Ficha de ..1
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Ficha de ..1
Mensagem, o único livro de versos portugueses organizado e publicado por Fernando Pessoa, é,
das suas obras, aquela onde a visão ocultista 1 mais perfeitamente se concretiza, sendo também aquela
onde o itinerário da sua inteligência poética nos aparece intimamente associado à realidade histórica.
Considera o próprio autor que este livro se integra numa linha de criação poética que designa de
»nacionalismo mítico». Em carta, de 1935, a Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos, escreve:
«Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com um livro da
natureza da Mensagem. Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou; à
parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do
livro, a Mensagem não as inclui.» mais à frente, Pessoa diz que concorda com os factos (a publicação),
acentuando que o aparecimento do livro coincide «com um dos momentos críticos (no sentido original da
palavra) da remodelação do subconsciente nacional.»
O facto de as poesias que constituem o livro possuírem datas que oscilam entre 1913 e 1934 (o
ano da publicação, que é o ano anterior à morte de Fernando Pessoa) pode ser visto como a afirmação da
constância de uma linha de nacionalismo profético declarada já em 1912, em artigos sobre «A Nova
Poesia Portuguesa», publicado na revista Águia. Aí se afirma o propósito de contribuir para a criação do
«supra-Portugal de amanhã». O poema «D. Fernando. Infante de Portugal». Datado de 1913, constitui a
reformulação de uma versão que originalmente não pertencia ao projecto da obra (tendo sido publicado
em Orpheu 3 com o título «Gládio») e cuja inserção nesta é indicadora da sua longa germinação. A obra
nasce principalmente em três períodos criadores: do primeiro, entre 1918, se não antes, e 1922, resulta
Mar Português; o segundo são os últimos meses de 1928, em que surgem predominantemente
composições de Brasão; o terceiro são os primeiros meses de 1934, que precedem imediatamente a
publicação do volume.
Constituem as datas dos poemas um elemento de ligação à sociedade e à cultura de uma época,
que seria motivo de equívoco se a sua leitura não mostrasse que o nacionalismo da Mensagem é uma
proposta de renascer para a diversidade, compatível com um ideal cosmopolita. A totalidade «Portugal» (o
livro esteve para ser intitulado deste modo) é um mundo aberto para o futuro que só existe num processo
de criação dramática. Para Pessoa, a existência de Portugal como nação anda a par com a sua existência
poética e é esta que considera em perigo, estagnada, propondo-se engrandecê-la. A concretização do
«propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade» passa pelo
fazer outra a história nacional. Encontrar nela a disponibilidade que o move. Sabê-la, como a si, uma
ficção interminável.
Mensagem, enquanto poema épico-lírico, rivaliza com o canto épico da literatura portuguesa – Os
Lusíadas de Luís de Camões – e prossegue, noutro sentido, a História do Futuro do Padre António Vieira.
Como parte do diálogo intertextual interior à obra de Fernando Pessoa, este livro conduz-nos perante
aspectos fundamentais para a compreensão, nomeadamente os seguintes:
- A relação entre a estética e a política, ou melhor, entre a criação artística e o empenhamento
pluridimensional do autor, a sua responsabilidade perante a comunidade.
- A conjugação do processo que dá origem ao «drama em gente» (antimito da personalidade) e a
busca de uma supra-identidade, o mito do mito, do «nada que é tudo».
A ligação do pensamento poético-filosófico de Pessoa ao saudosismo2 profético da tradição
portuguesa.
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Ocultismo – crença na existência de realidades ocultas, supra-sensíveis, e de métodos susceptíveis das apreender (magia, astrologia,
espiritismo, etc.)
2
Saudosismo - Movimento nacionalista, poético e filosófico português do primeiro quartel do século XX, inspirado por Teixeira de Pascoaes.
Constituiu-se como a expressão filosófica de uma pretensa «alma portuguesa», própria de uma hipotética «Raça» portuguesa, que este poeta
expôs num artigo intitulado «Renascença» na revista A Águia em 1912. Embora contemporâneo da estética simbolista, considera-se que o
Saudosismo consiste num desenvolvimento de um misticismo que se acentua na fase de declínio da Geração de 70. Tal como Gomes Leal e Raul
Brandão, Pascoaes parte da formulação metafísica do mal e da dor para fazer uma apologia da saudade como carácter nacional português.
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Súmula
As três partes em que se divide o livro e a organização de cada uma delas revelam a importância
fundamental da estruturação triádica e a oscilação tendente para um esquema de síntese quíntupla. As
três divisões principais são as seguintes: heráldica – BRASÃO; descobertas – MAR PORTUGUÊS;
profecia – O ENCOBERTO.
