Poéticas e Políticas das Indígenas da Bolívia, 2013
Poéticas e Políticas das Indígenas da Bolívia1 Margareth Rago "Si el arte de tu imagem abusa, muj... more Poéticas e Políticas das Indígenas da Bolívia1 Margareth Rago "Si el arte de tu imagem abusa, mujer, declara-te anti-musa." grafite de Mujeres Creando Foi por meio do skype que Julieta Paredes entrou na sala de seminários do Departamento de Antropologia da Universidade de Nova York (NYU), em março de 2011. Ali estávamos reunidas, um pequeno grupo de estudantes, docentes e ativistas feministas, por iniciativa da professora Pamela Calla, antropóloga boliviana, residente naquela cidade há muitos anos. Fomos todas surpreendidas pelo discurso ágil e atento da feminista aymara, de aparência juvenil, nascida em Cochabamba, em 1958. Os "filósofos da diferença", como Foucault e Deleuze, não lhe eram estranhos,
Ficcionais, as narrativas da heterossexualidade compulsória ou heteronormatividade, que herdamos ... more Ficcionais, as narrativas da heterossexualidade compulsória ou heteronormatividade, que herdamos desde o cristianismo, passando pela teoria da degenerescência do século XX e que ainda hoje são frequentemente repetidas, impondo-se como referência sexual adequada e natural, segundo os conservadores códigos morais hegemônicos, têm efeitos devastadores sobre o corpo e a psique de todos e de todas. Devastadores, pois trata-se da imposição de interpretações morais ditas como as únicas válidas para toda a humanidade, desde sempre, que escondem sua face ficcional, excludente, autoritária e, sobretudo, classista. Acima de tudo, considerando as relações de saber-poder que as constituem, essas narrativas visam ao enquadramento de cada um e de todos em identidades sexuais naturalizadas. Na governamentalidade neoliberal, essas narrativas são reforçadas com a teoria do capital humano.
Introduzindo o debate Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era possível uma históri... more Introduzindo o debate Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era possível uma história das mulheres, num trabalho que se tornou bastante conhecido, no qual expunha os inúmeros problemas decorrentes do privilegiamento de um outro sujeito universal: a mulher. 1 Argumentava que muito se perdia nessa historiografia que, afinal, não dava conta de pensar dinamicamente as relações sexuais e sociais, já que as mulheres não vivem isoladas em ilhas, mas interagem continuamente com os homens, quer os consideremos na figura de maridos, pais ou irmãos, quer enquanto profissionais com os quais convivemos no cotidiano, como os colegas de trabalho, os médicos, dentistas, padeiros ou carteiros. Concluía pela necessidade de uma forma de produção acadêmica que problematizasse as relações entre os sexos, mais do que produzisse análises a partir do privilegamento do sujeito. Ao mesmo tempo, levantava polêmicas questões: existiria uma maneira feminina de fazer/escrever a história, radicalmente diferente da masculina? E, ainda, existiria uma memória especificamente feminina? Em relação à primeira questão, Perrot respondia simultaneamente sim e não. Sim, porque entendia que há um modo de interrogação próprio do olhar feminino, um ponto de vista específico das mulheres ao abordar o passado, uma proposta de releitura da História no feminino. Não, em se considerando que o método, a forma de trabalhar e procurar as fontes não se diferenciavam do que ela própria havia feito antes enquanto pesquisadora do movimento operário francês. Entendia, assim, que o fato de ser uma historiadora do sexo feminino não alterava em nada a maneira como estudara e recortara o objeto. Na verdade, sua argumentação deslocava a discussão, deixando de considerar o modo de produzir e
Se a relação das feministas com Michel Foucault foi polêmica e nem sempre favorável, como discute... more Se a relação das feministas com Michel Foucault foi polêmica e nem sempre favorável, como discutem várias autoras, creio que valeria prestar atenção a alguns momentos de sua obra em que uma atitude filógina1 se explicita claramente. Sem se dedicar às questões específicas de gênero, termo que, aliás, praticamente inexistia no período em que produziu, nem também às de raça, Foucault trouxe reflexões e operadores conceituais fundamentais para que os feminismos pudessem constituir linguagens e narrativas críticas adequadas aos temas e objetos de que tratam, em seu projeto de descolonizar a filosofia e o olhar masculinos, muitas vezes misóginos, abrindo o espaço do pensamento para a incorporação de suas problemáticas, como mostram Margaret A. McLaren (2016) e Johanna Oksala (2005; 2016) entre outras. Nessa direção, a análise foucaultiana do poder da linguagem na constituição da identidade foi decisiva para que as feministas pudessem desconstruir o discurso dominante e suas interpretações sobre si mesmas. Já a noção de "dispositivo da sexualidade" deu visibilidade às formas modernas de normatização e controle do corpo, da sexualidade e da subjetividade das mulheres, e não apenas delas. Em seguida, as noções de "práticas da liberdade", "contracondutas" e "estéticas da existência", assim como as problematizações construídas a partir delas, abriram espaço para dar visibilidade a práticas feministas que escapavam aos modos tradicionais de leitura da experiência. Como observa McLaren (2016), se esse filósofo não apresentou um mapa das formas da resistência às tecnologias do poder e aos discursos normalizadores, como se esperava e como, tantas vezes, foi indevidamente cobrado, ele trouxe a noção do corpo como locus da resistência, assim como permitiu pensar na "subjetividade corporificada", incitando-nos a "irmos além do 'sexo-desejo' para os corpos e os prazeres" (McLAREN, 2016, p.145). Foucault falou incessantemente da revolta, da insubordinação, da insurreição, da insurgência e da transformação social, individual e subjetiva, em chaves e registros até então pouco conhecidos e elaborados. Dentre outras problematizações cruciais, sua leitura crítica do cristianismo, que se aproxima em muitos aspectos das interpretações e discussões oferecidas pelas teólogas feministas, 1 Filoginia, do grego philos, amigo + gyne, mulher-amor às mulheres-antônimo de Misoginia, aversão às mulheres (GRANDE Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, 1999, p. 432).
Desde janeiro de 1936, a revista anarquista Estudios, publicada mensalmente em Valência, na Espan... more Desde janeiro de 1936, a revista anarquista Estudios, publicada mensalmente em Valência, na Espanha, passa a incluir, entre os inúmeros artigos que discutem questões de saúde e da moral, uma seção denominada "Consultório Psico-sexual", aberta aos leitores. Através de cartas dirigidas ao dr. Felix Martí Ibáñez, especialista em Sexologia, são apresentados problemas sexuais, sentimentais e afetivos de várias ordens, aos quais o médico procura responder, tentando identificá-los a partir de sua especialidade. O diálogo aberto entre o médico libertário e os seus leitores na revista é uma das muitas frentes em que ele se engaja, ao por em prática aquilo que considera sua tarefa principal: a reforma eugênica sexual, na Espanha revolucionária. Segundo ele e seus companheiros libertários, muitos dos quais também médicos, tratava-se de tirar o país do atraso secular em que se encontrava, criando as condições para a transformação dos hábitos da população, para a formação de uma juventude aberta para a vida, livre dos preconceitos e das repressões impostas pelo conservadorismo burguês e pelo obscurantismo religioso. Focalizo os principais temas que emergem nas trocas e diálogos ocorridos nesse espaço da revista, assim como no conjunto dos artigos aí publicados, entendendo que, ao abordar questões referentes à sexualidade, ao corpo e à moralidade, eles revelam a preocupação dos anarquistas em construir uma nova moral sexual e em transformar as relações de gênero no sentido da emancipação sexual tanto da mulher, quanto do homem. Para além de suas interpretações acerca dos problemas sexuais e amorosos, os libertários expõem suas práticas e experiências nessa área, constituídas num período bastante denso de nossa história, isto é, durante o período da Revolução espanhola. Além disso, a leitura da revista e particularmente dessa Seção é bastante interessante para conhecermos as representações do corpo feminino que veiculava. Nesse sentido, vale destacar a constância com que o corpo nu, principalmente o da mulher, é
Quarenta anos desde a emergencia da terceira vaga dos feminismos, as mulheres afirmam novos modos... more Quarenta anos desde a emergencia da terceira vaga dos feminismos, as mulheres afirmam novos modos de inscricao no mundo e de reinvencao de si. Focalizo as experiencias subjetivas de tres militantes “historicas” –, Maria Amelia de Almeida Teles, Norma Telles e Gabriela Leite Silva –, que marcam uma geracao de mulheres em luta contra a ditadura militar no Brasil, destacando-se pela criacao de novas formas culturais filoginas. Para isso, considero seus depoimentos escritos e orais, privilegiando os deslocamentos subjetivos experimentados nessa busca etica de autonomia e justica social.
Apesar de serem pouco conhecidas as trajetorias das militantes anarquistas, Maria Lacerda de Mour... more Apesar de serem pouco conhecidas as trajetorias das militantes anarquistas, Maria Lacerda de Moura (1887-1945) e Luce Fabbri (1908-2000) destacaram-se na renovacao do anarquismo na America do Sul. As duas militantes compartilham do esforco de atualizar o anarquismo, refletindo-o a partir dos problemas e desafios de sua epoca. Escritoras, educadoras e oradoras, tiveram uma importante atuacao nos meios politicos, culturais e literarios ao longo de suas vidas denunciando as multiplas formas da dominacao burguesa, da opressao masculina e da exploracao capitalista do trabalho. Palavras-chave: anarquismo, feminismo, America do Sul. Abstract Maria Lacerda de Moura’s (1887-1945) and Luce Fabbri’s (1908-2000) trajectories are not well known despite their importance in the renewal of anarchism in South America. Both militants shared forces to up-date anarchism by facing and analyzing the problems and challenges of their epoch. Writers, educators and speakers, both women had an impressive pres...
A atualidade do feminismo apresenta-se como pos-feminismo revelando novas relacoes que sao possiv... more A atualidade do feminismo apresenta-se como pos-feminismo revelando novas relacoes que sao possiveis no interior deste movimento. A emergencia, no Brasil, de novas formas do feminino, proximas do que Foucault chama de artes da existencia, e que interrogam a universalizacao da mulher como reacao ou repeticao do homem. Palavras-chave: feminismo, subjetividade, Foucault.
Resumo Este artigo procura focalizar, atraves do trabalho da memoria de Luce Fabbri,antiga milita... more Resumo Este artigo procura focalizar, atraves do trabalho da memoria de Luce Fabbri,antiga militante anarquista italiana, dimensoes da cultura politica do anarquismo, tal como se manifestam em alguns paises da America do Sul, especialmente no Uruguai e Argentina. Acompanhando a trajetoria de sua vida, busco recuperar a experiencia feminina do Anarquismo, assim como entender os desdobramentos teoricos e politicos desta doutrina politica na contemporaneidade, formulados por esta ativa militante e livre-pensadora. Abstract This article focuses on some aspects of the political culture of anarchism in Argentina and Uruguay, revealed by the memories of an elderly italian anarchist militant, Luce Fabbri, who has lived in Uruguay since 1929. In following the path of her life and getting to know her political thought, my purpose is to reconstruct the feminine experience of Anarchism and to understand the different ways in which this political doctrine has been updated in order to cope with c...
Em julho de 1990, logo após defender o doutorado com um trabalho sobre a história da prostituição... more Em julho de 1990, logo após defender o doutorado com um trabalho sobre a história da prostituição no Brasil, participei de um encontro feminista em Nova York, onde ouvi, pela primeira vez, as discussões em torno das relações de gênero. Os gender studies já estavam a todo vapor ...
UFMG Vol. 5, n. 2, Mai/Ago-2013 ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 8 | P á g i n a... more UFMG Vol. 5, n. 2, Mai/Ago-2013 ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 8 | P á g i n a APRESENTAÇÃO Os membros do Conselho Editorial da revista do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, Temporalidades, queriam produzir um número com um dossiê sobre a área de Teoria e Metodologia da História e Historiografia, e procuraram-me para sugerir-lhes alguns temas. Eu sugeri a eles três temas: 1º) O que é teoria-metodologia da História? O lugar da teoria-metodologia no conhecimento histórico Podem ser incluidos artigos sobre: as contribuições de Koselleck, Ricoeur, Hartog, Rüsen, Annales, Roger Chartier, François Dosse, Hayden White, Thompson, Foucault, Ranke, Dilthey, Nietzsche, Marx, enfim, dos clássicos do pensamento histórico. 2º) Teoria-metodologia e historiografia brasileira: tendências e referências Quais teóricos-metodólogos têm sido mais citados, como são apropriados pelos historiadores brasileiros e por quê? Quem produz e publica pesquisas sobre ...
Ninguem duvida que as mulheres estejam, hoje, em quase todas as profissoes, que ocupem dinamicame... more Ninguem duvida que as mulheres estejam, hoje, em quase todas as profissoes, que ocupem dinamicamente os multiplos espacos da vida social e que circulem pelas ruas da cidade com toda desenvoltura, determinando decididamente os rumos de suas proprias vidas. Mesmo que discordemos da afirmacao de que ja tenham conseguido muito do que reivindicaram, nao ha como negar seu crescimento e autonomizacao. "As mulheres brilham!", repetem as manchetes dos jornais, ou se comenta entre amigos. Ao mesmo tempo, parece que se ouve falar cada vez menos do feminismo e muitos, sobretudo no senso comum, estao convencidos de seu desaparecimento.
Este artigo focaliza a experiencia de algumas militantes feministas no Brasil, que ousaram questi... more Este artigo focaliza a experiencia de algumas militantes feministas no Brasil, que ousaram questionar os discursos normativos instituintes das identidades de genero, fortemente ancoradas em concepcoes biologizantes e subverteram suas proprias identidades, reinventando-se de um modo libertario. Norteando-se pelas problematizacoes de Foucault e da epistemologia feminista sobre a subjetividade, mostra como criaram modos estilizados de vida, definindo uma nova etica individual e coletiva, ao longo das ultimas quatro decadas. Resulta da pesquisa “Essas mulheres: praticas feministas em novos modos de subjetivacao”, apoiada pelo CNPQ, para o periodo de 2007-2010.
Nesse artigo, apresento duas interpretacoes divergentes em relacao ao Direito e as politicas publ... more Nesse artigo, apresento duas interpretacoes divergentes em relacao ao Direito e as politicas publicas, que se inspiram nas re exoes de Michel Foucault sobre o poder, a logica punitiva e os direitos. A partir das analises de alguns especialistas sobre a loso a de Foucault e sua nocao de “contraconduta”, estendo a discussao, num segundo momento, para problematizar os desa os enfrentados pelos feminismos em relacao ao paradoxo dos direitos e as saidas oferecidas para conter a violencia sexual e de genero cometida contra os corpos femininos, seja no campo juridico, como a Lei Maria da Penha e a tipi cacao do feminicidio, seja na dimensao etica, com o cuidado de si e as praticas de si.
FUNARI, P. P. A.; Campos, N.F. . Foucault e a Antiguidade: considerações sobre uma vida não-fasci... more FUNARI, P. P. A.; Campos, N.F. . Foucault e a Antiguidade: considerações sobre uma vida não-fascista e o papel da amizade. In: Margareth Rago; Alfredo Veiga Neto. (Org.). Para uma vida não-fascista. 2ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2009, v. 1, p. 281-290.
Poéticas e Políticas das Indígenas da Bolívia, 2013
Poéticas e Políticas das Indígenas da Bolívia1 Margareth Rago "Si el arte de tu imagem abusa, muj... more Poéticas e Políticas das Indígenas da Bolívia1 Margareth Rago "Si el arte de tu imagem abusa, mujer, declara-te anti-musa." grafite de Mujeres Creando Foi por meio do skype que Julieta Paredes entrou na sala de seminários do Departamento de Antropologia da Universidade de Nova York (NYU), em março de 2011. Ali estávamos reunidas, um pequeno grupo de estudantes, docentes e ativistas feministas, por iniciativa da professora Pamela Calla, antropóloga boliviana, residente naquela cidade há muitos anos. Fomos todas surpreendidas pelo discurso ágil e atento da feminista aymara, de aparência juvenil, nascida em Cochabamba, em 1958. Os "filósofos da diferença", como Foucault e Deleuze, não lhe eram estranhos,
Ficcionais, as narrativas da heterossexualidade compulsória ou heteronormatividade, que herdamos ... more Ficcionais, as narrativas da heterossexualidade compulsória ou heteronormatividade, que herdamos desde o cristianismo, passando pela teoria da degenerescência do século XX e que ainda hoje são frequentemente repetidas, impondo-se como referência sexual adequada e natural, segundo os conservadores códigos morais hegemônicos, têm efeitos devastadores sobre o corpo e a psique de todos e de todas. Devastadores, pois trata-se da imposição de interpretações morais ditas como as únicas válidas para toda a humanidade, desde sempre, que escondem sua face ficcional, excludente, autoritária e, sobretudo, classista. Acima de tudo, considerando as relações de saber-poder que as constituem, essas narrativas visam ao enquadramento de cada um e de todos em identidades sexuais naturalizadas. Na governamentalidade neoliberal, essas narrativas são reforçadas com a teoria do capital humano.
Introduzindo o debate Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era possível uma históri... more Introduzindo o debate Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era possível uma história das mulheres, num trabalho que se tornou bastante conhecido, no qual expunha os inúmeros problemas decorrentes do privilegiamento de um outro sujeito universal: a mulher. 1 Argumentava que muito se perdia nessa historiografia que, afinal, não dava conta de pensar dinamicamente as relações sexuais e sociais, já que as mulheres não vivem isoladas em ilhas, mas interagem continuamente com os homens, quer os consideremos na figura de maridos, pais ou irmãos, quer enquanto profissionais com os quais convivemos no cotidiano, como os colegas de trabalho, os médicos, dentistas, padeiros ou carteiros. Concluía pela necessidade de uma forma de produção acadêmica que problematizasse as relações entre os sexos, mais do que produzisse análises a partir do privilegamento do sujeito. Ao mesmo tempo, levantava polêmicas questões: existiria uma maneira feminina de fazer/escrever a história, radicalmente diferente da masculina? E, ainda, existiria uma memória especificamente feminina? Em relação à primeira questão, Perrot respondia simultaneamente sim e não. Sim, porque entendia que há um modo de interrogação próprio do olhar feminino, um ponto de vista específico das mulheres ao abordar o passado, uma proposta de releitura da História no feminino. Não, em se considerando que o método, a forma de trabalhar e procurar as fontes não se diferenciavam do que ela própria havia feito antes enquanto pesquisadora do movimento operário francês. Entendia, assim, que o fato de ser uma historiadora do sexo feminino não alterava em nada a maneira como estudara e recortara o objeto. Na verdade, sua argumentação deslocava a discussão, deixando de considerar o modo de produzir e
Se a relação das feministas com Michel Foucault foi polêmica e nem sempre favorável, como discute... more Se a relação das feministas com Michel Foucault foi polêmica e nem sempre favorável, como discutem várias autoras, creio que valeria prestar atenção a alguns momentos de sua obra em que uma atitude filógina1 se explicita claramente. Sem se dedicar às questões específicas de gênero, termo que, aliás, praticamente inexistia no período em que produziu, nem também às de raça, Foucault trouxe reflexões e operadores conceituais fundamentais para que os feminismos pudessem constituir linguagens e narrativas críticas adequadas aos temas e objetos de que tratam, em seu projeto de descolonizar a filosofia e o olhar masculinos, muitas vezes misóginos, abrindo o espaço do pensamento para a incorporação de suas problemáticas, como mostram Margaret A. McLaren (2016) e Johanna Oksala (2005; 2016) entre outras. Nessa direção, a análise foucaultiana do poder da linguagem na constituição da identidade foi decisiva para que as feministas pudessem desconstruir o discurso dominante e suas interpretações sobre si mesmas. Já a noção de "dispositivo da sexualidade" deu visibilidade às formas modernas de normatização e controle do corpo, da sexualidade e da subjetividade das mulheres, e não apenas delas. Em seguida, as noções de "práticas da liberdade", "contracondutas" e "estéticas da existência", assim como as problematizações construídas a partir delas, abriram espaço para dar visibilidade a práticas feministas que escapavam aos modos tradicionais de leitura da experiência. Como observa McLaren (2016), se esse filósofo não apresentou um mapa das formas da resistência às tecnologias do poder e aos discursos normalizadores, como se esperava e como, tantas vezes, foi indevidamente cobrado, ele trouxe a noção do corpo como locus da resistência, assim como permitiu pensar na "subjetividade corporificada", incitando-nos a "irmos além do 'sexo-desejo' para os corpos e os prazeres" (McLAREN, 2016, p.145). Foucault falou incessantemente da revolta, da insubordinação, da insurreição, da insurgência e da transformação social, individual e subjetiva, em chaves e registros até então pouco conhecidos e elaborados. Dentre outras problematizações cruciais, sua leitura crítica do cristianismo, que se aproxima em muitos aspectos das interpretações e discussões oferecidas pelas teólogas feministas, 1 Filoginia, do grego philos, amigo + gyne, mulher-amor às mulheres-antônimo de Misoginia, aversão às mulheres (GRANDE Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, 1999, p. 432).
Desde janeiro de 1936, a revista anarquista Estudios, publicada mensalmente em Valência, na Espan... more Desde janeiro de 1936, a revista anarquista Estudios, publicada mensalmente em Valência, na Espanha, passa a incluir, entre os inúmeros artigos que discutem questões de saúde e da moral, uma seção denominada "Consultório Psico-sexual", aberta aos leitores. Através de cartas dirigidas ao dr. Felix Martí Ibáñez, especialista em Sexologia, são apresentados problemas sexuais, sentimentais e afetivos de várias ordens, aos quais o médico procura responder, tentando identificá-los a partir de sua especialidade. O diálogo aberto entre o médico libertário e os seus leitores na revista é uma das muitas frentes em que ele se engaja, ao por em prática aquilo que considera sua tarefa principal: a reforma eugênica sexual, na Espanha revolucionária. Segundo ele e seus companheiros libertários, muitos dos quais também médicos, tratava-se de tirar o país do atraso secular em que se encontrava, criando as condições para a transformação dos hábitos da população, para a formação de uma juventude aberta para a vida, livre dos preconceitos e das repressões impostas pelo conservadorismo burguês e pelo obscurantismo religioso. Focalizo os principais temas que emergem nas trocas e diálogos ocorridos nesse espaço da revista, assim como no conjunto dos artigos aí publicados, entendendo que, ao abordar questões referentes à sexualidade, ao corpo e à moralidade, eles revelam a preocupação dos anarquistas em construir uma nova moral sexual e em transformar as relações de gênero no sentido da emancipação sexual tanto da mulher, quanto do homem. Para além de suas interpretações acerca dos problemas sexuais e amorosos, os libertários expõem suas práticas e experiências nessa área, constituídas num período bastante denso de nossa história, isto é, durante o período da Revolução espanhola. Além disso, a leitura da revista e particularmente dessa Seção é bastante interessante para conhecermos as representações do corpo feminino que veiculava. Nesse sentido, vale destacar a constância com que o corpo nu, principalmente o da mulher, é
Quarenta anos desde a emergencia da terceira vaga dos feminismos, as mulheres afirmam novos modos... more Quarenta anos desde a emergencia da terceira vaga dos feminismos, as mulheres afirmam novos modos de inscricao no mundo e de reinvencao de si. Focalizo as experiencias subjetivas de tres militantes “historicas” –, Maria Amelia de Almeida Teles, Norma Telles e Gabriela Leite Silva –, que marcam uma geracao de mulheres em luta contra a ditadura militar no Brasil, destacando-se pela criacao de novas formas culturais filoginas. Para isso, considero seus depoimentos escritos e orais, privilegiando os deslocamentos subjetivos experimentados nessa busca etica de autonomia e justica social.
Apesar de serem pouco conhecidas as trajetorias das militantes anarquistas, Maria Lacerda de Mour... more Apesar de serem pouco conhecidas as trajetorias das militantes anarquistas, Maria Lacerda de Moura (1887-1945) e Luce Fabbri (1908-2000) destacaram-se na renovacao do anarquismo na America do Sul. As duas militantes compartilham do esforco de atualizar o anarquismo, refletindo-o a partir dos problemas e desafios de sua epoca. Escritoras, educadoras e oradoras, tiveram uma importante atuacao nos meios politicos, culturais e literarios ao longo de suas vidas denunciando as multiplas formas da dominacao burguesa, da opressao masculina e da exploracao capitalista do trabalho. Palavras-chave: anarquismo, feminismo, America do Sul. Abstract Maria Lacerda de Moura’s (1887-1945) and Luce Fabbri’s (1908-2000) trajectories are not well known despite their importance in the renewal of anarchism in South America. Both militants shared forces to up-date anarchism by facing and analyzing the problems and challenges of their epoch. Writers, educators and speakers, both women had an impressive pres...
A atualidade do feminismo apresenta-se como pos-feminismo revelando novas relacoes que sao possiv... more A atualidade do feminismo apresenta-se como pos-feminismo revelando novas relacoes que sao possiveis no interior deste movimento. A emergencia, no Brasil, de novas formas do feminino, proximas do que Foucault chama de artes da existencia, e que interrogam a universalizacao da mulher como reacao ou repeticao do homem. Palavras-chave: feminismo, subjetividade, Foucault.
Resumo Este artigo procura focalizar, atraves do trabalho da memoria de Luce Fabbri,antiga milita... more Resumo Este artigo procura focalizar, atraves do trabalho da memoria de Luce Fabbri,antiga militante anarquista italiana, dimensoes da cultura politica do anarquismo, tal como se manifestam em alguns paises da America do Sul, especialmente no Uruguai e Argentina. Acompanhando a trajetoria de sua vida, busco recuperar a experiencia feminina do Anarquismo, assim como entender os desdobramentos teoricos e politicos desta doutrina politica na contemporaneidade, formulados por esta ativa militante e livre-pensadora. Abstract This article focuses on some aspects of the political culture of anarchism in Argentina and Uruguay, revealed by the memories of an elderly italian anarchist militant, Luce Fabbri, who has lived in Uruguay since 1929. In following the path of her life and getting to know her political thought, my purpose is to reconstruct the feminine experience of Anarchism and to understand the different ways in which this political doctrine has been updated in order to cope with c...
Em julho de 1990, logo após defender o doutorado com um trabalho sobre a história da prostituição... more Em julho de 1990, logo após defender o doutorado com um trabalho sobre a história da prostituição no Brasil, participei de um encontro feminista em Nova York, onde ouvi, pela primeira vez, as discussões em torno das relações de gênero. Os gender studies já estavam a todo vapor ...
UFMG Vol. 5, n. 2, Mai/Ago-2013 ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 8 | P á g i n a... more UFMG Vol. 5, n. 2, Mai/Ago-2013 ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 8 | P á g i n a APRESENTAÇÃO Os membros do Conselho Editorial da revista do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, Temporalidades, queriam produzir um número com um dossiê sobre a área de Teoria e Metodologia da História e Historiografia, e procuraram-me para sugerir-lhes alguns temas. Eu sugeri a eles três temas: 1º) O que é teoria-metodologia da História? O lugar da teoria-metodologia no conhecimento histórico Podem ser incluidos artigos sobre: as contribuições de Koselleck, Ricoeur, Hartog, Rüsen, Annales, Roger Chartier, François Dosse, Hayden White, Thompson, Foucault, Ranke, Dilthey, Nietzsche, Marx, enfim, dos clássicos do pensamento histórico. 2º) Teoria-metodologia e historiografia brasileira: tendências e referências Quais teóricos-metodólogos têm sido mais citados, como são apropriados pelos historiadores brasileiros e por quê? Quem produz e publica pesquisas sobre ...
Ninguem duvida que as mulheres estejam, hoje, em quase todas as profissoes, que ocupem dinamicame... more Ninguem duvida que as mulheres estejam, hoje, em quase todas as profissoes, que ocupem dinamicamente os multiplos espacos da vida social e que circulem pelas ruas da cidade com toda desenvoltura, determinando decididamente os rumos de suas proprias vidas. Mesmo que discordemos da afirmacao de que ja tenham conseguido muito do que reivindicaram, nao ha como negar seu crescimento e autonomizacao. "As mulheres brilham!", repetem as manchetes dos jornais, ou se comenta entre amigos. Ao mesmo tempo, parece que se ouve falar cada vez menos do feminismo e muitos, sobretudo no senso comum, estao convencidos de seu desaparecimento.
Este artigo focaliza a experiencia de algumas militantes feministas no Brasil, que ousaram questi... more Este artigo focaliza a experiencia de algumas militantes feministas no Brasil, que ousaram questionar os discursos normativos instituintes das identidades de genero, fortemente ancoradas em concepcoes biologizantes e subverteram suas proprias identidades, reinventando-se de um modo libertario. Norteando-se pelas problematizacoes de Foucault e da epistemologia feminista sobre a subjetividade, mostra como criaram modos estilizados de vida, definindo uma nova etica individual e coletiva, ao longo das ultimas quatro decadas. Resulta da pesquisa “Essas mulheres: praticas feministas em novos modos de subjetivacao”, apoiada pelo CNPQ, para o periodo de 2007-2010.
Nesse artigo, apresento duas interpretacoes divergentes em relacao ao Direito e as politicas publ... more Nesse artigo, apresento duas interpretacoes divergentes em relacao ao Direito e as politicas publicas, que se inspiram nas re exoes de Michel Foucault sobre o poder, a logica punitiva e os direitos. A partir das analises de alguns especialistas sobre a loso a de Foucault e sua nocao de “contraconduta”, estendo a discussao, num segundo momento, para problematizar os desa os enfrentados pelos feminismos em relacao ao paradoxo dos direitos e as saidas oferecidas para conter a violencia sexual e de genero cometida contra os corpos femininos, seja no campo juridico, como a Lei Maria da Penha e a tipi cacao do feminicidio, seja na dimensao etica, com o cuidado de si e as praticas de si.
FUNARI, P. P. A.; Campos, N.F. . Foucault e a Antiguidade: considerações sobre uma vida não-fasci... more FUNARI, P. P. A.; Campos, N.F. . Foucault e a Antiguidade: considerações sobre uma vida não-fascista e o papel da amizade. In: Margareth Rago; Alfredo Veiga Neto. (Org.). Para uma vida não-fascista. 2ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2009, v. 1, p. 281-290.
25 anos após a publicação do artigo “As Marcas da Pantera: Michel Foucault na Historiografia Bras... more 25 anos após a publicação do artigo “As Marcas da Pantera: Michel Foucault na Historiografia Brasileira”, Foucault continua a nos surpreender com suas ousadas reflexões. Recentemente publicado, o livro As confissões da carne completa sua genealogia do sujeito moderno, apontando para dimensões profundamente enraizadas em nossa psique. Sua pesquisa arqueogenealógica sobre os regimes de verdade que regem nossas vidas, amplia-se ao abranger os primeiros anos do cristianismo e ao revelara dívida que este mantém com o estoicismo. Em seus cursos, Foucault traz contundentes reflexões sobre a migração da confissão e do poder pastoral para fora dos muros da igreja e para sua incorporação no Estado moderno, chegando aos nossos dias, marcados pelo neoliberalismo. Coma noção de governo de si e do outro, problematiza novas tecnologias do poder, enquanto as “contracondutas” remetem à maneira pela qual as práticas da liberdade são experimentadas frente à governamentalidade cristã ou neoliberal.
Neste texto, destaco as convergências das interpretações feministas com as reflexões de Foucault,... more Neste texto, destaco as convergências das interpretações feministas com as reflexões de Foucault, no que se refere à crítica aos modos de sujeição promovidos na modernidade e à busca de outras possibilidades de existência. Suas análises sobre o neoliberalismo e sua noção de contracondutas são úteis para pensarmos as políticas feministas da subjetividade, que lutam contra os processos normalizadores e afirmam o desejo da verdade sobre si. Essas lutas exigem a coragem da verdade, como comprovam as formas de exclusão, tortura e morte usadas contra elas historicamente, da fogueira e guilhotina no passado às prisões nas ditaduras e a outras formas de violência cotidiana. Embora o neoliberalismo se aproprie de várias pautas feministas, valorizando a figura competitiva da “empresária de si mesma”, os feminismos denunciam essas sofisticadas tecnologias do poder em sua luta por um mundo anticapitalista, filógino e libertário.
Por longo tempo ignorada pelos críticos da arte, a produção artística de Carol Rama (1918- 2015) ... more Por longo tempo ignorada pelos críticos da arte, a produção artística de Carol Rama (1918- 2015) ganha destaque em exposições e nas interpretações feministas. Sobressaem, em sua obra, temas relacionados à sexualidade, à fantasia erótica, à lascívia na relação entre os gêneros, à masturbação masculina e à exposição sensualizada de corpos nus, associados à loucura e à perversão sexual. As reflexões e os operadores conceituais de Foucault permitem lançar um olhar mais aprofundado a essa produção artística transgressora e evidenciar a crítica contundente que a artista italiana lança ao dispositivo da sexualidade, ao biopoder e à ciência eugenista. Como bem mostrou o filósofo, em sua leitura crítica tanto da ciência médica quanto do cristianismo, desde o século XIX, os processos normalizadores se apoiaram em noções médico-psiquiátricas, como a de psychopatia sexualis, reatualizando narrativas misóginas sobre o pecado original e a figura de Eva, quase sempre acompanhada pela serpente. Exp...
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