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A Inferência Abdutiva e o Realismo Científico

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(Publicado em Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia, srie 3, 6 (1): 45-73, 1996.

A INFERNCIA ABDUTIVA E O REALISMO CIENTFICO1


SILVIO SENO CHIBENI Departamento de Filosofia - IFCH - UNICAMP Caixa Postal 6110, 13081-970, Campinas, SP e-mail: chibeni@obelix.unicamp.br Resumo:
Este trabalho procura elucidar a natureza dos argumentos abdutivos e o papel que desempenham na defesa da tese epistemolgica do realismo cientfico. As principais objees levantadas por van Fraassen ao uso realista desses argumentos so analisadas criticamente.

Abstract:
This paper aims to elucidate the nature of abductive arguments and their role in the defence of scientific realism. Van Fraassens main objections to the realist use of this kind of argument are examined critically.

1. Introduo: A inferncia abdutiva


O debate contemporneo acerca do realismo cientfico trouxe tona os problemas da natureza e do valor de uma forma de inferncia que tradicionalmente tem recebido pouca ateno dos filsofos. Charles S. Peirce, um dos primeiros a reconhecer explicitamente sua importncia na prtica argumentativa da cincia e do dia-a-dia, denominou-a inferncia abdutiva.2 Em artigos da dcada de 1960, Gilbert Harman deu um novo enfoque questo, e renomeou a inferncia de inferncia da melhor explicao (Harman 1965, 1968). Um exemplo tpico ajuda a introduzir o assunto. Ao adentrarmos uma sala, vemos sobre uma mesa um saco com feijes brancos e, ao seu lado, um punhado de feijes brancos. Diante disso, estimando que a hiptese de que os feijes do punhado vieram do saco representa a melhor explicao para o fato (e, alm, disso, uma boa explicao para ele), inferimos abdutivamente que essa hiptese , muito provavelmente, verdadeira. O poder
1Uma primeira verso deste artigo foi apresentada no Seminrio do Departamento de Filosofia da UnB em 17/6/96. O artigo incorpora elementos do trabalho (no publicado) O que o realismo cientfico?, apresentado no IX Colquio de Histria da Cincia do Centro de Lgica, no dia 27/11/95, em guas de Lindia. Gostaramos de agradecer ao Prof. Michel Ghins, da Universit Catholique de Louvain, pela leitura cuidadosa de uma verso preliminar deste trabalho e pelos teis comentrios que fez. 2 Peirce Collected Papers, especialmente 6.525 e 5.189. Antes de Peirce, William Whewell destacou o papel que a abduo desempenha na gnese e justificao das teorias cientficas (cf. Achinstein 1992). Veremos adiante que j em Descartes h aluso a essa forma de inferncia.

explicativo da hiptese parece fornecer bases para crermos em sua verdade. Nas palavras de Peirce (5.189):
O fato surpreendente, C, observado. Mas se A fosse verdade, C seria um fato natural. Logo, h razes para suspeitar que A seja verdade.

De modo simplificado, o esquema geral dos argumentos abdutivos, tais quais aparecem nas discusses contemporneas, consiste no enunciado de uma evidncia (um fato ou conjunto de fatos), de hipteses alternativas para explicar tal evidncia, e de uma apreciao do valor dessas explicaes. A concluso a de que a melhor explicao provavelmente verdadeira se, alm de comparativamente superior s demais, for boa em algum sentido absoluto.3 Percebe-se imediatamente que, em contraste com os argumentos dedutivos, a concluso no segue logicamente das premissas e depende de seu contedo. E que, em contraste com os argumentos indutivos, ela no necessariamente consiste na extenso uniforme da evidncia. Nos artigos mencionados, Harman defende que, na realidade, os argumentos indutivos podem e devem ser entendidos como casos especiais de argumentos abdutivos. No nos ocuparemos aqui da avaliao dessa tese (ver Ennis 1968 para uma crtica relevante), bastando-nos reconhecer a existncia e a especificidade das inferncias abdutivas, e sua larga aplicao nos raciocnios do homem comum, do cientista e do filsofo. Vejamos mais alguns exemplos. A concluso do conhecido detetive de que o autor do crime foi o mordomo obtida abdutivamente: a hiptese de que foi o mordomo representa a melhor explicao dos fatos averiguados, em comparao com a de que foi o vizinho, por exemplo. De igual modo, diante de certos sintomas e ocorrncias de contgio, de tais e tais reaes qumicas e imagens na tela de um microscpio eletrnico, um bilogo eventualmente concluir, abdutivamente, que existe um vrus de tal tipo, se sua existncia explicar bem essa evidncia, de modo mais satisfatrio do que hipteses rivais, como as de que existe uma certa bactria ou um certo humor morbfico. Esse ltimo exemplo, tpico de um contexto cientfico, evidencia a conexo entre a abduo e o realismo cientfico, a ser analisada detalhadamente na seo 3.

