A Sociedade Unipessoal: O Substrato
Pessoal Constituído por Um Único Sócio
Gorki SAlvAdor*
1. Introdução
Hoje, a concentração da totalidade das participações sociais de uma
sociedade comercial na esfera jurídica de uma só pessoa não é já uma
situação excecional. Com o reconhecimento normativo da sociedade
unipessoal (SU), esta situação passou a ser ordinária na realidade
jurídico-societária de Angola.
Tal reconhecimento representa um passo de inegável relevo na
superação dos pressupostos dogmáticos que motivavam um certo
distanciamento entre o direito e a realidade prática. A anterior impossibilidade de se constituir uma sociedade comercial com um único sócio,
que conjugasse a limitação da responsabilidade com o controlo total e
efetivo da atividade comercial, permitiu que o comerciante individual
fizesse recurso de meios pouco ortodoxos, como a sociedade fictícia,
com o objetivo de alcançar os seus desideratos. O distanciamento entre
a realidade e o direito, representado pela proliferação de sociedades
fictícias, motivou a alteração da realidade normativa, com o objetivo
de se garantir a necessária aproximação entre o direito e a realidade.
Se, por um lado, o reconhecimento da sociedade unipessoal representa um passo de inegável relevo na aproximação entre o direito e a
realidade, garantindo com isso a necessária conformação do direito
* Licenciado em Direito pela Universidade Católica de Angola, mestre em Direito
pela Clássica de Lisboa, assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica de
Angola e investigador do CID/FDUCAN.
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GORKI SALVADOR
aos ditames da realidade prática, por outro lado ela choca com os
fundamentos da dogmática básica do ordenamento jurídico-societário,
trazendo consigo novos problemas ou problemas que no seu âmbito se
colocam com maior acuidade.
Uma das questões que surge no âmbito do reconhecimento da
unipessoalidade societária prende-se com o critério de unicidade adotado pelo nosso legistlador, diante do qual poderemos facilmente nos
questionar sobre se a mera presença de uma pluralidade declarada de
sujeitos impedirá a qualificação da sociedade como unipessoal. O que
dizer daquelas situações em que, sobre uma mesma participação social,
concorrem diversas esferas de interesses, quer sejam homogéneos,
como se verifica nas situações de contitularidade, quer sejam heterogéneos, como nos casos de penhor e usufruto? Nestes casos poder-se-á
ainda argumentar que se trata de sociedade unipessoal?
Esta é a questão a que nos propomos responder com a presente
investigação.
2. O critério formal de unicidade
O art. 7.º da Lei n.º 19/12, de 11 de junho, das Sociedades Unipessoais (LSU) define a sociedade unipessoal como aquela que
«é constituída por um único sócio, pessoa singular ou coletiva, que é o
titular da totalidade do capital social e subscritor do ato constitutivo da
sociedade». De acordo com a interpretação desta disposição normativa,
a titularidade unitária da totalidade do capital social apresenta-se como
critério da unicidade1.
De facto, uma das funções indicadas ao capital social é a de quantificação dos direitos ou poderes (na linguagem do Professor PAIS
DE VASCONCELOS2) e dos deveres dos sócios3 sobre a parte social
e, neste sentido, podemos afirmar que ele corresponde à participação
social. Assim, podemos afirmar que o critério legal da unicidade é o da
titularidade da totalidade das participações sociais.
1
ESPÍRITO SANTO, João, Sociedades Unipessoais de Direito Angolano, cit., p. 58.
Cf. VASCONCELOS, Pedro Pais de, A Participação Social nas Sociedades
Comerciais, cit., pp. 69 e ss.
3 ALMEIDA, António Pereira de, Sociedades Comerciais, 4.ª ed., cit., pp. 65 e ss.
2
A SOCIEDADE UNIPESSOAL:
O SUBSTRATO PESSOAL CONSTITUÍDO POR UM ÚNICO SÓCIO
41
A participação social, independentemente da orientação que se
adota quanto à sua natureza jurídica, é objeto de direitos e, portanto,
uma res jurídica4.
Estando dotada de personalidade jurídica, a sociedade unipessoal
representa uma subjetividade diferente da do sócio único, não podendo,
por esta razão, os direitos do sócio incidir sobre o património ou sobre
o estabelecimento, mas sim sobre a participação social, que na sociedade unipessoal corresponde à totalidade da sociedade5, isto é, sobre a
totalidade da quota ou das ações da sociedade6.
