Artigo - Educação para o Processo de Individuação
Artigo - Educação para o Processo de Individuação
Artigo - Educação para o Processo de Individuação
Glenda Beigler
Glenda Beigler
RESUMO
Tendo em vista as recentes críticas ao modelo positivista - ainda predominante
nos diversos campos das ciências - por adotarem como paradigmas fundamentais a
razão e a lógica como bases para a construção do conhecimento, vemos surgir no
contexto atual propostas de novos modelos para a Educação. A importância deste
movimento se destaca na medida em que se observa a falência da educação
convencional no mundo moderno, em que os alunos saem da escola muitas vezes sem
ter desenvolvido o interesse pelo aprendizado e pela cultura, e sim uma grande
separação entre sujeito e objeto, teoria e prática, escola e o universo profissional. As
consequências dessas dicotomias são muitas e aparecem não só no desinteresse de
alunos e professores pela escola, como também na patologização do fracasso escolar,
nas neuroses de massa, no vertiginoso crescimento da tecnologia e destruição da
natureza, no predomínio da técnica homogenizadora sobre a individualidade criativa.
Sobre esses assuntos nos fala a Psicologia Analítica de C. G. Jung. Por muitos
anos a Psicologia Analítica foi identificada quase que exclusivamente como um método
de trabalho clínico, porém cada vez mais se amplia o reconhecimento do seu amplo
campo de abrangência e a aplicação da sua visão de homem e de mundo podem nos
fornecer importantes elementos para fundamentar uma reflexão sobre os modelos
educacionais vigentes. Esta pesquisa tem como objetivo um aprofundamento na obra
de Jung e seus seguidores no que diz respeito a este assunto. Espera-se que os
elementos encontrados nesta busca nos permitam repensar os moldes tradicionais da
Educação, e verificar como seria possível uma escola que favoreça o processo de
individuação.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 5
MÉTODO................................................................................................................................................11
PROCEDIMENTO ....................................................................................................................................12
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................................42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................................................46
5
INTRODUÇÃO
O século XIX foi marcado por um intenso crescimento das ciências naturais
positivistas, que tinham como objetivo a busca da verdade dos fenômenos. Surge deste
paradigma a noção de que para se estudar os fenômenos, deve-se separar, ao máximo
possível, o sujeito que observa do objeto que é observado, a fim de que o primeiro não
exerça influência sobre o segundo. Dessa forma, qualquer observador obteria os
mesmos resultados em relação aos mesmos objetos, confirmando a hipótese de que o
que determina a essência de cada ser é ele mesmo.
O pensamento de Carl Gustav Jung pode ser entendido sob esta ótica. Segundo
Von Franz (1975/1992), a noção de inconsciente proposta pela Psicologia Analítica
marca o fim do racionalismo científico do século XIX. Para Jung, o inconsciente é uma
instância psíquica espontânea e criativa, que constitui a fonte da consciência. Esta, por
sua vez, é sinônimo de conhecimento. Ou seja, o inconsciente é a fonte do
conhecimento, e a consciência é a forma ou a via pela qual ele pode se manifestar. Na
construção de sua teoria Psicológica, Jung defende uma síntese entre estes dois
modos de produção de conhecimento: o pautado pela razão consciente, e o pautado
pela não-razão, isto é, pela emoção. “As idéias de Jung, entretanto, foram duramente
6
E quanto mais forte for a tensão entre os opostos tanto maior será
a quantidade de energia daí resultante, e quanto maior for esta energia,
tanto mais intensa será a força de atração consteladora. A uma atração
mais forte corresponde uma amplidão maior do material constelado, e
quanto mais extensa for essa amplidão, tanto mais reduzida se torna a
possibilidade de distúrbios posteriores que não podem originar-se de
diferenças relativas ao material não constelado precedentemente.
(JUNG, C. G., 1985, p25).
Se um dos pólos é muito mais evocado que o outro, será mais desenvolvido e
elaborado pela consciência, enquanto o outro se tornará, proporcionalmente, cada vez
mais primitivo e subdesenvolvido. Vivemos em uma sociedade pragmática cujas
instituições (família, trabalho, escola) evocam sempre o pólo da consciência racional e
7
Sobre este assunto também nos fala Nise da Silveira (2000), em “Jung: Vida e
Obra”:
1
Movimento que teve início no Brasil por volta de 1920 e que, através do Manifesto da Escola Nova
(1932) ganhou força em prol de um sistema educacional que acompanhasse as mudanças que o país
sofria na época de sua industrialização. Foi uma tentativa dos intelectuais da época de tornar a
educação mais acessível, pública, laica e aberta.
10
Neste contexto e influenciado por estas novas correntes, Carlos Amadeu Botelho
Byington (2003) criou a teoria do Construtivismo Simbólico. Tendo como base o
pensamento arquetípico junguiano e influenciado pelas teorias de Freud, Melanie Klein,
Heidegger, Piaget, Neumann e Teilhard de Chardin, Byington criou a Pedagogia
Simbóliga Junguiana. Seu objetivo é resgatar a vivência emocional e prazerosa no
ensino para aprofundar o aprendizado e dificultar seu esquecimento. Ele diz:
Apesar de ter sido influenciado por todos estes pensadores, Byington denomina
sua teoria como junguiana, pois o seu aspecto central considera a dimensão simbólica
teorizada por Jung.
O presente estudo tem como objetivo propor uma reflexão sobre a aplicabilidade
das propostas da Psicologia Analítica, tal como elaborada por Jung e por alguns
autores pós – junguianos, ao campo da educação. Será elaborado, em um primeiro
momento, um estudo sobre as contribuições destes autores no que diz respeito a este
assunto. Em um segundo momento, procuraremos ilustrar a viabilidade da aplicação
dessas propostas por meio do relato de uma experiência já em andamento.
Entrevistaremos um educador que diga utilizar fundamentos junguianos em sua
atuação em busca de um exemplo de como é possível uma educação em que o
pensamento não seja excessivamente valorizado e que haja espaço para o
aparecimento das outras funções da consciência como produto do inconsciente.
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OBJETIVO
Este estudo tem como objetivo realizar uma reflexão sobre a aplicabilidade
concreta das propostas da Psicologia Analítica, tal como elaborada por Jung e por
alguns autores pós – junguianos, ao campo da educação.
MÉTODO
Para alcançar o objetivo a que se propõe este estudo foi feita uma pesquisa
teórica desenvolvida nos moldes qualitativos de pesquisa, cuja principal característica é
propor um olhar interpretativo e compreensivo do fenômeno estudado.
