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Soy loco por ti: a América Latina como conceito e suas ressignificações nas composições musicais (1945-2020).

2021, Organismos internacionais nas políticas culturais para a América Latina: arte, cultura, resistência. 1ed.São Paulo: FFLCH/USP, PROLAM/USP, 2021, v. , p. 197-217.

ISBN 978-65-87621-86-9 DOI 10.11606/9786587621869 Organismos internacionais nas políticas culturais para a América Latina Arte, cultura, resistência Júlio César Suzuki Maria Margarida Cintra Nepomuceno Gilvan Charles Cerqueira de Araújo [Organizadores] [SÉRIE: DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES] 2021 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan Vice-reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS – FFLCH Diretor: Prof. Dr. Paulo Martins Vice-diretora: Profª. Drª. Ana Paula Torres Megiani PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA Presidente da CPG: Prof. Dr. Júlio César Suzuki Vice-presidente da CPG: Profa. Dra. Marilene Proença Rebello de Souza COMITÊ EDITORIAL Prof. Dr. Adebaro Alves dos Reis (IFPA) Profª. Drª. Adriana Carvalho Silva (UFRRJ) Prof. Dr. Adriano Rodrigues de Oliveira (UFG) Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa (UNESP) Prof. Dr. Alécio Rodrigues de Oliveira (IFSP) Profª. Drª. Ana Regina M. Dantas Barboza da Rocha Serafim (UPE) Prof. Dr. Cesar de David (UFSM) Prof. Dr. José Elias Pinheiro Neto (UEG) Profª. Drª. Maria Jaqueline Elicher (UNIRIO) Prof. Dr. Ricardo Júnior de Assis Fernandes (UEG) Prof. Dr. Roni Mayer Lomba (UNIFAP) Profª. Drª. Telma Mara Bittencourt Bassetti (UNIRIO) Profª. Drª. Valéria Cristina Pereira da Silva (UFG) Catalogação na Publicação (CIP) Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Maria Imaculada da Conceição - CRB - 8/6409 O68 Organismos internacionais nas políticas culturais para a América Latina [recurso eletrônico] : arte, cultura, resistência / Organizadores: Júlio César Suzuki, Maria Margarida Cintra Nepomuceno, Gilvan Charles Cerqueira de Araújo. -- São Paulo : FFLCH/USP, PROLAM/USP, 2021. 5.337 Kb ; PDF. -- (Diálogos interdisciplinares) ISBN 978-65-87621-86-9 DOI 10.11606/9786587621869 1. América Latina – Estudo e pesquisa. 2. Integração. 3. Cultura. 4. Intelectuais. 5. Cooperação internacional. I. Suzuki, Júlio César. II. Nepomuceno, Maria Margarida Cintra. III. Araújo, Gilvan Charles Cerqueira de. CDD 980 A exatidão das informações, conceitos e opiniões é de exclusiva responsabilidade dos autores, os quais também se responsabilizam pelas imagens utilizadas. Capa: Trabalho gráfico e técnico de Fábio Molinari Bitelli. Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada. SUMÁRIO ATORES INSTITUCIONAIS E PRÁTICAS DE INTEGRAÇÃO ..................................................................................................... 1 Júlio César Suzuki; Maria Margarida Cintra Nepomuceno; Gilvan Charles Cerqueira de Araújo ARTISTAS IMIGRANTES EM SÃO PAULO: O PAPEL DA ARTE NA INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA ................................................... 6 Adriana de Carvalho Alves Braga; Francisco Prandi Mendes de Carvalho MEMÓRIAS E AFETOS - AFROCENTRICIDADE NA 12 BIENAL DO MERCOSUL ................................................................................... 36 Alecsandra Matias de Oliveira O SIMPÓSIO DA I BIENAL LATINO-AMERICANA DE 1978: DEBATE SOBRE A QUESTÃO IDENTITÁRIA NA ARTE DA AMÉRICA LATINA .............................................................................. 46 Simone Rocha de Abreu DIÁLOGOS ENTRE O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES MUSEAIS E O ACESSO DO TRABALHADOR À PRODUÇÃO CULTURAL: MÁRIO PEDROSA, A BIENAL DE SÃO PAULO E O MUSEU DA SOLIDARIEDADE SALVADOR ALLENDE....................................................................................... 75 Camila Vieira de Souza REVISTA ARIEL LA PROPAGANDA DE LA RED ANTIMPERIALISTA DE SOLIDARIDAD CON AUGUSTO C. SANDINO. 1927-1930 .................................................................................. 90 Alejandra G. Galicia Martínez REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA SOCIAL NA NARRATIVA DE EDUARDO CABALLERO E JORGE AMADO .......................................................................................................... 117 Cristian Fabián Pulga Infante; Hiolly Batista Januário de Souza LYZ PARAYZO E ÉLLE DE BERNARDINI: NARRATIVAS DE CORPOS DISSIDENTES NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA .................................................................... 145 Débora Armelin Ferreira ESTOU NA WEB, LOGO, COLABORO? ANÁLISE DE INTERAÇÕES ENTRE MEIOS NATIVOS DIGITAIS DE JORNALISMO IBERO-AMERICANOS .............................................................. 170 Edson Capoano; Pedro Rodrigues Costa ARTE, CULTURA E TURISMO – BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO/ BRASIL: PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA HUMANIDADE ....................................................................... 184 Fabia Holanda de Brito SOY LOCO POR TI: A AMÉRICA LATINA COMO CONCEITO E SUAS RESSIGNIFICAÇÕES NAS COMPOSIÇÕES MUSICAIS (1945 – 2020) ..................................................... 197 Günther Richter Mros; Pedro Quinteiro Uberti; Rafaella Chueri Abreu Rodrigues PAPEL DE ESCRITOR: O JORNAL DOBRABIL, DE GLAUCO MATTOSO, E A AMÉRICA LATINA .................................................. 218 Gustavo Scudeller GLORIA ESTEFAN EM GUANTÁNAMO: PROJETOS POLÍTICOS E REPRESENTAÇÕES EM CENA ................................................. 237 Igor Lemos Moreira DE PONTOS DE CULTURA À CULTURA VIVA COMUNITÁRIA: TEIAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS E DE AGENTES CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA ................................................. 252 Juan Ignacio Brizuela; Alexandre Barbalho MANUEL MENDIVE HOYO: O PERFORMER AFROCUBANO ........................................................................................................ 278 Marcelo Mendes Chaves O TEATRO POLÍTICO NA AMÉRICA DO SUL E AS DITADURAS MILITARES: CENSURA, REPRESSÃO E A FUNÇÃO SOCIAL DO TEATRO ....................................................................... 304 Michelle Cristina Alves Silva DOENÇA, CONTROLE DOS CORPOS E DEMOCRACIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE CAIO FERNANDO ABREU ......................................................................... 329 Milena Mulatti Magri A POÉTICA DA ABSTRAÇÃO NA VENEZUELA E O MANIFIESTO DE LOS DISIDENTES (1950)...................................................... 344 Vanessa Beatriz Bortulucce A PRODUÇÃO PARTILHADA DO CONHECIMENTO NAS REDES COLABORATIVAS E O USO DA HIPERMÍDIA .................................................................................................... 365 Douglas Gregorio Miguel CAMINHOS MUSICADOS DA RESISTÊNCIA: BRASIL E URUGUAI (1967-1973) .................................................................................. 386 Bruno Henrique Bezerra Silva SOBRE OS AUTORES ..................................................................................... 402 SOBRE OS ORGANIZADORES ....................................................................... 413 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA ATORES INSTITUCIONAIS E PRÁTICAS DE INTEGRAÇÃO Em continuidade à série Diálogos Interdisciplinares, temos a satisfação de apresentar três novas publicações, com a participação do Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina (PROLAM/USP) e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP), que respondem ao desafio de analisar, dentro do campo cultural, sob diversas perspectivas a formação de redes colaborativas entre inúmeros atores sociais, intelectuais, literatos, artistas e pensadores que estiveram e/ou ainda permanecem atuando em distintas frentes nos países da América Latina : A dimensão cultural nos processos de integração entre países da América Latina, Intelectuais em Circulação na América Latina: diálogos, intercâmbios, redes de sociabilidade e Organismos Internacionais nas políticas para a América Latina: Arte, cultura, resistência. São apresentados trabalhos de pesquisadores e pesquisadoras, de universidades do Brasil e América Latina, que visam refletir as experiências desenvolvidas no campo sociocultural a respeito da importância da dimensão cultural nas políticas de cooperação entre os países, na formação de redes de sociabilidade entre intelectuais e demais sujeitos sociais e políticos, que circularam em diferentes momentos históricos na região, contribuindo assim para o fortalecimento, reformulação ou redefinição de novos sentidos de integração entre as sociedades latino-americanas. Os textos aportam reflexões sobre as políticas das instituições governamentais e de organismos internacionais que exerceram e ainda exercem protagonismo na cena cultural da América Latina além de nos apresentar momentos históricos importantes que contribuíram para enriquecer nosso conhecimento sobre os fazeres artísticos e o pensamento da América Latina. Os autores e as autoras trabalham a partir de perspectivas próprias, com abordagens pluralistas, no âmbito de cenários específicos, uma vez que são oriundos de campos de conhecimento diferentes, mas todos confluem para o mesmo propósito, que é o de promover, difundir, desvelar experiências culturais e, sobretudo, humanas, de sujeitos sociais que valorizam a cooperação entre saberes, as possibilidades de intercâmbio de diferentes vivências e a aceitação/reafirmação de uma complexidade cultural próprias da América Latina. 1 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Do ponto de vista da formulação conceitual, as contribuições de cada um dos autores e das autoras compuseram um original e colorido ñanduti capaz de fazer frente, como diria o peruano Juan Acha em Definición Latinoamericana de las Artes (Revista CESA, 2004), aos velhos e anacrônicos paradigmas eurocentristas que até bem pouco tempo tentavam definir nossa arte, nossa cultura, Nuestra América. Essa é nossa tarefa! Em Artistas imigrantes em São Paulo: o papel da Arte na integração da América Latina, escrito por Adriana de Carvalho Alves Braga e Francisco Prandi Mendes de Carvalho, é apresentada a produção dos artistas radicados na cidade de São Paulo e suas relações com o meio cultural da maior metrópole do país configurando o que podemos denominar de integração entre e por meio da Cultura. Alecsandra Matias de Oliveira, em Memórias e afetos - afrocentricidade na 12 Bienal do Mercosul, propõe um debate envolvendo as diferentes obras e artistas que fizeram parte do evento, o histórico e importância das suas edições anteriores, os desafios das mostras, as reflexões por meio de lives a partir do contexto pandêmico e as perspectivas de referenciais afros em exposições efetuadas na 12 Bienal do Mercosul. Em O Simpósio da I Bienal Latino-Americana de 1978: debate sobre a questão identitária na arte da América Latina, Simone Rocha de Abreu apresenta um rico exercício de dialogia teórica, crítica e analítica entre a(s) arte(s) e as formas de ser, pensar e fazer da América Latina. Questões como o Outro latino-americano e o eurocentrismo no saber e poder como secularizações também corroboram para o fundamento das reflexões da autora. Camila Vieira de Souza, em Diálogos ente o papel das Instituições Museais e o acesso do trabalhador à produção cultural: Mário Pedrosa e a Bienal de São Paulo e o Museu de Solidariedade Salvador Allende, apresenta pontes conceituais, históricas e crítica sobre o papel dos museus em relação à sociedade em geral e a classe trabalhadora em particular, propondo uma problematização tanto sobre a importância destas instituições como o acesso e novas (re)significações e empoderamentos a partir do acesso a seus acervos e exposições. Em Revista Ariel – La propaganda de la red antimperialista de solidariedad con Augusto C. Sandino. 