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Artigo - Educação para o Processo de Individuação

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Glenda Beigler

EDUCAÇÃO PARA O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO

Contribuições da Psicologia Analítica

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA
SÃO PAULO – 2012
2

Glenda Beigler

EDUCAÇÃO PARA O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO

Contribuições da Psicologia Analítica

Trabalho de conclusão de curso como exigência


parcial para a graduação no curso de Psicologia,
sob orientação da Profª Rosa Maria Farah

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA
SÃO PAULO – 2012
3

RESUMO
Tendo em vista as recentes críticas ao modelo positivista - ainda predominante
nos diversos campos das ciências - por adotarem como paradigmas fundamentais a
razão e a lógica como bases para a construção do conhecimento, vemos surgir no
contexto atual propostas de novos modelos para a Educação. A importância deste
movimento se destaca na medida em que se observa a falência da educação
convencional no mundo moderno, em que os alunos saem da escola muitas vezes sem
ter desenvolvido o interesse pelo aprendizado e pela cultura, e sim uma grande
separação entre sujeito e objeto, teoria e prática, escola e o universo profissional. As
consequências dessas dicotomias são muitas e aparecem não só no desinteresse de
alunos e professores pela escola, como também na patologização do fracasso escolar,
nas neuroses de massa, no vertiginoso crescimento da tecnologia e destruição da
natureza, no predomínio da técnica homogenizadora sobre a individualidade criativa.

Sobre esses assuntos nos fala a Psicologia Analítica de C. G. Jung. Por muitos
anos a Psicologia Analítica foi identificada quase que exclusivamente como um método
de trabalho clínico, porém cada vez mais se amplia o reconhecimento do seu amplo
campo de abrangência e a aplicação da sua visão de homem e de mundo podem nos
fornecer importantes elementos para fundamentar uma reflexão sobre os modelos
educacionais vigentes. Esta pesquisa tem como objetivo um aprofundamento na obra
de Jung e seus seguidores no que diz respeito a este assunto. Espera-se que os
elementos encontrados nesta busca nos permitam repensar os moldes tradicionais da
Educação, e verificar como seria possível uma escola que favoreça o processo de
individuação.

Palavras chave: Educação, Psicologia Analítica, Individuação


4

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 5

MÉTODO................................................................................................................................................11

PROCEDIMENTO ....................................................................................................................................12

CAPÍTULO 1 - A EVOLUÇÃO DAS PRÁTICAS EDUCACIONAIS ....................................................................13

As Teorias Educacionais .....................................................................................................................14

Teorias Psicológicas aplicadas na Educação ........................................................................................18

CAPÍTULO 2 – INDIVIDUAÇÃO: UMA VISÃO SOBRE O DESENVOLVIMENTO HUMANO .............................20

CAPÍTULO 3 – PSICOLOGIA ANALÍTICA E EDUCAÇÃO ..............................................................................25

ENTREVISTA COM CÉLINE LORTHOIS ......................................................................................................30

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................................42

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................................................46
5

INTRODUÇÃO

O século XIX foi marcado por um intenso crescimento das ciências naturais
positivistas, que tinham como objetivo a busca da verdade dos fenômenos. Surge deste
paradigma a noção de que para se estudar os fenômenos, deve-se separar, ao máximo
possível, o sujeito que observa do objeto que é observado, a fim de que o primeiro não
exerça influência sobre o segundo. Dessa forma, qualquer observador obteria os
mesmos resultados em relação aos mesmos objetos, confirmando a hipótese de que o
que determina a essência de cada ser é ele mesmo.

Crescia a idéia de que é apenas por meio do pensamento, do raciocínio lógico e


da representação que se chega à referida noção de verdade. As percepções e
sensações humanas enganariam o estudioso, distanciando-o da “verdade”. O que se
observa neste contexto é uma supervalorização da racionalidade e do isolamento em
detrimento da vivência propriamente dita e sentida, da relação que emerge do contato
entre dois seres. Uma supervalorização da técnica e da homogeneidade em detrimento
da subjetividade e da individualidade.

No final do século XX começam a surgir as críticas ao modelo de construção de


conhecimento vigente. Elas são muitas e, em sua maioria, trazem a idéia de que o
conhecimento não é real, completo, quando se deixa de lado as características do
fenômeno que não podem ser explicadas apenas racionalmente. Ressurge a idéia de
que existem fatores inerentes aos fenômenos que não podem ser controlados pelo
pensamento calculante e que, mesmo assim, merecem ser objeto de estudo. Nesse
caso, o método de estudo é que deve ser modificado.

O pensamento de Carl Gustav Jung pode ser entendido sob esta ótica. Segundo
Von Franz (1975/1992), a noção de inconsciente proposta pela Psicologia Analítica
marca o fim do racionalismo científico do século XIX. Para Jung, o inconsciente é uma
instância psíquica espontânea e criativa, que constitui a fonte da consciência. Esta, por
sua vez, é sinônimo de conhecimento. Ou seja, o inconsciente é a fonte do
conhecimento, e a consciência é a forma ou a via pela qual ele pode se manifestar. Na
construção de sua teoria Psicológica, Jung defende uma síntese entre estes dois
modos de produção de conhecimento: o pautado pela razão consciente, e o pautado
pela não-razão, isto é, pela emoção. “As idéias de Jung, entretanto, foram duramente
6

criticadas e combatidas pela comunidade científica até meados do século XX.”


(PENNA, 2004, p.6). Só mais tarde a consciência da sociedade estaria preparada para
compreender o caráter de suas afirmações.

O método de tratamento proposto por Jung tinha como modelo e diretriz o


postulado sobre a polaridade dos fenômenos da natureza. Ele afirma que todos os
elementos do mundo estão em oposição. Para cada um deles, existe um oposto dotado
de mesma carga energética. Segundo ele,

Tudo o que é humano é relativo, porque repousa numa oposição


interior de contrários, constituindo um fenômeno energético. A energia,
porém, é produzida necessariamente a partir de uma oposição que lhe é
anterior e sem a qual simplesmente não pode haver energia. (JUNG,
1978, p. 67).

Seguindo este raciocínio, se considerarmos a razão como um dos pólos, a


emoção será o outro. Relacionam-se com o pólo da razão: extroversão, controle,
causalidade, abstração, tecnologia consciência. Em relação ao pólo oposto, temos:
introversão, misticismo, intuição, sensibilidade, criatividade, natureza, inconsciente.

Jung defende que qualquer unilateralidade pode ser perigosa. Ao se enfatizar


em excesso um único pólo, negligencia-se o outro com a mesma intensidade, o que
resulta, na maioria das vezes, no que ele chama de “enantiodromia”, isto é, em uma
mudança radical no movimento da energia psíquica, em uma reviravolta brusca e
agressiva.

E quanto mais forte for a tensão entre os opostos tanto maior será
a quantidade de energia daí resultante, e quanto maior for esta energia,
tanto mais intensa será a força de atração consteladora. A uma atração
mais forte corresponde uma amplidão maior do material constelado, e
quanto mais extensa for essa amplidão, tanto mais reduzida se torna a
possibilidade de distúrbios posteriores que não podem originar-se de
diferenças relativas ao material não constelado precedentemente.
(JUNG, C. G., 1985, p25).

Se um dos pólos é muito mais evocado que o outro, será mais desenvolvido e
elaborado pela consciência, enquanto o outro se tornará, proporcionalmente, cada vez
mais primitivo e subdesenvolvido. Vivemos em uma sociedade pragmática cujas
instituições (família, trabalho, escola) evocam sempre o pólo da consciência racional e
7

extrovertida. A subjetividade e as emoções permanecem, portanto, sempre no


inconsciente. Para se adaptar aos meios coletivos, os sujeitos não podem exteriorizá-
las, pois elas são, frequentemente, vistas como fraqueza, falta de profissionalismo, e
até falta de contato com a realidade:

Projetou-se no subjetivo o erro (ou seja, a incompatibilidade com


a verdade) com tal intensidade que qualquer indício de subjetividade foi
considerado um contaminador da verdade científica (...). Projetaram-se
ainda sobre o subjetivo, características essenciais deste, todas as
qualidades negativas da subjetividade, tais como inconsistência,
preconceito, leviandade, irresponsabilidade, incapacidade,
desonestidade, manipulação, falsidade dramaticidade histriônica e
outras tantas velhacarias. (BYINGTON, 2003, p.65).

A consequência dessa polarização é que em situações que exigem do sujeito


uma resposta intuitiva, criativa ou emocional, o que se observa é sua grande
dificuldade de transitar neste terreno. Esses recursos permanecem primitivos, não
elaborados. Ficamos cada vez mais distantes de nossas motivações internas, cada vez
mais alienados de nós mesmos. Ao mesmo tempo, estamos ficando também mais
alienados uns dos outros. Segundo Edward C. Whitmont,

Na nossa época, este racionalismo extrovertido chegou a tal


extremo que já se comentou que ‘não apenas o mundo ocidental, mas a
humanidade como um todo corre o risco de perder sua alma para as
coisas externas da vida’. (...) Alguns dos resultados desta ênfase
unilateral são as neuroses de massa que encontramos atualmente, com
o perigo sempre presente de erupções explosivas. Os vícios do álcool,
dos narcóticos, e das ‘drogas para expansão da mente’ também
expressam uma busca de experiências emocionais que se perderam no
decorrer de nossa extrema intelectualização. Mas não é apenas o vicio
do álcool e das drogas; o ‘vicio do trabalho’, a ‘doença do gerente’, a
necessidade compulsiva de sempre se ter algo para fazer a fim de
parecer ocupado também indicam a incapacidade do homem de
encontrar sentido na vida. (WHITMONT, 2002).

Pode-se dizer, portanto, que muitos dos problemas contemporâneos derivam


desta tendência unilateral do ocidente, que valoriza excessivamente a razão lógica e
renega as informações que provêm dos órgãos do sentido por exemplo.
8

Cabe, portanto, o questionamento sobre como são constituídos os indivíduos


nestas sociedades. Jung diz que a criança nasce imersa no inconsciente e, ao longo de
sua vida, vai estruturando um ego e uma consciência pessoal. Este processo tem início
no contato da criança com o mundo, ou seja, sua família e, depois, em seu contato com
as outras instituições sociais. Segundo Jung,

Nessa luta pela independência a escola desempenha papel muito


importante por ser o primeiro ambiente que a criança encontra fora da
família. (JUNG C.G., 2002, p. 49).

(...) emerge a consciência a partir do inconsciente, como uma


nova ilha aflora sobre a superfície do mar. Pela educação e formação
das crianças procuramos auxiliar esse processo. A escola é apenas um
meio que procura apoiar de modo apropriado o processo de formação
da consciência. (JUNG C.G., 2002, p.46)

Daysi Camargo (2007) afirma que os modelos atuais de ensino seguem o


padrão da sociedade ao privilegiar a função pensamento em detrimento das outras
(sentimento, intuição e sensação). Como em grande parte das instituições sociais, na
escola, se a criança tiver a função pensamento como superior,

(...) a civilização como um todo virá em seu auxílio e a convidará


a especializar esta função (...) Se, ao contrário, sua função pensamento
é inferior, duas possibilidades se desenharão: a) a criança, para
competir no seu meio, ver-se-á obrigada a desenvolver precocemente
sua função inferior. Sofrerá uma distorção e vivenciará uma ferida, às
vezes incurável; adaptar-se-á à custa de seu prazer de existir; e b) a
criança será precocemente expulsa das instituições sociais, em
particular das educacionais que costumam ser impiedosas com crianças
que tem como funções principais o sentimento e, sobretudo, a intuição.
São os inadaptados, os que não conseguem vivenciar (sic) o princípio
de realidade, os marginais da cultura. (MARONI apud, CAMARGO,
2007, p. 124-125).

Sobre este assunto também nos fala Nise da Silveira (2000), em “Jung: Vida e
Obra”:

Num de seus últimos livros – PRESENTE E FUTURO – publicado


em 1957, e denominado por muitos ‘o testamento de Jung’, ele
9

denuncia com veemência a ação estranguladora das influencias


coletivas sobre o indivíduo, provenientes seja da educação, do estado
ou de credos religiosos. O futuro da humanidade, na sua opinião,
dependerá do número de homens que logrem evoluir plenamente, isto
é, individuar-se. (SILVEIRA, 2000, p.156).

Em diversos níveis e contextos, vemos as escolas formando indivíduos que não


são capazes de olhar para si mesmos e nem para os outros. Em última instância, pode-
se dizer, indivíduos quase que sem os recursos necessários para o exercício da
alteridade, da cidadania, da aceitação do diferente. E o objetivo das instituições
educacionais não seria justamente o oposto?

Além da alienação dos jovens de si mesmos e da relação com os outros, na


educação moderna vemos que o caráter polarizado de supervalorização da
racionalidade tem outras consequências. O esquecimento dos conteúdos do saber
exclusivamente racional não é a única limitação a que estamos submetidos. Perdemos
também no sentido da

(...) separação entre sujeito e objeto, o excesso de verbalização


sem a vivência correspondente, a alienação entre o ensino e o trabalho
e a coletividade e o desinteresse crescente pelo aprendizado e pela
cultura. (BYINGTON, 2003, p.16).