PROCEDIMENTO
Paulo Freire, por outro lado, no conjunto de sua obra apresenta uma visão
peculiar sobre esta distinção, tensionando dialeticamente ação e reflexão, e
considerando a Pedagogia como algo no âmbito desta tensão:
A escola, por sua vez, diz respeito à instituição onde se concretiza o direito à
Educação. Este conceito também carrega aspectos do imaginário social, derivados da
idéia de natureza humana vigente em cada época. Podemos distinguir a escola, a partir
da Idade Moderna, em dois momentos fundamentais: a Escola Tradicional e a Escola
Nova. A primeira pode ser definida como aquela em que a idéia de natureza humana
está ligada à concepção cristã de que a criança tem uma origem corrompida, visto que
é fruto do pecado original, e que a tarefa da escola é desenraizar o seu mal,
ensinando-a a se autocontrolar através da disciplina. A Escola Nova, por sua vez, está
ligada a outra perspectiva relativa à natureza humana, ou seja, a de que a criança
nasce pura, mas corre o risco de ser corrompida. Neste caso, a tarefa da escola passa
a ser a de uma fortaleza, que protege a criança contra o mal do mundo que pode
corrompê-la. Vejamos como esses conceitos e ideologias permearam a história da
Educação em diferentes épocas.
As Teorias Educacionais
alunos o desabrochar de suas virtudes que, segundo ele, já estariam presentes em sua
natureza. Essas idéias, como veremos nos próximos capítulos, se relacionam
diretamente com a teoria de Jung. Quanto a Platão e Aristóteles, pode-se dizer que
suas maiores contribuições para a pedagogia derivam das suas concepções de
natureza humana, cuja essência é a racionalidade. Esta visão marcou profundamente a
tradição ocidental, sobretudo a partir da idade moderna (COTRIM, 1979).
A partir dos séculos XIV e XV iniciou-se a chamada Renascença (no campo das
artes) ou Humanismo (no campo pedagógico, filosófico e literário). As escolas
religiosas continuaram se multiplicando pela Europa e suas colônias e, apesar das
criticas a autoridade dogmatizada medieval, ainda mantinha um modelo hierarquizado
e elitista. Aqui, a concepção vigente ainda era essencialista, segundo a qual a
educação teria por objetivo desenvolver as potencialidades do ser humano, mas já
começam também a surgir tanto a percepção de problemas existenciais quanto as
críticas aos dogmas tradicionais.
que se fundavam no direito divino dos reis, não fazia mais sentido atrelar a educação à
religião e nem aos interesses de uma classe. Um dos aspectos marcantes do
Iluminismo é ter sido um período muito rico em reflexões pedagógicas.
Com este maior rigor nas reflexões educacionais, a Psicologia foi ganhando
importância e sendo cada vez mais inserida neste contexto. Vejamos algumas das
teorias psicológicas que foram utilizadas na Educação e em que momento nos
encontramos atualmente.
Nossa intenção aqui não será esgotar a descrição proposta, mas apenas ilustrar
o panorama das correlações entre as correntes psicológicas e a Educação.
Segundo Byington (1987), desde cedo a criança aprende, por si mesma, quais
são os canais de expressão aprovados socialmente e os emprega para receber o amor
que necessita para viver e crescer. Forma sua persona a partir dos canais de
expressão que percebe serem aprovados, ao mesmo tempo em que os símbolos e
22
funções simbólicas que não são aprovados ou simplesmente não têm meio habitual de
expressão são depositados (reprimidos) na sombra.
Os símbolos que atuam na sombra não são nem mais nem menos
importantes de que aqueles que atuam através da persona, mas são
igualmente úteis para o desenvolvimento da liberdade. A ausência de
confronto e integração de símbolos significativos da sombra na
consciência pode, com o tempo, trazer um desequilíbrio acentuado na
formação da vivência da identidade. (BYINGTON, 1987, p. 38).
Por persona e sombra, estamos nos referindo aos conceitos propostos por Jung
e explicitados por Murray Stein em “O Mapa da Alma” (2006). O capítulo do livro em
que estes temas são abordados tem o título de “O revelado e o oculto nas relações
com os outros”, o que já dá pistas sobre os dois conceitos que serão abordados. O
“revelado” refere-se ao conceito de persona, enquanto o “oculto” diz respeito à sombra.
Segundo Stein, sombra e persona,
A sombra, por sua vez, como o oposto da persona, é composta pelo conjunto de
traços psicológicos correspondentes à “Quaisquer partes da personalidade que
normalmente pertenceriam ao ego se estivessem integradas mas foram suprimidas por
causa de dissonância cognitiva ou emocional, caem na sombra”. (STEIN, 2006). Ou
seja, são qualidades que não foram selecionadas pela consciência individual, por
serem consideradas pouco desejáveis pela sociedade, acabam sendo reprimidas e
caindo no insconsciente. Pode-se dizer, portanto, que a sombra é a face posterior do
ego.
Além disso, para a Psicologia Analítica temos também que a psique da criança
apreende mitologicamente. Sua apreensão do mundo se faz em categorias conhecidas
por nós através dos mitos. Neumann discorre sobre este tema de maneira mais
detalhada em “A História da Origem da Consciência” (1968). Este seu estudo é uma
tentativa de esboçar os estágios arquetípicos da consciência humana, considerando
seu desenvolvimento em correlação com fatores internos, psíquicos e arquetípicos.
Seu objetivo é demonstrar que uma série de arquétipos participa da constituição da
mitologia, que, em estágios sucessivos, determina o desenvolvimento da consciência,
desde o início dos tempos.
24
Nise da Silveira, em seu livro “Jung - Vida e Obra” (2000), explica que Jung
distingue três tipos de educação. O primeiro deles é a educação por meio do exemplo.
Este tipo de educação diz respeito ao modo de ser dos pais da criança, que, segundo
Jung, exerce enorme influência sobre sua educação, mesmo que de maneira
completamente inconsciente. A criança identifica-se com o ambiente em que vive e sua
psique é estreitamente ligada à psique dos pais, ela é um produto deles. Não é preciso
26
dizer que os professores se encontram ao lado dos pais nesta fase da educação, e que
é de extrema importância que eles conheçam e eduquem a si próprios. Evidentemente
isto não significa que o ideal é que sejam perfeitos, mas sim que se conscientizem de
sua própria personalidade e que possam reconhecer quando cometem erros, tendo
uma atitude sincera frente aos problemas e procurando recursos para solucioná-los.