1927-1930, Alejandra G. Galicia Martínez propõe um desafio de visualização, análise e busca pelos pontos de contato e mútua partilha de elementos 2 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA entre a red de solidariedade, nas primeiras décadas do século XX, na Nicarágua, a partir de suas experiências, vivências e desafios no campo político, social, cultural e histórico. Em Representações da violência social na narrativa de Eduardo Caballero e Jorge Amado, de Cristian Fabián Pulga Infante e Hiolly Batista Januário de Souza, há uma análise comparada de dois autores da arte literária latino-americana e suas obras. Pensar as redes culturais da América Latina por meio da arte é tão uma realidade como profícua possibilidade, colocada em prática nesta discussão, por meio das semelhanças e diferenças entre os elementos literários das duas obras. Em Lyz Parayzo e Elle de Bernardini: narrativas de corpos dissidentes na arte contemporânea brasileira, de Débora Armelin Ferreira, são os corpos e a corporeidade nas obras das artistas que tomam relevo, em que a contemporaneidade é das criações das artistas, em suas formas, cores, representações, imagens e significações são apresentadas, correlacionadas e analisadas pelo prisma cultural e artístico. Edson Capoano e Pedro Rodrigues Costa, em Estou na web, logo, colaboro? Análise de Interações entre meios nativos digitais de Jornalismo Ibero-Americanos, defendem que o digital e colaborativo unem-se, como indissociabilidade e possibilidade. O jornalismo é o ponto de partida e chegada dos autores em sua análise, propiciando um rico debate sobre as interações entre nativos e não nativos digitais na Ibero-América pelo jornalismo. Em Arte, cultura e turismo – bumba-meu-boi do Maranhão/Brasil: patrimônio cultural imaterial da humanidade, de Fabia Holanda de Brito, há importante reflexão, tão cara, como necessária, sobre o papel político, cultural, econômico, social e de consolidação das redes culturais e artística na América Latina na dialética entre o hegemônico e os movimentos de resistência entre singularidades e universalidades entre sociedade, arte e cultura. Soy loco por ti: a América Latina como conceito e suas ressignificações nas composições musicais (1945 – 2020), de Günther Richter Mros, Pedro Quinteiro Uberti e Rafaella Chueri Abreu Rodrigues, aporta o debate da música como forma de expressão artística escolhida e trabalhada em termos de significação e ressignificação do ser, pensar, fazer e sentir latino-americano, da segunda metade do século XX até os dias atuais. 3 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Em Papel de escritor: o Jornal Dobrabil, de Glauco Mattoso, de Gustavo Scudeller, o sujeito criativo e seu papel na arte é o centro do debate proposto e desenvolvido. Glauco Mattoso é escolhido pelo autor em seu desenvolvido a respeito da centralidade de quem escreve e difunde por meio das palavras, imagens e significações em diferentes mídias, como é o caso do Jornal Dobrabil. Igor Lemos Moreira, em Gloria Estefan em Guantánamo: projetos políticos e representações em cena, realiza uma correlação entre música, espetáculo, representação e impactos de suas significações. Em múltiplas perspectivas, o autor trabalha a partir de um evento específico de arte e música para efetuar pontes de interpretação e problematização em diferentes campos, como política, cultura e economia. Em De Pontos de Cultura à Cultura Viva Comunitária: teias de políticas públicas e de agentes culturais na América Latina, Juan Ignacio Brizuela e Alexandre Barbalho analisam as singularizações dos agentes culturais como protagonistas de redes de políticas públicas. Em uma escala macro de redes culturais, há, inevitavelmente, o papel e importância das ações individuais e localizadas, que (per)fazem os desafios e consolidação da arte e cultura em diferentes amplitudes de expressão e manifestação na América Latina. Em Manuel Mendive Royo: o performer afro-cubano, Marcelo Mendes Chaves valoriza recursos teóricos, metodológicos e visuais, a partir da apresentação de evento artístico-cultural específico, para análise da cultura iorubá e suas implicações, permanências, interpretações e formas de expressão atualmente. Michelle Cristina Alves Silva, em O Teatro Político na América do Sul e as ditaduras militares: censura, repressão e a função do teatro, defende que a arte, pelo teatro, é foco da possibilidade de (re)existência de sujeitos pela história, cultura e política. Tendo a América do Sul e seu histórico de regimes autoritários, como contexto, a autora articula argumentos teóricos, analíticos e de significações do pensar, fazer e sentir teatral latino-americano. Em Doença, controle dos corpos e democracia: uma reflexão a partir da obra de Caio Fernando Abreu, de Milena Mulatti Magri, há apontamentos e reflexões sobre política e corporeidade, a relação em macro e micropoder, controle e liberdade a partir das contribuições de Caio Fernando Abreu, tanto como amostra, quanto possibilidade de novas aberturas e problematizações de análise. 4 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Em A poética da abstração na Venezuela e o Manifiesto de Los Disidentes (1950), Vanessa Beatriz Bortulucce defende a arte como manifesto e o manifesto como arte, dialética posta como posições e ponderações que pode ser considerada como ponto de partida e chegada dos debates; um convite para uma temática histórica, social e cultural com imensurável potencial de aprofundamento teórico, analítico e metodológico na América Latina. Douglas Gregorio Miguel, em A produção partilhada do conhecimento nas redes colaborativas e o uso da hipermídia, discute um dos desafios contemporâneos de maior proficuidade em debates e aprofundamentos, que são as redes colaborativas no mundo digital e suas diferentes formas de circulação por mídias diversificadas. Novos horizontes de expressão e consolidação da arte e cultura, em suas dimensões políticas, sociais, econômicas e históricas, são colocados como possíveis de serem trilhados no âmbito latino-americano. A coletânea encerra-se com a discussão de Bruno Henrique Bezerra Silva, Caminhos musicados da resistência: Brasil e Uruguai (1967-1973), em que são incluídas reflexões comparativas a respeito da América Latina pela música brasileira e uruguaia. Questões e contextos políticos, sociais e econômicos somam-se a configurações e panoramas de produção cultural que também são apresentados e analisados. Desejamos aos leitores uma ótima experiência de leitura dos debates aqui reunidos, tendo no horizonte as reflexões, experiências e partilhas sobre a América Latina. Júlio César Suzuki Maria Margarida Cintra Nepomuceno Gilvan Charles Cerqueira de Araújo [Organizadores] 5 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA ARTISTAS IMIGRANTES EM SÃO PAULO: O PAPEL DA ARTE NA INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA Adriana de Carvalho Alves Braga1 Francisco Prandi Mendes de Carvalho2 À Oriana Jara Maculet, in memorian3 APRESENTAÇÃO No texto, discutimos a produção cultural de artistas imigrantes latino-americanos e seu papel na integração da América Latina através da circulação de saberes, destacando temas como o papel da Arte na integração da América Latina, a migração como elemento de promoção de intercâmbio da produção cultural da regional e a recepção do trabalho produzido por artistas sul-americanos. Destacamos a produção localizada na cidade de São Paulo, onde esse intercâmbio cultural se manifesta através da música, da dança e das Artes Plásticas, entre outras linguagens, e o engajamento desses artistas promove o estreitamento dos laços entre seus contextos de origem e o Brasil. Com o propósito de identificar, na produção artística, elementos de integração da América Latina, ao longo do texto relacionamos os saberes produzidos pelos sujeitos imigrantes à construção de uma cultura regional dialógica. Para atingir tal intento, recorreremos a abordagem da leitura cultural proposta por Seixas (2016) buscando desvelar como os artistas narram sua produção e que apontamentos têm sobre seu papel na integração da América Latina. Para construir essa teia narrativa, realizamos entrevistas com quatro artistas que se dedicam a diferentes linguagens, e a seleção dos participantes atendeu a critérios de equidade de gênero, multiplicidade de linguagens e representação das nacionalidades 1 Doutora em Educação, Arte e História da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: andritsena@hotmail.com 2 Mestre em Sociologia. Universidade de São Paulo. E-mail: francisco.prandi.carvalho@usp.br 3 Oriana Jarra Maculet, incansável lutadora pelos direitos dos imigrantes, pela dignidade humana, contra a violência de gênero e grande incentivadora dos coletivos culturais de São Paulo. 6 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA latino-americanas produtoras de conteúdo cultural em São Paulo. A partir desses critérios, participaram desse estudo a dançarina paraguaia Patrícia Villaverde, o ator boliviano Juan Cusicanki, o músico colombiano Aleksey Benavides e a muralista chilena Verônica Ytier. Um dos estudos mais significativos sobre a imigração latino-americana no Brasil foi produzido por Margherita Bonassi (2000) que no livro Canta, América sem fronteiras, evidenciou a intrínseca relação entre o processo migratório, a produção cultural e a busca da cidadania. Naquele momento, as preocupações giravam em torno dos mecanismos de regularização migratória e grande parte do trabalho foi dedicada a desvelar a trajetória desses imigrantes na luta pelos direitos sociais. A propósito do percurso investigativo, a pesquisadora destaca sua atuação participante-militante, o que possibilitou “a descoberta do ‘valor de ser e diferente’, o ‘valor e a riqueza de cada cultura, a própria e a dos outros’ e a descoberta da ‘migração como nova forma de viver’” (BONASSI, 2000, p. 20). Na cidade de São Paulo contemporânea, podemos antever que os desafios das comunidades são outros, especialmente por conta da construção de políticas migratórias4 pertinentes ao contexto migratório, que incidem sobre a garantia de direitos, reconhecendo o caráter multicultural da sociedade. Todavia, permanecem os desafios de inserção desses sujeitos à sociedade e, a esse respeito, a produção cultural cumpre destacado papel. As narrativas são discutidas e interpretadas à luz das discussões da migração simbólica e do multiculturalismo. Através dos depoimentos dos artistas, pudemos verificar como eles se situam em relação ao contexto de produção, espaços de circulação e a percepção sobre a contribuição do seu trabalho para a integração regional. O texto parte da vivência dos autores convivendo com imigrantes originários de diversos países da América do Sul. Nos conhecemos no ano de dois mil e onze, em um Festival Folclórico Chileno realizado no Memorial da América Latina e foi em diálogo com essa e outras comunidades que demos passos importantes na nossa trajetória partilhada. Temos vivenciado essa experiência compartilhando o palco através da 4 A esse respeito destacamos a Política Municipal para a População Imigrante (Lei Municipal 16.478/16), o Conselho Municipal de Imigrantes e outras ações institucionais destinadas às comunidades imigrantes residentes em São Paulo. Em âmbito nacional, ressaltamos a revisão da política migratória através da instituição da Lei de Imigração (Lei Federal 13.445/17). 7 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA atuação, primeiramente no grupo Canto Libre, e mais recentemente no conjunto Chile Lindo, momento de muito aprendizado para ambos. Como brasileiros, a oportunidade de conviver com essas pessoas propicia cotidianamente a compreensão de diversos fenômenos históricos e culturais da região e, através da produção artística, alargamos nossa compreensão sobre nossa latinidade. IMIGRANTES: INTELECTUAIS DA CULTURA Parece-nos importante iniciar esse exercício teórico discutindo o caráter dos artistas enquanto intelectuais, pois a condição migratória os conduziu a expressar-se através da produção artística, na sociedade receptora. Considerando os aspectos da migração simbólica, especialmente na redefinição identitária a partir do processo migratório, é fundamental compreender como as identidades se mobilizam no exercício dos papéis desempenhados pelos sujeitos na experiência social. Manuel Castells sugere uma diferenciação entre as identidades e os papéis sociais e, para ele “em termos mais genéricos, pode-se dizer que identidades organizam significados, enquanto papéis sociais organizam funções” (CASTELLS, 2018, p. 55) e, para a análise do fenômeno que nos propomos a investigar, essa definição é oportuna. Contribuindo para a compreensão sobre o significado dos papéis sociais, Castells (2018) afirma que estes são definidos a partir de negociações entre os sujeitos e as instituições e organizações da sociedade. Já as identidades são construídas em contextos marcados por relações de poder (CASTELLS, 2018, p. 55-56). Portanto, cabe coletar na narrativa desses artistas, elementos que possibilitem identificar o modo como suas identidades são constituídas e como se relacionam com as relações de poder para se afirmarem como sujeitos produtores de cultura cumprindo o papel de intelectuais. Ao discorrer sobre a natureza do trabalho intelectual, Gramsci (2001) alerta que as determinantes a serem consideradas para definir a função de intelectual na sociedade de classes devem ser balizadas por critérios fundados nas relações de poder desenvolvidas no seio dessas sociedades. Ao afirmar que “seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais”, Gramsci (2001, p. 18) situa que a posição de intelectuais é atribuída pelas funções socialmente legitimadas. Por essa razão identificar, na atividade artística, as 8 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA características desse trabalho intelectual praticado pelos sujeitos requer “buscá-lo no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto geral das relações sociais” (GRAMSCI, 2001, p. 18). Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar (GRAMSCI, 2001, p. 52-53). Não se trata, portanto, de relativizar os sujeitos em suas funções sociais, mas reconhecer que no seio de suas atividades artísticas está engendrada uma concepção de mundo que pode dialogar ou colocar em xeque os implícitos culturais nos quais ele se desloca socialmente. Nessa perspectiva de trabalho intelectual, é importante asseverar que esses artistas superam as assimetrias de poder porque os intercâmbios são realizados entre as camadas populares. Essa perspectiva é importante porque não é nosso interesse discutir cultura de forma genérica, mas situar a produção cultural de forma concreta, considerando as relações sociais, que são marcadas pelo recorte de classes e de disputa do poder. Para auxiliar nessa compreensão, é relevante retomar a produção de Chauí (2008), que na obra Cultura e Democracia, expõe algumas teses que nos ajudam a compreender a problemática que estamos desenvolvendo nesse texto, especialmente quando refletimos sobre a produção cultural. Para a filósofa, a cultura remete ao “trabalho criador e expressivo das obras de pensamento e de arte” (CHAUÍ, 2008, p. 61), o que choca, perturba, provoca, faz pensar, trazer informações novas; é a produção que se contrapõe ao que é vendido pela indústria cultural. Essa perspectiva é ampla e discutida no âmbito antropológico, que se opõe à caracterização dos fazeres culturais a partir das belas artes. Outro ponto importante que podemos subtrair das reflexões de Chauí (2008, p. 61) é a distinção do campo cultural em face a outras dimensões da vida social. Para ela, cultura é trabalho criador de sentido - que captura e interpreta o mundo -, é ação 9 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA produzida para aguçar o pensamento, a reflexão e imaginação e é direito dos cidadãos, no âmbito fruição, da produção e da participação na política cultural. Nessa compreensão, a cultura dever ser exercida como direito numa sociedade de classes, na qual “os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural” (CHAUÍ, 2008, p. 66). Essa perspectiva de cidadania cultural defendida pela filósofa é válida para o nosso exercício de situar a produção cultural desenvolvida pelos artistas imigrantes latino-americanos em São Paulo, entendidos como sujeitos políticos minoritários. Sobre a produção artística imigrantes em São Paulo, um importante mapeamento foi realizado por Branco (2016), que discute a alteridade imigrante como a insistência no direito à existência da diferença, especialmente em ser culturalmente ‘outro’ em relação a uma hegemonia monocultural. Para Branco (2016, p. 4-5), ser imigrante é ser alteridade e “negociar todos os dias os contornos de sua existência numa sociedade majoritária, iludidamente homogênea e nacional. No mesmo caminho, a união imigrante (...) é também ato político diante dessa mesma sociedade hegemônica”. Partilhamos com a pesquisadora a compreensão de que os agentes culturais imigrantes que produzem na cidade de São Paulo são atores fundamentais para a discussão do pertencimento latino-americano. Canclini (2008), ao refletir sobre a latinidade no contemporâneo, afirma que “o latino-americano anda à solta, transborda seu território, segue à deriva em rotas dispersas” (Canclini, 2008, p. 27). As interpretações sobre o lugar ocupado por essa grande parcela da população mundial são talhadas a partir do significado da globalização nessa parte do mundo, e o sociólogo atribui ao fenômeno migratório um importante papel, pois “a intensificação das migrações está modificando de muitas maneiras a localização da ‘latino-americanidade’ no mundo” (Canclini, 2008, p. 27) e esses apontamentos são muito valiosos para a problemática que nos dispusemos a analisar, especialmente no que tange à migração simbólica. Considerando que ocorre uma redefinição identitária ocasionada a partir do processo migratório, torna-se estimulante a tarefa de desvelar como o deslocamento dos sujeitos latino-americanos promove a difusão dos saberes que podem contribuir para o intercâmbio regional. Todavia, nesse exercício, precisamos considerar o alerta do 10 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA sociólogo ao advertir que “queremos, não captar uma identidade latino-americana autocontida, mas apurar como os velhos e novos processos se entrecruzam” (CANCLINI, 2008, p. 26). Esses novos e velhos processos podem ser entendidos, nas finalidades desta reflexão, como a historicidade que permeia a presença desses sujeitos na cidade. A presença de imigrantes na cidade pressupõe a definição desta como multicultural e, a esse respeito, tratamos a temática a partir da perspectiva de Hall (2018). O autor define o multiculturalismo enquanto termo qualificativo, que descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e esse é um traço da formação da cidade de São Paulo; já o multiculturalismo se refere as iniciativas do Estado em gerenciar as diversidades (HALL, 2018, p. 57). E, finalmente, cabe ressaltar o caráter simbólico da migração já que, para Seixas (2016), a migração não se resume ao deslocamento físico de um corpo pelo espaço geográfico, pois o estudo das migrações “pode e deve abranger a migração emocional, a espiritual, a idílica. O indivíduo ou grupo migra sempre que se deparar com elementos de outro repertório simbólico cultural que não o seu, independentemente de esse encontro resultar em situação conflitiva” (SEIXAS, 2016, p. 19). É nessa abordagem da migração simbólica que conduzimos nosso trabalho, buscando identificar quais elementos culturais os artistas imigrantes ressaltam em sua narrativa. CAPTURANDO OS SABERES QUE CIRCULAM O diálogo com os protagonistas deste estudo foi subsidiado por um roteiro semiestruturado, composto por questões relacionadas ao projeto migratório que os trouxe ao Brasil e as pessoas com quem interagiu ao chegar à São Paulo. Sobre o trabalho artístico, perguntamos se, em seu país de origem, já desenvolviam trabalhos artísticos e como percebem a recepção do público em São Paulo e em quais espaços se apresentam. Finalmente, convidamos os participantes a refletirem sobre o papel da linguagem artística que desempenham para a integração da américa Latina. Essas questões – que foram adaptadas de acordo com a linguagem artística dos participantes – nos auxiliaram a seguir um fio condutor e, ainda que não haja 11 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA semelhança entre as respostas, possibilitam que desvelemos os elementos simbólicos selecionados por eles para conduzir sua narrativa. As entrevistas foram realizadas no início do ano de dois mil e vinte e um e, em virtude do contexto pandêmico que nos impele ao isolamento social como uma das formas de prevenção da Covid-19, utilizamos o ambiente virtual para coletar os depoimentos, de forma síncrona. Optamos por transcrever os discursos e, ao término dos quatro relatos, procedemos a uma ligeira análise, uma vez que os depoimentos falam por si mesmo, não sendo necessárias mediações mais profundas. ALEKSEY BENAVIDES: A MÚSICA É UMA LINGUAGEM QUE TODOS SABEMOS FALAR Colombiano de Bogotá, Aleksey Benavides migrou para São Paulo em dois mil e catorze, aos vinte e sete anos. Sua formação é em Engenharia Química e essa é sua ocupação profissional principal. Ele nos conta que migrou sozinho e veio morar com familiares, também colombianos. Conhecemos Aleksey em dois mil e dezesseis, através do trabalho musical dos dois grupos aos quais ele participa, o Tríptico Caribe e os Cambamberos. Imagem 1 - Aleksey Benavides em apresentação do grupo Tríptico Caribe. I Fonte: acervo do artista. Quando convidado a refletir sobre o projeto migratório que o trouxe ao Brasil, ele não entende que esse processo fez parte de um ‘projeto’, mas de uma busca pessoal. 12 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA “Cara, não. Assim, eu não vim objetivo específico, não vim para estudar, trabalhar ou a passeio, vim porque surgiu a possibilidade de morar em São Paulo com um dos meus primos que mora aqui, mas depois de ter suficiente tempo para pensar o motivo de estar aqui, eu concluo que eu vim me procurar aqui no Brasil. Foi uma coisa mais pessoal que eu consegui entender depois. Num sentido pessoal, inclusive num sentido imigrante que eu não tinha na cabeça, pois morei até os 26 anos em Bogotá. Eu nunca imaginei estar nessa, não sei se dá para chamar de condição, de fazer parte desse grupo imigrante do mundo. Então eu acho que vim redescobrir algumas coisas que eu não estava entendendo na minha vida e aqui eu consegui me encontrar de certo modo” (Aleksey, 2021). Para Aleksey, sua chegada ao Brasil possibilitou que ele experimentasse essa nova condição, ao participar do grupo de imigrantes. Ele nos conta que, no primeiro ano que chegou ao Brasil, interagiu inicialmente com as pessoas da sua família. O contato com outras pessoas, para além do seu círculo família, veio quando ele iniciou cursos livres na EMESP Tom Jobim5, onde conheceu brasileiros e imigrantes, bem como através dos cursos de Português realizados no Consulado da Colômbia em São Paulo. Em Bogotá ele já havia estudado música em uma escola pública de formação de músicos e participava do coral dessa instituição. Além disso, ele estava começando um trabalho artístico com um amigo violonista, projeto que foi interrompido quando surgiu a oportunidade de migrar para o Brasil. Quando perguntamos sobre a recepção de seu trabalho no Brasil Aleksey avalia que o público é bastante receptivo e salienta que tem se dedicado a propostas musicais distintas daquela que constitui seu objetivo musical, que é a música autoral, com voz e violão. Apesar desse gosto pessoal, ele nos conta que acabou ‘se encontrando’ nas propostas dos grupos Tríptico e Cambamberos, que são mais dançantes ou, sem sua definição, são ‘tropicais’. “as pessoas são receptivas com esse tipo de música, esses tipos de ritmos, propostas, ainda mais os Cambamberos, que traz um conteúdo migrante forte, acho que é bem... acho que complementou as nossas propostas e trouxeram um pouco do que as pessoas já conheciam e trouxeram mais da nossa cultura, então considero que a resposta do público presente na cidade de São Paulo tem sido muito receptiva, de aceitação” (Aleksey, 2021). 5 A EMESP Tom Jobim é a Escola de Música do Estado de São Paulo, uma instituição do governo do Estado de São Paulo que proporciona formação musical para crianças e jovens e cursos de aperfeiçoamento para músicos. Fonte: http://emesp.org.br/escola/ . 13 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Em sua percepção, o trabalho com a música intimista enfrenta o obstáculo de disputar espaços, uma vez que já existem muitas propostas a esse respeito; já a música ‘hispano americana’ tem um diferencial que atrai o público. A respeito da recepção, Aleksey reflete que ainda que o espaço seja competitivo, São Paulo “é um lugar que recebe proposta de todo tipo, por ser uma cidade migrante (...) eu acho que as pessoas estão abertas ou a grande maioria está aberta a escutar novas propostas seja intimista, seja dançante”. Sobre os espaços em que desenvolve seu trabalho, Aleksey informa que em São Paulo conseguiu conquistar bastante lugares, tanto com Tríptico quanto com os Cambamberos. Em relação ao Tríptico, as apresentações ocorrem em casas noturnas, como o Exquisito, mas também no Centro Cultural Butantã, bibliotecas, alguns saraus também, na rede SESC e algumas festas particulares. Aleksey manifesta a preferência por públicos mistos, brasileiros e imigrantes, pois, para ele, as pessoas se animam mais. Já em relação ao trabalho com os Cambamberos, ele ressalta que o público é bem parecido. Sobre projetos futuros, Aleksey demonstra o interesse em ampliar o público através da apresentação em comunidades que ainda não tem acesso a alguns bens culturais. Para ele, faz falta esse contato com outros públicos. Diversos ritmos colombianos o influenciaram e, para Aleksey, na Colômbia a produção musical é enorme. Ele cita artistas como Joe Arroyo, Carlos Vives, Edson Velandia, Totó la Momposina e ressalta a importância dos artistas da música campesina, da salsa e do rock, afirmando que, em Bogotá, “se vive bastante o rock”. 