O critério apresentado pelo legislador – titularidade da totalidade
da participação social – apresenta-se puramente objetivo e formal7.
Sendo assim, algumas situações suscitam dúvidas sobre a adequação
do critério legal a situações fora daquelas em que sobre a parte social
incide apenas a esfera de interesses de uma só pessoa8.
Diante disto, cabe questionar se a mera presença de uma pluralidade declarada de sujeitos impedirá a qualificação da sociedade como
unipessoal. O que dizer daquelas situações em que, sobre uma mesma
participação social, concorrem diversas esferas de interesses, quer
sejam homogéneos, como se verifica nas situações de contitularidade,
quer sejam heterogéneos, como nos casos de penhor e usufruto?
Como enquadrar, dentro do critério legal de unicidade, as situações
jurídicas complexas ou as posições jurídicas correspondentes a contitularidade, comunhão conjugal, usufruto e penhor? Neste sentido,
4 ANDRADE, Margarida Costa, Código das Sociedades em Comentário, Vol. I.,
cit., p. 375.
5 Esta conclusão levanta a objeção relacionada com a possibilidade de um ente
personalizado, como é a sociedade unipessoal, ser objeto de direito, quando a dogmática
subjacente à personificação a coloca no centro da relação jurídica, isto é, como sujeito e
não já como objeto de relação jurídica. Porém, esta indagação perde toda a sua pujança
se analisada à luz do fundamento ôntico da personalização. Só as pessoas singulares têm
dignidade e, por esta razão, só elas são o fundamento do direito. As pessoas coletivas
não têm a dignidade das pessoas singulares, nem o seu estatuto ético-ontologicamente
fundante. As pessoas coletivas estão ao serviço de interesses humanos, mas são também
centro de imputação jurídica. Vide VASCONCELOS, Pedro Pais de, A Participação
Social nas Sociedades Comerciais, cit., p. 371.
6 Cf. VASCONCELOS, Pedro Pais de, A Participação Social nas Sociedades
Comerciais, cit., pp. 370 e ss.
7 Neste sentido, vide ESPÍRITO SANTO, João, Sociedades Unipessoais de Direito
Angolano, cit., pp. 58 e ss, e ainda COSTA, Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por
Quotas Unipessoal no Direito Português…, cit., p. 403.
8 ESPÍRITO SANTO, João, Sociedades Unipessoais de Direito Angolano, cit., p. 59.
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GORKI SALVADOR
afigura-se útil estabelecer o exato significado a atribuir à fórmula legal,
para que possamos então determinar em que circunstância a sociedade
pode ser considerada unipessoal, como pressuposto da aplicação da
disciplina prescrita pela LSU9.
3. A contitularidade da participação social
É claramente possível que a totalidade da participação social seja
pertença, de forma indivisa, de vários titulares. Neste sentido, pergunta-se se são sócios todos os sujeitos em comunhão ou se existe
um só sócio, de forma a definir se a sociedade se encontra também
configurada em termos de unipessoalidade10.
A LSC estabelece o regime aplicável a situações de contitularidade
da participação social11. Este regime encontra sede legal nos artigos
8.º, n.º 312, e 244.º a 246.º e 334.º, da Lei n.º 1/04, de 13 de fevereiro,
Lei das Sociedades Comerciais (LSC), aplicáveis às SU por força da
remissão feita pelo art. 28.º, n.º 1 da LSU.
Nos termos do n.º 3 do artigo 8.º da LSC, quando mais de uma
pessoa adquirem uma participação social em regime de contitularidade,
contam como uma só parte. Os artigos 244.º a 246.º da LSC regulam
o exercício dos direitos inerentes à participação social, nos termos dos
quais esses direitos devem ser exercidos mediante um representante
comum, que, quando não for designado por lei ou disposição testamentária, pode ser qualquer dos contitulares ou o cônjuge de qualquer
deles, devendo este ser legitimado perante a sociedade. Porém, no
que respeita a atos que impliquem o aumento das obrigações dos
sócios, a redução de direitos, a oneração, a alienação ou a extinção da
participação social, estes só poderão ser praticados pelo representante
comum se lhe forem atribuídos poderes especiais. As partes também
9 COSTA, Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por Quotas Unipessoal no Direito
Português…, op. cit., pp. 402 e ss.
