Cartografia Racismo
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http://doi.org/10.1590/1807-0310/2023v35e277147
Dossiê
PSICOLOGIA SOCIAL E ANTIRRACISMO:
compromisso social e político por um outro Brasil
RESUMO: Este artigo é um desdobramento da tese de doutorado que trata das relações e processos de subjetivação
entre equipes técnicas e famílias na rede de saúde mental. Neste contexto,o trabalho aborda forças conservadoras e
possibilidades de resistência ao poder. O racismo está presente no cotidiano de pessoas que convivem com situações de
sofrimento mental, mas poucas vezes esse marcador social é abordado nos serviços, caracterizando o silenciamento de
experiências vividas. A metodologia utilizada foi a cartografia, incluindo pesquisa de campo, permitindo rastreamento
de processos e considerando o posicionamento político de quem pesquisa, com orientação para práticas comprometidas
com transformações sociais. A análise dos dados produzidos associa perspectiva interseccional sobre as demandas em
saúde mental à esquizoanálise, buscando a construções de saída dos impasses entre familiares e equipes. Concluímos que
sustentando indagações sobre modos de nos relacionar e revisitar nossa história, podemos construir práticas coletivas
antirracistas na saúde mental.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Racismo; Famílias; Silenciamento; Cartografia.
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RACISMO E SAÚDE MENTAL
RESUMEN: Este artículo es fruto de una tesis doctoral que aborda las relaciones y los procesos de subjetivación entre
los equipos técnicos y las familias en la red de salud mental. Aborda las fuerzas conservadoras y las posibilidades de
resistencia al poder. El racismo está presente en el cotidiano de las personas que viven con sufrimiento mental, pero ese
marcador social raramente es abordado en los servicios, caracterizando el silenciamiento de las experiencias vividas.
La metodología utilizada fue la cartografía, incluyendo la investigación de campo, permitiendo rastrear procesos y
teniendo en cuenta el posicionamiento político hacia prácticas comprometidas con la transformación social. El análisis
de los datos asocia perspectiva interseccional de las demandas de salud mental con el esquizoanálisis, con búsquedas de
salidas a los impasses entre familiares y equipos. Concluimos que apoyando preguntas sobre los modos de relacionarnos
y revisitando nuestra historia, podemos construir prácticas colectivas antirracistas en salud mental.
PALABRAS CLAVE: Salud Mental; Racismo; Familias; Silenciamiento ; Cartografía.
ABSTRACT: This article is an offshoot of a doctoral thesis that deals with the relationships and processes of
subjectivation between technical teams and families in the mental health network. In this context, it deals with
conservative forces and possibilities of resistance to power. Racism is present in the daily lives of people who live with
situations of mental suffering, but this social marker is rarely addressed in the services, characterizing the silencing
of lived experiences. Cartography was the methodology used, including field research, which allows processes to
be traced and takes into account the political positioning of the researcher towards practices committed to social
transformation. The analysis of the data produced associates an intersectional perspective on mental health demands
with schizoanalysis, seeking ways out of the impasse between family members and teams. We conclude that by
supporting questions about ways of relating and revisiting our history, we can build anti-racist collective practices in
mental health.
KEYWORDS: Mental health; Racism; Families; Silencing; Cartography.
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Introdução
“Como fazer implicar, em cada transição que se anuncia, a ancestralidade das gentes
cuja terra foi roubada, como pólen e semente das gentes cuja terra ainda há de ser feita?”
(Mombaça, 2021, p. 62)
Eu, uma das autoras deste texto, me formei em Psicologia muito jovem e demorei para
problematizar minhas ações profissionais a partir de princípios éticos e políticos da profissão.
Através de experiências no campo da saúde mental, fui constituindo preocupações sociais
e clínicas para atuar com pessoas em situação de vulnerabilidade e de sofrimento mental.
