Mátria XXI
CENTRO DE INVESTIGAÇÃO PROF. DOUTOR JOAQUIM VERÍSSIMO SERRÃO
Mátria XXI
- n.º 12 -
Santarém • Maio de 2023
FICHA TÉCNICA
Título
MÁTRIA XXI – N.º 12, Revista do Centro
de Investigação Professor Doutor
Joaquim Veríssimo Serrão
Edição
Centro de Investigação Prof. Doutor Joaquim
Veríssimo Serrão
Director
Professor Doutor Martinho Vicente
Rodrigues
Conselho de Redacção:
Professora Doutora Adriana Veríssimo
Serrão;
Professor Doutor Vítor Serrão;
Professora Doutora Ana Cristina Raimundo;
Procurador da República, Dr. Artur
Rodrigues;
Professor Doutor Eurico Gomes Dias;
Professora Doutora Florinda Matos;
Professor Doutor Jorge Manrique Martínez;
Professora Doutora Maria de Fátima Reis;
Professor Doutor Nuno Venturinha;
Professor Doutor Pedro Sequeira;
Professor Doutor Rui Neto e Matos.
Secretária
Juíza Desembargadora, Dra. Manuela Bento
Fialho
Coordenadora Editorial e Edição Gráfica
Mestre, Dra. Vanda Marisa Marques
Direcção Administrativa e Comercial
Dra. Mónica Estrela
Conselho Editorial:
Adriana Veríssimo Serrão;
Adriano Cordeiro;
Aires-Barros;
Alberto González Rodríguez;
Ana Cristina Raimundo;
Ana Leal Faria;
Ana Maria Carabias Torres;
António José Gonçalves de Freitas;
António Pedro Vicente;
Aurélio Fernando Rosa Lopes;
Avelino de Freitas de Meneses;
Bernardo Vasconcelos e Sousa;
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira;
Carlos-Antero Ferreira;
Carolyn Elizabeth Leslie;
César Augusto Rodrigues Garcia;
Elena Perulero Pardo-Balmonte;
Florinda Matos;
Francisco José Portela Sandoval;
Francisco Ribeiro da Silva;
Gabriela Ferreira Gândara Terenas;
George Félix Cabral de Souza;
Gerhard Otto Doderer;
Isabel Ferreira da Mota;
João Luís Cardoso;
Jorge Silva Lopes;
José Manuel Garcia;
José Sanchez-Arcilla Bernal;
Josefina Maria Cristina Torales Pacheco;
Juan Carlos Monterde García;
Júlia Montenegro;
Laurinda Faria dos Santos Abreu;
Luís Filipe Monteiro Vieira de Castro;
Luísa D´Arienzo;
Magdalena Rodríguez Gil;
Manuel Lobo Cabrera;
Margarida Garcez da Silva Ventura;
Maria Alegria Fernandes Marques;
Maria da Conceição Vaz Cabrita;
Maria de Fátima Reis;
Maria Irene Aparício;
Maria José Azevedo Santos;
Maria Teresa Nobre Veloso;
Nicolás Sánchez-Albornoz Aboín;
Pedro Jorge Richheimer Sequeira;
Remédios Moran Martin;
Rui Neto e Matos;
Rui Nunes Correia;
Vítor Serrão.