Com as criticas ao modelo de produção de conhecimento que começaram a


surgir no final do século XX, novos modelos de escola foram propostos. É uma
questão, além de psicológica, também política, econômica e social. Todas estas
instâncias foram marcadas por profundas transformações neste período, e a educação
não ficou fora disto. Caminhamos desde o surgimento da Escola Nova 1 até a
elaboração de diversas correntes pedagógicas com a crescente importância da
Psicologia para o desenvolvimento das atividades educativas. (COTRIM, 1987). Cotrim
destaca, nesta tendência psicológica da educação, três correntes: A Escola Nova, a
Psicologia Genética de Piaget, e as pedagogias não-diretivas.

1
Movimento que teve início no Brasil por volta de 1920 e que, através do Manifesto da Escola Nova
(1932) ganhou força em prol de um sistema educacional que acompanhasse as mudanças que o país
sofria na época de sua industrialização. Foi uma tentativa dos intelectuais da época de tornar a
educação mais acessível, pública, laica e aberta.
10

Neste contexto e influenciado por estas novas correntes, Carlos Amadeu Botelho
Byington (2003) criou a teoria do Construtivismo Simbólico. Tendo como base o
pensamento arquetípico junguiano e influenciado pelas teorias de Freud, Melanie Klein,
Heidegger, Piaget, Neumann e Teilhard de Chardin, Byington criou a Pedagogia
Simbóliga Junguiana. Seu objetivo é resgatar a vivência emocional e prazerosa no
ensino para aprofundar o aprendizado e dificultar seu esquecimento. Ele diz:

Acho que a ausência de estudos sobre a avaliação do


aproveitamento prático do ensino é uma defesa, uma resistência
emocional para evitarmos constatar a falência da pedagogia puramente
racional e um gigantesco desperdício de tempo e de recursos.
(BYINGTON, 2003, p. 18).

Apesar de ter sido influenciado por todos estes pensadores, Byington denomina
sua teoria como junguiana, pois o seu aspecto central considera a dimensão simbólica
teorizada por Jung.

O presente estudo tem como objetivo propor uma reflexão sobre a aplicabilidade
das propostas da Psicologia Analítica, tal como elaborada por Jung e por alguns
autores pós – junguianos, ao campo da educação. Será elaborado, em um primeiro
momento, um estudo sobre as contribuições destes autores no que diz respeito a este
assunto. Em um segundo momento, procuraremos ilustrar a viabilidade da aplicação
dessas propostas por meio do relato de uma experiência já em andamento.
Entrevistaremos um educador que diga utilizar fundamentos junguianos em sua
atuação em busca de um exemplo de como é possível uma educação em que o
pensamento não seja excessivamente valorizado e que haja espaço para o
aparecimento das outras funções da consciência como produto do inconsciente.
11

OBJETIVO

Este estudo tem como objetivo realizar uma reflexão sobre a aplicabilidade
concreta das propostas da Psicologia Analítica, tal como elaborada por Jung e por
alguns autores pós – junguianos, ao campo da educação.

MÉTODO

Durante muito tempo, a Psicologia de Jung foi entendida como sinônimo de


psicoterapia - portanto uma abordagem aplicada à clínica - e desenvolveu-se
predominantemente na direção da formação de analistas. A aplicação da Psicologia
Analítica em outras áreas – como a Educação - é recente, mas muito discutida
atualmente. Eloisa Penna (2004), ao discutir o método de pesquisa em Psicologia
Analítica, nos revela:

Quando se fala de método junguiano, geralmente, entende-se


método psicoterapêutico. Jung, no entanto, além de exímio
psicoterapeuta foi, antes, um grande pensador, que construiu uma
teoria psicológica inédita, tanto em termos ontológicos quanto
epistemológicos e metodológicos, o que nos permite falar de um novo
paradigma científico. (PENNA, 2004, p.2).

Este novo paradigma se diferencia dos paradigmas vigentes até então


principalmente no sentido em que deixa de privilegiar as funções do pensamento e da
sensação e o ponto de vista extrovertido e inclui a subjetividade nas pesquisas
científicas. Ainda de acordo com Penna (2004),

Byington (informação verbal) considera a psicanálise de Freud


uma mensagem condizente com a mentalidade ocidental do século XX
e, a psicologia de Jung, uma proposta a ser compreendida no século
XXI; Tarnas (2001) situa Jung dentre os formadores da mentalidade
pós-moderna. A Psicologia Analítica transcendeu o âmbito da
psicoterapia e tem sido aplicada em outras áreas do conhecimento, tais
como pedagogia, sociologia e história comparada das religiões, entre
outras. (PENNA, 2004, p. 7).
12

O presente trabalho não tem a imodesta intenção de acabar com a separação


sujeito-objeto que vivemos atualmente, porém pretende colaborar com a apresentação
de uma nova perspectiva para o debate social sobre este tema. Sejamos parte do
processo de integração destes opostos e façamos peso no movimento que é cada vez
maior de desalienação do homem de si mesmo.

Para alcançar o objetivo a que se propõe este estudo foi feita uma pesquisa
teórica desenvolvida nos moldes qualitativos de pesquisa, cuja principal característica é
propor um olhar interpretativo e compreensivo do fenômeno estudado.

PROCEDIMENTO

Inicialmente, foi feito um levantamento bibliográfico sobre a história da


Educação, construindo um breve panorama que vai desde as primeiras teorias
educacionais até o que se entende por Educação hoje. Depois de contextualizar o
tema, apresentamos a visão da Psicologia Analítica sobre a infância e o
desenvolvimento humano, já que é neste âmbito que a escola básica, alvo desta
pesquisa, atua. Em seguida, coletamos material na obra de Jung e de alguns de seus
seguidores, tais como Carlos Amadeu Botelho Byinton, Erich Neumann e Nise da
Silveira, para investigar o que eles dizem sobre como a Psicologia Analítica pode
contribuir para a atuação dos profissionais da área da Educação.

Foi realizada também uma entrevista com a pedagoga e pós-graduanda em


Psicologia da Educação Céline Lorthois, que contou sobre suas experiências no
atendimento individual de crianças e em um espaço grupal educativo. O objetivo dessa
entrevista é ilustrar esta pesquisa por meio de um exemplo atual da aplicação das
ideias junguianas, já em andamento em nosso meio.
13

CAPÍTULO 1 - A EVOLUÇÃO DAS PRÁTICAS EDUCACIONAIS

Para melhor compreendermos a evolução das práticas educacionais, é


importante fazer a distinção entre o que é Educação e o que é Pedagogia. A diferença
entre uma e outra é que a Educação diz respeito à realização de educadores em sua
atividade cotidiana - sejam eles pais, professores, ou qualquer um que exerça esta
função. “Pode ser entendida como o processo pelo qual o homem, através de sua
capacidade para aprender, adquire experiências que atuam sobre a sua mente e o seu
físico” (COTRIM, 1979). A pedagogia, por sua vez, se refere às teorias ligadas à
Educação. O termo Pedagogia é derivado do grego pais (criança) e ago (conduzir),
significa conduzir crianças (SRECK, 2008).

Paulo Freire, por outro lado, no conjunto de sua obra apresenta uma visão
peculiar sobre esta distinção, tensionando dialeticamente ação e reflexão, e
considerando a Pedagogia como algo no âmbito desta tensão:

É desvelando o que fazemos desta ou daquela forma, à luz de


conhecimento que a ciência e a filosofia oferecem hoje, que nos
corrigimos e nos aperfeiçoamos. É a isso que chamo pensar a prática e
é pensando a prática que aprendo a pensar e a praticar melhor.
(FREIRE, 1993, p.103 e 104).

O que não se pode negar é que a finalidade da Educação, bem como a


construção de teorias pedagógicas, evoluiu ao longo do tempo, acompanhando a
história e as necessidades das sociedades em que estavam inseridas. É importante
perceber que a Educação é um processo político, ou seja, está ligada à vida social e
coletiva. Ela se organiza como ideologia nas teorias pedagógicas, como um conjunto
de idéias que são formadas a partir do concreto – das relações sociais. A relação entre
o momento histórico e a Educação é clara e para que se possa adentrar o seu mundo é
fundamental que se conheça sua história. Isto é, como as práticas pedagógicas se
transformaram ao longo do tempo e como, no momento atual, se contextualizam.

Para compreender este fenômeno, podemos começar distinguindo três conceitos


básicos que atravessam a ideologia da Pedagogia: Educação, infância e escola. Sobre
o primeiro já falamos um pouco, mas vale acrescentar que envolve um processo
14

cultural derivado de interesses sociais, como veremos a seguir. Em relação à infância,


cabe destacar que o atravessamento no âmbito pedagógico vem do imaginário social
que vigora em relação a ela e que também se alterou ao longo da história. Segundo
Maria Ruth Aranha Vieira (1998),

A diferenciação entre crianças e adultos pode ser feita segundo


variados critérios. Do ponto de vista biológico, são as mudanças da
puberdade que definem a entrada no mundo adulto com a capacidade
de procriar. Do ponto de vista epistemológico e moral, é a razão que
diferencia, sendo as crianças desprovidas do raciocínio e do
conhecimento dos adultos. De uma perspectiva econômica, a diferença
está entre provedores e consumidores, principalmente para as classes
médias da população, que definem as crianças como dependentes e
desprovidas. (VIEIRA, 1998, P.27).

A escola, por sua vez, diz respeito à instituição onde se concretiza o direito à
Educação. Este conceito também carrega aspectos do imaginário social, derivados da
idéia de natureza humana vigente em cada época. Podemos distinguir a escola, a partir
da Idade Moderna, em dois momentos fundamentais: a Escola Tradicional e a Escola
Nova. A primeira pode ser definida como aquela em que a idéia de natureza humana
está ligada à concepção cristã de que a criança tem uma origem corrompida, visto que
é fruto do pecado original, e que a tarefa da escola é desenraizar o seu mal,
ensinando-a a se autocontrolar através da disciplina. A Escola Nova, por sua vez, está
ligada a outra perspectiva relativa à natureza humana, ou seja, a de que a criança
nasce pura, mas corre o risco de ser corrompida. Neste caso, a tarefa da escola passa
a ser a de uma fortaleza, que protege a criança contra o mal do mundo que pode
corrompê-la. Vejamos como esses conceitos e ideologias permearam a história da
Educação em diferentes épocas.

As Teorias Educacionais

As primeiras teorias educacionais surgiram na Grécia de Sócrates, Platão e


Aristóteles. Sócrates tinha como lema de sua filosofia a frase que estava inscrita no
templo do deus Apolo: “Conhece-te a ti mesmo”. A orientação que dava a seus
discípulos era a de que através do auto-conhecimento eles compreenderiam os
princípios de todo o Universo. Como professor, Sócrates procurava estimular em seus
15

alunos o desabrochar de suas virtudes que, segundo ele, já estariam presentes em sua
natureza. Essas idéias, como veremos nos próximos capítulos, se relacionam
diretamente com a teoria de Jung. Quanto a Platão e Aristóteles, pode-se dizer que
suas maiores contribuições para a pedagogia derivam das suas concepções de
natureza humana, cuja essência é a racionalidade. Esta visão marcou profundamente a
tradição ocidental, sobretudo a partir da idade moderna (COTRIM, 1979).

Posteriormente, na Idade Média, não se encontram teorias pedagógicas. A única


finalidade da educação, nesta época, era a orientação religiosa. Deus era considerado
o centro de toda ação pedagógica, a educação cristã voltava-se apenas para as
questões religiosas e destinava-se a um reduzido número de pessoas. A razão era
utilizada para provar a existência de Deus, sendo, portanto, harmonizada com a fé.

A partir dos séculos XIV e XV iniciou-se a chamada Renascença (no campo das
artes) ou Humanismo (no campo pedagógico, filosófico e literário). As escolas
religiosas continuaram se multiplicando pela Europa e suas colônias e, apesar das
criticas a autoridade dogmatizada medieval, ainda mantinha um modelo hierarquizado
e elitista. Aqui, a concepção vigente ainda era essencialista, segundo a qual a
educação teria por objetivo desenvolver as potencialidades do ser humano, mas já
começam também a surgir tanto a percepção de problemas existenciais quanto as
críticas aos dogmas tradicionais.

Com a ascensão da burguesia na Idade Moderna, a escola nova começa a


plantar suas raízes. As criticas do Renascimento aos dogmas religiosos culminam, na
Modernidade, em um crescente antropocentrismo, que reconhece a capacidade da
razão humana de discernir, distinguir e comparar – em oposição ao critério da fé e da
revelação. Filósofos como Descartes, Bacon, Locke e Hume colocaram em discussão
os procedimentos da razão na investigação da verdade. A técnica, no âmbito cientifico,
passou a ser valorizada e o método experimental privilegiado. A ciência deixou de ser
contemplativa e passou a ser aplicada. A ênfase no método atingiu o terreno da
Educação e as ideias racionalistas e empiristas influenciam a pedagogia até hoje.

