico na Lapa.
Trouxe-o commigo. Não sei qual é a sorte que o aguarda ; tal-
vez mais feliz do que a minha, mas ao menos queria na hora de
perigo ver que todos os que estão commigo só serão abandonados
depois de morto eu.
Apparicio se tinha collocado na bifurcação da estrada para
não deixar que seguissem pelo leito della os da nossa columna .
Ri-me d'aquillo , porque a passagem de uma força em um campo
de relva ou graminea , deixa um traço mais visivel do que pela estra-
da cuja argila o tempo transformou em macadam.
Conversando, eu disse-lhe : Tenho receio de emigrarmos , por-
que com a paralyzia da revolução na campanha , a nossa emigração
será o adormecimento della por muitos mezes, até que se possa
organizar nova invazão, esgotados como estão os recursos e a boa
vontade d'aquelles com quem podiamos contar. Demais a nova in-
vazão seria apenas, monterias que sem trazerem o triumpho, mata-
riam a revolução na sua descaracterização .
Cada um seria um chefe, obrando por sua conta, vingando as
offensas, dando pasto ao odio. O Rio Grande tornar-se- hia a Serra
Morena da Hespanha, a Calabria da Italia nos tristes tempos dos
governos tyrannicos.
Apparicio me respondeu :
Creio que poderemos passar o Ibicuhy, no Passo Novo.
Ali ha uma balsa grande e temos gente no passo commanda-
da pelo coronel Nunes, do Alegrete.
O que vamos fazer chegando ali é passar a gente e o que
for mais necessario. Se o inimigo der tempo passaremos os caval-
Jos , senão passaremos sómente os necessarios para trazerem gado e
fazerem os piquetes. Marcharemos todos a pé, e a pé mesmo chega-
remos onde podermos obter recursos.
Marchamos até à tarde, almoçamos e a noite tornamos a mar-
char descançando alguns minutos de espaço a espaço até quazi pela
manhã . Nas pequenas paradas cochilava-se um pouco. N'uma d'ellas
perdi o meu cavallo que só pude achar depois de marchar a colum-
- 280 --

na . No outro dia cedo, passamos um dos braços do Itu com difficul-


dade, e a tarde começamos a passagem do rio, em balsa.
Pahim foi o primeiro a passar para ir tomar conta do Passo
Novo, no Ibicuhy. Depois começou a passar a brigada de Torquato
Severo. A balsa pequena comportava poucas pessoas.
Os cavallos passavam a nado, com uma difficuldade, porém,
extraordinaria ; porque os que ficavam, relinchavam e faziam com que os
que já se achavam quasi na margem opposta • voltassem, e a bar-
ranca que se transformára em atoleiro sepultava muitos, conseguin-
do -se com muita difficuldade fazer passar outros por cima dos que se
atolavam .
Todos se accumulavam na margem á espera de que chegasse
a sua vez de tomar passagem na balsa.
Felizmente a lua clareava bem aquelle scenario de desconforto .
A's 11 horas, um amigo veio avizar-nos de que uma forte
columna inimiga achava-se a tres leguas de distancia, devendo ao
amanhecer estar ali.
Apressamos a passagem, e cada vez mais se perdiam caval-
los . Pela manhã, tinhamos passado todos, abandonando as carretas,
e por isso tive de atirar ao rio o resto de ambulancia e os instru-
mentos de cirurgia que não podia levar a tiracolo. O inimigo esta-
va proximo, e foi já debaixo da fuzilaria d'elle que destruimos a
balsa. Um piquete que o havia tiroteado teve de passar a nado,
morrendo um afogado.
Eu estava de cima da cochilha observando a marcha d'elle.
Apparicio emboscára a infantaria para tiroteal-o quando che-
gasse á margem, porem só um piquete, ali chegou, retirando- se im-
mediatamente.
Retiramo'nos sob o fogo da artilharia. A unica esperança que
restava-nos era poder vadear o Ibicuhy ; pouco depois porem, um
enviado de Pahim vinha dizer- nos que quando elle chegou ao rio
acabavam tambem de chegar, embarcadas em lanchas a vapor, forças
inimigas, de modo que ainda a ouviamos artilharia na nossa retaguarda
e já ouviamos em nossa frente artilharia inimiga.
Pahim conservou-se no rio para obrigal-os a se conservarem
na margem opposta.
Um dia de demora nos causou esse transtorno . Se não fôra o
dia que esperamos para brigar no Jaguariaça, teriamos tido tem-
po de, pelo menos, passar metade da columna, e elles não se viriam
metter entre dois fogos. Para onde vamos agora ? Não sabemos . Mar-
charemos por onde o caminho nos permitta abrir a nossa passagem .
N'este calvario não ha esperança de ressurreição !
*
**

Marchamos dia e noute, com pequenos descanços, mas sem-


281 -

pre em alarma. Somos forçados a estas marchas porque o unico


caminho que nos resta é buscarmos S. Francisco de Assis , a ver
se podemos encontrar um passo no Ibicuhy onde possamos passar
de váo, o que não é provavel, porque o rio está cheio a ponto de
permittir a navegação , até lugares onde nunca foi navegado .
Nesta marcha passamos rios, cujas aguas estão muito
crescidas , quazi a nado, á noite, de madrugada, a toda hora. Feliz-
mente conseguimos passar o ultimo, e logo depois sobreveio uma
chuva torrencial que deve privar, ao inimigo, a passagem .
Proximo a S. Francisco ha uma coloria para onde foram os
italianos e polacos estropeados.
Entramos na villa pela manhã, onde podemos comprar alguns
generos alimenticios, e eu fui á casa do medico em busca de alguns
medicamentos para os feridos e para o coronel Brazil, atacado de
pneumonia dupla.
Ali offereceram-me café e encontrei uma senhora, casada com
um Juiz de Direito , que viajou para a Bahia em companhia de Anna
Autran, e ali esteve em nossa casa . Ella vendo- me perguntou- me
pelo Dr. Dourado, se era vivo. Dei- lhe noticias, e sabendo quem
era ella e porque se interessava por mim, dei-me a conhecer.
Foi acordar o marido para ver-me, fez-me tomar mais café e
forneceu- me não só cafè como assucar e biscoitos, para muitos dias .
Tivemos de acampar perto para almoçar, e ainda estavamos
acampados quando na cochilha apresentaram-se piquetes inimigos de
uma columna que estava perto tendo chegado ha poucos dias do
Umbú, estação da estrada de ferro, portanto só nos resta tomar o
caminho da Cruz Alta. Vamos outra vez pelo caminho onde ha qua-
zi um anno passamos cheios de esperanças fortes, unidos .
Levantamos acampamento e marchamos toda noite.
Nossas marchas porem são cheias de precauções porque ha no-
ticia de inimigo por toda parte. Quando nos approximamos de uma
estrada que vem ter á em que seguimos, paramos, emquanto os
piquetes exploram.
No S. Francisco ficaram muitos companheiros cuja sorte não
poderá ser melhor do que a nossa .
Mettemo-nos á noute pela Serra ; uma estrada no meio da
matta, apertada. O fogo de um phosphoro que um fumante abandonou
accezo incendiou a matta e tivemos de marchar muito tempo, len .
tamente n'aquella fornalha, quasi asphixiados pelo fumo.
Devem ser assim as estradas do inferno . E para homens que
chegaram ao nosso estado parece que começamos em vida o soffrimen-
to eterno. Faz até crer que já morremos e nos julgamos vivos.
D. João Tenorio julgando- se vivo, já entre as almas dos com quem vivera.
Era quasi manhã quando acampamos á espera do coronel
Ignacio Cortes que estava proximo.
4
282 -

O estado do coronel Brazil era desesperador e en five de cui-


dar d'elle antes de dormir. O logar onde acampamos estava cheio de
esqueletos . Teria sido resultado de um combate ou das execuções da
legalidade ?
Uma pequena cerração, o meu estado proveniente das vigili-
as e cançaço, me fez ver uma miragem exquizita n'uma volta do ca-
minho. Era uma carreta que vinha para nosso acampamento ; depois
vi que não era carreta, era uma diligencia ; mas como podia ser di-
ligencia se n'esta região não as ha ?
Não era diligencia, era uma casa nova pela côr do telhado.
Mas era exquizito, quando tudo está em ruina, quando tudo isso é
um deserto, haver quem tivesse tido idéa de fazer uma casa n'estas
alturas e encontrar trabalhadores. Desfez- se a cerração . Não era
carreta, não era diligencia , não era casa , era um cavallo morto na
beira da estrada em que a refracção produzida pela cerração fez-me
ver tudo aquillo.
Cortes veio, e queria que lhe dessemos munições para elle
ficar aqui brigando. Não podemos dar porque já não temos
que chegue. Veio falar-me e en insisti com elle para ir com-
nosco. Tomaremos a colonia militar do Alto Uruguay, nos in-
tricheiraremos ali, mandaremos pedir recursos aos companheiros na
Republica Argentina , e ali ficaremos até que os companheiros inva
dam a campanha , se approximem do Ibicuhy, e então sahiremos de
combinação com elles, e em vez de nos acharmos cercados, serão
os que nos cercam hoje os que o hão de ficar.
Ultima moriens, é a esperança no homem .
A' tarde marchamos, porem logo ao anoutecer tivemos de pa-
rar porque uma tormenta ameaçava. Veio com furia.
O rapaz que tinha ido em busca de estacas por lá adorme-
ceu e eu tive de supportar toda a chuva sem um abrigo. Marcha-
mos ao despontar do dia, entrando cedo no Povinho do Boqueirão,
onde não havia inimigo, e onde não havia tambem, dos habitantes
que ali deixamos quando seguiamos para o norte, senão o boticario .
Aquella povoação era quazi em sua totalidade contraria à
legalidade.
Muitos se uniram a nós e foram morrer nas Tijucas e na Lapa.
Os que escaparam à morte e voltavam ávidos de noticias dos
seus, encontraram apenas ruinas.
Dos que ficáram, uns foram degollados, outros fugiram não se
sabe para onde.
Descançamos apenas algumas horas e marchamos. Precisamos
alcançar a ponte do Ijuhy Grande, antes de ser ella occupada ou
destruida pelo inimigo, o que nos obrigaria a procurar passagem no
Passaretan, cinco leguas acima, e portanto muito proximo da zo-
na percorrida pela estrada de ferro.
283 -

Um piquete nosso encontrou-se com uma carreta que levava


fornecimentos para o exercito do general Lima.
Ficamos com a carreta e foi morto um dos que a escoltavam .
Entre os papeis encontramos cartas de parabens pela morte de Go-
mercindo, onde não faltavam o insulto e a galhofa.
Perguntavam tambem se o tinham apanhado dormindo, se ti-
nha cota de malha, se era homem de carne como os outros.
Alguns piquetes inimigos fugiam e se mettiam no matto.
A um sol esplendido, porem calcinante, succedeu immediata-
mente uma quazi noute, tal a escuridão das nuvens que occupavam
o espaço ; depois uma chuva torrencial, depois neve.
Os proprios cavallos voltavam- se para não receberem de frente
o granizo que o vento trazia como agulhas penetrantes.
Fez-me lembrar aquella região do inferno de
piova eterna, maledetta, fredda e greve
de que nos fala Dante.
Tivemos de procurar um bosque fóra da estrada, n'uma bais
xada do terreno, para nos abrigarmos .
Ninguem sabia dos companheiros .
A minha gente deixou-se ficar n'uma estancia onde havia fogo
e onde quasi se mataram para disputarem lugar mais proximo da
chamma aos que ali se achavam os que iam chegando. N'uma pe-
quena clareira onde havia um resto de carvão e lenha queimada de
algum fugitivo que ali pernoitára, eu tentei fazer fogo ; mas era
impossivel pela humidade do terreno e do combustivel.
Sacrifiquei , para isso, a parte de minha roupa que não estava
molhada, e nada consegui ; em vez do fogo para me aquecer senti
a falta de um pouco de panno enxuto sobre o corpo ; comtudo en
não desanimava, mas os dedos quasi congelados já não podiam
segurar a caixa de phosphoros.
Os companheiros que ali chegavam pareciam estatuas de cera ,
sobretudo os italianos que apresentavam feições cadavericas .
Para cumulo do soffrimento, indo buscar umas folhas, que me
pareciam enxutas, passei junto de um cavallo que deu-me um coice
na perna e quazi quebrou-a. Senti uma dor agudissima , e em
pouco um suor frio fez desapparecer o resto de calor que sentia
e foi então que senti o frio em toda intensidade.
A dôr, o suor e o frio causaram-me vertigem ; pensei que ia
morrer por congelação ; fiz porem um esforço sobre mim mesmo , e
apezar da dôr que sentia na perna comecei a andar ligeiro de um
lado para outro, e de novo senti calor, e comecei a ver os objectos
na sua côr natural.
As sangas e os arroios em pouco transbordaram. Cessára a
muzica sibilante da chuva, para dar lugar aquella funebre, sombria,
- 284 -

produzida pela queda das aguas nas cascatas. Era justo. Se o gra-
nizo tinha vindo sobre nós com a furia da lei no Rio Grande do Sul
no fim do seculo XIX, era justo que a euxurrada celebrasse seu
triumpho cantando nos funeraes.

Chegam noticias de muitos pobres companheiros mortos de


frio , entre elles uma pobre velha que acompanhava dois filhos ,
um morto na Lapa e o outro no Passo Fundo ; mas ella, a pobre,
preferiu nos acompanhar soffrendo tanto, a ficar em algum logar
onde os homens da lei maltratam as mulheres que têm filhos ou
parentes que seguem os revolucionarios ; se esses que estavam
sãos morreram, o que havia de ser do nosso bom amigo coronel
Brazil ? Agonizava .
A velha que dizia-se ter succumbido ao frio tornou-se minha co-
nhecida, porque depois da batalha do Passo Fundo veio- me dizer que
seus dois filhos eram mortos. Ambos soldados de linha, bons filhos
que a queriam , e aos quaes ella queria tanto que os acompanhava
por toda parte.
Um morreu na defeza da Lapa, e outro foi da capitulação e
obrigado a nos seguir.
Soffreu muito elle. Um capitulado que se encorpora ás forças
contra quem lutára não tem a mesma franqueza, a mesma familiari-
dade com os vencedores.
Por mais correctos que se mostrem , ha sempre um pouco de
reserva natural entre os vencidos e vencedores, por mais que estes
busquem captar-lhes a estima.
Uma vez estava eu em uma casa e ella entrou , pedindo .
Dei -lhe 2000 para comprar o que pedia. O dono da casa
deu- lhe o que queria e ella guardou o dinheiro . D'ali em diante
em toda casa que vendia alguma cousa, ella ia , e se me via apre-
sentava logo os dois mil reis e dizia - me :
-Não vim pedir, vim comprar, tenho dinheiro.
Era ordem no exercito de não se pedir nada, nem tão pou-
co comprar sem ter dinheiro para pagar , porque o necessario, isto
é, herva, sal , fumo e phosphoros, eram comprados, ou levantados
pelo Quartel Mestre que deixava d'isto um valle, se não era possi-
vel pagar, o mais era considerado objecto de luxo. O que é fac-
to é que a pobre velha sempre obtinha o que procurava sem nunca
deixar de ter os seus dois mil reis que eu lhe havia dado.
No nosso exercito tambem ha o que modernamente se denomina
chantage. Vim a saber d'isso um dia que em uma casa procurei um
queijo para comprar e não havia. Os que havia tinham mandado
para o coronel Apparicio e o Dr. Dourado , que tinham mandado
pedir, bem como gallinhas e ovos para os feridos.
285

Nunca nem Apparicio, nem eu, pensamos ou soubemos de tal.


D'ahi em diante notei que rara era a casa onde não se pedia em
meu nome .

A ponte do Ijuhy estava guardada apenas por quatorze ho


mens . Augusto Amaral que ia na vanguarda prendeu- os.
Um d'elles era marido de uma senhora que na nossa passa-
gem para o norte, me tinha offerecido um pouco de leite.
A pobre estava desolada. As noticias que tinha de nós eram
que não faziamos prisioneiros . Quando ella me viu, e conheceu - me
pareceu reviver. Tal é a esperança , que n'um momento faz renascer
o animo como o orvalho faz reviver a planta immurchecida.
Apenas terminamos a passagem começamos a destruir a ponte.
Apparicio em pessoa dirigia o serviço, trabalhando os prisioneiros .
Em quanto o fogo devorava as enormes vigas cobertas de alca-
trão , e as chammas reflectiam- se nas aguas do Ijuby, eu cumpria com
o mais triste dos deveres impostos pela amizade ; sepultava o meu
amigo coronel Brazil, ali junto da ponte, em frente ao quarto poste
da calçada, na margem direita, no lado do Sul, ao clarão d'aquelle
incendio destruidor.
Pobre ! sua abnegação pela causa santa que defendia, foi
causa de sua morte.
Assisti- o até o ultimo instante e até na agonia era o nome
dos seus que pronunciava, sobre tudo o de Ottilia, sua filha querida .
Sonhava o pobre que a estava vendo, que a abraçava, que ella ra-
lhava-lhe pela ausencia. A sorte d'elle será a de todos nòs , e no der-
radeiro instante são, esses entes caros que nos povôam a mente para
ajudar-nos a separarmo-nos desta patria por quem tudo sacrificamos
e que produziu filhos que nos matam para escravisal-a.
A destruição da ponte não foi completa . As madeiras resistentes,
a falta de instrumentos proprios, só nos permittiram estabelecer al-
gumas soluções de continuidade.
No outro dia pela manhã marchamos .
No descanço os proprios prisioneiros denunciaram dois de
entre elles como dos maiores faccinoras da região .
Estes dois foram justiçados, seguindo os outros comnosco .
O Dr. Fabio Azambuja que conhece esta região por ter sido
fiscal da colonia militar, insistiu em que tomassemos o caminho da
colonia por St. Angelo ; Apparicio porem, prefere ir pela Cruz Alta ,
onde poderemos levantar alguma roupa e generos.
Nas nossas marchas avistamos ao longe columnas inimigas.
Acampamos perto da cidade da Cruz Alta e pela manhã ouviu-se os
primeiros tiros das guerrilhas de Augusto Amaral encarregado de
tomar a cidade.
286

Marchamos sem obstaculos apezar da fuzilaria do inimigo en


trincheirado nas casas.
Augusto tomou conta da cidade, tendo o inimigo se refugiado
em uma rua do extremo.
Mas a idea de que iamos emigrar tinha plantado nas forças
algum relachamento, de modo que os que iam em protecção se en-
tregavam mais ao roubo e á bebedeira do que á luta.
Quando passavam alguns companheiros que se iam reunir a
Augusto, uma senhora abriu uma janella e disse-lhes : Retirem- se
que ahí vem uma forte columna. Apenas acabou de pronunciar estas
palavras uma bala inimiga matou-a . Um dos que lhe tinham ouvido
o aviso apontou para o que a matara que ainda tinha a arma fume-
gante e mandou-lhe uma bala que vingou a pobre e generosa vic-
tima.
Apparicio sabendo que os soldados se achavam na casa de
José Gabriel , onde só estava a familia d'elle, correu para ali e fez
respeital-a.
Eu tinha ficado em uma das praças onde estavam as carretas
e cuidava dos feridos, quando vi nossas forças que voltavam por se
approximarem columnas inimigas por dois lados.
Tivemos de marchar por uma rua ajusane de casas altas da
cidade donde o inimigo, que tinha voltado às suas posições , nos
fazia fogo continuo das janellas.
Demoramos junto ao cemiterio até que viessem os companheiros .
Muitos porem entretidos no roubo e nas vendas, lá ficaram e
certamente pagarão caro a imprudencia. José Gabriel terá ainda
um momento de prazer vendo degollal- os o os cães comerem a car-
ne d'elies, porque segundo esse grande amigo do Sr. Julio de Cas-
tilhos, nada ha melhor para engordar cães e porcos do que carne
humana.
Descançamos na bifurcação da estrada, donde seguia uma para a
colonia militar a outra para Palmeira.
Seguimos a da Palmeira. Emquanto eu cuidava dos feridos
dei ao meu rapaz para segurar a minha mula .
O tratante eutrou no centro da cidade e retirando -se apressa-
do lá deixou a mula com meus arreios, ponche e uma bolsa com
medicamentos e alguns instrumentos ; fiquei limpo.
Tive de marchar a pé e marchamos quasi toda noite. No
outro dia passando junto de um matto vimos uma porção de cada-
veres atados uns aos outros . Mortos pela nuca .
São dos companheiros de Prestes Guimarães que voltavam
para a Soledade e ali foram pegados emquanto descançavam .
Disseram - me que um individuo que pegamos e que ia como men.
sageiro de José Gabriel, levava uma carta em que elle dizia entre
outras couzas .
1

287

,, Nestes ultimos dias já temos morto cento e tantos, e assim ,


"
devagarinho , acabaremos com todos, um por um.
Afinal obtive um cavallo utilizando-me dos arreios do coronel
Brazil, que vinham n'uma carreta . Não havia porem ninguem a
cavallo para tocar os bois da carreta onde iam os feridos, e , ou
eu tinha de marchar a pé e dar o meu cavallo ao que servisse de
carreteiro, ou ir na carreta junto com os feridos, o que tornava -se,
insupportavel. Preferi ser carreteiro , e lá me fui por ali tocando bois
de vara em punho .

O fim de nossa marcha, buscando um ponto onde nada temos


que fazer, é illudir o inimigo.
As forças que perseguem a gente de Prestes, devem vir pela
região colonial, portanto se fossemos em direcção á colonia militar ,
pelo Faxinal poderiamos nos encontrar com ellas, e sendo seguidos por
outras nos achariamos mal. Indo para a Palmeira, elles procurarão
nos cercar tomando- nos a estrada do Passo Fundo, e quando d'ali,
da Palmeira, nos dirigirmos directamente para a colonia não tere-
mos mais forças em frente a não ser a que guarda a colonia .
Parece que isto está se dando, porque não temos encontrado
senão grupos de forças locaes.
Em caminho da Palmeira vimos o que bem indica a que pon-
to chegou a ferocidade n'essa gente dos Srs. Castilhos e José Gabriel :
Um monte de ossos humanos. Foram de pobres homens que
se escondiam no capão do Boi Preto .
Obrigaram a uma creança que sabia onde elles estavam a indi-
car-lhes o logar, sorprehenderam- os e mataram um por um, duzen-
tos e tantos, deixando - os insepultos ; tempos depois reuniram os ossos,
naturalmente como monumento da Ordem e Progresso, que escreve-
ram como uma pungente ironia na bandeira que impuzeram ao Bra-
zil, talvez antegostando a sorpreza que nos causaria quando sou-
bessemos o que elles chamam ordem e progresso, e da saúde e fra-
ternidade, com que terminam suas missivas quando não é Viva
a republica.
Uma carta que apprehendemos , dirigida ao Sr. Firmino de
Paula, um dos heroes da Serra, e que assistira á matança de Boi
Preto, era bastante interessante porque mostrava qual o fim do patrio-
tismo d'elles, dizia : Dou-lhe os parabens, nas invernadas já ha muitas
mil mulas.
Soubemos por moradores que estes milheiros de mulas, eram
obtidos muito patrioticamente nas fazendas alheias, e porque era
preciso obedecer á ordem do Sr. Castilhos .
Não poupar o inimigo, nem nos seus bens, nem nas suas
pessoas. "
288

Perto da Palmeira, que está bem proxima do territorio con-


testado , de Missões, tomamos a estrada que vai ter á colonia militar
do Alto Uruguay.
• Encontramos na porta de João Ruivo, tenente - coronel da le-
galidade, uma carreta com generos, roupa e joias . Estava em casa
sómente a mulher d'elle. Apparicio prohibiu que se tirasse qualquer
cousa d'ali, e que alguem a fosse importunar. Um companheiro
desobedecendo á ordem saltou ao quintal e foi roubar um pouco de
toucinho na despensa ; foi punido severamente .
Em casa da familia do coronel Ubaldino, que o acaso livrara
de ser morto no Boi Preto, e acha-se emigrado, soubemos horrores
de João Ruivo . Mais de uma vez mandara ameaçar á familia de
Ubaldino de mandar-lhe buscar as filhas para entregar aos acampa-
mentos . João Ruivo é primo irmão d'essas pobres moças que elle amea-
ça e que por isso vivem em sobresalto.
Os objectos que estavam na carreta em sua porta não eram
d'elle, que ia-se mudar como disse- nos a mulher ; eram o resulta-
do de sua colheita n'aquelles poucos dias, que elle ia mandando para
casa como Firmino de Paula mandava as mulas para a invernada .
A familia de Ubaldino estava apprehensiva por nossa sorte.
A picada do Alto Uruguay devia estar guarnecida. Ha n'ella lo-
gares onde dez homens poderão entorpecer a marcha de um exercito.
Depois d'ahi á Cruz Alta, pela estrada do Faxinal, em linha
recta é muito perto, e portanto jà poderia estar uma força proxi-
ma, vinda da Cruz Alta, e tinha razões para suppor assim porque
constava-lhe que esta força estava proxima, porque no dia anteceden-
te tinha estado em sua casa um piquete castilhista . 4
Não se enganava a senhora. Quando avistamos a estrada do
Faxinal, avistamos tambem uma columna inimiga marchando ao nos-
no lado, em convergencia comnosco, devendo nos chocar no ponto
em que as duas estradas se anastomosam.
Estaremos em cerco ? pensei eu . Se assim for estão marcadas
as ultimas horas da nossa peregrinação .
Desde que soube da crueldade com que elles matam os prisio-
neiros, entre galhofas e insultos grosseiros, e prevendo quaes se-
jam os insultos que me hão de dirigir, na agonia lenta que me hão
de dar, preparei- me para libertar-me d'elles por meio da morte.
A faca com que corto a carne, para comer, elles tirarão imme-
diatamente ; a espada e o revolver tambem ; não me passa pela mente
deixar-me agarrar como cordeiro .
Tenho visto muitos morrerem, e a morte é sempre a mesma
pelo rasto que deixa no cadaver, mas aqui onde estamos, a ultima
phase do que vai morrer, a mais eloquente, é matar os que lhe
vão matar.
A essa gente que sente prazer em ver a desolação da terra
289

onde nasceram , deve constituir gozo ver o agonizar do inimigo, sen-


tir-lhe as convulsões na porta da barraca em quanto cortam o chur-
rasco com a mesma faca com que acabaram de degollar o prisioneiro .
Tirei do meu estojo uma lanceta. E' um objecto , muito pe-
queno para que elles se preoccupem d'elle ; com ella terei tempo
de abrir uma carotida e assim o meu martyrio não será prolonga-
do ; e quando o seja, a anemia cerebral me privará de ouvir e sen-
tir os seus insultos.
Quando marchavamos, depois de sahirmos da casa de Ubal-
dino , e viamos a columna inimiga marchar, os companheiros mos-
trovam- m'a, e eu que ja sabia da approximação d'ella, dizia-lhes : Não
é gente, é uma restinga.
Mas veja que está caminhando , diziam elles.
- E' um engano , somos nós que estamos caminhando .
Mas veja, disse um, nós estamos parados e aquelles mo-
vem- se.
E' porque quando se marcha e pára- se, os objectos que se
olhava com attenção parecem continuar a marcha , disse eu .
O meu embuste para os que commigo falavam, terminou - se em
pouco, por que tendo nós chegado, primeiro, na estrada, o piquete
d'elles, da vanguarda, sahiu - nos á retaguarda.
Apparicio estava com Torquato, observando-os e com alguns
lanceiros , elles em pessoa, fizeram uma carga que desfez o piquete,
e obrigou a columna a fazer alto. Torquato ficou fazendo a reta-
guarda, e Augusto Amaral seguiu para se apoderar da picada.
Começou porem a chover. Acampamos para almoçar, mas an-
tes que tivessemos feito fogo veio aviso de Torquato para que mar-
chassemos porque o inimigo marchava .
Levantamos acampamento e marchamos com toda precaução
até a bocca da picada do Campo Novo.
Augusto seguio á noite mesmo e passou a picada.
Foi um dos meus dias crueis aquelle. A chuva continua e fria
perseguiu-nos o dia inteiro, e eu sem ponche para privar -me d'ella.
Felizmente Torquato tinha tomado uma carreta com generos , man-
dou-me café e assucar que me alliviaram o frio.
A' madrugada marchamos, ficando Torquato guardando a pica.
da ; apenas porem, vencemos o caminho da matta, começamos a ou-
vir o tiroteio na retaguarda.
Augusto Amaral havia feito alguns prisioneiros da guarda que
elles tinham , na picada, e tomado uma carreta com generos que ia
para a colonia.
No Povinho do Campo Novo soube elle que a picada da
Colonia estava guardada por quatrocentos homens. Suas forças com-
punham-se de cavallarias . Para atacar forças de infantaria , no
matto, seria preciso tambem infantaria , e a nossa vinha na retaguarda .
19
290

Quando cheguei ao Povinho e vi Augusto, perguntei -lhe se a


picada estava livre , e elle respondeu - me que não . Notei que iamos

chegarAuao gust o rem


ext o . rava que Apparicio lhe mandasse infantaria para
espe
se gu ir , ma s o in im igo perseguia - nos muito de perto . Do Povinho á

bocca da picada distam apenas quatro leguas .


am ras do dia .
hopre
Retirar11sem
Er , era nos approximar do inimigo da frente , sem

nos distanciarmos do da retaguarda .


obstaculo sério, sem tempo para
Ir-nos -iamos encontrar com
r-nos
desviaCa osel
nçados todfaz
ou des - o. descrentes , sem munições , iamos ser ali
, já
igu aes ao flo co de es ma que uma onda leva á praia onde um pe-
pu

queno Res hedao nos


roctav o des faz
ain da. os recursos extremos ; tinbamos tempo para
fazer frente ao inimig que nos seguia , sem, que, o que nos esperava ,
o

podessePavir oscartu
ata
ssam - nos
do ali.
que não podia brigar, pelo pequeno po-
voado , que està situado entre dois arroios, e parou essa vanguarda
inutil, de mutilados e feridos , no cimo da cochilha .
Apparicio e Torquato esperaram o inimigo , sendo preciso que
formassem linha , muitos que já não tinham armas e outros munições ;
mas era preciso apparentar que as posições estavam guardadas .
O inimigo vinha resoluto , porem sempre em quadrado , e sus-
tentou comnosco um fogo renhido , sem nunca desfazer o quadrado ,
o que esperavamos ; por isso Torquato se conservou occulto n'uma
canhada para fazer- lhe carga apenas se desdobrasse o quadrado .
A principio pareceu -me que o inimigo pretendia passar o arroio
a cima, para nos tomar a frente ; creio porem que vendo em cima
da cochilha todos os inuteis , julgou ser aquillo o corpo de exercito
que poderia esmagal - o , e desviou - se, marchando em direcção ao logar

a ci
nhri
Tipa
onde Ap o
locua
Torq
sidoe col ravam .
to os espeha
ada uma lin de atiradores por detraz de
um matto ; elles presen tir am isso e despediram pelotões , a marche
marche , pelas canhadas , que, penetrando no matto desalojaram os
nossos , que ali apenas apparentavam resistencia .
Eu estava no topo da cochilha , via-lhes todos os movimentos ,
gritava para os nossos , mas elles não ouviam-me ; em compensação
as balas cahiam ali, onde me achava , sem a menor ceremonia .
Augusto Amaral que se achava em marcha para a picada
voltára e seguia costeando o arroio para guardar um passo que mo:
mentos antes me parecera que o inimigo buscava .
N'esta occasião a cavalhada e parte d'elles voltaram ás car-
reiras , o que fez com que os nossos se alegrassem julgando que
alguma manobra os tivesse posto em perigo , ou alguma carga tivesse
291

desfeito a columna ; eu porem que me achava em posição de tudo


observar, via- os sempre formados e a fuzilaria não se interrompia.
Creio que a cavalhada foi retirada por terem elles visto a
marcha de Augusto que, pelas curvas do terreno e do arroio, mui-
tas vezes lhes devia ter parecido já estar na direção de tomar-lhes
a retaguarda.
Sustentamos o fogo até á tarde, perdendo dois companheiros
e trazendo tres feridos .
Veio ordem para marchar os que estavam áquem do povo, e
começou a retirada dos nossos ; passando um a um os arroios e logo
depois apresentando- se completamente a descoberto .
Foi então que elles marcharam, em linha , fazendo - nos um' fogo
horrivel ; Torquato porem os continha sempre em distancia .
Do Rovinho partem duas estradas que vão ter á bocca da pi-
cada. Uma em linha recta, mas por onde não transitam carretas ; a
outra em curva, mas transitavel por carretas com alguma difficul-
dade, por causa de varios arroios pantanosos.
Tivemos de tomar esta, porque tinhamos feridos para con-
duzir.
A' tarde acampamos para comer ; mais de 48 dias faziam que
não tinhamos tido tempo para carnear, a não ser á noite, o que era
impossivel fazer.
O inimigo por sua vez parou junto ao Povinho.
Combinou-se que á meia noite Torquato marcharia para tomar
a picada e Augusto Amaral ficaria com Apparicio para marcharem
depois.
Torquato passando por onde eu estava , disse-me que marcha-
ria á meia noite e eu resolvi marchar com elle. Não marchamos
áquella hora, mas sim, ás duas da manhã .
O guia que tinhamos era do logar, e perdeu-se levando -nos em
direcção á estrada que ia em linha recta, talvez para nos demorar
a marcha por trahição, mas conhecendo o perigo em que se acha-
ria declarou que não podia atinar com a bocca da picada .
Paramos algum tempo, e alli ficariamos até o despontar do dia ,
se não ouvissemos os gritos dos carreteiros que vinham seguidos
logo por Apparicio.
Com difficuldade chegamos alli onde carretas que se quebravam
impediam a passagem. Pouco depois entramos na picada, onde pa-
ramos para dar tempo aos piquetes de exploração se distanciarem.
Torquato tinha dito quando chegamos ali. ,, Aqui não ha que
desviar, nem retirar. Temos que morrer todos ou passar. ,,
Este discurso, o maior talvez que elle tem proferido, bastava
para dizer á sua gente que ali todos teriam de lutar cumprindo o
seu dever, e isto não era necessario porque elles bem o sabiam .
A entrada da picada não é na floresta virgem .
T

292

O fogo naturalmente transformou aquillo n'um capoeirão , onde


os bambús e as taquaras se entrelaçam, mas onde facilmente se
abriria uma pasagem ; por isso talvez o inimigo nos esperava mais
longe. Sómente ao despontar do sol, entramos na matta virgem . Tor-
quato ia na frente, os outros marchavam quasi sem ordem .
A demora no caminho fez com que a gente desarmada se mis-
turasse na columna. Uma marcha aborrecida ; sol ardentissimo , uma
evaporação causticante da humidade do solo , causada pela chuva de
tres dias passados ; e sem agua para beber ! A's tres horas da tarde
descobriu-se agua um pouco á esquerda do caminho, e todos ali iam,
soffregos, desalterar-se.
Até á tarde não viamos signal de inimigo, mas já da retaguar-
da tinha vindo noticia dos que nos seguiam, que chegaram á pica-
da quasi com os ultimos dos nossos.
Augusto Amaral tinha-se esquecido das botas, que trazia ata-
das aos arreios, onde dormira, e voltára mais de uma legua por
ellas.
Quando chegou á picada o inimigo assomou na cochilha. De-
via ter vindo pelo caminho direito. Guardada como estava a entra-
da da picada restava a vanguarda apoderar-se da colonia.
Marchamos á madrugada, e ao chegarmos a um rio estava
do outro lado uma guarda.
Quem vem lá ? perguntaram .
— Nós , respondemos.
- Nós quem ?
Nós mesmos .
Venha um cá.
Jà là iremos.
E se fez fogo. A guarda era pequena . Os 400 homens que
diziam nos estar esperando não attingiam talvez a 40. Aos primei-
ros tiros fugiram , ficando um morto, e a colonia foi tomada sem
tropeço , tendo fugido para os mattos os habitantes.
Começou- se a passagem do Uruguay para territorio argentino .
Eu tinha me demorado um pouco e quando entrei na séde ,
ri -me vendo um sujeito que estava no meio de companheiros, dizendo
que sempre fôra federal e por isso estava alegre. Sabendo o meu
nome, veio a mim muito satisfeito, comprimentar-me. Sempre
fôra federal, não podia viver com aquella corja de assassinos casti-
lhistas..... dizia .
Bem, disse- lhe, mas não convem que diga isso. Nós va-
mos embora ; amanhã elles estarão aqui outra vez e o Sr. pode ser
mal tratado .
E' verdade, disse elle ; e eu que nunca fui federal...
O modernissimo especimen de adhesista nem ao menos se
lembrou que estava em meio dos maragatos, e que podia soffrer mu-
293

dando rapidamente de opinião ; mas o castillismo causa tal horror


que elle para fugir da punição que teria, esqueceu- se do perigo pre-
sente.
Felizmente para elle os maragatos não matam por ter opinião
adversa, e não era elle um dos que tinham parte nos horrores que
nos trouxeram a esta luta.
A descida para o rio é tão difficil, quanto difficil é a subida
no territorio argentino. Ali porem só ha um morador, um negociante ;
ca é uma colonia militar com que o governo do Brazil tem gasto
centenares de contos e nada existe, nem um caminho para desce-
rem ao rio.
A colonia nada produz que possa ser exportado. Pequenas
plantações de milho que dão para o consumo dos que plantam ; plan-
tações de cannas rachiticas de que fabricam aguardente e rapaduras
que apenas poderão fornecer aos pequenos povoados proximos
e o fumo que devia ser o producto especial , pouco cultivado.
Tambem tendo peixe no rio, milho e feijão na roça , cachaça
ao alcance da mão, nada mais é preciso, porque dinheiro vem do
governo.
Nem ao menos ha ali uma casa capaz .
Se essa colonia foi creada para povoar esta uberrima zona,
foi um erro, porque as colonias em pontos longinquos dos centros
consumidores são sem resultado ; se foi para guarnecer aquelle ponto
fronteiriço, peior ainda, porque não é com colonos militares , ou sol-
dados velhos, sem disciplina que abandonaram a carabina pela en-
xada, que se pode fazer resistencia aos invazores que atacam sem-
pre de sorpreza e bem armados.
Ao contrario, esta colonia pode servir de porta para uma
invazão , porque não tendo nem gente, nem fortificações no rio ,
abriu uma boa estrada que facilmente levará os invazores ao campo ,
e dali a qualquer ponto da serra, atè mesmo a Porto Alegre .
Muito custava a passar os cavallos no rio, porque não havia
balsa e as canoas passavam a gente, porque era preciso tel- as desoc-
cupadas para os que chegassem depois, talvez atropelados. Todo o
dia 4 do setembro passainos ali n'aquellas aguas cor de chumbo e
tão quietas que pareciam estaguadas.
Eu passei por ultimo com Torquato Severo, e em quanto assis-
tianos á passagem conversavamos sobre nossa marcha, nossas espe-
ranças e o nosso desastre. Lembrando os feitos d'elle, ora na reta-
guarda, ora no flanco, ora na frente, isto é, onde o inimigo se apre-
sentava, desde o Pelotas até ali , eu disse-lhe : Você não é mais Tor-
quato Severo sómente, é para nós Torquato Severo, o Protector.
Emquanto nós passavamos o rio, os companheiros lutavam na
retaguarda. Augusto Amaral e José Garcia ficarani guardando a es-
trada com alguma força de infantaria O inimigo atacando- os e circu-
294

lando a noticia de que uma columna tinha, por uma picada, penetra-
do no matto, para tomar-lhes a retirada, espalhou-se o panico, e
abandonaram os chefes .
Estava ferido, no pulmão, um sargento de Garcia. Um alferes,
que por doente, andava de vagar, fora pegado por elles e degol-
lado. O sargento pedia a Augusto e Garcia que seguissem, que
o deixassem ; os dois valentes companheiros porem não o abandonaram ,
e a tiro de revolver respondiam ao inimigo, mas sempre em retirada .
Entrega-te, gritava o commandante da força .
- Ja viste um rio -grandense se entregar ? respondia Garcia dis-
parando-lhe o revolver.
Felizmente Apparicio estava perto , e os fugitivos encontran-
do-o, e vendo elle correr para junto dos dois bravos companhei-
ros, calcularam a figura feia que haviam feito e recobrando o brio,
voltaram com elle para fazer face ao inimigo .
Chegaram a tempo porque ja não tinham munições , e não
podiam correr por causa do ferido. A luta se travou ali. Os lan-
ceiros ameaçavam carregar, as guerrilhas emboscadas faziam retro-
ceder os mais afoitos , afinal a explozão de uma bomba de dynami-
te mettida n'um monte de pedras, que um companheiro teve
coragem de accender, sacrificando a vida, fel - os parar.
Na manhã do dia seguinte Apparicio estava do outro lado
com todos os companheiros. Só no 3º . dia elles entraram na colonia
tocando Diana nos clarins.
Nós já nos achavamos do lado opposto, ha mais de 24 horas,
os ultimos , e elles tocavam arias que executam os vencedores, quan-
do os vencedores eramos nós que sahimos do Paraná, lutando com
os elementos, com os terrenos e com os homens.
A' 10 de Agosto perdiamos o nosso chefe, e cercados por
todos os lados , tendo em cada ponto uma columna inimiga para
substituir a que já vinha cançada, na nossa perseguição.
No dia 5 de Setembro sahiamos do Brazil onde só póde vi-
ver quem tem armas para lutar ou quem já se resignou o abdicar
de si os predicados do homem livre.
De 10 de Agosto a 5 de Setembro , 25 dias, caminhamos 120
leguas, ora lutando, ora esperando debalde que elles quizessem lutar
onde nos convinha, pelos peiores caminhos, estropeados, muitas
vezes famintos.
Esta marcha para o homem que foge hoje para poder amanhã
voltar para a luta até que a Patria seja livre ou desappareça, é
maior victoria do que as que se obtem nos combates onde ella é
rapida e muitas vezes inesperada .

Livres de perseguição tenaz como a dos cães á caça, cança-


295 -

dos, cheios de desgostos , saudozos pelos muitos companheiros mor-


tos, tristes porque tantas e brilhantes victorias não bastaram para
accordar no espirito dos tyrannos o amor da patria , e dizer-lhes que
a estão matando nos seus filhos dignos que empunham armas, votam-
se ao martyrio sem recompensa e sem paga, e portanto na hora do
perigo elles lhe farão falta , e que homens de tal natureza não
encontram repouso senão no triumpho da justiça ou na morte, e por-
tanto amanhã de novo levarão a vida ao sacrificio, já que não po-
dem viver eternamente no exilio, e não devem viver na patria,
onde nasceram livres, sob o jugo de senhores, temos que nos pre-
parar para a marcha atravez do deserto que vai do alto Uruguay
ao alto Paraná .
Os feridos descerão o rio em canoa até S. Thomé. Alguns
outros que podem pagar o transporte descerão tambem. Os outros
seguirão por terra.
O Dr. Fritz acompanha os feridos , eu acompanho os que vão
por terra.
Todo o dinheiro que tenho são cincoenta mil reis, e mais cem
mil reis que encontrei na carteira do coronel Brazil.
Nos dois dias que passamos aqui fiz algumas despezas nem só
em almoço e jantar, como para dar uns sapatos a um, um chapéo
a outro, dois mil reis aqui, tres ali ; comtudo fiz um supprimento
de feijão, xarque, arroz , toucinho e farinha para biscoutos que o
Severino faz e frege na graixa, e umas latas de peixe e sardinhas,
assucar e cafê.
Meu rancho é de cinco pessoas , e os dias que dizem levarmos ,
até uma aldeia de indios hervateiros , dizem que são tres. Juntaram-
se a mim, a meu convite, Jorge Cavalcanti e o 1 °. tenente Maga-
lhães Castro, do Aquidabam. Levamos o fornecimento , as barracas
e uma pequena mala onde trago meus papeis e os ossos do filho do
Carlos, em um jumento que o Severino conseguio passar, e um burro .
No primeiro dia passamos bem. Emiliano que ficou com
um amigo ferido , fez-me um bom fiambre que deu-nos jantar e
tambem a Apparicio.
No 2º dia o meu rancho tinha-se elevado ao numero de 15
pessoas. Erão companheiros, que não tendo o que comer, se appro-
ximavam de mim ; portanto ; fornecimento para cinco , em tres dias,
sem se augmentar, devia ser para 15, em quantos dias ? não sabemos .
A estrada é uma picada transitada de longe em longe.
No 3°. dia ja não tinha nem café, nem assucar ; os biscoitos
acabaram -se no 2º.
Descançavamos um pouco quando chegou - me o coronel Re-
quinho, um septuagenario, veterano do Paraguay. Vinha doente.
e não tinha o que comer. Mandei chamal- o, fil-o comer uma lata
de peixe e dei-lhe a outra para levar, mettendo no bolso a de sardinhas
296

Restava-nos feijão , sal e um bacalhão que en recommendava


todo cuidado para não perder-se, mas apezar d'isso elle desapare-
ceu. Cozinhavamos feijão á noite e pela manhã punha- se- lhe um
pouco de sal e um pouco de farinha de trigo, e cada qual recebia
sua pequena porção ; a tarde faziamos o mesmo.
Eu vestia uma bombacha de cazemira, pezada, e calçava umas
botas muito grandes. Quando passava no barro atolava- me, e ao for-
cejar ficava a bota atolada. Depois o contraforte dobrou- se ferin-
do-me o tendão ; cortei o contraforte, o que foi peior, por que as
pedras miudas entravam por entre o couro e o forro e comprimiam-
me o pe. Devia ser assim o antigo supplicio a que chamavam anjinho.
Afinal nada mais tivemos para comer. Uma vez que iamos um
pouco adiante e tentamos comer o palmito cru, eu tirei do bolso a lata
de sardinha. Os olhos dos companheiros se extaziaram. Estavam, ali
os quatro. Tocou duas e meia sardinhas a cada qual.
Fiquei sabendo então que uma lata contem doze sardi-
nhas, e que um desses magnificos peixes e um pedaço, servem para
o alimento diario de um guerreiro em ferias.
Notei tambem que a agua bebida constantemente, aos golles,
illude a fome, comquanto faça, marchando- se, suar extraordinariamente.
Apezar de ter os pés feridos , e sentir mesmo que os outros,
sou obrigado a mostrar coragem, e os tres dias de viagem trans-
formaram -se em cinco e não sabemos em quantos mais.
A maior parte dos companheiros já come carne de burro ; não é
porem a carne gorda de um animal que se abate ; é a carne de
animaes que morrem de cançaço. Cada qual tira n'elle um pedaço e
leva ao fogo.
Não ha nesta matta nem uma ave, nem um animal ; não se
ouve nem um canto, nem um rugido, ouve- se porem gritos, pragas,
gargalhadas por toda parte .
Os que marcham adiante param, os que vem apoz passam por
elles, para d'ahi na pouco pararem outra vez e os que ficaram, por
sua vez passarem por elles.
Assim é isto, povoado completamente por estas figuras de ho-
mens andrajosos ; mas que tem n'esses andrajos um documento da
dignidade humana.
Não se passa por um arroio que não se os veja bebendo , não
se vê uma arvore nas subidas que não tenha um resfolgando ......
e per la mesta selva saranno e nostri corpi appesi,
Ciascuno al prun dell' ombra sua molesta,

como sonhara Dante , com a differença porem, de que temos por Harpia a
fome e o cançaço, e se ter brio é ser violento, cabe- nos em tudo a alegoria.
Acompanha-me como sombra uma figura sinistra. E' a de um
polaco snjo, cadaverico, tremulo, de olhar sinistro.
297 w w

Uma vez parou perto de mim quando estava comendo . Man-


dei dar-lhe comida e d'ahi em diante elle procura sempre o logar
onde me detenho, talvez na esperança de que , por encanto, appareça
um banquete com que elle sonhe marchando. Caminha sempre
comendo costellas de burro quasi cruas . Appellidei- o de Judeu Errante,
e assim ficou conhecido.
Outra figura que nos segue é uma mulher alta, muito loura e
muita suja. E uma mulher bonita porem a quem o soffrimento tirou até
o desejo de asseiar-se. Perdeu o marido e o irmão no Passo Fundo.
D'ali em diante vinha cuidada por amigos d'elles ; é uma polaca.
Afinal tudo acabou- se ; os sentimentos de amizade e creio que tam-
bem o respeito aos mortos.
Quando entramos na picada do Rio do Peixe, o cavallo em que
ella vinha cahio e ella tambem.
O marido não sabia apertar a sella ; eu que chegava me apeei
e fiz-lhe aquelle serviço .
Outra vez ao pássar uma ponte apressados ella não podia fa-
zel- o porque não lhe davam lugar, eu que chegava fil- a passar ; d'ahi
creio que nasceu n'ella para commigo uma confiança respeitosa.
Aqui onde tudo parece ter desapparecido, ella se approximou
do meu rancho onde comeu nos primeiros dias ; hoje olha como eu
e os companheiros, para as arvores a ver se d'ali cahe alguma cousa
que possamos comer ; mas debalde, o maná existe nos desertos da
Arabia, e n'esta floresta tão imponente não se encontra um fructo.
Uma outra rapariga, italiana, fugiu de casa para se casar com
um official.
casou e adquiriu enfermidades crneis Tem viajado
Não se casou
sempre junto de mim. Esta marcha com resolução.
Perto de nós acampa tambem um cazal ; é um cadete-sargen-
to do exercito , que desertou e veio para nós. A mulher, uma senhora
bonita, de alguma educação, quiz acompanhal-o e aqui vai marchan-
do a pé em estado muito adiantado de prenhez, sem ter o que
comer.
A principio dei -lhes alguma couza do que tinha, depois nada
mais tive.
Uma tarde muito chuvoza armaram a barraca perto da minha.
Nós, para não chorarmos, contavamos uns aos outros historias ale-
gres e riamos.
Magalhães Castro contava suas viagens á Europa e ao Japão ;
e eu estabelecia o parallelo entre aquellas viagens brilhantes a bor-
do de navios de guerra de uma nação nova, prospera, capaz de
prever e desejar grandes actos futuros ; mas que os maus governos
a collocaram na posição de nunca mais poder ser digna , porque terá
sempre comsigo o estigma de quem tem filhos de assassinos por
desejo de riqueza.
- 298

Nesta selva selvagem, quanta tristeza vai na alma de um


brazileiro que foge de sua terra para não ser escravo, ou não ter
a vida dependendo de algum dinheiro com que os homens da le-
galidade promettem salval-a ? Se foramos selvagens poderiamos nos
sugeitar a isso ; mas somos civilisados elles nos mandam matar em
nome da civilisação e da humanidade.
Devemos nos rir disso, nós que morremos , nós que lutamos ,
porque a humanidade é esta n'estes senhores da ordem e progresso :
mandar que uns morram e os outros matem, e elles nas cidades
ganham com que comprar casas e estancias .
Roberto Macario seria o melhor dos republicanos no Brazil .
Fallstaff seria tambem muito bom.
E em quanto nós aqui fugitivos, para escapar com a vida sof-
fremos todas as mizerias, elles nas cidades devem festejar o dia da
independencia do Brazil, e os pobres companheiros que ficaram nos
mattos do Rio Grande, cançados ou doentes são atados e mortos
pela nuca.
Não podem festejar melhor a nossa independencia , os homens
que pregavam a republica como a dignificação de um povo que não
quer ser lacaio, segundo o Sr. Lopes Trovão.
A pobre senhora que parou perto de nós, para quem não tive
um pedaço de pão para matar - lhe a fome, leva no ventre um filho
que não será brazileiro. Ella contar-lhe-ha quando crescer os tor-
mentos porque passou, e hão de exigir d'elle talvez, que seja amigo
dos que foram causadores do seu soffrimento, porque seu pae, um
militar não quiz obedecer a assassinos de sua Patria.

