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Á Luz Do Tempo - Imagem e Memória Urbana em Presidente Prudente

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Á LUZ DO TEMPO: IMAGEM E MEMÓRIA URBANA EM PRESIDENTE PRUDENTE∗

Valéria Cristina Pereira da SILVA∗∗

O tempo é a minha matéria


o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
(Carlos Drunimond de Andrade, 1967, p. 111..)

Resumo: O presente artigo trata de memória e da imagem da cidade de Presidente Prudente. Esse
trabalho da memória vem subsidiado por significativa e necessária discussão de conceitos. A cidade e o
tempo descritos de uma memória viva apresentam-se como formas de compreensão e designam uma
imagem, um retrato. No caminho das lembranças, nos labirintos do esquecimento a cidade se desenha
revelada por aqueles personagens do cotidiano que viveram e construíram este espaço.

Palavras-chave: cidade; memória; imagens; tempo; espaço.

Resumen: El presente artículo tiene como temática la memoria e imagen de la ciudad de Presidente
Prudente. Este trabajo viene subsidiad por una significativa y necesaria discusión de conceptos. La ciudad
y el tiempo descriptos a partir de la memoria viva se presentan como formas de comprensión y designan
una imagen, un retrato. En el camino de los recuerdos, en los laberintos del vivido la ciudad se presenta
revelada por aquellos personajes del cotidiano que vivieron y construyeron este espacio.

Palabras-llave: Ciudad; memoria; imagen; tiempo; espacio.


A sensibilidade despertada de uma experiência viva é capaz de trazer poderosas imagens do
passado. Contar, narrar é empreender novamente a viagem, é revisitar lugares urbanos convidando outros
a o fazerem também. A dimensão simbólica da cidade liga-se aos percursos da memória, das lembranças
que fazem da experiência/vivência deste espaço objeto de leiturização, compreensão e transformação
textual inteligível. Dos artefatos temporalizados às histórias narradas observa-se um conjunto semântico
que forma uma imagem da cidade, essa imagem organiza uma identidade em suma um elo afetivo.
A memória faz-se de lembranças, esquecimentos e recordação num todo complexo e labiríntico,
no qual tudo que se trabalha nessas instâncias lhe é matéria inextrincável e latente, inclusive o
esquecimento. Os hiatos jamais apresentam uma deficiência, mas sim uma possibilidade de reflexão sobre
o discurso, uma potencialidade de construção fisionômica do que foi, sob a ótica de quem ouve
atentamente os relatos do expositor. Isento das paixões do tempo vivido, podemos “ver do alto” as
amarras da memória na narrativa do memorialista, e assim construir um caminho sólido para interpretar
com ferramentas apropriadas todas as propriedades do que é relatado, seja memória oral ou escrita.
Para Bosi (1994), lembrança e recordação são os artifícios da memória que lhe dá movimento, a
lembrança pode-se dar espontaneamente, faz emergir à consciência aquilo que guardamos do tempo, as
experiências passadas, e que cuidadosamente o nosso inconsciente elege como digno de lembrança, já a
recordação se processa através do estímulo, um esforço para trazer à tona fatos que permanecem
incontidos no sujeito. Esquecer para tornar possível o relato não é uma atitude deliberada da qual se tem
consciência das lacunas. Recordar é esforço para trazer lembranças contidas na memória e esquecer é
distinto de omitir ou ocultar. Quando em nossa fala deliberadamente nos esquivamos de expor um fato,
não é uma seleção do inconsciente, mas, simplesmente, algo que conscientemente preferimos não relatar.
E ainda nos labirintos da memória existe a mimese ou o reconhecimento do homem a partir do que lhe é
familiar.
Para compreender e apreendermos amiúde esta dimensão simbólica estabelecida no mundo
urbano procuramos delinear os signos urbanos nas imagens que temos da cidade de Presidente Prudente
fazendo a ligação com os caminhos da memória.


Texto publicado em 2004 (n. 11 v.2). Faz parte das reflexões desenvolvidas na dissertação de mestrado “Ícones de uma cidade em
expansão: imaginário e memória”, defendida na FCT/UNESP, campus de Presidente Prudente, sob a orientação do Prof. Dr. Jayro Gonçaives
Melo e com o apoio financeiro da FAPESP.
∗∗
Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP/Presidente
Prudente. Atualmente é docente da Universidade Federal do Tocantins, vpcsilva@hotmail.com
Revista Formação – Edição Especial – n.13 v.2

Presidente Prudente, enquanto expressão da “cidade moderna” numa escala menor, por mais que
pareça divorciada dos mitos e símbolos, seja, nos seus mais arrojados artefatos e pujantes equipamentos,
na racionalidade do urbanismo, no desenho que favorece a circulação e no pragmatismo exigido pelo
movimento acelerado e pela pulsão constante do homem na urbe, este divórcio é apenas aparente, pois, a
cidade é um cosmo repleto de “símbolos de transcendência” e mesmo no “caos” urbano estão presentes
conteúdos imaginários, arquétipos que se fundem ao novo, mitos, desejos, pesadelos, medos e sonhos em
completa e íntima fusão com os novos paradigmas da cidade. O objetivo deste trabalho é abordar as
representações da cidade aplicando os conceitos de imaginário e memória, entendendo-os como uma
chave para a interpretação das imagens urbanas, suas metáforas, seus laços de resistência, mudança e
permanência. Assim, chegamos aos lugares do imaginário social e visualizamos a cidade no espaço e no
tempo.
A cidade foi revisitada desde os seus primeiros anos a partir de suas múltiplas memórias:
narrativa, visual e material. Também, como depositária de múltiplas experiências guarda em suas
paisagens as utopias e os ideais de uma sociedade, além de linhas e formas. O espaço transubstanciado,
construído, transluz uma imagem e impõe poeticamente seus signos. Mais do que pedras, a cidade é
erguida e solidificada de representações. As imagens do passado com claro “valor de culto” acabam por
selar um grau de eternidade já conquistada, na qual a saga da cidade por vezes confunde-se com a saga
dos personagens que nela viveram.
E comum no exercício da memória a história familiar confundir-se com a narrativa do
surgimento da cidade. Ao mesmo tempo o memorialista fala dos “primórdios” da fundação, suas agruras e
sinuosamente, a sublimação da auto-imagem aparece também ao longo de todo o relato, onde tudo é
reminiscência.