Contactos
Centro de Investigação Prof. Doutor Joaquim
Veríssimo Serrão
Casa de Portugal e de Camões
Rua Capitão Romeu Neves, R/C, Dtº
2005 - 157 Santarém - Portugal
Telefone: 243 304 662
http://cijvs.cm-santarem.pt
E-mail:
cijvs@cm-santarem.pt
Director:
martinho.rodrigues@cm-santarem.pt
Depósito Legal: 344744/12
ISBN: 2182-6544
ÍNDICE
Editorial
Prof. Doutor Martinho Vicente Rodrigues
9
Mestra das Culturas da Língua Portuguesa
Prof. Doutor Guilherme d’Oliveira Martins
13
A inscrição romana da Porta do Pão (Cil Li 34*) e as Gens Ivlia
em Santarém
Prof. Doutor Vasco Gil da Cruz Soares Mantas
17
De Scientia Antiquitatis
Prof. Doutor José d’Encarnação
55
Prof. Doutor Juan Carlos Monterde García
67
Comentarios a las Fuentes Ibéricas de Derecho Romano
COIMBRA / Relações da cidade com a Santa Sé na primeira
metade do século XII
Prof. Doutora Maria Teresa Veloso
93
A Misericórdia de Abiul em 1591? Novos dados sobre os seus
primórdios
Prof. Doutor Ricardo Pessa de Oliveira
117
Liberdades dos Índios no Estado do Grão-Pará e Maranhão no
tempo de Pombal e a Lei do Directorio (1758). Acção de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador e capitãogeneral (1751-1759)
Doutorando João Abel da Fonseca
141
À volta do Mundo: Relatos de viagens na Biblioteca do Mosteiro
de São Vicente de Fora, em Lisboa (século XVIII)
Prof. Doutora Fernanda Maria Guedes de Campos
179
Centro de Interpretação do Estado Novo: os conceitos de
memória e identidade em processos de musealização
Mestre Dr. Filipe Alves
207
Posturas municipais em Portugal e o exemplo do código das
posturas de Sines na Primeira República: um contributo
Prof. Doutora Sandra Patrício
229
As Eleições Legislativas de 1973: A Permanência da Ditadura
no Limiar da Revolução
Prof. Doutora Andreia da Silva Almeida
275
Carlos Relvas e o poder interrogativo das imagens
Doutoranda Anabela Leandro dos Santos
309
A Liderança na Primeira Pessoa: O Estudo de Caso do
Brigadeiro-General Duarte Costa
Doutorando Paulo Pereira Zagalo
337
CASCAIS FISHING COMMUNITY: Proposition of a Walking Tour
Professora Doutora Cristina Carvalho
6 | Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
373
Prémios de Investigação 2022
Nas Fraldas dos Rios e no Tanger do Gado… emprego aos
libertos e educação aos ingênuos. Que história é essa Dona
Isabel?
Prof. Doutora Gercinair Silvério Gandara
401
Da fábrica de gasosas, pirolitos e licores ao Café Avenida de
Sabino José Maria, Lourinhã, 1908
Doutoranda Sofia Barreto de Pina
433
Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
|7
De Scientia Antiquitatis
José d’Encarnação1
Resumo
Discute-se a oportunidade e validade do uso da expressão
«Ciência da Antiguidade» para designar o estudo da História Antiga.
Analisa-se, a esse propósito, o recente livro de Patrick Le Roux
L’Empire romain – Histoire et modèles, onde esta problemática
metodológica é abordada.
Conclui-se que a designação «Ciência da Antiguidade» detém
valor didáctico/pedagógico, não correspondendo a uma ciência
propriamente dita, mas apenas a uma compartimentação da História
para efeitos práticos.
Palavras-chave: Metodologia da História. Modelos. Antiguidade.
Romanização.
1
Professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na
área de História Antiga e Arqueologia. Membro do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e
Ciências do Património. Membro do Centro de Investigação Doutor Joaquim Veríssimo Serrão;
Académico de mérito da Academia Portuguesa da História; Académico correspondente da Real
Academia de la Historia (Madrid) e da Academia das Ciências de Lisboa. Especializou-se em
Epigrafia Latina, domínio em que a sua obra é reconhecida internacionalmente.
Página: http://www.ua.es/personal/juan.abascal/encarnacao_jose_de.html
José d’Encarnação
Abstract
Have we a «Science of Antiquity»? That’s the proposed question
of this essay.
The Patrick Le Roux’s recent book L’Empire romain – Histoire et
modèles is here briefly analysed.
The conclusion is that, at a strict point of view, «Science of
Antiquity» is only a didactic and useful designation.
Keywords: Methodology of the History, Models, Antiquity, Romanisation.