Este assunto pode ser relacionado com o que Byington (2008) denomina
arquétipo da alteridade. Este arquétipo diz respeito a uma evolução da consciência
(individual e coletiva) em direção da totalidade em função da integração entre as
polaridades, inclusive as funções opostas da consciência, ou seja, a consciência e a
sombra. Este arquétipo é capaz de dar direitos iguais de expressão a todas as
polaridades. O nome “alteridade” diz respeito à integração e aceitação do Outro como
não-eu e o Outro em mim, do diferente, da capacidade de empatia sobre a qual
28
Com relação à “educação individual”, Filho e Villares propõe que a escola deve
também ser capaz de abarcar as manifestações individuais de cada aluno. Em diversos
momentos esta individualidade se manifesta, e o professor deve ter a sensibilidade de
saber acolhe-la. A considerada “inadaptação” de determinado aluno pode, por exemplo,
querer dizer algo sobre sua individualidade. Pode ser um pedido, um protesto que não
se soube formular em palavras. É um ato sutil e simbólico, cujo núcleo deve ser
observado, e não punido. As técnicas expressivas também são elencadas como uma
maneira de trazer à tona o símbolo de forma que ele possa exercer a sua função, ou
seja, transformar em consciente algo que estava inconsciente.
Segundo Villares, a Educação é uma instância que tem por obrigação formar
indivíduos reflexivos e pensantes e:
E ainda,
Celine Lorthois nasceu na França e veio para o Brasil na década de 1980. Aqui
estudou Pedagogia e se pós-graduou em Psicologia da Educação. Nesta época teve
contato com a Psicologia Analítica e desde então procura maneiras de permear sua
prática educacional a partir desta teoria. Realizou desde atendimentos individuais até
uma proposta grupal, mas sempre de forma autônoma, e nunca dentro de instituições.
Vejamos como estas suas experiências e a análise das mesmas - feita pela
própria Céline – podem nos ajudar a visualizar como as ideias teóricas que trouxemos
até então podem ser aplicadas em um tipo de prática, e quais são os benefícios que
podem trazer para os educandos, bem com as dificuldades que enfrentam em nosso
mundo atual.
Foi feita a opção por apresentar a entrevista na íntegra, pois visamos, desta
forma, passar ao leitor não só o “clima” do trabalho desenvolvido pela entrevistada,
mas também as peculiaridades e circunstâncias nas quais seus experimentos na área
da Educação são realizados.
Transcrição da entrevista
Céline: Quando me vi aqui mais ou menos presa no Brasil - que eu tinha esperança de voltar
para a França para continuar os estudos que eu tinha começado que eram mais literários - e aí quando
vi que ia ficar, ia ter que ficar aqui, eu decidi recomeçar a estudar aqui. Pensei: o que eu faço?
Pedagogia ou Psicologia? Me atraía mais a Psicologia. Mas na época eu achava muito elitista essa área
de atuação, porque o atendimento... Ainda mais nessa época, tinha um foco muito clínico, muito no
tratamento individual, e eu pensei: o Brasil precisa tanto, eu quero fazer alguma coisa que me possibilite
trabalhar com grupos.
C: Eu vim para o Brasil porque me casei com o meu marido e a família dele tinha uma fábrica
aqui e nunca ninguém tinha vindo. Nada a ver comigo, né? E aí ele tinha que ficar quatro anos, e eu
implorei: dois anos. Quatro anos é muito tempo, e ele falou “tá bom”, mas ele me enganou, porque estou
aqui até hoje.
C: Ele é francês. E a fábrica não existe mais. Então, é muito bonito assim quando a gente olha
pra trás e vê, meu deus, que joguinho bem bolado, né? Tudo se encaixou perfeitamente. E aí pensei,
então, vou fazer Pedagogia. Eu queria também fazer agronomia, me atraía muito, mas eu tinha três
filhos pequenos. Resolvi fazer Pedagogia, uma coisa mais comportada. E aí eu comecei a ficar muito
decepcionada com a Pedagogia e com os currículos da graduação, porque na época também a PUC era
só marxista, qualquer área era marxista. No entanto eu encontrei pessoas muito legais, mas eu não
encontrava nada, nenhuma linha pedagógica que eu dissesse “puxa, é isso aí, é por aí.”. Assim, tudo
que eu estudava me trazia uma decepção. Até o dia que eu encontrei a Pel. A Maria Luiza, mulher do
Sandor, me falou “tem uma moça que tem um trabalho bonito, chama ela, ela pode de repente fazer uma
palestra na PUC...”. Aí eu chamei e eu vi assim o primeiro o trabalho dela, quer dizer, o primeiro que eu
vi porque ela fez muita coisa antes.
G: A Pel é Psicóloga?
C: Ela é Pedagoga. E aí realmente acendeu uma luz, esse trabalho, uma experiência na Bahia.
E aí depois por acaso eu conheci o Sándor2, a Maria Luiza... Mas foi muito por acaso, porque o meu
filho, o meu primeiro filho tava muito... Tinha muitos problemas, ele teve um começo na vida muito
complicado, então eu acho que quando ele teve uns sete anos ele tinha problemas na escola e quem o
atendeu, por acaso, foi uma aluna do Sándor, uma colega e aluna do Sándor. E aí quando eu precisei de
atendimento, porque cortar todos os laços com sua terra, com sua família, com seus projetos, e de
repente se transferir para uma outra terra é receita para loucura, né? Então quando eu precisei fazer
terapia, essa moça que atendia o meu filho me indicou a Maria Luiza, mas eu estava perto e eu podia ter
passado assim reto sem ver, mas de repente o destino realmente colocou todas as peças do jogo assim
direitinho. Aí eu comecei a conhecer, a fazer uma terapia com a Maria Luiza, comecei a fazer os grupos
do Sándor e aí eu comecei a me encantar pela a Psicologia Junguiana e comecei a ver diferentes
maneiras de casar a Psicologia e a Pedagogia para criar uma Pedagogia assim, sei lá, abrangente,
decente, que não podasse tantas coisas na criança.
C: Isso foi... Quando conheci a Maria Luiza... Por volta dos anos 80. E aí depois eu me formei,
me graduei e pensei: sou Pedagoga mas eu quero tudo na vida menos trabalhar numa escola. Porque
realmente não tinha nada a ver com os meus, assim, as minhas ideias sobre o educar melhor, o ensino
escolar. E aí eu pensei, “não, eu gostaria de atender crianças”. Na realidade eu queria, o meu primeiro
projeto era atender mães e filhos juntos. E aí a Maria Luiza me apoiou muito nesse projeto e ele nunca
deu certo. Chegavam as crianças, mas as mães não.
2
Dr. Petho Sandor (1916-1992) foi um médico e psicólogo húngaro radicado no Brasil desde 1949. Assumia a
teoria Junguiana, e acrescentou o trabalho corporal ao trabalho verbal. Maria Luiza Simões foi sua esposa, também
psicóloga e colaboradora.
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C: Não, porque eu fiz essa proposta de um ateliê mãe e filho, mas acho que as mães preferem
entregar os filhos, sabe?
