ISBN 978-65-87621-86-9
DOI 10.11606/9786587621869
Organismos internacionais nas políticas
culturais para a América Latina
Arte, cultura, resistência
Júlio César Suzuki
Maria Margarida Cintra Nepomuceno
Gilvan Charles Cerqueira de Araújo
[Organizadores]
[SÉRIE: DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES]
2021
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP
Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Vice-reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS – FFLCH
Diretor: Prof. Dr. Paulo Martins
Vice-diretora: Profª. Drª. Ana Paula Torres Megiani
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA
Presidente da CPG: Prof. Dr. Júlio César Suzuki
Vice-presidente da CPG: Profa. Dra. Marilene Proença Rebello de Souza
COMITÊ EDITORIAL
Prof. Dr. Adebaro Alves dos Reis (IFPA)
Profª. Drª. Adriana Carvalho Silva (UFRRJ)
Prof. Dr. Adriano Rodrigues de Oliveira (UFG)
Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa (UNESP)
Prof. Dr. Alécio Rodrigues de Oliveira (IFSP)
Profª. Drª. Ana Regina M. Dantas Barboza da Rocha Serafim (UPE)
Prof. Dr. Cesar de David (UFSM)
Prof. Dr. José Elias Pinheiro Neto (UEG)
Profª. Drª. Maria Jaqueline Elicher (UNIRIO)
Prof. Dr. Ricardo Júnior de Assis Fernandes (UEG)
Prof. Dr. Roni Mayer Lomba (UNIFAP)
Profª. Drª. Telma Mara Bittencourt Bassetti (UNIRIO)
Profª. Drª. Valéria Cristina Pereira da Silva (UFG)
Catalogação na Publicação (CIP)
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição - CRB - 8/6409
O68
Organismos internacionais nas políticas culturais para a América Latina
[recurso eletrônico] : arte, cultura, resistência / Organizadores: Júlio
César Suzuki, Maria Margarida Cintra Nepomuceno, Gilvan Charles
Cerqueira de Araújo. -- São Paulo : FFLCH/USP, PROLAM/USP,
2021.
5.337 Kb ; PDF. -- (Diálogos interdisciplinares)
ISBN 978-65-87621-86-9
DOI 10.11606/9786587621869
1. América Latina – Estudo e pesquisa. 2. Integração. 3. Cultura. 4.
Intelectuais. 5. Cooperação internacional. I. Suzuki, Júlio César. II.
Nepomuceno, Maria Margarida Cintra. III. Araújo, Gilvan Charles
Cerqueira de.
CDD 980
A exatidão das informações, conceitos e opiniões é de exclusiva responsabilidade
dos autores, os quais também se responsabilizam pelas imagens utilizadas.
Capa: Trabalho gráfico e técnico de Fábio Molinari Bitelli.
Esta obra é de acesso aberto.
É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e a
autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.
SUMÁRIO
ATORES
INSTITUCIONAIS
E
PRÁTICAS
DE
INTEGRAÇÃO ..................................................................................................... 1
Júlio
César
Suzuki;
Maria
Margarida
Cintra
Nepomuceno; Gilvan Charles Cerqueira de Araújo
ARTISTAS IMIGRANTES EM SÃO PAULO: O PAPEL DA
ARTE NA INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA ................................................... 6
Adriana de Carvalho Alves Braga; Francisco Prandi
Mendes de Carvalho
MEMÓRIAS E AFETOS - AFROCENTRICIDADE NA 12
BIENAL DO MERCOSUL ................................................................................... 36
Alecsandra Matias de Oliveira
O SIMPÓSIO DA I BIENAL LATINO-AMERICANA DE
1978: DEBATE SOBRE A QUESTÃO IDENTITÁRIA NA
ARTE DA AMÉRICA LATINA .............................................................................. 46
Simone Rocha de Abreu
DIÁLOGOS ENTRE O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES
MUSEAIS E O ACESSO DO TRABALHADOR À
PRODUÇÃO CULTURAL: MÁRIO PEDROSA, A BIENAL
DE SÃO PAULO E O MUSEU DA SOLIDARIEDADE
SALVADOR ALLENDE....................................................................................... 75
Camila Vieira de Souza
REVISTA ARIEL LA PROPAGANDA DE LA RED
ANTIMPERIALISTA DE SOLIDARIDAD CON AUGUSTO
C. SANDINO. 1927-1930 .................................................................................. 90
Alejandra G. Galicia Martínez
REPRESENTAÇÕES
DA
VIOLÊNCIA
SOCIAL
NA
NARRATIVA DE EDUARDO CABALLERO E JORGE
AMADO .......................................................................................................... 117
Cristian Fabián Pulga Infante; Hiolly Batista Januário de
Souza
LYZ PARAYZO E ÉLLE DE BERNARDINI: NARRATIVAS
DE
CORPOS
DISSIDENTES
NA
ARTE
CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA .................................................................... 145
Débora Armelin Ferreira
ESTOU NA WEB, LOGO, COLABORO? ANÁLISE DE
INTERAÇÕES ENTRE MEIOS NATIVOS DIGITAIS DE
JORNALISMO IBERO-AMERICANOS .............................................................. 170
Edson Capoano; Pedro Rodrigues Costa
ARTE, CULTURA E TURISMO – BUMBA-MEU-BOI DO
MARANHÃO/
BRASIL:
PATRIMÔNIO
CULTURAL
IMATERIAL DA HUMANIDADE ....................................................................... 184
Fabia Holanda de Brito
SOY LOCO POR TI: A AMÉRICA LATINA COMO
CONCEITO
E
SUAS
RESSIGNIFICAÇÕES
NAS
COMPOSIÇÕES MUSICAIS (1945 – 2020) ..................................................... 197
Günther Richter Mros; Pedro Quinteiro Uberti; Rafaella
Chueri Abreu Rodrigues
PAPEL DE ESCRITOR: O JORNAL DOBRABIL, DE
GLAUCO MATTOSO, E A AMÉRICA LATINA .................................................. 218
Gustavo Scudeller
GLORIA ESTEFAN EM GUANTÁNAMO: PROJETOS
POLÍTICOS E REPRESENTAÇÕES EM CENA ................................................. 237
Igor Lemos Moreira
DE PONTOS DE CULTURA À CULTURA VIVA
COMUNITÁRIA: TEIAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS E DE
AGENTES CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA ................................................. 252
Juan Ignacio Brizuela; Alexandre Barbalho
MANUEL MENDIVE HOYO: O PERFORMER AFROCUBANO ........................................................................................................ 278
Marcelo Mendes Chaves
O TEATRO POLÍTICO NA AMÉRICA DO SUL E AS
DITADURAS MILITARES: CENSURA, REPRESSÃO E A
FUNÇÃO SOCIAL DO TEATRO ....................................................................... 304
Michelle Cristina Alves Silva
DOENÇA,
CONTROLE
DOS
CORPOS
E
DEMOCRACIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA
DE CAIO FERNANDO ABREU ......................................................................... 329
Milena Mulatti Magri
A POÉTICA DA ABSTRAÇÃO NA VENEZUELA E O
MANIFIESTO DE LOS DISIDENTES (1950)...................................................... 344
Vanessa Beatriz Bortulucce
A PRODUÇÃO PARTILHADA DO CONHECIMENTO
NAS
REDES
COLABORATIVAS
E
O
USO
DA
HIPERMÍDIA .................................................................................................... 365
Douglas Gregorio Miguel
CAMINHOS MUSICADOS DA RESISTÊNCIA: BRASIL E
URUGUAI (1967-1973) .................................................................................. 386
Bruno Henrique Bezerra Silva
SOBRE OS AUTORES ..................................................................................... 402
SOBRE OS ORGANIZADORES ....................................................................... 413
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
ATORES INSTITUCIONAIS E PRÁTICAS DE INTEGRAÇÃO
Em continuidade à série Diálogos Interdisciplinares, temos a satisfação de
apresentar três novas publicações, com a participação do Programa de Pós-graduação
em Integração da América Latina (PROLAM/USP) e Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH/USP), que respondem ao desafio de analisar, dentro do
campo cultural, sob diversas perspectivas a formação de redes colaborativas entre
inúmeros atores sociais, intelectuais, literatos, artistas e pensadores que estiveram e/ou
ainda permanecem atuando em distintas frentes nos países da América Latina : A
dimensão cultural nos processos de integração entre países da América
Latina, Intelectuais em Circulação na América Latina: diálogos, intercâmbios, redes de
sociabilidade e Organismos Internacionais nas políticas para a América Latina: Arte,
cultura, resistência.
São apresentados trabalhos de pesquisadores e pesquisadoras, de universidades
do Brasil e América Latina, que visam refletir as experiências desenvolvidas no campo
sociocultural a respeito da importância da dimensão cultural nas políticas de cooperação
entre os países, na formação de redes de sociabilidade entre intelectuais e demais
sujeitos sociais e políticos, que circularam em diferentes momentos históricos na região,
contribuindo assim para o fortalecimento, reformulação ou redefinição de novos
sentidos de integração entre as sociedades latino-americanas.
Os textos aportam reflexões sobre as políticas das instituições governamentais e
de organismos internacionais que exerceram e ainda exercem protagonismo na cena
cultural da América Latina além de nos apresentar momentos históricos importantes que
contribuíram para enriquecer nosso conhecimento sobre os fazeres artísticos e o
pensamento da América Latina.
Os autores e as autoras trabalham a partir de perspectivas próprias, com
abordagens pluralistas, no âmbito de cenários específicos, uma vez que são oriundos de
campos de conhecimento diferentes, mas todos confluem para o mesmo propósito, que é
o de promover, difundir, desvelar experiências culturais e, sobretudo, humanas, de
sujeitos sociais que valorizam
a cooperação entre saberes, as possibilidades de
intercâmbio de diferentes vivências e a aceitação/reafirmação de uma complexidade
cultural próprias da América Latina.
1
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Do ponto de vista da formulação conceitual, as contribuições de cada um dos
autores e das autoras compuseram um original e colorido ñanduti capaz de fazer frente,
como diria o peruano Juan Acha em Definición Latinoamericana de las Artes (Revista
CESA, 2004), aos velhos e anacrônicos paradigmas eurocentristas que até bem pouco
tempo tentavam definir nossa arte, nossa cultura, Nuestra América. Essa é nossa tarefa!
Em Artistas imigrantes em São Paulo: o papel da Arte na integração da
América Latina, escrito por Adriana de Carvalho Alves Braga e Francisco Prandi
Mendes de Carvalho, é apresentada a produção dos artistas radicados na cidade de São
Paulo e suas relações com o meio cultural da maior metrópole do país configurando o
que podemos denominar de integração entre e por meio da Cultura.
Alecsandra Matias de Oliveira, em Memórias e afetos - afrocentricidade na 12
Bienal do Mercosul, propõe um debate envolvendo as diferentes obras e artistas que
fizeram parte do evento, o histórico e importância das suas edições anteriores, os
desafios das mostras, as reflexões por meio de lives a partir do contexto pandêmico e as
perspectivas de referenciais afros em exposições efetuadas na 12 Bienal do Mercosul.
Em O Simpósio da I Bienal Latino-Americana de 1978: debate sobre a questão
identitária na arte da América Latina, Simone Rocha de Abreu apresenta um rico
exercício de dialogia teórica, crítica e analítica entre a(s) arte(s) e as formas de ser,
pensar e fazer da América Latina. Questões como o Outro latino-americano e o
eurocentrismo no saber e poder como secularizações também corroboram para o
fundamento das reflexões da autora.
Camila Vieira de Souza, em Diálogos ente o papel das Instituições Museais e o
acesso do trabalhador à produção cultural: Mário Pedrosa e a Bienal de São Paulo e o
Museu de Solidariedade Salvador Allende, apresenta pontes conceituais, históricas e
crítica sobre o papel dos museus em relação à sociedade em geral e a classe
trabalhadora em particular, propondo uma problematização tanto sobre a importância
destas instituições como o acesso e novas (re)significações e empoderamentos a partir
do acesso a seus acervos e exposições.
Em Revista Ariel – La propaganda de la red antimperialista de solidariedad con
Augusto C. Sandino. 1927-1930, Alejandra G. Galicia Martínez propõe um desafio de
visualização, análise e busca pelos pontos de contato e mútua partilha de elementos
2
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
entre a red de solidariedade, nas primeiras décadas do século XX, na Nicarágua, a partir
de suas experiências, vivências e desafios no campo político, social, cultural e histórico.
Em Representações da violência social na narrativa de Eduardo Caballero e
Jorge Amado, de Cristian Fabián Pulga Infante e Hiolly Batista Januário de Souza, há
uma análise comparada de dois autores da arte literária latino-americana e suas obras.
Pensar as redes culturais da América Latina por meio da arte é tão uma realidade como
profícua possibilidade, colocada em prática nesta discussão, por meio das semelhanças e
diferenças entre os elementos literários das duas obras.
Em Lyz Parayzo e Elle de Bernardini: narrativas de corpos dissidentes na arte
contemporânea brasileira, de Débora Armelin Ferreira, são os corpos e a corporeidade
nas obras das artistas que tomam relevo, em que a contemporaneidade é das criações
das artistas, em suas formas, cores, representações, imagens e significações são
apresentadas, correlacionadas e analisadas pelo prisma cultural e artístico.
Edson Capoano e Pedro Rodrigues Costa, em Estou na web, logo, colaboro?
Análise de Interações entre meios nativos digitais de Jornalismo Ibero-Americanos,
defendem que o digital e colaborativo unem-se, como indissociabilidade e
possibilidade. O jornalismo é o ponto de partida e chegada dos autores em sua análise,
propiciando um rico debate sobre as interações entre nativos e não nativos digitais na
Ibero-América pelo jornalismo.
Em Arte, cultura e turismo – bumba-meu-boi do Maranhão/Brasil: patrimônio
cultural imaterial da humanidade, de Fabia Holanda de Brito, há importante reflexão,
tão cara, como necessária, sobre o papel político, cultural, econômico, social e de
consolidação das redes culturais e artística na América Latina na dialética entre o
hegemônico e os movimentos de resistência entre singularidades e universalidades entre
sociedade, arte e cultura.
Soy loco por ti: a América Latina como conceito e suas ressignificações nas
composições musicais (1945 – 2020), de Günther Richter Mros, Pedro Quinteiro Uberti
e Rafaella Chueri Abreu Rodrigues, aporta o debate da música como forma de
expressão artística escolhida e trabalhada em termos de significação e ressignificação do
ser, pensar, fazer e sentir latino-americano, da segunda metade do século XX até os dias
atuais.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Em Papel de escritor: o Jornal Dobrabil, de Glauco Mattoso, de Gustavo
Scudeller, o sujeito criativo e seu papel na arte é o centro do debate proposto e
desenvolvido. Glauco Mattoso é escolhido pelo autor em seu desenvolvido a respeito da
centralidade de quem escreve e difunde por meio das palavras, imagens e significações
em diferentes mídias, como é o caso do Jornal Dobrabil.
Igor Lemos Moreira, em Gloria Estefan em Guantánamo: projetos políticos e
representações em cena, realiza uma correlação entre música, espetáculo, representação
e impactos de suas significações. Em múltiplas perspectivas, o autor trabalha a partir de
um evento específico de arte e música para efetuar pontes de interpretação e
problematização em diferentes campos, como política, cultura e economia.
Em De Pontos de Cultura à Cultura Viva Comunitária: teias de políticas
públicas e de agentes culturais na América Latina, Juan Ignacio Brizuela e Alexandre
Barbalho analisam as singularizações dos agentes culturais como protagonistas de redes
de políticas públicas. Em uma escala macro de redes culturais, há, inevitavelmente, o
papel e importância das ações individuais e localizadas, que (per)fazem os desafios e
consolidação da arte e cultura em diferentes amplitudes de expressão e manifestação na
América Latina.
Em Manuel Mendive Royo: o performer afro-cubano, Marcelo Mendes Chaves
valoriza recursos teóricos, metodológicos e visuais, a partir da apresentação de evento
artístico-cultural específico, para análise da cultura iorubá e suas implicações,
permanências, interpretações e formas de expressão atualmente.
Michelle Cristina Alves Silva, em O Teatro Político na América do Sul e as
ditaduras militares: censura, repressão e a função do teatro, defende que a arte, pelo
teatro, é foco da possibilidade de (re)existência de sujeitos pela história, cultura e
política. Tendo a América do Sul e seu histórico de regimes autoritários, como contexto,
a autora articula argumentos teóricos, analíticos e de significações do pensar, fazer e
sentir teatral latino-americano.
Em Doença, controle dos corpos e democracia: uma reflexão a partir da obra
de Caio Fernando Abreu, de Milena Mulatti Magri, há apontamentos e reflexões sobre
política e corporeidade, a relação em macro e micropoder, controle e liberdade a partir
das contribuições de Caio Fernando Abreu, tanto como amostra, quanto possibilidade de
novas aberturas e problematizações de análise.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Em A poética da abstração na Venezuela e o Manifiesto de Los Disidentes
(1950), Vanessa Beatriz Bortulucce defende a arte como manifesto e o manifesto como
arte, dialética posta como posições e ponderações que pode ser considerada como ponto
de partida e chegada dos debates; um convite para uma temática histórica, social e
cultural com imensurável potencial de aprofundamento teórico, analítico e
metodológico na América Latina.
Douglas Gregorio Miguel, em A produção partilhada do conhecimento nas
redes colaborativas e o uso da hipermídia, discute um dos desafios contemporâneos de
maior proficuidade em debates e aprofundamentos, que são as redes colaborativas no
mundo digital e suas diferentes formas de circulação por mídias diversificadas. Novos
horizontes de expressão e consolidação da arte e cultura, em suas dimensões políticas,
sociais, econômicas e históricas, são colocados como possíveis de serem trilhados no
âmbito latino-americano.
A coletânea encerra-se com a discussão de Bruno Henrique Bezerra Silva,
Caminhos musicados da resistência: Brasil e Uruguai (1967-1973), em que são
incluídas reflexões comparativas a respeito da América Latina pela música brasileira e
uruguaia. Questões e contextos políticos, sociais e econômicos somam-se a
configurações e panoramas de produção cultural que também são apresentados e
analisados.
Desejamos aos leitores uma ótima experiência de leitura dos debates aqui
reunidos, tendo no horizonte as reflexões, experiências e partilhas sobre a América
Latina.
Júlio César Suzuki
Maria Margarida Cintra Nepomuceno
Gilvan Charles Cerqueira de Araújo
[Organizadores]
5
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
ARTISTAS IMIGRANTES EM SÃO PAULO: O PAPEL DA ARTE NA
INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA
Adriana de Carvalho Alves Braga1
Francisco Prandi Mendes de Carvalho2
À Oriana Jara Maculet, in memorian3
APRESENTAÇÃO
No texto, discutimos a produção cultural de artistas imigrantes latino-americanos
e seu papel na integração da América Latina através da circulação de saberes,
destacando temas como o papel da Arte na integração da América Latina, a migração
como elemento de promoção de intercâmbio da produção cultural da regional e a
recepção do trabalho produzido por artistas sul-americanos. Destacamos a produção
localizada na cidade de São Paulo, onde esse intercâmbio cultural se manifesta através
da música, da dança e das Artes Plásticas, entre outras linguagens, e o engajamento
desses artistas promove o estreitamento dos laços entre seus contextos de origem e o
Brasil. Com o propósito de identificar, na produção artística, elementos de integração da
América Latina, ao longo do texto relacionamos os saberes produzidos pelos sujeitos
imigrantes à construção de uma cultura regional dialógica. Para atingir tal intento,
recorreremos a abordagem da leitura cultural proposta por Seixas (2016) buscando
desvelar como os artistas narram sua produção e que apontamentos têm sobre seu papel
na integração da América Latina.
Para construir essa teia narrativa, realizamos entrevistas com quatro artistas que
se dedicam a diferentes linguagens, e a seleção dos participantes atendeu a critérios de
equidade de gênero, multiplicidade de linguagens e representação das nacionalidades
1
Doutora em Educação, Arte e História da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail:
andritsena@hotmail.com
2
Mestre em Sociologia. Universidade de São Paulo. E-mail: francisco.prandi.carvalho@usp.br
3
Oriana Jarra Maculet, incansável lutadora pelos direitos dos imigrantes, pela dignidade humana, contra a
violência de gênero e grande incentivadora dos coletivos culturais de São Paulo.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
latino-americanas produtoras de conteúdo cultural em São Paulo. A partir desses
critérios, participaram desse estudo a dançarina paraguaia Patrícia Villaverde, o ator
boliviano Juan Cusicanki, o músico colombiano Aleksey Benavides e a muralista
chilena Verônica Ytier.
Um dos estudos mais significativos sobre a imigração latino-americana no Brasil
foi produzido por Margherita Bonassi (2000) que no livro Canta, América sem
fronteiras, evidenciou a intrínseca relação entre o processo migratório, a produção
cultural e a busca da cidadania. Naquele momento, as preocupações giravam em torno
dos mecanismos de regularização migratória e grande parte do trabalho foi dedicada a
desvelar a trajetória desses imigrantes na luta pelos direitos sociais. A propósito do
percurso investigativo, a pesquisadora destaca sua atuação participante-militante, o que
possibilitou “a descoberta do ‘valor de ser e diferente’, o ‘valor e a riqueza de cada
cultura, a própria e a dos outros’ e a descoberta da ‘migração como nova forma de
viver’” (BONASSI, 2000, p. 20).
Na cidade de São Paulo contemporânea, podemos antever que os desafios das
comunidades são outros, especialmente por conta da construção de políticas
migratórias4 pertinentes ao contexto migratório, que incidem sobre a garantia de
direitos, reconhecendo o caráter multicultural da sociedade. Todavia, permanecem os
desafios de inserção desses sujeitos à sociedade e, a esse respeito, a produção cultural
cumpre destacado papel. As narrativas são discutidas e interpretadas à luz das
discussões da migração simbólica e do multiculturalismo. Através dos depoimentos dos
artistas, pudemos verificar como eles se situam em relação ao contexto de produção,
espaços de circulação e a percepção sobre a contribuição do seu trabalho para a
integração regional.
O texto parte da vivência dos autores convivendo com imigrantes originários de
diversos países da América do Sul. Nos conhecemos no ano de dois mil e onze, em um
Festival Folclórico Chileno realizado no Memorial da América Latina e foi em diálogo
com essa e outras comunidades que demos passos importantes na nossa trajetória
partilhada. Temos vivenciado essa experiência compartilhando o palco através da
4
A esse respeito destacamos a Política Municipal para a População Imigrante (Lei Municipal 16.478/16),
o Conselho Municipal de Imigrantes e outras ações institucionais destinadas às comunidades imigrantes
residentes em São Paulo. Em âmbito nacional, ressaltamos a revisão da política migratória através da
instituição da Lei de Imigração (Lei Federal 13.445/17).
7
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
atuação, primeiramente no grupo Canto Libre, e mais recentemente no conjunto Chile
Lindo, momento de muito aprendizado para ambos. Como brasileiros, a oportunidade de
conviver com essas pessoas propicia cotidianamente a compreensão de diversos
fenômenos históricos e culturais da região e, através da produção artística, alargamos
nossa compreensão sobre nossa latinidade.
IMIGRANTES: INTELECTUAIS DA CULTURA
Parece-nos importante iniciar esse exercício teórico discutindo o caráter dos
artistas enquanto intelectuais, pois a condição migratória os conduziu a expressar-se
através da produção artística, na sociedade receptora. Considerando os aspectos da
migração simbólica, especialmente na redefinição identitária a partir do processo
migratório, é fundamental compreender como as identidades se mobilizam no exercício
dos papéis desempenhados pelos sujeitos na experiência social. Manuel Castells sugere
uma diferenciação entre as identidades e os papéis sociais e, para ele “em termos mais
genéricos, pode-se dizer que identidades organizam significados, enquanto papéis
sociais organizam funções” (CASTELLS, 2018, p. 55) e, para a análise do fenômeno
que nos propomos a investigar, essa definição é oportuna.
Contribuindo para a compreensão sobre o significado dos papéis sociais, Castells
(2018) afirma que estes são definidos a partir de negociações entre os sujeitos e as
instituições e organizações da sociedade. Já as identidades são construídas em contextos
marcados por relações de poder (CASTELLS, 2018, p. 55-56). Portanto, cabe coletar na
narrativa desses artistas, elementos que possibilitem identificar o modo como suas
identidades são constituídas e como se relacionam com as relações de poder para se
afirmarem como sujeitos produtores de cultura cumprindo o papel de intelectuais.
Ao discorrer sobre a natureza do trabalho intelectual, Gramsci (2001) alerta que
as determinantes a serem consideradas para definir a função de intelectual na sociedade
de classes devem ser balizadas por critérios fundados nas relações de poder
desenvolvidas no seio dessas sociedades. Ao afirmar que “seria possível dizer que todos
os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de
intelectuais”, Gramsci (2001, p. 18) situa que a posição de intelectuais é atribuída pelas
funções socialmente legitimadas. Por essa razão identificar, na atividade artística, as
8
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
características desse trabalho intelectual praticado pelos sujeitos requer “buscá-lo no
conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as
personificam) se encontram no conjunto geral das relações sociais” (GRAMSCI, 2001,
p. 18).
Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção
intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em
suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade
intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem
de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha
consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para
modificar uma concepção do mundo, isto é, para suscitar novas
maneiras de pensar (GRAMSCI, 2001, p. 52-53).
Não se trata, portanto, de relativizar os sujeitos em suas funções sociais, mas
reconhecer que no seio de suas atividades artísticas está engendrada uma concepção de
mundo que pode dialogar ou colocar em xeque os implícitos culturais nos quais ele se
desloca socialmente. Nessa perspectiva de trabalho intelectual, é importante asseverar
que esses artistas superam as assimetrias de poder porque os intercâmbios são
realizados entre as camadas populares. Essa perspectiva é importante porque não é
nosso interesse discutir cultura de forma genérica, mas situar a produção cultural de
forma concreta, considerando as relações sociais, que são marcadas pelo recorte de
classes e de disputa do poder.
Para auxiliar nessa compreensão, é relevante retomar a produção de Chauí
(2008), que na obra Cultura e Democracia, expõe algumas teses que nos ajudam a
compreender a problemática que estamos desenvolvendo nesse texto, especialmente
quando refletimos sobre a produção cultural. Para a filósofa, a cultura remete ao
“trabalho criador e expressivo das obras de pensamento e de arte” (CHAUÍ, 2008, p.
61), o que choca, perturba, provoca, faz pensar, trazer informações novas; é a produção
que se contrapõe ao que é vendido pela indústria cultural. Essa perspectiva é ampla e
discutida no âmbito antropológico, que se opõe à caracterização dos fazeres culturais a
partir das belas artes.
Outro ponto importante que podemos subtrair das reflexões de Chauí (2008, p.
61) é a distinção do campo cultural em face a outras dimensões da vida social. Para ela,
cultura é trabalho criador de sentido - que captura e interpreta o mundo -, é ação
9
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
produzida para aguçar o pensamento, a reflexão e imaginação e é direito dos cidadãos,
no âmbito fruição, da produção e da participação na política cultural. Nessa
compreensão, a cultura dever ser exercida como direito numa sociedade de classes, na
qual “os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito,
comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras e
movem todo o processo cultural” (CHAUÍ, 2008, p. 66). Essa perspectiva de cidadania
cultural defendida pela filósofa é válida para o nosso exercício de situar a produção
cultural desenvolvida pelos artistas imigrantes latino-americanos em São Paulo,
entendidos como sujeitos políticos minoritários.
Sobre a produção artística imigrantes em São Paulo, um importante mapeamento
foi realizado por Branco (2016), que discute a alteridade imigrante como a insistência
no direito à existência da diferença, especialmente em ser culturalmente ‘outro’ em
relação a uma hegemonia monocultural. Para Branco (2016, p. 4-5), ser imigrante é ser
alteridade e “negociar todos os dias os contornos de sua existência numa sociedade
majoritária, iludidamente homogênea e nacional. No mesmo caminho, a união imigrante
(...) é também ato político diante dessa mesma sociedade hegemônica”. Partilhamos
com a pesquisadora a compreensão de que os agentes culturais imigrantes que
produzem na cidade de São Paulo são atores fundamentais para a discussão do
pertencimento latino-americano.
Canclini (2008), ao refletir sobre a latinidade no contemporâneo, afirma que “o
latino-americano anda à solta, transborda seu território, segue à deriva em rotas
dispersas” (Canclini, 2008, p. 27). As interpretações sobre o lugar ocupado por essa
grande parcela da população mundial são talhadas a partir do significado da
globalização nessa parte do mundo, e o sociólogo atribui ao fenômeno migratório um
importante papel, pois “a intensificação das migrações está modificando de muitas
maneiras a localização da ‘latino-americanidade’ no mundo” (Canclini, 2008, p. 27) e
esses apontamentos são muito valiosos para a problemática que nos dispusemos a
analisar, especialmente no que tange à migração simbólica.
Considerando que ocorre uma redefinição identitária ocasionada a partir do
processo migratório, torna-se estimulante a tarefa de desvelar como o deslocamento dos
sujeitos latino-americanos promove a difusão dos saberes que podem contribuir para o
intercâmbio regional. Todavia, nesse exercício, precisamos considerar o alerta do
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sociólogo ao advertir que “queremos, não captar uma identidade latino-americana
autocontida, mas apurar como os velhos e novos processos se entrecruzam”
(CANCLINI, 2008, p. 26). Esses novos e velhos processos podem ser entendidos, nas
finalidades desta reflexão, como a historicidade que permeia a presença desses sujeitos
na cidade.
A presença de imigrantes na cidade pressupõe a definição desta como
multicultural e, a esse respeito, tratamos a temática a partir da perspectiva de Hall
(2018). O autor define o multiculturalismo enquanto termo qualificativo, que descreve
as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer
sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e esse é um traço da
formação da cidade de São Paulo; já o multiculturalismo se refere as iniciativas do
Estado em gerenciar as diversidades (HALL, 2018, p. 57).
E, finalmente, cabe ressaltar o caráter simbólico da migração já que, para Seixas
(2016), a migração não se resume ao deslocamento físico de um corpo pelo espaço
geográfico, pois o estudo das migrações “pode e deve abranger a migração emocional, a
espiritual, a idílica. O indivíduo ou grupo migra sempre que se deparar com elementos
de outro repertório simbólico cultural que não o seu, independentemente de esse
encontro resultar em situação conflitiva” (SEIXAS, 2016, p. 19). É nessa abordagem da
migração simbólica que conduzimos nosso trabalho, buscando identificar quais
elementos culturais os artistas imigrantes ressaltam em sua narrativa.
CAPTURANDO OS SABERES QUE CIRCULAM
O diálogo com os protagonistas deste estudo foi subsidiado por um roteiro
semiestruturado, composto por questões relacionadas ao projeto migratório que os
trouxe ao Brasil e as pessoas com quem interagiu ao chegar à São Paulo. Sobre o
trabalho artístico, perguntamos se, em seu país de origem, já desenvolviam trabalhos
artísticos e como percebem a recepção do público em São Paulo e em quais espaços se
apresentam. Finalmente, convidamos os participantes a refletirem sobre o papel da
linguagem artística que desempenham para a integração da américa Latina.
Essas questões – que foram adaptadas de acordo com a linguagem artística dos
participantes – nos auxiliaram a seguir um fio condutor e, ainda que não haja
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semelhança entre as respostas, possibilitam que desvelemos os elementos simbólicos
selecionados por eles para conduzir sua narrativa. As entrevistas foram realizadas no
início do ano de dois mil e vinte e um e, em virtude do contexto pandêmico que nos
impele ao isolamento social como uma das formas de prevenção da Covid-19,
utilizamos o ambiente virtual para coletar os depoimentos, de forma síncrona.
Optamos por transcrever os discursos e, ao término dos quatro relatos,
procedemos a uma ligeira análise, uma vez que os depoimentos falam por si mesmo,
não sendo necessárias mediações mais profundas.
ALEKSEY BENAVIDES: A MÚSICA É UMA LINGUAGEM QUE TODOS
SABEMOS FALAR
Colombiano de Bogotá, Aleksey Benavides migrou para São Paulo em dois mil
e catorze, aos vinte e sete anos. Sua formação é em Engenharia Química e essa é sua
ocupação profissional principal. Ele nos conta que migrou sozinho e veio morar com
familiares, também colombianos. Conhecemos Aleksey em dois mil e dezesseis, através
do trabalho musical dos dois grupos aos quais ele participa, o Tríptico Caribe e os
Cambamberos.
Imagem 1 - Aleksey Benavides em apresentação do grupo Tríptico Caribe.
I
Fonte: acervo do artista.
Quando convidado a refletir sobre o projeto migratório que o trouxe ao Brasil,
ele não entende que esse processo fez parte de um ‘projeto’, mas de uma busca pessoal.
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“Cara, não. Assim, eu não vim objetivo específico, não vim para
estudar, trabalhar ou a passeio, vim porque surgiu a possibilidade de
morar em São Paulo com um dos meus primos que mora aqui, mas
depois de ter suficiente tempo para pensar o motivo de estar aqui, eu
concluo que eu vim me procurar aqui no Brasil. Foi uma coisa mais
pessoal que eu consegui entender depois. Num sentido pessoal,
inclusive num sentido imigrante que eu não tinha na cabeça, pois
morei até os 26 anos em Bogotá. Eu nunca imaginei estar nessa, não
sei se dá para chamar de condição, de fazer parte desse grupo
imigrante do mundo. Então eu acho que vim redescobrir algumas
coisas que eu não estava entendendo na minha vida e aqui eu consegui
me encontrar de certo modo” (Aleksey, 2021).
Para Aleksey, sua chegada ao Brasil possibilitou que ele experimentasse essa
nova condição, ao participar do grupo de imigrantes. Ele nos conta que, no primeiro ano
que chegou ao Brasil, interagiu inicialmente com as pessoas da sua família. O contato
com outras pessoas, para além do seu círculo família, veio quando ele iniciou cursos
livres na EMESP Tom Jobim5, onde conheceu brasileiros e imigrantes, bem como
através dos cursos de Português realizados no Consulado da Colômbia em São Paulo.
Em Bogotá ele já havia estudado música em uma escola pública de formação de
músicos e participava do coral dessa instituição. Além disso, ele estava começando um
trabalho artístico com um amigo violonista, projeto que foi interrompido quando surgiu
a oportunidade de migrar para o Brasil. Quando perguntamos sobre a recepção de seu
trabalho no Brasil Aleksey avalia que o público é bastante receptivo e salienta que tem
se dedicado a propostas musicais distintas daquela que constitui seu objetivo musical,
que é a música autoral, com voz e violão. Apesar desse gosto pessoal, ele nos conta que
acabou ‘se encontrando’ nas propostas dos grupos Tríptico e Cambamberos, que são
mais dançantes ou, sem sua definição, são ‘tropicais’.
“as pessoas são receptivas com esse tipo de música, esses tipos de
ritmos, propostas, ainda mais os Cambamberos, que traz um conteúdo
migrante forte, acho que é bem... acho que complementou as nossas
propostas e trouxeram um pouco do que as pessoas já conheciam e
trouxeram mais da nossa cultura, então considero que a resposta do
público presente na cidade de São Paulo tem sido muito receptiva, de
aceitação” (Aleksey, 2021).
5
A EMESP Tom Jobim é a Escola de Música do Estado de São Paulo, uma instituição do governo do
Estado de São Paulo que proporciona formação musical para crianças e jovens e cursos de
aperfeiçoamento para músicos. Fonte: http://emesp.org.br/escola/ .
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Em sua percepção, o trabalho com a música intimista enfrenta o obstáculo de
disputar espaços, uma vez que já existem muitas propostas a esse respeito; já a música
‘hispano americana’ tem um diferencial que atrai o público. A respeito da recepção,
Aleksey reflete que ainda que o espaço seja competitivo, São Paulo “é um lugar que
recebe proposta de todo tipo, por ser uma cidade migrante (...) eu acho que as pessoas
estão abertas ou a grande maioria está aberta a escutar novas propostas seja intimista,
seja dançante”.
Sobre os espaços em que desenvolve seu trabalho, Aleksey informa que em São
Paulo conseguiu conquistar bastante lugares, tanto com Tríptico quanto com os
Cambamberos. Em relação ao Tríptico, as apresentações ocorrem em casas noturnas,
como o Exquisito, mas também no Centro Cultural Butantã, bibliotecas, alguns saraus
também, na rede SESC e algumas festas particulares. Aleksey manifesta a preferência
por públicos mistos, brasileiros e imigrantes, pois, para ele, as pessoas se animam mais.
Já em relação ao trabalho com os Cambamberos, ele ressalta que o público é bem
parecido. Sobre projetos futuros, Aleksey demonstra o interesse em ampliar o público
através da apresentação em comunidades que ainda não tem acesso a alguns bens
culturais. Para ele, faz falta esse contato com outros públicos.
Diversos ritmos colombianos o influenciaram e, para Aleksey, na Colômbia a
produção musical é enorme. Ele cita artistas como Joe Arroyo, Carlos Vives, Edson
Velandia, Totó la Momposina e ressalta a importância dos artistas da música campesina,
da salsa e do rock, afirmando que, em Bogotá, “se vive bastante o rock”.
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Imagem 2 - Aleksey Benavides em apresentação do grupo Cambamberos.
Fonte: acervo do artista.
Considerando essas influências e a trajetória artística do entrevistado, nos
interessou saber se algum elemento cultural que ele teve contato aqui no Brasil o
marcou, a ponto de ele pensar em incorporar ao seu trabalho artístico. Aleksey retoma
suas memórias de quando ainda vivia na Colômbia, em uma fase de sua vida que nem
aventava a possibilidade de migrar e, através de pesquisas, descobriu a Bossa Nova.
Para ele, esse gênero musical exerceu grande influência sobre o seu trabalho autoral. No
entanto, a migração possibilitou que ele tomasse contato com outras vertentes da música
brasileira.
“(...) eu não fazia ideia de que existia um nordeste que tem seus ritmos
próprios, seus ritmos dançantes, então já morando aqui aparece para
mim o forró e todos os ritmos que fazem parte dessa cultura, que hoje
penso fazem também parte do universo da música caribenha. Um dia
eu pretendo misturar dentro das minhas músicas e dentro de um
projeto de banda dançante elementos da música nordestina que
considero têm muita conexão com os nossos ritmos do caribe, pois
compartilham um objetivo comum, fazer o público dançar, igual faz a
salsa, a cúmbia, etc. Então eu gostaria muito de trazer essa parte
nordestino, além claro, das outras influências como samba, bossa
nova” (Aleksey, 2021).
Notamos, através desse trecho da narrativa, a perspectiva da tradução
intercultural do artista, especialmente quando ele compreende a partir da ideia da
conexão dos ritmos. A migração possibilitou que Aleksey conhecesse os ritmos
nordestinos, permitindo que ele reflita sobre a reelaboração do repertório cultural
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adquirido no seu país de origem, incorporando os novos elementos ao seu processo
artístico.
A esse respeito, ele prossegue, destacando algumas semelhanças entre a salsa, o
forró e a cumbia.
“(...) são músicas do povo, populares, folclóricas, regionais e isso faz
toda diferença é.… são ritmos que juntam as pessoas. Eu
particularmente não gosto de alguns ritmos dançantes em que a
proposta é você dançar sozinho, é... eu acho que a dança, me parece
que é a junção das duas pessoas, é muito importante, então eu acho
que ali é uma grande semelhança porque também fazem parte de
tradições regionais né, então é apresentação da nossa cultura latina,
e... mesmo que o, que o forró digamos não seja tão caribenho falando
em região, eu acho que a alegria que a música traz tem tudo a ver,
inclusive tem alguns instrumentos parecidos, tem a sanfona aqui, pra
gente aqui tem o acordeão da cúmbia e do Vallenato e isso já, isso já
traz uma ponte entre os ritmos” (Aleksey, 2021).
Evidencia-se, na transcrição acima, sua compreensão de que a música popular é
uma face importante da apresentação da cultura latina e, nessa discussão, cabe colocar
em evidência o papel do produtor. A esse respeito, perguntamos qual era a percepção do
trabalho do artista no seu país de origem, na Colômbia esse houve alguma mudança a
partir do processo migratório. Aleksey considera que a migração possibilitou que ele
reforçasse essa ideia do que significa ser artista quando chegou ao Brasil, pois na
Colômbia ele não tinha tanto contato com pessoas do meio musical. No Brasil ele
estabeleceu contato tanto com colombianos, quanto com outros imigrantes e brasileiros,
o que contribuiu para que enxergue o trabalho do artista “com muita força né... E acho
que nessa ideia de resistir, de usar arte como uma resistência é... Colômbia, Brasil em
geral, dá para falar que o artista é isso, é uma resistência através do talento, do
sentimento, do coração, da mente”.
Sobre o papel de resistência do artista, Aleksey complementa.
“A gente vive momentos difíceis sociais, políticos, de violência. Eu
venho de um país violento que usa a arte como uma forma de respirar
né, de confrontar também muitas realidades que a gente vem vivendo
há muito tempo, ironicamente, acho engraçado, eu vim da Colômbia
de uma situação tensa, política e socialmente falando, e aí eu chego no
Brasil que está igual (...). Então eu vejo que a arte seja a única, a
última ferramenta que nos resta para resistir a esses tempos, pra poder
inclusive expressar tudo que a gente sente em momentos assim, e acho
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
que inclusive, ironicamente, momentos difíceis servem pra que a arte
ganhe um peso maior e ela consiga movimentar o mundo.” (Aleksey,
2021).
Finalmente, Aleksey é convidado a emitir sua opinião sobre a importância da
música para a integração da América Latina e ele inicia informando que realizou um
trabalho de conclusão de curso de pós-Graduação cujo tema foi a canção Pequeña
serenata diurna, do cubano Silvio Rodriguez, e esse tema da integração através da
música foi abordado em seu trabalho. Falando sobre seu percurso de investigação,
Aleksey assinala que a adaptação feita por Chico Buarque para essa canção foi um
marco da integração musical.
“(...) minha conclusão né, que foi um ponto de partida para que por
exemplo a MPB da época e a trova cubana se juntassem e
começassem a fazer versões dos outros e aí abre o portão para que
outros músicos tenham contato com repertorio cubano e isso nasceu a
partir da música, do interesse de juntar as ideias, lutas, harmonias,
melodias. Então eu acredito totalmente que a música seja uma das
armas que a gente tem para continuar trabalhando. Estar aqui hoje
como imigrante, poder conversar com vocês sobre o trajeto musical
aqui no Brasil que eu confesso que nunca imaginei que ter... Então
não tem como não ser uma forma de juntar, afinal a música é uma
linguagem é que todos sabemos falar” (Aleksey, 2021).
Através do resgate dessas memórias e afirmação de percepções - sobre o
significado de ser um artista imigrante em São Paulo – notamos que a música se insere
nesse processo de reelaboração para Aleksey. É através da música, essa linguagem que
todos sabemos falar, que Aleksey se comunica e transita nesse grande cenário, que é a
cidade de São Paulo.
JUAN CUSICANKI: A ARTE NÃO TEM FRONTEIRA
Natural de La Paz, Bolívia, Juan Cusicanki tem cinquenta e quatro anos e
migrou para o Brasil em 1980. Sua ocupação profissional é de projetista de balões
infláveis, seu ‘ganha pão.’ Com a empresa de balões, Juan trabalha com cenografia,
lançamentos, eventos, e diz que é uma profissão que também trata de arte. Com
formação de ator de teatro, Juan Cusicanki também atua como performer, músico e
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dançarino. Conhecemos Juan através da atuação na peça de teatro Camiños invisibles...
la partida6 e pelo trabalho musical do grupo Kollasuyu Maya.
Ele nos conta que, na Bolívia, já era músico e dançarino e a migração para o
Brasil ocorreu com um grupo musical, o Karumanta, montado para fazer turnês pela
região. Antes de vir ao Brasil, esse grupo, definido por ele como autóctone (não
folclórico), havia se apresentado em um festival em Medelín (Colômbia), no Peru,
também em Oruro e Cochabamba. Após esse circuito, retornaram para La Paz e
decidiram vir ao Brasil, numa viagem de trem cheia de aventuras. Juan chegou ao Brasil
com catorze anos de idade, e nos conta que era o ‘mascote’ do grupo.
Sobre esse projeto migratório, Juan explica que o objetivo do grupo Karumanta
era chegar a América Central, passar pelo México e o Canada e depois, ir pra Europa, e
confessa que:
“(...) o Brasil é tão grande, que a gente se perdeu por aqui. E aí
chegamos no Carnaval né, [e disseram] "não, que isso, vamos tocar
né". Lá na Bolívia os grupos se misturam e tocam, é tudo livre.
Carnaval é livre lá e aí a gente vem aqui e de repente na avenida
Tiradentes só tinha samba, né? Aquelas escolas de samba passando e
imagina um grupo de índios com poncho e chapeuzinho e tocando
essas músicas, nada a ver. E o povo estava a fim de orgia, de brincar,
de dançar, de namorar, outras coisas e a gente estava com essa coisa
de história, né!” (Juan, 2021).
Juan relembra que seu grupo foi muito bem recebido pelos seus compatriotas.
Naquela época, já havia uma comunidade estabelecida em São Paulo, composta por
negociantes, autônomos, médicos, donos de oficinas de costura e músicos, que
indicavam o grupo para apresentações em restaurantes bolivianos. Além de auxiliar
nessas contratações, seus conterrâneos também ofereciam estadias temporárias em suas
residências.
O grupo Karumanta teve uma vida breve, se desfez em cerca de um ano e alguns
integrantes voltaram para a Bolívia, mas Juan e outros três companheiros optaram por
permanecer no Brasil.
6
Dirigida por Carina Casuscelli e Lenerson Polonini, da Cia. Nova de Teatro, peça trata da migração,
tratando de temas como exploração do trabalho e ancestralidade. Em 2012 Camiños Invisibles-la partida
recebeu o Premio Internazionale per il Teatro dell’Inclusione Teresa Pomodoro, em Milão, Itália. A peça
foi elaborada com uma trilha sonora que teve por base o grupo Jacha Sicuris de Italaque.
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Imagem 3 - Juan Cusicanki.
Fonte: acervo do artista.
Quando perguntado sobre os valores da cultura que ele procura compartilhar,
Juan afirma que são os valores históricos e ressalta a cultura Aymara, sua origem étnica.
Além de cantar e recitar em seu idioma nativo, Juan ressalta a importância da
respiração, e reflete sobre essa consciência corporal “em São Paulo, uma metrópole tão
grande, a gente se esquece de respirar, esquece de sentir as coisas, por isso talvez muita
gente sofre de asmas né?”.
Ao tratar da percepção sobre o trabalho do artista no seu país de origem, Juan
diz que na Bolívia tinha outra visão, que queria conhecer o mundo com a música
autóctone boliviana e, ao chegar ao Brasil, se deparou com algumas dificuldades, como
a língua e colonialidade.
“A coisa colonial muito é forte aqui e talvez a gente [bolivianos] não
tem mais isso. Essa é a grande diferença, [...] o artista boliviano não
tem mais essa fronteira do colonialismo, né? O brasileiro de forma
geral ainda está dividido, se perde talvez nessa história, que é
diferente do boliviano. o boliviano ele é de um lado ou do outro, ou é
de direita ou esquerda, esquerda ele sabe que não existe mais o
colonialismo, sabe que tem uma história, a história pós 1500, história
antes de 1500, a história dos incas, antes dos incas e depois. Isso é
muito forte e agora com chegada do Evo Morales se torna mais forte
ainda” (Juan, 2021).
Para Juan, a chegada de Evo Morales à presidência da Bolívia significou uma
ruptura com a história colonial e um fortalecimento das culturas originárias em seu país.
Rememora situações de preconceito que ele e sua família viveram em décadas
anteriores, por serem indígenas, mas salienta todo o processo de resistência, e conclui “a
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gente é originário tem a nossa história... E não tem como a gente tirar isso, está no nosso
sangue”.
“E aí chega Evo Morales e levanta a nossa moral, [...] do Quéchua,
Aymara e outros mais, e aí Evo Morales muda a constituição apoiado
pelas 36 nações indígenas. Muda a constituição que agora volta, né,
depois de sofrer um golpe em 2019, agora volta o povo (...), talvez de
uma forma diferente, mais forte ainda e eu acho que a gente é essa
história, e essa história que a Violeta Parra falava, essa história que a
Mercedes Sosa gritava, os outros também... os cubanos, argentinos.
Então é essa e nada mais, eles cantam a essência do latino né?” (Juan
2021).
Percebemos que, na perspectiva de Juan, os processos políticos ocorridos na
América Latina, de empoderamento das populações originárias, é uma continuidade da
resistência histórica. E notamos que, em sua narrativa, o artista adquire importância
nessa luta política e, sobre as estratégias utilizadas nesse trabalho artístico, Juan traça
algumas definições.
“Uma mistura de música autóctone, misturada com teatro, fica muito
mais viva, forte (...). Em alguns trechos o público se envolve na
história, então é muito importante as junções das linguagens, do
teatro, da música, eu coloco sempre à música histórica. E, hoje em dia,
ainda um pouco mais através da performance. A performance, como
linguagem contemporânea, é mais impactante (...) porque na
performance não se sabe no que ela vai dar, até onde ela vai fazer. Ela
é mais surpreendente, vai surpreender até o próprio diretor que não
sabia de algumas coisas” (Juan, 2021).
O trabalho artístico é exemplificado como uma ação ativa e, para Juan, “(...) é
uma coisa muito recíproca, do artista fazendo e o público respondendo. É uma coisa
viva, sabe? É uma atividade, uma reatividade, é uma coisa viva”.
Interessava-nos saber sobre o público que é atraído para as apresentações e Juan
nos informa que, nos últimos anos, esse é composto principalmente por jovens
bolivianos da segunda geração. Ele nos relata que têm participado de eventos na própria
comunidade e relembra um episódio recente, em que foi convidado a participar de uma
cerimônia de casamento em um cartório, aqui em São Paulo. A performance por ele
apresentada remeteu a um costume da Bolívia, e ele entoou canções no idioma Aymara.
Sobre essa experiência relata que, tempos depois, encontrou um dos convidados que
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assistiu a celebração, um senhor que se emocionou ao relembrar essa performance.
Diante da emoção desse seu compatriota, Juan o reconfortou: "isso só faz parte da nossa
história".
Outra experiência similar a essa é narrada.
“(...) no ano passado, faz uns três meses... era noivado, em Guarulhos.
Primeiro chega a família, toca a porta é meia noite...aí eles conversam
e a gente tá lá fora, esperando. Nisso conversa vai, conversa vem,
abrem a porta, entra só as pessoas que vão pedir a mão da moça.
Depois eles falam assim " a gente veio pedir a mão da sua filha, mas a
gente trouxe umas bebidinhas para vocês" aí entra o garçom leva a
bebida, né? E aí deixa eles bêbados e depois no meio a gente já entra
contando já para levar [a moça] embora. E aí tem os abraços, acho que
esse intervalo uma meia hora, uma hora de que a gente vai tocando
sicuri, as músicas tradicionais... e a gente leva a noiva tocando. Só que
aqui é longe, lá [na Bolívia] é perto, uma montanha ou um outro
bairro e aqui não! A gente chegou de três Kombi e entramos lá,
levamos a noiva e chegamos aqui no Brás (risos)” (Juan, 2021)
Esses dois episódios nos impressionaram porque evidenciam o caráter simbólico
da migração. Uma tradição cultural do casamento é trazida pelas pessoas que migraram
da Bolívia para São Paulo, passa por algumas adaptações, mas permanece através das
práticas simbólicas da vida social.
Outro elemento cultural ressaltado por Juan é a figura de Ekeko, personagem
símbolo da Fiesta de las Alasitas. Em São Paulo, Juan foi incumbido de interpretar
Ekeko na festa há 11 anos, e ele reflete sobre essa atuação salientando que “Ekeko é
toda uma história milenar também, é milenar essa história e quando eu fui convidado eu
já sabia o que ia acontecer (...) meu olhar não era de artista, intelectual, de músico, de
ator, nada... simplesmente o meu olhar foi de pesquisador de performance”.
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Imagem 4 - Juan Cusicanki realizando a performance de Ekeko.
Fonte: acervo do artista.
Para Juan, sua interpretação de Ekeko na Fiesta de las Alasitas representa um
ritual xamânico de esperança e sonhos e “tem toda uma história atrás disso. Indígena,
originária, toda uma história (...) aqui em São Paulo não morre mais”. Essa percepção
do significado simbólico da festa e de Ekeko faz com que Juan considere que, mesmo
quando ele não estiver mais incumbido de representá-lo, outros o farão.
“(...) é uma coisa assim, isso é ímpar, uma coisa nossa: você tem um
desejo esse ano, todo mundo tem um desejo esse ano, né? Eu quero ter
trabalho, quero ter dinheiro, alimento em abundância, sempre temos [o
desejo] que não falte. Alimentação, assim, é o mínimo, é o básico,
mas daí se tiver abundância é melhor ainda! Então, é muito essencial
para o homem isso, então todo mundo está dentro, ninguém está fora”
(Juan, 2021).
Sobre a importância da festa, Juan informa que no ano de dois mil e vinte
reuniram-se mais de cinquenta mil pessoas no Parque Dom Pedro e, nesse ano, a
celebração foi bastante reduzida, em virtude da pandemia de Covid-19. Mas, prossegue
esperançoso “ano que vem esperamos que já tenha passado toda essa febre e vai ser uma
coisa linda, grande, aberta, para todos, porque a história milenar do Ekeko é... essa é a
nossa história originária andina, sabe? Dos Aymaras, Quéchuas, dos indígenas”.
Refletindo sobre a importância da sua atividade artística para a integração da
América Latina, Juan acredita que a influência latina que tem sido vivenciada pela
chegada de artistas da Argentina, do Chile, que trazem toda a riqueza do continente.
Essa influência dos vizinhos possibilita, de acordo com Juan, uma produção artística
‘menos colonialista’.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
VERONICA URZÚA YTIER: A ARTE NÃO DEVERIA ESTAR SOMENTE NO
MUSEU, ELA DEVERIA ESTAR TAMBÉM NA RUA.
Verónica Urzúa Ytier nasceu em Santa Cruz, no Chile. Tem 71 anos e vive há
trinta e oito anos em São Paulo. Veio para o Brasil em mil novecentos e oitenta e três
com sua família. Sua profissão é Designer de Interiores, cuja formação se deu na
Universidad Federico Santa Maria em Valparaíso.
Imagem 5 - Veronica Ytier.
Fonte: acervo pessoal da artista
Sobre sua condição de imigrante no Brasil, Verónica reflete:
“Penso que ninguém sai da sua terra por muita vontade. Existem os
imigrantes económicos, os políticos e os que saem por razões
familiares que é meu caso, pois me casei com um brasileiro. Quando
você deixa o seu país carrega consigo sua cultura, seus costumes, seu
idioma, e tudo isso vai estar sempre presente na sua vida. Isso faz com
que você procure seus conterrâneos para se sentir mais à vontade e
não se isolar. Mas a verdadeira integração se dá quando se começa a
trabalhar e participar no seu novo país. E isto é o mais importante na
sua nova vida porque vai participar da sociedade. Penso que um país é
bom quando dá a oportunidade de trabalhar e ganhar seu sustento.
Visitar um país como turista é diferente da realidade de viver nele,
você só o conhece de verdade quando mora e trabalha nesse lugar. O
mundo é grande, mas nem tanto. As pessoas são todas parecidas,
independentemente de seu tamanho, cor ou sexo. Eu as divido em dois
tipos: as que me tratam bem e as que não me tratam bem.
Evidentemente eu me relaciono com as primeiras e as coisas correm
bem. Na condição de imigrante você tem algumas limitações, mas no
Brasil há muito que aprender, o que não é difícil pois o povo brasileiro
é muito solidário. Sendo o Brasil um país de imigrantes se torna fácil a
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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integração e cada povo que aqui chega é bem acolhido” (Verónica,
2021).
No Chile, Verónica já produzia Arte e nos conta que pintava quadros dos morros
de Valparaíso “meu programa de sábado e domingo era pintar ou desenhar e depois
pintava”. Fazia cursos de pintura na escola de Belas Artes de Viña del Mar à noite, e
chegou a participar de uma exposição organizada por essa escola. Nessa época de sua
juventude em Viña del Mar, Veronica pintava à óleo e chegou a vender quadros de sua
autoria e receber encomendas para fazer retratos. Mas sempre trabalhou ligada ao setor
de móveis e só nos últimos anos no Brasil começou a desenvolver o trabalho com
murais.
Sobre este trabalho, ela nos conta que este estilo de murais se desenvolveu no
Chile no começo dos anos setenta no período da campanha de Salvador Allende e se
estendeu ao longo do seu governo. Foi nesse período que conheceu as Brigadas
Populares Ramona Parra. Suas referências na produção dos murais remontam à essa
época, e Verónica destaca o trabalho de Alejandro Gonzalez, conhecido como Mono
Gonzalez. Os jovens das brigadas usavam cores fortes e rostos expressivos que
chamavam a atenção ao ser vistos de longe. Geralmente um deles riscava as figuras
enquanto os outros iam preenchendo os espaços e o resultado era muito bonito.
Os murais produzidos por Verónica são por encomenda e geralmente a artista e a
instituição que solicita o trabalho conversam sobre a mensagem que o mural pretende
transmitir. De posse dessas informações, a artista inicia o trabalho de composição das
figuras e cores, em seu ateliê. O projeto é apresentado à instituição que solicitou e, no
dia da elaboração coletiva, o público participa da pintura na parede ou muro, em
interação com a artista.
Os espaços que acolhem seu trabalho são diversos, e ela nos conta que já fez
murais em escolas públicas municipais de São Paulo: EMEF Geraldo Sesso, na
Brasilândia, EMEF Infante dom Henrique, no Pari e EMEF Maria Aparecida Rodrigues
Cintra, na Freguesia do Ó. Realizou o mural “Arte Popular” na Universidade Federal de
Santa Catarina para mostrar a arte muralista chilena. Posteriormente foi convidada para
uma atividade no Encontro Nacional de Estudantes do Serviço Social (ENESS) dessa
Universidade onde foi pintado o mural “Universidade Popular”.
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Imagem 6 - Mural “Por uma escola pública inclusiva” (2016), localizado na EMEF Infante dom
Henrique.
Fonte: acervo da artista.
Em Diadema, grande São Paulo, foi realizado um mural na Casa Bete Lobo.
Além disso, produziu murais para a ADURF7 que foram adaptados em outdoors na
cidade do Rio de Janeiro. Uma característica do muralismo realizado pela artista em
instituições é a participação das pessoas, que assumem junto com ela a produção da
obra. A artista idealiza, elabora os desenhos, prepara as cores, mas não pinta o mural
sozinha. Quem o produz é o público e, para ela, esse é o sentido democrático da arte que
produz “Porque eu acho, assim, a arte não deveria estar nos museus, guardada. Tem que
estar na rua para que a pessoa que passar pelo ônibus possa ver”. Sobre o trabalho em
escolas, a artista atribui importância tanto a participação do público quanto à mensagem
que é transmitida. E nos conta que certa vez enviou fotos e vídeos de seu trabalho para
suas amigas no Chile e “todas falaram ‘que lindo (...), mas a tua equipe é maravilhosa’.
Mas não é a ‘minha equipe’ era a escola! Então, é o povo fazendo arte! Entendeu? Isso
que é bom! Isso não tem preço!”.
O trabalho mais recente de Verónica em escolas foi o mural Mulheres incríveis8,
realizado na EMEF Maria Aparecida Rodrigues Cintra em dezembro de dois mil e
7
ADUFRJ é a sigla da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O mural “Mulheres incríveis” fez parte do projeto “Mulheres Incríveis: dez histórias, dez inspirações”,
desenvolvido pela professora Paula Rezende. Esse projeto, que teve por objetivo desconstruir o papel
secundário das mulheres na sociedade, conquistou o 3º lugar no prêmio Professor em Destaque
organizado pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo no ano de 2020. Fonte:
https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/conheca-os-vencedores-do-premio-educador-em-destaque/
8
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dezenove. Nele, é rendida homenagem à memória de mulheres ligadas à história e à
cultura brasileiras: Dandara, Aqualtune, Dona Ivone Lara, Sonia Guajajara, Mariele
Franco, Pagu e Carolina Maria de Jesus. Sobre a mensagem desse mural, ela revela:
“Era fazer lembrar nessa criançada, os alunos da escola, quem eram as
mulheres que lutaram aqui, no? E o que elas fizeram. E qual era o
recado? É mais ou menos assim "povo sem memória, não tem futuro"
Porque você vai na história do Brasil e não encontra, e ninguém fala,
ao menos que seja nessa comunidade. Dandara, por exemplo, não
sabia quem era, eu aprendi montes com esse mural, sabe? Então, agora
as meninas vão falar e ver quem são” (Verónica, 2021).
Para as instituições educativas, o trabalho de concepção e produção dos murais
geralmente é gratuito. A gestão da escola contribui adquirindo os insumos para a pintura
e atraindo o público para a atividade.
Mais um exemplo de colaboração do trabalho de Verónica no setor da educação
ocorreu por meio da utilização do mural “Escola Inclusiva” no livro didático de Inglês
para 8° ano da Editora FTD na matéria relativa a imigrantes.
Imagem 7 - Mural “Mulheres Incríveis” (2019), localizado na EMEF Maria Aparecida
Rodrigues Cintra.
Fonte: acervo da artista.
Em 2018 a artista participou de uma exposição9 no Memorial da América Latina
juntamente a outros artistas plásticos chilenos residentes em São Paulo. Veronica nos
9
A Primeira Exposição de Artistas Plásticos Chilenos foi sediada no Salão de Atos do Memorial da
América Latina, entre os dias 13 e 20 de agosto de 2018.
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conta que no Chile o muralismo é uma prática cultural muito difundida “quando você
vai a Valparaíso tem todas as ruas com murais, cada um faz do jeito que quer. É livre,
pegou uma parede da tua casa e pinta, é um costume”. Relembra que, certa vez,
caminhando por Valparaiso encontrou algo inusitado, um mural “com as cores do Brasil
e lá estava escrito em português”.
Diante de toda essa experiência artística e social qual seria, na visão de
Verónica, o papel da arte para a integração da América Latina? Ela reflete que qualquer
expressão artística é integração e ela percebe a relevância do seu trabalho através das
encomendas de seus murais.
“[...] o que me importa é a mensagem, eu pessoalmente tenho uma
mensagem, falar eu não sei falar, se eu falo ninguém me entende (...).
Colocar a tua mensagem é uma coisa que tá aqui dentro e o mural
preenche tudo. Então, eu faço solidariedade no Brasil, o que me
pedem eu faço, que é uma coisa que faz parte da minha pessoa, como
chilena. Agora, tem gente que dança la cueca10, toca violão, faz isso e
aquilo, cada um tem a sua arte e a minha é essa daí” (Verónica, 2021).
No muralismo desenvolvido por Verónica notamos que a integração está
relacionada ao conceito de interculturalidade, especialmente através da incorporação de
elementos da cultura brasileira nos murais.
“Então é isso que é importante também, porque mais ou menos a
minha ideia é não ficar somente no elemento chileno, sempre ponho
um indígena aqui do Brasil, pode ser indígena do Chile também ou os
dois, entende? Algo que caracteriza o Brasil, uma planta, uma
palmeira que é o Brasil. Então a ideia, não sei se estou equivocada ou
não, mas a ideia é parar com essa coisa de colocar barreira...
boliviano, colombiano, é tudo a mesma coisa!” (Verónica, 2021).
Ao término do diálogo, uma sentença revela a relação da artista com o Brasil:
“uma coisa fica clara, esse país é muito criativo, mas é outro estilo e é muito livre, sabe?
Tem muita liberdade, isso é bom”.
10
A cueca é um estilo de dança muito popular nos países andinos. No Chile, é considerada a dança
nacional.
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PATRICIA VILLAVERDE: A DANÇA É VIDA, ELA EXPRESSA VIDA, É
UNIR SEM PRECISAR FALAR
Patricia Villaverde tem 48 anos e migrou do Paraguai com a família aos 5, em
função de uma oportunidade de trabalho que seu pai recebeu no Brasil. Sua ocupação
atual é bancária, mas também é professora e já exerceu a docência na Educação Básica.
Quando chegou ao Brasil, sua família foi muito apoiada por uma senhora brasileira,
dona Elisa, que é apaixonada pela cultura paraguaia e acolheu sua família nesse
momento inicial: “Dona Elisa Soares, foi a primeira pessoa que recebeu meu pai e
minha mãe aqui em São Paulo, ela foi a pessoa que indicou as primeiras coisas como...
procurar uma casa, procurar escola para os filhos”.
No Paraguai, Patricia já estava inserida, desde muito pequena, nesse universo
artístico.
“Lá no Paraguai eu já dançava, ou seja, bem pequenininha, aos três
anos de idade. Eu tenho fotos (...) minha mãe guarda minha primeira
saia de ensaio de dança paraguaia, ela tem até hoje e hoje eu empresto
para algumas crianças, para minhas aluninhas, mas peço muito
cuidado porque é uma relíquia, então com 3 anos de idade minha mãe
já me colocou numa escola de balé e dança paraguaia” (Patricia,
2021).
Sobre a recepção de seu trabalho no Brasil, ela diz que atualmente percebe que o
público a recebe de forma “calorosa, carinhosa, espirituosa”, e avalia que esse
acolhimento só é possível por conta da Arte.
“Eu sofri muito preconceito, porque eu sempre falei em todo e
qualquer lugar, ‘sou paraguaia’. Teve época que eu até falei assim
comigo mesma "eu não vou falar, vou ficar quieta", porque dói muito
certas brincadeiras, dói muito certas indiretas, dói bastante (...). Eu sou
muito patriota, me dá muito orgulho falar do meu povo. Então com a
Arte eu percebi esse outro lado da sociedade paulistana, do brasileiro,
esse carinho que faltava quando eu falava que era paraguaia, eu recebo
com a dança, com a Arte que a gente mostra, eu sinto esse respeito e
isso me dá muito, muito orgulho mesmo de poder fazer, poder mostrar
e continuar fazendo. Me dá uma alegria imensa, eu sinto que estou
ajudando meu povo de alguma forma” (Patricia, 2021).
28
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Essa percepção é interessante pois a artista relata que sofreu situações de
xenofobia, mas que o trabalho artístico possibilita que as pessoas possam conhecer e
valorizar seu país e seus compatriotas e, para ela, “a dança quebra um pouco essa
parede”.
Imagem 8 - Patricia Villaverde.
Fonte: Acervo da artista.
Para Patricia, os elementos culturais do Brasil são incorporados ao trabalho do
grupo Alma Guarani, do qual ela faz parte, pois existe uma proximidade muito grande
entre o Brasil e o Paraguai.
“Apesar de grande parte da população não saber, a gente é muito
próximo (...) e a música sertaneja de raiz foi o que eu incorporei nas
apresentações para poder falar dessa proximidade. E também a música
sertaneja, por exemplo, a Helena Meireles, guitarrista, o avô dela era
paraguaio, né? Poxa, um paraguaio avô deu o primeiro violão para ela
e ela começou a tocar! Então o Paraguai está no Brasil, o Brasil está
no Paraguai, se a gente for capaz de ver os pequenos detalhes que
unem, a gente vai ser capaz de valorizar o outro e não discriminar
mais, então eu acredito que isso é possível através da Arte” (Patricia,
2021).
Ela prossegue dando outros exemplos dessa proximidade entre os dois países e
cita as guarânias como exemplo: “Muita gente acha que Índia é uma produção
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brasileira, ou Meu Primeiro Amor, né?”. E nos conta um episódio interessante a esse
respeito.
“Aquele filme ‘Lula, filho do Brasil o tema musical dele era uma
guarânia paraguaia, e saiu na mídia falando filme ‘Lula filho do
Brasil’ com a música popular brasileira ‘Meu Primeiro Amor’ e eu
ouvi aquilo e pensei ‘Gente, eu não acredito!’, vamos corrigir isso! A
gente fez um texto para mandar para a produção [do programa],
falando que aquela música era uma guarânia, que se chama Lejania. O
pessoal se retratou e falou "pedimos desculpas, porque domingo
passado falamos que a música Meu Primeiro Amor é uma música
popular brasileira e não, essa música é do Hermínio Gimenez,
paraguaio, e a canção se chama Lejania. (Patricia, 2021).
Essa dedicação em valorizar a sua cultura e mostrar a proximidade entre a
produção cultural do Brasil e do Paraguai é, para ela, uma de suas tarefas enquanto
artista. Patrícia nos conta sobre sua trajetória como bailarina, especialmente no grupo
Alma Guarani.
‘Eu entrei no grupo Alma Guarani, em 96, 97, mas eles já existiam.
Então o grupo Alma Guarani que não era com esse nome, se formou
na igreja, ele tinha outro nome, tinha outras pessoas como todo grupo
ele vai mudando, pessoas vão saindo, vão entrando pessoas... eu entrei
em 97 com outro nome também, outra professora, depois foi indo. A
professora saiu, teve outra que faleceu por problema de saúde e foi em
2003 que eu acabei assumindo a liderança porque não tinha ninguém e
a gente ficou todo mundo "e aí, o que a gente vai fazer? Vai
continuar..." e eu como amei muito foi uma coisa natural” (Patricia,
2021).
O grupo Alma Guarani é composto por pessoas de diferentes nacionalidades e, a
esse respeito, Patrícia reflete “qualquer pessoa de qualquer nacionalidade que goste, se
identifique, tenha um carinho por essa cultura é bem-vindo”. Do grupo também
participam brasileiros e brasileiras que não tem nenhuma ancestralidade paraguaia,
descritos por Patricia como “brasileiros da gema” e, nesse aspecto, ela ressalta que a
interação dos brasileiros no grupo é uma demonstração de um espírito de integração.
“A gente é do mundo, a gente simplesmente nasceu em um local
diferente, mas nós somos do mundo e que mundo é esse que faz parte,
é um mundo de amor? (...) É um mundo de preconceito? Eu só nasci
lá, eu tenho um outro idioma, uma outra história, mas sou do mundo
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
tanto quanto Francisco, tanto quanto Adriana... E eu acho que é isso
que falta. (Patricia, 2021).
Sobre os locais em que apresenta seu trabalho, destaca-se a Missão Paz, onde o
grupo nasceu, onde o grupo Alma Guarani é convidado a participar das atividades
culturais, como a festa da padroeira do Chile, e as festas do Peru. Nessas ocasiões, o
público é composto majoritariamente por comunidades imigrantes, como peruanos, os
chilenos, os colombianos, bolivianos. Outros locais onde o grupo se apresenta é o
Museu da Imigração, que organiza anualmente a Festa do Imigrante, além de outros
eventos culturais na cidade de São Paulo e fora da cidade de São Paulo. De acordo com
Patricia, nesses espaços o público é composto majoritariamente por brasileiros. Outro
elemento ressaltado na narrativa é que, muitas vezes, o público não os reconhece como
imigrantes, “eles acham muitas vezes que nós somos brasileiros e estamos
representando um outro país” e ela acredita que isso se deve ao fato de os participantes
serem fluentes em Língua Portuguesa.
Imagem 9 - Patricia Villaverde.
Fonte: acervo da artista.
Uma reflexão muito interessante foi desencadeada a partir do questionamento
sobre o papel da dança na integração latino-americana, e Patricia inicia informando que
sua tarefa é mostrar o folclore de seu país, o Paraguai, contudo, explica que não se trata
apenas de mostrar com perfeição os passos de dança na apresentação.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
“A roupa (...) mãos artesãs teceram, porque tanto a blusa dos
meninos, a blusa das meninas são todas artesanais e feitas
manualmente, então tem história de mãos artesãs, mãos paraguaias
sofridas (...) e nós estamos aqui para mostrar. A manta que as meninas
levam, preta, porque preto? Luto por uma guerra que aconteceu, pelos
filhos, pelos maridos, pelos pais que se foram, elas carregam aquele
manto preto, a mantilha. Há outra manta também, feita manualmente,
de lã crua de ovelha e que mostramos a época do frio, do sofrimento...
da mulher que teve que levantar um país. E essa mulher, tem muito
historiador que diz, são heroínas, invisíveis. Todo mundo fala de
Mariscal Lopez, mas ninguém fala daquela mulher que ficou sozinha e
teve que levantar sozinha um país nas costas, trabalhando, sendo mãe,
sendo pai. Porque ficaram mais mulheres que homens, e foram elas
que levantaram, reconstruíram o país” (Patricia, 2021).
A importância da mulher paraguaia é retratada nas apresentações do grupo, mas
este também é composto por homens, e esse cotidiano dos ritos culturais e do mundo do
também é representado pelo grupo.
“O cântaro que é uma moringa de barro, e tem água, era para que?
Quando tem as festas populares dos santos padroeiros, depois dos atos
religiosos saem as meninas e dançam com aquele cântaro, mas o que
significa aquele cântaro com água? Depois do ato religioso os
romeiros e tropeiros ficam com sede, então as moças, as mulheres
oferecem água para essas pessoas que estão com sede, então a gente
retrata várias coisas, desde festas sazonais, até o cotidiano, o dia a dia,
os homens na lida para colher a cana de açúcar e eles vão com aquele
machado, então tem danças que eles [os bailarinos] fazem com o
machado. Então é o dia a dia principalmente do homem e da mulher
do campo” (Patricia, 2021).
Por essa razão, para Patricia “a dança é vida, (...) ela expressa vida e o que ela
faz é unir sem falar. A dança é capaz de comunicar, de informar, de transformar, de
unir, sempre. Acho que não tem fronteiras, não existe tempo, a dança é capaz de fazer
isso”. O caráter formativo e educativo é, para ela, o faz com que essa linguagem
artística integre o artista à comunidade.
INTELECTUAIS EM CIRCULAÇÃO NA AMÉRICA LATINA: DIÁLOGOS,
INTERCÂMBIOS, REDES DE SOCIABILIDADE
O processo migratório é simbólico quando o sujeito seleciona elementos do
repertório cultural para compor uma representação sobre si mesmo e sobre o outro,
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numa situação de interação, conforme apontado por Seixas (2016). No decorrer dos
relatos, pudemos depreender que este movimento estava em curso, principalmente
quando os participantes salientam os elementos de proximidade entre sua cultura de
origem e a produção cultural brasileira. Exemplo disso pode ser constatada no relato de
Aleksey, quando este reflete sobre as músicas populares e o uso de alguns instrumentos
com sonoridades comuns, tais como o acordeón e a sanfona. Em relação aos gêneros
musicais, essa percepção também é evidente no relato de Patricia, quando ela reflete
sobre a música sertaneja e as guarânias.
Considerando a definição de cultura de Chauí (2008), compreendida como
trabalho criador de sentido, nota-se que todos os entrevistados revelam a percepção de
que sua produção se coloca como elemento de interpretação crítica do mundo. Para
Juan, o trabalho artístico é descrito como uma ‘ação ativa’, sendo essa uma atividade e
reatividade que considera e induz a experiência do público, considerado elemento
propulsor de seu fazer artístico. Sobre o caráter democrático da cultura, é relevante a
reflexão de Verónica quando a artista afirma que a Arte “tem que estar na rua para que a
pessoa que passar pelo ônibus possa ver”.
Através do resgate das memórias e afirmação de sua percepção sobre o
significado de ser um artista imigrante em São Paulo, a música desempenha um forte
papel nas considerações de Aleksey, se inserindo nesse processo de reelaboração de
uma identidade latino-americana, além de apontar como ferramenta de resistência e
passível de tradução intercultural. Retomando as proposições de Castells (2018) é
possível interpretarmos que essa a identidade migrante, que organiza os significados de
Aleksey como um homem colombiano em São Paulo se soma ao papel de artista, e é a
partir dessa função que ele situa sua produção artística, seja em seus trabalhos autorais,
seja nas músicas dançantes.
Sobre o Multiculturalismo, ressalta-se a narrativa de Juan quando ele considera a
Fiesta de las Alasitas como algo que vai permanecer. De fato, as Alasitas foram
incorporadas ao calendário oficial de festividades da cidade, fixada no dia 24 de janeiro
de cada ano, o que evidencia a intervenção do Estado no gerenciamento das sociedades
Multiculturais, através da institucionalização, conforme apontado por Hall (2018, p.57).
A participação de brasileiros nas manifestações culturais dessas comunidades é
elemento que demonstra não apenas o interesse desses imigrantes na integração
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
regional, mas demonstra a generosidade desses em se prestar ao papel educativo através
da Arte. Contemplando a riqueza cultural ofertada pelos imigrantes, não titubeamos em
afirmar que esses artistas são potência formativa. Foi essa percepção que nos estimulou
a refletir sobre o papel dos artistas na integração da América Latina e, para tal, ouvir o
que os próprios artistas têm a dizer foi elemento fundamental para a realização deste
estudo.
Os artistas são intelectuais que contribuem para o intercâmbio de saberes
justamente porque, através da sua produção, agem na aproximação entre a sociedade
brasileira e seus contextos de origem e, considerando que a cidade de São Paulo,
notamos que esse intercâmbio é acentuado pelo protagonismo desses artistas. Foi na
cultura latino-americana que os caminhos dos autores desse texto se cruzaram e, por
essa razão, registramos nosso agradecimento aos agentes culturais que tem se
empenhado na produção e circulação dos saberes em nossa região.
ENTREVISTADOS
Aleksey Benavides. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo.
Dia 2 de fevereiro de 2021.
Juan Cusicanki. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo.
Dia 4 de fevereiro de 2021.
Verónica Urzúa Ytier. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São
Paulo. Dia 18 de fevereiro de 2021
Patricia Villaverde. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo.
Dia 20 de fevereiro de 2021.
Referências
BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras: Imigrantes latino-americanos
no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
BRANCO, Cristina de. Agentes e atuações artístico-culturais imigrantes latinoamericanas contemporâneas na cidade de São Paulo e a invenção de novas
latinoamericanidades. Anais do II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América
Latina, 2016.
CANCLINI, Néstor García. Latino-americanos à procura de um lugar neste século. São
Paulo: Iluminuras, 2008.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: a era da informação. Volume II. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2018. 9ª edição.
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia. In: Crítica y emancipación: Revista
latinoamericana de Ciencias Sociales. Buenos Aires: CLACSO, Año 1, nº 1, jun. 2008.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 2: Os intelectuais. O princípio
educativo. Jornalismo. Ed. e trad. de Carlos N, Coutinho. Coed. de Luiz S. Henriques e
Marco A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 2ª ed.
HALL, Stuart. A questão multicultural. In: Da diáspora: identidades e mediações
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. 2ª edição, 1ª reimpressão.
SEIXAS, Renato. Migração simbólica e dialética da identidade cultural no processo de
migração. Cadernos PROLAM/USP, v.15, n.29, p.14-37, jul./dez., 2016.
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MEMÓRIAS E AFETOS - AFROCENTRICIDADE NA 12 BIENAL DO
MERCOSUL
Alecsandra Matias de Oliveira1
INTRODUÇÃO
Há 50 anos, o artigo Why have there been no great women artists?, de Linda
Nochlin, publicado na revista ArtNews, questionava de modo incisivo “por que não
existiram grandes artistas mulheres”? Visto como seminal, o ensaio expôs a questão
que envolve o papel atribuído ao feminino na história da arte, confirmou a lacuna nos
estudos sobre a atuação de mulheres artistas e abriu portas para nova abordagem
historiográfica.
Não por acaso, os anos de 1970 marcaram mudanças na cena mundial,
especialmente a partir da ação de movimentos sociais que reivindicaram o direito à vida.
No Brasil, assim como em outros países sul-americanos, a ousadia anti-hieráquica e
igualitária deu prioridade ao desafio frente aos regimes opressores e à estrutura social –
o que abafou outras demandas, entre elas, as de gênero e identitárias.
Apesar dessa condição, o número de mulheres artistas expandiu-se ao longo das
décadas seguintes e elas ocuparam lugares centrais na produção e na reflexão sobre o
contemporâneo. Já na virada do século, a quebra das metanarrativas ocasionou a busca
por referências na nova ordem mundial que se instaurava. Os grupos sociais, sexuais,
religiosos e étnicos outrora negligenciados – isto porque todos foram invisibilizados
pela tradição “patriarcal, branca e europeizada” - eclodiram com grande força. A
pergunta provocadora de Nochlin despertou sentidos numa geração de mulheres, artistas
e pesquisadoras que não menosprezaram ou ressentiram-se das discussões feministas.
Ao contrário, elas intensificaram o debate e surgiram novas complexidades inerente ao
discurso sobre o feminino. Evidenciam-se pontos nevrálgicos entre feminismo e as
discussões raciais dentro do movimento.
1
Doutora em Artes Visuais pela ECA USP (2008) e pós-doutorado pela UNESP (2018). Atualmente, é
especialista em cooperação e extensão universitária do MAC USP, membro da ABCA e pesquisadora do
Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: Crítica e
Criação (EDUSP, 2011). E-mail: alecsandramatias@gmail.com.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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Quando a décima segunda edição da Bienal do Mercosul, com curadoria da
argentina Andrea Giunta e equipe integrada pela polonesa Dorota Maria Biczel e pelos
brasileiros Igor Simões e Fabiana Lopes, adotou como temática Feminismo(s)
Visualidades, Ações e Afetos respondeu, de certo modo, a pleitos atuais e teve respaldo
nesse contexto que vem desde os anos de 1970. Como pesquisadora Giunta desenvolveu
estudos de gênero desde meados dos anos de 1990, incluindo o enfoque feminista a
partir da exposição Mulheres Radicais: Arte Latino-americana, 1960-1985, exibida no
Hammer Museum (2010), no Brooklyn Museum (2017) e na Pinacoteca do Estado de
São Paulo (2018).
A inflexão para a abordagem crítica estava também presente na temática O
Triângulo Atlântico da Bienal anterior, com curadoria de Alfons Hug, que escolheu
refletir sobre a escravidão e o apagamento sofrido pelas culturas africanas e indígenas.
Nesse itinerário, o curador levantou conexões entre Brasil e África – algo que
igualmente surge como mote nas produções contemporâneas preocupadas com
ancestralidade e representatividade. Assim sendo, a Bienal de 2020 apresentava outra
vertente da arte atual – a produção de mulheres.
E aqui enfatizamos o ponto de convergência entre as duas edições da Bienal: a
mulher negra. O que nos diz essa produção feita por artistas negras ou mestiças? Quais
suas preocupações e modo de fazer? Essas mulheres artistas propõem redes
colaborativas? Longe de esgotarmos todas as potencialidades e transversalidades desse
viés da produção contemporânea, propõe-se jogar luzes sobre a história que envolve a
organização da Bienal 12, em 2020, seus critérios curatoriais, suas condições de
execução, mas, sobretudo, sobre o discurso e a escolha de artistas que nos seus
repertórios trazem as memórias e as formas de resistência da ancestralidade negra.
Nessa seara, estão artistas, tais como: Rosana Paulino – uma das grandes
homenageadas da edição; as brasileiras Aline Motta, Renata Felinto, Janaina Barros,
Jota Mombaça, Musa Michelle Matiuzzi e Priscila Rezende; mas também, Rahima
Gambo (Nigéria), Glady Kalichini (Zâmbia), Gwladys Gambie (Martinica) e Joiri
Minaya (EUA). Todas essas artistas têm em comum a tentativa de reescrever as
narrativas tradicionais e de descolonizar o pensamento tendo a arte como instrumental.
Reunidas na mesma plataforma, suas investigações repercutem no circuito internacional
das artes por intermédio de grandes exposições – tal como a Bienal do Mercosul – e
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
motivam novas proposições centradas no feminino e, particularmente na condição da
mulher negra no Brasil e no mundo.
A BIENAL E AS EXPOSIÇÕES QUE VIERAM ANTES
Nas últimas décadas, têm ganhado densidade os estudos dedicados à história das
exposições. Algumas mostras consagradas receberam novas montagens e outras
voltaram ao debate público, explicitando, principalmente, o papel das instituições na
legitimação de movimentos, artistas e obras. Gradativamente, considera-se essa vertente
como capaz de desdobrar a obra de arte em diversas categorias de visibilidade, assim
como obriga a história da arte a conviver com a transitoriedade e com as distintas
relações que uma proposição artística pode adquirir a cada exibição.
Ao entrar no espaço controlado das galerias ou dos museus de arte, poucos se
dão conta que estão diante de um ambiente historicamente construído. As exposições de
arte sempre acompanharam as demandas da sociedade e apresentaram transformações
circunscritas ao modo de fruição de cada época. Dos gabinetes de curiosidades,
passando pelos salões europeus no século 18 e 19, chegando ao “cubo branco” do
modernismo entre os séculos 20 e 21, o modo de exibir as obras tornou-se ponte entre
arte e público, além do mais espelham valores, ideias e estigmas.
Sob essa perspectiva, conhecido por usar máscaras de gorila em suas aparições
públicas, o Guerrilla Girls, um grupo de mulheres artistas ativistas, surgido nos anos de
1980, invocava as questões relacionadas ao gênero, ao machismo e ao poder no mundo
da arte nas portas e nos arredores dos grandes museus norte-americanos. No início das
suas atividades, por exemplo, as ativistas convidavam os visitantes dos museus a
fazerem o que chamavam de weenie counts (algo como “contagem de salsichas”), ou
seja, contar o número de artistas homens e o de mulheres em cada exposição. Suas
ações denunciavam o desequilíbrio da representação de artistas mulheres nos acervos,
assim como alertavam para a condição da mulher no mercado de trabalho e na indústria
do entretenimento.
No caso especial de mostras que tratam sobre a produção de mulheres-artistas,
resgatamos a sequência de três exposições realizadas no Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo (MAC USP), com o tema “mulheres-artistas”, entre os
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
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anos de 2007, 2008 e 2009, com curadoria de Lisbeth Rebollo Gonçalves e Claudia
Fazzolari. As mostras coletivas integravam o ciclo Mulheres artistas e a
contemporaneidade. Concentravam-se em discutir o universo feminino e a posição das
mulheres no panorama artístico à época.
A primeira mostra Mulheres Artistas – Olhares Contemporâneos trouxe o fazer
artístico de Rosana Paulino, Élida Tessler, Karin Lambrecht e Beth Moysés, além da
homenagem à Tomie Ohtake. No ano seguinte, acompanhada por conferências e de
atividades educativas, realizou-se Mulheres Artistas – Relatos Culturais, contando com
as obras de artistas latino-americanas, como Lacy Duarte (Uruguai), Bruna Truffa
(Chile), Ana Miguel (Brasil) e Paola Parcerisa (Paraguai) – nessa mostra as homenagens
foram para curadora e crítica de arte Radha Abramo. Já fechando o ciclo, em 2009,
organizou-se a mostra Corpos Estranhos (em duas edições, no Memorial da América
Latina e no MAC USP). Composta por obras – vídeo, performances, fotografias e
instalações – das artistas Laura Lima (Brasil), Pilar Albarracín (Espanha) e Regina José
Galindo (Guatemala). Em comum, as três artistas apresentavam trabalhos com forte viés
psicológico, revelado através da exposição de seus próprios corpos ou de outrem.
Mais recentemente, a programação do Museu de Arte de São Paulo (MASP) tem
dado continuidade às exposições que tratam sobre histórias (Histórias da infância, em
2016, Histórias
da
sexualidade,
em
2017, Histórias
afro-atlânticas,
em
2018, e Histórias da dança, em 2020). Nessa programação, destaca-se Histórias das
mulheres, histórias feministas, em 2019, que revelou criadoras presentes no acervo
permanente do século 1 ao 19. Mencione-se ainda as individuais, como Tarsila, popular
(2019) e Beatriz Milhazes: avenida Paulista (2020-2021).
São essas ações e outras não descritas neste texto que proporcionaram o escopo
da 12ª. edição da Bienal do Mercosul – que teve um trabalho processual iniciado em
2018, através de seminários e eventos de preparação e que em 2020, contava com uma
seleção de artista vindos da América Latina (Brasil, Argentina, Chile, Peru, Equador,
Bolívia, Colômbia, Guatemala e República Dominicana), da América do Norte (EUA e
Canadá), Europa (Polônia e Espanha), Ásia (Japão e China) e África (Nigéria e
Zâmbia). Dos artistas participantes, 80% eram mulheres e entre os objetivos da mostra
estava o de ser uma “zona de intercâmbios”. Prevista para abril/2020, a 12ª. A Bienal do
Mercosul encontrou em seu caminho a crise sanitária ocasionada pelo novo coronavírus
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– era março/2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou o estado
de pandemia.
Naquelas circunstâncias, era impensável a organização de um evento artístico tal
como a Bienal. A solução encontrada foi levar todas as obras e ações para o ambiente
virtual – a primeira bienal em formato digital do planeta, como asseguraram alguns
críticos e jornalistas. A motivação do tema Femininos (s), Visualidades, Ações e Afetos
se colocou como ato de resiliência. Curadores e artistas tiveram que pensar juntos numa
nova forma de exibição das obras.
Originalmente, cerca de 30% dos trabalhos eram instalações e performances que
exigiriam a interação do público – esses trabalhos foram suspensos. Outros recursos de
fruição foram empregados, entre eles, a subversão do binômio espaço/tempo. O local de
fruição não era tão somente Porto Alegre e, sim o ambiente virtual, onde se
encontravam curadores, convidados e artistas. Nessas inúmeras e transitivas
“realidades”, a fruição estaria em todos os lugares e em todos os tempos – mesmo
agora, passados meses do encerramento da Bienal, é possível visitar os trabalhos e
escutar
os
depoimentos.
Então,
o
site
https://www.bienalmercosul.art.br/online) transformou-se em rede colaborativa em
processo, com a inserção de novas obras e proposições, com textos, fotos e informações
sobre o trabalho, o processo criativo e a intenção de cada artista.
AS ARTISTAS E AS OBRAS
Sob a eleição do recorte para nosso texto, temos onze artistas que em seus
trabalhos focam atenções sobre uma nova visualidade que envolve ancestralidade,
afetos e femininos, sendo sete brasileiras e quatro de nacionalidades distintas2. Optamos
por trazer ao presente texto, a ênfase em algumas dessas artistas e suas respectivas
proposições para o evento. Não caberia aqui a análise sobre cada obra e artista, mas,
confessemos: a tentação é grande! São trabalhos com diversas camadas de leituras e
desdobramentos reflexivos. Fiquemos a meio caminho do risco, abrindo, então, espaços
2
Aline Motta, Rosana Paulino, Renata Felinto, Janaina Barros, Jota Mombaça, Musa Michelle Matiuzzi
e Priscila Rezende (Brasil); Rahima Gambo (Nigéria), Glady Kalichini (Zâmbia), Gwladys Gambie
(Martinica) e Joiri Minaya (EUA).
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41
para alguns deles que nos apoiam no entendimento do repertório e do “fazer artístico”
sustentado por conceitos afrocentrados.
Na 12ª Bienal, Rosana Paulino (São Paulo, 1967) tem um lugar destacado: oito
trabalhos
foram
expostos
de
modo
virtual,
são
eles: Série
carapaça
de
proteção (2003), Parede da memória (1994-2015), Série tecelã (2013-2014), As filhas
de Eva (2014), ¿Historia natural? (2016), Paraíso tropical (2017), A geometria à
brasileira chega ao paraíso tropical – azul (2017-2018) e A geometria à brasileira
chega ao paraíso tropical – amarelo (2017-2018). Mais uma vez, o exercício de
selecionar os trabalhos para a discussão se faz necessário, escolhemos para comentários
cinco deles.
Em Parede da memória (1994-2015), a artista monta um “álbum de família”
impresso sobre patuás. Aos espectadores coloca-se uma árvore genealógica – uma
tentativa de reconstruir sua identidade a partir da ancestralidade. Aos afrodescendentes,
põe-se uma questão: a diáspora rompe com os laços familiares e a reconstrução dessa
linha condutora torna-se relevante para esse indivíduo. Nesse mural, a linhagem
ancestral constrói a identidade negra de grande parte da população brasileira.
Na série As filhas de Eva (2014), a artista emprega técnicas mistas sobre papel
azul para recriar imagens de africanos e sombras que evocam os pretos novos (escravos
recém-chegados que pereciam face aos maus tratos da viagem no navio negreiro). Essas
imagens aludem a flora e a fauna Brasilis, colocando o negro “como o natural da terra”,
ou seja, nada mais do que um elemento da fauna exótica (dele se retira a
humanidade). O título do trabalho nos faz lembrar que todas as mulheres, inclusive as
negras, são “filhas de Eva”– a primeira a provar do fruto do saber e, por consequência, a
ser expulsa do Paraíso.
¿Historia natural? (2016) é um livro de artista com 12 pranchas. Faz referência
aos volumes enciclopédicos – reconhecidos pela tentativa de ordenação dos reinos
animal e vegetal. Paulino dedica-se à pesquisa das teorias da classificação das raças;
subverte e sutura imagens e argumentos, mostrando o avesso da razão colonial. Através
da gravura e das colagens, a artista oferece imagens borradas, sujas e suturadas como se
nos mostrasse que aquela história, legitimada pelo discurso moral, religioso e
pseudocientífico, é falsa; tornou-se grande trapaça.
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Já em A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – azul (2017-2018)
e A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – amarelo (2017-2018) um cânone
da história da arte é questionado: que “vocação à geometria” é essa que nos conta o
abstracionismo e o concretismo nacional? Nesse espectro de indagação, os dois
trabalhos trazem imagens da exuberante natureza tropical e da iconografia de homens e
mulheres negros do século 19, em geral, em preto e branco, com interferências de
figuras geométricas em cores fortes – essa associação torna-se inquietante pelo contraste
visual. No fundo, explicita a ironia de um país que se pretende “moderno”, mas que
excluiu sua natureza e sua história.
Note-se que uma das lives mais concorridas do evento ocorreu no mês de julho
de 2020, com Rosana Paulino e o curador do programa educativo Igor Simões. Nessa
ocasião, temas, tais como, a necessidade de se usar o termo “arte contemporânea afrobrasileira” e o intercâmbio com artistas latino-americanas que tratam assuntos
semelhantes em sua poética são enfrentados pelo curador e pela artista de modo franco e
prospectivo.
Em um dos seus trabalhos anteriores, Renata Felinto (São Paulo, 1978) nos
mostra como os territórios são racializados na cidade de São Paulo – transformam-se em
verdadeiras fronteiras intangíveis. No vídeo performance White face and blonde hair
(2012), realizado na Rua Oscar Freire, ela caminha com o rosto pintado de branco,
trajes “à lá patricinha” e uma peruca loira. Sua presença ali provoca a perplexidade e o
desconforto dos transeuntes – o preconceito tão velado transparece em seus rostos com
tensão. Na 12ª Bienal, Felinto apresentou Danço na terra em que piso (2014). Ela
dançou por sete locais públicos da cidade de São Paulo, alguns pontos históricos e
outros ligados às suas memórias. Para cada lugar, uma música (uma paisagem sonora) –
a seleção considerou a letra da música, questões históricas e afetos – nessa proposta, o
corpo da mulher negra ocupa espaços, exercendo seu devido pertencimento.
De ascendência nigeriana, Rahima Gambo (Londres, 1986) desenvolve seus
projetos a partir Abuja, onde fixou residência. Dona de múltiplas linguagens, entre elas,
a ilustração, a fotografia, o texto, o vídeo, a escultura e a instalação, seu projeto mais
conhecido é Education is Forbidden (2015-2017). Nesse trabalho, Gambo abordou a
luta de meninas que tentam obter educação no Nordeste da Nigéria e explorou como é
ser aluna em meio a dominação do Boko Haram. O nome do grupo radical islâmico, em
42
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livre tradução, diz que “a educação ocidental ou não-islâmica é pecado” – confirmando
o fundamentalismo religioso. Como estratégia de ação, o grupo terrorista sequestra
mulheres, comete assassinatos e ataca povoados. Na série Tatsuniya holiday is coming
(2017), apresentada na 12ª Bienal, a artista continua conceitualmente a série Education
is Forbidden, usando imagens estáticas e instalações para representar as jovens alunas
da escola Shehu Sanda Kyarimi, em Maiduguri. A artista propôs, em princípio, uma
foto-documentação das estudantes, porém, aos poucos, a ação tornou-se desdobramento
lúdico com narrativas compartilhadas entre as meninas e a artista – juntas elas
reconstituíram brincadeiras de infâncias e passeios pelo parque local.
Sendo promessa de renovação das artes visuais na Martinica, nossa última artista
é Gwladys Gambie (Fort-de-France, 1988). Ela questiona a condição dos corpos das
mulheres negras e explora sua descolonização, a partir da prática do desenho e da
escultura. Para a Bienal 12, Gambie expandiu a série de colagens The birth of Manman
Chadwon (2018), uma figura de sua mitologia pessoal inspirada em Manman Dlo, a
deusa do oceano na cultura afro-caribenha. O significado da palavra chadwon, em
“creole”, também remete a ouriço do mar, uma referência recorrente no trabalho da
artista. Gambie evoca imagens que usam o corpo para contar sobre identidade, gênero e
resistência.
Ao fim e ao cabo, essas mulheres artistas tratam sobre suas memórias carregadas
de ancestralidade, de questões que envolvem a discussão sobre a violência, o racismo e
o gênero. Os anseios e as preocupações desse grupo social pautam os trabalhos dessas
artistas de modo sensível e denunciador. O uso dos objetos domésticos do universo
feminino e as referências ao corpo da mulher transformam-se em matéria-prima para a
reflexão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, 12ª Bienal do Mercosul respondeu a pauta coeva na arte
contemporânea: o “fazer arte” de mulheres, sua visualidade, seus temas e motivações. O
registro sobre a produção de artistas mulheres foi escrito por elas próprias. Foram elas
as protagonistas frente à organização e ao conteúdo do evento.
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No seu formato tradicional, a Bienal, costumeiramente, era espaço de exibição,
fruição e intercâmbios entre artistas, críticos e público. Porém, com as condições
impostas pela pandemia, o evento se tornou virtual. Era necessário fazer valer o tema
selecionado para a mostra que envolvia resiliência, mudança de planos e inovações no
modo de exibir obras e ideias. As lives, os eventos de preparação e paralelos, os textos
de apoio e os depoimentos foram fundamentais para a extroversão da mostra – tudo
contido/expandido pela plataforma digital. Para a história das exposições, o evento
torna-se capítulo singular e cheio de potencialidade para novos estudos e abordagem.
No recorte selecionado para este artigo, percebe-se que as artistas, mulheres e
negras têm em seus repertórios conceitos ligados à ancestralidade, aos femininos e aos
afetos. Elas são senhoras de manifestações questionadoras. Suas proposições rompem
com valores e estigmas coloniais; evocam sentimentos de identificação, reconhecimento
e pertencimento. Evidenciam questões que por muito tempo foram abafadas.
Elas tomaram para si temas e linguagens que expressam suas vidas e,
simultaneamente, realidades plurais. Seus trabalhos mostram que as demandas das
mulheres negras não se restringem ao Brasil. Reunidas na mesma plataforma suas obras
geram possibilidades de reflexão e de ativação de redes colaborativas sustentadas pelos
discursos do afeto, dos femininos e da ancestralidade.
REFERÊNCIAS
AJZENBERG, Elza e MUNANGA, Kabengele. Arte Moderna e o Impulso Criador da
Arte Africana. Pesquisa em Debate. Edição 9, vol. 5, n. 2, jul-dez. 2008.
BOUSSO,
Daniela.
Quem
são
os
artistas
negros
da
arte
contemporânea?. Select.https://www.select.art.br/quem-sao-os-artistas-negros-de-artecontemporanea/. Acesso em 05 dez. 2017
CONDURU, Roberto. Arte Afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.
GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Bienal 12: um espaço de intercâmbios. Revista USP.
São Paulo, n. 126, p. 112-124, jul./ago./set. 2020.
KIYOMURA, Leila. Quando a arte das mulheres desafia a covid-19. Jornal da USP.
Disponível em https://jornal.usp.br/cultura/quando-a-arte-das-mulheres-desafia-a-covid19/. Acesso 31 mar. 2021.
44
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. A reescrita da história. Jornal da USP. 16 out.
2020. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/a-reescrita-da-historia/. Acesso em 31
mar. 2020.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. O jogo da memória. Jornal da USP. 20 dez. 2019.
Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/o-jogo-da-memoria/. Acesso em 11 ago.
2020.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. A “Onda negra”: arte visual afro-brasileira,
legitimação e circulação. Jornal da USP. 05 out. 2018. Disponível em
https://jornal.usp.br/artigos/a-onda-negra-arte-visual-afro-brasileira-legitimacao-ecirculacao/. Acesso em 13 nov. 2018.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Mulheres, negras e perigosas. Jornal da USP. 18
dez. 2017. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/mulheres-negras-e-perigosas/.
Acesso em 11 ago. 2020.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias. Das ‘pequenas’ violências: um ensaio sobre história e
arte. CIANTEC’16 A Força do Terro como Inspiração Criativa. Filhos do Cotidiano
Contemporâneo. Itu: CIANTEC, 2016.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Memória da Pele – o devir da arte contemporânea
afro-brasileira. Arte e Cultura da América Latina. São Paulo: Terceira Margem. Vol.
XXVIII, 2º. Semestre, 2012, p.p. 35-42.
VIANA, Janaina Barros. A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero,
artefato e epistemologias na arte contemporânea de autoria negra. 2018. Tese
(Doutorado). Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte
da Universidade de São Paulo. São Paulo: PGEHA USP, 2018.
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O SIMPÓSIO DA I BIENAL LATINO-AMERICANA DE 1978: DEBATE
SOBRE A QUESTÃO IDENTITÁRIA NA ARTE DA AMÉRICA LATINA13
Simone Rocha de Abreu14
INTRODUÇÃO
O Simpósio da I Bienal Latino-americana de São Paulo ocorreu entre três e seis
de novembro de 1978, foram os três primeiros dias da mostra de arte promovida pela
Fundação Bienal de São Paulo (FBSP) com o recorte latino-americano e que trouxe
como tema: Mitos e Magia. A convocatória para tal simpósio foi feita no regulamento
da I Bienal Latino-americana, que conclamou os “estudiosos de todas as partes do
mundo, em diferentes disciplinas, para participarem do Simpósio” (FBSP,1978, p.20) e
definiu-se os temas a serem discutidos de forma bastante clara: “1- Mitos e Magia
na Arte Latino-Americana. 2- Problemas Gerais da Arte Latino-Americana. 3Propostas para a II Bienal Latino-Americana de 1980” (FBSP,1978,p.25-26). É
importante notar que houve a explicita citação do tema da I Bienal, ou seja, Mitos e
Magia, mas também existiu a abertura para a possibilidade de discussões de outras
questões sobre a Arte Latino-americana, outro ponto relevante a perceber é que havia o
claro projeto de fazer outras mostras específicas com o recorte latino-americano, ao
menos uma segunda bienal, projeto este que não foi concretizado. A ideia de abrir a
mostra com um simpósio discutindo as questões centrais engendradas parece excelente,
mas não teria sido melhor um simpósio com essas discussões antes da organização da
mostra? Nesta segunda opção me parece que o simpósio poderia trazer subsídios para as
escolhas feitas para a organização desta Bienal.
A despeito da situação política das ditaduras militares em diversos países da
América Latina este simpósio reuniu pesquisadores e críticos importantes da cena
13
Este texto é uma síntese de parte do relatório de pós-doutorado em Artes, desenvolvido junto ao
Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho
(UNESP – SP).
14
Docente Adjunta do Curso de Artes Visuais e do Mestrado Profissional em Artes da Faculdade de
Artes, Letras e Comunicação da Universidade Fedral de Mato Grosso do Sul (FAALC- UFMS) e
coordenadora do Projeto de Pesquisa “Arte da América Latina: habitando a decolonialidade em arte” Email: simone.rocha.abreu@ufms.br
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cultural da época entre os quais relevantes latino-americanistas. Reuniu-se 33
conferencistas do Brasil, Argentina, Colômbia, México, Perú, República Dominicana,
Venezuela e Estados Unidos da América, que expuseram suas ideias sobre os temas
propostos. Esses conferencistas atenderam à convocatória, como também a outros
convites formulados pelo Conselho de Arte e Cultura15 (CAC) da Fundação Bienal de
São Paulo (FBSP) Estas conferências foram datilografadas e compiladas pela FBSP, e
estão apresentadas em dois volumes presentes no acervo do Arquivo Histórico Wanda
Svevo da FBSP. Este artigo comenta estas conferências apresentadas ao longo do
Simpósio e, portanto, faz uma análise desses discursos.
Como procedimento metodológico para a construção deste texto e apresentação
das análises, assumi a decisão de agrupar os conferencistas pela tônica discursiva
predominante e, portanto, não sigo a sequência das apresentações da programação desse
evento científico, feita essa escolha procedimental cabe a ressalva de que algumas
conferências permeiam mais de uma tônica durante a exposição de suas teses, essa
decisão se justifica por julgar que o agrupamento seguindo a tônica central nas
conferências favorece a percepção do que representou esse evento científico. Durante o
Simpósio observou-se cinco tônicas predominantes e as apresento na seguinte ordem:
primeiro as discussões sobre o conceito de América Latina; em seguida a procura
de uma identidade plástica para a arte da América Latina e dentro desse tema
analisaremos as conferências que relacionaram essa identidade exatamente atrelada ao
tema da mostra, ou seja, Mitos e Magia na arte. Terceira tônica entre as conferências foi
a apresentação do exercício da crítica de arte latino-americana, que parece cumprir o
papel de responder a seguinte indagação: existe uma crítica de arte latino-americana?
