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ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) As linguagens do traduzir e a representação da alteridade em autobiografias de ex-escravos afro-americanos: os casos de Harriet Jacobs (1813-1897) e de Frederick Douglass (1818-1895) / The languages of translation and the representation of alterity in autobiographies of former African-American slaves: the cases of Harriet Jacobs (1813-1897) and Frederick Douglass (1818-1895) Lauro Maia Amorim* Maria Angélica Deângeli** RESUMO A tradução tem sido cada vez mais compreendida na contemporaneidade como um gesto interpretativo entre línguas e culturas, concretizando-se segundo as condições históricas e ideológicas de seu tempo. O texto traduzido não é um reflexo de seu original, mas uma “refração” que pode revelar crenças, valores e normas. Estaríamos vivendo, nas últimas décadas, no Brasil, um processo de maior conscientização acerca da negritude, com implicações para o modo com que o tradutor traduz o Outro. É nesse contexto que este trabalho discute duas obras autobiográficas traduzidas: a obra Incidentes da vida de uma escrava contados por ela mesma, de Harriet Jacobs (1813-1897), traduzida por Waltensir Dutra e publicada em 1988 pela editora Campus, e a obra A narrativa da vida de Frederick Douglass: um escravo americano, de Frederick Douglass (1818-1895), traduzida por Leonardo Vidal e publicada em 2016 pelo website da Amazon. As narrativas autobiográficas de (ex-)escravos, publicadas no século XIX, são testemunhos da era da escravidão nos Estados Unidos. No entanto, as traduções, no Brasil, foram publicadas em momentos históricos diferentes e segundo projetos editoriais distintos: uma tradução, a de Dutra, é baseada em uma versão comentada em notas e de cunho historiográfico, enquanto a outra tradução, a de Vidal, é uma publicação independente de iniciativa do tradutor e com objetivos educacionais, sem vínculos historiográficos. Este trabalho busca discutir os caminhos trilhados pelos tradutores, quanto ao emprego da linguagem tradutória, e as implicações de suas escolhas para a reconstrução do objeto autobiográfico. PALAVRAS-CHAVE: Estudos da Tradução; Autobiografias; Narrativas de escravos ABSTRACT Translation has been increasingly understood in contemporary times as an interpretive gesture between languages and cultures, taking place within the historical and ideological conditions of its time. The translated text is not a reflection of the source-text, but a “refraction” that may reveal beliefs, values and norms. We have been living, in the last few decades in Brazil, a process of greater awareness about blackness, which may have a bear on the way translators render the Other. It is in such framework that this paper discusses two translated slave narratives: Incidentes da vida de uma escrava contados por ela mesma, by Harriet Jacobs (1813-1897), translated by Waltensir Dutra and published in 1988 by Campus publishing company, and A narrativa da vida de Frederick Douglass: um escravo americano, by Frederick Douglass (1818-1895), translated by Leonardo Vidal and made available online in 2016 by Amazon. Nineteenth century autobiographical narratives of former slaves are testimonies to the slavery era in the United States. However, these translations were published in different historical moments in Brazil and in line with distinct editorial projects: the translation by Dutra was derived from an annotated edition with historical notes based on real documents, whereas the other translation, by Vidal, is an Professor Assistente Doutor, Universidade Estadual Paulista – UNESP, São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil, lauro.maia@unesp.br ** Professora Assistente Doutora, Universidade Estadual Paulista – UNESP, São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil, angélica.deangeli@unesp.br * 110 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) independent publication with educational goals, without any historiographic accounts. This paper seeks to discuss translators’ options, regarding their use of language in translation, and the implications of their choices for the reconstruction of the autobiographical object. KEYWORDS: Translation Studies; Autobiographies; Slave narratives. 1 Introdução Neste trabalho, discutiremos o papel da tradução e de suas linguagens na recriação de duas autobiografias de ex-escravos. Partimos do pressuposto de que a tradução jamais é um mero reflexo do texto de partida. Como aponta Lefevere (2007), toda tradução é uma reescrita com refrações, em graus diversos, sejam elas de natureza linguística, cultural ou ideológica. Traduzir é dar voz ao outro, mas essa voz, na tradução, não é necessariamente, ou rigorosamente, a “mesma”: o outro estrangeiro se submete ao espaço doméstico da língua e da cultura receptoras, ao olhar particular do(a) tradutor(a), informado, portanto, por uma certa visão de mundo, atravessada pela ideologia, pela história que demarca o tempo de uma publicação e, também, pelo inconsciente do profissional que traduz (cf. FROTA, 2000). Por isso, a própria noção de equivalência em tradução (cf. RODRIGUES, 2000) torna-se produto de uma ficção necessária, posto que é quase sempre almejada, mas não totalmente alcançada. O fato da equivalência, como plena simetria, ser inalcançável, não impede que a tradução seja um produto cultural de imensa importância e que de fato se realiza: é pela tradução que se conhece o outro estrangeiro, mas, justamente porque ela não é uma lente absolutamente transparente, é que a tradução também revela algo de si mesma (e sobre nós mesmos como tradutores, e de nossos projetos tradutórios), de parte de nossa vida inaudita, mesmo quando contamos sobre a vida do Outro (do texto de partida). Nesse sentido, toda tradução é um recontar sobre o Outro (e, indiretamente, sobre si mesma), numa linguagem híbrida que se vale da fala do(a) tradutor(a)/da tradução e da fala do(a) autor(a) estrangeiro (cf. HERMANS, 1998). Toda tradução é bio-gráfica porque grafa a vida que dá sentido aos objetos de linguagem: seja a vida da obra que se traduz, porque ela tem uma organicidade na sua sobrevida em tradução (cf. BENJAMIN, 2008), seja a vida (inaudita e inconsciente) do tradutor em sua assinatura. Se traduzir é sempre biografar, traduzir autobiografias propriamente ditas é multiplicar as camadas que se 111 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) acumulam na construção de uma verdade que a tradução possibilita performar acerca do autobiografado. É o que discutiremos a partir dos exemplos estudados neste trabalho. 2 Biografias de si e a tradução de verdades: Harriet Jacobs e Frederick Douglass Embora pessoas anônimas possam escrever autobiografias e publicá-las de forma independente (cf. GALVÃO et al, 2017), geralmente (auto)biografias publicadas por editoras com maior estatura comercial são associadas a autores(as) com algum grau de visibilidade. É mais provável que encontremos, nas livrarias, (auto)biografias de pessoas que disponham de certa visibilidade, mesmo que restrita a certas comunidades.1 A pergunta básica que sustenta, pelo menos nos dias atuais, a presunção de visibilidade, na grande maioria dos livros abertamente publicados como biografias ou autobiografias, é: por que alguém se interessaria em conhecer a vida de alguém (que poucos conhecem)? O que essa vida teria de especial e diferente para ser contada e lida? A relação entre o/a (auto)biografado/a e a verdade sobre o que é contado perpassa por um acordo fundamentado na ideia de quem conta espera que quem leia acredite no que é dito, e que quem lê espera que o que é contado seja verdadeiro. Na maioria dos casos, ninguém, de fato, questiona esse acordo: para quem lê, a verdade simplesmente é tomada