2. O realismo cientfico
Em um sentido geral, o realismo uma tese sobre o problema epistemolgico dos limites do conhecimento, contestada por doutrinas anti-realistas diversas, dependendo do tipo de conhecimento em questo. O presente trabalho ocupa-se do conhecimento das entidades e processos no-observveis (eltrons, campos magnticos, ligaes moleculares, etc.) postulados pela cincia para predizer e explicar os fenmenos. O realismo cientfico
tentativa de tornar precisa essa qualificao conduz a dificuldades evidentes, o mesmo ocorrendo com relao noo relativa de melhor explicao. No presente trabalho nos absteremos de adentrar esse importante problema, adotando, em primeira aproximao, alguma noo intuitiva de melhor e de boa explicao. Thagard 1978 representa uma das poucas propostas de desenvolvimento da questo da determinao do mrito relativo das explicaes.
3A

sustenta que aquilo que as teorias cientficas afirmam acerca desse mundo sub-fenomnico pode, de fato, representar conhecimento genuno; o conhecimento humano seria passvel de avanar alm dos limites do que diretamente observvel. O realismo cientfico recebeu formulaes diferentes e, em geral, no equivalentes, por parte dos filsofos que dele se ocuparam. Para nossos propsitos, julgamos adequada a caracterizao dada por Bas van Fraassen em seu The Scientific Image, que tenta no sobrecarregar a posio com assunes desnecessariamente fortes. Para esse autor, o realismo cientfico a tese segundo a qual a cincia objetiva a nos fornecer, em suas teorias, uma estria literalmente verdadeira de como o mundo; e a aceitao de uma teoria cientfica envolve a crena de que ela verdadeira (van Fraassen 1980, p. 8). Essa tese filosfica tem sido negada de vrios modos, o que leva a tipos diferentes de anti-realismo cientfico. A verso mais radical a que resulta do abandono da concepo clssica, correspondencial, de verdade, em favor de concepes como a pragmtica, ou a concepo da verdade como coerncia, ou como a possibilidade de assero garantida (ver e.g. Dummett 1978 e Putnam 1981). Mesmo retendo-se a concepo de verdade como corespondncia, formas bem caracterizadas de anti-realismo cientfico so ainda possveis: a) Instrumentalismo. Sustenta que as proposies da cincia que, quando interpretadas literalmente, referem-se a coisas e processos no-observveis (proposies tericas, por brevidade) so na verdade instrumentos de clculo ou predio, ou ainda regras de inferncia, que auxiliam a conexo e a estruturao das proposies sobre coisas e processos observveis (proposies observacionais); no so, portanto, proposies genunas, mas pseudo-proposies, no cumprindo nenhuma funo descritiva de aspectos no-observveis do mundo. b) Redutivismo. Para o redutivismo, as proposies tericas da cincia so proposies legtimas, porm de fato referem-se (indiretamente) apenas ao que observvel, sendo, na verdade, abreviaes para proposies mais complexas sobre entidades e processos observveis; no devem, portanto, ser interpretadas literalmente, mas reduzidas a proposies observacionais por meio de certas convenes lingsticas (regras de correspondncia) para que seu verdadeiro contedo emprico e significado se evidenciem. c) Empirismo construtivo. a doutrina anti-realista proposta por van Fraassen, segundo a qual as proposies tericas da cincia so proposies genunas e devem ser interpretadas literalmente; porm a determinao de seu valor de verdade no constitui o objetivo da cincia. A cincia objetiva a nos fornecer teorias que so empiricamente adequadas; e a aceitao de uma teoria envolve, como crena, apenas que ela empiricamente adequada (van Fraassen 1980, p. 12). Note-se que o instrumentalismo, o redutivismo e o empirismo construtivo so posies realistas quanto aos objetos materiais ordinrios. Como se sabe, o debate contemporneo gira em torno do empirismo construtivo, alegadamente a forma mais plausvel de anti-realismo cientfico. Van Fraassen compartilha com o realista tpico de hoje no somente a concepo correspondencial de verdade e a interpretao literal das teorias cientficas, mas tambm a crena de que o conhecimento assenta na evidncia dos sentidos, ou seja, o empirismo, no sentido original do termo. Todavia, junta-se ao instrumentalista e ao redutivista ao considerar que o conhecimento se limita estritamente ao que pode ser fornecido por essa evidncia, ao que diretamente observvel por meio dos sentidos.4

Essa afirmao precisa, a rigor, ser qualificada, se se assume o realismo acerca dos objetos materiais ordinrios. Nesse caso, claro que j se est admitindo que o conhecimento vai alm do que pode ser

O principal argumento de van Fraassen contra o realismo cientfico o de que as teorias cientficas que baseiam suas previses e explicaes dos fenmenos em supostos mecanismos inacessveis observao direta so subdeterminadas empiricamente, ou seja, os dados empricos so por princpio insuficientes para determinar o valor de verdade de algumas de suas proposies fundamentais. Assim, possvel que duas teorias incompatveis em suas proposies tericas sejam empiricamente equivalentes, isto , coincidam no que afirmam a respeito do que observvel. Para manter sua posio, o realista cientfico tem que fornecer critrios para a discriminao epistmica das teorias empiricamente equivalentes. Ora, por necessidade, esses critrios no podero ser empricos, e tipicamente envolvem fatores como o poder explicativo, a simplicidade, a unidade, etc. precisamente aqui que o anti-realista empirista centra sua crtica: o apelo a tais princpios no-empricos (ou superempricos) significaria um rompimento com os ideais empiristas tradicionais. Segundo van Fraassen, eles no dizem respeito s relaes da teoria com o mundo, mas com os usurios da teoria (1980, p. 88), dependendo assim de fatores histricos, culturais, psicolgicos, sociolgicos, etc.5 til reunir os contra-argumentos realistas a essa objeo em dois grupos: argumentos negativos e argumentos positivos.6 No primeiro esto os argumentos que exploram as dificuldades da posio adversria; um importante argumento desse tipo ser analisado no incio da prxima seo. Formam o segundo grupo os argumentos que invocam motivos diretos para a crena na verdade (ou na aproximao da verdade) das teorias cientficas maduras, ou na existncia de pelo menos algumas das entidades no-observveis que postulam. Consideramos que os principais argumentos positivos a favor do realismo cientfico so aqueles que envolvem inferncias abdutivas, ou seja, que propem algum tipo de conexo entre o poder explicativo de uma teoria e a sua verdade. No captulo 2 de The Scientific Image, van Fraassen critica a verso simples, imediata, dessa classe de argumentos. Rejeita tambm duas formas sofisticadas de argumentos abdutivos usados por realistas cientficos: o argumento da coincidncia csmica, atribudo a Smart, e o argumento do milagre, do Putnam realista (Smart 1968, Putnam 1975 e 1978). Na prxima seo procuraremos avaliar em detalhe at que ponto van Fraassen bem sucedido nesse ataque ao realismo cientfico.