Como quarta tônica identificada reuno conferencistas que se dedicaram a defender
abordagens metodológicas para as análises das obras. E por fim, como quinto tônica
predominante agrupo conferencistas discutiram como questões centrais em suas falas a
abordagem de aspectos específicos da cultura latino-americana, como: as
15
Conselho de Arte e Cultura (CAC) foi um colegiado que se formou em 1976 na FBSP e ganhou
maiores poderes deliberativos à medida que o mecenas Francisco Matarazzo Sobrinho se afastou da
presidência instituição, o que ocorreu em 1977, depois de cerca de dois anos de ensaios para isso. Coube
ao CAC elaborar o regulamento da I Bienal Latino-Americana, discutir as representações, o CAC foi
constituído por artistas e críticos de arte, entre eles: Jacob Klintowitz, Leopoldo Raimo, Marc Berkowitz,
Maria Bonomi, Yolanda Mahalyi, Juan Acha, Alberto Beuttenmüller, Carlos Von Schmidt e Olívio
Tavares de Araújo.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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africanidades, indianidade e a arte popular, aspectos estes que nos distanciam dos
ex-colonizadores, portanto, podemos dizer que esses conferencistas ao tecerem estas
abordagens estão aliados à proposta de entendimento da arte e da cultura de modo
anticolonial e antiimperialista.
CONCEITO DE AMÉRICA LATINA
A conferência proferida pelo antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997)
procurou responder as indagações feitas ao público e a si mesmo sobre a existênia da
América Latina. Ribeiro iniciou a suas reflexões para tecer respostas, mencionando o
que o primeiro europeu encontrou no continente americano, e citou a enorme variedade
de línguas e culturas, definindo o continente americano como uma “babel de povos” e
prosseguiu analisando o encontro com o homem europeu de “grande desgraça”,
“invasão”, “hecatombe” e de “deterioração, ao apodrecimento” de nossas culturas.
Ribeiro prosseguiu analisando que no momento da invasão existiam na América Latina
sociedades estratificadas em classes, com camadas de eruditos e de artistas com notável
capacidadede expressão, citou que obras feitas em ouro foram fundidas pelo colonizador
e por isso não podem ser estudadas, mas o que era feito em pedra foi preservado, e
testemunha a grandeza dessas sociedades, esta visão de mundo extraordinária, para usar
as suas palavras. Citou ainda que os europeus encontraram sociedades que dominavam o
plantio de várias culturas como: o milho, a mandioca, a batata, que mais tarde passou a
se chamar inglesa.
Darcy caminhou elaborando conceitos em sua conferência repleta de indagações e
apoiou-se nos principais aspectos de suas conclusões sobre os povos americanos que já
tinham sido publicadas no livro intitulado “As Américas e a Civilização”, publicado
cerca de oito anos antes, onde classificou os povos americanos em quatro categorias: Os
povos testemunho, gerados no choque dos europeus com as civilizações, onde eles não
conseguiram fazer a aculturação. Povos novos são os que assumiram uma forma
totalmente distinta das matrizes europeias, indígenas e negras. Frente a estes dois povos,
um deles carregado de passado e um que não tem memória existem os povos que o
conferencista denonominou de povos transplantados – é o caso do Canadá, Austrália,
Nova Zelândia, europeus transplantados para além-mar para continuar a história. Darcy
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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Ribeiro questionou: “Que glória temos [para] atrás?” Afirma que somos um povo que
sofreu uma pilhagem e nunca pôde desenvolver uma camada intelectual própria. E
afirma que “Somos agentes europeus da ocidentalização”. Explica que estes agentes
atuaram de forma eurocêntrica, voltados para fora, copiando a Europa com 20 anos de
atraso e cerceando o próprio desenvolvimento e declarou: “um povo só de futuro porque
não tem passado”.
Estes povos vão formar a América Latina “num mesmo quadro”. E Ribeiro
projetou a utopia: Dizendo que seremos algo maior, muito importante. Que no ano 2.000
seremos 650 milhões, marca que superamos. Ainda movido pela utopia, Darcy
questionou: “Estaremos estruturados em uma confederação? Existiremos no mundo
como alguma coisa respeitável como a Europa, por exemplo?” E vem a dúvida: “Ou
seremos outra vez povo de segunda classe, um conjunto de povinhos que parece que são
novos...” Depois de invocar a utopia, por um momento Darcy reclamou indignado com o
discurso aleatório de que América Latina é uma área nova. Afirmou: “Não é não, é
velhíssima!” Ele concluiu que temos tudo, indagou “por que não sermos povos que
merecem influir?” E conclui afirmando: “Somos o melhor resumo da humanidade, das
raças humanas, dos jeitos de ser, então a América Latina meus caros amigos é uma
promessa boa, vale a pena votar nela,vale a pena jogar nessa promessa.”
Outra conferência na qual a tônica predominante é o conceito de América Latina e
em especial da “urbe latino-americana” foi a realizada pelo arquiteto Oscar Olea
Figueroa (1930-2009), cuja atuação profissional principal foi a docência na Facultad de
Arquitectura da Universid Nacional Autónoma do México (UNAM) e da Universidad
Iberoamericana. Oscar Olea refletiu sobre as mudanças urbanas ocorridas desde o final
da década de 1950 na América Latina, para indagar que América Latina é essa após
quase trinta anos de forte êxodo rural.
Olea nos trouxe reflexões sobre o êxodo rural que representou um trânsito muito
expressivo de humanos para as cidades latino-americanas, êxodo que percebia como
irreversível, tanto pela maginitude como pela descontinuidade com o passado, uma vez
que o processo de êxodo das pessoas que perderam vínculos de afeto com os lugares,
com as praças, com as fazendas, com os hábitos e pessoas do campo. Chamou esse
fenômeno da “mais vasta transformação que conhece na história: números astronômicos
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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se registram e incrementam a demografia nas cidades16”, falou sobre o esgotamento
eventualmente rápido das fontes de energia em uso.
Oscar Olea apresentou uma conferência com pontos altos, como a sua análise das
mudanças na urbe, mas em minha opinião, a conferência também mostrou fragilidades,
como as apontadas acima. Nota-se certa preferência do crítico pela arte até os pósimpressionistas, que citou durante a sua conferência,em tom de saudosismo.
IDENTIDADE LATINA-AMERICANA NA ARTE DE NOSSO CONTIENTE
A terceira conferencista do Simpósio aqui analisada é artista brasileira e
professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Romanita
Disconzi Martins (1940) que apresentou a conferência intitulada “Considerações sobre
a busca de Identidade Cultural Brasileira (Latino-americana)”. Iniciou esclarecendo o
seu lócus enunciativo de uma artista Latino-americana que vive e faz arte no Brasil.
Afirmou ter dúvidas e perguntas sobre identidade cultural e as expôs ao longo de sua
conferência, unindo por mais de uma vez a busca identitária percebida no âmbito
daquele evento e a semana de Arte Moderna de 1922.
Romanita citou o colonialismo e as relações de poder advindas da colonização e
quanto a isso estou de acordo, o que parece faltar é o exercício do caminho contrário
daquele feito pelo colonizador, isto é, contrário ao caminho que os portugueses e
espanhóis fizeram caracterizado pelo apagamento das culturas dos povos que
encontraram nas Américas e ainda os homogeneizaram sob o nome de índio, além de
usurpação e roubo. Para que saibamosdeconolizar a arte, os corpos e as mentes (o saber)
precisamos fazer urgentemente o caminho oposto e conhecer o nosso passado, ir ao
encontro dospovos ameríndios. Mesmo assim devemos considerar (o que a conferencista
desprezou) o que recebemos do europeu e deglutimos na concepção da nossa arte. Não
podemos desprezar nem o que recebemos nem o que oferecemos à Europa. É evidente a
influência do modo de vida dos povos ancestrais na modernidade europeia.
16
OLEA,O. El Arte de la Civilización Urbana em Latinoamérica. In: Simpósio da I Bienal LatinoAmericana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da
autora. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver
citação diferente será devidamente informado.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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Caminhando para o encerramento da conferência Martins afirmou que o desafio é
viver e criar nossa própria cultura a partir da nossa realidade e afirmou “Os estudiosos do
fato artístico e cultural devem se conformar que aquele não pode ser determinado ou
dirigido de fora para dentro, mas detectado e conhecido a partir de sua existência
concreta”.
Mito e Magia na Arte Catarinense é o título da conferência que a brasileira
Adalice Araújo (1931-2012) apresentou no Simpósio, em sua explanação apareceu a
figuração mito-mágica que ela percebeu nos artistas de Florianópolis, e cuja origem ela
atribuiu ao imaginário do povo daIlha. A conferencista afirmou: o mito nos revela.
Adalice Araújo foi responsável pela seleção de obras de Franklin Cascaes (1908 1983) e Eli Heil (1929 -2017) para esta I Bienal latino-americana, mas na conferência
ela abordou um número maior de artistas catarinenses. Araújo argumentou que o que
chamamos humano é o resultado daintervenção do sobrenatural e que, através do mito o
homem pode se encontrar consigo mesmo. E prosseguiu “Se a religião é culto a este
sobrenatural, a magia irá envolvê-lo com práticas secretas capazes de esconjurar os
espíritos maléficos ou benéficos. Daí porque a psicologia vê nas práticas mágicas a
sombra do inconsciente”.
A crítica prosseguiu relacionando o sobrenatural, o mito e o símbolo com a arte,
uma vez que defendeu a tese de que esta é a mais completa forma de comunicação
humana, pois abrange a pessoa individualmente e também de maneira coletiva,
registrando seus mitos de origem e seus mitos locais. Portanto, segundo Araújo, a arte é
uma manifestação identitária, ou seja, reveladora da identidade de quem a elabora, mostra
o seu lugar além de identificá-lo.
Se arte é identitária, como impor padrões e modelos? Adalice Araújo passou a
abordar a implantação de modelos desde a chegada da Missão Artística Francesa,
em 1816, para fundar no Brasil uma academia de arte, objetivo que se realizou em 1826
com os preceitos neoclássicos, onde o ensino de arte era baseado na cópia dos grandes
mestres, e esses eram todos europeus.
O artista plástico, poeta, crítico de arte e curador argentino Carlos Esparco
dedicou a sua fala para trazer outra definição de mito e afirmou que mito é o modo de
contar, declarou: “Um mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Nesse
51
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nível, o mito não seria um objeto, um conceito ou uma ideia, mas um modo de
significação, uma forma17”.
Carlos Espartaco dedicou-se aos estudos da linguagem, abraçou a fenomenologia
de Merleau Ponty, passando por Martin Heidegger e Charles Pierce, todos apareceram
refletidos em suas reflexões durante a conferência intitulada “El mito del avestruz”.
Para desenvolver a conferência, Espartaco escolheu como ponto de partida o
avestruz, que no pampa da América do Sul recebe o nome de Ñandú e afirmou que se
deixarmos de lado o seu significado na zoologia o avestruz será somente uma palavra,
mas se considerarmos o modo de ser do animal, ao qual é atribuído a capacidade de se
colocar fora de perigo ao esconder a sua cabeça na terra, avestruz se torna um mito,
representativo de quem se esconde.
O historiador e crítico de arte mexicano Jorge Alberto Manrique (1936-2016)
apresentou neste Simpósio a conferência intitulada “Uma reflexão sobre a presença do
mito na arte latino-americana”18, o crítico mexicano iniciou conceituando mito como a
maneira de relacionar-se com a realidade vivida, mito como uma criação de uma nova
realidade que influencia a vida e as ações dos membros da sociedade que o criam.
Portanto, essa definição distancia ao máximo mito do significado de inverdade, que
segundo Manrique, só com olhar estrangeiro é que mito poderia ser entendido desta
maneira e permeado por “[...] coordenadas lógicas e racionais de uma civilização que
alcança mais em razão e menos na sua possibilidade de sentir”.
Manrique abordou a riqueza mitológica dos povos ameríndios, sobre isso afirmou
que “Na América a atitude mítica é eminentemente própria, no sentido de ser uma atitude
normal nas sociedades anteriores à Conquista ou à predominância da cultura ocidental”.
O crítico é muito feliz em suas definições sobre o mito e na sua observação sobre a forte
presença entre os povos ameríndios, porém empregou o termo conquista que é um
termo contestável, uma vez que, carrega uma visão eurocêntrica da história, pois o
sujeito nesta narrativa é o europeu, e a América Latina é o objeto desta conquista, seria
17
ESPARTACO, C. El mito del avestruz. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I.
São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as
colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente
informado.
18
MANRIQUE, J. A. Una Reflexión sobre la presencia del mito en el arte Latinoamericano. In: Simpósio
da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.
Tradução da autora. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando
houver citação diferente será devidamente informado.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
mais apropriada a expressão encontro entre dois mundos, o mundo europeu e o
ameríndio19.
O crítico mexicano afirmou que a conquista da América, ou seja, a
ocidentalização é a presença do mundo da razão na América Latina, o mundo da razão
técnica e prática, neste momento citou o artista mexicano José Clemente Orozco (18831949) que representou a conquista como um robô de ferro. O crítico m salientou a
contribuição dos africanos “transplantados através do mar” somando camadas míticas à
América Latina, contribuição daqueles que chama “de outros irmãos da natureza”. Por
diversas vezes, Manrinque salientou o caráter coletivo do mito, pois ele é criado e
recriado no âmbito da coletividade dos indivíduos da sociedade,
Marianne Tolentino, crítica de arte atuante na República Dominicana, discorreu
sobre as condicionantes da arte naquele país na primeira parte de sua conferência,
intitulada “Problemas y Esperanzas del Arte Dominicano de Hoy”. Em resumo, nos
mostrou uma realidade de um ambiente cultural conservador e que oferecia poucas
oportunidades ao artista. Por essas dificuldades, segundo ela, havia a tendência do
artista sair do país e desenvolver toda ou quase toda sua carreira no exterior, além da
necessidade para o artista que permanecesse no país, de trabalhar em outro ofício para
provimento da sua vida.
Durante a conferência, Marianne de Tolentino salientou as condições incipientes
do circuito das artes mais graves ainda no interior do país quando comparado a capital,
salientou também que a formação profissional atravessa dificuldades e insuficiências,
mencionou que não há organização de mostras e se um artista jovem ou já conhecido
resolve não seguir a “representação agradável e decorativa”20 ao gosto da burguesia, ele
não venderá as suas obras. A crítica afirmou que a República Dominica é uma
desconhecida ou incógnita no campo internacional das artes, e isso pode ser constatado
pela ausência da arte dominicana em textos críticos multinacionais.
Sobre esse questionamento da expressão “descobrimento da América” ver o trabalho de Edmundo
O´Gorman, editado em português com o título “A invenção da América”, salienta-se que tal trabalho teve
a sua primeira edição editada no México em 1958. O’GORMAN, E. A invenção da América. Reflexão a
respeito da estrutura histórica do novo mundo e do sentido doseu devir. São Paulo: Editora Unesp, 1992.
19
20
TOLENTINO,M. Problemas y Esperanzas del Arte Dominicano de Hoy. In: Simpósio da I Bienal LatinoAmericana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução nossa.
Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação
diferente será devidamente informado.
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A conferencista acrescentou “não se cita um artista dominicano, nem um fato que
revele a plástica dominicana como manifestação vigente”. Sobre os textos multinacionais
onde a plástica dominicana está ausente, Tolentino citou “Arte latino-americana actual”
de Marta Traba, “La aparición de lo invisible” de Juan García Ponce, “El Arte em los
Tres Mundos” (seleção de textos), com isso a crítica está afirmando que a República
Dominicana vem sendo tratada como periferia da América Latina. Segundo Tolentino,
as razões são muitas, tais como a ausência de um circuito comercial que facilite as
relações entre artista, galeria, museu e público; fechamento insular, instituições culturais
frágeis que não conseguem promover ou subsidiar os artistas dominicanos. Refletindo
sobre o mercado internacional das artes, que poderia dar um aporte financeiro ao
artista dominicano a critica afirmou: “Por outro lado, certamente na feroz competição
internacional, nem as ofertas nem as oportunidades se apresentam por sentimentos
utópicos de fraternidade ou solidariedade artística”.
No Simpósio vinculado a I Bienal Latino-Americana de São Paulo, a argentina
Silva Ambrosini, responsável pela representação argentina em várias edições da Bienal
Internacional de São Paulo e consultora para a I Bienal Latino-Americana de São
Paulo, proferiu a palestra intitulada “Critérios e enfoques dos mitos e da magia na arte.
O Conceito de tempo no mito e na física atual”, ela desenvolveu o seu raciocínio
realizando primeiramente o que defendeu ser um “inventário” das acepções de Mito.
A conferencista prosseguiu a sua palestra dedicando-se a definir possíveis
metodologias para o que definiu como “metodologia de aproximação ao mito” e
afirmou que a dogmática de juízo deve ser afastada para a real aproximação ao mito
uma vez que “o sentido do mito é inconsciente, por isso mesmo não racional”.
O tema da conferência de Silvia Ambrosini é fabuloso e, ao longo da mesma, ela
demonstrou a diferença entre as noções de tempo dos povos ameríndios, noção essa
dominada pela natureza, e a noção de tempo da física moderna, essa última, a nós
imposta no momento da colonização europeia da América Latina. O europeu entrou em
contato com o outro com noções diversas às suas, dentre elas esta, referente ao tempo,
não compreendeu e a inferiorizou, foi um dos motivos para a desqualificação dos povos
ameríndios rotulados sob o título homogeneizador de “índio”, inferiorizando-os e
privando as diferentes etnias de viverem as suas culturas e cidadanias.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
O literato argentino Ernesto Sábato (1911-2011) apresentou a conferência
intitulada “Anotaciones sobre la crisis occidental y la desmitificación”21 neste
Simpósio, que se constituiu em um elogio ao pensamento mágico. O conferencista
iniciou o seu discurso afirmando que o mundo está sob a pressão da mentalidade dos
tempos modernos, regida pela razão pura, pelo positivismo e pela recusa ao pensamento
mágico. Constatou que esta mentalidade nos jogou na crise mais grave da história e que
os países em desenvolvimento deveriam parar e avaliar as virtudes e os defeitos deste
“progresso”. Apelou para a retomada da unidade perdida e a revitalização da sabedoria
existencial das culturas latino-americanas que a arrogância europeia taxou de
“primitivas”. Sábato admitiu que se considera um renegado da ciência que buscou na
literatura de ficção o homem concreto, lógico e mitopoiético, advertiu que suas
aproximações são apaixonadas e discutíveis, mas, por isso mesmo férteis.
Oreste Bruneto apresentou no simpósio vinculado à I Bienal Latino- Americana,
em nome da dupla formada com Carmen Lariño22, a conferência intitulada “Sant-OMatic”. O discurso centrou-se em refletir sobre o encontro com os “outros”, abordando o
“outro comercial” e o outro representado pelos ritos religiosos gerados pelas crenças, e
isso inclui a utilização das crenças e seus correspondentes ritos pelo mercado, criando
mercadorias para o comércio. O conferencista prosseguiu afirmando que na América
Latina, como em todas as partes do mundo onde o povo foi invadido por outro, gerou-se
sincretismos. A conferência passou a abordar uma obra de autoria dos palestrantes, da
qual infelizmente não foi encontrada imagem, que aborda essa questão, onde há objetos
de culto à venda, tais como velas adornadas, espigas, imagens de santos populares, e
demais santos tradicionais. A proposta dos artistas é evidenciar o comércio associado
aos ritos religiosos, mas também evidenciar uma hierarquização presente nas religiões.
O conferencista destacou ainda a intenção de trabalhar em sua obra com a
redundância, a repetição como um traço comum aos discursos, ao comercial e ao ritual
religioso e assim evidenciar as convergências. Cabe-me ainda comentar que a
21
SÁBATO, E. Anotaciones sobre la crisis occidental y la desmitificación. In: Simpósio da I BienalLatinoAmericana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação
diferente será devidamente informado.
22
Não foi possível conseguir dados biográficos dos conferencistas, apesar dos esforços empreendidos
para tal.
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fetichização mercantil ou mistificação de produtos comerciais é o contrário do mito, por
isso a fala pareceu-me confusa, mesmo assim cabe pelo envolvimento ao tema.
O argentino Guillermo Whitelow (1923-2011) apresentou no simpósio vinculado
à I Bienal Latino-Americana de São Paulo a conferência intitulada “Magia e criação
artística” e iniciou a sua exposição oral indagando sobre as concepções da obra de arte,
primeiro passo para se discutir o que vem a ser a criação artística. Sobre isso afirmou:
“Obra de arte, em princípio, não é a natureza, e que se produz por meios técnicos, ao
que parecem controláveis23. Whitelow citou também Platão, para quem forças
sobrenaturais garantiriam o caráter de obra de arte e neste caso, o criador se converteria
em um mero intérprete dessas forças sobrenaturais ou poderes superiores, sobre isso
afirmou: “De tal maneira, o processo criativo se explica pela intervenção de um “alter
ego”, a quem corresponde o mérito da obra realizada”.
Guillermo Whitelow desenvolveu a proposta entre arte e magia colocando-as
entre o espetáculo e o ritual mágico-mítico que, no princípio, representou o
desdobramento da expressão artística da pintura parietal para a dança, o canto e o teatro.
Enfim este conferencista abriu frentes de debate ainda não elaboradas neste simpósio.
EXERCÍCIOS DA CRÍTICA: EXISTE UMA CRÍTICA DE ARTE LATINOAMERICANA?
O crítico brasileiro Jacob Klintowitz (Porto Alegre, 1941) atuou no Conselho
Arte e Cultura (CAC) da Fundação Bienal durante a germinação da ideia e a
organização da I Bienal Latino-Americana de São Paulo, Klintowitz defendeu que o
tema “Mitos e Magia” não poderia ficar restrito ao passado e, portanto, solicitava que se
pensasse nos mitos contemporâneos, e passou a defender o futebol como mito latinoamericano contemporâneo.Em sua conferência durante o Simpósio intitulada “A
Implantação de um modelo alienígena exótico e outras questões pertinentes: A seleção
Brasileira de Futebol 1978”, o crítico abordou o futebol como mito e a seleção de 78
como metáfora da questão central que caracteriza a cultura latino-americana. Mas que
23
WHITELOW, G. Magia y Creación Artística. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo.
Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as
colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente
informado.
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seleção foi essa? A copa de 1978 não foi ganha pela seleção brasileira mesmo não tendo
perdido nenhum jogo, mas a seleção brasileira perdeu no saldo de gols, ou seja, a seleção
perdeu na regra estipulada. Estipulado por quem? Estipulada por qual estrutura de
poder? Estipulada pelo que o crítico chama de “modelo alienígena exótico”?
Mas o que significa isso? Para onde caminhou o pensamento de Jacob Klintowitz
nesta conferência? O crítico prosseguiu informando que os jogadores da seleção de 78
foram “aqueles capazes de funcionar como bons elementos. Isto é bem comportados,
obedientes, executantes de um plano geral”24 e concluiu “Nesta seleção, como numa
sociedade industrial, o importante era o “planejamento” [...] Lembre-se, ao homem cabe
apenas ser um elemento que produz e consome. E obedece ao plano”.
Portanto, a Seleção de 78, formada por maioria de jogadores obedientes era anticriativa, era contra a livre expressão, era “exatamente o contrário do pensamento
divergente, da fluência e da flexibilidade”. O crítico prosseguiu “nada de drible e
iniciativa, nada dessa habilidade incontrolável. Além de exercícios de musculação na
tentativa de alterar o próprio corpo (aproximando-o do modelo civilizado, o modelo
europeu)”. E o crítico apontou que esta seleção passou a ser “um corpo vazio no qual
pudesse insuflar conteúdo” ao sabor da publicidade, ao sabor do mercado, trata-se,
portanto de um jogo de poder, onde os poderosos sempre procuram influir na
expressividade e na linguagem popular, e o crítico concluiu “o nome que essa posição
tem recebido é dirigismo cultural”. Ora, isso ocorre somente no futebol? Não. Ocorre
nas artes, nas ciências, na filosofia.
Isso acontece com a arte Latino-Americana? Sim, em vasta dimensão, mas
somente com aquela colonizada, ou seja, com aquela obediente às teorias estéticas ou
formais criadas fora, em outros contextos sócio-históricos e, portanto, alienígenas. Não
podemos implantar modelos alienígenas exóticos na América Latina, usando as palavras
empregadas no título da conferência, nem podemos ser obedientes às regras dessas
estéticas, a ponto de negarmos as culturas populares das Américas Latinas. Então,
pergunto, o que fazer com as teorias estéticas criadas na Alemanha e em outros países
europeus? Devemos jogá-las fora para que não caiamos na esparrela de produzir uma
24
KLINTOWITZ, J. A Implantação de um modelo alienígena exótico e outras questões pertinentes: A
seleção Brasileira de Futebol 1978. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. Nesta análise todas as colocações entre aspas são
provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
arte colonizada? Não, não devemos jogá-las fora e sim estudá-las para sermos
conhecedores e fluentes, empregando o termo do crítico, e em consequência, sejamos
flexíveis a ponto de saber lidar com essas ideias e com as demais caracterizadas pela
nossa diferença, pela nossa latino-americanidade.
A palestra do curador Donald Goodall teve como título “Visão Interior e Imagem
Exterior; Carlos Mérida e Leonora Carrington”25, segundo o curador afirmou, a intenção
do trabalho foi evidenciar através do paralelismo, as diferentes posições dos artistas em
relação à mitologia e à magia.
Segundo Goodall, os dois artistas se expressam através da pintura revelando o
segredo da criação e da morte, do sagrado e do profano, da revelação e transfiguração,
conceitos para “explicar o universo” através da dualidade dos contrários, usando as
palavras do conferencista. Observou que os dois artistas escolheram o México para
viver, mas o nascimento se deu em outros países, de fato, Carlos Mérida (1981 - 1984) é
guatemalteco, descendente de indígenas do grupo maia-quiché, e se estabeleceu na
Cidade do México a partir de 1922, já Leonora Carrington (1917-2011) nasceu na
Inglaterra em 1917, chegou ao México em 1942.
Explicou que a posição de Carrington é diferente da de Mérida, pois a pintora tem
uma visão mais complexa consequência de um mergulho pessoal em sua imaginação, já
Mérida tem uma visão herdada de seus antecedentes nas considerações sobre criação e
morte, do sagrado e do profano, da revelação e transfiguração. Goodall atribui o
adjetivo privilegiada à imaginação de Carrington, pois a artista não se contenta em
contar o mito, mas em recriá-lo misturando outras e diversas referências e a pintora se
lança a decifrar o inexplicável, portanto, Carrington não narrou a cosmogonia maia, mas
ao fazer referência a ela, a pintora recriou e assim ampliou horizontes. Sobrepôs a sua
capacidade fabular ao relato mítico maia em transparências abrindo outras portas de
percepção míto-mágicas, ou seja, o mito em Carrington é acompanhado por outras
camadas interpretativas.
25
GOODALL, D. Visão Interior e exterior: Carlos Mérida e Leonora Carrington. In: Simpósio
da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,
1978,s/p. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando
houver citação diferente será devidamente informado.
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Na
conferência
intitulada
“Para
una
Lectura
Exergetica
59
del
Arte
Latinoamericano”26, o crítico Carlos Silva referiu-se à teoria do conhecimento e
destacando a tarefa da crítica como produtora de conhecimento na mediação entre obra e
público. Explicou que o mundo está implícito na obra de arte e não refletido nela, e,
portanto, tem um modo de leitura.
Carlos Silva recomendou a crítica simbólica para a arte latino-americana e
acrescentou que a arte tem uma superfície misteriosa que leva a uma sequência de
extratos e níveis de significação que devem ser lidos pelo espectador em um processo
de decodificação muito rigoroso. Segundo o conferencista a alegoria (leitura exegética)
trabalharia com símbolos que tendem a uma cristalização emblemática. Em geral a
alegoria não se apresenta em seu esplendor, mas já popularizada e empobrecida.
O artista e crítico de arte radicado na Colômbia Galaor Cabornel (1938-1992)
apresentou no simpósio um exemplo de crítica, a artista enfocada foi a colombiana Olga
de Amaral (1936) e a título de registro de sua conferência enviou um elaborado e
extenso texto que não tem a dinâmica de uma fala. Sabendo-se que Carbonell escreveu
um livro sobre esta artista, inclusive com o mesmo nome da conferência, nos parece que
o arquivo da Fundação Wanda Svevo possui uma cópia deste livro e figura nos registros
tal qual fosse a conferência. O material se intitula “Olga de Amaral: Desarrollo del
Lenguaje27”.
Parece-me que Carbonell caminhou por um esforço de internacionalizar o trabalho
da artista, mesmo para distanciá-la do artesanato que, por certo, em muitos momentos
foi empregado na perspectiva de desqualificação de seu trabalho artístico.Carbonell
associou o trabalho de Amaral às tessituras dos povos ameríndios e chamou o
construtivismo de Amaral de “El suyo”. Destaca-se: “O seu é um construtivismo
transbordante e enérgico cheio de imaginação, fantasia e gestos grandiloquentes. Este
construtivismo pode localizar-se dentro dos limites gerais têxteis artísticos
contemporâneos”. O crítico associa a obra de Amaral a um expressionismo pleno de
fúria cromática e acrescenta uma comparação com o expressionismo abstrato norte-
26
SILVA, Carlos. Para una Lectura Exergetica del Arte Latinoamericano. In: Simpósio da I BienalLatinoAmericana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p.
27
CARBONELL, Galaor. Olga de Amaral: Desarrollo del Lenguaje. In: Simpósio da I Bienal LatinoAmericana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
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americano da década de 50 do século vinte, mas declara “Assim mesmo sua obra guarda
fortes nexos com a produção textil artesanal e nativa da Colômbia: pelos materiais
humildes, pela legitimidade técnica na excecução, pela inventividade [...] e pela sua
associação aos processos mais profundos da cultura do país”. Parece-me que na busca
por agregar legitmação à obra de Amaral, Carbowell, usa termos condicionados aos
processos de colonização e suas consequências, exemplos disso, são os empregos de
“materiais humildes” e “legitimidade técnica” na citação anterior. Carbonell conclui que
a obra de Amaral é internacional e ao mesmo tempo nacional, melhor dito, parece-me
seria dizer, a obra de Amaral é nacional e ao sê-lo atinge o internacional.
Marta Traba (1923–1983) teceu um paralelismo entre artes plásticas na
Colômbia e na Venezuela com o objetivo final de discutir a recepção estética, o que
chamou de consumo das obras pelos cidadãos desses países na conferência intitulada
“Consumo de Arte en dos sociedades, Colombia y Venezuela”28 durante o Simpósio da I
Bienal Latino-Americana de São Paulo. A crítica salientou que o processo de recepção
(ou consumo) de uma obra é dinâmico e faz com que a obra exerça um peso sobre a
comunidade, a crítica afirmou que “estas circunstâncias não ocorrem na Colômbia nem
na Venezuela”, assim a crítica iniciou uma apresentação de vários artistas dos dois
países, contextualizando-os, tecendo comentários sobre quem os apreciava e porque o
fazia, com o objetivo de averiguar a ausência total ou parcial dos fatores condicionantes
para o consumo de arte ocorra de maneira efetiva.
A crítica afirmou que nos dois países o “consumo” de arte não é efetivo, ou
completamente exitoso, para concluir que na Colômbia ao menos há uma
correspondência entre a obra e a realidade o que não há na Venezuela e esse fator
favorece a recepção estética na Colômbia. Segundo o raciocínio da crítica, se a arte
recai (ou deve recair) sobre o imaginário popular para que o público a receba como
forma de conhecimento que ampliaria suas possibilidades de penetrar e superar a
realidade, o processo é parcialmente alcançado na Colômbia, mas perdido na Venezuela
cujo conjunto da produção artística, no seu entender é completamente independente das
potencialidades culturais do país.
28
TRABA, MARTA. Consumo de Arte em dos sociedades, Colombia y Venezuela. In: Simpósio da I
Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p.
Tradução da autora.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
61
Encaminhando para as suas conclusões, a conferencista trouxe um quadro
bastante decepcionado com relação à sua expectativa sobre o ambiente de arte na
Venezuela afirmando que são rejeitados os mecanismos da crítica e sendo assim só há
espaço para comentários complacentes e irrelevantes, não há uma teoria da arte para
sustentar o sistema de arte. Assim, a área de arte Venezuelana aparece ferreamente
marcada por interesses e motivações econômicas. Segundo Traba torna-se dramática a
dificuldade de criar uma arte significativa em tal ambiente, a menos que os artistas se
refugiem em si mesmos e passem a traduzir apenas suas próprias e pessoais esperanças,
preocupações e aflições. Essa área facilmente influenciável aos diversos interesses,
principalmente aos externos, é o que Traba chamou de área aberta no seu livro
intitulado Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latinoamericanas. 1950-1970,
lançado em 1971.
ABORDAGENS
METODOLÓGICAS
PARA
ANÁLISE
DA
ARTE
DA
AMÉRICA LATINA
O celebrado crítico brasileiro Mário Pedrosa (1900-1981) apresentou no
Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo a conferência intitulada
“Variações sem Tema ou a Arte da Retaguarda29”. Refletiu sobre a criação da arte
moderna como consequência da políica expansionista do imperialismo europeu,
portanto na abordagem de análise da produção latino-americana em artes as fronteiras
com a política e com a história devem ser vistas com atenção. O crítico salientou que a
conferência une temas díspares e, portanto, os analisará em separado. Como “variações
sem tema” ou “variações infinitas”; Pedrosa apontou as semelhanças sócio históricas
que caracterizam as nações latino-americanas e assim as une apesar de suas
diversidades, entre as semelhanças apontadas estão: a miséria, que é apontada como
“primeiro traço constitutivo da unidade da nossa América Latina”. Nesse momento
Pedrosa se aproximou do manifesto “Estética da Fome” de Glauber Rocha, porém sem
fazer menção ao cineasta. O outro traço importante citado pelo conferencista é a não
liberdade dos povos latino-americanos devido à opressão generalizada de norte a sul em
29
PEDROSA, M. Variações sem Tema ou a Arte da Retaguarda. Simpósio da I Bienal Latino-Americana
de São Paulo. Vol.I. São Paulo:Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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nosso continente. Outra face de nossa unidade é a mestiçagem do homem latinoamericano e, por fim, expõe a ideia central dessas semelhanças sócio-históricas que é “o
destino de ser submetido, de alguma maneira ao imperialismo”.
O crítico afirmou que a Arte Moderna foi formada no diálogo com as expressões
das culturas não europeias, diálogos possibilitados nos encontros entre a Europa e os
continentes desconhecidos pelos europeus ou ainda não explorados. Neste momento
Pedrosa claramente chamou atenção para a contribuição das culturas ameríndias,
africanas, asiáticas e da Oceania no que foi denominado “Arte Moderna” e que foi
definido como ciência europeia e pretendida como universal. Portanto, Pedrosa afirmou
haver um componente oriundo dos países colonizados (ou neocolonizados) na
imaginação moderna europeia, ou seja, na ocasião do “encontro entre os dois mundos”
que ocorreu (e ainda ocorre) quando “as correntes imperialistas se espalharam pelo
mundo”, os dois lados desse encontro se transformam, se modificam.
É importante observar que o crítico evidenciou o diálogo de mão dupla entre os
países, não cabendo somente perceber como a Europa influenciou a arte da América
Latina a partir do que se convencionou chamar “descobrimento”, mas é também preciso
pensar ao revés e assim pesquisar o que mudou no imaginário europeu o fato da pretensa
descoberta das Américas. Artistas como Picasso, Matisse e outros, segundo Pedrosa,
foram os primeiros a considerar com o status de arte as peças oriundas desses países e
colocá-las no mesmo patamar da arte grega ou renascentista, iniciando uma “revolução
no gosto”.
Jorge Glusberg (1932-2012) proferiu no Simpósio a conferência intitulada
“Mitos e Magia do Fogo, o Ouro e a Arte30”. Importante dizer que, nesta ocasião o
crítico argentino voltou ao Brasil um ano depois que o chamado Grupo de los Trece,
organizado por Glusberg, ter recebido o Prêmio Itamaraty na edição anterior da Bienal
Internacional de São Paulo, a décima quarta edição realizada em 1977, uma premiação
polêmica, mas que demonstra o destaque deste grupo de artistas representantes do
Centro deArte y Comunicación, fundado e dirigido por Glusberg desde 1968.
Glusberg construiu ao longo de sua conferência a analogia entre o ouro e a arte,
passando pelo fogo, já que este é tão necessário para as ações humanas, inclusive a
fundição do ouro, salientou os mitos envolvidos, salientou que a manipulação do ouro e
30
GLUSBERG,J. Mitos e Magias do Fogo, o Ouro e a Arte. In: Simpósio da I Bienal Latino- Americana
de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.(traduçãoda autora).
62
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
a arte são as duas máximas manifestações simbólicas da sociedade, são ambos os
produtos do trabalho humano e originam bens sociais. E acrescentou que o ouro e o
objeto artístico valem pelo que são, mas também valem pelo que representam em uma
rede de critérios socialmente determinados. Assim o crítico defendeu que a arte é um
produto social, precisa da sociedade tanto quanto do indivíduo que a cria e teceu a sua
crítica à uma leitura restrita aos critérios formais intrínsecos de uma obra, e defendeu a
análise da obra de arte em seu contexto histórico e em relação com as demais obras
contemporâneas a ela.
O ouro e a arte são símbolos de poder, mas a arte sozinha não garante o sucesso
de uma mostra, é necessário pensar no crítico como outra instância de poder. Glusberg
coloca a crítica como criação, assim como a arte.
Néstor Garcia Canclini iniciou a sua conferência intitulada “Teoria da
Superestrutura e Sociologia das Vanguardas Artísticas31” no simpósio vinculado à I
Bienal Latino-Americana de São Paulo afirmando a “insuficiência interpretativa do
materialismo histórico. O problema reside em saber se é uma incapacidade definitiva
[...]”, citou Jean-Paul Sartre para defender que a incapacidade interpretativa do
marxismo não é definitiva.
O conferencista também refletiu sobre o ponto de vista do criador que, a partir da
sociologia, percebe “sua obra se enriquecendo com os olhares e a imaginação de
quem a recebe, alterando seu sentido ao circular por classes e sociedades distintas, ao
intervirem os marchands, os editores, a publicidade”.
A propósito da arte, Canclini, apresenta duas direções de modelos de análise
formulados no materialismo dialético, uma direção se consiste em afirmar que as
relações de produção artística determinam as representações artísticas, entendidas como
uma forma particular de representação ideológica, como exemplo cita o “realismo
socialista”; a segunda direção é considerar, sem descuidar o estudo da arte como
ideologia, que a determinação principal da estrutura social opera sobre as condições de
produção específica da arte, mais que sobre a representação artística.
Canclini fechou o que me pareceu ser uma relevante contribuição para a elaboração
de um método sociológico para análise de obras de arte e o emprego deste para a
31
CANCLINI, N. G. Teoria de la superestrutura y sociologia de las vanguardias artísticas. In: Simpósio
da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p
Tradução da autora.
63
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
compreensão das vanguardas argentinas da década de sessenta do século vinte. Ele
finalizou concluindo que estes artistas vanguardistas descobriram que criar novas
propostas artísticas requer que se alie a criação de novas obras o que chamou de “um
conjunto de imagens nunca vistas” ao estabelecimento de novas maneiras de
produzir comunicar, compreender. Referente a isso, acrescento que esses artistas
precisaram estabelecer novas maneiras de expor as obras de arte e buscar novos
espectadores que participem das obras, ou seja, os vanguardistas criaram obras novas e
novos modos de se relacionar com a sociedade. A contribuição de Canclini foi bastante
relevante para se pensar as questões de Arte, centrou a pesquisa na América Latina,
porém não abordou o tema “Mitos e Magia” desta Bienal.
A historiadora da arte Rita Eder apresentou conferência intitulada “El debate
Latinoamericano en el Arte: notas para um analisis32”, nesta conferência a crítica
mexicana convocou para uma leitura da obra da arte latino-americana influenciada pela
realidade local em uma visão que ela denominou mais totalizadora da produção artística,
portanto. Defendeu a análise da obra de arte como campo de estudos interdisciplinar.
A crítica nos alertou que este ponto de vista, que se distancia por definição do
formalismo e do idealismo, encontra grande resistência por parte de uma maioria de
estudiosos que desejam conservar métodos que colocam a arte como fenômeno
privilegiado, destacado dos demais ambitos da cultura.
A crítica mexicana levantou uma questão importante sobre o conceito de arte,
dizendo que o que é discutido sobre “arte latino-americana” é feito a partir da produção
do continente sul americano que aparece em exposições, o que discutimos nestas
reuniões tem quase sempre raízes na arte latino-americana que conhecemos através das
bienais e das diferentes exposições organizadas pela União Pan-Americana. Cabe a
pergunta se esta é realmente a produção dearte latino-americana, ou se já houve camadas
de influência do que se convencionou definir como arte? Será que não seria necessário
colocar outras manifestações em relação com outros campos estéticos, como a
produção chamada artesanato, os meios de comunicacão de massa e até mesmo esses
produtos de artistas de vanguarda que circulam por canais marginais?
32
EDER, Rita. El debate latinoamericano en el arte: notas para un análisis. In: Simpósio da I Bienal
Latino-americana de São Paulo, 1978. São Paulo, Brasil: Fundação Bienal de São Paulo. s/p. Tradução da
autora.
64
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
A crítica de arte mexicana Rita Eder
abordou
vários
momentos
65
da
historiografia do século XX na arte da América Latina, e conclui que se amplia uma
"gama de possibilidades metodológicas à medida que o estudo da arte se abre aos
modos de análises presentes nas ciências sociais". É importante perceber que essa
crítica se alia ao antropólogo Darcy Ribeiro e Néstor Garcia Canclini, entre outros
cientistas sociais, nessa convocação do contexto sociológico para a interpretação das
manifestações artísticas.
O crítico Bengt Oldenburg, atuante na Argentina, também defendeu a leitura
sociológica do objeto artístico em sua conferência que explorou os condicionantes da
arte da América Latina. A sua conferência intitulou-se “Mecenazgo y Mecanismos
Selectores” (Mecenato e mecanismos seletores) na qual o autor enfocou a situação atual
da arte latino- americana através da análise de algumas estruturas sociais que
condicionam, dominam e determinam a atividade artística. Essas estruturas sociais
condicionam o artista desde a sua etapa formativa, à medida que cresce sua posição
artística e socioeconômica, o artista se encontra cada vez mais emaranhado em
mecanismos que o controlam e que na maioria das vezes, se confundem com os
mecanismos de fomento para as artes.
Outro crítico que se deteve em sua conferência em construir uma metodologia que
possa revelar a arte da nossa América foi Juan Acha33 (1926-1995) a partir da premissa
de que a arte é um fenômeno sócio cultural, o conferencista priorizou o sistema de
produção sobre a conservação da herança cultural e, com isto, destacou a urgência de dar
prioridade à inovação ou criação que seria benefício coletivo em vez do consumo
individual majoritário na palestra intitulada: Das valorizações objetivas da estrutura
artística (ou no original: Hacia las Valoraciones objetivas de la estrutura artística).
O crítico argentino Jorge Romero Brest34 (1905 – 1989) apresentou neste
Simpósio a conferência intitulada “A arte, a obra de arte e as artes” onde abordou os
conceitos para a definição do que seria arte, como um objeto se torna arte e a relação do
objeto com o sujeito, partindo da ideia de que a arte está em crise, para tanto se apoia no
filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), mas adverte que nem sempre concorda
33
ACHA, Juan. Hacia las Valoraciones objetivas de la estrutura artística. In: Simpósio da I Bienal LatinoAmericana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p.
34
BREST, J. R. El Arte, La Obra de Arte, Las Artes. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São
Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
com ele. Brest refletiu, como aproximação ao tema e a partir do aforisma proposto pelo
artista Carl André para a definição de arte: “Arte é o que faz um artista”, o crítico apontou
que este raciocínio gera um ciclo vicioso: os artistas fazem obras, logo estas são arte.
Segundo Brest, Heidegger argumentaria de outra forma, pois “o que faz de uma
coisa uma coisa não reside em que coisa seja um objeto representado, e esta “coisidade”
não poderia de nenhuma maneira ser determinada a partir da objetividade do objeto”.
Outro caminho seria pensar em arte como adjetivo qualificativo de obra na expressão
obra de arte, mesmo dessa maneira o crítico salientou que também não há nenhuma
característica que definiria uma coisa ser ou não arte.
O crítico também refletiu se o modo de fazer define o que é obra de arte, ele se
pergunta será que o obrar com as suas próprias mãos define o que é arte? E respondeu,
pensar assim é insuficiente, “ainda mais nos tempos atuais onde a tecnologia alterou por
completo a relação obra-sujeito”. O conferencista prosseguiu sua palestra reconhecendo
que é necessário que a sociologia entre nesse debate, pois o artista é um ser social, neste
momento citou José Ortega y Gasset. A conferência de Brest pouco abordou as artes da
América Latina e também pouco abordou o tema desta mostra, Mitos e Magia, a não ser
duas rápidas menções aos mitos na arte, dizendo são “explicações religiosas,
ideologias, modos de reger o mundo, de inventar a origem, de assinalar o destino,
Mitos e ideologias perduráveis quando são transformados pelos artistas em imagem que
são símbolos”. Neste simpósio a propósito da I Bienal Latino-americana, parece-me que
faltou especificidade aos temas e ao recorte latino-americano.
Pinturas de Israel Pedrosa (1926-2016) estiveram presentes na I Bienal Latinoamericana de São Paulo, o artista também participou do Simpósio vinculado à mostra e
o fez com a conferência intitulada “Arte – Documentação didática35”. O artista e crítico
apontou que o seu apoio à I Bienal Latino-Americana nãosignifica acreditar na existência
de uma arte latino-americana produzida nos diasatuais, pois há meios de diálogo entre os
artistas, os meios digitais de comunicação, que facilitam a difusão de preceitos estéticos
que influenciam de forma mais intensa do que os traços étnicos ou geográficos,
portanto, para Israel Pedrosa, a temporalidade do artista contemporâneo é mais
importante do que a sua etnia ou a geografia de origem ou de trabalho. Percebe- se que o
conferencista, está tratando a questão da América Latina apenas como uma questão
PEDROSA, I. Arte – Documentação Didática. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São
Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.
35
66
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
geográfica, realmente uma distância geográfica pode ser ultrapassada facilmente pelos
meios de comunicação, mas quando falamos em busca da identidade latino-americana
não é necessariamente do espaço geográfico que falamos, sim de espaço histórico e
socialmente definido que caracterizam os diversos países da nossa América e as relações
de poder inerentes construídas entre nós e os outros.
ASPECTOS ESPECÍFICOS DA ARTE E CULTURA LATINO-AMERICANA
As questões acerca da negritude foram abordadas por três conferencistas no
Simpósio da Bienal Latino-Americana de São Paulo são eles: o sociólogo brasileiro
Eduardo de Oliveira e Oliveira, o artista, coreógrafo e professor norte-americano Clyde
Morgan e o antropólogo carioca Raul Lody.
O sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira com atuações bastante relevantes de
cunho antirracistas e ações articuladoras que estão na origem da criação, em 1978, do
Movimento Negro Unificado, em São Paulo, mesmo ano em que ocoreu a I Bienal
Latino-Americana de São Paulo, apresentou no simpósio a conferência intitulada
“Pessoa” e “Persona” na Etnia Brasileira”36.
Nesta fala Eduardo Oliveira revelou os mitos relacionados aos negros, usando a
palavra mito como engano, engodo ou ilusão, a conferência é bem fundamentada e
relevante, muito embora não seja esse o significado de mito, que esta Bienal procurava
abordar como característica da identidade latino-americana.
O conferencista iniciou a sua palestra conclamando um pensamento de Joaquim
Nabuco, publicado no Jornal do Comércio, em abril de 1885, cujo teor é o seguinte:
“Nenhum povo ganha em iludir-se em sua própria etnologia, nem há sentimento mais
deprimente e atrofiante para a nação, como para o indivíduo, do que ter vergonha de si
mesmo”. Essa reflexão abriu a sua fala que versou entre relações duais: o latinoamericano e o outro, e mais minuciosamente se deteve entre o negro e branco, ou o
branco e não brancos.
Segundo Eduardo Oliveira, esta Bienal ao propor o recorte no latino-americano
está propondo um confronto com os valores ditos ocidentais que negam autonomia
OLIVEIRA, E.O. “Pessoa” e “Persona” na Etnia Brasileira. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana
de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p.
36
67
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
cultural e política à América Latina e declarou: “Pois é sem dúvida então, frente a
esta “ocidentalização” assim homogeneizada que, acreditamos, uma Bienal LatinoAmericana se quer fazer representar”.
O sociólogo levantou a questão de que uma Bienal Latino-Americana também
homogeneíza, ele se pergunta: será que podemos fazer isso? E quanto às diferenças entre
os países que compõem a América Latina? E levantou a pergunta-sugestão de que será
necessário questionar internamente as diferenças entre os países latino-americanos para
que esta também não se transforme em uma grande totalidade, enfim, em uma abstração.
Sim de fato, a colocação de Oliveira nos deixa esta indagação: Se a Bienal já
existente é internacional, porque devemos fazer uma latino-americana como se não
pertencêssemos ao mundo? Parece-me que esta Bienal, no entanto, quer mostrar o que
nos identifica e nos diferencia. Como falou o Darcy Ribeiro, neste mesmo evento, se
América Latina existe de fato é uma província diferenciada do mundo e assim pode ser
vista e compreendida como tal.
É relevante a participação de Eduardo Oliveira e Oliveira, e considero da maior
importância a realização desta Bienal Latino Americana, com todas as possibilidades
que ela viabiliza para revelar os valores da africanidade entre nós, dando-lhe o destaque
merecido, ainda que trazer a reminiscência da africanidade revele este infeliz
preconceito de cor, vigente até hoje, quando escrevo esta crítica.
O artista Clyde Morgan37 iniciou a sua fala durante o Simpósio da I Bienal
Latino-Americana de São Paulo, para a qual não definiu título, em tom confessional,
em primeira pessoa narrou seu ingresso como aluno nas escolas de dança e confessou
que naquele ambiente passou a admirar o que chamou de “as grandes companhias
americanas e europeias com técnicas requintadas e produções luxuosas”, como
americanas se referia as companhias norte-americanas.
Morgan prosseguiu narrando o que denominou de “ponto de vista revolucionário”,
ou o ponto de virada que o fez descobrir-se na “mesma situação dos africanos, índios e
outros grupos culturais tidos como segunda classe”. Neste momento, o artista foi
extremamente comovente ao descrever o seu processo de descoberta de si mesmo como
cidadão do mundo e assumir a sua identidade, por consequência, a sua voz e a sua
37
Artista, coreógrafo e professor norte-americano, foi diretor Grupo de Dança Contemporânea da Escola
de Dança da Universidade Federal da Bahia entre 1971-1978.
68
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
posição de artista. Confessou também que passou a entender que aqueles que não
passaram pelo “ponto de virada”, aqueles que ele denominou como “pseudo
intelectuais”, juntamente com os “europeus alienados”, são aqueles que se distanciaram
da natureza e dele. Agora, já falando como representante da dita “segunda classe”, que
havia aprendido a desprezar a sua cultura quando era aluno de dança.
Morgan afirmou que o “ponto revolucionário” se iniciou quando assistiu “Les
Ballets Africaines” do Senegal e afirmou ter sido convencido “de que através da dança,
as pessoas podiam passar para uma outra dimensão, que não é deste mundo. Não tinha
mais dúvidas quanto a existência da magia teatral”. Neste trecho o artista narrou que ao
assistir “Les Ballets Africaines” ele encontrou o mito original e assim encontrou a
magia, Morgan nos brindou com um belo exemplo de como se dá o mito e a magia em
arte. Deixou claro que não é uma questão de sangue e sim de cultura.
O antropólogo braileiro Raul Lody apresentou a conferência intitulada “Leitura
da Iconografia Religiosa Afro-Brasileira. Introdução ao Estudo das Cores”, salientando
a importância das cores e afirmou: “As cores têm significado preciso e certo nos
variados implementos de culto. É através das cores que facilmente são identificados os
Orixás, evidenciando as suas características pela representatividade das cores isoladas
ou conjugadas entre si”. Enfocando os terreiros como estudo de caso, Lody defendeu o
papel central da cor no conjunto sócio hierárquico afirmando que há um conjunto
simbólico de cores fundamental para os elencos mitológicos e de terreiros. Esse conjunto
atua como normativa e a leitura imediata garante ao iniciado nos ritos religiosos a
identificação do Orixá-patrono ou o conjunto de divindades a quem estão ofertados os
objetos de culto. A cor garante a leitura da iconografia de culto no contexto social e
hierárquico do terreiro de candomblé.
O professor brasileiro Fernando Albuquerque Mourão (1934-2017), que ajudou
a criar o Centro de Estudos Africanos na Universidade de São Paulo, apresentou a
conferência intitulada “A Especificidade e Universalidade da Arte Africana” e nesta
refletiu como vem sendo construídas as análises e os sentidos para a Arte Africana,
afirmando Fernando Albuquerque Mourão: a Arte Africana é, também, forma e não
somente misticismo.
O conferencista afirmou que somente poderemos analisar a questão das raízes
africanas nas manifestações artísticas brasileiras se soubermos o conceito de Arte
69
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Africana e alertou que é importante refletir com quais concepções vem se construindo
processos de interpretações e leituras das obras de arte produzidas no continente
africano, porque é através desses processos que são construídas as narrativas da História
da Arte e em consequência o conceito de Arte Africana.
Estas concepções podem ser muitas e diferentes entre si: podem ser sociológicas,
antropológicas, mitológicas, fenomenológicas em todas estas é dada grande ênfase ao
contexto cultural no qual a obra de arte está inserida. A concepção para abordagem da
leitura pode ser formalista, ou seja, que leve em consideração os elementos formais da
linguagem visual presentes e trabalhados na obra de arte. Neste caso a ênfase é no objeto
de arte e não no contexto onde foi produzido, ou onde está inserido no momento de
leitura, nem mesmo no sujeito que o lê e lhe atribui sentido. Além dessas, a abordagem
de leitura pode ser iconológica, empregando Erwin Panofsky, ou através da teoria da
Gestalt de Rudolf Arnheim, que unem uma aproximação formalista com uma leitura do
contexto cultural no qual a obra foi produzida.
O que o conferencista pareceu reclamar é que ainda há a necessidade de fazer a
leitura formal das obras africanas, pois a arte africana é também forma, alertou que foi
feita a leitura sociológica, antropológica ou etnográfica, preocupando-se em estabelecer
ligações com o contexto cultural, ligando a arte africana aos fenômenos das práticas
religiosas, mas há a carência de dar ênfase no objeto de arte para a real apreensão da arte
africana.
Outro aspecto específico da cultura latino-americana abordado por Maria Heloisa
Fénelon Costa (1927-1996) foi a indianidade, abordando o mito e o rito indígena,
através de um estudo de caso na etnia Mehunákú.
A conferência intitulada “O Mundo dos Mehináku: Representações visuais, mito e
cerimonialismo38”, onde Maria Heloisa relatou trechos da cosmovisão da etnia Mehináku,
trazendo com destaque as diferenças na linguagem e nas representações visuais para um
mesmo ser vivente em diferentes situações. A conferencista abordou um rito chamado
Xapukuyáuá dos indígenas da etnia Mehináku – de língua Aruak do Alto do Xingu, no
estado de Mato Grosso. Neste rito o doente curado, através da mediação do pajé da
aldeia, promove o rito do ser sobrenatural que lhe restituiu a saúde, esse ser sobrenatural
38
COSTA, M. H. F. O Mundo dos Mehináku: Representações visuais, mito e cerimonialismo. In:Simpósio
da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de SãoPaulo, 1978, s/p.
70
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
vai ser personalizado durante a festa. Xapukuyáuá é o ser da água de aparência
antropomórfica, que exerce autoridade entre os peixes, aos quais também aparecem
alusões várias durante o ritual. O Xapukuyáuá é representado por uma indumentária de
palha trançada e ostenta um cetro de cabaça, relacionado com uma canoa antropófaga e
sobrenatural, que também mostra características animais.
Outro aspecto específico da cultura latino-americano discutido neste simpósio foi
a arte popular. A tônica da discusão do conceito de arte popular foi predominante nas
conferências da mexicana Eli Bartra, das brasileiras Lélia Coelho Frota e Alba Maria
Zaluar, além do crítico Mirko Lauer, atuante no Perú.
Eli Bartra apresentou neste a importante conferência intitulada “Retorno de um
mito: A Arte Popular39” trouxe elementos importantíssimos para o entendimento da
crescente ideologia em a favor do estudo centrado e a partir da América Latina
percebidos no período do evento no qual ela palestrou, percebeu que para a construção
desta ideologia muito influenciou o triunfo da Revolução Cubana e as lutas de caráter
anticapitalistas e anti-imperialistas que ocorreram desde 1960 em diversos países da
América Latina.
Bartra afirmou “Se parece haver tanto esforço para encontrar o que é latinoamericano na arte, seria conveniente partir do reconhecimento da realidade dos
colonizados”. A colonização nos trouxe uma série de imposições culturais referentes aos
modelos e parâmetros implantados nos países da América Latina e essas mudanças
impostas também fazem parte do que somos. Portanto, a conferencista clama pelo
entendimento da identidade latino-americana no presente e não somente no passado précolonização.
Por isso, Bartra afirmou que não podemos negar os elementos herdados do
colonizador, em diferentes processos uns mais outros menos violentos, sobre isso
destaca-se: “Fechar os olhos diante da realidade, negar a coisa ocidental na coisa latinoamericana, é negar a nós mesmos, em parte, é negar o que somos”.
E quanto à arte popular? Bartra declarou: “Uma das respostas frequentes para a
questão sobre o que é a verdadeira arte latino-americana é encontrada na arte popular.
Esta arte seria a expressão autêntica de nossos povos [...]”, e isso a conferencista chama
39
BARTRA, E. Retorno de un mito: El Arte Popular. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana deSão
Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
71
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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de um mito, usando mito como sinônimo de engano ou ilusão, e que esta ilusão não é
nova, de tempos em tempos a América Latina retorna a este mito, como se houvesse um
original do homem latino-americano.
Bartra afirmou que esta maneira de pensar sobre a arte latino-americana como
vinculada a um passado longínquo e pré-colombiano desprezando a chamada produções
artísticas modernos ou mesmo contemporâneas, por considerá- las “meras imitações da
arte das metrópoles ocidentais” é o pensamento do colonizador que se interiorizou no
colonizado, de um papel para América Latina de subalterno culturalmente destinado a
ser uma “cultura de repetição”, usando o termo de Nelly Richard quanto discute as
questões da cultura latino-americana.
Lélia Coelho Frota (1937 – 2010) foi poeta, crítica e historiadora da arte
brasileira que, e muitos de seus trabalhos foram dedicados às questões da arte popular e
ao patrimônio material brasileiro, nessas áreas, é autora de célebres trabalhos como
“Mitopoéticas de nove artistas Brasileiros”, “Mestre Vitalino” e “Pequeno dicionário da
Arte do Povo Brasileiro”, onde a autora inovou por não separar o artistas e o autores das
obras populares.
A sua conferência neste Simpósio intitulou-se “Um reassumir do subjetivo e da
realidade cultural próxima40” e nesta a autora clamou para que deixemos a tendência
que identificou na América Latina de “filiar-nos, na esfera estética, à manifestações
estranhas à formação das nossas culturas”, defendeu que a arte precisa ser entendida
como parte da cultura em uma visão antropológica. Lélia Frota citou as palavras de
Mário de Andrade que, sessenta anos antes, ao analisar música brasileira afirmou “A
falha da cultura consiste na desproporção do interesse que temos pela coisa estrangeira e
pela coisa nacional”, a autora comentou como as palavras Mário de Andrade são atuais.
A professora universitária Alba Maria Zaluar apresentou a conferência intitulada
“O Clovis ou a criatividade popular num carnaval massificado41” com o principal
objetivo de evidenciar como os conflitos não estão ausentes das festas populares, para
construir esta tese lançou análise sobre a festa popular chamada “Clovis” que ocorre na
periferia carioca, alguns elementos criativos usados nessa festa estavam expostos na
40
FROTA,L. C. Um Reassumir do Subjetivo e da Realidade Cultural Próxima. In: Simpósio da I Bienal
Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.
41
ZALUAR, A. M. O Clovis ou a criatividade popular num carnaval massificado. In: Simpósio da I
Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,1978, s/p.
72
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
mostra vinculada a esse simpósio. Em sua tese defendeu que a arte popular precisa ser
vista como resistência onde se mesclam submissão e autonomia do povo frente aos
parâmetros impostos. Encaminhando para a conclusão Alba afirma que Clóvis é a
negação da participação daquela coletividade em umasociedade que determina um lugar
inferior a ela, portanto é uma resistência a uma estruturação social que subalteriza as
comunidades periféricas. Clovis é uma manifestação popular como forma de resistência.
Assim como Alba Zaluar, Mirko Lauer42 também se referiu aos componentes de
dominação e de resistência na Arte popular. Mirko Lauer trouxe ao Simpósio uma
conferência sobre a situação do artesanato e do artesão no Peru contemporâneo,
devemos lembrar que a referida palestra ocorreu em 1978. A principal contribuição de
Mirko Lauer foi vincular as situações analisadas ao processo histórico cujo fato principal
é a colonização iniciada no século XVI pelos espanhóis no Perú, mas também todas as
decorrências da implantação do capitalismo no país, ele analisou a história e percebeu
que o artesão perdeu lentamente as referências que guiavam o seu trabalho em
consequência da dominação cultural, processo vinculado e tributário da dominação
econômica e do fenômeno antropológico associado.
Mirko Lauer entende o artesanato tanto quanto uma forma pré-capitalista de
produção quanto como expressão artística genuína de diferentes setores da população. É
somente partindo dessa dupla definição de artesanato que foi possível caminhar a
pesquisa e análise que transcende antigos preconceitos referentes à arte popular, como
um ponto alto do campesino sem qualquer valor ou significado econômico ou estético.
Considerações Finais
Desenhando considerações finais para as análises tecidas sobre o que representou
este Simpósio destaco a abrangência dos temas que, em seu conjunto, procuraram
acercar diferentes olhares para o nosso continente e para a arte produzida aqui, nesta
procura pelas nossas especificidades foram abordadas, tais como as afrinidades, a
indianidade, o lugar da arte popular, além da urgência de discutir o conceito de América
Latina e de metodologias mais acertadas para a análise da arte latino-americana, essa
abrangência pode ser traduzida no desejo de ver outras epistemes tendo espaço e voz
nas sociedades. A análise das conferências revela que por um momento o sistema de
42
LAUER, M. Artesanía y Capitalismo em el Peru. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São
Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora.
73
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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arte foi sensível e abriu o devido espaço para este debate, muito embora, o projeto de
Bienais Latino-Americanas de arte foi descontinuado. Durante as análises, não foi
somente uma vez que perplexa percebi que as pautas identitárias expressas em 1978 são
ainda atuais, quase 43 anos depois. Talvez essa seja a maior motivação para este
trabalho que busca resgatar os debates realizados e que evidenciam que as reflexões não
podem ser descontinuadas para que se efetivem mudanças. Se em 1978 teve início do
apontamento da abertura de portas para a frágil democracia brasileira, hoje vivemos um
momento crítico, onde infelizmente existe a defesa de que essas frágeis portas deveriam
se fechar e aliado a isso, o atual governo federal acata direitos e busca silenciar vozes,
todo esse cenário torna urgente o resgate de toda as lutas a favor da pluralidade cultural,
há de se ver e rever a história construída de luta para mais potentemente habitarmos o
presente da luta.
REFERÊNCIAS
FUNDAÇÃO BIENAL. I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Pavilhão Armando
de Arruda Pereira, de 3 denovembro a 17 de dezembro de 1978.
SIMPÓSIO DA I BIENAL LATINO-AMERICANA DE SÃO PAULO. Vol. I e II.
São Paulo: FundaçãoBienal de São Paulo, 1978, s/p.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
75
DIÁLOGOS ENTRE O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES MUSEAIS E O ACESSO
DO TRABALHADOR À PRODUÇÃO CULTURAL: MÁRIO PEDROSA, A
BIENAL DE SÃO PAULO E O MUSEU DA SOLIDARIEDADE SALVADOR
ALLENDE
Camila Vieira de Souza1
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta reflexões a respeito da contraposição entre a realidade
material dos trabalhadores brasileiros no século XXI com o ideário social de Mário
Pedrosa, a respeito da função libertadora da arte dentro do corpo conceitual que o crítico
determinou ao longo de sua produção crítica. A discussão que se apresenta diz respeito
a uma tentativa de apontar a importância que as instituições culturais desempenham
para possibilitar o confronto entre a linguagem artística e o sujeito. Simplificadamente,
o papel que os museus e instituições culturais desempenham a partir de uma análise do
discurso de Pedrosa.
O crítico é um autor bastante estudado devido à riqueza de sua produção textual e
do papel que desempenhou enquanto mediador das instituições culturais, tanto para o
Brasil, quanto na ajuda que ele prestou para a construção do Museu da Solidariedade
Salvador Allende. Uma das grandes contribuições do autor a respeito da crítica de arte
foi a capacidade de contextualização entre o fazer artístico enquanto processo criativo e
as condições materiais permitidas pelo Sistema Capitalista para essa produção. É
impossível, portanto, fazer uma leitura a respeito do discurso de Pedrosa sem fazer
ponte à condição social que ele denuncia em seus textos.
O aspecto apontado neste artigo é a contraposição entre o discurso de
acessibilidade através das instituições museais e culturais: sobre o quanto a Bienal de
São Paulo, por exemplo, permitiu o trânsito de obras internacionais para dentro do
coração financeiro do Brasil, ao mesmo tempo em que há uma restrição a esse acesso
por causa da localidade escolhida para abrigar as exposições, geralmente bairros
abastados e afastados da zona periférica e dos trabalhadores que, além de questões
1
Formada bacharel em Arte:
carta.para.camila@gmail.com
História,
Crítica
e
Curadoria
pela
PUC
SP.
E-mail:
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
espaciais, enfrentam a falta de tempo e de recursos para acessar essas zonas centrais,
portanto as obras de arte.
Mário Pedrosa acredita que a partir do momento em que o trabalhador trava
contato com essa produção artística, geralmente restrita aos círculos burgueses, o
trabalhador passa por uma revolução interna, que o leva a entender a sua condição
material e de classe, por meio das experiências sensoriais ou cognitivas que as obras de
arte podem provocar. Neste sentido, para Mário, a obra de arte desempenha um papel
social que leva os sujeitos à uma humanização a partir da sensibilidade. A arte, segundo
o argumento, provoca uma reação à realidade material que o Sistema Capitalista impõe,
por meio da exploração do proletariado pela burguesia.
No entanto, ao contrário do Museu da Solidariedade, que se ergueu por meio de
doações e da proposição do Governo de Allende, de um museu público, a Bienal de São
Paulo e os primeiros museus paulistas foram erguidos por meio da intervenção de
industriais e coleções particulares, por iniciativa da elite local.
O ACESSO DO TRABALHADOR ÀS COLEÇÕES DE ARTE
Mário Pedrosa é um autor largamente conhecido por sua crítica a respeito da
produção artística inserida dentro do Sistema Capitalista, sendo, sem sombra de dúvida,
um dos mais significativos críticos de arte brasileiro. Os escritos transmitidos no jornal
O correio da manhã2, são fonte de adaptações, estudos e compilados teóricos até os dias
atuais, propulsionando o nome do crítico ao patamar de respeito que ele merece. Apesar
de Mário Pedrosa conjugar uma obra que é objeto frequente de indagações e pesquisas,
por causa de seu apreço concilizaçã da Arte enquanto motor da conscientização de
classe, e do sistema capitalista como alienador do fazer artístico e, por muitas das vezes,
causa de um atraso social pavimentado, segundo as palavras do crítico pelo “consumo
conspícuo da burguesia", há de se aferir que é impossível traçar a obra pedrosiana sem
uma cuidadosa imersão na teoria crítica do materialismo histórico e da luta de classes,
embasadas segundo as teorias econômicas de Marx e Engels.
Mário, como um comunista que foi, em princípio se embasou no materialismo
histórico para tracejar a crítica a respeito de uma arte capaz de ensejar no proletário a
2
Jornal no qual Mário Pedrosa atuou como crítico de arte
76
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verve de liberdade, por meio de uma imagética intensa, que transmitisse o sofrimento ao
qual a classe trabalhadora é endereçada, por causa de uma pequena parcela detentora
dos meios de produção. A exemplo das gravuras de Kathe Kollwitz3 Mário acreditou
que quanto mais próxima ao materialismo, mais a arte poderia comunicar diretamente
essa necessidade de subversão. Mais tarde, ao aderir ao trotskismo como base
fundamental de sua crítica, Mário amplia os horizontes de seu trabalho e insere as bases
da Gestalt como forma analítica, aderindo ao conteúdo fluido que as abstrações
concretas poderiam legar. De uma maneira ou outra, é premente alegar que a base da
análise social outorgada por anos de leitura e militância comunistas possibilitaram a
Mário Pedrosa descrever, como nenhum outro, a teoria de uma arte redentora, que
aproxima o proletário de sua liberdade, não só como o exercício experimental artístico,
porém como uma premissa básica de que a Arte media o contato do espectador com
alguma coisa que o leva à reflexão, para além de seu mundo material e de seu papel
dentro do sistema de produção de mercado.
Ao abordar essa crítica ao sistema artístico, inserido no mercado capitalista,
porém, não se faz clara a questão do papel que as instituições artísticas desempenham
dentro dessa rede, cujo museu está na ponta, o que possibilita o contato do espectador
com a criatividade humana expressa na obra de arte. Dentro do sistema Capitalista a
porta de entrada de um artista dificilmente é o Museu, que funciona mais como uma
instituição que autentica a obra de arte como valorosa, qualificando aquele artista como
portador de uma produção interessante, aos olhos da sociedade. Sem mencionar
diretamente as galerias de arte, mas sempre atento a este “mercado” direcionado ao
“consumo conspícuo burguês” a arte, para Pedrosa, “uma vez que assume valor de
câmbio, torna-se mercadoria como qualquer presunto”4. Ao abordar o Sistema
capitalista e o modo de produção ao qual os artistas, como trabalhadores não
producentes dentro dos moldes de valoração mercadológica - a não ser que este artista
contribua efetivamente com a geração de capital, através de sua obra -, Mário Pedrosa
deixa lacunas a respeito dessa questão econômica que é o acesso prévio ao museu.
Podemos aferir, mediante os textos do crítico, que a instituição museal
desempenha papel fundamental concernente a esse empoderamento das classes
3
4
Ver: As tendências sociais da arte e Kathe Kollwitz
A Bienal de lá pra cá, p.448
77
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trabalhadoras. No entanto, talvez por causa da época ou de sua classe Pedrosa nunca
tenha discorrido sobre as fronteiras invisíveis que existem nas grandes cidades, como o
poder de locomoção da população periférica ou dos altos custos que envolvem uma ida
ao museu para os trabalhadores, que geralmente moram distantes dos centros nos quais
os museus se encontram. Obviamente que, devido à larga abordagem que o autor
realizou a respeito do Sistema Capitalista, do mercado de Arte e da exclusão social a
que a classe trabalhadora é submetida, Pedrosa muitas vezes alcança certos setores
sociais muitas vezes mais pauperizados do que os do proletariado aos quais a teoria
marxista se dirige.
No texto Arte culta e arte popular5, resultado de uma Comunicação que Pedrosa
realizou na Cidade do México em 1975, o autor aventa como seria possível que o acesso
à arte nas camadas mais pauperizadas da população fosse uma realidade: para o crítico,
por meio da ampliação do acesso ao artesanato local e pela formação de cooperativas
que controlam a distribuição e o mercado ao qual esse fazer popular se apresenta,
poderia ser garantida à boa parte das comunidades que pudessem adereçar suas
residências e tornar essa produção artística difundida não apenas num mercado externo,
mas internamente. Pedrosa alerta que existe um mercado formado por grandes galerias
ou atravessadores que exportam esses objetos artesanais, encarecendo-os ao ponto de
que a própria comunidade na qual essas obras têm origem não pode consumi-los,
tornando essa arte dita popular, portanto, objetos de luxo mais uma vez consumíveis
apenas por famílias abastadas. Alienando a população de sua própria imagética.
A difusão do artesanato entre os setores populares também contribui
para a desalienação do “gosto”. Nas casas da pequena burguesia e nos
lares proletários, lentamente, os tapetes criollos, as tecelagens de palha
e crina, as estatuetas policromadas de Melipina ou as pedras de
Toconao vão substituindo, nas paredes, as más reproduções e as folhas
de calendário, contribuindo assim para a formação de um novo
ambiente íntimo para o chileno (PEDROSA, 1975. p 546).
Este texto exemplifica como a formação de cooperativas de artesanato chileno
fizeram frente às grandes feiras de arte, a exemplo da Chilean Art, como forma de
resistência e sobrevivência para além da transformação da arte local em objetos de
5
PEDROSA, Mário. Arte culta e arte popular. Publicado em Arte em revista, n. 3, 1980, pp. 22-26 (trad.
Elisabeth Ferreira e Iná Camargo Costa).
78
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consumo para turistas. Pedrosa, no entanto, assevera que a sobrevivência das mesmas é
relativamente difícil pois “o mercado não permite que nenhuma outra atividade
sobreviva fora dele”5, em outras palavras, essas cooperativas ou pequenos artesãos
geralmente são engolidas pela demanda provocada por essas grandes redes que
garimpam peças legítimas do artesanato local para sua venda ao mercado burguês;
formando um ciclo de retroalimentação no qual, por um lado, o artesão não consegue
produzir peças que não convergem ao tipo de imagética esperada por esses contratantes
e por outro, essa comunidade ao qual o artesão está inserido não possua condições
materiais de consumir essa produção, seja por causa do preço de mercado, validado por
essas instituições, seja por causa da demanda ao qual esses objetos são destinados.
Esse contexto é o primeiro gancho que permite uma leitura aprofundada sobre o
significado que Pedrosa atribui à acessibilidade, uma vez que o conceito é recorrente em
seus discursos sobre a função social dos museus. A acessibilidade, no caso, é a
possibilidade de ver a obra dentro de um museu ou instituição cultural, o que, de fato,
devemos considerar quando imaginamos que trazer as obras aos olhos do público local é
uma das formas de se ampliar esse contato, outrora impossível à grande parte das
populações latinas, uma vez que apenas a elites empresariais ou classe média abastada
dos países colonizados conseguem viajar para fora de suas fronteiras a fim de
contemplar a produção dos grandes mestres, com algumas exceções.
A Bienal de São Paulo é um exemplo que podemos tomar de partida para
investigar essa relação entre o acesso à arte e o público dentro do espaço cultural.
Pedrosa, no texto A Bienal de lá pra cá, destaca a importância que o evento trouxe à
cidade de São Paulo e à Sul-américa, transformando a cidade num polo cultural. O
evento permitiu trocas diversas entre artistas latino-americanos e europeus, através das
premiações e da presença de diferentes delegações internacionais, com a curadoria, à
época, separada por países. “Ela proporcionou um encontro internacional em nossa
terra, ao facultar aos artistas e público brasileiros um contato direto com o que se fazia
de mais “novo” e de mais audacioso no mundo"6.
5
PEDROSA, Mário. Arte culta e arte popular. Publicado em Arte em revista, n. 3, 1980, pp. 22-26 (trad.
Elisabeth Ferreira e Iná Camargo Costa).
6
PEDROSA, Mário. A BIENAL DE LÁ PRA CÁ. p.444.
79
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A Bienal insere o Brasil numa rede internacional de arte e abre o país ao mercado
cultural. Criada em 1951 por Francisco Matarazzo Sobrinho7, a reboque da Bienal de
Veneza, e por sua disputa com Assis Chateaubriand, que em 1947 criou o Masp, a
Bienal de São Paulo viu o surto da industrialização paulista tomar impulso, gerando a
ampliação da população urbana e a multiplicação da massa de operários que ocupavam
os casebres e vilas da cidade. Neste caso em específico, e a respeito de um tema
recorrente dentro da crítica de Pedrosa, é importante notar que a iniciativa privada foi
essencial à construção de espaços culturais e coleções de arte no Brasil. Tanto o Masp,
erguido com a contribuição de Assis-Chateaubriand, quanto a existência do Museu de
Arte Moderna de São Paulo e da Bienal são devidos aos esforços dessa burguesia
industrial.
Mário Pedrosa jamais mediu esforços à crítica do que ele considera uma criação
artística de mercado feita para “o consumo conspícuo da burguesia”, no entanto, é
bastante difícil argumentar contra esses industriais e grandes colecionadores, como
Yolanda Penteado, esposa de Matarazzo Sobrinho, porque foram eles os responsáveis
pela inserção do Brasil dentro desse circuito mundial. Apenas para lembrarmos, a
primeira exposição de Anita Malfatti ocorreu dentro da galeria de uma loja de
departamentos cuja clientela era a classe média e a elite local8. É interessante notar que
a alta sociedade local, no caso do Brasil, teve papel fundamental na construção de uma
rede de museus e consequentemente num ambiente propício ao surgimentos de novos
marchands, críticos e artistas, visto que o mercado de arte brasileiro e a rede de museus
de Arte sequer existia já que o Estado brasileiro foi principal fiador de museus de
ciência e históricos, prioritariamente.
A São Paulo das décadas de 1940-1950 difere muito daquela cidade que sediou o
movimento moderno de 1922. A política do café com leite da Velha República fez
enriquecer os cofres da cidade e da burguesia local. A primeira ferrovia do Brasil
conectava os interiores do Estado paulista ao porto de Santos, garantindo o escoamento
da produção cafeeira que conduzida a República ao eminente progresso da
industrialização. A vinda de imigrantes pauperizados, porém com um conhecimento
7
Francisco Antônio Paulo Matarazzo Sobrinho (1988-1977). Industrial, mecenas e político ítalobrasileiro. Filho de Andrea Matarazzo e sobrinho do conde Francesco Matarazzo. Responsável pela
criação do MAM SP e da Bienal de SP.
8 Os cadernos de Anita Malfatti no IEB. 2018.
80
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industrial acima da média brasileira, também foi fator essencial ao progresso da cidade
que crescia exponencialmente, recebendo trabalhadores vindos de fora e das entranhas
rurais.
A nomeação de Lúcio Costa para a direção da Escola Nacional de Belas-Artes, na
década de 1930 em conjunto com a determinação da autonomia da Faculdade Nacional
de Arquitetura possibilitou a primeira geração de arquitetos modernos brasileiros.
Pioneiros, os primeiros arquitetos fizeram extenso uso do concreto, e aqui devo prestar
homenagem à fábrica de cimento Portland Perus, fundada em 1924, a primeira
fornecedora nacional de cimento, construída, porém, com capital estrangeiro. A fábrica,
atualmente desabilitada, sedimentou o bairro paulista que alcunhou o nome da empresa,
bairro este que emergiu a partir de uma vila operária.
A pulsão industrial e o apelo moderno que renuncia o estilo neo-clássico europeu
empurrou as camadas populares para longe dos centros urbanos, a partir das décadas de
1940-1950, formando grandes zonas periféricas que consistiam em bairros satélite, ou
bairros-dormitório, em cuja a população operária apenas residia, precisando se deslocar
aos grandes centros industriais a fim de trabalhar ou usufruir das opções de lazer
disponíveis na cidade. Aos que sequer conseguiam trabalho, estavam reservadas as
favelas ao longo do Rio Tietê, como aquela retratada em Quarto de Despejo, de
Carolina de Jesus. Talvez, seja necessário destacar que houve relativo avanço nas leis
trabalhistas com o governo de Getúlio Vargas, mas a questão urbana nunca foi de
extrema relevância para a esfera pública, até o investimento arquitetônico feito por JK
com o intuito da construção de Brasília.
A estrutura brutalista da arquitetura brasileira e o estilo concretista adotado pelos
mais importantes arquitetos brasileiros, segundo Mário Pedrosa, colocou o Brasil na
vanguarda do mundo. Há diferenças entre o desenvolvimento da arte brasileira a partir
da Semana de 1922 até a fase das Bienais. Segundo ele, a Semana de 22 tratava “de
levar ao público [...] espécimes da revolução modernista”, reunindo artistas, intelectuais
e pintores em nome desse modernismo a apresentarem-se ao “burguês provinciano”. A
segunda fase da Arte brasileira, essa de cunho arquitetônico, já apresenta “uma certa
conotação social e coletiva, e não por um acaso o protagonista [...] é o arquiteto”. Na
81
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fase das Bienais “o pêndulo volta às artes individuais, a hegemonia passa à pintura,
como era na Europa”9.
Esse desenvolvimento das artes no Brasil, contudo, aconteceu bastante
tardiamente, devido à história da Colônia, com o envio de artistas para a Europa,
promovido por bolsas, ou através do investimento particular das famílias destes artistas.
O investimento público sempre foi essencial ao desenvolvimento das Artes no Brasil,
mas as coleções privadas tiveram desempenharam um importante papel nesse
desenvolvimento. A iniciativa de industriais, em São Paulo, se diferenciou das
tentativas empenhadas no Rio de Janeiro, por exemplo. Se pincelarmos a história
arquitetônica das cidades, podemos lembrar que os passeios públicos do Rio de Janeiro,
desenhados na época colonial, não foram pensados como ambientes de circulação da
classe burguesa10 até Pereira Passos11, fato que manteve muitos dos casarões
característicos do período monárquico e o hábito de prestar pouco cuidado com o trato
às ruas e praças.
A cidade de São Paulo, por sua vez, inaugurada pelo Jesuítas em 1554, com a
delimitação do Pátio do Colégio, atendeu às primeiras estruturas de organização
portuguesas, iguais às do Rio de Janeiro, com suas ruelas ao modelo medieval e a parca
delimitação de lotes, porém, desapegada ao modelo neocolonial das fachadas, a cidade
preferiu, sempre que possível, aderir ao gosto arquitetônico moderno. São Paulo nunca
teve a sanha de manter suas raízes feitas de taipa de pilão, tendo rapidamente aderido ao
concreto armado e aos materiais industriais para a construção de seus arranha-céus a
partir do fim da Segunda Guerra. Muito ao gosto dos industriais locais.
A facilitação do contato direto com a produção mais internacionalizada, mediante
a popularização das pontes aéreas e da larga circulação de informações transmitidas por
rádio e tevê, além da circulação de moedas dentro da capital paulista, acelerou o contato
dos artistas e do público brasileiro com o mundo. Não por um acaso Assis
Chateaubriand, que foi um grande industrial das comunicações, desempenhou papel
fundamental na ereção do MASP, 1947, através da compra de peças e de doações de
9
PEDROSA, Mário. A BIENAL DE LÁ PRA CÁ. p.464.
Conferir a excelente aula gravada em vídeo sobre História da Casa Carioca, com o professor William
Bittar, disponibilizada em função da Exposição “Casa Carioca” no Museu de Arte do Rio (MAR) em
2020.
11
Francisco Franco Pereira Passos (1836- 1913). Prefeito do então Distrito Federal (Rio de Janeiro) entre
1902 e 1906, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves.
10
82
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coleções particulares de arte francesa para o museu. A Bienal nesse ínterim, consolidou
essa ponte entre artistas nacionais e estrangeiros, além de incentivar a produção de
jovens artistas através de suas premiações. Por meio das Bienais, a população poderia,
por fim, acessar as mais recentes e importantes obras produzidas no período, mediante
uma curadoria especializada.
É necessário lembrar, contudo, que devido a essa urbanização desenfreada e do
processo gradual de gentrificação, grande parte dos trabalhadores de São Paulo
provavelmente não puderam acessar as exposições. O Pavilhão da Bienal, inaugurado
em 1957, arquitetado por Oscar Niemeyer, está localizado no coração do Parque
Ibirapuera, numa zona habitada pelas classes médias altas e ricas da cidade. Como
reflexão, é possível inferir que mesmo que se transfira obras de arte para museus e
instituições culturais a fim de que a população tome conhecimento dessas peças e possa,
segundo o que acredita Pedrosa, acessar esse conteúdo humanístico e libertador, que é a
obra artística, ainda assim o museu, enquanto instituição, é um espaço criado aos
moldes dos que a classe burguesa frequenta. No lugar que lhes é conveniente.
Santiago do Chile, fundada em 1541 pelo espanhol Pedro de Valdivia, recebeu das
mãos de Pedro de Gamboa a sua arquitetura, em estilo Espanhol. A expansão do centro
e a divisão da cidade em lotes foi essencial para uma expansão mais controlada e
organizada de seus prédios, o que difere, em muito, da maneira portuguesa, que não
possui esse cuidado com o plano arquitetônico de sua colônia ou até mesmo de algumas
de suas cidades. Essa urbanização, contudo, não conseguiu impedir o processo de
gentrificação no século XX e a formação de bairros dormitórios que, igualmente aos
brasileiros, são compostos por trabalhadores que precisam se deslocar ao centro para
trabalhar e acessar as opções de lazer, de maneira similar aos nossos. Portanto o acesso
às instituições culturais de fato é dificultado aos trabalhadores que precisam residir
longe das fábricas e dos centros comerciais, o que impede essa intenção que Mário
Pedrosa transmite em seus textos de que a arte esteja acessível ao trabalhador. Durante o
seu pronunciamento em 1972, por ocasião da inauguração do museu da Solidariedade
chileno, Pedrosa asseverou que:
Los donantes quieren que sus obras sean destinadas al pueblo, que
sean permanentemente accesibles a él. Y más que eso, que el
trabajador de las fábricas y de las minas, de las poblaciones y de los
campos entre en contacto con ellas, que las considere parte de su
83
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
patrimonio. La esperanza de los artistas y nuestras es contribuir de
este modo a la espontánea creatividad popular para que fluya
libremente y pueda coadyuvar a la transformación revolucionaria de
Chile. Es así como pensamos que el “ Museo de la Solidaridad”
deberá ser ejemplar en sus funciones específicas, ejemplar en sus
tareas educativas y culturales, ejemplar en su accesibilidad
democrática. Debe ser el hogar natural de las expresiones culturales
más fecundas del Chile nuevo, consecuencia de su avance en el
camino del socialismo. Este es el deseo entusiasta de los artistas del
mundo que concurren para ello entregando el producto de su fuerza
creativa.12
A reboque deste pequeno excerto, não é possível afirmar que uma vez presente
nos museus as obras não estarão acessíveis ao trabalhador por causa das questões de
deslocamento, uma vez que seria possível que o trabalhador se dispusesse a tomar o
transporte público da cidade e ir ao local em que a obra está, mesmo que longínquo ou
de difícil acesso. Não é possível ignorar, no entanto, uma outra crítica bastante
pertinente que Pedrosa faz a respeito da alienação desse trabalhador dentro do Sistema
Capitalista, baseando-se nos textos econômicos de Marx e na filosofia Trotskista do
papel social da Arte.
Uma observação importante à análise dos conceitos empregados por Mário
Pedrosa para tratar dessa experiência afetiva entre a obra de arte o trabalhador é que
mesmo considerando que Pedrosa jamais tenha tocado diretamente na questão do
deslocamento urbano, ao tratar da luta de classes e da alienação no trabalho, além das
condições materiais dos proletários, é difícil traçar alguma hipótese que confronte o
autor neste ponto. A exemplo:
12
Os doadores querem que suas obras sejam destinadas às pessoas, para que estejam permanentemente
acessíveis a elas. E mais do que isso, que trabalhadores de fábricas e minas, cidades e campos tenham
contato com eles, que os considerem parte de seu patrimônio. A esperança dos artistas e da nossa é
contribuir desta forma com a criatividade popular espontânea para que flua livremente e possa contribuir
para a transformação revolucionária do Chile. É assim que pensamos que o “Museu da Solidariedade”
deve ser exemplar nas suas funções específicas, exemplar nas suas tarefas educativas e culturais,
exemplar na sua acessibilidade democrática. Deve ser o berço natural das expressões culturais mais
fecundas do novo Chile, consequência de seu avanço no caminho do socialismo. Este é o desejo
entusiasta dos artistas de todo o mundo que concorrem para isso, entregando o produto de sua força
criativa. Tradução livre. In: Discursos pronunciados por el presidente de la república, doctor Salvador
Allende, y por Mario Pedrosa, presidente del comite de solidaridad artística con Chile, con ocasión de
inaugurarse la primera muestra de obras donadas al museo de la solidaridad. Santiago del Chile: 1972.
p.21.
84
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
[...] Hombres que operan los mecanismos del Estado y a los artistas
del mundo que manejan instrumentos, en su mayoría destinados a
atrapar sensaciones, vivencias, imágenes, intuiciones, “ la esencia del
hombre” en suma, en eterno conflicto con su existencia, al fin del cual
el nombre encuentra o debe encontrar su liberación total. [...] Aparte
de mirarlas, contemplarlas, admirar esas corporificaciones, de dialogar
con ellas por el tacto, por los sentidos, por el pensamiento, adquirimos
una nueva experiencia vivencial, un nuevo enriquecimiento
cognoscivo, que es sobretodo un vehículo de la Verdad todavía
trascendente en su contraste con una realidad que la niega. Y mientras
la realidad que la (sic) niega. Y mientras la realidad sigue negándola
(sic), el arte sigue en su acercamiento permanente a una verdad cada
vez más histórica y cada vez menos trascendente. Un día, en un punto
del horizonte, los dos procesos se encontrarán, y entonces el arte será
la vida y la vida será arte.13
Mário Pedrosa, ao se pronunciar acerca dessa função socializante das artes, que se
encontra no processo de contato com a obra de arte e o incentivo a uma experiência
vivencial que leve o homem à sua essência, que Pedrosa acredita ser a liberdade, não
num sentido abstrato, mas no sentido do livramento da condição opressora a qual os
trabalhadores são submetidos a fim de existir dentro do sistema capitalista. Por isso,
para o crítico, a Arte tem a função social de despertar a consciência de classe dos
sujeitos através de suas experiências sensoriais e cognitivas, de modo que ao ser
interpelados por essa “verdade”, que consiste no materialismo histórico e na luta de
classes, o trabalhador atinja a consciência de que está sendo oprimido e alienado de seu
verdadeiro Ser.
A partir disso, podemos argumentar que, de fato, as condições materiais do
trabalho o impedem de ter contato com essas obras. Não seria contraditório não levar
em consideração a localidade desses equipamentos culturais quando aplicada essa
13
Homens que operam os mecanismos do Estado e os artistas do mundo que manuseiam instrumentos,
em sua maioria destinados a captar sensações, experiências, imagens, intuições, "a essência do
homem" em suma, em eterno conflito com sua existência, no final do qual o nome encontra ou deve
encontrar sua liberação total. [...] Além de olhar para eles, contemplá-los, admirar essas encarnações,
dialogar com eles pelo tato, pelos sentidos, pelo pensamento, adquirimos uma nova experiência
experiencial, um novo enriquecimento cognitivo, que é antes de tudo um veículo da Verdade ainda
transcendente em seu contraste, com uma realidade que o nega. E enquanto a realidade que o nega. E
enquanto a realidade continua a negá-lo (sic), a arte continua em sua abordagem permanente de uma
verdade cada vez mais histórica e cada vez menos transcendente. Um dia, em um ponto do horizonte, os
dois processos se encontrarão, e então a arte será vida e a vida será arte. Tradução livre. Tradução livre.
In: Discursos pronunciados por el presidente de la república, doctor Salvador Allende, y por Mario
Pedrosa, presidente del comite de solidaridad artística con Chile, con ocasión de inaugurarse la primera
muestra de obras donadas al museo de la solidaridad. Santiago del Chile: 1972. p.19.
85
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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crítica? Tanto no caso da Bienal de São Paulo quanto no caso do Museu da
Solidariedade Salvador Allende, estes equipamentos estão, ainda, fora do roteiro desses
trabalhadores braçais, ainda que disponíveis. Não há, na obra de Pedrosa, uma
consideração a respeito das barreiras econômicas internas que impedem esse acesso
para muito além de uma obra de arte internacional ser apresentada numa Bienal, por
exemplo.
Ainda assim, ao discutirmos a questão das classes, da alienação e da exploração
do trabalhador, acabamos por esbarrar na narrativa pedrosiana de que os museus tornam
este contato mais próximo possível, contudo, essas condições mesmas, da cidade, do
transporte público e do trabalho, são impeditivos invisíveis que se apresentam para além
das estruturas que Mário Pedrosa acredita desempenharem essa função essencial na
educação do homem ao caminho de sua liberdade. E do artista, a caminho de sua
liberdade de criação. Não se pode alegar que Pedrosa não estivesse a par das condições
de trabalho dos operários brasileiros, devido ao seu extenso contato com a militância
comunista. Contudo, também não é possível afirmar que Pedrosa estivesse a par dos
caminhos necessários a essa interação entre o trabalhador e a obra. Dos textos
analisados e presentes nas referências, não houve menção a uma tratativa a respeito de
se levar a cultura a esses polos afastados dos museus através de exposições itinerantes
ou da necessidade da criação de espaços culturais que permitissem esse acesso mais
próximo do trabalhador com o Museu a partir de seu local de residência.
Atualmente, é possível que o trabalhador acesse coleções virtuais e faça tours
guiados por diversos museus ao redor do mundo a partir do computador e até mesmo
utilizando óculos de realidade virtual. Obviamente que o escritor jamais teve contato
com essa tecnologia, uma vez que o mesmo faleceu no ano de 1981, contudo, é possível
analisar que Pedrosa não foi precursor da defesa de novos espaços de contato com a arte
que não os já conhecidos museus, feiras de arte, galerias e Bienais. Em algumas de suas
críticas, principalmente àquelas direcionadas às intervenções que Hélio Oiticica, o
crítico faz aproximações entre a questão de se levar os bólides para dentro das
comunidades e não abre mão de discorrer a respeito de obras interativas, como os
Parangolés de Oiticica ou os Bichos de Lygia Clark.
Todas estas obras entram dentro do escopo que o crítico determina como sendo a
experiência artística que pode levar o trabalhador à consciência de classe. Mas é
86
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
importante notar que quando se trata de determinar caminhos pelos quais o trabalhador
poderá acessar essas obras, dentro da crítica de Pedrosa não há um caminho possível;
algo que discorra sobre possíveis desdobramentos para uma crítica a respeito da
mediação ou até mesmo da arte-educação. O impacto imediato da consciência de classe
autodeterminada é quase uma entrelinha quando Mário Pedrosa discorre sobre a
potência socializante da arte. O incômodo que o trabalhador pode sentir neste lugar
construído pela burguesia para a burguesia, mesmo que dentro de um escopo público,
como o é o Museu Salvador Allende, não é uma questão na crítica de Pedrosa.
Por fim, as questões sociais que envolvem o acesso aos museus latino-americanos
pela população periférica local abrem lacunas a respeito do discurso libertário que
Mário Pedrosa emprega ao discutir o papel desempenhado pelas instituições de cultura,
seja um Museu ou uma Bienal. Ao que parece, não há uma grande diferenciação entre
um e outro, apesar da alfinetada que Pedrosa vez ou outra emprega ao afirmar que “a
arte, uma vez que assume valor de câmbio, torna-se mercadoria como qualquer
presunto”. (Pedrosa, 1972, p. 448). Apesar do crítico crer que as instituições, por
estarem de portas abertas, estão disponíveis e podem ser acessadas por trabalhadores
urbanos e mineiros, creio que ele, mesmo que socialista e crítico ao capitalismo, não
consiga enxergar de fato as barreiras que impedem essa conscientização, que perpassa
as condições materiais de sobrevivência dos sujeitos, necessidades mais urgentes do que
a contemplação visual de alguma obra que mimetize a sua situação concreta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De uma perspectiva pessoal, enquanto arte educadora, acredito que o discurso de
Mário Pedrosa é dificilmente refutável, porque a raiz dos problemas que impedem o
acesso à cultura no Brasil são de ordem econômica e social, questões contrárias às
posições do crítico ao contextualizar a produção artística, a liberdade criativa e as
engrenagens que movem os trabalhadores dentro do Sistema de Mercado. Contudo,
diante dos desafios que o século XXI apresenta, principalmente quando consideramos o
aspecto tecnológico, que possibilita o acesso a diversos catálogos e coleções de modo
interativo, é essencial que uma releitura seja feita a respeito desse conceito que Pedrosa
constantemente apresenta como sendo a resposta a uma desalienação do trabalhador,
87
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
mediante o contato com determinados artistas e obras de arte. Neste sentido, creio que a
crítica que o teórico realiza a respeito dessa liberdade promovida pela arte e sua
capacidade de transformação está impregnada por uma visão imediata, que precisa ser
revisitada e confrontada com novos dados a respeito de ações educativas e processos
que envolvam construção de conhecimento a partir da obra de arte para além do quadro
pendurado na parede.
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por Lorenzo Mammì. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 351-359.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
REVISTA ARIEL
LA PROPAGANDA DE LA RED ANTIMPERIALISTA DE
SOLIDARIDAD CON AUGUSTO C. SANDINO. 1927-1930
Alejandra G. Galicia Martínez1
INTRODUCCIÓN
Entre 1927 y 1930 se configuró una de las primeras redes de solidaridad que
involucró a las diversas expresiones latinoamericanas del antiimperialismo en torno a la
guerrilla encabezada por Augusto C. Sandino. A partir de esta estructura la lucha del
Ejercito Defensor de la Soberanía Nacional de Nicaragua (EDSNN) fue conocida a
nivel continental y la figura de su líder se convirtió en representante del
antiimperialismo latinoamericano durante la primera mitad del siglo XX.
Buena parte de la historiografía que analiza este momento histórico centra su
atención en la figura de Sandino y su relación con algunos de los intelectuales más
importantes de la época de forma fortuita. El objetivo de este trabajo es complejizar el
análisis de esta relación a partir de una serie de vínculos que permitieron sostener la
lucha sandinista en el periodo de 1927 a 1930. Para ello analizamos la conformación,
desarrollo y disolución de una red de vínculos solidarios que establecieron
organizaciones como la Liga Antiimperialista de las Américas, la Alianza Popular
Revolucionaria Americana y el Unionismo Centroamericano, entre otras.
Enfatizamos la tarea de propaganda realizada por esta red concentrándonos en
Revista Ariel, publicación hondureña que de 1927 a 1929 fungió como vocería oficial
del EDSNN. Ponemos especial atención en la narrativa elaborada por Froylán Turcios,
editor de la publicación hondureña, que se caracterizó por una visión heroica y devota
de la lucha sandinista en la cual colaboraron los principales intelectuales
latinoamericanos: Gabriela Mistral, Waldo Frank, Isidro Fabela, César Falcón, Tristán
Maroff, así como el mismo Sandino.
Doctoranda del Programa de Posgrado en Estudios Latinoamericanos de la Universidad
Nacional Autónoma de México (PELA-UNAM). E-mail: xtabayam@yahoo.com.mx
1
90
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
LA CONFIGURACIÓN ANTIIMPERIALISTA LATINOAMERICANA DE LOS
AÑOS VEINTE
La década de los años veinte del siglo XX puede ser considerada una bisagra en el
tiempo (FUNES, 2006, p. 13). La primera posguerra definió que este periodo de
transición estuviera marcado por tres hechos: la decadencia de Europa como referente
civilizatorio; la consolidación de Estados Unidos como potencia imperialista y la
Revolución rusa de 1917.
Para América Latina la complejidad de los años veinte se expresó al menos en tres
niveles: en el ámbito internacional los países latinoamericanos comenzaron a ser
considerados como un espacio de influencia a disputarse entre Estados Unidos y la
URSS; en el nivel regional se consolidó un discurso unificador de América Latina —
basado en el binomio materialismo vs idealismo —, y, por último, los distintos países
experimentaron importantes procesos de cambio social protagonizados por obreros,
campesinos, indígenas, mujeres y estudiantes.
En este contexto se articuló un movimiento antiimperialista configurado a partir
de la convergencia de distintos proyectos políticos — nacionalistas, anarquistas
comunistas, hispanoamericanistas, unionistas — que se expresaron en momentos clave
como la intervención norteamericana en México, Nicaragua, Haití, Cuba y República
Dominicana. El antiimperialismo como tópico en estos años consolidó una tradición
antinorteamericana que se gestó desde finales del siglo XIX y que tuvo en la política del
Big Stick una de sus expresiones más violentas.
En esta década la idea de que existían varios tipos de imperialismo, uno
parasitario (norteamericano) y otro civilizatorio (europeo), estaba puesta en duda
después de los efectos causados por la Gran Guerra. A partir de esta premisa los grupos
antiimperialistas latinoamericanos comenzaron a delinear estrategias comunes y
plantearon sólidos argumentos para manifestarse contra la presencia estadounidense,
especialmente en la Cuenca del Caribe. Bajo premisas como: la defensa de la
autonomía, la soberanía y la independencia política y económica el movimiento
antiimperialista latinoamericano
anticolonialistas de Asía y África.
entró en consonancia con los
movimientos
91
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
La coordinación y la manifestación pública de las organizaciones antiimperialistas
fue fundamental. Ya fuera conformando colectivos y revistas, manifestándose
públicamente, realizando conferencias o a partir de expresiones individuales condenaron
la estrecha relación de las oligarquías latinoamericanas con los grupos económicos y el
gobierno estadounidense. Sin embargo, a pesar de sus coincidencias y de una aparente
sintonía, el movimiento antiimperialista se caracterizó por sus tensiones, fracturas y
confrontaciones.
El periodo de 1924 a 1927 es clave en la configuración de este movimiento, pues
se fundarán tres importantes organizaciones antimperialistas de proyecciones
continentales: La Liga Antiimperialista de las Américas (LADLA), la Alianza Popular
Revolucionaria Americana (APRA) y la Unión Centro Sudamericana y de las Antillas
(UCSAYA).
La LADLA se creó, entre 1924 y 1925, poco tiempo después de que México y la
Rusia Soviética reestablecieran relaciones diplomáticas. La fundación de la Liga
Antiimperialista respondía a varios objetivos entre los que se encontraban buscar el
reconocimiento de los países europeos y latinoamericanos, y reorganizar, a través de los
Partidos Comunistas, a las clases trabajadoras para combatir el capitalismo. De esta
forma la LADLA fue:
Un aspecto particular dentro de la estrategia de la Komitern para
América Latina, que pretendió unir, bajo un mismo espíritu de
combatividad a todos los sectores del continente enemigos de la
hegemonía estadounidense y europea en la región, apoyándose para
ello en la creciente conciencia latinoamericanista de los grupos
obreros, campesinos y de las clases medias. (KERSFFLED, 2012, p.
11).
Bajo esta lógica la Liga de las Américas fue financiada en gran medida por la
Komintern y creo una estructura organizativa y de propaganda dirigida especialmente
por comunistas norteamericanos. A esta estructura, encabezada por José Allen y Charles
Phillips, se adhirieron connotadas figuras de la esfera política y cultural mexicana como
Diego Rivera, Úrsulo Galván, Carlos Pellicer, José Clemente Orozco, Xavier Guerrero,
David Alfaro Siqueiros, German Litz Arzubide y Enrique Flores Magón, entre otros. De
igual forma se incorporaron importantes intelectuales y políticos latinoamericanos
afincados en México como el dominicano Pedro Henríquez Ureña, el cubano Julio
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Antonio Mella, el peruano Edwin Elmore, y el venezolano Gustavo Machado. Como
parte de esta estructura se crearon dos órganos de propaganda: El Machete y El
Libertador.
Por su parte la Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA) fue fundada
en 1927 por el peruano Víctor Raúl Haya de la Torre2. Según el programa de la
organización publicada en el documento ¿Qué es el APRA? (1926) se planteó la
configuración de un movimiento antiimperialista conformado por un frente de
trabajadores manuales e intelectuales latinoamericanos. La acción de este movimiento
estaría articulado entorno a reivindicaciones como: acciones contra el imperialismo
yanqui, la unidad política de América Latina, la nacionalización de la tierra y la
industria, y la solidaridad de los pueblos y clases oprimidas del mundo.
Los simpatizantes de la APRA fueron básicamente un grupo de peruanos
trashumantes que por su condición de exiliados desarrollaron un ethos que les permitió
sobresalir en el escenario latinoamericano y construir un culto a la praxis que les
permite diferenciarse de sus antecesores peruanos y de una parte del mismo movimiento
latinoamericano (BERGEL, 2009, p. 42). Entre los apristas más destacados se
encontraron Magda Portal, Eudocio Ravines, Luis Heysen, Esteban Pavletich, Manuel
Seoane, Carlos Manuel Cox, Antenor Orrego, Serafín del Mar, entre otros.
Junto a estas dos organizaciones apareció la Unión Centro Sudamericana y de las
Antillas (UCSAYA) en abril de 1927 (MELGAR, 2006) fundada por el venezolano
Carlos León, quien fungió como presidente de la organización, y el argentino Alejandro
Siux, director de la revista La batalla. El objetivo de la UCSAYA fue la defensa de “los
intereses raciales, la propaganda contra la absorción injusta de parte de los poderosos,
hacer prevalecer, hasta lo posible el derecho propio contra los desmanes del
2
La historiografía aprista suele datar la fundación de la APRA en mayo de 1924 en el marco de la
ceremonia de la trasmisión de poderes de la Federación de Estudiantes de México. En ese evento Haya de
la Torre pronunció un discurso en el que se asumía presidente de la Federación de Estudiantes Peruanos,
y en el que sostenía las premisas latinoamericanistas que compartía con el filósofo y ministro de
educación José Vasconcelos, —de quien fue secretario—. Durante el evento no se mencionó nada sobre
la fundación de una organización como la APRA. En 1926, ya en su estancia en París, Haya de la Torre y
un grupo de cuzqueños formarán el Frente intelectual Antimperialista y en enero de 1927 se fundará la
primera sección de la APRA. El episodio fundacional en México tiene como preámbulo la conferencia de
Bruselas (VALDERRAMA, 1979, 123-124)
93
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
imperialismo en todos sus aspectos.”3 A demás de Carlos León y Alejandro Siux, la
primera plana de la UCSAYA estaba conformada por exiliados latinoamericanos como
Jacobo Hurwitz (Perú), Francisco de P. Dávila (Colombia), Amado Chavarri (Costa
Rica), Santiago Garza (Cuba), Gaspar Mora (Chile), Luis Felipe Obregón (Guatemala),
Michel L. Giordani (Haití), Rafael Heliodoro Valle (Honduras), Hernán Robleto
(Nicaragua) y Miguel Paredes (El Salvador).