10 Ibidem, p. 427.
11 Importa para nós a regulamentação referente às sociedades anónimas e por quotas.
12 Não cremos que este número tenha sido subtraído do corpo do artigo 8.º, pelas
alterações introduzida pela Lei n.º 11/15, de 17 de junho, como resulta de algumas
publicações da LSC.
A SOCIEDADE UNIPESSOAL:
O SUBSTRATO PESSOAL CONSTITUÍDO POR UM ÚNICO SÓCIO
43
podem nomear um representante especial, sem prejuízo do exercício
dos referidos atos pelos contitulares13.
A questão controvertida quanto à contitularidade da participação ou
das participações consiste em saber se cada um dos contitulares ostenta
a condição de sócio, não obstante o modo de exercício dos direitos
inerentes à participação, ao ponto de uma resposta afirmativa negar o
caráter unipessoal da sociedade.
Quanto a esta questão, a doutrina tem trilhado caminhos deferentes.
RICARDO COSTA, por exemplo, entende não ser a unipessoalidade
compatível com a titularidade comum que recai sobre a totalidade da
participação ou participações, mesmo quando a atuação dos titulares
se preenche junto da sociedade através da atuação de uma só pessoa: o
representante comum14. Em sentido oposto trilham JOÃO ESPÍRITO
SANTO15 e CASSIANO SANTOS16, que entendem que, neste caso,
o exercício da participação é unitário, através do representante comum.
Mesmo nas situações em que os contitulares tenham de deliberar sobre
o sentido do exercício, a participação exerce-se sob orientação única.
Esta orientação única com base na qual os direitos são exercidos não
corresponde à vontade individual de cada um dos contitulares, mas à
vontade conjugada destes.
De facto, parece-nos mais convincente a posição doutrinária que
enquadra as situações de contitularidade no critério formal de sócio
único estabelecido pela LSU. Na verdade, o exercício dos direitos
inerentes à participação social é sempre feito de forma unitária. Esta
situação é clara na atuação relativa aos atos que se inscrevem na esfera
do representante comum. Porém, este tipo de atuação não deixa de
13 É a esta conclusão que chega Raúl Ventura, que entende que a lei não exclui a
possibilidade da atuação conjunta dos contitulares, em vez da nomeação de um representante comum. In Sociedades por Quotas: Comentários ao Código das Sociedades
Comerciais, vol. I – art. 197 a 239, 4.ª reimpressão da 2.ª ed. de 1989, Coimbra, Almedina,
outubro de 2007. No mesmo sentido, ESPÍRITO SANTO, João, Sociedade Unipessoal
por Quotas: Introdução e Comentários aos Artigos 270.º-A a 270.º-G do Código das
Sociedades Comerciais, reimpressão, Coimbra, Almedina, 2014, cit., p. 55.
14 COSTA, Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por Quotas Unipessoal no Direito
Português…, op. cit., p. 428.
15 ESPÍRITO SANTO, João, Sociedades por Quotas e Anónimas Vinculação: Objeto
Social e Representação Plural, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 55-56.
16 SANTOS, Filipe Cassiano dos, Sociedade Unipessoal por Quotas; Comentários
e Anotações aos Artigos 270.º-A a 270.º-G do Código das Sociedades Comerciais,
Coimbra, Coimbra Editora, 2009.
44
GORKI SALVADOR
se verificar quanto à prática de atos que não se inscrevem na esfera
do representante comum. Nesta situação, a Lei estabelece sempre
critérios que permitem a redução da pluralidade em unidade através da
conformação da vontade dos contitulares numa vontade única imputada coletivamente a todos17. Nos artigos 244.º a 246.º, o legislador
teve a preocupação de conferir legitimidade singular para o exercício
dos direitos sociais inerentes às participações detidas por diversos
titulares18. Mais, a própria LSC determinou a existência de um único
sócio para o caso de contitularidade da participação social, quando
afirma que, nestes casos, conta como «uma só parte» (art. 8.º, n.º 3 da
LSC)19. Nota-se que não se nega a qualidade de sócio de cada um dos
comproprietários, mas, para efeitos de exercício dos direitos inerentes
à participação social, eles contam como uma só parte20.
Este entendimento tem uma consequência muito importante para o
regime da unipessoalidade. Dele resulta que a titularidade da totalidade
da participação social de uma sociedade unipessoal em regime de
contitularidade, não obstante o facto de pressupor uma relação jurídica
complexa, se enquadra no conceito formal de unicidade estabelecido
pelo artigo 7.º da LSU.