de boa-fé. Obviamente, quaisquer obras autobiográficas, inclusive aquelas que assim se intitulam, são produtos que se assentam no oferecimento de um conteúdo supostamente não fictício — mas mesmo a não ficção é produzida com a matéria prima da linguagem e por um processo de subjetivação atravessados pelo distanciamento temporal. Contar uma história, que se supõe verdadeira, é produzi-la pelo desvio de um ponto de vista do sujeito, uma vez que este não é exatamente o “mesmo” que vivenciou os eventos do passado, narrados agora por um desvio temporal e revividos pela memória e, muitas vezes, transpostos para a estrutura de uma narrativa cujos moldes não são o do real 1 Por exemplo, é possível que se lance, no mercado editorial, uma biografia de um/uma instrumentista/compositor(a) que não seja necessariamente conhecido/a pelo público em geral, mas que desfrute de visibilidade entre os fãs da banda em que ele ou ela têm atuado. É o caso, por exemplo, da biografia de Rodrigo Santos, ex-baixista da banda de rock Barão Vermelho, intitulada Cara a cara: uma história de música e superação, pela editora Neutra. O músico é reconhecido especialmente entre os seguidores e fãs do rock brasileiro desde os anos de 1990. 112 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) vivido, mas o do contar que se ficcionaliza para atender as convenções da escrita e do mercado editorial. Isso torna a verdade da não-ficção das autobiografias sempre ficcionalizada pela linguagem (editorial), pelo desvio temporal e pela subjetivação, o que não quer dizer que os eventos narrados não sejam “verdadeiros”. O que não se deve supor é a existência de uma relação direta, inequívoca, e não mediada (pela linguagem, pela subjetivação e pelo tempo) entre quem conta e o que é contado (e como isso é contado). A percepção dessa mediação, no entanto, é frequentemente suspendida pela noção de pacto autobiográfico entre o/a autor/a e o/a leitor/a. Como ressalta Klinger (2012): Na definição de autobiografia de Philippe Lejeune (1996), o que diferencia a ficção da autobiografia não é a relação que existe entre os acontecimentos da vida e sua transcrição no texto, mas o pacto implícito ou explícito que o autor estabelece com o leitor, através de vários indicadores presentes na publicação do texto, que determina seu modo de leitura. Assim, a consideração de um texto como autobiografia ou ficção é independente do seu grau de elaboração estilística: ela depende de que o pacto estabelecido seja “ficcional” ou “referencial” (KLINGER, 2012, p.10). Embora esse pacto autobiográfico tenha sido muito bem delineado por Lejeune (1996), será ele mesmo que vai reconhecer a duplicidade de que caracteriza o texto autobiográfico, por pertencer a dois sistemas: O que chamo autobiografia pode pertencer a dois sistemas diferentes: um sistema referencial “real” (em que o compromisso autobiográfico, mesmo passando pelo livro e pela escrita, tem valor de ato) e um sistema literário, no qual a escrita não tem pretensões à transparência, mas pode perfeitamente imitar, mobilizar as crenças do primeiro sistema. Muitos fenômenos de ambiguidade ou de mal-entendido vem dessa posição instável. (LEJEUNE, 2008, p.57). No entanto, há obras em que esse pacto é posto em jogo porque os limites entre o autobiográfico e o ficcional estão mais porosos, sendo que esse atributo é um objetivo proposto pelos próprios autores desses trabalhos.2 Esse, porém, não é exatamente o caso das autobiografias analisadas neste trabalho: as narrativas de ex-escravos. 2 O filósofo Jacques Derrida (1984) questiona os contornos que visam separar textos autobiográficos de não autobiográficos, sobretudo no campo da filosofia e da literatura. Ao abalar os limites entre ficção e realidade, Derrida traz para a cena as complexas imbricações entre literatura e autobiografia, confissão e testemunho, verdade e não-verdade, veracidade e mentira. A problemática do biográfico torna-se ainda 113 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) As duas clássicas autobiografias de ex-escravos, Narrative of the life of Frederick Douglass, an American slave: written by himself, de Frederick Douglass (1818-1895), e Incidents in the life of a slave girl. Written by herself, de Harriet Jacobs (1813-1897), foram publicadas respectivamente, em 1845 e 1861, durante o período escravagista nos Estados Unidos.3 Frederick Douglass fugiu de seu senhor, para Nova York, em 1838, tendo seus amigos abolicionistas comprado sua liberdade em 1846. Harriet Jacobs fugiu para as cidades do Norte em 1842, e sua liberdade foi comprada em 1852, por sua empregadora. Douglass teve sua primeira narrativa autobiográfica publicada ainda sob a condição de escravo fugitivo (1845).4 Harriet Jacobs terminou o manuscrito de Incidents... em 1858, tendo publicado a obra, em 1861, com o pseudônimo de Linda Brent. A folha de rosto da primeira edição dessa autobiografia não continha o nome da autora, mas apenas o da revisora, a conhecida abolicionista Lydia Maria Child. No prefácio, Linda Brent afirma ter ocultado os nomes verdadeiros das personagens, por ter julgado ser isso um “ato de bondade e consideração para com os outros [...]” (JACOBS, 1988, p.23). A despeito disso, Harriet Jacobs desejava que sua narrativa fosse compreendida como verdadeira e que pudesse contribuir para a crítica contundente à instituição escravagista. À época de sua primeira edição, Jacobs era praticamente desconhecida: a verdade exposta em sua autobiografia não era acerca da vida de uma celebridade, mas sobre a crueldade de pessoas e das próprias instituições governamentais na manutenção de um sistema econômico e social desumano. Esse também era o intuito da autobiografia de Douglass: ser a representação verdadeira de eventos que expusessem a crueldade e a desfaçatez de brancos que se julgavam, perante a anuência das instituições americanas, proprietários sanguinários de outros seres humanos. As duas autobiografias, bem como as inúmeras outras de ex-escravos, pressupunham não a “celebridade” de seus autores: mas o que os fatos descritos nelas apontavam de aterrorizante e de imoral na consciência da vida norte-americana. mais complexa, quando ao bio- e ao -grapho junta-se um autos-, um eu como outro, que interpela um heteros-, acenando para a alteridade do mesmo (Cf. DERRIDA, 1984, p. 39). 3 A abolição da escravidão nos Estados Unidos foi oficializada, de maneira definitiva, apenas com a instituição da 13ª. Emenda à Constituição Norte-Americana, publicada em 18 de dezembro de 1865. 4 Douglass publicou mais duas narrativas autobiográficas: My bondage and my freedom (1855) e The life and times of Frederick Douglass (1881). 