No 6. dia de marcha eu me sentia extenuado.


Caminhavamos calados , quando de dentro do mato me chama-
ram. Era um velho major que tinha cozinhado n'uma chocolateira
um pouco de feijão e comia com o filho. Restava ainda um pouco
que elle offereceu - me. Dividi com os quatro companheiros. Tocou a
cada um, uma colherada .
Montiel viu o meu estado e offereceu-me o animal em que ia
para descançar um pouco. Acceitei.
Alguns minutos depois sahimos no acampamento , na estrada
que ia do S. Pedro para o Pirahy, no Alto Paraná.
Tinham comprado algumas rezes por um preço exorbitante, e
a carne fora distribuida pelos que iam adiante. João Manoel Bar-
boza porem tinha- se lembrado de mim, guardando- me um pouco.
Fui á barraca d'elle e encontrei uma marmita com carne co-
zida. Comi como faminto.
Pouco depois chegaram os companheiros, e a alegria que sen-
299

tiram, vendo-me esperal-os com um churrasco, só elles poderiam ex-


plicar.
Obtive um cavallo para ir á tal colonia de S. Pedro, duas
leguas ao norte do ponto em que nos achavamos. São duas casas
de madeira, malfeitas, dos exploradores de herva matte, e tres ou-
tras de emigrados brazileiros.
Ao lado, no matto um aldeamento de indios que se empregam
em preparar a herva para exportação e são explorados por capita-
listas argentinos. Esses indios andam já vestidos e quasi todos fa-
lam portuguez .
Admirei-me d'isso e ninguem me soube explicar, como n'esse
sertão os indígenas falem portuguez, quando os do Brazil não falem
senão uma ou outra palavra. F' verdade que elles aqui se relacio-
nam com os habitantes do campo Erê na fronteira do Paraná, que
segundo disseram-me, dista d'aqui apenas 20 leguas ; mas estas re-
lações não bastariam para isso, e elles falam a lingua ha muitos annos.
Quem sabe se não foram brazileiros que talvez n'aquellas lu-
tas de familias tivessem de emigrar, e fossem assimilados pelos
selvagens, aprendendo a lingua d'elles e conservado a antiga, où a
elles propagando- a ?
Quantos desses nossos companheiros perdidos na floresta ou occul-
tos ali para escaparem á morte certa a que foram votados pela
legalidade, todos porque não applaudem seus crimes, ficarão para
sempre no meio dos indigenas adoptando seus costumes ?
Quem sabe se não lucrarão n'isso ?
A vida ou o viver é sempre relativo ; a questão é viver. Um
pouco de pinhão , uma caça, é tão util ao corpo como qualquer vi-
anda que a arte culinaria prepara. O que se precisa é de tranquil-
lidade, é de garantia, é de não viver dia e noite, em sobresalto ao ou-
vir o ladrar de um cão, o cacarejar de uma ave domestica, o tro-
pel de um cavallo, o bater na porta, talvez de quem pede pousada
n'uma noite de tormenta, talvez de um extraviado na campanha que
procura a quem o possa orientar, talvez de um soffredor que vem
pedir um allivio , e em vez de abrir a porta hospitaleira, em vez
de se dispor a soccorrer quem a taes deshoras lh'o vem implorar,
engatilha a carabina e diz para a familia :
- Ahi vêm os castilhistas, vão me matar . Morram antes , a deixa-
rem se deshonrar ; e ella responde : Descança, nossa honra só irá com
a nossa vida.
E quando todos estes horrores legaes se praticam na campanha,
quando o povo ruge como a fera na defeza de seus filhos , elles, os
sedentarios, os lucradores gargalham e insultam e dizem ainda tudo
isso é para consolidar esta republica que nós sabemos amar.
E o povo que não conhece o que é essa suprema aspiração
humana, só fica sabendo que a repuolica é o roubo, é a concussão
! 300 --

é a deshonra, é o crime sem punição , é a perversidade, é o desres-


peito á familia que os povos selvagens garantem ; é o latrocinio
com o titulo de viver honesto, é a infamia a titulo de virtude, a
venalidade a titulo de patriotismo, a alienação de territorio a titulo
de confraternização americana, a escravisação á America do Norte
a titulo de consolidação da liberdade patria.
E a republica que nasceu fraca por que o terreno não estava
preparado, que nasceu criminoza porque foi filha de uma traição ,
porque quem a proclamou trahiu o juramento que prestára de de-
fender com a vida e com a honra o que ella destruiu, e que quem
trahe a bandeira que herdára de seus antepassados, que tinham
sangue de mais de uma geração , e que jurára defender com a vida,
que amor poderá ter a que lhe impozeram n'um momento de bestia-
lização ?
A republica, diziamos, em vez de mostrar- se digna de ser
amada pela verdade, querida pelo respeito de que se devia fazer
credora, entregou-se como a barregan dissoluta á quem mais depra-
vado se mostrasse, fosse elle um tartufo que se mostrasse exterior-
mente honesto, mas depravado nos seus gozos, fosse o brutal que a
tratasse a pontapés e a bofetadas contanto que em cada coice dis-
sesse é isto que é o amor.

O commissario de policia ou fiscal das mattas, filho de Buenos


Ayres, é um moço sympatico bem educado e ao corrente de toda a
politica de sua terra. Conversei com elle durante muito tempo sobre
os acontecimentos que me levaram ali e sobre os de sua terra, já
mais humanizada depois de Rozas, apezar do genio irriquieto do seu
povo.
A politica d'elle é a que segue o Dr. Alen .
Na nossa palestra eu estabeleci o parallelo entre a tyrannia
de Rozas a que em outro tempo viemos do Brazil ajudar a des-
truir, sendo o Brazil monarchia , e a tyrannia de Floriano Peixoto,
que a America do Norte ajuda a prolongar- se, sendo ella republica.
Como quem conhece as cousas e formou sobre ella um juizo
definitivo, elle me respondeu : Ha um engano, Coronel, na sua com-
paração com Rozas e o marechal do Brazil.
Rozas foi tyranno, é verdade, mas Rozas era um homem
querido pelo que se chamava povo argentino porque se fez amar
por elle. Era um moço intelligente, educado, pertencente a uma das
melhores familias, rico, dizem que de uma belleza extraordinaria,
de mãos brancas e pequenas, desejado por todas as mulheres : mas
fugindo d'ellas a ponto de abandonar a capital e ir se metter na
estancia.
301

Tornou-se o maior gaúcho do seu tempo, vestia chiripá, cal-


çava botas de garrão de egua. Em pouco aprendeu tudo que é or-
gulho do gaúcho , e tornou- se o primeiro entre elles quer fosse no
atirar o laço ou as boleadeiras, agarrar um cavallo bagual na cam-
panha, e seu arreios, montal -o e deixal-o correr como quizesse, com
pasmo de todos os gaúchos que julgavam aquillo uma loucura, tocar
guitarra e cantar os versos que elle mesmo fazia, bailar com as .
raparigas em traje de gaucho ; mas com seu xiripá de seda e sua
camiza bordada, e por isso em pouco seu nome tornou -se falado como
um heroe de romance ; todos os gaúchos o adoravam, porque em tudo
que havia perigo n'essa vida que elles desprezam, estava elle na fren-
te, e as raparigas fugiam de longe para ouvil- o cantar as milongas ;
para bailarem com elle. Estabeleceu o trabalho na estancia, pagava
bem aos trabalhadores, por isso, em pouco a peonada affluia para ali
e elle dava trabalho a todos.
Tornou-se um chefe querido de facto e de direito . Por outro
lado havia uma corrupção grande nos costumes. O governo era só
mente para distribuir o dinheiro publico eutre os seus, os fidalgos .
Rozas apresentou-se e facilmente venceu . Todos os corruptos se appro-
ximaram d'elle e depois quizeram trahil- o ; começou d'ahi a sua
tyrannia.
Não foi levado ao governo por uma combinação, conquistou- o
como o mais forte e mandou destruir os corruptos e corruptores.
O seu marechal, pelo que tenho lido , apezar de ser uma alta
autoridade no exercito de sua terra, tem alcançado todas as posições
por trahição , dando assim um mào exemplo a seus subordinados ;
depois, talvez com medo da queda e da punição , manda destruir os
bons e eleva os máos.
Aqui tem passado foragidos do Brazil, homens do Paraná e Rio
Grande, todos bons e honestos que mostram viverem la do trabalho,
porque aqui vêm trabalhar nos hervaes ; se não são homens de ar-
mas, porque fugiram, sel- o -ão porque a gente de Peixoto ameça de
morte a todos que não commungam com ella !
O que se parece com esse general brazileiro é aquelle Crom-
wel de Inglaterra.
Por minha vez protestei.
Cromwel, disse-lhe eu, era um fanatico religioso, vivia na sua
aldêa pobremente, distribuindo o que ganhava pelos necessitados ,
animando o povo para ter coragem no soffrimento que a corte de-
vassa de Carlos I creava no paiz.
Não era um militar em quem a Nação confia, paga, cerca de
honras e garantias para defendel -a , cuja bandeira é obrigado a de-
fender porque para isso hypothecou sua honra.
Cromwell foi levado pelos seus puritanos a lutar contra a
corrupção.
302

Venceu, e foi o chefe.


A corrupção procurou adaptar- se a elle, aquelles mesmos
que viviam á custa da vileza da Corte quizeram acclamal- o rei , e
deram-lhe o titulo de Protector. Resistindo aos seus desmandos , co-
meçaram a odial-o, foi então que elle os enxotou.
As posições rapidamente ganhas deslumbram, e Cromwell se
deslumbrou ; mas na sua intimidade viu que em vez de salvar sua
patria, elle creara mais uma classe de viciosos nos que o ajudaram
na luta, e que até então eram honestos, d'ahi a hypochondria que
o victimou em pouco, e o povo infeliz achou bom o desbriado fi-
lho de Carlos I justiçado por ordem de Cromwell, e que chegou a
pensar em casar- se com a filha do verdugo de seu pae .
Mas, convem notar que o carrasco de Carlos I apresentou-
se mascarado, e apezar do triumpho de Cromwell, ninguem quiz
sel- o , e o que appareceu não deixou o seu nome ; ao passo que ho-
je no Brazil o individuo que commette uma d'estas infamias barba-
ras, faz ostentação d'ella porque assim será considerado benemerito,
tal foi a norma que deu o Sr. Floriano ao caracter do povo que
si se conservasse honesto odial - o -hia como trahidor, porque, diz o ri-
fão odeia-se o trahidor ainda mesmo que se ame a trahição .
Almocei com o commissario que tinha hospedado em sua casa
alguns companheiros meus , entre elles um ferido, e soube afinal que
elle havia tomado parte no ultimo movimento revolucionario de
Buenos Ayres e por isso o governo o mandara fiscalizar aquellas
terras longinquas. Era uma punição, mas punição que não extermina.
Graças ao commissario, consegui que um morador, que ja não
podia vender mais do que tinha para sustentar os seus trabalha-
dores, porque ali até o xarque, o feijão e o milho vem de longe,
me vendesse o necessario para alimentar-me nos cinco dias de via-
gem que ainda restava-nos fazer até o porto de embarque, e nego-
ciei com um morador o meu jumento e o burro, isto é , dei-lhe os
dois animaes pelo aluguel de dois cavallos até o porto, um para
mim e outro para os companheiros irem-se alternando na marcha,
e no porto entregaria os burros e os cavallos.
Voltei já á tarde para o meu acampamento trazendo os
dois animaes , e bem regular sortimento de toucinho , xarque, feijão
e assucar, o que muito alegrou aos meus companheiros.
Deviamos partir no dia seguinte depois de almoçarmos uma
feijoada.
Pela manhã faltou um dos cavallos. Teria fugido ? Seria rou-
bado ? Voltei à colonia para saber se havia chegado lá , ou para
mandar procural- o , porque não queria que o dono me viesse cobrar,
e mandei os companheiros que seguissem viagem, que eu os alcan-
çaria.
O cavallo não tinha chegado ali.
393

Mandaram procural-o e eu tive de esperar passando quasi todo


o dia com o commissario. Começou a chover, e só á tarde, não en-
contrando- se o cavallo , que soube-se ter sido roubado por um com
panheiro, resolvi ir- me embora ficando o dono sciente de que eu não
tinha obrigação de restituil-o , porque elle mandaria procural-o mas
ficando com os meus dois animaes pelo aluguel de um só.
Eu calculava dormir no acampamento, mas ao chegar ali, ja
tarde e chovendo, não encontrei nenhum companheiro, os que ti-
nham chegado haviam marchado, porque souberam que na tal colonia
nada mais havia para comer e portanto a unica esperança que res-
tava era seguir a ver se chegariam ao porto de embarque.
Disseram-me que a estrada era boa na extensão de algumas
leguas, porque estavam trabalhando n'ella.
A uma legua de distancia encontrei os trabalhadores que dis-
seram-me que d'ali em diante a estrada era má, mas que minha
gente devia estar perto porque disseram que não podia se adiantar
muito por minha causa.
Continuava a chuva e começava a noite quando eu entrava na
matta onde só havia um pequeno trilho. O barro, e as madeiras
cahidas obrigavam-me a procurar os desvios ; porem com a escuri-
dão da noite embrenhava- me no matto ; riscava um phosphoro e a pe-
quena luz clareando um pequeno espaço limitado pelos bambús, mais
me atrapalhava ; voltava então puchando o cavallo em procura do
ponto de partida e a pé atravessava o barreal , ou obrigava-o a pas-
sar por baixo das arvores cahidas, on quando não era possivel met-
tia-me pelo matto bem junto a raiz das arvores para não me afas-
tar do trilho, e mais de uma vez cahia no fosso que as raizes
deixavam na queda das arvores.
Uma das vezes o cavallo recuzou passar , e eu senti caminhar
por dentro do matto o que quer que fosse que se movia e me fez
lembrar o caminhar subtil do tigre .
Consegui vencer a resistencia do cavallo, e tropecei n'um corpo.
Accendi um phosphoro e vi o cadaver de um companheiro, morto
provavelmente de fome.
Segui a minha peregrinação .
Aquelle tinha terminado a delle, descançava para sempre.
1
Aos que seguem o que esperará no estrangeiro ou na patria des-
ditosa ?
Só perto da meia noite alcancei aos meus que acamparam so-
bre um lagedo, unica clareira que encontraram .
Tinha caminhado tres leguas de floresta durante a noite e che-
guei com a roupa molhada pela chuva e pelo barro , com fome, mas
nada encontrei prompto para comer, cançado, e sobre tudo tendo
sempre diante dos olhos of cadaver d'aquelle companheiro, abando-
nado ali.
304

No outro dia soube que o encontraram devorado pelos tigres.


Foi portanto um tigre que se afastou quando eu me approximava.
No outro dia tivemos de marchar cedo.
Dois rios que desaguam no Paraná poderiam encher com as
chuvas e nos privarem a passagem
Nesse dia passamos o primeiro , á tarde com alguma difficuldade
por ser muito correntoso devido ás rochas . Os poucos logares, capa-
zes de servirem de poiso , estavam immundos, porque tinham servi-
do de acampamentos consecutivos de muitos. As moscas chegavam
a fazer sombra.
Mas em compensação myriades de borboletas lindas accumula-
vam-se ali. São as mesmas dos sertões do norte, e eu que fiz a mi-
nha cama n'um lagedo á margem do rio, e via-as voarem por ali
cruzando nos raios do sol poente e o ruido das cascatas, a rapidez
com que se formavam e desfaziam os flocos de espuma, imagem da
felicidade e da esperança na nossa patria, mergulharam-me no pas-
sado como n'um sonho . em que se vive a vida ja vivida e sentimos
gozos que se extinguiram para sempre, como sentimos no paladar,
muitas vezes o sabor de um fructo que comemos ha annos, e no
nosso olfato o perfume de uma flor exalado n'um momento feliz
de um gozo que se extinguiu.
Nessune maggior dolore
Che ricordarsi del tempo felice.
Nella mizeria............

No outro dia passamos junto á confluencia de dois arroios.


Desviamo-nos um pouco do caminho por necessidade de en-
contrar um logar onde se podesse armar uma barraca.
Quem passou a infancia n'essa tranquillidade da alma que dá
tempo a se afastar de casa e procurar á hora em que o sol do
equador dardeja seus raios de fogo, uma sombra a beira do regato
que deslisa na floresta amiga que convida aos brinquedos, ao que
na primeira infancia sente a alma accordar para as ignotas harmoni-
as que a imaginação gera ao som da melodia das aguas que des-
lisam incançaveis, methodicas, uniformes, tendo o mesmo som na que-
da n'um rochedo , a mesma ondulação na curva de um outro, somen-
te poderá avaliar a tristeza que me vai n'alma aqui n'este deserto ,
em terra extranha, foragido, desconhecedor do que me espera e o
que é feito dos meus ?
E quando esta paizagem recordar aquella onde uma mãe, joven,
viuva aos quatorze annos, dedicando toda sua alma de mãe ao filho
orphão, tornando- se sua companheira de folguedos ás vezes, se mos-
tra sempre, e que esta mãe era filha de um revolucionario, de um
305

proscripto pernambucano que lhe ensinou a amar a luta por amor


da patria, n'essa molle sesta obedecia ao filho que lhe pedia para
cantar-lhe alguma d'aquellas canções bucolicas com que lhe emba-
lara o berço ella cantava com sua voz suave e divina ; e as la-

grimas corriam de seus olhos, prevendo o dia que o filho a aban-
donaria...
Irrizão ! E' no meio d'esta floresta, em paiz estranho , d'este
deserto que parece não ter fim, que se me accordam no espirito essas
lembranças ! Tempos idos , felicidade, amor de mãe, de esposa , de *fi-
lhos, adormecei. Ao homem que uma vez obrigaram a beber na
taça do infortunio patrio, so resta a luta até á morte ou o triumpho .

Se não tivessemos apressado a nossa marcha, teriamos ficado


detidos no io cujas aguas cresciam.
Como viajava a cavallo, adiantei-me dos meus companheiros ou
da minha tribu , porque d'esde que entramos no territorio argen-
tino viajamos em grupos destacados uns dos outros. Junto ao rio
estavam muitos companheiros parados, as aguas barrentas indi-
cavam augmento . Servi de explorador procurando o caminho onde
podesse passar sem nadar, encontrando-o em direcção a uma pequena
ilha que achava-se acima, e d'alli descendo até o ponto de sahida .
Demorei-me ali para indical-o aos que iam chegando, e apezar disso
muitos foram arrastados ; felizmente porem uma outra ilha mais a
baixo não os deixava afogar.
Na tarde d'esse dia vieram dizer-me que ficara no caminho ,
uma rapariga que ja não podia caminhar devido à fome.
Mandei buscal-a no meu cavallo e dar- lhe comida . No outro
dia pela manhã ja a vi alegre, caminhando como se nada tivesse
soffrido.
Pela manhã segui para o porto, duas leguas distante. Era
tempo de chegarmos porque o nosso fornecimento exgottara-se na ves-
pera, á noite, por termos nos acampado perto de outros companhei-
ros que tinham necessidades .
Apezar da chuva, a meia legua do porto do Pirahy, os solda-
dos argentinos que ali tinham ido nos receber, vinham nos revistar
para ver se tinhamos armas.
Tinhamos deixado na margem do Uruguay todas as armas de
guerra ; traziamos apenas revolver e faca, alguns traziam uma es-
pada que desejavam guardar como reliquia, ou por ter pertencido a
um parente proximo, e ter-se nobilitado no Paraguay, ou porque se
nobilitara n'essa triste campanha que não sei se terminará mais.
Os soldados levavam tudo, revolver facas e espadas, a alguns
levavam mais alguma cousa, porque a titulo de procurarem armas,
20
306

abriram os saccos.... No porto estava uma pequena lancha a va


por, velha, e immunda , e duas lanchas ou batelões que nos deviam
levar a reboque.
Commandava a força de linha um alferes.
O governo mandara fornecimento para nós , porque muitos eram
os que ali estavam a titulo de fornecedores , não havia porem dis-
tribuição , e muitas barracas foram armadas onde se nos vendia de
tudo, por preço exorbitante, de modo que os ultimos vintens que
nos restavam deviam acabarem-se ali.
Tinha vindo na lanchinha o coronel Telemaco Borba que vie-
ra com Juca Tigre, e o governador de Pouzadas nomeara chefe de
uma colonia .
Esse governador, Dr. Balestra, n'um relatorio que apresentou
ao governo de Buenos Ayres, dizem, declarou que não era preciso
mandar vir da Europa colonos para povoarem as colonias de mis-
sões, porque as revoluções do Brazil pelo caracter cruel que têm
tomado, parecem nunca mais terminar, e que a vida sendo im-
possivel no Rio Grande, todos os homens pacificos emigrarão indo
povoar as colonias, e a prova do que diz é que em pouco tempo
já tem elle localisado mais de mil colonos brazileiros .............
Borba veio buscar-me para jantar a bordo da lancha .
No porto do Pirahy só ha uma casa ou antes um grande ran-
cho de negocio de um italiano, dizem que socio do general Roca.
A mulher desse italiano, moça e bonita, veste calça de casemira e
camisa de flanella , ata os bonitos cabellos á chineza, atravessa-o
com um punhalzinho de ouro, tem pés pequenissimos, mas é indif-
ferente a tudo o que não seja o seu negocio. Em compensação está
aqui um casal de jovens de Pouzadas. Creio que o marido foi o
principal contractador do fornecimento, ou é encarrogado de fisca-
lisar as contas da casa, porque tratam-n'o com uma deferencia ex-
traordinaria. Parece que ainda estão em lua de mel .
Quando o marido retira-se um pouco ella lê um romance. Me-
morias de um marido, ou então vai á cozinha fazer uns doces de
ovos e um optimo café.
Vendo-a, ali, perguntei- lhe, logo ao chegar, se me vendia uma
chicara de café.
Perguntou-me se eu era o doutor , respondi-lhe ; mandou- me
entrar para a cozinha e deu-me um grande copo de vidro cheio
de optimo café, com pasteis de ovos fritos em graixa , mas saborosissimos .
Podera ! Se eu estava molhado e em jejum ! Todas as vezes
que passava por ali ella chamava-me e dava me café. Desforrei- me
da falta que tinha tido antes, e não é para admirar que eu procu
rasse passar ali muitas vezes a titulo de vel- a, comprimental-a, falar-
lhe de litteratura, mas o maldito marido roubava-lhe o tempo em que
me daria mais algumas taças de café . Inconveniente marido !
307

Travei relações com o Alferes e obtive nem só o meu revol-


ver como de outros muitos companheiros, apezar da difficuldade de
saber- se qual teria sido o soldado que os tinha.
O jantar na lancha não foi mais do que um prato de sopa
de marcarrão com carne já ardida.
A barranca do rio é muito alta e para descer- se é preciso ir
em zig-zag. Não é muito largo aqui o Paraná e poder-se-ia ouvir
o que gritassem os paraguayos se houvesse alguns ali , na margem pa-
guaya.
Mas não ha uma habitação , não ha um signal de homem na-
quella zona da terra, que um tyranno escravisou e essa escravidão
chegou ao ponto da obediencia absoluta que levou seus habitantes ao
anniquilamento !
O Paraguay ! E' portanto emfrente e proximo a esta terra
que estamos !
Meu espirito preso d'uma tenaz melancholia foge para meus
tempos de creança quando meu avô reunia os bravos filhos do norte,
incitando - os a tomar armas e me levava comsigo nas povoações onde
fazia festas para elles irem e se apresentarem, e tornava-me eu a
figura saliente d'estas festas porque tinha conservado de memoria uma
proclamação do Presidente Dantas e recitava- a cheio de enthuziasmo,
trepado n'uma cadeira, e minha voz infantil repetindo esse grito
patriotico, penetrava no espirito d'aquellas almas boas que se dispu-
nham ao soffrimento e á morte pela dignidade da Patria, e para h-
bertar um povo do tyranno que o escravisava.
Depois os via partir. Via aquellas despedidas, aquelles prantos,
aquelles adeuses que davam uma esperança de volta a todos e que
para muitos fóra o derradeiro .
Se eu tivesse idade, iria tambem ; dizia á minha mãe, e pe-
dia- lhe para contar-me o que era a guerra, o que eram batalhas.
Depois chegavam os jornaes e todos aquelles que tinham pa-
rentes na guerra vinham á nossa casa , e era eu quem lia para elles
as noticias, as batalhas, as victorias, o numero de mortos.
Pobres entristeciam -se por não verem ali o nome dos seus, sem
se lembrarem que um simples soldado não tem direito a ser nomea-
do e que os seus actos de bravura pertencem ao general, ou offi-
cial que os manda ; que elles não são mais do que o anonymo que
morre para engrandecer aos outros.
Mas sempre a esperança os animava.
Não morreram, pensavam, se fossem mortos o jornal devia tra-
zer-lhes os nomes, porque elles hão de morrer brigando. Outros di-
ziam Que venham depressa para nos contar essas cousas, outros
porem diziam que perdessem a esperança, que quem fosse ao Para-
guay não voltaria mais, porque era muito longe, o fim do mundo ,
308

a minha imaginação creava um paiz longinquo, habitado por mons-


tros, e dizia é Paraguay.
Eis-me em frente ao Paraguay ! A floresta que altea-se nas
suas terras desertas traz-me á mente essas sepulturas feitas á bei-
ra da estrada , onde uma vegetação exhuberante em pouco salienta-
se. Mas se este deserto foi produzido pelo Brazil , se essa sepultu-
ra fomos nós que fizemos, elle está vingado, porque no Brazil o
Rio Grande tornou-se o necroterio .
No outro dia á tarde tivemos de marchar, antes porem, reuni
todos os officiaes e lavrei uma acta, assignada por todos em que
apresentavamos a Apparicio o nosso reconhecimento e hypothecava-
mos- lhe a nossa dedicação.
Apparicio parecia estar proximo a nos abandonar. Tinha vin-
do acompanhando seu irmão , abandonando fortuna e familia, para
obedecer ao impulso de sua alma cavalheirosa . Depois substituio- o com
a mesma dedicação, coragem e intelligencia .
Quando no Ibicuhy, vimos que era impossivel buscar a cam-
panha, nenhuma idéa o preoccupou mais , senão salvar a columna que
acompanhára Gomercindo em todas as glorias e soffrimentos.
Em paiz extranho, livres da perseguição do inimigo, mas sempre
no soffrimento , elle nos acompanha e soffre comnosco, no momento po-
rem em que nos dispersemos para poder de novo encetar a Juta,
receio que elle nos abandone julgando terminada sua gloriosa missão.

A lancha que nos conduz é velha, pequena , com uma tolda


insignificante, e caldeira que desprende um calor insupportavel.
Poucos fomos os que obtivemos passagem n'ella . Duas lanchas a
reboque trazem os infelizes companheiros, tão apertados que nem
se podem sentar. Vêm de pé, comprimidos uns contra os outros ,
como as hastes do trigo na lavoura. Nas curvas, as aguas revolvi .
das pela helice da lancha vão rapidas no flanco das em que elles
vem e molham-n'os completamente.
Não recebemos alimentos para a viagem, ha porem, a bordo
da lancha, biscoutos, assucar, arroz, para ser vendido por preços
exorbitantes.
Pensam alguns que isto que compramos, foi o que o governo
argentino mandou para nós, e para não deixarmos de comprar não
se tem distribuido rações .
Quasi ao anoitecer aportamos em terras paraguayas. Uma praia
arenosa. coberta de flores.
E's tu, ó terra infeliz, que nos dás abrigo, a nós fugitivos da
morte a que fomos votados por não acceitarmos o jugo da tyrannia,
e aqui vamos , nós brazileiros, guardados e sustentados por um
- 309

paiz extranho, e o teu solo que innundamos de sangue nos offerece ,


na primeira vez em que a elle aportamos, um leito de flores !

**

Pela manhã subi á barranca, para ficar só durante alguns


instantes no seio da floresta paraguaya , no silencio absoluto , sentir
a sua mudez. Qual não foi o meu espanto ao approximar- me re-
conhecendo que quasi todas aquellas arvores eram larangeiras , car-
regadas de fructos saborosos ! Não era portanto somente flores que
aquella terra offerecia aos desgraçados brazileiros .
Recebia-os com todas as leis da hospitalidade, offerecia-lhes
tambem alimento.
Desgraçada fidalga, que pagas hoje com mizericordia aos que
em outros tempos te rasgaram o seio !

Penosa viagem foi a nossa, descendo o Paraná quasi sempre


de pé e expostos ao sol, soffrendo fome. Me restava pouco dinheiro
e a bordo da lanchazinha cozinhava-se para a tripolação e os soi-
dados argentinos. Um pouco de sopa, um pouco de xarque, cada
refeição d'estas custava um peso argentino, ou dois mil reis , ape-
zar de valer mais o nosso dinheiro , elles não davam desconto . Afi-
nal no 4 °. dia de viagem chegamos á Candelaria e tivemos de ir a
pé até á povoação, distante do porto com um sol tremendo . Ali
fomos todos contados, cabeça por cabeça , e acampados em um pe-
queno cercado com sentinella á vista. Apparicio e os officiaes tive-
ram licença para arrumarem-se onde quizessem, indo alguns para
varias casas ; eu porem, preferi armar a minha barraca junto ao
arroio e ali ficar com os meus companheiros.
As rações de carne e biscoutos que distribuiam eram insi-
gnificantes, o que me obrigava a comprar alimento, para isso tive de
vender o meu revolver um magnifico belga, por 20 pesos papel , e
tomar dinheiro emprestado a um companheiro.
Somos guardados como prisioneiros.
Querendo uma vez ir ao povo quando ja estava longe, a sen-
tinella chamou-me e mandou que voltasse.
Disse- lhe que havia ordem de poderem os officiaes irem para
onde quizessem e que eu era official , bem como o meu companheiro
Jorge Cavalcanti.
Respondeu-me que fosse, falar ao cabo que estava sentado
longe, junto de umas quitandeiras.
Dirigimo-nos a elle que sentado mesmo, e arrogante pergun-
tou-me o que queria . Em vista de tal personagem tirei o meu cha-
- 310

péo e, em tom muito humilde, pedi-lhe licença para poder sahir ao


que elle accedeu, com orgulho protector.
No outro dia tive dó d'elle, vendo-o apanhar uma surra de
varas ; me approximei do tenente que o mandava castigar , enter-
cedi pelo pobre e fui attendido.
Logo no outro dia pela manhã fui visitar as ruinas jesuiticas.
Blocos de pedras monstruosos, burilados, marcam ainda o vas-
to terreno que elles occupavam com suas edificações ; algumas pa-
redes ainda de pé, as pedras porem quasi soltas, conservando- se em
difficil equilibrio. As raizes das arvores que se metteram pelas fen-
das, bastaram para desconjunctal- as. Uma delgada raiz desmoronando
paredes de granito .
E ha quem julgue que o poder seja eterno, que pode-se an-
niquillar um povo sem se lembrar que a acção do fraco sendo con-
stante, tenaz, pode destruir o forte 1

Dura, tamen molis saxa cavantur aqua.

Os adobes estão petrificados , e os habitantes do lugar levam-os


para edificarem suas casas.
Encontrei ali ainda uma porta de que tirei um pedaço de ma-
deira, um castiçal de barro, e uma medalha muito gasta pela ferru-
gem, mas onde ainda se vê a ephigie de S. José. Proximo das
ruinas habita uma familia paraguaya . Approximei -me d'ella , que tinha
um doente ; ensinei-lhe remedios de plantas conhecidas e com isso
ganhei sympathias..
Esta familia compõe- se de um casal de velhos , uma nora e
dois filhos. A nora, uma mulher alta, de cabellos bastos e negros ,
olhos bonitos, dentes limpos, mas sendo moça ainda, ja tem phy-
sionomia de velha. Cuida muito do cabello, que penteia mesmo á
minha vista.
O marido e o irmão trabalham na roça. Offereceram- me mate
e charutos, cigarritos de hoja, que ella fazia ali mesmo em minha
presença. Têm as folhas de fumo á mão. Quando querem fumar tiram
uma folha e fazem o charuto levantando a saia, fazendo da perna
a taboa onde o enrolam.
Esta mulher, a velha , casou-se no começo da guerra, e o ma-
rido d'ella foi encarregado de dirigir as mulheres na lavoura a que
Lopez as obrigava, porque estando todos os homens em armas , ellas ,
sem distincção, eram obrigadas a fazer roças, plantar e colher para
sustentar o exercito .
Soube por ella que o Lopez matou, á fome, todos os parentes
dos que se renderam em Uruguayana, não poupando, nem velhas,
nem creangas de ambos os sexos.
-
O Lopez devia de ter quem chamasse essa selvajaria pa-
311

triotismo, e se elle vivesse hoje, talvez fosse um grande amigo do go-


verno brazileiro a quem chamaria de discipulo, por ter adoptado suas
praticas e suas leis.
Perguntaram-me que nação obrigava os brazileiros a andarem
assim fugitivos tão rotos e descalços . Respondi-lhes que não era
de nação nenhuma, que foram uns monstros que appareceram. Per-
guntou-me a ingenua velha se eram tigres ou o que eram, e se
não sabiamos fazer armadilhas para pegal - os .
Fez-me elogios dos brazileiros, que eram muito bons, que não
deixavam matar as mulheres, e que uma vez chegaram a tempo ,
porque Lopez tinha dado ordem de matar todas as mulheres de uma
villa, que no outro dia iam todas morrer, mas a chegada dos bra-
zileiros salvou a todas, e por isso admirava-se de gente tão boa es-
tar soffrendo .
Aquella gente já se acabou , agora são outros, da Ordem e .
Progresso, disse-lhes com amargura.
Os dias que passo aqui é o meu passeio predilecto ás ruinas
e a casa d'esta familia onde ajudo a tanger a roda para ralar man-
dioca e assim pagar os beijús que me dão.
A velha quer por força me ensinar a falar o guarany , e eu es-
crevo n'um caderno as phrases que desejo conservar, sobre tudo as
de comprimentos e saudações. Uma vez passava uma rapariga boni-
ta e eu querendo dirigir- lhe uma fineza, puchei pelo caderno e em
.quanto procurava a phrase ella se ausentava, de modo que quando
a pronunciei ja não me podia ouvir. As mulheres riram-se disso. Era
sobrinha da velha, a rapariga, e ella com toda ingenuidade , ou talvez
por malicia, offereceu-m'a para minha professora ,
Ella é bonita, disse-me. Cunhatahym porú, e assim você apren-
derá mais depressa. Agradeci por ter de viajar no outro dia e era a
minha ultima vizita , ia despedir- me ; e não foi sem um certo aperto
de coração que elles se despediram de mim e eu d'elles.
Por mais humilde que seja o individuo , por mais pobre que
seja o lar que nos abriga na nossa desgraça , gravam- se em nossa
alma de tal modo, que se a desgraça continúa nos recordamos d'elles
com saudade como deve recordar o beduino perdido nos areaes ar-
dentes, do oazis que lhe deu sombra, da fonte crystalina que matou-
lhe a sede , e se vierem dias felizes , elles devem ser lembrados como
o conforto, recebido na mizeria.
Com os ultimos companheiros chegaram muitos das columnas
de Prestes Guimarães e Dinarte Dornelles, os que tinham podido
escapar á matança na margem do Uruguay.
A columna de Prestes se dividira ; uma parte voltou para a
serra, apezar da extensão a percorrer e dos perigos . Por toda par-
te os que iam cançando ou descuidando-se viam surgir quem os de-
gollava.
- 312

Uma estrada de cadaveres desde o Camaquam, perto de S. Bor-


ja, até o Carazinho ; quasi cem leguas.
A outra procurou o Uruguay e colhida ali sem mais resis-
tir, sem dar um tiro, foi quasi toda morta, n'ella o bom e valente Pia-
nelli, que dizia que tudo havia de fazer para salvar Pinheiro Ma-
chado de quem era amigo, e o infeliz Nabor, estudante em S. Pau-
lo. Levaram estes dois atados á presença de Pinheiro Machado ,
Quer escrever para sua familia ? escreva que eu mandarei a car-
ta, disse-lhe Pinheiro Machado.
Não, disse Pianelli, nada tenho para dizer-lhe. Se me quer fa-
zer um favor, não me deixe degollar, mande matar-me por outro
meio .
Levem-n'o, foi a resposta ; e foi immediatamente degollado.
Calcula-se em mais de quatro centos os degollados, inclusive mu-
lheres e creanças !
Outros narram como passando, por nosso caminho, viram o ca-
daver de Gomercindo, no meio da estrada, sem orelhas, sem a pel-
le de parte do rosto, castrado, crivado de punhaladas ; outros que
vieram por ultimo ja o viram sem cabeça.
Loucos, que na selvajaria fazem no cadaver o que dese-
jam fazer nos vivos, esquecendo que estes actos accendem o
odio que parecia adormecer, e levam á luta muitos que pensavam
descançar.

* *

Muitos companheiros vão ficar aqui, como ficaram outros em S.


Pedro.
Procuram-nos no acampamento, promettem-nos bom ordenado
para trabalharmos nos engenhos de assucar, e muitos se engajam , pelo
cançaço, pela necessidade.
Alguns vão para o Paraguay. Devia de ser assim a procura
quando aportavam os navios negreiros trazendo os que os regulos e
tóbas vendiam, por humanidade, com a differença de que lá mes-
mo, elles eram escravos, e os nossos supportam esta condição em
paiz estranho , por ter lutado contra a morte e contra a infamia no
paiz onde ja foram livres .
Torquato Severo que havia ficado no Pirahy á espera da lancha,
acaba de chegar e resolveu - se que seja elle mesmo quem siga para
Corrientes, embarcado. Apparicio procura meios de ir por terra ,
alugando carretas, eu porem prefiro ir embarcado. Tenho pressa de
chegar onde haja telegrapho para dar noticia de que não morri. Tomei
logar na lancha com os meus companheiros, e para isso tiveram de
ficar alguns de Torquato.
O meu sargento, Affonso , que resolveu ficar aqui, tem fugido
- 813

de mim. Diz aos outros que não tem coragem de ver-me Doe-lhe
separar- se de quem elle acompanhou em todos os perigos, quem foi o seu
companheiro de martyrios sem nunca desanimar, sem nunca lamentar.
No porto do embarque porem, estava elle. Levava-me um pão e
duas rapaduras. Deu- m'os sem proferir palavra, com os olhos humi-
dos, depois atirou-se a meus braços em prantos, num longo pranto ,
depois abraçou- se ás minhas pernas, depois apoderou-se de minhas
mãos, beijou-as comprimindo n'ellas os seus labios, molhando- as de
pranto, e sem olhar para mim retirou- se lento, sombrio pela estrada.
Eu o olhei por muito tempo.
Era talvez a derradeira vez que o olhava. Quantos dos nossos
separam-se assim dos seus !
Esta republica começou por uma d'estas separações, sem sangu9,
sem morte, depois vieram as pelo sangue e pela morte, o que será
amanhã ?
Apparicio veio despedir-se de nós e ao abraçar-lhe perguntei :
Até quando ?
Se você for dos primeiros que voltem ao Rio Grande ou vol-
tarà commigo ou lá me encontrará !
Respondi a esta phrase com um abraço longo, expressivo.
Enganam-se os que julgam, que a crueldade, a selvajaria , podem
fazer desapparecer o estimulo para a luta, quando isto o tonnifica. Enga-
nam-se os que obrigam ao exilio, ao softrimento em terra estranha, á mi-
zeria e á esmola, o que mais doe, que cobrindo as fronteiras com
os assalariados possam viver tranquillos.
Aquelles que abandonam a patria por sua vontade adoptam
a terra em que vivem, porque é n'ella que encontram o que lhes
faltava lá . Nem por isso porem, deixam de ter saudades porque o
proprio soffrimento no passado deixa uma sombra de prazer na alma,
porque n'este soffrimento ha uma esperança, e a esperança è sem-
pre doce, é um noivado da noite martyrio, com a aurora do ama-
nhã ; victoria e a terra onde se soffreu e se esperou torna-se um leito
nupcial d'essa approximação das dores que se soffre e da esperança
de allivio .
Mas, quando essa terra é um refugio, quando é em azylo da
vida, mizerenta, humilhada, só uma idea predomina : voltar. Morrer
talvez, mas morrer matando os que lhe privam, ou por interesses
individuaes ou por obediencia tudo que um homem pode mais desejar :
ter um lar, e n'elle viver tranquillo. Não, elles não se enganam.
Elles sabem de tudo isso. Elles calculam medem, pesam toda
essa ignominia e a somma total é o lucro pessoal .
Que lhes importa que morram brazileiros ? que lhes importa
que a nação se anniquille , que lhes importa que amanhã outras
nações venham tirar uma desforra do Brazil por ter elle durante
algum tempo querido ser digno n'este continente ? O patriotismo
314 —

d'elles dura pouco , um lustro quando muito ; em um lustro pode-se


ter com que ir viver na Europa como Gusman Blanco ! Cautella
porem, senhores ! Cautella porque os que vêdes morrer matando
os que são dignos , podem comprehender afinal que servem de ins-
trumento vil para vossa fortuna. Que o sangue que derramam a
titulo de defender a legalidade, misturado com o dos que essa le-
galidade manda matar, só tem um fim : enriquecer- vos ; e a bestiali-
zação pode desapparecer, e ai de vós. Ai ! de quem não vê o pran-
to do que chora . Ai de quem não ouve o grito. do que implora !
Ai de quem atêa o incendio sem se lembrar que hade ser devorado
por suas chammas !
Lançam na alma dessa creança o veneno da impiedade ! essa
republica creança, amanhã vos pedirá contas da alma pura que pos-
suia e que vós para vos enriquecerdos poluistes, tornastes infame !

Os Jesuitas! ....
Por muito tempo, ou desde que comecei a pensar,
esta expressão produzia em mim uma irritação , uma especie de
revolta . Eu via sempre, homens negros opprimindo , matando, des-
truindo tudo , familia , honestidade , honra.
Mesmo lendo esse poema que em poucas palavras narra a
grandeza, de Anchieta e Nobrega, essa epopéa que teve por cal-
vario os insondaveis sertões brazileiros, eu duvidava que aquella
abnegação, aquelle devotamento tivesse outro fim que não fosse o
dominio.
Preserva nossos filhos da leitura dos romances creados pela
imaginação .
Ensina-os a ler no livro diario dos soffrimentos actuantes,
das glorias e martyrios dos tempos em que viverem. Tudo que vem
do passado é duvidoso, a não ser o producto dos actos que se per-
petuam anniquillando ou elevando as familias e as nações.
Commodo e Nero deviam de ter tido adoradores.
Lucrecia Borgia foi chamada anjo de bondade por Metastazio ,
se me não falha a memoria. Cromwell foi divinizado por Milton,
o sonhador do Pradize Lost. O Sr. Deodoro foi cognominado Washing-
ton depois de apresentar o Brazil no encilhamento , o Sr. Floriano
Peixoto foi denominado pelo Sr. Julio de Castilhos , trez vezes tra-
hidor, e hoje é o seu maior amigo, porque manda- lhe dinheiro, e ho-
mens do norte para morrerem, creio que com o fim de obrigar
o Sr. Julio de Castilhos a dizer o contrario do que disse d'elle.
Deixar portanto as creanças se apoderarem d'essas narrativas
é um perigo.
Ŏ Sr. Floriano se alguma vez leu historia devia de ser as de
Nero e Luiz XI.
- 315

Estas considerações me vêm ao espirito ao recordar-me do hor-


ror que inspiravam-me os jesuitas, lendo historias escriptas seculos
depois do em que se deram os factos, por homens phantasiosos , e
a admiração que acaba de se apoderar de mim, vendo essas ruinas
de obras monumentaes, feitas por elles, por suas proprias mãos á
custa muitas vezes da propria vida !
Em que aproveitaria aos que se matavam para construil -as ?
Seriam os outros que as haviam de gosar, mas estes não eram
seus filhos, nem mesmo seus parentes, portanto o sacrificio a que
se votavam, o martyrio a que se expunham para chamar os sel-
vicolas a um prelio mais humano, a vida sedentaria, por meio do
trabalho, só podia ter um fim sanctificado .
Aterrorisavam, opprimiam, dominavam ameaçando com o in-
ferno, com pennas eternas... Mas que sublime idéa esta de dizer que
os crimes serão punidos um dia, ainda mesmo que o criminoso em
vida seja galardoado, porque ha um olho mysteriozo que tudo vê ;
ha uma intelligencia que tudo perscruta !
E que differença entre esses abnegados que passavam o dia
no trabalho, sem gozos , sem luxo, e á noite voltavam a imagi-
nação para Aquelle grande Martyr que deixou - se matar para mi-
norar a sorte dos infelizes ; e á noite, no meio da deserta flores-
ta, ou na taba dos selvagens, confiantes, resolutos, entoavam o Glo-
ria in excelsis Deó, desses que não ameaçam com o inferno, mas
fazem da vida dos outros um inferno, ameaçando-os a toda hora
com os sabres e as balas, para poderem gozar, roubar, enriquecer ?
Por toda parte onde passam esses da ordem e progresso ve- se um
sulco profundo de agonias, vê-se a erosão do solo pelo sangue jor-
rado, ve-se cadaveres e esqueletos indicando o caminho que os ou-
tros que os succederem devem seguir, ao passo ' que por toda parte
onde se vê uma ruina jesuitica, pesada, digna d'aquelles gigantes,
sente-se alguma cousa suave daquelles, que consola o espirito , que leva
meditação, que faz esquecer por momentos a hediondez do presente.
Alem do rasto de granito ha o rasto moral delles .Ainda hoje se vê, como
eu vi, ao approximar- se um filho de seus progenitores, descobrir-se
desde longe, pôr as mãos como quem implora e assim caminhar
atè que possa receber em sua fronte o contacto d'aquella mão que
elle beija. Dir- se-ha que isto, que este respeito aos paes, aos ve-
lhos, é prova da ignorancia que levou esse povo ao servilisino , en-
tretanto a civilisação o tem levado ao servilismo bestial e à selva-
jaria .
Estavam mais proximos dos jesuitas, sentiam ainda a influen-
cia d'elles, os que expulsaram do Brasil os hollandezes , e os
francezes ; estavam mais proximos d'elles os que proclamaram a in-
dependencia do Brasil, os que obrigaram a Pedro II a abdicar abando-
- 316

nando o throno que havia creado, os que por tres vezes elegeram
a José Bonifacio no desterro, como um protesto á tyrannia que o
exilava, ao passo que hoje curva-se á tyrannia que mata, louva- se a
quem arruina sua patria, deshonra sua nacionalidade, por capricho,
sem lhes commoverem as lagrimas de muitas mães. E hoje
por interesses muitos, inconscientes quasi todos, prestam-se a por
em pratica os planos tenebrosos de alguns para exterminarem a
seus proprios irmãos, cuja tranquillidade e futuro elles destruiram
para sempre, e nem ao menos têm coragem para pouparem o soffri-
mento alheio, poupando o proprio, dignificando a sua obra, fazendo
amar o que elles tem tornado odiento.