Logo após a roça queimada, já no ano seguinte, 1918, eu mesmo iniciei os trabalhos, delineando ruas e
logradouros públicos, em sendo um só, ainda em plena palhada, tendo apenas como meu auxiliar o preto
Antônio Serafim. Entretanto, como eu não podia pessoalnente continuar, pelos trabalhos da lavoura e outros,
mesmos da colonização rural já iniciada, deliberei novamente chegar em Assis não só para conseguir mais
trabalhadores, e algum engenheiro para prosseguir o serviço ou o delineamento do núcleo, assim como o
loteamento rural85 (Cel. Goulart F. P. 1917-1967, p.23)

Neste trecho o fundador narra a primeira infância da cidade e, como um exercício de memória a
narração permite não somente “contar fatos” mas refazer o enredo da conquista, que simboliza a
hegemonia individual do conquistador. Em primeira pessoa, com os olhos voltados para o passado, o
pioneiro lendário refaz seu mito, mito este mais forte do que o homem real. Seu relato faz vislumbrar o
horizonte plástico de uma paisagem tão onírica, quanto histórica, a paisagem urbana que despontava em
meio às cinzas e penumbras do sertão. Vida e morte encontram-se no ato dramatizado de penetrar o
desconhecido, vencer a natureza hostil e colonizar. Nos interstícios da fala reiteradamente o arquétipo do
herói emerge na figura do pioneiro.
Desbravar, abrir caminhos novos significava também impor idéias, valores e obediência ao
coronel, construindo relações de poder que ficariam para a posteridade. A figura do coronel representava
a antítese e a síntese da liberdade e da cidadania, pois, como afirma Melo (1995) os subordinados só
possuíam sua cidadania no chefe e através dele. O mito heróico é incorporado pela História Oficial
povoando o imaginário e, assim, a sociedade constrói seu primeiro ícone.
A cidade da memória tem sua existência nas lembranças, assim como o Cel. F. P. Goulart, em
cada habitante inscreve-se uma biografia da cidade, narrada mais de uma vez por aqueles personagens
que de um modo ou de outro resistem à trama do tempo e não se furtam de “contar” o que passou.
Conjunto de vozes a ter por fio o mesmo enredo, polifonia em prosa traduzida numa síntese.
Naquele tempo (duas primeiras décadas do século XX) a cidade era muito pequena, apenas o que
é hoje o centro. Nas ruas de terra batida, cheias de tocos de árvores que o fogo não consumira,
permaneciam delgados, esguios, espessos por todos os lados, onde as pessoas passavam a pé ou a cavalo,

85
Cel. F. P. Goulart. Depoimento publicado em Bandeirante do século XX, fundação de Presidente Prudente narrada pelo fundador 1917-
1967.
80
GONÇALVES, M. A.; SPOSITO, E. S.
Fetiche do Estado e regulamentação do conflito capital trabalho.
transportando coisas em carroças. Essas foram as ruas da infância de uma cidade presente na lembrança
dos atores sociais.

Quando viemos para cá, foi construído um rancho, para abrigar três famílias: família Furlaneto, Vernille e
Casatti, sendo que cada um ficou com um pedaço do barracão. Eu tinha quatro anos quando desembarquei na
estação em 1919. Nessa época o patrimônio já tinha sido derrubado, mas o fogo não acabou com a madeira,
ficou toda madeira grossa que era arrastada para dentro dos quarteirões. Derrubamos a madeira que não
queimou para fazer a casa. Como queimou só as folhas e troncos finos, as árvores brotavam novamente e
formava a ‘capoeira’. Assim o pessoal ia chegando e ia roçando, juntavam três ou quatro pessoas para limpar
e faziam lenha para ter fogo a noite e fazer claro, por que não tinha luz. A cidade era um quadrilátero que
abrangia quatro avenidas. Mas a finalidade das famílias que viam para cá, inclusive o meu pai, não era ficar
morando na cidade, era abrir sítio para plantar café. Então logo fomos para o sítio, a mata era fechada. Tinha
mata baixa: cabreúva, canelão, canela e mata grossa; peróba, ipê, figueira, cedro. Tinha em abundância.
Então os animais saiam da mata para comer a plantação de milho, vinha a anta, vinha o veado, por isso o
patrimônio ficou chamado de Veado, isso nos primórdios de Presidente Prudente. Aquelas árvores que o
fogo não queimou, secaram galhos que finos e empobrecidos, quebravam ao pousar das pombas que vinham
ao raiar do dia comer o milho que os animais silvestres deixaram. Da cama de manhã eu me recordo da
minha mãe falando para o meu pai: “Olha quebrou mais um galho, e outro galho”. Cada proprietário
derrubava o seu mato para plantar café e outras culturas. A propaganda do Goulart era que a terra era boa
para plantar café e que aqui não tinha geada! Quando a geada matou o café em 1924, meu pai falou: “Vamos
por o Vicente na escola, e aí voltamos para a cidade. V. Furlaneto (Informação Verbal)86.

Muitas vezes a fala perfaz as cruzadas de uma vida difícil, fustigada pelo trágico que bate às
portas do cotidiano em tempos difíceis, mas o desfecho de um pensamento verbalizado compõe um tom
dramático de difícil tradução o que nos remete à reflexão sobre a célebre frase de Tobias Monteiro87 no
caminho de sua ironia romântica: “se a história não será em grande parte, um romance do historiador”;
afirmação que nos faz pensar no próprio quintal. Mas se o fio da memória abre um leque para o lúdico
que nos permite romancear sobre o real, ou melhor, ver na realidade o romance, não cometemos com isso
nem um grave pecado. Quando cessa a filosofia a poesia tem que começar. Na imaginação está o centro
do nosso entendimento88. E assim que buscamos o real nas falas mais singelas de uma infância esquecida
e no enredo imaginante que recria o passado subjetivamente. E o que aparentemente é hiato não é mais do
que a inteireza nas multiplicações desse mesmo real.
Uma fabulosa memória imaginante a escoar da realidade, para estar nela de volta, o tempo todo,
nas sutilezas da narrativa, nos intercursos do pensamento, no qual, uma única cidade permanece, além das
duplicidades e das refrações, nas continuidades do sentido de uma teia simbólica.