114 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) Se o pacto autobiográfico, e o efeito de verdade que dele deriva, é raramente questionado nos dias atuais (a menos que uma obra seja a proposição de uma relação porosa e transbordante entre verdade e ficção), no século XIX, nos Estados Unidos, a proposição de uma narrativa de um(a) ex-escravo(a) era vista com incredulidade, ainda que fosse, paradoxalmente, em muitos casos, a tentativa concreta de se provar, na escrita, a verdade dos fatos. O caso de Frederick Douglass é exemplar disso: após a sua fuga em 1838, Douglass começou a frequentar sociedades abolicionistas no Norte e passou a ser convidado a falar de suas experiências sob o cativeiro nas reuniões. Quando publicou sua primeira autobiografia, em 1845, ele já vinha proferindo palestras que chamavam a atenção do público, por sua eloquente retórica, o que levava muitos, do Norte, a duvidarem sobre se ele teria sido mesmo um escravo. A ideia de publicar uma narrativa autobiográfica, com o apoio de líderes abolicionistas brancos, era uma forma de comprovar as suas verdades do púlpito, especialmente porque o livro traria os nomes de senhores de escravos e demais pessoas do seu círculo. Um dos aspectos que colocavam em cheque a veracidade dos fatos narrados oralmente nos encontros abolicionistas era o estilo verbal sofisticado de Douglass. Segundo Matlack (1979, p. 16): O hábil desempenho de Douglass na tribuna, em suas viagens, começou a levantar dúvidas. Ele falava bem demais. O estilo sofisticado e o tom erudito que ele desenvolveu tão rapidamente pareciam fora do comum. Collins o aconselhou: “As pessoas não vão acreditar que você já foi um escravo, Frederick, se continuar assim... É melhor trazer um pouco do discurso de plantation do que ficar sem ele”. Como ele não falava, não parecia e nem agia como um escravo (aos olhos do público do Norte), Douglass era denunciado como impostor.5 Foi assim que Douglass chegou à conclusão de que teria de escrever sua própria narrativa, dando “nome aos bois”: Em pouco menos de quatro anos, portanto, depois de me tornar um palestrante público, fui induzido a escrever os fatos principais “The skill of Douglass’ platform performance on tour began to raise doubts. He spoke too well. The sophisticated style and learned tone which he rapidly developed seemed out of character. Collins advised him, "People won’t believe you ever were a slave, Frederick, if you keep on this way.... Better have a little of the plantation speech than not." Since he did not talk, look, or act like a slave (in the eyes of Northern audiences), Douglass was denounced as an imposter.” 5 115 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) relacionados a minha experiência na escravidão, dando os nomes de pessoas, lugares e datas, colocando-os, assim, à disposição de quem quer que tivesse o poder de duvidar, para asseverar a verdade ou a falsidade de minha história. (apud MATLACK, 1979, p.16). 6 Paradoxalmente, porém, o problema é que escrever a história de sua vida como escravo, sem qualquer pseudônimo, era colocar em risco sua anonimidade, deixando-se saber onde se encontrava, pondo também em risco as pessoas que o ajudaram a escapar.7 Harriet Jacobs buscou evitar esse risco publicando sua narrativa com pseudônimo para si e para todas as pessoas da história. Mas, diferentemente da narrativa de Douglass, a autobiografia de Jacobs atravessou o fim do século XIX, e praticamente quase todo o século XX na condição de “ficção”, já que importantes críticos e historiadores de narrativas de ex-escravos consideravam-na de baixíssima credibilidade: para começar, suspeitava-se que quem havia escrito a obra era a abolicionista Lydia Maria Child, já conhecida na época por suas obras ficcionais acerca da escravidão, embora se apresentasse apenas como revisora da obra. Outros fatores também tiveram seu peso para o descrédito da obra como autobiografia pelos estudiosos de narrativas de ex-escravos: Poderia uma escrava realmente ter sido capaz de confundir seu senhor, usurpando o seu assim chamado direito ao corpo dela? Em outras palavras, poderia uma escrava optar por ter filhos com um homem [branco] por quem realmente guardava seus sentimentos? Poderia uma escrava esconder-se, durante [oito] anos, em um espaço em que só se podia rastejar, a fim de enganar seu senhor levando-o a pensar que ela fugira para o Norte? E como inúmeros críticos observaram, uma das questões (racistas) mais citadas é: como poderia uma escrava ter a capacidade cultural de manipular tropos sentimentais, para jogar com as sensibilidades do público, por assim dizer, com tamanha habilidade? (SMITH, 2007, p.191)8 “In a little less than four years, therefore, after becoming a public lecturer, I was induced to write out the leading facts connected with my experience in slavery, giving the names of persons, places, and dates, thus putting it in the power of any who doubted, to ascertain the truth or falsehood of my story.” 7 É por esse motivo que a narrativa acerca de sua fuga propriamente dita não foi publicada na primeira edição de Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave, mas apenas posteriormente, em 1881, sob o título “My escape from slavery”. 8 “Could a slave woman truly have been able to confound her master by usurping his so-called right to her body? In other words, could a slave woman choose to have children with a man she actually had feelings for? Could a slave hide, for years, in what amounted to a crawl space, in order to fool her master into thinking she’d fled north? And as numerous critics have noted, one of the oft-cited (racist) questions was: 6 116 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) No entanto, em 1987, a editora Harvard University Press publicou uma edição histórica da obra Incidents in the Life of a Slave Girl, organizada e apresentada pela pesquisadora feminista Jean Fagan Yellin: essa edição é fruto de vários anos de pesquisa em busca de documentos, colunas de jornais, correspondências e outros instrumentos comprobatórios que puderam, finalmente, autenticar a história narrada por Harriet Jacobs. Embora Yellin esclareça algumas imprecisões menores entre fato narrado e fato ocorrido em certos momentos da narrativa, a documentação, referendada em inúmeras notas e até fotografias de época, comprovam a existência das pessoas citadas, sob pseudônimo, e os eventos narrados pela autora. O livro revela o nome verdadeiro das personagens citadas, além de uma planta da casa onde Jacobs se refugiara, apontando o exato lugar, de espaço exíguo, em um sótão, onde permanecera por tantos anos, antes de fugir para o Norte em definitivo. Esses exemplos mostram que a verdade acerca dos eventos retratados nas narrativas necessitava de uma autenticação: no caso de Douglass, a autobiografia escrita confirmava, com nomes e lugares, a sua “autobiografia oral” das tribunas abolicionistas. No caso de Jacobs, seu livro permaneceu “inverídico”, ao menos para os especialistas, até 1987, com a publicação de Yellin. Essa autenticação tinha outra dimensão também: ao escreverem uma narrativa autobiográfica, ex-escravos demonstravam que não sofriam de qualquer deficiência mental, e que também não eram animais. O seu processo de letramento marginalizado, especialmente em um contexto em que o ensino formal lhes era interdito, era uma forma de apropriação da própria consciência: Nesse cenário, as palavras combatem o sistema ideológico condescendente com a escravidão, porque a escrita desafia a noção de que os escravos são subumanos, animais ou bens móveis a serem negociados. Escrever é passar de objeto a sujeito; como afirma Houston Baker, o narrador escravo tinha “de se apoderar da palavra. O seu ser tinha de irromper do nada. Somente ao captar a palavra, ele/ela poderia se engajar nos atos de fala que acabariam definindo sua individualidade”. (CUTTER, 1996, p. 210). 9 could a slave have the cultural ability to manipulate sentimental tropes, to play upon her audience’s sensibilities, as it were, with such skill?” 