Definir políticamente a la UCSAYA es interesante. Ricardo Melgar (2006/2007)
define la ideología de esta organización como un neobolivarianismo por incorporar a su
ideario el legado unionista de Simón Bolívar que fue actualizado con tonos
cooperativistas y militaristas que pretendían garantizar la “igualdad y la fraternidad”
(MELGAR, 2006; 2007. p. 156). Pero, además, los dos personajes más importantes de
la UCSAYA se movían ideológicamente en polos opuestos. Mientras Alejando Siux
elaboraba un proyecto editorial desde su militancia anarquista, Carlos León se vinculaba
estrechamente con las elites posrevolucionarias mexicanas de corte liberal (MELGAR,
2006).
Como parte de las coincidencias de las organizaciones antiimperialistas
latinoamericanas encontramos sus miras y proyecciones continentales. Estas
organizaciones tuvieron, o aspiraron a tener, delegaciones en México, Argentina, Cuba,
El Salvador, Costa Rica, Puerto Rico y Perú, además de que sus militantes provenían de
las distintas nacionalidades latinoamericanas. Pero más importante aún fueron la
confluencia entre las organizaciones en los mismos espacios, la relaciones entre sus
integrantes y la colaboración entre sus órganos de propaganda. Daniel Kersffeld
describe estas coincidencias de la siguiente forma:
Las protestas, manifestaciones, mítines políticos y los encuentros
culturales en apoyo a la guerrilla insurgente en Nicaragua se
constituyeron en un punto de encuentro entre agrupaciones que se
vieron obligadas a interactuar en el mismo escenario izquierdista y
latinoamericanista y, aunque por momentos tensa, la camaradería
imperante entre comunistas, apristas, liberales, socialistas,
nacionalistas, etc., se construyó un fenómeno que, con sus propios
matices, fue prácticamente inédito en la historia de los países de la
región (KERSFFELD, 2009, p. 111).
3
Carta de Carlos León a Plutarco Elías Calles, 20 de agosto de 1927. AGN- México, Fondo Plutarco
Elías Calles, exp. 4/489
94
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Un elemento que pasa inadvertido en los análisis del antimperialismo
latinoamericano es su expresión unionista centroamericana que retomó el proyecto
decimonónico de unificar a Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicaragua y Costa Rica
en una sola nación. El unionismo centroamericano propuesto a inicios del siglo XX tuvo
su máxima expresión en el Partido Unionista Centroamericano (PUCA) fundado en
1921 por el nicaragüense Salvador Mendieta en Guatemala, de corta vida.
El unionismo centroamericano tuvo muchas significaciones y se nutrió de varias
fuentes ya que no solo fue un movimiento intelectual influido por el arielismo
rodoniano sino que también fue un movimiento político que “pugnó por un Estado
social, se fundó en un pensamiento regeneracionista, rechazó la dictadura y el
imperialismo y fue heterogéneo, pues representó la unidad de diversas facciones e
intereses de la sociedad centroamericana.” (GIRALDEZ, 2010, p. 203).
La principal fuente del unionismo fue el modernismo. Este movimiento artístico
se desarrolló paralelamente a la incipiente modernización industrial de la región
centroamericana y a la reacción de un grupo de intelectuales que expresaron su abierto
rechazo a la presencia norteamericana bajo la premisa de la confrontación cultural entre
la raza latina vs la raza sajona. (FUNES J., 2006, p. 196-197)
El unionismo centroamericano, desde la segunda mitad del siglo XIX, se
manifestó en contra de la presencia norteamericana en la región4, pero será en la década
de los veinte que se estructurará más que como una organización como una postura
común frente al intervencionismo estadounidense que adoptó múltiples formas. Las
diversas actitudes con respecto a las dictaduras, las oligarquías y la presencia de Estados
Unidos dependieron al menos de dos elementos: el primero fue el tipo de intervención
que experimentaron los países centroamericanos — cultural, política, económica o
militar — y el segundo se relacionó al tipo de desarrollo económico que esta
4
Una de las primeras expresiones unionistas que denunciaron la presencia estadounidense como una
amenaza para la existencia de los países centroamericanos fue la presencia de William Walker en
Nicaragua entre 1855-1857, cuando el proyecto cuando el proyecto colonizador del filibustero había
sobrepasado los objetivos e intereses de los liberales nicaragüenses que había pedido su intervención.
Como respuesta a la amenaza que representaban la presencia de Walker las clases dirigentes y letradas
utilizaron distintos mecanismos para exacerbar el miedo respecto de la intervención de las huestes
estadounidenses y la defensa de la unión centroamericana. Un ejemplo de esta acción en conjunto fue el
folleto costarricense Clarín Patriótico que circuló desde 1857 y que contenía poesía y cantos exaltando
tópicos como la nación, el patriotismo y la independencia, y representaba a los filibusteros como los
bárbaros impíos, los representantes de la esclavitud y la traición. (QUESADA, 2010, 23-54)
95
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
intervención propició. Mientras que en El Salvador y Guatemala la presencia de las
compañías fruteras norteamericanas mereció la expresión moderada de la oposición, en
Honduras y Nicaragua la presencia financiera, corporativa y militar propició posiciones
más radicales. Este proyecto fue enarbolado por los intelectuales centroamericanos de
primer orden: Froylán Turcios, Alberto Masferrer, Rafael Heliodoro Valle, Salvador
Mendieta, Maximino Soto Hall, José Joaquín García Monge, etc.
En este panorama dos fueron las organizaciones protagonistas: la LADLA y la
APRA. Ambas organizaciones se disputaron el liderazgo del movimiento en la región.
La confrontación giró en torno a establecer quiénes eran los sujetos revolucionarios,
quiénes eran los enemigos, en qué espacios y mediante qué mecanismos se llevaban a
cabo la lucha antiimperialista.
Las dos organizaciones habían colaborado en algunos espacios hasta el Congreso
de Bruselas de 1927, en el que su rivalidad se hizo evidente en las Resoluciones sobre
América Latina. En dicho documento se hacía un balance antiimperialista de la región y
se pretendía avanzar en una serie de medidas para contrarrestar la presencia del
imperialismo norteamericano, además de defender a la URSS, construir un frente de
fuerzas antiimperialistas, pugnar por la unión política y económica de América Latina,
defender la nacionalización del suelo y subsuelo, la liberación de las colonias de Puerto
Rico y Filipinas, la salida de las tropas norteamericanas de Nicaragua y Haití, la
independencia de Panamá, la libre circulación por el Canal y la supresión de las
dictaduras de América Latina. (RESOLUCIONES,1927, p. 10-12)
Como parte de este antagonismo la presencia de ambas organizaciones en
Centroamérica se daría en su campo de acción. Mientras que la LADLA organizó a
obreros, mutualistas, algunos campesino y estudiantes, la APRA tuvo una gran
recepción en los ámbitos intelectuales del unionismo centroamericano. La principal
coincidencia entre ambas posturas fue que el antimperialismo unionista no veía en las
clases populares al sujeto revolucionario, al contrario. Su movimiento estaba
conformado por las clases medias letradas que se oponían a las elites que, ejerciendo el
poder político, vulneraban la soberanía nacional beneficiándose de las distintas formas
de intervención estadounidense.
Este es el contexto antimperialista en el que se enmarca el levantamiento
encabezado por el guerrillero Augusto C. Sandino en 1927. La importancia del
96
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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movimiento armado nicaragüense residió en que llevó a los militantes de las
organizaciones antiimperialistas a pasar del discurso a la práctica e incluso a elaborar
una narrativa latinoamericanista potente.
Tanto la LADLA como la APRA tratarán de influir en la lucha armada en
Nicaragua. Sin embargo, esta disputa no se dará como una confrontación directa sino a
través de la colaboración con las otras posturas antiimperialistas, especialmente con el
unionismo centroamericano.
LA RED ANTIIMPERIALISTA DE SOLIDARIDAD CON EL EJÉRCITO
DEFENSOR DE LA SOBERANÍA NACIONAL DE NICARAGUA (EDSNN).
El movimiento guerrillero nicaragüense encabezado por Augusto C. Sandino
iniciado en julio de 1927 fue una de las expresiones concretas de los planteamientos
formulados por el movimiento antiimperialista latinoamericano. La convergencia de la
LADLA, la APRA, la UCSAYA y el unionismo centroamericano proporcionó a la
lucha nicaragüense apoyo económico, militar y propagandístico por parte de
intelectuales, artistas y políticos que participaron en organizaciones, espacios
editoriales, manifestaciones de solidaridad e incluso dentro del mismo EDSNN.
Este apoyo puede analizarse a partir de las relaciones que las distintas
organizaciones establecieron en torno al Ejército Defensor de la Soberanía Nacional de
Nicaragua en general y de la figura de Sandino en particular. Denominaré al conjunto de
relaciones, que estuvieron activas durante el periodo de 1927 a 1930, como Red
Antiimperialista de Solidaridad (RAS).
Entendemos una red como el conjunto de relaciones efectivas (IMÍZCOZ, 2011)
entre personas u organizaciones estructuradas en un espacio y temporalidad
determinados con un objetivo particular. Los vínculos que componen una red pueden
ser de diferentes tipos— personales, afectivos, de parentesco, amistad, patronazgo,
vecindad, profesional, confesional asociativas—que, a partir de los intercambios, la
colaboración y los conflictos se pueden observar las dinámicas e intereses de las
facciones o grupos que actúan en el campo social o político (IMÍZCOZ, 2009, p. 81).
Concebir la temporalidad y la espacialidad de una red implica considerar las
relaciones que la constituyen como dinámicas de ahí que una red no sea armónica ni
97
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
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completamente duradera. Si la intención es incidir en el rumbo de un proceso o un
problema en el momento en que deje de haber tal coincidencia la existencia de la red se
pone en juego.
Ciertamente el conjunto de vínculos efectivos que analizamos tuvo objetivos, una
temporalidad y una espacialidad. A demás cada una de las organizaciones que se
involucraron en esta red tuvo una intencionalidad y a partir de ella actuó en
consecuencia. Por ello cada una de las organizaciones integrantes de esta red
desplegaron los recursos que tuvieron a su disposición para acercarse a la guerrilla
sandinista con el fin de capitalizar a su favor la lucha nicaragüense.
La efectividad de los vínculos durante este periodo radicó en la materialización de
los objetivos en común de las organizaciones antiimperialistas— por un lado, el
combate
al
imperialismo
norteamericano
y,
por
otro,
la
de una
unidad
latinoamericana— que les permitió presentarse como un bloque homogéneo y en acción
coordinada.
Si partimos de la idea de que la Red Antiimperialista de Solidaridad además de ser
la configuración de las relaciones y las acciones coordinadas de las organizaciones
antimperialistas dio sentido a las coincidencias y tensiones que existían entre ellas
distintas posturas antiimperialistas, podemos entender cómo y en qué nivel actuaron
cada una. De manera que, conforme intervinieron en el conflicto los intereses y las
tensiones se expresaron los vínculos establecidos entre las distintas organizaciones las
cuales a larga se diluyeron pues, aunque en algunos puntos pudieron establecer
consensos pesaron más las diferencias.
La solidaridad fue un valor humanista que tuvo dos funciones en este entramado.
Por un lado, fue utilizada como una justificación para la intervención de las
organizaciones antiimperialistas con el objetivo de nivelar la confrontación entre las
huestes sandinistas y los marines norteamericanos. Para conseguir este objetivo fue
fundamental la propaganda pues la circulación de información y de un imaginario
favorable a la guerrilla sandinista permitió cuestionar la presencia de Estados Unidos en
Nicaragua y legitimar el movimiento armado. Por otro lado, la solidaridad tuvo una
expresión militar. Los vínculos articulados por las organizaciones antiimperialistas
permitieron la circulación de dinero, armas y personas que engrosaron las filas del
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
EDSNN. En ambos niveles las organizaciones antiimperialistas se ubicaron y
funcionaron de forma distinta.
En agosto de 1927 la UCSAYA, desde México, organizó un comité contra la
presencia estadounidense desde un perfil humanitario para poder apoyar a las victimas
nicaragüenses. El objetivo de este comité fue comunicado al entonces presidente
mexicano Plutarco Elías Calles, en una carta el venezolano Carlos León, explicaba:
llenando nuestro deber estamos acudiendo a las organizaciones
honradas del mundo, para tocar a las puertas de la honradez y pedir un
auxilió a favor de las víctimas de la invasión yanqui en Nicaragua. La
UCSAYA ha organizado un Comité con tales fines, y en nombre de él
nos dirigimos a Usted para solicitar su ayuda.
Las víctimas del invasor yanqui en el sufrido País centro-americano
exigen por deber de humanidad, por piedad si se quiere, ya que no por
cooperación de las clases bien intencionadas del Universo, exigen una
ayuda en su calvario, un poco de dinero para levantar una parte de los
muros derruidos por la dinamita destructora de los Estados Unidos,
para cubrir las llagas abiertas por las bayonetas de los soldados
extranjeros, para lleva a las bocas que dejó hambrientas la destrucción
de las sementeras [sic]; para enjugar muchas lágrimas de huérfanos y
para facilitar al pueblo nicaragüense los medios para continuar la
resistencia.5
Cinco meses después al objetivo humanitario planteado por la UCSAYA se
añadiría uno netamente político. En enero de 1928 lo exiliados nicaragüenses lidereados
por José Pedro Zepeda fundaron el Comité Pro Sandino que en días posteriores se
convertiría en el Comité Manos Fuera de Nicaragua (MAFUENIC) y que integraría a la
mayor parte de las organizaciones antimperialistas que operaban en México como la
LADLA así como a partidos y organizaciones filiales al Partido Comunista Mexicano
(PCM) que puso a disposición su infraestructura para mantener informada y organizada
a su militancia.
Siguiendo las Resoluciones sobre América Latina la LADLA promovió y
movilizó organizaciones obreras, campesinas y estudiantiles a favor de la guerrilla
nicaragüense ya que ésta representaba una posibilidad real de enfrentar al imperio
estadounidense. De manera que su objetivo en el MAFUENIC fue robustecer la
5
Carta de Carlos León a Plutarco Elías Calles, 20 de agosto de 1927. AGN- México, Fondo Plutarco
Elías Calles, exp. 4/489
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guerrilla nicaragüense sin evidenciar sus nexos con la URSS para evitar una reacción
negativa de sus potenciales adherentes (KERSFFELD, 2012).
Complementaban esta tarea el envío de medicamentos para Sandino y la
propaganda contra las acciones de los marines norteamericanos en Nicaragua. Este tipo
de apoyo había sido ya experimentado por las organizaciones de la Komitern a favor de
los anarquistas Sacco y Vanzeti en Estados Unidos; con la huelga de hambre de Julio
Antonio Mella en Cuba y con el Comité Manos fuera de China. (KERSFFELD, 2012, p.
40-46)
La estructura aportada por la Liga Antiimperialista de las Américas fue la cara
pública de la RAS ya que en un nivel menos público los unionistas centroamericanos
configuraron una estructura diplomática y de inteligencia que permitió la comunicación
y vinculación del EDSNN y de Sandino con varios actores entre los que destacaron las
organizaciones antimperialistas así como los principales gobiernos de la región como lo
fue el de México que sería fundamental para la resistencia sandinista hasta 1930.
La estructura elaborada por los unionistas fue resultado de una intensa
colaboración entre intelectuales y políticos centroamericanos que durante las dos
primeras décadas del siglo XX construyeron una posición y una actitud común frente a
la presencia norteamericana en la región, y que llegado el momento se articularon para
actuar en conjunto. Esta oportunidad se presentaría en la década de los veinte con la
ocupación militar estadounidense en Honduras y Nicaragua.
En 1924 los marines norteamericanos ocuparon Tegucigalpa, este hecho fue leído
como una vulneración a la soberanía de este país centroamericano. Particularmente los
sectores intelectuales acrecentaron su posición antinorteamericana por lo que el
levantamiento
encabezado
por
Sandino
tuvo
una
importante
recepción
en
personalidades que como el poeta hondureño Froylán Turcios se habían opuesto
activamente a la presencia norteamericana
La cercanía del Cuartel General de Las Segovias, en el norte de Nicaragua, ayudó
a que hondureños y nicaragüenses lograran construir una estructura de comunicación
que permitiera llegar todo tipo de recursos al EDSNN. La presencia de hondureños en
esta red fue importante, especialmente, en el periodo analizado, el papel desempeñado
por Turcios fue fundamental para la RAS.
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El vínculo entre Sandino y Turcios comenzó entre agosto de 1927, y puede ser
considerado uno de los primeros vínculos que el guerrillero estableció fuera de
Nicaragua. En septiembre de ese mismo año el hondureño fue designado vocero oficial
del ejército sandinista y ayudó a confirmar la estructura de inteligencia y propaganda a
favor de la guerrilla. Para realizar esta tarea Turcios echó mano de los contactos que
estableció política e intelectualmente durante su trayectoria como diplomático en los
Gobiernos de Manuel Bonilla y J. Bertrand (TURCIOS, 2007,456)
Uno de los principales vínculos de Turcios en Ciudad de México sería su
compatriota, también poeta, Rafael Heliodoro Valle (1891-1959) quien estableció
contacto con los principales círculos intelectuales y políticos mexicanos desde 1906
llegando a Ciudad de México recomendado al escritor Juan de Dios Peza quien lo
acogería en su etapa como estudiante en la Escuela Normal de Tacubaya (CHAPA
BEZANILLA, 2010, p. 113-119).
Esta primera estancia permite a Heliodoro Valle construir una serie de relaciones
con importantes académicos, intelectuales y políticos de México, Centroamérica y
América del Sur. Entre los principales vínculos que el hondureño estableció en esta
etapa fue su acercamiento con políticos que serían protagonistas en el escenario
centroamericano en la década de los años veinte, entre los que se encontraron los
nicaragüenses José Santos Zelaya y Jan Bautista Sacasa, futuro presidente de Nicaragua;
Policarpo Bonilla ex presidente de Honduras, y Manuel Estrada Cabrera, dictador de
Guatemala (BEZANILLA, 2010, p. 123-126).
La presencia que fue adquiriendo Heliodoro Valle en la década de los años veinte
lo llevó a ser un punto de referencia. En 1921 es invitado a incorporarse en el proyecto
educativo encabezado por José Vasconcelos y Jaime Torres Bodet como secretario del
Director General de Educación Pública y catedrático de Historia de México en la
Escuela Nacional Preparatoria y profesor de Literatura Mexicana en la Facultad de
Altos Estudios (CHAPA BEZANILLA, p. 181-184). Y en vísperas del Centenario de la
Independencia fue investido por el gobierno hondureño como Primer Secretario de la
Misión Especial acreditada ante el gobierno de México para asistir a las festividades en
representación del gobierno hondureño.
Para 1925 Rafael Heliodoro Valle era considerado uno de los intelectuales
centroamericanos
más
reconocidos
en América Latina,
por
ello su
labor
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antinorteamericana frente a la ocupación de la ciudad de Tegucigalpa por parte de los
marines norteamericanos y, posteriormente, la invasión a Nicaragua en 1926 lo llevaran
intensificar su actividad política como el puente entre los intelectuales hondureños,
nicaragüenses, guatemaltecos, salvadoreños y costarricenses con centroamericanos
asentados en México, los intelectuales mexicanos, y el resto de los intelectuales
latinoamericanos. Será en 1927 cuando la actividad política de Rafael Heliodoro Valle
en la región tendrá relevancia, específicamente para el movimiento antiimperialista.
Heliodoro Valle y Carlos León, ambos, parte de la UCSAYA, fueron personajes
estrechamente vinculados con los grupos políticos e intelectuales en México. Junto con
los nicaragüenses José Pedro Zepeda y Hernán Robleto, este último también miembro
de la Unión Centro Sud Americana y de las Antillas, formaron un núcleo que desde
México vinculó al MAFUENIC y a otras organizaciones antiimperialistas con la
estructura que dirigirá Turcios en Tegucigalpa.
En México Heliodoro Valle establecerá una estrecha relación con el líder de la
APRA. En una carta de inicios de 1928 Víctor Raúl Haya de la Torre pide apoyo Valle:
Querido Rafael Heliodoro
(…) En la Argentina el movimiento a favor del viaje a Nicaragua es
enorme. Palacios [Alfredo] vendrá velis nolis. Ayúdanos. La
oposición vendrá de [Adolfo] Díaz y [Calvin] Coolidge. Hay que
precisarlo. Tú, hombre de visión (porque eres en diarisimo como el
Niño Fidencio, en medicina, monarca adolescente de estas regiones)
comprenderás la fuerza que tiene que los países grandes e importantes
de nuestra América se interese en Nicaragua como, a través de
Palacios, está ocurriendo ahora en la Argentina.6
El viaje aludido se realizó en junio de 1928, el cual tenía por objetivo arribar a
Nicaragua para reunirse con Sandino (PAKKASVIRTA, 2001, p. 16). La gira del líder
aprista por Centroamérica consistió en una serie de conferencias mediante las cuales
estableció contacto con importantes intelectuales unionistas como Alberto Masferrer y
Joaquín García Monge. Como ha documentado Jussi Pakkasvirta la intención de la
presencia de Haya de la Torre en Centroamérica era obtener información de la práctica
revolucionaria, pero debido a varias objeciones que puso el peruano solo se estableció
en San José.
6
Carta de Víctor Raúl Haya de la Torre a Rafael Heliodoro Valle. Torreón, 26 de enero de 1928.
Biblioteca Nacional de México, Fondo Rafael Heliodoro Valle, exp. 1019., doc. 9
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Si bien Haya de la Torre no arribó al Cuartel General de Las Segovias sí
consiguió varios adeptos en la intelectualidad centroamericana por coincidir con los
postulados de unidad latinoamericana, justicia social alerta del peligro imperialista
norteamericano, la educación para el pueblo y responsabilidad intelectual hacia las
masas obreras e indígenas.
REVISTA ARIEL Y LA PROPAGANDA DE LA RED ANTIIMPERIALISTA DE
SOLIDARIDAD (1927-1929)
El periodo que comprende los años de 1927 a 1929 fue el momento en que las
organizaciones antiimperialistas actuaron y se mostraron como un solo bloque contra
los Estados Unidos. Uno de los factores que ayudaron a esta percepción se plasmó en la
construcción de una narrativa latinoamericanista y la iconización de la figura de
Sandino elaborada por un grupo de ensayistas, artistas, poetas y políticos que se
pronunciaron a favor del levantamiento nicaragüense y participaron activamente dentro
de las organizaciones antiimperialistas o se adhirieron a la narrativa antinorteamericana.
Este grupo de personajes coincidieron en ser opositores a las oligarquías y las
dictaduras; defendieron la soberanía de las naciones latinoamericanas; se manifestaron a
favor de la incorporación gradual de campesinos, obreros, indígenas y mujeres en la
vida pública de sus naciones, y tuvieron una actitud ambigua frente a Estados Unidos
pues, por una parte, se opusieron al expansionismo militar y cultural, pero, por otra,
admiraban los logros de modernizadores conseguidos.
Buena parte de los integrantes de este grupo procedió de una clase media letrada o
fueron cercanos a oficios como la tipografía, por lo tanto, asumieron una importante
participación en los medios escritos y tuvieron la oportunidad de recorrer algunas de las
de las ciudades y puertos más relevantes de la región latinoamericana, Estados Unidos y
Europa.
La presencia de los intelectuales latinoamericanos más importantes de la época en
el movimiento de solidaridad con Sandino se manifestó en el principal órgano de
propaganda del EDSNN, la revista hondureña Ariel. El objetivo de la publicación fue
informar sobre la presencia norteamericana en Nicaragua y contrarrestar la información
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divulgada por los gobiernos estadounidense y nicaragüense que justificaban su
presencia en Centroamérica y que descalificaban la resistencia sandinista.
Como muchas revistas culturales de la época, Revista Ariel fue un espacio de
convergencia de individuos y organizaciones de distintas ideologías, de manera que
como portavoz de un proyecto político e instrumento de intervención política esta
publicación
tuvo
un
papel
importante
en
el
movimiento
antiimperialista
latinoamericano.
Revista Ariel fue parte del proyecto editorial que Froylán Turcios construyó a
partir de 1922 y desde 1927 —cuando el poeta y diplomático hondureño es designado
vocero del EDSNN— se le incorporó como una pieza fundamental de la Red
Antiimperialista de Solidaridad. La inscripción de la publicación hondureña al
entramado antiimperialista no fue forzada sino todo lo contrario, de hecho, puede ser
considerado como un movimiento natural, pues desde 1925 Revista Ariel dio cuenta del
ambiente antiimperialista de la región reproduciendo notas sobre las reacciones cubanas
a la enmienda Platt y las victorias del marroquí Abdel Krim (UN APLAUSO, 1925, p.
170-171).
Bajo esta lógica en años posteriores la publicación hondureña dará cuenta de la
conformación del campo antiimperialista en América Latina. Por ejemplo, durante el
año de 1927 a parecerán en Revista Ariel dos organizaciones del antimperialismo
latinoamericano cercanas a Rafael Heliodoro Valle la UCSAYA y la APRA. Sobre la
organización dirigida por Carlos León aparecerán las manifestaciones de esta
organización en contra de la presencia norteamericana en Nicaragua durante la sexta
conferencia panamericana (CARTA DE CARLOS LEÓN, 1927, 55, 1060). Así como
comunicaciones directas a Sandino en las que se muestran la simpatía de la UCSAYA y
su adhesión al movimiento sandinista (CARTA DE CARLOS LEÓN Y ERNESTO
CARRERA, 1928, p. 58, 1097)
Mientras que por parte de la APRA se hará pública la intención de la organización
antiimperialista, específicamente de su líder Haya de la Torre, de involucrarse en el
devenir del conflicto nicaragüense:
Una comisión del A.P.R.A. partirá a Nicaragua con el objeto de
constatar la neutralidad y protección yanquis en las próximas
elecciones presidenciales, solicitada urgentemente por la juventud
intelectual y obrera de aquel país. En esta comisión, en la que figura
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Víctor Raúl Haya de la Torre, hablará más tarde con documentos y
detalles, lo que nosotros podemos hacer desde ahora gracias a la
práctica obtenida en casos idénticos, donde la Infantería de Marina y
la Casa Blanca han mediado como árbitros y salvadores. Agite usted y
fije en esta comisión desde Ariel, los desconcertados y entristecidos
ojos de la nueva generación centroamericana (APRA, 1927, 1036)
En el número 55 de Revista Ariel la APRA tuvo un espacio importante al publicar
un manifiesto a favor de la resistencia nicaragüense, firmado por la sección parisina del
APRA, así como el documento ¿Qué es el APRA? (1927, 55, 1057-58, 1061).
Revista Ariel puede analizarse como un espacio-ficción en el que sus
colaboradores están reunidos en un soporte, el cual los agrupa y caracteriza al mismo
tiempo. Es decir, los integrantes de este espacio le dan un matiz a la revista y ésta a su
vez reafirma su condición antimperialista. Analizar el resultado de las relaciones de esta
red nos puede ayudar a comprender el momento e impacto de ésta. Ciertamente la red
creó un clima antimperialista que se combinó con una exacerbación belicosa (guerra
entre razas como metáfora, pero también como un hecho real); además de la constante
comunicación entre los intelectuales y las polémicas en las que participaron
evidenciaron las distancias y conflictos, y, por último, la construcción de un imaginario
que estuvo influido notablemente por el arielismo rodoniano.
Cada una de las colaboraciones publicadas en Revista Ariel da la sensación de que
las distancias se acortan y el tiempo se sincroniza. Al establecer el diálogo entre
Sandino y los intelectuales la empresa antimperialista no es solo del guerrillero y su
ejército sino de cada uno de los hispanoamericanos que se sienten ofendidos por la
presencia militar, financiera e incluso cultural de Norteamérica en los distintos países
latinoamericanos. Parece que es el tiempo del antiimperialismo y la liberación de los
pueblos hispanoamericanos. (GALICIA, 2015)
Como propaganda pro Sandino en Revista Ariel se desplegaron al menos tres
formas de generar información para influir en la percepción de la guerrilla nicaragüense.
La publicación hondureña informó sobre el rumbo de los combates entre sandinistas y
los marines estadounidenses. Como parte de este ejercicio se retomaron las principales
noticias referentes a los combates poniendo especial énfasis en la desigualdad entre los
ejércitos. Este elemento permitió retomar la presencia de los marines en otros países de
la Cuenca del Caribe. De la misma forma que se informó sobre las polémicas que se
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presentaron en el congreso estadounidense respecto a la presencia del ejército
norteamericano en Centroamérica y el Caribe
Una segunda estrategia fue intentar establecer un diálogo con la opinión pública
estadounidense para que ésta cuestionara la política intervencionista de su gobierno en
Nicaragua y en otros países de la Cuenca del Caribe:
La opinión pública norteamericana, cuando se identifique con la
realidad, limpia de pasiones y odios, y sepa que por fin el héroe del
Chipote lucha por los principios sagrados, y que no es salteador de
caminos reales, será la primera en reaccionar indignada, la primera en
ejercer presión al presidente Coolidge para que se ordene el retiro de
las fuerzas de marinería yanquee que actualmente ocupan buena parte
del Estado nicaragüense. (REVISTA ARIEL, 1928, s/f)
Una tercera estrategia está relacionada con las prácticas editoriales y de
distribución de Revista Ariel. Por ser Turcios el receptor de información desde el
Cuartel de Las Segovias y el editor de la publicación, la revista casi siempre fue la
emisora de la información. Para que esta información fuera conocida se hizo uso de la
práctica editorial de recortes que consistió en la reproducción de notas publicadas con
anterioridad (VUI, 2017, p. 164-165). Uno de los editores más asiduos a esta práctica
fue el costarricense José Joaquín García Monge. En la célebre publicación Repertorio
Americano es común encontrar que los recortes llegan a articular los contenidos de la
revista, pero también dan cuenta de objetivos programáticos.
De manera que la reproducción de notas muchas veces salió de Tegucigalpa para
distribuirse en el resto del continente. En esta tarea también influyeron dos elementos,
primero la activación de los vínculos con importantes intelectuales que fue
construyendo Turcios durante su época de diplomático que garantizaron la distribución
de la revista tanto en la región latinoamericana como en España y Francia. El segundo
factor que influyó en la replicación de la información fue el estrecho vínculo que
Turcios tuvo con importantes editores como Joaquín García Monge que fue pieza
fundamental para la difusión de la propaganda sandinista.
La importancia de la práctica del recorte o la replicación de información en este
periodo vinculó a las principales revistas culturales y antiimperialistas de la época. Esta
lógica reforzó la percepción de un movimiento imperialista unificado de ahí la
importancia de revistas como El Libertador, El Machete y La Batalla y revistas
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culturales como Repertorio Americano y la peruana Amauta de José Carlos Mariátegui.
Con sus matices todas estas publicaciones entraron en consonancia donde los ejes del
discurso serán el enfrentamiento contra Estados Unidos como enemigo común, la
defensa de un hispanoamericanismo y el apoyo a la lucha nicaragüense.
En la articulación de estas tres estrategias convergieron un grupo de intelectuales,
artistas, periodistas y políticos latinoamericanos, estadounidenses y europeos. Entre los
que destacan intelectuales como Isidro Fabela (México); Jaime Torres Bodet (México);
Rafael Heliodoro Valle (Honduras); Alfredo Trejo Castillo (Honduras); Alberto
Masferrer (El Salvador); J.C Jolibois (Haití); Américo Lugo (Republica Dominicana);
Víctor Raúl Haya de la Torre (Perú) Ricardo Palama (Perú); José Santos Chocano
(Perú); César Falcón (Perú); Esteban Pavletich (Perú); Federico Madriz (Venezuela);
Tristán Marof (Bolivia); Gabriela Mistral (Chile); Genera Araya (Chile); Manuel Ugarte
(Argentina); Alfredo Palacios (Argentina); Carleton Beals (Estados Unidos); Waldo
Frank (Estados Unidos), Luis Araquistaín (España) y Henrie Barbuse (Francia).
A través de cartas, colaboraciones, comunicados, noticias y encuestas los
intelectuales se vincularon con la lucha antiimperialista de la dupla Turcios-Sandino. Y
buena parte de estas colaboraciones publicadas en Revista Ariel dan la impresión de que
en ese momento la tarea emprendida por Turcios y el levantamiento de Sandino eran
una sola.
La cohesión de un movimiento no solo es legitimada por la presencia de
importantes intelectuales, sino también por la colaboración de organizaciones obreras,
organizaciones estudiantiles que muestran a Revista Ariel como un espacio de expresión
para todo tipo de posturas antiimperialistas, ya que en sus páginas confluyen posiciones
socialistas, apristas, unionistas, nacionalistas, mestizofilas e internacionalistas a favor de
la lucha sandinista.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Figura 1 – Red de intelectuales en Revista Ariel.
Fonte: Información: Revista Ariel (1928)
LA NARRATIVA ANTIIMPERIALISTA EN REVISTA ARIEL
Esta noción de unidad antiimperialista se reflejó en la construcción de una
narrativa en torno a la lucha sandinista. Como hemos señalado en otros trabajos
(GALICIA, 2015, 2019) el discurso que se desplegó en Revista Ariel se caracterizó por
elaborar una identidad en clave hispanófila y un imaginario devoto y épico de Sandino:
En las colaboraciones, coordinadas por Turcios, se delinearon los
elementos que configuraron una idea de unidad e identidad
hispanoamericanas y condensaron en la figura heroica de Sandino. La
sensación de unidad se logró mediante un diálogo imaginario
establecido entre Sandino y la intelectualidad latinoamericana. En ese
diálogo se compartieron un problema –la presencia amenazante de
Estados Unidos, un proyecto –la consolidación de las naciones
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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latinoamericanas–, y una utopía –la creación de la patria grande–
(GALICIA, 2015, p. 148).
La base de la configuración de este discurso radicó en el papel de Turcios como
editor. Fernanda Beigel (2003,109) señala que la tarea del editor es fundamental para
definir el perfil de la revista. Por ello la presencia de Froylán Turcios como uno de los
principales articuladores de la RAS no fue fortuita, consideramos que su trabajo como
diplomático, escritor, editor y activista antiimperialista definió las categorías con las que
organizó su discurso.
La narrativa elaborada por Turcios suele pasar desapercibida debido a que no
coincide con las corrientes de vanguardia que definieron la estética y la política de los
años veinte en los principales países de la región. Incluso, dentro del modernismo
centroamericano la producción literaria de Turcios suele considerarse menor. Sin
embargo, la empresa editorial turciana se caracterizó por contar con una base
programática que incluyó lo estético y lo político. Como parte del primer elemento
Turcios retomó el modernismo como la corriente que proporcionó una actitud rebelde y
creativa, un refinamiento narcisista, un cosmopolitismo y una profunda renovación
estética del lenguaje y la métrica. Mientras que desde lo político se ciñó a los preceptos
unionistas en el que fue fundamental un antinorteamericanismo y el ideal de la
unificación de las naciones centroamericanas.
Froylan Turcios puede ser considerado uno de los centroamericanos más
cosmopolitas de inicios del siglo XX y equiparse a figuras como la del costarricense
José Joaquín García Monge (1881-1958). Su tarea como editor incluyó la publicación
de algunos de los diarios de los que fue responsable, como El Heraldo (1909-1910) y El
Nuevo Tiempo (19012-1916), y revistas como Esfinge. Revista de Altas Letras (19061916). Fue a partir de la fundación de la imprenta El Sol en 1916 y la librería
Hispanoamérica en 1922, que pudo sostener y difundir una parte de su proyecto
editorial, específicamente Esfinge, Hispano-América, Boletín de la Defensa Nacional
(1925) y Revista Ariel (1925-1928). (GALICIA,2019, p. 98-99)
Revista Ariel es la síntesis de tres revistas: Esfinge. Revista de Altas Letras,
Hispano-América y Boletín de la Defensa Nacional. La primera de corte literario y
promoción cultural, la segunda de corte netamente hispanista y la tercera con un fuerte
tono de denuncia frente a la presencia norteamericana en Honduras. A partir de este
109
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conjunto de revistas, el poeta hondureño definirá las características de su posterior línea
editorial: de un lado, poniendo énfasis en el contenido literario cosmopolita e
hispanófilo y, del otro, definiendo las categorías desde las cuales se elaborará la
denuncia de la presencia norteamericana en Honduras. (GALICIA, 2019, p. 100).
El discurso elaborado por Turcios es común dentro del antiimperialismo
unionista, y la clave hispanófila, épica y heroica se reforzará con la reproducción y
publicación de las cartas que Sandino enviaba a Turcios. Si bien las comunicaciones que
tuvieron ambos personajes tenían como objetivo dar detalles sobre los enfrentamientos
en los campos de batalla, también permitieron ir delineando al Sandino iconizado.
Las primeras notas publicadas en Revista Ariel sobre la ocupación estadounidense
en Nicaragua aparecieron a inicios de 1927 reproduciendo noticias a publicadas en la
revista salvadoreña Patria, dirigida por Alberto Masferrer, así como notas sobre los
primeros bombardeos a Chinandega (REVISTA ARIEL, p. 39, 1927). La comunicación
directa entre Sandino y Turcios se establecerá desde agosto y a partir de este momento
comenzará a perfilarse la imagen devota y épica del guerrillero. A este imaginario
colaboró el mismo Sandino que en sus comunicaciones daba información sobre su
lucha: La autonomía será el principal motivo del levantamiento nicaragüense, en otras
publicaciones hará referencia al número de hombres que componen su ejército, arrojaría
la cifra de dos mil, así como describió los ataques aéreos al cuartel general de Las
Segovias, y denunciará la indiferencia de los gobiernos latinoamericanos respecto a la
situación de Nicaragua.
En las cartas de Sandino publicadas en Revista Ariel hay referencias a eventos
personales que fueron definiendo su autobiografía cuando confiesa ser de origen
popular y define su causa como “El ansia de libertad y el deseo de independencia”. En
carta del 1 de abril de 1928 publicada con el título “Síntesis autobiográfica del Gral.
Sandino” el propio guerrillero hace referencia a las motivaciones morales de su
resistencia:
Conservo gran número de constancia que acreditan mi conducta
honrada, de las diferentes empresas en que presté servicio. […]
confieso que en nuestro mundo profano jamás encontré felicidad, y
por esto, y en busca de un consuelo espiritual, leí libros mitológicos y
busqué maestros de religión […]
110
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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También he logrado comprender que las buenas doctrinas son menos
preciadas e invocadas por hombres sin escrúpulos, solo para alcanzar
prebendas, sin importarles la Humanidad ni Dios.
En resumen de los conocimientos por mi adquiridos deduzco que el
hombre ni podrá jamás vivir con dignidad desviado de la sana razón y
las leyes que marcan el honor
Amo la justicia y por ella voy al sacrificio. Los tesoros materiales no
ejercen ningún poder en mi persona: los tesoros que anhelo poseer son
los espirituales. (CARTA DE SANDINO, 1928, p. 65, 1213).
Este tipo de declaraciones reforzarían la imagen de apóstol y santo de una causa
que se leía como imposible, pues ante el poderío y superioridad militar y numérico de
los marines norteamericanos el ejército muchos intelectuales anticipaban su derrota en
términos heroicos. De esta premisa surgieron los epítetos de “General de Hombre
Libres” de Henrie Barbusse y “pequeño ejército loco de voluntad y sacrificio” de
Gabriela Mistral. Específicamente este último fue el resultado de la práctica editorial del
cuestionario en el cual Gabriela Mistral dio su parecer sobre la resistencia del General
Sandino a las fuerzas norteamericanas. En el texto titulado “Sandino. [Contestación a
una encuesta]” Mistral, llamará a la colaboración continental a la lucha sandinista
retando a:
Los hispanizantes políticos que ayudan a Nicaragua desde su
escritorio o su club de estudiantes, harían cosa más honesta yendo a
ayudar al hombre heroico, héroe legítimo, como tal vez no les toque
ver otro, haciéndose sus soldados rasos. […] Cuando menos, si a pesar
de sus arrestos verbales, no quieren hacerle el préstamo de sí mismos
deberían ir haciendo una colecta continental para dar testimonio
visible de que les importa la suerte de este pequeño Ejercito loco de
voluntad de sacrificio. Nunca los dólares, los sucres y los bolívares
sudamericanos, que se gastan fluvialmente en sensualidades
capitalinas, estarían mejor donados (SANDINO, p. 61,1928,1150).
Si bien Mistral se encontraba en París cuando respondió a la encuesta, sus
palabras describen un ambiente y ánimo de solidaridad generalizado en torno a la lucha
sandinista en los países latinoamericanos. Otro de los ejercicios que se beneficiaron de
la RAS y contribuyeron a la iconización de Sandino fueron los reportajes del periodista
comunista estadounidense Carleton Beals7 quien dio cuenta de la red de inteligencia que
7
Estos reportajes fueron financiados por The Nation publicación periódica neoyorkina que los reprodujo
entre febrero y abril de 1928. Los reportajes mismos fueron traducido al español y publicados por el
111
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Turcios ponía a disposición de todos aquellos que querían integrarse al EDSNN así
como de su trabajo propagandístico. En vísperas de la salida de Carleton Beals de
Tegucigalpa para llegar al campamento de Las Segovias se reunió con Turcios, en dicho
encuentro el hondureño confesó que su tarea de editor y propagandista era una sola:
“¿Ve Usted? Soy un librero muy tonto. Me quedo con los libros que creo valen la pena
en cualquier literatura. Y trato de hacer de Ariel no solo un órgano sandinista, sino
también una guía de lo mejor en los nuevos libros” (BEALS, 1983, p. 25).
Las crónicas de Beals fueron publicadas en Revista Ariel y al igual que otros
intelectuales latinoamericanos, incluidos en la revista, mostró una abierta simpatía y
admiración por la lucha sandinista y particularmente por Sandino. Beals hace una
descripción del guerrillero que abonará a su iconización al describirlo de la siguiente
forma:
Sandino nació el 18 de mayo de 1895, en el pueblo de La Victoria. Es
bajo de estatura; apenas medirá 5 pies. Cuando yo lo ví, vestía
uniforma café oscuro, de inmaculados botones; pañuelo de seda negro
y rojo anudado en el cuello y un tejano de gran ala, carca Stetson,
inclinado sobre la frente y prendido con un alfiler que hacia el
tricornio. […] Sus ojos sonde admirable movilidad, y refractarios a la
luz, llenos de vida, intensos ojos, de buen golpe de vista. No tiene
ningún vicio, posee un inequívoco concepto de la justicia personal y
desea ardientemente la felicidad del más humilde soldado (EL
GENERAL SANDINO, 64, 1928, 1208).
Resalta en esta pequeña crónica la actitud épica y martirológica que Sandino
trasmite a sus soldados a través de frases sacrificiales como: “La muerte es solamente
un trivial instante de incomodidad pero que no vale la pena de que se tome enserio” o
“La muerte alcanza más pronto a aquel que la vive temiendo”. Este tipo de expresiones
completarán el sentido trascendental que la narrativa turciana dotó a la lucha sandinista
la que calará hondo en el movimiento antiimperialista latinoamericano y en la que
coincidirán como eje rector de la propaganda pro sandino.
CONCLUSIONES
Comité Pro Sandino de San José de Costa Rica y el Universal Gráfico de México. En 1983 estos
reportajes serían publicados por la Editorial Nueva Nicaragua bajo el título Banana Gold.
112
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El discurso elaborado por lo intelectuales en Revista Ariel y la función de Froylán
Turcios como uno de los articuladores de la Red Antiimperialista de Solidaridad con el
ejército de Sandino terminará en 1929 cuando el guerrillero se opone a la realización de
las elecciones nicaragüenses para elegir presidente por estar supervigiladas por Estados
Unidos, y planea su viaje a México para pedir el apoyo político, militar y diplomático al
gobierno de este país.
A ambas decisiones Turcios se opone y rompe relaciones con Sandino, aceptando
el cargo de cónsul de Honduras en Francia. La aparente homogeneidad del movimiento
antiimperialista latinoamericano se fragmenta y a partir de este momento comienza una
rearticulación de fuerzas en torno a la lucha nicaragüense. La tarea de propaganda será
el ámbito que se verá más afectado con esta ruptura pues sin la estructura del proyecto
turciano la información sobre el rumbo de la guerrilla nicaragüense adolecerá de
difusión.
Esta situación también repercutirá en su relación con las otras organizaciones
antiimperialistas. En su viaje a México, ya como la figura antiimperialista más
importante de América Latina, Sandino será visto como un proyecto en disputa por los
nicaragüenses que fueron la base del Comité Pro Sandino y por la presencia de la
LADLA en el MAFUENIC. En esta querella Sandino tomará partido por sus
compatriotas unionistas rompiendo en 1930 con la estructura comunista. Esta sería el
final de la Red Antiimperialista de Solidaridad y de la presencia latinoamericana en el
EDSNN.
En este trabajo retomamos el papel de la propaganda configurada desde Revista
Ariel por considerar que nos permite dimensionar la función de una red, especialmente
de los vínculos efectivos que se establecen. En el caso analizado la efectividad radicó en
la creación de una narrativa antiimperialista impactó fuertemente en la opinión pública
latinoamericana
y
estadounidense;
cuestionó
la
presencia
de
los
marines
norteamericanos en Nicaragua y legitimó el levantamiento sandinista.
De igual manera la narrativa elaborada desde Revista Ariel por Froylán Turcios
trascendió en el tiempo. El ambiente que desplegaron las organizaciones
antiimperialistas con la información proveniente de Tegucigalpa definió una postura
política de los intelectuales respecto de las oligarquías y las acciones del imperio
estadounidense. A partir de las expresiones de empatía, elogio, admiración se logró una
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
especie de simplificación de un ambiente belicoso exaltando lo hispanoamericano y el
culto a la personalidad de un solo individuo al que se le dotó de cualidades épicas y
devotas. Las que se siguen reproduciendo en los análisis históricos sobre el guerrillero
nicaragüense.
La empresa que realizó Turcios, como agente del antiimperialismo unionista, es
fundamental para comprender la dinámica del movimiento antiimperialista de los años
veinte, y el papel de la intelectualidad en el mismo. A partir de él podemos entender que
cada uno de las organizaciones antiimperialistas tenían una agenda propia, y que fue a
partir de ella que se articularon no necesariamente en torno a la figura de Sandino, sino
a una serie de esfuerzos que permitieron ser a Sandino el héroe devoto representante de
una de las gestas antiimperialistas más importantes del siglo XX.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA SOCIAL NA NARRATIVA DE
EDUARDO CABALLERO E JORGE AMADO
Cristian Fabián Pulga Infante1
Hiolly Batista Januário de Souza2
INTRODUÇÃO
Os diferentes vínculos que desde a antiguidade clássica se estabeleceram entre a
história e a literatura têm revelado as múltiplas possibilidades de abordagem, análise e
estudo dos seres históricos os quais têm uma caracterização bastante enraizada nas
percepções e ações nos seus respectivos contextos socioculturais. Para o estudo a seguir,
tomamos duas obras latino-americanas, que apesar de serem geograficamente distantes,
compartilham significativamente uma temporalidade e características comuns.
O interesse por essa abordagem surge a partir das considerações de Serna (2008)
que enfatiza que o romance como narrativa de experiências é algo que nos pertence, nos
preocupa e nos emociona, por isso é inevitável a identificação com as incertezas e
sofrimentos dos personagens que passam pelas histórias. Decidimos traçar as
representações da violência social nos romances Siervo sin tierra (1954) de Eduardo
Caballero e Terras do sem-fim de Jorge Amado (1944), que brilham como obras que
caracterizam as diferentes relações na Colômbia e no Brasil durante a primeira metade
do século passado e tem relação com a construção de particularidades políticas,
econômicas e culturais. Na qual a carga simbólica da violência é concebida como uma
constante na construção social dos homens e mulheres representados.
O objetivo não é outro senão abordar dois romances que fazem parte do
patrimônio cultural de cada nação, pelos quais podemos nos reconhecer como
pertencentes a uma tradição que há muito tempo enfrenta dor, frustração e tormento por
parte do Estado e seus representantes. O cotidiano dos camponeses colombianos e
1
Licenciado em Ciências Sociais, Universidade Pedagógica Nacional - Colômbia. Professor da Educação
Básica. Membro do Grupo de Estudos em História e Literatura (GEHISLIT) da PUC Minas. E-mail:
cristianpulgainfante@gmail.com
2
Mestre em História Social – Unioeste/PR. Professora da Educação Básica – Seduc/MT. Membro do
Grupo de Estudos em História e Literatura (GEHISLIT) da PUC Minas. E-mail:
hiollybatista8@gmail.com
117
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
brasileiros condensado em múltiplas derrotas e fracassos, são vidas que falam pela pena
dos grandes escritores Eduardo Caballero e Jorge Amado, intelectuais de nossa América
que exploraram questões de nosso ser como povos que historicamente conviveram com
as múltiplas manifestações de violência.
EDUARDO CABALLERO CALDERÓN E A REALIDADE COLOMBIANA
Dentro do cânone literário colombiano existem figuras que são respeitadas,
apreciadas e insubstituíveis, para esta oportunidade e com grande prazer se deseja pôr
em consideração uma delas: o grande mestre Eduardo Caballero Calderón (Bogotá,
1910 – 1993). Escritor prolífico, o qual publicou inumeráveis ensaios como volumes de
memórias, contos e escritos históricos, é considerado por muitos como um autor com
uma prosa transparente, consciente e comprometida.
Sua obra de testemunho foi uma das pioneiras dentro da narrativa nacional
colombiana ao tratar com persistência o fenômeno da violência. Foi tão importante seu
legado que no ano de 2010, em razão dos 100 anos de seu nascimento, o Ministério de
Cultura da Colômbia, através do programa de Recuperación de la Memoria Nacional
del área de literatura, declarou o ano de Eduardo Caballero Calderón como uma
homenagem ao escritor por seu valioso aporte à construção da cultura no país. Na
exposição realizada na Biblioteca Nacional de Colombia, em maio de 2010, intitulada
“Año de Caballero Calderón de ayer a hoy 1910-2010”, se define suas obras como:
Novelas de una actualidad pasmosa, novelas que entendieron la clave
de un momento en el que Colombia se debatía en una guerra partidista
que dejó una estela de odios y de sangre en los años cincuenta y que
aparecen en su pluma de manera magistral. No sólo por el registro de
una voz que hasta entonces no había aparecido en la literatura, ese
coloquialismo definitivo que nos dejó personajes entrañables, sino por
su insistencia en incrustar la actualidad en los temas del arte para
entender y hacer una exégesis de la situación de esa Colombia rural y
dolida, a veces tan parecida a la de hoy. (BANCO DE LA
REPÚBLICA, 2010, p. 03).
É um verdadeiro prazer apresentar um trabalho que tem como ponto de
referência uma das principais obras do mestre Caballero Calderón, Siervo sin tierra
(1954). Esta novela é de suma importância para a história da literatura colombiana, dado
118
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
que nela se destaca o compromisso e a sensibilidade para com as causas sociais e
culturais. Temáticas que hoje seguem chamando nossa atenção e que nos levam a uma
série de reflexões que permitem fazer um balanço da construção social a partir das
representações que se pode apreender de sua leitura.
Aproximações entre literatura e história na Colômbia dos anos 1940 e 1960
Para ter um pouco mais de clareza sobre as distintas relações da literatura com a
história recordamos que de 1946 a 1965 a Colômbia viveu um momento crítico,
marcado por uma violência bipartidária, podendo ser considerado o evento sociopolítico
e histórico mais impactante que ocorreu no país no século passado.
Durante veinte años de violencia se instaura el imperio del terror en
los campos y poblados, se despoja al campesino de la tierra y de sus
bienes, o se le amenaza para que venda a menos precio. Se asesina
selectivamente o de una manera masiva, la sevicia o la tortura contra
las víctimas no tiene límite, se amedrenta a los trabajadores
descontentos. Se produce un éxodo masivo hacia las ciudades, refugio
temporal de los desheredados que pronto engrosan la marginalidad y
se convierten en problema social por el abandono en el que se los deja.
(ESCOBAR, 1996, p. 22).
Com a intensificação desta violência se deu, a partir da literatura, um incremento
na produção de relatos sobre o conflito bipartidário3 o que se conheceria como “la
novela sobre la Violencia”4. Os livros que contam a dor da guerra se converteram na
biografia desta terra, configurando a literatura como um dos mais atentos testemunhos
que contam uma história de dor sem grandes façanhas heroicas, nem relatos apoteóticos.
A partir do exposto se edificou um diálogo comum entre a história e a literatura, que
tem realizado um contundente trabalho por parte de vários investigadores que analisam
as diferentes possibilidades interpretativas, fortalecendo uma base teórica-metodológica
para tais abordagens.
3
Augusto Escobar Mesa en o texto: La violencia: ¿Generadora de una tradición literaria? Cf. Revista
Gaceta Colcultura, No. 37. diciembre de 1996. p. 21-29. Fala de 57 escritores que durante 20 anos
escreveram mais de 70 novelas e numerosos contos formando assim um movimento literário que jamais
se havia produzido na Colômbia.
4
Quando se escreve com maiúscula, refere-se ao período entre 1946-1965, denominado “la Violencia”.
119
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Essas narrativas comuns, ou de “homens comuns” consideradas dentro
do campo da escrita literária - sendo a literatura já concebida nesses
últimos anos como fonte profícua para o historiador- evidenciam, nos
textos, por meio os quais são vinculadas, não somente uma forma
aguçada de sentir subjetivamente a realidade; elas revelam, também,
uma forma objetiva de perceber as realidades social e cultural, nas
quais aquele sujeito está inserido, está vivendo (PESAVENTO, 2006,
p.78).
Essa citação nos convida a pensar em como abordar as perguntas da investigação
histórica e sobretudo pensar a literatura como uma construção contextual. Propondo
cada vez mais que considere a literatura como fonte documental a ser abordada, onde se
converte em um vestígio que pode ser vista como ponto de apoio ao trabalho do
historiador.
Representações e Práticas, aposta metodológica
Para elaborar a abordagem da literatura foram utilizadas duas categorias
consideradas essenciais para o estudo da história e a análise cultural. Em primeiro lugar,
se encontra a categoria de representação. As representações podem ser entendidas como
o instrumento pelo qual se dá o conhecimento de uma ausência, ou seja, representar é
estar no lugar do outro, incorporando alguém ou algo que não está. A ideia central desta
é a substituição e a personificação. Deve-se considerar que a representação não é uma
cópia idêntica da realidade, mas uma construção feita a partir dela.
En las antiguas definiciones (por ejemplo, la del Dictionnaire
universal de Furetiêre en su edición de 1727), las acepciones de la
palabra “representación” muestran dos familias de sentidos
aparentemente contradictorios: por un lado, la representación muestra
una ausencia, lo que supone una neta distinción entre lo que representa
y lo que es representado; por el otro, la representación es la exhibición
de una presencia, la presentación pública de una cosa o una persona.
En la primera acepción, la representación es el instrumento de un
conocimiento mediato que hace ver un objeto ausente al sustituirlo por
una “imagen” capaz de volverlo a la memoria y de “pintarlo” tal cual
es. De estas imágenes, algunas son materiales, sustituyendo el cuerpo
ausente por un objeto parecido o no: como los maniquíes de cera,
madera o cuero que se colocaban encima del ataúd real durante los
funerales de los soberanos franceses e ingleses (“cuando vamos a ver
a los príncipes muertos en sus lechos de desfile, sólo vemos la
representación, la efigie”) (CHARTIER, 1992, p. 57).
120
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
É necessário mencionar que as representações são o caminho pelo qual se pode
designar os esquemas de percepção e juízo que posteriormente carregam as ações de
classificação e hierarquização, que constroem o que conhecemos como o mundo social.
Roger Chartier em seu texto El sentido de la representación (2012) nos diz que o
conceito de representação tem mudado a compreensão do mundo social, visto que nos
convida a pensar na construção das identidades, das hierarquias e as classificações como
resultado de «lutas de representações», onde o importante é a força, afirmada ou negada,
dos signos que devem ser reconhecidos como legítimos no domínio de uns sobre os
outros.
De maneira tal, as representações são as formas de visualizar e enunciar a
realidade estabelecendo de que modo é visto o mundo desde uma perspectiva individual
ou coletiva. Para Chartier também é importante compreender os mecanismos que
operam na formação de representações coletivas sobre a realidade e os efeitos que essas
representações têm na orientação da ação social. Se faz necessário examinar a função
ativa da representação como um elemento que gera condutas e práticas sociais.
Passa-se assim a outra categoria trabalhada por Roger Chartier que corresponde
às práticas. Se pode entender que as práticas são as ações concretas de sujeitos ou
grupos determinados em um lugar e tempo específico. Através das práticas é possível
rever a atividade humana nos diferentes cenários, para este caso específico as práticas
violentas que foram geradas ou às quais foram submetidos os temas históricos tratados
no romance de Caballero Calderón.
Desta forma, as práticas estão conectadas de maneira muito estreita com as
representações, já que a ação do sujeito está medida pela representação que confere
significado aos atos e movimentos e as converte em portadoras de sentido. Estas ações
são um produto social que tem como suporte uma representação do mundo. Finalmente,
Chatier (1992) sublinha que, por inscrever-se numa obra situada numa história das
práticas historicamente diferenciada e numa história das representações inscritas em
textos ou produzidas por indivíduos; pode-se compreender a maneira como os sentidos
e os significados de si mesmos e do mundo são construídos e produzidos.
As representações da violência política e econômica em Siervo sin tierra
121
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Assentadas as bases teóricas passam-se a exposição da construção de uma série
de representações da violência em sua forma política e econômica na novela Siervo sin
tierra, que Segundo Varón esta obra:
Se caracteriza porque su personaje central es el campesino, su cultura
y sus conflictos esenciales: psicológicos, religiosos, económicos. El
lenguaje de este tipo de novela procede del lenguaje popular,
cotidiano, del espacio donde se mueve el campesino, su protagonista,
el cual es profundamente testimonial y crítico de la sociedad”
(VARÓN, 2014, p.8).
Esse traço essencial do romance permite vislumbrar que cada uma das
representações que se apresentam a seguir se realiza sob a figura do camponês, suas
construções sociais e suas decisões pessoais. É preciso mencionar que dentro do
romance há uma referência direta à realização das próximas eleições presidenciais, este
elemento é de extrema importância porque a partir dele entraremos para observar a
força das representações e a subsequente gestação de práticas violentas. No início, este
acontecimento eleitoral permeia as diferentes relações sociais de forma particular, visto
que o discurso político está mais em voga do que nunca entre a população e só se pensa
e se discute quem e de que forma vai ganhar as referidas eleições. A tensão no ambiente
faz com que os conflitos pelo poder aumentem drasticamente.
El año de 1946 las elecciones habrían de ser muy reñidas según los
técnicos, porque los conservadores levantaron la abstención electoral
la consigna de ambos partidos era la de conquistar las urnas como
fuera, por las buenas o por las malas, pues se trataba ni más ni menos
que de elegir un nuevo presidente de la república. Los liberales tenían
en sus manos el poder, pero estaban divididos en dos bandos
irreconciliables, por lo cual los de la oposición oficial, que eran
conservadores, veían el cielo abierto y propicio para alzarse con el
santo y con la limosna que habían perdido en 1930. Agentes
electorales, candidatos del partido conservador y de los dos bandos
liberales, directores políticos, recorrían el país dictando discursos y
conferencias que terminaban en formidables batallas Campales en las
plazas de los pueblos. Los periódicos se enseñaban los dientes todas
las mañanas, y había que cogerlos con pinzas no solo porque hedían,
sino porque abrasaban (CABALLERO, 1954, p. 90).
Tendo em conta o cenário anterior o elemento que entra em jogo é a cédula de
cidadania, esta era necessária para exercer o voto e pela qual se fazia válida a escolha do
122
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
candidato “X” ou “Y”. Este cartão de identidade que contém um número e algumas
informações simples pode ser definido como uma representação da pessoa, de maneira
que o portador da mesma se faz partícipe e merecedor de um lugar na sociedade. Sem
ela se vê relegado a uma inexistência burocrática, sem ela se carece de todo sentido seu
voto, sem ela não se existe dentro de um sistema que em aparência é transparente sob a
figura da democracia. Assim pois, se compreende o valor que tem a cédula de cidadania
como representação de uma vida adulta que participa do desenvolvimento das eleições
na medida em que acrescenta ou subtrai no resultado final. Este documento será
precisamente o flanco onde as práticas violentas são exercidas com mais vigor.
—La política se está poniendo otra vez fea. Al Campo Elías, el que
vivía arriba del puente, lo despacharon de un tiro hace tres noches.
Donde los liberales nos descuidemos, los godos nos vuelven a meter
un susto...
— Cómo le parece! —decía Siervo.
—Al Marcos de la Palmera, que es godo5, los guardias le hicieron una
requisa y le quitaron la cédula. iFigúrese! iAhora los godos con
cédula!
—Yo creía que era liberal.
—Pues no se crea. Resultó el indio más godo que el cura...
(CABALLERO, 1954, p. 22).
Recorda-se que dentro da novela da violência é corrente o inventário de
denúncias de um ou outro partido. Ainda que majoritariamente os que ostentam o poder
são os conservadores, verificamos que os liberais também estão envolvidos na prática
da violência eleitoral que estamos analisando e que podemos entender como uma réplica
dos abusos sofridos por eles no passado de forma mais intensa e prolongada.
En otros grupos se hablaba de las próximas elecciones que serían muy
reñidas porque los godos o conservasores de levantaron la abstención
que habían practicado. ¿Los vamos a dejar votar otra vez? preguntó
Manuelito Ramírez
—Para eso, para no dejarlos, tenemos esto... uno de los Pimientos que
tenía la cara bronca, dándose una palmada en el cinturón del que
colgaba el machete—. Hace unos años, cuando sacamos el primer
presidente liberal, no dejamos godo parado en la plaza de Capitanejo.
—Cómo no recordarlo, si yo me hallé en ese trance.
5
No Dicionário de Colombianismos, dirigido por Günther Haensch e Reinhold Werner, publicado pelo
Instituto Caro y Cuervo se faz referência ao termo quando, em política, é utilizado como sinônimo de
“conservador”.
123
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
—Treinta y seis indios del puente quedaron tendidos en la plaza de
Capitanejo. — iPara mí que fueron pocos!— observó Manuelito
Ramírez. (CABALLERO, 1954, p. 59).
O problema subjacente será que no momento de entrar nesta dinâmica as
consequências serão piores, pois a aliança estabelecida entre o partido conservador, a
Igreja, as forças militares, as autoridades civis e o Estado central não cederá a nenhuma
ação do seguidores liberais.
En los días anteriores al domingo en que deberían celebrarse,
comisiones de policía municipal que habían sido pocos meses antes
bandidos que andaban en veredas, requisando a los campesinos y
revolviendo las piedras del fogón, para decomisarles la cédula
electoral. Venían enardecidos por la cerveza que generosamente les
habían distribuido el alcalde y el directorio conservador del pueblo. Se
había roto la convivencia en todo el país y la consigna oficial era "palo
a los liberales" (CABALLERO, 1954, p. 138).
Essa agressividade exercida em práticas repressivas no abuso da força para
eliminar o contrário com a supressão da representação de si através da cédula deixa
claro que dentro do romance as disputas eleitorais dão um olhar ainda mais importante
para analisar dentro da construção social, mostrando o caráter puramente instrumental
da violência como forma de legitimidade política.
A representação da vida sob a figura da cédula como elemento útil dentro da
ação de votar é algo constantemente violentado. Entretanto, não era o único ponto de
pressão sobre os campesinos, pois seu sustento estava submetido aos interesses dos
poderosos fazendo com que o sofrimento fosse levado a esferas físicas. Em outras
palavras, se poderia dizer que a identidade política de conservador ou liberal não existe
como tal, como uma escolha livre e consciente, já que os camponeses assistem às
campanhas por medo da repressão que implica não o fazer. Entendem que a não
participação acarreta a perda do direito de cultivar e ser excluído das possibilidades de
arrendar a terra e ocupação dos postos de trabalho. A constante pressão dos donos da
terra e seus administradores leva os camponeses a serem títeres dentro de uma realidade
permanentemente conflitiva.
No hay quien entienda a los jefes. Primero lo mandan a uno que grite
y alborote y mantenga a raya a los godos, y después, cuando se arma
124
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
la grande, ellos se lavan las manos y nos vuelven la espalda
(CABALLERO, 1954, p. 94).
Por conseguinte, a fraude e a eliminação da representação da pessoa por meio de
sua cédula, além da repressão nos campos exercida pela fome, o desespero e a angústia,
acompanhada pela violência estatal em todas as suas formas foi a maneira de entender
as eleições para o campesinato de meados do século XX. Foi a forma de viver o horror
da política.
Queremos agora dar lugar a representação, que se enquadra na violência
econômica, apresentando também as práticas que a acompanharam. Para isso é
necessário destacar o papel aberrante dos gestores do Estado e a constante agonia do
campesinato, especialmente aqueles que manifestaram tendências liberais. Para este
indivíduo as representações do engano e da fraude estavam na figura de todos aqueles
que trabalhavam como servidores públicos visto que a concessão do seu emprego se
devia não tanto pelos seus méritos ou preparação, mas pela amizade e a afinidade com o
alto comando das diferentes agências locais, departamentais ou nacionais.
EI nuevo gerente es don Próspero y esta mañana me dijo cuando fui a
pedirle un visitador para que evalúe la finca del otro lado del río, que
la quiero vender cuanto antes... me dijo: "Los liberales que esperen...
A mí me pusieron aquí de gerente para prestarles la platica a los
conservadores" (CABALLERO, 1954, p. 145).
Esta prática violenta, exercida de forma direta e aguda pelos conservadores
desembocaria em uma crise econômica que marcará o fracasso de um projeto coletivo
de ruralidade sustentável. Já que não existia maneira de lutar por relações comerciais
justas, pelo contrário: os campesinos sempre perdiam nas negociações e transações
efetuadas entre eles e os amigos dos poderosos.
No sería por godo que te la quitaron. ¿Eres liberal?
—Así me criaron, sumercé.
—Yo soy godo porque odio a los liberales. ¿Entiendes?
A una señal de don Arsenio, los dos guardias le propinaron a Siervo
sendos culatazos en los riñones. —¿Conque el tabaquito es del Floro
Dueñas? ¿Y cuántos bultos viniste a vender? Siervo se sobaba la
espalda.
—Dos meros, sumercé. Son de mitaca.
—Te doy veinte pesos por ellos.
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—La Compañía los está pagando a ciento veinte, por que son de
capa... —se atrevió a decir el empleado que contemplaba la escena
desde su reja de la ventanilla.
—Al señor no le estoy hablando! —exclamó don Arsenio, llevándose
un revólver al rostro para rascarse la barbilla.
Siervo se fue con los veinte pesos y sin los bultos, seguido de la
Tránsito y de Emperador II, que tenía el rabo entre piernas. Don
Arsenio la emprendió con el segundo de la fila, después con el tercero,
y luego con el cuarto, hasta acabar con ella. Compró al fiado todo el
tabaco,
más o menos cincuenta bultos, a razón de diez pesos cada uno, y luego
se los vendió todos al de la ventanilla por cuatro o cinco mil pesos, de
los cuales sacó para pagar sus deudas. Como algún cultivador se
atreviera a elevar la queja ante el alcalde, éste le respondería que no se
trataba de un asalto sino de un negocio (CABALLERO, 1954, p. 149).
Como se acaba de evidenciar era bastante difícil ter algum tipo de garantia na
hora de estabelecer relações comerciais em escala local, posto que os comerciantes
conservadores enquanto representantes da fraude e do engano exerciam práticas de
violência do princípio ao fim. Era cometido maltrato verbal, mentiras, golpes sem
justificativa, o uso de armas de fogo para intimidar, ademais de uma amizade abusiva
entre os administradores públicos, os guardas e o alcalde6. De fato, se algum camponês
contava ao alcalde as formas de proceder de Don Anselmo, aquele empreenderia uma
perseguição contra quem se atreveu a denunciar seu amigo. Isto ocorria assim porque o
alcalde se reconhecia dentro de uma pequena coletividade que estava, hierarquicamente,
sobre todos os demais e com Deus (Igreja) e a lei (Estado) a seu serviço.
Nesse contexto existem muitos atores que, como participantes, frutificam novas
formas de violência por meio das quais se reconhecem e estabelecem relações de todos
os tipos. Não é incomum que para preservar os espaços de que se apropriaram através
do uso do poder, desejosos para manter o domínio sobre certos tipos de recursos, onde
infelizmente a maioria dos desafortunados são os camponeses.
6
Eduardo Caballero foi alcalde do município de Tipacoque no departamento de Boyacá entre os anos de
1968 a 1971, o que lhe permitiu criar uma consciência muito clara das ações do alcalde em relação à sua
população e ser muito crítico quanto a ostentação do poder e proceder dos prefeitos de diferentes
municípios da Colômbia. O seu texto Os Camponeses, de 1974, aponta a sentença exposta em Siervo sin
tierra e os abusos por parte dos administradores locais “Las aldeas se mueren porque las siguen
combatiendo estas alimañas. Alcaldes sin control, caciques que mandan sobre el alcalde, policía que a los
dos les obedece y es como su guardia de combate, pájaros que anidan a la sombra del amo y escarabajos
que muerden las raíces agazapados bajo las escamas del otro. Y el cacique y el alcalde siguen tan orondos
y tan campantes en todo el país, pues para ellos no hubo mayo y continúan en su agosto” (Caballero,
1974. Los Campesinos. Pág. 152).
126
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Por outro lado, a representação de engano e fraude passaria pela máscara da
indiferença, posto que o pouco apoio que se dá ao campesinato local com suas
produções feitas da forma mais artesanal e rudimentar complementando com o
estabelecimento de acordos internacionais, alimentaram de forma violenta a
desocupação dos trabalhadores rurais e engrossando a lista de males. Agora, ao declive
político, se somará o drama da fome.
Las fábricas de hilados y tejidos dieron un golpe de gracia a las telas
urdidas en toscos telares de palo, con lana cruda de oveja hilada en
husos que las mujeres volteaban ágilmente entre los dedos cuando
trotaban por los caminos con su carga de leña a las costillas. Los
sombreros importados de Italia derrotaron parcialmente las jipas y las
corroscas de tapia pisada, tejidas con una paja dura y amarilla. La
carretera trajo, con el periódico, el testimonio de otros países, otras
costumbres y otras actividades más productivas que la siembra del
maíz en las laderas y la papa en los páramos (CABALLERO, 1954, p.
107).
As reformas econômicas de meados do século XX estavam destinadas a
prejudicar consideravelmente as classes menos favorecidas, contribuindo para a enorme
crise que se vinha gestando há anos e suscitando múltiplas manifestações de violência
em todas as esferas da vida. Basicamente graças a falta de gestão o fluxo de importações
foi superior devido a pouca integração ao mercado internacional e a um interesse real de
melhorar a qualidade de vida do campesinato colombiano. Isso se converterá em um dos
traços definidores de nossa peculiaridade para os tempos atuais:
La narrativa de Eduado Caballero Calderón refleja una concepción
metafísica del universo, que presenta dos etapas, en la primera de las
cuales reina la armonía en tanto que en la segunda todo está
desconcertado.[…] En la segunda etapa el orden natural se vuelca: el
autor piensa que campo y campesino se han convertido en realidades
en desacuerdo, que el avance histórico, al integrar al campesino
colombiano a otras relaciones económicas ha procedido
inhumanamente, ha ido contra natura, porque tal ser no puede
acogerse al nuevo sistema (está hecho para el antiguo); ve entonces en
el campesino un ser desadaptado, deformado y desgraciado como no
lo era antes. (PORRAS, 1977, p. 312).
Dentro dessa maioria dos atingidos, é inevitável que surjam relações que se
organizam segundo a mesma lógica da violência econômica, aquela que põe em jogo os
127
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esquemas de perceção e ação dos sujeitos históricos, ou seja, foram levados a praticar
uma série de atos que agora vão contra a lei. Ironicamente essa mesma lei que nunca os
apoiou. Assim, a construção de sentido em torno da vida e da sobrevivência viria agora
das mãos do contrabando.
¿Sembrar tabaco y esperar los días y los meses a que levante la
semilla un palmo del suelo, y a que luego críe hojas, y a que el verano
las eche a piquen a que en el caney se la roben los vecinos, y a que en
la Compañía las paguen después por una miseria? eso para otros! Ya
estoy viejo para sembrar tabaco. Seguiré a Cúcuta, que es buena plaza
donde se gana mucho dinero pasando contrabando a Venezuela a
través del río (CABALLERO, 1954, p. 121).
Numa definição dada pela Dirección de Impuestos y Aduanas Nacionales
(DIAN) estipula-se que: “o contrabando é entendido como a entrada, saída e venda
clandestina de mercadorias evitando tarifas, ou seja, evitando impostos” (DIAN e
UIAF, 2006, p. 3). É possível compreender que nesse conflito nascem novas formas de
violência que de certo modo se opõem, enfrentando forças que ocuparão o centro das
lutas simbólicas pelo poder cujas representações também serão modificadas. Sendo o
contrabando o início da atividade ilícita, em resposta à representação constante e
reforçada da fraude e do engano que os despossuídos sempre viram refletida pelos
responsáveis do Estado e da administração comercial.
O caminho percorrido até aqui, que consideramos curto mas substancial nos
deixa muitas reflexões e elementos para pensar o futuro, já que as representações da
violência construída em meados do século XX na Colômbia tiveram aquela capacidade
de se manifestar como as formas pelas quais os homens entendiam a realidade por meio
de palavras e imagens que mostram simbolicamente o que era a vida a partir de suas
variantes políticas, econômicas e sociais. No entanto, há ainda muitas outras formas de
representação na obra, tais como família, religião, ludicidade, dentre outras, que, devido
aos nossos objetivos de pesquisa, não poderão ser aqui contemplados em mais vagar.
Passemos, portanto, a algumas considerações acerca de Jorge Amado e sua obra em face
da sociedade brasileira.
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JORGE AMADO E O SER BRASILEIRO: REFLEXO DE UMA SOCIEDADE
Pensar a história do Brasil, mesmo antes de ser Brasil, talvez seja pensar a
construção social de um território em paralelo com a violência produzida e reproduzida
continuamente ao longo dos séculos. Primeiro, podemos destacar as guerras justas, dos
invasores portugueses contra as populações indígenas, seguidas de um modelo que
escravizou negros vindos d’África e nativos durante mais de três séculos. Uma abolição
mal elaborada que afirmava que todos eram livres, mas cujas práticas sociais
reproduziam os aspectos estruturais da escravidão, que se mantém fortemente
arraigados na sociedade brasileira. Assim, tal processo não concedia espaços para, nem
mesmo minimamente, ao contingente populacional recém-liberto.
No início do século XX parte dos grandes heróis da pátria eram os bandeirantes
e os movimentos das bandeiras paulistas que tinham por objetivo o aprisionamento de
indígenas para escravização, mas que, pelo discurso oficial, se tornaram os responsáveis
por expandir as fronteiras do “Brasil” e assegurar o domínio português sobre essas
terras. Para além dessas questões ainda convivemos com outros tipos de violência como
no caso das mulheres escravizadas que eram violadas constantemente pelos senhores e
capatazes, o que deixou uma marca racial complexa a ponto de, até pouco tempo atrás,
ser comum dizer que “no Brasil todo mundo tem um pé na cozinha”, expressão que
alude aos sucessivos estupros perpetrados contra as negras e indígenas escravizadas e
dos filhos que resultavam de tais atrocidades.
Esse complexo de violências que são efetivadas desde o Estado e seus
representantes e reproduzidas pela população nos parece uma forma enraizada e
naturalizada de um modus operandi social. É essa reprodução da violência enquanto
traço marcante que nos interessa nesse texto. Para tal, trabalharemos com uma obra do
autor baiano Jorge Amado, Terras do Sem-Fim (1944), na qual o centro é a disputa
entre dois coronéis pela posse das terras do Sequeiro Grande.
A escolha pelo autor grapiúna não se faz de maneira aleatória. Esse autor
representa em suas obras a complexidade, a nosso ver, da sociedade tupiniquim. Ele
constrói em sua obra as nuances que perpassam as relações sociais, evidenciando como
a violência conforma e age nela no início do século XX. Amado consegue reproduzir
129
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em sua obra as imagens e sentimentos que reverberam no cotidiano social do Brasil, em
especial nas áreas de fronteira agrícola em expansão.
Para escrever e analisar a realidade social brasileira nas primeiras décadas da
República poderíamos nos ater aos dados e à produção científica, no entanto, a literatura
produzida por Jorge Amado é um reflexo desse país complexo. Sua representação não
se vale de escapismos e evidencia uma realidade baseada no que o autor observa e
absorve de seu entorno. A partir disso, corroboramos com György Lukács quando o
autor magiar afirma que:
A literatura pode representar os contrastes, as lutas e os conflitos da
vida social tal como eles se manifestam no espírito, na vida do homem
real. Portanto, a literatura oferece um campo vasto e significativo para
descobrir e investigar a realidade. Na medida em que for
verdadeiramente profunda e realista, ela pode fornecer, mesmo ao
mais profundo conhecedor das relações sociais, experiências vividas e
noções inteiramente novas, inesperadas e importantíssimas.
(LUKÁCS, 2010, p. 80).
Estes contrastes e tensões sociais se fazem presentes nas mais diversas classes
sociais representadas, suas formas de interação, as relações por elas estabelecidas. Bem
como são apresentadas as estruturas do Estado e o reflexo das decisões tomadas em
escala macro no impacto da vida cotidiana de pessoas distantes dos centros de poder.
Coronéis: donos de terras e gentes
- Jagunço?
- Não é jagunço porque é fazendeiro rico... Zé Estique tem um
mundão de fazendas, um nunca acabar de pés de cacau... Mas um
número de mortes ainda maior.
- Nunca foi preso?
O homem espiou piscando os olhinhos:
- Preso? – sorriu... – Ele é rico... (AMADO, 1979, p. 37).
A narrativa construída por Jorge Amado no livro Terras do Sem Fim, de 1944,
foi escrita quando do exílio do escritor grapiúna durante a ditadura do Estado Novo de
Getúlio Vargas (1930-1945). Nesse livro, Jorge Amado, recua até o início do século XX
narrando as disputas de terras entre a família Badaró e o fazendeiro Horácio da Silveira,
130
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compondo um cenário característico das disputas agrárias que são observadas até hoje
no campo brasileiro, como o caxixe, ou seja, a grilagem de terras.
O mote principal para o desenvolvimento da narrativa de Terras do Sem Fim é a
disputa entre a família Badaró, liderada por Sinhô, e o coronel Horácio da Silveira por
uma porção de terras ainda intactas, as matas do Serqueiro Grande. Para se apossarem
da referida mata, os coronéis, ao longo do livro, se lançam dos expedientes mais
diversos para garantir sua posse e, consequentemente, quem teria o mando político e
econômico da região. A trama se desenvolve nas cidades do sul da Bahia, em especial
Ilhéus, que foi uma grande região cacaueira durante parte do século XX.
Durante o desenrolar da história somos apresentados às mais diversas
personagens que compunham a sociedade cacaueira de então, desde os coronéis até os
trabalhadores alugados e suas famílias. As relações de compadrio, alinhamento político,
dominação de classe, o uso indiscriminado da violência, a impunidade das elites, se
fazem presentes, nos evidenciando traços constitutivos da sociedade brasileira.
Com o fim do Império e a ascensão do modelo republicano, em 1889, o título de
coronel7 passou a ser algo mais fluido, não sendo algo exclusivo dos grandes
proprietários, mas algo que poderia ser adquirido caso o indivíduo fosse aliado político
de algum coronel mais antigo ou exercesse alguma profissão de prestígio como
advogados, médicos, engenheiros (OLIVEIRA, 2017, p. 76-77). Os coronéis, fosse pela
riqueza em terras por meio de heranças ou por uma questão de profissão, reproduziam
as mesmas formas de agir: comandavam suas terras e a política de seus municípios de
forma a sempre favorecer aos seus interesses, de suas famílias e de sua base aliada,
enraizando uma noção turva entre o público e o privado no Estado brasileiro.
A relação de clientelismo existente entre os coronéis e as populações locais
também são evidenciadas na obra amadiana de Terras do Sem Fim. O autor apresenta
como que atendimentos básicos que, em tese, são ofertados pelo Estado passam a ser
controlados pelas famílias no poder e seus apoiadores, dando uma imagem pública aos
coronéis de benevolência e bondade assim explicados por Janaina Oliveira:
7
Ao falarmos de coronel com quem não estiver familiarizado com a história do Brasil pode imaginar que
nos referimos a alguém com posto e patente dentro do exército, por exemplo. A concessão do título de
coronel remonta aos anos do Império brasileiro. Os grandes fazendeiros recebiam esse título a fim de
serem os representantes armados do Estado em determinada localidade e garantirem a supressão de
qualquer possível levante popular.
131
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
[...] ao estarem bem estruturados pela fortuna obtida tanto através da
via da herança quanto por meio do comércio, o coronel tinha a
possibilidade de realizar favores, assim como formar clientelas. Isso
traz como consequência benefícios ao coronelista, porque ao existir
indivíduos “devendo favores” aos coronéis estabelece-se uma relação
na qual o devedor tenha sempre que obedecer e ser leal ao credo. Isso
geralmente acabava rendendo bons votos aos coronéis, principalmente
votos advindos dos roceiros aos quais projetavam no coronel um
homem rico que, nos momentos de dificuldades, poderia lhe ser
solicitado favores, acordando como pagamento trabalho gratuito na
terra, ou em troca do seu salário e inclusive em forma de voto,
fenômeno denominado historicamente como voto de cabresto
(OLIVEIRA, 2017, p. 78-79).
O funcionamento das instituições estatais sendo norteado pelos interesses
privados levava muitos trabalhadores a se comportarem como partidários dos
“poderosos” locais e votando, quando das eleições, nos candidatos apoiados pelos
coronéis. Não necessariamente esses trabalhadores o faziam mediante violência física,
mas era uma espécie de acordo tácito, como se devolvessem a ajuda concedida pelo
coronel em dado momento de carestia.
Em Terras do Sem-Fim são relatados como que alguns trabalhadores passam a
prestar serviços e a fazer campanha para a família Badaró ou para Horácio da Silveira
porque vislumbram nessa relação uma possível melhoria de vida. Essa parcela da
população que sofre, em geral, as violências físicas quando dos barulhos. Pois os
coronéis não se enfrentam, em dado momento, diretamente, ficando a população como
um todo no meio dos conflitos, sofrendo represálias dos dois lados. Tal relação pode ser
observada na seguinte passagem:
Em Tabocas quem era amigo e eleitor de Horário mantinha sempre
uma atitude de hostilidade em relação aos amigos e eleitores dos
Badarós. Nas eleições havia barulhos, tiros e mortes. Horácio ganhava
sempre e sempre perdia porque as urnas eram fraudadas em Ilhéus.
Votavam vivos e mortos, muitos votavam sob a ameaça dos cabras.
Nesses dias Tabocas se enchia de jagunços que guardavam as casas
dos chefes políticos locais: a do Dr. Jessé, que era eternamente o
candidato de Horácio, a de Leopoldo Azevedo, chefe dos governistas,
a do Dr. Pedro Mata, agora também a do Dr. Virgílio, o novo
advogado. Havia uma farmácia para cada partido e nenhum doente
que votasse nos Badarós se tratava com Dr. Jessé. Era com o Dr.
Pedro. [...] Havia também um dentista para cada um dos partidos.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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Todo o povoado estava dividido nos dois partidos políticos e trocavam
desaforos pesados nos jornais de Ilhéus. (AMADO, 1976, p. 136).
Além dos barulhos, um dos temas recorrentes no livro são os caxixes, ou seja, a
apropriação indevida das terras de trabalhadores e pequenos proprietários rurais por
parte dos coronéis. Uma das primeiras referências à prática de usurpação das terras no
livro é encontrada nas primeiras páginas e se passa no navio que leva os trabalhadores
de pontos mais ao norte da região nordeste, rumo às plantações de cacau do Sul da
Bahia. Em um diálogo entre trabalhadores que estão migrando em busca de vida
melhor e outras pessoas no navio, um senhor, ao ouvir o que falavam os outros
passageiros sobre as terras ricas do Sul da Bahia, indaga se os presentes conheciam o
caxixe, o descrevendo assim:
- Já ouviram falar em “caxixe”?
- Dizque é um negócio de doutor que toma a terra dos outros...
- Vem um advogado com um coronel, faz caxixe, a gente nem sabe
onde vai parar os pés de cacau que a gente plantou...
[...]
- Tão vendo? Plantei muito cacaueiro com essas mãos que tão aqui...
Eu e Joaquim enchemos mata e mata de cacau, plantamos mais que
mesmo um bando de jurupá que é bicho que planta cacau... Que
adiantou? - perguntava a todos, aos jogadores, à mulher grávida, ao
jovem. (AMADO, 1976, p. 31).
No Brasil essa prática é conhecida, também, como grilagem de terras que,
segundo Márcia Motta, é algo construído ao longo do nosso processo histórico de
formação nacional, no qual os grandes proprietários se valem de fraude e violência para
ampliar suas posses de forma quase infinita (MOTTA, 2010, p. 238). Podemos observar
como que a fraude documental é acompanhada da violência física e simbólica. Os
trabalhadores são expulsos de suas terras sem direito a nada e por força da ação dos
jagunços, que são homens pagos para usarem de meios escusos contra outros
trabalhadores e todos os que se opuserem ao coronel a quem servem. Luitgarde Barros
assim os define:
[...] jagunço era um homem valente, que alugava sua coragem a
um grande chefe, na defesa de suas propriedades e nas lutas pelo
poder entre membros da classe dominante. Servindo à
manutenção de uma ordem social desigualitária fortemente
133
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hierarquizada, os jagunços eram usados pelos patrões para
‘quebrar a castanha de sujeito atrevido’ – desobediente às ordens
superiores. Fortemente armado e acobertado pelo patrão, o
jagunço se impunha, na estratificação horizontal das baixas
camadas universalizando, em todos os níveis da sociedade, a
violência da dominação irradiada do sistema de poder de classes
(BARROS, 2010, p. 267).
A relação estabelecida entre os jagunços e seus patrões os colocava em posição
privilegiada em relação aos demais de mesmo estrato social. Não eram respeitados, mas
temidos, por serem braços armados, paramilitares, dos mandantes locais. Esses homens
não refletiam sobre seu trabalho, apenas executavam as ordens. Aceitar esse cargo tinha
seu prestígio junto aos outros indivíduos da mesma classe pois representava um ganho
social de fato, algo que podemos encontrar num diálogo entre alugados: “- Um cabra
certeiro na pontaria tem regalias de rico... Vive pelos povoados, com as mulheres, tem
dinheiro no bolso, nunca falta saldo pra eles... Mas quem só serve pra roça...”
(AMADO, 1976, p. 97).
Esses pistoleiros, em geral, eram filhos de trabalhadores e prestar serviços para
algum mandatário, era dispor de proteção jurídica, o que acabava representando uma
ascensão social. Eles – os jagunços – eram responsáveis por manter a ordem localmente
para seus patrões, no entanto, estavam sempre vulneráveis a emboscadas, tendo uma
vida incerta e violenta.
Os capangas, junto com os advogados, auxiliavam na expansão e manutenção
do poder dos coronéis. Aqueles pela violência física e intimidação, estes pela violência
simbólica, com a fraude de documentos em cartórios, em uma estrutura de
complementação.
Destacamos abaixo um trecho no qual um camponês busca explicações do
coronel Horácio da Silveira acerca de terras que julgava serem suas. A narração
explicita a vulnerabilidade dos pequenos donos de terras a todo um sistema que não os
via como cidadãos e proprietários, estando sujeitos às vontades dos coronéis. A
passagem segue assim:
Horácio voltou a comer.
Orlando rodou na mão o chap– Quer comer, Orlando? Se quer se
abanque...
- Não, sinhô, obrigado.
134
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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- Que lhe traz por aqui? Alguma novidade?
- Uma novidade bem feia, inhô, sim. O coronel Ramiro aparece lá na
roça, diz que a roça é dele, diz que comprou ao sinhô, coronel.
- Se o coronel Ramiro é que diz deve ser de verdade. Ele não é homem
pra mentira...
Orlando ficou mirando o coronel Horácio que voltava a comer.
Olhava as grandes mãos calosas do coronel, sua face fechada. Por fim,
falou:
- Vosmicê vendeu?
-Isso é negócio meu...
- Mas vosmicê não se arrecorda que nos vendeu esse pedaço de mata?
Pelo dinheiro do contrato de cacau?
- Vocês têm a escritura? – eéu enorme de palha. Tinha consciência de
toda desgraça que lhe havia acontecido, a ele e aos dois companheiros.
Sabia também que legalmente não havia como lutar contra o coronel.
Sabia que não tinham mais terra, nem roça plantada, não tinham mais
nada. Um véu de sangue turvou-lhe o olhar, não media mais suas
palavras:
- Desgraça pouca é bobagem, coronel. Vosmicê fique avisado que no
dia que o coronel Ramiro entrar na roça, nesse dia vosmicê paga por
tudo... Pense bem.
[...]
De noite Horácio chegou com seus cabras na roça dos três amigos.
Cercou o rancho, dizem que ele mesmo liquidou os homens. E que
depois, com sua faca de descascar frutas, cortou a língua de Orlando,
suas orelhas, seu nariz, arrancou-lhes as calças e o capou. Tinha
voltado para a fazenda com seus homens e quando um deles foi
pegado, bêbado, pela polícia e o denunciou, ele apenas riu sua risada.”
(AMADO, 1976, p. 53).
A passagem acima pode despertar no leitor certa solidariedade com o coronel,
que fora ameaçado pelo pequeno proprietário. Contudo, se fizermos uma leitura mais
detalhada sobre a realidade da correlação de forças existente na disputa veremos que os
danos que este poderia produzir àquele seria ínfimo diante do aparato paramilitar que
este dispõe para sua própria segurança. Os mandatários locais tinham à sua disposição
seus jagunços e, também, o braço armado do Estado, como as polícias. Dessa forma, o
uso desmedido de forças por parte do coronel não se justifica apenas pelo zelo por sua
vida e de sua família, mas está atrelado ao poder que exerce.
Há nesse fragmento outro fator complexo que eram os acordos estabelecidos
entre os grandes proprietários, que regiam a vida da população, grosso modo, e os
subalternos que acabam acreditando que seus superiores se colocariam a seu favor
contra algum outro coronel. Essa ideia de que estar sob o compadrio ou ao lado de
algum membro da elite possa significar uma ascensão dentro do estrato social ao qual
pertence o indivíduo – no caso de trabalhadores rurais -, cai por terra. Horácio da
135
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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Silveira não iria privilegiar um pequeno produtor em detrimento dos interesses de um
outro aliado seu de mesma envergadura. A defesa, por parte dos coronéis, dos
trabalhadores, em geral, se dava como uma forma de fazer frente ao poderio de algum
outro oligarca ou uma forma de garantir o seu próprio poder. A pertença de classe social
se torna muito mais importante que acordos firmados entre patrões e empregados.
Devemos atentar, também, para o fato de que assassinar o trabalhador é uma
forma de “dar o exemplo” para que outros indivíduos que venham a sofrer com as
fraudes realizadas, não queiram, reagir ou empregar atitude contrária aos coronéis. Essa
forma de agir cria uma sociabilidade que tem no medo um contínuo, e uma descrença
quase que total em qualquer órgão ou autoridade que represente o estado. Afinal, são os
representantes locais dele (Estado) que perpetram as maiores atrocidades, sentimento
comparável com o que tem, muitas vezes, guardadas as devidas proporções, os
moradores de comunidades para com os policiais militares hoje.
A violência cometida pelos coronéis, seus jagunços, seus advogados e toda a sua
base de apoio contra os trabalhadores representa, grosso modo, apenas uma parcela da
estrutura violenta na qual se assenta grande parte de nossa sociabilidade. Nos referimos
ao uso da força para a ampliação das fazendas, doravante nos ocuparemos dos
tratamentos dispensados aos trabalhadores nas regiões sob domínio do coronelismo
representados em Terras do Sem-Fim.
Trabalhador: livre ou escravo? Em terras de coronéis, qual a diferença?
“- Eu era menino no tempo da escravidão... Meu pai foi escravo, minha mãe
também... Mas não era mais ruim que hoje... As coisas não mudou, foi tudo
palavra...” (AMADO, 1976, p. 98).
Ao propormos a análise da violência enquanto parte integrante da forma de
socializar no Brasil por meio do olhar de Jorge Amado em Terras do Sem Fim, um dos
pontos que sempre retornam no texto é a semelhança no trabalho desempenhado pelos
trabalhadores das lavouras de cacau e o passado escravagista do Brasil. A certeza de que
a mudança de status de cativo para homem livre pouco impacto teve na vida dos
homens pobres. Tal pensamento aparece, por exemplo, em uma reflexão do capitão do
navio que tinha como destino Ilhéus:
136
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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Por fim o comandante falou:
- Por vezes me sinto como o comandante de um daqueles navios
negreiros do tempo da escravidão...
[...]
- Daqueles que em vez de mercadorias traziam negros pra serem
escravos...
Apontou os homens dormindo na terceira [...]
- Que diferença há? (AMADO, 1976, p. 43).
A percepção de que a mudança de status jurídico não havia se realizado social e
economicamente se evidencia como algo entendido entre as mais diversas camadas da
sociedade brasileira. Mesmo que se fizesse um esforço institucional para que essa marca
fosse, no mínimo, excluída das discussões que envolvessem as “grandes questões” da
pátria, era no cotidiano que o processo de mais de trezentos anos de escravidão (1531 –
1888) se fazia presente.
O processo de abolição da escravatura realizou-se por meio de inúmeras lutas
que se fizeram nas mais diversas camadas da sociedade brasileira. No entanto, o modo
como os patrões enxergavam seus empregados não mudou. Um antigo senhor de
escravos não passou a encarar seu trabalhador assalariado como um cidadão, um
indivíduo que não o pertencia e que era digno de direitos.
Houve um processo de educação para a acomodação da população que antes era
escravizada para que continuasse ocupando os postos subalternos. Essa situação foi
abordada por Eloy Fagner Silva Rodrigues em Serviço doméstico e habitus senhorial:
considerações sobre a regulamentação do trabalho doméstico em Fortaleza (18801888). Segundo Rodrigues:
Ao se cogitar o fim da escravidão, não se admitiria a abolição da
relação senhorial, tendo como epicentro de sua reprodução os espaços
domésticos.
A premência da abolição do elemento servil levou as camadas
dominantes a adotarem formas de permanência da escravidão,
inclusive culturalmente, sobretudo no mundo do trabalho, que
constitui o locus privilegiado para a reprodução do habitus senhorial.
Isto é, tratava-se de envidar dispositivos legais, a exemplo de códigos
escritos, regulando o processo de contratação de trabalhadores. Além
desses, haviam normas não escritas, mas igualmente eficazes na
correção e controle dos indivíduos “sujeitos” ao trabalho de servir.
Tudo isso concorreu para tornar o ex-escravo e o pobre, nascido livre
mas também compreendido na zona social onde a liberdade era
estruturalmente precária, em que se teciam experiências nas fronteiras
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entre escravidão e liberdade, um cativo no mundo do trabalho. A
abolição da escravidão trouxe consigo a demanda do controle dessa
liberdade conquistada. A condição civil e social seria matizada por
vários fatores combinados, de ordem dinâmica, cotidiana e estrutural
(RODRIGUES, 2017, p. 422).
Mesmo que o texto de Eloy Rodrigues se refira ao trabalho doméstico, podemos
traçar paralelos entre os meios de se exercerem os trabalhos no campo e nas casas dos
senhores. Sendo a mesma realidade pesquisada pelo autor aquela que se perpetuou nas
casas dos coronéis quanto ao trabalho doméstico exercido pelas filhas dos trabalhadores
ou, mesmo, pelas filhas dos patrões com as empregadas domésticas de suas casas. A
perpetuação dessas práticas pode ser observada quando é contada parte da história de
Raimunda, provavelmente filha do coronel Marcelino Badaró com Risoleta, a mulher
negra encarregada da cozinha da casa grande:
Dona Filomena tirou Raimunda da cozinha, a trouxe em definitivo
para dentro da casa-grande. E protegeu sempre a mulatinha enquanto
viveu. Depois, quando a esposa de Sinhô morrei tísica, ficaram os
padrinhos, Sinhô e Don’Ana, mas aos poucos Raimunda foi tendo
uma vida igual às demais crias da casa: lavar, remendar roupa, buscar
água no rio, fazer doces. Só que nas festas Don’Ana lhe regalava um
corte de fazenda para um vestido melhor e Sinhô lhe dava um par de
sapatos e um pouco de dinheiro. Ela não tinha ordenado, para que
precisava ela de dinheiro se tinha de um tudo na casa dos Badarós?
(AMADO, 1976, p. 89).
Podemos analisar a personagem Raimunda como a personificação de muitas das
meninas e mulheres negras que foram criadas para o serviço doméstico dentro da lógica
de uma sociedade desigual, na qual a abolição da escravatura praticamente não levou a
elas qualquer mudança qualitativa de vida. Chamamos atenção para o termo cria
utilizado pelo autor. Em geral, utilizamos tal termo para nos referirmos aos animais de
uma fazenda, mas que era, por extensão, usado para os negros dentro das casasgrandes.
Os patrões não pagavam à Raimunda um salário por acreditarem que, de fato, ela
residir em sua casa era algo que agregava uma honorabilidade. Pois os patrões
confiavam seus lares a essas pessoas sem instrução, sem estrutura familiar, advindas de
uma classe social inferior. Dessa forma, essas empregadas “quase da família” deveriam
se contentar com os presentes esporádicos, com as sobras de comida e em não ter sua
138
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individualidade respeitada. Inúmeras vezes não se admitia que essas pessoas poderiam
ter qualquer traço de desejo, sonhos, vontades.
Para algumas mulheres das classes trabalhadoras a perpetuação do pensamento
senhorial se dava por meio do trabalho doméstico nas casas dos patrões, para outras e
para uma grande parcela dos homens era o cotidiano das roças que lhes situavam nessa
“nova, velha, ordem social”. Eram denominados de alugados, e se caracterizavam por
serem os migrantes de outras regiões que se dirigiam à Ilhéus e suas redondezas
vislumbrando uma realidade melhor que a encontrada em suas localidades de origem.
Esses trabalhadores eram escolhidos no porto de Ilhéus e redirecionados para os
trabalhos nas fazendas da região. Ao se instalarem se deparavam com uma realidade
diferente daquela que imaginavam e, a maioria acabava por se tornar escravo por
dívidas. A configuração desse tipo de escravidão é explicada no livro de Jorge Amado
por meio de uma personagem que trabalha nas roças para um recém-chegado, vindo do
Ceará:
- Amanhã cedo o empregado do armazém chama por tu para fazer o
“saco” da semana. Tu não tem instrumento pro trabalho, tem que
comprar. Tu compra uma foice e machado, tu compra um facão, tu
compra uma enxada... E isso vai ficar por uns cem mil-réis. Depois tu
compra farinha, carne, cachaça, café pra semana toda. Tu vai gastar
uns dez mil-réis pra comida. No fim da semana tu tem 15 mil-réis
ganho do trabalho [...]. Teu saldo é de cinco mil-réis, mas tu não
recebe, fica lá pra ir descontando a dívida dos instrumentos... Tu leva
um ano pra pagar os cem mil-réis sem ver nunca um tostão. Pode ser
que no Natal o coronel mande te emprestar mais dez-mil réis pra tu
gastar com as putas de Ferradas...
[...]
- [...]. Antes de terminar de pagar tu já aumentou a dívida... Tu já
comprou mais calça e camisa de bulgariana... Tu já comprou remédio
que é um Deus nos acuda de caro, tu já comprou um revólver que é o
único dinheiro bem empregado nessa terra... E tu nunca paga a
dívida... Aqui – e o homem magro fez um gesto circular com a mão
abarcando todos eles, os que trabalhavam para os “Macacos” e os dois
que vinham com o morto das “Baraúnas” – aqui tudo deve, ninguém
tem saldo. (AMADO, 1976, p. 98).
O cativeiro ao qual o trecho faz referência diverge da escravidão sofrida pelas
populações negras durante os séculos XV e XIX. Esse novo tipo de servidão
“manifesta-se de maneira completamente diferente: não tem a ver com a raça da pessoa,
não existem vínculos duradouros entre escravo e o dono, e o escravo não possui valor
139
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econômico” (LE BRETON, 2010, p. 194). Esses alugados que chegavam todos os anos
para trabalharem nas lavouras de cacau optavam por esse deslocamento e se ofereciam
para a função. As questões sociais degradantes que os levavam a ocupar tais postos são
fundamentais para que entendamos a lógica que os impulsiona (seca, fome, miséria).
Cabe ressaltar que a escravidão após o século XIX não se relaciona diretamente com a
cor da pele, entretanto, num país como o Brasil, no qual o racismo é estrutural, a cor da
pele ainda define grandemente o local social que o indivíduo ocupará.
Le Breton diferencia escravidão de ocupação degradante, fazendo-o da seguinte
maneira “a pessoa numa situação de trabalho degradante pode ser maltratada, pode
trabalhar sem parar, mas tem a liberdade de sair. A pessoa numa situação de trabalho
escravo não pode sair” (LE BRETON, 2010, p. 194). Os casos dos alugados retratados
os enquadram no conceito de escravidão por dívidas da autora. Após contraírem a
dívida nos armazéns das fazendas, esses empregados viam seu direito de ir e vir
cerceado enquanto não quitassem a dívida.
As dívidas fugiam ao controle dos funcionários e eram organizadas e
contabilizadas pelos donos dos armazéns e pelos coronéis, que não estavam interessados
em perder o trabalhador ou em ter que lhe pagar qualquer valor. Esse modo de agir
poupava os fazendeiros de pagarem salários ou de terem quaisquer outros gastos com
esses empregados. Sendo esta uma condição quase impossível de sair. Os que tentavam
fugir eram perseguidos e, muitas vezes, capturados e surrados ou mortos para servirem
de exemplo aos outros.
Fosse o tratamento dispensado pelos patrões aos alugados nas roças de cacau, ou
às empregadas domésticas nas casas das fazendas aquele era sempre uma marca
indelével do passado escravocrata que não se fez esquecer nas relações sociais,
políticas, econômicas e culturais do Brasil. Esse comportamento de manter os negros,
indígenas e seus descendentes como subalternos nos permeia enquanto sociedade,
mesmo que se tente, por vezes, disfarçá-lo das mais diferentes formas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Siervo sin tierra de Eduardo Caballero podemos identificar a cédula como
representação da vida e o medo generalizado que acompanhava o portador deste
140
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documento mais a trapaça e o engano como carta de apresentação em negociações ou
transações, foram os dois elementos que adquiriram significado especial para esta
análise. A partir das figuras históricas expostas por Caballero Calderon (1954)
abordamos a proposta feita pela professora Sandra Pesavento que considera que a
principal aposta da história cultural será decifrar a realidade por meio das
representações, tentando alcançar as formas pelas quais os homens de outrora se
expressam sobre o mundo e sobre si mesmos.
Dessa forma, a construção das representações teve uma carga simbólica que
vinha de sua realidade mais próxima, gerando práticas e comportamentos que, conforme
evidenciado, são dotados de uma força que os levou a se posicionar em uma luta
constante pela construção de uma identidade que oscilou entre as imposições dos
dirigentes políticos, que ao mesmo tempo eram donos do capital, e entre o sentimento
rural caracterizado pela nobreza, pelo trabalho e pelo amor familiar.
As temáticas abordadas na primeira parte deste trabalho, hoje ainda têm grande
relevância. A fraude eleitoral foi permeada constantemente com o aniquilamento da
democracia por meio da compra de votos, a manipulação de sua contagem e campanhas
corruptas. Enquanto as miseráveis condições de vida da população continuam as
mesmas, com um tratamento quase desumano, tendo seu trabalho remunerado com
salários que não servem para levar uma vida digna, onde vencem os intermediários e
onde os tratados internacionais são cada vez mais fortes. Por isso, ousamos dizer que a
vida quotidiana não cessa de se refletir a todo o momento nas personagens que
constituem as obras e que são essencialmente fruto do nosso proceder como povo e
como nação.
Na segunda parte do texto tentamos abordar alguns tipos de violência que são
expressos pela narrativa de Jorge Amado em Terras do Sem-Fim. Primeiro, detivemonos nas relações de poder que os coronéis e seus partidários estabelecem e reproduzem
no interior do Brasil nos primeiros anos da República e de como isso afetava a vida dos
trabalhadores rurais e dos pequenos proprietários. Os caxixes, os jagunços, o compadrio
e as formas de operar nessa sociedade.
Num segundo momento nos dedicamos ao processo de não mudança social
promovido pela abolição da escravatura. As formas como os trabalhadores são vistos
141
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dentro do período republicano como uma continuação do pensamento escravagista que
por mais de trezentos anos norteou as relações de trabalho do Brasil.
Trabalhar com a obra de Jorge Amado nos leva a refletir sobre a constituição
da sociedade brasileira em sua totalidade. Quando lemos seus livros nos deparamos com
histórias que poderiam ter se passado em 1920, 1970 ou em 2019, no interior ou em
alguma capital como São Paulo. A complexidade que o autor retrata em suas
personagens e nas histórias que os cercam nos dão uma boa base para compreender a
desigualdade e violência que se construíram dentro de todo o processo histórico
brasileiro desde a invasão dos portugueses.
Ao trabalhar com estas representações podemos compreender que não se trata de
imagens enganosas que se dirigem apenas ao mundo abstrato das construções mentais.
Contudo, são um impulso capaz de definir as fronteiras entre grupos, comunidades e
indivíduos e que uma força é definitiva compondo a construção do mundo social.