Se na Modernidade observamos a ascensão da burguesia, no Iluminismo


observamos a ascensão das revoluções da burguesia. O chamado Século das Luzes
foi caracterizado por uma grande fermentação intelectual, por um crescente liberalismo
não só econômico como também politico e educacional. Com a crise das monarquias
16

que se fundavam no direito divino dos reis, não fazia mais sentido atrelar a educação à
religião e nem aos interesses de uma classe. Um dos aspectos marcantes do
Iluminismo é ter sido um período muito rico em reflexões pedagógicas.

Entre as tendências fundamentais que surgiram neste período, destacaremos as


proposições de Rousseau que, como veremos a seguir, influenciaram as mais diversas
correntes, principalmente as tendências não-diretivas do século XX. Até então, os fins
da educação encontravam-se na formação do individuo para Deus ou para a vida em
sociedade. Rousseau faz uma revolução ao trazer a ideia de que ele seja educado para
si mesmo. Ele centralizou os interesses pedagógicos no aluno não mais no professor,
defendendo uma educação afastada do artificialismo das convenções sociais, a fim de
que o indivíduo seja dono de si mesmo. Propôs uma educação natural, que recusa o
intelectualismo. Ou seja, a pessoa não se reduz à dimensão intelectual, como se a
natureza pudesse ser apenas razão e reflexão. Os sentidos, emoções, instintos e
sentimentos são, para ele, anteriores ao pensar elaborado e mais dignos de confiança
do que os pensamentos impostos pela sociedade. Desse modo, valoriza a experiência,
a educação ativa voltada para a vida, para a ação, cujo principal motor é a curiosidade
e o desenvolvimento interno e natural. “Deste modo, a pedagogia rousseauniana foi a
primeira tentativa radical e apaixonada de oposição fundamental à pedagogia da
essência e de criação de perspectivas para uma pedagogia da existência” (Suchodolski
apud Aranha, 2006).

Com o avanço do capitalismo no século XIX, forte expectativa foi criada em


relação à educação, pois a complexidade do trabalho exigia mão de obra mais
qualificada. O projeto de universalização do ensino começou a se concretizar com a
intervenção cada vez maior do Estado para estabelecer escola elementar universal,
gratuita, laica e obrigatória. Foi também o momento de surgimento das correntes
positivistas na Filosofia que culminaram em teorias Psicológicas que serviram de base
a muitas teorias pedagógicas no século XX. Ainda no XIX, a preocupação com o
método de ensino, baseado na compreensão da natureza infantil, justificava a vontade
de aplicar a Psicologia à Educação. Foi o século da valorização das ciências, do
progresso, da técnica.

A partir da revolução burguesa que teve maior repercussão mundial - a


Revolução Francesa (1789) - iniciou-se a chamada época contemporânea e a
construção das democracias atuais:
17

(...) o século do avanço das ciências e da tecnologia, em que o


progresso e o conforto se expressam pelo refinamento da racionalidade
técnica. Ao mesmo tempo, uma racionalidade que despreza os valores
vitais, quando deixa prevalecer o interesse econômico e a visão
estritamente utilitarista e consumista. (ARANHA, 2006, p.240).

O individualismo que se consolidava desde o Iluminismo foi definitivamente


instalado pelo século XX, juntamente com a autonomia dos indivíduos de pensar e agir.
Todo esse processo se deu através da luta por direitos à liberdade e também pela
igualdade. Foi um século marcado por conflitos, contradições, e também pela produção
de massas através de ideologias, regulamentações, ampliações dos meios de
comunicação. Neste contexto tão complexo, era de se esperar uma maior e mais
rigorosa reflexão sobre o funcionamento dos sistemas que regem a sociedade, entre
eles o educacional. Observamos o surgimento de muitas mudanças neste âmbito, com
o surgimento de experiências educacionais e teorias pedagógicas. Cada vez mais o
caráter político da educação fica evidente, principalmente pelo papel da escola na
sociedade de transmissão da cultura e de valores de cidadania. Pode-se chamar a
educação contemporânea de educação para a democracia. Surge a necessidade de
uma escola que se adéque a este mundo em constante transformação.

Deste movimento - e em oposição à escola tradicional - nasceu a chamada


Escola Nova. Seu objetivo era ser mais realista, visando a formação global dos alunos
e de sua autonomia crítica. Para tanto, precisava ser menos rígida que a escola
tradicional e preconizar métodos ativos de ensino. A filosofia que embasa este
movimento é aquela que diz respeito à natureza humana. Agora não se acredita mais
na criança que nasce corrompida, e sim na que é corruptível. Ou seja, a criança nasce
pura e precisa viver em liberdade, se comunicar com outras crianças, e a escola é a
instituição que a protegerá contra o mal do mundo. Surge a concepção crítica, mas
permanece a noção de natureza humana, o que leva os educadores a quererem saber
com qual criança estão lidando. Acabam por querer encaixá-las em fases de
desenvolvimento que são esperadas para determinada idade e o comportamento que
não corresponde a tal etapa é considerado errado ou patológico. Pode-se dizer,
portanto, que o escolanovismo é uma teoria crítico-reprodutivista, ou seja, não
representa de fato uma ruptura em relação aos moldes tradicionais. De qualquer forma,
não há dúvidas de que a Escola Nova contribuiu para o enriquecimento e discussão
dos métodos pedagógicos.
18

Com este maior rigor nas reflexões educacionais, a Psicologia foi ganhando
importância e sendo cada vez mais inserida neste contexto. Vejamos algumas das
teorias psicológicas que foram utilizadas na Educação e em que momento nos
encontramos atualmente.

Teorias Psicológicas aplicadas na Educação

Nossa intenção aqui não será esgotar a descrição proposta, mas apenas ilustrar
o panorama das correlações entre as correntes psicológicas e a Educação.

O positivismo que surgiu no século XIX continua presente em teorias


psicológicas como o Behaviorismo, que confia no conhecimento científico e privilegia
os procedimentos que levam em conta o comportamento externo, observável e capaz
de ser submetido a controle e experimentação. Na educação, esse procedimento
envolve as técnicas de condicionamento dos alunos através de reforçamentos positivos
e negativos a fim de que adquiram conhecimentos e competências para se adaptar ao
meio social em que vivem.

Em contraposição à filosofia positivista, temos a filosofia fenomenológica, que


propõe a “humanização” da ciência, estabelecendo uma nova relação entre sujeito-
objeto, considerando-os como pólos inseparáveis. Nesta corrente destaca-se o
pedagogo Carl Rogers, responsável pela tendência “centrada no aluno”, que privilegia
o método não diretivo, em que a interferência do professor é reduzida ao mínimO. A
marca fenomenológica na pedagogia contemporânea encontra-se na concepção de
que cada pessoa é única e estabelece sua subjetividade criando uma essência própria
e uma rede de significados em sua relação com o mundo.

Sobre o desenvolvimento infantil, temos as teorias construtivistas de Jean Piaget


e Lev Vigotsky, ambos interacionistas das concepções filosóficas tradicionais e escola
novistas. Piaget propõe que o processo dinâmico da inteligência e da afetividade supõe
uma estrutura concebida como totalidade em equilíbrio. O desenvolvimento da criança
se daria em estágios, e as mudanças mais significativas se dariam na passagem de um
estágio a outro, à medida que a influência do meio altera o equilíbrio da totalidade. Os
estágios representam o desenvolvimento da inteligência (lógica), da afetividade e da
consciência moral.
19

Vigotsky estudou as operações superiores da inteligência humana, tais como o


pensamento abstrato, a atenção voluntária, a memorização ativa e as ações
intencionais. Analisou os fenômenos da linguagem e do pensamento, buscando
compreendê-los dentro do processo sócio-histórico como “internalização das atividades
socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas”. Enfatizou a importância da
interferência do outro (mãe, professor, etc.) para a aprendizagem dos signos
socialmente elaborados.

Em relação às teorias psicodinâmicas (principalmente a Psicanálise e a


Psicologia Analítica), a influência que exercem sobre a Educação se dá de maneira tão
abrangente quanto sobre a cultura de forma geral. A noção de inconsciente teve
repercussões tão grandes sobre a cultura que é natural que se refletisse também na
Educação, principalmente como uma ruptura na influência Iluminista que determinou
que o intelecto tivesse primazia em relação aos aspectos emocionais. É uma nova
maneira de ser pensar o ser humano, tanto professor quanto aluno e as relações entre
eles.

Finalmente podemos mencionar a Psicologia Analítica, cujas proposições serão


o tema central deste trabalho. Refletiremos, nos próximos capítulos, sobre como as
idéias de Carl Gustav Jung podem se relacionar com processos educacionais.
Veremos a relevância de suas idéias para a época em que vivemos e também como,
atualmente, vêm influenciando a prática de educadores.
20

CAPÍTULO 2 – INDIVIDUAÇÃO: UMA VISÃO SOBRE O DESENVOLVIMENTO


HUMANO

Depois de traçado um breve panorama sobre a história da Educação e suas


correlações com o campo da Psicologia, podemos começar a adentrar o campo da
Psicologia Analítica. Vejamos suas especificidades no que diz respeito à formação da
personalidade e ao desenvolvimento infantis.

Jung afirma que “O inconsciente é a mãe criadora da consciência. A partir do


inconsciente é que se desenvolve a consciência durante a infância (...)” (JUNG, 1986,
pgh 207). Portanto, ele entende que a consciência é fruto de uma atividade criativa do
inconsciente, rompendo com a noção da Psicanálise que propõe justamente o
contrário, ou seja, que o inconsciente é formado a partir de conteúdos reprimidos pela
consciência.

Conforme sabemos, Jung centralizou seu estudo sobre o desenvolvimento da


personalidade na segunda metade da vida, ao qual denominou processo de
individuação:

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que


por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais íntima,
última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso
próprio si - mesmo. Podemos pois traduzir individuação como ‘tornar-se
si - mesmo’ (Verselbstung) ou ‘o realizar-se do si - mesmo
(Selbstverwirklichung). (JUNG, 2008, pgh 266).

Cabe ressaltar que o processo de individuação inclui não só a integração do ser


humano consigo mesmo como também com o coletivo humano. O processo de
ampliação de consciência através da integração de aspectos do inconsciente e do
mundo permite que o homem se torne um ser integrado consigo mesmo e também com
a comunidade humana.

Apesar de ter postulado que a consciência e o ego derivam do inconsciente,


Jung se ateve ao estudo do desenvolvimento da personalidade a partir da segunda
metade da vida. Assim, para compreendermos a primeira etapa deste processo, será
necessário recorrer a alguns de seus seguidores, que se dedicaram à observação e
descrição desse processo.
21

Neumann (1968, 1970), um dos pioneiros do estudo da formação arquetípica do


Ego, descreve a fase inicial do desenvolvimento infantil com ênfase na relação da
criança com a mãe. Em “A Criança” (Neumann, 1970), ele propõe que o bebê, durante
o primeiro ano após o nascimento, ainda preserva o estado não delimitado da situação
embrionária uterina. Psicologicamente, permanece indiferenciado da mãe, em uma
relação unitária com ela, na qual ainda não experimenta seu próprio corpo como seu.
Não há limite entre eu-outro, ou entre sujeito-objeto. Neumann denomina o estado
inicial pré-ego de urobórico para caracterizar a unidade sem opostos dessa realidade
psíquica.

Ainda segundo Neumann, a relação do bebê com a mãe é denominada “relação


primal”, e ela é o fundamento de todo o desenvolvimento humano. É a base de todas
as outras relações que a criança desenvolverá, tanto consigo mesma como com os
outros. A figura da mãe - representando uma Grande Mãe arquetípica - que
proporciona não só prazer, mas também compensação, segurança e proteção é
fundamental para o desenvolvimento do ego. Todas as funções ativas e passivas do
corpo estão envolvidas nessa situação de proteção, característica da relação primal, e
submetidas à supervisão benevolente da mãe, que as aprova.

A mãe é a representação do mundo para a criança e media, portanto, sua


entrada na sociedade humana. A criança também vai sendo moldada
inconscientemente pela cultura humana, e a atitude do coletivo em relação a ela é
determinante para seu desenvolvimento.

(...) Já na fase pré-natal existe uma evidente adaptação à


coletividade, relacionada com a atitude que esta mantém, de aceitação
ou rejeição, de cada um de seus indivíduos componentes. Ao lado,
porém, desta tendência à adaptação, encontramos já bem desde o
início o automorfismo do indivíduo, uma necessidade de formar seu
próprio ser a partir dos elementos particulares que o constituem, no
interior da coletividade e, se necessário, independentemente dela ou em
oposição a ela. (NEUMANN, 1970, p. 10).

