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Resumo: O presente trabalho discorre acerca das práticas decoloniais no ensino de língua
portuguesa na educação básica. O trabalho tem como base os relatos colhidos através de
entrevista, de uma docente de língua portuguesa de Florianópolis, Santa Catarina e busca
relacionar a sua prática docente com as teorias decoloniais.
Abstract: The present work discusses the decolonial practices in the teaching of Portuguese
language in basic education. The work is based on the reports collected through interviews with
a Portuguese-speaking teacher from Florianópolis, Santa Catarina, and seeks to relate her
teaching practice with decolonial theories.
1. Introdução
Neste estudo iremos discorrer sobre práticas decoloniais no ensino de língua portuguesa
na educação básica, tendo como base, uma entrevista aplicada a uma docente do ensino
fundamental e médio, da cidade de Florianópolis, Santa Catarina.
1
Graduanda em Letras Espanhol (UFSC), Mestre em Cultura e Territorialidades (UFF, 2015), pós-graduada- em
Linguagens Artísticas, Cultura e Educação (IFRJ, 2014) e Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em
Publicidade e Propaganda (Estácio de Sá, 2011). Contato: luzmarianablet@gmail.com
Recebido em 22/03/2022
Aprovado em 26/05/2022
HUMANIDADES & TECNOLOGIA (FINOM) - ISSN: 1809-1628. vol. 35. Nº2- ago. /out. 2022
Doi 10.5281/zenodo.6590625
Para preservar a identidade de nossa entrevistada e, com fins de facilitar a leitura deste
ensaio, iremos identificar a docente pelo pseudônimo Mercedes.
Mercedes é professora de língua portuguesa dos Anos Finais do Ensino Fundamental,
nas turmas do 7º ano, e do Ensino Médio, nas turmas do 1º, 2º e 3º ano. Ela leciona há cinco
anos na instituição, que está localizada no Maciço do Morro da Cruz, no Centro de
Florianópolis.
O Maciço do Morro da Cruz é um grande morro, localizado na região central da ilha de
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Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina. O Maciço é composto por diversas
comunidades, entre elas: Morro do Mocotó, Morro da Caixa da D’Água, Tico-Tico, Chapecó,
Morro do Céu, Serrinha, Carvoeira, Caieira do Saco dos Limões, Horácio, Mariquinha, Nova
Descoberta, além de parte dos bairros da Prainha, José Mendes, Saco dos Limões, Trindade e
Agronômica. Grande parte da população que ocupa o território é de baixa renda e o local se
caracteriza pela falta de elementos básicos de infraestrutura urbana.
Neste cenário, a escola onde Mercedes leciona apresenta uma realidade bastante diversa,
porém, a maior parte dos estudantes se encontram nas camadas C e D e o cotidiano escolar é
constantemente atravessado por questões como a ausência do Estado nas políticas públicas, a
violência e a vulnerabilidade social.
Antes de abordarmos diretamente os relatos da entrevistada, é importante contextualizar
sob qual perspectiva iremos abordar alguns conceitos essenciais para este ensaio, tais como
cultura, identidade, decolonialidade.
O conceito de cultura é muito amplo, e pode ser visto sob diferentes perspectivas. Aqui,
iremos considerar a perspectiva pós-moderna, que compreende a cultura como um processo
discursivo dinâmico e não apenas limitado ao território e história de uma nação. Neste sentido,
a cultura remete ao diálogo entre o eu e o outro, a disputas por representações, ou, conforme
Kramsch (2017, p. 146) “é o significado que membros de
um grupo social dão às práticas discursivas que compartilham em um determinado
espaço e tempo, durante a vida histórica do grupo.”
Ainda sob uma perspectiva pós-moderna, as identidades, são consideradas como sendo
fluídas e em constante processo de transformação. Elas não são unificadas, são fragmentadas e
fraturadas, construídas pelo discurso e práticas e posições que podem ser semelhantes ou
antagônicas (HALL, 2000).
Outro conceito fundamental neste ensaio, de grande relevância para os estudos do
campo da cultura e linguística é o de decolonialidade. O conceito de decolonialidade se
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consolida a partir do final da década de 1990, com a formação do Grupo
Modernidade/Colonialidade (M/C), composto por diversos intelectuais latino-americanos, que
visam problematizar as perspectivas eurocêntricas de ler e narrar o mundo, dando voz e
visibilidade a povos historicamente subalternizados e silenciados (MATOS e SILVA JUNIOR,
2019).
De acordo com Ballestrin (2013) o “giro decolonial” proposto por estes intelectuais,
consiste em um “movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica
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da modernidade/colonialidade” (BALLESTRIN, 2013, p.105).
Ainda conforme a autora, não podemos confundir o pensamento decolonial com uma
rejeição às teorias e conceitos criados pelo “norte” global, mas sim, como um contraponto à
tendência histórica de que o Sul apenas fornece experiências, enquanto o Norte as teoriza e cria
o conhecimento.