Recentemente, ao longo de pesquisa de doutorado sobre o tema das relações familiares
e profissionais que atuam neste campo, tive oportunidade de revisitar minhas escolhas e
atualizar o que considero compromissos para uma atuação que atenda aos interesses da
população brasileira. A metodologia desta pesquisa foi a cartografia, pela qual habitei dois
serviços da rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos de Belo Horizonte, convivendo
e entrevistando pessoas, produzindo dados para análises coletivas conjuntas sobre como
têm ocorrido as relações na rede (Lima, 2021). Nós, ambas as autoras, construímos a
cartografia, realizada entre os anos de 2017 e 2021.
Este trabalho aborda um modo de desenvolver pesquisas e práticas com as famílias,
também usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS): práticas atentas ao chamado
para sermos antirracistas, diante do histórico de opressão e de violência sofridos por
determinados grupos sociais brasileiros, entre os quais estão os povos indígenas e os
descendentes de africanos escravizados trazidos para o Brasil no período de colonização
portuguesa. Sabemos que afro-americanos nunca foram devidamente integrados social e
economicamente em nosso país, como afirma Abdias Nascimento (2019); o que nos leva
a adotar posturas de combate ao racismo nas dimensões pessoais, técnicas, políticas e
culturais. Utilizamos aqui referencial teórico-prático que dialoga com a arqueologia de
Michel Foucault e com a esquizoanálise de Deleuze e Guattari, efetuando uma análise
crítica das ações propostas e executadas a partir da reforma psiquiátrica antimanicomial.
Vivemos em uma sociedade constituída pelo colonialismo euro-americano, na qual
coexistem diversos sistemas de opressão heteronormativos e racistas, que delimitam
modos de existência e de realização de pesquisas científicas (Beleze & Carvalhaes, 2023).
Estas e outras autoras têm destacado a importância de se ampliar o debate interseccional
— incluindo questões de gênero, raça e classe no contexto da saúde mental (Oliveira,
2020; Pereira & Passos, 2017). É preciso analisarmos como marcadores ligados ao racismo
e ao sexismo causam sofrimento psíquico e produzem subjetivações. Estes efeitos, assim
como desigualdades e pobreza, precisam ser pautados e analisados, para que deixem de
parecer naturais e inevitáveis (Beleze & Carvalhaes, 2023).
A cartografia permite nos confrontarmos com nós mesmas, ressignificando nossas
relações, objetivos e articulações. Elaborar trabalhos acadêmicos narrados em primeira
pessoa se associa a um uso da experiência pessoal para pensar as experiências coletivas, as
encruzilhadas de vida. Uma busca de construção de conhecimento situada em determinado
período e a partir de determinadas funções sociais. Experiência que não é fixa, nem estável,
nem transcendental. Um fragmento narrativo sinaliza a vontade de nos colocar na pesquisa
de modo a descobrir, também, uma forma própria de pesquisar, associada à tentativa de
auto-invenção.
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Metodologia
Realizamos, neste trabalho, uma análise que integra a saúde mental, tal como
preconizada nas políticas públicas intersetoriais e no SUS, a obras que tratam do racismo
e de seu enfrentamento. A cartografia apresentada aqui busca desenvolver instrumentos
conceituais que exprimam vivências da nossa cultura e da nossa práxis (Nascimento,
2019), utilizando conhecimentos críticos, inventivos, engendrados com as pessoas com
quem agimos no cotidiano, buscando sensibilizações coletivas sobre os temas. Procuramos,
assim, valorizar os saberes que os próprios usuários e usuárias e familiares tenham sobre
si, bem como construções aprendidas e compartilhadas sobre manejos e convivências com
situações de sofrimento.
A escrita funciona como exercício de pensamento e experimentação sobre nós mesmas.
Ela é intercessora de mundos, de formas e forças. A aproximação dos dados pesquisados com
as referências bibliográficas levantadas seguiu um método rizomático, conforme indicado
por Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995). Nesta perspectiva, mais do que interpretar
fatos, propõe-se acompanhar processos, considerando afetos, gestos, discursos; analisando
como as relações são (re)produzidas nas interações.