Segundo Byington (1987), desde cedo a criança aprende, por si mesma, quais
são os canais de expressão aprovados socialmente e os emprega para receber o amor
que necessita para viver e crescer. Forma sua persona a partir dos canais de
expressão que percebe serem aprovados, ao mesmo tempo em que os símbolos e
22

funções simbólicas que não são aprovados ou simplesmente não têm meio habitual de
expressão são depositados (reprimidos) na sombra.

Os símbolos que atuam na sombra não são nem mais nem menos
importantes de que aqueles que atuam através da persona, mas são
igualmente úteis para o desenvolvimento da liberdade. A ausência de
confronto e integração de símbolos significativos da sombra na
consciência pode, com o tempo, trazer um desequilíbrio acentuado na
formação da vivência da identidade. (BYINGTON, 1987, p. 38).

É a partir do período da relação primal que o ego da criança, que se tornará o


centro da consciência, começa a se desenvolver. Ele ainda está diluído no inconsciente
e subordinado à personalidade como um todo, que é representado pelo Self. Segundo
Neumann, a relação do ego com o centro da totalidade (considerado aqui como o Self)
é uma relação de filho, isto é, “(...) o Self estabelece um “derivado” de si próprio, uma
“autoridade”, o ego, cujo papel é representar os interesses da totalidade, defendendo-
os das demandas particulares do mundo interior e do meio ambiente”. (NEUMANN,
1970, p.10).

Por persona e sombra, estamos nos referindo aos conceitos propostos por Jung
e explicitados por Murray Stein em “O Mapa da Alma” (2006). O capítulo do livro em
que estes temas são abordados tem o título de “O revelado e o oculto nas relações
com os outros”, o que já dá pistas sobre os dois conceitos que serão abordados. O
“revelado” refere-se ao conceito de persona, enquanto o “oculto” diz respeito à sombra.
Segundo Stein, sombra e persona,

São estruturas complementares e existem em toda psique humana.


Ambas foram denominadas de acordo com objetos concretos na
experiência sensorial. A sombra é a imagem de nós próprios que
desliza em nossa esteira quando caminhamos em direção á luz. A
persona, o seu oposto, é o nome inspirado pelo termo romano para
designar a máscara de um ator. É o rosto que usamos para o encontro
com o mundo social que nos cerca. (STEIN, 2006, p. 98).

O conceito de persona relaciona-se com o desempenho de papéis de cada


indivíduo na sociedade. As pessoas são ensinadas a se comportar de determinadas
maneiras dependendo do contexto em que estão e das expectativas dos outros em
relação a elas, e isto vai formando sua persona - ou sua máscara. A persona tem a
23

função de facilitar a adaptação ao ambiente externo, mas também o lado negativo de


nos distanciar da nossa própria unicidade.

A sombra, por sua vez, como o oposto da persona, é composta pelo conjunto de
traços psicológicos correspondentes à “Quaisquer partes da personalidade que
normalmente pertenceriam ao ego se estivessem integradas mas foram suprimidas por
causa de dissonância cognitiva ou emocional, caem na sombra”. (STEIN, 2006). Ou
seja, são qualidades que não foram selecionadas pela consciência individual, por
serem consideradas pouco desejáveis pela sociedade, acabam sendo reprimidas e
caindo no insconsciente. Pode-se dizer, portanto, que a sombra é a face posterior do
ego.

Como explicitado, persona e sombra constituem um par de opostos. Contudo, a


experiência polarizada do mundo com sua dicotomia sujeito-objeto só se torna presente
após termos um ego e uma consciência mais ou menos estruturados, e tal experiência
deriva da separação dos sistemas psíquicos consciente e inconsciente. O ego situa-se
entre o Self e o mundo, e a formação de cada indivíduo depende da atitude do ego em
relação às solicitações internas e externas.

O desenvolvimento da consciência é necessário, mas sua polarização em


subjetivo e objetivo representa a experiência de apenas um segmento limitado da
realidade total, uma vez que implica em uma diminuição de emoção e libido. Ou seja,
nossa visão consciente apenas consegue apreender uma parte da realidade da
totalidade psíquica, só somos capazes de apreender fragmentos da totalidade viva, da
realidade unitária.

Além disso, para a Psicologia Analítica temos também que a psique da criança
apreende mitologicamente. Sua apreensão do mundo se faz em categorias conhecidas
por nós através dos mitos. Neumann discorre sobre este tema de maneira mais
detalhada em “A História da Origem da Consciência” (1968). Este seu estudo é uma
tentativa de esboçar os estágios arquetípicos da consciência humana, considerando
seu desenvolvimento em correlação com fatores internos, psíquicos e arquetípicos.
Seu objetivo é demonstrar que uma série de arquétipos participa da constituição da
mitologia, que, em estágios sucessivos, determina o desenvolvimento da consciência,
desde o início dos tempos.
24

Tais estágios arquetípicos têm de ser percorridos na história de cada indivíduo


de maneira análoga ao trajeto evolutivo percorrido na vida da humanidade. No
desenvolvimento ontogenético, a consciência individual do ego passa pelos mesmos
estágios que determinaram a evolução da consciência historicamente mediante a
passagem por uma série de “imagens eternas”, isto é, os arquétipos.

Historicamente, o que muda é a maneira como estas imagens são


compreendidas, percebidas e interpretadas. A capacidade de realizar estes três níveis
de elaboração se transforma no decorrer do tempo e ocorre em estágios. Por isso a
Psicologia Analítica é considerada uma abordagem evolutiva, que considera o estágio
de desenvolvimento alcançado pela consciência ontogenética e filogenética no decorrer
da história e, portanto, pelo ego em suas relações com o inconsciente.

Neumann (1968) afirma que no Ocidente vivemos uma evolução criativa da


consciência do ego. Isto significa que o sistema consciente absorveu, ao longo do
tempo, um número cada vez maior de conteúdos inconscientes, ampliando cada vez
mais suas próprias fronteiras. Segundo ele,

(...) o Ocidente foi bem-sucedido em alcançar uma continuidade


cultural e histórica na qual cada cânone foi gradualmente integrado. É
nessa integração que reside a estrutura da consciência moderna, e o
ego tem de absorver, em cada período do seu desenvolvimento,
parcelas essenciais do passado cultural que lhe é transmitido pela
educação a partir do cânone dos valores da sua cultura. (NEUMANN,
1968, P.15).

Ainda de acordo com Neumann (1968), o objetivo de A História da Origem da


Consciência - ao desvelar os estágios evolutivos e suas conexões arquetípicas - é um
objetivo terapêutico tanto em nível individual como coletivo. Segundo sua visão, é de
suma importância para o desenvolvimento da consciência que haja a integração dos
fenômenos psíquicos pessoais aos símbolos transpessoais correspondentes.

Considerando o ponto de vista da Psicologia Analítica sobre o desenvolvimento


da criança, veremos, no próximo capítulo, o que isto significa para o campo da
Educação. Estudaremos o que o próprio Jung diz a respeito deste assunto, e qual ele
considera ser a contribuição da Psicologia Analítica para as escolas e os professores,
que influenciam diretamente o processo de formação de consciência das crianças.
25

CAPÍTULO 3 – PSICOLOGIA ANALÍTICA E EDUCAÇÃO

No capítulo anterior vimos o que a Psicologia Analítica nos diz sobre o


desenvolvimento humano e, principalmente, sobre o desenvolvimento infantil. Estas
considerações permitem que, agora, entendamos o que esta teoria tem a dizer sobre o
processo educacional destes indivíduos e como a escola influencia seu processo de
formação de consciência. Veremos também em que momento nossa consciência
coletiva está e o que Jung e alguns de seus seguidores escreveram sobre isto.

Como já dissemos, a criança nasce imersa no inconsciente. A consciência e o


ego vão se estruturando a partir de seu contato social, que começa na família e tem
continuidade na escola e na sociedade. Hoje em dia, devido ao crescimento da
inserção da mulher no mercado de trabalho, as crianças entram na escola cada vez
mais cedo, o que torna ainda mais importantes as reflexões sobre o papel da instituição
na formação destes indivíduos. Segundo Jung, na escola,

Os companheiros substituem os irmãos, o professor o pai, e a


professora a mãe. É muito importante que o professor esteja consciente
desse seu papel. Sua tarefa não consiste apenas em meter na cabeça
das crianças certa quantidade de ensinamentos, mas também em influir
sobre as crianças, em favor de sua personalidade total. Essa atuação
sobre a personalidade, no mínimo, é tão importante como a atividade
docente, se não até mais importante, pelo menos em certos casos.
(JUNG 2002, p.49).

Jung defende que os fundamentos da Psicologia sejam conhecidos pelos


professores, não para serem utilizados como método, e sim como um modo de
conceber. Eles não devem ser depositados ou ensinados às crianças, mas devem
ajudar o professor a ter uma atitude compreensiva em relação aos processos psíquicos
infantis.

Nise da Silveira, em seu livro “Jung - Vida e Obra” (2000), explica que Jung
distingue três tipos de educação. O primeiro deles é a educação por meio do exemplo.
Este tipo de educação diz respeito ao modo de ser dos pais da criança, que, segundo
Jung, exerce enorme influência sobre sua educação, mesmo que de maneira
completamente inconsciente. A criança identifica-se com o ambiente em que vive e sua
psique é estreitamente ligada à psique dos pais, ela é um produto deles. Não é preciso
26

dizer que os professores se encontram ao lado dos pais nesta fase da educação, e que
é de extrema importância que eles conheçam e eduquem a si próprios. Evidentemente
isto não significa que o ideal é que sejam perfeitos, mas sim que se conscientizem de
sua própria personalidade e que possam reconhecer quando cometem erros, tendo
uma atitude sincera frente aos problemas e procurando recursos para solucioná-los.

O segundo tipo de educação é a educação coletiva. Seu principal objetivo é


formar indivíduos para atuarem na sociedade. Para isto, é necessário que estejam de
acordo com as regras e princípios da mesma, o que pode, muitas vezes, abafar o
normal desenvolvimento das individualidades. Jung considera que,

De acordo com a verdadeira finalidade da escola, o mais


importante não é abarrotar de conhecimentos a cabeça das crianças,
mas sim contribuir para que elas possam tornar-se adultos de verdade.
O que importa não é o grau de saber com que a criança termina a
escola, mas se a escola conseguiu ou não libertar o jovem ser humano
de sua identidade com a família e torná-lo consciente de si próprio. Sem
a consciência de si mesmo, a pessoa jamais saberá o que deseja de
verdade, mas continuará sempre na dependência da família e apenas
procurará imitar os outros, experimentando o sentimento de estar sendo
desconhecida e oprimida pelos outros. (JUNG, 2002, p. 50).

O terceiro tipo de educação é a educação individual, que, se considerarmos a


afirmação acima, é o que merece maior ênfase. “Na aplicação desse tipo de educação,
as regras, princípios e métodos ficarão subordinados ao objetivo único de permitir a
manifestação da individualidade específica da criança.” (SILVEIRA, 2000, p. 155). Isto
significa que os dons especiais do aluno deverão ser considerados, bem como as
dificuldades em relação a certas matérias. Seu tipo psicológico (extrovertido ou
introvertido) deverá ser aceito e ter espaço para se manifestar.

Cláudio Saiani, um professor de Matemática, Mestre em didática e especialista


em Psicologia Analítica, fez um estudo sobre as relações entre o que se chama hoje
em dia, na Educação, de Psicologia Profunda e o ensino da Matemática, em um livro
chamado “Jung e Educação: Uma análise da relação professor/aluno” (2000). Em seu
trabalho, Saiani faz considerações sobre o pensamento científico de Descartes,
principalmente em sua célebre frase “Penso, logo existo”. As ideias do filósofo foram
27

responsáveis pela maneira de se pensar a ciência após o Renascimento, e Saiani diz


que, apesar de Descartes ter construído sua teoria a partir da função pensamento,

(...) associar o cogito de Descartes apenas à função pensamento


não parece fazer justiça à sua preocupação com sua aplicação à
exploração do Universo. Falamos do desenvolvimento do homem
ocidental, mas se estivéssemos falando de um indivíduo, diríamos que,
tendo ele o pensamento como função superior (como condiz com o
pensamento medieval, diga-se de passagem), estaria começando a
desenvolver a sensação como função auxiliar. E, tendo em vista que a
função intuição está ligada a desenvolvimentos futuros, também ela
começa a ser desenvolvida (...). No entanto, ainda segundo o modelo
da tipologia junguiana, esse indivíduo hipotético permaneceria com o
sentimento como função inferior, varrida para os desvãos da sombra,
manifestando-se de modo autônomo, infantil e indiferenciado. (SAIANI,
2000, p. 155).