Ao por do sol nos achamos entre a cidade de Pousadas, edi-


ficada em uma collina, formando amphitheatro, que vem terminar
na margem do rio , n'uma curva que a torna quasi peninsula .
No tempo da guerra com o Paraguay era uma simples aldêa .
Aqui acampou por muito tempo uma divisão ao mando do general
Portinho. Foi provavelmente o ouro brazileiro que deu- lhe impulso
tornando-a talvez a mais bella cidade que se mira nas aguas do
Paraná.
Emfrente está a villa de Encarnacion , decadente como todo o
Paraguay, que ainda hoje paga os effeitos de uma guerra desastrosa ,
triste imagem futura do Brazil. As casas ali são todas verine-
lhas, paredes e tectos, as ruas desertas, na praia algumas mulhe
res, vestidas de vermelho, pescando . Chamei a attenção de Tor-
quato Severo que quasi creança por aqui passára, e sendo dos pri
meiros a empunhar armas, foi dos ultimos a abandonal- as, e que
hoje aqui passa foragido da patria.
E'uma mancha de sangue a primeira povoação paraguaya que
avistamos, lhe disse eu. Não se vê um objecto que tenha a cor que
dão como emblema de paz. Não ! havia um, um papagaio que uma crean-
ça empinava. La está, disse-lhe eu, a cor branca da paz somente no
brinquedo de uma creança. Não ! ha mais alguma cousa branca, é o
cemiterio, ali no extremo.
O sol sumia- se e seus derradeiros raios davam tons mais
accentuados áquella mancha rubra , e Encarnaciou fugia a nossos olhos,
porem os dois pontos brancos permaneciam .
Aquelle brinquedo de creança paralizado no espaço como o futu-
ro de sua raça, e aquella habitação de eterno repouso, somente onde
elles podem dormir e esquecer.
Ao anoutecer largamos ferro em meio do rio , porque não era
possivel caminharmos de noute por causa de muitas pedras e não
se poder approximar da barranca. Uma noute passada quasi de pé
por alguns e de pé por muitos, sem comer, sem poder descançar.
317

No outro dia cedo aportamos á uma praia arenosa onde se


distribuiu pequena ração de xarque, mas onde só tinhamos meia
hora para preparar e almoçar. Eu e meus com panheiros almoçamos
a bordo, eramos quatro, a dois mil reis cada um.
A' tarde encalhamos em logar bom para dormir- se . Era uma
ilha.
Ali podemos fazer fogo e cozinhar feijão para jantarmos, o que
só conseguimos muito tarde ; logo após, começou a chover. No ou-
tro dia em uma pequena povoação, paramos e saltamos na praia,
onde ficamos com sentinella á vista para ninguem ir á povoação .
Um sol terrivel .
Creio que a prohibição de ir- se á povoação tinha por fim o
proteccionismo do commercio de bordo que ali se suppriu de tudo
para nos vender.
A cada almoço ou jantar, eu separo a quantia que tenho de
pagar ao patrão da lancha, um hespanhol que tem a fineza de não
me cobrar á bocca da terrina.
Pouco me resta já. Em Corrientes poderei por meio do tele-
grapho obter recursos de algum amigo, mas devo pagar ao saltar.
A' noite reuni os meus companheiros e apresentei lhes um projecto
de grande importancia.
Faltava-nos ainda tres dias, e resolvemos que almoçaria um, jan-
taria outro , o que foi acceito por unanimidade. Tocava-me a mim como
chefe e pagador o primeiro almoço e os dois companheiros que ti-
nham fome olhavam para o rio, pensando talvez na quantidade de
magnificos peixes que ali nadam.
Não tive forças para vel - os assim.
Resta-me ainda um par de esporas de prata ; chamei os . Venham
almoçar, comeremos as minhas esporas.
No ultimo dia de viagem porem, tivemos almoço lauto.
Um soldado pescou um grande peixe e preparou- o. O alferes
convidou-me a almoçar com elle, e aos meus companheiros. Ja era
tempo.
A' tarde enfrentamos o Passo da Patria a foz do Rio Pa-
raguay.
Foi aqui que Ozorio pizou em terreno paraguayo pela primei-
ra vez , á frente de brazileiros dignos, e iniciou aquella serie de
actos heroicus terminada com a morte do que ouzou profanar o solo
da Patria.
Torquato Severo explicava- me a acção, em que se achara ,
quasi creança ainda , mas debalde busca os pontos que serviram para
indicar os logares onde a luta foi mais encarniçada.
Nada mais existe ; ou foi tudo destruido, casas e fortalezas,
ou as areas tudo sepultaram .
Passam por nós barcos, de velas latinas, lentamente.
313

Seus tripulantes são allemães ou inglezes.. Levam comsigo a


mulher e os filhos que nos olham admirados.
Elles tem ali tudo que é seu na paz absoluta, no trabalho .
As aguas do rio os embalam docemente, ventos propicios le-
vam-os onde elles podem ganhar para os filhos .
Ao sumir-se o sol aportamos em Corrientes. Talvez tivesse-
mos de passar a noite a bordo, por ser longe o quartel para onde
deviamos ir. Enquanto esperavamos eu me entretinha em ver crean-
gas brincando em canoas que ja remavam soffrivelmente, em quan-
to do caes as familias as observavam .
Corrientes tinha para mim lembranças agradaveis. Amigos
que como estudantes fizeram a campanha e voltaram para a Bahia
narraram-me a vida passada aqui como n'um paraizo mahometano.
Vi algumas lembranças, lenços bordados, phrases mysteriozas.
Sabia alguns nomes, a forma de algumas casas , e sem me
lembrar de que tudo isso se passara ha mais de 20 annos , que aos
actores d'aquellas scenas, muitos já morreram, outros se fizeram ve-
lhos, outro são hoje circumspectos governadores de Estado, e que
as casas devem ter sido modificadas, os pequenos rios que atraves-
savam certas ruas, devem estar canalisados, e que os frades de
pedra que n'uma noite de luar assustavam, parecendo a figura de
um pae zelozo , de cacete erguido prompto a escanchar o atrevido
D. Juan, devem ter desapparecido, esquecia- me da minha desgraça
presente e ardia em desejos de ir á terra pensando ver ali tudo que
lhes suavisara as agruras da guerra, recordar- me d'elles, pronunciar
mesmo algum nome e ver parar immediatamente alguem que me vies-
se pedir noticias dos vivos e dos mortos.
Felizmente já noite, mas de luar esplendido, veio ordem para
o desembarque, o que fizemos no molhe, caes de ferro altissimo, obra
importantissima, de altura consideravel, onde chegamos por escadas
estreitas e longas.
Perto havia um pequeno hotel, de italianos . e eu me dirigi
para ali com os meus companheiros. O capitão do porto ali estava
e com elle outros cavalheiros que se approximaram de mim com so-
licitude .
Quiz immediatamente passar um telegramma pedindo recursos,
e o capitão do porto nem só o mandou por um marinheiro , como
pagou-o .
Depois de cear colloquei-me na porta, e via passar as senho-
ritas, esbeltas , elegantes, usando de perfumes muito activos.
Vinham da egreja onde ha todas as noites sermões .
Deviam ser assim as de quem me fallaram meus amigos.
Talvez as matronas , que agora as acompanham, fossem aquellas
que outrora mandavam- lhes lenços em que bordaram a phrase :
Adios para siempre !
319

Talvez em alguma d'essas que passavam por mim e me olha-


vam com curiosidade, corra nas veias sangue brazileiro, d'aquelles
bellos rapazes que aqui sustentaram em todos as lides, o nosso nome ,
derramando ouro, caricias e atrevimentos a jorro.
Pela manhã sahi a passear na cidade, aproveitando aquella hora
em que as ruas deviam estar desertas para não ser olhado com cu-
riosidade nos meus farrapos . Engano .
E' justamente a hora em que todos procuram o lugar do tra-
balho. Os funccionarios, as repartições que ás 10 horas da manhã
terminam o expediente, as senhoritas em grupos, as escolas.
Ali ja havia muitos revolucionarios, ha dias , mas creio que
nenhum fosse olhado com mais curiosidade do que eu . Voltando ao
hotel, relacionei-me com um deputado, homem cortez, amavel, que
fora revolucionario durante 11 annos. Forneceu-me charutos,
iniciou-me em algumas cousas que era util saber- se, como costumes
da terra , deu - me esperanças de uma vizita de membros da Cruz
Roja, visto ser eu med co, visita que não se realizou ; deu uma
calça a Jorge Cavalcanti, e creio que devido a elle, comecei a ser
olhado com alguma deferencia.
Quando voltou da assembléa veio dizer-me que o Presidente
de Corrientes, Dr. Virasoro, encarregara-o de fazer-me uma visita
e pedir-me para ir a Palacio, porque desejava conhecer-me. Tive
depois a vizita do correspondente de um jornal de Buenos Ayres,
e depois dos redactores dos dois jornaes da terra, que pediram -me
para escrever alguma cousa sobre nossa marcha, o que fiz e foi
publicado em portuguez, precedido de um elogio ao meu modo de
escrever cognominando - me de Provecto jornalista....

Os dias passam- se, as despezas augmentam-se e o tele-


grapho mudo !
O unico objecto que ainda me resta de algum valor é o
meu estojo. Felizmente appareceu aqui o Dr. José Luiz Martins que
deu-me 50 pezos papel, quantia que já devo ao hotel .
Fui com o meu amigo deputado a Palacio onde elle me dei-
xou com o Presidente, homem de idade, probo, que deixara de ser
ministro em Buenos Ayres para vir ser Presidente aqui como espi.
rito conciliador e justiceiro . Esforça-se para fazer desapparecer as
revoluções em sua terra natal.
Mas o peior dos caudilhos correntinos , o celebre Molina , acha-
se no Rio Grande ao serviço do Sr. Castilhos, que lhe promette
elementos para invadir e revolucionar Corrientes . As revoluções aqui
já não são selvagens, mas receio que Molina torne-as agora.
Depois de alguns minutos de palestra no seu gabinete parti-
320

cular onde tomamos mate, retirei- me pedindo-me elle que fosse á


sua residencia, uma tarde, antes de me retirar.
O governo tinha obtido credito para attender os emigrados
brazileiros, mas este credito ainda não lhe tinha sido remettido.
Jorge Cavalcanti seguiu para Buenos Ayres embarcado, com pas-
sagem dada por elle. Magalhães Castro ficará aqui á espera de re-
cursos que lhe promettem de Buenos Ayres , eu tenho de seguir
pelo interior com Torquato Severo e Vasco Martins, a pé où em
carretas, indo em trem de ferro até Saladas, tres horas de viagem
d'aqui. Fui á casa do Dr. Virasoro.
Um palacio, de luxo. Apresentou- me à sua familia mostrando-
lhe em mim a figura e o soffrimento de um revolucionario .
Tomamos café, depois voltei lá com Vasco Martins para des-
pedir-me d'aquelle digno cidadão, amante de sua patria.
Fui tambem á casa de um medico bahiano, Dr. Cunha que
aqui ficou desde a guerra do Paraguay, cazou- se, creou familia, foi
clinico notavel, hoje porem quasi inutilisado por molestia, é pobre .
As filhas tocaram alguma cousa para eu ouvir, a mulher falou- me
muito em Joaquim Manoel Rodrigues Lima .
Imagine o meu espanto quando ouvi uma moça ao piano, recitar
em hespanhol, o meu appello ás armas, com enthuziasmo, cheia de
commoções como se ella sentisse a dor que me ia n'alma, convidando
os irmãos a lutarem, como unico meio de salvação !

A'S ARMAS !

" Erguei-vos irmãos . Em fim soou a hora da luta glorioza . A


Patria agonisante , implora que a libertemos ! Ainda na campanha
jazem insepaltos os cadaveres de nossos irmãos ! Elles pedem justiça
e precisamos de leis que punam os criminosos !
Nosso lar está deserto ; vamos irmãos , é preciso povoal - o . As
casas destruidas serão reedificadas . As saudades dos mortos serão
amenisadas pela tranquillidade dos vivos.
Irmãos ! Conquistemos para nossa Patria a honra que lhe
roubaram .
Não é só a nossa vida que está em perigo : é a vida de nos-
sa familia ; é a vida de um povo inteiro !
Se perdermos na luta, a patria estará morta..
Velhos , despertae ! O vosso tumulo não está longe ! Assás
tendes vivido ! Dae o tempo que vos resta, pela liberdade de nos-
sa patria !
O sangue que derramardes, dará a vossos cabellos brancos ,
uma aureola eterna !
Moços, muito tendes a viver, mas a vida no captiveiro é a
morte todos os dias. Lutae pela vossa vida, lutando pela vossa liberdade.
- 321

Mães ! Dizei a vossos filhos , que se elles esquecem-se da pa-


tria, - vós não sereis respeitadas .
Vossas filhas serão entregues aos bandidos em paga de ser-
viços .
Vossos esposos serão assassinados, pelas costas, sem crime
algum.
Vossos filhos serão assassinados em vossos braços.
Mães ! Dizei a vossos filhos que o moço que não luta pela
patria deshonra-se para sempre.
Jovens e bellas senhoras ; Dizei a vossos escolhidos que quem
não sabe lutar pela justiça , não sabe defender a familia, e que vós
só desposareis o homem digno de vós.
Vamos irmãos, ás armas ! O campo da honra nos espera. Nos-
sa patria anniquillada, estende-nos os braços algemados. Quebre-
mos essas algemas, com o nosso sangue, com a nossa vida.
Irmãos, á victoria ou á morte ! ,,

Lamartine disse que um dos maiores prazeres de sua vida foi


ouvir em Napoles uma rapariga que vendia flores, cantar uma de
suas estrophes, e para mim uma das maiores tristezas foi ouvir na
bocca d'aquella correntina o meu brado de desespero. Não porque
na entonação que ella dava não houvesse mais harmonia do que
possuem aquellas phrases, não que me arrependa de tel- o feito e
provado que o que dizia tinha coragem para fazer, mas porque
aquillo era o ultimo recurso a tentar, ja que eram surdos ás sup-
plicas; é porque depois de tanto soffrimento, é preciso começar de
novo, porque os motivos se multiplicaram , porque ha mais crimes
a punir, mais victimas a vingar, mais ossos a branquearem na cam-
panha, e os algozes impunes tripudiam na Patria.

Pela manhã quando cheguei á estação de ferro- carril já en-


contrei ali, Vasco Martins o Torquato Severo com todos os com-
panheiros.
Estava tambem o correspondente da imprensa de Buenos Ay-
res , Sr. Silvano, que me levou ao restaurant da estação onde to-
mamos café.
Pouco depois chegou o ministro do governo que me desejava
conhecer. E' moço ainda, intelligente e sympathico.
Fui apresentado a elle pelo Sr. Silvano.
Queria conhecer Torquato Severo e eu fui procural- o . Torqua-
to estava descalço , e enfiava um poncho velho.
21
322

Quando o apresentei ao Dr. Rodrigues, este depois de com .


primental -o, parou observando Torquato. Elle já sabia de sua fama ,
de sua bravura, e via-o
. n'aquelle estado.
E' preciso que se terminem as guerras civis, disse elle , matam
as nações.
Muitos companheiros tendo se approximado de nós , eu aprovei-
tei a occasião para dizer ao Dr. Fernandez quanto sentiamos de
gratidão pelas attenções que nos dispensara o governo argentino , e
sobretudo o de Corrientes em cujo territorio se estava dando a
nossa triste peregrinação .
Respondeu-me elle que nada mais faziam do que o que mandam as
leis da humanidade nos povos civilisados. Que se mais não faziam
era porque não podiam, que Corrientes estava exhausta de recursos
por 11 annos de revuluções constantes , que, se não foram tão devas-
tadoras n'esses 11 annos , como a de dois annos no Rio Grande, com-
tudo seus recursos estavam reduzidos , e que a verba votada para
soccorro dos emigrados ainda não havia chegado ás mãos do go-
verno de Corrientes.
Nada nos tem faltado que não se possa dispensar, disse eu.
-O que dóe é que uma nação civilisada e livre tome as armas
com que os de nações escravisadas podem comprar, com a vida a
liberdade de seus descendentes.
-São as leis da neutralidade, me disse elle, mas espero que
não preciseis mais de armas, e pelo direito e justiça obtereis tudo .
O trem de ferro nos levou atravez aquella baixa campanha
dos suburbios de Corrientes, onde de espaço a espaço ve- se verdejar
um bosque e por entre elles casinhas branças, pequenas , uma vil-
la correntina sumida n'um laranjal.
A's 10 horas chegamos á estação de Saladas, onde já esta-
vam á espera do trem que voltaria para Corrientes com os passa-
geiros da diligencia de Mercedes .
Entre estes passageiros estava um moço sympathico , bonito ,
muito jovem ainda, olhar intelligente, de amabilidade extrema.
E'um deputado correntino que reside em Caseros e vai para
a capital, cuja assembléa funcciona .
No mesmo trem que eu, veio o Sr. Silvano, que segue para
Bella Vista.
A' hora do almoço mandaram-me convidar a almoçar com elles
e eu acceitei. A' meza, um individuo desses que longe do perigo
criticam a todos, e ao abrigo d'elle até insultam, começou a falar
sobre a revolução brazileira, e sobre os revolucionarios.
Nem só o joven deputado como o correspondente da Prensa,
romperam tão duramente com elle, que o fizeram calar.
Eu estava ali, em estado de miseria, sem deixar porem abater
meu espirito , sem amortecer meu olhar ; lutava portanto com con-
323 -

vicção, e a ninguem é permittido insultar as crenas alheias quando


ellas não os prejudicam .
Depois de levantarmo - nos da meza o mesmo sujeito me procu
rou e começou a falar do governo brazileiro e do povo que consentia
que o governo nos perseguisse . Foi a minha vez de fazel - o calar,
dizendo-lhe que qualquer que fosse a posição em que nós brazileiros
nos achassemos, uns contra outros, não podia ouvil-o falar d'elles.
A mim, sim, competia isso, porque protestava com armas con-
tra seus actos, mas elle que nunca fora ao Brazil , que nunca acom-
panhara suas questões, não podia fazel-o . Felizmente elle immedia-
tamente falou sobre outra cousa.
O trem voltou a Corrientes e os passageiros de Bella Vista .
iam tomar a diligencia quando vi o correspondente da Prensa cha-
mar- me. Vou para Bella Vista, me disse elle, desejarei um dia vel- o
alegre em sua Patria tranquilla e nobre, e entregou- me um invólucro ,
correndo depois para entrar na diligencia cujo conductor tocava sem
cessar a trompa de avizo.
Abri o enveloppe, havia dentro uma nota de vinte pezos. Cor-
ri para a diligencia. Eu não sei o que se passou em mim. Um
mixto de gratidão, de pejo, e até de revolta contra aquelle homem
cavalheiro, que me dava uma esmola, é o que foi .
A diligencia tinha partido, e elle da portinhola agitava o
lenço para mim. Lhe pagarei um dia, disse eu. E uma lagrima arden-
te como fogo, vertida pela dor de me ver em tal estado e pelo odio
dos que pela sede de poder e de ouro obrigaram-me, como brazilei-
ro, a chegar ao estado em que me acho , correu- me pela face .
Conservei-me ainda algum tempo na estação, com a idea de ver
se obtinha, com aquelles 20 pezos , passagem na diligencia, mas isto
não era possivel. Pouco depois recebi um telegramma do deputado
que me havia levado a Palacio, em que dizia-me que o governo
brazileiro havia pedido a minha internação e dos outros chefes em
Corrientes, mas o governo havia respondido que ja não estavamos ali.
A' tarde segui para o acampamento onde dormi , voltando cedo
para a estação , encontrando ja ali o juiz de paz de Saladas, seu
escrivão e o medico do logar que me iam visitar. Recebera o juiz
uma carta do ministro Fernandez em que muito me recommendava
e sabendo que eu desejava ir na diligencia mandou que se me
desse passagem.
Perguntando-lhe o agente quem a pagaria, respondeu elle : 0
governo ou eu que a mando dar.
Uma chuva torrencial nos prendeu ali porque aquelle bom ho-
mem me havia ido buscar para o hotelzinho de Saladas.
Almoçamos juntos e á tarde eu segui em um carro para a
povoação onde me esperava boa ceia e optima cama, sobre tudo
um café purissimo, que é peculiar a toda esta zona onde se toma
324

café puro, e não sendo produzido no logar, não é exagerado no


preço, è em qualquer aldeia pode-se procurar que se ha de en-
contrar.
Tinha promettido ao juiz e ao meu collega ir á noite ao club
onde nos encontrariamos, sentindo-me porem muito cançado resolvi
escrever-lhe desculpando-me , e ao mesmo tempo agradecendo nem só
a elle como ao seu governo todos as provas de commiseração at-
tenciosa que nos dispensavam. Apenas terminei a carta chegaram
elles, e ali estiveram até tarde commigo.
A' tarde quando chegamos no hotel estavam diversos compa-
nheiros ali tomando café.
Eram quasi todos marinheiros do Aquidabam . Falavam em
hespanhol. Perguntando- me o juiz se o nosso exercito era todo de
castelhanos, respondi-lhe que poucos castelhanos havia, como porem
Gomercindo falava o castelhano, todos elles em pouco aprenderam
a falar, e dirigindo-me aos que ali estavam perguntei- lhes, de onde
eram naturaes.
Uns eram do Rio, outros da Bahia, outros do Ceará.
Para a viagem em diligencia precisava-se de fiambre para
dois dias. Eu tinha pedido ao hoteleiro que me preparasse um pe-
queno fiambre, em relação com a minha fortuna.
Pela madrugada quando o carro veio buscar-me, elle apresen-
tou-me um verdadeiro fornecimento não faltando nem vinho , nem
doces. Horrorizado pedi-lhe a conta disposto a regeitar tudo se
não chegasse o meu dinheiro para pagar a despeza de hospedagem
e o carro.
Estava tudo pago, incluzive o carro e a gorgeta do bolieiro.
Fora uma fineza do juiz e do medico, que me tinham mandado
alem disso uma bolça com magnificas laranjas, e pediam desculpa
pela liberdade que tomavam em fazer- me tão mesquinho offereci-
mento. Desculpei- os de boa vontade. Como não se desculpar a quem
pede com tanta simplicidade !
Era a segunda vez que recebia esmola. Em outros tempos , se-
gundo os habitos do norte, eu teria prazer em receber taes agrados,
porque assim procedia com os meus hospedes, hoje porem, apezar
da sympathia que elles mostram sentir por mim, me dóe, porque a
miseria chama a commiseração nas almas boas, e toda fineza n'estas
condições é sempre esmola que revolta a quem nunca pensou
em recebel- a.
A's 5 horas da manhã a diligencia partiu. Poucos passa-
geiros, entre elles um do partido que acabava de sahir do poder.
Um homem pouco expansivo, amavel no trato porem. Desde a nos-
sa chegada a Saladas travamos relações .
Uma ou outra phrase dizia elle, mas provocava-me a falar,
ora sobre politica, ora sobre a revolução .
- 325 -

Em politica quando disse - lhe eu que o unico meio de termi


nar as guerras civis é deixar que o povo vote, que errando na es-
colha não tenha de que se queixar, e pague o tributo á impreviden-
cia, disse- me elle : Se nós tivessemos por cá quem pensasse assim
isto melhoraria.
- Como não hão de ter ? perguntei-lhe. Deve ter muitos ,
mas é que esses muitos são poucos em relação aos que são explo-
rados sem vontade propria e os exploradores conscientes.
Na villa de S. Roque almoçamos e elle pediu- me licença para
pagar-me o almoço.
A' tarde nos separamos . Esperava-o á beira da estrada o
cavallo que devia leval-o á casa de sua estancia que se avistava ao
longe. Ao despedirmo -n'os elle escreveu o seu nome em minha car-
teira.
A campanha de Corrientes. na zona da lagoa Iberá é das
mais tristes possiveis.
Um terreno baixo sem a menor ondulação a não ser as bar-
rancas dos rios , uma ou outra arvore, bosques de palmeiras estereis ,
um areal extenso ; em compensação vê-se ao longe vastos laranjaes ,
plantados simetricamente que á proporção que a diligencia avança
vai deixando ver as longas avenidas, longas de parecerem se unir
afinal , ás duas linhas parallelas de larangeiras, apezar de bem dis-
tantes.
Ao passarmos um rio pouco caudaloso, era tal a quantidade
de peixe que os cavallos chegaram a relutar para não passarem e
quando á força de pancadas, n'um arranco levaram a diligencia den-
tro do rio os peixes saltaram ; uns cahiam em terra , outros mor-
riam com o choque que recebiam nas taboas do vehiculo, outros
passavam por cima, e alguns cahiram no collo dos passageiros , en-
trando pelas janellas.
Este facto que sorprehendeu a todos, me era já conhecido ,
por tel-o visto uma vez n'um dos afluentes do Rio de S. Fran-
cisco . E' o tempo da desova . Os peixes buscam para esse acto da
reproducção os pontos estreitos do rio.
Ali pondem, e, arrepiando as escamas, esperam que a corrente
traga os ovos que se abrigam entre ellas e ali fecundam.
E' a maternidade pelo simples desejo de fazer augmentar a
especie.
Para isso vão longe, comprimem-se uns contra os outros, mor-
rem, ás vezes, devido a essa compressão. Homens, como eu vi, com
um especto ou facão de uma vez levantavam muitos, que não co-
miam pela magreza, mulheres mergulhavam as fraldas e levantavam
uma quantidade extraordinaria de ovos de que faziam banquetes .
De repente vi um movimento como se uma tromba desmoronasse.
Os peixes saltavam em terra onde vinham morrer ; foi o ap-

i
326

parecimento de uma ariranha devorando aos que agarrava. Os ou-


tros fugiam e as aguas do rio transformavam- se n'um lodo de sangue ,
ovos e fragmentos .
Hoje vendo aqui este acto lembrei-me d'aquelle que vi ha 10
annos , e lembrei- me tambem que as ariranhas devem ser, entre os
amphibios os consolidadores da nacionalidade dos peixes.
A'tarde chegamos á margem do rio Corrientes.
Tinhamos que pernoitar ali para no outro dia tomarmos outra
diligencia que nos esperava na outra margem.
O commercio d'esta zona é o carvão de madeira que transpor-
tam em barcos para os centros consumidores.
Um dia chuvoso o que seguiu-se ; á tarde porem, chegavamos
a Mercedes, de onde a estrada de ferro nos levará a Caseros na Mar-
gem do Uruguay.
Que differença entre essas duas viagens, a primeira que fiz
de Uruguay ao Paraná, a pé, faminto pelo sertão ; esta , se não
tenho as commodidades que desejo , ao menos tenho meio de trans-
porte, e encontro homens, que sabem conhecer os soffrimentos alheios,
e consolam.
Um medico que encontrara em Saladas indo d'aqui, de
Mercedes, promettera-me trabalho dando-me cartas de apresentação.
Isto fez com que eu procurasse o hotel melhor do lugar, isto
é, que não fosse para alguma hospedaria de carreteiros.
Pela manhã sahi a passeiar na cidadesinha camponeza. Peque-
nina porem garrida .
Um bello jardim na praça central , algumas casas bonitas
ajardinadas , no centro da praça uma columna rememorando as gran-
des datas argentinas e correntinas.
O chefe politico visitou-me, bem como os principaes homens
do logar, mas um individuo a quem me apontaram como espião de Hypo-
lito Ribeiro faz com que guardasse a maior discrição, contando - lhes
apenas o que temos soffrido sem deixar escapar uma palavra sobre
o que pensamos em relação ao futuro.

As minhas esperanças se desvanecem.


Nem um doente me procura. Devo pagar o hotel e não tenho
quanto chegue, nem dinheiro para passagem no trem, nem para ir
para uma hospedaria onde se pode passar com 50 centavos diarios.
Dou balanço em tudo meu e só encontro a minha espada,
lembrança da viuva do infeliz dr. Cordeiro, e que me acompanha-
ra em toda a peregrinação e por isso pretendo guardal-a, que ven-
dida não me daria para pagar um dia de hotel; e o meu estojo ci-
rurgico . Resolvi vendel-o e para isso mandei offerecel-o a um medico
327

do lugar, um norte americano grosseiro e impostor ; disse-me e emis-


sario que elle ao ler o meu nome impresso na carteira julgára que
por isso ella não lhe servia, mas se quizesse vender bem barato
elle a compraria. Deixei para fazer isso no outro dia. Tenho pesar
de separar- me do meu estojo que a tantos tem sido util, e que vai
afinal ser vendido para matar-me a fome.
Parece-me que vou separar- me de um companheiro , de um
amigo desinteressado, sempre prompto a ajudar-me, de uma parte de
mim mesmo, resta-me porem a esperança de poder rehavel-o um dia,
e para isso voltarei aqui ou irei onde estiver esse medico, compral- o
hei pelo preço que elle quizer, porque então o meu nome impresso
será o motivo de augmentar-lhe o valor, e guardal- o - ei como re-
liquia da phase brilhante de minha vida de medico, e da phase ne-
gra da minha vida de homem que luta para ser cidadão.
Fac et spera, escrevi no primeiro trabalho medico que publiquei
nos meus primeiros annos de sacerdocio, quando a imaginação enchia
o futuro de roseas chimeras. Espera devia ser a unica palavra pro-
nunciada aos ouvidos dos desgraçados que queiram fugir á vida com o
em busca de um asylo na morte. Espera e persevera , eis o grande
lemma dos que lutam, dos que não se deprimem pela preguiça que
é o abandono de si mesmo.
Não vendi o meu estojo.
Elle mesmo acaba de dar-me o meio de conserval- o . Um sujeito
da campanha que precisava de uma pequena operação procurou - me
e pagou-me de modo que nem só pude pagar o hotel, como ter di-
nheiro para viagem.
Quiz ter ainda uma palavra de gratidão para os correntinos,
e por isso telegraphei ao dr. Rodrigues despedindo- me d'elle, visto ,
talvez, amanhã mesmo deixe o territorio correntino. Recebi á
tarde um longo telegramma seu, cheio de expressões conso-
ladoras, animando -me a ter resignação n'este triste accidente
da vida o desejando- me no futuro todas as felicidades.
Logo depois procurou-me um velho .
Era o receptor das mezas de rendas que apresentou-me um
telegramma do ministro, ordenando entregar-me trezentos pezos pa-
pel o que cumprio immediatamente.
Ufa já semos gente por alguns dias , disse eu imitando
os payzanos. Trezentos pesos argentinos não valem duzentos mil
reis da nossa moeda com cambio ao par.
Comprei alguma roupa branca e no outro dia tomei o trem.
para Caseros, celebre por ter sido ali a derrota de Rozas , onde os
brazileiros libertaram um povo extranho da tyrannia de um homem,
chefe de um grande partido. Onde chegarei hoje, eu , brazileiro, fugindo
á tyrannia de homens que compram adeptos com o dinheiro do
povo que matam !
328

Ao meio dia chegava a Caseros, depois de ter parado em


Curuzú- Quatiá alguns minutos, onde comprei laranjas, e d'onde
dois dias antes se havia ausentado o coronel Fulião que viera com
Juca Tigre.

Em Caseros encontrei o aspirante Moraes encarregado do
almirante Saldanha da Gama, e Fulião que seguia para Buenos
Ayres. Preciso ir a Livres onde se acha emigrada a familia do meu
fallecido amigo Ronco, e onde devo me encontrar com Philippe Por-
tinho e outros companheiros.
Em Livres demorei-me alguns dias, e tive a certeza de que
te achas na Bahia.
Aqui, em Libres, vim encontrar muitos e bons companheiros
que ja fizeram parte das nossas forças belligerantes, e as successi-
vas deffecções obrigaram a emigrar e aguardar occasião propicia
para de novo levarem a vida ao campo de batalha, para com ella
reinvindicarem o caracter brazileiro ultrajado.
Entre elles acha- se Hildebrando Ayres , chefe distincto, que
reune em torno de si uma pleiade de jovens compatriotas, em cu-
jos olhos vê-se essa chamma ardente que indica almas que prefe-
rem abandonar os corpos que animam, a viverem n'elles escravi-
sadas.
E' meu companheiro de quarto, no hotelzinho, João Gayer,
valente e digno em todos os sentidos ; companheiro inseparavel de
Philippe Portinho que fez a peregrinação até Santa Catharina, que
de lá voltou, e depois da debacle do Rio Grande pode fugir com
um grupo de abnegados , dos quaes poucos restam, atravez o Estado
Oriental e Corrientes, vadear o Alto Uruguay, unir-se ás forças
imperterritas de Dinarte Dornelles, encher-se de esperanças com a
nossa approximação, e vel-as desapparecer, como no despertar de um
sonho, no malfadado desastre de 10 de Agosto no Carovi .
Aqui veio Gayer saber que na cruel batalha de Passo Fundo
morreram seu pae e um irmão, que faziam parte das forças casti-
lhistas.
Gayer tem em sua alma um asylo para os grandes affectos e
o seu sentimento de amante da dignidade de sua patria separando-
o dos seus na comprehensão do cumprimento do dever, não amor-
teceu n'elle a estima e o affecto que lhes dedicara. E' em prantos
que elle me narra todo o dôce passado vivido em fraternaes cari-
nhos, tornando- se o orgulho do futuro, nos desejos do velho pae,
morto n'um campo de batalha sem se lembrar talvez que ali entre
os que elle queria vencer estaria seu filho cuja arma poderia
matal.o.
Se demoramos a nossa meditação sobre estes tristes factos,
nosso espirito vae encontrar a triste verdade da contingencia da
alma humana subordinada á conformação e vitalidade da materia,
329 -

porque não é possivel acreditar- se que o Supremo Ser tivesse que-


rido criar o homem como o executor do bem e deixasse , com apti .
dões para a vida, espiritos que só meditam na destruição, no anni-
quillamento , para d'ahi tirarem proveitos para si só, formarem sua
fortuna nos escombros de seus compatriotas, do odio entre irmãos,
nos parricidios e filicidios , sem que o remorso os obrigue a aban-
donar essa Via scelerada, e ao contrario consciente de todos os
seus crimes acceita o incenso dos turibularios mercenarios que pro-
curam, por paga, perfumar -lhes a podridão da alma .
Telegrammas do meu amigo deputado em Corrientes annunciam-
me chegada de telegrammas ali de amigos, mandando- me recursos, tele-
grammas expedidos ha muitos dias, porem chegados depois de minha
saida. Um telegramma do Almiramte convida-me a ir a Buenos Ay-
res e sigo para lá.
Em Caseros encontrei-me com Pahim que vinha de là e com
elle o Sr. Retumba, secretario do Almiramte, cuja phyzionomia muito
me agradou.
A' tarde, depois de percorrer uma vasta zona colonizada , enco-
berta de vinhedos , cheguei à Concordia, cidade adiantada, em frente
ao Salto Oriental. 14
Devo tomar aqui o vapor que me levará a Buenos Ayres ,
descendo o Uruguay.
Fui levado a bordo pelo encarregado do Almirante que me
apresentou ao commandante de quem recebi immediatamente provas
de distincção .
E' passageiro tambem o Sr. Guatimozin que era director do
arsenal de guerra em Porto Alegre quando o Sr. Bernardo Vasques
entregou-nos ás forças do Sr Julio de Castilhos .
O Si . Guatimozin, official do exercito, não se justificou ainda
de ter entregado armas do arsenal para armar os castilhistas; ao
contrario esse grande acto justifica- se pela commissão que lhe foi
dada, o que demonstra que o Sr. Floriano chegou a tel- o como digno
de representar o Brazil no estrangeiro.
A' tarde paravamos em frente a Paysandu, onde as forças
brazileiras sustentaram uma luta tremenda contra um punhado de
heroes orientaes, que, fossem quaes fossem os seus crimes, tinham
direito á vida, porque a vida dos heroes é um patrimonio da terra
onde nasceram .
Não foram brazileiros que os mataram, mas até hoje recahe
sobre o nosso nome essa selvajaria, e em parte têm razão porque se
não sabiam o que ia acontecer a Leandro Gomes e seus compa-
nheiros, nada tentaram depois para fazer desapparecer essa nodoa.
Ai ! e hoje ? o que fazem elles para arredar de si o assasinato de
victimas indefezas , na porta de suas barracas, DOS seus acampa-
mentos !
330

O zimborio da igreja que tantas vezes vi pintado, foi refeito .


De terra não se vê rasto algum d'aquelle cyclone de fogo .
Na manhã do segundo dia de viagem avistamos Martin Gar-
cia, depois de termos passado á vista de um pequeno monumento
erguido em memoria dos 33 orientaes que ali atravessaram o rio no
desejo de libertarem sua patria.
Lutaram,e a luta foi coroada de esforços , mas a Republica Oriental
não é livre. O sangue tem corrido para matar a sede dos ambiciosos, e
só agora o Estado Oriental começa a fazer os alicerces de sua liber-
dade, que poderia ter sido o inicio d'ella em vez de tanto horror,
mas é que onde ha oppressores e opprimidos só o sangue deixa res-
pirar.
O Estado Oriental será a primeira nação civilisada da Ame-
rica do Sul, porque ensina seus filhos a ler.
Ao enfrentarmos Martim Garcia que guarda a entrada do
Uruguay e do Paraná no Rio da Prata, olhando eu e contando as
boccas de fogo ali assestadas, disse-me um jovem e bem instruido
argentino com quem sempre estava em palestra :
- Não ha esquadra no mundo que passe por aqui em guerra.
com a Argentina.
Sim, disse eu, se ella não tiver marinheiros como os que
passaram Humaytá...
Entre os companheiros ha tambem um francez amavel, expan-
sivo, indagador, interessando-se por todos os accidentes de nossa
luta. Até tarde da noite passeavamos no tombadilho ; eu a narrar-lhe
os nossos triumphos e a nossa miseria, elle a exigir mais, a per-
guntar por tudo como se tivesse uma parte na nossa causa . E tinha ,
porque os francezes amam as glorias, e pouco a vida . O outro é um
norte americano, grosseiro, cheio de si, borracho, alegre por nos
ver assim, como se fosse elle o vendedor da esquadra ao Sr.
Floriano.
Não estivessem ali dois italianos senhores de Saladeros, de quem
creio ser elle machinista ou caixeiro , talvez tivessemos quebrado
as ventas um do outro.
Afinal avista-se ao longe uma nuvem que assemelha-se a
uma montanha.
Admira-se porque n'esta terra a unica montanha é longe,
muito longe, os celebres Andes, a Cordilheira nevada onde um povo
viveu feliz nas sabias leis dos Incas, e a ambição de poucos destruio ,
servindo de instrumento aos hespanhoes de Cortez, mas onde o Chile
acabou de dar uma lição tremenda aos governos, que desprezam os
reclamos dos póvos.
Não era nem nuvem, nem montanha ; é um soberbo bosque de
eucaliptos nos suburbios de Buenos Ayres.
E' Palermo, os campos Elyzeos bonarenses. Entra-se no porto por
331

um labyrintho de canaes indicados por bandeirolas onde as dragas tra-


balham constantemente como devoradoras de areias . Boias diversas
indicam logares de naufragios onde ainda se ve destr ços de navios.
Uma ou outra torre annuncia approximação da bella capital
argentina.
Entra-se no Darsena, um canal artificial, os navios de maior
calado ali alinhados de ambos os lados como em linha de batalha ;
entre elles os encouraçados da orgulhosa Argentina. Sobe- se para o
caes por escadas de ferro e acha-se logo o viajante no meio de
um borborinho ; barracas, casas, ligeiros cafés , um formigueiro , uma
cidade de garimpeiros, todos estrangeiros, falando linguas diversas ,
vendedores de bilhetes de loteria, raparigas que vendem cigarros ,
velhas que vendem flores, pregando ellas mesmas, os ramilhetes na
bluza barrenta do trabalhador, creanças que vendem livros licencio-
sos, mostrando as figuras para obrigarem o transeunte a comprar.
E' o Darsena, o caes, o bairro onde residem os operarios que
transformam pequenos rios em cannaes que servem de porto de abri-
go, que transformam charnecas em cidades europeas, que fazem a
fortuna dos que são possuidores de algumas braças d'essas charne-
cas e que gastam em uma semana, quando falta trabalho ou quando
querem descançar, o que ganham em mezes .
Um carro, ou um bond, em poucos minutos leva -nos á cidade,
passando -se pela Praça em frente á Casa Rozada, o Palacio do
Governo. Apenas cheguei ao Hotel du Midi, de 3ª . ou 4ª . classe,
fui procurar a casa de Jacques Ourique que morava com Guima-
rães Passos e outros.
Tomei um bond pedindo ao conductor para deixar-me em fren-
te ao numero da casa, que eu sabia desde Candelaria. Ja não mo-
ravam ali. Tinham-se mudado para uma casa no outro extremo da
cidade.
Voltei para o hotel d'onde acabava de sahir o conselheiro
Silveira Martins que havia ido ver-me.
Cançado, aborrecido, com esse aborrecimento funebre de quem
tem a alma mergulhada no desalento, e chega a uma grande cida
de buliçosa, alegre , de luxo desmedido, onde cada phisionomia pa-
rece mascarar com um riso o que lhe vai lá por dentro, recostei-me
um pouco, esperando a hora de jantar.
Felizmente foram apparecendo alguns companheiros, mas a pa-
lestra não me podia agradar porque em quasi todos não se ouvia se-
não recriminações, queixas, um accentuar constante, das causas de
nosso desastre, um limpar dos rebordos das nossas feridas para tor-
nal- as bem nitidas, uma chaga bem patente onde o contacto do
ar augmentasse a dor.
Depois de jantar fui á calle Florida, a grande rua argentina,
e ali em uma esquina, alheio a mim e a tudo, via passar uma pro-
332 -

cissão interminavel de carros de luxo, puchados pelos mais bellos ca-


vallos, conduzindo mulheres com a gravidade e pintura das bonecas
de cera dos mostradores das lojas dos cabellereiros .
A' noite fui ao theatro lyrico. Representava se o Fausto.
Um tenor impossivel , uma prima dona bonita, um baixo suppor-
tavel, mas para quem sahia dos combates, das miserias, e quem tem
pela muzica um culto mystico, ouvir Fausto em meio de um povo
desconhecido que transforma em deserto os logares mais populosos ,
é o mesmo que ouvir no deserto, mesmo , essa muzica deliciosa
, es-
sas scenas creadas pela imaginação como um sonho que não se deseja
que termine.
Voltei para o hotel sentindo-me ainda com forças de renascer
para a vida, e o passado feliz que me vinha á mente acordava-me
a coragem para esperar no futuro .
Salve dimora pura e candida ! Quantas vezes cantarolei esse
trecho que exprime um poema, no meu gabinete junto á alcova onde
repousavas em quanto eu trabalhava, alta noite ?

*
**

Eu conhecia de nome o almirante Saldanha da Gama. Como


brazileiro era meu dever observar o caminho de todos aquelles que
n'um momento dado salvariam o nome brazileiro tão novo ainda, e
portanto tão precisado de filhos que o honrassem sempre como o teve
no Paraguay e em tantas outras occasiões, e que nos ultimos dias.
tem perdido tudo que ganhara em tantos annos, e o que é irrisorio ,
o que doe, é que justamente n'aquillo que os povos se elevam, n'a-
quillo que o homem parece adquirir a posse de si mesmo, foi que
nós baixamos, e baixamos tanto que nem nos presidios encontrare-
mos almas tão villans como muitos dos que sempre mentiram falando
pela patria e pelo povo ; baixamos tanto que nem nos sertões africa-
nos encontram a selvajaria que a lei aqui põe em pratica.
Lá ao menos sabem que o regulo ou o toba tem direito de vida
e de morte sobre os escravos, entre nós são os traidores, mercado.
res que mandam matar para poderem se perpetuar e o fazem em
nome da republica.
Eu olhava em torno de nós e via fugir os homens como som-
bras ; e a desgraça a marchar rapida como um flagello para nos
destruir.
Entre esses nomes apresentava-se- me sempre o de Saldanha da
Gama, o marinheiro brilhante, correcto, deixando um nome por onde
passava, desde sua infancia, lutando pela Patria.
Depois o seu heroismo, a sua bondade, o seu carinho para
os que ensinava a ser homens, e sobretudo o seu infortunio.
Na triste peregrinação pelas selvas eu ouvia narrar todos os
838

dias os seus actos , os seus habitos , os seus menores gestos , até o


seu modo de falar, por um official de marinha que pousava em
minha barraca.
Ao chegar a Corrientes soube que elle estava comnosco, por-
tanto temos um homem capaz de todos os sacrificios, um abnegado .
Se os golpes soffridos nos preparavam uma luta sem orienta-
ção, combates mortiferos sem proveito, uma guerra sem fim, o nome
de Saldanha traz -nos agora a esperança de organização, aprovei-
tando todos os grandes elementos da nossa vontade e portanto o
triumpho é infallivel.
Por isso ir ver Saldanha da Gama era ir ouvir a sentença in-
fallivel do termo reivindicador dos nossos soffrimentos.
Foi assim pensando que me dirigi pela manhã ao Grande Ho-
tel onde elle habita . Encontrei a ante sala de seu aposento cheia de
companheiros que ali iam. Uns em busca de noticias, muitos a pedir
recursos , outros a levar- lhe communicações do desempenho de com-
missões de que se encarregaram .
Apenas fui annunciado fez-me entrar para o seu aposento
onde escrevia. Estendeu-me a mão esquerda porque o seu braço
direito só permettia-lhe escrever devido aos ferimentos recebi-
dos. Conversamos algum tempo . Desejava conhecer- me pessoalmente
e sobretudo precisava conversar commigo para saber as disposições
dos meus companheiros. Respondi- lhe que todos estavam promptos
e afflictos para invadir.
Por minha vez perguntei-lhe se podiamos contar com cavallos
e lanças, disse-me que sim e tambem com armas de precisão , que
a difficuldade porem era o transporte devido á vigilancia. Disse -lhe
que não nos era preciso muitas armas de precisão, que o que pre-
cisavamos sobretudo era de cavallos e ponches .
Falou depois sobre a organização da força e eu disse-lhe com
franqueza que o chefe da columna que se formaria da que foi de
Gomerciudo, por direito devia ser Apparicio.
Torquato Severo é brazileiro , disse eu, luta por sua Patria.
Apparicio é estrangeiro, luta por amor á justiça, alem d'isso
é o representante de seu irmão.
Perguntou-me se não haveria algum reparo por parte de compa-
nheiros. Respondi-lhe que não, e mostrei-lhe a acta que havia es-
cripto no alto Paraná.
Mostrou-me algumas cartas que havia recebido e as respostas
que dera.
Falando sobre mim , se estava disposto a seguir , respondi-lhe
que sim ; comtudo, se houvessem medicos mais descançados que qui-
zessem ir, me seria util ficar n'algum hospital de sangue em logar onde
podesse trabalhar algum tempo, para a subsistencia da familia, no
334

que elle concordou e disse me : Tem trabalhado e soffrido muito, é


justo que descance.
Separamo-nos dizendo - me elle què voltasse lá sempre , ao que
respondi que o seu tempo era precioso e que não valia a pena in-
terrompel- o sem motivo justo , que o melhor seria se elle precisasse
de mim mandar chamar- me.
Companheiros como o dr. Dourado, 1 me disse elle, não nos
roubam o tempo, ajudam- nos .
Separamo-nos e eu fui com Raphael Cabeda, que ali chegara,
visitar o conselheiro Silveira Martins, a quem encontrei tambem nas
melhores disposições , e que recebeu- me com a maior amabilidade,
tratando- me de grande patriota .
Ao chegar ao hotel encontrei Jacques Ourique e Guimarães
Passos , depois fui vendo todos os outros companheiros, alguns
que vieram antes, outros que vieram commigo, muitos que haviam
ficado em Santa Catharina e nas mattas d'onde poderam escapar com
vida.
E estes nos narram os horrores porque passaram as victimas
do Paraná e Santa Catharina.
Jacques Ourique publicou um folheto sob o titulo Dra-
mas do Paraná mas o que está escripto não é senão uma sombra li-
geira, incompleta d'aquelles actos que os selvagens aymorés se en-
vergonhariam de ter praticado em pessoas desarmadas, sem permissão
de defeza, a não ser nas festas que o rito de suas crenças or-
denava.
O que mais é : sendo muitas das victimas militares de paten-
te superior foram victimados como em festins de canibaes por mili-
tares de patente inferior, no meio da gritaria e dos insultos .
Não se lembravam esses energumenos que lavravam a sentença
propria, porque a soldadesca a quem não contem o castigo, mas sim
a disciplina , vendo que esta é apenas uma farça porque o respei-
to não existe senão de conformidade com o interesse momentaneo
de cada qual, verá que ella sendo a força poderá impor-se aos que
perderam o unico direito que os sustentava porque vinha do res-
peito ás leis de que elles destruiram a força moral.
A selvajaria de Santa Catharina é a continuação em crescendo
do 15 de Novembro.
Terá um epilogo, qual será elle ? Horrorisa essas
massas anonymas sempre exploradas, habituando- se lentamente ao
crime, tornando- se insensiveis aos soffrimentos, perdendo o brio nas
matanças de indefezos , erguerem-se, selvagens, boçaes, nada mais
respeitando , tudo querendo destruir, tudo que concorre para a mi-
seria d'elles e nossa, vociferantes, pedirem sangue e vida.
Esse bramir de feras que fogem das jaulas dos domadores,
não está longe talvez, e demais está escripto
335

"Quem com ferro fere, com ferro serà ferido . ,,


Entre os mortos citam Paula Freitas, o meu velho amigo de
collegio, deixando viuva a desditosa Olympia, tão calma e tão boa !
Amado Barata, filho daquelle homem trabalhador que pôde educar
numerosissima familia, deixando-a pobre ; e com Amado foi- se um
dos seus sustentaculos.
E quantos outros que não sabemos, que julgamos fugitivos
não pagaram com a vida, como o meu pobre amigo e companheiro
de barraca Israel Sá ?
E não haverá uma punição para tantos crimes ?
O Almirante procurou- me para dizer que tendo conversado
com o conselheiro Silveira Martins sobre o querer eu ficar em um hos-
pital de sangue, este dissera-lhe que a minha presença na campa-
nha era necessaria, e que elle não tinha quem me podesse substi-
tuir, portanto, tenho de preparar- me para invadir com os primeiros .
Dirigi- me ao Presidente da Cruz Roja argentina, por carta
pedindo- lhe alguns medicamentos para os feridos . Recebi em resposta um
convite para apresentar-me la. O presidente é o dr. Roberts , ocu-
lista distincto . A' hora marcada para a minha apresentação elle não
estava, o secretario porem chamou-o immediatamente á repartição ,
pelo telephone.
Emquanto esperava-o entrei para a secretaria onde traba-
lhavam diversas senhoras e senhoritas, das principaes familias. As
senhoras pertencentes á Cruz Roja se dividem em turmas, e cada
dia vai uma turma, alem das joias e mensalidades, levar uma hora
de serviços aos necessitados . Ali cozem, cortam , fazem ataduras e rou-
pas das fazendas que outras mandam.
Portanto, esse Buenos Ayres que parece não pensar em outra
cousa a não ser a exterioridade, tem uma alma boa, sensivel, huma-
na, condoendo - se das desgraças alheias, prompta a levar soccorros
aos desgraçados.
Nas guerras civis a Cruz Roja se presta do mesmo modo que
n'um incendio . Vi mais de uma photographia de combates nas ruas
de Buenos Ayres e de incendios onde se vê homens correctos com
o seu bonet branco no qual se ostenta a Cruz Roja , senhoras da alta
sociedade com sua medalha no peito e sua divisa no braço cui-
dando dos feridos nos logares mesmo dos combates e das catas-
trophes. Em Curitiba, no Brazil, assassinaram um velho, quasi
moribundo, por que sua mulher e duas filhas prestaram-se a serem
anjos bons dos feridos de ambas as parcialidades que nós recolhia-
mos aos hospitaes, porque nós não matamos os feridos inimigos.
Pobre Brazil ! Os teus consolidadores te collocaram em nivel
inferior á Cafraria !
Um terremoto em S. Juan e Rioja tem posto a Cruz Roja em
movimento. E preciso roupas para os muitos que ficaram sem abri-
- 336 7

go ; e por isso as senhoras augmentaram as horas de trabalho, as


casas mandam fazendas e dos depositos sahem volumes e volumes
de roupas para a região flagellada .
O dr. Roberts levou-me para a sala nobre das sessões, onde
conversamos algum tempo e elle prometteu-me alguns recursos para
os feridos .
Ao retirar-me perguntou-me porque não me fazia socio da
Cruz Roja. As despezas são pequenas e eu ganharia certas regalias
Anos paizes civilisados.
Perguntando-lhe o meio, disse- me que falasse a um SO-
cio para apresentar-me que no outro dia elle faria uma sessão ex-
pressamente para isso , que faria com que se dispensassem os inter-
sticios e eu seria approvado socio na mesma sessão . Deu- me os no-
es de dois socios que podiam fazer a apresentação , sendo um d'el-
les vice presidente, amigo do almirante Custodio de Mello , que
18
presentou e no outro dia era eu membro de numero 1918 , do
corpo medico da Cruz Roja Argentina.
**

Minha vida aqui, quando não estou em serviço revolucionario


é simples.
Quasi todos os dias vou a colonia dos emigrados , longe de
ende moro, onde se acham Jacques Ourique, dr. Generozo Mar-
ques, Guimarães Passos, dezembargador Motta, José Gomes, Jorge
Cavalcanti, e outros muitos.
E' una specie de asylo, de soccorros mutuos , onde os que
podem ou que dispoem de alguma cousa, alguns pezos, dão que co-
mer aes que nada tem.
Uma meza grande com um ou dois pratos abundantes, mas
onde os ditos alegres, as pilherias, as sátiras mais finas formam um
Pomposa mer . Em viver de bohemios, satisfeitos com o que tem ,
esperançosos no futuro, confiantes na justiça. ,
A ás vezes meu espirito se expande um pouco , pelo attrito do
dos outros de repente porem uma phrase accorda dores modorradas
por momentos, e as manifestações d'ellas irrompem como lavas de
um vulcão que parecia - adormecido. Todos tem familia, quasi todos .
tem filhos, entros tem afecte que não sabem se ainda perduram,
ou se a legalidade rov › u -i'os tambem. E' uma tempestade da
alma que quasi semprmina com lagrimas.
A' noite vou ao tre lyrico ; um bilhete barato no paraizo
da-me direito de ouvi a. Ouvir a Tetrazzini, uma das soprano
ligeiro melhores que tento visto . Assim è que por pouco dinheiro,
muito para mim actualmente , tenho ouvido :
Lucia, Si wla , Rigoletto, Cavalaria Rusticana, Dinorah,
Gioconda, Aida.
337 -

A melhor festa porem, para mim foi muito simples.