C: Era um ateliê vivencial vamos dizer, sabe, assim, para tentar resgatar uma relação mãe e
filho, para tentar curtir essa relação, que tinha tão pouco tempo para ser curtida na vida aqui em São
Paulo, nessa vida apressada. E sei lá, mas também eu não me abalei com isso, e chegavam as crianças
e eu fazia esse trabalho de acompanhamento pedagógico que as vezes as pessoas falam “ah, você é
Psicóloga”. Não, eu sou Pedagoga, mas eu acho que dá para fazer um bom trabalho casando meus
conhecimentos de Psicologia com os conhecimentos da Pedagogia. E aí foi tudo bem.
C: Era aqui em São Paulo. O engraçado também era que quando eu terminei a graduação,
primeiro eu quis fazer pós-graduação logo em seguida. Eu fiz isso, mas foi inútil. Eu acho que eu
pensava “não, eu quero encontrar alguma coisa melhor”, eu só pensava, só insistia, e na realidade a
pós-graduação é algo infernal. Eu acho que hoje em dia é um pouco menos. Mas na época era bem
assim a travessia do inferno.
C: Psicologia da Educação na PUC. Hoje em dia eu penso “não, valeu a pena” porque dá um
pouquinho mais de credibilidade ao meu trabalho só esse titulo conquistado com tantas lágrimas e
sofrimento. Por causa das exigências absurdas, sabe? Mas tudo bem, tudo vale a pena.
C: Porque... Sabe assim, sei lá, você abre uma padaria, você abre de frente para a rua, as
pessoas vêm.
C: Sim, simplesmente! Mas assim, não foi tão direto. Mas na época, a Maria Luiza era tão boa
divulgadora que não precisava ficar tão de cara para a rua. Acaba sendo cada dia mais perigoso ser
visível nesse sentido. E aí foi indo assim tudo muito bem, e o trabalho com as crianças estava muito
interessante.
C: Então, tinha um pouco de tudo. Crianças que tinham dificuldades escolares, tinham
problemas afetivos, às vezes crianças que tinham alguma deficiência. Mas assim, queixas bem variadas.
E às vezes era apenas um vago mal estar, tanto da família quanto da criança, e aí depois de... Quanto
tempo? Muito tempo, acho que uns dez anos desse trabalho, eu pensei “não, não suporto mais isso”. Era
uma hora, uma criança, uma hora, uma criança, uma hora, uma criança... E aí começou a ficar meio
insuportável. E eu pensava também que esse trabalho adiantava sim, mas era muito pontual. Essa
criança era, de uma certa maneira foi, destruída pela escola ou por outras circunstâncias. Eu não
consigo nada com ela. Nós conseguimos que ela se reconstrua e saia mais fortalecida do trabalho, mas
não adianta nada assim numa escala maior. A escola continua sendo o que ela é...
C: Continua sendo, o ateliê continua sendo um lugar de liberdade em que a criança faz o que ela
quer, ou seja, eu proponho: podemos conversar, podemos fazer trabalho corporal, podemos conversar
sobre sonhos, podemos ficar calados, podemos fazer trabalhos manuais, podemos brincar, jogar jogos,
podemos assim brincar simplesmente, de uma maneira descompromissada com a matéria, com água,
barro, gesso ou fogo... E a criança tem muita facilidade pra explorar o espaço de liberdade. E às vezes
as pessoas pensam “você dirige muito pouco”. E assim, para mim não adianta nada dirigir, acho que eu
já falei isso, que a liberdade não é um qualquer coisa, não é deixar fazer, claro que é também, mas é
colocar alguns limites sensatos, claros.
G: Com sentido?
C: Com sentido, e tranquilo, tipo assim, o limite do espaço, o nosso espaço é esse, pode fazer
tudo, não pode incendiar a minha sala, o limite do tempo, também tem “você entra essa hora, sai essa
hora, porque tem outra pessoa”... Para lidar com tal material tem que tomar cuidado, né? Então são os
limites reais. Isso era aceito muito bem. E assim, sempre falo que a liberdade em pedagogia, ou na vida
em geral, a verdadeira liberdade, ela é pedagógica, ela é profilática, ela é terapêutica. A verdadeira
liberdade, ela faz aquilo que dá pra ser feito naquele sujeito, naquele grupo de pessoas, até no próprio
educador. E sempre dá resultados maravilhosos essa experiência da liberdade. Sempre, sempre. Em
termos de fortalecer a criança, de ajudar ela a se construir, se reconstruir. E aí eu penso, também assim,
em 95 fiquei gravemente doente e pensei “bom, é melhor eu realizar os meus sonhos agora porque não
sabemos o que pode acontecer”. Aí eu decidi sair daqui e tentar um trabalho grupal. Isso bem no sentido
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de... Tudo bem, o trabalho individual é maravilhoso, mas ele é individual. Vamos ver assim, vamos
tentar, mesmo que seja simbolicamente, em termos de número, fazer um trabalho grupal, educativo,
melhor do que aquilo que tem geralmente na Educação. Quando eu falo isso parece que eu estou
acabando com todas as escolas, eu pego mais frequentemente os casos de alunos que não deram certo
na escola, mas eu sei que existem certas escolas que satisfazem as crianças. Por exemplo, as escolas
tradicionais pra certas crianças elas são maravilhosas, e pra outras nem tanto. É bom que haja essa
diversidade de escolas porque são seres humanos diversos também, né? Mas, de maneira geral,
considerando os casos que eu tava atendendo, eu via que as coisas não estavam melhorando muito no
terreno da Educação, principalmente porque a alma da criança, sua função religiosa, não estava sendo
considerada na Educação. Então isso é a mesma coisa que... eu acho que vai assim caminha junto com
a liberdade. Ela deve vir para o espaço pedagógico com a sua alma, deve deixar sua alma aflorar, de
permitir que ela se expresse, isso também é pedagógico, é terapêutico.
G: É nesse sentido que a função religiosa não é considerada na escola? De não propiciar a
liberdade?
C: Quando tem liberdade a alma aflora, a alma da criança. E quando não tem, mais dificilmente
ela aflora. Mas de maneira geral a criança é um intelecto e ela é um corpo. Quando é um corpo né? Na
escola. Mas ela não tem esse lado espiritual que também tem as suas exigências. está precisando de
expressão e de espaço. E então, aí eu morava em Cotia também, durante o fim de semana e em São
Paulo durante a semana. Eu disse, eu fecho aqui, o ateliê, e fico em Cotia, vou iniciar um trabalho grupal
em Cotia. E eu comecei esse trabalho com crianças de uma comunidade bem carente que tinha em
volta. Comecei com as crianças pequenas que não tinham acesso à pré-escola, e aos poucos os
maiores, os vizinhos, aqueles que já frequentavam a escola publica, começaram a se interessar e a
gente começou a trabalhar com todos.