Saiani também afirma que caberia um estudo sobre o porquê a filosofia de


Descartes se tornou tão influente, mas que o fato é que ela nos levou a uma “(...) virtual
eliminação da intuição e do sentimento como formas aceitáveis de apreensão da
realidade.” (IBID, p. 157). Segundo ele, esta visão fragmentária nos trouxe várias
vantagens, mas também nos levou a uma direção esquizóide. Ele cita como exemplo o
aperfeiçoamento da chamada “arte da guerra”. O desenvolvimento das tecnologias de
guerra, bem como das estratégias e armamentos usados para isto desde o
Renascimento foi incrível, e é fato que a guerra é um impulso arquetípico. Mas a falta
de empatia, característica do que ele chama de direção esquizóide “transparece
quando nos lembramos de que todo esse admirável emprego do intelecto se destina a
matar uma quantidade cada vez maior de seres humanos, em um tempo cada vez
menor, com o efeito colateral de destruir a Natureza.” (IBID, p. 158).

Este assunto pode ser relacionado com o que Byington (2008) denomina
arquétipo da alteridade. Este arquétipo diz respeito a uma evolução da consciência
(individual e coletiva) em direção da totalidade em função da integração entre as
polaridades, inclusive as funções opostas da consciência, ou seja, a consciência e a
sombra. Este arquétipo é capaz de dar direitos iguais de expressão a todas as
polaridades. O nome “alteridade” diz respeito à integração e aceitação do Outro como
não-eu e o Outro em mim, do diferente, da capacidade de empatia sobre a qual
28

falávamos no parágrafo anterior. A consciência da sociedade ocidental, a partir do


Renascimento, corresponde ao que Byington denomina patriarcal, e estamos
caminhando na direção da alteridade. Estamos caminhando na direção de um tipo de
ensino em que a relação entre aluno e professor seja dialética, compreensiva e criativa,
onde um possa aprender com o outro, onde o aluno possa expressar-se e onde sua
individualidade seja considerada.

No volume sobre Jung (2000), da série de filmes “Pensadores e a Educação”, da


produtora ATTA Mídia e Educação, os psicólogos Alberto Pereira Lima Filho e Laura
Villares de Freitas apresentam pontos importantes para a presente discussão.
Destacaremos alguns que podem nos ajudar a dar continuidade a ela.

Freitas e Lima F. fazem considerações sobre o papel da escola e como se


expressam, nesse espaço, continuamente, as funções materna e paterna. Associados
ao arquétipo da mãe, podemos observar na escola os momentos de afeto, cuidado, etc.
Correspondendo ao arquétipo do pai temos o trabalho com conteúdos como a
aquisição da linguagem e da cultura, conhecimento de códigos sociais,
desenvolvimento da ética, noção de outro, senso de limites, noção de lei, ordem,
disciplina. São conteúdos relacionados à “educação coletiva”.

Com relação à “educação individual”, Filho e Villares propõe que a escola deve
também ser capaz de abarcar as manifestações individuais de cada aluno. Em diversos
momentos esta individualidade se manifesta, e o professor deve ter a sensibilidade de
saber acolhe-la. A considerada “inadaptação” de determinado aluno pode, por exemplo,
querer dizer algo sobre sua individualidade. Pode ser um pedido, um protesto que não
se soube formular em palavras. É um ato sutil e simbólico, cujo núcleo deve ser
observado, e não punido. As técnicas expressivas também são elencadas como uma
maneira de trazer à tona o símbolo de forma que ele possa exercer a sua função, ou
seja, transformar em consciente algo que estava inconsciente.

Para alcançarmos, então, a consciência de alteridade que sugere Byington,


vejamos o que ele nos diz:

A consciência de alteridade caminha para a realização ao mesmo


tempo do potencial máximo de desenvolvimento do fenômeno da
individualidade e do potencial máximo da relação Eu - Outro e, por isso,
no ciclo de alteridade a inter-relação do desenvolvimento individual e
29

coletivo é obrigatoriamente complementar e inseparável. (BYINGTON,


1987, p. 74).

Em alguns momentos, a escola deve focar o ego, propiciando atividades e


conteúdos que considera necessários para o desenvolvimento da criança e para sua
inserção no mundo em que vive. Outras vezes, contudo, deve representar o Self. A
escola é uma totalidade, é em si mesma um mundo no qual a criança se insere. E se
tiver consciência disso, poderá representar melhor este seu papel, dando continência
aos conflitos, acolhendo e lidando com as frustrações dos alunos.

Segundo Villares, a Educação é uma instância que tem por obrigação formar
indivíduos reflexivos e pensantes e:

O homem que se perde nos valores coletivos e não processa


para si que sentido aquilo tem, não referenda sua própria historia, não
vai conseguir ser um agente de cultura, não vai ser alguém que tolera
os opostos, vai ser alguém que reproduz o que recebe. (VILLARES,
2000, Pensadores e a Educação).

Voltando ao próprio Jung, vemos que, se o homem é um produtor de cultura,

A escola é apenas um meio que procura apoiar de modo


apropriado o processo de formação da consciência. Sob esse aspecto,
cultura é a consciência no grau mais alto possível. (JUNG, 2002, p.46).

E ainda,

Perguntando agora o que iria acontecer se não tivéssemos


escolas e se deixássemos as crianças entregues a si mesmas,
deveríamos então responder: As crianças continuariam inconscientes
em grau muito maior. E o que notaríamos de especial nesse estado de
coisas? Seria um estado primitivo, o que significa que quando tais
crianças chegassem à idade adulta não passariam de primitivos, apesar
de toda a inteligência natural de que dispõem; seriam apenas
"selvagens", como qualquer membro de uma tribo inteligente de negros
ou de índios. De maneira nenhuma seriam meros bobos, mas apenas
inteligentes por instinto; seriam ignorantes e, por isso, inconscientes
quanto a si e quanto ao mundo. (JUNG, 2002, p.46).
30

ENTREVISTA COM CÉLINE LORTHOIS

Celine Lorthois nasceu na França e veio para o Brasil na década de 1980. Aqui
estudou Pedagogia e se pós-graduou em Psicologia da Educação. Nesta época teve
contato com a Psicologia Analítica e desde então procura maneiras de permear sua
prática educacional a partir desta teoria. Realizou desde atendimentos individuais até
uma proposta grupal, mas sempre de forma autônoma, e nunca dentro de instituições.

Vejamos como estas suas experiências e a análise das mesmas - feita pela
própria Céline – podem nos ajudar a visualizar como as ideias teóricas que trouxemos
até então podem ser aplicadas em um tipo de prática, e quais são os benefícios que
podem trazer para os educandos, bem com as dificuldades que enfrentam em nosso
mundo atual.

Foi feita a opção por apresentar a entrevista na íntegra, pois visamos, desta
forma, passar ao leitor não só o “clima” do trabalho desenvolvido pela entrevistada,
mas também as peculiaridades e circunstâncias nas quais seus experimentos na área
da Educação são realizados.

Transcrição da entrevista

Céline: Quando me vi aqui mais ou menos presa no Brasil - que eu tinha esperança de voltar
para a França para continuar os estudos que eu tinha começado que eram mais literários - e aí quando
vi que ia ficar, ia ter que ficar aqui, eu decidi recomeçar a estudar aqui. Pensei: o que eu faço?
Pedagogia ou Psicologia? Me atraía mais a Psicologia. Mas na época eu achava muito elitista essa área
de atuação, porque o atendimento... Ainda mais nessa época, tinha um foco muito clínico, muito no
tratamento individual, e eu pensei: o Brasil precisa tanto, eu quero fazer alguma coisa que me possibilite
trabalhar com grupos.

Glenda: Por que você veio para o Brasil?

C: Eu vim para o Brasil porque me casei com o meu marido e a família dele tinha uma fábrica
aqui e nunca ninguém tinha vindo. Nada a ver comigo, né? E aí ele tinha que ficar quatro anos, e eu
implorei: dois anos. Quatro anos é muito tempo, e ele falou “tá bom”, mas ele me enganou, porque estou
aqui até hoje.

G: Ele também é de lá?


31

C: Ele é francês. E a fábrica não existe mais. Então, é muito bonito assim quando a gente olha
pra trás e vê, meu deus, que joguinho bem bolado, né? Tudo se encaixou perfeitamente. E aí pensei,
então, vou fazer Pedagogia. Eu queria também fazer agronomia, me atraía muito, mas eu tinha três
filhos pequenos. Resolvi fazer Pedagogia, uma coisa mais comportada. E aí eu comecei a ficar muito
decepcionada com a Pedagogia e com os currículos da graduação, porque na época também a PUC era
só marxista, qualquer área era marxista. No entanto eu encontrei pessoas muito legais, mas eu não
encontrava nada, nenhuma linha pedagógica que eu dissesse “puxa, é isso aí, é por aí.”. Assim, tudo
que eu estudava me trazia uma decepção. Até o dia que eu encontrei a Pel. A Maria Luiza, mulher do
Sandor, me falou “tem uma moça que tem um trabalho bonito, chama ela, ela pode de repente fazer uma
palestra na PUC...”. Aí eu chamei e eu vi assim o primeiro o trabalho dela, quer dizer, o primeiro que eu
vi porque ela fez muita coisa antes.

G: A Pel é Psicóloga?

C: Ela é Pedagoga. E aí realmente acendeu uma luz, esse trabalho, uma experiência na Bahia.
E aí depois por acaso eu conheci o Sándor2, a Maria Luiza... Mas foi muito por acaso, porque o meu
filho, o meu primeiro filho tava muito... Tinha muitos problemas, ele teve um começo na vida muito
complicado, então eu acho que quando ele teve uns sete anos ele tinha problemas na escola e quem o
atendeu, por acaso, foi uma aluna do Sándor, uma colega e aluna do Sándor. E aí quando eu precisei de
atendimento, porque cortar todos os laços com sua terra, com sua família, com seus projetos, e de
repente se transferir para uma outra terra é receita para loucura, né? Então quando eu precisei fazer
terapia, essa moça que atendia o meu filho me indicou a Maria Luiza, mas eu estava perto e eu podia ter
passado assim reto sem ver, mas de repente o destino realmente colocou todas as peças do jogo assim
direitinho. Aí eu comecei a conhecer, a fazer uma terapia com a Maria Luiza, comecei a fazer os grupos
do Sándor e aí eu comecei a me encantar pela a Psicologia Junguiana e comecei a ver diferentes
maneiras de casar a Psicologia e a Pedagogia para criar uma Pedagogia assim, sei lá, abrangente,
decente, que não podasse tantas coisas na criança.

G: Em que época foi isso?

C: Isso foi... Quando conheci a Maria Luiza... Por volta dos anos 80. E aí depois eu me formei,
me graduei e pensei: sou Pedagoga mas eu quero tudo na vida menos trabalhar numa escola. Porque
realmente não tinha nada a ver com os meus, assim, as minhas ideias sobre o educar melhor, o ensino
escolar. E aí eu pensei, “não, eu gostaria de atender crianças”. Na realidade eu queria, o meu primeiro
projeto era atender mães e filhos juntos. E aí a Maria Luiza me apoiou muito nesse projeto e ele nunca
deu certo. Chegavam as crianças, mas as mães não.

G: As mães não aderiam?

2
Dr. Petho Sandor (1916-1992) foi um médico e psicólogo húngaro radicado no Brasil desde 1949. Assumia a
teoria Junguiana, e acrescentou o trabalho corporal ao trabalho verbal. Maria Luiza Simões foi sua esposa, também
psicóloga e colaboradora.
32

C: Não, porque eu fiz essa proposta de um ateliê mãe e filho, mas acho que as mães preferem
entregar os filhos, sabe?

G: Era um ateliê terapêutico?

C: Era um ateliê vivencial vamos dizer, sabe, assim, para tentar resgatar uma relação mãe e
filho, para tentar curtir essa relação, que tinha tão pouco tempo para ser curtida na vida aqui em São
Paulo, nessa vida apressada. E sei lá, mas também eu não me abalei com isso, e chegavam as crianças
e eu fazia esse trabalho de acompanhamento pedagógico que as vezes as pessoas falam “ah, você é
Psicóloga”. Não, eu sou Pedagoga, mas eu acho que dá para fazer um bom trabalho casando meus
conhecimentos de Psicologia com os conhecimentos da Pedagogia. E aí foi tudo bem.

G: Isso era em São Paulo ou em Cotia?

C: Era aqui em São Paulo. O engraçado também era que quando eu terminei a graduação,
primeiro eu quis fazer pós-graduação logo em seguida. Eu fiz isso, mas foi inútil. Eu acho que eu
pensava “não, eu quero encontrar alguma coisa melhor”, eu só pensava, só insistia, e na realidade a
pós-graduação é algo infernal. Eu acho que hoje em dia é um pouco menos. Mas na época era bem
assim a travessia do inferno.

G: Qual foi a pós?

C: Psicologia da Educação na PUC. Hoje em dia eu penso “não, valeu a pena” porque dá um
pouquinho mais de credibilidade ao meu trabalho só esse titulo conquistado com tantas lágrimas e
sofrimento. Por causa das exigências absurdas, sabe? Mas tudo bem, tudo vale a pena.

G: Foi inútil em termos de conhecimento?