9 “In this scenario, words fight the ideological system that condoned slavery, because writing challenges the notion that slaves are sub-human, animals or chattel to be traded. To write is to move from object to subject; as Houston Baker puts it, the slave narrator had "to seize the word. His being had to erupt from 117 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) O processo de afirmação de sua identidade como seres pensantes os colocava, com a narrativa, diante de dois possíveis públicos: um que, de imediato, era fundamentalmente branco, do Norte, e aparentemente simpático à causa abolicionista, e outro que, mais cedo ou mais tarde, teria acesso ao livro e que representava a população sulista e defensora da escravidão. Poucos seriam os negros que teriam acesso à leitura desses livros. Em grande medida, eram obras escritas com o propósito de alcançar, primordialmente, o público de leitores brancos que não conheciam, de perto, os fatos concretos da escravidão, e que pudessem se indignar diante das crueldades relatadas, angariando, assim, novos defensores para a abolição da escravatura. O fim da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, e no Brasil, em 1888, não modificou, de fato, a exclusão estruturante que manteve e ainda mantém a maioria dos afrodescendentes à margem da plena cidadania. Se, por um lado, o objetivo maior das narrativas autobiográficas de escravos e ex-escravos era o de contribuir, de forma indireta, para a demolição do sistema escravocrata, por outro, com o fim da abolição nos Estados Unidos, esse objetivo se esvaziou para dar lugar à reafirmação de uma memória coletiva negra que, ao longo do século XX, passaria por percalços dolorosos, como a sua sobrevivência diante da institucionalização da segregação nos estados sulinos, e por vitórias importantes, como a do Movimento dos Direitos Civis, nos anos de 1960, que levaria à desestruturação da segregação institucionalizada. As narrativas de escravos e ex-escravos tornaram-se, assim, esteios importantes não só para a consolidação da literatura afro-americana no século XX, mas, sobretudo, para o fortalecimento das identidades negras, de seus anseios e de suas lutas por dignidade, e pela justa inclusão social, devidamente amparados pela sobrevivência de uma memória dolorosa inapagável. As traduções das autobiografias aqui comentadas, tornaram possível, já em fins do século XX, e, posteriormente, em princípios do século XXI, a criação de novos públicos leitores, em contextos diferentes, e que nos revelam o importante papel dos tradutores envolvidos na difusão de saberes subalternos da escravidão estrangeira, em solos não menos ensanguentados por uma história escravocrata nacional. nothingness. Only by grasping the word could he engage in the speech acts that would ultimately define his selfhood" (The Journey Back 31).” 118 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) 3 As linguagens da tradução e seus efeitos para o objeto autobiográfico As duas traduções analisadas nesta pesquisa são: Incidentes da vida de uma escrava, contadas por ela mesma, de Harrriet Jacobs, traduzida por Waltensir Dutra e publicada pela editora Campus em 1988; e a Narrativa da vida de Frederick Douglass: um escravo americano. Escrita por ele mesmo, de Frederick Douglass, traduzida por Leonardo Poglia Vidal, publicada pelo sistema de distribuição de livros digitais Createspace Independent Publishing Platform, e disponibilizada comercialmente pelo site da livraria Amazon desde 2016. As traduções envolvem contextualizações novas. Em primeiro lugar, há a diferença linguística/cultural que toda tradução acarreta e que se torna ainda maior em vista de uma dimensão temporal considerável que separa textos-fontes de textos traduzidos, com uma diferença de 127 anos entre Incidents..., de 1861, e a tradução de Waltensir Dutra, de 1988, e de 168 anos entre Narrative of the Life..., de 1848, e a tradução de Leonardo Vidal, de 2016. Consequência disso, obviamente, é que a escravidão, tal como praticada oficialmente no século XIX, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, deixou de existir:10 o intento abolicionista que serviu de fomento às duas autobiografias, com foco em públicos específicos, passa a dar lugar a outras motivações no que concerne às traduções. A tradução de Waltensir Dutra foi publicada no ano do centenário da abolição da escravatura brasileira, em 1988. Embora não haja, nos paratextos do livro, qualquer menção a isso, subentende-se que o livro vinha agregar, ao contexto do centenário, um papel importante de tornar visível a problemática da escravidão. Outro fator importante que se relaciona ao contexto dessa tradução é o fato de que, na década de 1980, comparativamente aos anos 2000 (e, mais especificamente, à presente década de 2010), não havia o amplo encorajamento à consciência de identidade negra, como vemos atualmente, com inúmeras manifestações e atividades culturais, artísticas e acadêmicas em torno da negritude. Era uma época em que não se podia contar com as tecnologias 10 Certamente outras formas modernas de escravidão, especialmente no Brasil, continuam a existir à margem da lei. 119 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) de divulgação e de relacionamento nas redes sociais da internet. Além disso, o sentimento público de pertencimento, e o espaço discursivo de afirmação de identidade são características acentuadas de nossa década atual. Jamais se viu tanta visibilidade em torno do discurso de afirmação da negritude e de discursos contra o racismo. É nesse contexto que a tradução de Leonardo Vidal, da autobiografia de Frederick Douglass, foi publicada. A tradução contou com um sistema independente de publicação, em que o tradutor é responsável pela iniciativa da tradução, pela escritura de um prefácio, pela encomenda da capa e, talvez, pela formulação parcial do preço final cobrado por cada download e impressão do livro. Como o texto original está em domínio público, e a publicação é independente, o tradutor é o próprio detentor dos direitos dessa tradução, que provavelmente ficará no “ar” por tempo indeterminado. Em outras palavras, houve maior liberdade para o tradutor propor um projeto tradutório com a possibilidade de um prefácio explicativo para suas opções. A tradução de Incidentes..., de Waltensir Dutra, ao contrário, foi muito possivelmente encomendada pela editora Campus, ao tradutor, tendo ela adquirido os direitos de publicação no Brasil, como de praxe, com um número limitado de impressões, à editora Harvard University Press, responsável pela edição original comentada de Jean Yellin. No presente momento, não há nenhuma edição nova dessa obra, disponível somente em livrarias de usados. Nessa tradução, não há um prefácio do tradutor, mas apenas o de Jean Yellin e demais textos introdutórios constantes do livro original. As fotos e documentos de época ajudam a criar um perfil semi-historiográfico para a obra, fortalecendo os vínculos entre autobiografia e a autenticação dos eventos narrados. Imagens de documentos comprobatórios e de época não estão presentes na tradução de Leonardo Vidal para a Narrativa...: há um prefácio do tradutor sobre a tradução, acompanhado de uma introdução sobre Frederick Douglass assinada por Caroline Moura. Ao final do livro, foi incluído o relato traduzido de Douglass, “Como escapei da escravidão”, em que o autor conta os detalhes de sua fuga, ausente na primeira versão de Narrative.... A seguir faremos uma discussão acerca de trechos traduzidos de ambas as traduções e de que modo os seus respectivos projetos editoriais, pautados em propostas diferentes, podem ter exercido uma influência distinta na textualidade das traduções, com efeitos de sentido diversos para a reconstrução das narrativas autobiográficas. 120 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) 4 Incidentes da vida de uma escrava, contadas por ela mesma, de Harriet Jacobs A característica paratextual mais contundente da edição de Harvard de Incidentes da vida de uma escrava é o prefácio assinado pela pesquisadora Jean Fagan Yellin, somado a numerosas notas explicativas, muitas das quais contendo referências históricas e documentais pesquisadas, durante vários anos, para essa edição. No prefácio, Yellin desenvolve uma argumentação no sentido de demonstrar a inovação da iniciativa de Jacobs que parecia, apenas superficialmente, tangenciar os romances sentimentais de sedução, produzidos à sua época, em que há a jovem “‘mulata trágica’ vitimizada, uma mulher de raça mista traída pelo homem branco que adora” [...] e, nos quais, se apresentam “uma desamparada mulher virtuosa como presa do homem” (JACOBS, 1988, p.16), mas que, a ele, acaba se entregando. Como bem ressalta Yellin, [Nas mãos de Jacobs], a “mulata trágica”, patética e seduzida da ficção branca é metamorfoseada, de vítima da falsidade e inconstância masculina branca, numa moça inexperiente que faz escolhas desesperadas em sua luta pela autonomia. A mammy da ficção branca torna-se não a babá das crianças brancas, mas a mantenedora e libertadora de seus próprios filhos. (JACOBS, 1988, p . 