C: A mais nova tinha 2 anos e a mais velha 72. Então não tinha muito uma faixa, né? E inclusive
muitas vezes eu tenho alunos do curso de Pedagogia Profunda, pessoas interessadas que perguntam
assim “eu queria fazer esse curso para mim, posso?” E eu respondo: “é principalmente para você esse
curso”. Porque eu acho que se o curso não toca a pessoa, não vai dar para passar adiante. É um curso
que impele para a transformação. Inclusive, recentemente eu estava dando um curso no SESC e aí no
fim do curso tem uma menina que falou, você sabe que eu nem sei por que eu vim fazer esse curso,
porque não tem nada a ver com aquilo que eu faço. É que eu adoro fazer cursos, então qualquer coisa
que aparece eu faço. Mas você sabe que eu vou utilizar tanto os conhecimentos, os conteúdos e as
técnicas que foram passadas no curso. Eu acho que é bem por aí sabe, de repente é um curso que
foque a educação, que foque o cuidado com a integridade psicológica das crianças. Ele atinge as
pessoas, e se ele não tiver essa possibilidade de ser aplicado em múltiplos ambientes e profissões acho
que ele erraria o alvo, mas o alvo realmente é de ser mais ou menos, não universal, porque parece
pretensioso, mas sabe assim esses conhecimentos simples que você pode aplicar em todo lugar e em
praticamente todos os momentos. E aí eu fiz esse trabalho grupal e a proposta era a mesma coisa:
oferecer um espaço de liberdade onde as crianças pudessem se expressar e se construir e com essa
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determinação de tentar decodificar quais eram os interesses da criança, por onde ela está querendo se
encaminhar. Na medida do possível oferecer recursos para ela poder sanar a sua curiosidade, para ela
alcançar alguns conteúdos que lhe dizem respeito naquele momento.
C: Eu lembro que no curso você falava que a criança gostava de ser desafiada pelo adulto, você
lembra?
G: Eu falava que às vezes era bom dirigir um pouco porque a criança às vezes gostava, ou
precisava de uma direção...
C: Tudo depende das circunstâncias. Às vezes você consegue identificar que a criança está
esperando de você um desafio, um direcionamento. Isso também é muito interessante observar do ponto
de vista da Psicologia junguiana. Uma criança introvertida vai aceitar mais facilmente as sugestões que
vem de dentro. Uma criança extrovertida vai aceitar mais facilmente - e ela vai desejar - sugestões vindo
de fora. Então para essa criança extrovertida, a escola tradicional, em que tudo é conduzido, dirigido, é
perfeita, ela tá feliz, ela não sofre na escola. Uma criança introvertida pode sofrer mais em um ambiente
em que tudo é sugerido.
C: Sim, e também tem uma moda né? De repente, quando os pais são chamados na escola: “ai,
seu filho é extrovertido, legal!”. Os pais se sentem assim lisonjeados, felizes se falarem que o seu filho é
extrovertido. Na própria terapia, de repente é quase doentio, né?
C: Não pode né? Então esse gênero mais contemplativo não se encaixa de maneira geral nas
escolas. Então como seguir o interesse da criança? A criança as vezes é tão explícita e as vezes ela não
é. Às vezes basta sugerir: “você quer isso ou aquilo?”. Ou às vezes ela vai direto para aquilo que
interesse. No trabalho individual é muito fácil perceber as pistas que a criança dá no sentido de ela por
um momento em que ela gosta mais de trabalhar com a matéria ou ela está em um momento em que
curte mais jogos, ou sei lá, ela sempre deixa, ela dá dicas e às vezes até pistas. Se não a gente vai
propondo né, e pondo um ambiente de liberdade é fácil ela se dirigir para aquilo que diz respeito ao seu
momento. De repente eu tava pensando no carro, você falava “tem algumas crianças que gostam de ser
dirigidas, desafiadas pelo adulto.” E aí eu penso: aí que a gente tem que prestar atenção, tem que tomar
cuidado. Uma criança, eu sinto que ela tá esperando de mim um desafio. Será que ela está tentando me
agradar? E ela está se perdendo? De repente ela não tá em contato com a necessidade dela. Essas
pequenas coisas que a gente precisa observar, mas com uma observação cuidadosa que a gente acaba
geralmente enxergando. Acho que é a nossa boa vontade que faz toda a diferença, porque, claro que às
vezes a gente erra, mas em um clima de liberdade e abertura não são erros trágicos, a gente vai
retificando a trajetória e a criança aprende com isso. De repente o educador erra às vezes, tudo bem, a
gente vai tateando mesmo.
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G: E a criança pode mostrar também quando ela não gostou, pois ela está em liberdade.
C: Pode falar e assim, a fala tudo bem, é legal quando a gente dispõe dessa ferramenta e às
vezes ela fala exatamente o contrário. Não é para enganar a gente, é que o discurso dela foi deturpado.
Então a gente tem que encontrar por baixo desse discurso já meio falseado qual é a real necessidade
dessa criança. E perceber os momentos em que ela demonstra mais satisfação, mas serenidade. E aos
poucos ela vai também sentindo nela esses critérios, quando vou pra lá isso me faz bem, quando vou
pra cá nem tanto...
G: E o trabalho em Cotia?
C: Então, o trabalho em Cotia foi indo... Foi um trabalho difícil porque eu arcava com todos os
gastos. E era um local assim muito, uma comunidade muito violenta, então a gente fazia o trabalho
durante a semana e muitas vezes elas chegavam na segunda-feira hiper carregadas, assim violentas,
nervosas... Porque elas tinham contato com programas venenosos na televisão, tinham contato com
fofocas horríveis que a comunidade ficava cultivando. Incentivos dos pais muitas vezes para brigar, para
bater, para sodomizar até os outros. Era muito, muito, muito violento. E aí a gente recebia na segunda-
feira. Fazendo o trabalho durante a semana com eles, na sexta-feira eles estavam mais serenos e na
segunda-feira seguinte recomeçava tudo de novo. Mas assim, tudo de novo não, porque o progresso não
é em linha reta. Então a gente vai um avanço, um retrocesso, um avanço, um retrocesso. Mas aos
poucos a gente vê que as coisas, de uma maneira geral, vão se tornando melhores. Lá tem muitos
exemplos de momentos em que as crianças demonstravam como era benéfico esse trabalho para elas.