fornecido pelos sentidos, j que os objetos materiais ordinrios no seriam a rigor observveis, quando entendidos de modo realista. Assim, o conceito de observvel utilizado por van Fraassen, pelos instrumentalistas e redutivistas (com exceo de alguns dos primeiros positivistas lgicos, como o Carnap do Aufbau) no se confunde com o de dados sensoriais. Deve-se ainda notar que o realismo cientfico uma tese sobre a extenso do conhecimento, adicional ao empirismo propriamente considerado, e que dele no decorre necessariamente. Van Fraassen procura elaborar esse ponto especialmente no caso do poder explicativo: [A]quilo que constitui a melhor explicao disponvel [...] depende de fatores tais como que teorias fomos capazes de imaginar e [...] tambm de nossos interesses e outros fatores contextuais capazes de conferir contedo concreto noo de melhor explicao (1985, pp. 286-87). Nessa perspectiva, ele desenvolve uma teoria pragmtica da explicao (1980, cap. 5), na qual o papel das teorias cientficas nas explicaes vai para um segundo plano, e a nfase recai nos fatores contextuais apontados.
6Ver 5

Putnam 1975 para uma distino semelhante.

3. A inferncia abdutiva e o realismo cientfico.

3.1 Reduo ao fenomenalismo. Trataremos agora de expor e avaliar os argumentos a favor do realismo cientfico que envolvem inferncias abdutivas de um tipo ou de outro. Iniciamos com um argumento negativo que tem sido usado por alguns filsofos contemporneos em sua crtica ao empirismo construtivo (ver e.g. Churchland 1985 e Musgrave 1985). Consideremos o seguinte esquema: (3) proposies sobre coisas e eventos no-observveis (2) proposies sobre coisas e eventos no-observados, porm observveis (1) proposies sobre coisas e eventos observados (interpretados de forma realista) (0) proposies sobre dados sensoriais Van Fraassen rejeita o recurso a princpios superempricos (o poder explicativo, em especial) como um possvel meio de resolver, ou pelo menos atenuar, a subdeterminao emprica de 3. Porm, se negarmos valor epistmico a tais princpios ento a rigor no poderemos sequer passar de 0 para 1, pois eles desempenham um papel indispensvel nessa passagem; ou seja, so essenciais para o estabelecimento da ontologia dita observvel (cadeiras, gatos, pulgas) e das proposies observacionais acerca de tais entes. Assim, a menos que nos contentemos com um fenomenalismo radical, devemos seguir o realista cientfico na crena em proposies sobre entidades no-observveis: os mesmos motivos alegados para crer em proposies sobre gatos (a hiptese de que h aqui um gato cinza, entendido de forma realista, a maneira mais simples e natural de explicar o fluxo de minhas impresses sensoriais) servem para justificar a crena em eltrons (a hiptese de que h eltrons reais percorrendo este fio de cobre a melhor explicao de certos outros grupos de impresses sensoriais).7 Isso mostraria que, no melhor dos casos, apenas os fenomenalistas e van Fraassen faz questo de no ser contado entre eles podem prescindir do uso epistmico dos princpios superempricos, e dos argumentos abdutivos em pariticular.8 Na terceira seo do captulo 2 de The Scientific Image, van Fraassen tece consideraes que podem parecer relevantes para essa questo. Observa ali que o argumento abdutivo mais direto a favor do realismo cientfico consiste em alegar que: 1) a regra abdutiva seguida nos contextos mundanos, onde no h entidades no-observveis envolvidas; 2) a observabilidade no tem implicaes ontolgicas; 3) portanto, a mesma regra pode e

7Em sua crtica ao anti-realismo de van Fraassen, Ghins 1992 acaba tambm chegando concluso de que o ceticismo acerca da existncia de entidades tericas leva ao ceticismo tout court (p. 260). A razo que o argumento anti-realista da equivalncia [emprica] das descries pode ser aplicado tambm ao nvel observacional (ibid.). Ao nosso ver, o interesse maior da anlise do artigo reside na sua defesa de uma noo de existncia, ou realidade, que difere da adotada pelo realista metafsico. Neste trabalho no adentraremos a problemtica filosfica importante abordada por Ghins. 8 Nesse caso, as coisas materiais, observveis ou no, so entendidas como meros complexos de dados sensoriais, agrupados por razes de facilidade de comunicao, de memorizao, etc.