É importante considerar que, ao olharmos os dois países em conjunto através de
suas obras literárias, é inevitável encontrar uma série de reciprocidades na ordem das
condições de possibilidade de cada um, onde a violência é a essência de uma série de
processos sociais, que, embora tenham nuances diferentes, têm a particularidade de que
nas duas análises os enlutados foram sempre os mesmos, ou seja, os camponeses, os
marginalizados e os despossuídos e entre os promotores da violência situa-se também os
mesmos, a começar pelo Estado, os donos do capital e da moralidade prevalecente.
É possível afirmar que o sofrimento historicamente vivido seja visto como um
processo social que nos permite revelar alguns traços do sentido da cultura colombiana
e brasileira, visto que os medos e desejos retratados nas diferentes obras em torno de
uma violência vertiginosa e aparentemente mutante, foram descritos para tentar
compreender por um lado os personagens que sentiram, interpretaram e agiram dando
sentido à sua realidade e, por outro lado, a todos os seres que atualmente enfrentam as
vicissitudes da vida nestas mesmas condições em nosso continente latino-americano
REFERÊNCIAS
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AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. 36º ed. Rio de Janeiro: Record, 1979.
142
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
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Calderón. Thesaurus : boletín del Instituto Caro y Cuervo, 32 (2). pp. 273-315, 1977.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
RODRIGUES, Eylo Fagner Silva Rodrigues. Serviço doméstico e habitus senhorial:
considerações sobre a regulamentação do trabalho doméstico em Fortaleza (1880-1888).
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
LYZ PARAYZO E ÉLLE DE BERNARDINI: NARRATIVAS DE CORPOS
DISSIDENTES NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA
Débora Armelin Ferreira1
INTRODUÇÃO
O presente texto tem como objetivo analisar como arte corrobora na inserção
de corpos dissidentes entendendo que as produções das artistas brasileiras Lyz Parayzo
e Élle de Bernardini assumem um papel social, político e cultural quanto à questão de
identidade e expressão de gênero desde o enfrentamento à sua invisibilidade dentro da
sociedade assim como o combate à violência sofrida por pessoas transexuais em um
país que lidera o ranking em assassinatos a essa população, o Brasil.
As marcas de um colonialismo patriarcal formaram identidades hegemônicas
que produziram pensamentos de lógica hétero-cis-normativas dentro da sociedade
brasileira impondo relações de poder sobre a população transexual e travesti que,
historicamente, foi colocada às margens e expostas às situações de extrema
vulnerabilidade social e violência.
Há a necessidade de se levantar a discussão quanto ao lugar em que essa
população foi obrigada a ocupar tendo como opções de trajetória de vida a prostituição,
o crime ou o suicídio, sendo assim invisibilidadas e/ou discriminadas em outros locais
que não estes aos quais são “pertencentes”.
Na primeira parte desta pesquisa, apresenta-se uma leitura dos dados sobre a
violência contra travestis e transexuais no Brasil, analisando como o discurso político
atual pode influenciar parte da sociedade em reproduzir discursos de discriminação e
violência.
Em seguida, será feito um curto panorama das representações LGBTQIA+2 na
História da Arte com recorte na Arte Romana, passando pelo Renascimento e pelo
Pesquisadora independente com Especialização em História da Arte – Teoria e Crítica pelo Centro
Universitário Belas Artes – SP. E-mail: deboraarmelin@hotmail.com
2
A sigla LGBTQIAPN+ refere-se à pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando,
Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, Não-binárias e as demais orientações sexuais,
identidades e expressões de gênero.
1
145
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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146
Modernismo, finalizando com a compreensão de como a performance surge como
possibilidade para corpos dissidentes dentro da arte, sendo uma linguagem potente.
E por fim, traçar a trajetória pessoal e artística das artistas Lyz Parayzo e Élle de
Bernardini, propondo a leitura de algumas de suas respectivas obras.
A relevância desse trabalho encontra-se no fato de que as abordagens artísticas de
Lyz e Élle são descritas como tendo um caráter e mérito social e que, portanto, suas
práticas artísticas poderão questionar o papel da arte visual como uma possível
linguagem produtora de sentidos e significados quanto à invisibilidade, preconceito e
violência de gênero no Brasil.
A QUESTÃO DE GÊNERO NO BRASIL
“Ser trans é cruzar uma fronteira política”
3
(Paul B. Preciado)
Há uma urgência em se tratar da questão de gênero no Brasil e, principalmente,
sobre pessoas transexuais e travestis em decorrência do alto número de assassinatos
desta população fazendo com o que o país lidere o ranking mundial em mortes, de
acordo com o relatório da Transgender Europe4 (TGEU).
Ao verificar o Dossiê de Assassinatos e Violência Contra Travestis e
Transexuais Brasileiras de 20205, foram registrados 175 assassinatos sendo que estas
mortes são, em sua maioria, de travestis e mulheres transexuais. Vale lembrar que há
subnotificações e ausência de dados governamentais.
Os fatores sociais implicam em maior vulnerabilidade dessa população,
principalmente das que moram na rua, intensificando a questão da violência e
interpelando a falta de políticas públicas que assegurem uma qualidade de vida mais
digna a partir do mapeamento de marcadores de idade, classe e contexto social, raça,
Trecho do livro “Um apartamento em Urano” publicado por El País. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/09/cultura/1554804743_132497.html#:~:text=Paul%20B.,pol%C3
%ADtica%20%7C%20Cultura%20%7C%20EL%20PA%C3%8DS%20Brasil Acesso em: Fevereiro de
2021
4
Disponível em: https://revistahibrida.com.br/2020/11/17/em-2020-brasil-continua-lider-mundial-emassassinatos-de-pessoas-trans/ Acesso em: Fevereiro de 2021
5
Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf
Acesso em: Fevereiro de 2021
3
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
gênero. Em 2020, tivemos um agravamento por conta da pandemia de COVID-19,
expondo o crescimento das desigualdades sociais.
Não é recente que a falta de conhecimento quanto à diversidade de identidade e
expressão de gênero acarreta em repulsa (e até ódio) por pessoas que reconhecem
apenas identidades cisgêneras6 e assim, inferiorizam e agridem verbal/fisicamente
pessoas travestis, homens e mulheres transexuais, avançando na manutenção do
cissexismo7. Conservadores e religiosos reforçam o preconceito e a intolerância se
apoiando em estruturas sociais heteronormativas sob o viés da “moral e bons costumes”,
determinadas pela classe hegemônica.
O discurso transfóbico ganhou forças com a eleição do atual presidente (Sem
Partido) e da Ministra da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos (Partido
Progressistas), retrocedendo em conquistas sociais e legitimando diversas formas de
violência.
Em contrapartida, nas últimas eleições municipais de 2020, houve trinta pessoas
transexuais eleitas em diversas cidades brasileiras, sendo sete delas as mais votadas,
possibilitando uma representatividade um pouco mais significativa dentro das câmaras
municipais.
De acordo com Benavides e Nogueira:
O Brasil naturalizou um projeto de marginalização das travestis. A
maior parte da população trans no país vive em condições de miséria e
exclusão social, sem acesso à educação, saúde, qualificação
profissional, oportunidade de inclusão no mercado de trabalho formal
e políticas públicas que considerem suas demandas específicas. Mas
não só: o que era ruim piorou ainda mais neste este ano, com a eleição
de um governo que é explicitamente transfóbico por ideologia.
(BENEVIDES; NOGUEIRA, 2020, p. 9).
Tendo como base os Estudos Culturais de Stuart Hall, podemos afirmar que
identidade não é algo inato, ela se desenvolve gradativamente por meio da relação entre
indivíduos e grupos dentro de uma sociedade, construindo identidades que são
6
Entende-se por cisgênera a pessoa cuja identidade e expressão de gênero correspondem ao sexo
biológico ao qual foi designada ao nascer.
7
Entende-se por cissexismo o conjunto de noções discriminatórias que estabelecem as pessoas trans
abaixo das pessoas cis, de maneira institucional e/ou individual.
147
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múltiplas, mas, ao mesmo tempo, são indissociáveis como raça, etnia, classe social e
assim como a identidade de gênero.
Há muito que se avançar, começando pela educação e na compreensão de que o
sexo biológico não necessariamente é correlato à identidade e expressão de gênero.
Como aponta Judith Butler (2003), essa dicotomia sexo vs. gênero é criada pela
sociedade a partir de uma “ordem compulsória” que exige essa relação. A filósofa
sugere pensarmos que:
Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida
como efeito do aparato de construção cultural que designamos como
gênero. (…) Quando a “cultura” relevante que “constrói” o gênero é
compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a
impressão de que o gênero é tão determinado e fixo quanto na
formulação de que a biologia é o destino. Neste caso, não a biologia,
mas a cultura se torna o destino. (BUTLER, 2003, p. 25-26).
Somado ao pensamento de Butler, Paul Preciado, em Manifesto Contrassexual
(2014), coloca que o gênero não é somente uma construção social, consequência de
práticas culturais, mas também é determinado pelo fim da natureza onde há uma ordem
que legitima determinados corpos à sujeitarem outros, e é justamente na materialidade
dos corpos que este se torna a contraposição entre sexo e gênero que vai além do regime
binário normativo.
O corpo atua como espaço de construção biopolítica, como lugar de opressão,
mas também como centro de resistência. Preciado se refere a “corpos falantes” que
estão em constante transformação, um corpo de multiplicidade e que são orgânicos.
Em entrevista8 realizada em 2018, Butler questiona o porquê da necessidade de
se fixar identidades rígidas, como se qualquer possibilidade de experimentação ou
manifestação de traços femininos em corpos masculinos e vice-versa possa ser
condenado pela sociedade, sem necessidade de limitação nas representações corpóreas
dos sujeitos.
Há uma opressão executada pelo sistema em forma de mecanismos de poder e
controle sobre o gênero e a sexualidade, e na resistência à normalização tanto da
masculinidade quanto da feminidade, de uma identidade sexual fechada e rígida que não
8
Disponível em: https://resistaorp.blog/2018/05/08/a-vida-nao-e-a-identidade-a-vida-resiste-a-ideia-daidentidade/ Acesso em: Fevereiro de 2021.
148
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149
aceita variações e multiplicidades quando poderíamos provocar mudanças de
paradigmas na aceitação de gêneros não-binários e mais fluídos.
A TRANSEXUALIDADE NAS ARTES
Neste capítulo, traçaremos um breve panorama quanto às representações sobre
sexualidade e gênero dentro da História da Arte. Selecionamos quatro obras específicas,
fazendo um recorte na Arte Romana, Renascimento e Modernismo pelo fato de não
encontrarmos
referencias
de
artistas
transexuais
nos
registros
da
história
compreendendo esta ausência como um apagamento simbólico.
Os corpos da população LGBTQIA+ estiveram, muitas vezes, presentes apenas
como objeto de representação e relacionados ao que se é proibido, rechaçado e ao
mesmo tempo, fetichizado, visto como objeto de desejo (de maneira velada). Muitas
obras não se destacaram dentro da História da Arte, que se legitimou sendo patriarcal,
branca e heteronormativa, pois, como colocou o curador Miguel López, em entrevista9
ao lançamento do “1º Caderno Sesc_Videobrasil – alianças de corpos vulneráveis:
feminismos, ativismo bicha e cultura visual”, que, a partir do aparecimento dos estudos
feministas e da teoria queer, na década de 1960, surge o questionamento de como as
instituições artísticas delimitam o que merece ser visto ou não, disciplinando assim o
olhar e os corpos dos sujeitos.
Ao olhar para História da Arte, temos representações homossexuais tanto no
Egito, Grécia e Roma Antiga, mas vale lembrar que, neste período, como não havia a
compreensão de gênero em si, o desejo pelos corpos era dado pela concepção de um
ideal de beleza. Há também as representações de deuses, em que sua sexualidade
tampouco era questionada.
No caso da escultura de Hermafrodito (Fig. 01), filho de Mércurio e Vênus,
apresenta um corpo andrógeno no qual eram atribuídos os dois sexos. O termo
hermafrodita está incluso no conceito de intersexualidade, usado para descrever um
conjunto amplo de variações dos corpos tidos como masculinos e femininos10.
9
Disponível em http://site.videobrasil.org.br/news/2058869 . Acesso em: 03 de janeiro de 2021.
De acordo com a ABRAI (Associação Brasileira de Intersexo), disponível
https://abrai.org.br/informacoes-e-recursos/definicao-de-intersexo/
10
em
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Figura 1 – Hermafrodito. Império Romano, 27 A.C – 476 D.C. Museu do Louvre
Fonte: https://tendimag.files.wordpress.com/2016/03/12-hermafrodita-impc3a9rio-romano-27ac-476-dc-museu-do-louvre.jpg
Já no Renascimento, em um detalhe do teto da Capela Sistina, “O Juízo Final”,
obra renascentista pintada por Michelangelo entre os anos de 1508 e 1512 (fig. 02), se
observa uma cena de homens se beijando. Neste contexto conhecido na narrativa bíblica
como dia do julgamento feito por Deus, o beijo gay representa o pecado condenável, o
pecado da sodomia.
Figura 2 – O Juízo Final, pintura afresco (1508-1512) de Michelangelo, Palácio Apostólico,
Vaticano.
Fonte: Imagem registrada em HuffPost, disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2017/
09/13/9-obras-de-arte-consagradas-da-historia-que-retratam-genero-e-sexualidade_a_23208027/
150
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Chegando ao Moderninsmo, no caso do artista Toulouse-Lautrec, pintor que
costumava retratar a noite parisiense e pessoas comuns, pinta em “Na Cama, o Beijo”
(fig.03), de 1892, a cena de duas prostitutas se beijando dentro do cabaré. Essa imagem
é aceita dentro de certo contexto, pois, no imaginário de homens heterossexuais, ela é
fetichizada e erotizada.
Figura 3 – Na cama, o beijo, 1892. TOULOUSE-LAUTREC
Fonte: Imagem registrada em Revista Bula, disponível em: https://www.revistabula.com/9966os-10-beijos-mais-famosos-da-historia-da-arte/
No início do século XX, encontramos o caso de Lili Elbe (1882-1931),
artista queer conhecido como Einar Mogens (fig. 04), casado com a também artista
Gerda Wegener e que em determinado momento, decide, de vez, em assumir sua
identidade de gênero feminina. Lili Elbe chegou a fazer cirurgias para mudança de sexo,
morrendo após a tentativa de implantar um útero. Apenas recentemente, se tornou
referência na história trans, após sua trajetória ser conhecida quando foi retratada no
cinema com o filme “The Danish Girl”, 2015, dirigido por Tom Hooper.
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Figura 4 – Fotografia de Lili Elbe, 1926
Fonte: Imagem retirada de El Pais Brasil, disponível em : https://brasil.elpais.com/brasil/2016/
01/02/estilo/1451748884_931165.html
A produção artística contemporânea se apresenta de forma descentralizada,
deixando-se um pouco o peso da utopia das vanguardas ao interagir a arte com a
realidade. Encontramos também um pluralismo nas diferentes linguagens e formas de
representação das quais são baseadas não somente nas experiências do cotidiano, mas
igualmente na relação entre sujeitos, e na compreensão e percepção do outro. A arte
pode surgir como uma ferramenta de confronto ao pensamento hierárquico no objetivo
de decolonizar11 o olhar, romper com velhos discursos normativos a partir de novas
narrativas de artistas transexuais para evitarem seu apagamento.
A não-permanência e exclusão de corpos trans em locais como as universidades,
museus e galerias de artes é refletido na dificuldade em ingressarem no mundo artístico,
este campo de saber e de conhecimento que deveria ser livre de qualquer preconceito,
aceitando diferentes corpos.
A performance, então, aparece como uma possibilidade no que se refere ao
acesso aos diferentes materiais para se produzir arte, se apresentando como uma
potente linguagem provocadora de questionamentos e reflexões, uma vez que corpos
dissidentes assumem seu local de fala e são utilizados como suporte de criação. São
sujeitos que, a partir da ideia de Spivak (2010), “sob a condição de subalternidade”,
nunca obtiveram espaço para falar de si e por si e essas vozes quando conquistam uma
11
Entende-se por decolonizar o termo cunhado pelo grupo Modernidade/Colonialidade nos anos 2000,
definindo que decolinalidade indica o transcender da colonialidade e não apenas a sua superação
(Ballestrin, 2013).
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posição de prestígio e, nesse caso o acesso ao circuito de artes, obtém certa
“visibilidade”.
E esta linguagem faz com que todo o processo seja muito mais significativo que o
resultado final, nos remetendo ao conceito de “artificação” proposto por Roberta
Shapiro (2007) em que a “arte como atividade (e não como objeto)” aumenta “as
instâncias de legitimação” que não apenas a academia, curadores e críticos de arte e que
promove um mecanismo de reconhecimento de objetos considerados “não-arte” em arte,
a partir de um contexto que abrange questões de âmbito social, econômico e político.
LYZ PARAYZO: OBJETOS PARA SUA AUTO-DEFESA
A artista nasceu Lisandro Coelho de Souza (fig. 05), no ano de 1994, em Campo
Grande, subúrbio do Rio de Janeiro em uma casa entre mulheres: mãe, avó e suas tias.
Lyz conta, durante uma entrevista12, que foi na adolescência que sua sexualidade se
manifestou e tomou consciência de que não se encaixava nos padrões heteronormativos,
relatando que o primeiro contato feminino com o seu corpo foi pintar as unhas, aí,
então, teve uma relação diferente socialmente porque percebeu que, ao pintar as unhas,
catalisava uma série de sensações de violência.
Figura 5 – Lyz Parayzo, 2019
Fonte: Acervo Pessoal
12
Entrevista concedida por Lyz Parayzo em setembro de 2019. Entrevistadora: Debora Armelin Ferreira.
São Paulo, 2019. 1 arquivo .m4a (28 min.)
153
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A família, sendo grande parte evangélica e outra parte espírita, teve grandes
dificuldades em entender e aceitar a declaração do então Lisandro, o que teve como
consequência relações bastante complicadas. Exceto com a sua avó que, após um
tempo, percebeu a necessidade de estar ao lado da neta, embora ainda tenha dificuldade
em usar o artigo “a” para se referir a ela e chamá-la de Lyz.
Ingressa no curso de teatro, mas devido ao seu distanciamento e de sua família
com as artes (em especial o teatro, visto que em Campo Grande havia apenas um
cinema) sentiu dificuldade em lidar com o curso, o que a fez questionar a continuidade
dos estudos. Decide então cursar a Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de
Janeiro e ali conquista seu espaço, não só no que se refere à questão de gênero, mas de
classe também. Recebe uma bolsa de estudos e, ao ocupar aquele lugar, concebe seu
entendimento de quem era e qual o seu papel como artista.
Lyz narra que seu percurso de casa até à escola de artes sofria variações
espaciais/sociais. Seu trajeto de Campo Grande até o Parque Lage, localizado em uma
área mais nobre da cidade, levava duas horas entre ônibus, metrô e ônibus e sentia
certos marcadores sociais. Enquanto em Campo Grande, os moradores faziam piadas
quanto ao seu gênero, ao chegar ao local de destino, era como se houvesse um certo
respeito, um “perdão de classe” por ela estar transitando aquele espaço.
Adota, então, o nome de Lyz Big Field13, escolhendo este sobrenome que faz
referência à sua origem geográfica, considerada periferia do Rio de Janeiro, como forma
de falar de suas urgências, questionar os corpos que são julgados unicamente por serem
de áreas periféricas, pois, no Brasil, o seu sobrenome e seu local de origem ditam quais
são seus privilégios e, no seu caso, os acessos aos espaços de artes.
Com sua ousadia, a artista queria romper fronteiras, queria desafiar a lógica
colonial e patriarcal do Parque Lage que defendia um discurso superficial de inclusão.
Foi censurada em três apresentações, a primeira, não tendo sua obra selecionada para
uma exposição, fez uma intervenção dispondo uma série de fotografias de seu próprio
ânus dentro dos banheiros masculinos. Foi neste momento que assumiu como nome
social Lyz Parayzo, com o intuito de “abrasileirar” seu nome, devido a uma pergunta
feita por um professor do Parque Lage sobre como queria que fosse chamada.
13
Lyz Campo Grande, em tradução nossa.
154
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Na segunda, fez uma crítica à “gourmetização” da cantina da universidade, o que
faria com que os preços dos produtos se tornassem inacessíveis aos alunos bolsistas. E
por último, na abertura de uma exposição, Lyz se posta seminua sob um tijolo enquanto
Augusto Braz rasga grandes pedaços de um papel cor-de-rosa (que se assemelha aos
papéis higiênicos considerados baratos e de baixa qualidade) e posteriormente cola em
seu corpo tomando forma de um vestido de gala com o qual, ao fim, Lyz caminha
lentamente pelo espaço.
Os trabalhos da artista tratam não somente da temática do gênero e do corpo,
que não anseia em ser encaixado em determinadas classificações, um corpo que é
fluido, transitando entre o masculino e feminino, mas também fala sobre classes
refletindo como os espaços institucionais no Brasil são elitistas e segregantes, um “local
de disputa” em suas palavras. Suas obras seguiam uma lógica de crítica não somente
dos espaços, mas também sobre quem os ocupava.
Uma de suas obras é “Putinha Terrorista” (fig. 06) de 2017, em que panfletos
impressos com sua foto nua ou seminua, afirmando o lugar de prostituta e suas
respectivas descrições, com telefone e endereço de galerias de artes do Rio de Janeiro,
são jogados durante aberturas aleatórias de exposições pela cidade. Assim, Lyz pensa
em “transfigurar o lugar marginalizado da prostituição dentro da sociedade em algo
potente, criticando os espaços museológicos” fazendo referência a este local como
também um espaço que se vende, colocando-os como as próprias prostitutas e assim,
expondo as fragilidades do mercado de arte.
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Figura 6 – Putinha Terrorista, 2017. Panfleto em papel couchê, 10x 14cm
Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/PutinhaTerrorista
A consciencialização de que não poderia permanecer por muito tempo numa
posição de apenas crítica às instituições artísticas chega quando decide revisitar sua
história, sua ancestralidade. Com a obra “Manicure Política” (Figura 7), a artista traz à
tona a história das mulheres de sua família: sua avó era manicure e sua mãe esteticista.
Neste trabalho monta um salão de beleza intitulado “Salão Parayzo” construindo
um cenário totalmente cor-de-rosa (cor socialmente relacionada ao universo feminino),
em que pinta a unha do espectador enquanto conversam. E neste contexto de salão,
quem está sendo atendido sente-se à vontade para todos os tipos conversas, e então, Lyz
aproveita para questionar o que é ser mulher na sociedade atual, fazendo o público
refletir quanto ao preconceito, discriminação e violência. Essa interação com o
espectador faz com que a performance só aconteça com a participação do mesmo.
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Figura 7 – Manicure Política, 2016. Dispositivo itinerante.
Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/ManicurePolitica
No primeiro semestre de 2018, Lyz se muda para São Paulo, para uma residência
artística na FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado. Nesse momento resolve
criar objetos, algo que sempre resistiu fazer por acreditar que estes não dariam conta de
suas urgências, tal como o seu próprio corpo dava.
Nesse momento segue com a ideia de olhar para a sua história: grande parte dos
homens de sua família era ourives. Inicia então a série de joias no ateliê da faculdade,
que era maioritariamente frequentado por homens. E ali sofre constantes ataques de
violência psicológica por parte do técnico responsável pelo ateliê que chegou a quebrar
uma de suas peças e dizer-lhe “Você não deveria estar aqui”. A artista que, nessa época,
acreditava que ao vestir-se de forma feminina conseguiria melhor aceitação, chegou a
cortar os cabelos a fim de amenizar os ataques que sofria.
Lyz Parayzo estudou sobre a História da Arte Brasileira no Parque Lage e um
dos movimentos do qual se identificava foi o Movimento Construtivista que tinha
representantes artistas como Franz Weissmann (1911-2005), Waldemar Cordeiro (19251973), Lygia Clark (1920-1988) e Amilcar de Castro (1920-2002), tomando como
referência a técnica de corte e dobra em suas peças de alumínio, uma vez que lhe
faltavam recursos para a solda.
Sua série “Bichinhas” (fig. 08) faz referência à série “Bichos” de Lygia Clark,
atualizando a sua estética e utilizando o nome no diminutivo de uma maneira irônica em
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razão de suas peças possuírem “um toque de violência no intuito de criar uma poética,
da necessidade de se defender”, diz a artista. São objetos escultóricos que transcendem a
função de ser apenas apreciado, num estado de passividade, tornando-se uma “arma” de
defesa para que ela possa se defender da violência sofrida cotidianamente, resistir e
sobreviver.
Figura 8 – Bixinhas, 2018, alumínio, 15x15cm.
Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/Bixinhas
Há também a ideia de revisitar o Movimento Construtivista como uma
“estratégia de hackeamento desse espaço”, em suas palavras para se referir a este
território que era, em sua maioria, masculino, branco e de elite. Fala também de suas
urgências, ressignificando a estética concreta como forma de dialogar com vários
lugares e um público diverso, que conheça ou não as obras de Lygia Clark.
E como desdobramento de “Bixinhas', a artista desenvolve as “Próteses Bélicas”
(fig. 09 e 10) numa série de colares e anéis feitos com prata e algumas peças são
banhadas a ouro e cravejadas com strass que, ao primeiro olhar, demonstram requinte
em sua combinação, estilo e estética, mas que, na verdade, servem como um ornamento
de auto-defesa. Essas obras são resultado de uma pesquisa dentro da história da
comunidade LGBTQIAPN+ no Brasil e sua resistência e enfrentamento quanto às
opressões, repressões e violência.14
Na década de 1987, ocorreu a chamada “Operação Tarântula” em que policiais perseguiam travestis
que se prostituíam com o argumento de que seria um controle do VIH (vírus da imunodeficiência
humana). Alguns travestis escondiam navalhas nas gengivas e se cortavam perante os policias, que se
afastavam com medo que, do contato com o sangue, pudessem contrair a doença.
14
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Figura 09 – Unha Navalha, 2016, da série Próteses Bélicas. Prata, aço, madeira, espuma, veludo
e cetim.
Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/Proteses-Belias
Figura 10 – Gargantilha Lança e Top Dentado, da série Próteses Bélicas. Prata.
Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/Proteses-Belias
A partir de suas produções, Lyz Parayzo reflete sobre sua corporalidade, na
tentativa de decolonizar o olhar num exercício que é constante e feito através de
pesquisas e vivências dentro de território que se mostra hostil, apesar das conquistas
feitas ao longo do tempo a partir do seu próprio trabalho. A artista assumiu um modo de
se vestir mais androgênio e entende que seu gênero é fluído, muito além da lógica
binária.
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Lyz participou do projeto Pivô Pesquisa, associação cultural sem fins lucrativos que
serve como plataforma para experimentações artísticas15. Foi indicada para prêmio
PIPA 2017 e foi finalista do prêmio EDP do Instituto Tomie Ohtake que visa à
formação e valorização de jovens artistas. Tem obras compondo a coleção do MAC –
Museu de Arte Contemporânea de Niterói e do MAR – Museu de Arte do Rio, e já
participou em diversas mostras coletivas nacionais e internacionais. Em 2019, uma de
suas obras compôs a exposição “Histórias Femininas: Artistas depois de 2000”, no
MASP (Museu de Arte de São Paulo) e teve uma exposição individual na Galeria
Verve. Atualmente, faz residência artística em Paris, França.
ÉLLE DE BERNARDINI: NOVAS GEOGRAFIAS CORPORAIS
Nascida em 1991, em Itaqui, Rio Grande do Sul, Élle de Bernardini (Fig. 11) tem
hoje a consciência do seu privilégio não só de ser branca e pertencer à classe média,
mas pela aceitação e apoio de sempre recebeu de sua mãe, talvez pelo olhar de uma
educadora que acredita na multiplicidade de corpos. O único medo era por sua filha
sofrer qualquer tipo de violência.
Figura11 – Élle de Bernardini, 2021
Fonte: Acervo Pessoal
Sua trajetória artística inicia-se no ballet clássico, tendo sua professora a
sensibilidade de deixa-la participar do grupo feminino não somente por conta do corpo
15
Disponível em: https://www.pivo.org.br/sobre/ Acesso em: Fevereiro de 2021
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delgado com traços andrógenos, mas por apresentar boa desenvoltura em passos e
saltos. Porém, chega ao seu conhecimento que não poderia tirar a DRT16 pela rigidez e
dureza na instituição do ballet clássico em reconhecer apenas os gêneros masculino e
feminino.
Neste meio tempo, Élle cursa três semestres do curso de Jornalismo no Centro
Universitário Franciscano e dois anos de teatro na Universidade Federal de Santa Maria.
Quando uma prima sugere que ingresse no Royal Academy of Dance de Londres, sendo
a primeira bailarina trans a ser aceita nessa academia. Por mais que ela se destacasse,
soube que jamais iria além do corpo do baile, o grupo não permitiria que assumisse
posições de solista ou primeira e segunda bailarina. Decide voltar ao Brasil após dois
anos.
Tem contato com o Butô17 em Londres, um tipo de filosofia de vida que mescla
diferentes artes como dança e teatro, considerada sem gênero e que explora temas como
nascimento, morte, inconsciente e sexualidade. Teve a possibilidade de conhecer os
mestres Yoshito Ohno e Tadashi Endo, experimentando assim seu corpo em diferentes
níveis de expressão.
Em seguida, cursa filosofia na Universidade Federal de Santa Maria e ali, tem
acesso a leituras como “História da Sexualidade”, De Michel Foucault, “Problemas de
Gênero”, de Judith Butler e “Manifesta Contrassexual”, de Paul B. Preciado, leituras
voltadas para o gênero e sexualidade.
Neste momento, relata a artista em entrevista18, que “o mundo inteiro se abre
para mim”, e passa a pensar modos de expandir sua pesquisa compreendendo que a arte
seja um meio de comunicar o inexistente, como uma possibilidade de se ler o real de
diferentes formas. Devido a sua formação em dança e estudos de teatro, encontra na
performance o suporte para iniciar sua produção artística, embora com cuidado para que
seu corpo não seja objetificado. Explora, depois, outros suportes, poéticas e materiais.
Entende-se por DRT – Delegacia Regional de Trabalho, uma espécie de registro profissional. Hoje a
sigla foi substituída por SRTE - Superintendência Regional do Trabalho e Emprego
17
Conhecida como "a dança da escuridão" o butô surge no Japão na década de 1950, criado por Tatsumi
Hijikata e Kazuo Ohno, sendo um resultado filosófico da confluência das culturas oriental (tradição
milenar japonesa) e ocidental (substâncias da modernidade dos anos 50)
18
Em entrevista a Amanda Olbel disponível em: https://midianinja.org/news/ouro-e-mel-apote%CC%82ncia-em-ato-atraves-de-elle-de-bernardini/ Acesso em: Fevereiro de 2021
16
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Adota seu nome como Élle num jogo de ambiguidade enquanto que no Brasil “ele” se
refere ao pronome pessoal masculino, na língua francesa, “elle” se refere ao pronome
pessoal feminino.
Em seus trabalhos, a artista procura construir um novo imaginário comum e
social, transpondo para o mundo das artes sua preocupação assim como sua
responsabilidade em abordar temas quanto a questão de gênero, sexualidade e
identidade de forma lúdica e pedagógica, estreitando o dialogo com o espectador.
Na performance “Campo de Contato II- Tapas para que te quero?” (Fig. 12), de
2016, a artista se coloca sentada em um espaço público com uma indicação atrás de sua
cadeira: “Siga a indicação. Me dê um tapa na cara o mais forte que conseguir”. Nessa
ação, vestida de forma elegante, com uma música instrumental ao fundo, Élle levanta a
questão do que é moralmente certo ou errado. Há a permissão dela para que a agressão
seja feita, mas, em contrapartida, cabe ao público decidir. Se não der o tapa, a ação
perde sua finalidade, e se der o tapa, pode levar a uma questão moral do porque de ter
agredido sem justificativa aquele corpo, como o espectador o único responsável por sua
ação, porém seria esta uma escolha consciente? Lembrando o conceito de “a banalidade
do mal”, de Hannah Arendt, quando o sujeito passa a obedecer regras/ordens sem
qualquer tipo de questionamento, sendo incapaz de pensar por si, anulando assim a sua
individualidade.
Figura 12 – Campo de Contato II – Tapas para que te quero?, 2016
Fonte: Acervo Pessoal
Élle também questiona a inserção de corpos trans em locais dos quais lhe são
negados a partir da construção de um novo imaginário para esses corpos além da
marginalizado. Em “A Imperatriz” (Fig. 13), 2018/20, com vestido de alta-costura na
cor vermelha e joias, a artista se convida a ocupar espaços arquitetônicos que
162
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representam tanto poder político quanto cultural, adentra estes locais de forma
diplomática a fim de “seduzir” as instituições para que assim, outros corpos também
possam ocupar estes lugares. A artista apresenta um novo olhar para o corpo trans além
daquele já estereotipado pela sociedade.
Figura 13 – A Imperatriz, 2020.
Fonte: Acervo Pessoal
Com a obra “Dance with me” (Fig. 14), 2018/19, a artista se utiliza da expressão
popular, “nem se fulano(a) estivesse coberto de ouro” e assim, cobre seu corpo de mel e
folhas de ouro e convida seu público para dançar acompanhada de músicas consideradas
de bom gosto pela alta sociedade. Além de investigar os sentidos: tato, olfato e audição,
Élle coloca em pauta a aceitação desde corpo pela sociedade. Ao aceitar dançar com ela,
tocando o seu corpo, não só pontuando que houve ali uma aceitação deste para com a
artista, mas o sujeito leva um pouco de ouro em suas mãos, um metal precioso, e não
doenças, sujeira, tudo o que há atrelado à população travesti e trans.
163
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Figura 14 – Dance with me, 2018.
Fonte: Acervo Pessoal
Dos estudos sobre o concretismo e neo-concretismo brasileiro, a artista cria
estratégias para brincar com as formas geométricas e as cores, usando como repertório
para instigar as cores azul e rosa, mostrando múltiplas possibilidades além do masculino
e feminino. Nessa simbologia das cores, traz também o roxo que é a mistura das cores
rosa e azul, o cinza como um espaço neutro, o branco a presença de todas as cores e o
preto, a ausência delas.
A chamada série “Formas Contrassexuais” (Fig. 15), de 2019, procura expandir
a compreensão para além do binarismo rosa e azul e atrelado às formas, em alguns
momentos, chega à abstração descontruindo as imagens a fim de criar novas
possibilidades de geografias corporais.
164
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Figura 15 – Série: Formas Contrassexuais Acrílica, ouro, feltro e prego sobre tela Díptico, 2
telas de 50x40
Fonte: Acervo da Galeria Pivô. Disponível em:
https://www.pivo.org.br/residencias/participantes/elle-de-bernardini/
E a fim de discutir a questão do corpo trans, da sua história, Élle recorre a
diferentes materiais que são atraentes ao olhar e ao tato e que faz correlação com a
sedução e o erotismo: ouro, couro, pelo, feltro e pele sintética. Ela fala dos órgãos
sexuais e dos órgãos do prazer: pênis, vagina, escroto, seios e ânus de uma maneira
lúdica não só pensando no espectador, mas tendo como objetivo principal
colecionadores de arte, colocando em xeque este mercado em que as obras mais
vendidas são os quadros, e assim, este público se relacionaria de perto com
determinadas geografias corporais excluídas deste meio.
Utilizando de uma maneira a aproximar do universo do corpo trans, na série
“Peludinhos” (Fig. 16), seleciona os materiais que faz com que, através do toque, o
sujeito crie certa intimidade com a obra, modificando seu olhar na compreensão do que
lhe parece estranho, criando um corpo expandido que se altera aos diferentes toques e
ação do tempo.
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Figura 16 – Le Vagin, série Peludinhos, 2019.
Fonte: Acervo Pessoal
Élle se muda para a cidade de São Paulo e participa, juntamente com Lyz
Parayzo, do projeto Pivô Pesquisa. Suas obras compõem o acervo das seguintes
instituições: Museu de Arte do Rio Grande do Sul / MARGS, MAC- RS, MAC-Niterói,
Coleção Santander Brasil, Museu de Arte do Rio, Museu de Arte Moderna do Rio,
Fundação de Artes Marcos Amaro, Museu Nacional da República e Pinacoteca do
Estado de São Paulo. Participou da 12 Bienal do Mercosul, em Porto Alegre e da Bienal
Internacional de Performance Ativismo, em Bogotá/Colômbia e exposições individuais
na Verve Galeria, Galeria Kogan Amaro, Karla Osório, Museu de Arte do Rio Grande
do Sul, Casa de Cultura Mario Quintana e Museu de Arte de Santa Maria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As artistas Lyz Parayzo e Élle de Bernardini trazem suas próprias histórias e
vivências para o campo artístico envolto às questões que abarcam o universo travesti e
transexual como parte de suas produções. Longe de rotulações quanto às artistas trans
terem que unicamente falar sobre questões trans, é necessário ir além dos limites
identitários impostos de forma opressiva com discursos de controle em detrimentos da
liberdade e da autonomia dos seres.
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Ao assumir este lugar de sujeito do fazer, potencializa-se os enfrentamentos
como invisibilidade, preconceito e violência, ao abrir espaço para que outros corpos
dissidentes alcancem seu lugar dentro da sociedade ocupando todos os espaços que lhe
são de direito.
Pudermos observar que tanto Lyz quanto Élle utilizam o corpo como suporte de
sua arte seja através da performance ou na desconstrução desses corpos criando novas
geografias ao propor que o público consuma a ideia de corporeidade sem fetichização e
objetificação.
Sendo raça, classe social e gênero características intrínsecas ao ser, portanto,
indissociáveis, percebemos então o quanto as diferenças sociais e econômicas são
refletidas nos trabalhos das artistas. Enquanto Lyz busca enfrentar de forma um pouco
mais dura e impositiva sua entrada em espaços de poder, como em “Putinha Terrorista”,
causando surpresa e estranhamento dos que ali estão. Élle já procura a diplomacia para
adentrá-los, pedindo que seja convidada na obra “A Imperatriz”.
Podemos traçar esse comparativo também na série “Próteses Bélicas”, de Lyz,
em que usa essas esculturas-objetos que se assemelham a armas para se proteger, se
defender dos preconceitos e violências verbais que sofreu durante suas idas e vindas da
faculdade para casa. Enquanto Élle, em “Peludinhos”, propõe um diálogo de forma
lúdica e educativa, possibilitando ao público criar um novo olhar e novas composições
de corpos, como se sugerisse uma possibilidade para a resolução didática desses
enfrentamentos.
São trabalhos que se apresentam complementares a partir de diferentes
vivências, de atravessamentos que mostram sua potencialidade no tratar das urgências
da população trans e que, inclusive, as duas artistas dividiram o espaço da Verve
Galeria, em 2019, em exposições individuais “Quem tem medo de Lyz Parayzo” e “Sex
Shock”.
Ambas as artistas também optaram por não modificarem seus corpos sem
tratamentos com hormônios e cirurgias, pois acreditam na fluidez de gênero e na
constante renegociação de identidades. Há certa imposição para que o corpo feminino se
adeque a modelos padronizados do que é ser mulher, reforçando a sujeitação destes
corpos pelo sistema de poder. Como Preciado (2020), em “Um apartamento em Urano”,
cita o termo “travessia” que seria esse deslocamento corporal, a transformação, um
167
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entre-lugar situado no meio do masculino e do feminino, um espaço de reconhecimento
de gênero que permite igualmente essa fluidez.
Portanto, podemos pensar que a arte deve assumir seu papel político e social de
maneira reflexiva e propositiva, e principalmente repensar na democratização destes
espaços culturais para o acesso a um público variado assim como a multiplicidade de
artistas expostos e na composição de acervos, rompendo o sistema heterogêneo de
abarca também o mercado de arte.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
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https://revistahibrida.com.br/2020/11/17/em-2020-brasil-continua-lider-mundial-emassassinatos-de-pessoas-trans/ Acesso em: 03 de janeiro de 2021
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https://midianinja.org/news/ouro-e-mel-a-pote%CC%82ncia-em-ato-atraves-de-elle-debernardini/ Acesso em: 01 de fevereiro de 2021
Vídeos:
https://www.youtube.com/watch?v=YdwLHaGOxK0
https://www.youtube.com/watch?v=iuafej-C6V4
https://www.youtube.com/watch?v=29dE7WDSZoc&t=3s
169
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
ESTOU NA WEB, LOGO, COLABORO? ANÁLISE DE INTERAÇÕES ENTRE
MEIOS NATIVOS DIGITAIS DE JORNALISMO IBERO-AMERICANOS
Edson Capoano1
Pedro Rodrigues Costa2
INTRODUÇÃO
Questionar-se é uma forma de evoluir. Pessoas o fazem a todo momento em
âmbitos íntimos e públicos. Quando reunidas por interesses em comum, também, como
em associações e coletivos. Nas carreiras laborais, não seria diferente. Profissionais de
um ofício se questionam individualmente sobre suas atuações ou sobre sua função
enquanto corpo de grupo. No que se refere a um ethos muito específico, o de jornalistas,
professores de comunicação e investigadores do campo, fazem-no tanto em redações de
jornais quanto em corredores de universidades, questionando qual seu papel na
sociedade e qual o futuro do jornalismo, entre outras questões que norteiam o campo.
As Ciências Sociais se dedicam há algum tempo sobre as questões do campo
profissional (BOURDIEU, 2001) ou das identificações de tribos urbanas na PósModernidade (MAFFESOLI, 2010).
Mas devido às mudanças significativas nos suportes de informação (uma
migração irreversível do impresso e material para o eletrônico e digital) e nos ambientes
de trabalho (das redações de jornais para as plataformas digitais e o teletrabalho), o
campo da comunicação em geral e a carreira de jornalismo em específico se deparam
com as mesmas perguntas de sempre, renovadas, além de outras novas, cujas respostas
vão definir como jornalista e jornalismo serão no século XXI. Questões alheias ao
campo também vão defini-lo, como a ascensão da pós-verdade como fenômeno de
relativização do que é fato, a matéria-prima por excelência do jornalismo; as fake news,
que disputam tempo de atenção do consumidor de notícias nas atuais plataformas de
troca de mensagens; os novos movimentos populistas, que elegeram a imprensa como
1
Doutor em Ciências da Integração da América Latina - PROLAM-USP. Pesquisador do Centro de
Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, Braga, Portugal. e-mail:
edson.capoano@ics.uminho.pt
2
Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho. Pesquisador do Centro de Estudos
de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, Braga, Portugal. e-mail:
pedrocosta@ics.uminho.pt
170
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
um alvos das estratégias para dispersão de crítica sobre a política; e a precarização do
trabalho e do emprego para várias carreiras, incluindo jornalistas, professores e
cientistas.
Felizmente, graças às redes de investigação e conhecimento estabelecidas no
campo científico e profissional, pode-se atualizar os parâmetros de o que é jornalismo
e o que não é (HUMANES, 2003, HANITZSCH, 2007; DEUZE, WITSCHGE, 2015),
alcançar panoramas globais sobre a cultura jornalística e dos jornalistas
(SALAVERRÍA, 2015; HANITZSCH et al., 2011) e compará-las (HANUSCH,
HANITZSCH, 2017). O projeto Worlds of Journalism Studies (WJS), por exemplo,
produz conhecimento dessa forma sobre o campo desde 2007. Já em sua primeira
edição, cobriu 21 países de todo o mundo, evoluindo em uma segunda fase para mais
de 27.500 jornalistas entrevistados em 67 países. Na rodada atual (2021-2023), o
projeto abordará os temas jornalismo, risco e incerteza e terá 110 países envolvidos,
com o apoio da UNESCO e da Federação Internacional de Jornalistas.
A primeira rodada de investigação (WJS 1, 2007-2011) expôs o foco nas
culturas do jornalismo em geral, mais especificamente, se os valores de
distanciamento e não envolvimento reinavam supremos. Como resultados, o
distanciamento, o não envolvimento, o fornecimento de informações políticas e o
monitoramento do governo ainda eram considerados funções jornalísticas essenciais
em todo o mundo. Menor unanimidade foi percebida nos valores de imparcialidade, a
confiabilidade e a veracidade das informações, bem como a adesão aos princípios
éticos universais. Já aspectos de intervenção, objetivação e separação de fatos e
opiniões diferiram entre culturas e países abordados. Enquanto jornalistas ocidentais
apoiaram menos a promoção de valores, idéias e mudanças sociais e aderiram mais
aos princípios universais em suas decisões éticas, jornalistas não ocidentais, tendiam a
ser mais intervencionistas em suas percepções de papel jornalístico e mais flexíveis
em suas compreensões sobre ética profissional.
Na segunda edição (WJS 2, 2012-2016), deu-se prosseguimento às questões
anteriores, com atualizações sobre desafios que jornalistas e organizações de notícias
enfrentam na atualidade, como o lugar do jornalismo na sociedade, ética, autonomia e
influências na produção de notícias, confiança jornalística nas instituições públicas e a
transformação do jornalismo no sentido mais amplo. Na empreitada atual (WJS 3,
171
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
2021-2023), espera-se compreender como o jornalismo lida e se adapta ao risco e à
incerteza em diferentes contextos políticos, socioeconômicos e culturais e como o
jornalismo se desenvolveu ao longo do tempo nos temas autonomia editorial;
influências no jornalismo; papéis jornalísticos; epistemologias jornalísticas; ética
profissional; segurança e resiliência dos jornalistas; bem como as condições de
trabalho.
DESENVOLVIMENTO
Dos muitos tópicos para discussão da cultura jornalística do século XXI, optouse por discutir como se dá a influência da internet sobre o trabalho dos jornalistas e
sobre o fazer jornalístico, especificamente a atuação desse ethos nas redes sociais,
espaços sociotécnicos preponderantes na troca de informação contemporânea.
Pela sua arquitetura voltada a plataformas de interação, graças a ferramentas
digitais de produção, publicação e compartilhamento, as redes sociais potencializam
ambientes digitais socializados, nos quais seus usuários moldam sua topografia ou têm
seus hábitos moldados por ela. Não à toa, uma das metodologias mais utilizadas para
compreensão da sociologia digital é a ARS (Análise das Redes Sociais), que permite a
compreensão destas estruturas e o uso por parte de seus atores (QUANDT, SOUZA,
2008; COSTA, 2020).
Assim, como as redes sociais materiais reúnem conjuntos de atores com relações
entre si, as redes digitais acrescentam vínculos digitais através do fluxo de informação
entre seus membros, categorizadas de diversas formas, como unilaterais, bilaterais ou
triádicas (QUANDT; SOUZA, 2008), em torno de “relações recíprocas, relações
indiretas, com intermediação, com representação, com bloqueio, com mediação e com
coordenação” (COSTA, 2020, p.78).
O desenvolvimento do campo jornalístico (BOURDIEU, 1994) dentro das redes
sociais, com grupos identitários segundo atividades laborais (MAFFESOLI, 2007)
geraram cibercultura (LÉVY, 2010), assim como o faziam através de linguagem própria
a tribo de jornalistas antes da digitalização (TRAQUINA, 2008). As interações entre os
novos meios de jornalismo (CAMPOS-FREIRE et al., 2016; MÉNDEZ, 2019),
especificamente os Ibero-americanos (SALAVERRÍA-ALIAGA, 2016), realizam
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
dinâmicas comuns ao seu ecossistema (CANAVILHAS, 2015), utilizando a
potencialidade das redes sociais, como a co-criação de conteúdos entre seus membros
(SIXTO-GARCÍA et al., 2020).
Da mesma forma, a organização das redes sociais gerou toda uma linguagem e
procedimentos para compreensão de seus elementos individuais e seu funcionamento
como um todo. Os grafos, representações visuais de redes sociais interativas, são
compostos por atores (os membros das redes, representados por esferas ou pontos),
arcos (ou arestas, as conexões entre nós, geralmente representadas por linhas), nós (ou
vértices, geralmente representados por várias linhas conectadas a si). Tais grafos, que se
interligam com a teoria social de Simmel (COSTA, 2020), podem gerar díades (ligações
simples), tríades (subgrupos de redes) ou clusters (ou hubs, nós fortemente conectados).
Estas medidas de análise (ou métricas) decorrem de tais componentes básicos que
compõem uma rede, revelando suas dinâmicas (AMARAL, 2016; COSTA, 2020). Vaise utilizar essa nomenclatura e conceito para analisar as interações entre estudo de caso
escolhido, meios nativos digitais de jornalismo ibero-americanos.
Para restringir o objeto de estudo, foi utilizado um método misto de coleta e
seleção. Inicialmente, optou-se pela metodologia snowball para delimitação do corpus
da investigação (QUIVY; CAMPANHOUDT, 2003). Definiu-se que os jornalistas
"embaixadores" da entidade Sembramedia (sembramedia.org/equipo), colaboradores
locais em distintos países da Ibero-América, seriam os propulsores do questionário
junto aos meios nativos de idioma espanhol na América Latina. Já para alcançar os
meios nativos digitais em Portugal e no Brasil, utilizou-se a lista do site Media
Alternativos
(mediaalternativos.pt)
e
o
Mapa
do
Jornalismo
Independente
(apublica.org/mapa-do-jornalismo), da Agência Pública, respectivamente, para disparo
de e-mails solicitando a resposta do questionário. Finalmente, para o contato com os
meios espanhóis, utilizou-se o Digital News Report 2020 (digitalnewsreport.org) para
definir os meios digitais mais influentes da Espanha, aos quais foram enviados e-mails
solicitando participação neste trabalho.
Neste contexto, os jornalistas/meios respondentes foram questionados sobre a
cultura jornalística que desenvolvem; se assimilam a cultura do meio que estão
instaladas (as redes digitais), compondo uma rede informal não planejada de produção e
circulação de informação, ou se atuam de forma autônoma nos ambientes digitais. As
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
174
questões enviadas foram inspiradas em tais características que as redes sociais
comportam em si, como sobre produção coletiva, cultura do compartilhamento, conexão
com outros elos, relativização de autoria e de propriedade digitais, interação e
conhecimento
dos
integrantes
da
rede,
interdependência
entre
membros,
representatividade e ação direta dos atores na rede. Assim, foram desenvolvidas as
seguintes questões:
Você e sua organização se consideram representantes de algum setor
da sociedade ou tem um público específico?
Você e sua organização tiveram ou ainda têm suporte de outro meio?
Você e sua organização têm atividades conjuntas com outros meios?
Você e sua organização publicam regularmente em outros meios além
do seu próprio?
Pode
divulgar
alguns
dados/perfil dos usuários das plataformas de sua organização?
(CAPOANO, 2021).
Estudos de caso
Dessa forma, foi composta uma rede unimodal (todos membros da mesma
natureza) com nove atores: Sebastián Auyanet (Sembramedia, Uruguai); Carlos Herranz
(El Confidencial, Espanha); jornalista não-identificado (Gerador, Portugal); jornalista
não-identificado (Fumaça, Portugal); jornalista não-identificado (Interruptor, Portugal);
Aleen Khan (Connectas, Colômbia); Agostinho Vieira (Colabora, Brasil); Indhira
Acosta (PolétikaRD, República Dominicana); Miguel Loor (Sembramedia, Equador).
A seguir, será apresentada a análise das respostas coletadas pelo questionário
enviado aos atores da rede composta para este estudo, a fim de definir se estes têm e
quais são os elos relacionais entre si e como eles interagem através da rede. Decidiu-se
não traduzir os depoimentos pela proximidade dos idiomas português e espanhol e pela
característica mestiça das redes compostas na América Latina.
Análise
Em relação à questão “Você e sua organização se consideram representantes de
algum setor da sociedade ou tem um público específico?”, as respostas variaram entre a
declaração de vínculo com atores da sociedade civil (Sembramedia e Connectas) e com
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
175
a área cultural (Gerador), com o alinhamento a pautas do terceiro setor (Colabora) e
com a percepção de autonomia editorial (Fumaça). Os demais não responderam à
pergunta adequadamente.
Somos una organización de la sociedad civil (Auyanet. Sembramedia,
2021);
Nuestro enfoque es publicar noticias originales, primicias, reportajes
que no tiene más nadie. Muy pocas veces publicamos la noticia que ya
está "trending". Como el editor (yo) soy de la fuente económica
originalmente muchas de esas primicias que nos llegan son de temas
económicos pero estamos abiertos a todo (Khan, Connectas, 2021);
Sim, da área cultural (Gerador, 2021);
Nosso foco é na cobertura de sustentabilidade, no sentido amplo.
Usamos os ODS da ONU como base para as nossas reportagens
(Vieira, Colabora, 2021);
O Fumaça é um órgão de comunicação social independente,
progressista e dissidente. Não representamos qualquer setor social
(Viegas, Fumaça, 2021);
Não nos consideramos representantes de ninguém. O nosso públicoalvo são os millennials mais novos (nascidos no final dos anos 80 e ao
longo dos anos 90) e geração Z (nascidos inícios dos anos 2000)
(Interruptor, 2021);
Somos un grupo de organizaciones y movimientos de la sociedad civil
que trabaja en diferentes ámbitos, comprendidos en: salud, vivienda y
hábitat, fiscalidad, seguridad ciudadana, transparencia, niñez y
adolescencia, género, y municipalidad. Nuestro fin es lograr una
sociedad más justa y menos desigual. (Acosta, PolétikaRD, 2021);
SembraMedia es una organización sin fines de lucro (Loor,
Sembramedia, 2021);
Nuestro lector tipo es el que calificamos como influyente. Aquella
persona con capacidad de influir en su entorno en cuestiones políticas,
dinero y ocio (Herranz, El Confidencial, 2021).
Em relação à questão “Você e sua organização tiveram ou ainda têm
suporte/apoio de outro meio?”, os embaixadores de Sembramedia, Connectas, Gerador e
El Confidencial declararam que tal questão não se aplica às suas instituições, sendo que
estes dois últimos ressaltaram a independência de seus projetos; Colabora respondeu
que
espera
gerar
associação
que
promova
outras
instituições
(Ajor,
em
desenvolvimento); Interruptor admitiu que há laços com outras entidades, ainda que
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
informalmente, e PolétikaRD afirmou seu vínculo com Acento; finalmente, Fumaça
esclareceu que foi impulsionada pela Open Society Foundations, que detém uma linha
de apoio ao jornalismo.
Creo que esta pregunta no aplica para Sembramedia (Ayuanet,
Sembramedia, 2021).
No (Khan, Connectas, 2021)
Não, não tivemos, nem requeremos esse apoio (Gerador, 2021).
O nome do Projeto é #Colabora e procuramos seguir esse espírito.
Trocamos muitas informações com outras organizações, como as
citadas acima e mais a Lupa, o Nexo e outras. No momento, estamos
discutindo a criação de uma organização de mídia independente no
Brasil que tem o nome provisório de Ajor. (Vieira, Colabora, 2021)
Não, mas a profissionalização do Fumaça foi financiada por uma
doação da Open Society Foundations. O contrato dessa bolsa e de
contribuições posteriores pode ser consultado. (Viegas, Fumaça, 2021)
Não formalmente (Interruptor, 2021).
Contamos con el apoyo del medio Acento, que publica nuestros
contenidos en su plataforma. Esto como parte de una alianza
estratégica con ese medio. (Acosta, PolétikaRD, 2021)
Esta pregunta no aplica en nuestro caso (Loor, Sembramedia, 2021).
De ninguno. Es un proyecto independiente, controlado por un grupo
de accionistas estable desde su origen, sin vinculación en otro grupo
mediático. (Herranz, El Confidencial, 2021).
176
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Figuras 1 e 2: nuvem de palavras obtida pela pergunta “Você e sua organização se consideram
representantes de algum setor da sociedade ou tem um público específico?”; e rede obtida com a
questão “Você e sua organização tiveram ou ainda têm suporte/apoio de outro meio?”.
Fonte: autoria própria
Em relação à questão “Você e sua organização têm atividades conjuntas com
outros meios?”, para reiterar o tema das interações entre meios digitais, Sembramedia e
Colabora ressaltaram seu papel de cluster ou hub em tal ecossistema; Gerador e Fumaça
destacaram a interatividade entre meios, na forma de encontros jornalísticos ou na
divisão de ambiente de trabalho, respectivamente; os demais meios não responderam
adequadamente à pergunta.
La organización que integro como consultor, Sembramedia, tiene
como objetivo fomentar la sostenibilidad del ecosistema de periodistas
emprendedores y nativos digitales en América Latina. Tenemos un
directorio con más de 700 medios, hacemos investigaciones inéditas
sobre este ecosistema para detectar problemas, tenemos una escuela
virtual y fondos para que estos medios puedan sostenerse de forma
financiera. Entre otros roles, también soy embajador en Uruguay, y mi
tarea es monitorear qué nuevos medios surgen e incluirlos en el
directorio (Auyanet, Sembramedia, 2021).
Brindamos apoyo a la comunidad de periodistas emprendedores de la
región a través de capacitación, oportunidades, educación, etc.” (Loor,
Sembramedia, 2021)
Con Connectas solamente en respuesta a una convocatoria. No es que
no estamos abiertos a colaboraciones con otros medios independientes
177
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
pero (sic) se alcanza más audiencia con colaboraciones con los medios
grandes, tradicionales (Khan, Connectas, 2021).
Sim, frequentemente fazemos encontros jornalísticos com outros
media independentes, como por exemplo as Conversas Impróprias
com o Shifter (Gerador, 2021).
Sim, desde o início do projeto, há cinco anos, trabalhamos em parceria
com outras iniciativas, como a Amazônia Real, a Agência Pública e a
Ponte Jornalismo. Inclusive, já ganhamos um Prêmio Vladimir Herzog
por um trabalho em parceria com essas organizações: a reportagem
"Sem Direitos" (Vieira, Colabora, 2021).
O Fumaça partilha a sua redação, o Disjuntor, com outro órgão
independente, a Divergente, com que colaboramos pontualmente. A
discussão e partilha de ideias é benéfica para o nosso trabalho (Viegas,
Fumaça, 2021).
Em relação à questão “Você e sua organização publicam regularmente em outros
meios além do seu próprio?”, todos os meios responderam que publica em plataformas
próprias, e especificamente nelas Sembramedia, Gerador e El Confidencial; Connectas
produz para outros meios; Colabora oferece conteúdo a parceiros; Fumaça e Interruptor
disponibilizam produção em plataformas de podcast, parceiros como Comunidade
Cultura e Arte e a Rádio Universitária do Minho, além de seus canais próprios;
PolétikaRD ressaltou a sinergia com o portal Acento, além dos sites Diario Libre e
Hoy.
Todo lo que generamos se publica en Facebook y Twitter (Ayuanet,
Sembramedia, 2021);
Sí, es una forma de financiamiento para nosotros, vender reportajes,
noticias y "leads" (pistas) a otros medios (Khan, Connectas, 2021);
Não, só no nosso (Gerador, 2021);
Regularmente, não. Mas o nosso conteúdo é aberto aos parceiros.
(Vieira, Colabora, 2021);
Os nossos métodos de distribuição principais são o feed de podcast do
Fumaça e o nosso website. No entanto, temos uma política de
republicação aberta, permitindo que qualquer pessoa republique o
nosso trabalho, logo que adequadamente creditado e sem sofrer
modificações. Vários órgãos o fazem, como a Comunidade Cultura e
Arte e a Rádio Universitária do Minho (Viegas, Fumaça, 2021);
Nós publicamos no nosso site e em formato podcast (disponível no
nosso site e plataformas habituais de podcast) (Interruptor, 2021);
178
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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Acento. Por igual, otros medios como Diario Libre y Hoy han
publicado nuestras notas de prensa (Acosta, PolétikaRD, 2021);
SembraMedia tiene un blog dedicado a brindar información para
periodistas emprendedores y una sección donde se publican casos de
estudios (Loor, Sembramedia, 2021);
En ninguno otro, aunque hay periodistas de El Confidencial que
participan en tertulias o programas como colaboradores (Herranz, El
Confidencial, 2021).
Figuras 3 e 4 – rede obtida com a questão “Você e sua organização têm atividades conjuntas
com outros meios?”; e rede obtida com a pergunta “Você e sua organização publicam
regularmente em outros meios além do seu próprio?”.
Fonte: Autoria própria
Em relação à questão “Pode divulgar alguns dados/perfil dos usuários das
plataformas de sua organização?”, a maioria dos respondentes sugeriu buscar os dados
nas páginas das instituições ou nas das redes sociais, portanto, que se coletasse os dados
segundo ferramentas digitais.
Já PolétikaRD esclareceu que seus usuários são jovens de classe média,
residentes na República Dominicana (detalhe pertinente dada a grande imigração jovem
na América Central): “O nosso público-alvo são os millennials mais novos (nascidos no
final dos anos 80 e ao longo dos anos 90) e geração Z (nascidos inícios dos anos 2000)”
(ACOSTA, 2021).
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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Finalmente, Carlos Herranz afirmou que os usuários gerados pelas plataformas
sociais de El Confidencial estão em torno de 33% dos acessos totais, número parecido à
porcentagem procedente do motor de busca do Google: “Nuestro lector tipo es el que
calificamos como influyente. Aquella persona con capacidad de influir en su entorno en
cuestiones políticas, dinero y ocio” (HERRANZ, 2021).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A rede artificial (composta apenas para este estudo) conta com ao menos quatro
elos originais: “Embajadores de Sembramedia”, o nó modal dos atores hispanoamericanos; a lista “Mapa do Jornalismo Independente”, o site “Mediaalternativos.pt”,
nós para meios de idioma português no Brasil e em Portugal, respectivamente; e o
relatório “Digital News Report Spain 2020”, pelo qual chegou-se ao meio espanhol,
mas que não foi inserido no grafo por não se tratar de um meio nativo digital como os
demais elos.
A maior parte das interações do grafo elaborado para este texto é de natureza
bilateral, ou uma rede preponderantemente composta por díades. Algumas dessas
relações têm força dirigida para fora da rede composta, para atores não investigados
neste trabalho (ICIJ, Agência Pública, Acento, “meios tradicionais”, Shifter,
Divergente, e Disjuntor). Trata-se de uma rede composta por um número considerável
de atores, com arcos bidirecionais e poucos nós, dada a potencialidade do ecossistema.
Sembramedia se apresenta como o grande cluster/hub da rede, já que nasce
configurada justamente para o desenvolvimento e troca com outras instituições
jornalísticas. Colabora, também com esta função, faz papel semelhante no cenário
brasileiro, mas como papel de nó, mais restrito às relações construídas por atividades
comuns. De forma semelhante, outros atores esclareceram suas formas de interação em
ambiente digital, com destaque a PolétikaRD, com um processo produtivo idealizado
junto ao parceiro Acento.
Comprovou-se que tais atores são representantes da sociedade civil e terceiro
setor imersos na cibercultura e/ou são representantes “puro sangue” do ciberjornalismo
ou nativos digitais, com missão e objetivos contidos no campo da comunicação social.
A maioria das instituições são projetos originais, criados sem auxílio de outra entidade
180
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
da rede. Outra característica claramente estimulada pela cibercultura do ecossistema
digital é o conhecimento dos públicos atendidos, dada a possibilidade de métrica de
consumo que as ferramentas digitais permitem aos novos meios.
Ainda há muito potencial para aumentar a interação entre os meios nativos
digitais, seja entre os membros apresentados neste texto, seja com outros atores. Sabese, contudo, que a falta de tempo, de mão-de-obra disponível e de capital para
crescimento das iniciativas impede que as instituições possam se dedicar a objetivos que
não sejam sua própria missão. Indício disso é a quantidade de atividades conjuntas em
nossa amostra ser baixa, mas a disponibilidade de conteúdos produzidos para parceiros
ser alta, demonstrando a intenção de compartilhamento entre os atores.
É inegável, portanto, que nossa amostra tem características do campo da
comunicação tradicional e os dilemas do atual momento do ofício carreira, imerso em
ambientes sociotécnicos e em adaptação aos fenômenos pós-modernos.
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CANAVILHAS, João. Nuevos medios, nuevo ecosistema. //Profesional de la
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
ARTE, CULTURA E TURISMO – BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO/
BRASIL: PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA HUMANIDADE
Fábia Holanda de Brito1
INTRODUÇÃO
As festas juninas são festejadas em praticamente todo o Brasil, em maior
incidência na região Nordeste, a qual o estado do Maranhão está inserido. Na capital
maranhense, São Luís, a principal atração nos arraiais, é o bumba-meu-boi, em sua
variedade de ritmos, sotaques, coreografias e indumentárias, percebida pela
programação oficial de órgãos do estado e prefeitura - o boi está presente em maior
quantidade de apresentação.
Festejar o mês de junho é comum, no Nordeste, ou seja, as festas juninas
fazem parte do calendário local, que celebram os santos católicos Santo Antonio (13 de
junho), São João (24 de junho), São Pedro (29 de junho) e São Marçal (30 de junho)
este último exclusivo de São Luís e dedicado aos brincantes de bumba-meu-boi.
Neste cenário temos comidas típicas, roupas e acessórios, quadrilhas e outras
danças que lembram o interior. Todavia, no Maranhão quem comanda a festa é o Boi.
Nas diversas cidades maranhenses, principalmente a capital, recebe muitos visitantes
que conhecem e consome a cultura local, trazendo visibilidade, movimentação ao
comércio em geral e resiliência aos grupos tradicionais que (con) vivem com a dinâmica
cultural.
A proposta do capítulo é demonstrar como os festejos juninos e o bumba-meuboi são responsáveis por atender a indústria cultural e turística, ao mesmo tempo esta
manifestação tradicional, tornando-se um dos construtores de identidade do
maranhense, principalmente na capital. Além de Patrimônio da Humanidade, que
adiante será explicitado.
1
Doutoranda em Processos e Manifestações Culturais. Mestra em Bens Culturais e Projetos Sociais.
Professora EBTT de História do IFMA (Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão e da
SEDUC/MA.
184
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
De acordo com o IPHAN, cidade de São Luís foi reconhecida como
Patrimônio Cultural Mundial pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura) em 1997, “por aportar o testemunho de uma tradição
cultural rica e diversificada, além de constituir um excepcional exemplo de cidade
colonial portuguesa, com traçado preservado e conjunto arquitetônico representativo”.
Aliado ao potencial turístico das festas juninas em São Luís a partir do bumba-meu-boi,
que ao longo dos anos tornou-se o principal fator de identidade do maranhense, mola
propulsora no turismo.
Convidamos você leitor (a) a conhecer esta manifestação popular que está
vinculado diretamente à imagem territorial e identitária do maranhense que alavanca o
turismo dentro e fora da capital, recebendo incentivos da esfera pública e órgãos
privados. Também é sinônimo de orgulho e aglutinação dos nativos. Sendo que o maior
esforço, dedicação e trabalho são da comunidade, dos brincantes.
A partir de múltiplos olhares (brincante, nativa e pesquisadora), trazemos
contribuições desta manifestação. Pedimos licença para colocar impressões no texto e
convidamos você a pensar, interagir com este evento regional/nacional/mundial como
fonte inesgotável de mediação entre o poder público, a comunidade e pesquisadores. Se
possível venha conhecer o bumba-meu-boi.
Aqui as denominações usadas para expressar o trabalho, será bumba-meu-boi,
boi, brincadeira, brincantes, arraial que é o local onde acontecem as apresentações.
Neste estudo trataremos acerca do bumba- meu-boi em São Luís do Maranhão nos
festejos juninos, tendo os grupos como atração turística na cidade, com o aumento de
visitantes e propagandas, dando visibilidade às apresentações e surgimento de mais
grupos de bois, tornando-os a principal atração.
É sabido que a maioria dos turistas que chegam ao Maranhão vem a negócios,
entretanto, focaremos na vinda do mesmo, no período das festas juninas e no seu maior
atrativo – o boi. Este folguedo é um misto de festa profana com religiosidade católica e
afro-brasileira, como o tambor de mina. Estes sujeitos são uma construção sócia
histórica cultural, o imaginário por eles produzido são as representações de
comportamentos e significados que comungam (coloco-me também como nativa a fazer
parte dessa dinâmica).
185
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Assim, a pesquisa qualitativa que se justifica pelo fato do objeto em foco, é
também objeto da realidade compartilhada na cidade, sendo assim, objetos da pesquisa
social fazem parte da realidade social construída ao longo do tempo. Uma vez que,
utilizamos a contextualização simbólica do boi, sentimentos e compartilhamentos para
narrar este estudo.
Ao longo da história, em cada localidade em que o bumba-meu-boi aparece
ganha características próprias, o que ocorreu também no Maranhão, surgindo assim
classificações de ritmos e característico afro indígena, denominados sotaques, todavia,
os grupos não se reconhecem totalmente, com esta classificação, por regra. Adiante
serão explicados os sotaques. Sotaque é ritmo, estilo e características dos grupos.
A festa do boi é uma das mais conhecidas no Brasil e recebe nomes diferentes
de acordo com a localidade. No Amazonas, por exemplo, chama-se Boi Bumbá, no Rio
de Janeiro, boi de Mamão e assim por diante. No caso do Maranhão, é bumba- meu-boi.
Historicamente o boi é um auto dramático, teatral, que por muito tempo foi representado
em campo aberto ou em residências particulares, durante o período natalino, como
referência das festividades cristãs medievais, que homenageavam o nascimento de
Cristo. Já no estado, as festividades são no mês de junho e se estendem o ano todo com
apresentações avulsas, de acordo com contratos.
O boi tornou-se um fator identitário para o maranhense, onde os grupos
crescem, ou seja, aparecem a cada ano, principalmente na capital. Um levantamento da
Secretaria de Cultura identificou 450 grupos de Bumba-meu-boi em 70 dos 217
municípios maranhenses. A festa junina é pensada, planejada e organizada interna e
externamente. Isso demonstra como esta manifestação é apreciada, possui múltiplos
significados e signos para a população.
O BUMBA-MEU-BOI, CORPOS, PERFORMANCE E ESPAÇOS CULTURAIS
O estado do Maranhão encontra-se na região Nordeste, faz divisa com os
estados do Piauí, Tocantins e Pará, além do oceano Atlântico. Estabelecido entre a
região Norte e Nordeste, (também conhecido como meio Norte) possuindo
características das duas regiões, até mesmo cultural. É o segundo maior estado do
186
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Nordeste e o oitavo do Brasil; sua capital é São Luís do Maranhão, a cidade mais
populosa.
No Maranhão, as primeiras festas de bumba-meu-boi são registradas no século
XVIII, período de ocupação do sul, pelo ciclo do gado. É possível dizer que foi nesse
período que surgiu a lenda de mãe Catirina e pai Francisco que vai pautar o enredo,
personagens da festa ou brincadeira. Assim, ao longo do enredo, vão surgindo outros
personagens para compor “a lenda de Catirina” ou o auto do bumba-meu-boi, como
índias/índios, caboclos, vaqueiros, pajés, fazendeiro e outros.
Assim, o auto constitui uma representação cênica que assume dimensões
diferentes que são descritas pelos próprios brincantes e organizadores, por isso assume
em cada localidade sua especificidade; sendo, no entanto, o tema central mantido: as
relações entre Catirina, Chico e o boi.
Esta uma manifestação cultural performática faz parte do folguedo, que conta
uma história/enredo onde cada indivíduo performático utiliza seus corpos e adereços
como simbologia da sociedade que faz parte. Sendo assim, os personagens são sujeitos
conhecidos pela população, seja indígena, vaqueiros, homem e mulher do campo, além
dos animais que constituem a localidade e cotidiano ali estabelecido.
A identificação indivíduo/personagem no folclore pode ser um dos elementos
que torne com que o boi seja tão popular. As figuras/sujeitos dentro da comunidade tem
certo prestígio, seja como brincante ou parte da diretoria do grupo. Cada um tem a sua
performance e status.
A abordagem sobre performance de acordo com Bauman (2008) identifica
três na qual se encaixa no trabalho é da Antropologia, ele explica que a performance
como um evento de tipo especial e marcado, como rituais, festivais, feiras, espetáculos,
mercados, e assim por diante. O boi se encaixa perfeitamente nesta performance.
A concepção central nesta abordagem é que as performances culturais
são ocasiões nas quais os significados e valores mais profundos de
uma sociedade recebem forma simbólica, são corporificados,
performatizados e exibidos perante uma audiência para contemplação,
manipulação, intensificação ou experimentação. (BAUMAN, 2008,
03).
O Bumba-meu-boi foi registrado pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional) como bem imaterial da cultura brasileira em 2011. O
187
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
registro, como define o IPHAN (2011), é a identificação e produção de conhecimento
sobre o bem cultural pelos meios técnicos mais adequados e amplamente acessíveis ao
público, permitindo a continuidade dessa forma de patrimônio.
Sem dúvida é a manifestação cultural mais popular para o maranhense, basta
ver a programação dos locais da apresentação, o boi impera, em maior quantidade,
aguardado por uma multidão, principalmente aqueles grupos que possuem mais
admiradores/seguidores, seja do sotaque de matraca, orquestra ou outro. Esta
brincadeira, entretanto, já foi marginalizada e, ao longo do tempo, tornou-se um dos
maiores referenciais de identidade cultural do estado.
Os sotaques ou sonoridades de bumba-meu-boi mais conhecidos no estado são:
zabumba, pandeirões, matraca, baixada, costa de mão e orquestra. Diferenciam-se
também pela coreografia, instrumentos e indumentárias. A força e a simbologia desse
folguedo popular são demonstradas, pela sua abrangência em grande parte do território
estadual, constituindo traço identitário de diversas comunidades e tem no mês de junho
seu auge.
Em 2019, o complexo cultural do bumba-meu-boi foi reconhecido como
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Desta forma, “a possibilidade de
partilharmos patrimônios culturais como os membros da nossa sociedade não nos
devem iludir a respeito das inúmeras descontinuidades e diferenças provindas de
trajetórias, experiências e vivências específicas”. (Velho, 1980, p. 16).
O envolvimento da comunidade boieira foi fator primordial para este
reconhecimento. Como transito entre grupos folclóricos, captamos diálogos dos
dirigentes: “não é fácil e barato colocar uma brincadeira na rua, são muitas despesas,
fazemos por amor e não por lucro”. Em vista disto, uma rede comunitária se organiza
sociabilizando saberes e afazeres. A tradição cultural renova-se e mantém-se.
Com o advento do turismo cultural, a cidade de São Luís, demais cidades
maranhenses, com seus atrativos naturais e históricos, explora também, a cultura local.
Nesse sentido, o folguedo do Bumba-meu-boi é inserido no circuito. As manifestações
culturais passam a estabelecer um diálogo estreito com o mercado de bens simbólicos,
nos espaços de produção e consumo turístico. De marginal, o boi passa a ser visto como
patrimônio regional e nacional, e traz recursos e reconhecimento para todo o estado.
188
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Nesse sentido afirmamos que o boi se destaca como uma expressão da cultura
popular maranhense como uma marca ativa e presente no cotidiano local, como afirma
Ferretti (2011, p.19): “o boi é a maior festividade da cultura popular local e atrai grande
número de participantes, envolvendo suas vidas durante boa parte do ano”.
O termo sotaque no bumba-meu-boi indica o estilo rítmico, a forma de “tocar”,
“dançar”, “brincar”, as especificidades nas indumentárias, nos personagens, criando
características próprias a cada “sotaque”, que os diferenciam entre si. Para a
pesquisadora Michol Carvalho, “representam os estilos, as formas, as expressões
predominantes nos grupos de bumbas, enfim, a sua maneira de ser.” (Carvalho, 1995,
p.47). Acerca da afirmação, salienta-se que.
No Maranhão, o Bumba-meu-boi é uma referência cultural presente
em todo o Estado, com variações regionais. Um levantamento
realizado pela Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional no Maranhão identificou 450 grupos de Bumbameu-boi em 70 dos 217 municípios maranhenses. Apesar de não
refletir a realidade global do Estado, os dados obtidos demonstram a
importância dessa expressão cultural e a intensidade com que é vivida
pelos maranhenses. Assim, a variedade de estilos foge à categorização
feita por pesquisadores do Bumba-meu-boi do Maranhão que
convencionou uma divisão dos grupos em cinco sotaques: Ilha,
Guimarães, Baixada, Cururupu e Orquestra. (IPHAN, 2011, p. 25).
O boi se organiza nas etapas ou ciclos: ensaio, batizado, apresentações e morte
do boi. Antes e durante a etapa ensaio, surgem às ideias, personagens, toadas e tudo
mais vão ganhando vida. Os brincantes no decorrer dos ensaios vão moldando os seus
personagens, sejam eles pessoas ou animal, caso do boi, burrinha, cazumbá e outros que
fazem parte do enredo. O encenar e/ou a representação cômica existente na festa do boi
é denominada de auto. Remete-nos ao roteiro básico, à história original ou à história
tradicional, com pitadas de modernidade em alguns casos.
Como falei anteriormente, também sou brincante e há 29 anos me transformo
em uma vaqueira (campeadora) que conduz o boi pelo terreiro, pelo arraial e este
juntamente com os demais personagens, brinca e alegra São João, onde nativos e
turistas se aglomeram as noites para assistir diversos grupos de manifestação cultural,
além do boi. Nestes locais de apresentação buscamos observar, registrar e conversas
com segmentos diferentes como brincantes, público e turista para saber sua recepção e
percepção da festa popular.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
O deslocamento dos brincantes e público para os espaços festivos - o arraial
torna-se um evento e transforma a cidade, com aumento de carros, principalmente à
noite, vendedores ambulantes, ônibus contratados pelas brincadeiras, cheiro de pólvora
com as bombinhas, muitos enfeites e comidas regionais completam este cenário. Os
arraiais, seus espetáculos formam e tem público garantido durante o mês de junho. Cada
território, sujeito e brincadeira performatiza sua parcela de participação.
As performances culturais são profundamente reflexivas, na medida
em que são formas culturais sobre a cultura, formas sociais sobre a
sociedade; elas são memoráveis e replicáveis, servindo assim como
mecanismos de continuidade cultural; e são notavelmente eficazes em
constituir
públicos,
disseminar
conhecimento,
elicitar
comprometimentos e envolvimentos participativos, levando as pessoas
à ação, e mais. (BAUMANN, 2008, p.04).
A cultura é um fator vital para estabelecimento e diferenciação de um povo
para outro, caso este, do ludovicense/maranhense, a formação da identidade quanto
lugar de pertença. Estes constroem seus personagens com as indumentárias, gestual e
encenam. Sendo assim, , os personagens são sujeitos da população, seja indígena,
afrodescendente, trabalhador, homem e mulher do campo, além dos animais (boi,
burrinha) que constituem a localidade e cotidiano ali estabelecido e seres místicos. Os
espetáculos promovidos no mês de junho fazem parte de nosso cotidiano, enquanto
nativos, também experimentamos sensações a busca pelo prazer de conhecer e consumir
outras culturas, mesmo dentro do país.
Desta forma, as festas juninas trazem toda uma preparação da cidade que vai
do íntimo das famílias em usar adereços, compartilhar roupas parecidas ou iguais,
comungando sentimentos e uma preparação para assistir aos festejos juninos à noite. Há
toda uma preparação prévia para se assistir aos festejos juninos. Esta preparação vai
desde ver a programação, escolher o local, roupas a vestir, quem vai dirigir o carro e
outros. As festas propiciam um momento singular, de feriado, final de semana, ou seja,
algo excepcional.
O turismo em São Luís no período junino
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Na década de 1970, a capital sofreu um intenso processo de urbanização. Como
em todo espaço urbano, as mudanças ocorridas na geografia da cidade São Luís
interferem e interagem na vida de seus moradores. Surgem novas formas de relação
entre as pessoas, novos vínculos com o espaço de moradia, novas abordagens da cultura
local, novas fontes de renda e acompanhando o restante do país, surge oportunidade nos
setores de comércio e serviços, onde se destaca o turismo.
A cidade vem crescendo em termos de instalação de empresas, população,
prédios e tudo que tange a uma cidade urbana/industrial, ainda preservam e trazem
consigo a cultura popular afro indígena em confluência com seu tempo, portanto a
continuidade, as transformações convivendo e as manifestações culturais constituindo
um elo entre esses mundos, como afirma Velho (2003, p.27) assim, “na sociedade
complexa, particularmente, a coexistência de diferentes mundos constitui a sua própria
dinâmica”.
Nitidamente, percebe-se que São Luís, nas festas juninas, enfeita-se, fica mais
colorida, o comércio se diversifica para atender a tendência do período como roupas e
adereços com motivos juninos, camisetas, chapéus bordados de vaqueiros, brincos e
tudo que lembre fogueira, boi, bandeirolas e os santos festejados. A cidade brilha com
os enfeites e paira a festa seja na escola, na comunidade ou nos arraiais espalhados nos
bairros.
Os agentes envolvidos com a produção dessa manifestação de cultura popular,
os brincantes e público, com o crescimento do turismo na capital, perceberam uma
oportunidade de agregar valor à cultura local, atrair mais visitantes, gerar receita e
manter acesa a chama da tradição local. Mesmo que as mudanças provocadas pelo
turismo possam causar uma sensação de saudosismo, em relação à forma com que eram
feitas as brincadeiras de Bumba-meu-boi, em entrevistas, brincantes e público assumem
que o turismo impulsiona e dá certo “orgulho de mostrar o que é nosso”.
O boi como patrimônio vem de uma trajetória de lutas e conflitos de seus
sujeitos/brincantes. Vale salientar que com a patrimonialização e salvaguarda a
brincadeira local, comunitária tem adequações e interferências para atender uma
demanda, no entanto, não a modifica a ponto de perder seus símbolos e sentidos.
A promoção turística oficial do boi contempla a dimensão social, cultural e
econômica com o estabelecimento de uma rede de ações que intervenham nas
191
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
192
manifestações populares tradicionais, e também promovam integração entre todos os
segmentos sociais que reproduzem e reinventam suas tradições.
No período junino, São Luís, transforma-se em um grande teatro. O teatro no
Bumba-meu-boi do Maranhão é o “teatro do Boi” na forma em que na brincadeira ele se
organize, inclusive territorialmente, afirma Borralho (2002, p.26). A festividade do boi
tem a sua máxima no período junino que performatiza um grande arraial, a vida no
campo estilizada, sujeitos que incorporam personagens rurais e se montam com suas
indumentárias para (re) criar o auto do bumba-meu-boi.
Vale ressaltar que as festas juninas também é uma festa religiosa, há o
pagamento de promessas por graças recebidas, simpatias que são dedicadas aos santos,
como a Santo Antônio, por ser conhecido como o “casamenteiro”, um sincretismo
religioso onde o catolicismo e de matriz africana fundem-se em homenagem a entidades
e Santos. Brinca-se em homenagem a eles.
Na Antropologia esse olhar ao “nativo e o seu natural” causa um
estranhamento e torna-se objeto de análise do antropólogo, estranhamento também ao
nativo com certas práticas culturais, sensações e percepções as quais também
compartilho. O boi artefato vive um ritual até mesmo de batismo e outros, sentidos
naturalizados aos maranhenses e exótico/diferente/espetáculo a quem assiste.
Daí a
importância de procurar perceber “como os indivíduos da sociedade investigada
constroem e definem a sua realidade, como articulam e que peso relativo têm os fatos
que vivenciam”. (VELHO, 1980, p.16).
A cultura pulsante e diversificada que há na localidade é mais que mola
propulsora para escrever e descrever ritos, sutilezas e características da sociedade
ludovicense, o qual Thompson (2011, p.165) afirma que o estudo dos fenômenos
culturais pode ser pensado como o estudo do mundo sócio histórico constituído como
um campo de significados. Com a pesquisa o meu “eu” percebeu o “outro” e em alguns
pontos refletiu-se nele. Ao mostrar o performático nas festas juninas, o sentido que faz
aos de “cá”, que transmite espetáculo para os de “lá” em uma troca cultural.
Os grupos folclóricos de cultura popular iniciam seus ensaios após o carnaval e os
intensificam no mês de maio. É comum nos bairros, praças e associações de moradores
ouvirem sons dos ensaios, falas, vozes que vão se entendendo e melhorando a
coreografia para o mês de junho, o tão aguardado período junino. A rotina nos fins de
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
193
semana é de preparação, danças e brincadeiras. Geralmente a comunidade participa
ativamente dos preparativos ou torce por seu grupo que representa a localidade. Após os
ensaios vem o batizado do boi (o padre dá as bênçãos ao grupo, ou rezadeiras), então as
apresentações até a finalização que é morte do boi, realizada meses depois.
Por conseguinte, o Bumba-meu-boi redefine-se na lógica de produção e consumo
cultural, destacando-se como um elemento central de atratividade turística para a cidade
de São Luís, dialoga com outros circuitos culturais e deles se retroalimenta, num
processo de tradução da experiência. Tais fronteiras são possibilidades de contato com o
que está do outro lado, não significam limites, nem separações Agregam, assim,
características que promovem a cidade e o estado, possibilitando ao turista o contato
com uma gama de manifestações culturais, culinária típica, belezas naturais e
patrimônio histórico local.
Por fim, as experiências vivenciadas, observações e pesquisas percebem como
o
boi
transmite
alegria,
identidade,
territorialidade
e
orgulho
de
quem
observa/acompanha e de quem é brincante da brincadeira. São representações da
sociedade aqui especificada, constituindo identidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS – FIM DA FESTA
O estudo proposto trouxe como temática o bumba-meu-boi e o São João do
Maranhão, responsável por atender a indústria cultural e turística ao mesmo tempo em
que o folguedo tornou-se um dos construtores de identidade do maranhense,
principalmente na capital.
Diante do que foi exposto o turismo cultural no panorama apresentado, o
consumo do bumba-meu-boi pelos turistas beneficiaria todos os envolvidos, aos grupos
de bois, a comunidade e aos setores públicos/privados dentro e fora da capital. Não
existe uma inocência por parte dos fazedores de cultura que tiram “proveito” para
visibilizar seu grupo, vender DVD, camisas personalizadas, indumentárias e tudo que
gere renda e auxilie nos custos com a brincadeira. A cidade patrimônio, os bens
culturais são visibilizados e consumidos.
O São João no Nordeste é considerado um fato social. Em São Luís, este
período é planejado, promovido e aguardado pelos fazedores de cultura e comunidade
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
em geral. Notadamente, novos grupos de bumba-meu-boi surgem, em média temos 500
grupos de bois no estado de sotaques diferentes. Este fato demonstra que a manifestação
é dinâmica e corrobora para a identidade local.
Diante da dinâmica das festas e dos espaços transformados para tal finalidade
adquirirem formato de espetáculos, atraindo grande número de público. Em suma, a
valorização do Bumba-meu-boi ocorreu por um processo de institucionalização e
regulamentação por parte do estado, em que tal promoção está vinculada também, ao
turismo. Assim, as brincadeiras típicas do estado passaram a fazer parte da indústria
cultural, verdadeiros espetáculos.
Com o incremento do turismo, o Bumba-meu-boi é elevado ao patamar
máximo de consumo e de visibilidade por mídias, governo e patrocinadores. A
visibilidade dos festejos juninos e o apreço pelo bumba-meu-boi é uma das
características recorrentes das propagandas que vendem o São João no Maranhão,
mostrando através de construções históricas, mercadológicas e simbólicas que as festas
juninas giram em torno do boi, toda a sua complexidade de cores, sons, coreografias e
bordados.
As propagandas veiculadas nos meios de comunicação nos remetem sempre a
imagem do boi e toda a sua dimensão. Como se o visitante ao se deslocar no Maranhão
tem a “necessidade” ou é “atraído” a conhecer a manifestação que cultua o boi e este é o
maior representante do estado. Assim, as camadas populares outrora perseguidas, são
valorizadas e visibilizadas a partir do seu fazer cultural.
Considera-se que o fenômeno de transformar manifestações culturais
populares em patrimônio em bem consumível traz conflitos, reconhecimento e batalha
simbólica. Os sujeitos/brincantes e a comunidade continuam com sua maneira de fazer a
brincadeira, se reinventando sem deixar de ser manter sua tradição, memória e forma de
fazer a brincadeira do bumba-meu-boi.
O turismo relatado em entrevistas e conversas não é considerado malefício, a
brincadeira se renova a cada ano, cultura é dinâmica com a festa popular que a cada ano
ocorre é um evento que cria o sentimento de pertencimento. A brincadeira é apreciada
pelo público nativo ou não, que participa em cada um deles de uma forma específica,
em todas as fases do ciclo da festa (ensaio, batizado, apresentação e morte)
notadamente, na circulação pelos arraiais.
194
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Ao utilizar a etnografia nos espaços festivos no período junino, possibilitou
considerar sons, escutas, imagens, performances e dinâmicas da festa e da cidade
aproximando a realidade vivida pelos nativos, comunidade e visitantes. A experiência
resultou em um reflexo de “eu” no “outro”, percebi ritos performáticos compartilhados
com indivíduos daquele espaço festivo.
Não só a manifestação cultural do boi nos identificava, mas todo o cenário ali
presente. Portanto, o espaço do arraial configura-se pela representação simbólica e as
relações de sons com a apropriação dos espaço/arraial e as práticas sociais ali
compartilhadas.
Como brincante e pesquisadora a percepção da brincadeira consumida pelos
visitantes e o seu direcionamento para este fim. Mesmo assim, a brincadeira no seio da
comunidade ainda ressoa identidades e diferencia-se do “boi de casa”, aquele que
trazemos significados, brincadeira e prática religiosa do “boi da rua”, este o espetáculo
ao máximo, ao apogeu de meses de ensaios, idealização e confecção das indumentárias.
Com base no que foi apresentado o bumba-meu-boi tornou-se o principal
expoente de atração para os visitantes que chegam ao estado, principalmente na capital.
Resta-nos refletirmos os impactos desse consumo cultural as comunidades e a forma de
fazer dos populares que tenha sentidos a sua identidade construídas a partir de seu
imaginário e até que ponto os benefícios e malefícios do consumo cultural desta prática
- a brincadeira do boi, resinificará na sociedade maranhense.
A sociedade no todo é mais do que uma sociedade em movimento, observa-se
construções sociais relacionadas com a construção simbólica sobre o real, no qual
sujeitos sócio histórico dão sentido ao mundo, construindo identidade social. É São
João, brincadeiras, brincantes se encontram e forma um grande espetáculo chamado
festas juninas, referência aos nativos, atrativo para visitantes.
A análise realizada neste trabalho aponta quando assistimos uma apresentação
de bumba-meu-boi, mesmo não conhecendo os sotaques que os define e diferencia,
perceberam as expressões no rosto, os gestos, o cantar, sorrisos, e coreografias que
mostram que o gestual popular é delineado, relacionado à produção histórico-cultural da
comunidade. O corpo fala a linguagem do popular. O boi é memória, pertença,
território, gerador de capital e de certa forma orgulho.
195
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Os resultados da pesquisa foram uma experiência única enriquecedora,
constatado que a sociedade ludovicense se traduz em uma gama de processos históricos
e refletivos na cultura. Com padrões e sujeitos sociais de consequências políticas,
arranjos e obstáculos que impõem estratégias de aproximação, caso as festas juninas.
Finalizando, o objetivo foi alcançado, a objetividade tanto quanto da subjetividade
foram pautados e presentes. Espero que sirva para outros pesquisadores aprofundarem
nas lacunas e discussões.
Assim, conclui-se que, quando os sujeitos históricos, nas suas interações, com
a cultura, contribuem para a criação de padrões de sociabilidade compartilhados. Com
as inserções realizadas em campo constatamos o universo sócio cultural e simbólico que
remete a identidades e territórios que se sobrepõem nas festas juninas, atraindo turistas e
promovendo economicamente a todos os envolvidos, ou seja, os fazedores de cultura.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Richard . A poética do mercado público: gritos de vendedores no México e
em Cuba. Antropologia em primeira mão, v.103. Florianópolis: PPGAS/UFSC, 2008.
BORRALHO, Tácito. Freire. O teatro do boi no Maranhão – brincadeira, ritual,
enredo, gestos e movimentos. Tese (Doutorado) Escola de Comunicação e Arte.
Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, 2002.
CARVALHO, Maria Michol Pinho de. Matracas que desafiam o tempo: é o bumbameu-boi do Maranhão, um estudo da tradição/modernidade na cultura popular. São
Luís:[s.n.].Brasil.1995.
FERRETTI, Sergio. Bumba-meu-boi e religiosidade no Maranhão. In: CUNHA, Stela
de Almeida (org.). Boi de zabumba é a nossa tradição. São Luís: SETAGRAF, 2011.
IPHAN. Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão. Dossiê do registro como
Patrimônio Cultural do Brasil / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
São Luís: Iphan/MA, 2011.
THOMPSON. John. B. Ideologia e cultura moderna. Editora Vozes. (9ª ed.). Rio de
Janeiro. Petrópolis. Brasil.2011
VELHO, Gilberto. (Org.). O Desafio da Cidade: novas perspectivas da antropologia
brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus. V. 1. 1980, 180 p.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas (3a
ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2003.
196
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
SOY LOCO POR TI: A AMÉRICA LATINA COMO CONCEITO E SUAS
RESSIGNIFICAÇÕES NAS COMPOSIÇÕES MUSICAIS (1945 – 2020)
Günther Richter Mros1
Rafaella Chueri Abreu Rodrigues2
Pedro Quinteiro Uberti3
INTRODUÇÃO
O conceito de América Latina surgiu no Século XIX, em parte como obra da
geopolítica francesa, em parte como elemento de coesão cultural dos povos em
contraposição à América anglófona. No início do Século XX essa identidade se reforçou
sob as luzes da civilisation française em oposição à barbárie germânica (MROS, 2019),
quando, durante a Grande Guerra, as simpatias latino-americanas se voltaram para a
França e seus aliados. Já durante a Segunda Guerra Mundial, a América Latina se viu
novamente dividida sob dois polos culturais, ou seja, entre os germanófilos e os panamericanistas pró-Estados Unidos (MOURA, 2012). Este capítulo de livro estuda as
constantes ressignificações da identidade latino-americana após esse período das duas
Guerras Mundiais por meio das letras de músicas, desde canções ufanistas das virtudes
do povo, passando pelas canções de protesto, pelo papel destinado aos latinoamericanos na Guerra Fria — de novo entre dois polos —, pela pobreza endêmica e pela
violência urbana, até chegarem à massificação identitária de tempos mais recentes.
A música, como elemento de identificação cultural, tem sido estudada no âmbito
das diversas ciências sociais e humanas. É proposta aqui uma reflexão sobre algumas
letras de artistas latino-americanos que representam caminhos e descaminhos da
ressignificação do conceito de América Latina. Cabe ressaltar, todavia, que não houve a
Prof. Dr. Günther Richter Mros – Coordenador do Grupo de Estudos em Instituições e Processos
Decisórios nas Relações Internacionais (GEIPRI), vinculado ao DGP/CNPq, e professor adjunto no
Departamento de Economia e Relações Internacionais (DERI) na Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). E-mail: gunther.mros@ufsm.br.
2
Rafaella Chueri Abreu Rodrigues (graduanda de Relações Internacionais do 7º semestre) –
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: rafachueri@gmail.com.
3
Pedro Quinteiro Uberti (graduando de Relações Internacionais do 7º semestre) – Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM). E-mail: pedro.uberti@gmail.com.
1
197
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
intenção, nesse estudo, de esgotar repertórios seja de artistas ou de países em específico,
uma vez que esta tarefa seria inexequível para uma pesquisa com jovens historiadores.
O caminho escolhido, portanto, foi o de elencar músicas e artistas que representaram
elementos conceituais, que pudessem ser sistematizados em uma teia semântica para
construção de narrativa histórica, acerca da ressignificação do que é entendido como
América Latina.
Nesse sentido, cabe aqui esclarecer que a ressignificação é “um ato de lançar
olhar sobre o objeto histórico tendo a cultura [...] como fator de mudança social [...]”
(MROS, 2019, p. 38). Destarte, ressignificar é dar um novo sentido e novas leituras a
conceitos já estabelecidos por meio da memória histórica (PESAVENTO, 2008),
possibilitando que a cultura seja um vetor das afirmações identitárias.
O texto é dividido em dois períodos de tempo. No primeiro deles, são
apresentadas cinco ideias que formam elementos ressignificadores ao longo do Século
XX, facilmente identificáveis em suas forças narrativas, sobretudo nas canções de viés
político utilizadas como instrumento de resistência aos governos autoritários que se
sustentaram por muitos anos na América Latina.
Com a reabertura democrática ocorrida entre os anos 1980 e 1990 é possível
identificar um segundo período temporal para a construção narrativa do texto. Eram
novos tempos de uma constante ressignificação conceitual por meio da música. Este
período caracterizou-se por reafirmações de antigas canções em concomitância a
movimentos de massificação cultural ocasionada pela globalização e pela difusão de
novas mídias.
A música latino-americana apresenta uma diversidade muito interessante de
cenários sociais a serem refletidos, debatidos e estudados, e permite um passo para além
da mera contemplação. São documentos históricos que podem ser literalmente ouvidos
desde há muito tempo até hoje, cantados e constantemente ressignificados.
AS CINCO IDEIAS RESSIGNIFICADORAS
Entre as décadas de 1930 e 1950, catalisado pela ascensão das ferramentas
midiáticas de massa, emergiu em toda América Latina um movimento de afirmação das
identidades nacionais, que encontrou na música um importante instrumento de difusão.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Assistiu-se ao resgate dos folclores nacionais a partir dos novos meios de comunicação,
o que possibilitou a consolidação dos chamados gêneros musicais representativos, como
o samba carioca no Brasil, o tango na Argentina e o bambuco andino na Colômbia
(ALVARADO, 2004, pp. 54-59).
Nesse contexto, era de se esperar que o conceito de América Latina fosse
renegado nas canções de artistas latino-americanos em prol dos motivos nacionais. A
análise das músicas do franco-argentino Carlos Gardel, e da chilena Violeta Parra
reforçam tal inferência. Gardel canta os ídolos nacionais — El Sol del 25 (GARDEL,
2000); A Mitre (GARDEL, 2001a) —, seu amor pela pátria — Mi Buenos Aires
Querido (GARDEL, 1946) — e a dor que é deixá-la — Mi Tierra (GARDEL, 2001b).
Parra, por sua vez, apresentava-se como um símbolo da contradição entre a vida
campesina e urbana, além de denunciar as mazelas e injustiças sofridas pelo povo
chileno (ALVARADO, 2004, p. 63). O escopo das canções, quando ultrapassa a nação,
restringe-se ao entorno geográfico imediato, como os pampas gaúchos em Gardel e os
vizinhos andinos em Parra.
A análise das músicas latino-americanas mostra que a partir da década de 1960 o
conceito de América Latina torna-se cada vez mais presente nas composições, passando
a influenciar e ser influenciado, enriquecer e ser enriquecido pelo trabalho dos artistas
da região. O tom cantado a partir de 1960 permanece praticamente imutável até meados
da década de 1980, e a leitura atenta das composições permite a abstração de cinco
grandes ideias que, agregadas, ressignificam o conceito de América Latina para seus
artistas. São elas: a idealização dos povos nativos; a denúncia de opressão; a exaltação
da resistência; a necessidade de comunhão entre os povos; e a exposição das
reivindicações populares4.
A idealização dos povos nativos é marcada pelo resgate da memória dos mais
diversos grupos habitantes da região, desde Mapuches5 a Guaranis6. O canto é
4
A abstração de tais ideias partiu da identificação, feita pelos autores, da alta incidência de certos
conjuntos de palavras-chave presentes em dezenas de músicas de artistas latino-americanos que faziam
referências diretas ou indiretas à América Latina. Para a idealização dos povos nativos têm-se índios, luta,
libertação etc.; para opressão, morte, fome, pobreza etc.; para resistência, revolução, guerra, luta etc.; para
a comunhão entre os povos, povo, irmão, unidade etc.; para as reivindicações populares, paz, justiça,
liberdade etc.
5
Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra na região sudoeste da Argentina e boa parte do
centro-sul do Chile (SICHRA, 2009, pp. 106-110).
199
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
inicialmente melancólico, relembrando o sofrimento desses povos tanto no passado,
pelas forças colonizadoras, quanto no presente, pela mão das próprias nações latinoamericanas independentes. Seu modo de vida é ameaçado pelo avanço da sociedade de
consumo, e sua cultura corre o risco de ser apagada.
Rompi tratados, traí os ritos / Quebrei a lança, lancei no espaço / Um
grito, um desabafo – “Sangue Latino” (RICARDO; MENDONÇA,
1973; interpretado por Secos & Molhados);
Um selvagem / levanta o braço / abre a mão / e tira um caju / um
momento de grande amor / de grande amor / Copacabana /
Copacabana / Louca total e completamente louca / A menina muito
contente / Toca a Coca-Cola na boca / um momento de puro amor / de
puro amor – “Joia” (VELOSO, 1975)
Em um segundo momento, no entanto, a trajetória histórica dos povos
originários é exaltada como exemplo de luta e resistência. A herança ibérica é renegada,
de modo que os povos latino-americanos passam a ser entendidos como que herdeiros
de um legado direto de Charruas7 e Aruaques8, não apenas de portugueses e espanhóis.
Dale tu mano al indio / Dale que te hara bien / Te mojara el sudor
santo / De la lucha y el deber / La piel del indio te enseñara / Toda la
senda que habras de andar – “Canción Para Mi América” (SOSA,
2009a);
De ti aprendí Hermano / Querido indio de aquí / De ti aprendí yo a
resistir / Cruel opresión / [...] Indio Hermano / Tú me has ayudado a
revivir / Em mi pecho la llama / De la libertación – “Indio Hermano”
(LOS JAIVAS, 1971);
Talvez um dia o silêncio dos covardes / Nos desperte da inconsciência
deste sono / E o grito do Sepé na voz do povo / Vai nos lembrar, que
esta terra ainda tem dono – “América Latina” (ZANATTA; ALVES,
1987; interpretado por Clemar Guglielmi e Grupo Itapevi).
6
Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra na região sul da Bolívia, praticamente todo
território paraguaio, o nordeste da Argentina, boa parte da região Sul e porções litorâneas do Sudeste
brasileiro, além de parte do nordeste uruguaio (BRANDAO, 1990, pp. 53-57).
7
Grupo étnico nativo que vivia, grosso modo, junto à margem ocidental do Rio Uruguai (GARCIA;
MILDER, 2012, p. 3).
8
Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra em boa parte do território de Venezuela e Colômbia
(SICHRA, 2009, pp. 454-456).
200
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
É a segunda grande ideia, da constante e multifacetada opressão do povo latinoamericano, que impulsiona a idealização dos povos nativos — a América Latina do
período necessitava de símbolos de resistência. Isso porque o cenário latino-americano
descrito e denunciado pelas canções era entendido como insuportável por seus cantores.
As composições apontam direta ou indiretamente para dois fatores responsáveis por tal
situação. Internamente, tem-se o estabelecimento e a manutenção de regimes
autoritários por toda América Latina. Externamente, a lógica sistêmica da Guerra Fria
renegava a América Latina ao posto de Terceiro Mundo, vulnerável aos interesses e
pretensões de ambos os blocos antagônicos que protagonizavam o conflito9. Os efeitos
dessa opressão materializavam-se nas mais diversas formas. Pela censura e pelo exílio:
El nombre del hombre muerto / Ya no se puede decirlo, quién sabe? /
[...] El nombre del hombre muerto / Antes que a definitiva noite / Se
espalhe em Latino América / El nombre del hombre es pueblo / El
nombre del hombre es pueblo – “Soy Loco Por Ti America” (NETO;
CAPINAM; GIL, 1968; interpretado por Caetano Veloso);
Amigo é coisa pra se guardar / Debaixo de sete chaves / Dentro do
coração / Assim falava a canção que na América ouvi / Mas quem
cantava chorou / Ao ver seu amigo partir – “Canção da América
(Unencounter)” (NASCIMENTO, 1979).
Assim como pela pobreza e pela fome:
Eu sou apenas um rapaz latino-americano / Sem dinheiro no banco,
sem parentes importantes / E vindo do interior / [...] Mas não se
preocupe meu amigo / Com os horrores que eu lhe digo / Isso é
somente uma canção / A vida realmente é diferente / Quer dizer / A
vida é muito pior – “Apenas Um Rapaz Latino Americano”
(BELCHIOR, 1976);
Eu sou um homem comum / Eu sou um homem do sol / Eu sou um
African man / Um South American man / A fome continental /
Miséria que o Norte traz / A fome que a morte vem / A fome não vem
da paz / O ódio que o ódio tem / Se espalha bem mais veloz / Que a
9
Como mostra Bandeira (2019, p. 214-223), o posto de Terceiro Mundo atribuído à América Latina
durante a Guerra Fria fica claro ao analisarmos, por exemplo, a política externa dos Estados Unidos para
com a região. Tendo como mote a defesa do hemisfério contra o comunismo, os Estados Unidos apoiaram
política e economicamente o estabelecimento e manutenção de diversos regimes autoritários na América
Latina. Portanto, os fatores internos e externos da opressão, cantados pelos artistas latino-americanos, se
retroalimentavam, sendo impossível compreendermos os regimes autoritários desprezando a análise da
conjuntura na qual estes foram estabelecidos.
201
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
água que a chuva traz / Que o grito da nossa voz – “Planeta Blue”
(NASCIMENTO, 1987).
O papel das canções, contudo, não era apenas o de denunciar a opressão das
populações latino-americanas. Por meio de suas letras, cantores e bandas clamavam pela
resistência popular em suas mais diversas expressões. A imobilidade não era
considerada uma opção, de modo que as massas eram convocadas abertamente para
romper com as estruturas as quais estavam submetidas, seja por meio de greves e
protestos, seja por meio de lutas armadas, cujas explícitas alusões os censores não foram
capazes de suprimir.
Desacordonar compañeros / Desacordonar compañeros / Compañeros
de las minas / Faculdades, oficinas / Sembrando ahora los /... usinas ...
/ Las secuelas e baches / De las secuelas e baches / La esperança
campesina / Que camina, que camina – “Desacordonar” (VANDRÉ,
1969);
De outra vida aguerrida / Que morre mais lá na frente / Da cor de ferro
ou de escuro / Ou de verde ou de maduro / A primavera que espero /
Por ti, irmão e Hermano / Só brota em ponta de cano / Em brilho de
punhal puro / Brota em guerra e maravilha – “Canto Latino”
(NASCIMENTO; GUERRA, 1970).