C: Não, de conhecimento me ajudou a formalizar um pouquinho melhor meu conhecimento do


Paulo Freire, que eu acho que é um cara maravilhoso. Ele acabou se tornando repetitivo, mas eu acho
que ele pegou tudo. Ele realmente pegou todas as dimensões do ser humano através da Educação. A
única dimensão que ele não explorou, ele só citava, era a espiritualidade do ser humano. Mas ele levava
em consideração, de uma certa maneira muito discreta, e isso o Jung faz. De uma maneira bem explícita
ele coloca a função religiosa como algo existindo no ser humano e precisando vir à tona. Engraçado
também é que quando saí da graduação eu estava pensando “ai, eu queria atender mães e filhos e
queria uma garagem”. E aí eu imaginava uma garagem que desse para rua direto, para ser visível. Na
realidade eu achei uma garagem, porque aqui é uma garagem, uma antiga garagem que foi reformada.
E você pensa, “puxa, mas até isso? A gente quando visualiza um sonho, tem uma crença, tem um
desejo...” O Sándor falava muito isso: “cuidado com o que você deseja”. E foi muito bom assim essa
garagem, durante muito tempo. E hoje em dia até, algumas crianças que eu atendo aqui chegam e
dizem “aqui é uma fazenda”. Então é muito bonito, assim, um lugar raro aqui em São Paulo.

G: Por que uma garagem, um lugar que fosse visível?


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C: Porque... Sabe assim, sei lá, você abre uma padaria, você abre de frente para a rua, as
pessoas vêm.

G: Ah, para as pessoas poderem chegar?

C: Sim, simplesmente! Mas assim, não foi tão direto. Mas na época, a Maria Luiza era tão boa
divulgadora que não precisava ficar tão de cara para a rua. Acaba sendo cada dia mais perigoso ser
visível nesse sentido. E aí foi indo assim tudo muito bem, e o trabalho com as crianças estava muito
interessante.

G: Eram crianças que tinham dificuldade na escola?

C: Então, tinha um pouco de tudo. Crianças que tinham dificuldades escolares, tinham
problemas afetivos, às vezes crianças que tinham alguma deficiência. Mas assim, queixas bem variadas.
E às vezes era apenas um vago mal estar, tanto da família quanto da criança, e aí depois de... Quanto
tempo? Muito tempo, acho que uns dez anos desse trabalho, eu pensei “não, não suporto mais isso”. Era
uma hora, uma criança, uma hora, uma criança, uma hora, uma criança... E aí começou a ficar meio
insuportável. E eu pensava também que esse trabalho adiantava sim, mas era muito pontual. Essa
criança era, de uma certa maneira foi, destruída pela escola ou por outras circunstâncias. Eu não
consigo nada com ela. Nós conseguimos que ela se reconstrua e saia mais fortalecida do trabalho, mas
não adianta nada assim numa escala maior. A escola continua sendo o que ela é...

G: Como era o trabalho, o ateliê?

C: Continua sendo, o ateliê continua sendo um lugar de liberdade em que a criança faz o que ela
quer, ou seja, eu proponho: podemos conversar, podemos fazer trabalho corporal, podemos conversar
sobre sonhos, podemos ficar calados, podemos fazer trabalhos manuais, podemos brincar, jogar jogos,
podemos assim brincar simplesmente, de uma maneira descompromissada com a matéria, com água,
barro, gesso ou fogo... E a criança tem muita facilidade pra explorar o espaço de liberdade. E às vezes
as pessoas pensam “você dirige muito pouco”. E assim, para mim não adianta nada dirigir, acho que eu
já falei isso, que a liberdade não é um qualquer coisa, não é deixar fazer, claro que é também, mas é
colocar alguns limites sensatos, claros.

G: Com sentido?

C: Com sentido, e tranquilo, tipo assim, o limite do espaço, o nosso espaço é esse, pode fazer
tudo, não pode incendiar a minha sala, o limite do tempo, também tem “você entra essa hora, sai essa
hora, porque tem outra pessoa”... Para lidar com tal material tem que tomar cuidado, né? Então são os
limites reais. Isso era aceito muito bem. E assim, sempre falo que a liberdade em pedagogia, ou na vida
em geral, a verdadeira liberdade, ela é pedagógica, ela é profilática, ela é terapêutica. A verdadeira
liberdade, ela faz aquilo que dá pra ser feito naquele sujeito, naquele grupo de pessoas, até no próprio
educador. E sempre dá resultados maravilhosos essa experiência da liberdade. Sempre, sempre. Em
termos de fortalecer a criança, de ajudar ela a se construir, se reconstruir. E aí eu penso, também assim,
em 95 fiquei gravemente doente e pensei “bom, é melhor eu realizar os meus sonhos agora porque não
sabemos o que pode acontecer”. Aí eu decidi sair daqui e tentar um trabalho grupal. Isso bem no sentido
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de... Tudo bem, o trabalho individual é maravilhoso, mas ele é individual. Vamos ver assim, vamos
tentar, mesmo que seja simbolicamente, em termos de número, fazer um trabalho grupal, educativo,
melhor do que aquilo que tem geralmente na Educação. Quando eu falo isso parece que eu estou
acabando com todas as escolas, eu pego mais frequentemente os casos de alunos que não deram certo
na escola, mas eu sei que existem certas escolas que satisfazem as crianças. Por exemplo, as escolas
tradicionais pra certas crianças elas são maravilhosas, e pra outras nem tanto. É bom que haja essa
diversidade de escolas porque são seres humanos diversos também, né? Mas, de maneira geral,
considerando os casos que eu tava atendendo, eu via que as coisas não estavam melhorando muito no
terreno da Educação, principalmente porque a alma da criança, sua função religiosa, não estava sendo
considerada na Educação. Então isso é a mesma coisa que... eu acho que vai assim caminha junto com
a liberdade. Ela deve vir para o espaço pedagógico com a sua alma, deve deixar sua alma aflorar, de
permitir que ela se expresse, isso também é pedagógico, é terapêutico.

G: É nesse sentido que a função religiosa não é considerada na escola? De não propiciar a
liberdade?

C: Quando tem liberdade a alma aflora, a alma da criança. E quando não tem, mais dificilmente
ela aflora. Mas de maneira geral a criança é um intelecto e ela é um corpo. Quando é um corpo né? Na
escola. Mas ela não tem esse lado espiritual que também tem as suas exigências. está precisando de
expressão e de espaço. E então, aí eu morava em Cotia também, durante o fim de semana e em São
Paulo durante a semana. Eu disse, eu fecho aqui, o ateliê, e fico em Cotia, vou iniciar um trabalho grupal
em Cotia. E eu comecei esse trabalho com crianças de uma comunidade bem carente que tinha em
volta. Comecei com as crianças pequenas que não tinham acesso à pré-escola, e aos poucos os
maiores, os vizinhos, aqueles que já frequentavam a escola publica, começaram a se interessar e a
gente começou a trabalhar com todos.

G: O trabalho aqui era com crianças de que idade?

C: A mais nova tinha 2 anos e a mais velha 72. Então não tinha muito uma faixa, né? E inclusive
muitas vezes eu tenho alunos do curso de Pedagogia Profunda, pessoas interessadas que perguntam
assim “eu queria fazer esse curso para mim, posso?” E eu respondo: “é principalmente para você esse
curso”. Porque eu acho que se o curso não toca a pessoa, não vai dar para passar adiante. É um curso
que impele para a transformação. Inclusive, recentemente eu estava dando um curso no SESC e aí no
fim do curso tem uma menina que falou, você sabe que eu nem sei por que eu vim fazer esse curso,
porque não tem nada a ver com aquilo que eu faço. É que eu adoro fazer cursos, então qualquer coisa
que aparece eu faço. Mas você sabe que eu vou utilizar tanto os conhecimentos, os conteúdos e as
técnicas que foram passadas no curso. Eu acho que é bem por aí sabe, de repente é um curso que
foque a educação, que foque o cuidado com a integridade psicológica das crianças. Ele atinge as
pessoas, e se ele não tiver essa possibilidade de ser aplicado em múltiplos ambientes e profissões acho
que ele erraria o alvo, mas o alvo realmente é de ser mais ou menos, não universal, porque parece
pretensioso, mas sabe assim esses conhecimentos simples que você pode aplicar em todo lugar e em
praticamente todos os momentos. E aí eu fiz esse trabalho grupal e a proposta era a mesma coisa:
oferecer um espaço de liberdade onde as crianças pudessem se expressar e se construir e com essa
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determinação de tentar decodificar quais eram os interesses da criança, por onde ela está querendo se
encaminhar. Na medida do possível oferecer recursos para ela poder sanar a sua curiosidade, para ela
alcançar alguns conteúdos que lhe dizem respeito naquele momento.

G: Como você fazia para tentar identificar esses interesses?

C: Eu lembro que no curso você falava que a criança gostava de ser desafiada pelo adulto, você
lembra?

G: Eu falava que às vezes era bom dirigir um pouco porque a criança às vezes gostava, ou
precisava de uma direção...

C: Tudo depende das circunstâncias. Às vezes você consegue identificar que a criança está
esperando de você um desafio, um direcionamento. Isso também é muito interessante observar do ponto
de vista da Psicologia junguiana. Uma criança introvertida vai aceitar mais facilmente as sugestões que
vem de dentro. Uma criança extrovertida vai aceitar mais facilmente - e ela vai desejar - sugestões vindo
de fora. Então para essa criança extrovertida, a escola tradicional, em que tudo é conduzido, dirigido, é
perfeita, ela tá feliz, ela não sofre na escola. Uma criança introvertida pode sofrer mais em um ambiente
em que tudo é sugerido.

G: O mundo pede que a gente seja mais extrovertido, né?

C: Sim, e também tem uma moda né? De repente, quando os pais são chamados na escola: “ai,
seu filho é extrovertido, legal!”. Os pais se sentem assim lisonjeados, felizes se falarem que o seu filho é
extrovertido. Na própria terapia, de repente é quase doentio, né?

G: Ou então: “o seu filho é muito calado, fica muito sozinho”...

C: Não pode né? Então esse gênero mais contemplativo não se encaixa de maneira geral nas
escolas. Então como seguir o interesse da criança? A criança as vezes é tão explícita e as vezes ela não
é. Às vezes basta sugerir: “você quer isso ou aquilo?”. Ou às vezes ela vai direto para aquilo que
interesse. No trabalho individual é muito fácil perceber as pistas que a criança dá no sentido de ela por
um momento em que ela gosta mais de trabalhar com a matéria ou ela está em um momento em que
curte mais jogos, ou sei lá, ela sempre deixa, ela dá dicas e às vezes até pistas. Se não a gente vai
propondo né, e pondo um ambiente de liberdade é fácil ela se dirigir para aquilo que diz respeito ao seu
momento. De repente eu tava pensando no carro, você falava “tem algumas crianças que gostam de ser
dirigidas, desafiadas pelo adulto.” E aí eu penso: aí que a gente tem que prestar atenção, tem que tomar
cuidado. Uma criança, eu sinto que ela tá esperando de mim um desafio. Será que ela está tentando me
agradar? E ela está se perdendo? De repente ela não tá em contato com a necessidade dela. Essas
pequenas coisas que a gente precisa observar, mas com uma observação cuidadosa que a gente acaba
geralmente enxergando. Acho que é a nossa boa vontade que faz toda a diferença, porque, claro que às
vezes a gente erra, mas em um clima de liberdade e abertura não são erros trágicos, a gente vai
retificando a trajetória e a criança aprende com isso. De repente o educador erra às vezes, tudo bem, a
gente vai tateando mesmo.
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G: E a criança pode mostrar também quando ela não gostou, pois ela está em liberdade.

C: Pode falar e assim, a fala tudo bem, é legal quando a gente dispõe dessa ferramenta e às
vezes ela fala exatamente o contrário. Não é para enganar a gente, é que o discurso dela foi deturpado.
Então a gente tem que encontrar por baixo desse discurso já meio falseado qual é a real necessidade
dessa criança. E perceber os momentos em que ela demonstra mais satisfação, mas serenidade. E aos
poucos ela vai também sentindo nela esses critérios, quando vou pra lá isso me faz bem, quando vou
pra cá nem tanto...

G: E o trabalho em Cotia?

C: Então, o trabalho em Cotia foi indo... Foi um trabalho difícil porque eu arcava com todos os
gastos. E era um local assim muito, uma comunidade muito violenta, então a gente fazia o trabalho
durante a semana e muitas vezes elas chegavam na segunda-feira hiper carregadas, assim violentas,
nervosas... Porque elas tinham contato com programas venenosos na televisão, tinham contato com
fofocas horríveis que a comunidade ficava cultivando. Incentivos dos pais muitas vezes para brigar, para
bater, para sodomizar até os outros. Era muito, muito, muito violento. E aí a gente recebia na segunda-
feira. Fazendo o trabalho durante a semana com eles, na sexta-feira eles estavam mais serenos e na
segunda-feira seguinte recomeçava tudo de novo. Mas assim, tudo de novo não, porque o progresso não
é em linha reta. Então a gente vai um avanço, um retrocesso, um avanço, um retrocesso. Mas aos
poucos a gente vê que as coisas, de uma maneira geral, vão se tornando melhores. Lá tem muitos
exemplos de momentos em que as crianças demonstravam como era benéfico esse trabalho para elas.
E isso não quer dizer que o nosso ambiente de repente ficasse encantado: “ai meu deus, que
tranquilidade...”. Não, não era nem um pouco tranquilo, e a gente não tentava impor a tranquilidade para
as crianças, uma ordem, uma disciplina, nem um pouco... Eles podiam, eles tinham o direito de ser
disciplinados, mas eram crianças difíceis e a gente via que muitas vezes as mais belas realizações
afloravam em meio a muita desordem, muito ruído. E às vezes a gente tinha que refletir, registrar o que
acontecia na hora, porque era uma desordem tão grande que depois a gente enxergava aquilo que tinha
acontecido.