deve ser seguida nos contextos cientficos, que envolvem no-observveis. Van Fraassen expressamente admite a segunda premissa e a correo do argumento, mas questiona a primeira premissa. Inicia sua crtica procurando determinar o sentido de seguir uma regra. Conclui que quando afirmamos que um sujeito S segue a regra R emitimos a hiptese psicolgica de que S est disposto a crer em todas as concluses que R permite, e no-disposto a crer nas proposies em desacordo com essas concluses. Alega ento que, como qualquer outra, a hiptese de que seguimos a regra abdutiva nos contextos mundanos tem que ser confrontada com hipteses rivais e com dados. E prope a hiptese rival de que em tais contextos inferimos apenas a adequao emprica da melhor explicao, e no sua verdade integral. Por construo, essas hipteses so tais que nenhuma evidncia colhida nesses contextos pode favorecer uma em relao outra (j que neles verdade e adequao emprica coincidem). Assim, diz van Fraassen, o realista no est justificado ao tentar apoiar sua prescrio do uso da regra abdutiva na cincia em seu uso nas situaes ordinrias, porque uma inferncia abdutiva enfraquecida, que conduz apenas crena na adequao emprica da melhor explicao, igualmente apoiada pela evidncia.9 Notemos agora que mesmo esse enfraquecimento da abduo no livra van Fraassen das implicaes do argumento da reduo ao fenomenalismo. Segundo a definio do prprio van Fraassen, a crena na adequao emprica de uma teoria envolve a crena na existncia de entidades materiais ordinrias entendidas de forma realista, no-fenomenalista. Ora, tal crena no pode advir da experincia pura e, aparentemente teria que ser justificada por um apelo a princpios superempricos, entre os quais releva o poder explicativo.10 Na primeira seo do captulo 4, van Fraassen menciona explicitamente o argumento realista que estamos examinando, sem contudo respond-lo de forma aceitvel, j que se limita a asseverar que no acredita na existncia de dados sensoriais (1980, p. 72). Isso poderia apontar para a idia de um acesso epistmico mais direto aos objetos materiais ordinrios. Porm van Fraassen no diz isso, nem d qualquer outra indicao de como pode firmar sua crena nesses objetos, ao passo em que reconhece explicitamente que ao endossar um simples juzo perceptual, como o de que h um rato-realista no rodap-realista, j est arriscando o pescoo.11 Diante disso, at prova em contrrio somos tentados a concluir que mesmo van Fraassen precisa, mau grado seu, fazer uso epistmico do poder
9Na

nota 19 de seu 1985, van Fraassen adverte, um tanto curiosamente, que na realidade ele apenas exibe sua hiptese rival, para efeito de argumento, sem assever-la. Esse ponto no altera a substncia de nossa anlise, porque ela depende unicamente do reconhecimento (explcito e reiterado) de van Fraassen de que a adequao emprica pode, em contraste com a verdade, constituir objeto genuno de comprometimento epistmico. Pode-se apreciar melhor esse ponto quando se nota, por exemplo, que Locke se v na contingncia de evocar razes claramente extra-empricas para firmar seu realismo sobre o mundo exterior (Essay, IV xi), e que Berkeley e Hume puderam, sem conflito com a experincia, rejeitar esse realismo (cada um a seu modo). p. 72. Nessa passagem, van Fraassen admite ainda que o mesmo ocorre com relao crena na adequao emprica, ou seja, tal crena tambm arriscada, j que a adequao emprica de uma teoria reconhecidamente ultrapassa em muito qualquer evidncia emprica efetivamente disponvel (ibid., p. 69). Essa concesso tem sido habilmente explorada por realistas cientficos, como Churchland (1985, p. 199) e Musgrave (1985, pp. 40-41), que acusam van Fraassen de se expor aos mesmos argumentos cpticos que utiliza contra seus adversrios, quando estes se comprometem com a verdade das teorias cientficas. (Van Fraassen replica em seu 1985, pp. 254-55 e Fine treplica em seu 1986b, p. 168.) Este argumento e o que estamos analisando no texto constituem os dois principais argumentos negativos a favor do realismo cientfico, relativamente ao empirismo construtivo.
111980, 10

explicativo e outras virtudes que ele pretende meramente pragmticas.12 Sua recusa em conceder esse instrumento epistmico e, em especial, os argumentos abdutivos aos adversrios parece ter uma motivao ad hoc: impedir que o utilizem na defesa do realismo cientfico. 3.2 Coincidncia csmica. Passemos agora ao exame de um argumento a favor do realismo cientfico que, devido maneira em que foi apresentado por Smart em Between Science and Philosophy (cap. 5, pp. 150-2), por vezes denominado argumento da coincidncia csmica. Simplificadamente, consiste em alegar que se uma teoria prediz corretamente uma grande quantidade e variedade de fenmenos improvvel que seja falsa acerca do mundo sub-fenomnico de que suas predies empricas dependem. Se as entidades no-observveis postuladas pela teoria no existissem, e se o que a teoria diz sobre elas no fosse aproximadamente verdadeiro, somente uma coincidncia de propores csmicas poderia explicar seu sucesso emprico. Esse argumento , na verdade, bem mais antigo. Podemos encontr-lo claramente expresso nas Partes 3 e 4 dos Principes de la Philosophie de Descartes, onde cumpre papel decisivo na argumentao realista cartesiana.13 Sua essncia j aparece no pargrafo 43 da Parte 3 dessa obra, cujo sugestivo ttulo : Que no verossmil que as causas das quais se podem deduzir todos os fenmenos sejam falsas. No final da Parte 4 um argumento de teor semelhante aparece, no contexto de um recuo das concesses anti-realistas que acabavam de ser feitas por Descartes. No pargrafo 205 Descartes introduz a categoria epistmica da certeza moral, isto , aquela suficiente para regular nossos costumes, ilustrando-a com os exemplos de nossa certeza de que Roma uma cidade da Itlia e da que temos ao encontrar uma soluo para um enigma de letras trocadas. Este ltimo caso comparado aos seus modelos mecnicos da estrutura da matria, nos quais a combinao de uns poucos elementos (corpsculos de certas formas e tamanhos se movendo de determinado modo) suficiente para explicar uma infinidade de fenmenos fsicos. Vejamos os trechos relevantes desse pargrafo:
Que porm se tem uma certeza moral de que todas as coisas deste mundo so tais como foi aqui demonstrado que podem ser. [...] E se algum, para adivinhar uma mensagem cifrada escrita com letras ordinrias, resolve ler um B em todo lugar onde houver um A, e um C onde houver um B, substituindo assim no lugar de cada letra aquela que a segue na ordem do alfabeto; e lendo-a dessa maneira encontra palavras que fazem sentido, de nenhum modo duvidar que seja esse o sentido da mensagem [...], embora possa ocorrer que aquele que a escreveu lhe tenha dado um sentido completamente diferente, atribuindo outra significao a cada uma das letras. Pois [esta ltima hiptese] s muito dificilmente pode ocorrer, principalmente quando a mensagem contm muitas palavras, de modo que [tal hiptese] no moralmente crvel. Ora, se se considerar o grande nmero das diversas propriedades do m, do fogo e de todas as outras coisas do mundo, que foram deduzidas de modo evidentssimo de um nmero muito pequeno de causas, propostas por mim no comeo deste tratado, ainda que se imagine que eu as tenha inventado ao acaso, sem que a razo me tivesse persuadido delas, nem por isso se deixaria de ter pelo menos tanta razo para julgar que elas so as verdadeiras causas de tudo aquilo que delas