4. A comunhão conjugal
O Código de Família angolano estabelece dois regimes económicos
para o casamento. O regime de comunhão de adquiridos e o regime
de separação de bens, sendo o primeiro o regime-regra, ou regime
supletivo geral21, segundo o artigo 49.º do Código da Família (CF).
A comunhão conjugal, ou o património comum, resulta da aplicação
do regime supletivo geral, segundo o qual fazem parte do património
17
Cf. ibidem, p. 56.
DUARTE, José Miguel, «A Comunhão dos Cônjuges em Participação Social»,
in Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, vol. II, setembro de 2005. Disponível
em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=45582&
ida=45607 [consultado a 12/02/2016].
19 RAMOS, Maria Elisabete, Código das Sociedades Comerciais em Comentário,
Vol. I, cit., p. 133, em referência ao art. 7.º, n.º 3 do CSC.
20 Também ESTURILLO LÓPEZ, Antonio, Estudio de la Sociedad de Responsabilidade Limitada, cit., p. 651.
21 MEDINA, Maria do Carmo, Direito de Família, 2.ª ed., revista e atualizada, Coleção
FDUAN (Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto), Luanda, 2005, p. 171.
18
A SOCIEDADE UNIPESSOAL:
O SUBSTRATO PESSOAL CONSTITUÍDO POR UM ÚNICO SÓCIO
45
comum os bens adquiridos por qualquer um dos cônjuges, a título
oneroso, durante a constância do casamento, desde que não sejam, por
força da Lei, excluídos da comunhão por serem bens próprios22.
Assim, é claramente possível que a participação social, por força da
comunhão conjugal, pertença a ambos os cônjuges. Neste caso, há que
analisar se o regime patrimonial a que se encontra sujeita a totalidade
da participação social determina a consideração de ambos os cônjuges
como sócios.
a) A participação que ingressa na comunhão pela intervenção
de um dos cônjuges
A sujeição da participação social ao regime da comunhão resulta, na
maioria das situações, da aquisição da participação social por apenas
um dos cônjuges ao longo da relação matrimonial. Nesta situação,
a LSC parece ser clara quando determina que, no caso em que a participação social, por força do regime patrimonial do casamento, pertença
à comunhão conjugal, é considerado sócio o cônjuge que celebrou o ato
constitutivo ou que tenha adquirido a participação ou as participações
(art. 9.º, n.º 2 da LSC).
Daqui resulta que, não obstante o facto de a participação social ser
bem comum dos cônjuges, na relação com a sociedade, é sócio o que
interveio diretamente na celebração do ato constitutivo da sociedade
ou do ato aquisitivo da participação ou das participações sociais23.
Porém, a lei não impede que o exercício dos poderes de administração
possa ser realizado pelo outro cônjuge, no caso de o cônjuge sócio se
encontrar impossibilitado de os exercer.
A ratio desta solução reside no facto de que, embora a participação
social esteja sujeita ao regime da comunhão, a qualidade de meeiro não
atribui, consequentemente, a qualidade de sócio ao cônjuge de quem
22
Ibidem, p. 177.
Alguns autores distinguem, a este propósito, o valor patrimonial da quota e
a qualidade de sócio, sendo o primeiro transmissível ao outro cônjuge, e o segundo
intransmissível – vide XAVIER, Rita Lobo, «Participação Social em Sociedade por Quota
Integrada na Comunhão Conjugal e Tutela dos Direitos do Cônjuge e Ex-Cônjuge do
“Sócio”», in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, Vol. III, Homenagem
aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 997 e COSTA, Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por
Quotas Unipessoal no Direito Português…, cit., p. 433.
23
46
GORKI SALVADOR
adquiriu a totalidade da participação social. Assim, será sócio aquele
a quem se imputa o ingresso da participação social no património do
casal24.
A referida disposição legal não ignora a disciplina matrimonial; na
verdade, ambos os cônjuges têm direitos sobre a participação social e
a comunhão conjugal é oponível à sociedade25. Da lei apenas decorre
que, para determinados efeitos (na relação com a sociedade), apenas
um deles é tido como sócio. Pretende-se com isso retirar legitimidade
ao cônjuge do sócio para exercer os direitos inerentes à participação
social, pelo que, em princípio, os preceitos legais e contratuais que se
referem ao sócio se aplicam exclusivamente àquele que interveio no
ato constitutivo da sociedade ou que participou no negócio aquisitivo
da participação social26.
