Organizadores:
Mara Marçal Sales
Mirelle F. Michalick-Triginelli
Karina B. de Souza Nogueira
Gabriel Silveira Barbosa
Mara Marçal Sales
Mirelle França Michalick-Triginelli
Karina Beatriz de Sousa Nogueira
Gabriel Silveira Barbosa
Diálogos com o cinema
Nas telas da Psicologia
Revisão técnica
Mariana Guimarães Diláscio
Renata Saldanha-Silva
Versão Ebook de distribuição gratuita: 2022
Belo Horizonte
2022
______________________________________________________________
Reservados todos os direitos de publicação à Editora e Cursos Online Mendes,
Guimarães e Saldanha LTDA (Nome fantasia: T.ser: centro de saberes
compartilhados)
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IV
COLABORADORES
Coordenadora editorial: Renata Saldanha-Silva
Capa: Claud Almeida
Parceria e patrocínio: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Minas)
Editoração: T.ser: centro de saberes compartilhados.
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Eduardo Portela
Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB. Especialista em Terapia
Cognitivo-Comportamental (TCC). Tutor e Preceptor de Residência
Multiprofissional em Saúde Mental - SES-DF
Emília Mendes
Doutora em Estudos Linguísticos. Professora do Curso de Edição da
FALE/UFMG
Josemberg Moura de Andrade
Mestre e Doutor em Psicologia Social e do Trabalho – área de Avaliação e
Medida – pela UnB. Professor no Departamento de Psicologia Social e do
Trabalho (PST). Membro do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social,
do Trabalho e das Organizações (PSTO)/Instituto de Psicologia/UnB.
Melyssa Kellyane Cavalcanti Galdino
Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pela FIP. Mestre em
Psicologia Social pela UFPB. Doutora em Neuropsiquiatria e Ciências do
Comportamento pela UFPE. Professora na Universidade Federal da Paraíba, no
departamento de psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Neurociência
Cognitiva e Comportamento.
Mirelle França Michalick-Triginelli
Doutora em Psicologia pela UFMG. Professora na PUC-Minas.
Coordenadora do Curso de Psicologia da PUC-Minas/Praça da Liberdade
V
Índice
A psicologia revisita o cinema .......................................................... 8
Para temperar a vida: socialização e memória ............................... 12
O poder-ser em construção: reflexões fenomenológicas sobre a
transitoriedade da existência .......................................................... 22
Falsas memórias (ou falsas alegações?) e violência sexual: análise
do filme “A caça” ............................................................................ 38
Reflexões sobre o sujeito hipermoderno e a diferença em A Forma
da Água, de Guillermo del Toro: diálogos entre a Psicologia e o
Cinema ........................................................................................... 56
O Capitão Fantástico, os ideais e o desejo..................................... 73
Corpo e mente – a (inter)ação que promove o diálogo na vida ....... 86
Visões de uma nova realidade ..................................................... 100
A representação de um herói negro nos quadrinhos da Marvel
Comics: análise de “Capitão América: Sam Wilson” ..................... 113
Sobre mudanças e permanências: o trabalho doméstico e o tema da
mobilidade psicossocial ................................................................ 145
Quando saber não basta e é preciso falar. O documentário e a
pesquisa em psicologia: uma questão ética ................................. 172
Instituição Total e Sonho de Liberdade ........................................ 189
Erguer a cabeça e tomar a palavra: efeitos socioeducativos na
adolescência de Malony ............................................................... 204
Cinema e experiência estética: contribuições para a formação em
psicologia ..................................................................................... 215
Psicologia do desenvolvimento: uma interface entre cinema e
desenvolvimento infantil ............................................................... 229
73
O Capitão Fantástico, os ideais e o
desejo
Hélio Cardoso de Miranda Jr.