14 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Imagem 2 - Aleksey Benavides em apresentação do grupo Cambamberos. Fonte: acervo do artista. Considerando essas influências e a trajetória artística do entrevistado, nos interessou saber se algum elemento cultural que ele teve contato aqui no Brasil o marcou, a ponto de ele pensar em incorporar ao seu trabalho artístico. Aleksey retoma suas memórias de quando ainda vivia na Colômbia, em uma fase de sua vida que nem aventava a possibilidade de migrar e, através de pesquisas, descobriu a Bossa Nova. Para ele, esse gênero musical exerceu grande influência sobre o seu trabalho autoral. No entanto, a migração possibilitou que ele tomasse contato com outras vertentes da música brasileira. “(...) eu não fazia ideia de que existia um nordeste que tem seus ritmos próprios, seus ritmos dançantes, então já morando aqui aparece para mim o forró e todos os ritmos que fazem parte dessa cultura, que hoje penso fazem também parte do universo da música caribenha. Um dia eu pretendo misturar dentro das minhas músicas e dentro de um projeto de banda dançante elementos da música nordestina que considero têm muita conexão com os nossos ritmos do caribe, pois compartilham um objetivo comum, fazer o público dançar, igual faz a salsa, a cúmbia, etc. Então eu gostaria muito de trazer essa parte nordestino, além claro, das outras influências como samba, bossa nova” (Aleksey, 2021). Notamos, através desse trecho da narrativa, a perspectiva da tradução intercultural do artista, especialmente quando ele compreende a partir da ideia da conexão dos ritmos. A migração possibilitou que Aleksey conhecesse os ritmos nordestinos, permitindo que ele reflita sobre a reelaboração do repertório cultural 15 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA adquirido no seu país de origem, incorporando os novos elementos ao seu processo artístico. A esse respeito, ele prossegue, destacando algumas semelhanças entre a salsa, o forró e a cumbia. “(...) são músicas do povo, populares, folclóricas, regionais e isso faz toda diferença é.… são ritmos que juntam as pessoas. Eu particularmente não gosto de alguns ritmos dançantes em que a proposta é você dançar sozinho, é... eu acho que a dança, me parece que é a junção das duas pessoas, é muito importante, então eu acho que ali é uma grande semelhança porque também fazem parte de tradições regionais né, então é apresentação da nossa cultura latina, e... mesmo que o, que o forró digamos não seja tão caribenho falando em região, eu acho que a alegria que a música traz tem tudo a ver, inclusive tem alguns instrumentos parecidos, tem a sanfona aqui, pra gente aqui tem o acordeão da cúmbia e do Vallenato e isso já, isso já traz uma ponte entre os ritmos” (Aleksey, 2021). Evidencia-se, na transcrição acima, sua compreensão de que a música popular é uma face importante da apresentação da cultura latina e, nessa discussão, cabe colocar em evidência o papel do produtor. A esse respeito, perguntamos qual era a percepção do trabalho do artista no seu país de origem, na Colômbia esse houve alguma mudança a partir do processo migratório. Aleksey considera que a migração possibilitou que ele reforçasse essa ideia do que significa ser artista quando chegou ao Brasil, pois na Colômbia ele não tinha tanto contato com pessoas do meio musical. No Brasil ele estabeleceu contato tanto com colombianos, quanto com outros imigrantes e brasileiros, o que contribuiu para que enxergue o trabalho do artista “com muita força né... E acho que nessa ideia de resistir, de usar arte como uma resistência é... Colômbia, Brasil em geral, dá para falar que o artista é isso, é uma resistência através do talento, do sentimento, do coração, da mente”. Sobre o papel de resistência do artista, Aleksey complementa. “A gente vive momentos difíceis sociais, políticos, de violência. Eu venho de um país violento que usa a arte como uma forma de respirar né, de confrontar também muitas realidades que a gente vem vivendo há muito tempo, ironicamente, acho engraçado, eu vim da Colômbia de uma situação tensa, política e socialmente falando, e aí eu chego no Brasil que está igual (...). Então eu vejo que a arte seja a única, a última ferramenta que nos resta para resistir a esses tempos, pra poder inclusive expressar tudo que a gente sente em momentos assim, e acho 16 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA que inclusive, ironicamente, momentos difíceis servem pra que a arte ganhe um peso maior e ela consiga movimentar o mundo.” (Aleksey, 2021). Finalmente, Aleksey é convidado a emitir sua opinião sobre a importância da música para a integração da América Latina e ele inicia informando que realizou um trabalho de conclusão de curso de pós-Graduação cujo tema foi a canção Pequeña serenata diurna, do cubano Silvio Rodriguez, e esse tema da integração através da música foi abordado em seu trabalho. Falando sobre seu percurso de investigação, Aleksey assinala que a adaptação feita por Chico Buarque para essa canção foi um marco da integração musical. “(...) minha conclusão né, que foi um ponto de partida para que por exemplo a MPB da época e a trova cubana se juntassem e começassem a fazer versões dos outros e aí abre o portão para que outros músicos tenham contato com repertorio cubano e isso nasceu a partir da música, do interesse de juntar as ideias, lutas, harmonias, melodias. Então eu acredito totalmente que a música seja uma das armas que a gente tem para continuar trabalhando. Estar aqui hoje como imigrante, poder conversar com vocês sobre o trajeto musical aqui no Brasil que eu confesso que nunca imaginei que ter... Então não tem como não ser uma forma de juntar, afinal a música é uma linguagem é que todos sabemos falar” (Aleksey, 2021). Através do resgate dessas memórias e afirmação de percepções - sobre o significado de ser um artista imigrante em São Paulo – notamos que a música se insere nesse processo de reelaboração para Aleksey. É através da música, essa linguagem que todos sabemos falar, que Aleksey se comunica e transita nesse grande cenário, que é a cidade de São Paulo. JUAN CUSICANKI: A ARTE NÃO TEM FRONTEIRA Natural de La Paz, Bolívia, Juan Cusicanki tem cinquenta e quatro anos e migrou para o Brasil em 1980. Sua ocupação profissional é de projetista de balões infláveis, seu ‘ganha pão.’ Com a empresa de balões, Juan trabalha com cenografia, lançamentos, eventos, e diz que é uma profissão que também trata de arte. Com formação de ator de teatro, Juan Cusicanki também atua como performer, músico e 17 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA dançarino. Conhecemos Juan através da atuação na peça de teatro Camiños invisibles... la partida6 e pelo trabalho musical do grupo Kollasuyu Maya. Ele nos conta que, na Bolívia, já era músico e dançarino e a migração para o Brasil ocorreu com um grupo musical, o Karumanta, montado para fazer turnês pela região. Antes de vir ao Brasil, esse grupo, definido por ele como autóctone (não folclórico), havia se apresentado em um festival em Medelín (Colômbia), no Peru, também em Oruro e Cochabamba. Após esse circuito, retornaram para La Paz e decidiram vir ao Brasil, numa viagem de trem cheia de aventuras. Juan chegou ao Brasil com catorze anos de idade, e nos conta que era o ‘mascote’ do grupo. Sobre esse projeto migratório, Juan explica que o objetivo do grupo Karumanta era chegar a América Central, passar pelo México e o Canada e depois, ir pra Europa, e confessa que: “(...) o Brasil é tão grande, que a gente se perdeu por aqui. E aí chegamos no Carnaval né, [e disseram] "não, que isso, vamos tocar né". Lá na Bolívia os grupos se misturam e tocam, é tudo livre. Carnaval é livre lá e aí a gente vem aqui e de repente na avenida Tiradentes só tinha samba, né? Aquelas escolas de samba passando e imagina um grupo de índios com poncho e chapeuzinho e tocando essas músicas, nada a ver. E o povo estava a fim de orgia, de brincar, de dançar, de namorar, outras coisas e a gente estava com essa coisa de história, né!” (Juan, 2021). Juan relembra que seu grupo foi muito bem recebido pelos seus compatriotas. Naquela época, já havia uma comunidade estabelecida em São Paulo, composta por negociantes, autônomos, médicos, donos de oficinas de costura e músicos, que indicavam o grupo para apresentações em restaurantes bolivianos. Além de auxiliar nessas contratações, seus conterrâneos também ofereciam estadias temporárias em suas residências. O grupo Karumanta teve uma vida breve, se desfez em cerca de um ano e alguns integrantes voltaram para a Bolívia, mas Juan e outros três companheiros optaram por permanecer no Brasil. 6 Dirigida por Carina Casuscelli e Lenerson Polonini, da Cia. Nova de Teatro, peça trata da migração, tratando de temas como exploração do trabalho e ancestralidade. Em 2012 Camiños Invisibles-la partida recebeu o Premio Internazionale per il Teatro dell’Inclusione Teresa Pomodoro, em Milão, Itália. A peça foi elaborada com uma trilha sonora que teve por base o grupo Jacha Sicuris de Italaque. 18 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Imagem 3 - Juan Cusicanki. Fonte: acervo do artista. Quando perguntado sobre os valores da cultura que ele procura compartilhar, Juan afirma que são os valores históricos e ressalta a cultura Aymara, sua origem étnica. Além de cantar e recitar em seu idioma nativo, Juan ressalta a importância da respiração, e reflete sobre essa consciência corporal “em São Paulo, uma metrópole tão grande, a gente se esquece de respirar, esquece de sentir as coisas, por isso talvez muita gente sofre de asmas né?”. Ao tratar da percepção sobre o trabalho do artista no seu país de origem, Juan diz que na Bolívia tinha outra visão, que queria conhecer o mundo com a música autóctone boliviana e, ao chegar ao Brasil, se deparou com algumas dificuldades, como a língua e colonialidade. “A coisa colonial muito é forte aqui e talvez a gente [bolivianos] não tem mais isso. Essa é a grande diferença, [...] o artista boliviano não tem mais essa fronteira do colonialismo, né? O brasileiro de forma geral ainda está dividido, se perde talvez nessa história, que é diferente do boliviano. o boliviano ele é de um lado ou do outro, ou é de direita ou esquerda, esquerda ele sabe que não existe mais o colonialismo, sabe que tem uma história, a história pós 1500, história antes de 1500, a história dos incas, antes dos incas e depois. Isso é muito forte e agora com chegada do Evo Morales se torna mais forte ainda” (Juan, 2021). Para Juan, a chegada de Evo Morales à presidência da Bolívia significou uma ruptura com a história colonial e um fortalecimento das culturas originárias em seu país. Rememora situações de preconceito que ele e sua família viveram em décadas anteriores, por serem indígenas, mas salienta todo o processo de resistência, e conclui “a 19 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA gente é originário tem a nossa história... E não tem como a gente tirar isso, está no nosso sangue”. “E aí chega Evo Morales e levanta a nossa moral, [...] do Quéchua, Aymara e outros mais, e aí Evo Morales muda a constituição apoiado pelas 36 nações indígenas. Muda a constituição que agora volta, né, depois de sofrer um golpe em 2019, agora volta o povo (...), talvez de uma forma diferente, mais forte ainda e eu acho que a gente é essa história, e essa história que a Violeta Parra falava, essa história que a Mercedes Sosa gritava, os outros também... os cubanos, argentinos. Então é essa e nada mais, eles cantam a essência do latino né?” (Juan 2021). Percebemos que, na perspectiva de Juan, os processos políticos ocorridos na América Latina, de empoderamento das populações originárias, é uma continuidade da resistência histórica. E notamos que, em sua narrativa, o artista adquire importância nessa luta política e, sobre as estratégias utilizadas nesse trabalho artístico, Juan traça algumas definições. “Uma mistura de música autóctone, misturada com