O legislador pretendeu consagrar uma solução simples para os casos
mais comuns em que a participação social integra o património comum,
estipulando imperativamente que as relações com a sociedade sejam
validamente estabelecidas pelo cônjuge mais próximo da sociedade27.
Daqui fica clara a ideia de que, no caso de a totalidade da participação social integrar a comunhão conjugal, ainda estaremos perante o
conceito formal de unicidade. Neste caso, a lei também estabelece um
critério de legitimidade singular para o exercício dos direitos inerentes
à participação social.
24 Cf. COSTA, Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por Quotas Unipessoal no
Direito Português…, cit., p. 433.
25 A oponibilidade do regime matrimonial à sociedade é claramente espelhada no
n.º 3 do art. 9.º da LSC. Este preceito admite que o cônjuge do sócio exerça os direitos
inerentes à participação social quando o cônjuge «sócio» estiver, por qualquer causa,
impossibilitado de os exercer e de reafirmar os seus direitos no caso de morte daquele
que figura como sócio.
26 Cf. XAVIER, Rita Lobo, «Participação Social em Sociedade por Quotas Integrada
na Comunhão Conjugal e Tutela dos Direitos do Cônjuge e Ex-Cônjuge do “Sócio”»,
in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, Vol. III, Homenagem aos Profs.
Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Coimbra,
Coimbra Editora, 2007, p. 999.
27 Cf. DUARTE, José Miguel, «A Comunhão dos Cônjuges em Participação
Social…», cit.
A SOCIEDADE UNIPESSOAL:
O SUBSTRATO PESSOAL CONSTITUÍDO POR UM ÚNICO SÓCIO
47
b) A participação que ingressa na comunhão pela intervenção
conjunta de ambos os cônjuges
A situação apresentada anteriormente representa o caso mais recorrente, o da aquisição da totalidade de participações por apenas um
dos cônjuges. Porém, nem sempre as coisas são assim. Por vezes,
acontece que a totalidade da participação social é adquirida por ambos
os cônjuges, ingressando na comunhão conjugal através da intervenção
conjunta dos dois, ou que a totalidade da participação social é a eles
deferida.
Tal como referimos supra, fazem parte da comunhão todos os
bens adquiridos a título oneroso, pelos cônjuges, durante o período de
vigência da relação matrimonial [art. 51.º, n.º 1, al. a) do CF]. Assim,
para que um bem faça parte da comunhão patrimonial, é necessário que
seja adquirido por um ou por ambos os cônjuges. É também necessário
que a aquisição seja feita a título oneroso e na constância da relação
matrimonial28. Estão assim excluídos da comunhão conjugal os bens e
direitos adquiridos a título gratuito [art. 52.º, al. b) do CF].
A regra do art. 9.º, n.º 2 da LSC demonstra claramente que a participação social se comporta, relativamente à comunhão, como qualquer
outro bem29.
Parece clara a aplicação do regime da compropriedade à aquisição
conjunta a título gratuito da totalidade da participação social por ambos
os cônjuges. Isto resulta do facto de que, por força da lei, a aquisição
a título gratuito não faz parte do património comum, isto é, não integra
a comunhão conjugal. Assim, tal aquisição será comum, por força do
regime da compropriedade e sujeita ao regime estabelecido pelos arts.
244.º a 246.º e 334.º da LSC, com os efeitos e consequências anteriormente apontados, quanto ao seu enquadramento ao conceito formal de
unicidade estabelecido pela LSU.
Uma questão que pode levantar dúvidas sobre o regime aplicável
está relacionada com a aquisição conjunta da totalidade da participação social a título oneroso. Uma tal aquisição é, por força do regime
matrimonial, património comum; porém, é antes e também pertencente
aos dois por força do regime de aquisição, uma vez que foi adquirida
de forma conjunta por ambos os cônjuges. Questiona-se sobre o regime
28
MEDINA, Maria do Carmo, Direito de Família, cit., p. 176.
COSTA, Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por Quotas Unipessoal no Direito
Português…, cit., p. 433.
29
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GORKI SALVADOR
aplicável à esta situação. Será a ela aplicável o regime estabelecido
no art. 9.º, n.os 1 e 2, ou o regime estabelecido nos artigos 244.º a
246.º e 334.º da LSC, ou seja, aplica-se o regime sobre as participações detidas em comunhão ou o regime das participações detidas em
contitularidade?