RESUMO
“Capitão Fantástico” é um filme de 2016 que retrata a saga de uma
família cujos pais optaram por se isolar da sociedade e criar os
filhos de acordo com ideais críticos ao capitalismo e ao estilo de
vida norte-americano. Nesse texto é feita uma leitura da relação
entre o pai e os filhos por meio das questões que a psicanálise
elabora a respeito da função familiar da transmissão. Não se trata
de “psicanalisar” um filme ou seus personagens, mas de usá-los
para articular o que a psicanálise pode nos indicar a respeito das
relações humanas. A função básica daqueles que cuidam de
crianças e adolescentes é proteger e inserir na cultura, duas ações
que indicam, por um lado, o desamparo fundamental do ser
humano e, por outro, a necessária submissão às regras culturais
para a consolidação da possibilidade de convivência social. A
função de transmissão, que toda família realiza, implica as crenças
e valores familiares ou, em termos conceituais, os ideais que
constituem cada sujeito do desejo e que se relacionam com as
questões inconscientes ligadas à identificação e à ambivalência
das relações afetivas. Contudo, implicam também o gozo velado no
amor dos pais. Assim, para se constituir como sujeitos do desejo
em seu caminho de crescimento e amadurecimento, os filhos
precisam colocar em questão tais ideais para decidir, de forma
singular, o que fazer com eles. Nesse sentido, o enredo do filme
trata de um pai que, por amor, precisou abrir espaço entre os
74
ideais para o desejo de seus filhos e como esses irmãos
encontraram nesse espaço uma possibilidade de assumir sua
diferença e se servir do desejo paterno.
*******
INTRODUÇÃO
Abordar o enredo de um filme ou seus personagens tendo
a psicanálise como guia implica um risco a ser evitado. É
importante entender que não se pode “psicanalisar” obras de arte
como romances, filmes e mesmo suas personagens. O que se
pretende quando se aproxima o enredo de um filme e a teoria
psicanalítica é fazer com que o material usado possa auxiliar nas
articulações teórico-clínicas da psicanálise.
Assim, a leitura que se apresenta a seguir é apenas mais
uma leitura, com uma ênfase específica, de uma obra de arte
cinematográfica que mobilizou o público e se tornou fonte de
interpretações variadas.O filme Capitão Fantástico, além de bem
produzido e filmado, possui um enredo que pode nos auxiliar a
tratar de alguns pontos a respeito da função da família e da função
paterna.
UMA SINOPSE
Capitão
Fantástico (Captain
Fantastic)
é
um
filme estadunidense de 2016, dirigido e escrito por Matt Ross e
75
estrelado por Viggo Mortensen6.O enredo do filme trata da
história de uma família cuidada, naquele momento, apenas pelo
pai. Depois de muitos anos isolada da convivência com a sociedade
ampla, essa família se vê confrontada com a necessidade de se
haver com regras e valores diferentes daqueles que cultivou em
seu isolamento.
Na história, Ben Cash, sua esposa Leslie e seus seis filhos
vivem num lugar afastado, no meio de uma floresta. Ben e Leslie
são ex-ativistas de esquerda que, desiludidos com o capitalismo e
o estilo de vida norte-americano, decidiram ensinar política,
ciência, filosofia e habilidades de sobrevivência a seus filhos,de
forma que eles pudessem pensar criticamente e serem
autossuficientes sem o uso de tecnologia. Na história, talvez como
um toque de ironia, o sobrenome da família é, curiosamente,
“Cash”.
Leslie, porém, é hospitalizada por transtorno bipolar e se
suicida depois de três meses. Ela desejava ser cremada e deixa
uma carta com esse desejo registrado, mas Ben descobre que o pai
de Leslie, Jack, planeja realizar um funeral e enterro tradicionais.
Eles discutem por telefone e Jack ameaça denunciar Ben se ele
comparecer ao funeral. Inicialmente, Ben decide não ir, mas,
percebendo a decepção dos filhos, muda de ideia e os leva a uma
viagem para fora do isolamento.
A família fica brevemente na casa de Harper, irmã de Ben.