Jacques Ourique convidou-me para irmos almoçar em casa.
do capitão tenenteVinhaes, n'um bairro de operarios , emPalermo; queria
apresentar-me porque segundo me disse, Vinhaes desejava conhecer-me.
Desencontramo - nos , e eu julgando que elle ja lá estivesse
com Guimarães Passos , tomei um carro ; lá porem não estavam ainda .
Vinhaes recebeu-me, e apenas perguntei-lhe se era elle a quem
eu procurava, disse-me elle : Sim, dr. Dourado. Conhecia- me pelo
retrato . Emquanto esperavamos pelos companheiros, que muito se
demoraram, conversamos sobre diversos assumptos , afinal chegamos
á questões sociaes, e Vinhaes fez-me , ouvir um pequeno conto so-
cialista de Amicis, sobre operarios.
Um conto singelo, mas que parece ver- se os actores , no qual
duas meninas, a filha do operario, collega de escola da filha do dono
da fabrica, representam papeis onde a alma se apresenta em scena,
Foi traduzido por Vinhaes ; é tão eleganto a traducção que nos
embevecemos na, leitura, elle lendo e eu ouvindo, e apezar de tantas
vezes ter elle lido , seus olhos humedeciam , e eu ria- me para não
chorar. Apenas terminamos esse recreio, tão suave para o espirito,
chegaram Jacques Ouriques e Guimarães Passos.
A Senhora de Vinhaes estava doente. Servia-nos á meza sua
interessante filhinha de 12 annos de idade, a encantadora Mimi , com
tal gosto, com tanta solicitude, que eu não podia desviar d'ella os
meus olhos.
Bem sabes se tenho razão de o fazer.
Foi um almoço simples, mas com todas as etiquetas e assim
passamos algumas horas no seio de uma familia digna, como nós
exilada, onde podemos encontrar, ainda que rapidamente o que já
tivemos quando viviamos tranquillos .
Se eu tiver de terminar a minha carreira nas batalhas que
vamos travar, e se isto te chegar ás mãos, que meus filhos digam
a Vinhaes que foi em casa d'elle que passei um dos melhores mo-
mentos de minha vida.

Assisti a duas festas. Uma foi a do dia dos mortos.


Fui ao cemiterio à tarde, á hora da maior concurrencia.
O cemiterio é pequeno, as ruas de mausoleos são estreitas .
Difficilmente pode- se transitar em dia de visitas. Os mausoleos são
sem gosto, com excepção de alguns.
Parece mais um deposito de bric- a-brac. Não tem aquella bel-
leza melancholica do Campo Santo na Bahia, nem os seus mausoleos
magestosos com estatuas collossaes de marmore branco , de alegorias
piedosas, nem seus vastos jardins, nem seus bosques, nem a sua
22
338

capella gothica, que clareados pela luz maravilhosa reflectida no ocea


no que se estende sem fim, leva- nos tanto a pensar no infinito.
Vendo este cemiterio, e lembrando -me do Campo Santo na Bahia,
me esqueço de que a morte que me acena, talvez proxima, é na
campanha do Rio Grande , talvez martyrizado, mutilado e me lembro
d'aquelles versos tão simples , mas tão expressivos de G. Dias.
"Deus permitta que eu não morra sem que torne para lá. ,,
Entre os mausoleos mais notaveis sobresale o que ergueram
aos revolucionarios que succumbiram na ultima revolução .
E'o mais visitado. Ali mesmo commenta-se os actos de bravu-
ra delles e os crimes do Governo. No Brazil nem so isso não seria
permittido , como seriam punidos os que em tal pensassem , porque
ahi se quebram vitrinas onde se expoem retratos de revolucionarios .
Uma cousa que se nota na Argentina é o desejo de perpetu-
ar a memoria dos grandes homens que foram uteis á Confederação.
As estatuas de Mazzini, Garibaldi , Colombo se vê, por assim
dizer, por toda parte. De argentino só vi uma em Corrientes. E' a
de um sargento que deu, n'uma batalha , o seu cavallo a San Martin
e morreu devido a isso , porem não perderam a batalha.
Aqui não ha monumentos a Rosas, nem a nenhum dos que opprimi-
ram o povo signal, de que os argentinos mesmo aproveitando-se de tudo
que elles lhes podiam conceder como partidarios e instrumentos , ti-
nham bastante brio para não se declararem infames perpetuamen-
te insultando aos que soffreram .
Fui tambem ao Corso de Flores em Palermo.
Guimarães Passos em companhia de um amigo convidou- me
com insistencia a acompanhal-os.
O amigo tomou um carro e nós seguimos lentamente na linha
dos que iam, encontrando os que já voltavam.
Os carros paravam as vezes para esperar que os da frente
avançassem.
Depois de muito trabalho e manobras do cocheiro, podemos
chegar a vista do bosque, cujas ruas fronteiriças estavam cheias
de vehiculos com espectadores, porque para entrar o carro comnosco
seria preciso pagar caro.
D'ali assistimos n'aquella marcha lenta o desfillar de ricos
trens puchados por cavallos soberbos , occupados por mulheres bo-
nitas ; raramente porem, viamos atirar uma flor de um para outro
carro, ou uma serpentina, ou mesmo trocarem risos e amabilidades.
Tudo serio, como figuras em exposição , parecendo todos des-
conhecidos e por isso disse eu a Guimarães Passos, que em vez de
corso de flores, devia sera appellidada esta festa de Corso de Mugeres
a não ser que sejam pelas mulheres mesmas que elles a appellidam
de flores.
339 -

Em fim pude sahir de Buenos Ayres em direcção a Concordia


embarcado em outro vapor que não era o Commercio.
As aguas do Uruguay muito diminuidas pela secca, nos obri-
garam a baldeação para um vapor pequeno, sem accommodações, quente
como uma fornalha.
Em Concordia tomei o trem para Caseros tendo por companheiro
de viagem um Jesuita, homem illustrado com quem conversei muito
tempo sobre o destino da geração actual , vendo o trabalho metho-
dico dos colonos que transformam a região n'uma ceara, e que máos
homens que de 4 em 4 annos podem ser substituidos por peores, se
não o forem em 4 mezes, farão destruir, provocando guerras civis,
que tudo consomem.

De Caseros passei a Santa Rosa abandonando a terra argentina,


onde soffri as maiores miserias, onde tive em pequenas demonstra-
ções de commiseração ou sympathia as maiores commoções .
Em Santa Rosa encontrei-me com Costa Mendes o intemerato
commandante do phantastico Urano, Seabra o valente bahiano que
com a arma invencivel de sua intelligencia combateu a tyrannia
com sua palavra, e hoje ajuda-nos a organizar os elementos que
temos para continuarmos a combatel-a com a nossa morte.
Não deixa de ser triste para mim a minha passagem ao Es-
tado Oriental.
Foi aqui que buscamos asylo contra a morte certa a que fora-
mos condemnados.
recebemos dia a dia as noticias dos horrores
Foi aqui que recebemos
que se praticavam no Rio Grande do Sul, buscando no exterminio
do adversario a brutal illusão de dominio eterno e absoluto.
Foi aqui que reclamanios contra esses cannibalismos.
Foi aqui que clamamos em nome da familia e da Patria ; que
pedimos, que rogamos, que nos dirigimos aos adversarios que fos-
sem honrados para porem um termo aquelles horrores que nos es-
tavam matando physica e moralmente, e a tudo isso respondiam- nos
com o insulto augmentando a barbaridade.
Foi aqui que sonhamos com a liberdade e o direito depois
da luta, e que congregaram-se os abnegados , quasi desarmados, para
essa luta que só poderia ter a victoria moral dizendo aos algozes
do centro que se elles tinham dinheiro e soldados para perpetuar a
insania do Sr. Julio de Castilhos, nós tinhamos honra, brio e san-
gue para oppor aos que por paga nos vinham matar, e na esperan-
ça de que esse acto de abnegado heroismo accordaria nos algozes
o sentimento nobre dos brazileiros, abandonei a familia, que toda
felicidade encerra para mim, abandonei o meu Telemaco aqui, ape-
840

nas nascido, e hoje volto sem nada ter encontrado, sen de nenhum
saber se é vivo, e com o soffrimento, o desejo da luta se enraizou ;
e é d'aqui que vamos outra vez entrar n'essa luta que parece só
terminarà quando o sangue do ultimo revolucionario pelo direito e
pela liberdade satisfizor a sede felina dos fazedores d'essa republica
que matam, que roubam, que infamam !

Em uma das estações estava Pahim que esperava a passagem


do trem, e juntos, em pouco, avistamos os serros do Jaraú em ter-
ras brazileiras. A' tarde chegamos a S. Eugenio onde deviamos espe-
rar os companheiros que, um por um, deviam procurar a fronteira .
Não tivemos descanço .
A falta absoluta de tudo, a cautela que deviamos desenvolver
para não sermos vistos, exigiam o maior cuidado.
Afinal em fins de Dezembro invadimos, com o general Pira-
gibe e esperamos no logar denominado Sepultura, pela reunião
de companheiros retardatarios para podermos ter uma columna ca-
paz de operar, porque actualmente não temos mais de 400 homens
entre a gente de Pahim e a infantaria do Livramento constando do
batalhão Antonio Vargas ao mando de Bento Xavier.
Depois de tanto lutar, depois de tanto soffrer pisar 1 no solo
da Patria disposto a morrer !
Sentir prazer na esperança de que será o seu chão que nos
so sangue ha de beber, e que desse sangue nascerá a seiva parabo
alimento dos que nos hão de lavar, um dia, a mancha que atiram
sobre nós , que nos hão de exaltar e condemnar aos que foram nos-
sos assassinos por interesse, é triste, mas é nobre e heroico, Foi
por isso, que pisando esse solo de minha patria eu desci do meu
cavallo para beijal- o.
Beijei a minha provavel sepultura, beijei a terra em que meus
filhos serão homens.
Nossa condição aqui é precaria. Somos poucos, e eu tenho
receio de que sejamos atacados e percamos os poucos elementos
bellicos que possuimos.

Um piquete nosso foi sorprehendido e no outro dia avistamos


na cochilha uma columna vindo dos lados de Uruguayana ,
е ao mesmo tempo recebiamos communicação de que o coronel
Sampaio havia sahido do Livramento, com forças das tres armas
para, de combinação com aquella columna , nos atacar.
A columna vista teria quando muito quinhentos homens ; ape-
zar de sermos em menor numero poderiamos atacal- a e levarmol- a
de vencida, mas ha possibilidade de encorporar- se a ella a força do
- 341 -

coronel Sampaio e seremos derrotados, o que seria um desastre em


todos os sentidos , porque iniciar a invazão com uma derrota seria
desanimar os companheiros que se preparam para nos secundarem.
De combinação com o general Piragibe resolvemos esconder
as nossa armas nos mattos, muito serrados aqui, e dispersarmos a
gente em pequenos grupos.
Fui ao acampamento de Timotheo Palim não só avisal-o d'es-
sa resolução como explicar- lhe a razão d'ella .
Cheguei ao seu acampamento já á tarde, avisei - o e elle pro-
videnciava a respeito quando eu me retirei , mas, apenas che-
gava eu ao cerro, por traz do qual Pahim acampava, avistei um
forte piquete inimigo que tinha vindo escondendo- se pelas canhadas
para ver se sorprehendia os nossos.
Avistado a tempo pelos nossos piquetes, foi recebido com vivo
tiroteio e esgueirou-se immediatamente .
A' noite chegou Chiquinoto ao nosso acampamento. Vinha
do Livramento e não dava noticia de Sampaio, e tendo a columna
vista se retirado do ponto em que estava , resolvemos atacal- a no
outro dia se ella para ali voltasse.
Pela manhã nos preparamos, mas havia cerração e não se via
ninguem ; a cerração desfez se como por encanto.
Parecera um sipario que a natureza collocara ali para occul-
tar uns e outros, emquanto se accommodavam, no scenario, os algozes
e as victimas.
Tornado limpido o espaço nós vimos n'um relancear de olhos
as coxilhas cobertas de inimigos, talvez dois mil homens, massas
compactas de infantaria, com boccas de fogo, para brigarem com quatro-
centos mal armados. Immediatamente puzemos em pratica o plano
que haviamos formado um dia antes ; desapparecemos no matto que
margeia o Quarahyn onde durante quasi um anno Bento Xavier
estivera occulto com sua infantaria ; escondemos as nossas armas
e passamos ao Estado Oriental.
A policia d'ali ao mando do tenente Dominguez , achava-se na
fronteira. Uma força commandada pelo irmão de João Francisco
penetrou no Estado Oriental e fez fogo sobre a policia matando um
soldado , ferindo gravemente o tenente.
t
Espalhou- se a noticia de que uma outra força invadira por
ordem do coronel Sampaio em outro ponto para sitiar-nos , ali no
Estado Oriental ; então tomamos nossas armas e dispozemo - nos a ven-
der caro a vida.
Familias de emigrados que aqui viviam em pequenos ranchos,
lavrando a terra para viverem, fugiram para os mattos, aterroriza-
das. Eu colloquei - me junto ao tenente em quem acabava de fazer os
primeiros curativos
As forças de Pahim se dispersaram emquanto elle procurava
- 342

um logar para escondel- as. Alguns dos homens d'ellas , porem vieram
para junto das de Bento Xavier.
Eu tive de ficar junto ao tenente Dominguez, para cural- o .
Não deixava de ser perigosa para mim aquella posição.
Sabiam que eu ali estava e uma partida d'elles que viesse
até aquelle lugar, segundo diziam, João Francisco premedita-
va, nos destroçaria porque a força de policia era apenas de 12 ho
mens ; mas seria mostrar-me cobarde abandonar um ferido por es-
tar proximo da linha divizoria do Rio Grande do Sul.
Afinal o estado do tenente deixou de ter gravidade e as
forças castilhistas desappareceram da fronteira, mas outros perigos
nos ameaçam,
Por ordem do Governo veio percorrer o logar não só o chefe
politico do departamento, como o proprio ministro da guerra, e por
isso tivemos de nos occultar ainda mais. Dias e dias passamos
occultos nas grutas, sem fazer fogo, sem ao menos fallar-se alto para
não sermos descobertos, até que se foram chefe politico e ministro.
Raphael Cabeda veio tambem para junto de nós ; e Apparicio
Saraiva com os companheiros vem se approximando.
Um dia recebi recado de Raphael Cabeda que fosse com ur-
gencia ao seu acampamento.
Pensei que se tratava de doença, e ao chegar là encontrei
Saldanha da Gama.
E' incançavel esse homen. Em poucos dias percorreu,
a cavallo , toda fronteira do Rio Grande d'esde S. Thomé,
na Republica Argentina, até Aceguá proximo a Jaguarão .
Se tivesse feito isso ha mais tempo, me disse elle, tudo teria
accommodado ou remediado, e não teriamos perdido tanto tempo.
Guerreiro internou-se no Rio Grande e esta só. O adver-
sario....
O inimigo disse eu ...
Não, o adversario, eu não considero inimigo os que nas-
ceram na mesma terra que nós...
Tambem eu não os considerava, e hoje considero.
Quem fez e faz o que elles têm feito ainda que tivesse sido
gerado por minha mãe, eu dizia que minha mãe nada tinha com
elles.
Tem soffrido muito, eu sei, em corpo e em espirito, mas
amanhã será o primeiro a esquecer.
Mas, a posição de Guerreiro é melindrosa, é preciso irmos em
soccorro d'elle.
Apparicio já tem cavallos e abi vem, portanto devemos apressar.
Tivemos de almoçar. Um assistente de Raphael " estendeu um
sacco de aniagem já sujo no chão , e collocou sobre elle um prato
343

com farinha, depois trouxe o churrasco no espeto. Um assistente do


Saldanha trouxe- lhe um pequeno talher de campanha.
Saldanha sentava-se n'um pelego, e eu deitei-me no chão fir-
mando o cotovello nos joelhos de Juca Tigre, tambem estirado.
Eu ria- me, ria-me muito . Saldanha perguntou-me porque me
ria tanto.
Por ver o Sr. D. Luiz a comer churrasco e atirar na bocca
com a mão a farinha .
Se formos derrotados, escapando à faca do adversario, vou
propor- ne a um novo meio de vida, vou ser empresario de novi-
dades. Chegando n'uma cidade annunciarei um grande espectaculo:
O Sr. D. Luiz de Saldanha da Gama, ao serviço do Brazil
desde criança, a figura mais brilhante da marinha que para não
ver escravisar- se a sua terra, por maus homens, tudo sacrificou por
ella, comerá em publico churrasco com farinha á moda da campa-
nha ....
-- Não, não poderemos ; se não vencermos , o paiz obrigará o
governo a fazer comnosco uma paz honrosa.
Tive necessidade de ir ao meu escondrijo, combinando que
jantariamos n'essa tarde no de Bento Xaxier, onde a senhora
d'elle nos preparou um magnifico jantar composto de canja de gal-
linha, churrasco, servido em cima de um caixão que tinha vindo cheio
de generos destinados ao batalhão Antonio Vargas.
Ali ainda me ri, e o Almirante intrigado perguntou-me por
que me ria.
Officiaes com quem tenho estado, disse- lhe eu, falando me
sobre o Sr. D. Luiz, diziam - me que sua correcção no trato e na
etiqueta é tal, que em jantares de ceremonia não come gallinha
pela difficuldade de separar a carne dos ossos sem sahir da correc-
ção que obriga a etiqueta , e por isso quero ver como vai se arran-
jar, neste nosso banquete, com estas azas de gallinha que acabo de
servir-lhe.
Não tinham razão para dizer isso , e vou provar-lhe como
sei comer uma aza de gallinha sem deixar nada, e sem sahir da
etiqueta, e tomando a aza com os dedos comeu-a perfeitamente.
Separamo- nos porque n'essa noite mesmo, cada qual tinha que
seguir para onde indicava a necessidade do serviço .

A peior phase de uma campanha é a dos preparativos para


ella. A inacção põe os animos irritados , exigentes .
Quem está habituado a viver de pouco, quer muito, quem nun-
ca teve cousa alguma senão tomada por si mesmo, quer que se lhe
dê tudo, mesmo nada se tendo.
344 -

Aqui é usar da phrase de Napoleão transpondo os Alpes e


avistando a Lombardia ; ,, Tendes falta de tudo é tudo vós tereis
66
n'aquellas planicies, as mais ferteis do mundo ; " ou a phrase de
Guerreiro Victoria quando commigo passava revista ás forças do
governo Rio Grandense em Bagé contra a perfidia do Sr. Bernardo
Vasques , antes da deposição de armas, confiando na palavra do Sr.
coronel Arthur Oscar : " Cuidem dos cavallos, preparem maneias e
maneadores, porque armas e roupas nós tomaremos d'elles,, e faz- me
isto lembrar o que me dizia o valente Pina quando escondidos no
Rio Negro nos preparavamos para invadir.
Deem-nos cavallos porque armas nós tomaremos d'elles.
E é a verdade. ་་
Foram elles que nos suppriram sempre de armas e munições.
Os nossos recursos chegavam apenas para iniciar a acção, e
em pouco , no fim d'ella, nossos parques se enchiam .
A inacção é por sua vez deprimente para o espirito dos que
pensam, dos que não encontram diversão senão nos objectos que se
apresentam á vista, porque tudo isso accorda uma lembrança. As
paizagens são as mesmas. As grutas são iguaes no nosso continen-
te ; entre si, o cantar das aguas, feridas pelos calháos , é o mesmo.
Apenas nós o sentimos em outro tempo quando tudo sorria,
quando a esperança brilhava em nossa alma como uma exhalação
perfumosa, inebriante, e hoje essa esperança não é mais do que o
bruxulear de uma chamma que vai se extinguir por falta de oleo
que a alimente, e nos paroxismos, ora tem os tons das chammas
do incendio, ora desmaia como a luz que se diffunde em trevas
densas.
Esse cantar das aguas que tantas vezes nos aquietou o espirito
transformou-se hoje n'um choro lamentoso, n'um soluçar de agonia.
E' talvez a alma dos companheiros que pernoitaram para
sempre antes do fim ; é talvez o espirito dos auzentes que vem nos
dizer que por onde quer que movamos os passos, elle nos segue
triste, lamentoso, como o perpassar d'um som no espaço, para se
unir á saudade em que nossa alma se sepulta.
E da sombra da matta eu fujo como criminoso que não pode
ser visto, para vagar, abstracto, nos campos e na collinas onde o
sol arderte doura o verde feno, onde as flores primaveris derra-
mam-se sobre a relva da campanha como se das nuvens tivesse ca-
hido neve de ouro ; depois cançado de corpo e de espirito, volto ao
meu esconderijo e ali na mais escuro recanto, onde as abelhas man-
cham a brancura dos lyrios, onde o stridulo dos grillos e das cigar-
ras formam uma orchestra com o zumbido dos bordões, com o crebro
estalar das vagens resequidas das trepadeiras e o cahir das folhas,
emmurchecidas ; e nessa monotonia, o corpo cançado humedecido
pelo suor, que a marcha e o calor abafadiço da matta provo-
- 345

cam, o espirito pára impotente, immovel, como o sapo que adormece.


no meio da charneca.
Mas está escripto que nas maiores dores ha sempre um alli-
vio, como nas maiores alegrias ha um resaibo de tristeza . Perto de
mim habita a familia de Bento Xavier, o denodado companheiro
que tom junto de si o batalhão Antonio Vargas e cuida d'elle como
irmão.
Começou a luta como capitão de uma companhia, hoje é seu
coronel commandante.
A mulher e os filhinhos vivem aqui n'estas grutas , a cunhada,
uma loura delicada, de mãos pequenas, alvissimas, coze dia e noite
para vestir esses valentes abnegados , e ainda sobra-lhe tempo
para offerecer-nos um pouco de café.
Os filhos de Bento são vivos , espertos, todos louros, agarra-
dos com elle que, nas horas de descanço, ainda brinca com os me-
nores.
A vista d'esta familia refugiada, vivendo quasi na miseria ,
d'essa vontade que mostra no trabalhar pela nossa causa e d'estas
creanças louras travessas, traz - me recordações suaves, doces, ainda
que me despertem a amargura da ausencia, a apprehensão de des-
graças que eu preferira morrer, antes de ter d'ellas noticia .
Felizmente parece que se vai terminar esta vida de inacção ;
sigo para um ponto onde devo encontrar -me com Saldanha da Gama.
Nosso encontro se deu em casa de Maneco Pereira que como
o Major Menezes, Theodoro Paiva, Manoel Canabarro, José Pedro,
Velledas. Roza, Militão Machado e muitos outros patricios domici-
liados nesta região têm nos prestado os maiores serviços , quer ma-
1
teriaes, quer moraes, sendo incalculaveis os que tem prestado a
familia da mulher de Raphael Cabeda, e a boa vontade e auxilio
dos que não são brazileiros, mas que conhecem a justiça de nossa
causa, sobresahindo entre estes o negociante hespanhol , Henri-
que Gonzalez.

Apparicio e Vasco Martins approximam -se da fronteira . 1


Marcham de noite, e durante o dia se escondem no matto.
A familia de Apparicio veio do Cerro Largo para vel -o ; e acompa-
nha- o até á fronteira.
O filho mais velho , uma creança de 12 a 13 annos empenha-
se com todo mundo para pedir a Apparicio que o leve ; quer ser
seu ordenança. Até ao almirante fez este pedido, mas Apparicio
com toda a calma só lhe diz :
"Você não pode vir, amigo , você hoje é o chefe da familia ,
precisa estar lá ; cuidar de nossas estancias. Quando for preciso
Você terá com quem se polar ; espere que chegará a sua vez.
346

A passagem para a fronteira é difficil porque passamos em


grupos, de noite, ou então dispersos.
Para o revolucionario causa alegria ver o contentamento d'essa
gente que prazenteira, risonha, como quem se alivia de um peso
ou de um remorso, corre para onde a luta vai travar- se mais cruel,
mais feroz, na proporção de 20 bem armados e bem vestidos con-
tra um mal armado e mal vestido .
Como brazileiro doe isto, porque esta gente seria a primeira
a empunhar armas contra o estrangeiro que nos insultasse. O Bra-
zil matando estes bravos filhos, está suicidando- se, mas o Brazil
bestialisado não pensa n'isso
Supporta quem o cavalgue, quem faça d'elle a besta que vive
a galopar até onde o gozo espera o cavalleiro que esporea-ihe as
ilhargas, que lhe dá de chicote por entre as orelhas. A besta tem
que obedecer, tem um freio de aço que lhe contem os impetos,
tem esporas agudas que a obrigam a marchar.
Saldanha da Gama que havia acompanhado Apparicio até o
Brazil e voltou á espera de Vasco Martins, este porem não podia
seguir comnosco por não ter armas .
O primeiro dia, 25 de Fevereiro, passamos nas margens do
Quarahym. Era preciso para organizar as forças.
A 26 pela manhã marchamos.
Esta invasão não é como a primeira, em que todos vinham
sem ter conhecimento do que seja uma luta contra elementos pode-
rosos, como quem vai para uma festa, ou para não perder um lo-
gar que julgava seu por direito.
Esta é differente ; é composta somente dos destroços dos ou-
tros corpos , dispersos não pela força do inimigo , mas por falta de or-
ganisação. Os que aqui estão, estiveram em todos os comba-
tes, soffreram os golpes mais rudes e todas as miserias.
Estes estão aclimatados n'este inforno que se chama lutar
com a vontade contra os sabres, contra as armas modernas, contra
as metralhadoras, contra os canhões.
Estes sabem que a vida só tem valor com o corolario - a
dignidade .
Ate ali nos tinham acompanhado parentes de nossos compa-
nheiros. Mães de uns, irmãs de outros, esposas, filhos, paes. E' sem-
pre triste uma separação d'estas.
Ha physionomias, infantis hontem, que a luta tornou severas,
como o destino , hoje. Ha lagrimas, preces, recommendações, abra-
ços, mas ha o dever tambem. Recuar é cobardia, a cobardia é a
infamia.
Para mim que nada tenho aqui se não estes irmãos do mar-
tyrio, todas estas dores me pungem ; eu sinto todas ellas, e minha
347 --

natureza se revolta contra mim mesmo, lembrando que se não luto,


se não lutamos, meus filhos terão luta igual em toda a vida.
Passava por mim um clarim, chamei - o e mandei tocar uma mar-
cha guerreira, elle obedeceu, e em pouco todos os clarins o imitavam .
Despontava o dia. Um ceu limpo, cheio de estrellas que ador-
meciam com a approximação da aurora.
Vamos, amigos. Estamos em nossa terra. A morte aqui será
mais clemente. Nós a beijaremos no solo da Patria como beijamos
a nossa esposa, a nossa mãe no seu leito de pureza, no nosso san-
to lar. 3
A's 9 horas acampamos.
Deviamos esperar a approximação da columna de Apparicio,
chefe do corpo de exercito, que não podia demorar.
Pouco depois appareceu Saldanha da Gama, o incançavel, de-
pois Apparicio . Ali estivemos algum tempo e ali mesmo na barraca
de Cabeda o almirante escreveu suas instrucções.
Depois affastando-nos um pouco passeiando de um lado para
outro conversamos .
Elle tinha receio de que Raphael, chefe, que não servira nas
forças de Gomercindo não vivesse em harmonia com Apparicio ; e
era a mim que cabia, segundo elle, harmonisar tudo ..
Fique descançado, lhe disse eu. Raphael tudo tem empenha-
do por esta causa. Apparicio tudo despresou por ella. Em pouco
saberá como elles estão unidos, como se querem.
Depois fallou-me sobre o prejuizo que tivemos de armas con-
fiscadas no Salto, e nas suas difficuldades, mas que esperava vencer
estas difficuldades, e que em menos de 15 dias estaria em campanha .
Disse-lhe com franqueza que não desejo que elle venta. Sua
actividade nos servirá muito, no estrangeiro d'onde por poucos que
sejam, nos vem alguns recursos.
Esta campanha não é para si, lhe disse eu. O revolucionario
só briga quando tem certeza de vencer, ou quando é preciso mor-
rer com honra ; se porem, a luta não trouxer-lhe resultado, o revo◄
lucionario foge, e escapar é uma victoria.
Não assignamos contracto de brigar onde elles quizerem, dizia
Gomercindo, só brigaremos onde quizermos ; mas o Sr. não, o Sr. é
militar, tem em si encarnadas todas as glorias da armada brazileira,
não quererá fugir e sua perda seria um golpe profundo para nós.
-E' preciso que eu vá, disse-me elle, e tudo se farà bem. Não
me escreveu dizendo que os gaúchos em acção se transformam ?
,,Pois eu me transformarei tambem. ,,
lamos marchar e todos os officiaes vieram dar um aperto de
mão ao chefe cavalheiresco . Ao abraçar-me seus olhos encheram- se
de lagrimas, mas eu estava alegre, tinha risos na physionomia.
Tem razão de estar alegre disse-me o Almirante, o riso mas-
348

cara a tristeza que vai n'alma, e eu estou triste por vel- os seguir
sem mim.
Não , não é por isso , disse-lhe eu, é porque vê a abnegação
d'esses brazileiros que sahiram hontem do sacrificio e hoje alegres
buscam outros, e a sua alma brazileira comprehende que o que esta
morrendo não são os homens que em qualquer parte morrem, é a Patria.
Abraçamo- nos, e elle quiz ir ver desfilar a columna.
Ao passar ella onde estavamos eu ergui- lhe vivas, á patria
e acs deffensores de sua honra.
Quando desfilavamos eu ainda agitei o lenço em despedida,
para elle.
{
Tivemos noticia, vinda de Rivera pelo telegrapho, que
o coronel Sampaio havia sahido de Sant' Anna á frente de oitocentos
homens de linha, pertencentes ás forças da União , das tres armas,
em direcção ao Umbú."
Sabia-se por ali que estavamos prestes a invadir, portanto a
vinda do coronel Sampaio devia obedecer a um plano para , toman-
do-nos a sahida no Caverá, dar tempo a que as forças de Hyppolito
Ribeiro nos tomassem a retirada e assim ficariamos esmagados nos
banhados da Serra, porque no Rozario, por onde poderiamos sahir,
havia forças inimigas .
Acampamos à tarde, seguindo o velho coronel Maneco Macha-.
do, commandante da columna de Cabeda, para o Caverá onde esta-
vam companheiros nossos, que era preciso reunir para dar- se com
bate a Sampaio .
De madrugada marchamos.
Foi n'essa marcha que vi muitos companheiros que julgava
mortos, e outros que julgava que nos haviam abandonado ; mas para
os revolucionarios convictos, familiarisados com o soffrimento , parar
quando os outros marcham para a luta, tendo armas, è deshonra e
nenhum quer ser deshonrado.
Eu caminhava flanqueando a columna , queria vel - os todos, os
que ja havia visto, os que chegavam. Ali tivemos a distribuição de
divisas.
Quando invadimos a primeira vez não tivemos divisas unifor-
mes. Alguns tinham uma divisa branca, outros azul, outros verme-
lha, colorada, como se diz em castelhano.
Deves te lembrar que por tuas proprias mãos fizeste divisas
em que sobre fita branca passavas uma fita vermella . Foste tù tam-
bem que bordaste o emblema da Cruz Vermelha para os medicos.
Era o nosso distinctivo.
Sabia eu que no Brazil actual, ser trabalhador para restituir a
vida é um crime. O brazileiro não tem direito de viver a não ser
na escravidão. Era um luxo meu, e a bandeira que me fizeste
1 de se-
da branca com a cruz vermelha, ainda vem commigo.
349

O Almirante julgou que nós brazileiros sò temos uma cor para


divisa verde e amarello , e por isso o seu pensamento foi uniformisar
dando-nos estas cores.
Chegamos muito tarde as Catacumbas onde difficilmente passamos
por causa da escuridão e dos atoleiros.
Pela madrugada marchamos. Ao despontar do dia começamos a ver
ea notar os logares por onde, mezes antes haviamos passado depois
da batalha do Cerro do Ouro, em marcha triumphante, e agora pas-
samos, como por assim dizer, na crystallisação das nossas forças, mor-
tos muitos companheiros , cançados outros.
A nossa columna forma uma especie da velha guarda que
depois de porcorrer as areaes ardentes da Africa e conquistado a
verdo Italia, vinham poucos para, nos bivacs à noite, contarem aos
companheiros de hoje, os soffrimentos, os actos de heroismo dos
que foram companheiros hontem como morreram os heroes, como
se immortalisaram os paladinos.
Mas, ai ! elles tinham diante de si o chefe que os levára a .
todas * aquellas conquistas, que soffreu com elles, e quando o viam
passar, rapidamente a memoria projectava-lhes todas aquellas gran-
des scenas de Austerlitz, Arcole, Iena, Wagran, Lodi, Montenote,
Marengo. Viam os gelos dos Alpes, e as cristas das cathedraes das
cidades onde entravam triumphantes, viam o deserto africano e as
pyramides ; os ataques impetuosos das cavallarias arabes contra aquel-
les quadrados immoveis de homens estropeados, morrendo de sede,
resistindo porem e vencendo á voz d'elle .
Nós percorremos o caminho por onde passamos tendo nosso
chefe á frente, e que descançon para sempre.
Somos apenas os arautos que fazemos lembrar os seus feitos.
Havia um ponto onde me lembravá termos acampado proximo
uns dos outros, quando por ali passamos, porque matou-se na por-
ta da minha barraca, uma cobra, o que desagradou a muitos super-
sticiosos que não querem que se mate cobra em tempo de guerra,
talvez porque julguem. que a cobra seja um animal inoffensivo em
relação á humanidade do inimigo.
Pouco depois chegou outra cobra e começou a affagar, a en-
roscar-se na que estava morta como querendo despertal-a para ti-
ral-a d'ali.
Por minha vez me oppuz a que matassom-n'a . Não porque me
encommodasse a superstição dos outros, mas porque vendo aquelle
esforço para chamar á vida a companheira, sem se assustar com a
nossa presença, sem procurar fugir, pensei que n'ella havia o sen-
timento da magua, que a dor a tornava indifferente ao perigo que
a ameaça.
Não vemos tantas vezes o gado passar por uma rez morta
accidentalmente e não se encommodar, como comprehendendo ser aquil-
350

lo um facto natural, e quando mata-se uma rez, reunir todo o re-


banho, e vir ali lamentar com gritos plangentes, chorar , derramar
lagrimas, mesmo ?
E' que foi o interesse de outros que fez derramar aquelle
sangue, e já que não podem vingar protestam contra o acto com
os lamentos.
Só no Rio Grande foi prohibido que homens se lamentassem
ante o sangue dos seus, com que enxarcaram a terra.
O sitio que eu procurava era- me apenas conhecido pelo arroio
que passa ali.
Uma casa vizinha estava destruida . O fono do campo fora
substituido pela chirca . Nem uma estaca de barraca , nem o carvão
ou as cinzas dos fogões .
De quantos que ali passaram commigo, não restam hoje se-
não os ossos dispersos em logares ignorados ?
O dia que ali passamos tinha um outro motivo de tristeza
• para nós .
Era 28 de Fevereiro , anniversario de uma derrota de nossas
forças ao mando do general David Martins , que com poucos ho-
mens , e um extraordinario numero de carretas com munições e ar-
mas , por descuido fora sorprehendido por forças superiores em
numero , mandados pelo general Hyppolito Ribeiro , e sem ordem ,
começou a debandada , lutando o 28 de linha , preso no Rio Negro ,
até morrerem todas ou quasi todas as praças .
Valentes homens que souberam levantar bem alto o valor do
soldado brazileiro que, mesmo como prisioneiros souberam mostrar
que a bravura existe onde existe o brio.

**

Tinhamos acampado para almoçar ás 10 horas da manhã. Ea


procurei o abrigo de um grupo de arvores frondosas á margem do
arroio. Depois de churrasquear abri a Biblia e puz-me a ler.
A Biblia tornou-se ultimamente o meu livro predilecto. E' um
acervo de baixezas, dissoluções, perfidias, de um povo poderoso en-
tão, que as ambições e sede de dominio de uns, a bestialisação e' co-
bardia de outros levaram a todas as miserias, desde á escravidão
atè á decadencia, desde á crueldade até o desapparecimento.
Vendo em que se transformou esta infeliz patria, seguindo
hoje todos os passos daquelle povo então , apenas mudando os no-
mes de Herodes para presidente, de Judas para qualquer um outro,
prevejo o fim proximo da raça actual.
Eu li em Isaias :
21 Oh ! gente peccadora , povo carregado de maldade, geração de
malignos, filhos corruptores . Deixaram a Jehovah, provocaram a ira
351

do Santo de Israel, tornaram-se atrozes .

Vossa terra destruida, vossas cidades incendiadas, vossa terra em


mão de estranhos a vossos olhos mesmo, e assolada pelo assolamento
que faz o estrangeiro .
Jehovah, será o principio para muitos, a vontade suprema.
Chamem-lhe justiça , direito equidade, e estes versiculos se adaptarão
perfeitamente a nòs quando ouvi toque de apromptar accelerado.