teatro, fica muito mais viva, forte (...). Em alguns trechos o público se envolve na história, então é muito importante as junções das linguagens, do teatro, da música, eu coloco sempre à música histórica. E, hoje em dia, ainda um pouco mais através da performance. A performance, como linguagem contemporânea, é mais impactante (...) porque na performance não se sabe no que ela vai dar, até onde ela vai fazer. Ela é mais surpreendente, vai surpreender até o próprio diretor que não sabia de algumas coisas” (Juan, 2021). O trabalho artístico é exemplificado como uma ação ativa e, para Juan, “(...) é uma coisa muito recíproca, do artista fazendo e o público respondendo. É uma coisa viva, sabe? É uma atividade, uma reatividade, é uma coisa viva”. Interessava-nos saber sobre o público que é atraído para as apresentações e Juan nos informa que, nos últimos anos, esse é composto principalmente por jovens bolivianos da segunda geração. Ele nos relata que têm participado de eventos na própria comunidade e relembra um episódio recente, em que foi convidado a participar de uma cerimônia de casamento em um cartório, aqui em São Paulo. A performance por ele apresentada remeteu a um costume da Bolívia, e ele entoou canções no idioma Aymara. Sobre essa experiência relata que, tempos depois, encontrou um dos convidados que 20 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA assistiu a celebração, um senhor que se emocionou ao relembrar essa performance. Diante da emoção desse seu compatriota, Juan o reconfortou: "isso só faz parte da nossa história". Outra experiência similar a essa é narrada. “(...) no ano passado, faz uns três meses... era noivado, em Guarulhos. Primeiro chega a família, toca a porta é meia noite...aí eles conversam e a gente tá lá fora, esperando. Nisso conversa vai, conversa vem, abrem a porta, entra só as pessoas que vão pedir a mão da moça. Depois eles falam assim " a gente veio pedir a mão da sua filha, mas a gente trouxe umas bebidinhas para vocês" aí entra o garçom leva a bebida, né? E aí deixa eles bêbados e depois no meio a gente já entra contando já para levar [a moça] embora. E aí tem os abraços, acho que esse intervalo uma meia hora, uma hora de que a gente vai tocando sicuri, as músicas tradicionais... e a gente leva a noiva tocando. Só que aqui é longe, lá [na Bolívia] é perto, uma montanha ou um outro bairro e aqui não! A gente chegou de três Kombi e entramos lá, levamos a noiva e chegamos aqui no Brás (risos)” (Juan, 2021) Esses dois episódios nos impressionaram porque evidenciam o caráter simbólico da migração. Uma tradição cultural do casamento é trazida pelas pessoas que migraram da Bolívia para São Paulo, passa por algumas adaptações, mas permanece através das práticas simbólicas da vida social. Outro elemento cultural ressaltado por Juan é a figura de Ekeko, personagem símbolo da Fiesta de las Alasitas. Em São Paulo, Juan foi incumbido de interpretar Ekeko na festa há 11 anos, e ele reflete sobre essa atuação salientando que “Ekeko é toda uma história milenar também, é milenar essa história e quando eu fui convidado eu já sabia o que ia acontecer (...) meu olhar não era de artista, intelectual, de músico, de ator, nada... simplesmente o meu olhar foi de pesquisador de performance”. 21 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Imagem 4 - Juan Cusicanki realizando a performance de Ekeko. Fonte: acervo do artista. Para Juan, sua interpretação de Ekeko na Fiesta de las Alasitas representa um ritual xamânico de esperança e sonhos e “tem toda uma história atrás disso. Indígena, originária, toda uma história (...) aqui em São Paulo não morre mais”. Essa percepção do significado simbólico da festa e de Ekeko faz com que Juan considere que, mesmo quando ele não estiver mais incumbido de representá-lo, outros o farão. “(...) é uma coisa assim, isso é ímpar, uma coisa nossa: você tem um desejo esse ano, todo mundo tem um desejo esse ano, né? Eu quero ter trabalho, quero ter dinheiro, alimento em abundância, sempre temos [o desejo] que não falte. Alimentação, assim, é o mínimo, é o básico, mas daí se tiver abundância é melhor ainda! Então, é muito essencial para o homem isso, então todo mundo está dentro, ninguém está fora” (Juan, 2021). Sobre a importância da festa, Juan informa que no ano de dois mil e vinte reuniram-se mais de cinquenta mil pessoas no Parque Dom Pedro e, nesse ano, a celebração foi bastante reduzida, em virtude da pandemia de Covid-19. Mas, prossegue esperançoso “ano que vem esperamos que já tenha passado toda essa febre e vai ser uma coisa linda, grande, aberta, para todos, porque a história milenar do Ekeko é... essa é a nossa história originária andina, sabe? Dos Aymaras, Quéchuas, dos indígenas”. Refletindo sobre a importância da sua atividade artística para a integração da América Latina, Juan acredita que a influência latina que tem sido vivenciada pela chegada de artistas da Argentina, do Chile, que trazem toda a riqueza do continente. Essa influência dos vizinhos possibilita, de acordo com Juan, uma produção artística ‘menos colonialista’. 22 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA VERONICA URZÚA YTIER: A ARTE NÃO DEVERIA ESTAR SOMENTE NO MUSEU, ELA DEVERIA ESTAR TAMBÉM NA RUA. Verónica Urzúa Ytier nasceu em Santa Cruz, no Chile. Tem 71 anos e vive há trinta e oito anos em São Paulo. Veio para o Brasil em mil novecentos e oitenta e três com sua família. Sua profissão é Designer de Interiores, cuja formação se deu na Universidad Federico Santa Maria em Valparaíso. Imagem 5 - Veronica Ytier. Fonte: acervo pessoal da artista Sobre sua condição de imigrante no Brasil, Verónica reflete: “Penso que ninguém sai da sua terra por muita vontade. Existem os imigrantes económicos, os políticos e os que saem por razões familiares que é meu caso, pois me casei com um brasileiro. Quando você deixa o seu país carrega consigo sua cultura, seus costumes, seu idioma, e tudo isso vai estar sempre presente na sua vida. Isso faz com que você procure seus conterrâneos para se sentir mais à vontade e não se isolar. Mas a verdadeira integração se dá quando se começa a trabalhar e participar no seu novo país. E isto é o mais importante na sua nova vida porque vai participar da sociedade. Penso que um país é bom quando dá a oportunidade de trabalhar e ganhar seu sustento. Visitar um país como turista é diferente da realidade de viver nele, você só o conhece de verdade quando mora e trabalha nesse lugar. O mundo é grande, mas nem tanto. As pessoas são todas parecidas, independentemente de seu tamanho, cor ou sexo. Eu as divido em dois tipos: as que me tratam bem e as que não me tratam bem. Evidentemente eu me relaciono com as primeiras e as coisas correm bem. Na condição de imigrante você tem algumas limitações, mas no Brasil há muito que aprender, o que não é difícil pois o povo brasileiro é muito solidário. Sendo o Brasil um país de imigrantes se torna fácil a 23 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA integração e cada povo que aqui chega é bem acolhido” (Verónica, 2021). No Chile, Verónica já produzia Arte e nos conta que pintava quadros dos morros de Valparaíso “meu programa de sábado e domingo era pintar ou desenhar e depois pintava”. Fazia cursos de pintura na escola de Belas Artes de Viña del Mar à noite, e chegou a participar de uma exposição organizada por essa escola. Nessa época de sua juventude em Viña del Mar, Veronica pintava à óleo e chegou a vender quadros de sua autoria e receber encomendas para fazer retratos. Mas sempre trabalhou ligada ao setor de móveis e só nos últimos anos no Brasil começou a desenvolver o trabalho com murais. Sobre este trabalho, ela nos conta que este estilo de murais se desenvolveu no Chile no começo dos anos setenta no período da campanha de Salvador Allende e se estendeu ao longo do seu governo. Foi nesse período que conheceu as Brigadas Populares Ramona Parra. Suas referências na produção dos murais remontam à essa época, e Verónica destaca o trabalho de Alejandro Gonzalez, conhecido como Mono Gonzalez. Os jovens das brigadas usavam cores fortes e rostos expressivos que chamavam a atenção ao ser vistos de longe. Geralmente um deles riscava as figuras enquanto os outros iam preenchendo os espaços e o resultado era muito bonito. Os murais produzidos por Verónica são por encomenda e geralmente a artista e a instituição que solicita o trabalho conversam sobre a mensagem que o mural pretende transmitir. De posse dessas informações, a artista inicia o trabalho de composição das figuras e cores, em seu ateliê. O projeto é apresentado à instituição que solicitou e, no dia da elaboração coletiva, o público participa da pintura na parede ou muro, em interação com a artista. Os espaços que acolhem seu trabalho são diversos, e ela nos conta que já fez murais em escolas públicas municipais de São Paulo: EMEF Geraldo Sesso, na Brasilândia, EMEF Infante dom Henrique, no Pari e EMEF Maria Aparecida Rodrigues Cintra, na Freguesia do Ó. Realizou o mural “Arte Popular” na Universidade Federal de Santa Catarina para mostrar a arte muralista chilena. Posteriormente foi convidada para uma atividade no Encontro Nacional de Estudantes do Serviço Social (ENESS) dessa Universidade onde foi pintado o mural “Universidade Popular”. 24 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Imagem 6 - Mural “Por uma escola pública inclusiva” (2016), localizado na EMEF Infante dom Henrique. Fonte: acervo da artista. Em Diadema, grande São Paulo, foi realizado um mural na Casa Bete Lobo. Além disso, produziu murais para a ADURF7 que foram adaptados em outdoors na cidade do Rio de Janeiro. Uma característica do muralismo realizado pela artista em instituições é a participação das pessoas, que assumem junto com ela a produção da obra. A artista idealiza, elabora os desenhos, prepara as cores, mas não pinta o mural sozinha. Quem o produz é o público e, para ela, esse é o sentido democrático da arte que produz “Porque eu acho, assim, a arte não deveria estar nos museus, guardada. Tem que estar na rua para que a pessoa que passar pelo ônibus possa ver”. Sobre o trabalho em escolas, a artista atribui importância tanto a participação do público quanto à mensagem que é transmitida. E nos conta que certa vez enviou fotos e vídeos de seu trabalho para suas amigas no Chile e “todas falaram ‘que lindo (...), mas a tua equipe é maravilhosa’. Mas não é a ‘minha equipe’ era a escola! Então, é o povo fazendo arte! Entendeu? Isso que é bom! Isso não tem preço!”. O trabalho mais recente de Verónica em escolas foi o mural Mulheres incríveis8, realizado na EMEF Maria Aparecida Rodrigues Cintra em dezembro de dois mil e 7 ADUFRJ é a sigla da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O mural “Mulheres incríveis” fez parte do projeto “Mulheres Incríveis: dez histórias, dez inspirações”, desenvolvido pela professora Paula Rezende. Esse projeto, que teve por objetivo desconstruir o papel secundário das mulheres na sociedade, conquistou o 3º lugar no prêmio Professor em Destaque organizado pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo no ano de 2020. Fonte: https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/conheca-os-vencedores-do-premio-educador-em-destaque/ 8 25 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA dezenove. Nele, é rendida homenagem à memória de mulheres ligadas à história e à cultura brasileiras: Dandara, Aqualtune, Dona Ivone Lara, Sonia Guajajara, Mariele Franco, Pagu e Carolina Maria de Jesus. Sobre a mensagem desse mural, ela revela: “Era fazer lembrar nessa criançada, os alunos da escola, quem eram as mulheres que lutaram aqui, no? E o que elas fizeram. E qual era o recado? É mais ou menos assim "povo sem memória, não tem futuro" Porque você vai na história do Brasil e não encontra, e ninguém fala, ao menos que seja nessa comunidade. Dandara, por exemplo, não sabia quem era, eu aprendi montes com esse mural, sabe? Então, agora as meninas vão falar e ver quem são” (Verónica, 2021). Para as instituições educativas, o trabalho de concepção e produção dos murais geralmente é gratuito. A gestão da escola contribui adquirindo os insumos para a pintura e atraindo o público para a atividade. Mais um exemplo de colaboração do trabalho de Verónica no setor da educação ocorreu por meio da utilização do mural “Escola Inclusiva” no livro didático de Inglês para 8° ano da Editora FTD na matéria relativa a imigrantes. Imagem 7 - Mural “Mulheres Incríveis” (2019), localizado na EMEF Maria Aparecida Rodrigues Cintra. Fonte: acervo da artista. Em 2018 a artista participou de uma exposição9 no Memorial da América Latina juntamente a outros artistas plásticos chilenos residentes em São Paulo. Veronica nos 9 A Primeira Exposição de Artistas Plásticos Chilenos foi sediada no Salão de Atos do Memorial da América Latina, entre os dias 13 e 20 de agosto de 2018. 