Com indicação expressa de que o seu primordial objectivo era
ser uma revista de «arqueociências», iniciou, em Agosto de 2022, a
Doutora Leonor Rocha, Diretora do Departamento de História da
Universidade de Évora, a publicação da revista Scientia Antiquitatis,
«Ciência da Antiguidade».
Data desse mesmo ano a edição do III volume de Scripta Varia,
do Professor Patrick Le Roux, emérito da Universidade de Paris XIII, a
que foi dado o título de L’Empire romain – Histoire et modèles, onde, de
certo modo, se pôs a questão de como fazer a história da Antiguidade
Romana.
Pertence Patrick Le Roux ao notável grupo de historiadores
que, no Centre Pierre Paris, da Universidade de Bordéus III, fizeram,
sob a égide de Robert Étienne – o grande teórico do culto imperial
(1958) –, as suas teses de doutoramento na década de 70, na sua maior
parte sobre a Hispania romana, publicadas na década seguinte: Jean-
Gérard Gorges, sobre as villae hispano-romanas; Alain Tranoy sobre a
Galícia romana; Pierre Sillières sobre as vias de comunicação, tendo
Le Roux elaborado larga síntese acerca do papel do exército romano
56 | Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
De Scientia Antiquitatis
na organização das províncias ibéricas, desde o princípio do Império
até ao ano de 409.
Foi o período em que se levaram a efeito as campanhas lusofrancesas na cidade romana de Conimbriga, em estreita colaboração com
o Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, cujos resultados viriam a ser consignados nos 7 volumes das
Fouilles de Conimbriga.
Aceita-se que também na História, na disciplina ‘História’, se
verifica o ritmo proposto por Hegel: a tese gera a antítese, a que se
segue a síntese, a qual, por seu turno, acaba por ser formulada em tese,
a gerar nova antítese e assim por diante.
Quiçá não seja despropósito, no que concerne à História Antiga,
considerar os volumes atrás citados como a demonstração da síntese
nos respectivos domínios. E agora, esse caminho percorrido, altura
será de voltar a observar melhor as passadas que se deram e reflectir
acerca da sua validade.
Uma «Ciência da Antiguidade»?
E é nesse contexto que se coloca a dúvida: há uma «Ciência da
Antiguidade»? Ou, até, indo mais além, à velha questão: é a História
uma ciência?
Inventou-se a designação de Ciências Humanas e Sociais. Há
mesmo faculdades universitárias que tomaram tal designação, a
contraporem-se ao que também se convencionou designar ‘ciências
exactas’, aquelas em que a causa tem seguramente a consequência
prevista e outra não é de admitir. Foi a escolha da designação uma
espécie de vingança, de reivindicação de estatuto, por parte da
Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
| 57
José d’Encarnação
História, da Psicologia, da Etnologia e domínios afins, a que poderia
considerar-se abuso dar o estatuto de ‘ciências’.
Agora, de facto, a expressão «Ciência da Antiguidade» obriga a
ainda maior reflexão. ¿Será porque há a tendência em analisar, por
exemplo, o comportamento dos imperadores romanos segundo os
nossos paradigmas do século XXI, avalisados pela ideia de que a
História se repete e, afinal, há mesmo, na evolução das sociedades,
esse ritmo tese – antítese – síntese?
Escreveu Michael J. Sandel o livro A Tirania do Mérito (Editorial
Presença, 2022), ampla reflexão em que se interroga sobre o que
«aconteceu com o Bem Comum». No fundo, essa análise sociopolítica,
centrada de modo especial na recente evolução dos governos nos
Estados Unidos da América, vem mostrar isso mesmo: aos altos
sucedem os baixos e até nem é difícil fazer previsão do que virá a
acontecer.
Será que pode ser encarada desse prisma a História da
Antiguidade, tornando-a uma Scientia Antiquitatis?