Corneille escreveu,no Cid, uma phrase pronunciada por Chimène,


que nunca se apagou na minha memoria.
Quando ella esperava o desenlace do duello entre o amante
e seu pae, disse :
,, Temo o que desejo... A morte ou a derrota do Cid seria
sua perda, sua victoria seria a morte do seu progenitor.
Pode- se comprehender apenas, a luta e a inquietação que ia
no espirito d'ella.
Entre o pae e o amante uma duello de morte !
Muitas vezes vemos , mesmo junto a nós , scenas iguaes, mas reaes ,
palpitantes, afora porem'a curiosidade, nada mais nos prende, por-
que para avaliar a dôr dos outros é preciso ter sentido dor igual .
E por isso que para cada causa deveria haver um juiz ; o que já
soffrera aquillo que vai julgar.
A phrase de Corneille se avivou na minha memoria quando
ouvi tocar apromptar acelerado porque o coronel Sampaio estava
a pouco mais de legua distante de nós, na sahida da serra. Nós
estavamos apenas com quatrocentos homens, pouco mais ou me-
nos. Maneco Machado não tinha chegado. O nosso piquete de van-
guarda havia tiroteado com um piquete de Sampaio, a uma legua
distante de nós perdendo um cavallo ; portanto, confirmava- se a noti-"
cia de que elles pretendiam metter- nos em dois fogos.
O ponto onde elles deviam nos esperar era o peior possivel .
Serros altos de um lado e outro e um banhado, e atoleiros entre
os dois serros . Um outro caminho nos levaria fóra da serra, des-
cendo porem, mais de uma legua para o norte, approximando - nos
portanto do Rozario, d'onde poderiam vir forças que nos mette-
riam em dois fogos.
Estavamos em todo caso na contingencia absoluta de passar-
mos, fosse como fosse, atravez da columna de Sampaio.
Não era a primeira vez que nós iamo-nos encontrar em cir-
cumstancias iguaes, e por isso , como nos casos extremos , teriamos
de empregar extremo esforço .
352 -

Abririamos o nosso caminho, marchando sobre cadaveres e tal-


vez tornando-nos cadaveres. Tinhamos, porem, esperança de ven-
cer, mas a quem iamos matar ? A muitos desconhecidos, a muitos
que só nos faziam mal pela obediencia, a muitos que serviam de
instrumento de meio, às ambições de poucos.
O coronel Sampaio é um dos que transformou a far-
da do exercito brazileiro em meio para os fins do Sr. Castilhos .
E quando temos que ir lutar contra estes irmãos que hão de
morrer, porque os chefes montados em bons cavallos fugirão na
hora do perigo, ou capitulando apenas com garantias para suas
pessoas, poucos vezes soffrem. E matar brazileiros, que cousa cru-
el ! Tem se pensado n'isto , e desejado não lutar . e gritar-lhes que
elles são instrumentos da tyrannia, que venham para nós, e como é
isto impossivel , ás vezes tem se medo de vencer, não se podendo
ter outro desejo, se não, o de vencer.
Este desejo, alem de tudo, tornava- se mais pronunciado, se no
entrar da luta podesse haver outro, porque todos os que aqui estão
muito têm soffrido, muito têm esperado.
Invadir e ter logo uma victoria será plantar de novo a confi-
ança no chefe, será a sua sagração no posto do seu immortal irmão.
Perder seria o desanimo, o anniquilamento, a volta ao estran-
geiro, como para uma convalescença.
Apparicio mandara um expresso a Maneco Machado avisal- o
do que se passava.
Em menos de meia hora estava a columna em marcha, a tro-
te e a galope.
Um. sol. ardentissimo.
Apezar de ser pequena nossa força todos corriam cada qual
querendo seu logar na vanguarda.
Apparicio e Cabeda corriam na frente.
Depois de uma hora de marcha ao approximarmo -nos do ba
nhado onde se tinha dado o encontro ,, dos piquetes, e onde espera.
vamos encontrar o inimigo, nada vimos.
O nosso piquete de vanguarda tinha-se apeado na coxilha
onde cravara as lanças e via o inimigo.
Outros piquetes corriam pela fralda dos cerros em observa-
ção, sem nada descobrirem. Tinhamos medo de uma cilada .
Apparicio e Cabeda abandonaram os cavallos e subiram a um
cerro muito alto e d'alli observavam o acampamento inimigo.
Fazia um sol tremendo. Tinhamos feito alto, puzemos pé ém
terra, em ordem de batalha, o sol porem era tão forte que tinha-
mos de nos sentar entre as patas dos cavallos para encontrarmos
um pouco de sombra.
A força de Sampaio, regulando trezentos homens , estava acam-
pada no alto da cochilha por onde passa a estrada.
353

Apparicio queria atacal- a ali mesmo, Torquato Severo, porem


observou-lhe que não era conveniente porque não se podia admittir
que um chefe com pequena força se deixasse estar tão quietamen .
te, sem piquetes de observação, sem forças de promptidão .
Seria preciso para isso, ou uma incapacidade sem classifica-
ção, ou o indifferentismo de louco, para conservar- se tão descuida-
do duas horas depois de se terem tiroteado os piquetes ; que aquil-
lo devia ser uma cilada .
Collocar uma pequena força em posição onde poderia ser avis-
tado de todos os lados, e guardar o resto das forças nas depressões
do terreno ou por traz das collinas ; nós os atacariamos e depois se-
riamos envolvidos por forças superiores.
Apezar do desejo geral, de levar-se o ataque ao acampamen-
to , Apparicio concordou com as observações de Torquato e voltou
com Cabeda para o seu posto de observação .
De repente vimol- os descer com tal precipitação , que Appa-
ricio escorregou e quasi veio rolando até o logar onde tinham dei-
xado os cavallos.
Aquella descida assim produziu alarma e sem ordem todos se
prepararam para brigar.
Vamos ser atacados , pensamos nós, provavelmente por dois
pontos.
Apparicio chegou e organison a nossa marcha para traz. O
inimigo tinha marchado, precisavamos voltar um pouco para con-
tornarmos um cerro e tormar-lhe a frente.
Foi um galopar constante atravez de banhados e atoleiros,
subindo e descendo cochilhas, procurando sempre furtarmo- nos á
vista do inimigo. Os que tinham os cavallos cançados paravam à
espera do companheiro que lhe desse um cavallo, mas seu logar era
prehenchido por outro.
Depois de vencermos uma distancia de mais de legua, fomos
presentidos e Sampaio apressou a marcha. Não podendo tomar-lhe
a frente, sahimos-lhe na retaguarda.
Augusto Amaral ia na frente com seus atiradores, cem homens
pouco mais ou menos, foram os que elles perceberam, Sampaio em
pessoa voltou á retaguarda para organizar as guerrilhas.
Depois de alguns tiros, appareceu o primeiro grupo de lan-
ceiros , e a gente de Augusto habituada á luta, cessou o fogo im-
mediatamente sem precisar toque de clarim, para poderem operar
os lanceiros.
Sampaio apenas viu os lanceiros voando para carregar, deu
um viva á republica e retirou - se. Montava em cavallo fino.
Começou então uma luta heroica sustentada pelos valentes
que aquelle coronel levava comsigo e que abandonára. Os que
lutavam com elles não eram em numero muito superior, porque
23
354

a luta afinal só foi sustentada pelo pequeno numero de lanceiros


que chegara quando Amaral tiroteava, mas a fuga desordenada ,
escapando em pequenos grupos, ou já isolados , perseguidos por gru-
pos tambem pequenos, mas com a vantagem dos que perseguem
fugitivos ; demais, vendo surgir por toda parte grupos, com car-
gueiros, cavalhadas, mulheres, mas que n'estas occasiões devem ter
apparencias de massas compactas de guerreiros, elles procuravam
fugir vendendo caro a vida.
Muito se tinham distanciado os perseguidos e perseguidores , e
muitos se mettiam pelas restingas. Em uma d'ellas havia um, dizi-
am, ou mais de um, que não queria sahir, e estava sitiado; me approximei,
gritei que quem estava ali podia sahir com confiança , porque seria
garantido .
Disse quem era, mas ninguem respondeu . Ao mesmo tempo
ouvi tiros e corri para o lugar, mas ja cheguei tarde , ja estava
morto o capitão Baptista do 5º . regimento , que não se quiz entre-
gar e lutou quasi matando dois dos nossos .
Com gente d'esta natureza, ainda mesmo que o chefe, o Sr.
Sampaio, se tivesse deixado ficar até a hora em que chegamos, mas
quizesse organisar guerrilhas e fazer uma retirada em ordem, não
tendo inimigo na frente, e a noite se approximando , com tantas res-
tingas e banhados, poderia ter salvado aquelles valentes brazileiros .
Elle tem a sua sentença em Camões que disse :
Eu nunca louvarei o capitão que diga: „, não cuidei “ .
Eu galopava gritando aos companheiros, que prendessem os
que encontrassem.
Passando junto de um banhado senti que me chamavam pelo
nome. Era uma pobre rapariga de Bagé que se tinha atirado no
banhado .
Mandei-a sahir. Tiritava de frio e de medo, mas não se lem-
brou de si, lembrava-se do filho, de dois mezes de idade, que o
marido levava comsigo.
O marido era um cabo .
Mandei leval- a para onde estava um grupo de companheiros
e corri em busca do filho d'ella. Ja encontrei um companheiro tra-
zendo-o nos braços. O pae na fuga tinha-o atirado ao chão ferindo ,
na queda, a cabeça . Mediquei - o e mandei leval- o á pobre mãe.
Perto estava um grupo com mulheres prisioneiras , me acom-
panhava a sargento Firmina.
As mulheres choravam ; entre ellas havia uma bem vestida.
Perguntei-lhes se estavam com medo. Responderam-me que sim .
Então fiquem com este sargento que as ha de garantir, e recommen-
dei ao sargento que cuidasse d'ellas. Venham minhas filhas. Não
tenham medo da minha carabina, nem de minhas calças, eu tambem
já vesti saia, disse a Firmina.
355 ---

Eu tinha uma sede horrivel e corri a uma casa para beber


agua. +
A familia que tinha visto a corrida estava horrorizada. O velho
chefe da casa tremia tanto que não conseguia encher um copo de
agua para dar-me e só perguntava-me : O que è isto, Senhor, que
horror é este ?
E' a guerra civil, meu amigo, é prazer do Sr. Julio de
Castilhos.
Estava eu ainda conversando com as pessoas da casa, quando
vi um agrupamento que indicava alguma cousa extraordinaria. Diri-
gi-me para lá .
Era um prisioneiro, moço ainda, sargento do 5º regimento de
cavallaria. Os que o cercavam conversavam de modo que se poderia
prever uma proxima borrasca.
Não aterrorisem os prisioneiros, gritei eu, me approximando .
Minha voz chegou a elle que somente poderá explicar o
que sentiu ao ver- me. Me conhecia, era de Bagé, de uma famila mui-
to minha amiga, dizia elie, da familia Bittencourt.
Tinham- lhe tomado o cavallo e o ponche. Fiz com que lhe
entregassem o ponche, o cavallo porem foi o carcheo do capitão
que o fizera prisioneiro e que lhe dizia com toda a amabilidade :
,,Amigo, tu amanhã vais outra vez para lá, para vir nos matar como
os teus companheiros que nós deixamos com promessas de não se
envolverem ; portanto, contenta-te com a vida e deixa-me o cavallo. “
Esse capitão tinha o cavallo ferido, e deu-o em troca ao pri-
sioneiro.
Entreguei-o a um capitão para vigial- o e sahi a ver se era
possivel salvar alguns mais dos que iam descobrindo no matto.
Appareceram alguns, entre elles um ferido a quem mediquei
immediatamente.
A noite se approximava e a perseguição continuava indo n'ella
todos os officiaes superiores, por terem melhores cavallos.
Os soldados estavam dispersos por ali, sem saberem o que de-
viam fazer ; em vista d'isso assumi por alguns momentos o commando
da columna e mandei tocar reunir, cada qual em seus corpos , e ali
nos conservamos atá á noite, quando começaram a chegar os comman-
dantes.
Os ultimos foram Apparicio e Cabeda, que tinham perseguido os
fugitivos até o passo do Vaccacuá, perto do Rosario.
Os cavallos eram bons, e o de Sampaio melhor. :
Muitos, sem parar a corrida, iam atirando armas e arreios pa-
ra alliviarem do peso o cavallo.
Em uma casa encontraram uma creança que o que a conduzia
deixara, dizendo : Segurem n'a emquanto perseguimos os maragatos
que vão fugindo , e nós não queremos que escapem os que restam.
356

Sem duvida alguma esse valente devia ter adquirido criterio


na leitura das partes officiaes do Sr. Castilhos para o Sr. Floria-
no Peixoto.
Foi assim como este que fugia, que elle dizia, que tinha tido
victorias sobre nós , e apezar d'essas victorias podia gente e dinhei-
ro, e o Sr. Floriano The mandava dinheiro e gente.
Tivemos de acampar e pernoitar no logar onde nos achava-
mos. Muitos dos nossos companheiros tinham parentes no 5º. re-
gimento, destroçado ali.
A fuga d'elles em dispersão deu em resultado não se saber o
numero de mortos e quem morreu . Sabia- se que Sampaio tinha fei-
to sahir em observação um forte piquete, e este encontrara com
Juca Rodrigues que vinha encorporar-se a nós ; tivera com elle un
pequeno tiroteio , e sabendo provavelmente do desastre de Sampaio
tomara o caminho do Livramento. A esperança de todos era que
os seus estivessem n'esse piquete que se salvára.
Com Sampaio fugiram poucos, 20 pouco mais ou menos, por
tanto a mortandade devia ter sido grande.
Pela manhã, já em ordem de marcha o capitão a quem tinha re-
commendado o prisioneiro veio traze- m'ol-o para que ficasse elle mais
a vontade.
Fiz o curativo da creança ferida e de um prisioneiro, e segui
com Augusto Amaral em procura do logar onde devia ter sido
morto, o alferes Amaral, do 5º. Regimento, sobrinho de Augusto,
conforme a indicação do sargento prisioneiro.
Achamos o cadaver que mandamos sepultar. Cada qual que
tinha parentes nas forças castilhistas procurava-os entre os mortos
e não encontrando, ficavam satisfeitos. Nós só tinhamos perdido um
companheiro, o alferes Cyriaco, antigo ajudante de Gomercindo .
Perseguia um fugitivo, e este metteu-lhe una bala na cabeça , de
tão perto que a explozão da polvora queimou- o .
Dois companheiros de Cyriaco, entre elles um irmão , vinga-
ram-n'o ali mesmo.
Dizia- se que Sampaio havia sido ferido, porque as mulheres
que elles deixaram viram-n'o passar com o collete todo ensanguentado.
Em vista disso appareceram muitos reclamando a gloria
para si.
,,
Um dizia que o tinha ferido na coxa, outro na barriga, e
tanto era verdade que as mulheres viram o sangue, outro nas cos-
tas, e foram tantos, tantos que não foi nenhum.
Sampaio estava montado em bom cavallo , não podia portanto
ser attingido por aquelles que se apresentavam todos montados em
máos animaes.

*
-- 357

O meu prisioneiro estava mal porque o cavallo em que mon-


tava não caminhava . Abandonal- o não era possivel, ficar só com
elle tambem não, e a columna já ia louge.
Tornei -me potreador, e felizmente encontrei uma manada de
egnas que levei a uma mangueira proxima, e elle teve assim um
esplendido animal em que se poderia escapar, se eu não estivesse
bem montado e armado, estando elle desarmado.
Na casa onde moravam os donos da mangueira receitei para
um doente, tendo em paga optimas melancias que comemos. Não só
eu como o prisioneiro não tinhamos comido d'esde a manhã do dia an-
terior, por isso as melancias nos serviram de jantar e ceia do dia
passado e almoço do presente.
Galopamos para alcançar a columna que já pensava que a
minha demora fosse devido a alguma traição do prisioneiro , e Garcia
já voltava em minha procura .
Junto ao Ibicuhy da Armada estavam Apparicio e Cabeda.
As forças tinham passado o rio e acampado .
Ali tinhamos de deixar a estrada em que vinhamos que se-
gue para Sant'Anna e tomarmos a que nos devia levar a D. Pedrito .
Precisavamos dar parte ao Almirante da nossa marcha e ação.
Coube a mim fazer o rascunho, e eu estimei porque precisava di-
zer o que se tinha passado e que as forças de Cabeda e as do
antigo exercito de Gomercindo rivalisavam em valor e agilidade .
Terminei dizendo : Com gente como esta não ha nacionalida-
de que seja escrava por muito tempo, nem revolução que não
triumphe.
Em carta particular ao Almirante, eu disse : Apparicio e Ca-
beda casaram- se perfeitamente.
Ali tivemos de deixar as mulheres, que iam com Sampaio, pa .
ra seguirem para o Livramento, conforme o desejo d'ellas.
Apparicio deixou gado para comerem e deu dinheiro ao mora-
dor para pagar- lhes o transporte em carreta ; e eu do pouco que ti-
nha dei á mãe da creança ferida para comprar-lhe roupa, porque tu
do havia perdido .

No Passo da Ponte tivemos noticia de piquetes inimigos . Mar-


chamos immediatamente para alcançal- os. Esses piquetes eram de
companheiros ao mando de Pina.
Torquato Severo discordava em relação ao ataque de D. Pe-
drito. Sabia que as forças de Elias Amaro eram em sua maioria
feitas com recrutados nas familias do municipio , quasi todos creanças ,
todos filhos de parentes e amigos de Torquato. Se elles sahirem, di-
zia Torquato, apenas começamos a brigar, os nossos fugirão para nós ,
e no povo elles não tem por onde escapar.
-44 358-

Chegamos a D. Pedrito à tarde , Apparicio e Cabeda seguiram


para o passo do rio que leva á povoação, travando-se logo um forte
tiroteio, tendo os nossos penetrado n'uma das ruas, mas donde reti.
raram-se por ordem de Apparicio.
O capitão Anacleto que acompanhara sempre o nosso exercitu,
e que ali tinha a familia, preparou-se todo, atou a cauda do cavallo
e foi na guerrilha.
Queria ser visto, queria que soubessem que elle era vivo . Uma
bala matou-o .
Na guerrilha de Elias Amaro estava o filho de Anacleto, um
dos recrutados.
Foi talvez a bala d'esse filho que matou aquelle pae, de quem
ha dois annos não tinha noticia e ardia em desejo , por vel- o .
Tivemos dois feridos sem gravidade ; passamos a noite de prom-
ptidão, deitados sobre a relva com o cavallo pela redea, ouvindo o
trabalho d'elles para entrincheiramento ; e de hora em hora tiros que
pareciam signal convencionado entre as sentinellas ou n'alguma
sombra.
Um luar esplendido, uma noite temperada convidativa ao repouso
e á meditação .
Apparicio insistia em atacar, Torquato relutava para reti-
rarmo-nos.
De madrugada ouvimos o toque de alvorada d'elles, um toque
rouco, tremulo como de quem boceja ao acordar.
Os nossos clarins responderam em diversos pontos. Ao des-
pontar do dia ao nosso toque de apromptar elles responderam.
Um piquete que estava no passo trocou alguns tiros com
os das trincheiras d'elles, e a nossa columna desfilou á vista da
povoação, sem se eucommodar sahindo alguns da fileira para ir
á casa dos moradores beberem leite e comprar queijos.
A uma legua distante, acampamos na margem do Ponche
Verde, onde haviamos encontrado um mensageiro do general Tava-
res que nos mandava dizer onde se devia achar Guerreiro, com
quem deviamos buscar encorporarmo - nos .
Depois de respondermos, eu sahi com Raphael Cabeda para
irmos á uma casa abandonada, em cujo quintal havia plantação de
figueiras, cujos galhos pendiam ao peso dos fructos negros e sa-
borosos.
Já estavamos satisfeitos quando ouvimos perto de nós, de
outro lado do rio, alguns tiros. Corremos para lá e verificamos ser
um piquete nosso que tiroteava com um d'elles, que não sabia da
nossa approximação e ia para D. Pedrito. O tiroteio fez-lhes mu-
dar de rumo.
Marchamos sem inconveniente algum .
359 -

A' Santa Maria chegamos á noite e acampamos na margem do


rio junto á picada do Alonso que vai ter á estancia de Custodio
Brazil.
De madrugada um tiro nos alarmou.
Estamos distante cinco leguas de Bagé onde ha uma guarni-
ção que provavelmente virá ao nosso encontro.
Passamos o dia ali em observação e á noite seguimos rumo das
minas de Taquarembó onde esperavamos encontrar Guerreiro. De ma-
drugada acampamos para ao amanhecer mudarmos de acampamento.
E' a terra de Torquato Severo .
Junto ao nosso acampamento ha uma venda bem sortida onde
fizemos fornecimento, comprando cada qual um pouco do que mais
precisava.
Um mensageiro do general Tavares que aqui chegou, traz- nos
a noticia de que ha em S. Luiz, fronteira oriental, uma cavalhada
que convem tomar.
Torquato Severo desde cedo seguira para sua casa, distante
duas leguas d'onde nos achamos.
Um dia horrivel de calor. Felizmente armei minha barraca
junto a um arroio onde o banho o atenúa.
A' tarde já, ouvimos tiros nos piquetes e o grito de alarma
Os picapáos. Em pouco estavamos a cavallo, e em ordem.
Sabi para a coxilha donde se podia avistar o que se passava
ao longe.
Os que haviam dado motivo para o alarma retiravam-se apres-
sados, d'onde colligimos que devia ser pessoal que concertava o
fio telegraphico.
Tinhamos tido noticia de uma força que passara por ali, na
vespera de nossa chegada, indo em auxilio de Elias Amaro, em D.
Pedrito que dista cinco leguas d'onde nos achamos. Apezar de nos
termos retirado,,1 elles se fortificam e pedem soccorro.
Servi de secretario a Apparicio para a visar a Torquato do
que se passava. Esperamos até anoutecer sem nada apparecer.
O dono da venda, que já foi meu cliente, offereceu- me jantar
convidando tambem Apparicio , Cabeda e os officiaes que appare-
ciam por ali.
A' noute marchamos para mudar de acampamento, caminhan-
do apenas uma legua.
Em caminho tive de ir com Apparicio a uma casa para ser-
vir-lhe de secretario.
Tinha recebido uma carta de Torquato que optava pela nos-
sa ida á fronteira para tomarmos os cavallos , visto que ninguem
dava noticia de Guerreiro.
Apparicio mandava dizer que precisava verificar o movimento
do inimigo e por isso contava juntar-se no outro dia sem falta com
360 -

Torquato, e eu entendi elle dizer n'esse logar, e assim escrevi.


Quando li para elle ouvir respondeu - me : Não, amigo, em portuguez
-- esse é o que está longe, este é que está perto, por-
tanto diga este porque é aqui que eu quero que elle venha ,
porque se os bichos apparecem amanhã, nós os sacudiremos.
O piquete tinha aprisionado uma carreta com generos que se-
guia para D. Pedrito.
Quando nos approximamos, o carreteiro, n'um susto horrivel,
disse a Apparicio que ali na carreta havia muitos biscoutos, muito
assucar etc, etc, que só pedia que lhe desse uma declaração para elle
se justificar perante os donos.
Pensa que nós somos gulosos ? disse Apparicio . Só comemos
estas cousas quando compramos. Você vai levar tudo aos donos , mas
somente depois que nós sahirmos d'aqui e cuide bem de seus bois, e
eu vou mandar cuidar de vocês, para não lhes fazerem nada ;
e dando uma de suas gargalhadas disse : e assim teremos certeza de
que vocês estão aqui.
Passamos ali o dia.
A' tarde foi preso um individuo suspeito de ser espião .
Interrogado nada respondeu.
Empregaram meios para fazel- o falar, e em vez de dizer o
que sabia , fingiu- se quasi morto.
Já iamos marchar á tarde quando os piquetes tirotearam na
coxilha, e ao mesmo tempo o moribundo que estava só, levantou - se
e correu. Foi sua perda.
Ja a columna estava em marcha e muitos voltaram para verem
o tiroteio das guerrilhas .
O sol já tinha desapparecido quando ellas deram os primeiros
tiros.
Quando eu cheguei á casa da familia do tenente coronel Bru
no, nosso companheiro de campanha , as senhoras estavam no pa-
teo assustadas de tal modo que nem sentiam o sibilo das balas
que passavam por ali.
Aconselhei-as que se recolhessem, o que fizeram immediata-
mente..
Tive occasião de notar no inimigo um acto de abnegação de
um que corria nos pontos por onde passavam as balas com mais
intensidade, perseguindo um cavallo, em disparada, que parecia arras-
tar um companheiro cahido .
Apparicio ordenou aos piquetes que retirassem, preparando do
outro lado do arroio, gente para uma carga de lança.
Era quasi noite. Os piquetes retiraram-se seguidos por elles
que ao chegar alem da restinga, onde fôra nosso acampamento, re-
ceberam forte carga de lança que não produziu o effeito previsto
por ser muito proxima da restinga onde elles penetraram em reti-
361

rada e d'onde fizeram forte tiroteio que nos matou dois companhei-
ros, um d'elles o major Placido rapaz de 20 annos, de bravura
desmedida e feriu-nos muitos.
Os nossos perseguiram até repassarem a restinga matando alguns
e tomando varios cavallos ensilhados.
Ficou guardando o campo o tenente coronel Juca Rodrigues
e nós seguimos em busca do Cunhatay para d'ali irmos a S. Luiz ,
onde devia ser recebida a cavalhada que pretendiamos tomar.
Tivemos dez feridos, entre elles mortalmente, Armando Sam-
paio Ribeiro um rapaz valente e digno.
Depois de fazermos os curativos de todos, marchamos :
A lua que nos clareava o caminho obscureceu-se em pouco por
eclipse total. Acampamos ao sahir a lua da sombra.
Apparicio voltou com um ajudanto para verificar a posição do
inimigo.
Depois de extrahir duas balas e fazer os curativos dos
feridos fui á uma casa de negocio onde mandei preparar almoço .
Levei commigo o meu prisioneiro que ali encontrou parentes que
lhe traziam roupa, dinheiro, doces e queijos.
Uma velha madrinha e tia d'elle mandou -me um magnifico
queijo.
A' tarde Apparicio ainda não tinha voltado , o que jà nos es-
tava encommodando . Falei a Torquato para mandar um piquéte em
sua procura e o piquete já se preparava para sahir quando elle che
gou.
Fora até proximo ao logar do tiroteio da vespera e nada vira.
Ao anoitecer marchamos. O terreno onde nos achamos é todo
de serias de modo que difficilmente se poderia ver o inimigo se
elle não quizesse ser visto.
E' plano de Apparicio passar entre o Santa Maria e Bagé, em
busca da Carpintaria e ali esperar que recebam a cavalhada para
tomal -a no caminho por isso temos de marchar de noite para não
saberem o nosso destino, e acamparmos durante o dia em logares
onde não sejamos vistos de longe.
Apenas começamos a marcha vieram dizer- me que um dos fe-
ridos da vespera acabara de agonisar. Pouco depois vieram chamar-
me em nome de Armando Sampaio Ribeiro.
Entreguei o sargento prisioneiro a um capitão para fazer- lhe
companhia. Deixal- o só sem uma protecção quando os nossos com-
panheiros morrem, ainda mesmo que elles saibam que elle está sob
minha protecção, é um perigo, e entre tantos que tem soffrido, tan-
tos que tem vinganças tremendas no pensamento, de noite ninguem
saberia de onde partira o golpe que o ferisse.
Armando estava no chão recostado em um amigo.
Eu sabia que elle não poderia durar muito. Uma ferida pene-
- 362

trante no ventre é sempre mortal , e se o ferido tem de marchar de


noite a cavallo, a morte em pouco o allivia da vida .
Senti que elle jà agonisava. Pediu- me um cigarro, dei- lhe. Pediu
luz, corrigiu immediatamente , - fogo. Accendi o cigarro e elle fumou.
Depois disse-me : E' triste, doutor Dourado, morrer-se assim no meio
do campo.
Devia ter morrido lá mesmo onde fui ferido , ou então poder
viver até ir morrer nos braços de minha mãe, vendo minhas ir-
mãs. Chorava.
Vamos, Armando, disse eu, tem coragem. A columna està
marchando, em pouco acampamos, perde a apprehensão sobre a
morte, tu vais bem. Levantaram-n'o elle mesmo pôz o pé no estribo
Ergueram-n'o e o collocaram na sella. O companheiro que ia na garupa
para segural- o e servir de encosto, recebeu o entre os braços e chamou-
me. Verifiquei que estava morto. Mandei avisar a Apparicio e a
columna fez alto. Perto havia uma casa. Encarregou-se ao morador
o sepultamento d'elles no outro dia. Eu mandei pedir - lhe que sepul-
tasse-o separado para que a familia possa mais tarde recolher os restos
de Armando.
Deixamos ali os dois companheiros cobertos com um ponche
e a columna desfilou soturna, silenciosa, lugubre ante os cadaveres
dos que partilharam com ella todos os perigos .
Para muitos estavam separados para sempre, e pela mente lhes
passava o adeus eterno ; outros porem, os que crem na immortalidade
da alma, diziam baixinho : até breve, até amanhã talvez.
Eu tinha feito marchar o meu prisioneiro com o capitão pelo
flanco da columna e os seguia um pouco distanciado .
Quando elle passon por um grupo que marchava fóra da columna
eu ouvi dizer: La vai o prisioneiro .
Os nossos morrem por não terem onde ficar para serem cu-
rados. Os que elles nos pegam degollam e nós não matamos os que
prendemos. Amanhã elle fugirá e virá outra vez brigar ou assas-
sinar os nossos............
Eu marchava perto e ouvia-os narrar aquelles factos que todos
nós sabiamos ; a descripção d'aquelles horrores que sentiamos cada
vez que havia um motivo para recordar-nos d'elles e enumeral-os .
- E' por isso que não vencemos, disse um. Nós poupamos os
d'elles e elles matam os nossos. Até o general Izidoro foi poupado...
- Sou muito amigo do doutor Dourado, disse um, fomos com-
panheiros até Santa Catharina e no dia que vim para invadir foi
o primeiro que encontrei ; mas nos dias de combate , eu não quero es-
tar perto d'elle ainda mesmo que saiba que elle me tenha de salvar ,
porque elle quer que se façam prisioneiros e eu não farei um só.....
inatarei a todos,"
363

Ouvindo esta promessa tremenda, fiz- me conhecer perguntan-


do quem estava tão raivoso .
Era o tenente coronel M. que fizera parte da expedição a San-
ta Catharina e de lá voltara com o general Salgado e de novo in-
vadira comnosco .
O Sr. estava ahi ? Eu estava dizendo isto... E começou a con-
tar- me tudo que eu havia ouvido .
-
E que cousa horrivel é o que elles fazem com os nossos pri-
sioneiros ? disse eu.
Entretanto se nós tratarmos do mesmo modo os prisioneiros ,
nos tornaremos tão bandidos quanto elles ; nossa causa perderá as
sympathias dos bons que nos appoiam, que desejam o nosso triumpho ,
porque somos as victimas. Crê você que se não fossem os assassi-
natos, os roubos, os incendios, os insultos, praticados pela gente de
Castilhos, com o consentimento ou por ordem d'elle, nós teriamos
tido esta manifestação de sympathia não só de brazileiros como
de estrangeiros ?
Não. Ainda mesmo que o Sr. Castillos roubasse, fosse um escra-
visador como Francia, ninguem se importaria. Que importa aos
estranhos que a constituição d'elle seja creadora de um previlegio
de familia, que elle se perpetue no poder, que não haja eleição ?
Tudo isso se supportaria. Mas louco como é, elle quiz tudo de uma
vez, e para isso mandou que anniquilassem os adversarios em suas
pessoas e bens. Os seus homens foram além, não podendo anniqui-
lar os que fugiram, anniquilaram o que encontraram d'elles , fosse
gado, fosse gente.
D'ahi nasceu a revolução, e já teriamos vencido se o Sr. Flo-
riano que tem os mesmos planos do Sr. Castilhos , não tivesse lan-
çado sobre nós tudo de que o governo dispõe.
Portanto, se nós praticarmos os actos que elles praticaram e
praticam, tornar-nos-hemos tão infames quanto elles.
- 8
Tudo que o Sr. diz è verdade coronel, disse elle e eu tam-
bem pensava assim, mas hoje não. Quando voltei de Santa Catharina,
procurei noticias de meu irmão que nunca se envolvera em politica
e por isso podia cuidar de nossa familia que abandonamos . Mas
era meu irmão e devia morrer. Quer saber como o mataram ?
Oiça e diga-me se eu não tenho razão. Prenderam-n'o em casa
furaram-lhe o calcanhar onde passaram uma corda e assim conduzi-
ram-n'o como porco mais de uma legua, depois furaram- lhe os
olhos e deixaram que elle caminhassa só por muito tempo, dando
gargalhadas por verem-n'o cahir.
Afinal degollaram -n'o !.....
Felizmente iamos acampar e o acampar á noite é sempre dif-
ficil, porque os que não marcham na columna custam encontrar os
companheiros, e assim deixava de ouvir aquellas narrativas que tor-
364

nam-se interminaveis, porque quando um conta os horrores porque


passaram os seus, outro lembra-se do que soffreu tambem, e raro é
o revolucionario que não tenha soffrido, quer em sua pessoa, quer
na pessoa de um parente ou amigo, a hediondez com que pensam poder
assenhorear-se do Rio Grande.

Pela madrugada ouvimos o estampido de dois tiros, que nos


alarmou, e pozemo-nos de promptidão
Ao despontar do dia os piquetes exploradores voltaram.
Havia sido um companheiro que ficára para traz, que nos
procurava. Disse elle que fizera fogo em dois vultos que fugiam. Foi
uma grande imprudencia, porque aquella hora a detonação é ouvida
muito longe, e portanto a nossa direcção podia ser conhecida pelo ini-
migo. Pela manhã fomos a uma pequena casa proxima. Era de com-
panheiros que vinham comnosco e que iam abraçar os seus, depois
de tanto tempo .
Era uma resurreição, porque entre os que fizeram a expedi
ção do Paraná, ninguem pensava rever os que lhe são caros.
Receitei para uma doente d'essa casa, e ali soubemos que no
Passo da Ferraria, duas leguas abaixo do ponto em que nos
achavamos, estava uma força de linha.
Que essa força no dia anterior havia prendido o nosso com-
panheiro tenente coronel Zeferino Scotto, que nos buscava, com mais
vinte companheiros.
Que o haviam atado, e levado para uma sanga onde provavel-
mente o degollaram .
Resta-nos a esperança de que isso não se tenha dado , porque
a força é de linha e ao mando do coronel Carlos Telles que, dizern,
poupa a vida aos prisioneiros, e por isso não é dos affeiçoados do
Sr. Julio de Castilhos.
Esperavamos os piquetes exploradores para podermos marchar.
O logar em que nos achamos entre o Santa Maria e Cunhatay
é o que se poderia dizer, na campanha, montanhoso, tantas são as
sangas e coxilhas que na maior parte são cerros. Entre elles sobre--
sahe o Cunhatay, alto, isolado, terminando em ponta ; avista- se- o de`
bastante longe ; dir-se-ia uma pyramide plantada na campanha.
Observando- se o contorno e sua elevação como um cone, tendo
a terminação como um mamillo, encontra-se semelhança com um
seio de mulher.
Talvez d'ahi venha o seu nome, porque em guarany, Cunhatahy
è moça, se não esqueci de todo as minhas licções do Paraguay.
O dia ameaçava ser chuvoso.
Avistamos de uma coxilha onde estavamos Apparicio , Torquato
365

e eu, um piquete inimigo apparecendo ao longe, occultando-se por


traz de um cemiterio.
Um piquete nosso fóra até ali , reconhecera- o , trocaram alguns
tiros ; saudação usual entre os filhos da mesma terra, hoje no Bra-
zil ; e o piquete inimigo retirou- se em direcção á Ferraria e nós
o observamos até desapparecer sob a chuva que já cahia na direc-
ção em que elle ia.
Resolvemos marchar, buscando caminho entre Bagé e Ferraria.
Quando subimos o serro que serve de base ao Cunhatahy, vi-
mos na nossa retaguarda uma forte columna .
- á nossa
Tinhamos portanto forças na retaguarda, forças à
direita, e provavelmente forças à nossa frente, ou á nossa esquerda ,
sahidas de Bagé.
O terreno ondulado não nos permittia operar ali. Retiramo-
nos , em procura de logar propicio.
O inimigo aproveitando- se da disposição do terreno e armado
a Mannlicher, corria até os pontos mais altos d'onde impunemente
fazia fogo á nossa columna, que alem do máu terreno achou- se em
frente de uma cerca de pedra tão forte quanto muralha, para destruir
e abrir passagem, onde o inimigo poderia nos ter esmagado , por-
que não podendo ali operar os nossos lanceiros, os nossos atiradores
seriam insufficientes para derrotal- o .
Abrimos a cerca e passamos sob uma chuva de balas que
nos mandavam até de cima do mamillo do Cunhatahy.
Ao sahirmos na estrada avistamos uma força inimiga , já pro-
xima, provavelmente a que se achava na Ferraria.
Örganisou-se então em retirada para acceitar-se batalha onde
encontrassemos terreno proprio para os lanceiros , e onde tivessemos
um flanco livre. Apparicio galopava na frente mandando os pique .
tes e ajudantes observarem os caminhos de Bagé ; e elles se es-
palhavam nos coxilhas, como avestruzes, sempre galopando sem na-
da descobrirem. A' retaguarda estava Julio de Barros com quarenta
homens, o que era bastante para conter o inimigo ; e Torquato Se-
vero com um corpo de lanceiros, se preparando para carregar em
todo terreno proprio, onde os perseguidores nunca chegavam, fazen-
do alto toda vez que descobriam uma bandeirola por traz de uma
coxilha.
No centro da columna marchavam as forças de Cabeda ao man-
do de Maneco Machado, sempre promptos a fazer fogo ao inimigo
caso elle nos obrigasse a acceitar batalba. Apezar de já termos um
alferes morto, que deixamos occulto n'uma sanga, e conduzirmos o
cadaver do tenente coronel Boaventura, e alguns feridos , entre
elles o tenente coronel João de Oliveira, a nossa retirada dava
motivos para a galhofa, porque comquanto estivessem na retaguar-
da homens como Torquato Severo e Julio de Barros, os que fica-
366

vam de cavallo cançado, não se mostravam satisfeitos, e gritavam


aos companheiros para levar- lhes cavallos ; e os que viam isso ri-
am-se ante o aperto dos outros, levando- os, porem, na garupa se
não chegavam cavallos.
Foi voltando até onde tinha ficado um companheiro para
trazel- o na garupa, que foi ferido o tenente coronel João de Oliveira.
Chegando ao Pirahy, d'onde avistavamos o Serro de Bagé
e não se vendo signal de forças por aquelle lado, Apparicio man-
dou passar as bagagens e feridos, e preparou-se para brigar. O ini-
migo vendo isto fez alto, e tomou outra direcção. Ali tiramos o
freio aos cavallos para pastarem , e eu cuidei dos feridos. Entre
elles havia um menimo de 13 annos que fora o primeiro ferido,
no Cunhatahy. A bala resvalara-lhe pelo pescoço, sem offender vaso
nenhum, nem osso.
A cavallo mesmo eu fizera -lhe applicação de um apparelho.
Elle chorava e pedia-me para dizer se elle morria, porque
então se mataria de uma vez. Na retirada elle galopava sempre
perto de mim, mas sem coragem de mover o pescoço. Ali fui mu-
dar-lhe o apparelho. Ordenei que, movesse o pescoço.
Não posso, está duro .
Não está, pode movel- o.
Move-se disse ; e esta ! pensei que estivesse duro .
Eu tinha no bolso alguns biscoutos e dei-lhe :
Vê se engoles. Mastigou e engoliu. Deu uma gargalhada e
disse-me Mais biscouto, coronel, já estou são, e prompto para
brigar com esses picoços que não podem comnosco, nem nos achan-
do em mangueira. Pucha... mas tive um susto ....
Sepultamos o commandante Boaventura, que no trajecto de cin-
co leguas tinha sido conduzido por um filho ou parente, è marcha-
mos ao por do Sol.
Na marcha procurei Julio de Barros para dar-lhe um abraço .
Tinha sido o heroe do dia. Com seus poucos companheiros
tinha contido sempre o inimigo, de modo que nenhum dos nossos ,
cujo cavallo cançara, fora sacrificado .
Nos 40 homens de Julio de Barros acha - se um irmão delle,
contando hoje 15 annos, e que ha dois annos tem lutado sem nun-
ca emigrar.
Tem uma perna quebrada, com consolidação viciosa, o que o
obriga a andar de muletas, e apezar d'isso, apezar das minhas re-
commendações de não entrar em tiroteio de piquetes, onde é preciso
muitas vezes montar apressado para fugir, não ha occasião em que
elle não se tenha achado, se ali está seu irmão, o que é constante .
Julio de Barros e sua gente tratam- n'o por Pequeno.
A fractura da perna desse heroe infantil, é uma pagina das mais
dignas do brio.
367

Julio de Barros e seus poucos companheiros foram atacados


por uma força ao mando de João Francisco . Deixara o Pequeno , en-
tão de 13 annos, guardando uma picada com poncos companheiros ,
dizendo- lhe guarda esta picada, custe o que custar ; e elle respon-
deu : Perde o cuidado .
A pequena guarda foi atacada, e Pequeno cahio por uma bala
que lhe quebrou a perna.
Os outros, dois ou trez, vendo isto correram. O menino levan-
tou-se, e correndo em um pé só, como nos brinquedos de creança ,
fugia com a perna fracturada jogando como um pendulo, até onde
encontrava uma arvore ou uma barranca d'onde poderia fazer fogo
nos que o perseguiam . Já estava quasi extenuado, mettido n'um
banhado d'onde tiroteava sempre aos perseguidores quando o irmão
que tinha sido avisado pelos fugitivos e ia buscar-lhe o cadaver
antes de ser mutilado, o achou n'aquella posição prestes a ser
massacrado por estar quasi extincta a munição .
Atacou os perseguidores, matou dois ou tres e levou o pe-
queno heroe que não teve um cirurgião para medical - o, o que
occasionou o defeito physico que não o impede de se achar nos
maiores perigos .

Marchamos durante a noite em busca da Carpintaria.


Era preciso que julgassem que iamos em direção a Jaguarão
para não prejudicar o recebimento da cavallada em S. Luiz.
O terreno que percorremos durante a noite, era mau porque não
encontravamos agua para beber. Paravamos de quando em vez e
adormeciamos , tal era o nosso cançaço .
N'essas paradas os cavallos se misturavam e quando tinhamos
de marchar, o que só tinhamos conhecimento, vendo marchar os que
estavam despertos, era um lufa, lufa infernal em procurar o cavallo
que se havia ausentado de perto do cavalleiro adormecido.
Pela manhã chegamos á Carpintaria onde soubemos que Guer-
reiro, de volta do interior, fôra surprehendido á noite perto de
Bagé, d'onde se escapara bem, pelas forças do coronel Carlos Tel-
les, e que seguira em direcção aos potreiros de Anna Corrêa.
Cabeda, o incançavel Cabeda, seguio para lá em sua busca .
Passamos todo o dia na Carpintaria e ali soubemos que uma
columna que se dizia ter pernoitado na Igrejinha, distante apenas
dois kilometros do logar onde haviamos parado á noite, seguira para
São Luiz , e alguns nossos tinham visto um piquete d'essa força.
A' tarde levantamos acampamento e marchamos em direcção
a Bagé.
Apenas escureceu, deu -se ordem de não fumar e contramar
368

chamos , vindo acampar n'uma baixada no fundo da chacara da Car-


pintaria , onde passamos o dia á espera de Cabeda que chegou á
tarde, tendo estado com Guerreiro que devia marchar n'esse dia
mesmo para se encorporar a nós, vindo porem em maus cavallos.
Pouco depois chegou um proprio que tinhamos mandado a S.
Luiz onde estava sendo entregue ao coronel Carlos Telles , mil e
tantos cavallos, e onde tocavam á toda hora as bandas de musica
militares. Resolvemos marchar para lá á noite o que fizemos com
toda precaução, sem fumar, sem gritos, sem toques, com flanqueadores
de ambos os lados para não sahir ninguem da columna, que fosse
visto nas casas e fazer saber que estavamos marchando n'aquella
direcção.
Depois fez um luar esplendido, mas o vaqueano perdeu-se
e fomos ao logar chamado Bolsa, nos desviando muito de S. Luiz
em direcção ao estado Oriental.
Tivemos de parar pela madrugada , durante mais de duas horas
até que o vaqueano se orientasse .
Marchamos promptos. O fim era sorprehender as forças no acam-
pamento , tiroteal- as de diversos pontos obrigal- as, a formar em qua-
drado, e os cavallos seriam arrebatados, ou disparariam com os ti-
ros e os nossos os iriam colher.
Ao despontar do dia chegamos ao acampamento onde haviam
pernoitado e marchado de madrugada. Deviam ter passado perto do
logar onde esperavamos a orientação do vaqueano, e onde poderiam
nos ter sorprehendido, quasi todos cochilando . Seria o caso de dizer :
que sahiramos a buscar la e foramos tosquiados.

Fomos acampar no logar denominado Ilha de S. Luiz d'onde


eu passei ao Estado Oriental para dormir em casa do B. de S.
Luiz sobre a linha, afim de abraçar alguns amigos residentes , ou
emigrados ali.
A columna marchou á noite procurando sempre illudir a dire-
cção que seguia . Tinhamos necessidade de ir ao Guabijú, onde estava
o general Tavares a fim de recebermos alguma munição e cavallos.
Eu devia alcançar a columna no outro dia á tarde. Já ia se-
guir viagem quando acampou uma força no mesmo logar onde havia
sido nosso acampamento no dia anterior. Mandei saber que força era
e me responderam ser a vanguarda de Guerreiro.
Comquanto viessem nomes meus conhecidos, abraços e sauda-
des de muitos, dirigi- me para lá com todas as precauções. Mais de
um companheiro caminhou assim para as forças legaes do Brazil e
em vez de abraços encontraram a faca degolladora . Scotto cuja sorte
ainda não sabemos foi preso assim tambem, por isso precisa se ter
369

muita cautella, porque até as nossas divizas elles usam, algumas vezes ,
para chamar victimas.
Apenas cheguei ao acampamento, appareceu a columna com-
mandada por Guerreiro. Fui abraçar o velho amigo e companhei-
ro e ver todos aquelles valentes de quem me tinha separado em
Santa Catharina, que me criam morto, e outros de quem não tinha
noticias ha mais de dois annos. Guerreiro disse me que na retaguarda
vinha o inimigo tiroteando desde cedo. Os nossos, montados em ca-
vallos cançados e elles bem montados, mas a sorte dos nossos era
que a cavallaria inimiga não se desprendia da infantaria. Alem do
mensageiro que Guerreiro mandára a Apparicio eu tinha feito seguir
para lá, a toda pressa, um assistente de Cabeda que ali estava, para
avisal- o do que havia.
Quando acabava de conversar com Guerreiro já os piquetes
da retaguarda assomavam na coxilha tiroteando a vanguarda inimiga.
Corri á casa para buscar o que era meu e marchar com Guerreiro .
Quando cheguei ali já as guerrilhas tiroteavam em frente e
as balas cahiam no telhado.
Fazia a retaguarda de Guerreiro, o valente Juca Anastacio e
a vanguarda do coronel Telles, Zeca Pinto.
Eu seguia pela banda oriental buscando logar para encorpo-
rar- me as forças e vi os nossos retirando apressados sendo perse-
guidos encarniçadamente pelo inimigo. Comquanto longe, eu grita-
va para elles : Não sejam tolos, voltem para junto dos bahia-
nos, a Serrilhada é ahi adiante, o que fazia rir alguns orientaes que
por ali observavam as guerrilhas.
Estava chovendo e em pouco tudo desappareceu, os tiros se
confundindo com o trovão longinquo.
Perdida a esperança de poder alcançar a minha gente, dirigi-me
ao posto do B. de S. Luiz onde estava doente o alferes Salgado,
afim de providenciar sobre elle, e d'ali tomei o caminho da casa de
Carlos Alberto, onde devia pernoitar.
Carlos Alberto é um desses homens de alma boa, tão raros
hoje. Adversario político nosso , elle tornou- se excepção conservan-
do-se bom como outros seus companheiros politicos, infelizmente em
numero muito limitado.
Emquanto muitos castilhistas que eram pobres se enriquecem,
elle que é rico se empobrece, não pelo flagello da guerra civil, mas
porque sua casa nunca se fechou a nenhum de seus patricios exilados
sem se encommodar nem indagar qual a parcialidade a que està filia-
do ; nunca sua bolsa deixou de abrir- se para attender os necessitados .
Sua casa durante estes tres annos tornou-se asylo de muitos ,
de familias inteiras, fugitivas de Bagé, desalojando dos seus com-
modos a sua propria familia.
Estando tão proximo de um brazileiro que ainda conserva
24
370

a bondade que foi caracteristica da nossa raça, ante este


acervo de horrores modernissimos , não podia deixar de ir dar-lhe
um abraço para mostrar- lhe que apesar dos soffrimentos por que
tenho passado ainda tenho em minh'alma um logar para os bons ,
sem me importar com suas crenças politicas.
Em casa de Carlos Alberto, alem de outros emigrados, estava
o virtuoso conego João Ignacio de Bittencourt, o santo parocho
de Bagé, o fundador do hospital de caridade d'aquelle logar, uni-
ca preoccupação de sua vida.
Clamou contra os actos de Pedroso e seus companheiros e
por isso foi preso e seria degollado conforme queria um republicano
que sabe amar a republica, se sua energia, sua coragem ante o
supplicio que se lhe promettia, não tivesse accordado uma fibra do
sentimento humano em Nereo Martins , em quem parecia ter ador-
mecido tudo que dignifica o homem .
Asylando -se de consulado em consulado, assim viveu o po-
bre ministro de Christo até que chegou a Bagé o coronel Carlos
Telles que prometteu garantias a todos. Com a ameaça da esquadra
revolucionaria ao Rio Grande o coronel Telles teve de ir em auxilio
d'aquella praça, e o vigario vendo- se sem garantias emigrou .
De casa em casa, peregrino como um criminoso , que o é n'es-
ses tempos em que ser bom é ser culpado , ser bom brazileiro é ser
bandido, elle encontrou afinal asylo franco, hospitaleiro no seio da
digna e nobre familia de Carlos Alberto, e repouso à sombra do
tecto desse bom rapaz.
Um pouco inquieto, eu esperava que a tarde e a noite pas
sassem rapidas para no outro dia poder procurar os meus com-
panheiros.
Não sabia que direcção tomariam elles porque a columna que
os seguia era forte, quasi toda de infantaria que, com quanto nos
quadrados soffra enorme prejuizo, com tudo, nunca deixa ter- se uma
victoria absoluta com excepção de Jararaca, Cerro do Ouro e Tra-
hiras, onde as nossas cavallarias destroçaram infantarias, completa-
mente.
Eu tinha visto a columna que perseguia-nos e pareceu-me
toda de infantaria do norte.
A tarde chegou o major Cabrera, commissario de policia orien-
tal . Trazia muitos emigrados governistas que elle fizera passar a 1
linha para não morrerem, e elle mesmo destruira os aramados para
fazel - os passar . - dizendo :
Passem, não sejam bobos, senão morrerão todos. Vocês nos
xingam, e nós lhes pagamos assim.
Era tempo, porque chegavam forças em perseguição, mas ape-
zar de ser a linha divisoria ali toda em angulos agudos e só conhe-
371 -

cida junto aos marcos, os nossos não dispararam um tiro contra elles,
porque ali estavam policias orientaes que era preciso respeitar.
Fossem elles os victoriosos não olhariam divisas ; matariam
aquelles poucos fugitivos e até o major Cabrera , ainda mesmo que
fosse preciso atravessar um rio como o Quarahy , como fez João
Francisco.

Apparicio havia mandado dizer a Guerreiro que retirasse como


quem fugia ; e collocára n'uma canhada uma força de cavallaria
para tomar a retaguarda aos perseguidores. A perseguição era tenaz,
elles corriam como quem conta com uma victoria absoluta .
Já uma parte d'elles havia passado em frente ao logar onde os
nossos lanceiros esperavam ordem de atacar. Uma força de Torquato
Severo que não queria perder a sua parte ua luta, chegou intempes-
tivamente, á vista d'elles, na coxilha.
Os que vinham distanciados voltaram horrorisados, 1 os outros
voltaram em disparada louca , sentindo o ferro das lanças nos lombos.
Os insultos que nos dirigiam, ha pouco de maragatos, bandi-
dos, ladrões, cobardes ; os convites que nos faziam de parar para
morrer, foram trocados pelas supplicas , pelos gritos de angustia, pelo
stertor da morte triumphante com o Sr. Julio de Castilhos, por-
que este nunca perdeu. Todos as derrotas, que tem soffrido seus se-
quazes, elle dá como triumpho, e tem razão, porque onde a morte
tripudia -o triumpho é d'elle .
Morram os adversarios , morram os seus que amanhã podem
pedir-lhe contas. Para elle poder viver é preciso que todos morram ;
por isso ali em S. Luiz elle triumphon, porque ficaram no campo da
carnificina perto de duzentos brazileiros.
Chegara ali tambem um ferido que Carlos Alberto me convi-
dára a ver.
Depois fui para um galpão onde estavam os derrotados e
durante algum tempo conversei com elles. Quasi todos eram, se-
gundo diziam, agarrados á força para ser vir ao Sr. Julio de Cas-
tilhos ; alguns d'elles tinham feito commigo a expedição a Santa
Catharina, e voltando ás suas casas onde se conservavam occultos
como quem nunca se ausentara, foram agarrados e ali estiveram
brigando contra nós, de modo que o Sr. Julio de Castilhos gosava
do prazer inaudito para elle, de ver se matando irmãos contra irmãos,
amigos contra amigos.
Como se expandirá aquella alma humanitaria !
Um dos nossos companheiros perdera a divisa e fora ferido por
um companheiro e seria morto se não gritasse dizendo quem era.
Eu me tinha deitado n'uma taboa entre elles e de olhos fecha-
372

do , meditava sobre os horrores a que nos arrastou o Sr. Bernardo


Vasques.
Um dos ultimos chegados não sabendo quem eu era, e não
julgando que um bandido como eu podesse estar ali dormindo
tão commodamente entre elles , começou a contar o que soffrera, os
que morreram, como parecia um sonho terem escapado alguns. De-
pois disse : Oh ! gente cruel ! quando não acharam a nós para ma-
tar, começaram a matar uns aos outros .
Eu ri-me, e o official d'elles que ali estava fez-lhe signal de
calar-se dizendo : E' o dr. Dourado .
Abri os olhos e vi um pobre a olhar-me com os olhos que pa-
reciam sahir das orbitas. Ri-me para elle e pedi-lhe para narrar- me
o que se passara ; o que fez. Julgava ter morrido o tenente coronel
Zeca Pinto e capitão Viriato , entre muitos.
Cousa notavel. Toda aquella gente do governo, estava mais tra-
penta e suja do que os nossos. Nunca recebera soldo.
1 Um elogiara ao commandante : „Um bom homem. Deu-lhe uma
vez seis mil reis. “
Ha dois annos que serve !
Que diga o Sr. general Moura onde pára essa torrente de
dinheiro brazileiro vindo para o sul.
A' noite na mesa de Carlos Alberto nos achamos reunidos, ir-
mãos que se matam, irmãos que se exterminam .
Uns para não terem a morte traiçoeira ordenada pelo Sr. Julio
de Castilhos, outros para obedecer-lhe, para prepararem o seu do-
minio, e para não morrerem ; porque é esta a sorte dos que não
lhe servem de instrumentos.
O Sr. Francisco Sá, sogro de Carlos Alberto, que recebeu os
maiores insultos dos castilhistas, segundo me contaram, provocou
uma discussão confraternisadora, para obrigar- me, segundo disse-
me, a falar.
Era a primeira vez que me achava assim ante homens que não
me poupariam a vida , se triumphantes me agarrassem ; mas a quem
eu procuraria salvar mesmo com risco de vida.
Teve essa honra benefica a casa de Carlos Alberto.
O Sr. Sá é um digno chefe de familia . Quando escreve aos
filhos, já rapazinhos e já aprendendo a viver, fala- lhes em Deus. Tal-
vez por isso não seja bem visto.
No outro dia pela manhã apezar da chuva dirigi- me á casa do
estancieiro Paiva cujo filho, tenente do exercito, fora ferido dias an-
tes e estava grave em Bagé, onde achava-se ferido o bravo Juca
Anastacio. D'ali segui para o Guabijú aonde estavam alguns feri
dos, levando em minha companhia um ferido da gente de Guer-
reiro, no dia que fora sorprehendido pelo coronel Carlos Telles ,
no Pyrahy.
- 373 -

A nossa columna seguira para o Ponche Verde e eu recebi


os feridos junto á linha.
Era perigoso demorarmo- nos ali, porque qualquer força inimi-
ga poderia sorprehender-nos e seriamos todos mortos . Com muita
difficuldade arranjou-se por aluguel, um rancho no Jaguary, indo eu
para uma hospedaria meia legua distante , á peso e meio, ouro, por
dia. Minha fortuna. daria para tres dias .
Felizmente encontrei aqui um antigo cliente meu , que curara- se
em Bagé, e só agora me pagou . Tenho portanto com que pagar um
mez de hospedaria e soccorrer os pobres companheiros que por aqui
passam.
Um combate travado na Estiva mandou-me mais alguns feridos.
Nossas condições são precarias. Não temos medicamentos, nem
ataduras, nem nada.
As senhoras orientaes, residentes na circumvizinhança, visitam
a enfermaria, levando aos pobres, não só o consolo da palavra como
alguns biscoitos, pão, gallinhas e alguma roupa.
Uma respeitavel matrona, D. Jeronyma Brandão, fez a sua vi-
sita em occasião que eu fazia os curativos.
Faltavam-me ataduras. Ella retirou- se e em pouco mandou-me
porção dellas. Tinha transformado uma de suas saias brancas, ainda
nova, em ataduras para os infelizes.
Se os crimes são punidos, os beneficios devem ser recom-
pensados.
Deus que lhes pague tanto quanto serviram a essas pobres
victimas.
Nossas forças tem occupado sempre os pontos melhores, entre
D. Pedrito e a fronteira.
Neste ponto, apparecem sempre cavallos para vender ; esses
cavallos parecem roubados, porque entre elles têm-se visto al-
guns de companheiros nossos que os não venderam, nem deram ,
mas fazer questão d'isso é assustar os vendedores, e nós precisa-
mos de montarias.
Mas são espertos de mais os buscadores de cavallos, porque
acabam de deixar- me a pé, roubando-me seis magnificos, entre
elles dois de valor, que me foram dados por amigos em S. Eugenio
e aqui.