26 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA conta que no Chile o muralismo é uma prática cultural muito difundida “quando você vai a Valparaíso tem todas as ruas com murais, cada um faz do jeito que quer. É livre, pegou uma parede da tua casa e pinta, é um costume”. Relembra que, certa vez, caminhando por Valparaiso encontrou algo inusitado, um mural “com as cores do Brasil e lá estava escrito em português”. Diante de toda essa experiência artística e social qual seria, na visão de Verónica, o papel da arte para a integração da América Latina? Ela reflete que qualquer expressão artística é integração e ela percebe a relevância do seu trabalho através das encomendas de seus murais. “[...] o que me importa é a mensagem, eu pessoalmente tenho uma mensagem, falar eu não sei falar, se eu falo ninguém me entende (...). Colocar a tua mensagem é uma coisa que tá aqui dentro e o mural preenche tudo. Então, eu faço solidariedade no Brasil, o que me pedem eu faço, que é uma coisa que faz parte da minha pessoa, como chilena. Agora, tem gente que dança la cueca10, toca violão, faz isso e aquilo, cada um tem a sua arte e a minha é essa daí” (Verónica, 2021). No muralismo desenvolvido por Verónica notamos que a integração está relacionada ao conceito de interculturalidade, especialmente através da incorporação de elementos da cultura brasileira nos murais. “Então é isso que é importante também, porque mais ou menos a minha ideia é não ficar somente no elemento chileno, sempre ponho um indígena aqui do Brasil, pode ser indígena do Chile também ou os dois, entende? Algo que caracteriza o Brasil, uma planta, uma palmeira que é o Brasil. Então a ideia, não sei se estou equivocada ou não, mas a ideia é parar com essa coisa de colocar barreira... boliviano, colombiano, é tudo a mesma coisa!” (Verónica, 2021). Ao término do diálogo, uma sentença revela a relação da artista com o Brasil: “uma coisa fica clara, esse país é muito criativo, mas é outro estilo e é muito livre, sabe? Tem muita liberdade, isso é bom”. 10 A cueca é um estilo de dança muito popular nos países andinos. No Chile, é considerada a dança nacional. 27 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA PATRICIA VILLAVERDE: A DANÇA É VIDA, ELA EXPRESSA VIDA, É UNIR SEM PRECISAR FALAR Patricia Villaverde tem 48 anos e migrou do Paraguai com a família aos 5, em função de uma oportunidade de trabalho que seu pai recebeu no Brasil. Sua ocupação atual é bancária, mas também é professora e já exerceu a docência na Educação Básica. Quando chegou ao Brasil, sua família foi muito apoiada por uma senhora brasileira, dona Elisa, que é apaixonada pela cultura paraguaia e acolheu sua família nesse momento inicial: “Dona Elisa Soares, foi a primeira pessoa que recebeu meu pai e minha mãe aqui em São Paulo, ela foi a pessoa que indicou as primeiras coisas como... procurar uma casa, procurar escola para os filhos”. No Paraguai, Patricia já estava inserida, desde muito pequena, nesse universo artístico. “Lá no Paraguai eu já dançava, ou seja, bem pequenininha, aos três anos de idade. Eu tenho fotos (...) minha mãe guarda minha primeira saia de ensaio de dança paraguaia, ela tem até hoje e hoje eu empresto para algumas crianças, para minhas aluninhas, mas peço muito cuidado porque é uma relíquia, então com 3 anos de idade minha mãe já me colocou numa escola de balé e dança paraguaia” (Patricia, 2021). Sobre a recepção de seu trabalho no Brasil, ela diz que atualmente percebe que o público a recebe de forma “calorosa, carinhosa, espirituosa”, e avalia que esse acolhimento só é possível por conta da Arte. “Eu sofri muito preconceito, porque eu sempre falei em todo e qualquer lugar, ‘sou paraguaia’. Teve época que eu até falei assim comigo mesma "eu não vou falar, vou ficar quieta", porque dói muito certas brincadeiras, dói muito certas indiretas, dói bastante (...). Eu sou muito patriota, me dá muito orgulho falar do meu povo. Então com a Arte eu percebi esse outro lado da sociedade paulistana, do brasileiro, esse carinho que faltava quando eu falava que era paraguaia, eu recebo com a dança, com a Arte que a gente mostra, eu sinto esse respeito e isso me dá muito, muito orgulho mesmo de poder fazer, poder mostrar e continuar fazendo. Me dá uma alegria imensa, eu sinto que estou ajudando meu povo de alguma forma” (Patricia, 2021). 28 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Essa percepção é interessante pois a artista relata que sofreu situações de xenofobia, mas que o trabalho artístico possibilita que as pessoas possam conhecer e valorizar seu país e seus compatriotas e, para ela, “a dança quebra um pouco essa parede”. Imagem 8 - Patricia Villaverde. Fonte: Acervo da artista. Para Patricia, os elementos culturais do Brasil são incorporados ao trabalho do grupo Alma Guarani, do qual ela faz parte, pois existe uma proximidade muito grande entre o Brasil e o Paraguai. “Apesar de grande parte da população não saber, a gente é muito próximo (...) e a música sertaneja de raiz foi o que eu incorporei nas apresentações para poder falar dessa proximidade. E também a música sertaneja, por exemplo, a Helena Meireles, guitarrista, o avô dela era paraguaio, né? Poxa, um paraguaio avô deu o primeiro violão para ela e ela começou a tocar! Então o Paraguai está no Brasil, o Brasil está no Paraguai, se a gente for capaz de ver os pequenos detalhes que unem, a gente vai ser capaz de valorizar o outro e não discriminar mais, então eu acredito que isso é possível através da Arte” (Patricia, 2021). Ela prossegue dando outros exemplos dessa proximidade entre os dois países e cita as guarânias como exemplo: “Muita gente acha que Índia é uma produção 29 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA brasileira, ou Meu Primeiro Amor, né?”. E nos conta um episódio interessante a esse respeito. “Aquele filme ‘Lula, filho do Brasil o tema musical dele era uma guarânia paraguaia, e saiu na mídia falando filme ‘Lula filho do Brasil’ com a música popular brasileira ‘Meu Primeiro Amor’ e eu ouvi aquilo e pensei ‘Gente, eu não acredito!’, vamos corrigir isso! A gente fez um texto para mandar para a produção [do programa], falando que aquela música era uma guarânia, que se chama Lejania. O pessoal se retratou e falou "pedimos desculpas, porque domingo passado falamos que a música Meu Primeiro Amor é uma música popular brasileira e não, essa música é do Hermínio Gimenez, paraguaio, e a canção se chama Lejania. (Patricia, 2021). Essa dedicação em valorizar a sua cultura e mostrar a proximidade entre a produção cultural do Brasil e do Paraguai é, para ela, uma de suas tarefas enquanto artista. Patrícia nos conta sobre sua trajetória como bailarina, especialmente no grupo Alma Guarani. ‘Eu entrei no grupo Alma Guarani, em 96, 97, mas eles já existiam. Então o grupo Alma Guarani que não era com esse nome, se formou na igreja, ele tinha outro nome, tinha outras pessoas como todo grupo ele vai mudando, pessoas vão saindo, vão entrando pessoas... eu entrei em 97 com outro nome também, outra professora, depois foi indo. A professora saiu, teve outra que faleceu por problema de saúde e foi em 2003 que eu acabei assumindo a liderança porque não tinha ninguém e a gente ficou todo mundo "e aí, o que a gente vai fazer? Vai continuar..." e eu como amei muito foi uma coisa natural” (Patricia, 2021). O grupo Alma Guarani é composto por pessoas de diferentes nacionalidades e, a esse respeito, Patrícia reflete “qualquer pessoa de qualquer nacionalidade que goste, se identifique, tenha um carinho por essa cultura é bem-vindo”. Do grupo também participam brasileiros e brasileiras que não tem nenhuma ancestralidade paraguaia, descritos por Patricia como “brasileiros da gema” e, nesse aspecto, ela ressalta que a interação dos brasileiros no grupo é uma demonstração de um espírito de integração. “A gente é do mundo, a gente simplesmente nasceu em um local diferente, mas nós somos do mundo e que mundo é esse que faz parte, é um mundo de amor? (...) É um mundo de preconceito? Eu só nasci lá, eu tenho um outro idioma, uma outra história, mas sou do mundo 30 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA tanto quanto Francisco, tanto quanto Adriana... E eu acho que é isso que falta. (Patricia, 2021). Sobre os locais em que apresenta seu trabalho, destaca-se a Missão Paz, onde o grupo nasceu, onde o grupo Alma Guarani é convidado a participar das atividades culturais, como a festa da padroeira do Chile, e as festas do Peru. Nessas ocasiões, o público é composto majoritariamente por comunidades imigrantes, como peruanos, os chilenos, os colombianos, bolivianos. Outros locais onde o grupo se apresenta é o Museu da Imigração, que organiza anualmente a Festa do Imigrante, além de outros eventos culturais na cidade de São Paulo e fora da cidade de São Paulo. De acordo com Patricia, nesses espaços o público é composto majoritariamente por brasileiros. Outro elemento ressaltado na narrativa é que, muitas vezes, o público não os reconhece como imigrantes, “eles acham muitas vezes que nós somos brasileiros e estamos representando um outro país” e ela acredita que isso se deve ao fato de os participantes serem fluentes em Língua Portuguesa. Imagem 9 - Patricia Villaverde. Fonte: acervo da artista. Uma reflexão muito interessante foi desencadeada a partir do questionamento sobre o papel da dança na integração latino-americana, e Patricia inicia informando que sua tarefa é mostrar o folclore de seu país, o Paraguai, contudo, explica que não se trata apenas de mostrar com perfeição os passos de dança na apresentação. 31 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA “A roupa (...) mãos artesãs teceram, porque tanto a blusa dos meninos, a blusa das meninas são todas artesanais e feitas manualmente, então tem história de mãos artesãs, mãos paraguaias sofridas (...) e nós estamos aqui para mostrar. A manta que as meninas levam, preta, porque preto? Luto por uma guerra que aconteceu, pelos filhos, pelos maridos, pelos pais que se foram, elas carregam aquele manto preto, a mantilha. Há outra manta também, feita manualmente, de lã crua de ovelha e que mostramos a época do frio, do sofrimento... da mulher que teve que levantar um país. E essa mulher, tem muito historiador que diz, são heroínas, invisíveis. Todo mundo fala de Mariscal Lopez, mas ninguém fala daquela mulher que ficou sozinha e teve que levantar sozinha um país nas costas, trabalhando, sendo mãe, sendo pai. Porque ficaram mais mulheres que homens, e foram elas que levantaram, reconstruíram o país” (Patricia, 2021). A importância da mulher paraguaia é retratada nas apresentações do grupo, mas este também é composto por homens, e esse cotidiano dos ritos culturais e do mundo do também é representado pelo grupo. “O cântaro que é uma moringa de barro, e tem água, era para que? Quando tem as festas populares dos santos padroeiros, depois dos atos religiosos saem as meninas e dançam com aquele cântaro, mas o que significa aquele cântaro com água? Depois do ato religioso os romeiros e tropeiros ficam com sede, então as moças, as mulheres oferecem água para essas pessoas que estão com sede, então a gente retrata várias coisas, desde festas sazonais, até o cotidiano, o dia a dia, os homens na lida para colher a cana de açúcar e eles vão com aquele machado, então tem danças que eles [os bailarinos] fazem com o machado. Então é o dia a dia principalmente do homem e da mulher do campo” (Patricia, 2021). Por essa razão, para Patricia “a dança é vida, (...) ela expressa vida e o que ela faz é unir sem falar. A dança é capaz de comunicar, de informar, de transformar, de unir, sempre. Acho que não tem fronteiras, não existe tempo, a dança é capaz de fazer isso”. O caráter formativo e educativo é, para ela, o faz com que essa linguagem artística integre o artista à comunidade. INTELECTUAIS EM CIRCULAÇÃO NA AMÉRICA LATINA: DIÁLOGOS, INTERCÂMBIOS, REDES DE SOCIABILIDADE O processo migratório é simbólico quando o sujeito seleciona elementos do repertório cultural para compor uma representação sobre si mesmo e sobre o outro, 32 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA numa situação de interação, conforme apontado por Seixas (2016). No decorrer