Sobre a desqualificao epistmica dessas virtudes, ver van Fraassen 1985, parte I, seo 6, e parte II, sees Ad Paul Churchland e Ad Clark Glymour.
13

12

Para uma anlise da intrigante posio de Descartes quanto ao realismo cientfico, ver Chibeni 1993a.

deduzi, quanto se tem para crer que se encontrou o verdadeiro sentido de uma mensagem cifrada, quando se v que ele segue da significao que conjeturalmente se deu a cada uma das letras.

Esse arrazoado de Descartes tem o mrito de ressaltar um aspecto da questo que no tem sido suficientemente destacado nos debates contemporneos.14 que toda a fora do argumento depende de se considerar teorias que explicam um grande nmero e uma grande variedade de fatos. Com efeito, se apenas um ou dois fenmenos forem contemplados, explicaes alternativas de plausibilidade comparvel podem facilmente ser concebidas, inviabilizando a aplicao da regra abdutiva. A situao muda quando o explanandum um conjunto numeroso e diversificado de fatos. Neste caso, a formulao de teorias explanatrias unificadas se torna difcil, e quando algum eventualmente apresenta alguma, parecer inacreditvel que funcione bem mesmo assentando em uma base falsa (a parte sobre no-observveis). 3.3 Antecipao terica da experincia Todavia, o anti-realista poder retorquir que, a despeito dessa impresso intuitiva, a rigor no constitui nenhuma coincidncia ou milagre que uma teoria especificamente construda para dar conta de um certo conjunto de fenmenos de fato os explique. O argumento da coincidncia csmica pode, porm, ser complementado, de modo a que se evite essa sada. Esse ponto foi destacado, entre outros, por Alan Musgrave, que observa (1985, p. 210):
porm diferente se uma teoria projetada para acomodar algumas regularidades fenomnicas acontece predizer novas regularidades. O realista tem uma explicao pronta: as entidades postuladas pela teoria realmente existem, e o que a teoria diz sobre elas verdadeiro (ou aproximadamente verdadeiro). O anti-realista parece ser forado a dizer que fices inventadas [figments dreamed up] para um determinado propsito milagrosamente acontecem mostrar-se bem adaptadas para um propsito muito diferente.

Mais uma vez, o senso filosfico e cientfico agudo de Descartes j havia detectado a relevncia da antecipao terica da experincia. No pargrafo 42 da Parte 3 dos Principes ele alude explicitamente a essa virtude superemprica, e reconhece seu valor epistmico:
Mas creio que para [conhecer a verdadeira natureza do mundo visvel] no seja preciso que desde o incio consideremos todos [os fenmenos], mas que melhor tratarmos de encontrar as causas dos mais gerais, que propus aqui, a fim de ver se posteriormente dessas mesmas causas podemos tambm deduzir todos os outros mais particulares que no levamos em conta ao procurar essas causas. Pois se isso ocorrer, constituir um argumento muito forte para nos assegurar que estamos no caminho verdadeiro.

Notemos, incidentalmente, que essas consideraes fornecem apoio aos filsofos da cincia que questionam a validade da distino estrita entre contexto de descoberta e contexto de justificao.15 Fatores relativos gnese e ao desenvolvimento histrico de
14Ver, no entanto, Thagard 1978. Esse artigo cita (p. 77) interessante passagem de A Origem das Espcies na qual Darwin apresenta e defende o argumento da coincidncia csmica em termos bastante claros: Dificilmente se poder supor que uma teoria falsa explique, de maneira to satisfatria quanto a teoria da seleo natural, as vrias classes amplas de fatos especificadas acima. Recentemente, objetou-se que esse um mtodo inseguro de argumentar. No entanto, um mtodo usado para julgar os eventos comuns da vida, e tem sido freqentemente empregado pelos maiores filsofos naturais. 15

Referncias bibliogrficas relevantes sobre tal distino podem ser encontradas em Hoyningen-Huene 1986.

uma teoria podem ser relevantes para a sua justificao. O suporte fornecido a uma teoria por determinado fenmeno parece depender parcialmente do momento em que observado. Pelo menos no que concerne ao julgamento histrico, inegvel que os episdios de antecipao terica tm sido decisivos no estabelecimento das crenas da comunidade cientfica, mesmo quando envolvam entidades no-observveis. As predies do retorno do cometa de Halley pela teoria newtoniana; do spot de Poisson pela teoria ondulatria da luz; dos experimentos de Hertz pela teoria eletromagntica; das observaes astronmicas de Eddington pela teoria da relatividade geral so apenas alguns dos inmeros casos importantes, especialmente abundantes em nosso sculo. Na avaliao do realista cientfico, as teorias cientficas capazes de antecipar fenmenos inusitados desse tipo no podem deixar de capturar a realidade, ainda que de forma incompleta e aproximada. Assim, Whewell asseverou que
[...] quando a hiptese, de si prpria e sem ajustes para tal fim, fornece-nos a regra e a razo de uma classe [de fatos] no contemplados em sua construo, temos um critrio de sua realidade que at agora nunca se pronunciou a favor de falsidades.16