Na acção da Serrilhada, Apparicio com seus companheiros perse-


guio o inimigo mais de tres leguas; indo parar em frente ás infantarias
que os esperaram em quadrado.
Apparicio retrocedeu dizendo:
No soy sonso. Por hoy la gloria es mia, manana puêde ser
que no.
374 -

Elle não se lembra que o seu logar de chefe, prohibe estas


muchachadas.
Julga sempre que ainda é um commandante de corpo que po-
de correr com a mesma facilidade que um soldado.
Quando invadimos, eu disse-lhe Amigo , você agora já não é
o coronel Apparicio, que trepava em trincheiras para apostar sobre
a vida dos animaes, que corriam em frente ás fuzilarias . Você é o
general Apparicio, precisa ser mais cauteloso.
Dando uma gargalhada respondeu- me :
99 Si, hombre, soy general "
Quando no Caverá nos encontramos, depois da perseguição
que em pessoa elle fizera ao coronel Sampaio, apenas me avistou
foi declarando : " Não foi nada, eu sabia que não havia perigo,
fui só porque dizem que Sampaio é bahiano, e eu quería ver como
elle se arranjaria a cavallo até que cahisse ,,
Agora tornou elle a fazer o mesmo, e se a cavallaria do
coronel Telles não tivesse sido completamente derrotada, e os fu-
gitivos se achassem incapazes " para lutarem, certo teria sido
desastrosa aquella perseguição até à frente da columna , porque nem
só eram poucos já, como montavam em cavallos cançados, tal fora
a corrida .
A victoria da Serrilhada só deu-nos cavallos e algumas armas.
Quanto ao soldo dos nossos que consiste no carcheo, nada ;
porque a gente do Sr. Castilhos, apesar dos milhares de contos
que lhe mandou o Sr. Floriano e lhe manda o Sr. Bernardo Vas-
ques, está peior do que as nossas ; nos bolsos dos trapos que ves-
tiam não encontraram os nossos nem um vintem ; nem ponche têm,
e devido a isso, na noite em que dormi em casa de Carlos Alberto ,
um d'elles roubou-me o ponche .
Tomou-se uma bandeira da republica rio grandense, bordada á
seda frouxa, em Bagé.
O episodio mais interessante d'essa briga foi o apparecimento
do menino, sobrinho de Torquato Severo, que havia ficado áquem
do Passo da Forquilha, depois da nossa passagem ao Rio Grande
do Sul.
Todos os outros companheiros morreram, e elle depois de
vagar muitos dias por entre os bugres sahio ao campo e foi feito
prisioneiro, declarando ser do norte e preso por nós na Lapa. Man-
daram-n'o para o exercito e assim viveu todo o tempo, tendo ganho
sympathias entre os soldados , de modo que cada vez que appareci-
am pessoas que haviam estado em campanha, e mandavam formar
os recrutados para ver se conheciam entre elles algum maragato ,
avisavam- lhe e clle se escondia. No dia de S. Luiz ia elle tocando
a cavalhada dos castilhistas, quando aos nossos a perseguiam.
Por felicidade d'elle os que perseguiam os que levavam os
-375

cavallos eram das forças da expedição do Paraná, e por isso conhe-


ceram-n'o logo, e dando-lhe uma lança levaram-n'o comsigo na per-
seguição dos fagitivos.
Narra esta creança os horrores praticados com todos os re-
volucionarios que elles colhiam , cançados, pelo caminho.
Nem um escapou á degolla. Dias depois da derrota do S.
Luiz tivemos outro encontro com o inimigo na Estiva, entre Pon-
che Verde e D. Pedrito.
O coronel Telles é insistente, não descança. O bom resultado
da sua persistencia no desastrado sitio de Bagé deu- lhe força de
vontade que unida á sua incontestavel bravura o colloca sempre em
nossa frente.
Essè coronel Telles é um dos poucos officiaes superiores que
hão de salvar-se illesos n'esta revolução. Não é politico , não se su-
bordina á vontade sedenta do Sr. Julio de Castilhos.
Acabo de saber que Scotto e todos seus companheiros pre-
sos na Ferraria estão vivos e garantidos, graças a elle.
! Apezar d'essa vida de agitações, não deixa esse povo de ser
supersticioso, ou talvez ella concorra para firmar e augmentar a su-
perstição.
Quando o Sr. Pinheiro Machado seguia Gomercindo, velha-
queando sempre de longe e sò se apresentando em logares onde
não podiamos acceitar combate com a sua artilharia ; em Santa Ca-
tharina, no passo das Canôas, não achando balça ou barca para pas-
sar, desfez uma igrejinha de madeira, muito bonitinha e cuidada ,
que havia ali, para das taboas fazer balsas, havendo no logar ca-
sas velhas, cuja destruição pouco prejudicaria.
A população, vendo aquelle acto sacrilego do senador, previu
que elle não voltaria.
Graças à divergencia dos revolucionarios elle escapou, mas
fugindo e abandonando feridos, enfermos e famintos, tendo sua co-
lumna um prejuizo superior a oitocentos homens, sem encontrar
inimigo na sua fuga.
O general Elias Amaro, mandou degollar em D. Pedrito um
pobre rapazinho nos braços da propria mãe, entre muitos !
A desgraçada ferida assim, esqueceu-se do perigo e de joe-
lhos , junto ao filho agonisante, pedio a Deus punição para os algozes,
apezar dos coices e pancadas que lhe davam os que riam- se ante
sua dor.
No primeiro encontro que Elias teve comnosco na Estiva
foi ferido e o capitão, degollador do rapazinho, morto. O povo vê
n'isso o dedo de Deus e espera ver a punição de todos que são
causa de suas desgraças.
376

Nada peior do que, depois de dois annos de vida agitada,


encontrar- se o homem n'um meio limitado, com serviço pequeno em
que não se gasta mais de duas horas por dia.
O resto do tempo é para o pensamento andar de ponto ,
em ponto, ora buscando todos os factos do passado , alguns
sepultados para sempre n'um veu de tristeza que obscurece todas
as alegrias do tempo feliz, com o nome de saudades, ora revol-
vendo a ferida ainda não cicatrizada , para fazel- a sangrar e perpe-
tuar-se, ora vendo o presente cheio de dôres, de soffrimentos, de
martyrios e incertezas, de lutas ! Sempre a luta destruidora.
E se esquece este presente cruel, se fecha os olhos ao
passado e busca antever o futuro , mostra -se ao pensamento todo o
jogo infernal onde elementos perversos , em nome do bem e da ver-
dade cavam o abysmo em que todos hão de desapparecer , d'onde
ninguem se salvarà , porque os de honra , os de dignidade chegarão
até ao fundo , e os infames , de longe , replectos de honrarias e ouro ,
se despedirão n'um gargalhar , para irem longe viver honestos , ri-
cos , respeitados , martyres da grande idéa que pregaram .
De mais, o pensamento, preso aos que soffrem, abandona o
que está diante de si e vai se aninhar alem onde ha martyres in-
voluntarios, victimas innocentes, e ali repousa dorido , impotente, tudo
querendo sem nada poder, tornando- se sombrio, e no desespero, na
angustia, abandona tudo que lhe traz a tristeza quando busca uma
aragem de alegria, e vôa para junto dos martyres voluntarios , in-
strumentos nobres da reparação, os heroicos vingadores.
E segue a estes. E' a segunda familia.
Foi pela familia, pelo futuro d'ella, que affrontaram a morte
dia a dia, hora por hora, foi com estes que a affrontou, que soffreu ,
que venceu, estes que afinal cançados pela extensão da jornada , e
pelo isolamento, viram por toda parte a sorpreza, por toda parte a
luta sem esperança de triumpho, e sós marcharam como perdidos
n'um deserto sem um conforto, sem repouso.
Emquanto os companheiros marcham na campanha quasi nús
a tiritar de frio, sem comtudo esmorecerem um só momento, eu
depois de ouvir os gemidos dos feridos , depois de pensal-os do me-
lhor modo que me é permittido, na insufficiencia de todos os meios,
busco repouso para o corpo, mas o espirito não o encontra nem no
somno.

Estamos na época em que a igreja commemora a grande tra-


gedia que tivera o seu epilogo no Golgotha.
Vem á imaginação a decadencia, o desbrio do povo hebreu ,
cobarde ante a tyrannia de Roma, servil ante a authocracia cruel do
- 377 -

ouro para com os que vinham mostrando-lhes o crime em que vivia,


convidando-o a desviar- se do caminho que o ia levando á ruina , e
para com Aquelle que buscava plantar a verdade nas almas ainda
não contaminadas e com ella nivelar todos os homens diante do
bem, ensinando -lhes a poupar o soffrimento alheio para que podessem
ser poupados , plantando portanto a primeira semente da igualdade
como o apogeu da fraternidade .
E meu espirito voeja por todos aquelles actos tão bons, tão
suaves, por todas aquellas caricias para encorajar os que ainda não
se tinham despenhado ; para erguer os cahidos, para enfurecer os
perversos.
E o Consolador vai de aldea em aldea, curando todas as mi-
serias, o Ensinador busca na parabola o meio de Se fazer com-
prehender por aquellas almas bestialisadas pela cobardia e pela
venalidade.
Na margem do lago Tiberiade Elle ensinava os discipulos.
O mar estava agitado, os ventos do deserto açoitavam -lhe o dorso
e as aguas comprimidas tinham ondulações que formavam ondas tão
altas que não permittiam que se visse a outra margem, onde esta .
va Capernaum, tão visivel nos tempos calmos, que parecia muito
proxima.
Elle meditava e Seu espirito encontrava sempre semelhanças
para explicar o seu pensamento. O povo é isso, dizia Elle, é bran-
do, submisso como as aguas.
Mas se os impios, se os scelerados que no seu caminho, para
seus gozos não olham tropeço, opprimem como o vento do deserto
que passa por sobre o lago, o povo se agitará como estas aguas ,
onde nenhum pescador teria coragem de navegar porque havia de
sossobrar.
Eu porem, e vós que sereis os propagadores dos direitos do
homem pelo respeito que cada qual tributará aos seus semelhantes,
podemos caminhar por essas ondas sem submergirmos.

E ouviam-n O e pareciam já vel-o marchando sobre o liquido


elemento sem ir ao fundo, até alcançar a margem desejada.

CHRISTO

reu pensamento extasia-se ante a lenda que te cerca desde


o berço predestinado, ó Christo, e sem se preoccupar do
dogma, nem das objecções inuteis, vem encontrar-Te o Redemptor da
humanidade, tão simples na Tua acção, como a centelha, que, nascida
do attrito de dois corpos estranhos, pode accender o pharol que indi-
378

cará ao navegante perdido na escuridão dos mares um porto de


abrigo, ou o escolho a evitar, em quanto não faltar o oleo e o com-
bustivel de sua lampada.

epois vejo-Te Martyr.

Fictima indefeza da ferocidade das almas de escravos aninhadas


em corpos cobertos de ouropeis, luxuriosos .

fejo-Te sempre calmo, resignado, acabrunhado pela injustiça


dos homens, desejar fugir da vida, unico meio de fugir a tanta
ignominia, e as sentenças, que li algures, vei - me á mente, e com ellas
a Tua imagem serena, em plena juventude, que se terminava ali
para depois viver eternamente.

Emquanto Pilatos para não perder o seu logar de Procura-


dor de Cesar, desgostando os judeus que amavam a escravidão,
por lhes dar direito á expoliação do povo de quem se tornavam
senhores, povo do escravos que não podendo reagir contra os oppres-
sores, tornava-se feroz contra seus irmãos no soffrimento, pagina
escripta ha dois millenarios, e tornada real na actualidade brazileira,
lavava as mãos da innocencia pelo sangue d'Aquelle justo, os
escribas davam suas sentenças.

Seja justo ou injusto, mas não observando-as leis de nos-


sos paes , é preciso que morra.
Conservemol - O para sempre na prisão.
Porque perdoar tanto tempo ?
- Condemnemol- 0.
Seja Este Homem banido do paiz como seductor.
Para que prestam as leis se não são observadas ?
A lei não condemna ninguem á morte sem justa causa.
Atiremol- O na miseria .
Elle subleva o povo ; portanto deve morrer.
- Arranquemol- O, arranquemol- O do mundo.
Por que condemnaremos Aquelle Justo ?
Por acaso a nossa lei condemna um homem, antes de o
ter ouvido , de ter sabido d'elle o que elle faz ?
Seja pio ou não, mas sublevou o povo é preciso que morra.
-
Fazei- O primeiro confessar o seu delicto, depois castigai- O .
---
Seria uma vergonha, se ninguem tomasse a defeza d'Aquelle.
Innocente.
379

Se Elle é innocente oiçamol- O, se é culpado banimol - O .


Que merece um rebelde ante a justiça da lei ?
Temos lei e segundo ella, Elle deve morrer.
Nunca se condemna alguem á morte sem o ter ouvido pri-
meiro .
Punamol - O para que no futuro não pregue contra nós.
- Não sabeis nada , nem reflectis, que possa morrer um homem
pelo povo sem que morra toda gente !

Depois, quando a perversidade de muitos encontrava um esco-


lho na condolencia de alguns, quando talvez Poncio se inclinava a
interceder pela vida , jalgando mais humano açoital- o como se fazia
aos escravos, o povo, a eterna victima e eterno algoz, nesse furor
dos opprimidos que desejam as calamidades, os cataclysmos para ver
a igualdade no soffrimento, já que nos tempos normaes só elle soffre ,
em grito pedia- a morte para Elle !
Miseros ! Mal sabiam que era por elles que Elle ia morrer,
que foi por querer arrancal - os da ignominia que desencadeou- se
contra Elle toda a tempestade, que todos os odios se manifestaram.
E então, uns para serem agradaveis aos potentados na esperan-
ça de ganharem as graças de Antipas, outros para não serem tidos
como rebeldes, como cumplices, todos em fim pediram a morte para
Elle, a morte infamante da cruz, para o bandido, para o scelerado !
Começou, então, aquella marcha dolorosa em busca do Golgo
tha . A victima desappareceu ante os olhos dos homens, para apresen-
tar-se em espectaculo aos olhos da turba sordida, avida de emoções .
E o insulto, a calumnia, augmentada pelo espirito, pelos dicterios,
eram-Lhe atirados em face.
Velhas matronas, cujos filhos soffreram pelo capricho dos centu
riões, talvez por não deixarem roubar, ou por não levarem-lhes as
irmãs, insultavam- O attribuindo Lhe a causa d'aquelles soffrimentos.
Os cegos, os paralyticos que Elle não curara, insultavam -O de
longe, e o povo applaudia.
Os que hontem fingiam ouvil- O, em extase, na esperança de
que se Elle triumphasse seriam collocados entre os primeiros, vendo
sua causa perdida iam contar aos algozes os seus crimes, as suas
perversidades, a sua luxuria, acobertados pela hypocrisia, para aba-
far-lhes no animo qualquer condolencia, porque era preciso que mor-
resse. Vivo poderia desmascaral - os.

E ninguem se commoveu ante suas dores ; ninguem teve a Ca.


- 380 www

ridade de levar- lhe um pouco d'agua para humedecer- Lhe os labios


resequidos pela febre ; ninguem teve uma palavra de consolo para
fazer- Lhe crer que ao despedir- Se da terra, deixava entre as raças de
feras uma alma de homem.
Elle era pobre ; não dispoz de exercitos destruidores que fa-
zem a riqueza dos grandes homens, que deixam os filhos na opu-
lencia, comprando gozos , emquanto as cadeias regorgitam com suas
victimas, emquanto a fome e a mizeria abatem o espirito dos pobres ,
transformam- os em escravos ou accorda- lhes o instincto de conser-
vação, e então para viver é preciso matar .
Toda a sua riqueza era sua tunica, fiada e tecida por sua
propria Mãe, grosseira talvez , mas se nos seus tecidos haviam lagri-
mas , ellas eram apenas da incerteza de qual seria a sorte d'Elle ,
lutando contra um povo de escravos para ensinar- lhe o caminho da
liberdade, e. Elle a viu talvez por escarneo, jogada para saber a quem
devia pertencer, como nos quarteis dos exercitos joga-se o futuro do
povo que elles dominam .
Depois veio a morte allivial- O da vida , e em quanto Elle
dormia na quietação do tumulo, a cruz do Seu supplicio erguia- se
banhada em Seu sangue por entre as trevas d'aquella noite do es-
paço, menos densas do que as d'aquellas consciencias que O victi-
maram, lá em baixo pelas janellas das casas de Jeruzalem, a cidade
maldita, onde jorravam as luzes das festas como de fendas do inferno.
E o povo exultava, tinha vencido , estava contente. Viu extin-
guir-se no martyrio a voz do que lhe dizia que elle tinha direitos ,
que não devia julgar que vivia, porque Herodes lhe concedia vi-
ver, porque essa magnanimidade dos tyrannos é apenas um escarneo
aos opprimidos.
Eos soldados de Cezar e de Antipas, entravam por ali, pol-
luiam os leitos das esposas , destruiam o pudor das virgens , e os
paes e os irmãos os acclamavam a elles que na vespera talvez os
tivessem vergastado, mas era preciso ; chamavam-lhes heroes ; tinham
consolidado o throno de Augusto, libertando Herodes d'Aquelle sub-
vertor, e assim, talvez adiassem os castigos corporaes, que diaria-
mente lhes inflingiam, por alguns dias.
Tal é a sorte dos povos vis, que beijam as plantas dos que
os opprimem e os saudam mesmo quando os açoites lhes laceram as
carnes.
Desse tumulo de um Martyr, berço de um Deus, o pensamen-
to acabrunhado ante tanta crueldade, revoltado ante tanta doblez,
degrada pela senda da vida trilhada por Elle , em busca de um
gozo, de uma alegria que lhe tivesse suavisado a curta existencia
Nada encontra.
Seu berço foi emballado nas canções do soffrimento .
Sua Mãe narrava-lhe os horrores commettidos para consolidar
381

o poder de Herodes. A matança dos innocentes, a matança das


mães que insultavam os algozes .
Elle devia ter sentado muitas vezes encarando-lhe o divino rosto,
sem comprehender o motivo das lagrimas que emergiam d'aquelles
olhos celestiaes e desciam longas, longas pelas faces purissimas.
Talvez se risse do seu pranto ; mas esse pranto cahia em Seu Es-
pirito, era ali absorvido porque aquelle pranto era pelo soffrimento
da humanidade, era pela escravidão de seus irmãos.
Depois viu o templo. Viu os doutores que em nome de Deus
distribuiam justiça , absolvendo os crimes dos potentados , punindo
as virtudes dos humildes.
Depois o exilio , a miseria talvez. O trabalho em terra extra-
nha não é remunerado ; muitas vezes julga- se favor usufruil- o . Elle
devia ver passar os ricos emquanto os indigentes morriam de mi-
zeria em meio dos cães escanifrados das ruas.
E Elle crescia entre os dois espectaculos , os dois extremos da
humanidade , em que os povos se dividem em senhores e escravos,
em oppressores e opprimidos.
De um lado tudo, todos os gozos, todas as superfluidades,
todas as prepotencias ; do outro nada, sò miserias, necessidades, sof-
frimentos.
Depois começou a reflectir, a ler a força dos homens, dos tem-
pos idos, nessas paginas soltas, nas pyramides, nos obeliscos ; nos
blocos de pedras collocadas perto das nuvens para servir - lhes de
vertice, para servir de arcos ao templo de Baal.
E Elle comprehendeu que ha centenas de millenarios que
a raça humana havia chegado a tal perfeição material, a tal progres-
so, que inventara apparelhos , que descobrira motores tão potentes
que tiveram forças para erguer do solo aquelles blocos de granito
de peso incalculavel, porque nem as forças reunidas de milhões de
homens chegariam para isso, nem os planos decrescentes das pyra
mides, nem as paredes do templo poderiam comportal- os. Mas tudo
isso sumiu-se não restando para attestar aquelle progresso senão
esses dispersos monumentos , ruinas talvez de collossaes edificios , que
ali se mostram na superficie d'aquelle oceano de area como as ro-
chas e as ilhas mostram os cimos das montanhas dos continentes
submergidos ou corroidos pela constancia das molles vagas .
E Elle pensava no anniquilamento d'esses povos , dessas ra-
ças e ia encontrar a origem de tudo isso no dominio de uns sobre
outros, na oppressão dos espertos sobre os irresolutos , na trahição
gerando a rebellião , nos lucros gerando adeptos, na crueidade di-
gnificada, e via aquelle povo desapparecer tendo tido forças para
erguer montanhas e não tendo coragem para estrangular os mer-
cenarios que serviam de instrumento aos que o destruiam lentamen-
te. E seu espirito meditava, e via que não é a força, não são os
382

progressos materiaes, que perpetuam os povos, mas sim a justiça, a


equidade, que se oppõem áquellas forças que para poderem crear
precisam destruir.
Investigava as ruinas. Seu espirito divino lia claro tudo o que
os seculos tinham conhecido, disperso , abstracto, por isso julgado
sobrenatural, e Elle organisava tudo em sua mente, tudo modelava,
tudo adaptaria opportunamente, quando os homens tivessem lucidez
para comprehender que o trabalho, o esforço em progredir sem se
prejudicar, uns aos outros, é o que constitue a igualdade e a fra-
ternidade .

Incognito observador, obscuro na Sua grandeza real , em meio


das grandezas pelo crime, Elle passou talvez á Europa.
Ali estava a Grecia.
Sua historia brilhante , narrada em versos por Homero, de
'factos que remontavam aos deuses e por isso fabulosos, depois a
historia narrada pelas artes. Socrates morrendo por querer elevar
o homem na sua essencia ácima dos animaes .
Platão sonhando com a igualdade pela justiça n'uma abstrac-
ção ideal, sem se lembrar que para isso era preciso primeiro educar
o homem para poder fazel -o comprehender o proprio valor.
Um ideal suave e bello como o limpido azul do Ceu d'onde
lhe vinha a luz.
Depois a Macedonia dando- lhe n'um mancebo um heroe, que
The conquistava povos ; mas no auge da gloria, das artes e do tra-
balho , as lutas fratricidas, as corrupções da lei que nem a abne-
gação de Lycurgo fizera conservar, o enfraquecimento que a tornou
escrava de Roma e para sempre anniquillou-a .
Depois foi a Roma. Viu esse povo escravisador do mundo ,
que para justificar a crueldade, dava origem ao seu sangue no lei-
te de uma loba, para justificar o seu crime buscava a propria ori-
gem na traição e no fratricidio.
Tornou-se o povo soberano na accepção real da palavra.
Era o povo romano quem concedia a vida ou decretava a morte
dos outros povos . Seus consules, nomeados por prasos muito
curtos, para dirigir as batalhas, erão apenas instrumentos do povo
que os elegia e nunca senhores que opprimiam os eleitores , fazendo
d'elles victimas de suas ambições ou ferocidades.
Mas se Roma era a senhora do mundo , seus muros não dei-
xaram de abalar ao sopro do simoum que inflamara a alma do jovem
Carthaginez , filho de Amilcar que , marchando sobre cadaveres de
romanos desde os Alpes cobertos de gelos eternos, veio mostrar á
orgulhosa cidade, que por mais forte que se seja, quando se es-
383

quece dos principios de justiça e equidade, por maior que seja o


numero de adeptos deffensores, surgirá sempre um punhado de bra-
vos, guiados por um chefe ousado, saido muitas vezes da obscuri-
dade para derrocal-o .
E Roma cahiria ; aquelle povo romano passaria sob o jugo de
Annibal ; seus senadores em vão vestiriam suas togas para asse-
melharem-se aos deuses, se a politica de Carthago não visse n'elle,
destruidor de Roma, um futuro senhor, não o abandonasse só com
seus bravos companheiros em terras longinquas e Scipião, o jovem ro
mano, não abandonasse sua patria para, por sua vez ` ir levar a
desolação á colonia Phenicia, ameaçar Carthago, Patria do ven-
cedor de Roma.
Mas se o brio dos homens levava-os a um duello de morte,
Elle via n'isso sempre o povo como instrumento de alguns, morrendo
e matando, anniquillando ou escravisando povos, mas para isso dei-
xando no campo de batalha tantos mortos amigos, quantos inimigos ;
ao passo que nas cidades, poucos se locupletavam com os despojos
das victimas.
Era a destruição da familia humana, o anniquilamento das
nações, sempre fatal onde quer que seja que a força se transforme
em direito , a espada em lei.
Depois de delenda Carthago, unico meio que Catão via para o
dominio absoluto de Roma, a exuberancia de força e de poder co-
meçou a matal-a .
As guerras civis da Palestina entregaram - a a Roma como
as da Grecia já a haviam entregue, por causa da ambição de alguns
que para vencerem pediram-lhe protecção.
O protectorado americano pode um dia fazer o mesmo no Bra-
zil para satisfazer aos adeptos de Monroe.
Elle vira a conquista das Galias, destas Galias que um se-
culo antes tinham bradado o 99 Vo victis no capitolio, que havia
de matar a republica.
Era a vingança de Nessus.
O anniquilamento da vontade popular , a força que o povo
creara como garantidora de seus direitos e conquistadora de glorias
para o nome romano, tornando - se designadora, em breve deveria
cavar a ruina da grande nação. E se um caracter como o de Bru-
tus buscara salvar a republica, anniquilando o usurpador, o povo
em vez de divinisal-o obrigou- o ao suicidio , maldizendo a virtude
que o animara .
E' que o povo exgotara as forças vivas do sangue de cidadão ,
e não tinha mais nas veias senão o estrume, que alímenta o corpo,
que supporta a escravidão . E' d'ahi que vem a bestialisação, depois
as victimas, que após o soffrimento transforma em algozes por
sua vez .
384

Sylla havia começado a obra da destruição ; o proprio Catão


bestialisara- se, os imperadores por acclamação deviam terminal -a.
Um centurião era acclamado ? só tinha um pensamento, des-
talvez para
truir, aterrorisar, para deixarem-o morrer no leito, ou
vingar-se antes, do que lhe fariam depois .
Imperador por acclamação, elle buscava sua origem nos deu-
ses ; isso porem, não impedia que depois o fizessem caminhar nù
pelas ruas, suando por todos os poros pelo cançaço , e pelo medo ,
com duas facas ponteagudas a servirem de obstaculo a que pen-
desse a cabeça para qualquer lado
Depois iam morrer n'uma latrina. Que importava isso ? Fora
imperador, pela lei da força, da astucia, da crueldade ; retirada a
força que lhe dava todo esse merecimento, a pessoa d'elle era es-
trume apenas, a dejecção dos homens.
A força tem isto ; faz do esterco um deus, tira- lhe depois o
manto e mostra o deus apodrecido.
Outras vezes o imperador ria- se dos mesmos que o elevavam,
equiparava- os ao seu cavallo .
Não temos nós hoje tido scenas iguaes ? Não tivemos todas
as pastas em tempos difficeis occupadas por um anonymo ? Não
tivemos deputados a conduzir cubos de materias fecaes nas prisões ?
Não tivemos marechaes tratados como bandidos por simples sol-
dados ?
Elle via esses poucos Marco Aurelios e Augustos desappa-
recerem na legião dos Caligulas , dos Tiberios e Neros . Sentia o vai-
vem da onda popular. O grito d'ella , ou o seu gemido não ser outra
cousa, senão mato-te hoje para que não me mates amanhã ;
aproveita -te hoje que amanhã me pagarás .
Elle via esses monstros, comprando com o dinheiro do povo
os adeptos que os divinisavam e o povo, a victima, 0 soffre-
dor acclamando-os como salvadores, como consolidadores, da honra
e poder de Roma, aterrorisado, buscando um meio para que elles
não tivessem a vontade de transformarem os milhões de cabeças
do povo romano em uma só e cortal-as de um golpe .
E elles riam-se vendo essa submissão ao seu poder, olhavam
para o thesouro publico e calculavam por quanto tempo poderiam
pagar aos que lhes serviam de meio para opprimir ; mas dentro
em si elles deviam monologar as phrases que um poeta escreveu
depois E nas raças futuras o meu nome servirá de cruel injuria, se
for unido ao do mais cruel tyranno ; e deviam rir-se da cobardia dos
povos que deixavam- se matar, beijando as mãos que os trucidavam .
Elle via essse Titus que dizia ter perdido um dia quando não
fazia um bem, destruindo Jeruzalem, como signal de que lançava o
sello de Roma sobre o povo hebreu anniquilado pelas guerras civis,
acobardado pela tyrannia de Herodes .
385

Elle via todos os povos conquistados, transformando o suor em ou-


ro para pagar os tributos impostos pelos romanos , e via n'esses povos
o soffrimento gerar as terriveis vinganças, como a compressão das ca-
madas atmosphericas geram os cataclysmas.
Via o ouro que as conquistas e a escravidão dos outros po-
vos, derramavam em Roma creando a indolencia e as vezanias ero-
tiças, as ambições desmedidas, as lutas que enfraqueciam o povo e
davam forças aos tyrannos ; o esquecimento da patria pela preoccupa-
ção das individualidades, o esquecimento portanto de conservarem a
força do meio para só pensarem nos gozos e nas crueldades dos fins ;
adormecidos nos prazeres para só despertarem no meio das revoltas
em que encontravam a morte, ou vencedores teriam de espalhal - a por
toda parte, esquecidos de que cada revolta , e cada triumpho, pró
on contra ella, era um golpe profundo na nacionalidade, e que por-
tanto era preciso evital- os, não pela ostentação de forças, não pela
crueldade, não pelo exilio , não pela confiscação , não pelo suborno ,
porque tudo isso gera a idéa fixa da desforra, ou a trahição a favor
de quem mais der, mas pela distribuição recta da justiça , pela sna
severidade mesma, cahindo sobre todos os criminosos sem distincção
de classe , nem de posições.
Via a injustiça creando as revoltas , e os pronunciamentos, estes
creando as ambições ao poder e as tyrannias, estas gerando os Ca-
tilinas, que tinham coragem de disputar a posse em pessoa, com as
armas na mão, arriscando a vida pela fortuna, ou pelo gozo de ser
carrasco, e Cicero que ganhou o nome de Pae da Patria, por tel- o
perdido com sua eloquencia tornar-se instrumento de Cezar que
plantara a origem da morte d'ella.

A ' semelhança da chamma invisivel que se propaga do fogão,


onde o gaúcho nomada aquecera a agua para o chimarrão durante
a ncite que ali repousara, aos fragmentos de estercos que lhe ser-
viram de combustivel, por ali dispersos em torno, e que uma briza
ligeira aviva e faz ir - se propagando quasi larvada durante dias e
noites ; depois ao chegar ás folhas seccas do feno, mostra as peque-
nas chammas rapidas , fugitivas como pequenas cabeças de viboras lu-
zidias que ora apparecem, ora se occultam, e a briza tornando- se in-
sistente vai espalhando-as, alongando-as em torno como circulo de
fogo que um facho em sua ro ação deixa por diffusão em nossas re-
tinas ; durante o dia, não mostrando senão columnas transparentes
de branco fumo, e a noite fógos dispersos como os de um acampa
miento de guerreiros ; e algumas vezes uma chamma maior que bri-
lha e some- se como uma onda phosphorescente que em noite calma
se ergue no oceano e se estende logo no leito das vagas, vai- se for-
mando a cadeia de fogo para o ataque e destruição da floresta que
25
386 -

pela agglomeração de troncos annosos , pela elevação das copas fron-


dosas, parece eterna, indestructivel, quando os animaes que habitam
vêm em torno de si branquear a vasta extensão, onde vegetam as
tenues grammineas de que os gados dispersos colhem as sementes
e as folhas com que se nutrem e com as patas esmagam as raizes
que haurem da terra a seiva para nutrir-lhes as frageis hastes ;
debil circulo estreita -se, lento , medroso emquanto os habitan.
tes da floresta deliciam-se na contemplação d'aquella claridade pro-
duzida pelas chammas que apenas matain os pequenos insectos, e
destroem o alimento dos uteis e inoffensivos quadrupedes ; e a briza
continúa a soprar com intensidade, e o fumo tenue vai subindo,
formando nuvens, modificando e variando as camadas athmospheri-
cas, e de repente sopra rijo o vento, as chammas se distendem, alas-
tram , parecem adquirir elasticidade, correm, agitam-se como as crinas
dos potros chucros na impetuosa carreira atravez da campanha , pe-
netram na floresta, apoderam- se das folhas seccas, dos troncos apodre-
cidos , sobem pelos galhos, incendiam os ramos verdes cujas folhas
caem como lagrimas de fogo ; o negro fumo sobe ao espaço , crepitam
as arvores, as cannas partem-se com fragor de fuzilaria, silvam as
serpentes occultas nos troncos ocos , rugem aterrorisados os tigres e
os leões, as aves fogem abandonando os ninhos, e em pouco tudo
desapparece, não se vendo n'aquelle sitio senão cinzas, algumas ar-
vores mais resistentes, ainda de pé, com as raizes mortas porem, os
galhos consumidos, e a chamma que calcina- lhes o cerne até des-
truil o de todo, mostrando-se aqui, alem, com o furor do sycuruhiuba
que esmaga um touro ; depois um baque, uma nuvem de cinza, e
um monte de brazas que em pouco desapparecerão , Elle via em torno
de Roma formar- se o circulo de todos os opprimidos, de todos os
escravisados por ella que , julgando - os anniquilados, impotentes, ban-
queteava- se nas orgias, nas bachanaes , mudando cada dia de senhor
que para firmar o seu dominio transformava em sangue as aguas
do Tibre para se banhar, approximar-se lentamente, quasi submis-
so , até que podesse estrangulal- a n'um abraço mortal, não deixando
apoz senão ruinas e a historia feroz dos seus tyrannos obscure-
cendo para sempre as paginas brilhantes da republica.
Sua mente divina abrangia tudo .
Jesus via essa republica romana, avida do ouro e do sangue dos
que não se submettiam ao seu jugo, ter em si o germen de sua
queda, pela corrupção do povo, pela ambição dos que se julgavam
com direito ao supremo mando, donde originou - se a acção dos
Syllas.
Essa corrupção dera origem ao poder de Cezar, iniciador da
serie de Neros e Caligulas ; mas a sua ferocidade nas Galias, dei-
xando milhões de cadaveres por onde passava, martyrizando chefes ,
valentes como Vercingetorix que, confiado na lealdade do guerreiro

7
387

vinha- lhe entregar as armas, cortando as mãos a milhares de bra-


vos que não tiveram a sorte de morrer como seus irmãos no cam-
po de batalha onde lutaram pela patria nativa que elle ia escravi-
sar ; o ouro dos vencidos e o thesouro do povo romano guardado
no capitolio, para a defesa de Roma, servindo para pagar aos sol-
dados avidos de sangue como de prazeres , e aos mercenarios que
com suas barbas brancas de senadores deviam ir recebel- o, adherindo
à sua causa de ambições e crueldades ; a presumpção estulta de
Pompeu a quem elle fazia crer que nem o pro-consulado das Galias
ambicionava mais , emquanto preparava-se para a luta, e batido
uma vez estaria perdido, se os louros da victoria não tivessem ador-
mecido os triumphadores ; a matança dos velhos senadores gaulezes ,
nas suas proprias curues , pela soldadesca desenfreada que obedecia
as suas ordens, deviam originar a ruina de Roma.
" - Alea jacta est, disse Cezar passando o Robicon . Sua ame-
aça era á parte do povo romano que se mostrava hostil aos seus
projectos. "7 Alea jacta est, " repetiram todos os povos que haviam
soffrido e que opportunamente buscariam a hora em que os escravisa-
dores não tendo mais inimigos para devorarem , começariam a devora-
rem-se uns aos outros, anniquilando- se, para cahirem sobre elles e
exterminal -os completamente.
Calculando quantas vidas o luxo e a ostentação dos povos
destroem, porque se Roma vencedora , escravisadora , tinha perdido
milhões de homens nas conquistas de povos extranhos , e milhões
pelos individuos que pretendiam o poder, estando reduzida a dimi-
nuta população, que Cezar pensara fazer crescer por meio de leis
que obrigassem ao casamento, por meio de premios aos casaes pro-
lificos , esquecendo-se de que , creando leis que provocariam a guerra
nada influiriam aquellas ; se Roma achava-se n'aquellas condições
qual seria o numero de mortos nos povos que ella escravisara ?
E em resultado via-se a morte, a destruição formando não o
caminho do progresso , mas a estrada de ruinas, campos onde os
cadaveres se mostravam como as touceiras de linho em terra fertil.
O espirito de Jesus horrorisava- se deante de tanta desolação.
A biblia dos povos passava ante Sua mente como um cortejo
de ruinas causadas pelo interesse dos mesmos, que afinal por sua
vez teriam o seu termo, e para tudo isso invocando-se sempre o nome
de Deus; o Deus dos exercitos , o Deus destruidor, Deus do odio , Deus
do sangue, Deus dos oppressores, Deus dos vingadores, fosse elle o
Deus de Jacob, o Jehovah que presidira á ruina do povo hebreu,
fosse elle o Marte dos gregos e Romanos, o Amon dos Egypcios ,
fosse o Teutates dos barbaros, fosse o Brahama ou Alah , Kali ou
Tupá, invocado sempre por todos os povos , por todos os partidos .
Principio do eterno bem, fonte de venturas suaves transforma-
388

da em origem de odio , em causa de uma justiça contingente, coro-


lario da prepotencia, garantidora do direito oriundo da força !

Nem pensava Jesus que em pouco seria victima por querer


protestar contra a crueldade que emprestavam a Deus , que outros
morreriam por acclamal- o . depois do martyrio e que seculos depois
em Seu nome, se commetteriam os crimes mais hediondos, as cruel-
dades mais abjectas . Que, portanto, os principios mais puros, as
causas mais justas podem ser transformadas em fonte de odio e des-
truição pela coalisão dos villões, dos scelerados que as transformam
em manto protector da hediondez , como os mantos de velludo e ouro
cobrem, muitas vezes, os corpos de Lazaros , como as figuras mais
sympathicas guardam, muitas vezes, almas de monstros.
E na embriaguez do poder e na ambição do mando, ninguem
pensa que tudo isso é ephemero na vida agitada dos povos , e
ninguem pensa em moderar esses horrores , modificando os meios .
Que tristeza não pesaria no Seu espirito, vendo que o poder ,
as riquezas, a civilisação não eram mais do que meios de extermi-
nio, não eram mais do que os elementos productores das tempesta-
des humanas ?
E a nostalgia, o desejo de ver um povo singello , talvez mais
humano pela sua simplicidade, fez- Lhe voltar os olhos para a sua
querida Galiléa, Seu berço e Seu futuro Calvario .

Somente os que tem olhos para enchergar essa pallida luz que
se espalha n'um pateo cheio de hervas maninhas, onde outr'ora se
ostentavam os jardins viçosos de um palacio ou de antigo solar ; que
buscam em cada pedra, solta , desarticulada, reorganisar o pavimento ,
a pyramide que concorrera para organisar, que vêm n'esses sulcos
aprofundados pela torrente formada pelas chuvas, de leitos desiguaes,
ca!háos e quartzos, a descoberto, cortantes, movediços ; limos , de-
tritos accumulados, de superficie igual, de base falsa, promptos
a desfazerem á primeira pressão ; o antigo leito de aguas crystali-
nas que deslisavam placidas, regando os canteiros de relva flo-
rida , as arvores de fructos saborosos, e, depois , pela incuria ou pela
luta, entre os successores dos habitantes, cahiram n'aquelle abando-
no, onde só os lagartos buscam o calor do sol , onde só as viboras
são senhoras, onde só as abelhas volitantes sugam o nectar tempo-
rario e fugaz como o perfume das flores que os produzem; e olhan-
do para as ruinas calculam a riqueza e a força dos que ali viveram
e progrediram e avaliam a decadencia d'elles pelos destroços que
389 -

attestam o antigo vigor, poderão calcular a impressão causada, ao


Divino Martyr, o aspecto d'essa palestina, d'essa Phenicia, berço
dos povos e dos progressos humanos, mausoléo de raças potentes de
gerações millenarias.
Habituados a encaral- O somente no seu martyrio como victima
votada ab eternun ao sacrificio ; degredindo, pela lenda, no trilho tra-
çado pelas prophecias até o Seu berço humilde , esquecendo - nos de
que so do meio dos que soffrem podem surgir os heroes do bem,
porque do meio dos que gozam só surgem os heroes do sangue , da
destruição, não pensamos na Sua vida de homem , nos absorvendo na
contemplação da Sua Entidade Deus.
Como das aguas das charnecas onde vivem as hydras de Ler-
na, onde para viverem as inguias buscam o lodo, os crocodilos e os
hippopotamos fossam os detritos e turvam as camadas que o repouso
- fizera transparentes , eleva- se o vapor tenue, imperceptivel que
no espaço se transforma em nimbus , em cirrus que depois se desfa-
zem em chuva bemfazeja, cahindo ao longe em regiões desconhecidas ,
aviventando as relvas que emmurcheciam, matando a sede ao viajor
do deserto, fazendo viver a planta cujos fructos dão a vida ao homem.
Jesus surgiu do meio d'aquelle povo decadente pela tyrannia,
escravo pela ambição, victima pela cobardia. Condensou em Seu
espirito todas as dores dos humildes, dos opprimidos ; chorou pela ce-
gueira dos oppressores, algozes hoje, victimas sempre, compradores
a venderem-se aos compradores , escravos humildes dos proprios mer-
cenarios que os cercam. E depois de compulsar todos os soffrimentos
humanos foi que Elle regressou áquella terra infeliz onde Sua infan-
cia era marcada com a data sangrenta da mais hedionda das tyranni-
as ; onde pelo medo de perder as posições auxiliara Herodes que de-
pois de destruir chefes e chefetes nas suas pessoas e bens, destruio
tambem as creanças para do meio d'ellas não surgir alguem
que lhe viesse perturbar os gozos de hyena .
Era com o olhar triste das desillusões , com a descrença
acabrunhadora vendo o sentimento humano guiado pelo servilismo , pela
inveja e pelo odio , que Jesus via, depois de tantos annos , aquellas
vastas extenções que outr'ora se denominara Terra da Promissão ,
tornadas maninhas , transformadas em charnecas e matagaes onde
apenas brotavam relvas que só aos camellos e ás cabras forneciam
parco alimento , e d'elles ainda era que podiam viver os homens ,
pela vida errante a que obrigam as guerras intestinas, a falta de
garantia , a impossibilidade de permanecer no solo querido que por
mais arido que seja, por mais esteril que pareça ser, a vontade ,
o trabalho , a constancia no labor tornam uberrimo , como nos tempos.
remotos da Persia , fazendo - se da agua um deus, fazendo - se altares ,
para elle, em diques , tornam- se ferteis os aridos desertos .
Seu espirito perdia- se na contemplação do deserto , onde apenas
390 --

appareciam as caravanas dos nomadas em que se transformaram as


tribus dos patriarchas, pelas guerras destruidoras. e nas quaes não
predominam senão a lei da força, a pena de Talião ; sobre as quaes
não tinham poder os soldados de Herodes , nem os centuriões de Cezar ,
porque livres como o pensamento d'elles , seus cavallos levavam- os
a paragens longinquas sem deixar rastos nas areas ou nas grammas
mirradas.
Via aquellas crean ; as pastoras guiando os grandes rebanhos
de cabras negras, formando ilhas escuras em meio dos vastos terrenos
arenosos a colher aqui ali o raro feno amarellento .
Lembrava-se d'aquella hecatombe de ha 30 annos , lembrava-se
d'aquellas creanças trucidadas que não tiveram gritos, nem sangue
bastante para accordar no espirito dos homens que mataram-as e
continuavam a matar, um pouco de humanidade, para accordar no
espirito dos paes, dos opprimidos, um pouco do brio para se libertarem;
e via n'ellas o destino dos escravos de Herodes, ou a vida errante
do beduino sempre de punhal em punho para matar senão quizesse
morrer.
Quiz talvez começar ali a sua obra ; ensinar- lhes o caminho
do bem, da justiça absoluta. Fecharam-lhe talvez a porta.
Dizer que Herodes era cruel, que os sacerdotes não viviam
na lei de Deus era chamar para elles as vistas de Antipas , que
só com sangue dos fracos consolidava seu poder. Talvez mesmo visse
algum com os lomboş a sangrarem pelos açoites de Herodes , julgal- o
bom, humano por lhe ter depois dado um pouco de pão , e fazel- o
abrir os olhos á verdade pelo castigo que lhe havia imposto.
Tal é o raciocinio das almas vis nascidas do lodo .
Abandonando aquelle logar onde via então a mesma tristeza
que ha dezenas de annos viram seus avós, elle buscou ainda um
logar mais deserto, mais solitario. Já que os homens fechavam os
ouvidos á Sua lição divina , Seu espirito poderia se dilatar mais ,
medir bem a extensão do Seu mister onde não Lhe chegasse o sussurro
dessas vozes que na angustia , no soffrimento, indicavam a felicidade
d'aquelles que julgava que a vida consiste em ver despontar e
occultar- se o sol , pela magnificencia dos poderosos que podendo
mandar cortar - lhes a cabeça , degollal- os, consentem que elles possam
viver mais um dia, talvez muitos annos mesmo , e que apenas para
provar que são seus escravos mandam açoital- os, e buscar- lhes as
virgens formosas para concubinas .
Do cume elevado de um monte, Jesus lançou um olhar abran-
gedor sobre a vasta extensão que desdobrava-se em torro. Era talvez á
tardinha, hora em que o crepusculo começa a erguer-se no oriente,
lento, pardacento, parecendo arrastar-se mais sobre o cinzento de-
serto do que remontar-se no espaço turvando o transparente azul do
ceu ; hora em que o sol submerge-se nos rubros vapores do de-
391 -

serto, Helios sangrento, que parece buscar um banho no sitio


onde as areas deviam destillar todo o sangue que lhes fornece-
ram as lutas humanas, todas as victimas dos sacrificios , pela ignoran-
cia feroz dos homens .
E Seu olhar se estendia para alem, fixando- se em pontos lon-
ginquos e Seu pensamento excavava os seculos para ler n'elles to-
das as phases das grandes hecatombes, fonte inexgotavel das des-
graças que dia a dia, minuto a minuto , succediam- se na humanidade
como as horas no tempo .
La estavam os montes de Galaad, como nuvens accumuladas no
horizonte. Ali, tribus poderosas se anniquilaram pela divisão , pela
luta de familia, depois pedindo protecção a extranhos se escravi-
saram a elles, depois de ter supplicado aquelle Jephthe que haviam
banido, que viesse amparal- os, proximos ao anniquilamento eterno.
Desviando os olhos via esse grande mar interior em cujas margens
habitaram povos que conquistaram outros povos, enriquecera -os para
depois serem destruidos por elles . Ali existira a soberba Tyro, cujos ha-
bitantes que o pudor e o brio ordenaram resistir ao soberbo Ale-
xandre, e não tiveram a sorte de morrer na luta, foram passados
pelas armas, crucificados em torno da cidade, arrastados vivos por
fogosos cavallos.
Hoje aqui não se crucifica, não se ata aos cavallos os que
ousam murmurar que a infamia não é uma virtude . Degolla - se, mu-
tila-se, arranca- se a lingua , cortam-se as mãos, prendem nas latri-
nas, depois alliviam d'essa vida de horrores os paes abraçados aos
filhos, ainda mesmo que esses paes tivessem tido uma vida bastan-
te digna para honrar o nome de uma patria que não fosse domi-
nada por monstros.