G: Quem mais trabalhava com você?

C: Era eu, a minha filha me ajudou durante um ano, a minha filha que é pedagoga também, e
depois eu contratei, passei a contratar pessoas da comunidade que tinham pouca formação acadêmica,
e eu acreditava muito nessa habilidade das pessoas com pouca formação para poder lidar com as
crianças. Porque eu pensava: não tem formação, então não tem deformação. Mas tinha outros
problemas, tinha muitos outros problemas. E muitas vezes carências afetivas muito graves. Então tinha
que acudir o meu auxiliar e tinha que acudir as crianças... Então era bem difícil. De vez em quando a
gente tinha voluntários também, mas é muito difícil trabalhar com voluntários. Porque voluntários... Você
não pode dar ordens para eles. Ele chega na hora que quer, não chega na hora que não quer chegar.
Ele sai quando quer sair, então é muito ruim, de repente um voluntario que se envolve, isso acontece, e
de repente ele some, isso é muito ruim, a criança se envolve também. Acaba criando uma ferida
realmente.
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Às vezes a gente conseguiu ajuda de pessoas com uma rica experiência, que contribuíam muito.
Mas de maneira geral o difícil desses trabalhos meio... Não diria selvagens, mas é quase selvagem,
porque não era reconhecido, que não queria ser reconhecido. Ele era bem paralelo, ele era bem
dissidente. E as pessoas, assim, se você contrata uma pessoa ela vai cumprir o horário e fica difícil ela
participar de reunião, acha que ela sabe tudo e parece que a gente tá fazendo qualquer coisa. E esse
momento de reunião, de troca, de aprofundamento, é essencial para levar a diante um trabalho desse.
Então aos poucos a gente conseguiu inserir esse trabalho do profissional, esse trabalho de reflexão,
esse trabalho paralelo na nossa prática, e isso faz realmente toda a diferença. Talvez um dos exemplos
mais bonitos foi num dos últimos anos, a gente tinha muitos problemas financeiros, e não deu para
contratar os profissionais que a gente queria.

G: As crianças pagavam?

C: Então, também tinha essa história. A minha proposta era: quem puder paga, quem não puder
não paga. Quem puder pagar um pouco, paga um pouco. Isso é uma coisa que funciona muito bem na
França em escolas católicas. E é muito bonito porque é um belo treino da solidariedade. E aqui não
funciona nem um pouco. Então de inicio algumas famílias, sei lá, elas ficaram um pouco tocadas pelo
perfil do trabalho mesmo, e algumas famílias realmente mais carentes faziam questão de contribuir, era
uma coisa simbólica, mas era muito precioso, mesmo que dessem 10 reais por mês elas davam, e aí
não ficava aquela coisa a doação no sentido único. Mas logo logo começou essa historia: ah, o fulano
pode mais do que eu, ele não paga então eu também não pago, e aí a gente conseguiu ter alunos mais
ou menos de classe média, mas também assim: ah aqui é o ligar onde a dona Celine é boazinha, e aí
explicava que eles estavam em um momento muito terrível financeiramente, e aí não pagavam. E aí
simplesmente foi um fracasso completo do sistema de pagamento. Horrível, horrível. E tudo bem, o que
importava era continuar, ir para frente, buscar novas soluções. A gente teve um grupo que ajudava
organizando bingos, um pessoal de São Paulo super legal, mas aí acabou criando aquilo que a gente
fala na Psicologia junguiana: qualquer identificação projeta uma sombra. E a sombra começou a ficar
enorme. E aí esse grupo de pessoas que nos ajudavam, aí logo a comunidade começou a imaginar que
eles davam rios de dinheiro e na realidade era uma coisa muito pequena em relação à nossos gastos.
Então estava muito difícil a gente levar adiante esse trabalho com as crianças sendo que havia muitos
comentários maldosos na comunidade. Então, um dos exemplos mais... e apesar de tudo, de todas
essas dificuldades, a coisa tava indo, e as crianças a gente via se beneficiando. E então nesse ano mais
complicado a gente decidiu: então vamos atender os pequenos que não tem uma pré-escola.

G: Quantos eram mais ou menos?

C: Variou muito. Começou com um grupo muito pequeno. Começou com um, depois dois, depois
seis, depois doze... Mas eu não queria uma coisa gigante. Eu acho que o Maximo de matriculas que a
gente teve foi umas 40. Sendo que a frequência não era de 40 crianças, porque eles tinham uma saúde
frágil, tinha uma menina de 4 anos, muitas vezes ela faltava porque tinha que lavar roupa em casa.
Tinham uma vida muito difícil. As crianças maiores muitas vezes se matriculavam para frequentar nosso
espaço de manhã, mas ficavam sabendo do turno que iam estudar na escola publica na véspera da volta
às aulas, então tudo era difícil. Todas essas circunstâncias externas. Era um trabalho trabalhoso. E aí
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naquele ano a gente decidiu: então vamos receber as crianças pequenas todos os dias, porque elas não
têm um espaço pedagógico, e os maiores a gente vai receber só uma vez por semana, porque elas têm
a escola. e aí elas, as crianças maiores reclamavam muito, e aí a gente inventou uma outra modalidade.
As crianças maiores, que tivessem uma autonomia suficiente podiam vir um dia a mais por semana. O
que é ser autônomo? Na realidade a gente chamava elas de monitores. Monitor não é uma criança que
obrigatoriamente pegasse uma menor pela mão e cuidasse dos menores. O monitor odeia fazer isso,
mas se ele conseguisse cuidar dele sozinho sem solicitar muito a atenção dos educadores já era um
belo exemplo de autonomia, então ele era considerado monitor. Então foi indo assim, mas com muitas
reclamações dos maiores, que queriam ir todo dia. Mas a gente não tinha possibilidade de contratar mais
pessoas para cuidar deles. E, além disso, apesar de a gente ver sinais claros de melhora na saúde
psicológica, na autonomia, construção da personalidade, esses maiores tinham todo um repertorio de
violência que podia colocar em risco a segurança física dos pequenos. Por isso que a gente precisava de
gente para conter. E aí a gente só ouvia as reclamações deles, e as vezes eram reclamações cheias de
ódio, nós não queremos esses pequenos chatos, e palavrões

G: Todos faziam a mesma atividade na escola?

C: Eles estavam juntos sempre.

G: Como escolhia qual seria a atividade?

C: Ia muito espontaneamente, nosso espaço era muito grande. Tinha um mezanino, então ao
mesmo tempo eles podiam se isolar em pequenos grupos e a gente estava em contato visual com todos.
Podiam ficar em baixo, em cima, podiam ir na quadra, passear no mato. Por exemplo, chegavam os
pequenos, uns iam direto para a mesa de argila, outros iam direto pegando panos, outros tinham um
parquinho de areia, isso era deles. E os maiores também escolhiam as atividades deles. Teve uma
época que eles começaram a se apaixonar pela poesia. Tínhamos tipo uma biblioteca, e eles subiam lá.
E aí eles liam e trocavam ideias a respeito de poemas e também eles liam e trocavam ideias e malicias
sobre livros de orientação sexual para adolescentes, que eles não tinham isso de jeito nenhum na casa
deles.

G: Vocês forneciam os materiais?

C: A biblioteca, os brinquedos, argila, velas para pingar, jogos... Tem todo o significado do
trabalho com fogo, né? Então são muitas as significações... É uma pobreza da nossa vida, é uma
pobreza criminosa (referindo-se à falta de contato com os elementos). E a gente compreende o fogo
através do Bachelard, através do Jung... Mais para frente, entre os anos do curso de Pedagogia
Profunda, a gente se pergunta: qual é o fascínio, qual é o significado desse trabalho com os elementos?
Eu te contei de um menino em uma escola publica que fez esse trabalho de pingar vela e nasceu o
desenho dele? É uma historia também muito bonita, e você fala: mas como você consegue decofidificar
a necessidade da criança? Eu acho que quando a gente começa a trilhar esse caminho da Pedagogia
Profunda a gente começa a desenvolver uma intuição daquilo que tem que ser feito com aquele grupo,
porque muitas vezes tem alguns que falam “ah, mas eu não trabalho com uma criança, não trabalho com
10 crianças, eu trabalho com 35 em um ambiente absolutamente hostil e desconfiado além de tudo”. Mas
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essas pessoas, e eu também, desenvolvemos uma intuição do que é necessário naquele momento. É
uma coisa que vem, quase que naturalmente e aí um colega minha me falava assim: eu tenho que levar
velas para a sala de aula, eu sei que eu tenho, não tenho tempo de comprar, e ela tava com mil
dificuldades na família e sempre com aquela ideia: eu tenho que levar a vela para a sala de aula. E um
belo dia ela estava saindo de casa, voltou, pegou um pacote de velas brancas, daquelas que a gente
tem em caso de falta de luz, vai essa mesmo. Eu sempre falo que tem que começar pelo mais simples.
Porque agora nos cursos de arte terapia o pessoal está jogando glitter na água antes de pingar. É
mágico também. Mas eu sempre falo: vamos pelo mais simples porque parece que você vai, sei lá, tira
aquele encanto sabe, primeiro deixa só o pingo na água, é maravilhoso. Depois, se sentir que há
demanda, ou já esgotaram aquela brincadeira, precisa introduzir alguma coisa a mais, sugira isso, mas
não vá logo de cara entupir a criança com materiais diversos. Vamos aos poucos. E aí na classe dessa
minha colega tinha uma criança que, um menino peruano que mal falava português. E ele sempre era o
apático, ele sempre ficava assim com a cabeça na escrivaninha, sempre estava meio que lacrimejando.
E ela falava assim “mas esse menino tem uma delicadeza, ele tem alguma coisa que eu acho que ele
não está conseguindo botar para fora nesse grupo de crianças agitadas. E ele era o lerdo da turma, e as
outras crianças já tinham, não de uma maneira maldosa, mas assim, quando minha colega falava assim
“fulaninho, pega aquela cola pra mim”, os outros falavam “ih, ele vai demorar meia hora”. Ele era
realmente o lerdinho.

G: Quantos anos ele tinha?

C: Ele tinha 5 anos. E aí naquele dia então ela trouxe aquela vela, formou grupinhos para as
crianças pingarem se revezando e a primeira coisa muito bonita foi duas meninas que estavam pingando
juntas de repente as duas praticamente na mesma hora falaram: hoje aconteceu alguma coisa muito
importante nessa escola. Mas a respeito da introdução do fogo sabe? Eu fico arrepiada quando eu
lembro disso, essa avaliação pela criança da importância desse simples fato e aí depois o menino pingou
também a vela branca na água. Ele gostou, ficou bastante tempo entretido com isso, contemplando, e aí
depois minha colega sugeriu que as crianças desenhassem algo a respeito dessa experiência de pingar
a vela na água, e esse menino também, ele preocupava, porque ele nunca pegava no lápis. Ele não
desenhava, não fazia nada. A única coisa que ele fazia quando insistiam muito, ele pegava uma folha e
fazia dois olhos. Pronto, eu fiz um desenho. E aí ela perguntava pra mãe: mas em casa ele também não
desenha? “não, ele nunca pega no lápis”. Naquele dia esse menino pegou uma folha, ele desenhou uma
rua, um carro com todos os detalhes, uma casa, umas arvores, umas plantas, umas crianças, uma
nuvem, o Sol, ele desenhou tudo. Ou seja, parece que o fogo fez vir, ele deu o nascimento, ele fez
nascer o desenho dele. Parece que ele deve ter dado uma finalização para um processo de maturação
que tava acontecendo dentro dele através de tanta passividade e de tantos comportamentos
introvertidos. Então, muitas vezes a gente pensa: meu deus, ele tem que treinar, tem que fazer. E não é
para fora que a gente tem que fomentar essas coisas. Tudo acontece dentro do vaso. Praticamente tudo
acontece dentro do vaso hermético e quando a coisa tá pronta ela nasce simplesmente.

G: Quando ela está pronta e quando tem alguma coisa que possibilita...
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C: Que possibilita... E essa bela intuição dessa menina que sentiu: “não, tem que ser hoje”. E
tem que ser daquele jeito extremamente simples que nem corresponde aquilo que eu tinha planejado.