dos relatos, pudemos depreender que este movimento estava em curso, principalmente quando os participantes salientam os elementos de proximidade entre sua cultura de origem e a produção cultural brasileira. Exemplo disso pode ser constatada no relato de Aleksey, quando este reflete sobre as músicas populares e o uso de alguns instrumentos com sonoridades comuns, tais como o acordeón e a sanfona. Em relação aos gêneros musicais, essa percepção também é evidente no relato de Patricia, quando ela reflete sobre a música sertaneja e as guarânias. Considerando a definição de cultura de Chauí (2008), compreendida como trabalho criador de sentido, nota-se que todos os entrevistados revelam a percepção de que sua produção se coloca como elemento de interpretação crítica do mundo. Para Juan, o trabalho artístico é descrito como uma ‘ação ativa’, sendo essa uma atividade e reatividade que considera e induz a experiência do público, considerado elemento propulsor de seu fazer artístico. Sobre o caráter democrático da cultura, é relevante a reflexão de Verónica quando a artista afirma que a Arte “tem que estar na rua para que a pessoa que passar pelo ônibus possa ver”. Através do resgate das memórias e afirmação de sua percepção sobre o significado de ser um artista imigrante em São Paulo, a música desempenha um forte papel nas considerações de Aleksey, se inserindo nesse processo de reelaboração de uma identidade latino-americana, além de apontar como ferramenta de resistência e passível de tradução intercultural. Retomando as proposições de Castells (2018) é possível interpretarmos que essa a identidade migrante, que organiza os significados de Aleksey como um homem colombiano em São Paulo se soma ao papel de artista, e é a partir dessa função que ele situa sua produção artística, seja em seus trabalhos autorais, seja nas músicas dançantes. Sobre o Multiculturalismo, ressalta-se a narrativa de Juan quando ele considera a Fiesta de las Alasitas como algo que vai permanecer. De fato, as Alasitas foram incorporadas ao calendário oficial de festividades da cidade, fixada no dia 24 de janeiro de cada ano, o que evidencia a intervenção do Estado no gerenciamento das sociedades Multiculturais, através da institucionalização, conforme apontado por Hall (2018, p.57). A participação de brasileiros nas manifestações culturais dessas comunidades é elemento que demonstra não apenas o interesse desses imigrantes na integração 33 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA regional, mas demonstra a generosidade desses em se prestar ao papel educativo através da Arte. Contemplando a riqueza cultural ofertada pelos imigrantes, não titubeamos em afirmar que esses artistas são potência formativa. Foi essa percepção que nos estimulou a refletir sobre o papel dos artistas na integração da América Latina e, para tal, ouvir o que os próprios artistas têm a dizer foi elemento fundamental para a realização deste estudo. Os artistas são intelectuais que contribuem para o intercâmbio de saberes justamente porque, através da sua produção, agem na aproximação entre a sociedade brasileira e seus contextos de origem e, considerando que a cidade de São Paulo, notamos que esse intercâmbio é acentuado pelo protagonismo desses artistas. Foi na cultura latino-americana que os caminhos dos autores desse texto se cruzaram e, por essa razão, registramos nosso agradecimento aos agentes culturais que tem se empenhado na produção e circulação dos saberes em nossa região. ENTREVISTADOS Aleksey Benavides. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo. Dia 2 de fevereiro de 2021. Juan Cusicanki. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo. Dia 4 de fevereiro de 2021. Verónica Urzúa Ytier. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo. Dia 18 de fevereiro de 2021 Patricia Villaverde. Entrevista concedida de forma virtual, através do Skype, São Paulo. Dia 20 de fevereiro de 2021. Referências BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras: Imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2000. BRANCO, Cristina de. Agentes e atuações artístico-culturais imigrantes latinoamericanas contemporâneas na cidade de São Paulo e a invenção de novas latinoamericanidades. Anais do II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América Latina, 2016. CANCLINI, Néstor García. Latino-americanos à procura de um lugar neste século. São Paulo: Iluminuras, 2008. 34 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: a era da informação. Volume II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018. 9ª edição. CHAUI, Marilena. Cultura e democracia. In: Crítica y emancipación: Revista latinoamericana de Ciencias Sociales. Buenos Aires: CLACSO, Año 1, nº 1, jun. 2008. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Ed. e trad. de Carlos N, Coutinho. Coed. de Luiz S. Henriques e Marco A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 2ª ed. HALL, Stuart. A questão multicultural. In: Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. 2ª edição, 1ª reimpressão. SEIXAS, Renato. Migração simbólica e dialética da identidade cultural no processo de migração. Cadernos PROLAM/USP, v.15, n.29, p.14-37, jul./dez., 2016. 35 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA MEMÓRIAS E AFETOS - AFROCENTRICIDADE NA 12 BIENAL DO MERCOSUL Alecsandra Matias de Oliveira1 INTRODUÇÃO Há 50 anos, o artigo Why have there been no great women artists?, de Linda Nochlin, publicado na revista ArtNews, questionava de modo incisivo “por que não existiram grandes artistas mulheres”? Visto como seminal, o ensaio expôs a questão que envolve o papel atribuído ao feminino na história da arte, confirmou a lacuna nos estudos sobre a atuação de mulheres artistas e abriu portas para nova abordagem historiográfica. Não por acaso, os anos de 1970 marcaram mudanças na cena mundial, especialmente a partir da ação de movimentos sociais que reivindicaram o direito à vida. No Brasil, assim como em outros países sul-americanos, a ousadia anti-hieráquica e igualitária deu prioridade ao desafio frente aos regimes opressores e à estrutura social – o que abafou outras demandas, entre elas, as de gênero e identitárias. Apesar dessa condição, o número de mulheres artistas expandiu-se ao longo das décadas seguintes e elas ocuparam lugares centrais na produção e na reflexão sobre o contemporâneo. Já na virada do século, a quebra das metanarrativas ocasionou a busca por referências na nova ordem mundial que se instaurava. Os grupos sociais, sexuais, religiosos e étnicos outrora negligenciados – isto porque todos foram invisibilizados pela tradição “patriarcal, branca e europeizada” - eclodiram com grande força. A pergunta provocadora de Nochlin despertou sentidos numa geração de mulheres, artistas e pesquisadoras que não menosprezaram ou ressentiram-se das discussões feministas. Ao contrário, elas intensificaram o debate e surgiram novas complexidades inerente ao discurso sobre o feminino. Evidenciam-se pontos nevrálgicos entre feminismo e as discussões raciais dentro do movimento. 1 Doutora em Artes Visuais pela ECA USP (2008) e pós-doutorado pela UNESP (2018). Atualmente, é especialista em cooperação e extensão universitária do MAC USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: Crítica e Criação (EDUSP, 2011). E-mail: alecsandramatias@gmail.com. 36 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Quando a décima segunda edição da Bienal do Mercosul, com curadoria da argentina Andrea Giunta e equipe integrada pela polonesa Dorota Maria Biczel e pelos brasileiros Igor Simões e Fabiana Lopes, adotou como temática Feminismo(s) Visualidades, Ações e Afetos respondeu, de certo modo, a pleitos atuais e teve respaldo nesse contexto que vem desde os anos de 1970. Como pesquisadora Giunta desenvolveu estudos de gênero desde meados dos anos de 1990, incluindo o enfoque feminista a partir da exposição Mulheres Radicais: Arte Latino-americana, 1960-1985, exibida no Hammer Museum (2010), no Brooklyn Museum (2017) e na Pinacoteca do Estado de São Paulo (2018). A inflexão para a abordagem crítica estava também presente na temática O Triângulo Atlântico da Bienal anterior, com curadoria de Alfons Hug, que escolheu refletir sobre a escravidão e o apagamento sofrido pelas culturas africanas e indígenas. Nesse itinerário, o curador levantou conexões entre Brasil e África – algo que igualmente surge como mote nas produções contemporâneas preocupadas com ancestralidade e representatividade. Assim sendo, a Bienal de 2020 apresentava outra vertente da arte atual – a produção de mulheres. E aqui enfatizamos o ponto de convergência entre as duas edições da Bienal: a mulher negra. O que nos diz essa produção feita por artistas negras ou mestiças? Quais suas preocupações e modo de fazer? Essas mulheres artistas propõem redes colaborativas? Longe de esgotarmos todas as potencialidades e transversalidades desse viés da produção contemporânea, propõe-se jogar luzes sobre a história que envolve a organização da Bienal 12, em 2020, seus critérios curatoriais, suas condições de execução, mas, sobretudo, sobre o discurso e a escolha de artistas que nos seus repertórios trazem as memórias e as formas de resistência da ancestralidade negra. Nessa seara, estão artistas, tais como: Rosana Paulino – uma das grandes homenageadas da edição; as brasileiras Aline Motta, Renata Felinto, Janaina Barros, Jota Mombaça, Musa Michelle Matiuzzi e Priscila Rezende; mas também, Rahima Gambo (Nigéria), Glady Kalichini (Zâmbia), Gwladys Gambie (Martinica) e Joiri Minaya (EUA). Todas essas artistas têm em comum a tentativa de reescrever as narrativas tradicionais e de descolonizar o pensamento tendo a arte como instrumental. Reunidas na mesma plataforma, suas investigações repercutem no circuito internacional das artes por intermédio de grandes exposições – tal como a Bienal do Mercosul – e 37 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA motivam novas proposições centradas no feminino e, particularmente na condição da mulher negra no Brasil e no mundo. A BIENAL E AS EXPOSIÇÕES QUE VIERAM ANTES Nas últimas décadas, têm ganhado densidade os estudos dedicados à história das exposições. Algumas mostras consagradas receberam novas montagens e outras voltaram ao debate público, explicitando, principalmente, o papel das instituições na legitimação de movimentos, artistas e obras. Gradativamente, considera-se essa vertente como capaz de desdobrar a obra de arte em diversas categorias de visibilidade, assim como obriga a história da arte a conviver com a transitoriedade e com as distintas relações que uma proposição artística pode adquirir a cada exibição. Ao entrar no espaço controlado das galerias ou dos museus de arte, poucos se dão conta que estão diante de um ambiente historicamente construído. As exposições de arte sempre acompanharam as demandas da sociedade e apresentaram transformações circunscritas ao modo de fruição de cada época. Dos gabinetes de curiosidades, passando pelos salões europeus no século 18 e 19, chegando ao “cubo branco” do modernismo entre os séculos 20 e 21, o modo de exibir as obras tornou-se ponte entre arte e público, além do mais espelham valores, ideias e estigmas. Sob essa perspectiva, conhecido por usar máscaras de gorila em suas aparições públicas, o Guerrilla Girls, um grupo de mulheres artistas ativistas, surgido nos anos de 1980, invocava as questões relacionadas ao gênero, ao machismo e ao poder no mundo da arte nas portas e nos arredores dos grandes museus norte-americanos. No início das suas atividades, por exemplo, as ativistas convidavam os visitantes dos museus a fazerem o que chamavam de weenie counts (algo como “contagem de salsichas”), ou seja, contar o número de artistas homens e o de mulheres em cada exposição. Suas ações denunciavam o desequilíbrio da representação de artistas mulheres nos acervos, assim como alertavam para a condição da mulher no mercado de trabalho e na indústria do entretenimento. No caso especial de mostras que tratam sobre a produção de mulheres-artistas, resgatamos a sequência de três exposições realizadas no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), com o tema “mulheres-artistas”, entre os 38 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 39 anos de 2007, 2008 e 2009, com curadoria de Lisbeth Rebollo Gonçalves e Claudia Fazzolari. As mostras coletivas integravam o ciclo Mulheres artistas e a contemporaneidade. Concentravam-se em discutir o universo feminino e a posição das mulheres no panorama artístico à