Decolonizar a educação é, portanto, pensar em outras formas de ensino além do
hegemônico, promovendo o protagonismo de sujeitos historicamente marginalizados e que
contemple problemas do mundo real. Nesta perspectiva, na sequencia iremos discorrer sobre os
tópicos abordados na entrevista.
Com base nos conceitos vistos anteriormente e, considerando o contexto escolar no qual
a professora atua, buscamos saber da entrevistada, como as práticas decoloniais podem ser
aplicadas em sala, nas aulas de língua portuguesa.
Conforme o relato de Mercedes, contextualizar o ensino de língua portuguesa como algo
que nos foi imposto é um ponto de partida para pensar numa perspectiva decolonial: “A língua
portuguesa, neste território, ela é uma imposição. Por que estudamos português e não nhegatu
ou uma língua indígena? ” (INFORMAÇÃO VERBAL).
O questionamento de Mercedes chama a atenção para o papel hegemônico da língua
portuguesa e remete a um conceito abordado por Matos e Silva Junior (2019), que é o de línguas
minoritárias e minoritarizadas. Línguas minoritárias são aquelas que tem menor número de
falantes, já línguas minoritarizadas são aquelas que ocupam um lugar subalterno por imposição.
No artigo, os autores discorrem sobre a posição de língua hegemônica exercida pelo espanhol,
nos países hispano-falantes da América Latina, em detrimento das línguas indígenas, que são
minoritarizadas e apresentam um status social inferior.
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O mesmo exemplo pode ser observado no caso do Brasil, onde as línguas indígenas e
de origem africana, ocupam lugar subalterno em relação ao português, por imposição, e não
pelo número de possíveis falantes. Ou seja, são línguas minoritarizadas.
Existe uma relação inerente entre língua, cultura e identidade, já que a cultura é um ato
dialógico e as identidades são produções discursivas formas dentro da cultura, que envolvem
uma relação de poder, que não é inocente e não pode ser separado de outras formas mais amplas
de poder.
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Quando eu vou trabalhar com o ensino médio e a gente vai trabalhar o quinhentismo,
eu procuro sempre trazer um contraponto. Eu vou trazer, por exemplo, a Carta de
Achamento do Brasil e, junto com os estudantes, fazer uma leitura, contrastando, por
exemplo, com textos de escritores indígenas, pra gente questionar também esses
documentos, não ficar cumprindo tabela. Busco trazer essas rupturas e
questionamentos em relação a como se formam esses textos, considerando que cada
texto tem um sujeito de enunciação e tem um contexto histórico. (INFORMAÇÃO
VERBAL)
Para que o pensamento decolonial seja, de fato, posto em prática em sala de aula, os
materiais didáticos devem dialogar com essa perspectiva. Na escola onde Mercedes atua, no
caso específico do Ensino Fundamental, a rede de ensino adota uma coleção, que aborda as
temáticas étnico-raciais, de gênero e diversidade de modo positivo, proporcionando debates
consistentes. De acordo com a docente, esta coleção cumpre o papel de dar visibilidade a essas
outras vozes e sujeitos na sala de aula.
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Em relação ao Ensino Médio não existe um material pronto, as aulas são planejadas a
partir de projetos temáticos e os materiais utilizados são produzidos a partir das reflexões e das
discussões durante as aulas. A esse respeito, Mercedes cita como exemplo um conjunto de ações
e debates com o 2° ano do Ensino Médio, que resultaram na leitura do livro Vidas Secas:
Um exemplo de prática que vem acontecendo e foi bastante interessante foi, por
exemplo: Eu li com o 2º ano Vidas Secas, não porque eles tinham que ler Vidas Secas
porque é um clássico, mas porque em Geografia eles começaram a estudar as
migrações e, nas discussões da própria sala de aula eles perceberam que a maior parte
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daquelas pessoas ali é fruto da disputa pelo espaço territorial. Então, o fato de que
hoje a gente vive em Florianópolis tem um porque histórico. A formação ali da
ocupação do Maciço da Cruz tem vários elementos que remontam, desde as disputas
pós-abolição, Contestado e outras dinâmicas mais recentes, como uma imigração bem
grande vinda do norte do país. Enfim, a gente acaba conseguindo fazer esses links,
porque a gente produz os nossos materiais (INFORMAÇÃO VERBAL).
As práticas expostas pela entrevistada dialogam com as concepções mais atuais na área
dos estudos linguísticos, que defendem o seu caráter mestiço, transgressivo e transdisciplinar.
(MOITA LOPES, 2006). A linguística aplicada contemporânea deve estar comprometida com
o contexto social, cultural e histórico vivenciado pelos alunos.