19). Em grande medida, a edição comentada e documentada, busca apresentar aspectos factuais para os eventos narrados, sendo uma forma, também, de tornar a imagem de Linda Brent mais real, mais historicizada e menos submissa a uma suposta imagem idealizada de si e que alguém poderia facilmente associar a personagens padrão de uma ficção sentimental. A seguir, discutiremos passagens traduzidas da autobiografia e sua relação com o estilo de linguagem adotado. 4.1 Tradução de sintagmas nominais com menor adesão à ordem sintática mais comum do português brasileiro 121 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) No primeiro trecho abaixo (A), Linda Brent (Harriet Jacobs) nos relata a ausência de qualquer sentimento de gratidão dos senhores de sua avó, e chama nossa atenção, na segunda passagem (B), por um lado, para a atitude de autopiedade de sua senhora, ao ter descoberto as investidas sexuais de seu marido em relação à Linda, e, por outro, para a sua mais absoluta insensibilidade diante do sofrimento e humilhação da escrava: A B Texto-fonte Tradução de Waltensir Dutra Notwithstanding my grandmother’s long Apesar da prolongada e fiel servidão de and faithful service to her owners, not minha avó aos seus senhores, nenhum de one of her children escaped the auction seus filhos escapou do leilão. (p.27) block. (p.14) She pitied herself as a martyr; but she was incapable of feeling for the condition of shame and misery in which her unfortunate, helpless slave was placed. (p. 41) Tinha pena de si mesma, como uma mártir, mas era incapaz de apiedar-se da situação de vergonha e infortúnio na qual sua infeliz e desamparada escrava tinha sido colocada. (p.47) Pode-se notar, nas duas passagens sublinhadas, que o tradutor optou por uma ordem sintática menos natural dos sintagmas nominais, tendo traduzido “long and faithful service” por “prolongada e fiel servidão”, em vez “servidão fiel e prolongada”, opção essa mais comum do ponto de vista tanto da oralidade quanto da escrita. O mesmo ocorreu com a tradução de “in which her unfortunate, helpless slave was placed” por “sua infeliz e desamparada escrava”, em vez de uma estrutura como “na qual sua escrava, infeliz e desamparada, tinha sido colocada”. A tradução seguiu, mais de perto, a ordem sintática do período em inglês, produzindo com isso um efeito de maior formalidade na descrição feita por Linda Brent. Essa mesma formalidade soa até mais intensa nos exemplos a seguir, envolvendo colocações pronominais. 4.2 Tradução de locuções verbais com colocações pronominais menos comuns No trecho C, Linda Brent rememora o fato de que a senhora dona de sua mãe lhe prometera que jamais venderia seus filhos, tendo sido aquela quase uma mãe para 122 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) Linda. A promessa, no entanto, não foi cumprida. No trecho D, a senhora de Linda Brent, Sra. Flint, acusa a escrava de ter atraído conscientemente as investidas sexuais de seu marido, algo que Linda nega peremptoriamente. Na passagem E, a senhora de Linda Brent, a sra. Flint, exigiu que Linda jurasse, por Deus, que não estava traindo sua senhora com seu esposo. Enfim, no trecho F, Linda Brent comenta a respeito de seu senhor, o dr. Flint, ao ter descoberto que ela se relacionava com outro homem, mas sem que tenha desconfiado que esse homem não era um negro livre, mas um branco. C D E F Texto-fonte She had promised my dying mother that her children should never suffer for any thing; and when I remembered that, and recalled her many proofs of attachment to me, I could not help having some hopes that she had left me free. (p.14) Tradução de Waltensir Dutra Lembrava-me de sua promessa à minha mãe agonizante, de que seus filhos nunca passariam necessidades, e lembrava-me das muitas provas de afeto que me tinha dado; por isso não pude deixar de alimentar alguma esperança de que me tivesse deixado livre. (p. 27) My mistress had been accusing me of an offence, of which I assured her I was perfectly innocent; (p. 26) “You have taken God’s holy word to testify your innocence,” said she. “If you have deceived me, beware!” (p.40) For a fortnight the doctor did not speak to me. He thought to mortify me; to make me feel that I had disgraced myself by receiving the honorable addresses of a respectable colored man, in preference to the base proposals of a white man. (p.48-49) Minha senhora me tinha acusado de um erro do qual lhe assegurara ser totalmente inocente. (p. 36) — Você tomou a palavra sagrada de Deus como testemunha de sua inocência. Se me tiver enganado, cuidado! (p. 47) Durante quinze dias, o doutor não me dirigiu a palavra. Achava que me estava mortificando, que estava fazendo sentir que me tinha desgraçado, ao preferir aceitar as atenções de um respeitável homem de cor, às propostas ignóbeis de um homem branco. (p. 53). Em todas as passagens destacadas nos trechos acima houve a tradução por construções linguísticas com colocações pronominais mais formais e menos comuns em comparação ao que se lê nos trechos correspondentes do texto original. Os períodos “Se me tiver enganado” e “que me estava mortificando”, por exemplo, o pronome “me” é situado em posição proclítica em relação às locuções verbais sublinhadas, quando a ordem mais natural, que se aproxima da língua falada, mas também, de formas escritas 123 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) menos aderentes à norma padrão estrita,11 seria “se tiver me enganado” e “que estava me mortificando”, sendo o pronome, nesses dois casos, proclítico ao verbo principal e não ao verbo auxiliar. Essas colocações pronominais, na tradução, têm o efeito de atribuir à fala de Linda Brent (e à de Harriet Jacobs, por extensão) um registro muito mais formal do que de fato se lê no texto original. Apesar de o tradutor estar aparentemente seguindo uma diretriz gramatical normativa para a colocação pronominal, esse tipo de construção linguística é muito pouco utilizado, até mesmo na modalidade escrita relativamente formal (mesmo na década de 1980), o que pode ser facilmente atestado em artigos jornalísticos e até mesmo em artigos científicos. Essas opções linguísticas mais formais colaboram para produzir a imagem de uma autora/narradora que transparece ter um maior distanciamento narrativo em relação aos fatos narrados, não que isso implique que esses eventos não sejam verdadeiros. Como a forma de contá-los acaba se valendo de estruturas linguísticas mais formais, e menos próximas da dicção natural da língua portuguesa contemporânea, essas expressões estilísticas parecer emprestar certo efeito de “objetividade” ao fato narrado. O mesmo parece ocorrer no trecho seguinte envolvendo a tradução de socioleto literário. 4.3 Tradução de trechos com marcas de oralidade estigmatizadas (representação de variedades socioletais) por formas linguísticas do português padrão O diálogo do trecho G envolve o contexto da fuga de Linda Brent da fazenda do sr. Flint. Linda, ao fugir da fazenda, chega até a casa de sua avó, durante a madrugada, e, pela janela do quarto, conversa com Sally, uma mulher que morava há muitos anos na casa de sua avó. Em fala anterior a esse diálogo, Sally pede à Linda para que não fuja, já que o sr. Sands (homem branco com quem se relacionara em segredo e com quem teve dois filhos) estava tentando comprar as crianças do sr. Flint, por intermédio da avó de Linda: Texto-fonte Tradução de Waltensir Dutra I replied, “Sally, they are going to — Sally, eles vão levar meus filhos para a 11 O tradutor, no caso, está seguindo uma prescrição normativa gramatical. Segundo Cunha e Cintra (2007), deve-se optar pela “próclise ao verbo auxiliar, quando ocorrem as condições exigidas para a anteposição do pronome a um só verbo” (p.328), como no caso de “orações subordinadas desenvolvidas”, cujo exemplo provido pelos autores é “O sufrágio que me vai dar será para mim uma consagração (Euclides da Cunha, OC, II, 634)” (p.329). 