E isso não quer dizer que o nosso ambiente de repente ficasse encantado: “ai meu deus, que
tranquilidade...”. Não, não era nem um pouco tranquilo, e a gente não tentava impor a tranquilidade para
as crianças, uma ordem, uma disciplina, nem um pouco... Eles podiam, eles tinham o direito de ser
disciplinados, mas eram crianças difíceis e a gente via que muitas vezes as mais belas realizações
afloravam em meio a muita desordem, muito ruído. E às vezes a gente tinha que refletir, registrar o que
acontecia na hora, porque era uma desordem tão grande que depois a gente enxergava aquilo que tinha
acontecido.
C: Era eu, a minha filha me ajudou durante um ano, a minha filha que é pedagoga também, e
depois eu contratei, passei a contratar pessoas da comunidade que tinham pouca formação acadêmica,
e eu acreditava muito nessa habilidade das pessoas com pouca formação para poder lidar com as
crianças. Porque eu pensava: não tem formação, então não tem deformação. Mas tinha outros
problemas, tinha muitos outros problemas. E muitas vezes carências afetivas muito graves. Então tinha
que acudir o meu auxiliar e tinha que acudir as crianças... Então era bem difícil. De vez em quando a
gente tinha voluntários também, mas é muito difícil trabalhar com voluntários. Porque voluntários... Você
não pode dar ordens para eles. Ele chega na hora que quer, não chega na hora que não quer chegar.
Ele sai quando quer sair, então é muito ruim, de repente um voluntario que se envolve, isso acontece, e
de repente ele some, isso é muito ruim, a criança se envolve também. Acaba criando uma ferida
realmente.
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Às vezes a gente conseguiu ajuda de pessoas com uma rica experiência, que contribuíam muito.
Mas de maneira geral o difícil desses trabalhos meio... Não diria selvagens, mas é quase selvagem,
porque não era reconhecido, que não queria ser reconhecido. Ele era bem paralelo, ele era bem
dissidente. E as pessoas, assim, se você contrata uma pessoa ela vai cumprir o horário e fica difícil ela
participar de reunião, acha que ela sabe tudo e parece que a gente tá fazendo qualquer coisa. E esse
momento de reunião, de troca, de aprofundamento, é essencial para levar a diante um trabalho desse.
Então aos poucos a gente conseguiu inserir esse trabalho do profissional, esse trabalho de reflexão,
esse trabalho paralelo na nossa prática, e isso faz realmente toda a diferença. Talvez um dos exemplos
mais bonitos foi num dos últimos anos, a gente tinha muitos problemas financeiros, e não deu para
contratar os profissionais que a gente queria.
G: As crianças pagavam?
C: Então, também tinha essa história. A minha proposta era: quem puder paga, quem não puder
não paga. Quem puder pagar um pouco, paga um pouco. Isso é uma coisa que funciona muito bem na
França em escolas católicas. E é muito bonito porque é um belo treino da solidariedade. E aqui não
funciona nem um pouco. Então de inicio algumas famílias, sei lá, elas ficaram um pouco tocadas pelo
perfil do trabalho mesmo, e algumas famílias realmente mais carentes faziam questão de contribuir, era
uma coisa simbólica, mas era muito precioso, mesmo que dessem 10 reais por mês elas davam, e aí
não ficava aquela coisa a doação no sentido único. Mas logo logo começou essa historia: ah, o fulano
pode mais do que eu, ele não paga então eu também não pago, e aí a gente conseguiu ter alunos mais
ou menos de classe média, mas também assim: ah aqui é o ligar onde a dona Celine é boazinha, e aí
explicava que eles estavam em um momento muito terrível financeiramente, e aí não pagavam. E aí
simplesmente foi um fracasso completo do sistema de pagamento. Horrível, horrível. E tudo bem, o que
importava era continuar, ir para frente, buscar novas soluções. A gente teve um grupo que ajudava
organizando bingos, um pessoal de São Paulo super legal, mas aí acabou criando aquilo que a gente
fala na Psicologia junguiana: qualquer identificação projeta uma sombra. E a sombra começou a ficar
enorme. E aí esse grupo de pessoas que nos ajudavam, aí logo a comunidade começou a imaginar que
eles davam rios de dinheiro e na realidade era uma coisa muito pequena em relação à nossos gastos.
Então estava muito difícil a gente levar adiante esse trabalho com as crianças sendo que havia muitos
comentários maldosos na comunidade. Então, um dos exemplos mais... e apesar de tudo, de todas
essas dificuldades, a coisa tava indo, e as crianças a gente via se beneficiando. E então nesse ano mais
complicado a gente decidiu: então vamos atender os pequenos que não tem uma pré-escola.
C: Variou muito. Começou com um grupo muito pequeno. Começou com um, depois dois, depois
seis, depois doze... Mas eu não queria uma coisa gigante. Eu acho que o Maximo de matriculas que a
gente teve foi umas 40. Sendo que a frequência não era de 40 crianças, porque eles tinham uma saúde
frágil, tinha uma menina de 4 anos, muitas vezes ela faltava porque tinha que lavar roupa em casa.
Tinham uma vida muito difícil. As crianças maiores muitas vezes se matriculavam para frequentar nosso
espaço de manhã, mas ficavam sabendo do turno que iam estudar na escola publica na véspera da volta
às aulas, então tudo era difícil. Todas essas circunstâncias externas. Era um trabalho trabalhoso. E aí
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naquele ano a gente decidiu: então vamos receber as crianças pequenas todos os dias, porque elas não
têm um espaço pedagógico, e os maiores a gente vai receber só uma vez por semana, porque elas têm
a escola. e aí elas, as crianças maiores reclamavam muito, e aí a gente inventou uma outra modalidade.
As crianças maiores, que tivessem uma autonomia suficiente podiam vir um dia a mais por semana. O
que é ser autônomo? Na realidade a gente chamava elas de monitores. Monitor não é uma criança que
obrigatoriamente pegasse uma menor pela mão e cuidasse dos menores. O monitor odeia fazer isso,
mas se ele conseguisse cuidar dele sozinho sem solicitar muito a atenção dos educadores já era um
belo exemplo de autonomia, então ele era considerado monitor. Então foi indo assim, mas com muitas
reclamações dos maiores, que queriam ir todo dia. Mas a gente não tinha possibilidade de contratar mais
pessoas para cuidar deles. E, além disso, apesar de a gente ver sinais claros de melhora na saúde
psicológica, na autonomia, construção da personalidade, esses maiores tinham todo um repertorio de
violência que podia colocar em risco a segurança física dos pequenos. Por isso que a gente precisava de
gente para conter. E aí a gente só ouvia as reclamações deles, e as vezes eram reclamações cheias de
ódio, nós não queremos esses pequenos chatos, e palavrões
C: Ia muito espontaneamente, nosso espaço era muito grande. Tinha um mezanino, então ao
mesmo tempo eles podiam se isolar em pequenos grupos e a gente estava em contato visual com todos.