Importa notar que o art. 9.º, n.os 1 e 2 da LSC é apenas aplicável
àquela situação mais recorrente, em que a integração da participação
ao regime de comunhão de bens resulta da intervenção de apenas um
dos cônjuges30.
Esta constatação conduz à inaplicabilidade deste regime à situação
em análise. Em ambas as situações, os sócios são contitulares da
participação social. Não se pode, em circunstância alguma, negar os
direitos do cônjuge do sócio sobre a participação social. Porém, há que
delimitar o regime aplicável a cada uma das situações.
A delimitação dos dois regimes é feita, de acordo com JOÃO ESPÍRITO SANTO31, em atenção à massa patrimonial própria ou comum
em que a participação social se integra e o modo dessa integração. Ora,
tratando-se de participação comum e se ambos intervieram no processo
aquisitivo, a matéria estará subordinada às regras especialmente previstas para as situações de contitularidade32 (arts. 244.º a 246.º e 334.º
da LSC). Esta solução apresenta a vantagem de resolver a questão da
legitimidade perante o costume de encabeçar a participação ou participações em apenas um dos cônjuges, por regra o cônjuge marido33.
Assim, à aquisição conjunta da totalidade da participação social a
título gratuito ou oneroso, é aplicável o regime da compropriedade.
A aplicação deste regime é excecional, uma vez que a participação
social é comum aos cônjuges, não por força da comunhão matrimonial, mas por força do regime de aquisição conjunta (contitularidade).
30 Esta parece ser a doutrina prevalente na literatura jurídica portuguesa. Neste
sentido, vide VENTURA, Raul, Sociedades por Quotas I, cit., pp. 517 e ss; VASCONCELOS, Pedro Pais de, A Participação Social, cit., pp. 376 e ss; XAVIER, Rita Lobo,
«Participação Social em Sociedade por Quotas…», cit., p. 998, ESPÍRITO SANTO,
João, Sociedade Unipessoal por Quotas: Introdução…, p. 54, nota 87 e ainda COSTA,
Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por Quotas Unipessoal no Direito Português…,
cit., p. 432, nota 477.
31 «Sociedade e Cônjuges», in Estudos em Memória do Professor Doutor João de
Castro Mendes, Lisboa, LEX, p. 404.
32 XAVIER, Rita Lobo, «Participação Social em Sociedade por Quotas…», cit., p. 998.
33 VASCONCELOS, Pedro Pais de, A Participação Social…, cit., p. 376.
A SOCIEDADE UNIPESSOAL:
O SUBSTRATO PESSOAL CONSTITUÍDO POR UM ÚNICO SÓCIO
49
A exceção funda-se no facto de que, por regra, os bens da relação
conjugais são comuns por força do regime patrimonial do casamento.
Quanto à questão sobre a verificação do critério legal de unicidade,
pensamos que continua a verificar-se. Perante tais situações, não se
poderá negar o caráter unipessoal da sociedade, devendo aplicar-se o
correspondente regime normativo34.
Nas duas situações – no caso em que a participação é comum por
força do regime patrimonial e no caso de a comunhão resultar da contitularidade –, o legislador teve a preocupação de conferir legitimidade
singular para o exercício dos direitos sociais inerentes a participação
detida por diversos titulares. A diferença entre os dois regimes prende-se com a forma de designação do representante comum dos contitulares e quanto à administração da participação social.
No caso da contitularidade, o representante é nomeado pelos contitulares ou pelo tribunal, nos termos do art. 245.º da LSC. Havendo
comunhão por força do regime patrimonial, o representante é designado por lei, segundo o art. 9.º, n.º 2 da LSC35 ou nos termos do artigo
48.º do CF.
5. O usufruto e penhor de participação social
A participação social comunga do conceito de coisa; sendo assim,
pode ser objeto de relação jurídica (art. 202.º, n.º 2 do Código Civil).
Sendo uma coisa, sobre a qual se exercem direitos reais, então, também
é possível que sobre ela se constitua um direito possessório. Na verdade, «donde la propriedade es posible, la posesión también lo es»36.
Assim, sobre as participações sociais podem incidir, na sua generalidade, direitos reais de gozo ou de garantia37.
Sendo o titular da participação social, o sócio pode livremente,
no âmbito da autonomia privada e em conformidade com os seus
34
ESTURILLO LÓPEZ, Antonio, Estudio de la Sociedad de Responsabilidade
Limitada, cit., p. 652.