E a sorte de Tyro foi tambem a de Roma como fôra a de


Carthago , de Macedonia e da Grecia.
Alexandre teve seus emulos em todos os ambiciosos na suc-
cessão dos tempos, em Cezar, em Saladino, em Mustaphá , em
Napoleão, onde se terminara a raça feroz, mas heroica dos que se
impunham pelo direito da força, mas á frente de todas as batalhas
para surgir a raça sordida dos bactracios que nos esconderijos ac-
cumulam o succo que destroe os seus contrarios, e indolentes es- -
tendem a lingua para apoderarem-se das victimas que lhe chegam
ao alcance e devoral- as ; raça de hypocritas que assassinam a titulo
de consolidar; destroem a titulo de edificar; plant m a arvore dos cri-
mes a titulo de cultivarem a lei, a justiça ; locupletam-se de ouro
e sangue para terem por si as almas ferozes e os mercenarios que
os proclamam filhos de Jupiter, apostolos da humanidade ; como
392 -

Annibal, guardadas as proporções do tempo, dos meios e das con-


dições, teve em nossos dias, como emulo Gomercindo Saraiva.
A onda humana cresce como as ondas do mar. No Equi-
noxio as aguas sobem para formar uma montanha liquida para de-
pois desabar, indo quebrar-se espumantes nas rochas de gra-
nito que servem de muralhas aos continentes que não podem
ser destruidos ; assim na familia humana o poder, a força, a astucia,
a exploração dos fracos e venaes chegam a crear potencias, cen-
tros de absorção e de corrupção ; que julgando- se fortes, impere .
civeis , buscam avassallar tudo que vê do cimo do seu poder, não
se lembrando que n'esse avassallamento perde a força e que os de-
tritos que causou , acompanha-os submissos para amanhã subjugal- os
por sua vez. Se nos phenomenos universaes o embate é horrivel e
destruidor, nos phenomenos parciaes não deixam de ter effeitos
iguaes, relativamente.
E' assim que a intumescencia do mar represa as aguas das cau-
daes volumosas e provoca os mascarets que vão devastando até
longe tudo que repousa nas margens, tudo que vive nos valles.
Tal é a furia da torrente do Amazonas impedida na sua mar-
cha, tal a do Ganges que pela crença do povo que vive nos seus
valles obedece a uma potestade divina, como conductor dos mortos
á morada eterna. Foi assim que as monarchias francezas prepararam
em seculos o mascaret que se chamou revolução franceza, é assim
que esta republica do Brazil, um seculo depois, em pouco tempo pre-
parou e prepara esse mascaret que á prodromico no Rio Grande do
Sul, e que para gozo de alguns destruira em sua propagação toda
a nação brazileira.
Em balde buscam os que provocam es desmoronamentos so-
ciaes, pelas guerras, pelas revoluções, garantirem que a destruição
dos povos é fatal ; em balde busquem os fatalistas dizer que es-
tava escripto no livro do destino o que ia acontecer por tal ser a
vontade de Deus, como se Deus tivesse se dado ao trabalho de cre-
ar o homem, fazel- o multiplicar e progredir para depois destruir todo
o producto de annos de um golpe . A razão mostra que tal não é .
o supremo creador organisou tudo para que tudo fosse utilisado
opportunamente.
A creança nascida de paes sãos, encontrando o alimento pro-
prio a cada epocha de seu desenvolvimento, segundo os preceitos
da hygiene, fugindo das intemperies que geram as molestias, só tem
um fim a morte na velhice, quando seus orgãos cançados , os - ifica-
dos negam-se ao funccionamento ; e nesse tempo já elle tem visto
sua prole multiplicada, á semelhança da arvore que depois de ter
dado fructos e rebentos fana-se porque as raizes não podem mais
haurir da terra o alimento de que se nutria ; mas se oriundo de paes
enfermos, se desregrado no viver, as molestias e os habitos trazem
393

uma velhice precoce, uma morte prematura, não foi o destino, nem
a vontade de Deus que a decretou , foi o vicio, foi a concupicencia
que o victimou como o ma hado do lenhador victima a arvore, dan-
do-lhe um golpe nas raizes .
Como o homem os povos estão sugeitos á mesma sorte . Um
povo que tem leis, que se rege por ellas, que respeita o direito de
cada qual, que tem por norma a justiça, que garante o producto
do esforço individual, nunca terá revoluções , como as nações que pro-
cedem do mesmo modo , nunca terão guerra.
Mas se os governos não são mais do que protectores de par-
tidarios seus, de seus adeptos , se a justiça é apenas a punição dos
fracos, do adversario , se mesmo os que promettem governar ás cla-
ras nada mais fazem do que fazer a fortuna dos amigos, dos irmãos
em Clotilde, concedendo previlegios que lhes fariam a fortuna não
pela exploração de uma industria que fosse util á communhão , mas
de meras phantasias, e o povo vê na sua miseria, na sua pobreza in-
dividuos, pobres hontem, ricos hoje, sem ter o direito de inquerir
como o producto do seu trabalho foi passar aquellas mãos, e aquelle
enriquecido julga- se no caso de se considerar salvador da republi-
ca como acontece n'esta infeliz patria, então o povo julga- se com o
direito de protestar, e protesta contra o modo pelo qual desperdiçam
o seu trabalho mas em vez de moderarem ou modificarem esse modo de
viver ás claras, mandam matal-o e para isso é ainda o seu traba-
lho do passado e todo o trabalho de sua geração, no futuro , que
ha de pagar com munificencia os que se encarregaram de assassinal- o .
E' d'ahi que vem a guerra civil ; é d'ahi que vem a queda
das instituições, é d'ahi que vem o anniquilamento de povos, a ex-
tincção de nacionalidades.
Nem se diga que se não fôra a guerra e as calamidades, o
mundo não comportaria os seus habitantes .
Não. O mundo é ainda um deserto e o homem para viver adapta-
se a todos os climas e a todos os trabalhos . A morte na epoca
propria bastaria para compensar os nascimentos.

A noite arrastava - se lenta do levante e os ultimos raios do


sol poente penetravam nos cabellos de Jesus , dando - lhes tons de ouro,
transformando - os em aureola de luz . Seus olhos suaves reflectiam
os rutilos vapores do crepusculo que tornavam mais pronunciado o
azul das aguas do lago de Nazareth onde se mirava descuidosa a
soberba Tiberiade. E Seu olhar abrangia o espaço e Seu pensamen-
to abrangia o mundo , o futuro, as raças vindouras, a humanidade
atravez de todos os seculos.
Elle contemplava o cume longinquo do Sinai, e Seu pensamen-
--- 394

to absorvia-se em Moysés que tivera coragem para arrancar um povo


de sob o latego dos Pharaós , povo que não comprehendia o que seja
a liberdade, tal era sua bestialisação, e preferiria conservar- se
no captiveiro onde se o senhor dava-lhe açoites, deixava-o todavia
viver, a soffrer as privações do deserto onde respirava as auras da
independencia, se não fora a nuvem que a seus olhos baixara sobre
o Sinai.
Aqui estava o Jordão , cujas aguas limpidas desciam silenciosas
no profundo sulco que o tempo cavara no deserto, que atravessa
o lago para se sepultar no Asphaltita .
Fôra em sua margem que Moysés adormecera eternamente ,
ensinando ao povo o caminho da liberdade, a terra promettida ; foi
ali que o Baptista se refugiara na sua misanthropia . N'aquellas aguas
se banharam juntos.
Maso Baptista já não vivia. Seu amor á justiça, seu odio ao
crime, fizeram com que sua cabeça passeasse como trophéo nos fes-
tins de Herodes.
E a Elle ? o que O esperaria ?
Mas se todo aquelle esforço de Moysés tinha vencido ertac,
Elle via sua lei desvirtuada, servindo de instrumento às ambições
dos potentados, servindo de oppressão para os fracos. Nem o caracter
do seu povo tinha- se dignificado .
Ali estava aquella cidade orgulhosa com o nome do tyranno,
senhor de sua patria, e o povo o applaudia, tal é o limite da infa-
mia, dando nome a cidades, erguendo estatuas aos que o sepultam no
lodo, aos que fazem-lhe confessar que a ignominia é virtude civica ;
entre um golpe que mata e um acto que infama, riem -se d'elle
porque sabe que o seu fim é proximo.
Que havia de fazer ?
Como accordar n'aquelle povo vil o instincto da dignidade,
o amor da honra ?
Tudo estava perdido para elle. A podridão tinha- se propagado
á essencia do ser, e o povo que cahe no lodo sepultar-se-á n'elle
para sempre.
Era preciso lutar, lutar pelos que haviam de vir, lutar pelas
gerações longinquas, no futuro ; e lançando um olhar para o cume
do Tabor que em pouco fariam seus discipulos pela suas palavras
ver luz atravez da singela tunica que vestia, desceu silencioso,
meditabundo ; atravessou as ruas buliçosas de Tiberiade onde se
festejava Bacho e Venus, publicamente como em Capua e Roma,
dirigiu-se para a margem do lago que a lua começava a pratear
em busca dos simples pescadores que Elle fizera seus discipulos e
que suas palavras em pouco encheriam de sabedoria infinita.

#
395

Estamos na epoca em que se commemora a divina tragedia


que teve seu termo sangrento no Golgotha, para d'ali começar então
esse poema de bondade, esse canto suave : Amai- vos uns aos outros "1
semente que ha de produzir a arvore capaz de abrigar á sua sombra,
todas as raças, todos os povos , todas as gerações que, cançadas de
tanto matar e de tanto morrer, cançadas de servirem de instrumentos
aos villões que se transformam em algozes de povos, cançados de
serem algozes das victimas , quando por sua vez são victimas dos
que não vêm n'elles senão o instrumento de que precisam para
seus fins, buscarem-a como asylo seguro para a vida como o viajor
extenuado busca o oasis no arido deserto.

Houve um tempo em que nos sensibilisava ouvir a leitura


d'aquelles passos do grande martyrio , e aquella leitura accordava-me
n'alma sentimentos que ainda não podia comprehender, porque
era feita pela voz suave, cadenciada , de minha Mãe, jovem ainda ;
e eu chorava porque via-a chorar entoando com sua voz angelica
um canto de que a memoria guardou uma strophe para presentear-
me hoje :
22 Adoro-vos meu Jesus
Pelos homens condemnado
"" A levar nos vossos hombros
29 Esse madeiro pesado "
A' tarde, quando o sol parecia buscar seu leito de repouso,
por de traz da serra que limitava o nosso horizonte e que se trans-
formara n'uma vasta zona enegrecida que eu julgava ser o ponto
de união entre a terra e o ceu , e os derradeiros raios da luz diur-
na vinham dourando as folhas verdes das arvores е о feno do
campo, clarear, sem expressão, sem tom, as paredes de nossa casa,
e depois , occulto já, as nuvens do occaso continuavam a transmittir
essa luz indirecta, conservando no ceu uma zona de ouro quando a
terra já se mergulhava nas pardacencias do crepusculo nocturnal .
Quando tudo repousava, minha Mãe, pensativa com sua alma de santa
a peregrinar nos mundos ignotos aonde se vai, segundo as crenças,
pelo caminho da morte, fazia-me repousar a cabeça infantil nos seus
joelhos e lia-me todas aquellas scenas do martyrio do grande Hu-
manitario, toda sua agonia , o seu suor de sangue, o calice da
amargura, a trahição de Iscariotes , o Calvario, a esponja de vina-
gre , o insulto ao moribundo ...............
E meu espirito infantil chegava a duvidar de Deus, ou a cen-
sural- o por, tudo podendo, não fazer abrir a terra para engulir
aquelle povo perverso que martyrisava, que matava, que insultava ao
que buscava arrancal- o das miserias, da infamia, da oppressão.
- 396 ―

Eu não podia comprehender que a punição não é somente


dada pelo flagello ; que a punição è, não só o remorso que só punge
as almas boas que desvairam ; o medo, o receio da queda, a escra-
visação aos instrumentos de que lançou mão o que quiz opprimir ,
e eternamente será opprimido por elles. É ser tratado pelos merce-
narios que comprou, não como senhor, mas como escravo, não como
chefe, mas como cumplice. É a união na infamia . Os afagos são os
dos salteadores, de punlial em punho : Dá- me a minha parte, ou
tomo toda a tua e mato- te.....

**

Que se passaria em tu'alma, ó minha Mãe, tendo no teu re-


gaço o filho primogenito, emquanto pensavas nos martyrios de um
filho e nas dores de uma Mãe que o via morrer ?
Talvez no teu espirito se representasse n'aquella scena cru-
enta a figura do teu filho, como a mim se apresentava o teu rosto
á semelhança do da Conceição que tinhamos na nossa capella , como
se o pintor te tivesse tomado por modelo.
Talvez que quando n'um gozo inaudito da actualidade se an-
nuncia a minha morte, tu te lembrasses do meu cadaver exangue
em meio dos cadaveres dos bravos companheiros, mutilado pela faca da
legalidade, como o de Christo descido da cruz, na quietação do
sepulchro devia estar no pensamento de Maria , a Mater Dolorosa,
emquanto Herodes festejava em palacio o seu triumpho, e Cezar,
o magnanimo protector, deliciava-se na ordem e no progresso de
Capúa.

E a noite percorria lenta o espaço com o seu cortejo de tre-


vas como triumphadora, emquanto após surgiam as estrellas, ora
dispersas, como medrosas, depois accumuladas, brilhantes como novo
exercito a combater as trevas, e a lua despontava , lenta, envolta
em nuvens, como a esposa abandonada que embalde buscasse o
esposo que lhe fugisse pelo caminho do sol.
E o silencio só era interrompido pelas aves noctivagas que
pousavam no nosso pomar, emquanto as aves aquaticas boiavam na
aguas prateadas da lagoa e os pyrilampos cruzavam no espaço como
estrellas filantes.
E minha Mãe fallava- me na dignidade do homem que não
consiste na grandeza pelo crime ; fallava -me no amor do proximo
tendo por exemplo Jesus ; fallava-me no amor da Patria tendo por
exemplo os nossos irmãos que com a vida revindicavam-lhe a honra
nos ingratos campos do Paraguay.
E a noite adiantava-se e meu espirito adormecia, e eu sentia
397 -

emfim com o calor dos labios de minha Mãe que beijava, a hu


midade de suas lagrimas que me humedeciam as faces como orva-
lho celeste que rocia a debil planta que desponta em cineroza
varzea.

Hoje aqui, entre centenares de irmãos em cujos lares, distan


tes não resoam senão gemidos e soluços, como se Deus tivesse dei-
xado de ser justo, ao cahir de uma chuva torrencial, escrevo estas
linhas, emquanto os companheiros dormem con armas em punho,
para não morrerem indefezos como muitos, e como as creanças da
Galiléa pelos soldados de Antipas.

E o pensamento que passa em revista todas as scenas do


passado , vai penetrando pelas cesuras do cerebro , accorda imagens
adormecidas ha annos, vivifica panoramas que, então, passavam desa-
percebillos , como cousa commum e natural, e hoje, coloridos pela
saudade, vistos na sua simplicidade atravez do prisma do soffri-
mento vem-nos ante os olhos, revelados pela memoria, com a suavi-
dade de um sonho sonhado entre as luzes cambiantes de uma auro-
ra celestial que se dissipa ao despertar em meio da noite escura
em que fusila o raio, e geme o paço pela passagem devastadora
do tufão.
E como pungente contraste, faz-nos esquecer o soffrimento
do presente, a incerteza do futuro e leva-nos á viver n'esse passa-
do, que se vai apresentando , nitido, claro como a extensão velada
por densa cerração que os raios do sol vão destruindo e o nosso
olhar vai descortinando até o limite extremo do horisonte.
Sê bemdita, ó Memoria, que conservas intacto esse thesou-
ro inestimavel da lembrança, que do soffrimento do presente vem
suavisar a angustia, como o balsamo santo suavisava as dores dos
paladinos das crenças quando feridos. Vamos, vem conmigo, ca-
minhemos até o ponto inicial da sensação do nosso viver ; leva
meu espirito pelas campinas, pelos bosques, pelos prados, pelos
lagos, pelos cannaviaes, pelos serros onde deslisou-se tranquilla a
minha infancia.
Como a abelha que voeja de bosque em bosque, onde exhalam
.perfumes suaves as flores das acacias ; de charneca em charneca
onde parecem nascer dos lodos as immaculadas flores das nymphe-
as ; de floresta em floresta, onde no solo vicejam os lyrios, e nas
arvores as parazitas rubras ; a sugar o pollen das flores d'onde
extraem o nectar que lhes alimenta o corpo, minh'alma, com o teu
auxilio encontrará a seiva que a nutrio durante annos, e repousa
- 398

rá nas ondulações do passado, como um berço de infancia, as ho-


ras de insomnia d'esta noite tormentosa.
Se hoje commemora-se a luta pelo martyrio do que com sim-
ples palavras que lhe causaram a morte, abriu ás gerações futuras
as portas largas da justiça absoluta, do direito incondicional, pro-
clamou a igualdade do homem, sem o direito do baraço e cutello
do mais forte ; fez de cada qual o juiz do seu irmão, mas que
julgasse depois de examinar se estaria limpo dos crimes que ia
julgar ; não dava direito de superioridade senão á virtude, á bon-
dade, que trabalhava para arrancar os ignorantes, os fracos de
corpo ou de espirito das unhas dos scelerados que pela infamia,
pela doblez , pelo crime, pelo roubo , pelo assassinato, pelo terror,
impunham-se, como lobos famintos de fauces regurgitando sangue , se
imporiam a um rebanho de ovelhas , esquecendo- se de que a dignidade
humana não consente viver na escravidão, no aviltamento ; é justo que
alemos o nosso espirito , e voemos por esse caminho percorrido , avi-
vando, phase por phase, gozo por gozo, suavidade por suavidade ,
em contraposição dos que no progredir não deixaram na passagem
senão ruinas , destroços, sulcos de dores e de mizerias, e que, no
apogeo, quando todos dizem que elles são os senhores absolutos,
brada lhes o conhecimento intimo : Não sois mais do que escravos
do crime ; do que almas vendidas que, para viver, tendes de assu-
mir a paternidade de todos os horrores que commetteram em VOS-
so proveito e em vosso nome ; que mesmo quando ante o acervo de
ignominia a consciencia vos pergunte porque não paraes em vos-
so caminho ? O crime vos obriga a responder : Dei a minha'alma ao
diabo. Só tenho um bem é o mal.
Mas, se volvemos os olhos ao passado, se nos recordamos de
todas aquellas scenas que indicavam costumes tradicionaes, secula-
res mesmos, quanta dôr . quanta tristeza, quanto desanimo, se apo-
dera de nós ao pensarmos que tudo isso desappareceu n'um momen-
to ; que tudo aquillo, a julgar-se pela perversidade dos que go-
vernam hoje, e pela pusilanimidade do povo que se deixa gover-
nar assim, demonstra que os costumes não erão intrinseccos nos
nossos sentimentos, que elles provinham de um ponto, de uma fon-
te , e destruida ella o nosso caracter esboroou- se como um edificio
sem alicerces na primeira erosão do terreno que se estendia em
torno.
Que é feito de tudo aquillo, que nossa memoria vai buscar
atravez do tempo e da distancia ?
Aquellas povoações singellas , nos sertões , com suas capellas
modestas em meio de vastas praças tapetadas de gramma , aquellas
casas brancas , fechadas, taciturnas, deshabitadas nos dias de traba-
lho , alegres, sussurantes, buliçosas como um corpo que desperta
do lethargo nas vesperas e nos dias de festas ; aquellas mães res-
G 399

peitaveis, hospitaleiras, boas, cuidadosas das filhas , singellas, modes-


tas, com os cabellos toucados de rosas, de jasmins e murtas ; aquelles
velhos crentes de barbas brancas, recordando os patriarchas ; aquel-
les rapazes fortes, trabalhadores, capazes de fazer rolar no solo o
touro mais robusto, de domar o potro mais crinudo, incapaz porem
de dirigir um olhar de frente á escolhida do seu coração , de di-
rigir-lhe a palavra antes que os paes o permittam fazel- o ; aquelle
despertar á noite ao toque dos sinos festivos chamando á igreja a
festejar o nascimento do que foi Martyr ; os cantos suaves de vo-
zes de todas as idades, accordando a esperança nos moços e a sau-
dade nos velhos ; as lutas mais renhidas, as ameaças mais temero-
sas, terminando por palavras ; os que por acaso tivessem as mãos
tintas de sangue, a não ser em legitima defeza ou na defeza da
honra olhados como reprobos, como monstros que repugnava ver ou
falar ; se tudo isso que a memoria nos traz , desappareceu com este
ordem e progresso ; se o direito de matar, de mutilar cadaveres, de
presentear governadores com membros do corpo humano , como se
faz no infeliz Rio Grande, para merecer-se a honra de ser general
honorario do exercito brazileiro , extendeu - se por toda a parte, maldi-
ta sejas tu , ó memoria, que vens accordar lembranças que devem dor-
mir para sempre ; porque vir fazer lembrar o paraiso aos que vi-
vem no inferno, é crear almas de Tantalo .

**

O rio Santa Maria estava transbordando pelas chuvas que inun .


daram os banhados do Ponche Verde. As aguas do banhado que
passa junto á cidade de D. Pedrito , ao sudoeste, represadas pela cres-
cente do rio privava toda communicação com a cidade , a não ser por
uma pequena ponte por onde não podem passar mais de seis caval-
leiros ao mesmo tempo .
O Santa Maria, este banhado e o Santa Maria Chica que desa-
gua no Santa Maria pouco acima da cidade, formam um triangu-
lo cuja hypotenuza é o Santa Maria Chica.
No vertice do triangulo, perto da cidade, acampara a colum .
na de Apparicio Saraiva na sexta - feira santa .
Tinha-se mandado piquetes de exploração que não trouxeram
noticias do inimigo a não ser vagas conversas de que Menna Barre-
to tinha- se dirigido para S. Gabriel e Carlos Telles para Bagė.
Nossa columna chegou aquelle ponto ao escurecer e com chu-
va ; por isso acampou ali mesmo.
Tinha-se recebido alguma cavalhada gorda, sendo os melhores
cavallos trazidos por um irmão de Apparicio que ali estava comnosco .
Os tiroteios anteriores, as marchas e contra - marchas, tinham
deixado a pé grande porção de companheiros que tiveram de seguir *
400 -

para os potreiros de Anna Corrêa em cujas immediações estava Es-


tacio Azambuja, a fim de esperarem ali recursos, depois do comba-
te da Estiva.
N'este combate, que foi rapido, nossas forças estiveram tão
proximas do inimigo, que o clarim de Bento Xavier que se achava
entre as nossas balas e as do inimigo para regular o movimento
do seu batalhão, não teve embocadura para dar o signal de avançar
como ordenara Bento Xavier ; então o meu enfermeiro tenente José
Bibiano, tomando o clarim ordenou a carga que chegou até ao ini-
migo, sendo rechaçada e seguida por uma carga inimiga até onde
um reforço de lanceiros nossos unindo -se aos que retiravam- se , car-
regaram de novo, fazendo retroceder os lanceiros inimigos até ao
grosso das forças. Um brinquedo... onde se morreu e se matou, como
o dos antigos cavalheiros nas liças.
O nosso piquete foi postado na restinga. A' noite ou á ma-
drugada apresentou- se uma força declarando ser de Estacio Azam-
buja, a quem esperava- se a toda hora . O piquete inexperiente acreditou.
Pagou com a vida a inexperiencia. Quem obedece á legalidade do
Sr. Julio de Castilhos não faz prisioneiros nem quando o imbus-
te e a mentira os collocam em suas mãos impotentes e inof-
fensivos.
*

O habito revolucionario é encilhar cavallos de madrugada ; mui-


tos porem, se não ha noticia de inimigo nas proximidades, conser-
vam-se na barraca . Eu sou um d'elles, e muitas vezes zangava-me
com o meu velho amigo Guerreiro, quando a necessidade do servi-
ço me fazia pousar na barraca d'elle. A' meia noite mandava enci-
lhar ; eu me conservava ainda dormindo , muitas vezes tendo ador-
mecido havia pouco. Então começava Guerreiro que estava no ex-
tremo da sua grande barraca.
Dr ? O' doutor ?
O que ha Guerreiro ? perguntava eu accordando .
Não lhe encommoda o estar eu calçando a minha bota ?
Não , Guerreiro deixa-me dormir.
-
Sim, meu amigo, pode dormir. Mas diga - me uma cousa...
Com franqueza ....Não lhe encommodo em calçar a bota do pé es-
querdo.
O' Guerreiro, calça tua bota, vai para o diabo, mas deixa-
me dormir.
- Durma, durma, mas ... com franqueza...não lhe encommodo ? E
tanto fazia até que eu despertava me. Quem tem inimigo não dor-
me , dizia elle ; mas uma noite errou nos calculos e fez encilhar ás
11 horas e tivemos de passar todo o resto da noute á espera do dia.
Ao despontar a manhã do sabbado de Alleluia tinham nossas
- -
401 -

forças os cavallos encilhados, algumas barracas porem ainda estavam


armadas, onde alguns, de melhor trato ou posse, tomavam o máo café
em guampa , outros junto aos fogões churrasqueavam quando de
dentro do matto, sem toque de clarim, rompeu a fuzilaria inimiga
- sobre o nosso acampamento.
Proximo ao matto acampava a gente de Raphael Cabeda,
sendo o ultimo acampamento, junto à restinga, o pequeno corpo
de Julio de Barros.
O effeito de uma surpreza em um acampamento de revolucio-
narios quando na supposição de que o inimigo acha- se longe, e por-
tanto o dia vai ser tranquillo e de repouso, é difficil de ima-
ginar-se, e impossivel de descrever-se .
Entre os revolucionarios não ha a organisação regular de
corpos. Pequenos grupos isolados , tendo por chefe um amigo
homem de prestigio do logar onde reside, que não tendo gente bas-
tante para formar um batalhão , mas tendo- a para na hora do pe-
rigo correr para as linhas de fogo com o seu pelotão, e com outros
e outros formarem essa legião de redivivos que a morte respeita, jul-
gando inattingivel. Acampam estes grupos distanciados dos corpos
mais ou menos organisados. Outros, os que não pertencem a cor-
po, nem grupo, e que na hora do combate pedem um logar onde a
morte parece querer fazer os sulcos mais profundos, acampam mais
retirados ainda . São os solitarios, os misanthropos que se dis-
tanciam dos centros mais buliçosos para conversarem, pelo pensamen-
to, com os ausentes e meditarem na punição que deverá ser inflingi-
da aos causadores dos males da Patria e da familia ; punição que
elles julgam infallivel porque não creem que as causas justas não
sejam triumphadoras .

A' semelhança do bando de aves, que descuidadas, boiam nas


aguas tranquillas do lago, e aos primeiros tiros do caçador voam
dispersas e depois, revoando, vão alcançando umas, encorporando-
se outras, até que em linha, unidas, voltejam no espaço sem se dis-
persarem mais pelos tiros constantes que cada vez faz immobilisar
as azas de uma que desce inerte para a terra, os revolucionarios
sorprehendidos corriam de um ponto para outro ; uns em busca dos
cavallos que deixaram distantes, outros em busca dos companheiros
que não sabiam onde estavam.
Aos gritos de sobresalto porem, se uniram logo os gritos de
ordem e de combate.
Os primeiros tiros dos nossos transformaram os gritos de
sorpresa em gritos de alegria ; dessa alegria stoica do martyr que
sabe affrontar impavido a crueldade do algoz . A nossa posição
26
402 ww

era critica ; seria desesperada se nós os revolucionarios, « esse grito


de angustia do povo rio- grandense» , já não estivessemos affeitos.
a enfrentar a morte com a mesma tranquillidade com que se enfren-
ta o repouso .
De um lado estava o Santa Maria, cheio, silencioso, rolando
suas aguas que pela quietação da superficie indicavam a profun-
deza da torrente. Eram de um afago calmo, um chamar de sereia :
-Vinde, diriam ellas, vos darei um leito de repouso mais tranquillo,
mais quieto do que o que vos dá a terra em que nascestes, que
vossos paes dignificaram, que vossos avós libertaram .
A partir d'alli , a restinga de Santa Maria Chica desdobrava-
se como uma linha interminavel, longa, curva , ondulante ; linha som-
bria, transformada em muralha onde a campanha havia feito suas
trincheiras contra nós ; d'onde partiam os raios da morte , onde
hontem passeavamos tranquillos, como no lar, e hoje se transforma-
vam em emboscada destruidora.
Era o caminho que poderiamos ganhar para a campanha ; por
onde poderiamos sahir d'aquelle reducto. Mas que forças estariam
ali ? Como romper, sem coraças, por entre as tocalhas, marchar in-
defesos pelo imprevisto .
Depois estava o banhado com sua ponte estreita, com seus
tremedaes . Além a cidade, pequena cidade de campanha, adormecida
no declive da coxilha.
Ao revolucionario os factos se apresentam rapidos .
E' como um accumulo de gazes que raios dispersos transfor-
mam em corpo .
Se dos mattos partiam tiros de emboscada, se a nossa retira-
da só poderia ser feita pela estreita ponte cujo horisonte era vela-
do pela cidade, era porque ali devia estar o grosso das forças
inimigas que no momento não nos tolhiam os passos.
Portanto, morrer por morrer, era preferivel demorar na vida
por alguns minutos.
Immediatamente organisou -se a resistencia para proteger a re-
tirada. O pequeno corpo de Julio de Barros que se achava junto á
restinga, como sempre mostrou o seu denodo, lutando até á espada
e tiros de revolver.
O seu ajudante tenente Adolpho Caylara de espada desem-
bainhada, lutava como um valente que era e ali ficou morto entre
mais quinze valentes.
Torquato Severo, com a sua calma habitual, depois de fazer
recuar a vanguarda do inimigo que chegara a sahir da restinga, e
para onde foi obrigada a voltar, protegeu a retirada demorada pela
insufficiencia da ponte, alguns passando mesmo pelo banhado.
Não houve quem não tivesse se collocado na altura de brio
--- 403

em presença do perigo . Nestas occasiões todos os officiaes são che-


fes para ordenar a luta.
O tenente coronel Tolentino que não commandava Corpo , mas
que acompanhava a columna desde a nossa invasão foi incançavel
em correr de ponto em ponto por baixo das balas para organisar
os dispersos. A passagem foi vagarosa, a luta na retaguarda era
encarniçada. Graças á proximidade dos nossos, e á tragectoria mui-
to curva das balas de comblain os nossos pouco soffreram.
Ao passar a ponte o coronel , Maneco Machado, o velho Far-
rapo, foi ferido na bocca. O Dr. Mendes, medico, levara tam-
bem um balaço . Bento Xavier achava-se doente, e licen-
ciado para ir tratar- se, por isso tinha passado o commando do ba-
talhão Antonio Vargas, esse grupo de creanças temerarias. Era
preciso organisar a resistencia do outro lado da ponte e fora de-
signado para isso o Antonio Vargas, para proteger a retirada de
Torquato. O batalhão , sentindo a ausencia do seu commandante,
mostrava-se contrafeito e pouco resoluto .
Nesta occasião appareceu Bento Xavier, com o chapeu derrea-
do para a nuca, com a fronte de heróe a descoberto , e com o sorri-
so constante que se vê por baixo dos seus bigodes castanhos,
Sua approximação do batalhão teve o effeito de uma luz que
surge rapida.
Todos se alegraram, romperam em vivas, e a resistencia come-
çou ali tenaz , gigantesca como se aquellas creanças que continham
as forças superiores, fossem anjos da dignidade humana. Já as forças
inimigas tinham sahido de dentro do matto , e foi então que se re-
conheceu que eram superiores ás nossas.
Emquanto Apparicio marchava na frente organisando a reti-
rada , Raphael Cabeda em pessoa recrutava em todos os corpos os
lanceiros melhor montados e preparava- os para carregar, caso o ini-
migo tentasse avançar sobre o Antonio Vargas que fazia a reta-
guarda. E assim, ao despontar do sabbado de Alleluia os habitantes de
D. Pedrito despertaram ao troar de fuzilaria , ao cahir das balas
sobre os telhados, e abysmados de tanto valor, viram desfillar aquella
columna quasi nua, calma, tranquilla como forças que marchassem
para uma parada , emquanto na retaguarda o fumo da polvora obs
curecia o espaço .
Pouco adiante da povoação ao chegar n'um descampado avis-
tou-se outra columna forte, que vinha contra nós. Uma linha de ati-
radores que se estendeu , fel - a parar e tomando a nossa
columna uma direcção obliqua deixou aquella na retaguarda e to-
mou a direcção do caminho por onde tinha vindo na vespera, ace-
nando com os lenços e os ponches ás duas fortes columnas inimigas.
Se aquella columna tivesse se adiantado meia hora, a nossa des-
truição seria certa. Não teriamos para onde escapar, e a nossa luta
- 404

seria a loucura dos que sabendo que haviam de morrer pela faca
da legalidade preferiam morrer matando.
Quando elles marcharam toda a noite para nos sorprehender
ali, de certo nos consideraram n'um sepulchro de vivos ; esqueceram-
se porem que, quando o revolucionario luta pelo direito, resurge sem-
pre, aqui ou ali , hoje ou amanhã, mudando de armas e de program-
mas, mas sempre tenaz ; ora violento como a febre combustora, ora
lento como a ferida atonica depauperando o organismo. Em balde
a tyrannia estende seus tentaculos , em balde transforma o erario
publico em instrumento de destruição, em balde arroja-se aos pés
dos fortes, elogia- lhes os crimes e da- lhes honras por cada crime, em
balde opprime os fracos, mata os fracos e doentes para fazer- se
temida, para ser obedecida na sua marcha destruidora ; o revolu-
cinario surge diante d'ella como um pesadelo, como a lenda fatal que
annuncia-lhe o fim proximo no meio das orgias do poder de que dispõe.
A tyrannia não dorme. A coberto do perigo, fingindo - se de
victima do seu amor á honra, á patria, ás instituições, transforma
o suor do povo em meio de comprar instrumentos que lhe derramem
o sangue. O revolucionario não tem descanço, não tem gozos , luta
porque prefere a morte rapida dos combates, á morte lenta que
ella lhe prepara, e ella, a tyrannia, accusa-o por não se deixar
matar lentamente.
As vezes julga-o fraco , e expede as legiões de janizaros para
destruil-o .
Conta os dias, as horas ; cada chamada do telegrapho julga
ser a noticia da victoria... A noticia chega, mas não foi a revolu-
ção quem perdeu ; foram os seus. A epilepsia larvada que lhe orde-
na os actos, chega a manifestar- se n'uma gagueira persistente. As
commissuras labiaes branquejam de espuma, e não achando em quem
cevar seu odio, rasga as carnes com as unhas, as fronhas dos tra-
vesseiros com os dentes ...
E emquanto compra novos elementos e medita n'um plano,
n'um circulo de ferro donde não escapará um só dos bandidos que
não se deixam matar impune, pausada e calculadamente ,
como o tigre que lambe as ventas ao sentir cheiro de sangue, an-
tegosta as alegrias da proxima hecatombe que prepara, os revolu
cionarios nus, percorrem a campanha, ora fugindo como a pomba
perseguida pelo gavião, ora baixando rapidos como o falcão sobre
a presa, quando ha necessidade absoluta de lutar, vão contando
dias e as noites que passam longe do lar, cantando suas canções
que recordam tempos felizes, lembrando -se dos companheiros, dos ami-
gos, dos irmãos, dos paes, dos filhos que a morte privou de con-
tinuar na luta, rindo -se dos sustos dos companheiros, e dos proprios ,
na hora do perigo , alegres pelo perigo já passado, sem se encom-
modarem com o perigo futuro .
1
- 405

O Sr. Castilhos romperá as carnes, com as proprias unhas, quan-


do souber que nos escapamos de D. Pedrito . Tão maus que somos
que nem ao menos nos deixamos matar todos, para dar-lhe um pra-
zer, uma alegria, uma festa deslumbrante como consolidador d'esta
republica !
Soubemos depois que a columna que nos atacou é a do Sr.
coronel Telles, a que nos devia tomar a retirada a do Sr. Men-
na Barreto, reformado e deportado para o Cucuhy, pelo Sr. Floriano ,
hoje seu general honorario como Elias Amaro e Firmino de Paula .
Qualquer que seja o motivo que o collocou ás ordens do Sr.
Floriano Peixoto, fosse mesmo uma amnistia dada ao insulto que
lhe fez, deshonrando-lhe a farda em troca da que teve o Sr. Julio
de Castilhos pela denominação de Marechal tres vezes trahidor, com-
tudo o seu procedimento como chefe de forças ultimamente, ao que
nos consta, tem sido correcto.
As forças do Sr. Menna Barreto são commandadas pelo gene-
ral Portugal, nosso conhecido do Serro do Ouro. Foi talvez por
isso que o Sr. Menna Barreto não nos pôde tomar a sahida . Eu
não conheço o Sr. Menna Barreto , mas seu nome me é conhecido
ha muito, já na historia patria, já por uma sua parenta muito
proxima descendente de Menna Barreto e de uma outra figura
brilhante do exercito, que foi minha hospede, no sertão da Bahia,
por muito tempo , tão digna, tão amavel que ao despedir- se de nós ,
fez correr lagrimas em todos, desde minha Mãe até o mais humilde .
famulo de nossa casa .
Quando os dias chuvosos não permittiam-me organisar uma ca-
çada, uma pescaria, uma colheita de fructos silvestres, ou visitarmos as
innumeras grutas calcareas que existem na nossa fazenda, America
Dourada, admirando as estalactites collossaes, ou procurando interpre-
tar as pinturas que os selvicolas ali fizeram e até hoje as tintas
tem tal colorido que parecem de hontem ; e onde ainda encontra-se um
conjuncto de figuras que exprimem um poema de alegrias e dores,
que depois viste commigo, talvez sem te impressionares, sem te
lembrares que ali estava representado uma pagina de nossa vida futura ;
deves te lembrar dessa pintura ve-se primeiro os indigenas de
mãos dadas em posição de quem executa uma dança , depois um
casal, de jovens isolado, depois esse mesmo grupo tendo a mulher
uma creança nos braços e fructas e caças ao pé, emquanto o
homem olha de frente, depois, ella com a creança e elle distancia-
do, com suas armas, de costas, como quem marcha ; depois um olho
só onde se vê as lagrimas, em grossas gottas cahindo até o chão.
Milton no Paradize Lost, Rousseau na Nova Heloiza , Byron no
Child Harold, Bernardin em Paulo e Virginia, Chateaubriand em Atala,
Lamartine em Raphael, Greuse nos seus quadros , todos estes genios
que souberam descrever os sentimentos da alma com as phrases
406

ou com o pincel nas successões dos factos da vida, não poderiam


vencer em pensamento os selvagens que fizeram aquellas pinturas,
que tanto recommendei que não deixem ser destruidas, com ideas tão
concretas tão expressivas, com tintas e formas tão grosseiras !
E' que a tristeza e a dor são o apanagio da vida.
Se os selvicolas podiam viver, buscando as aves e os fructos
que nutriam a esposa e o filho, chegava tempo em que era preciso
morrer porque algum cacique ameaçava tolher- lhes a liberdade,
impor-se como algoz, escravizal- os ; e elles iam libertar a região
que habitava a tribu, e talvez não mais voltassem. E a esposa e
o filho obscureciam-se para só deixarem correr as lagrimas da sau.
dade. Quando, como diziamos as noites escuras não permittiam os jogos
que inventávamos para não tornal- as tão longas, n'aquellas solidões ,
minha hospede nos falava de suas viagens, das terras por onde
andara, porque seu pae, o general Barros Falcão, tinha percorrido
quasi todas as capitaes do Brazil, mas nada a enchia tanto de or-
gulho como narrar os feitos heroicos de Menna Barreto morto no
Paraguay, Essas narrativas accordaram em meu espirito impressi-
onavel, uma forte symphathia por esse nome que eu via cognomi-
nando heroes, entretanto é um portador d'esse nome que vejo hoje,
por interesse de individuos, concertando os planos da destruição de
sua terra nativa, com aquelles que só poderão prosperar, destruindo-a .

Eu não conheço o Sr. coronel Carlos Telles, tenho porem d'elle


as melhores informações, porque, desde que chegou a Bagè, proce-
deu sempre com correcção militar, garantindo todos os adversarios
politicos do governo a que elle obedece, demonstrando assim
que sua alma de soldado, que sabe enfrentar a morte no campo
de batalha, sabe tambem comprehender a nobreza da farda que
veste, que não pode servir de instrumento a individuos.
Comquanto a heroica resistencia que apresentou em Bagé fi
zesse o maior mal possivel á causa da justiça, comtudo, elle estava
no seu papel, n'esse papel heroico do soldado brazileiro que sabe
cumprir o seu dever, quando entende que os que lhe ordenam tem
direito a isso, ou abandonam o logar e tornam-se victimas quan-
do entendem que os governos não tem o direito de lançar mão dos
filhos de uma terra, para com as armas que lhes forneceram seus
irmãos exterminal - os.
Depois do levantamento do sitio de Bagé, elle, apezar de fe-
rido garantio a todos que ali ficaram, privou que as casas dos au-
sentes fossem incendiadas, emquanto os patriotas do Sr. Julio de
Cástilhos ao mando do Sr. Elias Amaro devastavam os suburbios
destruindo as propriedades e matando os proprietarios , pobres cha-
407 -

careiros , que nunca se envolveram em politica , estrangeiros que ti-


nham soffrido dos sitiantes no que era impossivel deixar de soffrer ,
mas que tinham sido respeitados em suas vidas e propriedades .
A certeza de que Scotto está vivo e bem tratado, facto raro
n'esta guerra sem lei e sem processo, onde a faca é guilhotina e o
degollador juiz, chama nossa attenção , no declive das sympathias,
para o coronel Carlos Telles.
A sua surpresa ás nossas forças em D. Pedrito e essa sym-
pathia que lhe dedicamos como adversario honesto, obediente ao
governo que faz crer que o crime é lei , dá- me direito a dizer- lhe :
Pensei que a astucia só fosse arma dos fracos, dos desarmados, dos
inferiores em numero, e nunca dos fortes , dos bem armados, dos su-
periores em numero.
Julguei que a honra militar fosse como a dos gladiadores que
se apresentavam em frente, mostravam1 as armas para poder come-
çar a luta.
Não sou militar, e como a honra é uma convenção , pode ser
que a arte da guerra, a tactica moderna , determine que se sitie he-
roes , á noite , e sem intimal- os a se renderem em vista da força a
que elles não obedeceriam, e , então, a carnificina não seria um cri-
me, mas, atacai - os de surpresa, quasi dormindo..
E ' verdade que os assassinatos hoje dão honras n'esta republi-
ca, nesta desolada Patria. Mas não paira em vosso espirito de sol-
dado valoroso um veu de tristeza vendo a bravura, o heroismo des-
ses homens que vos respondem aos tiros de surpresa com gritos de
guerra ? Não vos passa na mente uma visão do futuro onde os
bons filhos da Patria se tornaram legendarios, e que para essa le-
genda concorreriam esses valentes que para fugirem á faca da lega-
lidade se expoem a ser trucidados pelos fuzis do exercito nacio-
nal ? Não vos imaginaes nas lutas honrosas da Patria reproduzindo
os feitos heroicos de Osorio , Porto Alegre Triumpho, Argollo ?
Que quem os ajudou a ganhar o nome immortal que a Patria
venera, foram os paes, os irmãos, e muitos destes que é preciso
morrer hoje para que o Sr. Julio de Castilhos possa saciar a vezania
morbida que o domina ? E nos dias angustiosos da Patria quem cor-
rerá ao campo da honra para, ás vossas ordens, dignifical- a, vingar o
ultraje que lhe fizerem, se mataes a esses, se vos incompatibilisaes
com elles lutando para opprimil - os ?
O Sr. Julio de Castilhos ? Os que vivem lá no gozo, emquan-
to vós tambem soffreis ?
Não ! Esses não lutam, mandam matar somente.
E quem por interesse proprio destroe a propria Patria, quem
manda matar seus irmãos por quererem ser dignos, quem nodoa
o nome glorioso de um povo com a hediondoz da tyrannia , trepida-
rá diante de algum crime ?
408 -

Pensae bem , coronel Telles ! Sois soldado. O vosso dever é


deffender a Patria e para a deffeza ella precisa de seus filhos. Pou-
pae os que a disciplina manda vos obedecer. Retirai - vos de nossa
frente para não fazer nascer entre nòs um odio eterno. Amanhã
talvez estaremos juntos, buscando a morte gloriosa, pela Patria.
*
**

Nossas forças procuraram a fronteira para deixarem os feridos.


Graças aos esforços dos irmãos Pedro e Olavo Fontoura , e a boa
vontade de alguns patricios domiciliados no Estado Oriental, não
faltam aos feridos nem alimentos, nem roupa.
Medicamentos é que não temos. Pedi ao general Tavares
para reclamar os que ainda possam existir da Cruz Vermelha, mas
creio que ali nada mais ha. Tenho noticia de que desde o combate
do S. Luiz o irmão do almirante despachara, de Montevidéo, medi-
camentos comprados por meio de subscripção entre os patricios. e
mandara-os para a fronteira. Não tenho noticias d'elles e creio não
ser isso verdade porque facilmente poder- se- ia transportar de Cur-
rales para aqui . Felizmente pude obter que me viessem de Bagé al-
guns que mandei pedir ao Salis, sem dizer para o que são e elle
os mandou, conhecendo a minha lettra.
Raro tem sido o patricio, na fronteira oriental, que não tenha
prestado serviços aos infelizes revolucionarios ; entre muitos que se
distinguem, deve - se destacar ainda a Viuva D. Flora dos Santos ,
que morando mesmo junto da linha não só tem visto o estrago de
seus gados , pelo roubo dos bandos que a titulo de revolucionarios
adoptaram a rapinagem como profissão, como é sua casa um asylo
para todos os que a buscam.
Depois do combate da Estiva , sua casa tornou- se hospital de
sangue, cuidando ella mesma dos feridos como uma irmã de cari-
dade, até que eu os podesse conduzir para as enfermarias.

Apparicio se internou no Estado passando por Bagé onde


mandou tirotear mesmo dentro da praça. O motivo d'esse tiroteio
foi o seguinte : Apparicio tinha mandado uma columna atacar Eli-
as Amaro que estava em uma das estações da estrada de ferro, e
sabendo que familias de Bagé iam, em trem de ferro, a uma das
estações onde os officiaes davam um baile n'aquelle dia, mandou
uma pequena força tirotear na cidade para, mostrando a nossa pre-
sença, dissuadil- as da viagem, como se deu, e assim livral-as do
susto e mesmo do perigo.
A expedição contra Elias Amaro pouco produziu. O vaqueano
409

perdeu-se, de modo que, em vez de chegarem á madrugada para sor-


prehender o acampamento, chegaram já o dia alto e sendo avistados
de longe, fugiram como avestruz , deixando barracas e munições . Os
da expedição, menos de cem homens, erão commandados pelo te-
nente coronel Adão, e os que estavam acampados não sabemos o
numero. Proximo de Lavras, Apparicio mandou uma expedição a S.
Gabriel, que teve de regressar , logo, por chamado do general Tava-
res, por terem-se suspendido as hostilidades.
Eu, calculando que o fim de Apparicio , internando- se, era
illudir o inimigo, e depois, em viagens rapidas passar o Caverá o
de combinação com Saldanha atacar as forças de Hypolito Ribeiro ,
preparava-me para seguir, pelo Estado Oriental, para onde estava o
Almirante, tendo já lhe escripto por um amigo, que por ali passa-
ra, dizendo-lhe que os feridos já não precisavam de mim, e que
Apparicio tinha-se internado e portanto não me era possivel seguir
só com a minha escolta em procura d'elle, e como não é justo que
entre bons companheiros emquanto uns lutam e soffrem, os outros
repousem, seguiria dois ou tres dias depois em busca do seu acam-
pamento.
Foi n'esta occasião que chegou ás mãos de general Tavares
a carta do general Galvão, indagando d'elle o meio de chegar- se
a um accordo para não se derramar mais uma gotta de sangue no
Rio Grande. Respondeu- lhe o general Tavares que era esse o seu
maior desejo, ao que Galvão replicou- lhe pedindo uma conferencia,
o general para isso precisa falar aos diversos companheiros
disseminados por toda parte, e por isso foi declarado o armisticio.