O papai foi o primeiro carpina da cidade. Ele que fez aqui o primeiro caixão de uma senhora que faleceu
para sepultar no terreno que hoje é a rodoviária, o primeiro cemitério de P.Prudente. O velório era o velório
comum de fazer a guarda do corpo e depois o sepultamento. Não é como hoje. Naquele tempo não tinha
funerária e fazia-se o caixão rústico de madeira. Para alguns era só um lençol. Fazia a cova e descia com o
lençol dentro dela. Assim enterravam as pessoas que não tinham condições de comprar o cedro. O transporte
do defunto, naquele tempo, era no braço. Quando morria alguém no sítio e ia sepultar na cidade, ia um na
frente alguns metros dizendo: “vai as almas, vai as almas, vai as almas” enquanto o pessoal vinha com o
cavalo. O cavalo era uma vara e um lençol amarrado nas pontas de um lado e do outro com o falecido dentro,
carregado por duas pessoas, uma na frente e outra atrás que traziam do sítio para a cidade desta maneira. Um
pegava, cansava, outro pegava, assim funcionava a advertência: “que vai as almas, que vai as almas...”. O
pessoal que estava na roça trabalhando ouvia, largava o serviço, pegava e ajudava a carregar um pedaço.
Outro lá na frente ajudava carregar mais um pedaço e esse era o recurso de trazer do sítio, vinte quilômetros,
dez quilômetros, quinze quilômetros, no lençol, no cobertor, no encerado, porque não tinha condução. V.
Furlaneto (Informação Verbal)89.

A descrição da infância foi muito reiterada, na persistência da memória. Cabe salientar que essas
imagens descritas da vida urbana são visões da criança observadora que presenciou algum dia tais cenas
no passado, submetendo-as aos juízos de valor do adulto, ou melhor, do idoso que é hoje. Já que a maioria

86
Entrevista realizada com o Sr. Vicente Furlaneto no dia 27 de junho de 2001.
87
MONTEIRO, T. apud. Carvalho, 1990.
88
SCHELES, F. apud. SILVA S., 1999.
89
Entrevista realizada com o Sr. Vicente Furlaneto no dia 27 de junho de 2001.
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Revista Formação – Edição Especial – n.13 v.2

dos entrevistados relata os anos da infância e adolescência, nessa construção verbal memorativa do
espaço tecem-se interessantes mapas mentais a representar os lugares da cidade em que o narrador
estabeleceu laços afetivos e identitários. São refeitas, em traço e prosa, as ruas da infância, as nascentes
que cortavam a cidade. Os jardins e o próprio relevo ganham suas curvas de nível nesse mapa:

Eu nasci aqui, em 1930, passei a minha infância toda na rua Antônio Prado, hoje Washington Luís, esquina
com a Siqueira Campos. Descendo, depois da rua, tinha um Bosque, hoje bairro do bosque, para chegar a até
ele era preciso, passar por uma pinguela e atravessar ‘o famoso buracão’ na rua Pedro de Oliveira Costa, em
baixo da pinguela passava um monte de água. Depois do colégio Cristo Rei, onde é hoje o correio, não tinha
mais nada. Descendo hoje onde é a av. cel. Marcondes tinha outra ponte que dava acesso as terras da família
Goulart. A Antônio Prado indo em direção a estação era tudo terra, areia demais, do lado contrário tudo
grama onde a gente brincava, tinha um campinho de futebol. A rua era bem acidentada, eu achava
interessante aquelas carroças com animal, burros puxando terra de um lado para o outro para nivelar a rua.
Depois pavimentou um lado e o outro ticou sem pavimentar. Na área onde hoje é o parque do povo tinha
uma fonte de água a ‘esmeralda’ e um bananal de propriedade do Goulart, onde os garotos iam roubar
bananas. E tinha pequenos córregos, um cortava ali onde hoje é o Prudenshopping, um que saia, onde hoje é
o tênis clube. Essas poças d’ água era uma diversão para a criançada. Botosso (Informação Verbal)90.

O processo de expansão espaço-temporal da cidade se dá, além de múltiplos fatores, por uma
razão coletiva traduzida na soma de esforços individuais que vislumbrara uma nova paisagem no período
que vai de 1917 ao fim da década de 20, quando as construções passaram a ganhar novos padrões uma
outra cidade de pedra erguia-se, mesclando-se à cidade de madeira que aos poucos ia desaparecendo.
Assim a primeira escola, a primeira igreja, uma rua da cidade, presentes na imagem enfumaçada pela
névoa do tempo ou
envolta pelo que experimentamos como esquecimento, resultam dessas ações e idéias.
Paisagem e memória encontram textualmente no exercício de delinear um percurso temporal. A
partir delas é possível fixar um olhar às imagens, procurar uma compreensão, uma dinamicidade e, não
apenas restituir o cenário urbano, mas também as suas metáforas.
As primeiras fotografias da cidade foram tiradas, certamente, com o intuito de registrar
paisagens, fatos e personagens mais significativos da vida urbana e o que conta nessas imagens é a
composição visual significativa da cidade.
Presidente Prudente possui inúmeros desses registros, o que denota a valorização de tal atitude,
principalmente considerando que o recurso fotográfico nas três primeiras décadas do século XX, apesar
de sua difusão, era ainda bastante oneroso e, portanto, poucas pessoas podiam obtê-lo. Um mundo da
representação, a ser desvendado e conhecido inscreve-se literalmente nos percursos da fala e na grafia dos
retratos.
As imagens da cidade nos seus primeiros anos revelam que, apesar de todos os esforços para
forjar uma paisagem urbana, não se desfrutava de uma vida urbana no seu sentido pleno, pois os costumes
e as práticas ainda estavam ligados ao mundo rural. Deste modo animais andavam pelas ruas em meio à
construções de madeira. Nas imediações, a vegetação nativa aos poucos cedia lugar a habitações
precárias, pastagens, futuros loteamentos e instalações. Essas dificuldades impostas pelo meio rude no
princípio do povoamento de Presidente Prudente mobilizavam pessoas a trabalharem no preenchimento
das condições básicas de sobrevivência. Assim a casa, a escola, e a igreja eram construídas por dezenas
de pessoas, adultos e crianças participantes de mutirões.
Eram construções rústicas, singelas às vezes provisória, apenas para suprir de imediato uma
necessidade, mas que traziam consigo o sentido urbano e logo seriam transformadas, como a Igreja
Católica que adquiriu expressões e desenhos até chegar a catedral e a multiplicações menores ao longo do
tecido e da formação da cidade.
A cidade modificava-se, não apenas ela, nas suas formas materiais, mas na vida social e cultural.
A praça continha uma vida social intensa, lugar de sociabilidade por excelência das camadas médias e das
elites locais. Havia o footing na Rua Maffei, onde homens e mulheres iam passear e era no coreto da
praça, ja demolido, que tocava, todos os domingos, a banda da cidade, regida por seu maestro.