A pesquisa de campo foi feita com uma das autoras frequentando unidades de diferentes
pontos de atenção na rede de saúde mental existente em Belo Horizonte. Usuários(as)
passam por diferentes serviços conforme o momento do tratamento e, em cada um deles,
há condições diferentes para o trabalho de acompanhamento também com os familiares.
Nos Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM), serviços de urgência, são
acolhidas pessoas em situações de crise, que afetam de modo específico usuários, famílias e
o entorno. Nos Centros de Convivência (CC), por sua vez, em sua interseção com a arte e
as expressões culturais, há outras oportunidades de relacionamento com as famílias, pois a
situação de sofrimento está mais superada, com possibilidades de retomada das atividades
cotidianas.
Os espaços de ambos os serviços foram frequentados conforme a rotina de cada um:
quase semanalmente no CERSAM; a cada dois meses no CC. Realizamos entrevistas
coletivas com os grupos de familiares de cada um deles, a partir de convites que fizemos;
e a pesquisadora/autora esteve também com as equipes nas atividades de rotina com os
familiares. Outras entrevistas coletivas foram realizadas com as equipes dos serviços
participantes: no CERSAM, com as duas técnicas de referência para o grupo de familiares
e a gerente; no CC, com a equipe completa, conforme sugestão de uma das pessoas de
referência, para que os demais técnicos pudessem contribuir com a discussão. Foi realizada
imersão no campo, com acompanhamento das atividades instituídas nos serviços, e foram
propostas entrevistas coletivas exclusivamente com familiares; entrevistas coletivas
somente com técnicos das equipes; além das escritas e análise de diário de bordo.
Uma parte dos encontros ocorreu por meio de convite específico para conversar sobre
os objetivos da pesquisa. Os convites para participação de familiares na pesquisa foram
mediados pelas equipes. Bastava o interesse em conversar sobre o tema, estando apta
a participar qualquer pessoa que se sentisse responsável pelo acompanhamento de seu/
sua familiar na rede de saúde mental, independentemente do vínculo com o(a) mesmo(a)
e do tempo de tratamento. As pessoas que compareceram nas entrevistas coletivas da
pesquisa estavam, de certa forma, já inseridas nas dinâmicas dos serviços: em sua maioria
mães e irmãs de pessoas em acompanhamento. A partir das conversas sobre o histórico de
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tratamento, os ganhos e os desafios no percurso de cada uma das pessoas, pude perceber que
marcadores de raça e referências identitárias não foram abordados. Houve maior facilidade
de acompanhamento assíduo das ações nos serviços por parte de pessoas familiares brancas,
que possuem, também, condições econômicas mais favoráveis.
As entrevistas abordaram o modo de participação das famílias no tratamento dos(as)
usuários(as), rastreando quais os impasses e os facilitadores nas relações entre elas e as
equipes de referência. As perguntas se relacionavam às mudanças das dinâmicas familiares
a partir do adoecimento, tratamento e responsabilidade de familiares, seja com práticas
específicas de cuidado, seja com outras ações que favoreçam ou não a estabilização e a
inserção psicossocial dos(as) usuários(as).
Procuramos intervir para ouvir as famílias sobre os tratamentos de seus familiares,
para analisar as relações que se estabelecem entre elas e as equipes técnicas. Seguimos
sem pretensão de definir um modelo de família, pois os grupos familiares são complexos,
atravessados por valorizações sociais e culturais, evidentemente influenciados pelo sistema
socioeconômico em que vivemos. Nos grupos familiares há relações compartilhadas
que podem estar ligadas a funções de cuidado e proteção, alimentação, socialização,
representando modos de convivência que não estão sujeitos a nenhum tipo de julgamento
de valor, em relação aos objetivos da pesquisa. Apesar das dificuldades que as equipes
têm, por vezes, em abordar as famílias, existem inúmeras tentativas para ampliar essa
aproximação.