Estava com Cabeda e David Araujo, o valente paranáense


que não nos abandonára um instante em casa dos Martellos, na linha,
á espera do dia marcado para a primeira conferencia, quando o com-
mandante da policia oriental, no departamento de Rivera, vindo dali ,
nos trouxe a noticia mais desastrosa que poderiamos ter, depois das
nossas desgraças, a partir do Carovi. Forças de Hypolito Ribeiro,
em grande numero , atacaram Saldanha da Gama, isolado no campo
Ozorio, derrotaram-no, passando muitos para o Estado Oriental e não
se sabendo noticias do Almirante.
Então está morto, disse eu. Estava previsto que elle não
fugiria, não emigraria . Não o prenderam porque se assim fosse
já por toda parte elles teriam annunciado. Mataram- o e mataram - o
selvagemmente. "

As noticias que nos vinham eram contradictorias ; chegamos


até a nutrir a esperança de que elle surgisse por ali em procura
410 ―ading

de nossas forças. Na mesma occazião chegava um filho do valente Pina ,


trazendo parte de ter derrotado uma força de Menna Barreto pro-
ximo a S. Gabriel, fazendo prisioneiros, e que apenas recebeu a
ordem de suspensão de hostilidades se dirigira para o Campo Secco
para esperar os acontecimentos.
Quem sabe se a esta hora não estarà lá com elle o almiran-
te ? pensava eu.

A chegada do 1º Tenente Sylvio Pellico Belchior, ajudante de


campo do Almirante, confirma o medonho desastre. Estava com elle ,
a seu lado .
A posição era a mais estrategica possivel. O Almirante mes-
mo delineara as trincheiras e, com suas proprias mãos, trabalhara
n'ellas.
O inimigo apparecera e elle o recebeu com a sua bravura e
calma incomparaveis .
Ordenava fogo passeiando de um lado para outro, sempre
de luvas, sempre risonho, a dizer : Calma, rapazes, fogo compassado
e boa pontaria, a victoria serà nossa. De repente o enthusiasmo
de alguns lanceiros nossos, ao mando de Ribeiro, levou- os a uma car-
ga impetuosa, sem ordem do chefe.
O terreno desigual occultava a cavalaria inimiga. O Almirante
montara a cavallo. Os poucos lanceiros nossos chegando em frente
á cavallaria inimiga retrocederam desastradamente sobre as trinchei-
ras, vindo intreverados com a cavallaria inimiga. O Almirante man-
dou cessar o fogo para não sacrificar os companheiros.
A retirada foi desastrosa apezar de elle gitar que não corres
sem. Montado em cavallo fogoso continha-o para não galopar.
Começou então essa luta horrivel que conservará eternamente
uma ferida sangrenta no coração da Patria. A morte heroica d'a-
quellas creanças, seus filhos, como elle os chamava, a seu lado , e
de valentes companheiros que tantas vezes foram vencedores .
Gritavam-lhe :
Salve-se, Almirante, ainda é tempo ; e elle dizia Salvem-se .
Salvem-se, que eu me salvarei . N'isto deram-lhe um lançaço que o
fez oscillar na sella. Deram- lhe um outro e elle agarrando na lança
que se tinha embebido em suas carnes disse : Basta miseravel ;"
e cahio.
E assim terminou esse homem, pagina viva da historia glorio-
sa d'esta desditosa Patria tão digna de melhor sorte .
Elle podia contar seus dias pelos feitos nobres de que enchera
sua existencia.
Por muito tempo seu nome será lembrado e os que o viram
nos seus dias gloriosos , os que o viram n'esse trabalhar incessante
para pôr termo á tyrannia em sua Patria, os que o viram cahir ,
411

porque seria indigno de um nobre soldado brazileiro fugir ante o


perigo, comprehenderam a perda que acaba de ter o Brazil .

*
**

O ataque ás forças do Almirante, a matança d'aquellas crean-


ças que poderiam ter sido feitos prizioneiros, o que seria a maior
honra para essa gente que diz lutar em nome da lei , depois da
suspensão de armas, em um logar onde o telegrapho devia muito
antes ter avisado, põe-nos de sobreaviso.
Muitos são de opinião que o general Tavares não deve ir á
conferencia onde pode ser trahido , eu porem sou de opinião que
elle vá . O general Galvão não é um mercenario que queira infamar
a farda que veste e a terra onde nasceu .

O general Tavares seguiu para Bagé e eu me approximei do


acampamento tendo-me separado de Sylvio Pellico que desejava que me
acompanhasse para podermos estar sempre ao facto de todos os acon-
tecimentos ; elle porem resolveu voltar, precisava organisar o ar-
chivo do Almirante, disperso por diversos pontos. E' a sua honra
que está n'isso, me dizia Sylvio . Esses documentos mostrarão no
futuro a pureza de suas intenções , o seu soffrimento e a sua luta.

Quando cheguei á tarde ao Pirahy, no passo do Viola, encon


trei Zeca Tavares e outros amigos.
O general Tavares tinha seguido para Bagé d'onde seguiria
até á Estação do Piratiny onde se encontraria com o general Gal-
vão. O piquete militar que veio recebel- o, chegou um tanto descon-
fiado ; em pouco, porem, estava tão a seu gosto entre os maragatos ,
como se estivessem nos seus acampamentos, tal era a franqueza e
a ordem d'aquelles trapontos a quem os exploradores , para terem a
seu lado, instrumentos de suas ambições, pintavam como mons-
tros, emprestando -lhes todos os seus crimes, todas as suas crueldades .
Um official, chegou a declarar, ali mesmo, sua admiração por só ver
brazileiros entre nós, quando o que diziam e o que elle acreditava,
era que todos eram estrangeiros .....
Dias depois voltou o general Tavares. Estavam dados os pri-
meiros passos para o estancamento do sangue brazileiro./
Os companheiros que encontrei aqui no Pirahy retiraram-se para
onde estão suas familias, eu porem resolvi ficar, porque não tenho
para onde ir, e não me convem ir, para o acampamento nas imme-
diações de D. Pedrito .
1
- 412

Ir para ali, estando- se em armisticio, portanto na ociosidade


sedentaria, seria não ter um momento de descanço para o espirito,
porque os pobres companheiros, sobretudo os que fizeram a expe-
dição do Norte, viriam a todo instante perguntar-me qual a recom-
pensa de tanto sacrificio , se o Sr. Castilhos conservar-se no poder
com todos os seus, promptos portanto, a recomeçarem a perseguição
desde que os apanhem dispersos em suas casas.
Demais a pobreza e a nudez d'elles é completa , e , comquanto
elles saibam que eu devo estar nas mesmas condições, comtudo jul-
gam que sendo doutor, devo sempre ter dinheiro para attendel- os,
porque por pouco que tivesse, sempre os soccorri quando me pro-
curavam. Hoje cheguei ao ponto de nada poder e doe-me vel - os
quando me occupam e eu não os posso servir.
Fiz o meu acampamento na estancia do major Pedro de Bor-
ba, isto é, na esplendida casa da estancia porque no campo não se
vê uma rez. A micha escolta é de déz pessoas e eu tenho de sus-
tental-a comprando tudo . Felizmente aqui mesmo tem apparecido al-
guns doentes vindos do Estado Oriental que pagarão para as des-
pezas.

Lia um jornal estrangeiro sobre o descobrimento do cadaver


mutilado de Saldanha da Gama, o que me trazia a lembrança das
festas, em Livramento, por aquellas atrocidades, o baile na guarni-
ção , quando a diligencia chegou trazendo alguns passageiros de Pe-
lotas. Indagando pela marcha dos negocios da paz, disseram - me
que, em um banquete pela promoção do Sr. Savaget, quando o
general Galvão n'um discurso declarou que havia de fazer a paz
no Rio Grande do Sul, a senhora d'elle, que estava proxima , diri-
giu-se para o logar e abraçou-o, sendo applaudida por todos os of-
ficiaes presentes .
Este facto tão opposto ao baile da guarnição do Livramento
trouxe-me ao espirito alguma cousa suave, como um rocio ligeiro
que orvalha as plantas resequidas nos sertões pelo sol de fogo que
as cinera. Uma vaga esperança de que ainda ha almas que sentem,
que se condoem das desgraças dos outros, fez-me immediatamente
escrever ao general Galvão :

Acabo de saber que em uma festa onde declarastes que ha-


veis de pacificar o Rio Grande, vossa esposa vos abraçou , sendo
applaudida por todos os vossos companheiros de armas, presentes.
Se isto é verdade, em nome de todos os orphãos, de todas as viuvas,
de todas as esposas abandonadas, n'esta cruel guerra, eu beijo as
mãos d'essa senhora em cujas veias ainda corre sangue brazileiro ;
e ainda mesmo que os esforços empregados para a paz sejam bal-
-- 413 -

dados, e amanhã tenhamos de nos encontrar no campo de batalha


eu beijaria as mãos d'essa senhora que não dansará depois das he-
catombes fratricidas ,, ………………..

A demora de noticias do Rio de Janeiro, a approximação do


termo do armisticio, os boatos que correm de que a paz será somen-
te garantia de vida e propriedade, o que é lei hoje em todos os
paizes onde não existem escravizados ; as ameaças constantes e os
insultos que nos dirigem os jornaes castilhistas, a organisação das
forças legalistas, fazem nos crer que o Sr. Galvão não encontrará
por parte do centro apoio para a pacificação .
Se não ha por parte dos patriotas do Sr. Castilhos direito de
vida nem para os prisioneiros nem para os feridos que tantas e tão
dolorosas represalias tem produzido , ao menos que haja entre nós e
a força de linha um convenio, ainda que seja inpartibus para res-
peitarmos mutuamente os prisioneiros e feridos.
O sargento que eu fizera prisioneiro e a quem dei liberdade,
pedindo -lhe, porem, que não se apresentasse porque isso privar- me-
ia de interceder por outros , apresentou- se no Livramento, e todos
que vem do exercito me trazem recado de Apparicio pedindo
noticias d'elle, portanto será difficil poupar-se a vida dos prisionei-
ros desde que na primeira occasião, para não perderem o soldo , elles
fogem e voltam com o inimigo contra nós, contando horrores de nós
a elles, do mesmo modo que nos contam quando prisioneiros os hor-
rores, as infamias e os crimes que viram praticar pela legalidade.
Escrevi uma carta ao Dr. Vicente Duarte, convidando - o a
ver se podemos estabelecer um accordo para que, ao menos entre
nós e a tropa de linha, se estabeleça a garantia dos feridos e prisio-
neiros. Nessa carta digo-lhe que talvez não seja isso difficil porque
o coronel Telles, commandante da guarnição de Bagé, um dos mais
respeitados chefes militares, é contra esse uso implantado pela gente
do Sr. Castilhos que obrigou os revolucionarios ás represalias.
Vicente respondeu- me que acredita que a paz se fará e envi
ou-me a ordem do dia do coronel Telles, externando os maiores de-
sejos pela pacificação , e que em todo caso, se assim não for, ha-
verá tempo para se tratar d'isso.

*
**

A' noite chegou ao meu acampamento o general Tavares . Vi-


nha acompanhado de Sylvio Pellico , Lecoque e Burlamaque . Seguem
para Bagé onde deve o general Galvão vir conferenciar com o general
Tavares. No outro dia fui eu tambem para Bagé, mas chegando ali
414

soube que a conferencia teria logar em Pelotas e eu dispunha- me


a voltar ao meu acampamento quando um commerciante de Pelotas dis-
se- me que não seguiria no outro dia para ali, porque tinha noticia
de que os castilhistas pretendiam fazer voar o trém em que fosse
o velho general Tavares.
Um horror seria, mas horror que depois havia de ser sanccio-
nado e applaudido como foram todos os horrores praticados pela le-
galidade.
Em vista disso , dessas noticias, eu entendi que ficar em Bagé
ou voltar para o acampamento seria dar provas de cobardia. Eis
porque sem pensar e sem querer, achei-me em Pelotas, na pacifica-
caçao.
Acceitei- a , tomei parte nas festas , fallei todos as vezes que
se reclamou que eu fallasse, porque entendi que ao ponto que che-
gamos nas negociações, exigir a retirada do Sr. Castilhos era collo-
cal- o em condição de poder ter direito a ser revoltoso, porque o
Sr. Castilhos julga-se muito legitimamente auctorisado a governar o
Rio Grande .
Não me encontrei com o general Galvão senão nas festas pu-
blicas. Sei, porem, a luta que elle travou com o Sr. Bernardo Vas-
ques e o Sr. Castilhos para não deixar crucificar o Rio Grande, e se
não fôra elle, em relação a paz, o Sr. Prudente de Moraes teria
concluido a lavagem de suas mãos, como Pi'atos, porque já tinha
começado essa lavagem.
Se a historia, em sua justiça, der ao Sr. Galvão tudo quanto elle
merece pelo seu grandioso acto, a humanidade deve registrar em
suas paginas de beneficencia o nome de sua digna Esposa, D. Ama-
lia Galvão de Queiroz, que, nas horas de desanimo, quasi de deses-
pero do esposo em ver como os interessados procuravam desfazer
sua obra, confortava-o, animava-o para chegar ao fim. Que a mu-
lher brazileira siga o exemplo d'essa nobre Senhora, e pode ser
que se ponha um paradeiro a esse acervo de horrores que nos vai
anniquillando.

Em Pelotas, busquei logo a Livraria Americana afim de pro-


videnciar sobre a publicação destas notas.
Entrar n'aquella casa de trabalho, quando se tem nas retinas
a imagem da destruição que viu- se por toda parte, é animador. A
Livraria Americana não explora o operario em proveito do capital,
educa o homem em proveito d'elle. Assim é que ali trabalha
porção de meninas, na arte leve da composição typographica ; são
escreventes , revisoras, moças que se tornam gentilissimas por essa
athmosphera de honestidade que o trabalho voluntario imprime nas
- 415

physionomias e no espirito. E todas ellas vivem no trabalho, guiadas


por uma respeitavel senhora, creio que, parenta dos proprietarios.
São essas mãos de creanças que vão fazer circular a narra-
tiva dos meus gritos de angustia, dos horrores que presenciei, do
que soffri, das lagrimas que derramei ! Accordem elles o sentimento.
do bem no paiz , como essas creanças accordam o sentimento e o amor
ao trabalho.

Bagé 8 de Setembro de 1895.


Ha um anno , eu caminhava a pé descalço, faminto, pelos ser-
tões do alto Paraná na Republica Argentina . O meu soffrimento
não me abatia a alma. Por mais que o corpo soffresse a esperança
animava o espirito . A esperança ! ...
Ella conserva- se em nós como o calor na terra , como o fogo
na materia, onde basta o attrito para condensal o , e tornar se luz .
Ai ! mas quando a esperança é suffocada pelo indifferentismo de
muitos e a perversidade crescente dos poucos , que se julgam fortes
porque para elles os indifferentes são cobardes, a esperança morre,
como morrem as plantas que o gelo intenso do inverno matou as raizes .
E' o adagio popular que diz que mal de muitos é consolo .
Não ! Os que soffrem não encontram lenitivo no soffrimento
alheio. Ha porem alguma cousa n'isso que não consola , mas ensina
á resignação .
E' a comparação do soffrimento proprio com o soffrimento dos
outros . E'um mal para o homem lastimar -se, comparando sua sorte
iniqua com a sorte dos felizes. O espirito irrita -se contra si mes-
mo , crimina -se por não ter seguido aquelle caminho , esquecendo - se
que, muitas vezes, a folicidade d'aquelles, felicidade publica , ostento-
sa, teve como capital a venda da honra , e qualquer que seja a
mascara que a physionomia ostente, lá dentro, no espirito , ha um
cilicio que punge, mas punge tão fortemente que nem mesmo a ou-
sadia, o impudor podem libertal- o do guante de ferro dos que, in-
fames tambem, serviram de mercenarios para dar- lhes aquella felicidade.
Só devemos procurar comparar a nossa sorte à dos infelizes .
Olhemos para baixo .
Quantos dos que foram nossos companheiros, dos que tinham
a vida cheia de esperanças, que já julgavam realidade, por ahi an
dam n'um lutar constante com a miseria para não venderem a hon-
ra ? Quantos dos nossos companheiros poupados pelas balas nos
innumeros combates que travamos, sem se afastarem do ponto onde
o fogo era mais mortifero, por um acaso, foram agarrados pelos ami-

gos do Sr. Julio de Castilhos e degolla los ao som de gargalhadas
nas margens do Uruguay ?
A PAZ
22

27
A PAZ

Estará ella feita, esta paz tão desejada pela Nação que via
correr o sangue de seus filhos sem que podesse dizer aos que a
reduziram ao papel de mãe desolada, que fizessem cessar taes hor-
rores ? Esta paz tão desejada por todos os espiritos sãos em qual-
quer ponto do universo onde chegava a noticia dessa nevrose sui
generis que apoderou-se dos dominadores do Brazil quando só a ra-
zão devia ser arbitro entre os contendores ? Estará feita esta paz
tão necessaria á vida e conservação da nacionalidade ?
O acto do general Galvão não será sómente um armisticio por
tempo mais ou menos limitado ?
As leis que serviram de instrumento de oppressão foram abo-
lidas ou modificadas ? Esse direito de viver por si, livre , sem peias
aos seus actos sociaes, sonho de todo homem que sente e que com-
prehende o que sente, que o aspira sob o nome de liberdade, será
garantido, será mesmo tolerado ?
Essa devastação que arruinou a fortuna de innumeros homens.
então abastados, ricos hontem, pobres hoje, de qualquer das par-
cialidades , porque os ricos adversarios não exigiam à guerra, não
fizeram parte dos corpos provizorios porque não queriam enriquecer
por esse meio, não precisavam dos fornecimentos nem das commissões ,
foram indennizados ? Foram ou serão punidos esses que exigiam
a vida de seus irmãos para não reclamarem no futuro os bens que
devastaram, que espoliaram ou para poderem, a coberto da
fiscalização, apossarem-se dos dinheiros que a nação inteira forne-
cia, ou pagará, dados como por magnanimidade de amante decrepito
a jovens concubinas que chamam belleza a hediondez d'elles,
aos gargantuas de sangue e ouro, desde as republicas do Prata
até nas regiões do Mississipe ?
E esses pobres , esses valentes abnegados , o que tiveram ?
A paga d'elles será somente o sacrificio, o arriscar a vida sem des-
420

canço, a morte a todo momento, o luto e o desespero das familias,


a loucura, o abandono, a prostituição das filhas, das irmãs, cuja pu-
reza e virgindade perfuma vam-lhes as choças como as singellas flo-
res da acacia perfumam as campinas ?
Pobres Suas cabanas foram destruidas. O resultado min-
goado do grande esforço no trabalho desappareceu. Os que lhe da-
vam um pedaço de terra onde erguessem uma choça, morreram ou
empobreceram. Sem lar, dispersa a familia, elles serão nomadas, in-
differentes á vida, promptos á luta que amanhã se lhes provoque.
O que fizeram para elles ? Deram-lhes um pedaço de terra
que elles desposassem com o trabalho, que elles amassem por ser
sua ?
Não ! os milhões não chegam para as representações e para pa-
garem a abnegação dos adeptos.
A fortuna rapida de muitos , os meios por que foi adqui-
rida cessando, os que não tiveram tempo de fazol-a julgam-se es-
poliados e esperam que de novo a magnanimidade de Tiberio lhes
faça conseguir o que esperavam.
Persistem portanto todas as causas e esse armisticio não será
mais do que cessação dos effeitos momentaneamente. Suspendam o
morticinio, dizem de longe ; esperem um pouco , dizem de perto. Isto
é nosso ; adquirimol- o pela força ; se nos tentarem retomar preferi-
remos destruir.
O sonho hoje de todos os brazileiros, ou quasi todos , depois que
o ser rico já não é cousa rara, é fazer fortuna. Os que enriqueceram
quasi sem outro esforço senão o de ser amigo de quem podia dis-
tribuir as graças, ahi vivem felizes, honestamente, bons pagadores ,
e de sua fortuna, ou do que lhe deu a fortuna, o paiz não teve
senão o prejuizo emquanto a communhão soffre miserias, vexames,
apprebensões pelas menores necessidades.
Lembrou-se alguem de que o capital ou o protectorado do
governo intervindo, animando, protegendo todas as industrias em
que o resultado pratico beneficiasse em certo prazo a nação , désse
o bem estar aos que n'ella trabalhassem, compensasse o esforço
e a intelligencia de cada qual ? Não ! Nada d'isso se fez . Divi-
diu-se a nação em ricos e pobres ; seria difficil distrair capital ou
crear meios de fazer amar a terra e a vida pelo trabalho , não
trepidou -se, porem, em sacrificar o producto do trabalho commum , em
dezenas de annos futuros, para comprar instrumentos de destruição
e entregal -os a um individuo que d'elles fizesse o uso que lhe
conviesse. Eis ahi como os governos sabem adormecer no que con-
siste o bem commum, como sabem ser activos, salvadores dos inte-
resses proprios , quando é preciso destruir.
E foi n'estas condicções que a republica viu esgottar-se a cau-
dal de sympathias com que foi recebida principalmente por ter nas-
- 421

cido sem derramamento de sangue. As adhesões, a impotencia dos


que deveriam lutar, denominada indifferentismo ou abandono, a
bestialisação mesma , tornaram-se uma virtude por serem o desappa-
recimento dos horrores de uma guerra civil.
Mas essa bestialisação, esse indifferentismo, essa adhesão , em
muitos actos de amor á nacionalidade, foram tidos como fraqueza ,
como venalidade , e então os que se encarregaram de fazel-a pro-
gredir porque ha muito sonhavam com o seu nascimento , tornavam .
se saltimbancos . Deformaram - a para nunca sonhar em sahir das
mãos d'elles ; é um monstro, quem a quererá assim ? Os monstros
são perversos . Eis em que transformaram o bello ideal dos povos
as dezenas de Fouchés , que não saberemos se amanhã não quererão
outra cousa .
Fouché foi convencional, dos fogosos exigentes da decapitação
de Luiz XVI; ministro de Napoleão foi o que elle achou capaz de
assumir o governo na sua abdicação depois da derrota de Water-
loo. Fouché foi quem negociou com o vencedor da França a voltat
de Luiz XVIII, de quem continuou como ministro. Foi Fouché
portanto quem mandou fuzilar Ney no pateo de uma prisão .........

Eis terminada esta pallida narrativa do que vi, do que soffri ,


do que pensei, do que me contaram, durante esta triste e desoladora
peregrinação pro Patria.
Não sei se as dores que senti , se os desconfortos que me
acabrunhavam, eram mais pungentes, no campo de acção, no ter-
reno onde os factos se consummavam, do que o que sinto hoje re-
lendo esses escriptos, que recordam -me de que o Brazil, a nossa cara
Patria que parecia-me ter sido feita de um sopro de bondade e
um feixe de luz de bom senso, no fim do seculo XIX se tivesse
rebolcado no lodo mais infecto das epocas barbaras. Pensei mais de
uma vez calar ante tanta desolação ; mas seria sanccionar todos
esses horrores que nos acabrunham, seria aguçar as vontades pouco
satisfeitas a continuarem na faina cruel, sem a punição moral, ten-
do por galardão ainda os lucros materiaes.
Talvez tivesse sido excessivo no julgamento de alguns factos.
Colloquem- se, os que julguei, nas minhas condições, vejam os
factos atravez do prisma da dor moral porque eu via, das dores
materiaes que eu sentia, e verão que seriam muito mais duros do
que eu.
Talvez não fosse litteralmente exacto nos factos que narroi ,
por se me ter narrado , mas os que presenciei são a expressão da ver-
dade, e por elles devo julgar verdadeiros todos os que se me con-
taram.
422

Narrar as miserias de um povo não é rebaixal-o. O que o


rebaixa é a pratica d'essas miserias. Que aquelles que se entrega-
ram como instrumentos obedientes para o morticinio ou a baixeza
de seus irmãos calculem, quando, na calma, na razão, poderem cal-
cular, como foi ingloria a luta de exterminio que nos offereceram , a
nós que só clamavamos pelo direito que se concede aos proprios
animaes que não são destinados aos misteres da vida, ás necessi-
dades dos outros. Que os que nos mandavam matar julgando que
a nossa extincção lhes poderia trazer uma perenne fonte de eter-
nos gozos, comprehendam que não é na morte que se pode encon-
trar o bem . A morte como fim, é natural, é um termo ; a morte
como meio é um crime, é o começo de uma expiação .
E para punir esse crime, para obrigar os criminosos a expi-
al- os, os homens de brio affrontam os perigos e a morte ; suffocam
affeições e sonhos suaves da vida, e apresentam- se como paladinos
para o triumpho material ou como martyres para o triumpho moral .
E quando depois de todos os soffrimentos, depois de todas as
angustias consultam a alma - ella só tem uma resposta : Segue.
Soffre. Morre. Cumpre o teu dever de homem livre.

A'quelles que a fatalidade collocou como instrumentos dos.


despotas, áquelles que a convicção oppoz a nós julgando ser nobre-
za matar a quem clama pelo direito, áquelles que derramaram o
sangue precioso no campo da luta, ou que expunham a vida como
nós , eu só tenho a dizer :
Irmãos, o mesmo. sol nos aclarou as retinas ao respirarmos as
primeiras ondas dos ares patrios.
O destino vos fez nossos inimigos .
Fostes crueis ; tivestes a crueldade de Caim, mas soffrestes
A como nós. Como nós derramastes sangue, como nós passastes mise-
rias, como nós abandonastes os lares e as affeições ; como nos ti-
vestes o luto, a desolação , as lagrimas, os soluços, e desgraçada-
mente tivestes sede de vingança. A differença, porem, é que nós
lutavamos por um direito e vós por uma ordem, nòs lutavamos pela
vida , vós pelo bem estar de outros, nós lutavamos para sermos di-
gnos e vós para nos escravisardes, escravisando -vos.
O soffrimento porem faz desapparecer essas differenças, pela
segunda vez tornamo- nos irmãos .
Emquanto nos matavamos , e os que, de longe, contavam quan-
to lucravam com a vossa obediencia, havia alguem maior do que
elles, mais digno de que nós, que perdia :
Era nossa Patria.
* Nesse sulco profundo que o noss sang
o ue cavou no seu solo
sagrado onde branqueam os ossos dos nossos mortos , onde cahem as
lagrimas dos orphãos, das mães, das viuvas, onde o luto será pavilhão
423

eterno da dor, apertemos as mãos como irmãos na origem, como ir-


mãos no soffrimento. Mas se tudo isso não bastar para vos accordar
o sentimento ; se cegos instrumentos amanhã voltardes a nos querer
escravizar de novo, lembrai-vos que de novo seremos obrigados a
vos matar, e se formos nós que tivermos de morrer, a ultima luz
que se fixar em nossas retinas será a luz do futuro, a luz da liber-
dade da Patria e n'ella vossas figuras apparecerão negras , como as
dos sicarios que matam para serem pagos.

Aos meus companheiros de soffrimentus, aos voluntarios do


martyrio...
Repousae, se é possivel repousar ; se toda nossa peregrina-
ção apresentando- se hora por hora , instante por instante em nos-
sa mente, como um luminoso panorama de soffrimentos e de altivez ,
não vos perseguir, quer despertos, quer dormindo . Esses soffrimen-
tos, essas lutas, esses actos gloriosos , formam para nós o firmamen-
to da Patria onde nossos mortos brilham, como constellações .
Se nosso soffrer , a nossa coragem , ante as cohortes da tyran-
nia insensivel, não foram bastantes para fazel - a temer por si, jà que
se esquecem da Patria, fixae o nosso Céu e vereis duas figuras le-
gendarias , tão grandes que só a imaginação pode medil-as. dando-
lhes os
nomes de Gomercindo Saraiva e Saldanha da Gama que
suspendem , sobre nossas cabeças, uma faixa que vai do Capricornio
ao Equador, labaro sagrado dos lutadores , onde o anjo da Patria'
escreveu com o sangue dos heroes a eterna legenda dos povos :

LIBERTAS QUÆ SERA TAMEN

Bagé 10 de Setembro de 1895 .


NOTAS

Este livro impresso em Pelotas, residindo eu em Bagé onde


recebia as provas para revizar, deveria conter muitos erros , mas
graças à intelligencia e cuidadosa solicitude do pessoal da Livraria,
poucos existem, e somente aos que podem causar alteração do sen .
tido farei correcção . Não é este livro dedicado á busca de um nome
litterario ou a titulos de publicista para seu auctor, è um registro
de saudades, tristezas, odio, indignações, apprehensões e meditações ,
por isso resente-se de deffeitos que as pessoas alheias aos aconteci-
mentos criminarão, outras acharão ridiculos , outras inconvenientes ,
mas todos os que soffreram, soffrem e soffrerão, hão de compre-
hendel-o.
Talvez tivesse incorrido em falta, dando-lhe a redacção em
que vai, mas foi assim que elle foi escripto em horas e dias diver-
sos e por isso parece resentir- se de repetições, porque repetiam - se
sempre os motivos.
Não modifiquei a redacção porque seria modificar todo elle,
dando- lhe outro caracter e perdendo portauto o unico merecimento.
Nunca pensei em publical- o, como nunca pensei em tornar a ver
os meus ; animava- me porem, a esperança de que mesmo os que me
matassem, dessem publicidade, cedo ou tarde a algumas paginas e
assim justificariam me diante dos que, na sua dor, me chamassem de
ingrato.
Escripto a lapis muitas vezes, contem algumas passagens accu-
muladas, assim por exemplo quando se diz que uma creança de 18
annos gabava-se de já ter morto dùzentos rio-grandenses, deve- se ler
que sendo dirigidos pelo filho do morto que se gabava de ja ter
morto duzentos e tantos, como um outro que não attinge a 18 an-
nos, gaba-se na campanha do numero de mortes que tem feito.
pag. 55 .
Pag. 8. onde se lê o Dr. Cabral, leia-se o Sr. Cabral.
Pag 29 Onde se lê atar, leia- se matar.
28
- 426 -

Pag . 30 Onde se lê Christo desappareceria, leia- se Christo te


perdoaria o assassinato .
Na pag. 32 onde se lê Pianella, leia- se Pianelli . Era um va-
lente e digno rapaz ; intelligente, leal e honesto, filho de um antigo
companheiro de Garibaldi . Fez toda a campanha sem descanço. Foi
degollado nas margens do Uruguay onde com muitos outros foi feito
prisioneiro.
Pag. 49 onde le- se o Sr. Alfredo leia- se, o dr. Alfredo. Era
medico da esquadrilha .
Pag. 56 onde se lê : Gomercindo na sua internacionalidade
leia- se internação .
Pag. 64. onde se lê : so se ouve unisona - Brazil -- leia- se
em todos ouve-se o nome do Brazil.
Pag. 73. onde le-se simarrita, leia-se smarrita. Este verso foi
escripto n'um quadrante de um templo na Italia.
Pag. 105 Exercito permanente. Foi sempre meu modo de pensar
sobre o exercito que sua permanecia prejudica nem só ao soldado que
passando n'elle um longo prazo de tempo inutiliza-se para outros
misteres, como a familia a que elle pertence e á terra em que vive .
Penso que entre nós, que temos terras devolutas para onde chama-
mcs com grandes dispendios europeus que vem n'essas terras vir-
gens seguir o mesmo genero de agricultura das terras estafadas da
Europa , será muito mais conveniente as colonias militares com or-
ganização mixta , mas em logares onde o producto do trabalho
seja procurado. Isto para obrigar os que não se queiram dedicar ao
trabalho. No mais, cada brazileiro deve ser soldado, nunca menos de
séis mezes nunca mais de um anno, tempo sufficiente para aprender o
manejo das armas. Para isso se destacariam os officiaes existentes
para todos os termos ou municipios tendo portanto todos os habi-
tantes desses municipios uma escola dos rudimentos militares sem
se ausentarem, ficando portanto promptos para prestarem serviços
á patria n'uma emergencia sem se prejudicarem a vida toda, à es-
pera d'essa emergencia que raramente apparece. Nesses exercicios mu-
nicipaes os officiaes instructores se encarregariam de observar os mo-
ços que tivessem verdadeira vocação militar para serem aproveita-
dos para as escholas, e somente estes poderiam ser officiaes, portan-
to vitalicios.
Pag. 107 onde se lê : obedecer a um plano elevado, leia- se
obedece.
Pag. 117. falei ao Dr. Hanibal etc. etc.
Em vista do rebaixamento de postos dos que se apresentavam
ás forças do governo provizoria, começou a lavrar o descontenta-
mento entre os nossos . Telegraphei ao ministro que convinha que
eu fosse nomeado honorario do seu exercito para se poder regula-
rizar o serviço .
427 ---

Utilizei-me deste meio para não dizer que já começava o re-


paro, e contando que desde que elles me vissem tendo no exercito
provizorio o mesmo posto que tinha entre elles não se julgariam
mais olhados com desmerecimento.
Esta nomeação não se deu, talvez por espirito politico e foi
bom para mim, porque então teria de prestar obediencia e estar
pela vontade d'elles.
Pag. 127. onde se lê : sabia do Rio de Janeiro, leia- se sahio .
Pag. 128. onde se lê e por dar as arvores leia-se e podar
as arvores .
Pag. 144. Onde se lê Parnayba, leia- se Parahyba .
Pag, 148. Argollo, o que foi depois marechal e Visconde de
Itaparica, uma vez na Bahia em um tumulto no Theatro, o B. de
Cotegipe, então prezidente ordenou - o que carregasse sobre o povo
amotinado . Elle mandou sua força descançar armas, e respondeu
que aquelle era serviço da policia porque o soldado de exercito bra-
zileiro só tinha por missão deffender a Patria contra o estrangeiro .
Pag. 150. onde se lê com seus irmãos que escravizam, leia- se
aos quaes escravizam .
Pag. 165. onde se lê : passou subindo leia- se sibilando , onde
se lê innumeros, leia-se muitos, onde se lê : ouvi conversar, leia- se con-
versas, me faziam leia - se me fariam .
Pag. 179. onde se lê de 93 a 95. leia- se a 94 .
Pag. 180 onde se lê : tinhamos o Deodoro etc. etc. leia-se te-
mos, formavam formam, recebia : recebe.
Onde se lê outros em lingua polaca, Doria, leia- se em lingua
polaca, Doria, ...
Pag. 186. onde se lê : nos confrangindo no litoral leia-se, nos
confrangindo a buscar o litoral.
Pag. 188. Aterrorizam as familias. Entendi-me com o coronel
Cezario sobre isto e elle disse- me que não tinha auctorizado taes
buscas, que apenas mandava prender aos que tinha denuncia que
tramavam respondi-lhe que era preciso muito criterio para saber se
essas denuncias não eram por odio pessoal ou interesse e que se
lembrasse do que soffremos no Rio Grande.
Ja tinha conversado a respeito com o coronel Ribas que era
da minha opinião .
Graças a esta minha intervenção , cessaram as buscas.
Pag. 199. Eu fugi de Bagé, porque amigos serios e circums-
pectos me obrigaram a isso porque sabiam que no outro dia eu
seria morto por ter censurado o procedimento do Sr. Castilhos man-
dando forças que vinham assassinando e roubando, depois da de-
posição de armas em Bagè.
Pag. 199. onde se lê : onde, com a retaguarda livre leia- se ,
com um flanco livre.
- 428

Pag. 20 ' . Onde se lê José Gomes da Trindade leia- se da Cruz.


E um chefe prestimoso de Paranaguá . Doentio e soffredor foi dos
que estiveram para serem mortos, se a esquadra nossa não tomasse
a Cidade. Era o principal dos prizioneiros que se pedia licença para
fuzilar e o magnanimo marechal respondia : Fuzile depois de con-
selho de guerra. Esse methodo foi depois modificado era somente
mate tudo.... e depois quando se perguntou se houveram fuzila-
mentos, respondeu- se simplesmente não. E realmente ninguem foi fuzi-
- lado . Degollar , mutilar em vida não é fuzilar. Mentiria quem tal dissesse.
Pag. 202. Alguns erros de grammatica ou orthographia não
corrigiremos. Fica isso ao cuidado de quem ler , se é capaz de cor-
figir corrigirá, senão, não os encontrará como por exemplo o que
está n'essa pagina : eu é quem ...
Pag. 219 onde se lê : Só d'esta leia- se , sò a esta.
Pag. 224. onde se lê - pensa-se d'ella fazer parte leia- se,
deseja- se.
Conversando com um outro official que se achara nas forças do
general Arthur Oscar, no Tubarão, disse- me elle que as condições
d'elles ali eram tão precarias que no outro dia, depois da nossa
tentativa, retiraram-se com toques simulados . Por exemplo o toque de
carnear queria dizer apromptar, o toque de rancho queria dizer-
marchar. Nós não ouvimos esses toques porque já estavamos na
Laguna con receio de sermos cercados ali.
Pag. 227. Tiros de canhão .... Conversando depois da paz com
um official que achava-se nas forças do general Arthur Oscar , disse-
me que realmente eram tiros de canhão os que ouvimos. O genera!
man lára um piquete em observação a ver se nos descobria , e man-
dou dar tiros de canhão para espantar os bugres (textual).
Pag. 230 Esse soldado Almeida Lima que ja era sub-official
no nosso exercito morreu como heroe na batalha do Passo Fundo a 27
de Junho.
Pag. 244. onde se lê ora soldados, ora em grupos, leia- se,
ora isolados , ora em grupos.
Pag. 245. onde se lê, guayubeira, leia- se guayabeira.
Onde se lê de quem se envolvendo , leia-se , se envolve.
Pag. 258 onde se lê : Altinoble leia-se : Altenoff. Foi o chefe
que depois tomou a villa da Estrella nas margens do Taquary. Que
fez canhões com pedaço de postes telegraphicos, e que depois viu um
punhado de valentes companheiros , feitos prisioneiros, todos degollados.
Pag. 274. onde se lê : elles me mataram accrescente-se a
phrase. Tiraram a sorte grande - que tambem foi pronunciada
por Gomercindo, na occasião.
Pag. 277. Coronel Ignacio Cortes. E' triste e desoladora para
a nação o inolo porque dizem que foi morto este valente revolucio-
nario pelas forças legaes. Se uma syndicancia exacta, feita por ho-
429

mens estranhos a esta luta não aclarar certos factos, que em sua
generalidade são veridicos, e tirar assim ao exercito brazileiro a
responsabilidade dos actos dos patriotas do Sr. Castilhos, em pouco
o romance, a comedia, a tragedia aproveitarão esses horrores e o
exercito brazileiro já não terá meios para se libertar dos apodos'
porque os que podem servir de testemunhas já não existirão.
Conta-se que Cortes fora ferido em renhido combate e que com o
filho, o valente menino capitão Cortes, e um capitão ajudante , noivo
de sua filha occultara-se na casa de um parente. Ameaçaram que
arrazariam a casa onde elle se occultava se não o entregassem, e
que nada lhe fariam se o entregassem. Em vista disso o parente
entregou- os. Foram separados, o filho do pae. O commandante da
força convidou o filho a fazer parte das forças sob seu commando ,
este negou-se. Deixaram-o preso muitos dias sem comer. No fim de alguns
dias trouxeram -lhe costellas assadas que elle comeu com voracidade.
De que são estas costellas, perguntaram. De carneiro
respondeu o rapaz. Venha ver o carneiro... e mostraram-lhe o
cadaver do pae do qual tinham tirado as costellas. Perto estava o
cadaver do que havia de ser seu cunhado. O rapazinho enfurecido
apoderou-se de uma espada e sozinho enfrentou a todos os que o
cercavam até cahir aos golpes que lhe desferiam. 99
Aqui em Santa Tecla fui visitar uma senhora que tinha na
revolução um filho commigo e ella narrou-me que lá foram para
degollal-a. Não o fizeram, mas passaram-lhe a facca pela garganta
muitas vezes, como quem ia praticar o acto promettido. A pobre
senhora via tudo azul e amarello. Afinal viu-os se irem em garga-
lhadas. Desde então enfermou- se. E' uma cardiaca que em pouco
deixará de existir.
Pag. 287 No Carovi segundo me informaram entre os papeis
tomados havia um ordem do dia do Sr. Santos Filho que fora nosso
prisioneiro, promettendo punir severamente a qualquer dos seus que
fizesse um prisioneiro.
Pag. 294. O official encarregado de dirigir o serviço da dynamite
nos diversos pontos da picada foi o Dr. Fabio Azambuja que o de-
sempenhou cabalmente com os maiores riscos de vida.
Pag. 295. Quem prestou serviços aos feridos na descida do
Uruguay, foi o coronel José Gomes que eu ali deixara com elles.
Pag. 304. onde se lê : sua companheira de folguedos www.com mos-
tra sempre, - leia-se, mestra sempre.
Meu avô materno Joaquim de Sant'Anna Galvão, filho do
senhor do engenho Santa Cruz, em Pernambuco, hoje em Alagoas,
foi chefe revolucionario ali, d'onde fugiu com seu primo Guedes,
bisavô do Dr. Flavio Araujo, hoje deputado federal . Conquistaram
a Pedra Branca onde ficou o Guedes e elle seguiu para o sertão
onde se cazou com minha avó. Em pequeno meu avô paterno quando
-― 430 -

queria me ver irritado chamava-me de pernambucano revolucionario


por causa de meu cabello levantado na testa signal caracteristico
de meu avô.
Pag. 315. onde se lê : Pedro II leia- se Pedro I.
Pag. 316. onde se lê entre a cidade de Pouzadas leia-se , em
frente .
Pag. 322. Dr. Rodrigues ou Fernandes é a mesma pessoa.
Pag. 330. Onde se lê : a luta foi coroada de esforços leia- se,
e seus esforços foram coroados na luta.
Esse francez meu companheiro de viagem encontrando - me na
rua em Buenos Ayres, • levou- me a almoçar no melhor restaurant,
terminando por brindar- me com champagne, ante todos os figurões
que me olhavam talvez julgando- me algum arabe da Algeria.
Pag. 343. onde se lê Não poderemos leia - se, não perderemos
Pag. 344. Onde se lê continente ; - leia- se, continente.
Pag. 348. Quando invadimos, eu não tinha noticia da creação
da Cruz vermelha no Rio de Janeiro . Vim a saber disso no Ace-
gua, onde li alguns jornaes do Rio em casa do Dr. Tertuliano Ma-
chado. Havia deixado para serem recebidos por minha mulher perto
de dois mil pezos de honorarios medicos em Melo , com que contava
para subsistencia d'ella, bem como de Bagé, onde havia deixado
contas da mesma natureza , no valor de mais de onze contos de reis .
Minha auzencia foi motivo para, que nada se recebesse. Nas con-
dicções em que estavamos , faltos de recursos e elementos para a
revolução , a minha dezerção do exercito seria seguida por outros .
Tive portanto de lançar mão do ultimo recurso. Dirigi uma carta
ao Dr. Hilario de Govea, pedindo-lhe para mandar abonar a minha
familia os meios de subsistencia pela Cruz vermelha, e que apenas
voltasse de novo a minha vida normal pagaria a quantia despen-
dida a fim de ser pela associação applicada no que entendesse : Fiz
isto, porque ainda mesmo que eu não fosse medico, mas estando na
guerra e a familia soffrendo era dever da Cruz vermelha soccorrel- a,
e porque sendo politico, um dos que mais pregara a necessidade
da revolução como meio de destruir ou fazer moderar - se a tyrannia
que começavam a implantar no Brazil, não podia pertencer a Cruz
vermelha, comquanto todos os feridos fossem eguaes para mim como
provei . Depois da batalha do Serro do Ouro, onde eu ja era tenente
coronel por serviços revelantes, chegou ao exercito o Dr. Nabuco.
de Araujo dizendo-me que meu nome estava entre o dos medicos
da Cruz vermelha, e levava- me algum dinheiro para dar aos meus
enfermeiros . Declarei-lhe que não podia ser medico da Cruz verme-
lha, e não me encarreguei de dar aos meus enfermeiros tal dinheiro .
O meu amigo e compadre Boaventura Ignacio da Silva, a quem
tinha en operado, e depois de me pagar convidou-me para ser pa-
drinho de sua filhinha Florisbella, o que se realizou em Melo , sa-
431 --

bendo do estado dos meus, mandou buscal- os para sua Estancia onde
estiveram tres mezes. Serviu-lhe então o dinheiro da Cruz vermelha,
que acabava de lhe chegar ás mãos. Não me referiria a isso, senão
para deixar aqui escripto o nome do meu generoso amigo Boaventura
Silva para quem contrahi uma divida que nunca se acabará de pagar.
A cruz vermelha, durante sete mezes mandou cincoenta libras
mensaes á minha familia. Eu estive em campanha dois annos, tive
prejuizos maiores com a minha ida do que o que recebeu- se, em di-
nheiro. Deixei de ganhar talvez uma fortuna porque marchei para
a campanha justamente quando depois de curativos e operações
importantes em Melo meu nome começou a ser espalhado cercado
de grande fama.
Não posso ser portanto considerado medico da cruz vermelha,
tendo como tal ido para a guerra . Isto não implica censura a ninguem,
apenas justifica- me.
Pag. 354. O capitão Baptista tinha no dedo um annel com
um magnifico brilhante. O companheiro que o tirou do cadaver
engeitou por elle, creio que 500$.
Na pacificação , quando o corone! Telles foi receber nossas
armas em D. Pedrito o possuidor do annel, sabendo que a familia
desejava-o, entregou- o ao coronel Telles para lhe ser entregue . Esse
maragato estava tão pobre que o coronel Telles deu-lhe dez mil
reis para comprar alguma couza.
Pag. 365. O coronel Sampaio diz ter morto o que lhe feriu. Nos
só perdemos ali o Alferes Cyriaco portanto o que os dois compa-
nheiros de Cyriaco mataram julgando ter sido o matador de Cyriaco,
foi um outro.
Pag. 364 Cunhatay.
Vi depois de longe esse serro. Representa perfeitamente uma
mulher no decubito dorsal, e o pico de Cunhatahy um seio intumescido .
Pag. 374. bahiano... esta denominação é dada na campanha a
todo nortista , e tambem a todos que não sabem montar a cavallo ;
aos corpos de infantaria.
Muito teriam de se admirar os gaúchos se fossem aos sertões
do norte e ali vissem como os bahianos da Bahia, de Pernambuco ,
Ceará, Piauhy, Goyaz etc etc sabem montar e domar os potros.
Pag. 375. Nesse encontro, o Dr Nabuco de Araujo que viera
como medicò da Cruz vermelha, mas que apezar de extincta esta
quiz continuar a prestar seus serviços , foi ferido .
Pag. 380. Onde se lê degrada pela senda leia- se , degrede .
Pag 389 Onde se lê : dão a vida ao homem substitua-se o
ponto por virgula ; onde se lê : compradores a venderem-se aos com-
pradores, leia-se aos comprados.
Pag. 395. Onde se lê : crepusculo nocturnal mude - se o ponto
em ponto e virgula.
- 482 -

Pag. 396. Um telegramma do Sr Julio de Castilhos annunciou


a minha morte por se ter achado alguns instrumentos cirurgicos.
Minha familia vestiu lucto durante dois mezes por mim. Esse homem
não se satisfaz somente com os proveitos pela destruição de su
terra nem com as reliquias que lhe mandam depois da mutilação
cadaveres. Elle tem prazer em levar ao seio das familias ja
soffredoras o meio de fazel-as soffrer mais. A de Thimotheo Paim
soffreu o mesmo que a minha pela mentira d'elle.
Pag. 397. Onde se lê : que beijava, leia-se me beijava.
Pag 404. D. Malvina Brawn esposa do Dr. Carlos Brawn
filha do general Barros Falcão.
Pag. 407 No dia 1º. de Janeiro depois da paz dirigi ao Sr.
coronel Carlos Telles um cartão em que dizia que desejava que
fosse elle assistidor de muitas entradas de annos para honra do
exercito brazileiro e gloria da Patria nos dias cruentos que esperam.
Esse cartão demonstra que não acho o exercito meu inimigo, e se
assim fosse, não teria estas pharses para o que julgo digno de en-
comios como militar. O Sr coronel Telles poderá dizer que nunca
busquei sua casa . O coronel Carlos Telles como seu extincto irmão
general João Telles se mostraram sempre rigorosos em relação aos
patriotas ferozes , e tiveram de a muitos d'elles arrancar os galões,
a outros de expulsar do exercito ou do corpo por não poder fisca-
lizal-as em marcha onde elles commettiam crimes que recahiam
sobre o exercito . Foi por isso que o general Telles teve de ser desti-
tuido do commando do exercito no Rio Grande para ir morrer n'um
posto que não lhe competia, e se o mesmo não aconteceu ao coronel
Carlos Telles foi porque com os factos que succediam- se elles não
tinham um substituto para elle mas o odio não cança e por isso
viemos ter as scenas deprimentes para o exercito no conflicto Flores
Telles hypocritamente preparado .
O commandante do 2º. regimento de cavallaria na sua ordem
do dia depois da paz diz que seu regimento orgulhava- se de nun-
ca ter degollado prisioneiros. Seria uma insinuação para seus outros
companheiros de armas fazerem o mesmo, e tirarem do exercito esta
mancha eterna que the lançaram os patriotas do Sr Castilhos e 08
militares que obedeciam-lhe ? Talvez .
Pag 412 Esse mesmo General Savaget que substituiu ao
General Galvão, quando o General Tavares escreveu-lhe pedindo o
cumprimento das promessas da paz. porque estavam sendo assassi-
nados os ex-revolucionarios, respondeu e publicou immediatamente a
resposta, que nada podia contra os Jacques estripadores.
Em muitos logares a pontuação acha-se deslocada, e mesmo
alterada. Onde se quiz escrever, - virgula, está ----- ponto. Onde
se quiz escrever -- ponto, está virgula, etc. , etc, cuja correcção
confiamos ao leitor.
Do mesmo autor a entrar no prelo
A FILHA DE JUDAS

Lenda Arabe
Adaptada á politica brazileira

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