124 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) G carry my children to the plantation to-morrow; and they will never sell them to any body so long as they have me in their power. Now, would you advise me to go back?” “No, chile, no,” answered she. “When dey finds you is gone, dey won't want de plague ob de chillern; but where is you going to hide? Dey knows ebery inch ob dis house.” (p.109) fazenda amanhã. Não os venderão nunca para ninguém, enquanto eu estiver em poder deles. E você ainda me aconselharia a voltar? — Não, minha filha, não. Quando descobrirem que você fugiu, não vão querer saber dos filhos. Mas onde você vai se esconder? Eles conhecem todos os centímetros desta casa. (p. 97) Observa-se no texto, em inglês, a diferença entre a fala mais próxima à norma padrão, de Linda Brent, e a de Sally, cujo inglês é uma representação de uma forma linguística não padrão socialmente estigmatizada (com “chile” em vez de “child”, “dey finds” em vez de “they find”, “dey knows” em vez de “they know”, “ob” em vez “of”), como de fato era encarado, pela sociedade branca, o Black English ou inglês vernacular afro-americano, segundo a terminologia sociolinguística contemporânea. Essa diferença é importante pois nos indica que Linda Brent havia passado, em sua infância, por um processo de letramento do qual a maioria dos escravos era privada, e Sally era um exemplo dessa maioria. Por outro lado, o recurso à representação, na escrita literária, do Black English, segundo Levy (1990), estava, no século XIX, tradicionalmente associado à busca por um maior realismo literário em contraposição a formas padrão excessivamente “convencionalizadas”: O apelo ao emprego do dialeto era tradicionalmente fundamentado na busca por realismo. O uso de dialeto, em qualquer forma, era apresentado como um antídoto tanto para a proliferação de diálogos vitorianos sentimentalistas quanto para a ausência de expressividade neles. Acreditava-se que o dialeto empregado recriava, com vivacidade, a crioulização própria do inglês que havia proliferado regionalmente por todo o continente americano; essas crioulizações eram apresentadas como não tendo qualquer afetação, como versões “não artísticas” de um inglês padrão excessivamente convencionalizado. (LEVY, 1990, p. 207). 12 “The appeal of dialect traditionally has been grounded in claims of realism. The use of dialect, in any form, was presented as an antidote to the proliferation of sentimental Victorian dialogue, and its concomitant lack of expressiveness. Dialect was believed to vividly re-create the particular creolizations of English that had proliferated regionally across the American continent; these creolizations were presented as un-affected, ‘artless’ versions of an overconventionalized Standard English.” 12 125 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) A representação escrita do Black English pode levar o leitor estadunidense a fazer um julgamento estigmatizante do personagem negro retratado no diálogo, por vezes imbuído de tons humorísticos, como de fato, frequentemente essas formas linguísticas são encaradas pelos leitores. Se o emprego de formas linguísticas socioletais/dialetais, no texto em inglês de Jacobs, pode, por um lado, significar um apelo ao realismo, por outro, ele parece ir além do mero exercício de verissimilitude, já que existem falas não padrão, como as atribuídas à Sally e à tia de Linda, Aunt Aggie, que sugerem também certa deferência, da autora, pela amabilidade maternal negra dessas mulheres, sem qualquer sarcasmo, ironia ou intensão de conduzir o leitor ao riso. Por outro lado, quando retrata, em diálogos, homens brancos invadindo a casa de sua avó, Jacobs o faz com formas linguísticas não padrão que sugerem dificuldade de entendimento para quem os ouve13, lançando, assim, ironicamente, ao leitor branco, uma afirmação inaudita: os brancos falam uma língua tão “corrompida” quanto a dos negros escravizados (LEVY, 1990, p. 213). Na tradução para o português, praticamente não há, em nenhum momento, a busca pela representação da variação socioletal/dialetal, seja nas falas de personagens negros ou nas de personagens brancos. O português padrão se sobressai nos diálogos, produzindo-se, com isso, um maior distanciamento em relação à representação da variação linguística, e, por consequência, um efeito de maior transparência quanto aos aspectos semânticos e ao conteúdo narrado. Cria-se, com isso, maior objetividade no processo narrativo, afastando-se, da narração, o tipo de heterogeneidade sociolinguística que indicaria uma maior aderência subjetiva da narradora em relação à apresentação de falas dialetais. 5 A Narrativa da Vida de Frederick Douglass: Um Escravo Americano A tradução de Leonardo Vidal traz um prefácio em que apresenta o seu propósito de tradução: fazer com que o maior número de pessoas possível possa ler a obra de Douglass, considerando o papel que, subalternamente, teve a educação na libertação de Douglass em relação aos grilhões da ignorância mantida pela escravidão. 13 Especialmente porque a autora, nesse caso, traduz para o leitor, em inglês padrão, uma palavra incompreensível falada por um dos invasores brancos. 126 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) Esse papel fica bem representado na capa do livro: há uma ilustração de Douglass segurando, com as duas mãos, um livro aberto, e com correntes, que antes lhe atavam os braços e que agora estão partidas. Atrás dele, no topo, vê-se a imagem de uma grande mancha de sangue com os contornos do mapa dos Estados Unidos e, mais abaixo, atrás de si, há uma escuridão que deixa ver apenas várias silhuetas de escravos e escravas, com um deles rogando por libertação com as mãos estendidas. O tradutor afirma o seguinte quanto ao papel da obra traduzida: “Considero uma obra de tal importância necessária e útil, tanto como lição de cidadania, quanto como um estímulo a discussões sobre nossa história, nossa cidadania e nossa educação” (DOUGLASS, 2016, p. 06). O próprio tradutor comenta que buscou traduzir a simplicidade do discurso de Douglass, e a fluidez do seu texto. Para Vidal, “Douglass não usa linguagem rebuscada nem parece pedante ou ansioso para demonstrar sua instrução [...] Tudo isso ajuda a explicar – mas não explica por completo – o tom dado à tradução, em que se buscou a simplicidade e a fluidez, em vez de seguir a construção lógica dos argumentos ou buscar ser fiel ao estilo original” (DOUGLASS, 2016, p. 07). A ênfase, do tradutor, na simplicidade, teve como objetivo principal “permitir a leitura mais ampla possível, e inspirar iniciantes e veteranos com este texto peculiar, em que a educação tem parte tão importante”. (DOUGLASS, 2016, p. 07). Vejamos como se deu esse processo de simplificação: 5.1 Tradução simplificada da ordem sintática frasal do texto original No trecho abaixo (A), Douglass narra sobre nunca ter sabido, de fato, o dia do seu nascimento: A Texto original Tradução de Leonardo Poglia Vidal I do not remember to have ever met a slave who could tell of his birthday. […] A want of information concerning my own age was a source of unhappiness to me even during childhood. The white children could tell their ages. I could not tell