A ideia da resistência, além de ser evocada a partir da idealização dos povos
nativos, também passava pelo martírio de líderes latino-americanos ressignificados
como libertadores.
Sobe monte desce rio / Vida e barbas por fazer / Sobe monte desce rio
/ Sobe monte desce rio / E um dia de repente fez da morte mais viver /
Quem temia teu caminho / Não podia te prender / E mesmo por
traição / Pensando que te matava / No meu corpo americano / Fincou
mais teu coração / Che – “Che” (VANDRÉ, 1968);
Lo pagará la unidad / De los pueblos em cuestión / Y al que niegue
esta razón / La Historia condenará / La Historia lleva su carro / Y a
muchos nos montará / Por encima pasará de aquel / Que quiera
negarlo / Bolívar lanzó una estrella / Que junto a Martí brilló / Fidel la
dignificó / Para andar por estas tierras – “Canción Por La Unidad
Latinoamericana” (MILANÉS, 1985).
Outra grande ideia, fixada nas composições como forma de resistência, é a da
necessidade de comunhão entre os povos latino-americanos. Tal ideia parte da
202
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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constatação de dois fenômenos. O primeiro, histórico, é de que os povos latinoamericanos foram divididos pelas forças colonizadoras, como meio de facilitação do
domínio ibérico. O segundo, conjuntural, advoga que os regimes autoritários da região
constantemente jogam as diferentes populações umas contra as outras, a fim de
legitimarem seus governos. Nisso está implícita a ideia de que juntos os povos latinoamericanos são mais fortes, sendo sua união fator determinante para o rompimento com
as forças internas – regimes autoritários – e externas – lógica da Guerra Fria – que os
oprimem.
Realizaron la labor / De desunir nuestras manos / Y a pesar de ser
hermanos / Nos miramos con termo / Cuando se pasaron los años / Se
acumularon rancores / Se olvidaron los amores / Parecíamos extraños /
Qué distancia tan sufrida / Qué mundo tan separado / Jamás se hubiera
encontrado / Sin aportar nuevas vidas – “Canción Por La Unidad
Latinoamericana” (MILANÉS, 1985);
Sol de Alto Perú, rostro Bolivia, estaño y soledad / Un verde Brasil,
besa mi Chile, cobre y mineral / Subo desde el Sur hacia la entraña
América y total / Pura raíz de un grito destinado a crecer y a estallar /
Todas las voces todas, todas las mano todas / Toda la sangre puede ser
canción en el viento / Canta conmigo, canta, hermano americano /
Libera tu esperanza con un grito em la voz – “Canción Con Todos”
(SOSA, 2009b).
A ideia de comunhão acabou por escapar aos limites dos versos, concretizandose no estabelecimento de redes de cooperação entre artistas latino-americanos de
diferentes nacionalidades. Exemplo de tal fenômeno foi a gravação do álbum “Corazón
Americano”, em 1985, por León Gieco, Mercedes Sosa e Milton Nascimento, que
contou com a regravação de composições de outros artistas da região, como a música
“Volver A Los 17”, da chilena Violeta Parra.
As canções, além de clamarem pela resistência do povo, também serviam como
palco para a exposição das reivindicações populares. Dessa forma, ecoavam o grito das
ruas, protestando diretamente por melhores condições de vida para os povos latinoamericanos. As três grandes metas eram a paz, a justiça e, principalmente, a liberdade.
Eram estas as curas para as mazelas sofridas pelas populações da região, e os artistas
consideravam-se peças-chave na propagação de tais ideais.
A paz almejada pode ser entendida como o desejo pelo fim da opressão em suas
diversas materializações, enumeradas anteriormente, tais como a fome e a pobreza. A
203
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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justiça reclamada diz respeito à reparação dos infortúnios historicamente derramados
sobre os povos latino-americanos. A liberdade, a musa maior das composições, é
cantada ao mesmo tempo como condição necessária para a obtenção de paz e justiça,
além de fruto direto de ambas – é, simultaneamente, meio e fim. Sua materialização está
diretamente ligada com o desmantelamento dos regimes autoritários então vigentes na
região.
Eu sou um homem comum / Eu sou um homem do sol / Eu sou um
African man / Um South American man / A fome continental /
Miséria que o Norte traz / A fome que a morte vem / A fome não vem
da paz / O ódio que o ódio tem / Se espalha bem mais veloz / Que a
água que a chuva traz / Que o grito da nossa voz – “Planeta Blue”
(NASCIMENTO, 1987);
Danos valor para pelear / Por lo que es nuestro y nos quieren sacar /
Danos el maíz que alimenta, el agua que es vida / Y a lana que abriga
del frío / Danos la paz, la justicia, el respeto a este pueblo / Sufrido
que es tuyo y es mío / Sol, mi Padre Sol, calienta el aire / Con tu llama
secular / Ayúdanos a derrotar / A los que quieren hacernos el mal –
“Oración Al Sol” (RAMIREZ; LUNA, 1972a; interpretado por
Mercedes Sosa);
¡Ay! Sudamérica mía / Que tu tempo se acerca / Sudamérica mía /
Con fronteras de flores / Y fusiles de mentira / Díganlo como yo /
Alcen la bandera y conquistemos hoy la liberación / Ándale paisano y
conquistemos / Y la liberación, hoy la liberación / Díganlo como yo:
¡ya la libración! – “Alcen Las Banderas” (RAMIREZ; LUNA, 1972b;
interpretado por Mercedes Sosa).
A conjugação das cinco grandes ideias previamente expostas permite a abstração
do significado do conceito de América Latina para seus musicistas. Antes de tudo, fica
clara a oposição conceitual da América Latina em relação ao Norte, encarado inclusive
como fonte externa de seu sofrimento. A América Latina é a materialização da
espirituosidade de Ariel, de Rodó (2003), lutando contra a preponderância do
utilitarismo frio de Calibã, que Santos (2014, p. 41), afirma representar as sociedades
industriais do Norte, entre elas os Estados Unidos, país ligado diretamente com o
estabelecimento de regimes autoritários na região (BANDEIRA, 2019, pp. 214-223).
Em segundo lugar, nota-se a construção do conceito cantado quase que
homogeneamente entre os anos 1960 e meados de 1980. A América Latina é uma terra
sofrida, historicamente subjugada e espoliada. É lugar de um povo que foi e ainda é
204
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
mantido separado, pela ameaça que, junto, configura a seus opressores. É lugar de um
povo que mesmo pobre, faminto e reprimido, é aguerrido, ávido a resistir e honrar sua
herança nativa e seus heróis libertadores. Sobretudo, América Latina constitui-se como
um conceito agregador, o amálgama que une brasileiros, chilenos, argentinos e
colombianos.
É ao mesmo tempo, portanto, símbolo de fraqueza e força, pobreza e riqueza,
opressão e resistência, de constantes e complexas contradições. Por isso é cantada como
o “porão da América”, por Caetano Veloso (1968), e como o “lixo ocidental” por
Milton Nascimento (1970), ao mesmo tempo em que é exaltada por Veloso em “Soy
Loco Por Ti America” (NETO; CAPINAM; GIL, 1968). Constitui-se, finalmente, em
terreno fértil da nostalgia para aqueles que eventualmente a deixaram (BELCHIOR,
1978; RAMIREZ; LUNA, 1972c).
A partir de meados da década de 1980, o desmantelamento de diversos regimes
autoritários da região passou a influir nas composições dos artistas latino-americanos. O
fenômeno materializou-se nas composições com a ascensão das ideias de esperança e
conquista. Finalmente, aqueles desejos gravados nos versos tornavam-se cada vez mais
realidade, o que foi amplamente comemorado no meio musical. O tom da vez passou a
ser a recepção calorosa das redemocratizações em curso, sem deixar de pressionar pela
chegada da democracia naqueles países que por ela ainda lutavam.
Canta no dejes que muera / Que y a la primavera alumbrando el mapa
/ Que América canta / La canción de un tiempo de libertad / Va
cruzando los cielos nuestra canción / Pájaro liberado que busca amor /
Y encontrará la mano del indio marginado / Y del labrador / En el
llanto materno la encontrarás / En los ojos del niño que busca pan / En
la sangre minera y en la plageria obrera / De justicia y paz – “Tiempo
De Libertad” (SOSA, 2009c);
Siento que todo está cambiando a nuestro / alrededor / Respiro un aire
cada vez mejor / Que exalta el grito de mi corazón / Hacia esta región
/ Me he despertado susurrando una nueva / canción / Y mi ventana se
llenó del sol / Salgo a buscar el hecho y la razón / De tanta emoción /
América despierta nuevamente / Y no es que sea feliz su despertar /
Pero es que esta mañana se le advierte / Su decisión unida de luchar –
“Buenos Días América” (MILANÉS, 1996).
A América Latina cantada durante as décadas de 1960, 1970 e 1980
gradualmente se transformava em uma América Latina ressignificada. Dessa forma,
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novos cantos passaram a figurar em meio àqueles que já eram cantados. O sentido
desses cantos e, principalmente, o sentido que estes cantos atribuíam à América Latina,
serão analisados a seguir.
NOVOS TEMPOS PARA UMA CONSTANTE RESSIGNIFICAÇÃO
É possível identificar duas faces ressignificadas nas músicas latino-americanas
desde os anos 1990, que representam bem a dualidade do povo que habita esse espaço
geopolítico. De um ângulo, tem-se uma face apaixonada e rítmica, que demonstra o lado
alegre tão associado à América Latina, com sua mistura de cores e povos, com forte
componente mestiço, proveniente de um processo de simbiose e transculturação10, desde
o passado colonial (GONZÁLEZ, 2013). Por outro lado, existe também a representação
triste e reflexiva, que canta até os dias atuais o passado comum cheio de violências e
submissões.
Esse passado é explorado a partir da categoria analítica do espaço de
experiência, proposta por Reinhart Koselleck, em que “todas as histórias foram
constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas que atuam ou
que sofrem” (KOSELLECK, 2006, pp. 306). A música, assim como a história, constróise a partir da esperança e da recordação, vinculando o passado e o futuro. O passado
segue sendo atual, na medida dos acontecimentos incorporados e relembrados.
Sendo assim, existe uma integração de distintas realidades latino-americanas,
construídas a partir da política, da economia e da cultura. Na década de 1990, como
continuação de um movimento de ressignificação identitária em torno do conceito de
América Latina, a música difundiu temas comuns, como: a exaltação de heróis
nacionais e povos nativos; o ideal da liberdade frente à opressão dos países ricos; e a
crítica ao cenário de violência e morte. Músicos que já produziam nas décadas de 1970
e de 1980 continuaram cantando essa América Latina em busca de libertação e
autonomia, ao mesmo tempo em que exaltavam a beleza e a fertilidade das terras latinoamericanas, com um ascendente tom de esperança. A canção “Es Sudamérica Mi Voz”,
de Ariel Ramirez e Félix Luna, e interpretada por Mercedes Sosa (1990), retrata bem o
10
Fenômeno que se caracteriza pela assimilação cultural de um grupo pela influência de outro.
TRANSCULTURAÇÃO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2021. Disponível
em: https://www.dicio.com.br/transculturacao/. Acesso em: 26/02/2021.
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sentimento de unidade e identificação latino-americana, ao exaltar os povos e heróis sulamericanos, como também clama por paz e liberdade.
Soja estadounidense / y yo crecí en esta tierra / Vibran en mí / Indios
milenios / y español de los siglos / Corazón mestizo / que tarde en su
extensión / Hambriento justicia, paz y libertad / Yo por Mis palabras /
y La Cruz del Sur / bendice el canto que yo canto / como un largo
crucifijo popular – “Es Sudamérica Mi Voz” (SOSA, 1990).
A sensação de dependência latino-americana em relação aos poderes
exploradores se manifesta nas músicas a partir de um forte grito por liberdade, palavra
esta que aparece com expressiva frequência nas composições, como a eterna busca, o
motivo da esperança de um futuro melhor.
Negros, vermelhos escravizados / Moleques de rua, são panos
largados / Sexualidade cobrando ilusão / Deuses e povos, vasta
escuridão / Liberdade para conduzir / Nossas vidas é o que queremos /
LIBERTAR nossas correntes / Esquecer o que sofremos – “Libertar
Nossas Correntes” (GRITANDO HC, 1996).
A reivindicação por liberdade frente aos regimes autoritários, muito presente nas
músicas entre as décadas de 1960 até meados dos anos 1980, permanece nas décadas de
1990 e de 2000, com a diferença de que agora, após a conquista da democracia, passouse a reivindicar liberdades mais pontuais. Uma variedade de músicas populares
difundidas, principalmente nos centros urbanos, foi submetida a processos de
modernização, que renovaram a forma de reflexão e composição. Temáticas presentes
em menor grau nas composições do século XX, passaram a ser pautadas com maior
força na virada do século.
Na voz de Violeta Parra, por exemplo, pode-se observar uma composição
centrada na condição de mulher e na construção do feminino, seguida de estratégias
para a ampliação da presença feminina, tanto na vida nacional quanto na carreira
musical. Abre-se a discussão para a agenda da emancipação da mulher, a ação da
indústria, e a negociação de identidades e discursos públicos: "Yo soy a la chillaneja,
señores para cantar / Si yo levanto mi grito, no es tan solo por gritar / Perdóneme al
auditorio si ofende mi claridad / Cueca larga militar" (PARRA, 2005).
Observa-se uma dicotomia entre tradição e modernidade, na qual os opostos
convivem e se necessitam (GONZÁLEZ, 2013). O espaço de experiência, que traz o
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passado em tom reivindicatório, está presente, assim como o horizonte de expectativa,
que corresponde ao futuro presente, voltado para o que pode ser previsto
(KOSELLECK, 2006, pp 310). Acontecimentos passados tornam-se presentes, na
medida em que se mostra uma insatisfação com a realidade e uma perspectiva de
mudança para o futuro. Busca-se, portanto, construir os caminhos para a mudança,
liberdade e conquista do espaço. Nos anos 1990 e 2000, a agenda de emancipação da
mulher, cantada por Violeta Parra já em meados do Século XX, adquiriu maior alcance,
como pode-se observar nas músicas de Elza Soares (2015) e Rita Lee (1999).
E quando tua mãe ligar / Eu capricho no esculacho / Digo que é
mimado / Que é cheio de dengo / Mal-acostumado / Tem nada no
quengo / Deita, vira e dorme rapidinho / Cê vai se arrepender de
levantar a mão pra mim – “Maria da Vila Matilde” (SOARES, 2015).
Mexo, remexo na inquisição / Só quem já morreu na fogueira / Sabe o
que é ser carvão / Eu sou pau pra toda obra / Deus dá asas a minha
cobra / Hum, hum, hum, hum / Minha força não é bruta / Não sou
freira, nem sou puta / Porque nem toda feiticeira é corcunda / Nem
toda brasileira é bunda / Meu peito não é de silicone / Sou mais macho
que muito homem – “Pagu” (LEE, 1999).
Outra continuidade, ainda muito presente nas músicas, diz respeito à identidade
dos povos nativos. Mantém-se os relatos de sofrimento, exploração e violência, que
perduram desde os tempos da colonização. Encontra-se um elo com esses povos, visto
que todo habitante deste entorno geográfico continua sofrendo, mesmo que a
configuração das relações tenha se alterado. Já não existe mais o colonialismo
propriamente dito. Contudo, parte das estruturas de exploração se mantém,
materializando-se em uma assimetria nas relações, pautada na dependência da periferia
para com as potências do Norte global11.
Zapateca, Potossi, febre do ouro frenesi / Seu tesouro Inca, Maia,
Asteca, Tupi / Nascemos pra servir / O regime escravagista mais
duradouro foi por aqui / Quem te descobre te descobre / Levaram todo
seu cobre e quem é que cobre esse rombo? / Pergunta pro Colombo /
O que resta é só o escombro da história que te assombra / Só a sombra
do passado que ainda carrega em seu ombro – “América Latina”
(BRAZZA, 2018).
11
Relações teorizadas por Immanuel Wallerstein, na obra O Sistema Mundial Moderno, a partir do
conceito de divisão internacional do trabalho, advinda da estrutura capitalista, que divide o mundo em três
estamentos hierárquicos: centro, periferia e semiperiferia (SARFATI, 2005, p. 140) e (MARTINS, 2015).
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Outro ponto crítico, constantemente citado nas músicas, diz respeito à violência
estrutural perpetuada pelo próprio Estado. A fome, a miséria, e a marginalização social,
são temas recorrentes, principalmente nos ritmos urbanos. O rap é o estilo musical que
hoje mais apresenta essas pautas nas canções. Rappers como Djonga, Francisco El
Hombre, Emicida, entre tantos outros, cantam a luta diária nas ruas, na periferia e nas
favelas pela sobrevivência, o sangue derramado pela violência e o esquecimento dos
que mais precisam de atenção dos governos.
É que as ruas me lembram / Massacre da Serra Elétrica / Eles tentam
roubar, é o massacre da cerca elétrica / E o rap preocupa com povo ou
preocupa com a métrica / Mas os tentáculos do polvo é o que vai te
afundar – “O Mundo é Nosso” (DJONGA, 2017).
O dólar vale mais que eu / Eita, fudeu / Vale mais que eu / Se essa
vida se resume a dinheiro / Corre corre o dia inteiro para a vida se
pagar / Faço o quê, se acordo sem trocado / Sem din din fico bolada /
Sem tutu não valho nada – “Tá com Dólar, Tá com Deus”
(HOMBRE, 2016).
Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro / Ano passado eu
morri / Mas esse ano eu não morro / Eu sonho mais alto que drones /
Combustível do meu tipo? A fome / Pra arregaçar como um ciclone
(Entendeu?) / Pra que amanhã não seja só um ontem / Com um novo
nome – “AmarElo” (BELCHIOR; EMICIDA; MAJUR; PABLLO
VITTAR, 2019).
Apesar de todas as mazelas, observa-se que o latino-americano carrega ainda o
sentimento de esperança, sempre presente, por um futuro melhor, projetando um
horizonte de expectativa a partir das experiências passadas. Esse sentimento representa,
portanto, uma continuidade de tempos anteriores, nos quais se via o futuro sob as lentes
da utopia — tal como pode se observar anteriormente na constante reivindicação por
ideais como paz, justiça e liberdade.
Ademais, ainda se tem a outra face da música latino-americana, a que mistura
ritmos, e que se faz alegre e dançante. Uma representante dessa face é a cantora
colombiana Shakira, que pretende representar o amálgama cultural latino-americano nos
palcos. Em entrevista dada à rede de TV norte-americana MTV News12, no ano de 1999,
MTV NEWS (@MTVNEWS). “Today is @shakira 's birthday! Back in 1999, she spoke with us on
how Latin culture influences her sound and movement, but told us her music is a fusion of many different
12
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Shakira afirmou: "Não acho que a música pertença a um determinado local, não precisa
pertencer. Minha música é sobre fusão, é isso o que sou, eu sou fusão, sou feita de
fusão”.
O lirismo musical, com as composições apaixonadas e românticas, também
esteve presente, desde o sertanejo dos anos de 1970 e 1980, até os dias atuais. É
manifestado em todos os gêneros musicais, sendo amor uma das palavras mais repetidas
nas letras. O amor pela pátria, o amor romântico, ou o amor por determinadas
identidades sociais se mantém presente, como o orgulho de pertencer a um grupo
marginalizado, porém forte. A questão do racismo, por exemplo, é um ponto
importante, que é cantado como denúncia, atrelado a uma exaltação da cor e da cultura.
O nosso som não tem idade / Não tem raça e nem vê cor / Mas a
sociedade pra gente não dá valor / Só querem nos criticar pensam que
somos animais / Se existia o lado ruim hoje não existe mais / Porque o
funkeiro de hoje em dia caiu na real / Essa história de porrada, isso é
coisa banal / Agora pare e pense, se ligue na responsa / Se ontem foi a
tempestade hoje vira a bonança / É som de preto, de favelado / Mas
quando toca ninguém fica parado – “Som de Preto” (AMILCKA,
2020).
As fiestas são o que há de mais conectado entre as diferentes nações, tanto no
continente americano como fora dele. Músicas sobre festas e ritmos dançantes dominam
o pop e o reggaeton, estilos que se misturam e proporcionam parcerias entre diversos
cantores como, por exemplo, a canção “Sim ou Não” de Anitta em parceria com
Maluma (2016), uma união entre Brasil e Colômbia; a música “Sin Pijama”, de Becky
G (2018) — cantora mexicana — com Natti Natasha — de origem dominicana —, entre
outras. Parcerias como essas certamente não se restringem ao espaço latino-americano,
tendo em vista as diversas assimilações de estilos norte-americanos e europeus. Esse
fenômeno, conhecido como massificação cultural13, é um dos efeitos da globalização.
Tais processos promovem certa homogeneidade cultural no mundo como um todo,
focando em aspectos mais generalistas e descaracterizados de localidades e identidades
nacionais.
parts of who she is.” Disponível em:<https://twitter.com/MTVNEWS/status/1356648935461421063>.
Acesso em: 2 fev 2021.
13
Conceito cunhado pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer. O sentido convencional referese à concepção de produção da obra de arte como esfera cultural dissociada da produção cultural derivada
da nascente indústria de cultura (MARANHÃO, 2010).
210
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Notam-se, portanto, dois movimentos quanto às ressignificações de identidades.
Para dentro do Estado, é possível visualizar maior divisão de subgrupos identitários,
com características de classe social, gênero, entre outros. Esse movimento se dá na
direção contrária à da identificação nacional, que, desde quando presente nas décadas
anteriores, abarcava o território e a sua população como um todo, em parte devido às
lutas por democracia e liberdades individuais. Agora as reivindicações passam mais pela
dimensão micro, refletindo uma multiplicação de identidades intermediárias e
específicas, a fim de torná-las mais visíveis e reconhecidas como parte importante do
todo.
O segundo movimento se dá para além do Estado, e possui um caráter mais
generalizante e massificado. Não se tem mais tão presente o antagonismo para com o
Norte global, mas um intercâmbio cultural cada vez mais forte, e a busca pela
assimilação e influência, apresentando uma identidade mais genérica, proveniente de
um movimento de homogeneização da cultura contemporânea. A música pop circula
livremente pelo mundo, deixando para trás os nacionalismos, e apelando para problemas
e sensibilidades comuns à contemporaneidade, gerando influências, cruzamentos e
hibridismos (GONZÁLEZ, 2013) — por mais que a denúncia das contradições NorteSul não tenham cessado por completo.
Por mais que haja um movimento em direção à homogeneização, não são
abandonados os elementos característicos da cultura nacional, nem as suas raízes
folclóricas, visto que heróis nacionais ainda são lembrados, povos nativos ainda são
exaltados e tidos como exemplo de superação. Todavia, essas idiossincrasias culturais
não são exportadas para além das fronteiras. O que ocorre, na maioria das vezes, é que
as músicas de caráter mais amplo, que seguem padrões importados do exterior, são as
que mais se disseminam e fazem sucesso fora do espaço regional. A cultura e a
identidade latino-americanas configuram-se como aspectos muito ricos, que ainda são
lembrados dentro do espaço regional, entretanto, não há força para fazer-se ouvir essa
representatividade globalmente.
Eu sou um erro que não se conserta / A ferida aberta em carne viva /
Uma descoberta lucrativa / Sou Patativa, Tarsila do Amaral / Mais de
500 anos de um problema social [...] Sou um legado infeliz, Machado
de Assis / A locomotriz dessa louca matriz / Descentes Zulus e
Zumbis, Meretriz / Com a mania de achar que aqui é Paris / E zombar
211
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da raiz, dizimar Kaiowas, Guaranis – “Filhos da Pátria” (BRAZZA,
2014).
A música latino-americana se mostra plural tanto em seus temas como em sua
representatividade. Constrói-se sobre um processo de ressignificação do passado e
idealização do futuro, apresentando momentos de continuidade e descontinuidade
quanto às agendas. Cada gênero musical também possui suas características marcantes,
representando as camadas nas quais constroem e se consolidam. A vontade de lutar e a
sede por justiça nunca saíram de cena. Existe uma forte consciência da condição e uma
constante crítica a ela.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Já foi dito por Marc Bloch (2001) que a história é a ciência que estuda o Homem
no tempo. Ao estudar as ressignificações conceituais da América Latina, por meio das
letras de músicas ao longo de pouco menos de um século, o objetivo do capítulo foi
propor uma construção argumentativa que pudesse localizar a cultura latino-americana
no tempo e no espaço do imaginário que forjou a identidade, que permite o
reconhecimento frente aos reflexos do espelho.
Aos jovens historiadores envolvidos nesse estudo, coube a tarefa de buscar,
captar, e auscultar os ecos do passado por meio de todas as músicas pesquisadas. As
teias narrativas tecidas por meio dessas músicas representam o elemento essencial da
tarefa do historiador, a de escrever a história. É um exercício de pesquisa que ensina o
respeito aos antepassados.
É enorme o desafio de novos e constantes estudos sobre a relação entre cultura e
identidades regionais, sobretudo no que diz respeito à América Latina, tão diversa e tão
mutável. As músicas são um testemunho de que o lugar das coletividades humanas é
construído e reconstruído constantemente, e cantado em verso e prosa ao longo do
tempo histórico.
REFERÊNCIAS:
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chilena. Revista musical chilena, v. 58, n. 201, p. 53-73, 2004.
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B, faixa 2 (5 min 19 s).
RAMIREZ, Ariel; LUNA, Félix. Alcen Las Banderas. Intérprete: Mercedes Sosa. In:
MERCEDES SOSA. Cantata Sudamericana. Direção Artística: Ariel Ramirez. Buenos
Aires: Phonogram, p. 1972b. 1 disco sonoro (39 min), 33 1/3 rpm, estéreo. 12 pol. Lado
B, faixa 4 (5 min 36 s).
RAMIREZ, Ariel; LUNA, Félix. Sudamericano en Nueva York. Intérprete: Mercedes
Sosa. In: MERCEDES SOSA. Cantata Sudamericana. Direção Artística: Ariel
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217
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PAPEL DE ESCRITOR: O JORNAL DOBRABIL, DE GLAUCO MATTOSO, E A
AMÉRICA LATINA
Gustavo Scudeller1
INTRODUÇÃO
As relações entre intelectuais, literatura e imprensa são numerosas. No Brasil,
muitos escritores passaram por jornais ou trabalharam em órgãos de imprensa antes
mesmo de publicarem seus primeiros livros (cf. GALVÃO, 2004, p. 622-628). Este
trânsito tem sido regular e muito fecundo. Na crítica de língua inglesa, autores como
Terry Eagleton (1991, p. 4-5, 7, 11-31) e Ian Watt (2010, p. 53-54) enfatizam a
importância que periódicos como o The Tatler (1709-11) e o The Spectator (1711-12)
tiveram na formação da opinião pública burguesa de princípios do séc. XVIII, atraindo
escritores e indivíduos de grupos sociais muito diversos para o debate cultural e
político. Segundo Ian Hargreaves (2014, p. 12-13), o acontecimento histórico de maior
importância na origem dessas transformações teria sido a ampliação da liberdade de
imprensa, impulsionada, em 1695, pela expiração da lei de controle pelo Estado (o
Licensing Act). Pouco mais de meio século depois, essa crescente liberdade seria
consagrada como um dos principais pilares das democracias modernas ao ser incluída
na Primeira Emenda à Constituição dos EUA a partir de 1791. Ainda segundo
Hargreaves (ibid.), essas mudanças não teriam acontecido sem a participação incessante
de escritores e intelectuais, muitos dos quais acabaram adquirindo o estatuto de
verdadeiras personalidades nacionais, como Joseph Addison, Richard Steele, Jonathan
Swift e Daniel Defoe; ou como Thomas Paine, cuja militância cultural e política
ultrapassou em muito os limites nacionais, estendendo-se entre os dois lados do
Atlântico.
Tendo em conta essas questões, meu propósito aqui é discutir trechos do Jornal
Dobrabil (1977-1981), de Glauco Mattoso, procurando pensar algumas relações
possíveis entre o “papel do escritor” e seu suporte, isto é, entre as tarefas intelectuais e
Doutor pela Unicamp. É professor de Teoria Literária do Departamento de Letras da Unifesp
– Guarulhos-SP. E-mail: gscudeller@unifesp.br
1
218
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
políticas que se atribui a jornalistas, poetas e romancistas e este que foi um dos suportes
materiais privilegiados da sua atuação moderna até pelo menos o último quarto do
século XX: o “papel”. Conjuntamente, gostaria de discutir como é que o Jornal
Dobrabil pensa a América Latina e as tarefas dos escritores a partir dessas questões,
tendo em vista o contexto de repressão e censura vivido na maioria dos países da região
nos anos de circulação do jornal.
O JORNAL DOBRABIL
Talvez a maneira mais rápida de apresentar o JD e introduzir estas questões seja
recorrendo a alguns trechos de depoimentos dados pelo próprio Glauco Mattoso, seu
autor e editor. Esses depoimentos normalmente aparecem nas seções de cartas ou do
editorial do próprio jornal ou, ainda, como no caso do trecho a seguir, em uma coluna,
ocupando o espaço daquelas duas seções. Escreve Glauco (“UM JOLNAR
ARTELNATIVO”, f. 432):
Em janeiro de 1977, no Rio, dei inicio à publicação de um novo
orgam nanico, e nem por isso menos orgástico: o Jornal Dobrabil. Não
era livro, pois só tinha uma folha. Não era folheto, pois seria o numero
‘hum!!!’. Não era exatamente periódico, pois não teria sequencia:
todos os números seriam numero ‘hum!!!’. Não era impresso, nem
manuscripto, nem ilustrado. Era pura e simplesmente
dactylographado, como qualquer stencil para mimeographo. Partindo
da premissa de que ‘em arte nada se cria, tudo se copia’, substitui o
mimeographo pela copiadora, e adoptei o systema xerox. [...] A forma
(texticulos e grafismos dactylographados) e o conteúdo (sátiras,
parodias e blagues escatológicas) eram maneiros como o maneirismo,
mas com o suporte e o vehiculo resultavam em algo diferente. Cada
numero resume-se a duas folhas de 33 x 44 cm, dactylographadas
numa Olivetti Linea 88 typo paica, reduzidas ao tamanho officio e
reproduzidas, em frente-e-verso, numa copiadora Xerox ou similar.
Inicialmente a tiragem foi de dez exemplares. A distribuição, gratuita,
pelo correio, em envelopes fechados. [...] o formato officio preserva a
característica básica do vehiculo: quem recebe um exemplar offset
copia em xerox e passa à frente. (MATTOSO, 2001).
2
A edição de 2001 não possui numeração de página. Adotei aqui o mesmo princípio de numeração
usado pelo autor, sendo “f.” para o número do folheto, com acréscimo de “v” depois do número, quando
se tratar do verso. Também optei por manter a ortografia original dos textos, justificada por Glauco em
inúmeras passagens do Jornal e em outros materiais publicados por ele.
219
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Essas observações preliminares de Glauco são bem conhecidas e frequentemente
retomadas, às vezes literalmente, por ele e por outros autores. Por exemplo, como no
texto que serve de apresentação à 2ª edição do JD em livro, publicado pela Iluminuras,
em 2001 (a 1ª edição saiu em 1981). Aqui, transcrevo apenas o trecho que completa a
passagem anterior:
Falava-se muito, então, de ‘poesia marginal’. Centenas de novos
poetas imprimiam livros e periódicos por conta própria, em
mimeógrafo, e intercambiavam esse material por todo o país, de mão
em mão ou pelo correio, à margem do esquema de distribuição das
editoras comerciais. A princípio o DOBRABIL se confundia com essa
faixa de produção e foi incluído na categoria de ‘imprensa marginal’.
[...] Após quatro anos de folhas soltas mandadas pelo correio, reuni a
coleção toda num álbum luxuoso, impresso em cuchê e publicado em
81. A partir daí ganhei reputação de poeta vanguardista-maldito, ou
pornô-erudito, como queiram. (MATTOSO, 2001).
Os dois trechos dão uma boa ideia de como o confronto com os suportes e meios
de publicação constituía o foco de experimentação literária de Glauco. Começando pela
máquina de escrever, Glauco passa ao papel “stencil”; desse, ao mimeógrafo; e daí, para
o correio. Com o tempo, modifica o processo: começa com a máquina de datilografar,
agora com marca e modelo (uma “Olivetti Linea 88 typo paica”); em seguida, passa
para a copiadora, também uma máquina com marca (“Xerox”); é nela que manipula os
blocos de texto, reduzindo-os para o tamanho ofício, até obter a prova final. Finalmente:
fotocopia, envelopa e manda pelo correio. O uso do envelope não é supérfluo: ajuda a
preservar o conteúdo, o remetente e o destinatário, driblando, eventualmente, a censura.
O resumo de Glauco é ligeiro, bastante conciso. De uma ponta a outra dele
percebemos a linha de um avanço técnico que coincide com a ampliação do acesso
econômico do autor e do público a esses meios. Uma máquina de escrever custava
certamente muito menos que uma máquina de fotocopiar, lá pelo fim dos anos 1970,
mas bem mais que um aparelho e material para reprodução com “stencil”. O custo de
nenhum deles, porém, se compararia ao de um “offset”. Aliás, nem seria o caso: uma
fotocopiadora pode ser colocada a serviço de uma clientela média, cobrando-se pela
cópia. Mas uma máquina de offset precisa justificar seu alto custo, sendo empregada
mais frequentemente na impressão em escala, em geral de materiais que exigem elevada
220
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
qualidade de reprodução. Continua Glauco, na sequência da primeira passagem
mencionada:
Na verdade, ultimamente o JD passou a ser photolithado e impresso
em offset, para maior nitidez na redução. Mas o formato officio
preserva a característica basica do vehiculo: quem recebe um
exemplar em offset copia em xerox e passa à frente. O alcance do
Jornal Dobrabil vem a ser, com efeito, bem mais amplo que o restricto
circulo no qual se tornou um vehiculo de massa (cinzenta, of course!)
(MATTOSO, 2001, f. 43).
A diferença no custo de aquisição e de acesso aos meios reflete de algum modo
o próprio estatuto do trabalho que se realiza e circula através deles: uma arte barata,
acessível e de circulação pequena, dirigida a um público também pequeno, cuja
qualidade do material também varia em razão dessas diferenças de acesso aos meios.
Por exemplo, o que pode ser dito do maquinário, vale também para o papel. Ao falar do
material utilizado, Glauco menciona primeiramente o “stencil”. Mas, antes dele, fala do
papel “ofício”, normalmente usado em máquinas de escrever: um almaço ou A4,
provavelmente. Depois, vêm as cópias em 33 x 44 cm: pelas medidas, alguma coisa
semelhante ao C3, de hoje. É nelas que Glauco montava, de fato, o jornal. Essas cópias
eram novamente reduzidas, frente e verso, ao tamanho ofício, utilizando Xerox, depois
offset; só então é que eram replicadas e distribuídas. Por fim, quatro anos depois, na
edição luxuosa do “álbum” em livro, aparece o papel “cuchê”.
Seria importante não perder de vista todas essas diferenças de qualidade e
operações relacionadas ao papel. O sulfite, que é o tipo de papel mais barato, vem antes
de todos os outros. É nele que se bate à máquina. No polo oposto, o cuchê é um tipo de
papel quimicamente tratado de modo a ficar com uma superfície brilhante, o que
melhora o acabamento, a legibilidade e a duração do papel; é o tipo de papel empregado
na indústria, principalmente para impressão de propaganda e embalagens. Mas o
estêncil é um tipo de papel de composição material e operação inteiramente diferente
dos dois. Seu funcionamento se parece muito mais com o da chapa de impressão do
offset, ou com o do uso que Glauco faz do C3, no processo de diagramação do
Dobrabil. Seu funcionamento não é o de um papel primário (Cf. DERRIDA, 2004, p.
223-224), aquele que se utiliza para fazer os esboços ou a primeira versão de um
221
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
projeto, mas o de uma matriz, isto é, o de uma versão final, a partir da qual deve se
reproduzir as cópias de um trabalho pronto.
Observando os comentários de Glauco, notamos que a função do papel primário
é cumprida pelo papel sulfite, batido diretamente à máquina. Glauco não menciona o
uso de qualquer tipo de caderneta ou bloco de anotações para esboço. Ainda que
pudessem existir, o importante é que Glauco foca a escrita à máquina como o ponto de
partida do seu trabalho de criação, ainda que o processo principal de elaboração do
Jornal (a sua diagramação) aconteça mesmo sobre o C3. Outro ponto importante é que,
observando a reprodução do jornal na edição em livro de 2001, nada indica que as
mudanças descritas por Glauco tenham acontecido no período de circulação do
Dobrabil, entre 1977 e 1981, já que os 53 fascículos do jornal apresentam uniformidade
de impressão. Neste caso, se houve uso do mimeógrafo, é de se suspeitar que teria
ocorrido num período de prova, antes das primeiras edições do jornal; embora seja
possível, também, que Glauco tenha reimprimido esses primeiros fascículos em offset, a
fim justamente de garantir a pretendida uniformidade das edições, conforme
mencionado logo nas primeiras frases do primeiro trecho do Jornal citado por nós
(“Não era exatamente periódico, pois não teria sequência: todos os números seriam
número ‘hum!!!’”, MATTOSO, 2001, “UM JOLNAR ARTELNATIVO”, f. 43).
Enfatizo esses aspectos porque, embora até aqui a discussão não diga nada a
respeito da América Latina mais diretamente, essas dessimetrias nas formas de
distribuição e acesso aos meios de produção e tiragem de uma obra literária refletem
algo de um dos principais problemas econômicos e políticos da região: o da
dependência tecnológica e industrial em relação aos países desenvolvidos. No cerne
desse problema, as próprias histórias do desenvolvimento e dos usos da máquina de
escrever e do papel — coincidentes, mas também muito diferentes entre si —
constituem etapas específicas da história cultural brasileira e latino-americana3.
Ver, por exemplo, o que escreve Eduardo Galeano (2018, p. 344), em “A deusa tecnologia não fala
espanhol”, de As veias abertas da América Latina (1970/1977): “O mero transplante da tecnologia dos
países adiantados não só implica a subordinação cultural e, em definitivo, a subordinação econômica,
como também — após quatro séculos e meio de experiência na multiplicação do oásis de modernismo
importado em meio aos desertos do atraso e da ignorância — pode-se afirmar que não resolve problema
algum do subdesenvolvimento. Esta vasta região de analfabetos investe em pesquisas tecnológicas uma
soma 200 vezes menor do que aquela que os Estados Unidos destinam para esses fins. Em 1970, há
menos de 1.000 computadores na América Latina e 50 mil nos Estados Unidos. É no norte, por certo, que
são desenhados os modelos eletrônicos e são criadas as linguagens de programação que a América Latina
3
222
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
O INTELECTUAL E A AMÉRICA LATINA
Más venturosos eran poetas y cuentistas o novelistas
nuevos. Pues había, como ya decíamos, el editor que
los lanzaba, ya que el gasto de la impresión del libro
era poco y, en fin, cualquier empresa podía correr
con el empleo de tales sumas. Esto ya hoy no ocurre.
El costo de producción editorial se ha ido muy alto:
mano de obra, papel, tintas, impresión, y el público
saturado de libros-drogas-sexuales, libros-drogasimágenes, jamás se arriesgaría [...]; primero, porque
al alto costo de producción corresponde un alto costo
en el precio del libro; segundo, por falta de tiempo.
Miguel Ángel Asturias,
em Latinoamérica y otros ensayos, p. 98, 1970.
A epígrafe de Asturias dá uma noção das modificações pelas quais o mercado
editorial da América Latina veio passando no último século e do tipo de resposta que os
intelectuais e escritores procuraram dar a ela.
No Jornal Dobrabil as referências à América Latina são abundantes, embora em
sua maioria alusivas e distribuídas de maneira dispersa. Basta folhear alguns fascículos
do jornal para se dar conta disso; por exemplo, diante de um dos três principais
suplementos do jornal: o “Zero alla izquierda”, cujo título, redigido em espanhol, e
dedicado especialmente a assuntos políticos, e o slogan, uma “PUBLICAÇÃO
AUTOMINORITARIA DA THEORIA DA MENOSVALIA”, indicam o problema da
dependência e a identificação do Jornal com as tendências e os grupos marginalizados à
época como alguns dos seus principais focos de interesse.
Essa preocupação com as disparidades políticas, econômicas e sociais em nível
nacional e regional parecem fazer parte também da percepção de Jorge Schwartz (1981)
sobre o Dobrabil: “[F]ruto do já decantado ‘maior parque industrial da América
Latina’”, escreve o crítico, o Jornal Dobrabil pode ser tomado como um “projeto
anarco-poético por excelência, onde o sistema é criticado através das armas tecnológicas
oferecidas pelo próprio sistema: uma Olivetti & Xerox”. As aspas, como se nota,
importa.” As estimativas, segundo menciona Galeano, são de Manuel Sadosky, publicadas em “América
Latina y la computación”, Gaceta de la Universidad. Montevideo, maio de 1970.
223
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
realçam o distanciamento do crítico em relação ao entusiasmo dos anos anteriores com
o então chamado “milagre” econômico brasileiro, desmentido nos anos 1980.
Mas não é só no “Zero alla izquierda” que a maioria das referências à América
Latina aparecem. Muitas alusões a personalidades políticas e literárias surgem já na
primeira página do jornal, na seção de cartas ou nas colunas laterais; ou então, de forma
mais interessante, na seção de “CORRESPONDENTES / no exterior”. Um caso
significativo é o do folheto 10, em que são citados os nomes de três escritores latinoamericanos: Clemente Padín, poeta e artista gráfico uruguaio; Jorge Caraballo, poeta
também uruguaio; e Horacio Zabala, artista plástico argentino. A seção, que
normalmente é usada por Glauco para aproximar de forma irônica personalidades
díspares da cultura e da política, parece apresentar, neste caso, um outro desenho: o de
uma possível rede de colaboradores, destinatários ou mesmo simpatizantes latinoamericanos do jornal.4
O número de frases redigidas em espanhol ou atribuídas a personalidades latinoamericanas é grande. Elas podem aparecer em qualquer parte do jornal. Há um grupo de
citações escritas em espanhol e atribuídas apocrifamente a alguma personagem
estrangeira, não falante do espanhol ou que não o tem como língua materna. Neste
grupo, costumam aparecer escritores, cientistas e intelectuais, como Noam Chomsky (f.
33v) e Erich Fromm (f. 41v), figuras da cultura, como Theda Bara (f. 52v); e, também,
personalidades da política como Mao Tse-Tung (f. 33v) e Jânio Quadros (f. 27). Há,
também, o grupo de personalidades latino-americanas ou espanholas, cujas frases são
citadas em outras línguas, como o português, o francês ou o inglês. Semelhante ao caso
anterior, temos aqui políticos, como Anastasio Somoza (f. 39) e Pinochet (f. 4);
opositores, como Salvador Allende (f. 24), Che Guevara (f. 28) e Fidel Castro (38); e
escritores, como Vargas Llosa (f. 3); Unamuno (f. 27v), Neruda (f. 28) e Octavio Paz (f.
28). 5
4
No folheto 28, aparecem Manuel Puig, escritor argentino, e Aristides Klafke. Klafke é brasileiro, mas a
citação não exclui a possibilidade de que estivesse fora do país, ou que “exterior”, aí, signifique qualquer
coisa como “fora do círculo imediato ou de interesses” do Jornal. Na mesma nota, os correspondentes
internos mencionados são: Lula, Paulo Leminski, Júlio Mendonça, Décio Pignatari e Sebastião Uchoa
Leite.
5
Se quisermos um quadro mais completo, podemos incluir no primeiro grupo: Iaac Asimov (f. 45),
Euclides da Cunha (f. 45v) e Florestan Fernandes (f. 43v), entre os intelectuais; Trini Lopez (10v),
Opalong Cassidy (f. 43), Arlo Guthrie (f. 27) e Pete Seeger (31v), entre os artistas; e, enfim, Enrico
Berlinguer (f. 43), “um general linha dura” brasileiro (f. 44) e Farah Diba, a última imperatriz do Irã (f.
224
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Todos esses nomes aparecem assinando citações que envolvem reflexões sobre
política, arte e literatura. O conteúdo é, na maioria das vezes, insólito, visando a crítica e
o riso, efeito que decorre no mais das vezes da incongruência entre o que é dito e a
pessoa que o assina, ou entre o dito e a circunstância que a envolve. Alguns exemplos:
“El que ama su patria, no puede amar nada.” – PERÓN (f. 13v)
“El secreto de todo poder consiste en saber que los demás son aún más
cobardes que nosotros” – A. SOMOZA (f. 24v)
“Tal vez pudo comprarse más barato al pescador que al pez.” –
EVITA PERÓN (f. 30v)
“Qué cosa tan simple vuestra política! De un lado, los que tienen todo,
dinero, honores y cargos; del otro, los que nada poseen. Aquéllos todo
lo encuentran bien. Éstos lo encuentran todo mal. A la derecha, la
digestión; a la izquierda, el apetito” – LIZA MINNELLI (f. 26v)
Glauco reuniu muitas dessas citações em Galeria Alegria (2002), livro publicado
pelo Memorial da América Latina. Os textos do livro são todos atribuídos a Garcia
Loca, heterônimo de Glauco que fazia frequentes incursões pelas páginas do Dobrabil.
O personagem é uma versão debochada do poeta espanhol, morto durante a Guerra
Civil, e de quem chegou-se a discutir muito sobre a sua sexualidade6. Procurando
avaliar o interesse do material ao escrever uma nota para o livro, Barros Toledo
(“Glauco Mattoso: um poeta latino-americano” in: GALERIA ALEGRIA, 2002) lembra
os vínculos de Glauco com a literatura latino-americana, mencionando-o como tradutor
de Borges, do mexicano Salvador Novo e de Severo Sarduy. Toledo considera o
castelhano de Glauco “quase tão macarrônico quanto o portunhol dum portenho
apaulistanado”; e destaca: “[Glauco] sente-se à vontade para versejar desabridamente
46), entre as personalidades associadas ao poder. No segundo grupo: Alfredo Stroessner (f. 2, 39) e Omar
Toerijos Herrera (4); Maria Estela Martinez de Perón (6), entre os políticos; Hubert Matos (f. 33), Zapata
(f. 39) e Sandino (f. 47v), entre os opositores; entre os escritores: Carlos Castañeda (f. 31); Gabriela
Mistral (f. 28); Alejo Carpentier, Borges e Cortázar (f. 15v); e, dentre os artistas ou personalidades da
cultura: Salvador Dali (f. 2), Carlos Gardel (f. 13v), Picasso (f. 16v), entre muitos outros.
6
Quanto a essa polêmica, ver “A verdade sobre Garcia Lorca”, matéria publicada no número zero do
Lampião da Esquina — de autoria de Agnaldo Silva, um dos seus editores. Segundo a matéria, a dúvida
sobre a sexualidade de Lorca ainda era assunto à época do surgimento do Lampião (1978), tendo voltado
à discussão com a encenação de El Público (1930) no Teatro da Universidade de Porto Rico. A peça ficou
desconhecida até 1976, quando foi editada pela Universidade de Oxford (SILVA, 1978, p. 4).
225
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
sua latinidade desde a pesada década de 1970, quando todo o continente atravessou um
período de dictaduras, quarteladas e guerrilhas, cyclo que tende a repetir-se ao longo da
história” (ibid.).
Reynaldo Jimenez (“El contra-perogrullo” in: GALERIA ALEGRIA, 20027),
poeta peruano, nascido em Lima, em 1959, e radicado em Buenos Aires desde 1963, é
de opinião semelhante. Para ele, “la lengua escrita originalmente mixturada” dos
escritos de Glauco se parece muito com aquela procurada por outros poetas latinoamericanos e brasileiros que, transitando por “ambos lados de la frontera”, têm
procurado fazer “sin embargo del portuñol una rumia devastadora de las ‘perfecciones
paralelas’” dos dois idiomas, engrossando essa espécie de “río de varias corrientes”,
que atravessa os países que ladeiam suas margens.
PAPÉIS DE ESCRITOR
Nem todas as citações do Dobrabil são apócrifas, entretanto. O critério de
distinção, segundo Glauco, está no “Índice”, incluído na última folha da 2ª edição do
jornal em livro. Ali, pelo menos uma frase de Anastasio Somoza (f. 50v), ex-ditador da
Nicarágua, é apresentada como autêntica: “Vocês são todos seres humanos, como eu. E,
se são como eu, somos todos una mierda”. A frase, segundo consta no jornal, teria
aparecido em uma edição da revista Isto é, dada como resposta a jornalistas.
No índice, consta também uma frase atribuída a Mario Benedetti: “El pan
nuestro de cada día provoca gases y malas digestiones”, f. 26v. A frase forma um
conjunto com outros dois poemas escritos pelo próprio Glauco e publicados na mesma
página. Os poemas são: “DESPISTANDO / MARIO BENEDETTI” e “DANDO-LHE /
CRÉDITO” (ver figura 1, a seguir).
Como se pode notar, os poemas de Glauco fazem menção direta a Benedetti,
aludindo ao tema bastante moderno da possível conciliação entre amor e política, vida
pública e privada, desejo pessoal e compromisso cívico, que o poema de Benedetti
glosa, particularmente em versos como: “Te quiero porque tus manos / trabajan por la
justicia”, “porque tu boca / sabe gritar rebeldia”, para “que em mi país / la gente viva
feliz / aunque no tenga permisso” e “porque sos / mi amor mi cómplice y todo / y en la
7
A versão eletrônica do livro disponibilizada publicamente pelo autor não possui numeração de página.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
calle codo a codo / somos mucho más que dos”. Nos poemas de Glauco — assinados
por Pedro o Podre —, amor e política se conjugam, também. Mas os poemas de Glauco
acentuam principalmente os aspectos repressivos e violentos da ditadura à época,
especialmente em relação à sexualidade (“em política é muito / mais fácil ter a cuca /
quente que o pau duro”; “Un torturador / no se redime / suicidándose. / Pero algo es
algo”). Glauco também sublinha as hesitações de Benedetti, bem enfatizadas nos títulos
dos seus poemas (“DESPISTANDO MARIO BENEDETTI”, “E DANDO-LHE
CRÉDITO”):
Fica mais fácil compreender os poemas de Glauco e a polêmica com Benedetti
quando observamos outros dois poemas publicados pelo próprio Glauco no verso do
folheto seguinte, o 27 (“SOMAMOS” e “O FACTOR GENET/ICO”, ver figura 1):
Figura 1 - verso do f. 27
Fonte: MATTOSO (2001).
Ali, o diálogo crítico de Glauco com Benedetti é bastante evidente, já que
Glauco aproveita por inteiro o verso final do poema de Benedetti (“somos mucho más
que dos”), bem como todo o contexto enunciativo que o acompanha (“Si te quiero es
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
porque sos / mi amor mi cómplice y todo / y en la calle codo a codo / somos mucho más
que dos.”).
Mas não é só isso. O que Glauco faz é tresler o poema de Benedetti a partir de
uma clara defesa do respeito à diversidade sexual e da plena legitimidade das relações
homoafetivas que, a princípio, o poema de Benedetti não desaprova nem censura, mas
também não defende explicitamente, deixando essa interpretação a cargo do leitor. Aqui
o contexto político e cultural de fundo no poema de Glauco é claramente o da criação do
grupo “SOMOS” em 1978, uma das primeiras organizações políticas de gays e lésbicas
surgidas no Brasil e considerada um marco do começo do ativismo LGBT no país.8
Os poemas de Glauco emulam um tipo de composição semelhantes àquelas da
época mais radical do concretismo. Baseados em operações combinatórias simples, eles
procuram refutar os argumentos habituais com que o senso-comum conservador procura
defender a heteronormatividade, muitas vezes, apelando a razões de fundo
pretensamente lógico ou natural — operação que Glauco ironiza, ao aludir à matemática
e à biologia em defesa da diversidade (por ex., em expressões como “SOMAMOS”,
“MUC/H[O]
M+”,
“HOM[ENS]”,
“SOMOS”;
“O
FACTOR
GENETICO”,
“CROMOSSOMOS” etc.).
Observando em detalhes, a página de verso do folheto 26 (ver figura 1) é ela
mesma um bom exemplo do tipo de trabalho artístico primoroso que Glauco realiza com
a diagramação do jornal. Note-se, por exemplo, os efeitos de contraste e
complementaridade produzidos quando comparados os conteúdos das frases do
8
Segundo James N. Green (p. 178-179, 2014), o grupo surge em resposta ao chamado do número zero
do jornal Lampião da Esquina, de março de 1978, publicado em seu editorial. Avaliando a nova
conjuntura de enfraquecimento do regime militar e visando a abertura política, o editorial defendia ser o
momento de gays, lésbicas e transexuais, assim como outras minorias, abandonarem o gueto e participar
do movimento de redemocratização do país adotando uma postura afirmativa e sexualmente assumida em
defesa de seus direitos. A proposta era inspirada em grupos como o Nuestro Mundo, de 1968, e Frente de
Liberação Homossexual (FLH), de 1971, ambos argentinos, e, também, em outras iniciativas surgidas nos
Estados Unidos e Europa. Ainda de acordo com Green (p. 185), o próprio nome do grupo brasileiro era
uma homenagem ao boletim Somos do FLH, material com o qual uma parte dos ativistas do grupo
tiveram contato no momento em que muitos ativistas argentinos começaram a migrar para o Brasil, com o
agravamento da repressão na Argentina. Glauco manteve contato com o Somos, tendo participado de sua
criação. No Jornal Dobrabil, publicou pelo menos uma carta do grupo, em que os editores acusam
recebimento do Dobrabil e parabenizam Glauco “por levar adiante tal trabalho, com tanta criatividade e
inovação” (“Curreio”, f. 51). Glauco permaneceu no Somos até 1981, quando se afastou por divergências
internas. Para mais detalhes, ver o artigo de Cecilia Palmeiro (2017, p. 36-42). Aproveito aqui para
agradecer muito especialmente à Milena Mulatti Magri, que me apontou a relação dos poemas de Glauco
com o Somos e sugeriu a leitura do texto de J. N. Green.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
cabeçalho, de um lado, com as do rodapé, no lado oposto. O arranjo em “x”, ou quiasmo
— figura poética de largo uso na poesia conceptualista do séc. XVII — é bastante
visível (cf. figura 1 e 2, logo a seguir, juntas). Observemos em detalhes.
Logo no começo da página, no canto superior esquerdo, o primeiro fragmento
que temos é uma espécie de máxima, redigida e assinada pelo próprio Glauco, em que a
instabilidade política é comparada às mudanças astronômicas e meteorológicas (“A
política depende dos políticos, mais ou menos como o tempo depende da meteorologia e
dos astrólogos”, diz Glauco, MATTOSO, 2001, f. 27v). Já ao pé da página, no canto
direito, o que vemos é uma manchete em que a realidade política e social do país — e,
por extensão, da América Latina, pela língua em que a frase esta redigida — é
comparada a um “INFIERNO de MIERDA”. Se passamos ao lado esquerdo de novo,
mas ainda mantendo os olhos no rodapé, é a frase já mencionada de Benedetti que
encontramos (“El pan nuestro de cada día provoca gases y malas digestiones” — frase
escatológica e sardônica, como o tom geral da poesia de Glauco, o que mostra não só
divergência, mas, sobretudo, reverência, identificação de Glauco com a obra de
Benedetti). Por fim, se voltamos ao cabeçalho da página, olhando para o lado direito, o
que encontramos, em posição simetricamente oposta à citação de Benedetti, é um outro
aforismo assinado por Glauco — agora, porém, redigido em um tom sério, bastante
diferente do adotado por ele no Jornal Dobrabil, e no qual a “luta das minorias” é
defendida como centro de todo engajamento cultural e político do momento (“’Luta
maior’ é a luta das minorias, que, além de lutar pelo pão, têm que defender sua cor e sua
cultura, seu sexo e sua sexualidade [...] arriscando a própria pele”, diz Glauco). O
diagrama desses paralelos da página fica mais ou menos assim:
229
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Figura 2 – verso do f. 26
MATTOSO (2001).
As citações do Dobrabil a escritores latino-americanos, evidentemente, não se
resumem apenas a Mário Benedetti. Na página de rosto do f. 10, Glauco apresenta um
miniconto intitulado “ANADIDURA”, concebido, segundo ele, como uma emulação de
Anderson Imbert, escritor, professor e ensaísta argentino. Nos folhetos 42 e 44, Glauco
volta a se referir ao autor: agora, para apresentar a tradução de dois contos dele — um
deles, o da f. 42, intitulado “O PRÍNCIPE”. De comum, entre os contos, a ambientação
mágico-fantasiosa e o caráter abrupto com que os acontecimentos se precipitam nas
narrativas, reduzidas a não mais que três frases cada uma.
Um caso mais perceptível de formação de redes de colaboração intelectual e
amizade latino-americana, porém, pode ser percebido na correspondência trocada por
Glauco com o poeta Álvaro Miranda, de Montevideo. Glauco publica pelo menos uma
carta dele no “Curreio” do folheto 28. Na carta, Miranda saúda com alegria Glauco e o
Dobrabil: “Me impresionó muy favorablemente vuestro JORNAL”. Também menciona
ter apresentado alguns trechos a um amigo, o poeta Rolando Faget, que estaria
difundindo passagens do Dobrabil por rádio, em Montevideo. Na sequência — pelo
menos a da edição dos folhetos em livro —, Glauco publica três poemas de Miranda no
Dobrabil: dois sob o título “Tableaux Dada”, na primeira página do f. 39; e um
fragmento de poema, sem título, no f. 43. Os três, em espanhol. Os dois primeiros, mais
visuais; o último, um fragmento de poema em verso livre, ligeiramente espaçado. Os
três, porém, de cunho erótico-amoroso e sugestões homoafetivas.
230
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Talvez tenha vindo por intermédio de Miranda e Faget, ou de outros de
Montevideo, o “NOMENCLATURA Y APOLOGIA DEL CARAJO”. Trata-se de um
dos mais longos poemas publicados por Glauco no JD. Ele aparece distribuído em três
colunas, entre a face e o verso do folheto 53. O poema é apresentado como sendo de
autoria de Francisco Acuña de Figueroa, e como tendo sido publicado em Montevidéu
em 1922, mesmo ano de explosão do movimento modernista no Brasil. Traz também a
seguinte observação, ao lado do título: “para la circulación privada”. Do começo ao fim,
o poema é uma longa enfiada de nomes em espanhol para... “caralho” e, como
composição literária, ilustra a irreverência típica das vanguardas modernistas de começo
do século. Sua publicação no Dobrabil exemplifica uma atitude bastante característica
da literatura de Glauco e do desbunde dos anos 1970: o mergulho na pornografia e na
cultura underground como uma tentativa de esvaziamento, pela via do absurdo, das
violentas contradições da sociedade brasileira, agravadas na fase de maior repressão
durante a ditadura; situação que não era em nada diferente do restante da América
Latina.
Uma das passagens mais contundentes do Jornal Dobrabil, a esse respeito, é um
trecho de prosa que aparece ao pé da folha 17, atribuído a Miguel Ángel Asturias,
escritor guatemalteco, prêmio Lenin da Paz em 1965 e Nobel de Literatura em 1967.
Publicado em português, a trecho corresponde a algumas passagens do último capítulo
de El señor presidente (1946), livro mais famoso de Asturias. O título do capítulo de
que se serve Glauco, no livro de Asturias, é “Parte sin novidad”. No Jornal Dobrabil,
porém, o trecho aparece sem nenhuma identificação de fonte, exceto o nome do autor. O
trecho narra uma cena de tortura. Nela, um jovem é visto preso num calabouço, sem
nenhuma comunicação com a superfície, exceto uma pequena grande, por onde todos os
dias vê descer uma lata preenchida alternativamente com fezes ou comida, a depender
da hora do dia. Depois de muito tempo nessa situação, já perdendo os sentidos, o rapaz
avança sobre a lata e devora seu conteúdo, sem levar muito em conta o que come.
O episódio é publicado na página do Dobrabil ao lado de outras passagens
semelhantes tiradas de José Veríssimo, de Julia Lopes de Almeida, das Mil e uma noites
e dos 120 dias de Sodoma, de Sade. Nelas se cruzam alguns dos temas mais caros a
Glauco Mattoso: a escatologia, o sadomasoquismo e a tortura. São temas que
constituem o centro do interesse de outras obras de Glauco, como o Manual do
231
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
podólatra amador (1986) e Tripé do Tripúdio: e outros contos hediondos (2011). Aqui,
porém, a insistência sobre aspectos asquerosos da dejeção e do prazer sexual aponta
para um outro traço característico da poesia de Glauco e do Jornal Dobrabil: a
nivelação da literatura e da arte com a “merda” (ou a “obra”, se optarmos pela expressão
mais polida) e, do jornal, com o papel higiênico9.
É, contudo, ainda no trecho citado de Miguel Ángel Asturias que o compromisso
de Glauco com a arte do papel, bem como com as diferentes figuras que o intelectual
pode assumir, fica mais evidente.
Para dizer a verdade, a cena descrita por Glauco não corresponde exatamente ao
que se passa no romance de Asturias. As palavras e os trechos são tomados ipsis litteris
do romance. Mas é com o corte e a justaposição das passagens que Glauco cria a cena
anteriormente descrita,
fazendo parecer que os
dois
momentos aconteçam
simultaneamente. No romance de Asturias, o personagem não chega a se lançar sobre a
lata de excrementos, pensando ser comida. Ele sequer chega a se confundir. Mas o que
Glauco percebe muito agudamente é que a possibilidade de que isso aconteça é sugerida
nas entrelinhas do próprio livro de Astúrias. Astúrias somente não desenvolve a situação
por aí, enquanto Glauco, em sua versão, explicita-a duramente, deixando o leitor sem
alternativa. O truque e malícia muito sutis de Glauco está em deslocar o último dos três
trechos selecionado do capítulo de Asturias para o meio da sua versão, fazendo com que
as duas cenas, a da descida da comida e a das fases, pareçam a sequência natural uma da
outra. Mas não são: a sequência em que o jovem corre para a lata é continuação da cena
de descida da comida; ele nem mesmo se engana sobre o conteúdo da lata. O que há de
mais impressionante no efeito conseguido por Glauco, porém, é ele conseguir reescrever
o trecho, usando exatamente os mesmos trechos de Asturias, carregando-os com ainda
mais violência.
A diferença, portanto, não está somente no texto, isto é, na sua retórica ou
composição, mas no investimento de Glauco em operações de escrita que incorporam e
guardam a memória daquelas operações típicas e especificamente ligadas à cultura do
papel, como o corte, a colagem, o embaralhamento (cf. DERRIDA, 2004, p. 222-223).
São operações que já estão em jogo em todo o trabalho de diagramação do jornal, como
“Comparar a arte à merda é como comparar o jornal ao papel higiênico: questão de ponto de vista (*)”;
“(*) basta encarar o jornalismo como arte...”, dizem duas notas assinadas pelo próprio Glauco, no verso
do f. 46 (MATTOSO, 2001).
9
232
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
no caso mencionado, do verso do f. 26 (figura 1 e 3), e que aqui, tanto como lá,
evidenciam o enorme poder de criação ficcional desse suporte – o papel – e seus meios,
tão bem conhecidos e explorados pelo jornalismo, pela editoração e pela publicidade.
EPÍLOGO: SEM NOVIDADE
Insisti muito nas questões ligadas ao suporte. Mas o papel do intelectual também
é discutido muito diretamente por Glauco em outras passagens do Dobrabil. Por
exemplo, na coluna “LITTERATURA DE DENÚNCIA”, do f. 33; ou em
“¿metaphysica?”, do f. 44v. Seria difícil abordar aqui a intrincada problemática que
esses trechos sugerem; já tentei fazê-lo em outros trabalhos recentes, ainda que muito
lateralmente. Destaco, portanto, apenas o que se relaciona mais especificamente à
discussão de agora. A primeira passagem, a do f. 33, é uma matéria de primeira página
do jornal, publicada na posição que costuma ser reservada à seção de cartas e ao
editorial. Nela, Glauco faz uma espécie de balanço crítico da literatura de denúncia
publicada no Brasil até aquele momento. Na mira, estão os livros de quatro escritores
brasileiros com estreitas relações com a América Latina: Augusto Boal, Gabeira, Fon e
Fialho. A segunda passagem, do f. 44v, vem publicada no rodapé, e traz trechos de uma
carta escrita por Glauco em resposta ao jornal Movimento, na época em que, como deixa
entender, o jornal vinha sofrendo intimidações e agressões de agentes da ditadura. O
trecho não diz nada de específico sobre a América Latina. Mas pela grafia do título —
em pontuação exclusiva do espanhol —, dá a entender que as críticas de Glauco à
postura confrontadora, e, por vezes, temerária, do jornal poderiam ser também
generalizadas ao modo como a luta armada ou o sacrifício pessoal eram idealizados em
toda a América Latina como formas viáveis de resistência à repressão.
É muito significativo, a propósito, que Glauco chegue a nomear a América
Latina pelo menos uma vez, como tema, em um dos poemas-manifestos mais
importantes do Jornal: o “Manifesto coprofágico” (f 11v). O poema parte de uma
associação sugestiva: a semelhança fônica entre “latina” e “latrina”. As palavras,
invertidas, constituem as rimas iniciais e finais do poema. Obviamente, a crítica não se
dirige à América Latina como um todo, mas às camadas dirigentes e suas tendências
autoritárias e retrógradas, que dominam a vida política e social da região: religiosos,
233
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
militares, burocratas, funcionários de alto escalão e donos de empresa, em particular.
“[A] merda na latrina / daquele bar da esquina / tem cheiro de batina / de botina / de
rotina”, dizem os primeiros versos do poema. E segue na invectiva: “merda de gente
fina / [...] de teresina de santa catarina / e da argentina”.
Se as disparidades que caracterizam esse espaço geográfico, político e cultural
são as mesmas que se coagulam na privada de um bar qualquer de esquina, é porque,
apesar de tudo, a “latrina” é, ainda, um ponto de chegada ou de encontro; ou, mais
dramaticamente, de dejeção do melhor e do pior de todos (“bosta com vitamina / cocô
com cocaína / merda de mordomia de propina / de hemorroida e purpurina”). É para
essa dejeção que Glauco procura olhar atentamente, inclusive com forte carga de
identificação afetiva (“és meu continente [...] onde germina / minha independência”). É
dela, dessa “merda”/continente, principalmente, que procura fazer o seu jornal e a sua
poesia, aceitando o que ela tem de descomunal e monstruosa (“palindrômica”); também
de fecunda e irreverente:
merda comunitária cosmopolita e clandestina
merda métrica palindrômica alexandrina
[...]
tu és meu continente terra fecunda onde germina
minha independência minha indisciplina
és avessa foste cagada da vagina
da américa latina
(MATTOSO, 2001, f. 11v)
Como se pode notar, a América Latina tem um papel importante na poética de
Glauco e do Jornal Dobrabil, embora esse interesse não seja elaborado de forma
temática, mas alusiva. Sejam diretas ou indiretas, apócrifas ou autênticas, essas alusões
formam uma espécie de quadro ou pano-de fundo contra o qual o Jornal Dobrabil
projeta as questões políticas nacionais e internacionais que mais o inquietam. A própria
América Latina não está ausente dessas inquietações. Ela forma uma espécie de tópica
ou lugar-comum, ou, ainda, se preferirmos, o próprio horizonte em vista do qual as
discussões do Jornal ganham corpo. Procurando responder às questões mais dramáticas
do seu tempo, em particular aquelas ligadas à repressão política e à censura, essas
discussões buscam explorar e mesmo expandir a significação das relações entre
cosmopolitismo, nacionalismo e questões especificamente regionais ou continentais ao
234
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longo da obra. Embora discreta, a visão que o Jornal Dobrabil nos dá da América
Latina tem muito pouco a ver com o cosmopolitismo dominante das vanguardas de
meados do século e das elites dirigentes, quase sempre restrito à cultura e ao
desenvolvimento econômico dos países ricos; e nos pontos em que se coloca em
evidência, chama atenção, com particular delicadeza, para os laços de solidariedade que
unem e uniram, de diferentes maneiras, os povos latino-americanos, em especial,
durante os anos 1970, quando esses laços constituíam, para muitos, a única rota de fuga
à perseguição política.
REFERÊNCIAS
ASTURIAS, Miguel Angel. Latinoamérica y otros ensayos. Madrid: Guadiana de
Publicaciones, 1968.
DERRIDA, Jacques. O papel ou eu, os senhores sabem... In: DERRIDA, Jacques. Papel
Máquina. Trad. Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. P. 217-247.
EAGLETON, Terry. A função da crítica. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Sergio Faraco. Porto
Alegre, RS: L&PM, 2018.
GALERIA ALEGRIA. São Paulo: Memorial da América Latina, 2002, 49 p. (Cópia da
edição, disponibilizada digitalmente pelo autor)
GALVÃO, Walnice Nogueira. Página de livro, página de jornal. In: SÜSSEKIND,
Flora e DIAS, Tânia (org.) A historiografia literária e as técnicas de escrita: do
manuscrito ao hipertexto. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004. p. 622630.
GREEN, James N. O grupo Somos, a esquerda e a resistência à ditadura. In: ___ e
QUINALHA, Renan (Orgs). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a
busca da verdade. EdUFSCar, 2014. p. 177-200.
HARGREAVES, IAN. Journalism: a very short introduction. 2 nd ed. Oxford, United
Kingdom: Oxford University Pres, 2014.
MATTOSO, Glauco. Jornal Dobrabil. 2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2001.
SCHWARTZ, Jorge. Glauco Mattoso: um marginal à margem. Lampião da esquina,
Rio de Janeiro, ano 3, nº 33, fevereiro de 1981. p. 17. In: MATTOSO, Glauco. Jornal
235
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Dobrabil: e seus suplementos / Anthologia Digital. Arquivo disponibilizado
gratuitamente pelo autor, via compartilhamento em nuvem.
SILVA, Aguinaldo. A verdade sobre Garcia Lorca. Lampião da esquina, Rio de Janeiro,
n. 0, abr. 1978. Esquina, p. 4.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad.
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
236
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
GLORIA ESTEFAN EM GUANTÁNAMO: PROJETOS POLÍTICOS E
REPRESENTAÇÕES EM CENA
Igor Lemos Moreira1
INTRODUÇÃO2
Em 1995, a cantora cubana exilada Gloria Estefan realizou seu primeiro show
em Guantánamo. Apesar de ser considerado como território estadunidense desde a
proposição da primeira constituição cubana, a base naval de Guantánamo encontra-se
instalada em Cuba, o que permite considerarmos que, pela primeira em sua carreira, a
artista retornou a ilha para uma performance3. A apresentação da cantora, que havia
retornado a ilha de Cuba apenas uma vez desde seu exílio iniciado em 19594, integrou
as ações de divulgação de seu álbum Abriendo Puertas (1994), que tinha como temática
a aproximação entre os países do continente americano e, em especial, a integração
latino-americana globalmente através das identidades latinas.
Largamente coberto pela mídia televisiva e impressa, o show foi realizado nas
dependências da base militar estadunidense para agentes norte-americanos que ali
estavam e, em especial, para a comunidade exilada que estava dentro de Guantánamo
aguardando pela autorização para deixar Cuba e ir aos Estados Unidos. Nesse show, a
1
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina
com bolsa CAPES-DS. Graduado e mestre em história pela mesma instituição. Desenvolveu estágiodoutoral junto a University of Miami por meio do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior
(PDSE). E-mail: igorlemoreira@gmail.com.
2
O presente ensaio é resultado das reflexões que venho desenvolvendo em minha pesquisa de doutorado
no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Em minha
investigação analiso a trajetória artística de Gloria Estefan entre 1977 e 2011, com ênfase em seus
diferentes engajamentos políticos, sociais, econômicos e culturais, assim como na elaboração de
representações de cubanidades e latinidades no exílio.
3
Neste artigo consideramos apesar dos acordos diplomáticos existentes desde a primeira constituição
cubana, a baia de Guantánamo é um dos principais palcos de disputas políticas entre EUA e Cuba desde
1959, tendo servido em diversos momentos como centro de operações para a saída de exilados cubanos
para os Estados Unidos. Neste sentido, dimensionar a complexidade dessa região, que é arrendada aos
EUA, mas está sob território cubano é fundamental para refletirmos sobre a importância política e
simbólica da performance de Gloria Estefan em 1995. Apesar disso, é importante destacar que a cantora
até os dias atuais não reconhece diretamente esse “entre-lugar” e afirma que nunca pisou em solo cubano
para realizar um show ou uma apresentação desde o início de sua carreira.
4
A primeira viagem de Gloria Estefan a Cuba ocorreu ainda no início de sua carreira musical, quando
ela e seu esposo e companheiro de banda, Emílio Estefan Jr., viajaram ao país para tratar do processo de
migração de um familiar.
237
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
cantora apresentou um repertório de canções recentes em sua trajetória e integrantes dos
álbuns: Abriendo Puerta e Mi Tierra (19935). Tal apresentação, para além de integrar
uma fase da trajetória artística de Gloria Estefan em que pretendeu aproximar-se
novamente das questões culturais, sociais e políticas em Cuba também ocorreu no auge
do Período Especial em Tempos Paz, momento em que o país vivia uma crescente crise
econômica e social provocada, em especial, pelo colapso do bloco socialista após a
Queda do Muro de Berlim (1989), que aumentou o número de cubanos/as solicitando
deixar o país com destino aos EUA. Em função da alta procura, inclusive através de
meios ilegais e perigosos como as práticas de balsas nas quais cubanos/as se jogavam ao
mar, o governo dos Estados Unidos passou a instalar todos/as aqueles que aguardavam
pelo visto estadunidense na base militar localizada na ilha.
Neste breve ensaio pretende-se analisar fragmentos do show realizado por Gloria
Estefan em Guantánamo (1995), com foco em no processo de construção da
performance de Gloria Estefan naquele contexto, procurando perceber quais os sentidos
e projetos associados, em especial por meio da problematização de suas
intencionalidades. Como discussão central, mobiliza-se a noção de performance a partir
dos estudos de Diana Taylor (2013). Mais que respostas conclusivas, no decorrer deste
capítulo pretende-se demonstrar que a apresentação realizada em 1995 foi fundamental
para a construção de uma narrativa sobre Cuba e o exílio cubano. A escolha de
repertório, ou do arquivo como destaca Diana Taylor (2013), foi dimensão central para
elaborar um show pautado em canções de lamento, de saudade e de nostalgia.
GUANTÁNAMO RECEBE GLORIA ESTEFAN
Nas primeiras semanas de setembro de 1995 a cantora cubana exilada Gloria
Estefan visitou a base naval de Guantánamo junto com o artista Andy Garcia, também
cubano exilado. O objetivo principal era realizar uma apresentação de cerca duas horas
acompanhada pela banda Miami Sound Machine6 para aproximadamente 10 mil pessoas
5
Entre as canções que integraram o setlist do show estavam: Mi Tierra, Guantanamera, Montuno, Tres
Deseos e Abriendo Puertas.
6
Entre 1975 e 1989 Gloria Estefan foi vocalista do Miami Sound Machine, grupo no qual não apenas
atuou, mas também foi sua base para consolidação como artista latina proeminente na indústrias
fonográfica. Em especial, esse processo de expansão da banda, e por consequência da artista, teve início
em 1980 com a assinatura de contrato da banda com a CBS Discos International que, naquela época
238
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
na base militar. Apesar de entre as pessoas estarem membros das forças armadas e
diplomáticas estadunidenses que viviam ou trabalhavam em Guantánamo, a maioria do
público que acompanhou a performance era de cubanos/as que aguardavam autorização
para deixar Cuba em direção aos Estados Unidos.
Ao publicar uma fotografia da cantora na baia de Guantánamo em 01 de
setembro de 1995, o jornal Gazette7, um dos principais veículos de comunicação que
circulavam na região, narrava detalhes sobre a experiência de Gloria Estefan e Andy
García na ilha, afirmando que ambos haviam passado por uma agenda intensa de
entrevistas e depoimentos para televisão, jornais e emissoras de rádio e que, após essa
fase, estavam descansando e se preparando para o show a ser realizado em 08 de
setembro.
Atualmente os registros da visita encontram-se dispersos em fragmentos do
universo digital, podendo ser localizadas em plataformas digitais entrevistas de Gloria
Estefan para veículos estadunidenses, cubanos e produzidos por exilados em diferentes
regiões do globo. As falas da cantora nestes registros são entrecortadas, em função do
formato no qual estão disponíveis, mas apontam para a emoção da artista com a visita a
região, o impacto de sua chegada entre os/as cubanos/as alojados na base militar8 e o
interesse global dos veículos midiáticos por cobrir aquela ocasião.
A apresentação de Gloria Estefan em Guantánamo, marcando a primeira
apresentação da cantora na ilha de Cuba, foi motivada por uma série de fatores políticos,
globais e de interesse profissional da cantora. A década de 1990 é reconhecida pela
historiografia da Revolução Cubana (CHOMSKY, 2015; BUSTAMANTE, 2019) como
um momento de crise econômica, política e social, fase denominada como “Período
Especial em Tempos de Paz”. Com a queda do bloco socialista, Cuba perdeu não apenas
seu principal apoiador na geopolítica, mas também um dos maiores negociadores tendo
criava uma seção visando o mercado latino-americano e/ou falante de língua espanhola a partir do
estabelecimento de uma sede da CBS Discos em Miami.
7
Gazette, 01 de setembro de 1995.
8
Diversas imagens sobre o período da cantora na base militar registram o encontro com a comunidade
exilada através de muros, grandes de contenção, de encontros em ambientes fechados, fotografias com
crianças. O potencial de tais imagens (DIDI-HUBERMAN, 2020) que, em muitos casos, foram
“montadas” a partir das intenções de quem as registros para construir uma imagem de Gloria Estefan
como “salvadora” ou um “ídolo”, reside justamente em demonstrar o impacto de sua visita para aquela
comunidade exilada e, apesar dos esforços do regime revolucionário (MOORE, 2006) o reconhecimento
de sua figura em Cuba como parte da oposição. Alguns fragmentos de cenas gravadas podem ser
observados em: < https://www.youtube.com/watch?v=MNFVd039jho>
239
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em vista que apesar dos avanços da revolução o país seguiu focando sua economia
majoritariamente na exportação de cana de açúcar, levando a necessidade de importar
uma série de produtos de subsistência básica, como o próprio petróleo (GOTT, 2006).
Entre as consequências da crise econômica esteve a intensificação das ondas de
exílio com destino, em sua maioria, para os Estados Unidos em função da existência de
leis que facilitavam a entrada de cubanos/as no país. Todavia, a não autorização da
maioria destes sujeitos de deixarem o país acabou por gerar uma nova crise de
proporções humanitárias ao iniciar um grande movimento de saídas ilegais de Cuba
através de balsas construídas de maneira artesanal com sucatas (em especial garrafas e
plástico), além da sobrecarga do sistema estadunidense de avaliar as solicitações de
vistos, o que iniciou o processo de transferência daqueles que aguardavam para
Guantánamo.
A crise dos balseiros, como ficou conhecido esse processo, mobilizou uma série
de intelectuais, artistas, políticos e ativistas em torno da política cubana e da questão
dos exilados. Soma-se a isso os movimentos do presidente estadunidense Bill Clinton
em, como manobra de pressão e aumento de embargos a Cuba, flexibilizar as regras de
concessão de vistos provisórios para cubanos/as que chegassem ao país através da
reformulação do Cuban Adjustment Act9. Apesar do movimento dos balseiros, nem
todos os/as cubanos/as que que desejavam deixar o país se jogavam aos desafios das 90
milhas de oceano que separam Havana e o estado da Florida. Muitos procuravam a base
militar estadunidense, solicitando abrigo humanitário e/ou a entrada nos Estados Unidos
a partir da instalação em Guantánamo, criando assim um grande acampamento de
exilados/as que por vezes superou a marca das 10 mil pessoas (CHOMSKY, 2015).
Quando Gloria Estefan decidiu realizar sua performance, com apoio/parceria do
governo estadunidense e da base militar de Guantánamo, esse era o cenário em que
estava consolidando sua “guinada latina”. A ideia de “guinada latina” (MOREIRA,
2019), refere-se ao processo de artistas latinos ligados ao mainstream de retomarem as
suas identificações latinas nas produções. No caso de Gloria Estefan, nesse processo não
9
Em 1996 o Cuban Adjustment Act foi reformulado pelo presidente estadunidense e o congresso
nacional, passando a adotar uma política conhecida como “Pés-Secos, Pés-Molhados”, garantido a
concessão de visto para qualquer cubano/a que chegasse ao país independente da forma. Sobre isso ver:
M OREIRA, Igor Lemos. Half of my heart is in havana: Uma análise da trajetória da cantora cubana
Camila Cabello (2012-2018). Dissertação (mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro
de Ciências Humanas e da Educação, Programa de Pós-graduação em História, Florianópolis, 2019.
240
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ocorreu necessariamente uma retomada, pois seu projeto artístico-cultural sempre foi
pautado na música latina, em especial cubana, que era articulada a ritmos e gêneros
estadunidenses como o rock, blues, disco e pop. Desde seu primeiro disco em 1977,
como vocalista do Miami Sound Machine, a artista já trabalhava nessa hibridização,
identificando sua produção como parte do movimento Miami Sound, definido como
movimento artístico e musical das comunidade cubanas exiladas em Miami (PEREZFIRMANT, 2012).
Todavia, quando o Miami Sound Machine passou a integrar o catálogo da CBS
Discos International, percebe-se que progressivamente ocorre uma fase de maior
destaque para as sonoridades ligadas a world music. Apesar da latinidade de sua
produção ainda se fazer presente, essa ocupou segundo plano em diversos momentos
nos anos 1980, com raras exceções a exemplo da canção Conga (1985). Foi apenas no
início da década de 1990 que a cantora deu início a “guinada latina” em sua produção,
ou seja, um movimento de inversão no destaque de determinados ritmos e gêneros
musicais colocando as sonoridades caribenhas em destaque. Inicialmente, esse processo
se materializou na produção do disco Mi Tierra (1993), produzido junto de grandes
artistas cubanos exilados, a exemplo de Tito Puente, Arturo Sandoval, Cachao López,
Chamin Correa e Paquito d'Rivera.
O álbum Mi Tierra, que garantiu a Gloria Estefan seu primeiro Grammy além de
permanecer nas primeiras posições das paradas musicais latinas da Billboard por mais
de um ano, marcou a carreira da artista pois foi seu primeiro álbum solo totalmente em
espanhol e com canções compostas a partir de gêneros cubanos como a Conga, Salsa e
Montuno. Mi Tierra, em linhas gerais, era um álbum romântico, nostálgico e de
exaltação de uma Cuba imaginada não somente pela artista, mas por um grupo de
artistas cubanos/as exilados/as nos Estados Unidos que buscavam na música formas de
construir uma comunidade ligada pelas emoções. Tal comunidade emocional (SARDO,
2010) era ao mesmo tempo uma forma de se aproximar por meio das sonoridades que
determinavam uma identidade artística, mas também reforçar elos de pertencimento
coletivo, territorial e temporal.
Após o sucesso midiático, comercial e de crítica do álbum Mi Tierra em 1993,
Gloria Estefan produziu um segundo disco totalmente em espanhol. Lançado em 1995,
Abriendo Puertas possuía algumas semelhanças com seu predecessor, em especial pela
241
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língua oficial do disco e pela proposta de construção de uma identidade latina pelas
canções. Contudo, enquanto Mi Tierra tinha como central a identidade cubana,
ressaltando esse laço pelas composições, letras, sonoridades, capas e afins, o disco
Abriendo Puertas expandia esse projeto para uma identificação latina ampliada e
diversa. Apesar da questão territorial ser central, assim como foi no disco anterior, o
álbum Abriendo Puertas focou-se na construção de um narrativa sobre a própria
identificação latina globalmente, interpretando a latinidade como não limitada apenas ao
território físico, mas a construção de um sentimento de pertencimento, uma
representação, e uma identidade aberta a múltiplas visões (MIGNOLO, 2007).
Conforme destaca Marcos Napolitano (2016), a análise de canções (e álbuns) na
história deve buscar “mapear as camadas de sentido embutidas em uma obra musical,
bem como suas formas de inserção na sociedade e na história, evitando as
simplificações e mecanismos analíticos que podem distorcer a natureza polissêmica”
(NAPOLITANO, 2016, p. 78). Entre as múltiplas camadas de sentido que compõem a
narrativa de Abriendo Puertas, uma se destaca: a proposta de construção de um
sentimento de latinidade que unificasse e servisse como vínculo para a construção de
uma identificação coletiva acerca da América Latina em diferentes lugares do mundo.
Segundo Mignolo (2007), a noção de latinidade emerge como uma identidade
inventada a partir de processos coloniais e da construção de um outro, visto em especial
pela Europa como um grupo inferior. Racializada, a latinidade, todavia não pode ser
vista como um conceito fechado ou apenas como parte das estruturas coloniais tendo em
vista, ao longo do tempo essa identificação passou a ser apropriada por diferentes
sujeitos, grupos e comunidades enquanto forma de identificação, por vezes inclusive
positivando seu significado (MORALES, 2019). Tal processo ocorreu, em especial, a
partir dos anos 1980 e 1990 na ocasião em que nos Estados Unidos o termo “latino”
passou a ser reivindicado pelas populações latino-americanas no país em oposição ao
emprego do conceito de Hispanidade, tendo em vista que este, entre as diversas críticas,
destacava muito mais o vínculo colonialista europeu e invisibilizava a historicidade,
cultura e identidade de sujeitos nascidos na América Latina (CHOMSKY, 2007).
Com dez faixas, Abriendo Puertas abraçou tal ideia em um contexto
estadunidense de novos debates em torno dos direitos civis de migrantes e exilados, em
especial na alteração do Cuban Adjusment Act (1996). Diferentes canções como La
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Parranda, Milagro, Más Allá e a própria faixa título de Abriendo Puertas reforçavam
tal intencionalidade e foram mobilizadas na construção narrativa do disco. Neste
sentido, o álbum expandiu, mas também demonstrou o projeto cultural, social e político
de Gloria Estefan em suas produções nos anos 1990: construir narrativas sobre
cubanidades e latinidades em perspectiva global através da música.
As canções de ambos os discos, além de outras músicas da artista, integraram o
repertório do show realizado em setembro de 1995 na base militar de Guantánamo. A
articulação das interpretações com falas ao público e momentos de conexão entre artista
e espectadores auxiliaram a estruturar essa narrativa possibilitando perceber, a partir dos
fragmentos das gravações no tempo presente, questões fundamentais sobre os projetos e
identidades envolvidas na estruturação do show. Tal repertório buscava, de forma
ampla, articular canção, memória, oralidade e performance ao projetar sentimentos e
laços de pertencimento que respondiam a demandas do presente, mas demonstravam
horizontes de expectativas (KOSELLECK, 2006) possíveis visados pela cantora e as
comunidades exiladas.
O SHOW
Nos momentos finais do show de Gloria Estefan em Guantánamo a artista
dirigiu-se ao público descrevendo como se sentia emocionada por retornar a Cuba,
afirmando que para ela a base estadunidense na ilha era parte do território cubano. Em
sua breve fala, que antecedeu a performance da canção Mi Tierra, a cantora destacou
que aquele era um momento de retorno temporário ao país, mas que ela aguardava a
todos/as que integram o público naquela noite nos Estados Unidos, e mantinha
expectativas de um dia regressar a Cuba. Ao mencionar a espera pelos/as cubanos/as
exilados/as nos EUA a artista não estava falando apenas por si, mas também colocandose como representante da comunidade exilada e, indiretamente, como uma forma de
porta-voz estadunidense utilizando o pronome “nós”. Tal fala demonstrava um elemento
central de toda a viagem e do performance: a voz individual da artista era na verdade a
elaboração de uma identidade coletiva cubano-americana da qual ela se sentia portavoz. Mesmo que como pessoa individual, sua expressão estava sempre no plural,
243
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articulando a coletividade em torno de uma narrativa que destacava uma promessa
nacional (BUTLER; SPIVAK, 2018).
A fala, bastante breve e entrecortada pelo caminhar de um lado ao outro do
palco, demonstrava a síntese da narrativa e das intencionalidades da visita de Gloria
Estefan à base naval. Sua viagem não tinha apenas a intenção de divulgar sua música,
mas foi perpassada por intencionalidades políticas de reforçar uma narrativa constante
desde a Revolução Cubana na qual os Estados Unidos se colocavam em posição de
“solidariedade”/“protecionismo” com aqueles que desejavam deixa o país (ORTIZ,
2018). Tal discurso foi um dos principais instrumentos de pressão política contra Cuba
tendo em vista, além das políticas institucionais adotadas para facilitar o exílio, o
governo estadunidense por vezes optou por ignorar os movimentos políticos de exilados
no estado da Florida, em especial de iniciativas como a Cuban American National
Foundation (CHOMSKY, 2015).
A fala de Gloria Estefan, assim como seu show, incorporaram essa narrativa
buscando construir três representações complementares e intrínsecas: os Estados Unidos
como nação “salvadora”; Cuba como um país corrompido e que precisava (aos olhos da
artista) se tornar livre como nos anos 1940/50; a ideia de que a comunidade cubana e
latina precisava se unir globalmente. Ao elaborar essa narrativa, a cantora construiu tais
representações por meio de relações que se desenvolvem entre o visível e o invisível em
função da ausência do próprio objeto (RANCIÈRE, 2018).
As representações mencionadas foram elaboradas a partir da construção de
narrativas e foram pautadas em perspectivas políticas, sociais e culturais que orientaram
suas formulações. Neste sentido, o que era representado eram processos de construções
guiados a partir de regras e intencionalidades, pois como elaboração que dá visibilidade
a algo ausente, a representação não consegue determinar suas significações por parte do
público. Todavia, apesar de não ser possível determinar os sentidos atribuídos ao que foi
representado, é possível criar estratégias de orientações que fornecem indicativos
prévios acerca das intenções e projetos presentes naquelas representações (RANCIÈRE,
2012).
A fala final de Gloria Estefan no show foi um mecanismo fundamental nesse
processo. A mensagem, que servia como forma de orientação ao público, foi repetida
constantemente no decorrer da apresentação, mas na ocasião que foi proferida antes da
244
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apresentação de Mi Tierra ela foi potencializada pelo próprio simbolismo da canção. Mi
Tierra é uma canção que fala dos laços emocionais de pertencimento a Cuba, mas que
invoca uma terra sonhada, que não existe mais. A utopia presente na canção forma uma
narrativa sobre um passado cubano pré-revolucionário. Neste sentido, a narrativa da
canção possui uma conotação engajada ao invocar não apenas um país que não se faz
mais presente, mas ao lamentar acerca de uma promessa de nação que não foi cumprida
(VILLAÇA, 2004). De certa forma, a “terra” que se representa é uma ruína
(HUYSSEN, 2014) localizável pelas sonoridades, mas também pelos vestígios que
ainda habitam o país.
Certamente um dos pontos mais impressionantes do show é o diálogo com o
público, assim como o volume de pessoas que o integravam. Ao longo da performance,
percebe-se que os espectadores que acompanhavam o show seguravam faixas em
homenagem à cantora, com frases como “Gloria Estefan – Mi Tierra” em alusão tanto à
canção como aos projetos sonoros da cantora de buscar pela canção estabelecer laços
com Cuba. Em diferentes momentos o processo de edição da gravação do show focou
em pessoas cantando uma determinada música em coro, exaltando a cantora ou
dançando. Destaca-se também os momentos de diálogo da cantora com o público que
respondia imediatamente as falas de Gloria Estefan entre as músicas.
A participação ativa do público durante a performance, levantando faixas,
cantando as canções junto a artista ou substituindo a voz de Gloria Estefan quando a
artista voltava seu microfone para a plateia, ou mesmo com camisetas com frases das
canções indicam que apesar dos esforços do governo revolucionário a produção da
cantora, assim como de outros artistas exilados conseguiam adentrar e circular na ilha.
A circulação das canções de Gloria Estefan, assim como de Willy Chirino e outros, foi
parte do processo de abertura econômica pensado como via de resolução da crise
econômica do Período Especial em Tempos de Paz. Nesse momento,
One unexpected result of the capitalization of music making is that
recordings of exiled artists rarely heard on the island since the 1960s
are more accessible. For years, Cubans listening to Osvaldo Farrés,
Celia Cruz, Olga Guillot, Rolando Laserie, and others had to do so in
their own homes behind closed doors; their music now appears on
store shelves once again and on the street in pirated form. Releases by
New York salseros are available as well, and in some cases even discs
by devoutly anti-Communist Cuban Ameri cans Gloria Estefan and
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Willie Chirino! Market forces seem to have broken down what
Cubans refer to as the autoblockade: state policies that restricted the
domestic circulation of certain products. Concern for sales has taken
precedence over the ideological content of recordings in most cases
(MOORE, 2006, p. 233-234).
É interessante perceber o conhecimento de cubanos de artistas exilados em meio
ao processo de inversão de abertura do controle da arte que circulava em Cuba, com a
ascensão da economia acima da ideologia em um país que durante os anos 1960 e 1970
havia criado instituições de controle da arte para que essa se enquadrasse nos planos
revolucionários (VILLAÇA, 2004). Em especial, se pensarmos na própria visita e no
discurso anticastrista de Gloria Estefan, é possível considerar que a entrada de suas
produções, assim como a recepção por parte daqueles que eram contrários ao governo,
mas ainda vivam na ilha, foi um dos pontos que levou a mais cubanos/as a desejarem
partir ao exílio. Tal hipótese, mesmo que ainda superficial em análise, pode ser
percebida não apenas pela circulação, mas em especial pela recepção da performance
pelos/as exilados/as em Guantánamo.
Percebe-se que, ao longo do show, a participação do público e as canções
apresentadas mobilizavam relações que podem ser interpretadas entre arquivo e
repertório. Para Diana Taylor (2013), arquivos seriam registros escritos, uma forma de
vínculo fixado no tempo por meio do ato de registrar enquanto o repertório é a
manifestação viva de tais memórias, uma forma de vivência constante da temporalidade
que se dá pela performance. Segundo Taylor, o ato performático une o arquivo e o
repertório de forma complementar, articulando-os “para produzir ritmos novos e
transculturados para responder a essa realidade nova e transculturada” (TAYLOR, 2013,
p. 365).
No decorrer do show em Guantánamo parte das relações entre arquivo e
repertório se deram pela relação entre a memória do público e sua performance
manifestadas, especialmente as registradas em suportes audiovisuais. As vozes que
cantavam coletivamente, neste sentido, mobilizavam essa relação buscando criar um
laço de pertencimento a uma nação que era não apenas inventada, mas que naquela
ocasião passava a viver apenas na própria performance (BUTLER; SPIVAK, 2018) e na
temporalidade que fixava a representação sobre Cuba. Em especial, percebe-se nesse
processo uma forma de desterritorialização que ocorre muito mais pela voz e pela
246
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
performance do que necessariamente pela geografia ao percebermos que Gloria Estefan,
a banda e o público entoam junto canções sobre um país e uma identidade latina que
estaria bastante próxima territorialmente, tendo em vista que o show ocorreu em
Guantánamo, mas que parece distante do ponto de vista emocional, político e
imaginativo.
Além das faixas e da participação do público, a proposta do show de Gloria
Estefan foi incorporada também ao palco que contava com uma numerosa banda de
artistas cubanos/as exilados/as entre músicos e backing vocals, além de uma equipe de
filmagens que transitava por todo o espaço. Todos/as os/as integrantes da banda usavam
roupas brancas, o que pode ter sido pensado como traço de simplicidade, mas também
de reforço da relação com a cultura yorubá tendo em vista que, em mais de uma ocasião
ao longo da vida de Gloria Estefan ela mencionou sua conexão com tais práticas.
Alguns dos figurinos, em especial dos músicos, tinham bandeiras de Cuba e dos Estados
Unidos desenhadas de forma cruzada com dizeres como “Cuban-American”, reforçando
uma narrativa que ligava o exílio cubano aos EUA.
Ao longo do show de Gloria Estefan em Guantánamo a relação entre Cuba e
Estados Unidos é tematizada, seja pelas canções ou através de falas. Todavia, esse
processo não é oposto, mas sim complementar a construção de uma narrativa sobre
Cuba que reforça a oposição anticastrista da cantora, dos EUA e da comunidade exilada.
O encadeamento/roteiro do show foi central neste sentido, inclusive ao próprio a
reinterpretação de canções tradicionais cubanas a exemplo de Guantanamera, música
que usa de frases de um poema de José Martí, que foi apresentada junto a faixa
Montuno, de Gloria Estefan, e que tematiza o próprio gênero musical cubano.
Tais elementos de referência foram fundamentais na construção das
representações, narrativas e no próprio projeto político, cultural e social que simbolizou
a ida da cantora, e Andy Garcia, a Guantánamo para realização do show. Tais
referências, retomando a ideia de arquivo para Diana Taylor (2013) foram centrais para
a manifestação do repertório da artista (no sentido teórico e artístico da palavra), o que
conferiu a sua performance sentidos políticos e de mobilização de temporalidades
múltiplas na busca por reforçar um pertencimento seu e das comunidades exiladas no
tempo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O show de Gloria Estefan em Guantánamo marcou o processo cubano de
abertura econômica e cultural gerado pelo Período Especial em Tempos de Paz.
Anteriormente à visita da cantora, em 1995, outros artistas exilados e publicamente
anticastristas já haviam visitado a base militar estadunidense no país, a exemplo de
Célia Cruz no início dos anos 1990. Assim como Cruz, Gloria Estefan visitou espaços
locais, concedeu entrevistas e apresentou um show para cubanos/as que desejavam
deixar o país com finalidades semelhantes: divulgar sua produção articulada a construir
uma narrativa que reforçava o papel dos Estados Unidos como nação que receberia
todos/as aqueles/as que desejassem deixar Cuba.
Interligados, os dois pontos convergem na reafirmação de uma narrativa
anticastrista e antirrevolucionário que integra a própria negação que perpassa o exílio
Cubano pós-revolução de 1959 (DUANY, 2011). No caso de Gloria Estefan, essa
narrativa havia se apresentado de diferentes formas desde sua entrada na banda Miami
Sound Machine em 1975. Inicialmente sua produção representava a condição exílica
(SAID, 2003) como uma sensação nostálgica, uma descontinuidade com o seu horizonte
de expectativas e com a própria nação com a qual se identificação.
Na década de 1990 essa narrativa nostálgica ainda permanecia (MOREIRA,
2020), mas como artista solo é perceptível que essa representação passava a assumir
contornos políticos mais definidos, presentes em especial em canções e falas que
reforçavam a possibilidade de um dia retornar a Cuba quando o governo de Fidel Castro
deixasse o poder. Essa expectativa estava associada, em certos aspectos, a incorporação
de uma identificação de Gloria Estefan como Latina e como Cubano-Americana,
destacando desta forma não apenas a dimensão global de sua identificação ao se
perceber como parte da comunidade latinx, mas também sua concordância com o
posicionamento estadunidense sobre Cuba.
O show realizada em 1995 demonstrou tal intencionalidade tendo em vista que
ocorreu em uma base militar estadunidense na ocasião em que a cantora divulgava um
disco que buscava promover a identificação latina globalmente e no qual Cuba passava
por processos de reorganização social, política e cultural, tendo como uma das
consequências principais a dolarização e abertura ao capital estadunidense de forma
248
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
controlada (GOTT, 2006). As canções apresentadas, a cobertura midiática, a
participação do público e outros elementos que foram pontuados neste ensaio fornecem
elementos para contextualizar e refletir sobre esse processo que atravessa a carreira da
cantora, mas que diz respeito a diferentes redes culturais existentes na América Latina.
Em especial, através da análise da performance, percebe-se de que forma a
artista transitava entre Cuba e os Estados Unidos na dimensão artística (através de sua
produção), mas assim como outros artistas foi fundamental do ponto de vista político e
das relações internacionais/diplomáticas culturais ao se apresentar em Guantánamo.
Entre elementos que transitam de memórias a performances, arquivos a repertórios,
redes a circulações, Gloria Estefan possibilita refletir sobre o papel central dos artistas
exilados na construção de narrativas sobre Cuba no Tempo Presente. Desta forma,
pensar a revolução cubana através de seus desdobramentos é um exercício de refletir
sobre a atuação de diferentes sujeitos através de um longo período que não se limita
apenas ao calor do momento revolucionário ou ao espaço geográfico do Caribe
(BUSTAMENTE, 2019).
As interpretações apresentadas são breves ideias que estão sendo desenvolvidas
no âmbito de minha pesquisa de doutoramento em História no qual analiso a trajetória
artística de Gloria Estefan entre 1977 e 2011. Este texto, de caráter ensaístico, constitui
uma breve análise da performance como manifestação de sentidos, intencionalidades e
redes decorrente de relações entre corpos, memórias e sujeitos (TAYLOR, 2013).
Procuramos, em linhas gerais, mais que respostas fechadas apontar para processos que
atravessaram o show da cantora em Guantánamo, atentando em especial para a
centralidade das narrativas e representações centralizadas pela performance. Desta
forma, pretendemos estimular o debate e a reflexão a respeito das circularidades entre
Estados Unidos e Cuba por meio dos artistas exilados compreendendo sua atuação
política, social e cultural na construção de visões sobre o país, sobre os Estados Unidos
e a própria revolução de 1959.
REFERÊNCIAS
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New Directions in Scholarship. Cuban Studies, Volume 47, 2019.
249
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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250
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
DE PONTOS DE CULTURA À CULTURA VIVA COMUNITÁRIA: TEIAS DE
POLÍTICAS PÚBLICAS E DE AGENTES CULTURAIS NA AMÉRICA
LATINA
Juan Ignacio Brizuela1
Alexandre Barbalho2
INTRODUÇÃO
É possível pensar uma política pública de cultura transnacional e popular no
contexto latino-americano? Em artigo publicado no Brasil no início dos anos de 1980,
Nestor García Canclini traçou uma tipologia das políticas culturais vigentes na América
Latina até aquele momento, tendo como parâmetro o modo como elas lidavam com a
questão do “nacional-popular”: 1) a biológico-telúrica; 2) a partidária do Estado; 3) a
mercantil; 4) a militar; e 5) a histórico-popular.
A concepção biológico-telúrica é mais afeita aos regimes oligárquicos e ao
nacionalismo de direita, pois entende a nação como uma unidade definida por laços
naturais, seja geográfico (o espaço territorial), seja biológico (a raça), e irracionais (o
amor à terra natal, a religião). Esta concepção integradora desconsidera as diferenças
sócio-culturais e políticas que compõem a nação e busca, no plano simbólico, operar
com uma identificação hegemônica do que considera como “interesse nacional”. Nessa
política cultural, o “Ser nacional" é estabelecido pelas grandes famílias privilegiadas e
aristocráticas, com suas concepções de submissão à ordem e respeito às origens. A
constituição histórica e conflituosa da nação é diluída na noção apaziguadora de
“tradição” em prol das instituições: Igreja, Exército, Família e Propriedade.
A política cultural correspondente à concepção biológico-telúrica tem como base
a promoção do “folclore”, que é a fossilização e a despolitização da cultura das camadas
populares. Assim, não está interessada em entender as “novas práticas de apropriação
com que os setores populares tentam modificar sua dependência da cultura hegemônica
1
Doutor em Cultura e Sociedade (IHAC/UFBA). Pesquisador bolsista de pós-doutorado da Cátedra
Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência (IEA/USP). e-mail: juanbrizuela@usp.br.
2
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Professor permanente dos PPGs em
Sociologia e em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará e em Comunicação da
Universidade Federal do Ceará. E-mail: alexandrealmeidabarbalho@gmail.com.
252
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
ou criam, inventam, o que o sistema dominante não lhes dá para satisfazerem suas
necessidades” (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 41). O movimento que importa é o de
afirmação da identidade nacional em contraposição à alteridade daquele que não
pertence ao meio, mas que vem perturbar a sua paz.
A segunda concepção é a estatista, também apoiada em uma visão
substancialista do nacional. Só que aqui a base da nacionalidade é o Estado. É ele quem
legitima os valores a serem cultuados pelo povo e que integra a sociedade, regulando os
conflitos. Afasta-se do ideário liberal do Estado democrático já que se sustenta nas
corporações e no ideário “populista”, geralmente personificado na figura de um “grande
líder”, como Vargas no Brasil e Perón na Argentina, ou de um partido coeso, como o
PRI no México. A política cultural estatista, na simbiose entre nacional e Estado e se
posicionando contrariamente às oligarquias, procura unir as camadas populares e a
burguesia nacional. Para isso, promove tanto determinadas expressões das culturas
populares, como o samba no Brasil e o tango na Argentina, quanto das indústrias
culturais, como o rádio e o cinema.
A outra concepção é a mercantil, onde o Estado se faz presente pautado
prioritariamente, não pela questão da cultura nacional, mas pela constituição de um
mercado nacional. O esforço é o de unificar os padrões e os costumes, de modo a
formatar o consumidor e potencializar a circulação das mercadorias, inclusive, ou
principalmente, a de bens simbólicos. Se na lógica estatista há a transformação do
étnico e do popular no nacional, na lógica mercantil eles se reduzem ao “típico”, mais
uma vez em detrimento da pluralidade e das diferentes expressões culturais da nação.
Geralmente esse típico é apresentado (e/ou vendido) recorrendo a formatos
espetaculares, em um movimento que, como define García Canclini (1983), perde em
explicação e ganha em exposição. O que ocorre, desse modo, é uma política cultural
promotora da padronização em nome do mercado.
A quarta concepção é a militar que tomou sua forma mais bem acabada após o
golpe no Brasil em 1964 e que, posteriormente, foi seguido por outros países latinoamericanos, como Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Peru e Uruguai. Como força
presente nos rumos políticos da região desde os momentos iniciais da independência, o
Exército resolve assumir o controle do Estado e da sociedade diante das ameaças
externas (o comunismo), da desordem interna (conflitos sociais) e em nome da ética no
253
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
combate à corrupção dos chamados “governos populistas”. A base ideológica e
pretensamente legitimadora dos golpes militares de Estado na América Latina é a
“Doutrina da Segurança Nacional”, motivada pelos temores gerados pela Guerra Fria e
pela revolução cubana e fundamentada nos ensinamentos vindos da Academia Militar
Norte-Americana, com posterior contribuição dos militares franceses. A política cultural
gerada por tal doutrina é a da apologia de determinados elementos da cultura nacional
mais apropriados à necessidade de controle por parte dos militares e, por outro lado,
inibindo a participação da população e de suas organizações (sindicatos, organizações
de bairro, estudantis etc).