Podiam ficar em baixo, em cima, podiam ir na quadra, passear no mato. Por exemplo, chegavam os
pequenos, uns iam direto para a mesa de argila, outros iam direto pegando panos, outros tinham um
parquinho de areia, isso era deles. E os maiores também escolhiam as atividades deles. Teve uma
época que eles começaram a se apaixonar pela poesia. Tínhamos tipo uma biblioteca, e eles subiam lá.
E aí eles liam e trocavam ideias a respeito de poemas e também eles liam e trocavam ideias e malicias
sobre livros de orientação sexual para adolescentes, que eles não tinham isso de jeito nenhum na casa
deles.
C: A biblioteca, os brinquedos, argila, velas para pingar, jogos... Tem todo o significado do
trabalho com fogo, né? Então são muitas as significações... É uma pobreza da nossa vida, é uma
pobreza criminosa (referindo-se à falta de contato com os elementos). E a gente compreende o fogo
através do Bachelard, através do Jung... Mais para frente, entre os anos do curso de Pedagogia
Profunda, a gente se pergunta: qual é o fascínio, qual é o significado desse trabalho com os elementos?
Eu te contei de um menino em uma escola publica que fez esse trabalho de pingar vela e nasceu o
desenho dele? É uma historia também muito bonita, e você fala: mas como você consegue decofidificar
a necessidade da criança? Eu acho que quando a gente começa a trilhar esse caminho da Pedagogia
Profunda a gente começa a desenvolver uma intuição daquilo que tem que ser feito com aquele grupo,
porque muitas vezes tem alguns que falam “ah, mas eu não trabalho com uma criança, não trabalho com
10 crianças, eu trabalho com 35 em um ambiente absolutamente hostil e desconfiado além de tudo”. Mas
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essas pessoas, e eu também, desenvolvemos uma intuição do que é necessário naquele momento. É
uma coisa que vem, quase que naturalmente e aí um colega minha me falava assim: eu tenho que levar
velas para a sala de aula, eu sei que eu tenho, não tenho tempo de comprar, e ela tava com mil
dificuldades na família e sempre com aquela ideia: eu tenho que levar a vela para a sala de aula. E um
belo dia ela estava saindo de casa, voltou, pegou um pacote de velas brancas, daquelas que a gente
tem em caso de falta de luz, vai essa mesmo. Eu sempre falo que tem que começar pelo mais simples.
Porque agora nos cursos de arte terapia o pessoal está jogando glitter na água antes de pingar. É
mágico também. Mas eu sempre falo: vamos pelo mais simples porque parece que você vai, sei lá, tira
aquele encanto sabe, primeiro deixa só o pingo na água, é maravilhoso. Depois, se sentir que há
demanda, ou já esgotaram aquela brincadeira, precisa introduzir alguma coisa a mais, sugira isso, mas
não vá logo de cara entupir a criança com materiais diversos. Vamos aos poucos. E aí na classe dessa
minha colega tinha uma criança que, um menino peruano que mal falava português. E ele sempre era o
apático, ele sempre ficava assim com a cabeça na escrivaninha, sempre estava meio que lacrimejando.
E ela falava assim “mas esse menino tem uma delicadeza, ele tem alguma coisa que eu acho que ele
não está conseguindo botar para fora nesse grupo de crianças agitadas. E ele era o lerdo da turma, e as
outras crianças já tinham, não de uma maneira maldosa, mas assim, quando minha colega falava assim
“fulaninho, pega aquela cola pra mim”, os outros falavam “ih, ele vai demorar meia hora”. Ele era
realmente o lerdinho.
C: Ele tinha 5 anos. E aí naquele dia então ela trouxe aquela vela, formou grupinhos para as
crianças pingarem se revezando e a primeira coisa muito bonita foi duas meninas que estavam pingando
juntas de repente as duas praticamente na mesma hora falaram: hoje aconteceu alguma coisa muito
importante nessa escola. Mas a respeito da introdução do fogo sabe? Eu fico arrepiada quando eu
lembro disso, essa avaliação pela criança da importância desse simples fato e aí depois o menino pingou
também a vela branca na água. Ele gostou, ficou bastante tempo entretido com isso, contemplando, e aí
depois minha colega sugeriu que as crianças desenhassem algo a respeito dessa experiência de pingar
a vela na água, e esse menino também, ele preocupava, porque ele nunca pegava no lápis. Ele não
desenhava, não fazia nada. A única coisa que ele fazia quando insistiam muito, ele pegava uma folha e
fazia dois olhos. Pronto, eu fiz um desenho. E aí ela perguntava pra mãe: mas em casa ele também não
desenha? “não, ele nunca pega no lápis”. Naquele dia esse menino pegou uma folha, ele desenhou uma
rua, um carro com todos os detalhes, uma casa, umas arvores, umas plantas, umas crianças, uma
nuvem, o Sol, ele desenhou tudo. Ou seja, parece que o fogo fez vir, ele deu o nascimento, ele fez
nascer o desenho dele. Parece que ele deve ter dado uma finalização para um processo de maturação
que tava acontecendo dentro dele através de tanta passividade e de tantos comportamentos
introvertidos. Então, muitas vezes a gente pensa: meu deus, ele tem que treinar, tem que fazer. E não é
para fora que a gente tem que fomentar essas coisas. Tudo acontece dentro do vaso. Praticamente tudo
acontece dentro do vaso hermético e quando a coisa tá pronta ela nasce simplesmente.
G: Quando ela está pronta e quando tem alguma coisa que possibilita...
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C: Que possibilita... E essa bela intuição dessa menina que sentiu: “não, tem que ser hoje”. E
tem que ser daquele jeito extremamente simples que nem corresponde aquilo que eu tinha planejado.