why I ought to be deprived of the same privilege. I was not allowed Não lembro de ter algum dia conhecido um escravo que soubesse seu aniversário. [...] Mesmo em minha infância, a falta dessa informação era fonte de infelicidade para mim. As crianças brancas sabiam a sua idade, e eu não entendia por que não podia ter o mesmo privilégio. Também não me era 127 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) to make any inquiries of my master concerning it. He deemed all such inquiries on the part of a slave improper and impertinent, and evidence of a restless spirit. The nearest estimate I can give makes me now between twenty-seven and twenty-eight years of age. (p.1) permitido perguntar ao senhor – ele considerava esse tipo de perguntas impróprias e impertinentes se vindas de um escravo, e indício de temperamento inquieto. A estimativa mais próxima que posso fazer me dá entre vinte e sete e vinte e oito anos de idade. (p.37-38) No primeiro trecho sublinhado, observa-se que o tradutor fez uma inversão de “even during childhood”, trazendo a frase para o começo da oração (“mesmo em minha infância”), o que facilita a fluidez das ideias. Outra forma de simplificação, de ordem mais estilística (do formal para o mais informal), é a tradução de “inquiries” por “perguntas”, bem como a tradução de “on the part of” por “se vindas de”. 5.2 Tradução semântica simplificada e emprego de marca de oralidade No trecho B, Douglass descreve o pouco que sabia de sua mãe; na passagem C, ele comenta a respeito da famosa passagem bíblica frequentemente utilizada pelos escravocratas para justificar a escravidão dos negros; no trecho D, Douglass lamenta a ingratidão da família que detinha a posse de sua vó, deixada, em avançada idade e doente, para viver sozinha, sem quaisquer cuidados, em uma cabana velha, depois de ter se dedicado à vida inteira a cuidar de todos da família branca. Texto original B Called thus suddenly away, she left me without the slightest intimation of who my father was. The whisper that my master was my father, may or may not be true; and, true or false, it is of but little consequence to my purpose whilst the fact remains, in all its glaring odiousness, that slaveholders have ordained, and by law established, that the children of slave women shall in all cases follow the condition of their mothers; (p. 18) Tradução de Leonardo Poglia Vidal Tendo sido levada desse modo súbito, ela me deixou sem a menor indicação de quem era meu pai. O murmúrio de que meu senhor era meu pai pode ou não ser verdade; e, verdade ou mentira, teve pouca consequência para mim, já que (fato odioso que ainda é praticado) os escravagistas estabeleceram por lei que as crianças de mulheres escravas devem em todos os casos seguir na 128 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) C D If the lineal descendants of Ham are alone to be scripturally enslaved, it is certain that slavery at the south must soon become unscriptural; for thousands are ushered into the world, annually, who, like myself, owe their existence to white fathers, and those fathers most frequently their own masters. (p.19) She had been the source of all his wealth; she had peopled his plantation with slaves; she had become a great grandmother in his service. She had rocked him in infancy, attended him in childhood, served him through life….. (p.50) condição de suas mães. (p.39-40) Se os descendentes de Ham são os únicos a poderem ser escravizados, de acordo com a escritura, então é certo que a escravidão no sul logo não poderá ser considerada bíblica, porque todos os anos são postos no mundo milhares de filhos que, como eu, têm pais brancos, geralmente seus senhores. Ela havia servido meu velho senhor fielmente da juventude à velhice, uma fonte de riquezas para ele. Ela havia colocado escravos em sua plantação, se tornado bisavó em seu serviço. Embalou ele no berço, cuidou dele quando criança, serviuo pela vida inteira... No trecho B, observa-se a simplificação semântica de alguns itens lexicais e da própria construção sintática em português. “Slightest intimation” (“a menor/a mais ínfima sinalização”) é um vocábulo menos usual, mais formal (especialmente na atualidade) que “slightest indication”. A opção da tradução por “a menor indicação” segue, de perto, uma construção mais comum e convencional da língua portuguesa. A oração “whilst the fact remains, in all its glaring odiousness, that slaveholders [...]”, se traduzida de forma mais aderente à estrutura sintática do trecho, poderia se apresentar da seguinte forma: “embora permaneça o fato, em toda a sua gritante/evidente odiosidade, de que escravagistas [...]”. Sem dúvida, esse exemplo demonstra que há, em certos momentos da escrita de Douglass, formas de expressividade mais elaboradas esteticamente. Na tradução, a opção do tradutor, foi por construções linguísticas mais usuais, em ordem direta, como ele mesmo anunciou no prefácio. A facilitação do discurso de Douglass também pode ser observada em trechos como “poderem ser escravizados, de acordo com a escritura” (tradução de “to be scripturally enslaved”) e “a escravidão no sul logo não poderá ser considerada bíblica” (tradução de “[…]slavery at the south must soon become unscriptural”): nessas duas passagens o tradutor faz opções que ampliam lexicalmente a oração, dando margem à maior legibilidade, e 129 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) naturalidade em português, a partir de “scripturally” e “unscriptural”, respectivamente. A oração seguinte, com uma elaboração retórica quase poética, “like myself, owe their existence to white fathers” (“como eu, devem sua existência aos pais brancos”) foi traduzida de forma mais simplificada: “como eu, têm pais brancos”). Enquanto que, em “she had peopled his plantation with slaves”, o verbo to people é mais específico, com sentido de “povoar” (“ela havia povoado a plantação dele com escravos”), na tradução, “ela havia colocado escravos em sua plantação”, o tradutor escolheu um vocábulo de sentido mais genérico. E, por último, ao descrever as ações de sua avó, Douglass afirma que “she had rocked him in infancy”: numa tradução mais conservadora, do ponto de vista na norma linguística padrão, a oração ficaria “ela o embalara/o havia embalado na infância”. A opção do tradutor foi por uma marca de oralidade, proscrita pela tradição gramatical conservadora, com o emprego de pronome sujeito com função de clítico: “ela embalou ele no berço”. 5.3 Adaptação cultural de ditados populares em sua justificativa em nota No trecho abaixo (E), Douglass nos conta acerca da interrupção do seu processo de alfabetização pelo seu proprietário, o senhor Auld: E Just at this point of my progress, Mr. Auld found out what was going on, and at once forbade Mrs. Auld to instruct me further, telling her, among other things, that it was unlawful, as well as unsafe, to teach a slave to read. To use his own words, further, he said, “If you give a nigger an inch, he will take an eel. A nigger should know nothing but to obey his master — to do as he is told to do. (p. 20). Neste ponto de meu progresso, o Sr. Auld descobriu o que estava acontecendo, e imediatamente proibiu a Sra. Auld de continuar a me ensinar, dizendo a ela, entre outras coisas, que era proibido – e perigoso – ensinar um escravo a escrever. Em suas próprias palavras, “se você der uma mão a um negro, ele toma o braço”. Um negro deve aprender somente a obedecer seu mestre – fazer o que lhe mandam. (p. 74) 130 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) O tradutor se vale de um ditado popular da língua portuguesa, adaptando o trecho em inglês para a cultura receptora brasileira, e, em seguida, fazendo uso de uma nota de rodapé em que justifica sua opção: “No original, “if you give a nigger an inch, he will