Por fim, a concepção histórico-popular. Analisando o que naquele momento
representava as experiências desta concepção (Cuba, Nicarágua, Guatemala, El
Salvador, Unidade Popular Chilena, Peronismo Revolucionário Argentino), García
Canclini conclui que esses movimentos estão unidos mais pelas ações políticoeconômicas e sociais do que por suas políticas culturais e que existem várias e
divergentes concepções acerca do “popular”, sendo que, muitas vezes, a cultura não está
nem explicitada como vetor das lutas sociais. O que há, portanto, é muito mais um
“repertório de problemas” do que uma “fórmula alternativa ou de projetos elaborados do
que seria uma política popular na cultura” (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 48).
A análise de García Canclini, no momento em que foi feita, não poderia dar
conta de fenômenos que são imediatamente posteriores como, por exemplo, o fim do
bloco socialista, a ascensão do neoliberalismo, a escalada do processo de globalização e
o gradual retorno à democracia nos países latino-americanos. Faz-se necessário,
portanto, atualizar sua tipologia – o que não será feito neste artigo, diga-se logo de
antemão – e um dos caminhos possíveis é recorrer ao conceito de “espaço cultural
latino-americano”, tal como desenvolvido por Manuel Garretón. O autor levanta três
hipóteses que considera básicas para compreender este espaço na contemporaneidade: 1.
“no habrá integración de los países latinoamericanos a la globalización si no es por
medio de la integración en un bloque proprio”; 2. “la dimensión cultural constituye un
eje fundamental en la conformación de un bloque latinoamericano que se integra al
mundo globalizado”; 3. “si la conformación del gran espacio mundial se hace a través
de espacios culturales, América Latina puede ser uno de esos espacios” (GARRETÓN,
2008, p. 45-48).
254
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
255
Por outro lado, Garretón enumera três dificuldades a serem enfrentadas para que
esse espaço consiga se efetivar. A primeira é que com a crise das comunidades
nacionais provocada, entre outros vetores, pela globalização, faz-se necessário recompor
os parâmetros de pertença. O que pode ser uma oportunidade de superar os padrões de
nacionalidade excludente, elaborados pelas concepções anteriores (biológico-telúrica,
estatista, mercantil e militar), e efetivar um modelo mais democrático não alcançado
pela concepção histórico-popular, mas que dê conta dos parâmetros locais, nacional e
supranacional. A segunda dificuldade é a da exclusão social, ou seja, “la expulsión de
masas que ya no pertenecen a las comunidades nacionales ni siquiera en calidad de
explotadas
u
oprimidas,
sino
que
aparecen
como
simplemente
sobrantes”
(GARRETÓN, 2008, p. 48).
Por fim, a falta de vontade política dos grupos dirigentes para a construção do
espaço cultural latino-americano, que está formado por alguns componentes básicos:
identidades; patrimônio; memória; educação; ciência e tecnologia; indústrias culturais.
No que diz respeito a esse ponto, quando se observa as relações entre as políticas
culturais na América Latina, a constatação é de que, historicamente, tais relações são
muito tênues. No caso do Mercosul, por exemplo, a questão da integração cultural e a
discussão sobre o seu significado e consequências só foram introduzidas na Cúpula de
Fortaleza, em 1996, de onde surgiu o “Protocolo de Integração Cultural do Mercosul”.
Apesar de pouca ação prática ter sido de fato executada, algo se avançou em termos de
discussão sobre o assunto desde então, em especial nas reuniões dos ministros da
Cultura dos países membros. Na de 2002, no Rio de Janeiro, se deu o “Seminário
Indústrias Culturais no Mercosul”, cujo documento final recomendava, entre outras
coisas, a criação de um sistema de informações culturais; a constituição de um
Observatório Cultural do Mercosul; o aumento do intercâmbio das indústrias culturais
entre os países do bloco; e a criação de contas satélite na cultura (ÁLVAREZ, 2003).
No entanto, as recomendações privilegiavam mais o setor privado do que o público e a
participação do Estado no processo de produção, circulação e consumo de bens culturais
se restringia ao papel de financiador, observador e regulador. Como se verá, o Mercosul
terá papel singular em relação aos Pontos de Cultura, objeto de reflexão deste capítulo.
Partindo desse contexto, o que se propõe é analisar a formação de redes políticoculturais no espaço latino-americano contemporâneo, tendo como foco de investigação
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
256
o processo de internacionalização e territorialização da experiência dos Pontos de
Cultura (PCs) e o surgimento da rede “Cultura Viva Comunitária” na América Latina, a
partir da sua implantação como política pública de cultura no Brasil no primeiro
governo Lula.
O artigo se organiza em quatro partes seguidas das considerações finais. Na
primeira, aborda-se os momentos iniciais de circulação e formação de redes entre os
intelectuais latino-americanos. Na segunda, apresenta-se a política cultural vigente no
Brasil de 2003 a 2016, com destaque para o Programa Cultura Viva (PCV) e os PCs.
Por fim, nas seções seguintes analisa-se a constituição da “teia” – para usar um termo
caro aos “ponteiros”3 – de PCs na América Latina e como essa política foi redesenhada
em sua expansão pelo subcontinente.
REDES
DE
INTELECTUAIS
NA
AMÉRICA
LATINA:
UM
BREVE
PANORAMA HISTÓRICO
Há uma história, ou talvez mesmo uma tradição, de circulação e formação de
redes entre intelectuais latino-americanos que é bem anterior e diferente do contexto de
trocas entre pesquisadores que se formou por meio do campo acadêmico, a partir da
segunda metade do século XX. As redes acadêmicas se constituíram com fins
eminentemente científicos e, eventualmente, abordaram as políticas para o setor4, com
perfil mais institucionalizado e apoio de governos locais e instituições de financiamento
privadas norte-americanas e europeias ou organismos como a Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe (DEVÉS, 2012; PEÑA, 2014).
Já as redes de intelectuais de fins do século XIX até a década de 1970 eram de
literatos e ensaístas e possuíam, geralmente, o intuito de interferir na conjuntura
político-cultural de seus países ou mesmo do subcontinente. A partir das definições de
Gisèle Sapiro (2009) e Pierre Bourdieu (1999), pode-se afirmar que se tratavam de
intelectuais entendidos como produtores culturais que, com a autoridade adquirida nesse
campo, participavam ativamente da esfera pública e de seus debates e embates; em
3
Termo com o qual se auto nomeiam os agentes envolvidos com os pontos de cultura e seu movimento
no Brasil.
4
A título de exemplo, ver as redes constituídas nos campos acadêmicos da teoria e da crítica literária
(PEÑALOZA, 2013) e também da literatura comparada (ZÓ, 2013).
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
outras palavras, da ação política e da produção ideológica de seu tempo. É o caso, por
exemplo, da Unión Latino Americana (ULA) que existiu entre 1923 e 1930 e se propôs
a reunir os intelectuais latino-americanos para se contraporem ao imperialismo
estadunidense, tendo como veículo de circulação de suas ideias a revista Boletín
Renovación (González et al, 2019). O fundador da organização foi José Ingenieros, um
pensador ítalo-argentino com grande inserção em vários campos da vida pública
argentina e um dos divulgadores do pensamento socialista em seu país.
As revistas, tais como a Boletín Renovación, que possuíam o perfil de
publicações político-culturais, foram o principal meio de materialização das relações
entre intelectuais latino-americanos e de circulação de suas ideias ou foram elas próprias
constituidoras de redes a partir de sua existência. Pode se dizer, também, que as redes se
transformaram a partir de suas revistas, na medida em que estas foram incorporando
colaboradores não previstos. Percebe-se, desse modo, uma relação rica entre redes de
intelectuais, circulação de ideias e periódicos (MAÍZ, 2013; MAÍZ; FONSECA, 2019).
Um bom exemplo é o da Martín Fierro, fundada em Buenos Aires em 1924 que
reuniu os modernistas argentinos. Ainda que de forma tortuosa, o periódico relacionavase com o “americanismo”, ou seja, com “a inclusão em um ‘nós’ mais amplo, a partir do
qual a revista se situa como parte do ‘despertar intelectual da América Latina’”, como
situa Karina Vasquez (VASQUEZ, 2005, p. 76). Tanto que um de seus principais
colaboradores, Oliverio Girondo, saiu em missão pela América e pela Europa para
divulgar a produção literária e os periódicos de seu país e estabelecer laços e
intercâmbios com escritores americanos e europeus, tendo passado inclusive pelo Rio
de Janeiro.
É importante ressaltar, ainda, o papel que desempenharam os partidos e as
agremiações de esquerda, em especial os comunistas, para a circulação de intelectuais
engajados e de suas obras. Caso emblemático, no Brasil, é o de Jorge Amado, que
iniciou seu envolvimento com a juventude comunista em 1920 e esteve atuante no
partido, pelo qual foi eleito deputado federal em 1945, até 1956. Como situa Marisa de
Mello em sua pesquisa sobre o processo de consagração de escritores brasileiros,
Amado era o tipo ideal de intelectual a ser promovido pelo PCB entre os setores
progressistas brasileiros e internacionais, de modo que “a grande rede cultural que
257
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
envolvia o partido, como jornais, revistas, as editoras, os congressos e os prêmios,
contribuiu para a divulgação de seu trabalho” (MELLO, 2019, p. 58).
Também foram importantes as redes constituídas em torno dos movimentos
revolucionários latino-americanos e, particularmente, da revolução cubana. Como situa
Adriane Costa, o movimento vitorioso em Cuba promoveu, nos anos 1960, uma rede
intelectual de esquerda cujos integrantes possuíam opiniões semelhantes, se
expressavam praticamente nos mesmos periódicos, reuniam-se periodicamente em
congressos e trocavam correspondências. O seu repertório discursivo “apelava,
principalmente, para
o fomento
da integração
cultural
latino-americana, o
fortalecimento do compromisso político-social do escritor, a defesa da causa cubana e
do socialismo e, por fim, a promoção da luta anti-imperialista” (COSTA, 2009, p. 47).
Observamos, assim, que a construção de redes artísticas e culturais no continente
latino-americano ao longo do século XX, em especial até o final da guerra fria, tinha
uma lógica muito mais hispano-americana do que efetivamente latino-americana, em
toda a sua abrangência. O papel do intelectual, engajado politicamente em partidos de
esquerda, também era comum na liderança destes intercâmbios político-culturais. Dessa
forma, não era raro a participação destes “notáveis” na construção de políticas públicas
ou na gestão de instituições artísticas e culturais, embora sejam contribuições mais a
título individual e não em nome das redes. Finalmente, embora possa ser exagerado
sinalizar que a maior parte vinha das elites econômicas, claramente detinha um alto grau
de capital simbólico, bem como uma formação e uma legitimação civilizatórias
atreladas a um mundo eurocentrado.
De todo modo, não se observa, ao longo dessa trajetória, a constituição de redes
de intelectuais oriundos das classes populares, muito menos que compartilhem e
promovam uma política cultural popular5, pois, como visto na introdução, não era esse o
caso do tipo "histórico-popular", descrito por Garcia Canclini. O que posiciona como
inovadora a rede dos PCs e da Cultura Viva Comunitária que se estabeleceu no espaço
cultural latino-americano no novo milênio. Antes, contudo, de analisar a formação dessa
rede ou dessa "teia", é necessário localizar a criação do PCV e dos PCs no contexto da
política cultural brasileira.
5
A esse respeito ver o levantamento realizado no âmbito da Cátedra Andrés Bello, ligada à
Universidade Federal da Bahia, para o contexto íbero-americano (RUBIM; PITOMBO; RUBIM, 2005).
258
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
O PROGRAMA CULTURA VIVA E A POLÍTICA CULTURAL NOS
GOVERNOS PETISTAS
O Programa Cultura Viva (PCV) e a ação dos Pontos de Cultura (PCs) podem
ser considerados como paradigmáticos da política cultural brasileira estabelecida a partir
do primeiro governo Lula, sob liderança do ministro da Cultura Gilberto Gil. Como
demonstra uma ampla e consolidada bibliografia (ver, entre outros, BARBALHO;
RUBIM,
2007;
BARBALHO;
BARROS;
CALABRE,
2013;
BARBALHO;
CALABRE; RUBIM, 2015; CALABRE, 2009; RUBIM, 2010, 2011), tratou-se de um
momento em que o Estado retomou o papel de formulador e executor das políticas
públicas de cultura, o que implicou, entre outras consequências, no esforço em
institucionalizar essas políticas, como demonstram, por exemplo, a elaboração do Plano
Nacional de Cultura, de duração decenal e a implantação do Sistema Nacional de
Cultura, e no desenho de programas e ações inovadores que tornaram-se, inclusive,
referências para outros países como o DOC-TV.
Lançado em julho de 2004, o Programa Cultura Viva sintetiza esses dois
aspectos, pois busca se configurar como política estruturante - tanto que foi promulgada
a Lei 13.018 em julho de 2014, criando a Política Nacional de Cultura Viva - e
apresenta um formato arrojado ao eleger como público alvo parcelas da sociedade
brasileira que historicamente ficaram à margem das políticas culturais, a partir de uma
concepção ampla de cultura, privilegiando sua dimensão comunitária, popular e
participativa. Não se trata aqui de fazer uma análise, muito menos uma avaliação do
PCV e dos PCs, tarefas que já foram enfrentadas por diversos pesquisadores e
pesquisadoras (ver, por exemplo, BEZERRA, 2014; BARBOSA DA SILVA, 2014;
BARBOSA DA SILVA; ARAÚJO, 2010; BARBOSA DA SILVA; CALABRE, 2011;
BARBOSA DA SILVA; LAMBREA, 2017; DOMINGUES, 2013; MENEZES, 2013;
OLIVEIRA, 2018), mas apenas apresentar suas linhas gerais de funcionamento.
Segundo o Ministério da Cultura (MinC) o Programa foi concebido como “uma
rede orgânica de criação e gestão cultural, mediado pelos Pontos de Cultura, sua
principal ação”. Pensado como uma política de continuidade, seu intuito principal era
articular a atuação governamental com experiências político-culturais já existentes na
259
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
sociedade – que passariam a ser nomeados de PCs – buscando, dessa forma, criar “um
ambiente propício ao resgate da cidadania pelo reconhecimento da importância da
cultura produzida em cada localidade” (BRASIL, s/d, p. 18). O papel do MinC era o de
“agregar recursos e novas capacidades”, ofertando, por meio de seleção pública no
formato de edital, aporte financeiros e equipamentos de informática repassados por
meio de convênios a PCs selecionados em todas as regiões do país.
Entre os objetivos do PCV, destaca-se, para fins deste artigo: “identificar
parceiros e promover pactos com diversos atores sociais governamentais e nãogovernamentais, nacionais e estrangeiros”; dar “vazão à dinâmica própria das
comunidades e entrelaçando ações e suportes dirigidos ao desenvolvimento de uma
cultura cooperativa, solidária e transformadora”; e “fomentar uma rede horizontal de
transformação, de invenção, de fazer e refazer, no sentido da geração de uma teia de
significações que nos envolve a todos” (BRASIL, s/d, p. 18, grifo nosso). Inicialmente
implementados como uma política federal, posteriormente os PCs foram objetos de
editais estaduais e municipais, em parceria com o MinC, tornando-se assim uma espécie
de exercício prático do Sistema Nacional de Cultura, que vem sendo desenhado e
implementado pelo Ministério desde 2003 (BARBALHO, 2019).
O público prioritário, como antecipado, era constituído por setores da sociedade
brasileira até então pouco ou nada beneficiados com as políticas culturais que, desde a
redemocratização, tinham como suporte central as leis de incentivo, instrumento de
financiamento que tende a favorecer a elite da produção cultural do país. Em outras
palavras, o PCV buscou alcançar as populações de baixa renda, mais sujeitas a situações
de vulnerabilidade social, além das minorias (comunidades indígenas, rurais,
quilombolas, ciganos, GLBTQ+) e agentes culturais e ativistas sociais envolvidos com
ações de combate à exclusão sócio-cultural.
Os elaboradores do PCV previam, no contexto da política externa do governo
Lula, formalizar como PCs experiências semelhantes realizadas por comunidades de
brasileiros no exterior, nomeadamente nos Países do Mercosul e na Comunidade de
Países de Língua Portuguesa (CPLP). Esses pontos se conectariam com seus congêneres
brasileiros, constituindo uma rede internacional, “fortalecendo a relação sul-sul,
horizontalizando a relação sul-norte e colaborando com a construção de uma corrente
260
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
solidária e contra-hegemônica” (BRASIL, s/d, p. 22). Contudo, essa proposta não
chegou a se concretizar, pelo menos não na forma inicialmente prevista.
Além dos PCs, o PCV executava outras ações: Agente Cultura Viva, Cultura
Digital, Escola Viva e Griôs – mestres dos saberes. A ação Agente Cultura Viva, em
parceria com o programa Primeiro Emprego, do Ministério do Trabalho e Emprego,
visava estimular na juventude o interesse e a qualificação em uma profissão relacionada
à cultura. A Cultura Digital buscava promover a produção de conteúdo digital nos PCs
por meio de softwares livres. Essa produção cultural circularia na rede digital que
interligaria todos os PCs, compartilhando não apenas o conteúdo, mas também
experiências inovadoras e participativas de gestão pública. A ação Escola Viva, em
colaboração com o Ministério da Educação, objetivava integrar os PCs à escola e,
assim, expandir o “capital social” dos brasileiros. Por fim, a ação Griôs estava voltada
para a cultura tradicional e seus mestres.
O gestor que se tornou a imagem pública do PCV foi Célio Turino6, secretário
de Programas e Projetos Culturais (renomeada em 2008 como Secretaria de Cidadania
Cultural e em 2011 como Secretaria de Cultura e Diversidade Cultural) do MinC. É de
Turino a “narrativa” mais conhecida sobre os PCs, intitulada Ponto de cultura. O Brasil
de baixo para cima, publicado em 2009. Nela, relata que o termo “ponto de cultura”
nasceu na gestão de Antônio Augusto Arantes, antropólogo e professor da UNICAMP,
quando secretário de Cultura de Campinas no final da década de 1980, para nomear dois
espaços culturais municipais na periferia da cidade. Na sua avaliação, houve uma
adesão efetiva ao PCV e aos PCs por parte de setores da sociedade civil, a ponto de se
identificarem como movimento social, se auto-intitularem como “ponteiros” e dos
gestores dos PCs terem assimilado os conceitos centrais do programa (autonomia,
protagonismo e empoderamento). Turino defende em seu livro que o PCV e os PCs só
foram viáveis por conta do ambiente político e social proporcionado pelo governo Lula
e pelo simbolismo da presença de um líder operário na Presidência da República.
Ao longo da sua execução inicial (2004-2010), o PCV e os PCs consolidaram,
portanto, um movimento social e uma rede nacional que retroalimentam ou, ainda mais,
que são constitutivos da política governamental. Trata-se de uma experiência de política
6
Historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Foi Secretário Municipal de Cultura de Campinas
(1990-1992).
261
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
cultural inédita no Brasil que buscou conectar e dar nome a diversas entidades artísticas
e culturais e que batizou e alimentou um movimento sociocultural, como é o Cultura
Viva. Com a sua circulação por meio do que Elodie Bordat-Chauvin (2020) chamou de
"cenas transnacionais de encontro de atores institucionais", e, dessa forma, com a
contribuição de outros países latino-americanos, o PCV terminará sendo o "Cultura
Viva Comunitária", como se verá em seguida.
A EXPANSÃO “OCASIONADA” PELOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS:
DAS PRIMEIRAS TEIAS E CONGRESSOS...
Em seu livro, publicado cinco anos após a implantação do programa, Turino já
indicava o interesse pelos PCs no espaço latino-americano. Ele faz referência ao
Congresso Íbero-Americano de Cultura a ser realizado no Brasil exatamente por conta
da experiência dos pontos, bem como a pretensão da Secretaria Geral Ibero-americana
(SEGIB)7 em transformar o conceito em política pública no subcontinente “integrando
nossos povos pela cultura” (TURINO, 2009, p. 119).
Contudo, essa interação no espaço latino-americano não era óbvia. Em
depoimento a essa pesquisa, Emiliano Fuentes Firmani8 sugere que o Cultura Viva não
tinha previsão de se relacionar com a América latina. Todos os primeiros registros de
internacionalização dos PCs, tanto nos discursos de Gil, quanto nos de Juca, estavam
orientados para a Europa e Estados Unidos de modo que "a participação dos intelectuais
no que foi a internacionalização dos pontos de cultura, na primeira etapa, foi europeia,
não foi latino-americana".9 Fuentes Firmani observa, por exemplo, que os intelectuais
convidados para o seminário internacional que ocorreu durante a Teia10 de Fortaleza em
2010 eram em maioria europeus.
7
A SEGIB, com sede em Madrid e criada em 2005, é um órgão de apoio institucional e técnico à
Conferência Ibero-americana e à Cúpula de Chefes de Estado e de Governo e reúne 22 países iberoamericanos.
8
Fuentes Firmani é Secretário Executivo da Unidade Técnica do Programa IberCultura Viva (SEGIB).
Graduado em Gestão Cultural pela UNTREF, foi assessor do programa Puntos de Cultura na Argentina.
Fundador da RGC Ediciones, projeto especializado em publicações sobre gestão e políticas culturais.
9
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 15 jan. 2021.
10
As Teias foram encontros presenciais com pontos de cultura de todo o país. Na gestão de Célio
Turino, ocorreram três: 2007 (Belo Horizonte), 2008 (Brasilia) e 2010 (Fortaleza).
262
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Alguns fatos reforçam a tese de Fuentes Firmani. Em depoimento para esta
pesquisa, Turino afirma que não tinha uma rede anterior de contatos na América Latina,
nem como gestor cultural, nem como militante partidário. Ele ressalta, no que diz
respeito à internacionalização, o esforço de criar PCs para atender a comunidades
brasileiras no exterior, o que teria sido uma sugestão do presidente Lula, quando Gil e a
equipe do MinC apresentaram a proposta do PGC no final de 2004. Lula teria dito na
ocasião para "não se esquecer dos brasileiros que vivem fora do Brasil, dos
imigrantes"11. A partir de 2005, seriam estabelecidos três PCs nos EUA e um na França,
com repasses de recursos do governo brasileiro por meio do Itamaraty. Outros, como o
da Áustria, receberam apenas o "selo" de PC. No entanto, a ampliação dessa ação se
tornou inviável por conta das restrições legais no que diz respeito ao envio de dinheiro,
na época, 20 mil dólares por PC, e às prestações de conta.
Por sua vez, a Itália foi o primeiro país a adotar os PCs, com o projeto Officine
dell’Arte que oferece oficinas de arte e cultura multimídia destinadas ao público jovem,
em áreas urbanas deterioradas, como forma de desenvolvimento social e territorial. Em
2006, Gil participou do lançamento do projeto italiano12. Em 2010, ocorreu o projeto
“Pontos de Contato”, coordenado por Alexandre Santini, então consultor da Secretaria
de Cidadania Cultural, que promoveu o intercâmbio de vinte PCs com organizações
não-governamentais do Reino Unido ligadas à arte e a questões sociais13.
Santini, por sua vez, destaca que na Teia de 2010 ocorreu a internacionalização
dos PCs com a realização do seminário, ao qual Fuentes faz referência, e a criação de
um Conselho Internacional do PCV, que reuniu representantes de quinze países
provenientes da América Latina, Europa e Estados Unidos. O Conselho não chegou a se
efetivar por conta do processo de desmobilização do PCV na gestão da ministra Ana de
Hollanda no MinC. O próprio Santini reconhece que, a despeito da participação de
alguns representantes latinoamericanos, “não há uma relação entre a iniciativa daquela
proposta [Conselho Internacional] com o movimento Cultura Viva Comunitária”
(SANTINI, 2017, p. 102).
11
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
A esse respeito ver http://cultura.gov.br/pontos-de-cultura-no-exterior/. Acesso: 26 fev. 2021.
13
A esse respeito ver http://cultura.gov.br/pontos-de-cultura-na-inglaterra-1134590/. Acesso em 26 fev.
2021.
12
263
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Também Turino aponta esse encontro da Teia em Fortaleza como momentochave para a conexão dos PCs brasileiros com a América Latina. A Teia foi uma espécie
de despedida sua do cargo de secretário. Ele recorda que a organização convidou vários
intelectuais latino-americanos, tendo patrocinado a vinda de alguns deles. Na ocasião,
eles teriam então visto "algo fantástico", um "governo que tinha abraçado a cultura das
comunidades, a cultura comunitária, daquela forma (...) foi uma explosão, porque foi o
ápice mesmo, três mil pontos de cultura, cinco, seis mil pessoas do Brasil todo e aí o
pessoal da América Latina fez um encontro, acho que tinha umas trinta pessoas, e ali foi
a germinação maior".14
Mas os primeiros contatos dos PCs com intelectuais e ativistas da América latina
ocorreram já na primeira Teia, em São Paulo, em 2006, com a participação de
representantes de grupos teatrais ligados à Red Latinoamericana de Teatro en
Comunidad, por conta de uma atividade promovida pelo grupo de teatro Pombas
Urbanas, atuante na periferia da capital paulista, que também era um ponto e integrante
da rede. Dessa ação, entre outros grupos, participou a Corporación Cultural Nuestra
Gente, de Medellín, cujo diretor, Jorge Blandón, na avaliação de Santini, “passou a ter
um papel ativo na difusão do programa Cultura Viva na Colômbia e na América Latina,
convertendo-se em um dos articuladores da Plataforma Cultura Viva Comunitária"
(SANTINI, 2017, p. 135).
Outro momento importante do início dessa rede foi a realização do I Congresso
Ibero-americano de Cultura, promovido pela SEGIB em 2008 na Cidade do México, no
qual os PCs foram apresentados como ação paradigmática da política cultural brasileira.
Tendo causado impacto positivo, pautou a realização do congresso seguinte no Brasil,
quando o PCV seria discutido como modelo de política de cultura para a Iberoamérica
(SANTINI, 2017). De fato, em outubro de 2009, o II Congresso Ibero-americano de
Cultura, ocorrido em São Paulo e reunindo 22 países, teve como tema central “Cultura e
transformação social”. O propósito do encontro foi "analisar as potencialidades da
cultura ibero-americana" e reforçar ações conjuntas entre os países membros visando "a
formação e o fortalecimento das políticas públicas que considerem a cultura como
um campo fértil para o desenvolvimento económico e social" (grifo nosso). Um dos
elementos salientados pelo então secretário-geral da SEGIB, Enrique Iglesias, foi os
14
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
264
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
PCs, qualificados por ele como uma "forma imaginativa de política cultural"15. A ação
do MinC foi tema do painel "Pontos de Cultura, Casas de Cultura, Missões Culturais e
outras experiências de protagonismo sociocultural".
Turino destaca esse Congresso como central para a visibilidade do PCV e, em
especial, dos PCs para o restante da América Latina. Para tanto, foi fundamental a
montagem da peça Quixote, em que cada país, no total de 13, tinha que representar uma
cena. O importante, segundo o gestor, não foi propriamente o espetáculo - que teve duas
apresentações no SESC-SP - mas o movimento que desencadeou a vivência entre 90
artistas de vários países que ficaram alojados durante quinze dias no ponto de cultura
Pombas Urbanas. Foi ali que teria se criado o "entendimento" do que era um PC para os
participantes de fora do Brasil16.
… AO FÓRUM, PASSANDO PELA PLATAFORMA E CHEGANDO NA
“CARAVANA CONTINENTAL”
De todo modo, ainda que Fuentes Firmani desconheça essa circulação da
proposta dos PCs pela América Latina, tanto ele, quanto Santini e Turino convergem em
apontar para o Fórum Social Mundial realizado em Belém, em janeiro de 2009, como
momento privilegiado desse processo17. Para o gestor argentino, foi mesmo o momento
inicial. Na ocasião, ele junto com outros produtores culturais montaram uma mesa de
discussão intitulada “A articulação latino-americana de cultura e política" na qual
participaram representantes de pontos de cultura. Em outra mesa, sobre políticas
públicas, na qual Eduardo Balán18 participou para falar da experiência argentina, teve a
presença de Turino apresentando a experiência do PVC e dos PCs.
15
Disponível em https://www.segib.org/pt-br/o-ii-congresso-ibero-americano-da-cultura-apostou-natransformacao-social/ Acesso em 08 fev. 2021.
16
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
17
O Fórum teve como lema "Um outro mundo é possível" e discutiu, entre outros temas a integração
latino-americana com a participação dos então presidentes do Brasil, Luiz Inácio “Lula” da Silva, da
Venezuela, Hugo Chávez, do Equador, Rafael Correia, do Paraguai, Fernando Lugo, e da Bolívia,
Evo Morales.
18
Eduardo Balán é editor, educador e comunicador popular; fundador do coletivo cultural “El Culebrón
Timbal”, produtora, espaço cultural e educativo que inclui o plurimédio comunitario “La Posta Regional”.
Atualmente trabalha na gestão pública no município de Moreno, Província de Buenos Aires, Argentina,
na Direção Geral de Educação Popular e Comunitária. Para um depoimento de sua relação com o Cultura
Viva Comunitária ver Balán (2018).
265
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Turino ressalta a participação, no Fórum, do "Arte para a transformação social",
movimento do qual faziam parte, entre outros, Ines Sanguinetti e Jorge Blandon, e que
promoveu a mesa da qual o gestor brasileiro participou. Do cruzamento que a mesa
possibilitou, resultou uma reunião sobre o Cultura Viva e eles, nas palavras de Turino,
"abraçaram" a proposta dos PCS, no momento em que começavam a articular a
Plataforma Puente, da qual se falará mais adiante19.
A mesa sobre políticas públicas ao qual se refere Fuentes Firmani foi uma
promoção do Instituto Pólis, de São Paulo, ele próprio um PC e integrante da
"Articulação Latino-americana: Cultura e Política" (ALACP)20. A mesa se chamou
“Pontos de Cultura: Políticas Públicas e Cidadania Cultural” e reuniu uma centena de
representantes de PCs e de organizações culturais comunitárias da América Latina.
Hamilton Faria, um dos fundadores do Instituto, em entrevista concedida à Silvia
Chejter (2010), ressalta que a ideia de regionalizar os PCs surgiu no Fórum. Para o
lançamento formal da ALACP durante o evento em Belém, Faria propôs a mesa para a
qual foram convidados representantes da América Latina, com destaque para a
Argentina e a Colômbia. Segundo Faria, as pessoas ficaram "fascinadas" e perceberam
que os PCs eram "uma proposta universal e poderia ser replicada em outros países". A
partir de uma mobilização dos argentinos presentes no evento é que surgiu uma
proposta de lei para o Parlamento do MERCOSUL, da qual se falará mais adiante. Na
sua avaliação, os PCs são "uma experiência concreta de articulação entre redes, de uma
articulação em torno a uma política de cultura para América do Sul e não só discursos
gerais, discursos ideológicos sobre a diversidade, etc., senão um intercâmbio e uma
aproximação de fato" (FARIA apud CHEJTER, 2010, p. 143).
19
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
A ALACP é uma rede de mobilização de entidades da sociedade civil da América Latina e composta
por organizações como INESC, CEPAD, Instituto Pólis, CFEMEA, Red Mesoamerica de Arte y
Transformación e AVINA. Sua pretensão é "descobrir novos caminhos para a integração latinoamericana
e contribuir para a reinvenção da democracia e da cidadania cultural, por meio de articulações inovadoras
entre movimentos culturais e sociais". A ALACP se define como "uma rede de experiências e de
comunicação composta por organizações sociais, culturais e de expressões artísticas que visa contribuir
para os processos de democratização/cidadania cultural, construção de valores e símbolos que sejam
capazes de mobilizar manifestações e posições de afirmação a favor de uma sociedade mais justa, plural,
equitativa, sustentável fundada na radicalização e implementação dos direitos humanos nas diversas
sociedades e povos da América Latina". A esse respeito ver https://polis.org.br/noticias/articulacaolatinoamericana-de-cultura-e-politica-e-lancada-no-fsm/ e https://www.af2comunicacao.com.br/cultura-eprotagonismo-social-na-america-latina/. Acesso em 08 fev. 2021.
20
266
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Para Santini, as participações dos PCs no Fórum sinalizavam o fato de que a
rede criada pelos pontos “começava a assumir os contornos de um movimento políticosocial” que, embora articulado a partir de uma política pública e com interlocução com
o Estado, apresentava “uma perspectiva de dialogar e incorporar outros espaços de
debate e participação social construídos de maneira autônoma pela sociedade civil,
pautando a dimensão cultural nos debates políticos dos movimentos sociais” (SANTINI,
2017, p. 136).
O depoimento de Santini remete à análise que Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e
Arturo Escobar fazem na introdução à coletânea que organizaram com textos acerca das
relações entre cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos. Os autores
propõem uma nova forma de compreensão desses movimentos ao defenderem que todos
eles, de maneira mais ou menos consciente e com maior ou menor extensão, põem em
prática políticas culturais. Por política cultural, entendem a relação constituinte entre
cultura e política, posto que as práticas sociais e seus significados simbólicos (dimensão
cultural) não podem ser consideradas de forma separada das relações de poder
(dimensão política) e vice-versa. Em outras palavras, a política cultural é o “processo
posto em ação quando um conjunto de atores sociais moldeados por, e que encarnam
diferentes significados e práticas culturais, entram em conflito uns com outros”
(ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 24). As políticas culturais dos
movimentos sociais, e especificamente dos latino-americanos, se revelam em suas ações
concretas na luta contra os projetos dominantes de "nação", “democracia”, “cidadania”,
"gênero", “etnia”, etc., de modo que desafiam a cultura política vigente,
desestabilizando-a e ampliando seu significado.
As articulações propiciadas pelo Fórum levaram a que intelectuais e ativistas
culturais comunitários de vários países latino-americanos passassem a demandar, dos
poderes públicos de seus países, políticas que se inspirassem no desenho do PCV e do
PC. Ainda em setembro de 2009, a ALACP realizou o seminário "Cultura e
Protagonismo Social na América Latina" em Brasília como parte da programação da
nona edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. O
objetivo era dar continuidade aos debates ocorridos em Belém e contou com a
participação dos seguintes convidados latino-americanos como palestrantes ou
mediadores: Wal Mayans (Paraguai- Proyecto Tierra sin Mal/Hara Teatro), Carlos Hugo
267
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Molina (Bolívia/CEPAD), Inés Sanguinetti (Argentina - Crear vale la pena), Mirtha
Palácios (Paraguai - Parlasul) e Eduardo Balán (Argentina - El Culebrón Timbal). Desse
encontro surgiu um projeto recomendando aos países membros do Mercosul que
adotassem os PCs. O projeto foi apresentado pela senadora brasileira Marisa Serrano
(PSDB/MS) e aprovado pelo Parlasur em 2009.
George Yúdice chama atenção para outro evento ocorrido em Mar del Plata, em
dezembro de
2009, o Primeiro Congresso Internacional de Cultura para a
Transformação Social - na sua perspectiva, a "pré-história imediata" do Cultura Viva
Comunitária - que reuniu redes e líderes de organizações e movimentos culturais. Ainda
que, pelo que foi exposto anteriormente, tudo indique que essa pré-história tenha
ocorrido antes, Yúdice traz uma análise interessante sobre o que permitiu a realização
desse congresso: o fato de muitos deles terem se conhecido na virada de esquerda dos
governos latino-americanos no início dos anos 2000 que priorizou, nestes páises, "o
protagonismo das classes populares e de grupos marginalizados como os
afrodescendentes e indígenas". Como exemplo, cita a realização, em São Paulo, em
2004, do Fórum Cultural Mundial, inspirado no Fórum Social Mundial ocorrido três
anos antes. "Os participantes desses fóruns", segundo Yúdice, "procuraram capacitar os
desfavorecidos através da arte e da prática cultural, não como espectadores, mas como
participantes ativos" (YÚDICE, 2019, p. 144) e destaca a atuação de Jorge Melguizo,
então secretário de Desenvolvimento Social de Medellín, e ex-secretário de cultura da
cidade.
Esse dado é interessante porque Santini (2017) destaca outro caminho, em
paralelo ao do Brasil, que se deu nos territórios culturais latino-americanos e que
favoreceu a formação da teia do Cultura Viva na região. Trata-se, exatamente, da
experiência de Medellín, que desde fim dos anos 1990, adotava políticas de incentivo a
organizações culturais comunitárias, como parte da estratégia de combate ao
narcotráfico. Nesse contexto, algumas dessas organizações, junto com a Secretaría de
Cultura Ciudadana da cidade e o Museu de Antioquia, promoveram em 2010 um
encontro reunindo cem organizações culturais comunitárias latino-americanas, como
resultado da articulação dos ativistas de Medelim em redes culturais na região, tais
como: Red Latinoamericana de Arte y Transformación Social (RLATS), Red
Latinoamericana de Teatro en Comunidad, Red Centroamericana de Arte Comunitario
268
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
(MARACA), Asociación Latinoamericana de Experiencias Radiofónicas (ALER) e a
ALACP. Essas redes surgiram entre fins dos anos 1990 e o início da década seguinte e
foram subsidiadas por fundações privadas e agências de cooperação internacional
(Avina, Hivos, Ford etc).
O esforço do encontro era o de buscar autonomia frente a essas instituições
financiadoras, ampliar a capacidade de agendar as políticas públicas e estabelecer
ligações com outras esferas públicas e questões sociais. Desse movimento surgiu a
Plataforma Puente que reúne iniciativas culturais da região latino-americana e de
diversas linguagens e esferas de ação. O documento que cria a rede faz referência
explícita ao PCV, como experiência em nível nacional, e às políticas culturais de
Medellín, no nível local, como paradigmas de políticas públicas a serem adotadas na
América Latina. O documento informa que a Plataforma, uma "acción mixta entre lo
público y la sociedad civil", se articula como "una gestión conjunta entre redes, en torno
a: Políticas de arte y cultura, Arte y transformación social, Arte puente para la salud,
Arte y educación, Comunicación para el desarrollo, Gestores sociales para el desarrollo,
Ciudades sustentables, ciudades imaginadas" (CULTURA VIVA COMUNTARIA apud
SANTINI, 2017, p. 139). O encontro em Medellín foi fundamental para os
desdobramentos seguintes ao estimular a articulação de organizações culturais
comunitárias na América Latina.
Voltando ao Brasil, entre 2009 e 2010 foram realizadas diversas articulações
latino-americanas com Juca Ferreira à frente do MinC e Célio Turino na Secretaria de
Cidadania Cultural que tinha, conforme registrado pelo IPEA, o orçamento mais
importante da pasta (BARBOSA DA SILVA; ARAÚJO, 2010). Contudo, já no final de
2010 a situação começou a se modificar com a saída de Turino da Secretaria e se
radicalizou no primeiro governo Dilma Rousseff, a partir de 2011, com a nova ministra
de Cultura, Ana de Hollanda. A titular da pasta extinguiu as Secretarias de Cidadania
Cultural e de Identidade e Diversidade Cultural e criou a Secretaria de Cidadania e
Diversidade Cultural cuja primeira gestora foi Marta Porto. Em menos de dois anos,
tanto a ministra como a secretária foram substituídas do cargo, e um dos principais
movimentos de oposição que enfrentaram foi, justamente, o dos pontos de cultura. No
primeiro governo Dilma (2011-2014), portanto, o PCV foi perdendo protagonismo e
269
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
orçamento, como expressa a quantidade cada vez menor de PCs apoiados com recursos
federais.
Mas se no plano interno brasileiro, a instabilidade, a redução do orçamento e a
sensação de “desmonte” do programa Cultura Viva (TURINO, 2013) geraram
profundas contradições na gestão do MinC e nas próprias redes e conselhos de pontos
de cultura que tinham sido criados anteriormente, as relações com os países latinoamericanos pareciam ir em direção totalmente diferente, seja no nível governamental,
seja nas redes dos movimentos culturais comunitários. Afinal, foi na gestão de Ana de
Hollanda que se assinou o memorando de entendimento com a então Secretaria de
Cultura da Argentina com foco, justamente, no PCV e nos PCS como experiências
análogas de cooperação, formação, capacitação e intercâmbio técnico e foi lançado o
"Programa Nacional de Puntos de Cultura". Na Costa Rica, El Salvador e Guatemala o
conceito de Cultura Viva Comunitária começou a ser debatido por organizações
comunitárias e instituições governamentais21.
No Peru, o recém-criado Ministério de Cultura implantou uma experiência piloto
de PCs nesse período que vale a pena destacar porque, junto com Argentina, são as
iniciativas públicas mais duradouras da região fora do Brasil. Para Paloma Carpio22, o
movimento da cultura viva comunitária no Peru é interessante, também, pelo fato de não
ter tido um governo progressista ou de esquerda nos moldes de outros países da região.
Tanto o Ministério quanto o programa Puntos de Cultura resistiram às mudanças de
gestão e uma profunda instabilidade presidencial que foi uma constante ao longo dos
anos. Carpio23 reforça a importância das redes preexistentes e o papel impulsionador das
fundações de cooperação internacional na aproximação do país com os processos da
Cultura Viva, que no caso dela se inicia em 2007 e se fortalece no FSM de Belém do
Pará em 2009 e na Teia de Fortaleza de 2010. Através de um contato acadêmico, o prof.
Victor Vich, se aproximou da gestão cultural no município de Lima em 2011 - que tinha
uma prefeita recém eleita de centro-esquerda, Susana Villarán - e em 2012 chega ao
21
Memorando de Entendimento entre o Ministério de Cultura do Brasil e a Secretaria de Cultura da
República Argentina, assinado em Buenos Aires, 2011. Disponível em https://iberculturaviva.org/wpcontent/uploads/2018/03/Memorandum-de-Entendimiento.pdf Acesso em 15 fev. 2021.
22
Paloma Carpio é formada em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidad Católica de Perú, fundadora
de Tránsito-Vías de Comunicación Escénica. Foi assessora cultural no município de Lima e coordenadora
dos Pontos de Cultura no Ministério de Cultura do Peru. Mais informações em Carpio (2015).
23
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 09 abr. 2021.
270
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Ministério da Cultura também por contatos universitários da Pontifícia Universidade
Católica do Peru (PUCP). Em síntese, Cárpio não foi formada como militante e
funcionária cultural por um partido comunista ou de esquerda tradicional ou
progressista (aliás, o comunismo no Peru está muito associado, ainda, aos movimentos
armados mais radicalizados como Sendero Luminoso) mas pelas redes da sociedade
civil, da cooperação internacional e da qualificação universitária.
Em setembro de 2011, em Mar del Plata, ocorreu o IV Congresso Iberoamericano de Cultura, com o lema “Cultura, política e participação social”. Contudo, o
evento não previa a participação de organizações culturais não governamentais. Diante
desse impedimento, ocorreu uma articulação a partir da rede estabelecida em Medellín
que pressionou a organização do Congresso e conseguiu garantir a realização de uma
programação paralela que se intitulou “Cofralandes de Organizaciones Culturales
Comunitarias”. Naquele espaço se realizou a “Asamblea Latinoamericana de Cultura
Viva Comunitaria”, com a participação de representantes de 21 países.
Do encontro da Plataforma Puente em Mar del Plata, surgiu a proposta de
realizar a Semana Continental de Cultura Viva Comunitaria, que ocorreu em abril de
2012, e "consistió en la realización de actividades tales como encuentros, festivales,
debates, seminarios y manifestaciones culturales en varios países, para promover la
Cultura Viva Comunitaria y los debates en torno de las políticas culturales en el ámbito
local, nacional y continental" (SANTINI, 2017, p. 148). A Semana Continental foi
importante também por mobilizar e organizar a participação dos movimentos de cultura
comunitária na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável
(Rio+20) que se realizou em maio do mesmo ano no Rio de Janeiro. Os ativistas da
cultura comunitária se congregaram na Cúpula dos Povos, com representantes da
Colômbia, Argentina, Perú, Equador, Bolívia, Costa Rica e El Salvador, além de
dezenas de PCs brasileiros. Na ocasião ocorreu a Caravana por la Vida: de
Copacabana a Copacabana, um projeto de Iván Nogales24, que consistiu em uma
caravana entre a cidade de Copacabana, na Bolívia, e a praia carioca de Copacabana, da
qual participaram os artistas do Teatro Trono - Comunidad de Productores en Artes
(COMPA), dirigido por Nogales.
24
Ator, diretor de teatro e gestor cultural, Iván Nogales foi o criador do Teatro Trono e da Fundación
Compa (Comunidad de Productores de Artes) na Bolívia. Sobre a atuação de Nogales ver Mongis (2021).
271
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Destaca-se a Caravana Continental da Cultura Viva Comunitária realizada por
intelectuais, artistas e ativistas bolivianos já que, inicialmente, nasce como uma das
iniciativas de mobilização a serem realizadas durante a Semana Continental da CVC.
Conforme registrado por Nogales (IBERCULTURAVIVA, 2016), a sua ideia original
era ainda mais ousada, buscando interligar o oceano pacífico com o atlântico. Contudo,
por questões econômicas, decidiram pela trajetória “mais curta”, mas não por isso
menos desafiadora, conectando distintas cidades bolivianas e brasileiras no seu
percurso. Na sua trajetória em território brasileiro, os viajantes fizeram intercâmbios
com PCs em Campo Grande (MS), Presidente Prudente (SP), São Carlos (SP), São
Bernardo do Campo (SP), Diadema (SP), Taubaté (SP), São Paulo (SP) e Vassouras
(RJ). Além disso, essa Caravana Continental da CVC gerou um forte impacto nas
lideranças orgânicas do movimento, que não imaginavam que uma articulação desse
tipo pudesse surgir de um dos países mais pobres da região. Isso fortaleceu a posição
que, como se verá posteriormente, o resto dos países e grupos do movimento da CVC
precisava retribuir esse gesto histórico dos bolivianos com uma nova Caravana
Continental, desta vez, com destino final na Bolívia.
Traçando uma linha de atuação da Plataforma Puente, Santini aponta que a rede
havia consolidado um "trabajo de incidencia y diálogo en instancias de participación
política internacional, posicionando sus objetivos junto a los de los gobiernos y
organismos internacionales" (SANTINI, 2017, p. 156) e avançou na implementación de
políticas públicas inspiradas no Cultura Viva Comunitaria em diferentes países.
Contudo, e por conta dessa trajetória positiva, era preciso alcançar um novo patamar
organizativo e criar um fórum próprio. Dessa necessidade, surgiu o Congresso
Latinoamericano de Cultura Viva Comunitária, que ocorreu em maio de 2013 em La
Paz, Bolívia, sob coordenação do Teatro Trono e com a participacão na fase
preparatória de Santini, Dorian Bedoya (Guatemala), Iván Nogales (Bolivia), Jorge
Blandón (Colombia), Sebastián Pedro (Costa Rica), entre outros. No encontro,
reuniram-se cerca de 1.200 participantes de 17 países do continente.
Como atividade do Congresso, ocorreu o Encuentro Latinoamericano de Redes y
Organizaciones, que discutiu os aspectos políticos e organizativos do movimento
Cultura Viva Comunitária. Desses debates, por sua vez, surgiu a necessidade de se criar
um Consejo Latinoamericano de Cultura Viva Comunitaria, vinculado à Plataforma
272
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Puente, com representantes indicados pelas redes nacionais e articulados em torno de
grupos de trabalho sobre os temas "incidência política", "comunicação", "formação" e
"sustentabilidade". Não é sem razão que Turino indica o ano de 2013 como o de
consolidação do movimento, por conta do Congresso, que reuniu 1.200 pessoas de 17
países, apesar de ressaltar também, em 2014, a realização do Congresso Iberoamericano
pela Cultura Viva Comunitária, na Costa Rica em 2014, de onde surgiu o programa
IberCultura Viva, ganhando uma institucionalidade plurinacional25.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando a pergunta que abre essas reflexões, "é possível pensar uma política
pública de cultura transnacional e popular no contexto latino-americano?", é possível
responder de forma afirmativa, a partir do estudo de caso dos PCV e dos PCs. A
regionalização dessa experiência surgida no Brasil sinaliza para outras formas
alternativas àquela definida por Garcia Canclini (1983) como "histórico-popular" onde
sobressaíam os propósitos políticos, econômicos e sociais, relegando a plano secundário
o papel da cultura.
O que se pode observar na trajetória que vai do Cultura Viva brasileiro ao
Cultura Viva Comunitária latino-americano é a atenção ao espaço cultural latinoamericano, onde a dimensão cultural, e mais especificamente popular e comunitária se
constitui como eixo fundamental, não na conformação de um bloco latino-americano,
como esperava Garretón (2008), mas de um rede de intelectuais oriundos, em grande
parte, das parcelas subalternizadas das sociedades da região, que por isso reinventam os
parâmetros de pertença a esse espaço, de modo mais inclusivo e democrático. Aliás, a
articulação continental termina atuando como uma rede de redes, incorporando diversas
capas no movimento, desde o nível local até o internacional. A política pública
transnacional, por sua vez, também se articula em numerosas políticas culturais locais,
regionais e nacionais, chegando até a organismos intergovernamentais como no caso do
Ibercultura.
Esse contexto, por outro lado, não está isento de contradições, recuos e
ambiguidades. Basta constatar que no Brasil, onde surgiu o PCV e os PCs, o MinC
25
Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021.
273
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
perde o protagonismo e liderança, que é assumido por governos locais que vão
municipalizando a experiência e alimentando as redes e as interações com o resto da
América Latina. De todo modo, vários dos ativistas, intelectuais e ex-gestores
brasileiros que participaram dos eventos realizados desde 2004, a exemplo de Turino e
Santini, continuaram realizando ações, visitando países, estimulando as redes de
cooperação internacional; enfim, militando para além das esferas estatais e
governamentais mais tradicionais. Dessa forma, foi construída uma rede alternativa
híbrida que a cada ano vai somando países, incluindo governos locais, ativistas
comunitários, fundações globais, ex-gestores estatais, instituições de ensino superior,
artistas mais eruditos e fazedores da cultura popular, tudo junto e misturado.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
MANUEL MENDIVE HOYO: O PERFORMER AFRO-CUBANO1
Marcelo Mendes Chaves2
“Si Dios y Eleggua quieren, todo es posible”
Manuel Mendive Hoyo
INTRODUÇÃO
A estética de Mendive, “El Maestro Manolo”, me foi apresentada em 2008,
durante a aula de uma professora convidada para a disciplina na Linha de Pesquisa
“Processos e Procedimentos Artísticos”, ministrada pela Professora Dra. Lalada
Dalglish. Durante sua ilustre apresentação, a Professora Dra. Mariza Bertoli,
descortinava por meio da produção de artistas latino-americanos, modernos e
contemporâneos, o ponto de inflexão para a retomada do questionamento acerca da
independência colonial: o centenário da Revolução Mexicana.
Por seus slides elaborados com rigor e extrema dedicação ao tema, observava-se
a plástica dos “Três Grandes”, os mais difundidos muralistas mexicanos, Diego Rivera,
David Siqueiros e Clemente Orozco, dentre os quais se tornara uma das maiores
referências para Carybé, artista que estudo desde então. O mergulho nas entranhas de
Pacha Mama e sua forçada união marcada com o colonizador, ritmada por encontros,
desencontros e tamanho desencanto, com atenção para série de autorretratos de Frida
Kalho, ao citar a análise do conjunto da obra na dissertação da Professora Dra. Simone
Rocha Abreu e as políticas afirmativas das “minorias” na arte pública do equatoriano
Pavel Égüez, exemplos espaçados no intuito de mencionar diminutamente a matéria de
explanação daquela tarde.
No decurso de cinco anos, o projeto de doutoramento submetido ao PROLAM,
procurava por meio da metodologia de estudos equiparados na linha de pesquisa
comunicação e cultura, analisar dois artistas: Carybé, objeto de estudo do mestrado e
Manuel Mendive Hoyo. A dupla de artistas com inúmeras aproximações, apresentava
Tradução: “Se Deus e Exu quiserem, tudo é possível”
Pós-doutorando Programa de Estudo Pós Graduados em Ciências da Religião CRESP PUC (2020)
Pontifícia Universidade Católica da Universidade de São Paulo. E-mail: marcellomendez@yahoo.com.br.
1
2
278
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
279
uma singularmente de grande interesse , a prática religiosa afro-latino-americana, o
candomblé no Brasil e a santeria em Cuba, ambos artistas sacerdotes, complementos de
interlocução da autoetnografia, ao considerar minha iniciação para o orixá, 2009, e o
oráculo de Ifá, 2017, pelo líder religioso do Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy3, o
Babalorixá e Babalaô Ogundarê, Pai Léo de Logun-Edé.
Apesar da convicção sobre o tema de pesquisa, surgiram dois desafios a serem
enfrentados, os diferentes suportes dos objetos, arte mural em Carybé, performance para
Mendive, e mesmo com o apoio da pesquisa pela agência de fomento CAPES (20142017), os recursos financeiros não foram suficientes para um período de estudo de
campo em Cuba.
Após o exame de qualificação para o doutoramento, o segmento afro-cubano,
representado pela maestria de Mendive, foi retirado da pesquisa e a defesa da tese foi
concluída a partir dos conceitos da formação da identidade na América Latina
concebidos pelo antropólogo Darcy Ribeiro e projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer;
o objeto de estudo em questão, o conjunto arquitetônico do Memorial da América
Latina, em particular o Salão dos Atos com painéis heráldicos de Carybé e Poty
Lazzaroto, a interposição entre identidade, arte, arquitetura e cidade na “Análise dos
Painéis de Carybé e Poty Lazzaroto para o Salão dos Atos do Memorial da América
Latina”.
A oportunidade de retomar o marcante vigor de Mendive, como também a
possibilidade de fundamentar alguns conceitos desenvolvidos pela Professora Doutora e
crítica de arte Mariza Bertoli, primeiro mestrado e doutorado em arte pelo programa sob
a orientação da Professora Doutora Lizbeth Rebollo, apresenta-se na forma de
consumação.
O ARTISTA AFRO-LATINO-AMERICANO: A PROGNOSE DO PRINCÍPIO
ONÁ4
AO
CONSIDERAR
A
PERFORMANCE
DE
MENDIVE
NA
PERSPECTIVA DA CULTURA MATERIAL RELIGIOSA AFRO-CUBANA.
3
Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy: casa de culto de candomblé queto fundada em 1968 e tombada como
patrimônio cultural pelo condephaat em 2020. Em: www.condephaatsp.org.br
4
Oná: Conceito de Arte iorubá.
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Bertoli enfatiza a necessidade de conhecer os mitos fundantes das Américas, a
cosmopercepção desses povos e seus registros, de que maneira a cultura tradicional
rompe a barreira da repressão colonial e neocolonial resistindo bravamente. O homem
renascendo a cada estação e a arte ressurgindo feito a flor de maiz, narrativa mitológica
conciliante em toda América Latina.
No texto - A utopia na construção da América latina, elaborado para o IV Fórum
Arte e Cultura da América Latina - “Para não deixar morrer a utopia”, Bertoli afirma
que a América nasce sob o signo da utopia e no meio de tantos direitos que lhe foram
usurpados, possui o direito à memória.
“Estamos vivendo mais um momento evocativo para a América
Latina. Há um século dos modernismos e das vanguardas, em que
também nos questionávamos sobre as nossas culturas e a nossa
independência, os destinos comuns deste continente nos propõe novos
enigmas, e todas as repostas cabem nas utopias. Alguns as evocam
para alimentar a esperança na luta por uma sociedade mais justa,
enquanto outros as contestam como enganos demagógicos. O fato
incontestável é que lá na zona primacial onde a imagem prevalece, nos
encontramos no mito que está perto da utopia porque vive da saga do
herói, que não é mito mas cujos aros se aproximam de lides
mitológicas na expectativa dos esperançosos. Esta onda generosa nos
envolve como um abraço, e será o elo para a integração latinoamericana. (BERTOLI, 2014, pág. 33)”
A abordagem analítica de Bertoli advém em parte da teoria do antropólogo e
filosofo Gilbert Duran em “As estruturas antropológicas do imaginário”, num
dinamismo constelar desenha uma dança cósmica entre registros imagéticos de códigos
solares e lunares, representantes do masculino elevado na figura do condor ou do jaguar,
o guardião da noite, transformando-se no feminino profundo.
O particular caso de Cuba, com o extermínio das etnias autóctones da ilha e a
posterior ocupação dos povos africanos em diáspora, nos apresenta uma sui generis
configuração, fruto do colonizador e dos escravizados, uma fusão da cosmogonia e
cosmologia africanas subsaarianas, e o catolicismo espanhol, de mãos dadas com a
oportuna figura do Demônio cristão, grande aliado na construção da Europa como
continente e temida quimera no domínio das regiões exploradas e colonizadas ao redor
do planeta, ao marcar a visão eurocêntrica e voltar o eixo do mundo ao velho
continente. Sem embargo Bertoli acrescenta: o centro está em toda parte.
280
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Darcy Ribeiro classifica esse tipo de formação identitária como os novos povos,
“gente feita pelo desfazimento: na medida em que índios e negros foram desfeitos,
fizeram-se novos homens; cada cultura original deu o amálgama desse novo ser latinoamericano” (Catálogo Memorial da América Latina, 1990).
Mendive nasce em uma família que pratica a santeria5, um artista extraordinário,
artista sacerdote impregnado na pele e na plástica de valores transcontinentais como
elucida o professor Dr. Fábio Leite6: a existência mantida pela força vital (Axé para os
Iorubás), o poder da palavra, o homem como centro da vida, a socialização dos saberes
físicos e metafísicos, os ancestrais como detentores do destino, a família extensa e a
produção sustentável do grupo.
Os povos de origem iorubá, África Sudanesa, no continente e em diáspora,
concebem o corpo matizado pela memória ancestral, elementos fisiológicos que
determinam o orixá7 da pessoa relacionando os quatro elementos da natureza, fogo,
terra, água e ar, tendo o Orí, a cabeça, como o condutor da existência terrestre, todos
guardados pelo Alá (Grande Manto) de Obatalá, o deus da criação do homem.
O recorte para a produção de Mendive é o conjunto de performances que
inaugura o evento de abertura da Bienal de Havana8 desde 1984. Seu processo criativo
5
Santeria: Palo Monte ou Regla de Ocha, é uma prática sincrética religiosa afro-caribenha, concilia
fundamentos da religião tradicional africana em diáspora e o catolicismo espanhol.
6
África Negra: a questão ancestral.
7
Orixá: deuses iorubanos relacionados aos elementos da natureza, numa tradução literal seria a entidade
protetora do Orí, cabeça;
8
Bienal de Havana: Ano de fundação: 1984
Organizador: Wifredo Lam Center of Contemporary Art
Desde a segunda Bienal de Havana de 1986, também participaram artistas da África, Ásia e Oriente
Médio.
A Bienal de Havana foi criada em 1984 e sua primeira edição foi dedicada a artistas da América Latina e
do Caribe. Desde a segunda Bienal de 1986, também participaram artistas da África, Ásia e Oriente
Médio. Esta tradição, que se manteve durante cada uma das edições subsequentes, fez de Havana um
importante local para a reunião e exibição de arte "não ocidental". A Bienal de Havana tem focado sua
atenção nos artistas do Sul cujas obras representam preocupações e conflitos - muitas vezes de alcance
universal - comuns a suas regiões.
Temas como as tensões existentes entre tradição e contemporaneidade, o desafio aos processos históricos
de colonização, as relações entre arte e sociedade, o indivíduo e sua memória, a comunicação humana
diante do desenvolvimento tecnológico e as dinâmicas da cultura urbana têm sido temas de interesse
particular pela Bienal, sem distinção entre as múltiplas formas de visualidade que operam na cultura
como sistema.
Durante o seu desenvolvimento a Bienal de Havana reconheceu a reconfiguração geopolítica ocorrida e
consequentemente o aumento do número de países que se aproximam das condições do chamado Sul e
daqueles que, em posições precárias de desenvolvimento, buscam inserir-se no econômico. blocos de
países mais favorecidos.
281
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
parte dos itans, narrativas mitológicas iorubás, percorrendo um extenso caminho entre a
oralidade transmitida de geração em geração, seja pelo viés étnico e ou religioso,
sobrepostos aos estandartes e corpos pintados em movimentos vibrantes pelas ruas de
Havana velha.
Ao recorrermos a Gell evocamos a vivacidade desses corpos e possíveis
adereços-objetos, num sistema de fruição, não diante de uma apresentação de arte
performática, mas um comboio de seres reais, humanos ou não, nascidos da Tecnologia
do encanto9:
Em vez de enfatizar a comunicação simbólica, concentro-me nas
ideias de agência, intenção, causalidade, resultado e transformação.
Vejo a arte como um sistema de ação cujo propósito é mudar o
mundo, e não codificar proposições simbólicas acerca dele. A
abordagem da arte centrada na “ação” é inerentemente mais
antropológica do que a abordagem semiótica, já que se preocupa com
Agora, a Bienal de Havana se dá dentro de um mundo supostamente globalizado que se apresenta com
muitas faces, complexidades e conflitos, principalmente quando o discurso a que se refere tende a ordenar
por ordem de importância a hegemonia econômica, a dependência e o controle da informação, ignorando
o diferentes estágios de desenvolvimento e as orientações sociopolíticas que coexistem no planeta.
A Bienal de Havana é organizada a partir de um processo de pesquisa e curadoria, e todos os participantes
são selecionados de acordo com alguns parâmetros como a sujeição temático-conceitual ao tema de
reflexão. Nesse processo, a equipe curatorial da bienal, do Centro de Arte Contemporânea Wifredo Lam
de Havana, recebe o apoio de colegas de outros países que contribuem com suas sugestões e se tornam os
elos necessários no diálogo com os criadores.
Fonte: www.bienalhabana.cult.cu
https://www.biennialfoundation.org/biennials/havana-biennale/
9
Tecnologia do Encanto: O antropólogo britânico Alfred Gell (1945-1997) desenvolve seu conceito de
arte como parte de sua proposta de estabelecimento de uma nova antropologia da arte. Responsável por
uma rotação de perspectivas nesse domínio, Gell revisa conceitos como obra de arte, artefato, tecnologia
da arte, estética, encantamento, magia e estilo, o que resulta em uma complexa teoria sobre a agência do
objeto artístico.
No artigo “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia” (1992), o autor considera as
diversas artes como partes de um vasto e frequentemente não reconhecido sistema técnico, que
ele denomina “tecnologia do encanto”. Nessa perspectiva, objetos de arte seriam fruto de uma
atividade técnica de transubstanciação engenhosa de materiais e das ideias a eles associados.
Gell reivindica aí o emprego de um “filisteíismo metodológico”, postura de total indiferença do
antropólogo no tocante ao valor estético das obras de arte. Para elucidá-la, utiliza como exemplo
objetos de arte criados com a intenção de funcionar como “armas” em uma “guerra
psicológica”; é o caso das tábuas que ornam as proas das canoas dos participantes do kula,
sistema de trocas realizado pelas populações das ilhas Trobriand. A intenção por trás do uso
dessas tábuas é fazer com que os parceiros da troca que estão em outras ilhas, ao observarem as
canoas chegando, se deslumbrem a ponto de perderem os sentidos, oferecendo braceletes e
colares mais valiosos do que de costume. A eficácia dos objetos de arte como componentes da
tecnologia do encanto e o poder de fascinação que exercem são resultantes do encanto da
tecnologia empregados em sua construção. Gell prioriza, assim, a análise da eficácia do objeto de arte,
seu poder de agência.
Fonte: http://ea.fflch.usp.br/conceito/arte-alfred-gell
282
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
o papel prático de mediação exercido pelos objetos de arte no
processo social, e não com a interpretação dos objetos “como se” eles
fossem textos. (GELL, 2018, n.p.)
Para Gell, mesmo sendo possível reconhecer uma categoria pré-teórica de objeto
de arte que se divide em duas subcategorias: arte ocidental e arte Indígena ou
etnográfica, no entendimento da antropologia tudo poderia ser tratado como objeto de
arte, incluindo pessoas vivas, uma vez que a antropologia da arte se ajusta à
antropologia social das pessoas e seu corpo.
Assim, do ponto de vista da antropologia da arte, um ídolo em um
templo que acreditamos ser o corpo da divindade e um médium que
ofereça o corpo à divindade temporariamente são tratados, em termos
teóricos, no mesmo nível, mesmo que o primeiro seja um artefato e o
segundo, um ser humano. (GELL, 2018, n.p.)
O processo criativo e a produção das performances de Mendive podem ser
equalizadas num processo-padrão apresentado por Gell nas seguintes categorias:
índice10, Abdução11 e Agente Social12, evidentemente que em “Arte e Agência”, a teoria
10
Índice: A antropologia da arte não seria a antropologia arte se não se limitasse ao subconjunto de
relações sociais que associam “objeto” a um agente social de uma forma distinta – “artística”, por assim
dizer. Descartamos a ideia de que os objetos se relacionam “artisticamente” com os agentes sociais se (e
somente se) consideram esses objetos de um ponto de vista “estético”. Se é assim, porém, de que outros
meios dispomos para distinguir uma relação “artística” entre pessoas e coisas de uma relação “não
artística”? A partir de agora, para simplificar o problema, limitarei a discussão ao caso da arte visual – da
arte “visível”, pelo menos –, excluindo a arte verbal e a musical, embora reconheça que elas costumam
ser inseparáveis na prática. Assim, as “coisas” de que falo poderão ser entendidas como reais, tendo uma
existência física, sendo únicas e identificáveis, e não como atuações, leituras, reproduções etc. Essas
observações pareceriam fora de lugar na maioria das discussões sobre arte, mas são necessárias aqui, já
que as dificuldades que enfrentamos podem ser mais bem superadas se abordadas uma de cada vez. Além
disso, é muito difícil propor um critério que distinga os tipos de relações sociais que se enquadram no
escopo da “antropologia da arte” daí que fumaça é um “índice” de fogo . ( Gell, Alfred. Arte e agência
(Coleção Argonautas) . Ubu Editora. Edição do Kindle.)
11
Abdução: O termo empregado na lógica e na semiótica para designar tais inferências é “abdução”. A
abdução é um caso de inferência sintética “no qual encontramos algumas circunstâncias bastante curiosas,
explicáveis pela suposição de que ela seria um caso de alguma regra geral, motivo pelo qual essa
suposição é adotada” (Eco 1976: 131, citando Pierce ii, 624). Em outras ocasiões, Eco afirma que “a
abdução […] consiste em traçar, de forma arriscada e hesitante, um sistema de regras de significação que
possibilitem que um signo adquira seu próprio significado […] a abdução ocorre com aqueles signos
naturais que os estoicos chamavam de indicativos, dos quais se suspeita que sejam signos, ainda que não
saibamos o que eles significam” (Eco 1984: 40). A abdução abrange a zona cinzenta na qual a inferência
semiótica (dos significados a partir dos signos) se funde às inferências hipotéticas de um tipo não
semiótico (ou não convencionalmente semiótico), tais como a inferência de Kepler a respeito do
movimento aparente de Marte no céu à noite, a partir da qual concluiu que o planeta percorria uma órbita
elíptica: A abdução é uma “indução a serviço da explicação, na qual uma nova regra empírica é criada
283
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
de Antropologia da Arte se desenrola primorosamente e corrobora como o ultimo
atributo do autor em sua publicação póstuma, no esclarecimento de uma tese medular
para a cultura material religiosa ao nomear, numerar e articular a relação de ideias para
tal compêndio.
Isto posto, vale ressaltar que a teoria da antropologia da arte visa as relações
sociais nas cercanias que envolvem a obra de arte ou o índice, considerando a vida
social do quadro antropológico de referência, no caso a complexa ação artística de
Mendive performático, não considerando o desenhista, o pintor, o escultor, o
pesquisador, o sacerdote. A obra do artista pode ser detalhada doravante as técnicas
supracitadas ou no amplo espaço em que habita e concentra parte de seu acervo, atelier
e jardim, chamado “Manto Blanco”, lugar provavelmente destinado no futuro a ser uma
casa-museu, como também a presença transgressora desse belo homem negro de dreads
longos e brancos, vestimentas sempre brancas, um sujeito da revolução cubana, que
pode absorver da manifestação artística e se lançar mundo afora, compondo o acervo de
importantes museus, “The British Museu” ou “Musée D’art Moderne de Paris”.
O autor enfatiza, “As relações sociais só existem na medida em que se
manifestam em ações. Quem desempenha as ações sociais é “agente”, que age sobre o
“paciente” (um agente social na posição de “paciente” em relação a um agente em
ação). Tais relações entre agentes e pacientes sociais, abrangem distintos termos: os
índices como entidades materiais que motivam interferências abdutivas e interpretações
cognitivas; artistas ou outros que “dão origem”, a quem atribuímos a responsabilidade
para tornar previsível aquilo que de outra forma seria misterioso” […]. A abdução é uma variedade de
inferência não demonstrativa, baseada na falácia lógica segundo a qual afirmar o antecedente obriga a
afirmar o consequente (“se p então q; mas q; portanto p”). Por meio de premissas verdadeiras, ela produz
conclusões que não são necessariamente verdadeiras. No entanto, a abdução é um princípio de inferência
indispensável, pois é o mecanismo básico que permite limitar a enorme quantidade de explicações
compatíveis com um dado evento. (Boyer 1994: 147, citando Holland et al. 1986: 89) (Idem)
12 12
Agente Social: No entanto, como geralmente acontece com as definições, a afirmação de que o
índice deve ser “visto como o resultado e / ou o instrumento da agência social” é em si mesma dependente
de um conceito que ainda não foi definido, o de “agente social” – aquele que exerce a agência social. É
claro que não é difícil dar exemplos de agentes sociais e de agência social. Qualquer pessoa deve ser
considerada um agente social, pelo menos potencialmente. A agência pode ser atribuída a essas pessoas (e
coisas, conforme discutirei a seguir) que são vistas como iniciadoras de sequências causais de um
determinado tipo, ou seja, de eventos causados por atos da mente, da vontade ou da intenção, e não de
uma mera concatenação de eventos físicos. Um agente é aquele que “faz com que os eventos aconteçam”
em torno de si. Como resultado desse exercício da agência, certos eventos acontecem (não
necessariamente os eventos específicos que foram “pretendidos” pelo agente). Enquanto as cadeias
baseadas em relações físico-materiais de causa e efeito consistem em “acontecimentos” que podem ser
explicados pelas leis da física que governam o universo como um todo, os agentes dão início a “ações”
que são “causadas” por eles próprios, por suas intenções, e não pelas leis da física do cosmos. Um agente
é a fonte, a origem dos eventos causais, independentemente do estado do universo físico.(Ibidem)
284
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
causal pela existência e características do índice. Os destinatários, a quem se considera
que os índices exercem agência ou que exercem agência por meios de índice. Por fim os
protótipos: entidades consideradas, por abdução, como representadas no índice, talvez
em virtude de similitudes, mas não necessariamente.
Mendive o agente social, propicia por meio de seu processo a composição do
índice, a performance. A relação entre o agente e pacientes no campo performático
produz uma estranheza, peculiar ao habitat da performance, uma fenda entre o real e o
utópico, dessarte bailarinos, atores, circenses, o público em geral, moradores,
estrangeiros, artistas convidados e autoridades mesclam as categorias e passam de
pacientes à agentes com a presença marcante do “Maestro” no cortejo.
O Lugar como conceito tem passado por grandes transformações a
partir do desenvolvimento das novas tecnologias. O autor Mário
Costa, em seu livro O Sublime Tecnológico aponta para uma evolução
dos deslocamentos espaciais que as tecnologias da comunicação
propiciaram ao mundo da arte contemporânea. O primeiro momento
apontado por Costa refere-se à emissão de informação através dos
dispositivos eletroeletrônicos como microfones, câmeras de vídeo etc;
o que amplifica a performance sem altera-la. No segundo momento, a
própria obra de arte tem que se transformar para poder comunicar-se,
diferenciando a performance do deslocamento, mas-medial, segundo o
autor.
No terceiro momento do desenvolvimento das tecnologias, Mário
Costa, vê o fim da diferenciação entre performance e deslocamento. A
obra nada mais é do que o fluxo audiovisual transmitido, assim como
acaba toda distinção ente “públicos”, não havendo nenhum outro
senão aquele que acede aos canais mass-mediáticos. (CIOTTI, 2014,
pág. 38)
Quem seriam, portanto, os destinatários em vista disso? Nos anos 1980, marco
inicial das performances de Mendive, possivelmente o grupo que assistia e compunha o
quando sobre o “arrebatamento do amor de Xangô por Oxum ao encontra-la em
companhia do irmão Oxóssi”, ou “a paixão de Xangô vivida ao lado de Oyá, que sem
pestanejar abandona a numerosa prole de nove filhos do marido Ogum para viver
aventuras de guerra ao lado do Obá13 de Oyó”, seja pelas ruas cubanas ou no Teatro
Símon Bolívar, na década de 1990, no memorial da América Latina. Atualmente, anos
2021, aquele que acessar por uma plataforma digital uma performance, seja “Las
Cabezas”, “Los Abrazos”, “El água”, estará presente na cosmogonia e cosmologia
13
Obá: Rei.
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iorubá, no exato momento de sua criação por Olodumaré, uma variante iorubá para o
nome do Pré-existente.
Conquanto a gênese da sociologia e por conseguinte da “Escola Francesa” nos
remeta a Durkheim, compete à Mauss em seu tratado “As técnicas do corpo” apontar
um bívio: a diferenciação do exame do corpo e os escritos sobre o corpo. Imprescindível
aludir a desmedida filosofia de Nietzsche ao elaborar o lugar do corpo no contexto pós
iluminismo, ao lançar frases: “eu só acreditaria num Deus que dançasse”, “A vida sem a
música seria um erro”, “o que não provoca minha morte faz com que eu fique mais
forte”, nano-conceitos, que mesmo destacados da obra original ou sem referência
bibliográfica alguma nos acomete imediatamente a elocubrações corpóreas.
Ademais, como o modo segundo coteja HALL a respeito da identidade desse
sujeito social do século XIX:
O sujeito do iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa
humana como indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das
capacidades da razão, de consciência e de ação, cujo “centro”
consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o
sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo – contínuo ou “Idêntico” a ele – ao longo da
existência do Indivíduo. O centro essencial do “eu” era a identidade de
uma pessoa [...] (HALL, 2015, pg. 10-11)
No século XX Foucault mantem-se nessa linha inaugurando sua importante
contribuição para o escopo, o que me faz refletir em especial no conteúdo a ser
decifrado das culturas tradicionais, em questão, os iorubás, cujo corpo é entendido como
principal suporte para a construção do ser individual e social, uma sociedade agrafa
estabelecida na memória corporal como garantia de seu legado às gerações vindouras; a
existência em seu máximo potencial. Afora o imensurável quinhão em termos gerais de
sua obra, Foucault conjuntamente se dedica no que concerne a relação entre poder e
corpo, práticas subjetivas impostas doravante dispositivos culturais adequados a
vivências coletivas. O corpo se apresenta num circunspecto de energias em contínuo
embate, suporte sobre o qual a identidade é construída.
Temos que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente
favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder
e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem
a constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
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suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas
relações de “poder-saber” não devem ser analisadas a partir de um
sujeito de conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema
de poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que
conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento são
outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber
e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a atividade do
conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o
poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e o constituem,
que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento.
(FOUCAULT, 1975, pág.161)
África e América Latina se afastam pontualmente do ocidente, trazem em seu
cerne pré-invasão europeia percepções impares quanto a existência e a natureza que a
cerca. Na disposição de potencializar a dicotomia entre os dois mundos, segue uma
tabela14 comparativa de valores civilizatórios, onde esforço-me na melhor interpretação
do termo:
Mundo Ocidental
Mundo Africano Subsaariano
no continente e em diáspora
Universo regido por leis estáveis
Universo regido por forças conflitos
Progresso e Evolução
Tempo circular, ciclos, espirais
Tecnologias e Máquinas
Fenômenos Naturais
Tempo medido por mecanismos
Tempo calculado pelo social-história
Ciclos naturais: Lua, chuva e marés
Lógica centrada na economia
Lógica centrada no ser humano
Força do Mercado
Força Vital - AXÉ
Estruturas Estruturadas
Estruturas Estruturantes
Noção de morte como fim em si mesmo
Noção de morte como passagem
Ser humano dependente das forças
Ser humano manipulador das forças vitais
sociais
Esquematicamente, para uma melhor compreensão, a relação entre o préexistente e sua creação se estabelece na seguinte condição:
14
Elaborada a partir do texto do Prof. Dr. Fábio Leite, supracitado.
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Primeira geração
Segunda geração ou
Atributo ou
divina
união
elemento
Olorun ou Olodumare
Exu, o primogênito
Orixá
Função cosmogônica
da
Movimento
Comunicação
Elemento fogo
Olorun ou Olodumare
Oxalá, o grande pai
Criação do homem
Homem como centro da existência
Elemento Ar
Nanã, origem jêje-fon
Primeira
consorte
de
Oxalá
Iemanjá, origem iorubá
Segunda
Oxalá
consorte
de
Morte
Empresta sua matéria para a feitura
Elemento terra
do homem
Vida
Grande Mãe
Elemento água
Mãe dos Orixás
Mãe dos homens
Mãe dos Peixes
Ajalá
Ajalá modela a cabeça do homem
Odudua15 criou o mundo
Obatalá criou o ser humano
Obatalá fez o homem de lama,
com corpo, peito, barriga, pernas e pés.
Modelou as costas e os ombros, os braços e as mãos.
Deu-lhe ossos, pele e musculatura.
Fez os machos com pênis
e as fêmeas com vagina,
para que um penetrasse o outro
e assim pudessem se juntar e se reproduzir.
Pôs na criatura coração, fígado e tudo o mais que está dentro dela,
inclusive o sangue.
Olodumare pôs no homem a respiração
e ele viveu.
Mas Obatalá se esqueceu de fazer a cabeça
e Olodumare ordenou a Ajalá que completasse
a obra criadora de Oxalá.
Assim, é Ajalá quem faz as cabeças dos homens e mulheres.
Quando alguém está para nascer,
vai a casa do oleiro Ajalá, o modelador das cabeças.
Ajalá faz as cabeças de barro e as cozinha no forno.
Se Ajalá está bem, faz cabeças boas
Se está bêbado, faz cabeças mal cozidas,
passadas do ponto, mal formadas.
Cada um escolhe sua cabeça para nascer.
Cada um escolhe o orí que vai ter na terra.
Lá escolhe uma cabeça para si.
Cada um escolhe seu orí.
Deve ser esperto, para escolher cabeça boa.
Cabeça ruim é destino ruim,
cabeça boa é riqueza, vitória, prosperidade,
15
Odudua: Deusa da criação do mundo pela cosmogonia iorubá.
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tudo o que é bom. (PRANDI, 2002, pág. 471)
Desse modo, no momento em que o homem é criado recebe o Emí, sopro de vida
que faz seu corpo Ara, por hora inerte, receber a força vital, Axé; frente a oportunidade
da vida, concebe a beleza em forma de arte, Oná, e celebra o propósito fundamental da
realidade do corpo: dançar, visto que a vida é uma dança, um xirê16, realizando desse
modo o seu Odú, destino, firmado no além céu, Orun, pelo seu Orí, a cabeça;
enunciação da órbita de toda concepção “del Maestro Manolo”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Manuel Mendive Hoyo é um artista essencial para hoje, sua produção
contemporânea, rompe os limites do tempo-espaço e lógica, difícil classifica-lo,
impossível não se deixar encantar, seja por um pequeno búzio que sirva de ornamento
para uma escultura em seu jardim ou num corpo negro pintado com ofun, pequenos
círculos brancos que marcam o iniciado e os objetos de culto prestes a receber libações.
Wilfredo Lam é um dos ancestrais cultuados por Mendive em sua fala de
mansidão, artista que se tornou um igbá17 para a arte e cultura afro-cubana, um escudo
para proteção nas encruzilhadas neocoloniais. É preciso decolonizar, África e América
Latina, e desse modo construir a urgente integração.
Para Mendive os elementos da natureza são casas: a água, uma casa, o vento,
outra; valoriza a presença de pássaros à sua volta, agentes das temidas e destemidas
Mães Ancestrais, que regulam a deterioração de tudo que é vivo, puro extrato do
feminino e aguardam à noite para realizarem seus passeios.
O menino premiado na década de 1950 do século XX em um concurso
internacional da UNESCO, considera o mundo um só e convida, ao modo da roda de
Oxalá, parte final do xirê em uma festa pública numa casa de matriz africana, todos a
dançarem, porque para o Deus da criação iorubá somos todos um.
16
17
Xirê: roda, brincadeira e dança
Igbá: representação do Orixá, recipiente onde se deposita a pedra otá e as insígnias de cada Orixá.
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Figura 01 – Laz Cabezas. Manuel Mendive. 2009
.Fonte: Coleção Particular Miami.
Série de Imagens da Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana – 2012.18
18
Las Cabezas performance de Mendive. Por: Ismael Francisco
En este artículo: Arte, Bienal de La Habana, Cuba, Cultura, Fotografía, Frank Fernández, La
Habana, Manuel Mendive, Sociedad, XI Bienal de La Habana. El pintor, escultor y grabador
cubano Manuel Mendive paseó sus "lienzos humanos" dentro de una acción plástica que recorrió una de
las más concurridas avenidas de La Habana y a su paso provocó la sorpresa de muchos transeúntes
atraídos por la originalidad de su propuesta titulada "Las cabezas". Casi 200 personas entre actores de
teatro, bailarines, artistas circenses, estudiantes y hasta algunas sin vínculo directo con las artes plásticas,
prestaron a Mendive la piel de sus cuerpos -una quincena totalmente desnudos y otros con el torso
descubierto- y lo dejaron estampar su pincel sobre ellos. El artista dijo a EFE que con esta nueva
intervención plástica quiso "hacer un homenaje a nosotros mismos, a 'Las cabezas', las buenas, las malas
y las regulares para que todas sean cada vez mejores". En víspera de la inauguración de la XI Bienal de
La Habana, Mendive presentó esta muestra como "un llamado al mejoramiento humano, al amor a la
naturaleza y entre los hombres". Su nuevo trabajo irrumpió en el medio urbano con pinturas sostenidas
por caballetes rodantes mezcladas con piezas escultóricas, e instalaciones, a las que se integraron la
danza, la música y también la pantomima de los participantes, algunos con máscaras que cubrían sus
cabezas.Además incorporó al conjunto otros elementos como los populares "bicitaxis" -bicicletas que
arrastran un asiento de dos plazas techado- y carretillas de las que utilizan actualmente los vendedores
ambulantes de productos agrícolas. Fiel a la esencia de su obra, en la que acostumbra a combinar lo
cotidiano, lo tradicional, lo moderno y un mundo de figuras "mágicas", esta nueva "performance" arrancó
expresiones como "impactante", "sorprendente", "es algo fuera de lo común", "espectacular" del público
que la presenció. "Es fantástico, todo es posible en el arte cuando se hace con disciplina, cordura y
equilibrio, aunque no es la primera vez que Mendive hace este tipo de acción artística", recordó Evelio,
un admirador de la obra de Mendive. Roxana y Mairelys, dos jóvenes estudiantes se declararon
"fascinadas" porque les pareció "algo fuera de lo común", mientras que Rosa Hernández, una señora
entrada en años dijo a EFE que "nunca había visto un acto así con personas desnudas", pero le pareció
que "eso es cultura y no me resulta chocante ni vulgar". A uno de los turistas que frecuentaban este jueves
la populosa zona, se le escuchó comentar a sus acompañantes "is wonderful (maravilloso)". Mendive
inició esta acción artística con la pintura corporal de los participantes en el vestíbulo del Gran Teatro de
La Habana y luego encabezó la representación que desfiló a lo largo de varias calles del Paseo del Prado
hasta su intersección la avenida malecón, y desde allí regresó para cerrar la caminata frente al edificio de
"El Capitolio". Allí en una plataforma se completó la obra artística con la intervención de voces de la
Opera Nacional de Cuba, bailarines de los grupos Danza del Caribe, Danza Fragmentada y Rakatán, el
grupo teatral de muñecos Okantomí y el pianista Frank Fernández. Con el "performance", procedimiento
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Figura 02 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performancede-mendive-fotos/
Figura 03 – Cartaz da Performance
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performancede-mendive-fotos/
que Mendive estrenó en 1986, este artista fusiona su manejo de técnicas y recursos propios del arte
africano, su gusto por la escultura, la pasión por el color y un primitivismo voluntario, según las
valoraciones de algunos especialistas. Pero sin duda, un observador de su obra dijo al ver "Las
cabezas" que el principal mérito de Mendive es que consiguió trascender "lo exótico" y ha impuesto una
visión plástica "original". Mendive ha participado en todas las ediciones de la Bienal de La Habana,
según han señalado los organizadores de esta nueva edición de la cita cuya inauguración oficial será este
viernes con la asistencia de más de 180 artistas de 43 países y volcada a los espacios públicos y las calles
de la ciudad.
Fonte:://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-de-mendive-fotos/
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Figura 04 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performancede-mendive-fotos/
Figura 05 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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Figura 06 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/
Figura 07 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/
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Figura 08 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/
Figura 09 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/
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Figura 10 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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Figura 11 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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Figura 12 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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Figura 13 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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Figura 14 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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Figura 15 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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Figura 16 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/
Figura 17 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
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Figura 18 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/
Figura 19 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012
Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/
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Ainda não traz a totalidade do acervo audiovisual da ECA
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Filmes e Vídeos, catálogo específico desse acervo, completo, disponível no site da Biblioteca da
ECA
http://www.eca.usp.br/biblioteca-bases/cena/search.htm
Para saber o que há de novo no acervo, consulte sempre as bases de dados online e acompanhe a
Biblioteca da ECA no Facebook e Twitter. https://www.facebook.com/ecabiblioteca
https://twitter.com/bibliotecadaeca/
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FFLCH Enciclopédia de Antropologia: Arte – Alfred Gell
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Manuel Mendive Hoyo, Obba, 1967
Manuel Mendive Hoyo, Cristóbal Colón, 1984
Manuel Mendive Hoyo, Ollá. La dueña del cementerio, 196
Manuel Mendive Hoyo, Sin título, 1986
Manuel Mendive Hoyo, Sin título, 1986
Manuel Mendive Hoyo, Allacuá, 1991
Artigos e Catálogos
Obras de Mendive inauguran Galería de Mayabeque
En Bellas Artes la Bienal supera lo anunciado
Repensando Cuba y la Cubanidad en el Museo Nacional de Bellas Artes
Bellas Artes en representativa muestra internacional
Sin Máscaras. Arte Afrocubano Contemporáneo
Análisis y puntos de vista acompañan exposición transitoria
Alicia y los pintores
The British Museum
Disponível em:
https://www.britishmuseum.org/collection/term/BIOG38128
Acervo:
Print. Manuel Mendive. 1989
Data de acesso: 30/04/2021.
Musée D’art Moderne de Paris
Disponível em:
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301
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Data de acesso: 30/04/2021.
Exposições:
Histórias afro-atlânticas 2018 – Projeto Temático
MASP Museu de Arte de São Paulo Assi Châteaubriant
Disponível em:
https://masp.org.br/
Local: Instituto Tomie Ohtake
https://www.institutotomieohtake.org.br/
Data de acesso: 30/04/2021.
Periódicos:
Jornal da USP: “A arte de Cuba”
Disponível em:
http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2006/jusp750/pag09.htm
Data de acesso: 30/04/2021.
Agência nacional de notícia: “Museu Oscar Niemeyer apresenta uma das mais completas
mostras de arte cubana”
Disponível em:
http://www.historico.aen.pr.gov.br/modules/noticias/makepdf.php?storyid=23764
Data de acesso: 30/04/2021.
Performances, entrevistas e documentários:
Manuel Mendive: The Magic World of Mendive
Disponível em:
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Data de acesso: 30/04/2021.
Manuel Mendive: Nature, Sipirit, and Man – A Kennedy Center Digital Stage Original:
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=C6E9K3YP2sY
Data de acesso: 30/04/2021.
Manuel Mendive “El sonido del agua me recuerda
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4qdI5I1bXLM
Data de acesso: 30/04/2021.
Manuel Mendive ou l’esprit pictural Yoruba
Disponível em:
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Data de acesso: 30/04/2021.
Frost Museum
El agua
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XII Bienal de Havana - 2019
Los Abrazos
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XII Bienal de Havana - 2015
Los colores de la vida
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302
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XI Bienal de Havana – 2012
Las Cabezas
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X Bienal de Havana – 2009
El Espiríto, La Naturaleza, cabeza e corazones
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Data de acesso: 30/04/2021.
Cuba debate: Crítica da performance Laz Cabezas
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
O TEATRO POLÍTICO NA AMÉRICA DO SUL E AS DITADURAS
MILITARES: CENSURA, REPRESSÃO E A FUNÇÃO SOCIAL DO TEATRO
Michelle Cristina Alves Silva1
INTRODUÇÃO
O texto pretende alavancar a reflexão crítica sobre o tema elencado no título,
começando pela relação secular entre teatro e política. Augusto Boal (1931-2009),
homem de teatro, reitera tal afirmativa quando expõem em seus escritos e em sua
militância de décadas no teatro que, tanto a discussão sobre a política quanto a
discussão sobre o teatro são, de fato, questionamentos antigos e que se estendem ao
longo do tempo, perpassando diferentes gerações de artistas.
Logo, cada vez mais percebe-se a estreita relação entre o fazer teatral e os temas
político-sociais, especialmente nos contextos sócio-históricos referentes à essa
produção, a exemplo das experiências no século XIX em países como Alemanha,
França, Rússia e posteriormente União Soviética que tinham como proposição utilizar o
teatro como ferramenta para tratar principalmente da formação crítica dos trabalhadores
e o engajamento nos processos das lutas sociais.
Desta forma, diferentes grupos surgiram dentro dos próprios movimentos e se
vincularam ao teatro, entendendo a potência do fazer teatral para pautar, de outra forma,
as questões político-sociais, a exemplo das experiências militantes das vanguardas russa
e alemã dos anos (a proletkult2, o agit-prop3 e os blusões azuis4). Assim, o teatro do
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina
(PROLAM) da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: michelleferreira@usp.br.
2 Proletkult é a abreviatura da expressão russa "proletarskaya kultura", que significa "cultura proletária".
Foi um movimento literário surgido na Rússia em 1917. Entre seus criadores estão o teórico Alexander
Bogdanov e o poeta Mikhail Gerasimov. Durante a sua existência reuniu uma ampla gama de artistas, de
decadentes a futuristas.
3
A expressão foi criada pelos revolucionários russos em 1917 para divulgar os projetos políticos da
revolução, bem como para potencializar a agitação das massas no processo de transformação social. No
que se refere ao teatro de agitprop, grupos culturais organizavam trabalhos de curta duração visando à
politização das massas.
4
Grupo de teatro que foi criado no período da Revolução Russa e que realizou uma série de atividades,
desde a formação de novos agitadores, até a produção e a publicação de uma revista intitulada Revista
Blusa Azul.
304
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
século XIX, especialmente os teatros na Rússia e Alemanha foram experiências
importantes para a consolidação do que se entende sobre teatro político.
Portanto, é possível se pensar no fenômeno teatral enquanto elemento discursivo
de uma sociedade. Os artistas que estavam à frente dos movimentos artísticos e dos
coletivos populares de teatro buscaram vincular o fazer teatral com o cenário político
vigente, com destaque para o teatro russo da década de 1920, que se tornou instrumento
de mobilização das lutas sociais.
Nesse sentido, partindo sobre esse panorama sucinto do surgimento do teatro
político mundial; a abordagem neste trabalho será a produção teatral engajada
desenvolvida na América do Sul, no período das ditaduras militares. Logo, o teatro
político, que ganhou “berço” na Rússia por meio das revoluções e lutas de classe,
também terá ambiente propício na América Latina, especialmente na América do Sul.
No período das ditaduras militares, artistas e trabalhadores do teatro se
mobilizaram na luta contra os regimes responsáveis pela censura da imprensa, de
inúmeros intelectuais, artistas e coletivos de teatro, bem como pelas torturas,
assassinatos e desparecimentos nas décadas de 1960, 1970 e 1980. É esse cenário que
nos interessa como objeto de análise e no qual nos debruçaremos em seguida.
TEATRO POLÍTICO NO BRASIL E NOS DEMAIS PAÍSES DA AMÉRICA DO
SUL
Enquanto na Europa e na Rússia/União Soviética, o teatro político sofreu a
influência do agitprop e dos partidos comunistas; no Brasil, ele surgiu, primeiramente,
com o teatro operário de influência anarquista, protagonizado pelos imigrantes europeus
que aqui chegaram para trabalhar, especialmente de italianos, que traziam em suas
bagagens tal tendência.
As formas teatrais do século XIX, que elegeram a linguagem simples
do gesto grandiloquente, arrebanhando grandes massas para as
plateias, ou então, que resgataram para o teatro os temas sociais a
partir da observação aguda da realidade, esbarram, sob a perspectiva
de uma intenção transformadora da sociedade, na ausência de um
arcabouço ideológico que permita ao trabalhador reconhecer sua
condição de explorado e vislumbrar a via de sua emancipação. As
305
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
condições para a organização desses impulsos transformadores e essas
experiências de caráter popular não nasceriam apenas dos próprios
processos internos: são os fatos políticos que vão determinar a
conjuntura adequada para que o teatro de natureza política se institua,
e o Partido Comunista e o Estado terão aí um papel preponderante. A
Rússia seria o berço desse fenômeno. (GARCIA, 1990, p.3)
Cabe ressaltar a perspectiva de formação crítica dos trabalhadores que começou
com o teatro russo, aos poucos, começa-se a instalar também em outros países e
questões sociais começam a ganhar a cena também no teatro brasileiro. Percebe-se que
este teatro com os imigrantes europeus que se iniciou no país, tinha como propósito
reafirmar a identidade cultural dos italianos em solo brasileiro. Desta forma, era um
teatro concebido por eles e tendo como público seus próprios companheiros de
nacionalidade.
Aos poucos, tais grupos começaram também a se organizar em sindicatos e
partidos socialistas, a fim de pautar em cena as questões que diziam respeito ao
cotidiano dos operários.
Pensar o teatro político é pensar a relação que se produz entre a obra e
o mundo, entre o mundo e o artista. E, neste sentido, não é mais que
um dos tantos fenômenos discursivos que produzem, a partir de um
artifício particular, uma determinada imagem desse mundo. Essa
imagem produzida pelo teatro político entrará definitivamente num
jogo dialético com os outros discursos. (IRAZÁBAL, 2004, p. 37-38).
Logo, a perspectiva dialética que começa a ganhar também o discurso engajado
na cena começa a se desenhar nas produções teatrais neste período, especialmente junto
aos trabalhadores vinculados a um mesmo sindicato. Entretanto, é somente a partir do
final da primeira década do século XX, que se percebeu uma vinculação mais estreita do
teatro com as associações operárias. Trata-se de um período no qual eclodiu várias
greves de trabalhadores no país, com a extradição de inúmeros estrangeiros tidos como
anarquistas. Pode-se dizer que se tratava de um teatro com temáticas de contexto
político, porém, tratadas de forma pontual e sem desdobramentos significativos.
A presença de uma ativa produção cultural enfrentando a ditadura,
como lembra Ronaldo Lins, testemunha as inúmeras modalidades de
luta. O desafio central é, pois, capturar os traços fundamentais que
produzem esse amálgama peculiar entre o velho e o novo, entre o
306
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
mesmo e o outro, assim como o caráter social que dele resulta, com
suas contradições multiplicadas. (IASI; COUTINHO, 2014, p.12).
Iasi e Coutinho já nos apontam para a importância da produção cultural no
contexto da ditadura militar, bem como para o seu caráter social e de proposição de
mudanças por meio do reforço à capacidade crítica do público. Assim, será necessário
dar um salto histórico nessa trajetória, uma vez que o se tem de marco temporal efetivo
da consolidação do teatro político no Brasil reporta à década de 1960, com a criação dos
Centros Populares de Cultura vinculados à União Nacional dos Estudantes (CPC da
UNE). Junto com estes espaços, grupos e artistas de tendência mais questionadora
começaram a se reafirmar. É o período no qual se buscou a presença em cena do homem
brasileiro, da reafirmação da identidade nacional. Não apenas no teatro, mas em outras
linguagens artísticas como o cinema, percebe-se a tentativa de abordar e dar visibilidade
para as mazelas sociais do povo brasileiro. Assim, a atuação dos artistas de teatro junto
ao CPC, mostrou-se uma experiência mais direta com as massas.
No Rio de Janeiro, os CPCs (Centro Popular de Cultura)
improvisaram teatro político em portas de fábrica, sindicatos, grêmios
estudantis e, na favela, começavam a fazer cinema e lançar discos. O
vento pré-revolucionário descompartimentava a consciência nacional
e enchia os jornais de reforma agrária, agitação camponesa,
movimento operário, nacionalização de empresas americanas etc. O
país estava irreconhecivelmente inteligente. O jornalismo político
dava um extraordinário salto nas grandes cidades, bem como o
humorismo. Mesmo alguns deputados fizeram discursos com
interesse. Em pequeno, era a produção intelectual que começava a
orientar a sua relação com as massas. Entretanto, sobreveio o golpe, e,
com ele a repressão e o silêncio das primeiras semanas. (SCHWARZ,
2009, p. 21).
A criação do CPC ocorreu no Rio de Janeiro, em 1962, no período do governo
de João Goulart, pautada por um cenário de forte mobilização política, com a expansão
das organizações de trabalhadores, seja no campo ou nas cidades. A formação inicial do
CPC se deu no teatro, expandindo, posteriormente, para a reunião de artistas de várias
áreas (cinema, música, artes visuais e outros setores). Juntamente com o movimento
estudantil, eles foram responsáveis pela circulação de apresentações artísticas em
sindicatos, favelas e espaços públicos.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
O eixo do projeto do CPC se norteou pela tentativa de construção de uma cultura
nacional, popular e democrática, por meio de ações culturais, educativas e artísticas que
sensibilizassem a conscientização das classes populares. A ideia do projeto dizia
respeito à noção de arte popular revolucionária, concebida como instrumento
privilegiado da revolução social.
Desta forma, são artistas que trabalhavam com o teatro a partir de uma
perspectiva transformadora. Entretanto, seu trabalho sofreu uma fratura com o Golpe de
1964, o que torna complexa a análise de um desenvolvimento efetivo da curta trajetória
do CPC da UNE. Destaca-se ainda, neste período, o trabalho de Augusto Boal,
importante encenador brasileiro que desenvolveu a técnica do Teatro do Oprimido,
atualmente conhecida e replicada no mundo todo. O teatro era visto por Augusto Boal
como um instrumento de emancipação política.
Grupos teatrais como o Opinião5 e o Arena 6 fizeram forte resistência política por
meio de suas peças teatrais, sendo uma forma alternativa de denunciar os atos arbitrários
e de abuso de poder por parte dos militares.
Por todas as questões ora explicitadas, percebe-se que os anos que antecederam à
ditadura militar no Brasil e, mesmo quando a ditadura já tinha se efetivado; a produção
teatral foi profícua, tendo, muitas vezes, a função de enfrentamento e resistência ao
cenário opressor que ora se apresentava como a realidade da população brasileira.
Os que pretendem separar o teatro da política pretendem conduzir-nos
ao erro – e essa é uma atitude política. Por isto, é necessário lutar por
ele. Por isso, as classes dominantes permanentemente tentam
apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação. Ao
5
O Opinião foi um grupo de teatro carioca da década de 1960. Após o golpe militar de 1964, um grupo
de artistas ligados aos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes se reuniu com o
objetivo de fazer frente à situação político-social enfrentada pela sociedade brasileira. Em 11 de
dezembro de 1964, ocorreu a estreia do legendário show Opinião, dirigido por Augusto Boal e João das
Neves e que dá nome ao grupo. Desde a sua fundação, o Opinião privilegiou o teatro popular. Mais
informações vide: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo399366/grupo-opiniao. Acesso em
23/04/2020.
6
O Arena foi um grupo paulistano fundado na década de 1950 e reuniu um expressivo número de
artistas comprometidos com um teatro político e social, a exemplo de José Renato, Henrique Becker e
Sérgio Britto. Somaram-se depois artistas como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e
Milton Gonçalves. O grupo teve sua estreia em 1953 com a peça “Esta Noite É Nossa”, de Stafford
Dickens no Museu de Arte Moderna de São Paulo- MASP. Uma de suas montagens mais emblemáticas
foi o texto de Guarnieri “Eles não usam black-tie” de 1958. Mais informações vide:
http://54.232.130.51/grupo399339/teatro-de-arena. Acesso em 22/04/2020.
308
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
fazê-lo, modificam o próprio conceito do que seja o ‘teatro’. Mas o
teatro pode igualmente ser uma arma de liberação. Para isso, é
necessário criar as formas teatrais correspondentes. É necessário
transformar. (BOAL, 2019, p.11).
O teatro político brasileiro no período da ditadura militar foi um ato de
resistência e enfrentamento dos artistas que reagiram à censura imposta pelos militares e
por segmentos ultraconservadores da sociedade. A censura, histórica no país desde o
período da monarquia; tem seu auge após a publicação, em dezembro de 1968, do Ato
Institucional número 5 (AI-5). A classe teatral foi um dos alvos preferidos dos militares:
Entre 1964 e 1968, a censura foi exercida ainda predominantemente
nos estados, mas, a partir da promulgação do AI-5, em dezembro de
1968, o governo federal centraliza o controle sobre a opinião pública
através da perseguição a jornais e demais meios de comunicação e a
censura violenta e sistemática da prática artística. Sob jurisdição dos
estados ficam apenas processos considerados menos agressivos à
Segurança Nacional. Inicia-se o período de maior conflito entre o
governo militar e a classe teatral, que, madura e organizada, produz as
melhores páginas de sua história, e manifesta-se abertamente contra a
repressão, que aposenta um projeto nacionalista e democrático. A
contribuição do teatro na luta pela liberdade e pela democracia, sob a
forma de produção de textos, apresentações e atitudes políticas
assumidas pelos artistas ainda está para ser plenamente analisada.
(COSTA, 2008, p. 20-21).
Neste mesmo período, outras ditaduras militares também eclodiram na América
do Sul, quando ocorreu o enfrentamento de vários coletivos e grupos teatrais frente às
medidas arbitrárias dos governos militares. Logo, passaremos ao panorama desta
produção teatral nos demais países da América do Sul.
DITADURAS MILITARES E TEATRO POLÍTICO NOS DEMAIS PAÍSES DA
AMÉRICA DO SUL
Ao mesmo tempo em que o Brasil enfrentava a ditadura militar; outros países da
América do Sul, a exemplo de Uruguai, Chile e Argentina também passaram por
processos semelhantes nos quais artistas e intelectuais, por sua postura de
enfrentamento, sofreram graves violações de direitos: foram presos, duramente
torturados, muitos foram exilados e outros ainda constam na lista de desaparecidos.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Essa relação conflituosa de segmentos progressistas da sociedade com os
governos de exceção se deve, em grande parte, pela proposição coletiva de uma atuação
militante que extrapola o fazer artístico e intelectual e tenta inserir na realidade
cotidiana um olhar crítico e reflexivo que possa levar à mobilização dos mais diferentes
setores, especialmente daqueles nos quais recaíram a mão pesada e opressora do Estado.
Nestor García Canclini (1980), em sua obra “A Socialização da Arte”, discorre
amplamente sobre a importância dos movimentos de diferentes coletivos artísticos,
especialmente nas últimas décadas, de aproximar a cultura e a arte das pautas sociais.
No que se refere ao teatro na América Latina, Canclini menciona a relação intrínseca
dos coletivos teatrais com as questões da conjuntura político-social de seus países.
Nesses últimos quinze anos, vimos surgir em nosso continente mais de
uma centena de conjuntos teatrais que entretêm, com trabalhos
coletivos, a vida cotidiana dos bairros populares na Colômbia e na
Argentina, no México e no Chile; representam, pela primeira vez em
quíchua, a história do Peru, e em guarani, a história do Paraguai;
inventam procedimentos para estimular a interação entre atores e
público, a fim de converter a ilusão cênica em consciência crítica. A
estreita relação das novas manifestações artísticas com as
transformações sociais torna evidente algo que é válido para a arte de
todas as épocas: a necessidade de analisá-la junto com seu contexto
histórico. (CANCLINI, 1984, p.2-3).
A Argentina, por exemplo, foi o país que concentrou o maior número de
assassinatos, segundo organizações de direitos humanos (cerca de 30.000). O Uruguai
teve o maior número de presos políticos (cerca de 8.000 presos, mantidos em detenção
de três a cinco anos).
Desta forma, foi expressiva a produção de diversos grupos teatrais nos países
latino-americanos neste período, que procurava dar visibilidade ao cenário políticosocial de seus países, assim como promover o diálogo, em alguns casos, com outras
realidades latino-americanas que sofriam com a repressão militar.
A exemplo, temos importantes grupos teatrais, como o Teatro de los Andes na
Bolívia, o Teatro La Candelária na Colômbia, o Grupo Yuyahkani no Peru, que
refletiam em seus trabalhos os processos ditatoriais de seus países. Tais coletivos
teatrais buscavam, por meio de seus espetáculos, não apenas denunciar os casos de
violações de direitos, mas provocar, junto com o público, novos posicionamentos e
formas de reagir a tais arbitrariedades.
310
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
É importante dizer que tais grupos teatrais e seus membros tinham uma atuação
para além da cena: os coletivos possuíam uma perspectiva de atuação independente.
Muitas vezes, eles contavam apenas com recursos próprios e colaborações de alguns
segmentos da sociedade e nenhum financiamento do poder público; além do fato de
seus integrantes terem uma vinculação com partidos políticos progressistas ou
movimentos sociais.