Ela e o marido tentam convencê-lo de que seus filhos deveriam
frequentar a escola para receber uma educação convencional, mas
Ben consegue mostrar que seus filhos são mais instruídos que os
6
Sinopse adaptada de informações retiradas da Wikipedia. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Capit%C3%A3o_Fant%C3%A1stico. Acesso em: 10
ago. 2021.
76
filhos de Harper. Ben chega ao funeral de Leslie com seus filhos e
lê a carta que ela deixou indicando que sua vontade era que a
família a cremasse e jogasse as cinzas no vaso sanitário. Em
resposta, Jack remove Ben do funeral à força.
Os filhos de Ben começam a duvidar do pai e de suas
habilidades parentais. Seu filho Rellian, por exemplo, mais
insubmisso, acusa o pai de não tratar a saúde mental de Leslie e
indica que deseja morar com seus avós, que querem obter a
custódia dele. Seu filho Bodevan diz que seu pai não os instruiu
para o mundo real e mostra a ele cartas de aceitação de
faculdades para as quais a mãe o ajudou a se inscrever para
pleitear uma vaga. Quando a filha de Ben, Vespyr, tenta subir em
uma janela para "libertar" Rellian dos avós, ela cai do telhado e
evita por pouco um ferimento que poderia lhe custar a vida. Ben,
chocado e se sentindo culpado, permite que Jack fique com seus
filhos. Embora tenham se ligado aos avós, as crianças decidem
seguir Ben novamente quando ele se afasta.
As crianças decidem honrar o desejo de Leslie e convencem
o pai a ajudá-los, exumando seu cadáver, queimando-o em uma
pira feita por eles mesmos e jogando suas cinzas no vaso sanitário,
como era de sua vontade. Bodevan então deixa a família e viaja
para Namíbia enquanto os outros se instalam em uma fazenda. A
cena final mostra a família em volta da mesa da cozinha com o pai,
esperando um suposto ônibus escolar chegar.
OS IDEAIS FAMILIARES
Todo pai e mãe encarnam ideais que variam de acordo com
a cultura, a história e as próprias concepções e valores pessoais.
Os adultos de referência em uma família buscam transmitir,
77
intencionalmente ou não, os ideais que os formaram na história
que viveram com suas próprias famílias e com o grupo social ao
qual pertencem ou pertenceram - ou seja, com o qual se
identificam imaginária e simbolicamente. Transmitem, assim, a
resposta inconsciente ao desejo e ao gozo, relacionadas às
fantasias e aos caminhos possíveis de obter satisfação na vida.
Cada resposta leva a decisões sobre a busca da felicidade, as
renúncias pulsionais inescapáveis e as possibilidades de satisfação
entre o gozo aferido e a lei que o cerceia. As respostas de cada
sujeito que se constitui numa família são diferentes, podem incluir
aceitação, recusa, repetição e mudança. Como disse Lacan, cada
um construirá com isso seu mito individual (LACAN, 1952/2008).
A transmissão dos ideais acontece quando os filhos são
inseridos no registro do amor, quer dizer, quando os pais (ou
qualquer adulto que se coloque no lugar deles) oferece cuidado,
proteção e exige submissão. Utilizo aqui a noção de “ideal” em sua
relação com o conceito de Ideal do Eu, elaborado por Freud, e cujas
referências principais estão no texto sobre o Narcisismo (FREUD,
1914/1980) e no texto sobre o Ego, o Id e o Superego (ou Eu, Isso
e Supereu) (FREUD, 1923/1980).
O Ideal do Eu deriva das identificações da criança com os
ideais que constituíram seus pais e formam um grupo de
identificações especiais que indicam ao Eu as imagens e
significantes que orientam o sujeito nas suas relações amorosas e
na busca de satisfação. Segundo Freud, o Ideal do Eu é herdeiro do
complexo de Édipo, pois, tendo de renunciar a seu desejo
incestuoso em nome da impossibilidade de satisfação (interdição)
e do amor (que, ambivalente, é dirigido a ambos os pais), a criança
se identifica com os ideais que indicam como ela “deve ser” para
ter a possibilidade de resgatar parte da satisfação pulsional
78
renunciada (ou, o que é o mesmo, perdida). No final do processo
edípico, ainda segundo Freud, o sujeito internaliza a lei que o
orientará sobre como agir no mundo e na relação com os outros, a
fim de resgatar o amor e obter alguma satisfação. Evidentemente,
esta identificação é inconsciente. Nesse processo, cumprir ou
buscar cumprir os ideais pode ser fonte de satisfação. Isso é o que
constitui e mantém o laço social civilizatório.