Desta forma, ao trazer para a sala de aula literaturas que convergem com a realidade dos
alunos, abordando temáticas sobre migrações, periferias, desigualdade social, questões de
gênero, entre outros assuntos que permeiam o cotidiano daquele grupo, gera-se uma
identificação e a aprendizagem torna-se mais significativa.
A esse respeito Mercedes relata a importância de dar visibilidade e trazer para a sala
de aula autoras como Carolina Maria de Jesus, Elisa Lucinda ou Conceição Evaristo, e afirma
que são escolhas políticas, que irão permitir que os alunos formem suas referências como
leitores:
A Carolina Maria de Jesus, por exemplo, já que a gente citou o nome dela, ou a
Conceição Evaristo, ou por exemplo, a Elisa Lucinda, são escritoras que dentro
daquele espaço encontram muita identificação. Então, às vezes, é um estopim pra
gente conseguir estabelecer o primeiro passo da formação de leitor naquele território.
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O livro da Carolina, por exemplo, é um livro super disputado, porque existe essa
identificação, de realidade étnica, de realidade social, mesmo que a gente esteja a mais
de 50 anos distanciados da Carolina, a gente encontra essas similaridades
(INFORMAÇÃO VERBAL).
Ainda sobre as escolhas de autores e livros levados para a sala de aula, Mercedes
afirma não abdicar dos clássicos, mas sim “construir outros clássicos” e sobre a importância
de “humanizar” esses clássicos, trazendo referências e conexões com a contexto daqueles
estudantes. 233
Eu não lembro que escritor que disse, que é a gente que cria o nosso próprio cânone.
E eu sempre falo isso para os estudantes, que a gente precisa ler o máximo possível
pra decidir, inclusive o que não gosta. Então, tudo bem você não gostar de Machado
de Assis, mas dá uma chance pra ele, tudo bem se você não vai gostar da Carolina,
por exemplo [eu não conheci ninguém, mas talvez alguém não goste], mas você tem
que conhecer (INFORMAÇÃO VERBAL).
Concluindo a entrevista, Mercedes fala sobre om cuidado que ela tem em trabalhar com
seus alunos, no primeiro momento, textos com os quais os estudantes vão se sentir identificados
e, de respeitar o processo e o diálogo que surge em sala, que criará caminhos para a inserção de
novos elementos por parte da docente. Exemplo disso, foi o caminho percorrido para a leitura
de Vidas Secas:
Nós chegamos até a leitura do livro porque a discussão trouxe o livro, e não porque
eu falei a gente vai ler vidas secas pra analisar a narrativa. Por acaso o contexto foi
propício pra gente chegar até o vidas secas, mas antes a gente já tinha visto ou ouvido
outras coisas. A gente já tinha escutado Zé Ramalho, que é literatura também, poesia,
então a gente escolhe o nosso caminho (INFORMAÇÃO VERBAL).
3. Considerações finais
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Neste ensaio, partimos de uma entrevista com uma professora da educação básica, para
analisar como esta perspectiva decolonial pode ser trabalhada em sala de aula.
Na entrevista foram abordados diversos tópicos, dos quais focamos a nossa análise nas
questões sobre a prática docente e os materiais didáticos, e como eles dialogam com a
decolonialidade.
Pela análise de seus relatos e, relacionando com os conceitos abordados, é possível
perceber que o pensamento decolonial se faz presente na atuação da docente. Despertar a
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criticidade dos estudantes, olhar para o caráter hegemônico da língua portuguesa e para a
minoritarização das culturas e identidades que se aproximam mais ao contexto dos estudantes,
são alguns exemplos disso.
Em relação aos materiais didáticos, no que diz respeito ao ensino médio, do qual se
discorreu mais na entrevista, a própria metodologia com a qual eles são criados apresenta os
traços da decolonialidade, já que eles são cridos de maneira horizontal, prevalecendo o diálogo,
e sendo guiados pelo contexto e interesses dos estudantes.
Temos a consciência de que o relato e exemplo de atuação de uma docente não
representa o todo da educação brasileira. E inclusive, que se pensarmos numa perspectiva
decolonial, não podemos falar em um todo, mas sim em diversos contextos. No entanto, é
possível firmar que, assim como Mercedes, muitos docentes da educação básica no Brasil se
preocupam em desenvolver práticas que possibilitem a formação de sujeitos críticos e
decolonizados.
Referências
HUMANIDADES & TECNOLOGIA (FINOM) - ISSN: 1809-1628. vol. 35. Nº2- ago. /out. 2022
Doi 10.5281/zenodo.6590625
Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-
45732017000300134&lng=pt&tlng=pt. Acesso em maio/2021.
SILVA JUNIOR, Antônio Carlos; MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Linguística 235
Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista
Interdisciplinar Sulear, UEMG, Ano 2, No. 2 (setembro/2019) Edição Especial Dossiê
SULear.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Ed.
Vozes, 2000.
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