Ainda na Colômbia, podemos citar o Teatro Experimental de Cali, que tinha
como premissa o método de criação coletiva e de abordagem crítica de fatos históricos
da Colômbia em seus trabalhos:
[...] É o caso do teatro experimental de Cali, dirigido por Enrique
Buenaventura. Embora não possamos nos referir amplamente à sua
produção por não ter visto suas obras, a leitura de algumas delas e de
seus textos teórico-metodológicos revelam uma considerável
maturidade na formação de técnicas de investigação social e de
elaboração gradual para a redação das peças. Eles concebem os textos
teatrais de forma parecida aos roteiros cinematográficos, ou mesmo
aos textos abertos da Commedia Dell ´Arte, como ‘esquemas de
conflitos’ que servem de base aos atores para improvisar e elaborar
grupalmente a documentação obtida sobre um fato (por exemplo, em
‘La denuncia’, o resumo do debate da Câmara de Representantes
sobre a greve ‘das bananeiras’, massacre dos operários de 1928 na
Colômbia), e ir identificando as ‘forças em luta’, ao redor das quais se
organiza o conflito. (CANCLINI, 1984, p.162).
O Teatro Experimental de Cali teve uma trajetória relevante, considerando
sempre em suas criações coletivas o comprometimento social com o povo colombiano e
com a América Latina como um todo; além de apresentar, em seus trabalhos, a
inconformidade política como um sentimento motivador, uma primeira etapa para
produzir as mudanças sociais.
Logo, um fator relevante nas décadas de 1960 e 1970 é que muitos
questionamentos, não somente sociopolíticos, mas também éticos e estéticos, foram
levados para a cena latino-americana:
Como lo describe Mugercia, hay una vocación ‘etnologica e politica
del arte latinoamericana’ que aparece exacerbada entre la década del
50 y 60 cuando la radicalidad presente en Latinoamérica produce
subversiones realizadas por el movimiento estudiantil hasta que las
dictaduras provocan las respuestas revolucionarias en Brasil, Chile,
Argentina, Uruguay, Perú, Venezuela y Colombia, inaugurando el
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
tiempo de los años de la revolución. Anacronismo, memoria, parodia
de los discursos, mezcla de presentación performática y
representación, inserción de lo real, relecturas de la teoria de Brecht y
exageraciones de la teatralidad son constantes de la nueva escena
latinoamericana preucupada com los temas políticos. (GUERRERO,
2018, p.25).
Nesse sentido, falar do teatro latino-americano no período de 1960 a 1980 é
vinculá-lo, em grande parte, com os movimentos políticos de seus países, especialmente
o movimento estudantil e relacioná-lo, também, a uma forma de pensar e contestar, por
meio da cena (forma e conteúdo) os discursos hegemônicos; especialmente aqueles
advindos do capitalismo norte-americano.
Na Argentina, muitos grupos, coletivos e movimentos teatrais tornaram-se
referências importantes, a exemplo do Movimiento del Teatro Abierto, criado em 28 de
julho de 1981, com repercussão significativa na sociedade.
O Movimento foi idealizado pelo dramaturgo Osvaldo Dragún e era composto
por atores, diretores e outros profissionais de teatro, que se reuniram no Teatro del
Picadero, um espaço com capacidade para 500 pessoas.
El autor Mauricio Kartun reconoce que Teatro Abierto fue ‘el
emergente de las necesidades que estaban presionando desde distintos
sectores del pueblo para que, efectivamente, se dijera lo que estaba
sucediendo’. Otro dramaturgo, Roberto Perinelli, miembro de Teatro
Abierto en 1981, señala que la experiencia fue ‘además de una
respuesta a la opresión política, un síntoma de que el teatro argentino
todavía existía. (YENI, 2005).
A reação a esse movimento não tardou em aparecer: no dia 06 de agosto de
1981, um grupo paramilitar colocou três bombas no Teatro del Picadero, que ficou
completamente destruído. Logo, no dia seguinte, os artistas já se mobilizaram e 16 salas
se ofereceram para abrigar as obras, envolvendo diversos atores, diretores técnicos e
demais trabalhadores do teatro.
Outros ciclos se sucederam ao movimento durante a ditadura argentina, com o
envolvimento crescente não somente dos profissionais do teatro, mas, também, do
público, sempre com o lema “Em defesa da democracia, pela liberação nacional e
unidade latinoamericana”.
Demais espaços teatrais também tiveram que conviver com ameaças constantes
e atentados durante a ditadura argentina. Felisa Yeni, que foi diretora do Teatro Payró,
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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relata que durante o ensaio da montagem “Telarañas”; a obra foi proibida e o teatro
fechado.
Ainda na Argentina, o Grupo Outubro, criado e conduzido por Norman Briski, que
teve o auge da sua produção política no período de 1970 a 1974, conseguiu desenvolver
um intenso trabalho em bairros operários e favelas de Buenos Aires, assim como no
interior do país.
No Chile, o surgimento de grupos teatrais teve uma vinculação estreita com núcleos
comunitários, organizações de direitos humanos, bem como com movimentos de
educação popular.
Após o golpe de Estado no Chile, em 1973, os estudos apontam para um forte
impacto nas produções culturais e, um ano após o golpe, a produção teatral era ainda
incipiente. A partir de 1975, surgiram várias companhias e movimentos teatrais
independentes, dentre os quais, cabe destacar, nomes como Imagem, Teatro del Ángel,
La Feria, Taller de Investigación Teatral, Teatro Universitário, dentre outros.
Muitos profissionais do teatro chileno reforçaram em seus discursos que a
atuação artística tinha como premissa contribuir para a rearticular a consciência
nacional dos cidadãos em um cenário autoritário. Destaca-se a atuação também de
coletivos junto à Universidade Católica do Chile, que sediou o Teatro ICTUS, desde
1955 e que potencializou as suas atividades no período da ditadura. Até o final da
década de 1980, o teatro chileno desenvolveu uma intensa atividade em vários pontos
do território.
Já na ditadura uruguaia, destaca-se a forte atuação do Grupo El Galpón e de
outros grupos teatrais independentes, a exemplo do Teatro Circular e Teatro Uno.
É importante dizer que estes e outros coletivos integravam a Federação Uruguaia
de Teatros Independentes, criada em 1947. Eles apontaram algumas características
importantes referentes ao teatro independente uruguaio para se vincularem à Federação,
a saber: autonomia e desvinculação de toda sujeição comercial bem como da ingerência
do Estado em suas produções, valorização das experimentações nos processos criativos,
fortalecimento da dramaturgia nacional e latino-americana, enfoque no teatro popular,
relevância do trabalho coletivo e, por fim, a militância para além da cena. É importante
dizer que muitas dessas prerrogativas ainda seguem presentes em muitos grupos de
teatro do Uruguai, a exemplo do próprio El Galpón.
313
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Es decir, que el teatro independiente no solo involucra puestas en
escena comprometidas con una realidad social uruguaya y/o
latinoamericana, sino que involucra una experiencia colectiva de
construir las salas, un proceso de trabajo comunitario y cooperativo
donde el grupo es más fuerte que la suma de sus partes, y brinda un
sentido de pertenencia, de identidad, de solidaridad y de integración a
sus miembros (SCARAFUNNI, 2016, s.p).
Como aponta Luciana Scarafunni, a proposta coletiva dos grupos uruguaios se
consolida não apenas na criação artística, mas se vincula a todo o trabalho para além da
cena: desde a construção das salas do teatro, que são viabilizadas com o apoio da
própria população, seja com recursos financeiros advindos não do Estado, mas da
comunidade, até a prestação de serviços voluntários e a gestão do grupo. O Grupo El
Galpón foi criado em Montevidéu, ao final da década de 1940. É um dos grupos mais
antigos da América Latina, contando com mais de setenta anos de atividades
ininterruptas. Em 1951, o grupo fundou a sua primeira sede, um pequeno teatro para
150 espectadores, a Sala Mercedes. Trabalhando de forma totalmente independente e
colaborativa, contando com apoio de pessoas físicas e doações para manter as suas
atividades; eles tinham como premissa estimular a dramaturgia latino-americana e
nacional, bem como de realizar o intercâmbio com artistas de outras áreas artísticas.
Em 1964, o aguerrido grupo adquiriu um antigo cinema a fim de reformá-lo em
uma sala teatral mais ampla e com capacidade para receber um número maior de
espectadores, agora para 650 pessoas.
Entretanto, em 1971, ocorreu o golpe cívico-militar em Montevidéu, com o
então presidente Juan M. Bordaberry; em 1973 foi dissolvido o Congresso e os
militares assumiram definitivamente o poder. Apesar das repressões, sucessivas
ameaças e censura, o grupo seguiu com suas atividades. Entretanto, em 1976, por meio
do Decreto de 07 de maio de 1976, os militares tornaram ilegais as ações do grupo,
confiscaram seus bens, proibindo os mesmos de darem prosseguimento ao seu trabalho.
Muitos de seus integrantes foram exilados, presos e os demais impossibilitados de
exercer as suas atividades artísticas e a docência.
En primer lugar, los ataques de las bandas fascistas parapoliciales, que
asolaron la vida montevideana entre 1968 y 1972, a los locales de El
Galpón, bajo la forma de bombas de petróleo y ‘malones’ armados de
314
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
hierros, que destruyeron las puertas de acceso a los mismos. [...] En
segundo lugar, la dictadura ya establecida, publicó en febrero de 1974
un suplemento, a ser repartido junto a la escasa prensa no clausurada,
en el que se presentaba a toda la cultura uruguaia como ‘aliada a la
subversión’; y en dicho suplemento, El Galpón ocupaba un lugar
prominente. El significado de estas publicaciones ya era conocido por
el pueblo uruguayo; ambientar o justificar una violenta acción
represiva. [...] La tercera etapa de esta escalada, se produjo en octubre
del 75, cuando una nueva ola represiva incrementó en miles el número
de presos; y tomó la forma de prohibirles, a algunos integrantes de El
Galpón, ‘actuar, dirigir, escribir, o tener contacto alguno con
organismo cultural en todo el territorio nacional’. (YÁÑEZ, 1984,
p.74).
Tendo em vista o tenso cenário político no Uruguai, muitos de seus integrantes
foram exilados e passaram a viver em outros países da América Latina, como
Argentina, Cuba e especialmente no México, onde seguiram com suas atividades, ainda
configurados como Grupo El Galpón. Paralelo a esta situação, os integrantes que
permaneceram em Montevidéu seguiram engajados no processo de luta a favor da
redemocratização do país. É importante pontuar o empenho do grupo e seu êxito em terse mantido coeso e ativo durante o exílio. Foi neste período, exilados, que os seus
integrantes viveram profissionalmente do teatro e se apresentaram em diversos estados
mexicanos.
Somente em 1984 quando começa a se discutir o processo de redemocratização
no Uruguai é que os integrantes exilados finalmente puderam retornar. Em 1985, os
bens confiscados do grupo são devolvidos, mas uma parcela significativa dos
equipamentos, vestuário e de seu acervo foram perdidos, assim como a sala Mercedes
havia sido demolida. Novamente o grupo se empenhou para a reconstrução do seu
espaço e reorganizou uma série de atividades como apresentações, seminários e
oficinas.
Durante a sua trajetória, o grupo se apresentou em mais de 20 países,
percorrendo muitos países na América Latina, Canadá e na antiga União Soviética. O
grupo mantém, até hoje, a sua sede em Montevidéu, com diversificada e intensa
programação que está limitada agora, como todo o segmento cultural, às questões da
pandemia do Covid-19.
É importante dizer que a atuação coletiva irrestrita dos grupos teatrais do
Uruguai era também uma forma de fortalecer os artistas para resistir às pressões da
315
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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ditadura e, assim, criar uma proposta de trabalho artístico coletivo mais horizontal.
Outro ponto que merece destaque é a consideração dos artistas uruguaios de não apenas
valorizar a dramaturgia nacional, mas de estabelecer pontes com outros autores da
América Latina. O próprio Grupo El Galpón chegou a montar textos teatrais de autores
brasileiros, com destaque para peça de Millôr Fernandes (1965) intitulada “Liberdade,
Liberdade”, que teve sua estreia em 1968 enquanto a cavalaria militar percorria a porta
do teatro. Como pontua Verzero: “los grupos de teatro militante e independiente de
Uruguay tendían puentes con la latinoamericanidad en pos de configurar un movimiento
teatral latinoamericano, pero también respetaban las especificidades nacionales y los
contextos históricos que se vivían en aquella época” (VERZERO, 2012, s.p).
Por fim, é importante retomar a trajetória de Augusto Boal, dramaturgo, diretor
e educador brasileiro que teve e continua tendo, mesmo após a sua morte, a proposta de
promover a função social e transformadora do teatro, especialmente junto às lideranças
de movimentos sociais. O trabalho do Teatro do Oprimido se consolida, especialmente,
por meio da atuação do Centro de Teatro do Oprimido, sediado no Rio de Janeiro e por
inúmeros Núcleos de Teatro do Oprimido na América Latina e no mundo, que atuam a
partir do trabalho desenvolvido por Boal.
Seu legado enquanto homem de teatro impulsionou diferentes e diversos grupos de
Teatro do Oprimido por todo o território latino-americano e no mundo; contribuindo,
efetivamente, para um teatro no qual se insere como protagonista homens e mulheres
das camadas menos desfavorecidas como os responsáveis por efetivarem as mudanças
sociais:
Ninguém, tampouco, realizou um trabalho tão vasto em quase todos os
países do continente: iniciou no Brasil, nos anos cinquenta, a
renovação dos métodos de encenação em salas comerciais; de 1960 a
1964 realizou experiências de teatro popular em diferentes regiões do
mesmo país; depois dirigiu variadas formas de teatro de resistência,
que continuou em Buenos Aires, exilado, a partir de 1971; em 1973
participou da Operação de Alfabetização Integral, patrocinada pelo
governo peruano, quando preparou alfabetizadores para
desenvolverem a linguagem teatral entre o povo; e deu cursos em
muitos países da América Latina com o fim de transmitir seu
repertório de técnicas de representação dramática que,
simultaneamente, foi sistematizado em livros e artigos. Como diretor
do Teatro Arena de São Paulo, criou o teatro jornalístico, modalidade
adotada e difundida pelos Centros Populares de Cultura, organizações
integrais dedicadas a atender os problemas básicos de cada
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comunidade e nos quais Boal teve uma ativa participação.
(CANCLINI, 1984, p.165-166).
Todas essas experiências do teatro latino-americano apontam para uma produção
significativa de grupos e coletivos muito atentos e sensíveis aos contextos históricos de
seus países. Trata-se, portanto, o retrato de um teatro político que pretendeu colaborar
para ampliar a capacidade crítica de suas plateias e, assim, potencializar a participação
social no campo da política.
A FUNÇÃO SOCIAL DO TEATRO
Após a contextualização sobre o teatro político latino-americano, é essencial
tratarmos de um ponto significativo que envolveu e direcionou a atuação desses
coletivos teatrais: seus trabalhos priorizaram a função social do teatro, se
comprometendo, efetivamente, com a pauta política e social progressista.
Se refletirmos, de forma mais ampla e não apenas com o recorte no teatro; sobre a
vinculação arte e sociedade, percebemos que sempre houve uma aproximação, de fato,
em diferentes contextos e com fins diversos das duas áreas: as esquerdas a utilizavam no
processo de mobilização social e para alavancar as lutas sociais e, no caso das direitas, o
intuito era defender e manter o status quo das elites. Nesse sentido, sobre a produção
cultural e sua relação intrínseca com as questões sociais, Canclini (1982) nos diz que:
A cultura não apenas representa a sociedade; cumpre também, dentro
das necessidades de produção do sentido, a função de reelaborar as
estruturas sociais e imaginar outras novas. Além de representar as
relações de produção, contribui para a sua reprodução, transformação
e para a criação de outras relações. (CANCLINI, 1982, p.29-30).
Assim, falar sobre a função social do teatro é abordar uma série de fatores para além
da encenação em si. Diz respeito, também, a uma nova forma de relação da cena com o
espectador: a valorização do trabalho coletivo e horizontal dos grupos e companhias
teatrais, a uma vinculação mais estreita com os movimentos sociais e em situar o fazer
teatral a partir de outra perspectiva, uma perspectiva transformadora, pois como dizia
Boal: “não é o teatro que transforma a sociedade, é o homem quem a transforma e o
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teatro pode ser sim, uma forma de transformar o homem para que eles proceda às
mudanças necessárias” (BOAL, 2019, s.p).
Muitos questionamentos surgiram a partir da atuação deste teatro, que visava
fortalecer principalmente as lutas de classe, como diz a companheira de Augusto Boal,
Cecília Boal:
Quem faz teatro se vê confrontado com demasiadas condições e com a
necessidade de dar uma resposta às mesmas perguntas: Qual é a
relação do artista com o poder? Qual a função da arte? A arte e, mais
especificamente o teatro, tem, na verdade, alguma função, alguma
possibilidade de modificar a realidade, as relações de poder? Qual é a
contribuição que a arte pode trazer para uma sociedade? (BOAL, 2015
p.18).
Nesse sentido, a função social do teatro pode ressignificar a própria finalidade do
ato teatral: para além da fruição estética ou mero entretenimento, não excluindo, porém,
tal objetivo; o teatro torna-se ferramenta de integração palco-plateia a partir de uma
reflexão proposta pela encenação, que pretende recolocar o espectador não só como
cúmplice da cena, mas partícipe do acontecimento teatral. Canclini também foi um
estudioso que abordou em suas obras sobre a função social do teatro por vários
coletivos teatrais da América Latina:
Desde os primeiros anos da década de sessenta, houve, em vários
países da América Latina, tentativas para mudar a função social do
teatro. Às vezes eram experiências solitárias de profissionais que
abandonaram as salas fechadas e o arsenal teórico e técnico de sua
carreira, para recomeçar, a partir de um despojamento total, a
reconstituição de seu ofício. (CANCLINI, 1984, p.161).
Essa tentativa de sair da convencionalidade teatral para ganhar um espaço mais
democrático do teatro junto à sociedade foi uma característica de vários coletivos e
artistas da América Latina, especialmente no contexto das ditaduras militares na
América do Sul.
Eric Bentley, crítico de teatro nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970,
embora tivesse um perfil mais conservador nas suas análises críticas da produção teatral
deste período, reconheceu em sua crítica a relevância de alavancar a função social do
teatro, para quem ele efetivamente deveria se destinar:
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
A quem se dirige o Teatro Engajado? Não a todo mundo. Ele tem
inimigos; e os homens que admiram os inimigos, ou se sentem de
alguma maneira solidários com eles, só podem desligar-se ou ir
embora. Os inimigos não podem constituir um bom público. E os
aliados? Pode-se sustentar a tese de eles não precisam ser
catequizados. Mas a propaganda pode preencher as finalidades do
ritual, uma das quais é fortalecer as pessoas dentro das convicções que
possuem e prepará-las para novas lutas. Mas acredito que a plateia
ideal para o teatro engajado não é nenhum dos campos militantes, e
sim a massa humana que está no meio e que pode ter uma vaga
simpatia para com a causa apregoada no palco, mas que se encontra
numa atitude um tanto entorpecida e apática. Os integrantes dessa
massa podem concordar, mas não estão realmente engajados; e a
missão do teatro engajado não consiste em se pronunciar a favor do
engajamento, mas em levar as pessoas a se engajarem. Creio que a
maioria de todos nós pertence a esse tipo de público, e que o teatro
engajado pode contar, por conseguinte, com uma freguesia suficiente
ampla (BENTLEY, 1960, p.174-175).
Logo, o crítico alerta para o fato de que caberia aos coletivos e artistas do teatro
político ampliar a função social do teatro e falar não apenas para os seus pares, mas para
grande parcela da população alijada do processo de uma politização. Bentley foi crítico
ferrenho de diversos dramaturgos, mas reconheceu aqueles que efetivamente
contribuíram, no seu tempo, para o teatro engajado.
Dentre estes dramaturgos e encenadores, ele abordou amplamente sobre a
produção e a obra de Bertold Brecht. Antes de Brecht, Erwin Piscator, já tinha lançado
também “a semente” do que viria a ser o teatro político, comprometido com a sociedade
e suas principais questões.
As concepções cênicas de Piscator decorrem da ideia central do teatro
como instituição político-didática. Conscientemente, subordinou a esta
ideia à da arte: todos os recursos estéticos e técnicos deveriam ser
postos a serviço da função política do teatro. Visando a apresentar e
analisar didaticamente a situação do homem do nosso tempo, para
torná-lo capaz de transformá-la, supunha ser necessário mostrar no
palco a vasta trama de fatores condicionantes, derivando deles o
destino individual. (ROSENFELD, 2012, p.49).
Nesse sentido, Piscator foi um dos encenadores que mais levou a sério a
proposição do teatro político, aprofundado em seguida por Bertold Brecht, dentro da
perspectiva do seu teatro dialético, didático e poético.
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Assim, o destino da sociedade não era visto como imutável. Para tanto, Piscator
apontava para a necessidade de aproximar o teatro das classes operárias e camponesas,
arte esta que sempre esteve, não só do ponto de vista econômico, mas na luta de classes,
em um “patamar inalcançável” imposto pelo teatro burguês. Logo, era preciso devolver
às classes populares o teatro como ferramenta de mobilização social.
O ativismo cultural do período deve-se à formação de um novo
público, produtor e consumidor de arte, que exige a renovação do
fazer artístico. Quando se fala de arte na República de Weimar, a
atenção volta-se exclusivamente para as expressões da ‘alta cultura’, o
expressionismo e a nova objetividade, e tende a ignorar o movimento
cultural subterrâneo que se desenvolveu em torno do movimento
operário. (FREDERICO, 2016, p.113).
Desta forma, os profissionais do teatro alemão deste período rompem com as
expressões destinadas apenas à burguesia (como o drama burguês) e procuram, por
meio de novas formas, valorizar as expressões que pudessem traduzir os anseios
populares e, especialmente, as demandas da classe operária.
Nesse ponto, o dramaturgo e encenador alemão Bertold Brecht, tornou-se
referência do teatro épico em todo mundo. Ele, que chamava as suas peças de
“experimentos sociológicos”; foi declaradamente um marxista e viveu entre as duas
grandes guerras mundiais. Brecht conseguiu sistematizar uma teoria que tratava,
justamente, sobre a função social do teatro, aliando conteúdo e estética como
primordiais para se fazer avançar a transformação social e contribuir para o processo da
luta de classes:
O teatro que Brecht propõe é justamente aquele que preserve e
incentive a capacidade de reflexão crítica do público, para que este
seja capaz de participar do processo de transformação justamente com
as forças progressistas e democráticas populares e revolucionárias,
porque o destino do homem é o homem. (PEIXOTO, 1981, p. 48).
Nesse sentido, considerar o espectador como sujeito no processo de condução
das mudanças sociais que se faziam urgentes na sociedade, levou o encenador a buscar,
por meio do teatro dialético, não somente suscitar a emoção do público, mas a
capacidade de reflexão crítica, procurando, para além de uma perspectiva estética, uma
perspectiva sociológica no fazer teatral.
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A plateia deve começar a estranhar aquilo que o hábito lhe tornou
familiar. As coisas que nos parecem muito familiares, e por isso
naturais e imutáveis, devem ser distanciadas, tornadas estranhas. O
que há muito não muda, parece imutável. A peça deve, portanto,
caracterizar determinada situação na sua relatividade histórica para
demonstrar sua condição passageira e mutável (ROSENFELD, 2012,
p. 34-35).
Assim, como pontua Rosenfeld, a consciência de classe começa o seu processo a
partir do momento em que os processos sociais deixam de ser vistos como naturais e
enraizados, mas que tem relação com o contexto sócio-histórico e, portanto, são capazes
de mudanças, uma vez que são construídos historicamente.
O dramaturgo alemão preconizava que o teatro épico serve ao processo
democrático, enquanto o teatro burguês, que prega a identificação e a empatia a
determinados grupos da elite, serve às ideologias autoritárias, a fim de manter
estagnadas as relações sociais e o status quo das elites.
Logo, cabia ao teatro daquele período, que tinha a função social como relevante,
não apenas denunciar o fascismo e as relações assimétricas de poder advindas do
capitalismo; mas contribuir para o processo de mobilização coletiva que permitisse
vislumbrar as mudanças sociais necessárias, fortalecendo a função sociopolítica do
teatro.
Estamos nos ocupando do teatro precisamente porque queremos
encontrar um meio a mais para levar adiante a nossa causa. Isso
significa subordinar o teatro à política? A resposta é clara: a urgência
não nos deve levar a destruir esse meio que pretendemos utilizar. Não
se deve correr quando se tem pressa. A arte, enquanto arte, assumindo
e aprofundando seus instrumentos expressivos, estruturada segundo as
exigências do mundo de hoje, pode ser uma arma. Leve como um
pequeno bisturi manejado com precisão e delicadeza pelos gestos de
um cirurgião, mas a arma a serviço da libertação. (PEIXOTO, 1981,
p.105-106).
Como delineia Fernando Peixoto na fala acima, não se trata de sobrepor a
política ao teatro, mas de buscar a interlocução entre essas duas importantes áreas,
entendendo suas especificidades e seus fins. Importante demarcar, portanto, que todo o
teatro brechtiano se estruturou em analisar e questionar o modo de produção capitalista
como fixo e inalterável. Para Brecht, caberia ao novo teatro desencadear um processo
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junto ao público de compreender as relações sociais a partir de uma perspectiva
histórica, portanto, não imutável, e, a partir daí, procurar avançar nos meios possíveis de
se efetivar a transformação social. Para reforçar esse argumento, Rosenfeld nos diz que:
Sempre quando o teatro visa integrar o homem em amplos contextos
universais ou sociais, impõe-se recorrer a qualquer tipo de recurso
narrativo a fim de ampliar o mundo para além dos limites da moral
individual e da psicologia racional, ou seja, para além dos limites do
diálogo interpessoal. [...] Mas não é somente para ampliar o mundo
cênico para além do diálogo que Brecht recorre ao teatro épico. Há
uma outra razão, igualmente importante. O teatro deve ser épico,
também, para corresponder ao intuito didático de Brecht, para
esclarecer o público sobre a sociedade e a necessidade de transformála. O fim didático exige -segundo Brecht - que se elimine a ilusão, o
impacto mágico do teatro tradicional, que, devido à sua estrutura
peculiar, leva o público à identificação intensa com o mundo cênico e
o convence da necessidade inexorável dos destinos apresentados.
(ROSENFELD, 2012, p.30-31).
Assim, era necessário romper a ilusão do teatro tradicional, que reforçava o
lugar cômodo e passivo da plateia. Não à toa, o teatro dialético desenvolvido por Brecht
segue como uma das grandes referências dos grupos e coletivos teatrais progressistas no
mundo todo. Sua forma de entender o teatro propulsionou um teatro dinâmico, vivo,
divertido, atrelado às questões sociais de cada realidade, promovendo, de forma efetiva,
a função social do teatro.
Além disso, o teatro, muitas vezes, se vincula diretamente à militância de
movimentos e coletivos sociais, de forma a fortalecer a luta destes atores. A exemplo,
podemos citar as experiências exitosas do teatro junto ao Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). Diversas ocupações do MST têm promovido, por meio de
suas Brigadas de Teatro, um trabalho profícuo e louvável:
Na rotina de luta desses movimentos, a linguagem teatral cumpre
diversas funções para além, inclusive, do trabalho específico
desenvolvido pelos coletivos teatrais, a saber: teatro de ação direta em
ações de massa, teatro do oprimido em trabalho de educação popular
com comunidades, pesquisa com as peças de Bertold Brecht em
espaços de formação de educadores e militantes, utilização de técnicas
teatrais por coordenações de cursos de formação política. Ainda
assim, a linguagem teatral voltou a ser explorada em suas múltiplas
potencialidades a partir das demandas do MST. Como arte, como
tática de comunicação, como método de formação, como linguagem
vigorosa no processo de alfabetização pela dinâmica dos múltiplos
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letramentos, como arma de combate em ações diretas massivas ou de
brigadas compactas por meio de diversas formas de teatro de agitprop,
como forma estética que permite um olhar distanciado e
autoavaliativo. (BÔAS, PEREIRA, 2015, p.459-50).
Mencionar, portanto, a atuação das Brigadas de Teatro do MST, implica em
apresentar um movimento que apreendeu, de forma ampla, a função social do teatro
para outras dimensões das suas lutas, sem deixar que a arte teatral fosse relegada em
segundo plano em sua militância.
Cabe ressaltar que a função social do teatro tem sido preconizada, ao longo do
tempo, pelos mais diferentes artistas e coletivos teatrais. Mais do que do ponto de vista
teórico, percebe-se que ela se efetiva na práxis de vários coletivos.
Entretanto, alguns grupos, como a paulistana Companhia do Latão, dirigida pelo
dramaturgo, diretor e professor Sérgio de Carvalho e criada em 1996 já é notabilizada
por seu repertório pautado no teatro dialético brechtiano e nas pautas sociais brasileiras.
O grupo conseguiu a façanha de alinhar a produção dos espetáculos à produção teórica e
reflexiva significativa acerca do teatro brasileiro e sua função social, com destaque para
a produção da Revista Vintém, em 1997 que tem como proposta analisar o teatro a partir
da sua prática. A Companhia do Latão também possui trabalhos colaborativos com o
MST desde 2006.
A função social do teatro, apresenta, desta forma, colaborações significativas junto
à participação social e mobilização de classes. Desta forma, o teatro pode (e deve)
colaborar para ser um campo de luta e de reflexão sobre política e sociedade.
Sendo o teatro uma arte essencialmente coletiva, embora não possamos afirmar que
ela cumpre, de forma central, com o papel de democratização da arte e de torná-la
acessível às diferentes camadas da população; podemos dizer que é uma das
manifestações artísticas que mais têm se aproximado desse objetivo:
O teatro é uma ação coletiva. Outras artes, por exemplo, as artes
plásticas favorecem o individualismo criador, o desenvolvimento
subjetivista da sensibilidade e apresentam dificuldades intrínsecas ao
tentar-se socializá-las. No teatro, a ação prevalece sobre a relação
sensível com os objetos e seu caráter grupal facilita a superação do
narcisismo dos artistas e a participação coletiva do público. Não é
casual, por isso, que as experiências mais radicais, dedicadas a
transferir para o povo os meios de produção artística se tenham
cumprido em seu âmbito. [...] Os grupos mais avançados são os que
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descobriram que a formação teatral inclui, além da aprendizagem
técnica, a análise das condições socioeconômicas e comunicacionais
do meio em que se procura operar, suas necessidades básicas e os
conflitos que impedem de satisfazê-las. (CANCLINI, 1984, p.155156).
Por fim, é importante dizer sobre a efemeridade também do teatro político e de sua
função social; ainda que o seu legado seja uma importante fonte de consulta, até mesmo
histórica. Isso porque esse tipo de teatro está afinado, de forma intrínseca, a um
determinado contexto político-social no qual a obra foi criada. Como nos aporta Julian
Boal (2020), filho de Augusto Boal e que deu continuidade ao trabalho do Teatro do
Oprimido:
O que foi político ontem não o é necessariamente hoje. [...]. Este
princípio que estabelece que somente pode ser considerado político o
que se relaciona de maneira crítica com seu tempo, é muitas vezes
esquecido no campo da arte, até mesmo naquela que, justamente, se
denomina como política. Muitas vezes nos esquecemos que o que faz
o caráter político da arte não é ela abordar certos temas ou utilizar
certos procedimentos, mas é a relação, formal, temática, de modos de
produção, que ela tece com uma certa conjuntura política, social,
econômica e até mesmo com uma certa conjuntura que podemos
chamar de sensível, e que essa conjuntura se dá dentro da história, que
ela está sempre se modificando. O desconhecimento desse princípio
faz com que muitas vezes formas e procedimentos de uma época
sejam usados em outras provocando efeitos contrários a aqueles que se
queria. [...] Toda arte que se quer política é necessariamente ligada à
conjuntura da qual sabe que surge e sobre a qual quer intervir. Ela é
uma intervenção dentro de um momento histórico preciso. Por isto,
ela muitas vezes não se focalizou tanto em criar obras ‘eternas’ a
serem colocadas dentro do Panteão da Literatura Mundial, mas em
criar processos em diálogo com seu público, tomado não como uma
abstração, mas como constituído por pessoas reais, envolvidas em
processos concretos, a quem se devia se opor ou aliar. ‘Teatro para ser
queimado’ disse Dario Fo de suas obras do período mais militante.
(BOAL, 2020, p.1-4).
Desta forma, a partir do que foi exposto sobre a produção latino-americana,
especialmente localizada na América do Sul e sobre os pressupostos da função social do
teatro; é possível traçar considerações acerca dos principais pontos da produção teatral
que pretende contribuir para o processo de luta de classes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Por todas as questões já explicitadas referente ao teatro latino-americano;
percebe-se o quão significativo é o legado dos coletivos e grupos teatrais da América do
Sul, especialmente inserido nos processos de enfrentamento às ditaduras. Trata-se de
importantes agentes questionadores das medidas arbitrárias dos governos de exceção e
que tinham como premissa a formação de uma consciência social e de uma postura
engajada.
Nem mesmo a censura e todo o mecanismo repressivo exercido junto aos artistas
e outros segmentos sociais conseguiram “frear” a atuação dos grupos. Embora seja
evidente as consequências nefastas que a censura exerceu na criação e produção teatral,
a exemplo dos vetos em diversas obras e mesmo das proibições dos espetáculos no dia
da estreia, jogando, “por terra” o trabalho de meses de toda uma equipe, a audácia e
coragem das pessoas de teatro promoveram um teatro vivo, corajoso, atento ao seu
tempo e importante para se pensar de forma crítica as conjunturas latino-americanas de
então.
Outro ponto que merece destaque é o fato de que a arte também esteja em função
dos movimentos sociais, dos povos marginalizados, da parcela alijada de uma efetiva
participação social. Diferentemente de uma elite que sempre teve como papel tornar a
arte acessível a uma pequena parcela da sociedade; é função da arte engajada
desconstruir esse papel.
Nesse sentido, talvez seja esse um dos grandes diferenciais do teatro político: ele
não irá constar nas obras do legado universal; uma vez que diz sobre o seu tempo, sobre
determinado período e contexto histórico e de como a sociedade se organizou (ou não) a
fim de se efetivar as mudanças sociais necessárias. Teatro político que se constrói e se
consolida não apenas com os artistas, mas, principalmente, se dá por meio do diálogo,
troca e formação permanente com diferentes atores dos movimentos sociais e que
respalda a importância do fazer teatral, arte coletiva destinada para além da encenação,
que se propõe a estar e atuar no mundo.
Por fim, podemos afirmar que o teatro político é aquele que dialoga com o seu
tempo e com os seus, que articula uma relação horizontal com os movimentos sociais e
que, finalmente, tenta romper com a lógica do sistema capitalista e burguês, que
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
considera necessário questionar, constantemente, as relações sociais e a conjuntura
política como fixas, permanentes, imutáveis.
Embora os próprios agentes teatrais tenham a consciência de que o teatro, de
forma isolada, não pode transformar o contexto social; eles compreendem como o teatro
pode contribuir, de forma efetiva, no processo de mudanças, ao impulsionar a
capacidade de reflexão crítica do público.
Não podemos deixar de problematizar que, desde a produção localizada nas
ditaduras militares sul-americanas; é ainda um desafio diário a mobilização de grande
parcela da sociedade para a formação crítica pela via teatral; uma vez que, as questões
diárias de sobrevivência da maioria da população, não contribui para uma formação
humana que considere o papel de protagonista das artes desde a infância. Assim, os
coletivos teatrais ainda lidam com questões que se arrastam por décadas, tais como o
desafio de ampliar e democratizar suas produções para além das plateias já formadas, a
fim de se aproximar daqueles potenciais espectadores que, muitas vezes. nunca foram
assistir uma peça teatral.
Trazendo todo esse processo de luta e mobilização dos quais os artistas fizeram
parte nas ditaduras para os contextos atuais da América Latina, com a derrocada de
diferentes governos progressistas e o retorno ao poder de políticos ultraconservadores e
nos quais vemos retrocessos sociais sem precedentes, governos que voltam, inclusive, a
atacar os artistas; como é o caso do Governo do Brasil, com o atual presidente Jair
Bolsonaro; é premente retomar e reforçar o papel do teatro enquanto agente mobilizador
dos coletivos que seja capaz de refletir sobre o processo das mudanças sociais tão caras,
necessárias e urgentes em nosso território.
Para tanto, precisamos de um teatro que fale do nosso tempo, a partir do nosso
lugar de enunciação e com o foco nos nossos territórios.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
DOENÇA, CONTROLE DOS CORPOS E DEMOCRACIA: UMA REFLEXÃO A
PARTIR DA OBRA DE CAIO FERNANDO ABREU
Milena Mulatti Magri1
DOENÇA E CONTROLE DOS CORPOS
O escritor brasileiro Caio Fernando Abreu elabora em sua obra diferentes
imagens do corpo e da doença por meio das quais podemos depreender uma mudança
significativa no regime do controle dos corpos pelo Estado, na passagem do regime
militar para a democracia. Até fins dos anos 1970, verificamos a recorrência da imagem
do corpo e da doença, elaborados sobretudo por meio da experiência da loucura ou da
imagem da peste. A loucura, a princípio, era vislumbrada como uma forma de
contestação do controle dos corpos exercido pelo regime militar, que se valia sobretudo
do uso da força, por meio de prisões forçadas, torturas e desaparecimentos. A imagem
da peste, por sua vez, estava circunscrita a uma visão de certo modo complementar e
indissociável àquela proposta pela loucura, pois figurava também como possibilidade de
ameaça à ordem social estabelecida.
Caio Fernando Abreu iniciou sua carreira de escritor ainda jovem, no final da
década de 1960, já nos primeiros anos do regime militar que se instalara no Brasil em
1964 – primeiro país latino-americano em que foi instalada uma ditadura militar na
segunda metade do século XX, tal qual as que seriam encampadas em países vizinhos,
como Bolívia, Chile, Argentina e Uruguai. Essa primeira fase de sua produção
procurava estabelecer um diálogo com vertentes que despontavam na literatura hispanoamericana, sobretudo por meio da incorporação de traços do realismo mágico ou
fantástico. Seu primeiro livro de contos, O Inventário do Irremediável, publicado em
1969, por exemplo, apresenta o conto “O Ovo”, cujo protagonista enxerga uma parede
branca no horizonte, que a cada dia parece se aproximar, como se fosse o interior de
“Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (FFLCH- USP). Concluiu pesquisa de PósDoutorado na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (IBILCE-UNESP) e um Estágio
Pós-Doutoral na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). E-mail:
milenamagri@yahoo.com.br
1
329
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uma casca de ovo, reduzindo assim seu campo de visão e mobilidade. Após revelar a
outros personagens a sua visão, o protagonista é considerado louco e internado à força.
Há uma tensão permanente, no conto, reforçada pela dúvida de não sabermos se os
demais personagens também seriam capazes de enxergar a parede branca. A imagem
claustrofóbica da parede pode ser lida como uma metáfora do contexto de opressão do
regime militar, no qual quem ousasse contestar a limitação a que todos estavam sujeitos
sofreria as consequências da perseguição, exclusão e violência institucionais –
representada, no conto, por uma política sanitária.
Já na década de 1970, podemos encontrar imagens de peste em outras obras do
autor, como no conto “O Afogado”, da coletânea O Ovo Apunhalado, publicada em
1975. No texto, um médico de uma pequena vila resgata um rapaz desconhecido,
aparentemente um náufrago, que misteriosamente aparece na praia, e o leva para casa
ainda desacordado. Com o passar dos dias de recuperação, a população da cidade se
incomoda com a presença do forasteiro a quem imputa a responsabilidade pelo
surgimento de inúmeros males que acometem o vilarejo, incluindo as doenças. Por
outro lado, a presença do rapaz exerce um fascínio sobre o médico que encontra, nele, a
possibilidade de ruptura com a ordem social estabelecida pelos moradores e endossada
pelos poderes institucionais, representados pelo padre e pela estátua do general,
patriarca da cidade. No desfecho, os moradores lincham o rapaz na presença do médico.
A partir da segunda metade dos anos 1980, com a passagem da ditadura para a
democracia, há uma mudança no tratamento da imagem do corpo e da doença na obra
do escritor brasileiro que coincide, ao menos temporalmente, com uma alteração no
regime de controle dos corpos operado pelo Estado, que passa a ser orientado não mais
pela violência física, mas pela acentuação do controle dos processos vitais, em
consonância com aquilo que Michel Foucault identifica, em sua História da
Sexualidade I, como biopolítica. Neste estudo, o filósofo francês procura retraçar a
história da sexualidade no Ocidente, que se constituiu, na modernidade, como um
conjunto de normas que, amparadas em discursos médicos e jurídicos, regulamentam o
comportamento dos corpos e determinam o que é considerado normal, saudável e
socialmente aceito. O sexo se torna privilégio do casal heterossexual, em situação de
matrimônio e para fins exclusivos de procriação. Tudo o que não atende a esse padrão é
330
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considerado doença ou desvio e deve ser combatido; e, no limite, aqueles que não se
enquadram devem ser excluídos do convívio dito saudável.
Para sua definição de biopolítica, o filósofo remonta à Idade Média, quando o
governo, centralizado na figura do rei, detinha o poder sobre a vida de seus súditos,
determinando, inclusive, quem tinha o direito de permanecer vivo e quem deveria
morrer, seja servindo aos exércitos, seja por meio da pena de morte. Na passagem para a
modernidade, contudo, este poder sobre a vida se torna mais difuso e menos
centralizador. Ele continua existindo, mas por outros meios que elegem, sobretudo, o
corpo como objeto último que deve ser controlado, mensurado e vigiado. Deste modo,
estabelecem-se saberes sobre o corpo que passam desde o discurso médico e jurídico,
até a instituição de comportamentos considerados socialmente válidos. Criam-se
inúmeros meios de controle sobre a vida, como o estudo de estatísticas, expectativa de
vida, natalidade, saneamento etc., que têm como resultado um crescimento populacional
nunca experimentado. Como consequência, no entanto, é preciso estabelecer normas e
condutas socialmente válidas para poder gerenciar estas “vidas a mais” que passaram a
integrar o corpo social. Dentro deste quadro, o controle sobre a sexualidade se revela
um mecanismo chave, uma vez que ele permite, ao mesmo tempo, estabelecer um
controle sobre a natalidade e sobre o comportamento.
É justamente no contexto histórico da reabertura política – que coincide com o
aumento dos casos de contaminação por HIV e Aids, no Brasil e em toda a América
Latina –, que verificamos, na obra de Caio Fernando Abreu, uma mudança na forma de
representação do corpo e da doença. A partir de então, sobressaem em sua obra os
sofrimentos provenientes da epidemia de Aids, que afeta principalmente, num primeiro
momento, os homossexuais. A Aids é tema recorrente na obra de Caio Fernando Abreu
desde o início dos anos 1980, quando surgiram as primeiras notícias da doença e dos
grupos minoritários especialmente atingidos. Por sentir-se de certa forma ameaçado e
por conviver com amigos, artistas e pessoas que admirava e que haviam sido infectadas,
o escritor procura dar destaque para este tema em obras como a novela “Pela noite”, de
1983, e a coletânea de contos Os Dragões não Conhecem o Paraíso, de 1987, assim
como em seu último romance, Onde andará Dulce Veiga?, de 1990. Contudo, é
sobretudo depois de ser diagnosticado como soropositivo, em 1994, que a experiência
da doença passa a figurar em sua obra de modo ainda mais intenso.
331
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Caio Fernando Abreu torna público seu estado de saúde por meio da publicação
de suas crônicas, no jornal O Estado de São Paulo, posteriormente reunidas na
publicação póstuma Pequenas Epifanias (2006), passando a relatar os dramas físicos e
também psicológicos de saber-se contaminado com uma doença potencialmente mortal
– como de fato era a Aids até meados da década de 1990 – e sobre a qual recaíam
preconceitos e estigmas. Apesar do pouco tempo de vida que de fato teve, após o
diagnóstico da doença – Caio Fernando Abreu veio a falecer em menos de dois anos, em
1996 –, sua obra dedica especial atenção à questão, que, para além de suas crônicas,
surge também na sua última coletânea de contos, Ovelhas negras, de 1995, e em
algumas de suas peças de teatro, reunidas em seu Teatro Completo (2009), revistas e
reescritas nesta mesma fase.
A AIDS NO MEIO ARTÍSTICO E INTELECTUAL
Ao saber-se soropositivo, Caio Fernando Abreu, ainda hospitalizado, decide
tornar público seu diagnóstico. O escritor publica uma série de três crônicas conhecida
como suas “Cartas para além dos muros”, por meio da qual anuncia e compartilha com
seus leitores seu estado de saúde e, especialmente, seu estado emocional. Na “Segunda
carta para além dos muros”, Caio Fernando Abreu, ainda sem mencionar claramente o
diagnóstico da doença, revela que estava hospitalizado e vivenciava um momento
difícil, no qual contava com a ajuda de “anjos”. Estes dividiam-se em três tipos: os
profissionais de saúde e toda a equipe que cuidava de seu corpo e de sua manutenção
naquele momento delicado; os amigos que vinham visitá-lo; e os mais variados artistas,
que lhe chegavam tanto por meio do rádio e da televisão quanto por meio da memória.
Deste último grupo, em especial, Abreu recupera uma lista com inúmeras
personalidades vítimas de Aids:
Reconheço um por um. Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som
de uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nuriev,
identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex
Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como
quero abraçar Vicente Pereira, e outro Santo Daime com Strazzer e
mais uma viagem ao Rio com Nélson Pujol Yamamoto. Wagner Serra
pedala bicicleta ao lado de Cyrill Collard, enquanto Wilson Barros
esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nélson Perlongher. Ao
som de Lóri Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta
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para o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passa a mão
devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram.
Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria:
“Quem tem um sonho não dança, meu amor”. (ABREU, 2006, p.
110).
Ainda sem mencionar de modo explícito a Aids, a listagem, que se divide entre epitáfio
e homenagem, dá a dimensão do impacto devastador que a doença teve no campo das
artes. São rememorados músicos, dançarinos, atores, diretores de cinema e teatro,
artistas plásticos, escritores, todos das mais variadas nacionalidades – o que permite
vislumbrar a capacidade de destruição da doença em termos globais. Algumas destas
personalidades atuaram no campo da indústria cultural e, desse modo, têm ampla
circulação, como é o caso de Freddy Mercury, uma personalidade internacionalmente
conhecida, ou Cazuza, exemplo de uma personalidade brasileira imediatamente
reconhecida pelo público leitor. Outros artistas citados são menos conhecidos do
público em geral, mas ainda assim facilmente identificados por terem seus dramas
pessoais expostos publicamente a partir do adoecimento por HIV e Aids, como Derek
Jarman, Nuriev ou Hervé Guibert. Dentre os nomes rememorados constam duas
referências a artistas e intelectuais latino-americanos: Reinaldo Arenas e Néstor
Perlongher, este último, ao que tudo indica, mencionado equivocadamente como
Nélson2.
Néstor Perlongher foi um antropólogo e poeta argentino erradicado no Brasil no
início da década de 1980, que deixou seu país para fugir da ditadura militar em vigor.
Antes disso, contudo, foi um dos precursores na luta pelos direitos dos homossexuais,
na Argentina. Perlongher faleceu, no Brasil, em 1992, em decorrência da Aids. Dentre
muitas de suas publicações que vão desde sua obra poética até seus estudos como
antropólogo, Perlongher também se dedicou a pensar o impacto social e sanitário do
HIV e da Aids. Ele publicou, na Argentina, El fantasma del SIDA (1988) e, no Brasil, O
que é AIDS (1987).
Em seu estudo “A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização
das sexualidades dissidentes”, Larissa Pelúcio (2009) retoma a noção de “dispositivo da
2
Caio Fernando Abreu redigiu suas três crônicas dentro do hospital, sem condições de consultar nomes
ou fatos, por isso cita de memória. O equívoco cometido pelo escritor não foi revisado pelo jornal, que
assim o publicou, nem mesmo pelos editores do volume de crônicas, que mantiveram a grafia da
publicação original sem adicionar nenhuma nota explicativa.
333
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Aids”, mencionado nos textos do poeta argentino sobre a doença, conceito este baseado
na noção foucaultiana de dispositivo. Deste modo, o discurso elaborado em torno da
Aids operava como um meio de controlar o comportamento e gerar exclusões e
perseguições a partir de noção de grupo de risco. Baseada em Perlongher, Pelúcio
retoma o fato de que os bancos de sangue eram fontes de contaminação tão arriscadas
quanto a relação homossexual sem que, contudo, fossem imputados aos primeiros os
mesmos estigmas que recaíram sobre os segundos – que eram, na verdade, vítimas da
doença e não responsáveis por ela:
os cuidados sanitários com o sangue usado em hospitais e centros
hematológicos em países como o Brasil, por exemplo, não foram
levados a sério. Mas, no imaginário social, o temor do sangue
contaminado justificou o banimento de pessoas “suspeitas” de suas
comunidades, assim como o isolamento compulsório, como se deu em
Cuba. (PELÚCIO, 2009, p. 133).
A segunda referência latino-americana presente na crônica de Caio Fernando
Abreu é Reinaldo Arenas, escritor cubano que foi perseguido, censurado e preso por ser
homossexual, durante a ditadura castrista. Arenas consegue se refugiar nos EUA, onde
contrai HIV e vive seus últimos anos, até dar fim à sua própria vida, em 1990, uma vez
que a morte, com o agravamento da doença, era inevitável. Antes, contudo, Arenas
organiza os originais de sua autobiografia, Antes que anoiteça (2009), publicada
postumamente por seus amigos, na qual relata todas as adversidades vividas em Cuba e,
por fim, como escritor exilado.
A rememoração e homenagem de Caio Fernando Abreu a Reinaldo Arenas vai
além da menção nesta crônica, na qual o escritor cubano aparece elencado junto a
inúmeras personalidades artísticas vítimas de Aids. A Arenas, Caio dedica uma crônica
em especial por ocasião da publicação da primeira edição de Antes que anoiteça, no
Brasil, em novembro de 1994.
Mastiguei suas últimas palavras como se fossem cacos de vidro.
Jamais sofri tanto com um livro [...]. Censurado, perseguido e preso
em Cuba por homossexualismo (sic), Arenas fugiu para Miami,
primeira estação do seu calvário de solidão e exílio, dedicando-se a
desmascarar figurões tipo García Márquez, Severo Sarduy, Eduardo
Galeano, Julio Cortázar e outros asseclas de Fidel Castro, que odiava.
334
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Livra a cara de poucos – Lezama Lima e Virgilio Piñera, malditos (e
grandes) como ele. (ABREU, 2006, p. 128-129).
A autobiografia de Arenas apresenta uma estrutura circular, como se o autor
abrisse e fechasse sua obra sob o signo da morte. Suas primeiras palavras na
“Introdução”, rebatizada em seguida como “O fim”, remetem ao momento presente em
que o escritor anuncia sua tarefa de contar sua própria vida, tarefa que realiza sob o
signo inexorável da morte provocada pela doença. Em suas palavras: “não posso afirmar
que quisesse morrer, mas considero que quando não existe outra opção a não ser o
sofrimento e a dor sem esperança, a morte é mil vezes melhor” (ARENAS, 2009, p. 7).
A primeira informação que o escritor apresenta ao leitor sobre sua vida é, justamente, o
diagnóstico recente de HIV/Aids. A referência à doença, contudo, é retirada de cena,
ressurgindo somente no capítulo final, prestes ao fechamento de sua história. Todo o
miolo do livro – digamos assim – é preenchido com sua vida em Cuba, desde a infância
pobre e livre no campo, passando pela Revolução Cubana, pela descoberta da
homossexualidade e consequente perseguição, prisão e exílio, tendo sido, neste meio
tempo, insistentemente censurado em seu próprio país. Para Arenas, tanto o gozo de sua
sexualidade quanto sua escrita eram o que conferiam sentido à sua vida, tendo sido
ambos motivos de perseguição por meio do governo ditatorial de Cuba:
A própria beleza é perigosa em si, conflituosa para toda ditadura,
porque implica um âmbito que vai além dos limites em que essa
ditadura submete os seres humanos; é um território que escapa ao
controle da polícia política e onde, portanto, não pode reinar. Por isso
mesmo, irrita todos os ditadores, que querem destruí-la de qualquer
maneira. A beleza sob um sistema ditatorial é sempre dissidente,
porque toda ditadura é por si mesma antiestética, grotesca; praticá-la
representa, para o ditador e seus agentes, uma atitude escapista ou
reacionária. (ARENAS, 2009, p. 117).
Assim como Caio Fernando Abreu, que inicia sua carreira de escritor sob uma
ditadura militar, no Brasil, também Néstor Perlongher e Reinaldo Arenas
experimentam, em diferentes medidas, as consequências de viver sob regimes militares
em seus respectivos países. O fato de Arenas abrir e fechar sua autobiografia com a
referência à Aids – e, portanto, à morte –, mas preencher toda a sua história com sua
luta para sobreviver sob um regime ditatorial, é elucidativo de como estas duas
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dimensões da experiência – a doença terminal e a privação da liberdade – são
experiências em alguma medida equiparáveis, a partir da perspectiva do escritor cubano.
Por fim, uma outra referência artística latino-americana vinculada à Aids,
presente na obra de Caio Fernando Abreu, se dá um seu último livro de contos, Ovelhas
negras. Esta última coletânea do escritor é uma recolha de textos que escreveu ao longo
de sua carreira e que por diferentes razões ainda não haviam sido publicados, somados a
textos recém escritos. Trata-se, portanto, de um livro escrito e organizado sob a
perspectiva da morte iminente, como uma espécie de fechamento de sua própria obra
literária. O penúltimo conto do livro, intitulado “Metâmeros”, apresenta dois breves
fragmentos que aludem ao impacto da doença e à perspectiva da morte. Recorto, a
seguir, um trecho do segundo fragmento, que o autor nomeia como “Sobre o vulcão”:
Naquele tempo, minha única ocupação diária era tentar não morrer.
[...] numa espécie de ensaio geral da treva definitiva deflagrada pela
hospitalização de Daniel, pouco mais de quarenta quilos e nódulos
púrpuras espalhados pelo novo corpo quase de criança onde, do
antigo, restavam apenas os enormes olhos verdes, e também pelo
suicídio de Julia, pulsos cortados e a cabeça enfiada no forno do fogão
a gás, vestida de bailarina com tutu de gaze azul e sapatilhas, depois
de ter grafitado em spray rosa-choque no lado de fora da porta da
cozinha alguma coisa em espanhol, alguma coisa amarga, alguma
coisa assim: no se puede vivir sin amor. (ABREU, 2002, p. 222-223).
No excerto, o narrador, abalado pela ideia da própria morte, rememora a morte
de duas pessoas próximas, Daniel e Julia. Daniel, segundo a descrição apresentada no
fragmento, enfrentou até o fim as consequências do adoecimento; Julia, por sua vez, se
suicida por não suportar a ideia de uma vida de privação e solidão, sobretudo no campo
afetivo. Os diferentes desfechos de Daniel e Julia remetem aos destinos de Perlongher e
Arenas – seja por meio da morte em decorrência do agravamento do quadro de Aids,
seja por meio do suicídio.
Nos chama a atenção, no fragmento acima, a menção a um verso em espanhol:
“no se puede vivir sin amor”. Este é o verso de uma canção, um pop rock de uma banda
chilena que surgiu no final dos anos 1980, chamada Síndrome. O grupo tinha como
atrativo o fato de não apresentar os rostos dos membros da banda, sempre escondidos
por máscaras, nem suas identidades. Jaime Ayala, o líder do conjunto, anos mais tarde
revelou que o sigilo sobre os membros se devia ao fato de que ele, um publicitário com
336
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carreira recém iniciada, não desejava arriscar seu trabalho com uma espécie de aventura
no campo da indústria cultural. Indagado sobre o motivo da escolha do nome da banda,
ele responde: “El sida estaba todos los días en los diarios y en la televisión. Ésa era
publicidad gratis, además era polémico, sugestivo”3.
Sua resposta é um tanto chocante ao revelar, aparentemente sem nenhum pudor,
o oportunismo de quem se vale de uma doença grave e mortal – como era a Aids nos
anos 1980 –, sem considerar o sofrimento das vítimas, a fim de transformá-la em mera
estratégia publicitária de um produto da indústria cultural. O fato é que Caio Fernando
Abreu cita seus versos sem nem mesmo apresentar a referência à banda, gesto raro na
obra do escritor brasileiro, sempre repleta de nomes e referências não só da alta cultura
quanto da própria indústria cultural. Não podemos afirmar se Caio, àquela altura, tinha
conhecimento da história da banda chilena; no entanto, parece que, ao omitir o nome do
grupo de rock, ele realiza uma espécie de condenação à postura do grupo que, se por um
lado dava visibilidade à Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, por outro, não
apresentava nenhum discurso reflexivo ou crítico sobre o impacto social da Aids. Esta
ambivalência na postura pública do grupo – à época – já poderia ser interpretada como
oportunismo e falta de ética pelo escritor.
Ainda assim, Caio Fernando Abreu se apropria do verso do grupo chileno, sem
lhes atribuir nenhuma referência, para dar vazão a um dos sentimentos que mais lhe
afligiam diante da doença: a falta de amor. O diagnóstico de HIV e Aids implicava não
só o risco de morte, mas também a dificuldade de estabelecimento de relações sexuais e,
portanto, afetivas e íntimas. “No se puede vivir sin amor” é um verso que expressa,
portanto, um dos maiores dilemas enfrentados pelo escritor brasileiro em seus últimos
momentos de vida. Este tema é desenvolvido, justamente, no conto “Depois de agosto”,
que encerra a coletânea Ovelhas negras, em seguida deste fragmento de “Metâmeros”.
No último conto do livro, o protagonista, uma espécie de alter-ego do escritor, também
soropositivo, vivencia uma relação afetiva e íntima com um outro rapaz, também
soropositivo, quando já imaginava que nunca mais lhe seria permitido este tipo de
prazer. Para além do jogo de sedução, o protagonista também experimenta uma
possibilidade de felicidade ao se reconhecer na experiência de um outro, uma vez que,
As informações sobre Jaime Ayala e a banda Síndrome estão disponíveis no site Música Popular – la
enciclopedia
de
la
música
chilena,
disponível
no
endereço
https://www.musicapopular.cl/artista/sindrome/>consultado em 03 mar 2021.
3
337
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desde quando se soube contaminado, ele passou a ver a si mesmo como uma exceção,
uma aberração. O encontro amoroso é, portanto, uma possibilidade de identificação e de
felicidade.
AIDS E AMÉRICA LATINA NO PRESENTE
Passados vinte anos desde a elaboração destas questões na obra do autor,
permanece a necessidade de se pensar de que maneira o regime de controle dos corpos
continua atual, corroborando processos de exclusão de minorias. E, sobretudo, diante de
um processo político conturbado como o que se vive hoje no Brasil e em outros países
da América Latina, com fortes indícios de riscos à democracia – uma vez que incorpora
cada vez mais valores antidemocráticos em instituições que deveriam resguardá-la –,
importa pensar de que maneira este mesmo regime de controle dos corpos participa
deste processo. Apesar dos avanços em saúde, com o controle e tratamento do HIV, e da
consolidação de processos democráticos, após a promulgação da Constituição Brasileira
em 1988, o que incluía o amplo direito à saúde, deparamo-nos hoje com um quadro de
aumento dos casos de HIV, principalmente entre as populações mais jovens e minorias
(homossexuais, mulheres e negros), e com a violação cotidiana de direitos fundamentais
que atinge especialmente as populações periféricas.
Uma pesquisa rápida sobre os dados da epidemia de HIV e Aids, hoje4, apontam
para dados preocupantes. Desde meados da década de 1990 que a Aids já não é mais
uma sentença de morte. Com a descoberta do coquetel – uma combinação de
medicamentos retrovirais capazes de controlar o avanço do vírus e preservar o sistema
imunológico do soropositivo e, deste modo, reduzir as chances de manifestação da
síndrome – e a consequente distribuição gratuita da medicação pelo SUS, no Brasil,
medida que foi tomada como exemplo pela comunidade médica internacional, a
sobrevida do paciente soropositivo passou a ser uma realidade. Hoje, contudo, há duas
gerações diferentes de pacientes soropositivos: aqueles que sobreviveram à epidemia
4
A primeira versão deste trabalho foi apresentada na VI Jornadas Internacionales de Problemas
Latinoamericanos, que ocorreu em novembro de 2019, na Universidad de Valparaíso, Chile. Apesar de
alguma distância temporal entre a versão inicial do texto e o momento da publicação, os dados
verificados, à época, e apresentados a seguir não se alteraram substancialmente. Ao contrário, os conflitos
que discutimos adiante intensificaram-se com a pandemia de coronavírus, que teve início nos meses
seguintes à apresentação oral deste trabalho.
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dos anos 1980 e 1990, e que de fato escaparam da morte; e grupos tanto mais jovens
quanto mais velhos, que foram contaminados anos depois, quando a Aids já não era
considerada potencialmente mortal. Isso porque o acesso ao tratamento da doença não é
capaz de garantir o controle epidemiológico do vírus. Mais recentemente, a
disponibilização de medicamentos como o Prep e o Pep (Profilaxias Pré ou Pós
Exposição) é capaz de evitar a contaminação quando administrados imediatamente antes
ou depois do contato com o vírus. Essa forma de prevenção, contudo, ainda depende,
fundamentalmente, de uma ampla rede de informação sobre a epidemia e
conscientização contra preconceitos consolidados sobre a doença. Apesar dos avanços
na área farmacológica, o uso do preservativo ainda é o meio mais recomendado como
prevenção.
Tais medidas, contudo, esbarram em dificuldades políticas e culturais. Em
matéria do jornal O Globo, de fevereiro de 2019, especialistas apontam um aumento
preocupante de cerca de 700% do número de contaminações de HIV, no Brasil,
especialmente entre jovens de 15 a 24 anos. Entre os anos de 2007 e 2017 houve o
registro de aproximadamente 16 milhões de novos casos, dado que se revela ainda mais
preocupante quando comparado com os índices mundiais, que indicam a queda do
número de contaminações. Segundo Richard Park, Diretor-presidente da Associação
Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), tendências conservadoras têm dificultado o
trabalho de prevenção. Segundo Park: “Os ministros falam sobre necessidade de se
respeitar a família brasileira e deixar o debate sobre a educação sexual para os pais. É a
receita para o desastre” (ALEIXO & GRANDELLE, 2019).
Soma-se ao quadro de aumento da contaminação por HIV um estado de tensão
permanente em relação à manutenção da política de distribuição dos retrovirais a
soropositivos por meio do sistema público de saúde. Desde 2017 há reclamações de
usuários do sistema, o que levou a própria UNAIDS a publicar uma nota assegurando
sua atuação no acompanhamento da distribuição da medicação, no país. Ainda assim,
verificamos notícias cada vez mais recentes que acusam a deficiência na distribuição
dos medicamentos em diferentes estados. Uma matéria publicada pelo The Intercept
Brasil, em abril de 2018, identificou algum tipo de problema na distribuição dos
remédios em 14 estados diferentes: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa
Catarina, Pernambuco, Ceará, Alagoas, Piauí, Paraíba, Acre, Amapá, Pará, Rondônia e
339
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Roraima. Constatou-se atrasos no recebimento da medicação pelos postos de
distribuição; baixa nos estoques de medicamentos; ou a necessidade de fracionamento
da medicação em mais de um comprimido, sem comprometimento para o tratamento. O
jornal Correio identificou, em Salvador, em maio de 2019, a falta ou baixa no estoque
de diversos medicamentos, entre eles, alguns medicamentos para soropositivos. Um
deles, em especial, é administrado para crianças recém-nascidas filhas de soropositivos
para evitar a transmissão do vírus, a chamada transmissão vertical. O medicamento não
existe na rede privada e só é acessível pelas redes de farmácias públicas. Também o
jornal G1, em junho de 2019, identificou falhas na distribuição de remédios para
soropositivos no Rio Grande do Norte, onde 48 pacientes chegaram a ficar sem a
medicação.
Caso ainda mais grave é o enfrentado por soropositivos na Venezuela, onde,
desde o agravamento da crise econômica e política nos últimos anos, há falta de
medicamento e interrupção forçada do tratamento. O jornal El País, em matéria de
setembro de 2018, apontava que a situação da Venezuela se assemelha à crise
enfrentada nos anos 1980, quando ainda não havia medicação eficaz para controle da
síndrome. O médico Carlos Pérez, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital Geral
do Oeste (HGO), relata:
A cada semana morrem dois pacientes meus. Estão chegando já na
fase de Aids e esses casos de recém diagnosticados estão muito
imunossuprimidos. Isso levou a um aumento significativo das mortes
por HIV. Nos últimos meses, temos tratado a crise discriminando os
pacientes que estão melhor, distribuindo doses para uma semana de
tratamento, usando os medicamentos deixados pelos pacientes que
morrem ou receitando o esquema incompleto, embora tenhamos
consciência de que isso favorece a aparição de um HIV resistente. A
situação é tão grave que eu recomendei que os pacientes emigrem ou,
se tiverem a possibilidade de que lhes tragam medicamentos do
exterior, que façam isso, mas isso é algo insustentável para muitas
famílias. (SINGER, 2018).
A falta da medicação é um dos fatores que agravam a crise humanitária vivida
na Venezuela e que força a migração de sua população para outros países, sobretudo
latino-americanos, onde é possível ter acesso ao tratamento. A matéria relata a migração
de pacientes soropositivos para o México, Colômbia, Peru, Chile, Brasil e Argentina,
onde o tratamento é possível. Alguns pacientes, contudo, morrem antes mesmo de ter
340
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acesso à medicação no novo país. Segundo Eduardo Franco, secretário-geral da Rede
Gente Positiva, os dados sobre a epidemia na Venezuela são estipulados a partir de
“estimativa feita às cegas porque faz anos que o Governo não publica informações
epidemiológicas e, neste 2018, a pasta da Saúde eliminou seu portal na Internet”
(SINGER, 2018). A previsão é de agravamento da situação, uma vez que, com a crise
econômica, a população mal tem dinheiro para comprar preservativos.
Ao compararmos as diferentes representações da doença, na obra de Caio
Fernando Abreu, nos períodos anterior e posterior à reinstalação do regime democrático,
no Brasil, e à emergência da Aids, identificamos algumas questões pertinentes para
pensar o problema da epidemia de HIV e Aids ainda hoje. Se até o final da década de
1970, as diferentes imagens da doença apontavam para uma possibilidade de
contestação das forças exercidas pelo Estado sobre os cidadãos, a partir dos anos 1980
verificamos a imagem do corpo adoecido e, portanto, fragilizado diante de uma
conjuntura nova e ameaçadora. Apesar dos esforços em políticas públicas e de saúde
para prevenção e acesso ao tratamento de soropositivos, adotadas de modo crescente
desde o fim dos anos 1980, vemos ainda a dificuldade em garantir uma política eficaz,
que esbarra em forças conservadoras disseminadas no tecido social. Além disso, a
atuação social de grupos soropositivos e de organizações sociais contra o HIV não é
suficiente para garantir a esta camada da população uma completa independência em
relação às decisões de Estado, tornando-as sujeitas aos impasses e revezes políticos que
incidem sobre governos e populações. Os quadros latino-americanos aqui discutidos,
sobretudo a partir das experiências de Brasil e Venezuela, são paradigmáticos de como
as instabilidades na ordenação democrática tornam estes grupos populacionais
especialmente vulneráveis.
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1970.
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https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2019/06/26/falta-de-remediointerrompe-tratamento-de-pacientes-com-hiv-no-rio-grande-do-norte.ghtml. Acesso em:
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Acesso em 15 out 2019.
343
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
A POÉTICA DA ABSTRAÇÃO NA VENEZUELA E O MANIFIESTO DE LOS
DISIDENTES (1950)
Vanessa Beatriz Bortulucce1
“Dissidente”: (lat. dissidens, entis part.pres. de dissidere)
Adjetivo e substantivo de dois gêneros:
1 que ou o que diverge (de algo);
2 que ou o que sai de um determinado grupo ou organização
(p.ex. política, religiosa), por divergir de seus princípios,
ideias, doutrinas, métodos etc.
- Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
INTRODUÇÃO
No início dos anos 50, formou-se em Paris um coletivo de artistas
venezuelanos conhecidos por Los Disidentes (doravante neste texto usaremos a tradução
em português Os Dissidentes). Motivados pela necessidade de renovação da cultura
venezuelana, criaram uma revista homônima, que, no seu quinto número, apresentou o
manifesto do grupo. O texto, assinado em 1950, propunha uma renovação do campo
artístico de seu país, liberto das amarras das instituições tradicionais, como a Escola de
Belas Artes de Caracas.
Os Dissidentes causou um impacto no panorama das artes plásticas da
Venezuela ao introduzir as linguagens da abstração, a preocupação por uma
investigação dos problemas formais da pintura e a proposta de uma arte que fosse para
além da paisagem e dos temas sociais. Estes artistas já haviam protagonizado na
Venezuela uma série de manifestações e protestos contra os métodos e currículos de
ensino transmitidos pela Escuela de Artes Plásticas y Aplicadas Cristóbal Rojas, que
substituiu a Academia de Belas Artes a partir de 1936. Os alunos reivindicavam a
necessidade da Venezuela em alinhar-se com as propostas vanguardistas europeias;
posicionavam-se contra a pintura de caráter naturalista e descritivo, enfatizado a
necessidade de estabelecer um diálogo com as tendências abstratas, especialmente
aquelas alinhadas com a poética do construtivismo.
1
Doutora em História Social (UNICAMP). Docente da Faculdade Casper Líbero, Museu de Arte Sacra
de São Paulo e Centro Universitário Assunção. bortu@hotmail.com
344
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
A consolidação da arte abstrata na América Latina ocorreu principalmente graças
a formação de grupos de artistas, escritores e estudiosos que, ao criarem revistas
especializadas e textos programáticos, como os manifestos, puderam divulgar suas
ideias, bem como fortalecer as suas próprias produções plásticas. A criação de
periódicos, manifestos e grupos de artistas, já existiam na Europa há tempos; contudo,
atendem a um propósito especial no que diz respeito a poética da arte abstrata,
principalmente aquela de tendência cinética, que irá marcar o grupo Os Dissidentes, de
influência construtivista e seus conceitos de racionalização e modernização mecânica.
Este texto tem como objetivo analisar o Manifesto dos Dissidentes, e a sua
importância no cenário da arte venezuelana do século XX. Ele está estruturado em três
partes. Na primeira seção, será problematizado o percurso da arte abstrata na América
Latina e na Venezuela em particular; em seguida, refletiremos acerca da poética do
manifesto como importante componente para a afirmação de novas propostas artísticas.
Por fim, apresentamos uma análise do Manifesto de 1950.
A ABSTRAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
O período que compreende o fim da Segunda Guerra Mundial até a década de 60
testemunha o surgimento de importantes artistas plásticos latino-americanos ligados às
poéticas da arte abstrata. Este contexto, contudo, não é nada simples: ele está associado
com o desenvolvimento da arte abstrata a nível internacional, no início do século XX, e
também com a presença dos Estados Unidos como espaço de destaque na divulgação
destas correntes, a partir de 1945.
A abstração começa, de fato, na Europa, logo no início do século XX, e expandese para diversas poéticas e propostas. Seja numa abordagem mais lírica, como aquela
de Kandinsky, ou mística, como a de Hilma au Klimt, ou numa acepção mais
geométrica e estruturalista, como aquela de Mondrian e do grupo de Stijl, ou ainda, no
caso do construtivismo russo, onde as formas das máquinas são o ponto de partida para
a construção do não-objeto, a Europa testemunhou um grande momento na abstração até
o início da Primeira Guerra Mundial.
Ao término do conflito, a arte abstrata sofre seu primeiro grande baque: as
trágicas consequências do conflito a sensação de insegurança redirecionam a arte para a
345
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
figuração, na tendência conhecida como rappel a l´ordre. Os anos 20 e 30 ainda
procuram manter algumas experiências no campo da abstração, contudo, seja nos países
capitalistas, cuja ascensão dos regimes totalitários criaram políticas persecutórias em
relação à arte moderna, ou na recém-formada União Soviética (e especialmente a partir
de 1934, com o Realismo Socialista imposto por Stalin), a arte abstrata não conseguiria
retornar ao seu momento “heroico”, pré-1914.
Com o início da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas abstratos emigraram
para os EUA, em busca de melhores condições para o desenvolvimento de suas
pesquisas. O país da América do norte tornou-se um prolífico campo de testes no
sentido de expandir e consolidar diversas vertentes da arte abstrata; vencedores do
conflito de 1945, assumem-se como o novo centro artístico e cultural do globo, num
cenário onde uma Europa destroçada conta seus mortos (artistas entre eles) e a América
Latina, até então atrelada culturalmente ao Velho Mundo, inicia um processo de
reconfiguração cultural, num diálogo com os desenvolvimentos da Guerra Fria, onde a
ideologia estadunidense impõe para o restante do continente.2
De uma forma que ressoa parte da poética construtivista soviética, a presença da
abstração no continente americano possui vantagens para além de seu aspecto formal:
está intimamente associada com as qualidades da sociedade industrial: alude à cultura
de massa, às máquinas, o ritmo urbano, a racionalização do trabalho, mas também se
inclina ao gestual, ao lírico e ao ethos primal que serve como um desafogo destas
mesmas características da modernidade. Assim, a experiência da abstração nos EUA
abraça tanto o estruturalismo visual de um Mondrian (que insere um ar festivo e
luminoso a esta poética, como, por exemplo, em Broadway Boogie-Woogie, de 1942)
quanto o dripping de reminiscências navajo de Jackson Pollock. Este último, como
sabemos, tornou-se um dos nomes de destaque no chamado Expressionismo Abstrato,
movimento respaldado por instituições como o MoMa, e por colecionadores como
Peggy Guggenheim.
No caso específico da América do Sul, desde a década de 40 já existem
propostas voltadas a uma arte de valores abstratos, notadamente a abstração geométrica.
Em muitos países, com destaque para o Uruguai, a Argentina, o Brasil e, em um
2
Não sem alguma resistência, claro. Em alguns casos, nota-se um conflito em alguns locais, onde uma
arte de cunho social divide espaço com e a abstração, como o México.
346
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
momento posterior, a Venezuela, a arte construtiva, com propostas que privilegiavam o
racional, foi a primeira tendência abstrata a se fazer dominante3. Sua difusão, contudo,
deve ser estudada com cautela, considerando os percursos sociais, históricos e culturais
de cada local. Os sistemas de artes locais devem ser considerados, uma vez que eles
podem se relacionar com as novas tendências de forma amistosa ou não.
Nos países da América Latina a abstração alarga-se e torna-se conhecida pelos
artistas também pelo fato de esta corrente ganhar força e ser promovida pelos EUA. Se
não se trata de uma única explicação, certamente trata-se de um aspecto relevante. A
nação da América de Norte, com o objetivo de expandir e consolidar suas zonas de
influência no continente, irá realizar grandes investimentos dirigidos à modernização da
produção, em território nacional e fora deste. Seja em empresas particulares ou com
empréstimos estatais, a América Latina participou de um momento de modernização
onde a arte abstrata insere-se como um importante componente de inserção social e
valorização de mercado.
Sem dúvida, a linguagem da abstração geométrica atende aos anseios de uma
modernidade voltada para o campo gráfico, o design, a arquitetura, a exploração do
potencial plástico das formas, mas sobretudo o desejo por uma arte de valor universal,
democrática, descolada de quaisquer regionalismos. Trata-se de uma poética que, como
observa Couto (2012), busca estabelecer uma modernidade para depois superá-la, de um
modo original. Acrescenta-se, aqui, a observação feita por Jimènez (2011) acerca das
transformações plásticas e seu diálogo íntimo com as modificações sociais que ocorriam
no período:
Os artistas deixam de atuar no âmbito de povoados maiores ou
menores, e passam a lidar com organismos cada vez mais amplos e
3
Como exemplo podemos citar Joaquín Torres García (1874-1949) que, após 20 anos na Europa, volta
ao Uruguai e através de cursos, aulas e palestras, defende a abstração geométrica, fundando a Asociacíon
de Arte Constructivo e a edição da revista Quadrado y Círculo. A poética construtiva também é
identificada na Argentina, com o trabalho de Tomás Maldonado e Carmelo Aden Madí, às voltas com a
criação de associações, grupos e revistas teóricas. As obras criadas no final da década de 1940 pelas
pessoas do grupo Madí (que vai durar até o final de 1950), bem como as criações de Lucio Fontana
facilitam a entrada da Argentina à arte geométrica-construtivista internacional. O grupo Madí é
particularmente relevante, posto que desenvolveu de forma perene poéticas da arte cinética, bem como a
quebra de molduras, numa referência direta ao construtivismo russo. Neubauer observa que estes
movimentos “(...) trouxeram importantes conceitos internacionais para a arte sul-americana e tornaram-se,
posteriormente, referências no cenário mundial, ao utilizar o vocabulário construtivista de uma forma
única” (SILVA, 2012, p. 33).
347
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
complexos, cada vez mais diversificados e heterogêneos (...). As duas
grandes guerras mundiais, com sua amplitude quase planetária de
miséria e morte, também implicaram uma mudança radical tanto nos
problemas plásticos que se colocavam os artistas, como nas estratégias
individuais que adotaram para alcançar soluções adequadas. A pintura
e a escultura, tal como vinham sendo praticadas ate então, mostraramse limitadas para alcançar esse publico cada vez mais amplo, e
responder de modo eficaz as novas circunstancias urbanas. Os artistas
mais importantes, aqueles que melhor exprimiram as necessidades de
sua época, sentiram então impelidos a avançar alem dos limites
convencionais das “belas-artes” (JIMÉNEZ, 2001, p. 12-13).
A Venezuela, no início do século XX, alcança a unidade política ao longo do
governo ditatorial de Juan Vicente Gómez (de 1908 a 1935), que encerra as lutas civis
que se estendiam desde o século anterior. Em 1914 o petróleo é descoberto no país, o
que não foi suficiente para evitar a estagnação econômica do governo Gómez, que os
sucessores tentarão superar.
A ditadura de Juan Vicente Gómez foi um marco político na criação do Círculo
de Belas Artes, que teve sua origem no protesto que eclodiu em 1909 contra os métodos
de ensino aplicados por Antonio Herrera Toro, então diretor da Academia de Belas
Artes de Caracas. Os jovens que solicitaram a reforma da referida instituição
começaram a se reunir na Praça Bolívar da capital, local de convivência da época. Os
artigos publicados por Leoncio Martínez (Leo), no El Universal, junto com os esforços
de Antonio Edmundo para unir as vontades dispersas de jovens artistas, foram, em
última instância, o preâmbulo da fundação do Círculo de Belas Artes. Em termos gerais,
esta organização foi um importante ponto de encontro para a projeção de renovação, não
só das artes plásticas, mas também da literatura. Em seus primórdios, realizou uma série
de exposições que contribuíram para que o público passasse a valorizar o
empreendimento artístico como digno de ser considerado igual a qualquer outra
profissão ou ofício.
Embora o Círculo de Belas Artes tenha tido uma vida curta de 5 anos, marcada
inclusive por repressões da polícia de Gómez, esta instituição contribuiu notavelmente
para o redimensionamento da arte venezuelana em todas as suas facetas: conseguiram
dar vida a novos gêneros, antes pouco cultivados ou em decadência nos tempos da
República, como a natureza-morta, o nu, as artes aplicadas, o design, o desenho,
conferindo-lhes autonomia e rompimento com os ensinamentos.
348
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
De 1935 a 1950, apesar das eleições indiretas e de um golpe de estado, a
sociedade venezuelana será marcada por uma relativa abertura nas relações sociais e
democráticas, modernização na economia e aumento na imigração. A Segunda Guerra
Mundial ocasionou um investimento internacional no país, que testemunha uma
diversificação da atividade econômica, com uma forte urbanização que se estende até a
década de 60, bem como estimula a busca por novos modelos culturais.
Artistas de diferentes países absorvem e problematizam de modos variados as
propostas modernistas. No final da década de 1940 podemos identificar, conforme
destaca Jiménez (2011) quatro correntes artísticas na Venezuela, todas voltadas, cada
qual ao seu modo, para a constituição de uma poética visual nacional. A primeira dessas
correntes, influente desde o início do século, era representada pela pintura de paisagem,
de tendência impressionista, onde a figura de Armando Reveron merece destaque, tanto
pela sua pesquisa formal do uso da luz, quanto pela sua personalidade solitária. A
segunda corrente era marcada por uma estética nativista, com ênfase na exploração da
história nacional. Uma terceira corrente defendia uma arte de caráter político, engajada,
tendo como influência o muralismo mexicano. Por fim, a quarta corrente, com impacto
menor, explorava a temática indigenista. Todas elas, em suma, orientadas pela figuração
e pelo viés nacionalista.
É neste cenário cultural que alguns artistas, estudantes da Escola de Belas Artes
de Caracas, manifestaram interesse pelas ideias de modernidade e progresso, no desejo
de realizar uma arte nova, desatrelada dos valores reforçados pela ditadura militar
imposta por Juan Vicente Gomez entre 1908 e 1936. Muitos destes artistas irão
encaminhar-se para uma poética de tendências cubistas, construtivas e marcadas pelas
experimentações formais de Cézanne, na tentativa de superar a tendência da pintura de
paisagem e de valores agrários que era constante no país.
A ascensão do cinetismo na Venezuela estava diretamente ligada ao surgimento
de uma classe média poderosa que cresceu vertiginosamente rica com a economia do
petróleo. A demanda explícita desta classe emergente apontou para dar, por meio da
arte, a imagem de desenvolvimento, alta tecnologia e expectativas do futuro. O
cinetismo foi duplamente apoiado por essa classe e pelo Estado, que estava de acordo
com aquela imagem de país moderno e permanente. Marta Traba observa que
349
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Se considerarmos a geometria, tal como apareceu na década de 1950,
como a maneira adequada de entrar em um circuito universal, onde os
localismos foram neutralizados e a possibilidade de emissão de uma
nova mensagem foi atenuada ou desapareceu além do visual, é lógico
que o maior desenvolvimento dessa tendência ocorreu nos países
"abertos", em particular Argentina e Brasil, e em menor medida, por
causa de sua população, no Uruguai e no Chile (TRABA, 1994, p.
107-08).
A POÉTICA DO GÊNERO MANIFESTO
O manifesto é um dos textos mais representativos de um tempo e de um espaço
específicos da modernidade. De modo geral, entende-se o manifesto como um gênero
textual, de caráter persuasivo, que se propõe a declarar publicamente princípios
específicos, chamando a atenção do público, incitando à ação e alertando para a
necessidade de realização de algum tipo de mudança. Quanto mais ele circular entre as
pessoas, mais ampla será sua repercussão. Sua estrutura é relativamente livre, mas
alguns elementos são típicos de seu formato: o texto, que não deve ser nem demasiado
curto nem muito extenso, possui estrutura de dissertação e tom de convocação, com
presença de vocativos. A linguagem pode variar dependendo a quem o texto é dirigido;
geralmente, contudo, usa-se a linguagem formal, com verbos no presente do indicativo
ou no modo imperativo. Além disso, o manifesto, na maior parte das vezes, possui um
título, além de identificar o local, a data e os signatários do texto.
Do século XVII até à primeira metade do século XIX, o manifesto situou-se no
terreno específico da política, como uma declaração ou proclamação feita por líderes,
por um Estado ou por um partido. Isso fez com que ele também pudesse ser utilizado
como um instrumento de legitimação política. Neste sentido, o propósito do documento
é tornar conhecido, para o público em geral, algum fato já estabelecido. É uma
comunicação de “mão-única”, validada pelo status do emissor (aquele que detém o
poder civil e militar) e pelo contexto do texto, que deve ser de interesse público. Aos
seus receptores é negada a possibilidade de uma resposta, de uma réplica.
Foi a partir da segunda fase da Revolução Francesa que surgiram importantes
modificações no gênero: grupos radicais de jacobinos publicaram manifestos nos quais
apresentavam suas exigências de uma urgente mudança social. Ao colocar o povo como
autor dos manifestos, a Revolução Francesa apresentou-se como um verdadeiro turning
350
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
point na história do gênero. O manifesto passou a ser visto como um documento
"revolucionário", uma "resignificação subversiva do gênero" (HJARTARSON, 2007,
p.174), o que irá aproximá-lo das políticas revolucionárias dos períodos seguintes. O
manifesto político cada vez mais passa a apoiar não somente a práxis política – ele é
concebido como ato revolucionário em si.
A segunda metade do século XIX, contudo, foi caracterizada não somente por
uma proliferação de manifestos políticos, mas também pela apropriação do gênero por
parte de grupos artísticos e literários. Ao tornar possível a emergência de um tema, o
manifesto aponta para a necessidade de uma completa reorientação de um campo –
cultural, político, histórico. Na transição do século XIX para o XX o manifesto tornouse parte integrante da poética de diversas escolas artísticas e literárias que surgiam,
representando suas ideias e seus objetivos, destacando-as de outros grupos. Em muitos
casos, o manifesto de vanguarda rompeu radicalmente com a função tradicional do
manifesto estético como um meio secundário. Assim, na vanguarda do século XX "não
existe somente o manifesto, mas sim uma reflexão acerca da escrita de manifestos, uma
poética do manifesto in nuce" (HJARTARSON, 2007, p.177).
A integração do termo militar “vanguarda” no campo da literatura e das artes
levou à emergência do manifesto estético, que acabou por tornar-se a forma discursiva
das vanguardas par excellence, pois ele vê a si próprio como a vanguarda do discurso, a
coragem do diferente, em suma, o novo. Como afirma Martin Puchner (2006), a
mudança na concepção de arte foi a consequência de maior impacto da disseminação
dos manifestos na Europa; o manifesto, com o tempo, deixaria de ser um programa
artístico, para integrar a experiência estética em si.
Tais aspectos constituíram a chamada modernidade, que abriu caminho para o
modernismo e a vanguarda do século XX, bem como estabeleceu a utilização das
grandes narrativas de caráter teleológico. O Modernismo é “modernidade crítica”, que
articula uma série de respostas à modernidade, contrárias ao projeto progressista,
positivista, racional. Ele é “uma tentativa de interromper a modernidade que nós
vivemos e entendemos como um modo de vida social, se não ‘normal’”.
(EYSTEINSSON, apud SOMIGLI, 2003, p. 5). Eysteinsson entende o modernismo
como uma tentativa de trazer à tona as experiências culturais que são reprimidas ou
postas de lado pelos desdobramentos das narrativas da modernidade. Perry Anderson,
351
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
em “Modernity and Revolution”, sintetiza: “O modernismo europeu (...) floresceu em
um espaço entre um passado clássico ainda usável, um presente técnico ainda
indeterminado, e um futuro político ainda imprevisível” (ANDERSON, 1984, p. 100).
Somigli ressalta esta posição ambígua dos manifestos:
Manifestos são instrumentos cruciais (...) porque, devido à sua posição
ambígua em um espaço entre o domínio criativo (eles são emitidos
pelos seus próprios produtores) e os locais de mediação e recepção das
obras (elas aparecem em jornais e na imprensa popular, participam
nos debates do público e da crítica, e não clamam por um status
autônomo como a obra de arte), eles funcionam como uma espécie de
ponte entre os dois campos. Em outras palavras, a função formativa
dos manifestos cumpre-se em dois níveis. Primeiro, eles servem para
diferenciar o campo da produção cultural de outros domínios sociais, e
legitimar sua autonomia. Segundo, no campo restrito de produção
artística, eles servem para articular a identidade dos vários grupos de
indivíduos que, ou por assinar o manifesto ou assumindo o nome que
ele propõe, afirmam de forma explícita sua fidelidade a ele, e o
agregam ao campo simbólico associado com os seus nomes (e, por sua
vez, partilham o capital simbólico do grupo) (SOMIGLI, 2003, p. 54).
O caráter ambíguo do manifesto cria uma ponte entre o artista e a sociedade, pois
a arte, uma vez autônoma das várias funções sociais, distancia-se da experiência vivida.
Já que o conteúdo da arte está cada vez mais próximo da individualidade e das
preferências particulares do seu criador, fica cada vez mais difícil encontrar uma poética
que una o seu tema ao mundo da experiência vivenciada. O artista moderno encontra-se
diante de um dilema: ao mesmo tempo em que conquista um discurso estético
autônomo, livre para rejeitar todas as formas de convenções tradicionais de código e
conteúdo, sente a necessidade de fazer circular sua produção num ambiente social
dominado pelas regras da troca capitalista.
Isso posto, uma análise do manifesto moderno implica na discussão acerca dos
elementos que caracterizam a sua comunicação, que se faz de forma específica. Sua
textualidade procura ir além dos limites do próprio texto, que gera outros discursos, que
possui a urgência de ser colocado em prática. Trata-se da necessidade premente de
inserir-se no presente, seu locus por excelência. Porém, Puchner observa que a
modernidade possui uma temporalidade específica que plasma-se de forma especial no
manifesto. Esta temporalidade é caracterizada por
352
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
353
(...) rupturas e novos começos que não obstante continua a ser
confrontada com um passado que nunca está abandonado
completamente. Esta temporalidade, com todas as suas tensões e
contradições, surge na filosofia iluminista e na declaração política, no
primitivismo modernista, na poesia da vanguarda, nos contos
modernistas, mas em nenhum outro lugar de forma tão sucinta e
notável como no gênero do manifesto (PUCHNER, 2006, p. 7).
Assim, o manifesto é um gênero que representa as esperanças, fantasias, desejos e
contradições da modernidade. Encontrar uma definição para o manifesto moderno ainda
é algo desafiador: mesmo quando refazemos o percurso histórico do manifesto,
persistem
as
dificuldades
para
encontrar
uma
definição
entre
os
autores
contemporâneos: Claude Abastado (1980, p. 23) afirma que encontrar uma única
definição para manifesto significa tolher seus múltiplos aspectos; o manifesto é mutável
e “não existe como um absoluto”.
Mas, de forma geral, o que faz de um texto um manifesto? Somigli observa:
(...) A classificação de um texto como um manifesto depende dos
resultados pragmáticos que a sua inserção em um determinado campo
(político, estético, religioso, etc.) de relações provoca. Em outras
palavras, um manifesto não precisa clamar por mudança de maneira
explícita, desde que sua função de ruptura se torne evidente como uma
consequência dos efeitos que ele tem sobre o espaço (...). Se o
manifesto situa-se num espaço entre arte e vida, talvez seja possível
considerá-lo como um gênero que questiona os contornos destes
limites, e chama a atenção para um entendimento mais complexo do
texto como evento e da textualidade do evento (SOMIGLI, 2003, p.
27).
O autor reforça as ideias apresentadas por Abastado no que concerne ao caráter
múltiplo do manifesto: não possuindo um locus único, o gênero permite uma nova
relação entre texto e leitor, entre linguagem e meio, entre reflexão e ação.
O manifesto se opõe ao apelo, à declaração, à petição e ao prefácio: o apelo
convida à ação sem propor um programa; a declaração afirma uma posição sem pedir
adesão aos destinatários; a petição é uma reivindicação pontual assinada por todos os
que a fazem; o prefácio acompanha um texto que ele introduz, comenta e justifica. É
possível notar que a existência de um texto programático e o pedido de uma adesão a ele
são elementos que determinam, num texto, o seu caráter de manifesto. A isto se juntam
outras obras não textuais que adquirem uma função de manifesto: é o que Abastado
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chama de “efeito manifesto”: obras literárias, pinturas, filmes, canções e até mesmo atos
terroristas são recebidos como manifestos. Cada caso deve ser analisado em seu
contexto e nas relações que estes produtos estabelecem com seu público.
O manifesto também é um ato de legitimação e de conquista do poder: poder
simbólico – moral e ideológico – junto com a dominação política ou hegemonia estética.
Os manifestos marcam a história das ideologias e permitem a sua periodização. Eles
fundam datas, e, neste sentido, assinalam as mudanças de poder político e social. Neste
cenário, a situação do manifesto é uma situação precária, pois, uma vez que sua
mensagem seja absorvida de forma satisfatória, a marginalidade se transforma em
norma, institui uma nova ortodoxia, enfim, “entre a consagração e o esquecimento, entre
a vertigem e o naufrágio, se encontra uma terceira armadilha: a recuperação, forma
latente de sucesso” (ABASTADO, 1980, p. 6). Eis uma contradição que todo manifesto,
em algum momento, tem de enfrentar: quando a mensagem do manifesto é bem
recebida, quando sua proposta é assimilada, enfim, quando o manifesto “se realiza”, ele
perde seu propósito, transformando-se em fonte histórica, um documento do passado:
Em um sistema político liberal e um contexto intelectual aberto, a
mensagem de um manifesto passa, mas é muito rapidamente
fagocitada, diluída nas contradições da ideologia dominante que se
torna sua substância e tira o seu vigor: a ruptura proclamada é
interpretada como um vínculo histórico, o discurso inaugural como
um episódio numa controvérsia infinita; a bomba desarmada torna-se
uma peça de museu e um pedaço de antologia (ABASTADO, 1980,
p. 6).
É importante observar também que, na poética do manifesto, nota-se delicado
equilíbrio entre conformismo e polêmica, entre o tom amistoso e a violência
argumentativa existente nos manifestos. Esta dualidade relaciona-se com a condição do
artista e a sociedade capitalista: é necessário que o manifesto seja inteligível no contexto
social da modernidade, acatando determinadas regras de mercado para que possa
espalhar seu tom provocatório. Ser amistoso permite ao manifesto ser rebelde; ser
“conformista”, ou seja, compreender a práxis da sociedade capitalista, permite ao
manifesto difundir-se em seu público.
Todos estes elementos atribuem ao manifesto um caráter fortemente “impaciente”,
como afirma Puchner; uma impaciência em desfazer os limites entre discurso e ação,
palavras e revolução, uma impaciência consigo próprio, entre ser ação e texto ao mesmo
354
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tempo. Puchner observa que todo manifesto (inclusive artístico) possui um tom político,
ou, pelo menos, deve adotar uma “voz política”, ou seja, um elemento de apelo, de
urgência, direto e breve. Este chamado, este “grito”, colocam o gênero como ponto de
referência para outros textos e ações. Isso acontece devido ao manifesto ser o
responsável pela reconstrução de uma experiência:
Se um manifesto (...) torna-se um ponto de referência, é porque ele
desconstrói e reestrutura um campo ideológico: ele traz à luz, por
meio do sistema que denuncia, as contradições lógicas, as distorções
entre os dados da experiência e o significado que lhe damos; ele
modifica a perspectiva, baseia-se em outros axiomas e novos valores,
e restitui à experiência uma coerência (ABASTADO, 1980, p. 9).
A análise estrutural dos manifestos permite reconhecer as estratégias e de
compreender os seus efeitos. É necessário, ao analisarmos a práxis do manifesto, atentar
para o uso dos tempos verbais, marcadamente o imperativo e o subjuntivo; o uso de
neologismos, de intimidações e exortações implica num vocabulário exclamativo, de um
texto que se dirija diretamente ao leitor: assim, a utilização dos pronomes “nós”,
“vocês”, “vós”, reforça o caráter coletivo do projeto moderno. Tais pronomes definem
um emissor, um destinatário e um programa, construindo uma relação de identificação,
bem como também constroem um sistema mais complexo, misturando emissor e
receptor. Trata-se de um recurso para fortalecer a mensagem por meio da construção de
uma identificação entre aquele que lê o manifesto e aquele que o escreve.
O MANIFESTO OS DISSIDENTES
No processo de revisão estética que ocorria na Venezuela, a figura de Alejandro
Otero (1921-1990) merece destaque. Aluno da Escola de Artes Plásticas de Caracas
entre 1939 e 1945, obteve, neste último ano, uma bolsa de estudos do governo francês e
do Ministério da Educação venezuelano, com o propósito de continuar seus estudos em
Paris. O contato com as obras de Cézanne, Braque e Picasso acentuou ainda mais seu
descontentamento com a pintura de paisagem que era realizada em sue país. Otero está
especialmente interessado em estudar os efeitos luminosos da cor, os potenciais da linha
e a desconstrução das formas. Estas pesquisas podem ser percebidas na série Las
355
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Cafeteras, realizada em 1947 na Europa, que recebeu duras críticas quando exposta em
Caracas.
Outro fato importante na história da arte abstrata na Venezuela foi a mostra
organizada em 1948 pelo Ateliê Livre de Arte, dirigido por Alirio Oramas, que
promoveu em Caracas a primeira mostra de arte abstrata no país, com obras dos artistas
argentinos vinculados a Asociacion Arte Concreto-Invencion. Seria, contudo, a
repercussão da mostra dos trabalhos de Otero, no ano seguinte, que inauguraria uma
série de debates em torno das possibilidades estéticas do abstracionismo, especialmente
aquele geométrico. Neste ínterim, a má recepção de suas pinturas em seu país estimula
o retorno de Otero a Paris em 1950, onde o grupo Os Dissidentes será articulado.
Esta geração de venezuelanos reunidos na capital francesa era formada pelos
pintores Aimeé Battistini, Narciso Debourg, Perán Erminy, Carlos González Bogen,
Luis Guevara Moreno, Dora Hersen, Mateo Manaure, Pascual Navarro, Rubén Núñez,
Alejandro Otero; também por uma dançarina, Belén Núñez e um filósofo, José Rafael
Guillent Pérez. Aimée Battistini, artista venezuelana de origem corsa e radicada na
França desde 1928, é a ponte entre as culturas: apresenta a vanguarda europeia aos
demais, estimula uma rede de contatos entre os artistas, promove uma reflexão acerca
de experiências visuais desconhecidas na Venezuela. Bolsistas, aproveitam a
oportunidade que se apresenta diante deste isolamento voluntário para refletir sobre o
cenário cultural de seu país e propor um novo direcionamento para as artes, que se dá
pela criação do grupo Os Dissidentes e pela fundação de uma revista com o mesmo
nome.
Isolamento, distanciamento, dissidência: ao distanciarem-se de sua terra natal,
tomam consciência deste caráter duplo de distância, geográfica e cultural. Paris é uma
tomada de consciência, uma percepção aguda dos problemas estéticos da Venezuela.
Para estes artistas, a arte venezuelana apoia-se em uma estagnação profunda: a crítica
local, por um lado, defende uma arte desatrelada das tradições artísticas europeias, ao
mesmo tempo em que exalta a constituição de uma estética nacional calcada no
academicismo de fundo histórico. Conforme observa Silva (2012), em consequência
deste cenário, a postura do grupo, particularmente a de Otero, será a de adotar a
abstração geométrica, “assumindo abertamente a natureza da arte latino americana em
sua relação antropofágica com as grandes correntes do pensamento e estética europeus”
356
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
(SILVA, 2012, p.62). A abstração apresenta-se como uma escolha adequada, porque se
mostra como a mais radical e contundente estética diante de um cenário artístico
marcado por orientações acadêmicas. Além disso, a poética abstração é de teor
internacional, contrapondo-se às tendências historicistas.
De 1945 a 1951, o grupo permaneceu em Paris, retornando a Venezuela no ano
seguinte. As criações artísticas a partir deste ponto não se limitarão aos espaços restritos
dos museus, imprimindo-se nas arquiteturas e em outros espaços do cotidiano. Merece
destaque o projeto do arquiteto Carlos Raúl Villanueva, que em 1951 convocou vários
artistas para trabalhar na decoração da Cidade Universitária de Caracas, o primeiro
grande conjunto arquitetônico e artístico que se ergue na América Latina. Villanueva
reuniu artistas de outros países, como Alexander Calder, que trabalhou no teto de
auditório, Arp, Laurens, Pevsner, Léger e Vasarely; a estas contribuições juntaram-se as
atividades de artistas locais como Manaure, Vigas, Barrios, Gramas, Lobo, González
Bogen, Narváez, Otero, Valera, Soto, Poleo, Arroyo, Carreño e Salazar.
O Manifesto dos Dissidentes, escrito durante o tempo de estadia em Paris, alinhase a tendência, presente desde o século XIX na Europa, de divulgação e circulação de
periódicos específicos sobre arte, bem como a produção de manifestos4. É nas revistas
que as propostas artísticas, conforme Schwarz (1995), podem ser percebidas com maior
clareza, uma vez que estas estão de certa fora desatreladas os status quo literário:
Devido ao seu caráter contestatório, seja nas artes, seja nas questões
sociais, elas mantém uma relação pragmática com o público leitor, e,
pregando uma linguagem mais direta que o discursos estritamente
literário, e possuindo um status menos “aurático” Há nelas um forte
sentido de oposição que não passa pela censura ou pelo crivo da
grande imprensa. Devido ao seu caráter efêmero, as revistas de
vanguarda apresentam linhas ideológicas mais nítidas, tanto pelas
definições explicitamente avançadas nos editoriais, quanto pelo
escasso tempo que dispunham para assimilar uma nova tendência ou
4
Também merece ser destacada a importância das publicações e periódicos na difusão da arte abstrata a
nível internacional. Segundo Couto (2012) um dos primeiros e mais importantes materiais de divulgação
internacional da poética da abstração foi o catálogo inaugural da Galerie Art of this Century de Peggy
Guggenheim, publicado em 1942, com textos como “arte abstrata” de Mondrian, “Notas sobre a arte
abstrata” de Bem Nicholson e “Arte Abstrata e Arte Concreta” de Jean Arp. Posteriormente, na França,
em 1949, Michel Seuphor editou o livro L´art abstrat, ses origines, ses premiers maitres, sobre a
exposição realizada na Galeria Maeght. Ainda neste ano, também em Paris, André Bloc lançou a revista
Art d´Aujord´hui, totalmente dedicada à arte abstrata. O mesmo Michel Seuphor publicou, em 1957, o
Dictionnaire de la peinture abstraite, em Paris.
357
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
inclusive mudar a trajetória ideológica inicial (SCHWARZ, 1995, p.
54).
A própria decisão de redigir um manifesto já indica a o desejo do grupo em
inserir-se nos debates culturais do período. Conforme observa Couto (2012) o tom
agressivo e polêmico dos manifestos então publicados não deixa dúvidas sobre o
interesse do grupo em estabelecer um projeto de renovação e atualização artística.
Manifestos são máquinas de desejo, pois estruturam e afirmam uma identidade,
sendo o ato fundador de um sujeito coletivo, mas não institucionalizado, um grupo
animado pelas convicções comuns e o desejo de ação. A análise da enunciação, neste
sentido, é bastante significativa e explica o ritual de autodestinação dos escritos do
manifesto: os signatários informam e vêem neles uma imagem espelhada. Trata-se de
uma busca de identidade e do desejo de reconhecimento. É por este motivo que o
manifesto, embora possa se distanciar do ambiente cultural no qual está inserido, não
rompe totalmente com ele; a ruptura total com a cultura significaria a perda de
ressonância em um público:
O manifesto nunca rompe totalmente com o seu ambiente cultural, ao
mesmo tempo em que toma distância dele. Ele é uma lacuna, mas,
para se afirmar, implica uma norma. Ele proporciona forma e
proclama, em face de uma ideologia reconhecida, o pensamento
latente de um público virtual; ele serve como um ressoador. Ele oscila
entre uma conformidade que torna possível a comunicação e os efeitos
de surpresa ou de escândalo. (ABASTADO, 1980, p. 8-9)
O manifesto preza pela brevidade, o que acentua o caráter incisivo do discurso.
Em geral, textos de manifestos, quando curtos, conseguem atrair a atenção dos leitores
de forma mais contundente. O texto apresenta dois momentos distintos. O primeiro,
empenha-se em justificar a existência do manifesto, assinala de modo breve a situação
da cultura venezuelana, explicita a necessidade de tornar público o descontentamento
dos signatários. O segundo momento, marcada por frases curtas, onde o termo “NÃO”,
em maiúsculas, marca um ritmo através de sua repetição, expõe as reivindicações do
grupo, de forma clara e enxuta. A estrutura dos manifestos artísticos do inicio do século
XX está na epiderme do texto dos Dissidentes: preserva a estrutura “clássica” dos
manifestos, apresenta suas críticas de forma quase telegráfica.
358
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
A redação começa, pois, sem rodeios, com a informação de que os signatários do
texto não estão em Paris para “fazer cursos de diplomacia” ou “adquirir uma ‘cultura’
para desfrute pessoal”.
Tais observações estão associadas ao universo da capital francesa, tão associada
com o conceito de certa cultura de destaque, daí a palavra entre aspas. Já em 1950, o
mundo das artes já possua um “novo centro”; Nova York. Ao contrário, estar em Paris,
colocar-se como estrangeiro, como visitante, num estado de impermanência, significa
tomar certa distância, para poder refletir, e elaborar a sua condição de “Dissidente”.
Tomar distância do cenário cultural venezuelano proporciona aprender a “chamar
as coisas pelo seu nome”, o que significa expor o descontentamento dos artistas com a
cultura de seu país de origem, o consumatum est venezuelano, em suma5. As instituições
oficiais de arte, bem como os seus críticos, os “músicos folclóricos” (provavelmente
aqui, uma síntese de toda a cultura tradicional venezuelana), os poetas e escritores “de
páginas vazias”, todos são alvos das críticas dos signatários, que, de forma sucinta,
resumem todo um universo que legitima e respalda uma “arte” ultrapassada. Aqui, o
valor do manifesto e especialmente, do periódico onde ele é apresentado, ganha especial
importância, uma vez que se opõe ao jornal, forma tradicional de circulação dos valores
culturais escritos pelos críticos e lidos por um público bovino, que “todos os dias se
encaminha mansamente para o abate”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A poética da abstração na arte latino americana a partir da década de 50 pode ser
explicada por duas frentes: por um lado, a presença econômica, e portanto, ideológica,
dos EUA, então principal geografia das experiências da arte contemporânea, que
difunde a abstração para o restante do continente; e o próprio posicionamento cultural
de parte dos artistas latino americanos, que projeta suas aspirações de modernidade nas
poéticas da abstração.