take an eel” (se você der a um negro uma polegada, ele toma uma vara). Como as medidas não são as mesmas e nem o ditado é familiar, se trocou por um de significado e forma semelhantes.” (DOUGLASS, 2016, p.74). Considerações finais Embora as traduções de Waltensir Dutra e de Leornardo Vidal sejam versões de obras distintas, escritas por autores diferentes com histórias de vida particulares, ambas as obras compartilham do contexto escravocrata estadunidense e têm, em sua origem, um mesmo objetivo: minar as condições de existência da escravidão sancionada pela sociedade branca. Isso se dá, por um lado, por meio da história de vida de um exescravo, marcada pela violência e humilhação, e que se tornaria o mais célebre afroamericano do século XIX, e, por outro, mediante a história da vida de uma ex-escrava que buscou denunciar as condições degradantes da exploração sexual a que as escravas tinham de se submeter perante a lascívia incontrolável de seus senhores. Os projetos de tradução a que as duas obras foram submetidas nos revelam perspectivas diferentes quanto ao tratamento da linguagem obtida e os seus efeitos para a reconstrução de seus respectivos objetos autobiográficos. A versão traduzida de Incidentes da vida de uma escrava é uma autobiografia comentada, com inúmeras notas que oferecem um tratamento historiográfico aos eventos narrados, justamente para que o leitor tenha consciência da veracidade desses fatos. A linguagem emprestada por Waltensir Dutra à narrativa traduzida aponta, em vários momentos, para uma elevação do registro formal, com estruturas linguísticas menos usuais e que parecem simular um distanciamento temporal parcial, já que se afasta da dicção natural da língua portuguesa brasileira contemporânea. Soma-se a isso a ausência da representação dialetal nos diálogos, produzindo um texto globalmente mais homogêneo e constituído pela norma padrão. Não havendo diferenças entre a fala da narradora e a fala dos personagens 131 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) retratados, o efeito que se deriva disso é a produção de uma voz narrativa que evita uma maior subjetivação que seria criada com falas visivelmente desviadas da norma padrão que caracteriza, sistematicamente, a voz da narradora. A tradução de Waltensir Dutra parece seguir uma linguagem parcialmente destituída da subjetividade que tipicamente caracteriza os textos literários: o tradutor parece estar conferindo à própria textualidade da tradução um perfil aparentemente mais condizente com uma edição de caráter historiográfico. Criou-se, para a tradução, formas de expressão que sugerem maior objetividade no tratamento do objeto autobiográfico, como se as notas e as informações historiográficas exigissem a construção de uma linguagem textual em harmonia (sem desvios linguísticos, com menos variações estilísticas de registro) com a proposta de um texto que precisa assegurar a autenticidade do seu próprio discurso (o que, de fato, faz parte de qualquer discurso que se queira historiográfico e, possivelmente, com um teor de literariedade reduzido). O enquadramento da narrativa como autobiografia documentalmente comprovada pode ter favorecido a maior formalização da narrativa e das falas, criando-se uma percepção mais “direta” e aparentemente menos mediada da verdade narrada. Já a tradução da Narrativa da vida de Frederick Douglass, de Leonardo Vidal, não tem esse caráter documental. Não se emprega, na versão, a reprodução de documentos ou a inclusão de notas que busquem retratar, mais de perto, a veracidade dos fatos narrados por Douglass. O autor, aliás, granjeou para si, já em fins do século XIX, uma visibilidade nacional inalcançável para a grande maioria dos ex-escravos de sua época. Jacobs sempre foi muito menos conhecida do que Douglass, e sua verdade, injustamente, estava à espera de um tratamento de autenticação. Não haveria “o que comprovar” no texto de Douglass: o capital simbólico do autor tem contado com o selo da autenticidade garantida pelo tempo. Parcialmente, isso deu à Vidal maior liberdade no tratamento de suas opções linguísticas. É importante considerar que o seu projeto editorial foi uma iniciativa do próprio tradutor, não tendo ele dependido de diretrizes impostas por uma editora contratante da tradução. Vê-se, em sua tradução, maior liberdade tanto para justificar suas opções tradutórias (o que não se vê na tradução de Waltensir Dutra), quanto para direcionar a linguagem para um público por ele pretendido, de acordo com uma certa visão de mundo de seu trabalho como cumprindo uma missão educativa. 132 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) Se na tradução de Leonardo Vidal, busca-se alcançar um número variado de leitores, incluindo aqueles que teriam dificuldade com palavras e construções linguísticas mais rebuscadas, na tradução de Incidentes... por Waltensir Dutra, a identificação é com o leitor de perfil acadêmico (a própria editora do livro se chama “Campus”). Se o leitor pode contar, de boa-fé, com a veracidade dos eventos narrados em ambas as autobiografias, é inegável que o exercício de construção e representação dessas verdades, por meio da linguagem tradutória, será diferente nas duas obras. Waltensir Dutra precisa se valer de um processo de objetificação, com a desidratação parcial de aspectos possivelmente mais associados ao discurso literário (como a representação da variação linguística informal e dialetal), para produzir uma versão de caráter semi-historiográfico. Já Leonardo Vidal, para dizer a verdade de Douglass, afasta-se de formas expressivas que, no texto do autor, sugerem uma retórica esteticamente mais elaborada, para produzir um texto estilisticamente simplificado e acessível, não havendo, na versão da tradução, vínculos documentais comprobatórios e de fundo historiográfico, como na tradução de Dutra. Como a verdade autobiográfica que Vidal pode contar, na tradução, não se vincula à autenticação, isso também lhe confere maior liberdade para direcionar os eventos narrados (sem alterá-los) pela via da simplicidade, possibilitando a construção da imagem de Douglass como um homem de linguagem simples e direta, muito mais próximo das multidões (e do projeto tradutório educativo), do que de fato ele viria a se tornar mais tarde: um importante aliado e eloquente admirador de seus correligionários do Partido Republicano (cf. MATLACK, 1979, p.26). Linda Brent, ou Harriet Jacobs, se constitui, na tradução de Waltensir Dutra, de uma formação identitária híbrida porque ela é a ex-escrava que conta sua história de vida, porém atravessada por sobretons de uma voz que, pela linguagem, se historiciza: Jacobs, por ter sido, ao mesmo tempo, mulher, negra e escrava, pesa-lhe sobre os ombros o ônus da prova de que o que conta é verdade. A linguagem da tradução de Waltensir Dutra, quer se concorde ou não com ela, parece ser um dos meios de se, talvez, subtrair esse ônus. Com este trabalho, buscou-se demonstrar o papel fundamental que a tradução e as suas linguagens desempenham na construção da verdade autobiográfica, no delineamento do perfil do autobiografado, e na inscrição do seu objeto de vida na vida que se renova a cada texto traduzido. 133 ISSN: 2317-2347 – v. 7, n. 2 (2018) REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. In: BRANCO, L. C. (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: UFMG, 2008. CUNHA, C; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. 5ª. edição. Rio de Janeiro: Lexikon, 2007. CUTTER, M. J. Dismantling “The Master's House”: Critical Literacy in Harriet Jacobs' “Incidents in the Life of a Slave Girl”. Callaloo, vol.19, n.1, p. 209-225, 1996. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3299351. Acesso em: 30 de março de 2018. 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