A posição intermédia de «Mar Português» estabelece a sucessão império material-império
espiritual, porquanto no mar se simboliza a essência de um ideal ser-se português – o estar com a
distância é o jamais aceitar ser-se vencido, o não se contentar de ser vencedor.
A unidade do poema é construída a partir de valores simbólicos que integram o passado histórico
transfigurado em mito e a intervenção de um futuro. Os heróis míticos figuram sucessivamente: a formação
e a consolidação da nacionalidade; as descobertas e a expansão imperial: a esperança de um novo
império. Em cada uma das partes que concorrem para a totalidade se podem encontrar figuras
dominantes: Nun’Álvares, o Infante, D. Sebastião. Todavia, o que ressalta desse conjunto originado numa
rigorosa selecção é que não são factos ou feitos gloriosos, empíricos, que criam o destino, mas o processo
de mitologização que lhes confere vida espiritual fazendo que concorram para uma conjunção de atitudes
e valores.
Num plural harmonioso se reúne a inconsciência e a consciência, como motores de acção; os
heróis movidos por um instinto obscuro e os que agem voluntariamente. Nele confluem o activo e o
passivo, a coragem guerreira e a capacidade de sacrifício, o desejo de posse e a contemplação sem
objectivos.
Súmula
Como conclusão a esta primeira aproximação à Mensagem dever-se-á referenciar alguns aspectos
diferenciadores entre Os Lusíadas e a Mensagem:
Os Lusíadas
dimensão real e concreta (acção)
carácter narrativo e descritivo
conceito tradicional de herói
valorização do passado
nacionalismo
Mensagem
dimensão simbólica e emblemática
carácter abstractivo e interpretativo
o verdadeiro heroísmo é o da criação poética
exaltação do futuro
nacionalismo universalista
ABORDAGEM DO TEXTO
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PRIMEIRO / ULISSES
ABORDAGEM DO TEXTO
Justificação da referência a Ulisses num conjunto de poemas que glorificam a história e figuras
nacionais.
Segundo a lenda, após a vitória em Tróia e quando regressava e Ítaca, Ulisses perdeu-se no
Mediterrâneo e durante essa viagem atribulada teria chegado até ao estuário do Tejo e fundado
Lisboa. Assim, e porque Lisboa significa aqui metonimicamente Portugal, esta referência a Ulisses,
figura mítica vinda do mar, simbolizaria o destino marítimo dos Portugueses.
Explicitação do paradoxo contido no primeiro verso do poema: “o mito é nada” porque é uma
explicação fantasiosa do real, no entanto, porque explica esse mesmo real, acaba por se tornar,
também ele, concreto.
Constatação do valor e das possibilidades criadoras do mito presentes na 2.ª estrofe.
Chamada de atenção para a valorização constante do mito, elevado pelo sujeito poético, a um
estatuto criador e divino (“Assim a lenda escorre/ A entrar na realidade, / E a fecundá-la decorre.”).
Constatação de que o tom eufórico que percorre todo o texto evolui para uma evidente disforia
contida nos dois últimos versos, facto que evidencia, de novo, a valorização do mítico e do lendário
e a desvalorização do real e do concreto.
SEXTO / D. DINIS
ABORDAGEM DO TEXTO
ABORDAGEM DO TEXTO
Constatação de que o emissor/personagem do texto se assume como um louco, característica
sublinhada pela repetição do adjectivo.
Levantamento das consequências dessa loucura explicitadas nos dois últimos versos da 1.ª estrofe
(o que ficou no areal foi apenas o material, não o lendário, não o mítico).
Referência ao carácter exortativo de alcance nacional e universal presente na 2.ª estrofe. O apelo à
loucura e a valorização do sonho aqui presentes constituem o oposto do discurso do Velho do
Restelo onde se faz o elogio do bom senso e da razão.
Relacionação entre a variação métrica dos versos e o conteúdo do poema.
Constatação de que a presença de um certo autobriografismo do texto o afasta das características
épicas que predominam em muitos dos textos da Mensagem.
I. O INFANTE
ABORDAGEM DO TEXTO
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IV. O MOSTRENGO
ABORDAGEM DO TEXTO
Referência histórica ao reinado de D. João II, passagem do Cabo das Tormentas por Bartolomeu
Dias.
O gigante não tem direito a uma identidade, é uma “coisa” informe, cuja carga pejorativa é
reforçada pelo emprego do sufixo “engo”.