Lacan acrescenta nessa elaboração freudiana o fato de que
o Ideal do Eu, apesar de fundamental, é parte do processo de
alienação do sujeito do desejo, pois do Ideal fazem parte imagens
e significantes impostos pelo Outro, aos quais o sujeito se submete
a fim de tentar resgatar a satisfação pulsional perdida ou, em
termos lacanianos, o gozo perdido. Em um processo de análise, o
sujeito coloca em questão estes ideais para decidir o que fazer com
eles.
Acrescente-se a isso o fato de que essa lei interna aparece
como uma voz que a todo o tempo compara o Eu com o seu Ideal,
comparação que sempre deixa o Eu inferiorizado, afinal, não há
como atingir o Ideal. Essa voz desencarnada, como destacou Lacan,
é o Supereu (1962-1963/2005). Lacan acrescenta que a voz
superegóica é insaciável e comporta também um gozo. A cada
renúncia do sujeito ou a cada excesso cometido em nome de
alguma satisfação, o Supereu exige sempre mais.
Mais uma observação importante é a de que os ideais que
constituem o Ideal do Eu também fazem parte da cultura e são
capazes de reunir as pessoas em torno de determinadas ações.
Assim, os ideais não são necessariamente inconscientes,
encontram-se, como a fantasia, no terreno intermediário entre o
consciente e o inconsciente. Contudo, sua relação com as questões
do desejo e do gozo são claramente inconscientes. Apenas para
79
lembrar, no texto sobre a psicologia das massas, Freud
(1921/1980) argumentará que o líder consegue mobilizar as
massas porque cada sujeito que foi mobilizado colocou o líder no
lugar de seu Ideal do Eu e, identificando-se com ele verticalmente,
identificou-se também com os outros liderados horizontalmente.
PAI, FILHOS, IDEAIS E O DESEJO
Retomando o enredo do filme, podemos entender que pai e
mãe daquela família tentaram transmitir seus ideais aos filhos por
meio da construção de um mundo separado dos valores da
sociedade norte-americana para colocar em questão o sistema e os
valores de vida daquela sociedade. Pai e mãe, como quase toda
família, apostaram numa família em que os filhos absorvessem os
mesmos valores deles. Críticos de uma vida pautada na alienação
ao trabalho e aos objetos de consumo, às relações fúteis, ao
sistema escolar pedante e pouco prazeroso, à dependência de
alimentos industrializados, à hipocrisia da sexualidade reprimida
e exaltada, mas desvalorizada como meio para o amor, eles
tentaram criar um mundo próprio.
O grupo viveu relativamente bem, permanecendo isolado
sob a tutela de pais que procuraram transmitir valores
relacionados à importância das regras, do conhecimento, da
reflexão, da ajuda mútua e da argumentação. Uma autoridade que
se impunha pelo lugar de referência que ocupava (como pai e mãe)
e pela palavra que aceitava argumentações. Na verdade, aceitava
argumentações até certo ponto. Funcionou durante algum tempo,
mas algo houve que aquela mãe talvez não tenha suportado tanto.
Ela adoeceu. Há, neste ponto, outras questões e interpretações que
não vou explorar aqui.
80
O pai tentou manter-se no caminho de seu ideal e cuidar
dos filhos da mesma forma, preservando-os da sociedade que ele
condenava. Contudo, com a morte da mãe, o grupo familiar se vê
às voltas com a necessidade (e o desejo, por que não?) de ir ao
encontro dela. À medida que os filhos entram em contato com
outras pessoas e são obrigados e conviver com elas, outras
questões surgem, outros desejos, rebeldias, impasses.