Em relação ao desdobramento da abreviatura de uma inscrição
romana de Astorga, contrariei o que se propusera – magistr(atus) –
preferindo mag(istri), por ter sido essa a opção em contexto que eu
reputara igual, por exemplo, na inscrição relativa à oferta dum
orarium à civitas Igaeditanorum, aceite pelos magistri, de nome
indígena, tendo sido eles próprios que indicaram o lugar onde deveria
ser colocado (Étienne, 1992). Contestou-me um colega historiador,
mais ou menos nestes termos:
As nossas disciplinas não são "científicas", o que nos dá a
possibilidade de ter outra opinião e, se se quiser, de arranjar uma
referência que parece ir ao encontro do que nós pretendemos
demonstrar. Por exemplo, as questões relativas ao estatuto de
indígena ou de romano acabaram por perturbar demais os nossos
estudos. É certo que os que preparavam os monuments epigráficos
58 | Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
De Scientia Antiquitatis
locais não tinham o rigor de um computador, mas os contextos
ajudam-nos a seriar os erros e a limitar os paralelismos. Não vejo
relação possível entre a civitas Igaeditanorum e Asturica, dado que há
um século de distância entre elas e o que se passou na colónia de
Tarragona não pode trazer esclarecimentos ao ocorrido em Asturica
ou alhures.
Voltemos, então, ao recente livro de Patrick Le Roux, edição
apresentada por Yvan Maligorne, com a participação de Sabine
Armani e Nicholas Mathieu.
Recorda Maligorne, no «avant-propos», que este 3º volume
vem na sequência de La Toge et les Armes, Entre Mediterranée et Océan
(2011) e Espagnes romaines. L’Empire dans ses provinces, de 2014. Não
se trata apenas, na verdade, de mais um volume em que se reúnam os
artigos publicados pelo autor (neste caso, 35, dos 67 enumerados na
sua bibliografia e publicados desde 2011 a 2022); como o autor
escreve na introdução, os trabalhos agora escolhidos visam «ilustrar,
cada um à sua maneira e em todos os graus, uma constante reflexão
historiográfica, a construção aprofundada de um método».
Na história antiga interessa prioritariamente para uns –
prossegue Le Roux – «ter em conta as transmissões dos textos
(Plutarco, Cícero ou Gaio), numa dada época ou caracterizar as
evoluções do corpus das inscrições, das moedas e os métodos que lhes
dizem respeito»; «privilegiam outros as comparações tidas como
exemplares com este ou aquele período não-antigo, susceptível de
plenamente esclarecer o período então em análise»; «outros, ainda,
olham para a história antiga qual aguilhão incitando a abordar temas
‘excluídos’ ou pouco tratados, por razões de doutrina disciplinar
encaradas como restritivas» (p. 21).
Preferindo não se deter sobre esses aspectos, reclama o Autor
como ponto fulcral do seu livro a resposta a esta questão: «Como tratar
o problema fundamental das relações entre o presente e o mundo
Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
| 59
José d’Encarnação
antigo?». Dizendo doutra forma: dever-se-á continuar «a interrogar as
sociedades do passado com os olhos do presente»?
Sendo certo que pode encarar-se a Antiguidade no âmbito da
Antropologia, das Ciências Politicas e Sociais, da Economia, da Cultura
Material e da Arqueologia, há que respeitar o que é fundamental em
História: «a primazia dos factos, o papel da crítica objectiva, a recusa
a julgar o passado, a convicção de que as suas lições devem concorrer
para a construção do futuro» (p. 22). E se a antiga Roma pode
considerar-se «exótica para nós, o que implica uma atitude isenta de
concepções apriorísticas e de noções prefabricadas», também se terá
em consideração que «a comunidade dos historiadores só existe
atendendo à diversidade dos seus membros e das suas produções e
não devido a unanimidades de fachada».