A nosso ver, esse argumento do poder de antecipao da experincia no tem sido atacado de frente pelos anti-realistas, com possivelmente uma exceo. Os casos apontados por Laudan (1984a, 1984b), de teorias bem sucedidas no seu tempo e que, pelos critrios atuais, so tidas como falsas no parecem ser do tipo relevante aqui considerado. Igualmente, veremos mais adiante que a rplica de van Fraassen a esse argumento realista erra o alvo completamente. A exceo mencionada refere-se a um pouco conhecido artigo de Martin Carrier (1991), no qual so apresentados dois contra-exemplos de teorias que levaram a pelo menos uma nova observao cada e so hoje julgadas falsas. Trata-se da predio, por Priestley, das propriedades redutivas do hidrognio (em nossa ontologia) a partir da teoria do flogisto, e da predio, por Dalton e Gay-Lussac, da igualdade da expansibilidade trmica de todos os gases com base na teoria do calrico. Acreditamos ser importante uma avaliao mais profunda desses casos, bem como a busca nas fontes histricas de eventuais outras instncias desse mesmo tipo. 3.4 Van Fraassen e a coincidncia csmica Agora que j expusemos e interpretamos o argumento da coincidncia csmica e seu complemento de uma forma que julgamos adequada, vejamos como van Fraassen o faz. Aps considerar o argumento abdutivo direto que analisamos na seo 3.1, van Fraassen apresenta, em um texto pouco claro, sua segunda objeo (1980, p. 21) ao uso da abduo na defesa do realismo cientfico: ainda que admitssemos a correo da regra abdutiva forte, precisaramos de mais uma premissa para chegarmos ao realismo cientfico. Essa premissa-extra a de que toda regularidade na natureza precisa de uma explicao. Segundo van Fraassen, poderamos bloquear o percurso do realista simplesmente imitando os nominalistas medievais e aceitando as regularidades naturais como fatos brutos, que no requerem explicao. Ora, parece que estamos aqui diante de um engano de van Fraassen em sua compreenso do uso realista da abduo. Como as situaes de coincidncia csmica evidenciam, o raciocnio abdutivo se aplica quando a explicao j est disponvel. Ou
16Apud

Carrier 1991, p. 26.

10

seja, uma vez que algum fornea uma explicao que d conta de maneira natural de uma multiplicidade de fenmenos, somos convidados a acreditar que verdadeira, se no for puramente ad hoc. Van Fraassen parece no interpretar bem o argumento da coincidncia csmica, tomando-o como envolvendo a exigncia ilimitada de explicao, ou mesmo como consistindo inteiramente dela. Imediatamente aps propor a adoo dos critrios nominalistas ele diz: A linha de argumento de Smart dirige-se exatamente a esse ponto. Segue ento a transcrio do trecho central do texto de Smart, que comentado nos seguintes termos:
Em outras passagens, Smart fala, de modo similar, em coincidncias csmicas. As regularidades nos fenmenos observveis tm de ser explicadas em termos de uma estrutura mais profunda, caso contrrio ficaremos com uma crena em acidentes felizes e coincidncias em uma escala csmica.

O nosso grifo salienta que o autor de fato entende o argumento como propondo a exigncia ilimitada de explicao. Desse modo, torna-se tarefa fcil para van Fraassen critic-lo, pois essa exigncia naturalmente conduz a um regresso infinito de teorias explicativas. Notemos, todavia, que esse argumento anti-realista do regresso no s no se origina do argumento de Descartes-Smart, como tambm no o compromete. O argumento fornece bases para crermos na verdade de uma teoria que desa abaixo dos fenmenos um, dois, trs, ou mais, nveis, dependendo do caso, mas no implica que as regularidades postuladas pela teoria no comportamento das entidades desses nveis devam a seu turno ser explicadas por outra teoria, e assim por diante, ad infinitum. O realista pode perfeitamente manter que no momento apenas temos bases para crer nas entidades e eventos no-observveis postulados pelas teorias abrangentes e no ad hoc de que dispomos.17 Alm desse mal aplicado apelo ao argumento da regresso infinita, van Fraassen apresenta outra objeo ao suposto argumento de Smart: a exigncia de explicaes conduz, na microfsica, exigncia de variveis ocultas. Mas a introduo de teorias de variveis ocultas encontra obstculos srios, conforme mostraram vrios resultados tericos e experimentais recentes. No presente trabalho no dispomos de espao para adentrar essa discusso mais tcnica, e expor nossas crticas ao que afirma van Fraassen (ver Chibeni 1993b e 1995). 3.5 O milagre da cincia Examinemos agora o argumento realista de Putnam conhecido como argumento do milagre, e que van Fraassen ironicamente chama de argumento supremo. Como o da coincidncia csmica, esse argumento envolve um raciocnio abdutivo. Nas palavras do prprio Putnam:
[O realismo] a nica filosofia que no faz do sucesso da cincia um milagre. Que os termos nas teorias cientficas maduras tipicamente so referenciais [...]; que as teorias aceitas numa cincia madura so tipicamente aproximadamente verdadeiras; que o mesmo termo pode referir mesma coisa mesmo quando ocorre em teorias diferentes tais proposies so vistas pelo realista cientfico no como verdades necessrias, mas como parte da nica explicao cientfica do sucesso da cincia, e portanto como parte de qualquer descrio cientfica adequada da cincia e de suas relaes com seus objetos.18

17Para

um exemplo explcito dessa postura por parte de um cientista atuante, ver Ruderfer 1967. 1975, p. 73. Ver tambm Putnam 1978, Lecture II.