90
Entrevista realizada com o Sr. José Botosso em julho de 2001.
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GONÇALVES, M. A.; SPOSITO, E. S.
Fetiche do Estado e regulamentação do conflito capital trabalho.
O cinema era outro ponto de encontro dessa sociedade mais abastada. Exibia um filme por noite
e só permitia a entrada se o traje fosse terno e gravata, o longo para as mulheres. Os dois cinemas mais
importantes da cidade foram o cine João Gomes e o cine e teatro Phenix, embora houvesse outros entre
eles, como o cine Santa Emilia.
Aqui, como em todo o país, a difusão de certos aspectos da cultura norte-americana se fizeram
presentes. Assim, era apresentado no cinema principalmente o gênero faroeste:

O primeiro filme de Presidente Prudente foi de vaqueiro no cinema que pertenceu ao Chico Lourenço num
barracão de madeira, depois abriu o cine João Gomes onde passavam-se os filmes de Cawboys. Quando
passava filmes de romance, a gente falava: “a fita do cine João Gomes não é boa não, é de namorado, lá no
Chico Lourenço tem pei-pei. Furlaneto.
O cine João Gomes existiu onde até pouco tempo estava instalada as ‘lojas brasileiras’ antes do João Gomes
tinha o cine Phênix que era pequeno, mas era bom também. Eu ia toda noite no cinema, cada noite era um
filme, não é como hoje que fica uma semana em cartaz. E as pessoas faziam fila para entrar no cine João
Gomes que ficava lotado principalmente quando tinha filme do Tarzan. Quando terminava a gente ia para
casa. Botosso (Informação Verbal)91.

A missa na catedral era realizada apenas durante o dia em três horários: as seis da manhã, as oito
e às dez horas, sendo que a missa das seis era freqüentada pelas pessoas que precisavam desocupar-se
logo dos deveres religiosos para trabalhar, a missa das oito era para as crianças e à missa das dez
freqüentava a camada mais abastada da sociedade que após o rito litúrgico, saia impecavelmente trajada
para um passeio na Maffei. Os homens ilustres da sociedade freqüentavam o “Bar e Confeitaria Cruzeiro
do Sul”, conhecido como “senadinho”, onde importantes decisões políticas da cidade eram tomadas.
A maioria dos moradores da cidade que usufruía dos espaços públicos representavam as camadas
médias e a elite. Na fala memorializada, comparece que a elite era representada pelos coronéis, grandes
cafeicultores, latifundiários e aqueles que detinham o poder político. Boa parte dos políticos pertencia
também à classe médica. É interessante ressaltar que na maioria dos casos uma única pessoa reunia mais
de um desses papéis. Não raro o coronel era também latifundiário, cafeicultor, negociante de terras e
representante político. O médico, como já dissemos, era também político que ora era prefeito, ora
deputado e assim por diante. Processo intrincado de individuação a personificar numa mesma pessoa
diferentes tipos de capital, inclusive simbólico amadurecido sob a forma de poder, que não se interrompia
no seu exercício. A camada média era representada por pequenos fabricantes, industriários e
comerciantes; detentores de algum capital que após algumas décadas adquiriram patrimônio razoável
impulsionados pelo próprio contexto econômico da época no “auge” do café e ainda alguns profissionais
liberais: advogados, dentistas, professores etc. Essas famílias, então, com o tempo passaram a fazer parte,
se é que se pode assim chamar, de uma elite mediana que residia na cidade, a maioria com casa própria,
possuindo autonomia no seu empreendimento comercial e/ou industrial. Podiam usufruir de considerável
acesso a bens e serviços como educação, saúde, e lazer, como também consumo de suprimentos: bens
duráveis e não duráveis. Os pobres eram trabalhadores e moradores da zona rural, aqueles que viviam em
chácaras e pequenas propriedades, meeiros, arrendatários, colonos dos latifúndios, camaradas ou ainda
residentes nas bordas do perímetro urbano, nas suas áreas de transição. Pessoas que pouco vivenciavam
os espaços sociais e recreativos da cidade, viviam em habitações precárias de madeiramento de baixo
valor como a “tabuinha” e o “sapé”. Não tinham acesso à maioria dos bens e serviços urbanos e
encontravam-se numa situação restrita, em condições de sobrevivência.
Quando interrogada a respeito da imagem da pobreza na época, uma das pessoas entrevistadas
respondeu significativamente distinguindo de outros ecos a escapar, ainda que em parte, da trama
labiríntica da memória. Dizia que os pobres eram os que viviam nos arredores em casas de madeira,
tinham o fogão à lenha no quintal e uma alimentação muito precária, comiam apenas angu com feijão e
chegavam sujos de lama e descalços, na cidade. Pedintes de esmolas às vezes amarravam seus cavalos na
cerca das residências. Pobres eram ainda aqueles que não podiam estudar. Essa representação da miséria
não é a de uma convivência amiúde, mas sim de uma observação distante, como algo que não se conhece
a fundo, mas se observa como o pitoresco: pessoas despenteadas, mal vestidas e sujas. A pobreza vista da
elite tangencia uma visualidade estética que toca apenas a epiderme do problema e não sua ossatura. Não
91
Entrevista realizada com o Sr. José Botosso em julho de 2001.
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se pode negar, contudo, que é uma fala coerente, bastante lúcida, que escapa aos atalhos da memória. E
visão opinativa, sem dúvida, mas resultante de observação e retenção de uma imagem. E a memória do
vencedor que fala dos vencidos, porque estes não têm fala e nenhuma inscrição. As obras que ajudaram a
construir imortalizam outros nomes. A memória dos vencidos é em si mesma inatingível não só porque os
personagens morrem mais cedo, mas porque há uma cisão entre a linguagem e o vivido na dor das
carências, das ausências e no desprovimento de tudo.
O dado inimaginável da experiência desconstrói o maquinário da linguagem. Surge a
impossibilidade de recobrir o real com o verbal. Essa linguagem aprisionada só pode enfrentar o real
equipada com a própria imaginação. E apenas com a arte que a intraduzibilidade pode ser desafiada,
todavia jamais completamente submetida92. A imagem do vencido só é visitada na imaginação de outrem.
O sentido da memória93 é que ela não é um fim para se chegar ao passado, mas sim um meio de
atingí-lo. Distinguem-se dois tipos de memória que, por vezes, se dão dialeticamente: aquela que é
pessoal e aquela que é coletiva. Ao pensar na escrita clássica da história, é possível observar que esta tem
um grau de comprometimento com a memória coletiva em linha absoluta: demonstra o passado e aponta o
futuro, como que ensinando os caminhos de uma memória remotíssima pertencente a uma classe social da
qual somente temos as conseqüências; essa memória tenta mostrar-se a nós como se fosse espelho do real.
Esta memória é na verdade história; mas há uma outra forma de memória menos finalista, mais
explicativa e expositora do tempo. A memória que nasce dentro de cada um de nós e, em vez de nos falar
sobre determinada história, remete-nos às origens das coisas que pensamos recordar, que queremos
representar. Os seus documentos estão na experiência de quem as relata e nos espaços que ocupamos.
Donatelli Filho (1996) recomenda que tomemos como exemplo o exercício da memória pessoal,
a lembrança da cidade onde moramos, a parte mais antiga, as ruas mais velhas, seus prédios, suas igrejas,
casas, tudo aquilo que se apresenta aos nossos olhos e tudo que não mais está à nossa disposição pelo
olhar. Cada um dos pontos históricos tantas vezes vistos e que passaram a fazer parte da imaginação, as
formas do espaço urbano, a sua composição e as mudanças no tempo. A apropriação do lugar não mais
ocorre pela ordem cronológica, mas pela retenção das formas construídas no inconsciente. Por isso a
apreensão da cidade pode dar-se também através da memória. A cidade memorial é um ponto de inflexão
onde se reiteram os laços de identidade com o lugar.
A memória, quando desprovida de sentidos, quando ausente dos sujeitos que se sentem
incapacitados de relembrar qualquer coisa que de fato vale ser relembrada, mergulha, como muitos de
nós, nos tempos pretéritos, dos monumentos espalhados pela cidade, do mundo interior dos museus94,
perplexos, diante de tantas experiências vividas e ao mesmo tempo tão presentes e ausentes de nós. Um
dos atributos da memória é permitir que o processo de identidade seja realizado entre iguais. Ela,
portanto, não pode ser entendida como um relicário, mas sim como um lugar do imaginário e de
reconstrução da nossa condição de seres históricos. Para Decca (1992). se a grande história é memória de
documentos acertados para legitimar, muitas vezes, o ilegítimo da opressão e da miséria, a memória se dá
como a pequena anti-história particularizada na reflexão e na sensibilidade vivida pelos homens. Ao dizer
quem somos e por que somos, estamos em busca de um novo tempo, contado por um outro homem sobre
outros pressupostos. Nossa sociedade oferece a todos a possibilidade de ter saudades, memória e
experiência de algo que não nos pertence, algo desprovido de sentido, de representação, mas que se
apresenta e se legitima pelo consumo.
Nos deteremos ainda na tentativa de estabelecer as linhas intercruzantes e contraditórias que
unem e separam história e memória95. É possível dizer que hoje a memória coletiva encontra-se refugiada
em lugares pouco visíveis, preservada tenuamente por meio de rituais e celebrações onde alguns grupos a
mantém ciosamente resguardada do assalto da história. Neste contexto, memória e história se opõem
constantemente96. Como afirma Decca
(1992):

92
Ver SILVA, S. M. A literatura de testemunho. Cult Revista Brasileira de literatura, ano 11 nº23, 1999.
93
DONATELLI FILHO, “O sentido da memória”, In: Cidade, Revista do Patrimônio Histórico, 1996.
94
DONATELLI, F., 1996, p. 107.
95
Silva V. Santa Casa de Misericórdia de Trabalho de IC p. 7-20, 1999, mimeo.
96
DECCA, 1992, p. 1 passim.
84
GONÇALVES, M. A.; SPOSITO, E. S.
Fetiche do Estado e regulamentação do conflito capital trabalho.
[...] a memória é vida sempre guardada pelos grupos vivos e em seu nome abre-se à dialética da lembrança e
do esquecimento suscetível de longas latências e súbitas revitalizações. A história é sempre a reconstrução
problemática e incompleta daquilo que já nao é mais. A História liga-se em continuidades temporais,
exigindo operação intelectual e discurso crítico. No coração da história trabalha-se um criticismo destruidor
da memória espontânea a partir dessa crítica identifica-se nela um misto de desilusão frente ao futuro e um
estranhamento em relação ao próprio passado capaz de produzir memória histórica que, além de destruir a
memória coletiva transformando-a numa espécie de memória artificializada, esvazia também o próprio
conteúdo da história. Neste sentido, a memória histórica ressurge ligada à afirmação do Estado, produzida
não mais espontaneamente pela experiência social, mas pelas mãos dos historiadores. A história, alcançando
a fase epistemológica, desvencilha-se da memória por que deixa de ser lembranças e recordações, signo dos
ideais de identidade, para se tornar discurso crítico. A memória, então, persegue a identidade e a história se
constrói como inventário das diferenças. A perpetuação da memória, do passado no presente constitui-se,
dessa forma, na produção de memória voluntária. (DECCA, 1992, não paginado)

Abreu (1998), ao procurar esclarecer as diferenças fundamentais entre memória e história, afirma
que a memória, seja ela coletiva ou individual, é sempre parcial, descontínua e vulnerável a todas as
utilizações e manipulações. A história, por sua vez, busca a objetividade. Nunca conseguirá atingir a
objetivação total, mas chega mais perto dela do que a memória.

A história, como a memória, não é neutra. Ao contrário do que pensavam os historiadores do passado, o fato
histórico não é dado: o contexto em que o pesquisador se insere influi na forma como ele define e interpreta
o fato histórico. Sabemos também que a história pode ser manipulada, e o foi várias vezes no passado.
Apesar desses problemas, é incontestável que a história detém inúmeras vantagens sobre a memória, e que
deve ser a partir dela, história, que devemos penetrar no difícil campo da memória das cidades, da identidade
do lugar.
As vantagens da história sobre a memória são inúmeras. A primeira delas é que, ao contrário da memória, a
história tem que buscar a “verdade”. Trata-se de uma operação intelectual e laicizante, que segue um método
científico, e que é posta à prova continuamente. Por isto, ela, a história está em contínua reconstrução, sendo
sempre reinterpretada, o que permite detectar e denunciar as falsas interpretações feitas em seu nome. A
história é registro, distanciamento, problematização, crítica, reflexão.
A segunda vantagem da história sobre a memória é que a primeira está sempre recuperando e reavaliando os
referenciais que contextualizam a segunda. E faz isto exatamente para poder relativizar as memórias. Em
outras palavras, a história está sempre pondo em xeque as memórias. Ao contrário desta última, a história
precisa dar conta do que foi esquecido. A história precisa iluminar as memórias, ajudando-as a retificar suas
omissões e erros. Privilegiar apenas a memória seria afundar no ‘abismo escuro do tempo’. (ABREU, 1998,
p. 16)

Ao tentar iluminar esse abismo, a história não consegue atingir o sonho de recuperar o passado
tal qual ele foi, um passado sem hiatos ou falhas. Sonho impossível, já que a história é a construção
sempre problemática e incompleta do que já não existe. O “passado, como nos diz Abreu (1998) é um
país estrangeiro”, impossível de se conhecer plenamente.
A história, enquanto ciência, pode ser a narração metódica de fatos e atos dignos de memória. A
memória, dentre diversas definições refere-se à faculdade de lembrar, reter impressões, idéias que podem
estar baseadas na experiência vivida.
Para Paoli (1992), a história é concebida como um processo acabado e fechado ao significado
social, quando tudo aquilo que constitui o moderno e a modernidade, a constante produção do novo
desafia a compreensão e a intervenção na cidade. A história acaba por perder sua identidade nesse
caminho. Seria, então, inútil manter algo com pouco significado no presente, além de ser exatamente
testemunha de um passado superado. Há, entretanto, uma atitude de gostar do passado, daquilo que foi
legado numa identidade que parece estar apenas no sentimento de perda, constituindo-se numa nostalgia
de algo que não é mais. É por isto que história, memória, patrimônio, passado, nenhuma dessas palavras
têm um sentido único; formam um espaço de sentido múltiplo, onde diferentes versões se contrariam
porque derivam de uma cultura plural e conflitante.
Como apontam algumas discussões no Brasil, há uma deslegitimação da memória social
constantemente cooptada por “intelectuais” e transformada na “história dos vencedores”. E preciso,
porém, “recriar a memória dos que perderam não só o poder, mas também a visibilidade de suas ações,
resistências e projetos”. Para Paoli, (1992) a construção de um novo horizonte historiográfico se apóia na
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possibilidade de existência de memórias coletivas. É preciso que experiências silenciadas, suprimidas ou


privatizadas reencontrem a dimensão histórica como um direito ao passado, desmontando o significado
que a sociedade constrói de si mesma, neste momento em que a produção simbólica está dissociada de
sua significação coletiva e, portanto, longe de expressar as experiências sociais. Mas a noção de
“patrimônio histórico” deveria evocar essas dimensões múltiplas da cultura como imagens de um passado
vivo, acontecimentos e coisas que merecem ser preservadas porque são coletivamente significativas em
sua diversidade.
Decca (1992), em sua análise acerca da memória, cidadania e História aponta algumas
conclusões norteadoras:

Hoje o cidadão se sente cada vez mais mutilado em seus sentimentos coletivos em relaçao ao passado. A
tentativa de resgate de uma memória coletiva espontânea produzida por meio de símbolos, comemorações,
livros e monumentos e que conservou lugares apropriados, não por um investimento particular e voluntário,
mas por meio de vivências. Numa época onde a memória coletiva foi seqüestrada pela irreversibilidade do
tempo histórico, resta redescobrir os lugares onde esta memória coletiva se preservou espontaneamente, em
gestos, posturas, hábitos e na sabedoria de nossos silêncios. (DECCA, 1992, não paginado)

É fundamental saber que a história de um lugar é o resultado da ação, num determinado


momento e sobre um determinado espaço, de processos que atuam em escalas que são ao mesmo tempo
desiguais e combinadas. Assim, a história de um lugar não pode se ater aos processos puramente locais
que aí tiveram efeito. Ela precisa relacionar os processos mais gerais, que atuam em escalas mais amplas
(regional, nacional, global) da ação humana. Isto não pode ser feito, entretanto, à margem da
compreensão das singularidades locais e da sua devida valorização.
Neste sentido, “a perda da memória é um evento escravizador... e o nosso destino depende de
nossa capacidade e vontade de recuperar memórias perdidas, ‘ser livre’ exige que sejamos capazes de dar
nome ao nosso passado”. (ALVES, 1989, p. 28). A memória resguardada no interior do sujeito retém um
passado individualizado, mas que não foge das ligações com o grupo social, do qual o sujeito fez parte. E
esse pertencimento é responsável pela construção das suas representações. A representação através da
memória subjetiva dotada de imagens interiores, aflora e se manifesta no cotidiano grupal quando os
detentores desta, as legam aos seus, disseminando-a na cultura. O indivíduo, ao herdá-la, incuti-lhe novos
valores, interiorizando as experiências de outrem, atribuindo-lhe nova roupagem. Nota-se aí, portanto,
uma pluralidade no sentido da memória, que se reflete no individual e no coletivo. Para o indivíduo que
muito viveu, “relembrar” suas memórias é algo lúdico e inspirador, capaz de gerar completa fluição e
cadência de lembranças. O que jazia no inconsciente, agora vem à tona... emerge
à consciência nos interstícios da fala. E o esquecimento... um refúgio imperceptível, o que não surge não
deixa de existir, apenas não é visível, mas permanece no subterrâneo do espírito.
No interior da memória, então, a lembrança ocupa um lugar especial. Sua função e finalidade,
reside no ato de fazer com que as coisas idas não se percam, ligando o passado ao futuro. Um tipo
singular de lembrança se encontra nas memórias de velhos, que têm um caráter absoluto da entrega de
uma vida inteira, de quem nada resta a não ser lembrar. Ecléia Bosi (1994), em sua tese de livre docência,
faz um instigante trabalho sobre memória de velhos e recupera o valor de suas lembranças. Não deixa,
porém, de denunciar a forma perversa com que a sociedade capitalista suprime a velhice por mecanismos
institucionais e psicológicos, relegando-os ao banimento e à discriminação. Discorrendo sobre a
argumentação de Bosi, Chauí97 constata: “que a sociedade ao oprimir a velhice, destrói os apoios da
memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa. Ser velho em nossa sociedade é lutar
para continuar sendo homem, é sobreviver” (BOSI, 1994, p.l8).
Destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade burguesa bloqueou os caminhos da
lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros. O pior ocorre, porém, quando as lembranças
pessoais e grupais restauram estereótipos oficiais do ideário dominante. Então as lembranças pessoais e
grupais são invadidas por outra “história”, por outra memória que rouba das primeiras o sentido, a
transparência e a verdade. Bosi escreve que urna lembrança é como um diamante bruto que precisa ser
lapidado pelo espírito. Burilar, lapidar, trabalhar o tempo e nele recriá-lo constituindo-o como nosso

97
Ibdem, p. 18-19.
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GONÇALVES, M. A.; SPOSITO, E. S.
Fetiche do Estado e regulamentação do conflito capital trabalho.
tempo. Duas memórias são identificadas em seu texto, segundo o qual o passado conserva-se e, além de
conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de
comportamento que se valem muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da
memória-hábito, a memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças independente
de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituíram autênticas ressurreições do
passado.
Descrevendo a substância social da memória – a matéria lembrada – esta autora mostra-nos que
o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas
o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que
lembra e como lembra, faz com que fique o que significa.
A lembrança é, sobretudo, a sobrevivência do passado conservando-se no espírito de cada ser
humano; aflora à consciência na forma de imagens-lembranças.
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstituir, repensar com imagens
e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se
duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A
lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de
representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um
fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, por que nós não somos os
mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se, com ela nossas idéias, nossos juízos de realidade e
de valor.
A essência da cultura atinge a criança através da fidelidade da memória. Ao lado da história
escrita, das datas, da descrição de períodos, há correntes do passado que só desapareceram na aparência e
que podem reviver numa rua, numa sala, em certas pessoas, como ilhas efêmeras de um estilo, de uma
maneira de pensar, sentir, falar que são resquícios de outras épocas.
A arte de lembrar em muitos aspectos compara-se ao ato criador, ambas ações requerem o
esforço e a habilidade de fazer fluir o que encontra-se interiorizado no indivíduo, sua diferença primordial
instala-se no fato de que toda criação resulta em dar vida e existência a algo que não existe. A lembrança,
porém, já existe. Para trazê-la à superfície é preciso buscá-la no íntimo. Sua figuração se resume nisso. A
lembrança ainda pode ser evocada pelo uso de alguns artifícios, que podem surgir deliberadas ou
espontaneamente. Isso ocorre com freqüência quando nos surpreendemos regressando ao passado. Ao
percorrer, por exemplo, as imagens de uma antiga fotografia, relendo escritos de outro tempo, muitas
vezes uma frase, uma palavra ou ainda um objeto que contemplamos constitui-se numa chave para
reavivar nossas lembranças. Esta capacidade extraordinária e tão humana de reter o tempo
institucionaliza-se e transfere-se dos sujeitos para o espaço a fim de imortalizar as lembranças, perpetuá-
las para que as gerações futuras não percam os laços com o passado de sua civilização. Sem memória, o
que seria das paisagens demolidas, dos símbolos que dão sentido a um povo, das tradições que fazem a
cultura? Uma vida amnésica é destituída de sentido, a própria história sem memória é morta.
A memória pode ainda permanecer e ser preservada através de instituições cujo cerne de
preocupações se volta para guardar as reminiscências do passado. Sua importância reside,
indiscutivelmente, no seu valor documental que permite remeter-se no tempo e encontrar o sentido
daquilo que não mais existe, ao debruçarmos sobre uma pluralidade de experiências vividas, que porém
não nos pertencem.
Tais instituições assumem importância numa sociedade que se apresenta cada vez mais mutante
e demolidora do passado. O novo surge a cada instante. Nada é permanente. O espaço, então,
despersonifica-se, a própria cidade polidamente detentora de memórias, transubstancia-se, deforma-se e
empalidece em sua originalidade, quando tomada por uma forma homogeinizante que torna comum o seu
espaço, suprimindo a diversidade não só nas formas e no comportamento de seus habitantes.
Donatelli F. (1996), como já vimos, faz ainda uma crítica à memória transformada em nostalgia,
como um estado de alienação quando nos remetemos à memória dos homens, um particular momento da
existência. A nostalgia, aparentemente, fala de forma delirante ou prazerosa do passado, das cidades, das
coisas, mas na verdade, o nostálgico relembra coisas que não lhe pertenceram. Nossa sociedade oferece a
todos a possibilidade de ter saudades de experiências que não vivemos, mas que se apresenta e se legitima
pelo consumo.
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Apesar da crítica, não se discute a imprescindibilidade das instituições de memória no conjunto


da sociedade para compreender sua formação, já que não é possível “tirar do túmulo” aqueles que
viveram os fatos históricos, ou seja, aqueles que não mais existem não poderão relatar a história. Assim,
restam apenas as instituições de memória para manter vivo o passado. A contemporaneidade, sem a
solidez oferecida pela memória no atributo de sua funcionalidade, tornar-se-ia refratária. O elo que nos
une ao passado torna-se mais ameno a cada dia em decorrência do desequilíbrio gerado pela voracidade
do nosso tempo, em que a única coisa realmente constante é a mudança.
A composição da auto-imagem de um grupo social depende de suas lembranças. São estas que
forjam a identidade coletiva, afirmam seus valores, suas glórias, suas crenças fazendo com que o grupo
compartilhe de um sentimento comum contribuindo para coesão do mesmo, ainda que esse sentimento
coletivo seja uma síntese de individualidades, quando nos remetemos à sociedade moderna.
Pensando na memória urbana, Abreu (1998) nos indica que a valorização do passado das cidades
é uma característica comum às sociedades deste final de milênio. Depois de um período que só se
cultuava o novo – a justificativa é a necessidade de preservar a “memória urbana”. A valorização do
passado, bem como as transformações que vêm ocorrendo no imaginário ocidental marcando o fim do
otimismo ilimitado no futuro, constitui-se em período de transição, ou seja, período de perda de
concordância de tempos, em que antigos tempos passaram a coexistir e a interagir obrigatoriamente com
tempos recém chegados, tempos novos em busca de hegemonia (SANTOS, 1994, p. 45-46 apud.
ABREU, 1996, p.5-25).
A constatação de Abreu (1998) é que a sociedade brasileira mudou a forma de se relacionar com
as suas memórias. Embora poucas sejam as cidades que ainda apresentem vestígios materiais
consideráveis do passado, grande tem sido o esforço para salvar e valorizar o que restou. A “memoria
urbana” aparece como elemento essencial na constituição da identidade de um lugar.
Neste contexto, as duas memórias (individual e coletiva), cada qual com suas singularidades,
contribuem para recuperar a memória das cidades. A partir da memória individual ou de seus registros é
possível enveredar-se pelas lembranças das pessoas e atingir momentos urbanos que já passaram e formas
espaciais que já desapareceram. Com a memória individual, porém, deve-se ter um certo cuidado por ser
carregada de subjetividade. Mas há também outra memória intersubjetiva, compartilhada, muito mais do
que uma simples agregação de memórias subjetivas: a memória de um lugar, de uma cidade, que é a
memória coletiva, na qual Abreu recupera a definição de Halbwachs (1990). Segundo ele, memória
coletiva é um conjunto de lembranças construídas socialmente e referenciadas a um conjunto que
transcende o indivíduo. A memória coletiva envolve as memórias individuais, mas não se confunde com
elas. É extremamente dinâmica, devido à fluidez do grupo social e apresenta-se em constante mutação.
Outro ponto importante dos estudos de Halbawchs (1990)98 é que as memórias coletivas se
eternizam muito mais em registros, do que em formas materiais inscritas na paisagem. “São estes
documentos que, ao transformar a memória coletiva em memória histórica, preservam a memória das
cidades e permitem, também, que possamos contextualizar os testemunhos do passado que restaram na
paisagem”. E nas instituições de memória (museus, arquivos, bibliotecas etc.) que as memórias das
cidades são preservadas, nos documentos. Na visão de Abreu (1998), o fundamental é conscientizar-se de
que o resgate da memória das cidades não “pode limitar-se à recuperação de formas materiais herdadas de
outros tempos. Há que se tentar dar conta também daquilo que não deixou marcas na paisagem, mas que
pode ainda ser recuperado nas instituições de memória”.
Assim, a cidade é um lugar de memória por ser o local da sociabilidade. A vivência na cidade é
responsável pela origem de inúmeras memórias coletivas, que atingem sua plenitude quando ancoradas no
tempo e no espaço.
Retomando o pensamento de Santos (1994), é traçada a distinção entre a história urbana e a
história da cidade, não devendo confundir, e uma vez que a história do urbano seria a história das
atividades que se realizam na cidade, não em uma determinada cidade, mas no ambiente urbano de um
modo geral. A história da cidade seria a história dos processos sociais que se materializa de forma mais
objetiva: a história dos transportes, a história da propriedade, da especulação, da habitação, do urbanismo,
da centralidade. Para Abreu (1998), essa distinção é norteadora, mas não é suficiente. Para tratarmos da

98
HALBWACHS, 1990, apud. ABREU, 1998, p. 13.
88
GONÇALVES, M. A.; SPOSITO, E. S.
Fetiche do Estado e regulamentação do conflito capital trabalho.
complexidade da memória de um lugar há de se trabalhar na recuperação simultânea da historia “no e do
lugar”.
A cidade incontestavelmente é lugar da memória em primeira instância, memória solidificada
nas formas materiais, herança da criação e da imaginação humana, como também é um conteúdo das
memórias individuais e coletivas. Como vimos, a experiência urbana, no sentido de viver a cidade, é
matéria da memória. São dignos de lembrança os espaços que fizeram parte de nossa existência e que se
confundem com ela. São as memórias do lugar que estão nele, e além dele, estão em nós, na nossa
narrativa. Trazê-las à luz é dar movimento à história e reiterar os laços de identidade que dão vida ao
grupo social. Mas há que se cuidar para que a cidade seja mesmo o “lugar” e não “túmulo” da memória.
Muitas vezes, a valorização da memória, especialmente a “memória urbana”, ganha uma
conotação superficial por parte da população, uma valorização ligada ao pitoresco e até mesmo ao
quimérico, à maneira dos nostálgicos. Restituir a memória requer, entretanto, transcender os lugares
comuns, encontrar seu sentido e plasticidade para que a memória da cidade permaneça cada vez mais
presente e provocadora.

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