35 Cf. ESPÍRITO SANTO, João, «Sociedade e Cônjuges…», cit., p. 405.
36 IHERING, Rudolph Von, La Teoria de la Posesión: El Fundamento de la Protección Posesoria, trad. espanhola, Madrid, Reus, 2004, p. 157.
37 ARNAUT, António Miguel, «A Coisificação de Participações Sociais: Breve
Reflexão», in Direito das Sociedades em Revista, Ano 8, Vol. 15, Coimbra, Almedina,
março de 2016, pp. 250 e ss.
50
GORKI SALVADOR
interesses, onerá-la, com atenção às limitações impostas por lei (art.
25.º, n.os 1 e 3).
A elasticidade é uma das características fundamentais dos direitos reais e consiste na capacidade de estes direitos se comprimirem
ou estenderem consoante exista um outro direito real (direito real
menor), cuja existência determina a paralisação dos poderes com eles
incompatíveis.
Esta situação verifica-se nos casos em que um terceiro aparece exercendo os direitos inerentes à participação social, como se de sócio se
tratasse, isto é, nos casos de constituição de usufruto ou penhor – neste
último, com a inclusão de cláusula expressa que atribui o exercício
de direitos sociais no instrumento constitutivo do penhor – sobre a
participação social38. As situações de usufruto e penhor reconduzem-se
a situações em que se verifica a existência de mais do que um direito
subjetivo real sobre a participação social.
Perante esta situação, questiona-se se a legitimação mediante o
exercício de direitos sociais é suscetível de atribuir ao sujeito legitimado ao exercício de tais direitos a qualidade de sócio, ao ponto de
se rejeitar o enquadramento de uma tal situação no critério formal de
unicidade estabelecido pela LSU.
a) O caso do usufruto de participações sociais
Sobre as participações sociais, como dissemos, é suscetível a constituição de usufruto. Este direito real menor consiste no direito de gozar
temporária e plenamente dos direitos inerentes às participações sociais,
sem alterar a sua forma ou substância (arts. 1439.º, 1466.º e 1467.º do
Cód. Civ.)39.
Este direito real limitado permite que o seu titular exerça todos os
direitos do sócio que não alterem a forma ou a substância da participação social. Assim, no caso de ser constituído um direito de usufruto
sobre a totalidade da participação social, verifica-se uma paralisação
do exercício destes direitos pelo proprietário. Nos termos do art. 25.º,
n.º 2, da LSC, os direitos do usufrutuário são os indicados nos artigos
38
De facto, o credor pignoratício poderá vir a exercer os direitos inerentes à participação social, caso assim seja acordado. O usufrutuário exercerá direitos sociais, sem
dependência de um acordo específico das partes.
39 CORREIA, Luís Brito, Direito Comercial, Vol. 2, cit., p. 360.
A SOCIEDADE UNIPESSOAL:
O SUBSTRATO PESSOAL CONSTITUÍDO POR UM ÚNICO SÓCIO
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1466.º e 1467.º do Cód. Civ., com as modificações previstas pela LSC,
mais os direitos que nesta lhe são atribuídos, tal como o direito a informação (art. 325.º da LSC). Estamos, neste caso, perante a ocorrência
de direitos incompatíveis sobre a participação social. Este conflito é
resolvido pela lei, dando precedência ao direito real limitado, cujo
exercício importa a paralisação do exercício de idênticos poderes pelo
proprietário de raiz, mas não a perda dos mesmos40. Emerge, neste
sentido, a situação em que o proprietário da totalidade da participação
social não coincide com o sujeito legitimado para recolher os benefícios e participar das assembleias gerais41-42.
Na verdade, o proprietário não perde, nem mesmo temporariamente,
quando o direito real é limitado, nenhuma parte do seu direito de propriedade. Ele sofre, porém, uma paralisia ou suspensão do exercício
destes direitos. O facto de não exercer os poderes não pode levar a
concluir que o nu proprietário deixou de os ter, embora temporariamente43. Após a cessação desta paralisação, mediante a extinção do
usufruto, a propriedade retoma o seu vigor normal44.
Verifica-se, de forma clara, que o proprietário de raiz é, na verdade,
o sócio45. O facto de os seus poderes se encontrarem paralisados pela
constituição de usufruto não altera a sua posição na sociedade. Olhando
para a natureza do usufruto, não há como reconhecer a este direito real
limitado capacidade para destruir a ligação entre o proprietário da coisa
e a coisa. Mais, constata-se que é o nu proprietário o obrigado, na ótica
da sociedade, ao inadimplemento dos deveres sociais e é ainda este que
40
VENTURA, Raul, Sociedades por Quotas I, cit., p. 399.