18Putnam

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Conforme o entendemos, esse argumento no deve ser confundido com o argumento da coincidncia csmica, como freqentemente ocorre, pois opera em um nvel superior, por assim dizer. Do mesmo modo como Descartes e Smart alegam que a capacidade de uma teoria cientfica explicar certos fenmenos constitui evidncia de sua verdade, Putnam alega aqui que a capacidade de uma teoria filosfica o realismo cientfico explicar o sucesso da cincia fornece evidncia de sua verdade. Embora ambos os argumentos forneam apoio mesma tese, o realismo cientfico, fazem-no de formas diferentes. Laudan e Fine tambm reconhecem a existncia de dois nveis argumentativos distintos na defesa abdutiva do realismo cientfico, que correspondem, aproximadamente, aos que estamos indicando.19 Acreditam, porm, que o argumento do nvel superior, metodolgico, contm uma falha fatal: nada menos do que uma petio de princpio. Notando que o argumento depende da atribuio de significao epistmica a uma inferncia abdutiva, alegam que isso begs the question a favor do realismo, porque o ponto em disputa precisamente se se deve ou no acreditar que as teorias que fornecem a melhor explicao dos fenmenos so, ipso facto, aproximadamente verdadeiras. Em outros termos, o realista no estaria autorizado a utilizar a abduo no meta-nvel porque seu oponente rejeita a abduo no nvel bsico das teorias cientficas. Essa acusao de circularidade no nos parece justa. A abduo no uma tese, e muito menos a tese em disputa, que estaria sub-repticiamente sendo includa entre as premissas do argumento. uma regra inferencial, que o realista emprega tanto no nvel das teorias cientficas quanto no nvel das teorias filosficas. Cabe-lhe o direito de faz-lo, assim como ao anti-realista o de se abster. O que o realista pretende que essa utilizao parece assaz razovel quando se consideram as situaes de coincidncia csmica, de antecipao terica, etc.20 Uma confuso sobre o argumento do milagre, na qual van Fraassen incorre, consiste em entend-lo como se dirigindo questo de por que somente as boas teorias sobrevivem na cincia. Conforme observa Musgrave (1985, p. 210), a explicao darwiniana desse fato oferecida por van Fraassen pode ser aceita tambm por realistas cientficos, como o caso de Popper, por exemplo. O que, segundo nossa interpretao do argumento do milagre, somente o realismo cientfico explica como uma atividade dependente de uma complexa dinmica interna envolvendo explcita e essencialmente uma realidade no-observvel pode dar certo empiricamente.21 Ou, em outros termos, como a cincia como um todo, em suas sofisticadas relaes inter-tericas e com a experincia, seus mtodos e sua evoluo histrica, um empreendimento bem sucedido. Note-se que um dos explananda mais importantes aqui exatamente o j referido poder de certas teorias cientficas adiantarem-se aos fenmenos. Assim, aquilo que anteriormente descrevemos e analisamos

19Laudan

1984a, pp. 242-43; Fine 1986a, cap. 7 e 1986b, p. 168.

20Outra crtica de Fine ao argumento do milagre a de que seu explanandum o produto artificial de uma certa perspectiva histrica (1986b, seo 1). Essa idia de questionar o que em geral tido como indubitvel o impressionante sucesso preditivo e explicativo da cincia j havia sido avanada, com caractersticas diferentes, por Larry Laudan (1984b). Aqui nos absteremos de explorar esse ponto de sabor feyerabendiano.

Fraassen concede, em vrias passagens (e.g. 1980, pp. 34, 81 e 93), que a prtica da cincia se desenvolve segundo a descrio do realismo. Mas apenas um faz-de-conta realista: a metodologia da cincia uma questo distinta daquela de sua interpretao (ibid., p. 93). Isso tem dado margem a crticas como a de Musgrave (1985, p. 217), que considera prefervel uma interpretao da cincia que se harmonize com suas regras metodolgicas. (Ver tambm Hooker 1985.)