Divide-se em cinco partes este mui denso de volume,
insusceptível, porém, de uma análise global, tamanho é o acervo
informativo, e não só, patente em cada um dos textos. Abordam-se, em
primeiro lugar, como já se previa, pelo que atrás se exarou, as questões
metodológicas; e se o Autor garante que a última parte trata de
«realidades mais humildes ou menos visíveis, quotidianas, sem que o
sejam anedóticas», a 2ª parte, sobre «a grande história», a evolução,
visa sugerir que se saia «do círculo vicioso de uma árida descrição dos
acontecimentos». Estuda-se, na 3ª parte, o Império na sua concepção
de «conglomerado de cidades» e é neste capítulo que o Autor se alarga
em considerações sobre os dados fornecidos pela Arqueologia, a fim
de esclarecer o urbanismo, os monumentos, sempre em relação com
as autonomias municipais. Na 4ª parte, «a construção provincial», a
Lusitânia – que o Autor afirma estar «em plena renovação
historiográfica» – vai merecer a sua especial atenção, atendendo,
inclusive, a que a noção de província esteve «na base da organização
imperial».
60 | Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
De Scientia Antiquitatis
Interessou–me, de modo particular, a 5ª parte em que são
tratadas as questões metodológicas aplicadas à documentação
epigráfica e agradou-me saber que o facto de a estes temas epigráficos,
até há pouco, se haver dado escassa visibilidade «lhes confere, alfim,
um perfume de ineditismo». O Autor refere-se, naturalmente, aos seus
textos, mas alicia-nos a possibilidade de espalhar esse ‘perfume’ ao
renovador trabalho que, nesse domínio, se está a efectuar na Hispânia.
Todas as introduções de livros merecem particular atenção,
para se compreenderem as intenções dos autores; esta, porém – como,
aliás, diga-se, desde já, cada um dos capítulos –, necessita de uma
atenção redobrada, porque está bem feita e mormente tendo em conta
o que o Autor – concorde-se ou não – proclama quase no final:
«Parece-me que a história do Império Romano e os seus
historiadores deveriam tentar “repensar” em comum a sua disciplina,
mudar de “programa” para se construir um discurso novo e uma nova
grelha interpretativa que possa também libertar-se da “romanização”,
noção cujo uso perdura e continuará a perdurar, sem verdadeiro
proveito para os nossos estudos, que queremos ver viver e prosperar»
(p. 24).
Apoiando-se, pois, nos seus «mais de 50 anos ao seroso da
história romana», Patrick Le Roux, que completa 80 anos neste
Outubro de 2023. encara este seu livro – se bem o entendemos – como
exemplo dessa reflexão a que é imprescindível dedicarem-se os
historiadores da Antiguidade Clássica. Aliás, não será de somenos
salientar, nesse âmbito, que houve da sua parte o cuidado de
acrescentar a cada capítulo, sempre que o considerou necessário, um
apêndice de actualização da temática nele tratada. Aproveite-se
também para informar que, por isso, não estamos perante mera
simpática compilação de artigos dispersamente publicados aqui e ali,
não só devido a esse pós-escrito, mas porque a indicação do local da
primeira publicação está apenas no início de cada capítulo e só um
Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
| 61
José d’Encarnação
quase imperceptível asterisco inserto na exaustiva lista bibliográfica
(que ocupa as páginas 9 a 20) indica a sua inclusão neste volume.
O capítulo XXIII, datado originalmente de 2017, onde se faz um
balanço do contributo aas inscrições para a história da província da
Lusitânia, pode servir de exemplo para melhor se compreender o
pensamento do Autor.
Depois de assinalar que temos, hoje, uma noção mais correcta
do papel da documentação epigráfica, começa por afirmar que, no caso
da célebre inscrição da ponte de Alcântara, as comunidades aí
mencionadas – que não são, de facto, municípios – seriam as
beneficiárias da construção dessa ponte no trajecto da via de Emerita a
Bracara Augusta e não os contribuintes para a sua construção (p. 412).
No que se prende com os termini augustales, salienta que a sua
função de reorganização do território diz respeito, sobretudo, «à
fiscalidade e à vontade de evitar controvérsias entre as comunidades».
Neste aspecto, caso o artigo tivesse sido redigido agora, teria, sem
dúvida, outro alcance, uma vez que recentemente foram dados a
conhecer mais três termini (Encarnação e Santos 2022, Santos e
Encarnação 2023, Gaidão, Pinto e Encarnação 2023), a induzir que a
zona da Lusitânia entre os rios Tejo e Douro terá sido alvo de atenção
nesse domínio, quer da parte do imperador Augusto quer, de modo
especial, de Cláudio.