Enquanto permaneceram referenciados apenas pelos pais
e seus ideais, representados no filme, principalmente pelo pai, as
diferenças entre os filhos, relacionadas à ambivalência do amor
fraternal - rivalidade e cooperação - eram suportadas ou toleradas.
Seguindo um pai que sabia de tudo ou sobre tudo, o mundo
daquela rede familiar era restrito, porém não isento das questões
do desejo.
E, como sempre, havia o segredo. Mesmo pautado pelo ideal
da verdade e da transparência, sempre há o segredo familiar, o
segredo do desejo e do gozo. Um dos meninos nem sempre
concordava com o pai, questionava sua vida de poucos recursos
(em comparação com a dos outros meninos que conhecera). O
filho mais velho mantinha o sonho de entrar em uma universidade,
cuja referência era a mãe, pois isso se contrapunha à crítica que o
pai fazia à sociedade que mantém a universidade. Uma das
meninas nem sempre acolhia de bom grado as intervenções
paternas sobre sua forma de se expressar. Que tantos outros
detalhes e questões poderiam existir naqueles laços afetivos?
Isolar-se do mundo foi a saída para não contaminar seus
filhos com os tantos vieses da vida contemporânea que induzem a
entender que a busca da felicidade se relaciona com os bens de
consumo, com a futilidade do cotidiano e com a efemeridade e
superficialidade das relações humanas modernas. Isolar-se serviu
81
para aqueles pais questionarem o sistema social e econômico que
os empurravam para a vida que eles rejeitavam. Sair da sociedade
compartilhada, arriscar-se em cuidar de crianças com o
conhecimento necessário à manutenção de sua sobrevivência
física e mental, ensinar a postura que permite a reflexão para além
da mera repetição vazia do cotidiano, essa foi a opção do casal.
Isso lembra a realização do sonho hippie da sociedade
alternativa e registra um ponto no roteiro que beira ao absurdo: o
pai e a mãe tinham conhecimentos científicos e filosóficos tão
amplos quanto aqueles relacionados a técnicas de luta e
sobrevivência. Porém, de certa maneira, é este ponto que contribui
para formar a imagem desse “pai todo saber” que nos interessa
como ponto de reflexão. Para aquele pai, transmitir o saber que ele
idealiza era seu ato de amor pelos filhos, para fazer deles pessoas
melhores que os outros. Há imagem mais contemporânea de um
pai?
Contudo, este amor entra em questão quando os filhos
conhecem outra realidade, e os segredos e as diferenças aparecem.
Isso que seria amor e cuidado se revela também como imposição.
A singularidade do desejo e do desejo sexual implica que os filhos
se enderecem a outras relações cujos valores e ideais podem ser
muito diferentes daqueles que o pai procurou transmitir. No
enredo podemos ver as muitas faces do conflito inescapável que
cada sujeito do desejo enfrenta no caminhar para a adolescência e
juventude. Este caminho evidencia aquilo que se esconde nas
relações amorosas, o gozo, este que precisa encontrar seus pontos
possíveis de enlaçamento nas relações humanas por meio do
amor. Como diz Lacan, o amor é que faz o gozo condescender ao
desejo (1972-1973/1985).
82
Porém, algo sempre resta não traduzido, não articulado
pelo significante. No filme, o amor do pai mostra seu lado de gozo
por meio dos ideais, mostra a existência de algo fixado que insiste
em se repetir. Pelo lado dos filhos, quando cada um deles evidencia
o desejo em sua singularidade, torna-se necessário resistir àquilo
que vem do pai para, assim, se fazer sujeito do desejo.