21Van

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como um complemento do argumento da coincidncia csmica pode, na verdade, ser entendido como parte do argumento mais geral de Putnam. 3.6 Continuidade observacional controlada Para encerrar, vejamos ainda como um interessante argumento positivo a favor do realismo cientfico pode tambm ser interpretado como envolvendo uma inferncia abdutiva. Como se sabe, certos problemas relativos ao estabelecimento de uma distino observacional/terico foram explorados por realistas cientficos em sua crtica ao positivismo lgico. Um dos argumentos apresentados foi o chamado argumento do contnuo. Maxwell 1962, por exemplo, alega que h uma srie contnua de aes principiando com a observao de algo atravs do vazio, depois de um vidro de janela, de culos, de um microscpio de baixa resoluo, de um microscpio de alta resoluo, etc., e que no possumos um critrio que nos permita traar uma linha no-arbitrria entre observao e teoria (p. 7). Van Fraassen conseguiu escapar a essa objeo adotando um critrio reconhecidamente antropocntrico e vago (em um certo grau) para o que observvel, e formulando seu anti-realismo em termos puramente epistemolgicos. No adentraremos essa questo aqui. Queremos apenas chamar a ateno para a existncia de um argumento realista que aparentemente se assemelha ao argumento do contnuo, mas que difere dele por ser um argumento do tipo positivo, e por comprometer at mesmo o empirismo construtivo. Poderamos talvez denomin-lo argumento da continuidade observacional controlada. No artigo mencionado, Maxwell tangenciou esse argumento, ao considerar (p. 8) o caso da observao, por meio de aparelhos pticos de baixo poder de aumento, de objetos diretamente observveis; mas o argumento no chegou a ser formulado. Vamos encontr-lo apenas em um livro pouco conhecido de Antony Quinton (1973). Vejamos o trecho relevante (p. 301):
A estrutura detalhada de um cristal de neve, que vemos com uma lupa, algo que ordinariamente devemos considerar como tendo sido observado. este um passo legtimo? O que conta em seu favor o fato de que todos os aspectos [features] das coisas que so observados sem esse tipo modesto de ajuda instrumental ainda so observados com o instrumento, ao lado de alguns outros aspectos. Mas uma vez admitido que uma coisa pode ser literalmente observada com uma lupa, no parece haver um ponto a partir do qual possamos sensatamente dizer que no estamos observando a prpria coisa, mas seus efeitos, quando percorremos a srie de instrumentos de auxlio observacional cada vez mais refinados e sofisticados: de lupas a microscpios, e de microscpios ordinrios a microscpios eletrnicos com grande poder de aumento. O argumento da continuidade se aplica at mesmo a estes ltimos. As propriedades e constituintes do espcime que so visveis sem o seu auxlio so tambm vistos com o microscpio em seus graus inferiores de magnificao, embora grandemente ampliadas. Na medida em que cresce a magnificao, alguns dos detalhes que eram observados no estgio precedente ainda esto l para serem vistos.

O ponto original do argumento no foi ressaltado por Quinton, nem por outros autores. O argumento clssico do contnuo nos convida a considerar como observaes legtimas todos os atos da srie, porque parar em um estgio qualquer parece arbitrrio. , pois, um argumento negativo, porque expe uma fraqueza da posio anti-realista (a necessidade de quebrar a srie arbitrariamente). J o argumento de Quinton pode ser entendido como um argumento positivo: cada passo da srie legitimado, enquanto ato de observao, porque o aparelho reproduz fielmente os aspectos da coisa observada que se percebiam no estgio precedente. Assim, partindo da observao com os sentidos desarmados, a srie toda pode

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ser percorrida com segurana, desde que se assuma, plausivelmente, que se um determinado instrumento for fiel na reproduo de certos aspectos do objeto, acerca dos quais j estavmos seguros, tambm o ser naqueles outros ainda no observados. Notemos agora que esse argumento pode, quando visto por outro ngulo, ser entendido como um tipo de argumento abdutivo. Considerando a srie encadeada de observaes putativas, pode-se propor que a realidade das coisas microscpicas e suas propriedades constitui a melhor explicao para o conjunto dos fenmenos relativos srie. No s isso: alm de natural e perfeitamente adaptada a seu fim, tal explicao , ao que parece, a nica jamais concebida. Se essa reduo do argumento de Quinton classe dos argumentos abdutivos estiver correta, nossa opinio de que a defesa positiva do realismo cientfico tem seu principal ponto de apoio nas inferncias abdutivas receber uma confirmao a mais.22

4. Concluses
Aps havermos procurado elucidar a natureza geral das inferncias abdutivas e da tese do realismo cientfico, empreendemos uma anlise do papel desempenhado pelos argumentos abdutivos na defesa dessa tese epistemolgica. Pudemos constatar a relevncia desse papel, talvez no sendo exagero afirmar que a sustentao do realismo cientfico depende, em grande medida, do reconhecimento da legitimidade das inferncias abdutivas enquanto instrumentos epistmicos. No h dvida de que isso representa, no mnimo, uma flexibilizao do ideal empirista clssico. Assim que a posio de um dos principais crticos do realismo cientfico em nossos dias Bas van Fraassen alegadamente tem sua motivao ltima na tentativa de preservar esse ideal. No entanto, nosso exame evidenciou que, ao no indicar como ele prprio pode justificar seu comprometimento com o realismo acerca dos objetos materiais ordinrios, van Fraassen deixa aberta ao adversrio a possibilidade de acus-lo de violao semelhante do empirismo estrito, j que aparentemente o estabelecimento desse realismo tambm requer a atribuio de valor epistmico aos princpios superempricos e, em particular, o uso epistmico de argumentos abdutivos. Quanto defesa positiva do realismo cientfico, tentamos esclarecer os pressupostos, estrutura e implicaes dos argumentos ditos da coincidncia csmica e do milagre, ambos de tipo abdutivo. Na seo 3.6, sugerimos ainda que um pouco conhecido argumento de Antony Quinton pode ser interpretado como um argumento realista desse mesmo tipo. Em sua face polmica, nossa investigao dos dois primeiros argumentos positivos mostrou que van Fraassen se enganou seriamente quanto a sua real natureza, deixando-os, conseguintemente, sem resposta efetiva. O persuasivo argumento de Quinton no mencionado por van Fraassen.

seus interessantes estudos da questo da observabilidade por meio de instrumentos, Ian Hacking apresenta argumentos que se aproximam bastante do argumento de Quinton, e o reforam em vrios aspectos. Ver Hacking 1983 e 1985. Parece-nos tambm possvel interpretar em termos de inferncias abdutivas a idia central de Hacking, de que a utilizao, na prtica cientfica contempornea, das entidades no-observveis como instrumentos de investigao fornece bases para as aceitarmos como reais.

22Em

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Se as anlises deste trabalho estiverem corretas, teremos, em suma, evidenciado, que van Fraassen nem mostrou que pode prescindir do uso epistmico das inferncias abdutivas, nem rebateu adequadamente os principais argumentos abdutivos a favor do realismo cientfico.

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