Mérida mereceu do autor interesse particular, o que se
compreende, dado ser a capital provincial, mas releva-se, a
determinado momento. que, mais do que a consciência de pertença a
uma província, as relações pessoais e o apego à cidade de origem
detinham preponderância. Reflexão que se prende, por exemplo, com
o facto de haver em Évora informação de mais senadores do que em
Mérida.
62 | Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
De Scientia Antiquitatis
Não deixa de observar-se que, «isoladas ou fora do seu
contexto, as inscrições perdem o seu colorido e sabor» (p. 417); que,
mais do que o ‘culto imperial’ interessará doravante, entender, «a
figura provincial dos imperadores»; que não pode olhar-se para a
Antiguidade Clássica com os olhos contemporâneos de um «mundo
que nenhum Romano teria podido compreender» (p. 420); que a
noção de «romanização» deve definitivamente ser posta de lado, ainda
que, «segundo os contextos, possa servir de instrumento de análise
para muitos dados mudos ou pormenores que escapam ao nãoespecialista» (p. 422).
Sobre esse tema da «romanização», valerá a pena ler com
atenção o que o Autor causticamente escalpeliza – ia a escreve ‘sem dó
nem piedade’ – as tendências historiográficas actuais. Ora veja-se a
página 112, que integra um texto de 2014 sobre «os conceitos em
ciências da Antiguidade – modo de emprego». Enumeram-se aí os
termos que têm sido propostos para substituir ‘romanização’:
«assimilação, transculturação, sincretismo, tradução, interpretação,
mestiçagem, crioulização, hibridação» e comenta-se:
«As palavras perdem força paulatinamente, conotando-se, e
gastam-se, o que equivale a dizer que se caricaturam e excessivamente
se simplificam quando se generalizam. […] A concorrência ou a
competição entre especialistas não é alheia ao ritmo das mutações
lexicais. A romanização “sofreu”, sem dúvida alguma, de um reino sem
partilha e, sob a influência do seu contrário, a “resistência”, duma falta
de crédito em relação ao que se transformara numa tautologia
totalizante, sem eficácia nem dimensão heurística».
E, após se haver debruçado sobre cada um dos termos
expostos, Patrick Le Roux conclui:
«Mais do que a tradução, está a interpretação no cerne das
diligências visando avaliar as leituras do passado através do exemplo.
É ela que está em causa, porque é ela que estrutura, quer o historiador
queira quer não, a narrativa ou a exposição do que é a história das
sociedades humanas no tempo» (p. 113)
Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
| 63
José d’Encarnação
Em post-scriptum (p. 123), explica o Autor que este é um texto
«de livre reflexão dum historiador da Antiguidade que tenta pedir
emprestados, aos especialistas doutras disciplinas e doutros períodos,
materiais e conceitos em proveito da sua investigação».
Assume Patrick Le Roux uma atitude, habitualmente, crítica e,
se agora se lançou mão desta sua muito densa e extensa (mais de 650
páginas!) colectânea de artigos, foi não apenas devido a essa sua
acutilância e indesmentível erudição, mas porque dessas páginas se
desprendem reflexões pertinentes acerca da questão proposta: «Há,
ou não, uma Ciência da Antiguidade?».
Acrescente-se que a consulta da obra está facilitada pela
inclusão de índices – de fontes, dos nomes próprios, geográfico e
remissivo. Poderão não ser cem por cento exaustivos (no rol dos
nomes próprios há só dois de portugueses e um deles alfabetado à
maneira francesa), mas ajudam muito o investigador. Há uma
bibliografia final e lista das siglas e abreviaturas usadas. Em suma,
construiu Patrick Le Roux, como foi seu desejo, « une œuvre utile à la
mesure de la chance que m'a offert la vie de pouvoir m'y consacrer».
Conclusão
A palavra ciência deriva do latim. O particípio presente do
verbo scire, «saber», é sciens, ciente; scientia será, portanto, o neutro
plural, o conjunto das coisas que se sabem!