COSTA, Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por Quotas Unipessoal no Direito
Português…, op. cit., p. 423.
42 Nas deliberações que importem a alteração dos estatutos ou a dissolução da
sociedade o voto pertence conjuntamente ao usufrutuário e ao proprietário de raiz (art.
1467.º, n.º 2 do Cód. Civ.)
43 VENTURA, Raul, Sociedades por Quotas I, cit., pp. 398 e ss.
44 Ibidem.
45 Esta questão não é de todo pacífica na doutrina. Existem autores que entendem
que o usufrutuário é sócio, tal como o proprietário de raiz. Vide CORDEIRO, António
Menezes, Código das Sociedades Comerciais Anotado (coord. Menezes Cordeiro), 2.ª ed.,
Coimbra, Almedina, 2014, p. 149. Outros entendem que a atribuição ou a negação da
qualidade de sócio ao usufrutuário deve resultar da interpretação da norma legal ou da
cláusula contratual reportada ao sócio. Só o resultado desta interpretação permitirá, ou não,
excluir o usufrutuário desse âmbito. Cf. ESPÍRITO SANTO, João, Exoneração do Sócio
no Direito Societário-Mercantil Português, Coimbra, Almedina, junho de 2014, p. 807.
41
52
GORKI SALVADOR
surge como titular da participação social, não obstante o exercício dos
direitos estar restringido46.
Por tudo o que foi dito, deve-se concluir que é o proprietário de raiz,
não obstante o facto de o usufruto atribuir ao usufrutuário o exercício
de alguns direitos, como o direito de voto e de receber os lucros distribuídos, que ostenta a qualidade de sócio. Sendo assim, a legitimação
para o exercício de direitos sociais não atribui a qualidade de sócio à
pessoa legitimada.
Ergo, a sociedade continua a ser unipessoal, nos termos e para os
efeitos do art. 7.º da LSU, não obstante a constituição de usufruto sobre
a totalidade da participação ou das participações sociais.
b) O penhor de participações sociais
Observando a forma exigida, e dentro das limitações estabelecidas
para a transmissão entre vivos, a participação social é suscetível de ser
objeto de direito de garantia: o penhor de participações sociais (art.
25.º, n.os 3 e 4 da LSC). O penhor de participações sociais oferece ao
credor pignoratício fundamentalmente o direito de se pagar pelo valor
de transmissão ou de liquidação da participação social. Só quando for
convencionado entre o credor e o devedor é que o credor pignoratício
poderá exercer os direitos inerentes à participação social, tais como o
direito de voto e o direito aos lucros (art. 25.º, n.os 3 e 4). No caso de
o instrumento que constitui o penhor sobre as participações sociais ser
acompanhado da convenção pela qual se autoriza ao credor pignoratício o exercício dos direitos sociais, verificar-se-á também a mesma
falta de coincidência entre o proprietário da participação social e a
pessoa legitimada para o exercício dos poderes sociais, já constatada a
propósito do usufruto. No mesmo sentido, entendemos que só o titular
do direito de propriedade sobre a participação social deve ser tido e
tratado como sócio, ainda que existam outras pessoas legitimadas para
o exercício de alguns direitos correspondentes à participação social47.
Chegados aqui, podemos concluir que os diversos estados subjetivos que se podem apresentar à sociedade unipessoal, como nos casos
46
ANDRADE, Margarida Costa, Código das Sociedades em Comentários, Vol. I.
(coord. Coutinho de Abreu), cit., p. 395.
47 COSTA, Ricardo Alberto Santos, A Sociedade por Quotas Unipessoal no Direito
Português…, op. cit., p. 425.
A SOCIEDADE UNIPESSOAL:
O SUBSTRATO PESSOAL CONSTITUÍDO POR UM ÚNICO SÓCIO
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apontados, não são suficientes para afastar a aplicação do critério
formal de unicidade do art. 7.º da LSU. O texto do preceito do artigo
7.º da LSU não impede, por isso, uma leitura menos formalística do
problema, que pode abrir-se a uma compreensão mais lata48.
Nas situações correspondentes a compropriedade, comunhão conjugal, usufruto e penhor de participações sociais, o legislador teve sempre
a preocupação de conferir legitimidade singular para o exercício dos
direitos sociais.
48
Ibidem, p. 403.