Trata-se, afinal, de aspirações concretas, relevantes e
autônomas.
5
consummatum est (locução latina que significa "tudo está consumado"). Últimas palavras de Jesus
Cristo ao expirar na cruz; citam-se a propósito de uma grande catástrofe, ou de uma vida que acaba de
extinguir-se. Fonte: Vulgata, S. João, XIX, 30."consummatum est", in Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/consummatum%20est Acesso em 0403-2021.
359
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
É possível dizer que, no campo das experiências artísticas modernas na
Venezuela, merecem destaque tanto o exílio de Reveron quanto a dissidência dos
artistas latino-americanos que em Paris, lançaram seu manifesto. Dissidência e exílio
andam de mãos dadas, anunciando um novo cenário na arte venezuelana do século
passado; não em vão Armando Reverón e Os Dissidentes são citações obrigatórias nos
estudos sobre a arte venezuelana na primeira metade do século XX.
No que diz respeito ao grupo dos Dissidentes, uma nova orientação foi posta em
movimento, uma nova disposição cultural passou a fazer parte do cenário do país. A arte
cinética venezuelana, como vanguarda
(...) não certificou a “morte da arte”, embora a tenha atestado de uma
quase esquecida “pintura de cavalete”; Também não ajudaram a
demolir instituições fortemente estabelecidas, mas, ao contrário,
contribuíram decididamente para consolidar as instituições artísticas
existentes na Venezuela. Nunca desempenharam o papel de
iconoclastas que, segundo o estereótipo, deviam representar, embora
atacassem a figuração na firme convicção de que com a abstração
geométrica e o cinetismo, as artes visuais teriam atingido o mais alto
grau de desenvolvimento (CASTILLO, 2014, p. 84).
O impacto das correntes abstratas repercutiu de modo contundente na Venezuela
da década de 50, especialmente em Caracas. É neste período que a poética do
abstracionismo geométrico venezuelano esparramou-se para fora do país, estendendo-se
para toda a década seguinte. O debate em torno da atualidade da arte abstrata ganhará
novos contornos, com a entrada em cena de diferentes grupos e propostas. As obras de
Jesus Soto, Cruz-Diez e Gego, em suas propostas cinéticas, luminosas e inventivas,
alcançam projeção internacional, alargando o campo da experiência sensorial da pintura,
sofisticando o diálogo entre a obra de arte e o espaço arquitetônico, explorando as
qualidades cinéticas, cromáticas e cambiantes da percepção visual. Tais artistas também
se tornaram relevantes ao afirmarem a autonomia criativa da Venezuela, que em nada se
contradiz com o histórico da presença de estéticas internacionais no país, décadas antes;
ao contrário, são justamente artistas como Soto e Cruz-Diez que formulam propostas
visuais originais, inserindo-se na arte contemporânea de modo autônomo. Este cenário
artístico venezuelano ecoa as palavras de Traba:
360
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
É verdade que no século XX a América Latina não criou nenhum
"ismo" original. (...) No entanto, seu propósito invariável de articularse com sua comunidade por meio de mensagens visuais carregadas de
significado tornou-se progressivamente um "banco de imagens", o que
implica uma reserva real para nós e potencial para o resto do mundo
(TRABA, 1994, p.164).
Talvez seja o momento de refletir, no contexto de uma História da Arte que
cada vez mais se desatrela dos colonialismos, das visões eurocêntricas, que se propõe
global sem ser globalizada, a esterilidade do debate que procura identificar aspectos
“originais” e “não-originais” nas obras de arte, especialmente aquelas produzidas por
artistas latino-americanos.
Manifiesto de Los Disidentes (Paris, 1950)
Nós não viemos a Paris para fazer cursos de diplomacia ou para adquirir uma
“cultura” para desfrute pessoal. Viemos enfrentar problemas, lutar com eles, aprender a
chamar as coisas pelo seu nome e, portanto, não podemos ser indiferentes ao clima de
mentira que é a realidade cultural da Venezuela. Acreditamos contribuir para sua
melhoria, analisando suas deficiências com maior rigor, colocando a culpa nos
verdadeiros culpados e naqueles que os apoiam.
Parte razoável da tarefa que realizamos não nos caberia, mas frente a indiferença
de seus responsáveis não hesitamos em torná-la nossa, especificando também tudo o
que pudermos.
Somos venezuelanos (e o continuaremos a ser) e somos as primeiras vítimas
desse lamentável estado de coisas. Hoje nos rebelamos contra elas e clamamos porque é
necessário.
Somos contra o que consideramos retrógrado ou ultrapassado. Contra o que tem
uma base falsa. Somos o resultado e testemunhas de muitos absurdos e ficaríamos mal
se não disséssemos o que pensamos, na forma que consideramos necessário fazê-lo.
Queremos dizer NÃO agora e depois de ‘Os Dissidentes’. NÃO é a tradição que
queremos instaurar. O NÃO venezuelano que nos custa muito dizer. NÃO aos falsos
361
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
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Salões de Arte Oficial. NÃO a esse anacrônico arquivo de anacronismos chamado
Museu de Belas Artes.
NÃO à Escola de Artes Plásticas e suas promoções de falsos impressionistas.
NÃO às centenas de exposições de comerciantes nacionais e estrangeiros
realizadas anualmente no Museu.
NÃO aos falsos críticos de arte.
NÃO aos falsos músicos folclóricos.
NÃO aos falsos poetas e escritores de “páginas vazias”.
NÃO aos jornais que apoiam todo esse absurdo e ao público que, todos os dias,
se encaminha mansamente para o abate.
Dizemos NÃO de uma vez por todas ao consumatum est venezuelano com o
qual não seremos mais que uma ruína.
Narciso Debourg, Carlos González Bogen,
Luis Guevara Moreno, Mateo Manaure,
Alejandro Otero, Pascual Navarro,
Omar Carreno, Ruben Nunez, Peran Erminy
Tradução: SILVA, 2012.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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A PRODUÇÃO PARTILHADA DO CONHECIMENTO NAS REDES
COLABORATIVAS E O USO DA HIPERMÍDIA
Douglas Gregorio Miguel1
INTRODUÇÃO – A PRODUÇÃO PARTILHADA DO CONHECIMENTO
O pensamento de Friedrich Nietzsche2, cuja influência foi decisiva em toda
cultura ocidental contemporânea inaugurou a reflexão crítica da modernidade, na qual
ocorre a prevalência da racionalidade metódica que encontrou sua expressão mais
significativa em René Descartes3. Apesar dos gigantescos avanços proporcionados pelo
procedimento racional e metódico, fato era que a modernidade falhou na sua pretensão
da universalidade das soluções apresentadas aos anseios humanos em seu
relacionamento com a natureza e com a vida em sociedade.
Assim, desde meados do século XX, ocorre no seio da cultura o esforço crítico
de compreensão dos limites da racionalidade e a busca de novos paradigmas que sirvam
de base a continuar o processo de construção de conhecimento. Neste sentido, o
questionamento dos postulados epistemológicos da modernidade a partir de procedimentos
diversos, entre eles, novos direcionamentos na compreensão de estatutos epistemológicos
presentes em culturas ancestrais.
O ser humano parece encontrar um certo desconforto no seio da modernidade, na
medida em que a separação entre sujeito e objeto o coloca no dilema de que, ainda que
1
Doutor em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo – FFLCH-USP. Membro do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerância e
Conflitos da FFLCH-USP. Contato: dgmsbc@gmail.com .
2
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão autor de obras como Assim Falava
Zaratustra (1885), Genealogia da Moral (1887), O Anticristo (1888) entre várias outras. Seu pensamento
funda-se principalmente na crítica à cultura ocidental, centrada na moralidade cristã, a qual considerava
inibidora do espírito livre e da vontade, gerando uma civilização de homens submissos que negam seus
mais valorosos talentos e atributos, criticando também a modernidade, fundada no primado da razão
como fonte de verdade. Trata-se de um dos mais influentes pensadores da contemporaneidade.
3
René Descartes (1596-1650), filósofo francês autor de obras como Discurso do Método (1637) e
Meditações (1641), entre outras. Inaugurou o pensamento moderno ao desenvolver uma epistemologia
fundada no primado da razão e no procedimento metódico, o que provocou a fragmentação do
conhecimento segundo sua especificidade e a distinção entre o sujeito cognoscente e o objeto
cognoscível, revolucionando a ciência que a partir de então apresentou um desenvolvimento tão acelerado
quanto diversificado, produzindo nos séculos seguintes um avanço sem precedentes.
365
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
se esforce, esta separação jamais será absoluta: o homem está cosmos, e a objetificação
do mesmo, por conseguinte, jamais poderá operar de forma plena tal separação.
O que fica, portanto, pairando neste liame inexorável entre sujeito e objeto?
O telos do procedimento moderno de construção de conhecimento a partir de
suas rígidas regras metodológicas é o de buscar a verdade naquilo o que o platonismo
construiu há séculos, que é a permanência ideal numa unidade perene da unidade e da
universalidade. Um pensamento que se tornou hegemônico na civilização ocidental.
Tal hegemonia levou ao esquecimento de expressões do saber que compreendem
construções cosmológicas e representações do real a partir de estatutos epistemológicos
diversos que compreendem concepções hermenêuticas próprias na leitura dos
fenômenos e de processos interativos onde a separação entre sujeito e objeto não ocorre.
Assim, o liame que na concepção racional moderna de produção de conhecimento
separa de modo radical sujeito e objeto passa a compreender sujeitos somente, o que
equivale a dizer que não um sujeito, mas sujeitos múltiplos interagem incorporando em
seu ser a situação de objeto, agora não mais como algo a ser apropriado pela razão;
sujeitos e sujeitos agindo de modo interativo, e então surge a produção partilhada do
conhecimento.
Neste conjunto de representações do real, a visão do cosmos é aquilo o que
constitui o imaginário e assim pode ser entendido. Na relação do indivíduo com sua
comunidade, surgem inúmeras possibilidades de representações vindas do senso
comum. Assim, se há uma origem em comum nas representações, por que diferentes
perspectivas epistemológicas não podem interagir?
Tratando-se de perspectivas epistemológicas distintas e diversificadas, o campo
de operação daquele saber racional e metódico, que são as categorias de tempo e espaço
entram em suspensão; a partir disso, aquele telos moderno, racional e idealista, também
acompanhará tal suspensão, ou seja, abandona-se a partir daqui a ambição de verdades
únicas, universais e imutáveis; a busca de um caminho metódico calcado na lógica
matemática deixa de ser essencialmente significante, já que encontra-se num patamar
transcendente daquela relação entre o eu e o outro dentro de perspectivas de que, ao
mesmo tempo, sejam sujeito e objeto.
O encontro deste eu e o outro ocorre num determinado momento: cada “eu” é
situado dentro de uma determinada cultura, e cada cultura apresenta diferentes estatutos
366
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
e perspectivas epistemológicas; ferramentas como a escrita, tão fundamental ao
conhecimento racional metódico, tornam-se incapaz de expressar o conhecimento que
emerge desses encontros, já que a escrita consiste num registro que transcende o
momento, tornando este saber registrado em escrita imune ao devir inerente ao
momento.
No momento do encontro entre o eu e o outro, ou entre os “eus” e os outros,
ocorre a entrada no devir do momento, tornando cada uma dessas experiências únicas,
ainda que se esteja falando sobre a mesma coisa.
As expressões de cultura com diferentes estatutos epistemológicos, distintos
daquela ciência racional metódica que é hegemônica nas universidades, faz com que nos
deparemos com manifestações como o saber oral de tradições ancestrais que estão
presentes, por exemplo, nas culturas indígenas, ou ainda, nas tradições quilombolas.
Nelas, elementos ativos pensantes como os mestres da ancestralidade promovem a
iniciação de novas gerações no saber herdado, unindo povo em torno de uma cultura.
Envolvendo uma natureza totêmica, este saber não se submete ao estatuto da escrita que
encerra o conhecimento na universalização dos conceitos.
No momento do encontro do eu com o outro se estabelece o topos onde a
produção do conhecimento vai acontecer. Neste terreno, certezas e universalizações são
anuladas na diversidade de vários telos, referentes aos diferentes estatutos
epistemológicos que estão interagindo, num intenso diálogo de compartilhamento de
linguagens distintas.
É nesta amálgama heterárquica que se torna necessária a construção de um
código intercomunicacional, uma linguagem na qual se estabelece uma hermenêutica
das representações em movimentos de apropriação e interpretações distintas, originadas
naqueles mesmos estatutos epistemológicos diversos e distintos, o movimento de
efetivação do processo de produção partilhada do conhecimento.
É numa perspectiva dialógica que sujeito e objeto se fundem, diferente do saber
racional metódico no qual se almeja como fim uma descrição enunciativa de caráter
totalitário que se impõe de modo analítico de um sujeito ativo cognoscente que submete
o objeto abordado a um estatuto epistemológico dominante e unilateral.
367
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Na relação que ocorre entre agentes cognoscentes o sentido é gerado a partir da
produção partilhada do conhecimento, que é processo, e não fim. Não se busca o
enunciado, mas o processo em si é a resposta.
Concluindo-se que a produção partilhada do conhecimento é um encontro de
saberes, ela pode, portanto, ser considerada um fenômeno associado a uma rede
colaborativa.
REDES
COLABORATIVAS
–
A
IMPORTÂNCIA
DA
INTEGRAÇÃO
CULTURAL
O filme Dersu Uzala4 mostra um personagem que lhe dá título, um eremita da
tribo dos goudos, de etnia mongol, que numa noite depara-se com um pequeno grupo de
militares soviéticos os quais tinham por missão mapear a inóspita região da Sibéria. O
grupo, treinado e experiente nas técnicas que a missão exigia, estava encontrando
dificuldades no cumprimento da mesma, uma vez que estas mesmas técnicas não
estavam funcionando como o previsto, sendo inadequadas para as particularidades
geográficas com as quais se depararam na região. No entanto, Dersu era um caçador
nativo daquela região possuindo, portanto, alto conhecimento da mesma, e foi
informalmente contratado para servir de guia da equipe. No entanto, aquele encontro
ultrapassaria as expectativas do Capitão Vladimir, chefe da expedição.
A partir do olhar nativo de Dersu, e da sua interação com a região, resultante de
um processo alheio a aquele racionalismo técnico que embasava o olhar dos militares, a
percepção dos olhares daquele grupo foi aprendendo novas formas de apreensão. Dersu
desenvolveu uma percepção daquele ambiente a qual não podia ser expressa em termos
técnicos, mas em termos relacionais. A visão holística que, ao contrário daquela
separação moderna entre sujeito e objeto, opera na interatividade da presença e parte de
um todo, junto dele coexistindo, é fundamental para o desenvolvimento de uma leitura
do meio e da compreensão dos fenômenos.
Naquele primeiro encontro, conversando em torno da fogueira, dado momento
os militares estranharam como Dersu, diante do estalar dos gravetos na ardência do
4
Dersu Uzala (1975), direção de Akira Kurosawa, co-produção nipo-soviética ganhadora do Oscar de
melhor filme estrangeiro em 1976.
368
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
fogo, dirigiu-se irritado aos mesmos, exigindo silêncio para não atrapalhar a conversa.
Seria Dersu um transtornado? Não, não era. Aprenderam com ele, através dessa
sensibilidade e dessa linguagem que aquele era o caminho para melhor cumprirem a sua
missão. Isso implica numa hibridização de estatutos epistemológicos que constitui a
essência da produção partilhada do conhecimento.
A lógica que rege tais relações de grupos, promovendo tal hibridização
intercultural e a interatividade de estatutos epistemológicos distintos não segue uma
lógica conceitual, aquela com a qual trabalha a ciência racional institucionalizada nas
universidades. Esta experiência não ocorre através da conceituação, da universalização
das convenções. Ela ocorre através da experiência estética e moral, a qual ocorre no
interior da relação propriamente dita dos elementos envolvidos dentro de uma mesma
esfera.
Peter Sloterdijk (2016) fala de uma conditio humana impregnada da evidência
que, quer seja no círculo familiar, quer seja na esfera pública, ocorre um jogo incessante
de contaminações afetivas entre os homens. A abstração individualista, característica da
modernidade é posterior a tal fenômeno em que o espaço interpessoal está abarrotado de
energias simbióticas, eróticas e miméticas concomitantes; isso estabelece uma
constatação em que o axioma da ação de um sujeito racional alheio, que de forma
autônoma aborda o objeto de estudo, é desmentido pelo encantamento recíproco que
ocorre entre seres humanos. E talvez poderíamos ir além de Sloterdijk ao situar tal
relação numa esfera que ultrapassa a intersubjetividade humana para uma esfera
holística propriamente dita.
Outro filósofo que fala da questão da interatividade entre o eu e o outro em
processos de produção de conhecimento é Hans-Georg Gadamer (2005), quando afirma
que é na linguagem que se realiza o acordo entre os interlocutores. Ao abordar uma
mesma realidade, é na linguagem que o entendimento acontece. Dessa interatividade
surge uma hermenêutica que garante um acordo através do qual o entendimento sobre a
realidade e seus fenômenos vai acontecer. Cada conversação apresenta seu próprio
espírito, e a linguagem empregada carrega consigo sua própria verdade desvelada. As
verdades não se legitimam por métodos, mas pela própria experiência da verdade em si.
Tais postulados permitem com que se compreenda a importância da integração
cultural na perspectiva das redes colaborativas. Uma rede colaborativa constitui a base
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propriamente dita da vida em coletividade, constituinte da sociedade. A partir das redes
ocorre a dinamização de ações entre indivíduos, grupos, instituições, organizações, e
mesmo entre entidades coletivas políticas, como uma cidade, uma província ou um país.
É em seu interior que ocorre o desenvolvimento de potencialidades que promovem a
organização e a dialética de processos de abordagem dos interesses coletivos, e neste
ponto é que pode surgir o resultado da produção partilhada do conhecimento.
Segundo Lílian Pacheco (2015), não é a partir de autores acadêmicos isolados,
mas na espontaneidade criativa e vivencial de autores, grupos de pesquisa e ação
comunitária, movimentos sociais que se reencantam, que ocorre a produção cultural
diversificada em manifestações cotidianas, onde se dá a transversalidade de saberes, na
educação, cultura viva e vivida, da diversidade, culturas, povos e etnias onde se
promove a revisão de conceitos.
A mesma Lílian Pacheco é a fundadora de uma importante rede colaborativa, a
Associação Grãos de Luz e Griô. Surgida em 1995 em torno do conceito de pedagogia
griô, esta organização não-governamental, sediada na cidade de Lençóis – BA, tem um
trabalho focado no desenvolvimento sustentável em comunidades tradicionais, rurais e
de periferia da Chapada Diamantina e do Brasil afora, buscando a efetivação de direitos
à arte, cultura e educação, fortalecendo identidades, ancestralidade e celebração da vida.
A Associação Grãos de Luz e Griô já recebeu vários prêmios nacionais e
internacionais, e desenvolve três linhas de ação: a melhoria da qualidade da educação
com o direcionamento à cidadania, ao protagonismo comunitário, à conquista de espaço
nas universidades, mercado, coletivos culturais e ambientais; a garantia das referências
surgidas em processos de educação contextualizada, e desenvolvimento sustentável
através da institucionalização da pedagogia griô no ensino público das regiões onde
atua; a promoção do desenvolvimento sustentável através da economia solidária, da
promoção do turismo sustentável, valorizando o conhecimento tradicional e apoio,
divulgação e promoção de práticas como a agricultura tradicional, a agricultura
orgânica, a produção artesanal, a conservação da biodiversidade e à conservação das
identidades culturais das comunidades rurais, grupos indígenas, quilombolas,
assentamentos rurais e a articulação de redes locais, regionais e nacionais visando a
intervenção institucional para a garantia de tais objetivos e defesa de interesses das
comunidades e segmentos sociais envolvidos.
370
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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A pedagogia griô é um exemplo prático da aplicação da produção partilhada do
conhecimento. O termo griô é de origem semântica franco-africana, e significa “sangue
que circula”. Consiste na sistematização em práticas pedagógicas do saber oral,
mantidas e divulgadas nas comunidades tradicionais através dos mestres griôs, que são
aqueles elementos comunitários que de alguma forma, nas perspectivas das culturas
ancestrais de seus grupos, são os responsáveis pela transmissão do conhecimento, e com
eles, da identidade ancestral. Os xamãs indígenas, os mestres de capoeira, as
benzedeiras ou rezadeiras, os mestres de artesanato, os zeladores de tradições de
folguedos populares como a Folia de Reis, a Congada, a Moda de Viola, a Catira, os
mantenedores de expressões como as cantigas populares, os organizadores do puxirão
agrícola dos quilombolas, entre outros, são exemplos de mestres griôs.
A linguagem convencional é regida por regras gramaticais. Esta linguagem parte
de pressupostos de universalização de conceitos. Assim sendo, a linguagem
convencional é alheia ao que ocorre nos processos interativos entre diferentes grupos
culturais onde a experiência vivencial dos sujeitos envolvidos vai construir o sentido em
relação única e circunstancial. Esta interatividade é a mediação que substitui aquele
rigor dos processos de conhecimento racional, e a abordagem do real através do
conhecimento produzido pelas tradições orais passa a ser determinante na elaboração do
sentido e significado. Jürgen Habermas (2011) afirma que é no interior de uma
linguagem que significações são partilhadas, não somente num sentido cognitivo, mas
de forma mais abrangente envolve a significância que reúne aspectos afetivos e
normativos. Assim, a pedagogia griô, ao valorizar a tradição oral, vai promover uma
integração cultural que seria impossível fora da perspectiva das redes colaborativas, por
mais reduzidas que sejam, a exemplo do caso ficcional que se observou no filme Dersu
Uzala, mas que de fato ocorre nos processos de socialização promovidos por tais redes.
A colaboração em rede concomitante a processos de produção partilhada do
conhecimento torna-se um caminho pelo qual as incertezas que sobram da superação de
paradigmas epistemológicos desgastados, antes hegemônicos, acabam por encontrar
alternativas de superação. Por isso mesmo é imprescindível a processos históricos e
sociológicos de integração cultural que ocorrem no efetivar desses mesmos processos
encontre eco em políticas que garantam esta mesma integração. Por exemplo, no Brasil
tivemos a apresentação do projeto de lei 1786/2011, a lei griô, a qual tem como objetivo
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conceder autoridade de magistério oficial aos mestres griôs para atuarem na rede de
ensino de suas localidades, a qual se encontra em tramitação no legislativo federal até o
momento de redação do presente texto, abril de 2021.
Um exemplo prático deste processo pode-se observar na atuação do Mestre
Alcides, na cidade de São Paulo - SP. Nascido em 1947 no interior do Estado de Minas
Gerais, foi educado na infância através da tradição das Congadas5, folguedo popular de
origem africana que rememora tradições herdadas por africanos escravizados trazidos de
Angola. Ainda jovem transferiu-se para a cidade de São Paulo – SP, tornando-se
funcionário da Universidade de São Paulo – USP, em 1960. Na universidade teve a
oportunidade de integrar-se a grupos culturais que dentro dela atuavam, entre eles um
grupo de Capoeira, tradição cultural desenvolvida por africanos escravizados, a qual
mescla arte marcial, música, poesia, dança, e outros elementos culturais que
representaram, na origem do movimento, atitude de resistência à escravidão,
integrando-se de tal modo a esta tradição que hoje é considerado uma das mais
eminentes autoridades da Capoeira. Graduado em Educação Física e em Pedagogia, o
Mestre Alcides tem destacado papel como educador e ativista cultural que, em rede
colaborativa, integra-se a diversos grupos de diversas tradições ancestrais, atuando em
comunidades, instituições universitárias e em educação de base, firmando a posição de
que a formação oferecida aos professores regulares de tais instituições é insuficiente
para que eles se tornem agentes transmissores do rico patrimônio imaterial das mais
variadas expressões presentes no conjunto da cultura popular brasileira, havendo nisso
um prejuízo enorme na educação das novas gerações, que deixam de vivenciar
processos de aquisição de ensinamentos sumamente necessários para a apropriação da
identidade e da prática da cidadania plena, lembrando do papel que as Congadas tiveram
em sua formação.
5
A Congada rememora a coroação do rei do Congo, seguida de um cortejo teatralizado onde se simulam
lutas de espada, rememorando as guerras entre o Congo e Angola.
372
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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REDES
COLABORATIVAS,
PRODUÇÃO
PARTILHADA
373
DO
CONHECIMENTO E HIPERMÍDIA
Martin Heidegger (1989) afirma que a atribuição do lugar único, exclusivo,
universal e essencial da verdade, tradicionalmente atribuído à enunciação, é
impertinente, já que a verdade não tem origem na proposição, questionando a abertura
que tal reflexão oferece, a qual situa a medida como condição preexistente de verdade, a
qual lhe confere somente aparência, não essência. Em outras palavras, trata-se da
reificação do objeto que entra em conformidade com o intelecto do sujeito cognoscente,
tal como ocorre na perspectiva cartesiana. O limite de tal concepção de verdade é que
nesta distinção operativa torna-se impossível estabelecer uma relação necessária entre o
ser universal e unificado e sua manifestação em cada ente, esta sim apreendida pelo
intelecto.
A produção partilhada do conhecimento faz do processo interativo entre sujeitos
a essência da expressão de verdade, a qual não necessariamente vai ocorrer no consenso
de uma verdade final, única e universal. A partir de procedimentos não-dogmáticos,
sujeito e interlocutor aplicam sentido um ao outro.
Davi Kopenawa, xamã Yanomami, e o pesquisador franco-marroquino Bruce
Albert, na obra A Queda do Céu (2015) tratam da transição de pensamento que ocorre
na experiência única do diálogo intersubjetivo e sua dificuldade de expressão na
linguagem escrita. A palavra para o xamã representa algo sagrado, na medida em que
ele solicita que haja um certo respeito e preservação das fitas K7 na qual suas falas
foram gravadas, tecnologia disponível na época, década de 1970. O xamã declara que as
palavras dos Xapiri, isto é, entidades espirituais relacionadas ao conhecimento na
cultura Yanomami ficam gravadas “no mais profundo do seu eu”, explicando que elas
são muito antigas, mas que os xamãs as renovam o tempo todo, vindas diretamente de
Omama, divindade máxima dos Yanomamis, responsável pela criação do universo.
Declara que são elas que protegem a floresta e seus habitantes. As palavras de um
Yanomami não podem ser materialmente destruídas, por isso não são escritas. Toda vez
que os espíritos dançam para um xamã elas são renovadas, de modo a jamais serem
esquecidas, ao passo em que a escrita aprisiona as palavras em papel, tornando-as
vulneráveis ao esquecimento. Não é na leitura que ele, Davi Kopenawa (2015),
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aprendeu as coisas da floresta. Ele as aprendeu no sopro da vida transmitida pelos
antepassados através de Yakoana (pó ritualístico de efeitos alucinógenos), o sopro dos
espíritos que multiplicam suas palavras e estendem seus pensamentos nas mais variadas
direções.
A oralidade é contextualizada, e a escrita, descontextualizada. Inerente ao
humano, não há possibilidade de substituição tecnológica plena da oralidade. Escrita e
oralidade são modos de representação distintos que refletem a organização social na
complexidade de relações que organizam a mente.
Cognição é processo e produto da produção do conhecimento, que está na
fronteira dos processos epistemológicos que surgem na perspectiva multicultural.
O momento no qual ocorre a produção partilhada do conhecimento é único, uma
experiência contextualizada historicamente, cuja recorrência não representa mera
lembrança, mas a atualização do ser. Neste sentido o recurso das tecnologias digitais
podem ser ferramenta para o desenvolvimento de uma hermenêutica que permita o
desenvolvimento de uma linguagem interativa, expressa dentro de processos
colaborativos que aproximam comunidades, culturas, cientistas, artistas e outros agentes
produtores de conhecimento os quais, sem abrir mão de suas bases epistemológicas,
encontram um polo onde cosmologias e verdades aparentemente distintas encontram-se
como sujeito e objeto ao mesmo tempo.
Sérgio Bairon (2000) afirma que antes de apelar à ampliação das generalizações
na ânsia de explicar a evolução do pensar é preciso, antes, valorizar a narrativa alheia ao
racionalismo metódico a partir de uma imersão em expressividades estéticas, o que nos
afasta de afirmações obscurantistas e da estreiteza da submissão a limites explicativos.
A hipermídia, enquanto tecnologia capaz de ampliar aquilo o que a escrita
limitava, constrói textos mais dinâmicos que são apreendidos a partir de percepções
individuais, ressalvando que este individual só fará sentido quando inserido na
coletividade, constituindo assim uma manifestação estética da linguagem. É nela que
vai se construir a hermenêutica que permite a diferentes culturas, e seus diferentes
estatutos epistemológicos a interagir e gerar sentido a aquilo que surge dos encontros
proporcionados pelo diálogo no qual necessariamente ocorre a rede colaborativa,
gerando, assim, conhecimento, não estanque na ambição da unicidade e universalidade
374
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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das verdades, mas tão dinâmico quanto à natureza desse diálogo no seio do qual ocorre,
não havendo aquela antiga fragmentação entre o enunciado e o processo.
O mesmo Sérgio Bairon (2000) afirma que a hipermídia constitui, em metáfora,
a manifestação estética da linguagem, reproduzindo de certa forma a multiplicidade de
variáveis as quais enfrentamos diariamente, adquirindo experiência, compreendida na
atitude pessoal que, ciente do limite gramatical das palavras, abdica da pretensão de
apropriar-se do tempo e do futuro. A história, portanto, vai limitar a experiência de
verdade na tradição, funcionando como a hermenêutica que nomeia a linguagem a partir
de horizontes dados nos quais está imersa.
A partir disso, a produção de conhecimento que surge na partilha do mesmo,
promovida em rede colaborativa, faz com que se abandone a perspectiva linear e
progressiva da via racional e metódica para operar dentro de uma perspectiva reticular,
isto é, a rede interativa que pode ser potencializada pela hipermídia, na qual todos os
envolvidos são emissores e receptores ao mesmo tempo, em movimento
multidirecional.
O cineasta e fotógrafo Bororo, Paulo Kadojeba, em depoimento no ano de 20136
comenta sobre a importância do ritual fúnebre como um dos elementos mais centrais no
processo educativo e cultural dos Bororos, narrando como ele percebe o processo de
produção de conhecimento a partir da interação entre culturas e estatutos
epistemológicos distintos e as dificuldades que ocorrem no transcorrer deste processo.
Neste depoimento, Kadojeba evoca a metáfora do espelho. Enquanto Bororo, nascido e
educado nesta cultura e ciente de sua importância, valores e informações transmitidas de
modo ritual, ele verifica que a introdução da hipermídia neste processo pode
potencializar e difundir a compreensão desses elementos a culturas alheias, e justifica
isso comentando sobre a sua redescoberta desses mesmos elementos na medida em que
retoma a experiência vivencial a cada vez que se observa participante desse processo,
como num espelho, redescobrindo e percebendo novos elementos que ali já estavam e
lhe escaparam da percepção em momentos anteriores, percepção esta que ocorre sob
outros ângulos, diversos dos quais esteve envolvido nas vezes anteriores. Verifica
também que a introdução da hipermídia como ferramenta de registro comandada por
Quando o índio filma a sua cultura, o vídeo é um espelho – disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=rpCUsH8th0g&t=17s Acesso em abr 2021.
6
375
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376
alguém de dentro protege tais elementos da especulação que decorre da postura
racionalista, quando eles se tornam objeto da observação que ocorre a partir, por
exemplo, do jornalismo convencional. Em seu trabalho Kadojeba percebe o reforço das
identidades e valores de sua cultura, enriquecendo sua própria compreensão dos
mesmos. Percebe Kadojeba que tal efeito transcende sua aplicabilidade na cultura
Bororo, e desde então vem estendendo este trabalho para outras culturas indígenas,
como os Kalapalo e Kuikuro.
Em dezembro de 2012 na Universidade de São Paulo, reuniram-se professores
junto com diversas entidades e organizações que percebem na tradição oral um caminho
para a pesquisa e difusão no patrimônio imaterial da cultura brasileira, ocorreu um
grande evento7, o Curso de Pedagogia Griô e Produção Partilhada do Conhecimento
onde, entre os vários grupos da tradição oral presentes, estiveram representados os
Karajás, Xavantes e Bororos. Na ocasião, entre diversas trocas e informações, um fato
chamou a atenção: Xavantes e Karajás tradicionalmente eram etnias inimigas, em
constante estado de guerra; no entanto, a interação promovida pela rede ali estabelecida,
em colaboração com os recursos apropriados pela diversidade imensa ali presente,
imediatamente anulou tal disposição e o processo que começou a partir de então
desencadeou uma reconstrução cultural ressalvando a importância da união dos povos
indígenas pela sua própria sobrevivência e a troca mútua da riqueza cultural e
emocional que surgiu daquela nova perspectiva relacional que superou a disposição
hostil.
Entre os anos de 2010 e 2012 o prof. Dr. Caio Lazaneo, com a contribuição de
Paulo Kadojeba, desenvolveu uma pesquisa sobre o uso da hipermídia na construção
partilhada do conhecimento em duas aldeias indígenas, a Sangradouro, Xavante, e a
Fontoura, Karajá, localizadas no Estado do Mato Grosso. Além da presença in loco do
pesquisador, a pesquisa também compreendeu momentos nos quais representantes das
duas etnias se fizeram presentes em atividades ocorridas na Universidade de São Paulo,
protagonizando várias delas.
Na ocasião, percebeu-se a confirmação daquilo o que Hans-Georg Gadamer
(1997) afirmava como proposta de se colocar no lugar do outro como exigência
7
Vídeo descritivo do evento, com depoimentos e descrições
https://www.youtube.com/watch?v=_Z7hN4dGWGo Acesso em abr 2021.
está
disponível
em:
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hermenêutica para entendê-lo, conhecê-lo no seio do diálogo, obtendo uma ideia clara
de sua posição e horizonte. Descrevendo aquele momento, Caio Lazaneo (2012) fala da
relação do indígena com a sua imagem, narrando um momento no qual uma criança se
recusou a ser filmada, temendo que sua imagem fosse roubada e, outro momento no
qual uma senhora que pintava o marido demonstrou entusiasmo com a imortalização da
sua imagem pela filmagem. Tais perspectivas levam à reflexão de como os indígenas
são envolvidos no processo: de um lado, uma postura “política” pelo temor do roubo de
sua imagem, e de outro lado, uma postura oposta de uma mítica imortalização da
imagem, suscitando um caminho científico sobre como caminham de forma interativa
tais perspectivas na experiência estética sobre o uso da imagem, comprovando a
importância da sensibilidade no processo de produção partilhada do conhecimento. Em
diferentes momentos de suas vidas, a criança e o adulto se encontravam num momentum
distinto, em que a história rememorada concede o tom da reação emotiva dentro do
processo de interatividade. O Xavante que protagonizava tal captura hipermidiática das
imagens, Divino Tserewuahú, constata que é impossível produzir tal documentação fora
da perspectiva comunitária dos membros da aldeia dispostos a colaborar com o
processo, sem a presença viva da comunidade no momento da concepção e
desenvolvimento da obra, ressaltando que as contribuições mais valiosas seriam as dos
mais velhos.
Paul Ricoeur (2007) fala sobre a importância dessa reflexividade descrita por
Caio Lazaneo, quando ressalta a importância da espacialidade corporal e ambiental na
evocação da lembrança. Memória compartilhada remete à memória coletiva, a qual
aparece ligada ao lugar consagrado pela tradição, um lugar de memória.
Outra descrição importante de Caio Lazaneo foi a da produção do filme dirigido
por Paulo Kadojeba, A Grande Tradição Bororo (2007)8 que contou com a colaboração
de Divino Tserewahú, responsável pela montagem do mesmo; até então nada de
extraordinário, exceto pelo fato de que a etnia de Divino Tserewahú, Xavante, mantinha
tradicionalmente relações hostis não só com os Karajás, mas também com os Bororos, e
Divino Tserewahú, Xavante, mantinha tradicionalmente relações hostis não só com os
Karajás, mas também com os Bororos, e Tserewahú exibiu o filme na aldeia Xavante
Sangradouro. O fato demonstra como a hipermídia potencializou o processo de
8
O filme está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iDGEjvx9YkM Acesso em: abr 2021.
377
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produção partilhada de conhecimento e, ampliando a rede colaborativa, contribuiu para
o processo de comunhão com os sentimentos e sensações dos Bororos em seu ritual
fúnebre – objeto central do filme – com uma etnia que até então os hostilizava, o que
abre caminho para a conscientização da importância da união dos povos indígenas, bem
como para o enriquecimento multidirecional da produção de conhecimento.
Junto aos Karajás, Caio Lazaneo (2012) fala também do processo de como
acompanhou o ritual de passagem para a vida adulta dos Karajás, o Hetohokã. Entre os
vários momentos do ritual, que compreende os preparativos e coleta de material na
natureza, Lazaneo chama a atenção para o momento da extração do cipó sagrado
Hatiryri, ao longo do rio Araguaia, na região do município de São Félix do Araguaia MT. Acompanhando três Karajás responsáveis pela coleta do cipó, seguiram numa
embarcação pelo rio, contando com a apurada visão dos índios que conseguiam
identificar à distância a presença do cipó. Dado momento, Caio Lazaneo lhes indaga
sobre a beleza de uma árvore, e eles responderam que se tratava da morada do espírito
do camaleão, uma vez que por algum motivo era comum a concentração desses animais
naquela árvore. Mais adiante, no momento da coleta dos cipós, verificou que os jovens
“encarnavam” o espírito da raposa, a qual se incomodava com o macaco. A
interatividade entre o pesquisador e os indígenas representava um processo onde a
hermenêutica da linguagem que surgia permitiu a Caio Lazaneo compreender o
profundo sentido de compreensão dos elementos da cultura Karajá e sua importância na
construção do conhecimento de características holísticas, naquele momento único que
envolveu o pesquisador e os jovens indígenas num processo indispensável para a
construção de verdades que jamais poderiam ser percebidas numa visão unilateral se
aplicados procedimentos metódicos da ciência racionalista.
REDES COLABORATIVAS E A RECONSTRUÇÃO CIENTÍFICA
Uma rede colaborativa que proporciona a interação entre diferentes grupos
culturais com diferentes estatutos epistemológicos não raro leva a surpreendentes
resultados no desvelamento dos limites da ciência racional. Quando a universidade se
encontra com a tradição oral surgem questionamentos que levam à reflexão sobre a
necessidade da reconstrução dos paradigmas.
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O ISA – Instituto Socioambiental, é uma organização da sociedade civil
brasileira sem fins lucrativos, fundada no ano de 1994 com o objetivo de propor
soluções de forma integrada a questões que relacionam sociedade e meio ambiente,
buscando a defesa de bens e direitos sociais coletivos e difusos, calcados em valores dos
direitos humanos, defesa do patrimônio cultural e dos povos. Com sedes em várias
localidades brasileiras, o ISA constitui junto às comunidades assistidas, colaboradores e
instituições uma grande rede colaborativa na execução destes objetivos.
No ano de 2017, o ISA publicou um dossiê em dois volumes, no qual abordou o
sistema agrícola tradicional do Vale do Ribeira, uma região de quilombos situada entre
os Estados de São Paulo e Paraná. O principal objetivo desse dossiê, juntamente com
uma documentação em hipermídia de uma grande pesquisa desenvolvida na região, era
o de reivindicar junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN o registro oficial do reconhecimento desse sistema agrícola quilombola como
patrimônio cultural do Brasil. Mais que mera formalidade de valor unicamente moral e
histórico, este registro protegeria as comunidades de ataques dos interesses econômicos
na região, garantindo a posse de terra, e com ela a preservação socioambiental. Para
tanto, a documentação era burocraticamente necessária.
Antes se torna necessário esclarecer o conceito de quilombo. O senso comum
associa o termo quilombo ao período colonial do Brasil, quando então africanos
escravizados se rebelavam e fundavam núcleos de resistência, com destaque para o líder
Zumbi e o Quilombo dos Palmares. Decorrente deste equívoco, não raro quilombo é
compreendido como um fenômeno histórico localizado que desapareceu com a
abolição. No entanto, em seu sentido essencial, quilombo refere-se ao local onde os
afrodescendentes compartilham seus sentimentos e cultura, espaço e tempo, a identidade
em nível da alma, expressão coletiva da partilha na diáspora africana, onde a memória
pode se fazer presente de modo consciente ou inconsciente, nas narrativas míticas,
música, dança, arte, religião, rituais. Mais que um espaço físico, o quilombo tem uma
dimensão simbólica. Um quilombo pode ocorrer tanto em áreas rurais quanto urbanas.
Assim, um núcleo de cultos de matriz afro, uma escola de samba, um núcleo
379
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comunitário do Jongo9, da Congada, do Moçambique10, todas estas expressões podem
ser chamadas de quilombo.
Uma das características mais básicas de um quilombo é o seu comunitarismo.
Nele ocorre a comunhão material e cultural, presente do cotidiano dos afrodescendentes
que dele participam em processos efetivos de produtividade cultural, econômica,
religiosa, artística, entre outras.
A área do Vale do Ribeira abordada pelo ISA compreende cerca 28.300
quilômetros quadrados, dentro da qual foram localizadas 66 comunidades quilombolas,
segundo o dossiê elaborado.
Cerca de 21% da Mata Atlântica remanescente encontra-se no Vale do Ribeira.
Segundo este dossiê, organizado por Raquel Pasinato (2017), o biólogo Helbert
Prado constatou nos quilombolas um vasto conhecimento de flora e fauna locais, e
trabalham no rudimentar sistema de roças, isto é, agricultura itinerante com base em
revezamento da área cultivada entre o pousio – período sem cultivo para recuperação da
fertilidade do solo, e área ativa, sistema chamado pelos quilombolas de coivara. Este
sistema é, segundo os cânones científicos racionais, considerado arcaico e agressivo
para com o solo, garantindo baixa expectativa produtiva, empobrecendo o solo com o
uso da queimada para realizar a limpeza dos campos de plantio.
No seu trabalho, Helbert Prado baseou-se no modelo Ingold conforme informa
Raquel Pasinato (2017) que consiste em considerar que o processo de aquisição do
conhecimento ambiental não é fruto de códigos pré-experienciais adquiridos por
transmissão social (incluindo formação acadêmica), mas adquirido pela vivência
humana no ambiente em perspectiva, seja ecológica, seja fenomenológica quando
ocorre em sociedades pré-industriais, como é o caso dos quilombos.
Nesta empreita, Helbert Prado nos registros de Raquel Pasinato (2017)
surpreendeu-se com o vasto conjunto de informações, práticas e conhecimentos
desenvolvidos pelos quilombolas em vários aspectos ambientais, com prevalência
indiscutível do conhecimento dos quilombolas sobre as informações acadêmicas. Por
9
Expressão cultural de origem bantu, o jongo, também chamado de caxambu, consiste em rodas de
dança acompanhadas de batuque que ocorrem de forma concomitante a festejos católicos.
10
Dança que expressa o sincretismo religioso afrocatólico, que ocorre concomitante a festejos católicos
como a Festa do Divino, onde os participantes, vestidos de branco, praticam um cortejo em louvor a São
Benedito.
380
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exemplo, os quilombolas tinham conhecimento sobre várias espécies animais e vegetais
ainda não catalogadas, bem como seu ciclo de reprodução, condições exigidas para a
preservação do ecossistema, hábitos alimentares dos animais e práticas de cultivo que
observavam rigorosamente tais ciclos e características para a preservação de espécies
vegetais para que não se quebrasse a cadeia alimentar. Além disso, o biólogo observou
que, a prática da queimada, ao contrário daquilo o que é prescrito na ciência racional –
uma prática destrutiva, empobrecedora do solo e agressiva para com espécies animais e
vegetais do ecossistema – ocorria segundo rigorosas técnicas que reuniam informações
sobre época do ano, condições climáticas, medidas e precauções corretas que garantiam
não só as necessidades do sistema de cultivo, mas também a preservação ambiental,
ocorrendo a combustão em níveis superficiais e funcionavam como processo de
fertilização do solo a partir das cinzas, bem como o combate de pragas.
No entanto, esta rede interativa estabelecida entre os pesquisadores do ISA com
os quilombolas não se circunscreveu à mera observação. O ISA foi além, buscando a
compreensão dos processos de formação de tais elementos culturais que, muito além do
sistema agrícola, dispunham-se em toda uma cadeia de eventos sociais e processos
interativos comunitários nos quais imergiram para que pudessem obter a compreensão
dos mesmos.
O processo socio-comunitário dos quilombolas é organizado em torno do
processo agrícola, e tem um formato de mutirão, por eles também chamado de
“puxirão”. Pode ocorrer sob variados formatos, conforme o número de pessoas
envolvidas, e obedece a regras básicas, por exemplo, a observância do calendário lunar
para as etapas de ceifagem, colheita, entre outros. Isto faz com que os membros da
comunidade ajam de forma cooperativa para que se obtenha resultados satisfatórios em
tempo hábil. Tal cooperação é sujeita a formatos de compensação que seguem uma
linha de escambo, isto é, trocas. Ocorre de forma ritualística baseada em dois momentos
principais: o trabalho durante o dia e o festejo durante a noite. Duas etapas são básicas:
um mutirão ocorre na necessidade da “roçada”, que é a preparação da terra para o
plantio, e outro na colheita.
Cada mutirão possui um “dono”, isto é, a família beneficiada pelo trabalho, que
se responsabiliza pela oferta e organização do festejo. Os trabalhos tem início pela
manhã, por volta das seis horas, quando o dono do mutirão oferece o desjejum. No
381
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intervalo que vai de meia a uma hora posterior ao início do desjejum, as pessoas se
dirigem ao campo, dividindo-o em quadrantes demarcados por cordas estendidas,
demarcando a parte do terreno da qual cada um é responsável pela execução do
trabalho. Por volta das doze horas as mulheres, encarregadas da refeição, dirigem-se ao
local de trabalho com grandes panelas, servindo o almoço que é composto basicamente
de tubérculos e legumes, acompanhados de carne de porco ou galinha.
O trabalho no campo encerra por volta das dezessete horas, quando então as
pessoas retornam a seus lares para banhar-se e vestir-se para o festejo, que tem início ao
anoitecer, e só acaba com o almoço no dia seguinte. Os músicos da comunidade tem
participação optativa nos trabalhos na terra, já que sua função é a de animadores do
festejo.
Em verdade, a prática do mutirão, que reunia entre 25 e 100 pessoas, encontra-se
em decadência e ocorre esporadicamente, havendo hoje algumas versões mais sumárias,
como a reunida, a pojuva ou poiuva, a troca de dia e o compadrio, as quais diferem
basicamente apenas no contingente de pessoas envolvidas, salvo a troca de dia que
trabalha com pagamento por empreitada aos envolvidos.
Nestes eventos, a troca e transmissão oral e prática de conhecimentos e técnicas
agrícolas é intensa, partindo obviamente dos mais velhos aos mais jovens; de igual
forma, as mulheres que trabalham na alimentação praticam a mesma interação no
tocante às práticas culinárias. A confecção de instrumentos agrícolas, cestos, utensílios
artesanais, peneiras, artefatos de madeira e palha, beneficiamento de produtos como
arroz, cana-de-açúcar, milho, mandioca entre outros, bem como os pratos típicos
cercados de explicações mitológicas ocorre de forma intensa durante o processo,
altamente dialogado, onde a ancestralidade, valores, crenças, práticas religiosas (uma
das principais motivações dos festejos) e outros elementos identitários e culturais é
transmitido. É neste momento em que a simbologia, as lendas, os episódios históricos,
as cantigas e poesia, rituais religiosos são transmitidos, havendo especial trato para com
as crianças, atendidas à parte.
A introdução pelo ISA do recurso das rodas de conversa representou o
estabelecimento de uma prática comunitária colaborativa que aproximou os
pesquisadores da comunidade. Dessa aproximação ocorreu a produção documental que
se deu principalmente a partir da hipermídia, com a produção de uma série de três
382
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vídeos11 que proporcionassem ao interlocutor a perspectiva interativa entre sensações,
sentimentos e compreensão de sentido dos processos culturais, valores e significados
que tinham como eixo o sistema agrícola tradicional do Vale do Ribeira, que não
ocorria num lugar qualquer, mas na realidade de um quilombo, a qual não tinha uma
proposta simples de preservação saudosista de tempos áureos, mas a proposta de uma
nova forma de se abordar a questão ambiental abrangente e holística com contribuições
sociais, culturais, econômicas e científicas, entre outras perspectivas.
Enfim, esta interação proporcionou, após certa resistência do IPHAN, o
reconhecimento definitivo e a obtenção do título de Patrimônio Cultural do Brasil ao
Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira em
setembro de 2018.
CONCLUSÕES
Caio Lazaneo (2012) apresenta uma reflexão sobre a importância da
interatividade que ocorre em rede colaborativa na produção partilhada do conhecimento
ao narrar suas sensações diante do fato de que, na sua atuação de pesquisador, ele
buscou estar presente nos ambientes, locais e momentos nos quais os indígenas
exerciam sua ação existencial no seio de sua cultura, com eles interagindo, e em
contrapartida, noutro momento, os indígenas estavam a seu lado dentro do ambiente
universitário. O tempo todo, em torno da produção hipermidiática, diferentes etnias
indígenas com diferentes culturas interagiam entre si, compartilhando diferentes
concepções de saber a partir do estatuto epistemológico da oralidade, e ao mesmo tempo
envolviam o pesquisador universitário, interagindo com os recursos proporcionados
pela sua racionalidade. Um encontro colaborativo de interlocutores em rede na relação
entre universidade e comunidade. Nesta reflexão, Caio Lazaneo (2012) recorda das
conversas que teve junto a indígenas em nas aldeias que visitou. Diziam que já tinham
recebido a visita de outros pesquisadores que sequer retornaram o resultado de suas
pesquisas. O cartesianismo do método prevalecia então sobre o dialogismo do método o
11
Vídeos
disponíveis
em:
https://www.youtube.com/watch?v=0B0ydEoqJ8E
;
https://www.youtube.com/watch?v=sQhGq1ZkXiQ ; https://www.youtube.com/watch?v=J6nMulSoBvw
Acesso em abr 2021.
383
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qual ele buscava cultivar naquele momento. Não era o “eu” que estava conhecendo.
Eram vários “eus” que construíam juntos o conhecimento.
No tocante ao esforço do ISA em aprovar a titulação de Patrimônio Cultural do
Brasil para o Sistema Agrícola Quilombola do Vale do Ribeira junto ao IPHAN, a
resistência que provinha desse órgão residia no fato de que a documentação apresentada
não supria as exigências informativas segundo a normatividade do processo; no entanto,
a posição dos quilombolas frente a esta resistência foi a de insistir que o recurso
hipermidiático dos filmes era o suficiente para promover de forma documental todos os
atributos para que seus sistema agrícola pudesse ser entendido, legitimado e oficializado
como patrimônio cultural, obtendo sucesso.
Em ambos os exemplos pudemos observar elementos em comum: o encontro da
universidade com a tradição oral; o uso da hipermídia, o rompimento com uma
normatividade unilateral e enfim uma ruptura de paradigmas epistemológicos. E
também em ambos os casos, a condição de ordem efetiva para que tal processo
acontecesse foi o estabelecimento de uma rede cultural colaborativa. Desses encontros
novas perspectivas epistemológicas surgem, e com elas novas possibilidades de
conhecimento.
O liame hipermidiático no qual se ampara a constituição de uma hermenêutica
permita a ocorrência de processos de compreensão mútua, a qual ocorre entre diferentes
estatutos epistemológicos, gerando uma partilha de sentidos e múltiplas possibilidades
de conhecimento. Isso remete à reflexão desenvolvida por Peter Sloterdijk (1999) sobre
a antropotécnica promovendo profundas comutações no homem, não só em nível
cultural, mas também em nível biológico propriamente dito.
A ocorrência dos fatos e fenômenos descritos e analisados no presente texto
pode servir de advertência à sociedade de como o sistema educacional, imerso entre as
demandas econômicas e orientado pela racionalidade da ciência moderna, leva as
gerações à alienação sobre o real significado da história e da cultura ancestral, recaindo
em efêmeras relações virtuais, estabelece relações de poder calcadas na distribuição
desigual do conhecimento.
384
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
REFERÊNCIAS
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1517-6975, Harvard Low School – Cambridge – 2000. pp. 57-62.
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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 2005.
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. São Paulo: Ed. UNESP, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
LAZANEO, Caio. Produção Partilhada do Conhecimento: uma experiência com as
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PASINATO, Raquel. (org.) Dossiê Sistema Agrícola Tradicional do Vale do Ribeira.
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SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano. São Paulo: Estação Liberdade,
1999.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
CAMINHOS MUSICADOS DA RESISTÊNCIA: BRASIL E URUGUAI (19671973)
Bruno Henrique Bezerra Silva1
INTRODUÇÃO
Esse trabalho analisa os movimentos de repressão cultural das ditaduras da
América do Sul e seus mecanismos de censura à compositores de música popular, no
Brasil e no Uruguai, no período de 1967 a 1973. Nesse recorte, o Brasil passa pelo
endurecimento do Regime Militar, vigente desde o golpe de 1964. Os episódios
analisados acontecem, sobretudo, à beira do governo de Emílio Garrastazu Médici
(1969-1974) e, suas consequências, dentro desse contexto. No Uruguai, por outro lado,
esse período culmina exatamente no golpe de Estado, no dia 27 de junho de 1973.
Apesar de ser um governo ainda considerado democrático, temos um período de forte
repressão já cinco anos antes da efetivação do golpe militar, e é o período que abarca os
principais momentos abordados.
O trabalho não tem como objetivo analisar, de fato, os aspectos políticos dos
governos militares e os movimentos de repressão de forma mais ampla, mas sim como
esses movimentos afetam as representações culturais do período, neste caso, a música
popular.
Neste contexto, a repressão tem duas facetas. A primeira é a censura às letras,
que abarca uma grande série de compositores e intérpretes, quando considerados
subversivos e agitadores de massas. Além disso, serve de linha regulatória, para que não
haja casos extremos onde é necessário aplicar força além do considerado normal. A
segunda faceta, quando a primeira se mostra ineficaz, é a prisão de compositores e
intelectuais que, em alguns casos, são, inclusive, vítimas de tortura. Neste trabalho,
analisamos a obra de alguns artistas brasileiros e uruguaios com histórico de atrito com
seus respectivos governos. São eles Caetano Veloso e Gilberto Gil, os dois artistas
considerados fundadores do movimento tropicalista no Brasil e, no Uruguai, Daniel
Viglietti, músico e radialista, representante do movimento posteriormente denominado
Canto Popular Uruguaio. Nesse mesmo grupo havia simpatizantes do Movimento de
1
Licenciado em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E- mail: bhbs2008@gmail.com
386
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Libertação Nacional – Tupamaros, como Aníbal Sampayo, que ficou preso em Libertad,
localizada a 50 km de Montevidéu, por 7 anos, proibido de cantar ou tocar qualquer
instrumento durante este período (AGUIAR, 2010).
O estudo desses movimentos e de seus expoentes nos auxiliará no entendimento
das semelhanças entre um regime ditatorial já operante e em pleno processo de
‘endurecimento’, como foi o cenário brasileiro, e uma democracia desenvolvendo
aspectos autoritários, caso do Uruguai, através da discordância dos governos com a
forma como se expressam seus respectivos artistas. Mesmo não sendo ambas
consideradas ditaduras dentro do nosso recorte, claramente as práticas repressivas são
semelhantes e ambos são governos conservadores e autoritários.
REPRESSÕES E CERCEAMENTOS
Durante os anos de 1960, o Brasil sofreu com forte polarização dos setores de
articulação política e uma discussão ideológica precária.
Com a queda do presidente João Goulart, os militares tomaram o poder.
Uma teoria, já bastante disseminada, com interpretações de historiadores como Angela
de Castro Gomes e Jorge Luis Ferreira, sugere que o golpe já se articulava há 10 anos,
ainda no Governo Vargas, e o seu suicídio teria sido, dentre outros fatores, um grande
elemento de atraso para o golpe imediato. Goulart e Leonel Brizola, à época
Governador do Rio Grande do Sul, eram bastiões dos direitos sociais na década de
1960, e a ideia de realizar uma reforma agrária era suficiente para convencer parte da
população de que um golpe comunista estava sendo arquitetado.
Instaurado o Governo Militar dito provisório, algumas manifestações
aconteciam contra a tendência antidemocrática. Uma dessas manifestações eram os
CPC, Centros Populares de Cultura, onde universitários criaram conteúdo artístico
politizado para a juventude dos grandes centros urbanos. No CPC da Bahia, por
exemplo, trabalharam juntos Tom Zé e Capinam, que mais tarde trabalhariam juntos no
disco Tropicalia ou Panis Et Circencis. Assim como eles, diversos outros artistas
importantes emergiram nesse momento. No mesmo período surgiram os grandes
festivais de música popular brasileira nas emissoras de TV Excelsior, Record e Globo,
onde se reuniram grandes nomes da música brasileira como Vinicius de Moraes, Elis
387
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Roberto Carlos e os fundadores do
tropicalismo, Caetano Veloso e Gilberto Gil. O Festival de Música Popular Brasileira de
1967 da TV Record é o momento em que o movimento musical é apresentado ao
público nas canções Alegria, Alegria e Domingo no Parque, de Caetano e Gil,
respectivamente, sendo os primeiros a apresentarem-se em um festival com o
acompanhamento de guitarras elétricas, não tocadas pelos compositores, mas por suas
bandas de apoio. Caetano foi acompanhado pela banda de argentinos Beat Boys, que
tocavam “iê-iê-iê” em São Paulo; e Gil foi acompanhado pela banda paulista Os
Mutantes. Ambos, ainda de forma contida, vestindo terno (o de Caetano colorido) e
tocando violão (no caso de Gilberto Gil), mas que causaram uma alvoroçada reação na
plateia, dos fãs dos “emepebistas” mais apegados ao movimento de música popular
representado por Geraldo Vandré, Elis Regina, Jair Rodrigues, Vinicius de Moraes,
Baden Powell e até mesmo Nara Leão, com composições de cunho nacionalista,
enaltecendo a cultura tradicional brasileira. O nome Tropicália, que se tornou, mais
tarde, o título de uma canção de Caetano, escrita antes da nomeação do movimento, foi
inspirada em uma instalação de Hélio Oiticica, de mesmo nome, cujo artista define
como uma nova “posição diante das coisas. Uma posição estética”. Essa definição
também pode ser aplicada aos conceitos do movimento tropicalista, que trazia
referências da antropofagia de Oswald de Andrade e da poesia concreta dos irmãos
Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, simpatizantes e, mais que isso,
defensores do movimento dos baianos.
Se a repressão se instaurou no Brasil num crescente através dos Atos
Institucionais, a situação não era mais favorável no vizinho do Sul. Segundo o
historiador José Fabiano Gregory Cardozo de Aguiar, em sua dissertação de mestrado
sobre Daniel Viglietti:
No Uruguai, o ano de 1968 foi importante também – Viglietti chama
esta etapa de luta política de “Período Tupamaro” pelas ações do MLN
– Tupamaros que se tornavam mais frequentes e notórios. Entretanto, o
movimento estudantil também participava das lutas políticas e se
opunha fortemente ao governo Pacheco Areco e a escalada autoritária
no País. Viglietti, por suas canções e posições, começava a ser visado
pelo governo. Com o governo Pacheco Areco, a censura aos meios de
comunicação começou a ser sistematicamente utilizada. Ocorreu o
fechamento de periódicos, a censura a programas de rádio e televisão, a
limitação ao trabalho de jornalistas, comunicadores, locutores. Refletiu
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
também no campo específico da cultura. Teatro, cinema, artes e música
também sofriam direta ou indiretamente com o autoritarismo estatal. No
cenário musical, os cantores, principalmente aqueles vinculados ao
movimento de produção da música popular de propuesta, começavam a
sofrer restrições a seu trabalho e atuação no final da década de 1960
(AGUIAR, 2010, p. 116-117).
O Uruguai passou a sofrer um processo de cerceamento de direitos, como no
Brasil, em meados da década de 1960, que ficou conhecido como Pachecato no país
(PADRÓS, 2005), nome derivado de seu governante, Pacheco Areco, que assumiu a
presidência do Uruguai após a morte do presidente eleito Óscar Diego Gestido, fato que
representou o início do cerceamento de direitos, cujo auge foi o golpe de Estado em
1973. Os governos de Pacheco Areco (1968-1971) e Juan María Bordaberry (19721973) inauguraram essa tendência coercitiva. Em um artigo, José Fabiano Gregory
Cardozo de Aguiar enumera os direitos reprimidos pelas administrações conservadoras
do Estado uruguaio:
A proscrição de partidos políticos, a desarticulação dos sindicatos e a
repressão aos movimentos estudantis, a censura aos meios de
comunicação, o controle sobre a organizações sociais em diversos
âmbitos, já apontavam para a exclusão de amplos setores sociais dos
canais tradicionais de participação políticas e indicavam o
“deslizamento” ao autoritarismo. A ampliação dos “ajustes” restritivos
sobre a sociedade civil foi realizada para destruir a guerrilha e barrar os
movimentos sociais. Também foi usada para proscrever partidos
políticos, desarticular o movimento estudantil e a organização dos
trabalhadores. Nos meios de comunicação fechou periódicos, vários
deles de organizações e partidos políticos de esquerda; censurou
programas de rádio e TV (AGUIAR, 2008, p. 2).
Concomitantemente à tal repressão, estabeleceu-se um novo estilo, ou um
grupo, musical no Uruguai, de caráter bastante contestador, que deixou como legado as
músicas de Aníbal Sampayo, Alfredo Zitarroza, Daniel Viglietti, Los Olimareños e
Nuno Moraes, entre outros. Seu estilo era uma mescla entre a música erudita e a
popular, resgatando uma raiz folclórica nas composições que muito agradou seu público
e nem tanto a seus governantes. Daniel Viglietti, além de músico, era, também,
radialista do Servicio Oficial de Difusión, Radiotelevisión y Espectáculos, e suas
opiniões lhe custaram seu emprego, suas apresentações e sua permanência no país,
tendo que se exilar na França quando do golpe militar.
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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
AS MENSAGENS MUSICAIS CERCEADAS
Caetano Veloso
Tropicália
A letra de Tropicália é analisada por Celso Favaretto no livro Tropicália:
Alegoria, Alegria. Ele exalta o aspecto cinematográfico do início da música que
“delimita uma ‘moldura’”(FAVARETTO, 2000, p. 69) e cria uma imagem da tensão
gerada pela ditadura no Brasil:
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Esta música, assim como Alegria, Alegria, traz diversas referências da
cultura popular e internacional, muito ligada a uma concepção cinematográfica
hollywoodiana. É também a faixa onde a leveza e o peso estão presentes e dialogando.
Favaretto divide essa letra em blocos estróficos e quadras. No segundo
bloco estrófico, ele destaca as concepções de moderno e arcaico se confrontando na
música passando pela “paródia do nacionalismo sentimental” (FAVARETTO, 2000, p.
73):
É uma paródia potencializada, pois parodia também as referências
literárias: o Catulo da Paixão Cearense de Luar do Sertão, os estilemas
românticos – olhos verdes, cabeleiras negras – de José de Alencar e
Gonçalves Dias (FAVARETTO, 2000, pp. 73-74).
Este comentário se refere ao seguinte trecho:
“o monumento é de papel crepon e prata
os olhos verdes da mulata
a cabeleira esconde atrás da verde mata
o luar do sertão
o monumento não tem porta
a entrada é uma rua antiga estreita e torta
e no joelho uma criança sorridente feia e morta
390
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
estende a mão
viva a mata-ta-ta
viva a mulata-ta-ta”
Também, sobre o aspecto da construção dos monumentos modernos brasileiros,
ele escreve que o primeiro verso desta quadra denota o “artificialismo de Brasília”
(FAVARETTO, 2000, p. 74) e que essa imagem explicitada tem a função de contrapor
o arcadismo. Afirma ainda que o “choque do arcaico e do moderno se intensifica com o
efeito paradoxal de abertura-fechamento do monumento – a entrada é fechada, ou nem
existe – e com a antítese sorridente-feia e morta” (FAVARETTO, 2000, p. 74).
Ainda segundo Favaretto, na segunda quadra do terceiro bloco estrófico,
Caetano faz uma analogia que remete ao aspecto ideológico da conjuntura nacional,
sendo a direita representada por uma mão e a esquerda por um pulso. Representando a
direita, uma analogia com uma velha cantiga:
Caetano parte de uma cantiga de roda – “na mão direita tem uma
roseira/ na mão direita tem uma roseira/ que dá flor na primavera” por
“autenticando a eterna primavera”. Desmonta-se aqui o caráter mítico
da direita, que manipula signos da natureza para validar a sua pretensa
universalidade. No deslizamento do significante “direita” para “eterna”,
indicia-se a ideologia que funciona como mito primaveril e brincadeira
inocente. Mas o violento contraponto crítico, longo e nordestino, do
verso seguinte, recoloca o sinistro: o urubu surrealista passeia nos
jardins sempre à espera do que sobra; o mau agouro paira sobre a
aparência de naturalidade, num movimento de carnavalização [...]
(FAVARETTO, 2000, pp. 75-76).
Para a caracterização da esquerda, Caetano usou como analogia o antigo
faroeste, interessantemente lhe atribuindo uma figura do imaginário coletivo
estadunidense, culturalmente abolido pelas próprias esquerdas brasileiras, mas com um
“sentimento nacionalista” que traz uma “alusão ao populismo, inclusive se associada à
famosa sequência de Terra em Transe, em que o senador populista, velho e retórico, cai
no samba, no meio do comício” (FAVARETTO, 2000, p. 76).
É Proibido Proibir
Na música É proibido proibir, apresentada ao grande público durante o III FIC,
no TUCA, em São Paulo, Caetano, por influência do empresário Guilherme Araújo, que
391
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
havia visto a frase pixada em um muro na França nas manifestações de maio de 1968
(CALADO, 2010), escreveu uma letra simples, mas de refrão bastante marcante, em que
a frase-título era entoada repetidas vezes. A música em si não causava nada de especial
em Caetano para que ele a inscrevesse no Festival, não fosse a insistência do
empresário. A saída encontrada para tornar a música mais interessante foi transformá-la
em uma performance. A apresentação, bastante mais extravagante que a de Alegria,
Alegria, foi performada com acompanhamento d’Os Mutantes, que também estavam
participando, em separado, com a música Caminhante Noturno, no mesmo festival.
Caetano apresentou a música duas vezes, uma na eliminatória inicial e uma na
final Paulista do III FIC, ambas no TUCA, e a reação da plateia não foi amistosa em
nenhuma das duas apresentações. A segunda, inclusive, em que Caetano mal conseguiu
cantar a música, eternizou o seu discurso crítico para a plateia que foi, semanas mais
tarde, gravado em disco e distribuído. A plateia não se contentou em vaiar Caetano e Os
Mutantes e parte dos espectadores nas filas da frente deram as costas para o grupo. Logo
em seguida, em resposta à provocação, Os Mutantes também deram as costas para a
plateia, sem deixar de tocar. Caetano, com ódio da reação, a essa altura já acompanhado
de Gilberto Gil, desclassificado na eliminatória com a música Questão de Ordem,
acompanhado pelos Beat Boys, lança um discurso que critica a concepção de música
considerada genuinamente popular pelo público dos Festivais e suas aspirações
revolucionárias. A indignação de Caetano pode ser verificada no início do discurso:
Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês
têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que
vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma
juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que
morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada,
absolutamente nada (VELOSO, 1968).
Ainda é apontado por Veloso que a reação daqueles que se dizem a juventude
“que quer tomar o poder” se assemelha, e muito, com a daqueles que eles querem
combater, aqueles que reprimem a liberdade de expressão artística de resistência:
Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais
conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a
quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem?
Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não
diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso,
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viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido
a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês (VELOSO, 1968).
É também sugerido que não fosse a coragem do grupo baiano de trazer
referências e instrumentos estadunidenses, ninguém o faria e, uma vez que já haviam
feito as referências, já eram tomadas por outros artistas brasileiros que eram, inclusive,
aplaudidos pelo público do III FIC:
O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música
brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo
de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele
não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana.
Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim
aqui para acabar com isso! (VELOSO, 1968)
Essa gravação demonstra um posicionamento brasileiro perante o movimento da
contracultura, que contestava o sistema vigente e, principalmente nos Estados Unidos,
questionava a intervenção do exército americano no conflito do Vietnã.
Gilberto Gil
Procissão
Gilberto Gil, dentro da obra composta no período, pouco discorre sobre a
questão das esquerdas e do governo militar, se atentando à composição produzida
dentro e fora do Brasil. Porém, no período até o Festival da Record de 1967, Gil escreve
a música Procissão, que mescla as procissões nordestinas com a “esperança nas
passeatas”, como o compositor explica em Show realizado na Poli-USP em 1973. A
composição trabalha com duas perspectivas: a mais clara é a religiosa, com sua análise
do credo e da prática religiosa no sertão do Nordeste, que deixa seus fiéis suscetíveis a
diversos tipos de opressão de homens poderosos que têm em suas mãos o destino do
povo. A segunda é a perspectiva urbana, que relaciona a prática das procissões com as
passeatas que aconteciam por toda a década de 1960, contra o Regime Militar ou contra
o comunismo, personificado na figura do presidente João Goulart, como a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade, entre março e junho de 1964.
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
A faixa é lembrada no segundo volume do livro A Canção no Tempo: 85 Anos
de Músicas Brasileiras, onde Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello lembram que
essa música foi apresentada no programa ‘O Fino da Bossa’, comandado por Elis
Regina e Jair Rodrigues. Essa composição é, segundo o próprio Gilberto Gil
“Uma canção bem ao gosto do CPC, o Centro Popular de Cultura,
solidária a uma interpretação marxista da religião, vista como ópio do
povo e fator de alienação da realidade, segundo o materialismo
dialético” (RENNÓ, 1996, p. 56).
A composição foi feita para o espetáculo Arena Canta Zumbi, no grupo baiano
que deu origem ao grupo tropicalista, com Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa e Maria
Bethânia em 1965, como lembra Ramon Casas Vilarino em seu livro A MPB em
Movimento – música, festivais e censura. Segundo Vilarino, em Procissão
[...] Faz-se a crítica ao conformismo religioso. A figura divina tanto
pode ser espiritual como se materializar em líderes políticos, de corte
populista: “Muita gente se arvora a ser Deus e promete tanta coisa pro
sertão” (VILARINO, 2006, p. 55).
Essa ideia se materializa nos versos a seguir
“As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na terra
Esperando o que Jesus prometeu”
Gil, no mesmo show da POLI USP, em 1973, negou alguns pedidos de músicas,
caso de Ensaio Geral e, por pouco, não foi o caso de Procissão por já não acreditar nas
questões abordadas pelas músicas, como a esperança na vitória das manifestações
populares.
Outra especificidade desse show foi o fato de Gilberto Gil não ter cantado
nenhuma de suas composições em inglês, compostas em Londres. Isso pode ser uma
questão relacionada ao uso exclusivo de violão no show, mas também pode indicar que
Gilberto Gil não gostaria imprimir, nesse momento delicado, uma postura que pudesse
ser considerada subversiva ao mencionar o exílio.
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Daniel Viglietti
A Desalambrar
Daniel Viglietti foi censurado fortemente durante o período que precedeu o
golpe militar e dois episódios merecem atenção. Na noite de 30 de janeiro de 1969,
quando se apresentava no canal 5 de Montevideo, no programa MUSICANTO 69, ao
cantar a música “A Desalambrar” o programa teve sua transmissão interrompida. José
Fabiano Gregory Cardozo de Aguiar analisa a interrupção afim de entender a práxis da
censura no Uruguai, no período pré-ditadura. Segundo Aguiar,
“a ordem partiu de Rúben Rodriguez, diretor interino do canal 5 que era
também dependente da comissão do SODRE – Servicio Oficial de
Difusión Radiotelevisión y Espectáculos, vinculado ao Ministério de
Educação e Cultura – passou pelo diretor artístico do canal, Luis
Alberto Negro, chegando ao responsável pela programação do canal,
Alvaro Saraleguy, que retirou o programa do ar. Uma ordem que partiu
do cume diretivo da empresa, que por sua vez possuía vínculos com o
principal órgão estatal de difusão das atividades culturais no País.
Interessante que, indagado sobre os motivos da proibição, o presidente
diretivo do Canal 5 na época, Jorge Faget Figari, afirmou não conhecer
a música que causou a interrupção do programa, mas que no ato da
proibição estava cumprindo ordens superiores” (AGUIAR, 2010).
A música é a seguinte:
Yo pregunto a los presentes
Si no se han puesto a pensar
Que esta tierra es de nosotros
Y no del que tenga más.
Yo pregunto si em la tierra
Nunca habrá pensado usted
Que si las manos son nuestras
Es nuestro lo que no den.
A desalambrar, a desalambrar!
Que la tierra es nuestra,
Tuya y de aquel,
De Pedro y Maria,
De Juan y José.
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O segundo episódio aconteceu no mesmo ano, quando seu programa de rádio no
SODRE foi cancelado, considerado subversivo. A ordem também partiu do Ministério
de Educação e Cultura. A partir daí, muitos artistas passaram a ser perseguidos.
Representantes do Governo frequentavam os shows, em busca de membros e
simpatizantes do MLN – Tupamaros . (AGUIAR, 2010)
Cria-se um movimento, por parte do governo, de repúdio a essa música
denominada “antinacional, divisora da pátria, desestruturadora das bases da nação.”
Então, se constitui uma criminalização velada ao movimento musical mais politizado,
colocando os artistas como subversivos, cujo objetivo é transformar o tradicional e
clássico em algo vulgar e desconstruído. Ao mesmo tempo, dentro desse processo, se
iniciou um movimento de crítica ao estilo de vida que levavam esses artistas, o que
destoava da condição de seu público, as grandes massas. Esses movimentos de
cerceamento moral e de costumes foram a justificativa do Governo para que se
substituísse essa geração censurada e demonizada por uma que pudesse pensar o “Novo
Uruguai” a ser construído, abandonando o contexto subversivo e adotando uma postura
mais subserviente às vontades do Governo. Na nova safra encontramos o grupo Los
Nocheros, Jorge Villalba y los Boyeros, José Maria da Rosa, Carlos Lopéz Terra e Rubi
Castillo. Embora tenham feito relativo sucesso comercial, nenhum alcançou o carinho
das massas e foi assimilado pela população como a geração anterior, sendo facilmente
esquecido na história da música popular uruguaia.
Não havendo espaço para se apresentarem artisticamente no Uruguai, muitos
artistas buscaram trabalho fora do país, pedindo asilo. Esse movimento começou no
governo de Juan María Bordaberry, que sacramentou o golpe de Estado com apoio das
Forças Armadas uruguaias em 27 de junho de 1973.
Cruz de Luz (Camilo Torres)
A luta armada é um tema abordado com certa frequência por Viglietti em sua
discografia. Não é segredo a simpatia de muitos músicos da época pelos movimentos de
guerrilha armada. O próprio Aníbal Sampayo, músico importante do período, era
militante do MLN-Tupamaros. Viglietti, embora não fosse militante, fazia apologia à
insurreição pela luta armada em algumas de suas canções, como é o caso de Cruz de Luz
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(Camilo Torres), que também foi interpretada por Victor Jara, sendo esta a versão mais
famosa. Segue o trecho inicial:
Donde cayó Camilo nació una cruz,
pero no de madera sino de luz.
Lo mataron cuando iba por su fusil,
Camilo Torres muere para vivir.
Cuentan que tras la bala se oyó una voz.
Era Dios que gritaba: ¡Revolución!
Aguiar (2010) analisa a letra, que é homenagem a um “padre católico e
guerrilheiro colombiano vinculado ao ELN (Exército de Liberação Nacional) da
Colômbia, morreu em 1966 pelas forças armadas colombianas” (AGUIAR, 2010, p.
167). A criação da imagem de um “Cristo revolucionário” tem o objetivo de se buscar
apelo em um público ligado a práticas religiosas e que podem ter, no caso, apresentado
uma inspiração para a revolta.
Como acontece em muitas regiões da América Latina, é possível encontrar a
utilização de figuras como a de Camilo Torres como ferramenta de comoção popular
para que, além de homenagear os guerrilheiros mortos em combate, não haja
esquecimento sobre as baixas do processo ditatorial.
Solo digo compañeros
O uso de símbolos para traduzir aspectos políticos é próprio desse período e
espaço que emana a música popular que pretende unir música erudita e música
folclórica. As referências de Daniel Viglietti, sobretudo dentro de casa, permitem que
lhe seja quase orgânica essa fusão de estilos estéticos que entregam o que conhecemos
como Canción de Propuesta ou Canto Popular. Também é resultado do intercâmbio
cultural entre artistas dos diversos países da América Latina. O próprio Viglietti, além
de ser amigo de Violeta Parra, viajou antes do exílio para Cuba para gravar um disco
com canções de músicos cubanos e brasileiros. O disco Trópicos (2013) é uma
experiência de solidariedade musical entre artistas da América Latina que buscavam
resistir às ditaduras através da música. Na canção Solo digo compañeros, Viglietti
revisita o MLN-Tupamaros e seus guerrilheiros:
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“Escucha, yo vengo a cantar por aquellos que cayeron.
No digo nombre ni seña, sólo digo compañeros.
Y canto a los otros, a los que están vivos
y ponen la mira sobre el enemigo.
Ya no hay más secreto, mi canto es del viento,
yo elijo que sea todo movimiento.
No digo nombre ni seña, sólo digo compañeros.”
Ainda se encontra presente a intenção de perpetuar na memória nacional
os mortos pela ditadura e por um ideal de resistência e democracia. Aguiar (2010)
posiciona a letra, que é um clamor por reconhecimento popular dos guerrilheiros que
morreram na luta armada:
Nessa canção, fica clara a posição de Viglietti: apoio a guerrilha e a
revolução. Ao contrário de nomes, os que caíram, que ele prefere não
divulgar – e aqui se pode apenas deduzir que se tratava de um cuidado
do autor, provavelmente porque tinha conhecimento do
desaparecimento ou das mortes de muitos militantes, em uma época que
essas informações poderiam comprometer o próprio artista –, a sua
posição é bem clara. O autor canta que não faz segredo sobre isso, seu
canto é todo vento, todo movimiento – ou, quem sabe, Movimiento
Liberación Nacional. (AGUIAR, 2010).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o AI-5, em dezembro de 1968, muitos dos que ainda mantinham alguma
liberdade de expressão passaram a também ser perseguidos pelo regime no Brasil.
Caetano e Gil, foram mantidos presos durante 4 meses em prisões no Rio de
Janeiro e mais tarde em prisão domiciliar, em Salvador. Quando foram mandados para
Salvador, foram proibidos de dar qualquer entrevista, se apresentar publicamente ou
serem fotografados, para que a imagem dos dois, sem suas características cabeleiras,
não se espalhasse (TINHORÃO, 1998).
Solicitaram saída do país no ano seguinte. Antes de ir para Londres, eles
estiveram em Portugal, onde em uma emissora de televisão portuguesa no dia 04 de
agosto de 1969, Caetano alega ter chegado ao fim o movimento tropicalista.
No Uruguai, em 1972, Daniel Viglietti é preso e há uma grande campanha por
sua liberdade, com participação de intelectuais como Jean Paul Sartre e Júlio Cortázar.
Depois de liberto, se exila na Argentina.
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Em 1973, Viglietti é convidado para participar do festival Fête de L ́Humanité e
viaja da Argentina para a França. Durante sua estadia na Europa, o governo uruguaio
cancela seu passaporte e o proíbe de voltar para o Uruguai. Viglietti transforma sua
estada na França em exílio e só lhe é permitido voltar para o seu país de origem 11 anos
depois.
Através da discussão levantada com as músicas dos dois movimentos, – aqui
analisadas de forma mais específica, sem levar em conta a ampla discografia da época –,
e analisando os processos de repressão aos direitos civis no Brasil e no Uruguai na
época, podemos apontar uma tendência a um retorno das raízes conservadoras sulamericanas, no que, em um primeiro momento, parece acusar uma espécie de tendência
cíclica na política sul-americana, mas, mais alarmante do que isso, pode acusar um
eterno controle das alas mais conservadoras e reacionárias desses países, cuja ação é
discreta até que o caminho tomado por determinado partido ou determinada
administração saia de seus planos.
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Daniel Viglietti, Aníbal Sampayo e outros
músicos do Brasil e do Uruguai foram presos e exilados em nome desses governos
autoritários por discordâncias de diferentes graus. Podemos dizer que nem Gil nem
Caetano fazem resistência firme ao Governo Militar, tendo em vista que sua
preocupação não era derrubar a ditadura, mas oferecer uma visão menos presa a
aspectos tradicionais para a Música Popular Brasileira, que sempre apela ao estilo mais
rural e tradicional da música (TINHORÃO, 2013). José Ramos Tinhorão ainda diz que
o pensamento de Caetano Veloso e Gilberto Gil era muito mais à direita do que os
militares pensavam:
Pelo contrário, todas as declarações públicas de Caetano Veloso eram
contra a posição das esquerdas em matéria de música popular, e
Gilberto Gil, após breve envolvimento com a pretendida união de
músicos contra a invasão da música estrangeira (chegou a participar de
uma passeata de protesto contra a concorrência dos conjuntos à base de
guitarras elétricas com os músicos tradicionais), aderira ao som
internacional e confessava preocupações espirituais voltadas para
religiões orientais (TINHORÃO, 2013, p. 304).
Mesmo com diferentes composições, inspirações e militâncias, o tropicalismo e
o Canto Popular Uruguaio trazem como semelhança a ação truculenta e repressiva dos
governos que censuram a classe artística por seu potencial de comunicação. No caso do
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Brasil, existe certa restrição ao se falar disto, pois, embora o tropicalismo tenha vendido
bastante, vendeu sobretudo para uma classe média que não a classe média universitária
de esquerda. Eles estavam na televisão, mas a televisão alcançava, na década de 1960,
uma parcela ainda restrita da população brasileira. O movimento uruguaio tinha um
apelo um tanto maior para as massas, com uma influência folclórica que está presente
em diversas camadas da sociedade.
O estudo da repressão aos movimentos musicais na América do Sul é importante
pelo impacto que a música imprime na construção da memória, tendo em vista o
potencial de uma música de remeter quase que imediatamente ao contexto de sua
composição e nos ajudar a entender contextos em que essa dimensão pode acessar
melhor que um texto ou uma fotografia.
REFERÊNCIAS
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cayeron". Poesia política, engajamento e resistência na música uruguaia – o cancioneiro
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401
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
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SOBRE OS AUTORES
Adriana de Carvalho Alves Braga
Adriana de Carvalho Alves Braga - Doutora em Educação, Arte e História da Cultura
(Mackenzie), Mestre em Integração da América Latina (PROLAM/USP). Especialista
em História, Sociedade e Cultura (PUC/SP) e em Gestão da Educação Pública
(UNIFESP). Licenciada em História e Pedagogia. Coordenadora Pedagógica na Rede
Municipal de Ensino de São Paulo. Integra os grupos de pesquisa “Movimentos
Migratórios e Educação” (PUC/SP) e “Migrações e Identidade” (CERU/USP), onde
realiza pesquisas relacionadas aos fluxos migratórios contemporâneos. Participante do
“Conjunto Chile Lindo” e do grupo “Ameríndios”, interpretando canções do repertório
folclórico
e
da
Nueva
Canción
Chilena
com
voz
e
percussão.
E-mail:
andritsena@hotmail.com
Alecsandra Matias de Oliveira
Doutora em Artes Visuais (ECA USP). Pós-doutorado em Artes Visuais (UNESP),
Professora do CELACC (ECA USP). Mestrado em Comunicações (ECA USP).
Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA
USP). Membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Autoria do livro
Schenberg: Crítica e Criação (EDUSP, 2011). Colaboradora da Revista DasArtes, Jornal
da USP e Revista USP. E-mail: alemaoli@usp.br
Alejandra G. Galicia Martínez
Licenciada en Ciencias Políticas (2009) y maestra en Estudios Latinoamericanos (2015)
por la Universidad Nacional Autónoma de México. Actualmente es doctoranda en el
Posgrado de Estudios Latinoamericanos en la misma universidad con el proyecto “La
América Latina trascendental. Esoterismo y Acción Política en México y
Centroamérica, 1900-1934”. Es parte del "Seminario de Estudios sobre
Esoterismo Occidental desde América Latina" dirigido por el Dr. José Ricardo
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Chaves en el Instituto de Investigaciones Filológicas. Es miembro desde 2018 del
Centro de Estudios sobre Esoterismo Occidental- UNASUR (CEEO-UNASUR), y
forma parte del Grupo de Trabajo CLACSO “Antiimperialismo: perspectivas
transnacionales en el Sur Global”. Entre sus líneas de investigación se encuentra la
historia de México y Centroamérica; el antiimperialismo latinoamericano del siglo XX;
el análisis de redes políticas, intelectuales y de solidaridad en América latina durante el
siglo XX; el estudio de revistas culturales y la historia del esoterismo en América Latina
durante el siglo XIX y XX. Ha publicado trabajos como “Sandino en Ariel:
representaciones
del
héroe
en
una
revista
antiimperialista”
(El
imaginario
antiimperialista en América Latina, Buenos Aires, 2015); “‘Cuando la autoridad es
rebasada la ley es el pueblo compañeros’. Análisis de los marcos del discurso de grupos
de autodefensa y policías comunitarias en Michoacán”, (Movimientos Sociales en
México, México, 2016); “Froylán Turcios y Revista Ariel” (Revista Meridional. Revista
Chilena de Estudios Latinoamericano, Santiago, 2019); “Revolución Mexicana y
esoterismo. José Vasconcelos 1921-1924” (Revista Melancolia, Buenos Aires, 2020), y
“Solidaridad con Nicaragua. La ambivalencia estratégica de la política antiimperialista
mexicana en las décadas de 1920 y 1970” (Confrontación de imaginarios: Los
antiimperialismos en América Latina, Buenos Aires/México, 2021). E-mail:
xtabayam@yahoo.com.mx
Alexandre Barbalho
Possui licenciatura em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE),
bacharelado em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal
do Ceará (UFC) e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Estágio pós-doutoral em Comunicação na
Universidade Nova de Lisboa. É professor adjunto do curso de História e professor
permanente dos PPGs em Sociologia e em Políticas Públicas da UECE e em
Comunicação da UFC. Tem experiências nas áreas de Política, Cultura e Comunicação,
atuando principalmente nos seguintes temas: política cultural, política de comunicação,
mídia e cidadania, mídia e minorias, mídia e política, elites. É autor, entre outros, de:
Relações entre Estado e cultura no Brasil (1998); Cultura e imprensa alternativa (2000);
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
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A modernização da cultura (2005); A criação está no ar: Juventudes, política, cultura e
mídia (2013) - edição em espanhol: La creación está en el aire: juventudes, política,
cultura y comunicación (2014); Democracia radical e pluralismo cultural. Para ler
Chantal Mouffe (2015); Política cultural e desentendimento (2016) - edição em
espanhol: Política cultural y desacuerdo (2020); Cultura e democracia (2017); e Sistema
Nacional de Cultura. Campo, saber e poder (2019). É organizador de Brasil, brasis:
Identidades, cultura e mídia (2008) e co-organizador, entre outros, de: Comunicação e
cultura das minorias (com Raquel Paiva, 2005 - edição em espanhol: Comunicación y
cultura de las minorías, 2012 ); Políticas Culturais no Brasil (com Albino Rubim, 2007);
Comunicação e cidadania: Questões contemporâneas (com Bruno Fuser e Denise Cogo,
2011); Cultura e desenvolvimento: Perspectivas políticas e econômicas (com Lia
Calabre, Paulo Miguez e Renata Rocha, 2011); Federalismo e políticas culturais no
Brasil (com Lia Calabre e José Márcio Barros , 2013); Infância, juventude e mídia.
Olhares luso-brasileiros (com Lídia Maropo, 2015); Políticas culturais no governo
Dilma (com Albino Rubim e Lia Calabre, 2015); Os trabalhadores da cultura no Brasil:
criação, práticas e reconhecimento (com Elder Maia e Mariela Vieira, 2017); e Retratos
do Ceará moderno: emergência de um padrão de modernização cultural nas margens
(com Mariana Barreto, 2020). E-mail: alexandre.barbalho@uece.br
Bruno Henrique Bezerra Silva
Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2017),
educador. Experiência em pesquisa no Museu da Cultura - PUC-SP (2017) e pesquisa
em música e censura através do programa de estágio em Arte Educação do Serviço
Social do Comércio (SESC-SP) (2015-2016). E-mail: bhbs2008@gmail.com
Camila Vieira de Souza
amila Vieira de Souza é graduada em Arte: História, Crítica e Curadoria pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Trabalha e pesquisa relações entre Instituições
Culturais e Arte Educação. E-mail: carta.para.camila@gmail.com
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Cristian Fabián Pulga Infante
Licenciado em Ciências Sociais da Universidad Pedagógica Nacional de Colombia
(2017) professor de Ensino Médio. E-mail: cristianpulgainfante@gmail.com
Débora Armelin Ferreira
Licenciada em Artes Visuais pela FMU e especialização em História da Arte: Teoria e
Crítica pelo Centro Universitário Belas Artes, atuou como professora de Artes no ensino
fundamental e médio em escolas públicas do Estado de São Paulo e, atualmente, se
dedica a pesquisa independente de artistas mulheres e da população LGBTIA+ na
América Latina e África. E-mail: deboraarmelin@hotmail.com
Douglas Gregorio Miguel
Paulistano nascido em 1967, bacharel em Filosofia pela FFLCH-USP, mestre em
Ciências da Comunicação pela ECA-USP, Doutor em Ciências pela FFLCH-USP.
Professor na educação de base entre 1988 e 2016 e professor no ensino superior desde
2010. Pesquisador ligado ao Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, e
Conflitos, da FFLCH-USP. E-mail: dgmsbc@gmail.com
Edson Capoano
Atual pesquisador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade - CECS, da
Universidade do Minho, sobre Jornalismo, Participação e Mídia Digital. Doutor em
Comunicação e Cultura pelo Programa de Integração Latino-Americana da
Universidade de São Paulo (PROLAM-USP, 2013). Mestre em Comunicação e
Semiótica (2006) e Bacharel em Jornalismo (2001) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Especializações em Jornalismo Ibero-Americano (Programa
Balboa, 2007) e em Jornalismo Ambiental (Cásper Líbero, 2001). Estágios de pósdoutorado na Universidade de Castilla-La Mancha (2017) e na Universidade de Navarra
(2015), pesquisando modelos de negócios para jornalismo. Doutorado visitante /
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AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
sanduíche na Universidade da Califórnia em San Diego (2012) pesquisando redes e
identidades para o jornalismo. Autor dos livros “Como financiar o jornalismo?” (2018),
“La jornada del periodista” (2017) e “A natureza na TV” (2015). E-mail:
edson.capoano@gmail.com
Fabia Holanda de Brito
Doutoranda em Processos e Manifestações Culturais. Mestra em Bens culturais e
projetos sociais. Professora de História do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia
do Marahão (IFMA). E-mail: fabiaholanda@ifma.edu.br
Francisco Prandi Mendes de Carvalho
Francisco Prandi Mendes de Carvalho – Cientista Social e Mestre em Sociologia pela
USP, atua como músico, sendo cantor, compositor. Atualmente, participa do grupo
EntreLatinos e atua como mobilizador cultural no Dandô – Circuito de Música Dércio
Marques, no qual desempenha as funções de apresentador, roteirista e produtor dos
programas “Coluna Dandô” e “Dandô Clipes”. E-mail: franprandi13@hotmail.com
Günther Richter Mros
É professor adjunto no Departamento de Economia e Relações Internacionais (DERI) da
Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, e coordenador do curso de graduação em
Relações Internacionais. Doutor em História pela UFSM, mestre em Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília, UnB, e bacharel em Relações
internacionais pelo Centro Universitário de Brasília, UniCEUB. Tem como áreas de
interesse a história das relações internacionais e a política externa brasileira. Lidera, em
parceria com a Profª Drª Joséli Fiorin Gomes, o Grupo de Estudos em Instituições e
Processos Decisórios nas Relações Internacionais (GEIPRI), CNPq / UFSM. E-mail:
gunther.mros@ufsm.br
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Gustavo Scudeller
É professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo –
Unifesp/Guarulhos- SP, da área de Teoria Literária. Pesquisa temas relacionados às
relações entre épica, humanismo e erudição na poesia brasileira dos anos 1950 em
diante. E-mail: gscudeller@unifesp.br
Hiolly Batista Januário de Souza
Graduada em História (UFF/2011), Mestre em História Social (Uioeste/2017),
professora da Educação Básica (Seduc/MT). E-mail: bh.lolly@gmail.com
Igor Lemos Moreira
Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade
do Estado de Santa Catarina (PPGH-UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e
Identificações. Entre 2021-2022 foi Visiting Scholar na University of Miami
(Florida/EUA). Mestre e Graduado em História (Licenciatura) pela mesma instituição.
Bolsista CAPES-DS, integrante do Laboratório de Imagem e Som (LIS/UDESC), do
Núcleo de Estudos de Exílio e Migração da Universidade Federal de Minas Gerais
(NEEM-UFMG), da Rede de Pesquisadores da História de Cuba e da Equipe de Apoio
Editorial da Revista Tempo e Argumento. Associado a ANPUH, ANPHLAC, LASA e
IASPM- AL. Tem experiência na área de História, com ênfase em História das
Américas, Teoria da História, História Contemporânea. Atua principalmente nos
seguintes temas: Relações e trânsitos entre Estados Unidos e Caribe; Biografias e
Trajetórias Artísticas; Exílios; Representações; História de Cuba e identidades cubanas:
Música Pop; Música Latino-americana; Audiovisual e Canção; História Pública e
História do Tempo Presente. E-mail: igorlemoreira@gmail.com
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Juan Ignacio Brizuela
Doutor pelo Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade no
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos - IHAC, UFBA. Colíder
do grupo de pesquisa Observatório da Diversidade Cultural - UEMG. Pesquisador de
pós-doutorado da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência - IEA/USP. E-mail:
juanbrizuela@usp.br
Marcelo Mendes Chaves
Pós-doutorando junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP-CRE), Faculdade de
Ciências Sociais, sob a supervisão do Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito. Doutor em
Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da
Universidade de São Paulo PROLAM-USP (2017) na Linha de Pesquisa sobre
Comunicação e Cultura. Mestre em Estética e História da Arte pelo Programa de PósGraduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo
PGEHA-USP (2012) na Linha de Pesquisa sobre História e Historiografia da Arte
Brasileira. Especialização em Cenografia pelo Centro de Pesquisa Teatral CPT-SESC
(1999). Aperfeiçoamento em Arquitetura Ambiental Chinesa UNILUZ (1998).
Graduado em Arquitetura e Urbanismo pelo Centro Universitário Belas Artes (1996).
Integrou o Grupo de Pesquisa Museu e Patrimônio da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo GMP-FAU-USP (2018-2020). Participou do
Centro de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras do departamento de
Antropologia da Religião da Universidade de São Paulo CERNe-USP (2013-2015).
Professor e orientador nos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Interiores no
Centro Universitário UNIFAAT (2015-2019). Possui experiencia no ensino de arte,
cultura e religião afro-brasileira e afro-latino-americana; projeto de arquitetura,
expressão plástica, história da arquitetura, paisagismo e urbanismo, teoria da
arquitetura, design de interiores e paisagismo, projeto exceutivo de Design de Interiores,
cenografia, vitrine e eventos, Design Residencial, Técnicas de Deocoração,
Fundamentos do Design de Interiores, expressão plástica e composição de ambientes e
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conceituação do Design de Interiores. Atua na área de Arquitetura de Interiores.
Pesquisador nas áreas de arquitetura moderna brasileira, arte brasileira e latinoamericana, arte pública modernista no Brasil, cenografia, performance e religião afrobrasileira e afro-cubana, com ênfase na obra dos Arquitetos Oscar Niemeyer, Lina Bo
Bard, Paulo Mendes da Rocha,i e, dos artistas plásticos Carybé, Poty Lazzarotto,
Rubem Valentim e Manuel Mendive Hoyo; e do paisagista Burle Marx. Atualmente
pesquisa a arquitetura expositiva na trajetória da Arquiteta Lina Bo Bardi no periodo de
1959 a 1984 com o tema; "Espaço expositivo de Lina Bo Bardi: a recepção da cultura
afro-brasileira". E-mail: marcellomendez@usp.br
Michelle Cristina Alves Silva
Atriz, dramaturga, trabalhadora do teatro. Doutoranda pelo Programa Interunidades de
Integração da América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo (USP) com a
pesquisa: Teatro, Política e Sociedade - Grupo El Galpón e Cia do Latão - Estudos de
caso no Brasil e Uruguai Milena Mulatti Magri. E-mail: floresdejorge@gmail.com
Milena Mulatti Magri
Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Concluiu pesquisa
de pós- doutorado na UNESP, campus de São José do Rio Preto, com bolsa FAPESP, e
um estágio pós- doutoral no exterior, na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, com bolsa CAPES. Autora do livro A Ficção na Pós-ditadura (Editora Unifesp,
2019), premiado com o terceiro lugar no Prêmio ABEU (Associação Brasileira das
Editoras Universitárias). E-mail: milenamagri@yahoo.com.br
Pedro Rodrigues Costa
Atual pesquisador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade - CECS, da
Universidade do Minho, sobre Ambientes Sociotécnicos Digitais. Doutorado em
Ciências da Comunicação (Sociologia da Comunicação e Informação), pela
Universidade do Minho, com a tese Entre o Ver e o Olhar: Ecos e Ressonâncias
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Ecrãnicas (2013). É mestre em Sociologia (especialização em Sociologia das
Organizações e do Trabalho) e licenciado em Sociologia. Entre as suas áreas de
investigação constam as questões em torno da Cibercultura, Tecnologia e Estudos sobre
redes sociais digitais. É investigador do CECS, onde integra o Grupo de Estudos
Culturais e o Museu Virtual da Lusofonia. Na lista dos trabalhos de investigação mais
recentes, constam os seguintes temas: A presença de arquétipos nos youtubers: modos e
estratégias de influência (Costa, 2019); O medo do consumo solitário: comentários nos
canais infantojuvenis de YouTube do Brasil e de Portugal (Costa & Capoano, 2020);
Suicídio e redes sociais: aproximações em português no Facebook, no instagram e no
YouTube (Costa & Araújo, 2020) e Dar “vistas” ao ecrã em rede: problemáticas,
desafios
e
consequências
da
era
digital
(Costa,
2020).
E-mail:
pedrocosta@ics.uminho.pt
Pedro Quinteiro Uberti
Graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Pesquisador bolsista FIPE JR. no projeto de pesquisa “Tempo histórico e
política externa nas relações internacionais do Brasil e da América Latina”, coordenado
pelo Prof. Dr. Günther Richter Mros, do Grupo de Estudos em Instituições e Processos
Decisórios nas Relações Internacionais (GEIPRI). Tem como interesses de pesquisa:
História das Relações Internacionais da América Latina; e História da Política Externa
do Brasil. E-mail: pedro.uberti@gmail.com
Rafaella Chueri Abreu Rodrigues
Graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Aluna pesquisadora no Grupo de Estudos em Instituições e Processos
Decisórios nas Relações Internacionais, da UFSM. Tem se dedicado ao estudo nas áreas
de História do Brasil, História das Relações Internacionais e Política Externa, em
especial na influência da Imperatriz Dona Leopoldina no processo de Independência do
Brasil. ID Lattes: 5466243526059887. E-mail: rafaella.rodrigues@acad.ufsm.br
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Simone Rocha de Abreu
Docente da Faculdade de Artes, Letras e Comunicação da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (FAALC-UFMS), coordenadora do Programa de Extensão Arte na
Escola, Polo Arte na Escola da UFMS e coordenadora dos cursos de Artes Visuais
(2020-2011). Pós-doutora pelo Instituto de Artes da UNESP (Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho - 2019), sob a supervisão de Percival Tirapeli, com
pesquisa intitulada: "Os discursos sobre a identidade da Arte Latinho-Americana na
Fundação Bienal. Reflexões a partir do Simpósio da I Bienal Latino-Americana de
1978", pesquisa vinculada à seguinte linha: Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais
da Arte do IA- UNESP. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da
América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo, na grande área: Linguística,
Letras e Artes, área: Artes, sub-área: Fundamentos e Crítica das Artes, com a tese: Um
olhar sobre as produções de Luis Felipe Noé, Antonio Berni, Rubens Gerchman e
Antonio Henrique Amaral. Mestre pelo mesmo programa, área e sub-área, com
dissertação sobre Frida Kahlo e Ismael Nery, especialização em História da Arte e da
Cultura Contemporânea pelo Instituto de Artes da UNESP/São Paulo (2005) , bacharel
em Artes Plásticas também pelo Instituto de Artes da UNESP/São Paulo(2004) e
licenciada em Artes pelo Curso de Formação Pedagógica de Docentes do Centro Paula
Souza. Possui experiência em docência e pesquisa, atuando principalmente nos
seguintes temas: História da Arte da América Latina, Perspectivas didáticas do Ensino
de Arte, Arte e Cultura da América Latina, diálogos artísticos entre Brasil, Argentina e
México, História do Mobiliário, História do design, Composição em suportes variados,
Expressão Bidimensional e Ensino de Arte. Já atuou como professora da Academia
Brasileira de Arte (ABRA; unidade Tatuapé), como docente do Centro Paula Souza,
atuando nos cursos Técnicos de Comunicação Visual, de Processos Fotográficos e no
ensino médio, atuou também como professora orientadora on-line no Curso de
Especialização em Artes para Professores da Rede Pública do Estado de São Paulo Programa Rede São Paulo de Formação Docente, convênio entre UNESP e a Secretaria
Estado da Educação durante dois anos e como docente na disciplina de História da Arte
no curso de Especialização em Cenografia e Figurino do Centro Universitário Belas
Artes de São Paulo, atuou também como formadora junto à Secretaria Municipal de
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Educação, promovendo cursos de formação continuada para estimular a efetiva
implementação das leia 11.645/08 e 10639/03 na rede municipal de ensino, bem como
fomentar a inclusão dos imigrantes latino-americanos no ambiente escolar mediante
discussões sobre Arte, Cultura e História da América Latina. Pesquisa Arte da América
Latina, membro do Fórum Permanente de Debates sobre Arte e Cultura da América
Latina, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Sociedade
Científica da Arte (CESA), foi docente do Centro Universitário das Faculdades
Metropolitanas Unidas (FMU), desde 2009 até setembro de 2016, professora substituta
em Artes na UNILA (2016-2017). E-mail: simonerochaabreu@gmail.com
Vanessa Beatriz Bortulucce
Historiadora da imagem, da arte e da cultura. Pesquisadora e curadora independente.
Graduada em História pela Universidade Estadual de Campinas (1997), Mestra em
História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e Doutora
em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Possui Pósdoutorado pelo Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Atualmente é
docente nas seguintes instituições: Centro Universitário Assunção (UNIFAI), Faculdade
Casper Líbero e Museu de Arte Sacra de São Paulo. Tem experiência na área de
História da Arte, atuando principalmente nas áreas da cultura do século XX: Arte
Moderna, Arte Contemporânea, Futurismo Italiano, Umberto Boccioni, arte e política.
Produziu vários artigos sobre a vanguarda italiana e sobre as relações arte e política no
século XX. Traduziu diversos manifestos futuristas e colaborou com várias obras sobre
o tema. É autora do livro A Arte dos Regimes Totalitários do Século XX – Rússia e
Alemanha, publicado em 2008 pela editora Annablume/FAPESP. Traduziu os Diários
de Umberto Boccioni (Editora da UNICAMP, 2016). Membro da ABEC (Associação
Brasileira de Estudos Cemiteriais) e do ICOM Brasil. E-mail: bortu@hotmail.com
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SOBRE OS ORGANIZADORES
Júlio César Suzuki
Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso (1992), em
Letras pela Universidade Federal do Paraná (2004) e em Química pelo Instituto Federal
de São Paulo (2021), com mestrado (1997), doutorado (2002) em Geografia Humana
pela Universidade de São Paulo e Livre-Docência em Fundamentos Econômicos,
Sociais e Políticos da Geografia. Atualmente, é Professor Associado, junto ao
Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo e ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América
Latina (PROLAM/USP). Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em
Geografia Humana, atuando principalmente nos seguintes temas: Agricultura,
Urbanização, Geografia e Literatura e Teoria e Método. E-mail: jcsuzuki@usp.br.
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-7499-3242.
Maria Margarida Cintra Nepomuceno
Graduada em Comunicação Social pela Faculdade Cásper Líbero com especialização
em Jornalismo, e em História da Arte, na FAAP. É Mestre e Doutora pelo PROLAMPrograma de Pós-graduação Integração da América Latina, da Universidade de São
Paulo e, atualmente, exerce a função de pesquisadora-colaboradora nessa Instituição. É
pós-doutoranda pela UERJ- Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no Departamento
de História, onde desenvolve uma pesquisa sobre as relações do período Vargas na
América Latina. Desde o Mestrado tem se dedicado aos estudos sobre as políticas
culturais do Brasil em países da América Latina desde a criação das Missões Culturais
Brasileiras, no início do século XX. Atualmente, é pesquisadora junto ao Programa de
Pós-graduação em
Integração da América
Latina (PROLAM/USP).
margaridacn@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6439-0680
E-mail:
ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A
AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA
Gilvan Charles Cerqueira de Araújo
Graduado em Geografia pela UNESP – Campus Rio Claro/SP (2009), Mestre em
Geografia pela Universidade de Brasília (2013), Doutor em Geografia pela UNESP –
Campus Rio Claro/SP (2016). Atualmente é professor do Programa de Pós-graduação
em Integração da América Latina (PROLAM/USP) e professor de Geografia na
Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail: gcca99@gmail.com.
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-4238-0139.
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