Partiu-se do princípio de que, por norma, para se atingir
determinado saber, eram necessários método próprio e bem definido
objectivo prefixado. Cada saber, os seus! Acrescentou-se, contudo, que
no objectivo se deviam incluir regras: «Nestas circunstâncias, o
resultado tem de ser este!». Daí, a História, a Psicologia, a Geografia e
domínios afins não poderem ser englobados nesse conceito. Visão
64 | Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
De Scientia Antiquitatis
tacanha, hoje totalmente abandonada, porque a noção de Ciências
Sociais e Humanas, em que a História se inclui, se aceita já sem
tergiversar.
A questão ora levantada prendia-se, todavia, com a
aceitabilidade, ou não, de se falar em «Ciência da Antiguidade». E a
resposta é: não! Não pode fragmentar-se a História em ciências
específicas conforme a época em estudo. Certo é que há, nos currículos
universitários, cadeiras como Pré-História, Proto-história, História da
Antiguidade Clássica, História da Idade Média… Não se trata, no
entanto, de ciências autónomas e, sim, da verificação prática, inclusive
do ponto de vista didáctico e pedagógico, de que, para cada época, se
hão-de privilegiar tipos específicos de documentação, para melhor se
lograr fazer a reconstituição da vida do Homem e da Sociedade nesses
períodos.
Justifica-se, pois, a designação «Ciência da Antiguidade»,
embora, neste caso, o conceito ‘ciência’ em sentido restrito não deva
ser aplicado.
A breve incursão pela recente obra de Patrick Le Roux
permitiu-nos, por outro lado, reflectir sobre os cuidados a ter, ao fazer
História Antiga, mormente repudiando a aliciante tendência de
analisar do prisma da mentalidade hodierna o comportamento das
sociedades desses remotos tempos. A História pode repetir-se; a
História pode ser mestra da Vida; há, todavia, a necessidade de existir,
como sói dizer-se, um modus in rebus, a medida adequada!
Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023
| 65
José d’Encarnação
Bibliografia
ENCARNAÇÃO, José d’ e SANTOS, José Carlos, “Um terminus augustalis em
Armamar”, Ficheiro Epigráfico, Coimbra, 233, 2022, inscrição nº 808.
ÉTIENNE, Robert. «L’horloge de la civitas Igaeditanorum et la création de la
province de Lusitanie », Revue des Études Anciennes, Bordeaux, 94, 1992 (3-4),
pp. 355-362.
ÉTIENNE, Robert. Le Culte Impérial dans la Péninsule Ibérique d'Auguste à
Dioclétien. Paris, Éditions E. De Boccard, 1958, 1974 (reimp.).
GAIDÃO, Ricardo; PINTO, Adelaide; e ENCARNAÇÃO, José d’, “Uma inscrição do
imperador Augusto em Viseu”, Ficheiro Epigráfico nº 243, 2023, inscrição nº 834.
GORGES, Jean-Gérard. Les Villas Hispano-Romaines. Inventaire et Problématique
Archéologiques. Paris: De Boccard, 1979.
LE ROUX, Patrick. L’Armée Romaine et l’Organisation des Provinces Ibériques
d’Auguste à l’Invasion de 409. Paris : De Boccard, 1982.
LE ROUX, Patrick. L’Empire romain – Histoire et modèles. Scripta Varia III. Rennes:
Presses Universitaires de Rennes, 2022.
SANTOS, José Carlos e ENCARNAÇÃO, José d’, “Terminus augustalis inter
Arabrigenses et Colarnos”, Ficheiro Epigráfico, Coimbra, nº 242, 2023, inscrição
nº 832.
SILLIÈRES, Pierre. Les Voies de Communication de l’Hispanie Méridionale. Paris :
De Boccard, 1990.
TRANOY, Alain. La Galice romaine. Recherches sur le nord-ouest de la péninsule
ibérique dans l'Antiquité. Paris: De Boccard, 1981.
66 | Mátria XXI • Nº12 • Maio de 2023