O ponto crucial nesse enredo que engendra o inescapável
conflito acontece quando o pai, insistindo nos seus ideais e
demandando que os filhos também os sigam, coloca em risco a vida
de uma das filhas, que termina por se acidentar e quebrar um dos
braços. Nesse momento da história, o pai recua e reconhece que
havia algo de sua conduta que poderia prejudicar os filhos. Algo
que coloca em jogo a perda do objeto de amor. É então que ele
decide deixá-los com os avós maternos, que possuem uma
condição social e econômica muito boa, e partir. É um pai que
exerce o amor renunciando ao gozo (dos ideais) para que o desejo
(de cada um, inclusive dele próprio) possa ser reconhecido na
dimensão própria de um desejo.
Pois é justamente neste ato, em que ele se mostra faltoso,
em que, por amor, ele é capaz de renunciar a seu gozo, é que se
torna claro que nesse amor havia um desejo de pai. É nesse ato que
ele reconquista os filhos, de certa forma, inesperadamente.
Quando renuncia ao ideal e ao gozo que o acompanha – e
poderíamos dizer, usando o vocabulário freudiano, aceita a
castração, o limite daquilo que ele próprio escolheu para
escamotear a falta - aí ele se torna o pai do amor. O pai para quem
os filhos não são apenas objetos de realização de um ideal, mas
objetos do desejo, um desejo não anônimo.
Ao invés de saber sobre tudo, era importante, sobretudo,
não saber. O não saber indica o espaço vazio do desejo, este enigma
83
que se esconde na demanda e que precisa ser interpretado. Os
filhos retomam a vida regulada pelos ideais paternos, mas não
totalmente. Permanece importante se despedir da mãe, realizando
o desejo dela a respeito de um sentido para sua morte, e torna-se
possível seguir o pai até certo ponto, pois não é mais preciso que
seja sempre nem o tempo todo.
Para finalizar, penso que podemos ainda entender o roteiro
do filme, nessa leitura psicanalítica, em duas observações. A
primeira é a de que o conflito enfrentado pela família reflete o
conflito típico, no sentido estrutural, do caminho para a autonomia
em qualquer relação familiar, mesmo considerando as variadas
condições culturais e socioeconômicas que podem existir. O filme
reflete uma determinada cultura e seus valores que, de forma
inteligente, são colocados em questão. Mas é preciso lembrar que
há muitos contextos e circunstâncias sociais concretas que
modificam e restringem muito as possibilidades de afirmação do
desejo e da autonomia em muitos lugares e situações. A estrutura
pode ser a mesma, mas a sociedade, a cultura, o tempo e a
economia interferem na forma como a vivência familiar acontece.
A segunda observação é que, em termos da sociedade
ocidentalizada, o roteiro também indica a mudança no lugar da
função paterna que, ao incluir o amor, se confronta com a
necessidade de renunciar ao poder que a sociedade tradicional lhe
atribuía e se mostrar em falta. Não se trata de uma falta que torna
seu lugar de referência dispensável, mas a falta que pode acolher
o desejo.
O Nome-do-pai é o significante fundamental introduzido
pela função paterna que regula a relação entre desejo e gozo, mas,
como Lacan afirma, “é preciso ter o Nome-do-pai, mas é preciso
também que saibamos servir-nos dele. É disso que o destino e o
84
resultado de toda a história podem depender muito” (LACAN,
1957-1958/1999 p. 163). Não se trata apenas de receber o que é
veiculado na transmissão familiar, mas de decidir o que fazer com
isso.
REFERÊNCIAS
CAPITÃO Fantástico. Direção: Matt Ross. Produção: Monica
Levinson, Jamie Patricof
Shivani Rawat e Lynette Howell Taylor. Estados Unidos da
América: Bleecker Street, 2016. 1 DVD (118 min).
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud: Sobre o narcisismo:
uma introdução (1914). Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 14. p. 89121.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud: Psicologia de
Grupo e Análise do Ego (1921). Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 18
p. 91-179.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud: O Ego e o Id
(1923). Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 19 p. 23-83.
LACAN, Jacques. O Mito Individual do Neurótico ou Poesia e
Verdade na Neurose (1952). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
p. 7-25.
85
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 5 - As formações do
inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 10 - A angústia (19621963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 20 – Mais, ainda (19721973). 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.