O interlocutor é o símbolo de um povo, é um herói mítico que tem uma missão a cumprir.
à neutralização do mostrengo pela imposição da vontade de um povo que não abdica da sua
missão.
X. MAR PORTUGUÊS
ABORDAGEM DO TEXTO
É evidente que Pessoa não inventou o Sebastianismo, encontrou-o na tradição portuguesa; mas ao
adoptá-lo, aprofundou-o e transfigurou-o. Sobretudo, uniu-o de uma forma pessoal ao outro grande mito
tradicional português: o do Quinto Império.
Para Pessoa, os quatro primeiros impérios já não são os da tradição, mas os quatro grandes
momentos da civilização ocidental: a Grécia, a Roma antiga, o Cristianismo, a Europa do Renascimento e
das Luzes. Já não se fala da Assíria nem da Pérsia, nem, aliás, do Egipto ou da China: o mundo é
europeu. Mas, sobretudo, quando fala do Império vindouro, já não se trata de todo do exercício de um
poder temporal, nem sequer espiritual, mas da irradiação do espírito universal, reflectido nas obras dos
poetas e dos artistas. Ele condena a força armada, a conquista, a colonização, a evangelização, todas as
formas de poder. O Quinto Império será «cultural», ou não será. E se diz, como Vieira, que o Império será
português, isso significa que Portugal desempenhará um papel determinante na difusão dessa ideia
apolínea3 e órfica4 do homem que toda a sua obra proclama. Um português como ele, homem sem
qualidades, infinitamente aberto, menos marcado que os outros, tem mais vocação para a universalidade.
Não há dúvidas de que aquilo a que chama metaforicamente o Quinto Império se realizaria por ele e nele;
é o sentido de um texto de 1935, em que afirma que «a segunda vinda» de D. Sebastião já se verificou,
cumprindo a profecia de Bandarra, em 1888, data que marca «o início do reino do sol».
Súmula
3
APOLÍNEO - de Apolo; relativo ao Sol; formoso como Apolo; (filosofia) em Nietzsche (filósofo alemão, 1844-1900), princípio da harmonia, da
beleza, da mesura ou domínio de si.
4
ÓRFICO - feito ou celebrado em honra de Baco, deus do vinho; relativo a Orfeu.
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Abordagem do texto
/vs. /vs.
O Quinto Império. O futuro de Portugal – que não calculo, mas sei – está escrito já, para quem
saiba lê-lo, nas trovas de Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo.
Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só
fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora
dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e
vivos, fundidos portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único
deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a
Terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus
porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar
ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo!
Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são de verdade.
Entrevista a Fernando Pessoa, in Revista Portuguesa,
n.º 23-24, Lisboa, Outubro de 1923
QUINTO / NEVOEIRO
É a Hora!
Abordagem do texto
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FÁTUO – adj. que tem fatuidade; presumido; néscio; ignorante; muito estulto; pretensioso; que só dura um instante.
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o a acumulação das construções negativas;
o as construções anafóricas;
o as aliterações;
o o discurso apelativo.
O ESSENCIAL
Fernando Pessoa, na Mensagem, procura anunciar um novo império civilizacional. O «intenso sofrimento
patriótico» leva-o a antever um império que se encontra para além do material.
Mensagem recorre ao ocultismo para criar o herói – o Encoberto – que se apresenta como D. Sebastião. Note-
se que o ocultismo remete para um sentimento de mistério, indecifrável para a maioria dos mortais. Daí que só o
detentor do privilégio esotérico (= oculto/secreto) se encontra legitimado para realizar o sonho do Quinto Império.
O ocultismo:
Três espaços: o histórico, o mítico e o místico;
“A ordem espiritual no homem, no universo e em Deus”;
Poder, inteligência e amor na figura de D. Sebastião.
A conquista do mar não foi suficiente (o império material desfez-se, ou seja, a missão ainda não foi cumprida):
falta concretizar este novo sonho – um império espiritual...
A construção do Futuro (a revolução cultural) tem que ter em conta o Presente e deve aproveitar as lições do
Passado, fundamentando-se nas nossas ancestrais tradições.
A atitude heróica é importante para a aproximação a Deus, mas o herói não pode esquecer que o poder baseado
na justiça, na lealdade, na coragem e no respeito é mais valioso do que o poder exercido violentamente pelo
conquistador – a opção clara pelo poder espiritual, pelo poder moral, pelos valores...
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Diáspora – emigração ou saída forçada da pátria
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