G: Ela tinha liberdade para fazer isso nessa escola?

C: Liberdade muito relativa... Lá nessa escola onde ela trabalha ela é mal vista, ela é aquela que
tem as ideias malucas, a classe dela é sempre barulhenta, imagina, 35 crianças de 5 anos tem que ser
um silencio, normal isso entre as escolas, né? Então eu acho que o pior e o mais impressionante nesses
relatos que a gente sabe que essas pessoas não tem o apoio da comunidade. E é muito difícil, de
repente você se bota contra todo mundo. Pingar vela? O que é isso? De repente a pessoa, um belo dia
se ergue e fala assim: eu sei que é assim, eu faço assim e pronto. Ela é mal vista pelos pais que falam “a
professora na manhã passa conteúdos”. Tem que realmente ter algum apoio, mesmo que não seja
dentro da escola, que seja fora. Por exemplo, o apoio que os elementos que um grupo de Pedagogia
Profunda acaba tendo quando compartilham suas experiências e colocam suas duvidas. É super
importante. Então, e aí voltando àquela experiência, aquele gesto bonito. Durante o semestre inteiro foi
uma rejeição dos pequenos por parte dos maiores que vinham, reclamavam, e às vezes eles esbarravam
meio maldosamente nos pequenos. Eles não machucavam, mas não era um ambiente gostoso. E tudo
bem, os pequenos aceitavam, porque eles sabiam o que estava acontecendo e nós acolhíamos aquelas
queixas todas e respondíamos praticamente sempre as mesmas coisas, não tinha muito como variar. E
aí um belo dia, então, tem a questão das danças circulares também que é uma das ferramentas. A gente
pode considerar que as danças circulares fazem parte dos trabalhos corporais. Como os trabalhos
corporais atuam em todos os níveis. No físico, no intelectual, no emotivo, no espiritual. Ele promove essa
regulação dos sonhos (?). No início do meu trabalho com essas crianças eu era apaixonada por essas
danças, e continuo, mas naquela época eu tava muito mais, sabe assim esse momento de deslumbre
inicial. E aí quando comecei com essas crianças eu dançava com elas, e elas dançavam. Eu comecei a
pensar: o que estou fazendo? Porque eu poderia ficar dançando três horas com elas e para elas estava
perfeito. Mas o que é isso? De repente eu abro espaço para que essas crianças digam as suas palavras,
elas não tem espaço em outro lugar. Não tem em casa, não tem na escola, quando tem escola, e de
repente eu vou enfiando conteúdos, porque danças circulares são conteúdos. Aí eu parei um pouco,
parei de dar danças circulares, continuei brincando aquelas brincadeiras brasileiras, brincadeiras de
roda, tudo que dizia respeito à cultura infantil brasileira, aí sim, eu introduzia e brincava com eles. Mas
danças circulares de todas as regiões do mundo eu evitava. Então continuava com quem me ajudava,
nas festas a gente dançava, mas não de uma maneira regular. Porque primeiro a criança tem que criar
raízes com a sua cultura nacional, e a sua cultura etária. Eu sempre critico muito - ou pouco - sabe,
quem de repente, um educador que passa por uma experiência de dança circular e fala “meu deus, eu
me senti tão bem, tão sereno, tão tranquilo, eu vou levar isso pra minha escola”. E acaba sendo um
drama porque você tenta botar 50 crianças de 2 anos em um circulo, ninguém sabe, ninguém entende o
que é pra fazer, todo mundo fica angustiado, as crianças, os educadores, e eu nunca uso as danças
circulares para apaziguar, sabe, como um remédio, um anestésico, um tranquilizante vamos dizer. Eu
posso fazer isso, mas eu me recuso. E então para chegar no resultado desse belo caso, um dia os
maiores estavam no nosso espaço e eles estavam em círculo brincando de pisa pé, que é uma
brincadeira que você tem que pisar no pé do outro. Aí de repente umas das pré-adolescentes que tava
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brincando falou “chega, eu enjoei dessa brincadeira. Vamos brincar de rosa de maio?”. E rosa de maio é
uma musica muito infantil, e aí as pessoas formam uma roda. Aquela versão que eles cantavam era toda
cheia dessas diferenças gramaticais em coletâneas do Villa Lobos, de uma orquestra do Villa Lobos,
uma coletânea de musicas infantis, tem uma versão correta. Mas essa eles gostavam muito, e
brincavam, e cantavam e aí tem uma pessoa que fica do lado de fora, a roda começa a girar cantando e
aí a criança entra, escolhe uma criança para abraçar. E aí foi super bonito porque a roda se formou, os
meninos adolescente todos brincaram de rosa de maio e cada um na sua vez deu um abraço em um
pequeno. Foi uma coisa de arrepiar. Essas crianças mais velhas tinham rejeitado durante meses as
crianças pequenas e a gente fez o que dava pra fazer. Acolhia as reclamações, né, a gente não podia
fazer mais do que isso. Mas esse acolhimento permitiu que eles crescessem o suficiente para que eles
mesmos pudessem acolher os pequenininhos em um abraço circular que é simbolizado pela roda e por
um abraço concreto. Eu acredito muito mais nesse poder da roda e dança circular quando ela brota, e
não quando é imposta pelo educador. Um exemplo, uma realização dessas crianças que deu muita
confiança na gente “não, é por aí, vamos continuar, vamos aguentar, é dessa maneira discreta que a
gente pode ir levando a educação”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao estudar as possíveis contribuições da Psicologia Analítica de Carl Gustav


Jung e de alguns de seus seguidores ao campo da Educação, de pronto nos
deparamos com um dos princípios destacados por essa abordagem que se mostrou
como um fator essencial a ser considerado nesta pesquisa: o conceito de polaridades
proposto por Jung. Conforme explicitado na Introdução (p. 2), para cada elemento da
natureza existe a expressão de seu oposto, e o caminho evolutivo – tanto individual
quanto coletivo - ocorre através da integração destes opostos.

Constatamos que nossa cultura ocidental ainda se encontra em um momento


polarizado, que supervaloriza as expressões da razão / cognição extrovertidas em
detrimento de seus opostos, ou seja, as manifestações da emoção e da sensibilidade
dos indivíduos de caráter predominantemente introvertido.

Uma proposta educativa que vise o desenvolvimento integral dos indivíduos não
pode, portanto, desconsiderar as facetas e as manifestações de cada ser. Como na
prática clínica, a prática educacional deveria contribuir para a expressão mais ampla e
completa do potencial de cada individuo, propiciando o espaço para que os sujeitos se
manifestem como realmente são, de acordo com suas principais funções da
consciência, extrovertidas ou introvertidas.

Conforme já foi mencionado, a entrevista coletada foi incluída neste estudo a


título de ilustração sobre a aplicabilidade destas proposições e de como as crianças
podem se beneficiar com a transposição desse tipo de abordagem ao campo da
educação. Podemos dizer que o trabalho da entrevistada – Céline Lorthois – ao adotar
a proposta da Psicologia Analítica, embora ainda ande na contramão dos padrões
vigentes em nossa sociedade, oferece uma alternativa compensatória à sua
polarização, ao propor um espaço onde a liberdade compartilhada permite a
manifestação própria de cada ser.

Não foi possível, entretanto, localizar alguma iniciativa educativa formalizada que
adote os fundamentos da Psicologia junguiana. Nada mais natural, visto essa
proposição ser tão recente em relação à história milenar da Educação ocidental. Toda
evolução acontece dentro de um contexto de tempo e espaço, e só mais recentemente
os padrões vigentes na Educação ocidental passaram a ser questionados de modo
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significativo, a ponto de surgirem pospostas de sua revisão. Como exemplo, podemos


citar a Pedagogia Simbólica Junguiana, elaborada por Carlos Byington, também
mencionada na nossa Introdução. Trata-se de uma proposta ampla e promissora, mas
que até o momento só existe em teoria. Para que tal nível de transformação possa ser
implantado em nosso sistema educacional será necessário que a ampliação de
consciência – em níveis do coletivo – propicie a receptividade suficiente para sua
acolhida em nossa sociedade; ou seja, é necessário que ocorra um processo de
conscientização mais amplo – processo esse possivelmente já em curso – porém
talvez mais lentamente do que gostaríamos.

Cabe ainda ressaltar que as proposições aqui destacadas em nenhum momento


pretendem negar as aquisições já conquistadas pelas nossas escolas através do um
ensino centrado no desenvolvimento do intelecto e da racionalidade. Propõem, apenas,
sua relativização e a busca de maior equilíbrio em relação ao desenvolvimento das
demais potencialidades humanas. Trata-se, portanto, de reconhecermos o processo
evolutivo cujas conquistas não devem ser negligenciadas, mas sim integradas ao
processo em andamento. Tais conquistas fazem parte do caminho que percorremos
como humanidade, e quaisquer delas só foram possíveis porque passamos pelas
etapas anteriores. E sendo as etapas anteriores um polo da questão, cabe integrá-lo
ao polo oposto e criar uma síntese entre ambos, uma nova maneira de enxergar a
questão. Maneira esta que não deve ser entendida como um ponto final, mas sim como
uma nova etapa da consciência coletiva que também poderá ser superada, a seu
tempo.

Trata-se de um processo que vai do coletivo para o individual e do indivíduo para


o coletivo. Uma dialética que depende da prontidão do coletivo para assimilar as
transformações trazidas por lideranças individuais catalisadoras. E dialéticas deste tipo
não acontecem forçosamente.

Uma das conquistas que marcaram nosso tempo é a revolução digital e suas
repercussões sobre as formas como hoje nos comunicamos e acessamos as
informações. Essa conquista representa uma revolução no processo de construção do
conhecimento e uma grande aceleração das transformações científicas.

Com a internet e a livre e acelerada circulação de informações, os sábios não


são mais aqueles que detêm uma grande quantidade de conhecimento, e sim aqueles
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que têm habilidade para utilizar o conhecimento que a internet fornece e dissemina. Se
as escolas não despertarem para essa realidade, se tornarão ineficazes para acolher e
conduzir o aprendizado dos seres humanos destes novos tempos. Parece esta uma
condição evolutiva inevitável e suas implicações são tão intensas que vão desde uma
mudança no papel do educador até o papel do próprio aluno. A construção do
conhecimento agora já segue o novo padrão transversal, ou seja, não acontece mais
nos moldes da tradicional transmissão vertical, em que um indivíduo ‘ensinava’ ao
outro, que se mantinha passivo durante esse processo. Segundo esse novo padrão, o
conhecimento é construído e partilhado na grande rede, de forma coletiva e
democrática.

No capítulo 2 desta pesquisa dissemos que a educação contemporânea pode


ser chamada de educação para a democracia (p.13). Isto deve-se ao fato de que o
século XX foi caracterizado pela crescente autonomia dos indivíduos em relação ao
pensar e agir, o que acarretou na atribuição à escola do papel de transmissão da
cultura e de valores de cidadania. Segundo Farah (2009),

(...) os recursos da WEB são utilizados para manter e expandir a


liberdade de expressão e a democracia, em seu sentido mais amplo,
popular e convencional. Segundo Levy “há uma correlação muito forte
entre o progresso das técnicas de comunicação, em especial, e a
democracia” (LEVY, 2001[b]). (FARAH, 2009).

Para que as escolas possam se adequar a este contexto, também podemos


retomar a ideia apresentada no capítulo 3, sobre a importância da formação de
indivíduos que construam seus valores individuais, pois:

O homem que se perde nos valores coletivos e não processa para si


que sentido aquilo tem, não referenda sua própria historia, não vai
conseguir ser um agente de cultura, não vai ser alguém que tolera os
opostos, vai ser alguém que reproduz o que recebe. (VILLARES, 2000,
Pensadores e a Educação). (p. 25 deste trabalho – COMO CITAR?)

A escola pode escolher abrir mão de valores arcaicos como a verticalidade ainda
predominante no sistema de ensino, a polarização da razão, a supervalorização do
pensamento, ou então poderá tentar mantê-los, exercendo uma espécie de resistência
frente às forças da evolução. Abrir mão destes valores tão antigos pode parecer
assustador. Mas atentar e acompanhar o processo natural de ampliação de
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consciência da sociedade como um todo também poderá representar um alívio para o


educador que deixará de tentar encaixar seus alunos dentro de um resultado
educacional pré-moldado que muitas vezes pode ser inviável para aquele indivíduo.
Diante de um aluno, o educador passará a se perguntar: qual é o seu talento? Quais
são suas habilidades? Propondo, assim, que cada um faça o seu melhor, dentro de sua
possibilidade, tipologia, personalidade.

Consideremos este trabalho como mais um passo em direção ao movimento de


integração dos opostos e a favor da ampliação de consciência no que tange às teorias
e as práticas educacionais. Encaremos esta discussão não como ‘final’, mas como uma
abertura de possibilidades a serem identificadas, sem a pretensão de esgotá-las, mas
deixando as portas abertas para novas percepções, estudos e discussões sobre o tema
proposto.
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