É importante destacar que o chamado incisivo para discussão sobre o racismo e
seus impactos na saúde mental ocorreu em entrevista coletiva com a equipe do Centro
de Convivência, composta majoritariamente por artistas e arte-educadores: tanto para
pensar sobre a composição racial da população atendida, quanto para buscar referenciais
teóricos para a pesquisa que dialogassem com saberes afrodiaspóricos, evitando reproduzir
somente referenciais eurocêntricos, conforme a tradição. Foi um dos aprendizados que
temos retomado nas análises posteriores sobre os dados produzidos durante a cartografia.
Apostamos na possibilidade de construções de conhecimento através de epistemologias
que incluam saberes leigos, para além das produções formais e acadêmicas, para a co-
produção de dados. Com o método cartográfico, a intervenção faz parte do caminho
percorrido, refazendo metas e objetivos durante o próprio percurso, forçando os limites
de procedimentos metodológicos estanques e pré-estipulados. Processos de criação
decorrentes de desvios que ocorrem quando lidamos com pessoas, grupos e instituições.
O que inclui lidar com vivências de constrangimento, violência, perda de direitos e de
qualidade de vida, dificuldades numerosas de cuidado de si e de outras pessoas nos círculos
socioafetivos. Trabalhar no campo da saúde mental impõe reconstruir forças e superar o
silenciamento de temas nem sempre tratados, mas que causam sofrimento, para muitas de
nós. São possibilidades de construção de resistências antimanicomiais e antirracistas, que
transversalizam nossas ações e florescem se forem cultivadas nos coletivos que compomos.
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Os (as) autores (as) priorizados (as) nesta cartografia têm em comum a problematização
das tecnologias de poder que atuam em relações micropolíticas, sustentando a importância
das relações e seu campo de efeitos. Tanto nos serviços de saúde quanto nas famílias há
frequentes conflitos, com a ocorrência de encontros despotencializadores. Algumas análises
envolvem a relação entre saber e poder empreendida por Michel Foucault (1999). São
contribuições para uma reflexão sobre a transformação operada nas práticas assistenciais,
no que concerne aos efeitos do exercício do poder e que se articulam à reforma psiquiátrica.
Dentre distintos modos de uso da noção de identidade, Patricia Collins e Sirma Bilge
(2021) o desenvolvem como identidades individuais, se forem aplicados diferentemente
entre os contextos sociais, tendo seu significado em construção, moldado, também, por
relações de poder interseccionais. As autoras demonstram como muitos problemas sociais
encontrados nas instituições incorporam ideologias e filosofias neoliberais. Podemos
articular as noções de consciência e memória, pautando as relações de classe, gênero e raça
— as interseccionalidades — na luta antimanicomial. Estas são multiplicidades na análise
de forças que servem a práticas contemporâneas de manutenção do comprometimento da
Psicologia com a busca por justiças sociais.
As formas de expressão sobre as relações indicam uma linha dura de “não participação”
dos familiares nas atividades propostas nos serviços, endurecendo acolhimentos e impedindo
certas construções com esse grupo — queixa recorrente das equipes profissionais. Um
dos possíveis motivos para a ausência pode ser o horário em que o grupo ocorre, o que é
considerado como um dificultador, por ser horário de trabalho também de familiares. São
agendas difíceis de conciliar. Foi observado que a maioria das familiares que vão ao serviço
são mulheres — mães dos(as) usuários(as) que também são responsáveis por inúmeras
tarefas domésticas. É notável, a naturalização das atribuições de papeis de gênero e a
ausência de discussão sobre as mesmas.
Há distintas considerações sobre os modelos e saberes de familiares a respeito da
convivência com pessoas em situação de sofrimento mental, e consequentemente práticas
homogeneizadoras e encarnadas nos discursos dominantes, em resposta a tais concepções.