C: Liberdade muito relativa... Lá nessa escola onde ela trabalha ela é mal vista, ela é aquela que
tem as ideias malucas, a classe dela é sempre barulhenta, imagina, 35 crianças de 5 anos tem que ser
um silencio, normal isso entre as escolas, né? Então eu acho que o pior e o mais impressionante nesses
relatos que a gente sabe que essas pessoas não tem o apoio da comunidade. E é muito difícil, de
repente você se bota contra todo mundo. Pingar vela? O que é isso? De repente a pessoa, um belo dia
se ergue e fala assim: eu sei que é assim, eu faço assim e pronto. Ela é mal vista pelos pais que falam “a
professora na manhã passa conteúdos”. Tem que realmente ter algum apoio, mesmo que não seja
dentro da escola, que seja fora. Por exemplo, o apoio que os elementos que um grupo de Pedagogia
Profunda acaba tendo quando compartilham suas experiências e colocam suas duvidas. É super
importante. Então, e aí voltando àquela experiência, aquele gesto bonito. Durante o semestre inteiro foi
uma rejeição dos pequenos por parte dos maiores que vinham, reclamavam, e às vezes eles esbarravam
meio maldosamente nos pequenos. Eles não machucavam, mas não era um ambiente gostoso. E tudo
bem, os pequenos aceitavam, porque eles sabiam o que estava acontecendo e nós acolhíamos aquelas
queixas todas e respondíamos praticamente sempre as mesmas coisas, não tinha muito como variar. E
aí um belo dia, então, tem a questão das danças circulares também que é uma das ferramentas. A gente
pode considerar que as danças circulares fazem parte dos trabalhos corporais. Como os trabalhos
corporais atuam em todos os níveis. No físico, no intelectual, no emotivo, no espiritual. Ele promove essa
regulação dos sonhos (?). No início do meu trabalho com essas crianças eu era apaixonada por essas
danças, e continuo, mas naquela época eu tava muito mais, sabe assim esse momento de deslumbre
inicial. E aí quando comecei com essas crianças eu dançava com elas, e elas dançavam. Eu comecei a
pensar: o que estou fazendo? Porque eu poderia ficar dançando três horas com elas e para elas estava
perfeito. Mas o que é isso? De repente eu abro espaço para que essas crianças digam as suas palavras,
elas não tem espaço em outro lugar. Não tem em casa, não tem na escola, quando tem escola, e de
repente eu vou enfiando conteúdos, porque danças circulares são conteúdos. Aí eu parei um pouco,
parei de dar danças circulares, continuei brincando aquelas brincadeiras brasileiras, brincadeiras de
roda, tudo que dizia respeito à cultura infantil brasileira, aí sim, eu introduzia e brincava com eles. Mas
danças circulares de todas as regiões do mundo eu evitava. Então continuava com quem me ajudava,
nas festas a gente dançava, mas não de uma maneira regular. Porque primeiro a criança tem que criar
raízes com a sua cultura nacional, e a sua cultura etária. Eu sempre critico muito - ou pouco - sabe,
quem de repente, um educador que passa por uma experiência de dança circular e fala “meu deus, eu
me senti tão bem, tão sereno, tão tranquilo, eu vou levar isso pra minha escola”. E acaba sendo um
drama porque você tenta botar 50 crianças de 2 anos em um circulo, ninguém sabe, ninguém entende o
que é pra fazer, todo mundo fica angustiado, as crianças, os educadores, e eu nunca uso as danças
circulares para apaziguar, sabe, como um remédio, um anestésico, um tranquilizante vamos dizer. Eu
posso fazer isso, mas eu me recuso. E então para chegar no resultado desse belo caso, um dia os
maiores estavam no nosso espaço e eles estavam em círculo brincando de pisa pé, que é uma
brincadeira que você tem que pisar no pé do outro. Aí de repente umas das pré-adolescentes que tava
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brincando falou “chega, eu enjoei dessa brincadeira. Vamos brincar de rosa de maio?”. E rosa de maio é
uma musica muito infantil, e aí as pessoas formam uma roda. Aquela versão que eles cantavam era toda
cheia dessas diferenças gramaticais em coletâneas do Villa Lobos, de uma orquestra do Villa Lobos,
uma coletânea de musicas infantis, tem uma versão correta. Mas essa eles gostavam muito, e
brincavam, e cantavam e aí tem uma pessoa que fica do lado de fora, a roda começa a girar cantando e
aí a criança entra, escolhe uma criança para abraçar. E aí foi super bonito porque a roda se formou, os
meninos adolescente todos brincaram de rosa de maio e cada um na sua vez deu um abraço em um
pequeno. Foi uma coisa de arrepiar. Essas crianças mais velhas tinham rejeitado durante meses as
crianças pequenas e a gente fez o que dava pra fazer. Acolhia as reclamações, né, a gente não podia
fazer mais do que isso. Mas esse acolhimento permitiu que eles crescessem o suficiente para que eles
mesmos pudessem acolher os pequenininhos em um abraço circular que é simbolizado pela roda e por
um abraço concreto. Eu acredito muito mais nesse poder da roda e dança circular quando ela brota, e
não quando é imposta pelo educador. Um exemplo, uma realização dessas crianças que deu muita
confiança na gente “não, é por aí, vamos continuar, vamos aguentar, é dessa maneira discreta que a
gente pode ir levando a educação”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma proposta educativa que vise o desenvolvimento integral dos indivíduos não
pode, portanto, desconsiderar as facetas e as manifestações de cada ser. Como na
prática clínica, a prática educacional deveria contribuir para a expressão mais ampla e
completa do potencial de cada individuo, propiciando o espaço para que os sujeitos se
manifestem como realmente são, de acordo com suas principais funções da
consciência, extrovertidas ou introvertidas.
Não foi possível, entretanto, localizar alguma iniciativa educativa formalizada que
adote os fundamentos da Psicologia junguiana. Nada mais natural, visto essa
proposição ser tão recente em relação à história milenar da Educação ocidental. Toda
evolução acontece dentro de um contexto de tempo e espaço, e só mais recentemente
os padrões vigentes na Educação ocidental passaram a ser questionados de modo
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Uma das conquistas que marcaram nosso tempo é a revolução digital e suas
repercussões sobre as formas como hoje nos comunicamos e acessamos as
informações. Essa conquista representa uma revolução no processo de construção do
conhecimento e uma grande aceleração das transformações científicas.
que têm habilidade para utilizar o conhecimento que a internet fornece e dissemina. Se
as escolas não despertarem para essa realidade, se tornarão ineficazes para acolher e
conduzir o aprendizado dos seres humanos destes novos tempos. Parece esta uma
condição evolutiva inevitável e suas implicações são tão intensas que vão desde uma
mudança no papel do educador até o papel do próprio aluno. A construção do
conhecimento agora já segue o novo padrão transversal, ou seja, não acontece mais
nos moldes da tradicional transmissão vertical, em que um indivíduo ‘ensinava’ ao
outro, que se mantinha passivo durante esse processo. Segundo esse novo padrão, o
conhecimento é construído e partilhado na grande rede, de forma coletiva e
democrática.
A escola pode escolher abrir mão de valores arcaicos como a verticalidade ainda
predominante no sistema de ensino, a polarização da razão, a supervalorização do
pensamento, ou então poderá tentar mantê-los, exercendo uma espécie de resistência
frente às forças da evolução. Abrir mão destes valores tão antigos pode parecer
assustador. Mas atentar e acompanhar o processo natural de ampliação de
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS