COSTA, Isaac; OLIVEIRA, Alex; DORNELES, Elizabeth. Ideologia. In: LEANDRO-FERREIRA, Maria Cristina (org.). Glossário de termos do discurso, 1. ed. ampl. Campinas: Pontes, 2020, p. 139-146.
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25. IDEOLOGIA
Isaac Costa
Alex Sander de Oliveira
Elizabeth Fontoura Dorneles
Elemento determinante do sentido que está presente no interior do
discurso e que, ao mesmo tempo, se reflete na exterioridade, a ideologia não é algo exterior ao discurso, mas sim constitutiva da prática
discursiva. Entendida como efeito de relação entre sujeito e linguagem,
a ideologia não é consciente, mas está presente em toda manifestação
do sujeito, permitindo sua identificação com a formação discursiva
que o domina. Tanto a crença do sujeito de que possui o domínio de
seu discurso, quanto a ilusão de que o sentido já existe como tal, são
efeitos ideológicos.
(Glossário de Termos do Discurso, Gráfica da UFRGS, 2001, p. 17-18).
A tradição marxista confere ao termo ideologia um contorno
diferente do que o havia cunhado Destutt de Tracy quando procurou
compreender o papel que as ideias assumiam na sociedade e na história.
Distanciando-se de uma investigação desse tipo, Marx e Engels, sobretudo n’A Ideologia Alemã, de 1845-1846, concentram-se em analisar a
relação entre as diferentes formas de expressão da consciência social
de uma época e a sociedade em que ela é gerada. Essa guinada teórica
compreende, em primeiro lugar, uma reformulação crítica da teoria
da alienação religiosa de Feuerbach. De um ângulo particular, Marx e
Engels consideram que a alienação faz referência ao desconhecimento
das ações sociopolíticas, isto é, da práxis que orienta as condições
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materiais historicamente determinadas. Neste processo ficam elididas
as práticas sociais que efetivamente causam as diferentes instituições
sociais, que parecem estar separadas da sociedade que as origina. Caros
à Análise de Discurso, os mecanismos de alienação estão no centro
das concepções althusserianas sobre a sujeição à ideologia dominante,
processo complexo assegurado pela reprodução das condições materiais
de produção.
A alienação social compreende o não-reconhecimento dos homens
como produtores das diferentes instituições sociais, como a família,
o trabalho, o comércio, a guerra, a religião e a política. O conjunto
dessas instituições, nascidas de divisões sociais assimétricas entre o
grupo social dominante e aquele por ele dominado, integra as condições
materiais da vida social. Assim, por exemplo, os lugares de patrão e
empregado, senhor e escravo, opressor e oprimido, vão delimitar espaços de determinação em que se explicita o direcionamento do poder e a
exploração que daí decorre. Cada vez mais complexos e intrincados uns
nos outros, esses grupos insurgentes serão didaticamente organizados
em duas grandes classes sociais centradas no modo de produção: a dos
detentores dos meios de produção e a da força produtiva. A relação de
embate que ocorre entre a classe dominante e a dominada origina a luta
de classes, que impacta nos modos de produção ao disputar o controle
do poder estatal. As variações provocadas por essa luta constituem, em
si, o movimento da história, que não deixa de levar em consideração,
assim, as determinantes sociais e políticas inscritas em práticas concretas. No interior desse modelo social estruturado a partir do modo
de produção, a alienação do trabalho comparece como mecanismo
estruturante. O trabalhador não se reconhece como produtor das coisas
que produz, nem muito menos se enxerga nos objetos à venda. Dito de
outro modo, por um lado ele desconhece que a venda de sua força de
trabalho o transforma em mercadoria paga pelos empregadores com o
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salário. De outro lado, o trabalhador não percebe que compra com esse
salário os mesmos produtos que ele mesmo, não enquanto indivíduo,
mas como classe social, produziu.
O modo como a explicação para esse tipo de prática se exprime
na consciência, por meio de justificativas que tentam naturalizar as
operações da alienação, diz respeito ao funcionamento da ideologia.
Dessa forma, tudo quanto possa ser associado a uma espécie de “senso
comum”, ideias que aparecem como óbvias, refletem, na língua, uma
elaboração intelectual que tem por objetivo a manutenção das relações
de produção, em favor da classe dominante. Isso porque “as ideias da
classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” (MARX;
ENGELS [1845-1846], 2007, p. 47). Assim, por exemplo, a crença de
que o pobre pode ascender socialmente por intermédio do trabalho duro
é uma ideia fantasiosa que integra um imaginário específico sobre o
trabalho. Fraseologias deste tipo a) ocultam o fato de que a riqueza está
ligada ao acúmulo de capital e à propriedade dos meios de produção;
b) invertem a relação de determinação por meio da responsabilização
do sujeito pela ascensão econômica; c) naturalizam um processo que é
histórico e cultural; d) defendem a conservação de um estado de coisas,
seu status quo; e, finalmente, e) apresentam como universal algo que
é particular ao sistema capitalista. Os mecanismos aí destacados – a
ocultação, a inversão, a naturalização, a universalização e a defesa que
visa à reprodução – constituem os pontos em que a ideologia comparece
materializada no discurso, revestido pela língua.
Pode-se dizer, então, que a ideologia é “a expressão ideal das
relações materiais dominantes”, ela traduz “as relações materiais
dominantes apreendidas como ideias”, figurando, portanto, como “a
expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante”
(MARX; ENGELS, [1845-1846] 2007, p. 47). Desse modo, a ideologia
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dissimula as divisões sociais, homogeneizando as dissimetrias e apagando as contradições incontornáveis que se dão na relação entre opressor
e oprimido. Nesse processo, ela assegura a reprodução das condições
materiais de existência de um determinado modo de produção, isto é,
por meio da criação de ilusões, fantasias e falsas-causas ela garante que
o ciclo de alienação e exploração da força de trabalho continue a gerar
mercadoria. Em grande parte, dirá Althusser em Ideologia e aparelhos
ideológicos do Estado, de 1970, esse processo ocorre o pelo exercício
do poder estatal nos Aparelhos Repressivos e Ideológicos de Estado.
Tais aparelhos correspondem a uma série de instituições distintas que
representam os meios pelos quais a classe dominante exercita e mantém
o poder estatal.
Assim, para Althusser, o que outrora referimos como “as instituições que integram as condições materiais da vida social”, passa a
constituir um intrincado sistema de aparelhos divididos em exercerem
a força de ação predominantemente pela repressão violenta (o exército,
a polícia), ou predominantemente pela coerção ideológica (a família,
a igreja, a escola). Nesse esquema, uma ideologia existente num
dado aparelho ideológico prescreve determinadas práticas materiais
regidas por um ritual, como uma aula ou uma missa; essas práticas só
existem nos atos operados por um sujeito que age convencido de que
está tomando decisões plenamente conscientes e de acordo com a sua
crença, “o sujeito só age na medida em que é ‘agido’” por esse sistema
(ALTHUSSER, [1970] 1996, p. 131). Dessa forma, os aparelhos de
estado figuram como meios pelos quais a ideologia se materializa em
práticas concretas que, seguindo Pêcheux, são revestidas de linguagem
e só podem ser operadas por sujeitos e para sujeitos. Na medida em
que acreditam agir por vontade própria, os sujeitos submetem-se à ação
ideológica que os convoca, reconhecendo-se nesse chamado. Num jogo
de dupla constituição, “toda ideologia invoca ou interpela os indivíduos
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como sujeitos concretos, pelo funcionamento da categoria de sujeito”
(ALTHUSSER, 1996, p. 133).
O sujeito mobiliza saberes por intermédio da identificação com uma
forma-sujeito filiada à representação de um aparelho ideológico no plano
do discurso, isto é, uma formação ideológica. Esse processo compreende
uma série de movimentos no plano do intradiscurso, relacionados ao interdiscurso, que situam o sujeito numa formação discursiva determinante de
suas enunciações. Como aponta Althusser, esse processo se realiza como
algo evidente, não deixando dúvida de que se é sempre já-sujeito e de
que aquilo que se diz tem sentido claro, também evidente. A interpelação
torna tangível o vínculo superestrutural determinado pela infraestrutura
econômica, o que traz identidade ao sujeito que fala de si mesmo, “de
maneira tal que o teatro da consciência (eu vejo, eu penso, eu falo, eu te
vejo, eu te falo etc.) é observado pelos bastidores” (PÊCHEUX, [1975]
2014, p. 140). Nesse entorno, a língua, base material desses processos
ideológicos, sai da condição de objeto abstrato e constitui-se como
objeto material, portador de opacidade, lugar de múltiplos sentidos. A
materialidade relaciona-se às práticas e consolida-se pela língua. Língua,
ideologia e história situam o sujeito numa formação ideológica a partir
da interpelação, que faz com que os sujeitos reconheçam o seu lugar e
revistam-se de uma forma-sujeito. Nesse processo, há o reconhecimento
do sujeito que se identifica e que tende a reproduzir as relações de produção, muito embora esteja passível de, nesse ritual, falhar. No limite,
a inserção do sujeito no sistema de interpelação-identificação garante,
na reprodução dos modos de produção, a existência de uma margem de
falha, espaço mesmo por onde é possível observar a irrupção de alguma
transformação.
Assim, sobre esta última colocação e de acordo com Pêcheux, “os
Aparelhos Ideológicos de Estado constituem, simultânea e contraditoria143
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mente, a sede e as condições ideológicas da transformação das relações
de produção (...) daí a expressão ‘reprodução/transformação’ que empregamos” (PÊCHEUX, [1975] 2014, p. 131). Ao que se coaduna a ideia
de que os aparelhos de estado não são pura e simplesmente máquinas
que reproduzem o estado atual de coisas numa dada conjuntura social,
mas, sim, o meio pelo qual se reproduzem/transformam os meios de
produção; sempre pela ação de uma classe dominante, mas que só pode
se afirmar como tal quando em relação de contradição-desigualdadedesubordinação a um grupo dominado. Nesses termos, é notadamente
a luta entre as classes o que delineia a posição provisória de dominador.
Caso as posições sociais fossem perpétuas, o sistema de interpelaçãoidentificação descreveria meramente um conjunto determinístico da
vida social, quando, em realidade, aponta os mecanismos pelos quais
se fundamenta a determinação ideológica, sócio-histórica e econômica
em última instância.
É a divisão dos elementos desse sistema em objetos que possuem,
ao mesmo tempo, caráter regional (a família como instituição) e de
classe (a família brasileira de classe média) que desvela a dinâmica
complexa e contraditória das forças ideológicas em constante disputa
assimétrica. O mecanismo de tomar um sentido particular como sendo
o universal (o pensamento segundo o qual é óbvio que o modelo universal de família é o da classe média) é regido por um efeito vinculado
ao inconsciente, isto que fala sobre o sujeito quando ele pretende falar
sobre outra coisa que não seja ele mesmo. Neste sentido, a estrutura
que o sujeito julga ser a lógica regular é regida por uma fantasia cuja
determinação é social, ou melhor, os efeitos pelos quais os homens
representam para si mesmos suas condições reais de existência se dão
de forma imaginária. Em Marxismo e humanismo, Althusser já havia
pontuado o fato de que a ideologia é “profundamente inconsciente”
(ALTHUSSER, [1965] 2015, p. 193), e situado que a instância que
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reúne ideologia e inconsciente num mesmo registro é o imaginário. É
Pêcheux, entretanto, quem resolve a questão do contato entre o sistema
inconsciente e a ideologia, atribuindo-lhe uma dinâmica de afetação
mútua, mas que não implica imbricação, dependência ou continuidade. O assujeitamento-interpelação que está na base do processo de
constituição do sujeito é de natureza ideológica; contudo, é a ilusão
inconsciente que sustenta a fantasia de um sujeito que age por si mesmo, isento de determinações sociais, o que corresponde ao fato de que
“não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência” (MARX; ENGELS, [1845-1846] 2007, p. 94).
Destaca-se, então, que em Análise de Discurso a ideologia opera no
processo de constituição do sujeito, pari e passu com a estruturação do
processo de significação. Inextricavelmente relacionadas à interpretação
dos sentidos em certa direção, as operações ideológicas materializadas
no discurso produzem, pela língua, os efeitos de evidência e de unidade,
sustentando sobre o já-dito dizeres institucionalizados que aparecem
como naturais. Assim, em conexão com a base material do discurso (a
língua) e com a contraparte concreta da luta de classes (a história), a
ideologia não se refere exatamente à parte “oculta” ou implícita de uma
dada sentença, mas à função que medeia a relação entre a linguagem e
o mundo. Ao que se associa a formulação de Eni Orlandi em Discurso,
Imaginário social e conhecimento, de 1994, segundo a qual “a ideologia
não é ‘x’, mas o mecanismo de produzir ‘x’” (ORLANDI, 1994, p. 56).
Nesses termos, a ideologia comparece em Análise de Discurso como
materialidade constituída por intermédio das práticas sociais, nas quais
os indivíduos, desde sempre sujeitos, assumem posições a partir da interpelação por uma forma-sujeito. A interpelação constitui um processo em
que o sujeito se identifica com uma posição implicada em uma formação
discursiva, determinada por uma formação ideológica, a partir do duplo
gesto de atribuir sentidos e constituir-se sujeito numa dada posição. A
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relevância da noção de ideologia extrapola o processo interpretativo, e
permite ainda pensar na opacidade da língua, que não cessa de dar a ver
a interferência da história e do sujeito na produção do sentido e da interpretação da realidade, sempre atualizadas pelas condições de produção
e sustentadas pela eficácia das operações ideológicas.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado: Notas para
uma investigação [1970]. In
Um mapa da ideologia.
Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 105-142.
ALTHUSSER, Louis. Marxismo e humanismo. In: ALTHUSSER, Louis.
Por Marx [1965]. Tradução de Maria Leonor Loureiro. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2015, p. 183-207.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente
filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do
socialismo alemão em seus diferentes profetas [1845-1846]. Tradução de Rubens
Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo,
2007.ORLANDI, Eni. Discurso, Imaginário social e conhecimento. Em Aberto,
Brasília, ano 14, n. 61, jan./mar., p. 52-59, 1994.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio
[1975]. 5. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2014.
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