Algo que se associa ao poder normalizador da psiquiatria. No entanto, pudemos observar
uma conjugação que pode ser efetiva para recolocar a função da psiquiatria e de formas
de controle sobre as pessoas, dependendo dos posicionamentos tomados. Ouvimos sobre
famílias que desempenham papel opressor, prejudicando a autonomia dos(as) usuários(as),
conforme a avaliação das equipes. Parte das dificuldades em se trabalhar com as famílias
consiste na diversidade dos tipos de relações entre as pessoas que aparecem em situações
concretas, tais como, a participação em eventos e viagens, auto-organização de atividades
cotidianas, articulação de redes, circulação pelos territórios, entre outras.
É frequente certa institucionalização das demandas por parte de familiares e
usuários(as), que indicam concepções comuns no modo de lidar com pessoas diagnosticadas.
Os riscos de medicalização da assistência são acentuados, visto que práticas e intervenções
que priorizam uso de medicamentos e hierarquização de saberes, dentre eles a medicina,
são coerentes com a cultura e os padrões de consumo de bens e serviços na sociedade
atual. As respostas dos serviços quanto a esses riscos envolvem articulações comunitárias
e o desenvolvimento de atividades explicativas e de sensibilização que orientem para o
cuidado em liberdade e o paradigma de atenção territorial.
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Neste mesmo sentido, Melissa Pereira e Rachel Passos (2017) ressaltam que o modo
de produção capitalista aprofunda a racismo e o patriarcado já existentes desde antes de
seu desenvolvimento; o capitalismo mantém desigualdades e explorações de raça, gênero
e classe, ao mesmo tempo em que é mantido por elas. Atuar na saúde mental, revisitando a
história, permite outras construções coletivas para o presente e o futuro. Assumimos, desta
forma, o compromisso em articular a luta antimanicomial às práticas de enfrentamento ao
racismo — esta “relação de poder estruturante das relações sociais brasileiras” (David,
2018, p. 22).
Diferentes períodos históricos e nacionalidades denotam pontos de ressonância sobre
formas de legitimação da violência que levaram a mortes concretas e subjetivas, simbólicas
e físicas de pessoas em situação de sofrimento e exclusão social. Mazelas ligadas à nossa
história. “O colonialismo, para além de todas as dominações injustas e violentas, foi
também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-
poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e/ou nações
colonizados” (Santos, 2013, p. 10).
Os percursos formativos e de práticas da Psicologia têm sofrido alterações a partir dos
questionamentos sobre os modos de construção de conhecimento, através da necessidade
de descolonização das nossas referências (Kilomba, 2019). Com tais questionamentos, a
categoria profissional tem utilizado de diversas relações institucionais, contribuindo para
o debate acerca dos efeitos do. É necessário que se produzam deslocamentos até sermos
capazes de descolonizarmo-nos a nós mesmas “o suficiente para acolher os sujeitos reais
deste país” (Silva, 2019, p. 21). Assim, tendo aprendido com Lélia Gonzales (1984) sobre
como o lugar em que nos situamos determina o modo de analisarmos o racismo e o sexismo,
as questões que são investigadas na saúde mental passaram a ser redimensionadas: não
seria mais possível tratar das relações entre familiares e equipes sem abordar devidamente
o lugar da mulher negra na correlação de forças neste campo.
Infelizmente, as hierarquias relacionais, sociais e culturais ainda são quase as mesmas
da escravatura. Nos governos nacionais do começo dos anos 2000 algumas iniciativas foram
desenvolvidas no sentido de desfazer o mito da democracia racial brasileira, bem como
ocorreram produções de indicadores que atestam como o racismo determina desigualdades
sociais (IPEA, 2011). Essa produção contribui para ações que deixem de invisibilizar tramas
históricas, destacando recortes de cor e raça (Oliveira, 2020). Construções identitárias e
de pertencimento compõem condições de adoecimento e saúde. Assumir o mecanismo que
impede o acesso a oportunidades em nossa sociedade é um dos passos para o combate ao
racismo.
Quanto às ações de reabilitação psicossocial, como a demanda por acesso a trabalho,
respeito às diferenças subjetivas, preservação e/ou ampliação de vínculos afetivos e
comunitários, estas não podem ser dissociadas das caracterizações políticas, econômicas
e sociais. São interações importantes para ampliarmos a convivência com pessoas em
situação de sofrimento mental e com a loucura, para além dos espaços estipulados como
“terapêuticos” e ocupados por profissionais “especializados(as)”.
Rachel Passos (2018) resgata, em seu trabalho, fundamentos ético-políticos do
movimento da luta antimanicomial. Considerando as africanidades que compõem nossa
cultura podemos fazer uma análise das relações familiares praticadas na rede de saúde
mental, visando não naturalizar as violências e as práticas de controle dos corpos e os
comportamentos de pessoas em sofrimento mental, estejam institucionalizadas ou não,
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A esquizoanálise não optará, então, por uma modelização com a exclusão de uma
outra. Tentará discernibilizar, no interior de diversas cartografias em ato em uma
situação dada, focos de autopoiese virtual, para atualizá-los, transversalizando-os,
conferindo-lhes um diagramatismo operatório (por exemplo, por uma mudança
de matéria de Expressão) tornando-os operatórios no interior de Agenciamentos
modificados, mais abertos, mais processuais, mais desterritorializados. A
esquizoanálise, mais do que ir no sentido de modelizações reducionistas
que simplificam o complexo, trabalhará para sua complexificação, para seu
enriquecimento processual, para a tomada de consciência de suas linhas virtuais
de bifurcação e de diferenciação, em suma, para sua heterogeneidade ontológica.
(Guattari, 1992, pp. 90-91)
Para Roberta Oliveira (2020), vidas e diversas formas de estar no mundo, projetos de
felicidade e de resistência aos mecanismos de controle e poder são potenciais criativos a serem
partilhados. Em consonância com a autora, demarcamos intenção de não compactuar com
modos de inviabilização de determinadas vidas. Buscar epistemologias, tramas territoriais,
políticas, sociais, incluindo territórios existenciais, pautadas no desejo de maior igualdade
de oportunidades e de superação de silenciamentos. A racialização e o mito construído
de uma suposta superioridade racial, correlatos à vontade de classificar, hierarquizar,
subjugar e explorar povos, recursos e territórios é o que justifica a permanência de práticas
e relações racistas. São dores que podem ser trabalhadas e superadas, mesmo que tenhamos
pistas para ações, sem necessariamente garantias do que pode advir. Algo que acompanhe
os movimentos e as oscilações das relações que temos com outros e entre nós.
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Considerações finais
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Escrever sobre si, sobre nós, permite que refaçamos posicionamentos, sustentando
indagações sobre o nosso próprio fazer, em prol de construções comuns. Implica em estarmos
dispostas a falar sobre o que não é falado, sobre assuntos muitas vezes interrompidos
com intenção de silenciar e negar certos fatos históricos. Fazer leituras que inspiram
outras poéticas para o trabalho, cujo caráter político não é desconsiderado, permite ir
além de ressentimentos e contribuem para práticas profissionais revitalizadas. Criando
possibilidades de vida. Buscando, enfim, contribuir para um exercício da Psicologia que
aposte em compromissos éticos para gestão do cuidado em saúde mental e para modos
de relacionar com a loucura que respeitem as singularidades das pessoas e das situações
sociais, considerando as especificidades de grupos familiares com os quais lidamos nas
políticas públicas.
Sejamos antirracistas, antimanicomiais e contracoloniais na saúde mental.
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RACISMO E SAÚDE MENTAL
Submissão: 31/07/2023
Histórico Revisão: 29/09/2023
Aceite: 30/09/2023
Concepção: TASL
Curadoria de dados: TASL
Contribuição dos autores Análise de dados: TASL; RCR
Redação do manuscrito original: TASL; RCR
Redação - revisão e edição: TASL
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