época. A primeira mostra Mulheres Artistas – Olhares Contemporâneos trouxe o fazer artístico de Rosana Paulino, Élida Tessler, Karin Lambrecht e Beth Moysés, além da homenagem à Tomie Ohtake. No ano seguinte, acompanhada por conferências e de atividades educativas, realizou-se Mulheres Artistas – Relatos Culturais, contando com as obras de artistas latino-americanas, como Lacy Duarte (Uruguai), Bruna Truffa (Chile), Ana Miguel (Brasil) e Paola Parcerisa (Paraguai) – nessa mostra as homenagens foram para curadora e crítica de arte Radha Abramo. Já fechando o ciclo, em 2009, organizou-se a mostra Corpos Estranhos (em duas edições, no Memorial da América Latina e no MAC USP). Composta por obras – vídeo, performances, fotografias e instalações – das artistas Laura Lima (Brasil), Pilar Albarracín (Espanha) e Regina José Galindo (Guatemala). Em comum, as três artistas apresentavam trabalhos com forte viés psicológico, revelado através da exposição de seus próprios corpos ou de outrem. Mais recentemente, a programação do Museu de Arte de São Paulo (MASP) tem dado continuidade às exposições que tratam sobre histórias (Histórias da infância, em 2016, Histórias da sexualidade, em 2017, Histórias afro-atlânticas, em 2018, e Histórias da dança, em 2020). Nessa programação, destaca-se Histórias das mulheres, histórias feministas, em 2019, que revelou criadoras presentes no acervo permanente do século 1 ao 19. Mencione-se ainda as individuais, como Tarsila, popular (2019) e Beatriz Milhazes: avenida Paulista (2020-2021). São essas ações e outras não descritas neste texto que proporcionaram o escopo da 12ª. edição da Bienal do Mercosul – que teve um trabalho processual iniciado em 2018, através de seminários e eventos de preparação e que em 2020, contava com uma seleção de artista vindos da América Latina (Brasil, Argentina, Chile, Peru, Equador, Bolívia, Colômbia, Guatemala e República Dominicana), da América do Norte (EUA e Canadá), Europa (Polônia e Espanha), Ásia (Japão e China) e África (Nigéria e Zâmbia). Dos artistas participantes, 80% eram mulheres e entre os objetivos da mostra estava o de ser uma “zona de intercâmbios”. Prevista para abril/2020, a 12ª. A Bienal do Mercosul encontrou em seu caminho a crise sanitária ocasionada pelo novo coronavírus ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 40 – era março/2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou o estado de pandemia. Naquelas circunstâncias, era impensável a organização de um evento artístico tal como a Bienal. A solução encontrada foi levar todas as obras e ações para o ambiente virtual – a primeira bienal em formato digital do planeta, como asseguraram alguns críticos e jornalistas. A motivação do tema Femininos (s), Visualidades, Ações e Afetos se colocou como ato de resiliência. Curadores e artistas tiveram que pensar juntos numa nova forma de exibição das obras. Originalmente, cerca de 30% dos trabalhos eram instalações e performances que exigiriam a interação do público – esses trabalhos foram suspensos. Outros recursos de fruição foram empregados, entre eles, a subversão do binômio espaço/tempo. O local de fruição não era tão somente Porto Alegre e, sim o ambiente virtual, onde se encontravam curadores, convidados e artistas. Nessas inúmeras e transitivas “realidades”, a fruição estaria em todos os lugares e em todos os tempos – mesmo agora, passados meses do encerramento da Bienal, é possível visitar os trabalhos e escutar os depoimentos. Então, o site https://www.bienalmercosul.art.br/online) transformou-se em rede colaborativa em processo, com a inserção de novas obras e proposições, com textos, fotos e informações sobre o trabalho, o processo criativo e a intenção de cada artista. AS ARTISTAS E AS OBRAS Sob a eleição do recorte para nosso texto, temos onze artistas que em seus trabalhos focam atenções sobre uma nova visualidade que envolve ancestralidade, afetos e femininos, sendo sete brasileiras e quatro de nacionalidades distintas2. Optamos por trazer ao presente texto, a ênfase em algumas dessas artistas e suas respectivas proposições para o evento. Não caberia aqui a análise sobre cada obra e artista, mas, confessemos: a tentação é grande! São trabalhos com diversas camadas de leituras e desdobramentos reflexivos. Fiquemos a meio caminho do risco, abrindo, então, espaços 2 Aline Motta, Rosana Paulino, Renata Felinto, Janaina Barros, Jota Mombaça, Musa Michelle Matiuzzi e Priscila Rezende (Brasil); Rahima Gambo (Nigéria), Glady Kalichini (Zâmbia), Gwladys Gambie (Martinica) e Joiri Minaya (EUA). ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 41 para alguns deles que nos apoiam no entendimento do repertório e do “fazer artístico” sustentado por conceitos afrocentrados. Na 12ª Bienal, Rosana Paulino (São Paulo, 1967) tem um lugar destacado: oito trabalhos foram expostos de modo virtual, são eles: Série carapaça de proteção (2003), Parede da memória (1994-2015), Série tecelã (2013-2014), As filhas de Eva (2014), ¿Historia natural? (2016), Paraíso tropical (2017), A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – azul (2017-2018) e A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – amarelo (2017-2018). Mais uma vez, o exercício de selecionar os trabalhos para a discussão se faz necessário, escolhemos para comentários cinco deles. Em Parede da memória (1994-2015), a artista monta um “álbum de família” impresso sobre patuás. Aos espectadores coloca-se uma árvore genealógica – uma tentativa de reconstruir sua identidade a partir da ancestralidade. Aos afrodescendentes, põe-se uma questão: a diáspora rompe com os laços familiares e a reconstrução dessa linha condutora torna-se relevante para esse indivíduo. Nesse mural, a linhagem ancestral constrói a identidade negra de grande parte da população brasileira. Na série As filhas de Eva (2014), a artista emprega técnicas mistas sobre papel azul para recriar imagens de africanos e sombras que evocam os pretos novos (escravos recém-chegados que pereciam face aos maus tratos da viagem no navio negreiro). Essas imagens aludem a flora e a fauna Brasilis, colocando o negro “como o natural da terra”, ou seja, nada mais do que um elemento da fauna exótica (dele se retira a humanidade). O título do trabalho nos faz lembrar que todas as mulheres, inclusive as negras, são “filhas de Eva”– a primeira a provar do fruto do saber e, por consequência, a ser expulsa do Paraíso. ¿Historia natural? (2016) é um livro de artista com 12 pranchas. Faz referência aos volumes enciclopédicos – reconhecidos pela tentativa de ordenação dos reinos animal e vegetal. Paulino dedica-se à pesquisa das teorias da classificação das raças; subverte e sutura imagens e argumentos, mostrando o avesso da razão colonial. Através da gravura e das colagens, a artista oferece imagens borradas, sujas e suturadas como se nos mostrasse que aquela história, legitimada pelo discurso moral, religioso e pseudocientífico, é falsa; tornou-se grande trapaça. ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Já em A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – azul (2017-2018) e A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – amarelo (2017-2018) um cânone da história da arte é questionado: que “vocação à geometria” é essa que nos conta o abstracionismo e o concretismo nacional? Nesse espectro de indagação, os dois trabalhos trazem imagens da exuberante natureza tropical e da iconografia de homens e mulheres negros do século 19, em geral, em preto e branco, com interferências de figuras geométricas em cores fortes – essa associação torna-se inquietante pelo contraste visual. No fundo, explicita a ironia de um país que se pretende “moderno”, mas que excluiu sua natureza e sua história. Note-se que uma das lives mais concorridas do evento ocorreu no mês de julho de 2020, com Rosana Paulino e o curador do programa educativo Igor Simões. Nessa ocasião, temas, tais como, a necessidade de se usar o termo “arte contemporânea afrobrasileira” e o intercâmbio com artistas latino-americanas que tratam assuntos semelhantes em sua poética são enfrentados pelo curador e pela artista de modo franco e prospectivo. Em um dos seus trabalhos anteriores, Renata Felinto (São Paulo, 1978) nos mostra como os territórios são racializados na cidade de São Paulo – transformam-se em verdadeiras fronteiras intangíveis. No vídeo performance White face and blonde hair (2012), realizado na Rua Oscar Freire, ela caminha com o rosto pintado de branco, trajes “à lá patricinha” e uma peruca loira. Sua presença ali provoca a perplexidade e o desconforto dos transeuntes – o preconceito tão velado transparece em seus rostos com tensão. Na 12ª Bienal, Felinto apresentou Danço na terra em que piso (2014). Ela dançou por sete locais públicos da cidade de São Paulo, alguns pontos históricos e outros ligados às suas memórias. Para cada lugar, uma música (uma paisagem sonora) – a seleção considerou a letra da música, questões históricas e afetos – nessa proposta, o corpo da mulher negra ocupa espaços, exercendo seu devido pertencimento. De ascendência nigeriana, Rahima Gambo (Londres, 1986) desenvolve seus projetos a partir Abuja, onde fixou residência. Dona de múltiplas linguagens, entre elas, a ilustração, a fotografia, o texto, o vídeo, a escultura e a instalação, seu projeto mais conhecido é Education is Forbidden (2015-2017). Nesse trabalho, Gambo abordou a luta de meninas que tentam obter educação no Nordeste da Nigéria e explorou como é ser aluna em meio a dominação do Boko Haram. O nome do grupo radical islâmico, em 42 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA livre tradução, diz que “a educação ocidental ou não-islâmica é pecado” – confirmando o fundamentalismo religioso. Como estratégia de ação, o grupo terrorista sequestra mulheres, comete assassinatos e ataca povoados. Na série Tatsuniya holiday is coming (2017), apresentada na 12ª Bienal, a artista continua conceitualmente a série Education is Forbidden, usando imagens estáticas e instalações para representar as jovens alunas da escola Shehu Sanda Kyarimi, em Maiduguri. A artista propôs, em princípio, uma foto-documentação das estudantes, porém, aos poucos, a ação tornou-se desdobramento lúdico com narrativas compartilhadas entre as meninas e a artista – juntas elas reconstituíram brincadeiras de infâncias e passeios pelo parque local. Sendo promessa de renovação das artes visuais na Martinica, nossa última artista é Gwladys Gambie (Fort-de-France, 1988). Ela questiona a condição dos corpos das mulheres negras e explora sua descolonização, a partir da prática do desenho e da escultura. Para a Bienal 12, Gambie expandiu a série de colagens The birth of Manman Chadwon (2018), uma figura de sua mitologia pessoal inspirada em Manman Dlo, a deusa do oceano na cultura afro-caribenha. O significado da palavra chadwon, em “creole”, também remete a ouriço do mar, uma referência recorrente no trabalho da artista. Gambie evoca imagens que usam o corpo para contar sobre identidade, gênero e resistência. Ao fim e ao cabo, essas mulheres artistas tratam sobre suas memórias carregadas de ancestralidade, de questões que envolvem a discussão sobre a violência, o racismo e o gênero. Os anseios e as preocupações desse grupo social pautam os trabalhos dessas artistas de modo sensível e denunciador. O uso dos objetos domésticos do universo feminino e as referências ao corpo da mulher transformam-se em matéria-prima para a reflexão. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em síntese, 12ª Bienal do Mercosul respondeu a pauta coeva na arte contemporânea: o “fazer arte” de mulheres, sua visualidade, seus temas e motivações. O registro sobre a produção de artistas mulheres foi escrito por elas próprias. Foram elas as protagonistas frente à organização e ao conteúdo do evento. 43 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA No seu formato tradicional, a Bienal, costumeiramente, era espaço de exibição, fruição e intercâmbios entre artistas, críticos e público. Porém, com as condições impostas pela pandemia, o evento se tornou virtual. Era necessário fazer valer o tema selecionado para a mostra que envolvia resiliência, mudança de planos e inovações no modo de exibir obras e ideias. As lives, os eventos de preparação e paralelos, os textos de apoio e os depoimentos foram fundamentais para a extroversão da mostra – tudo contido/expandido pela plataforma digital. Para a história das exposições, o evento torna-se capítulo singular e cheio de potencialidade para novos estudos e abordagem. No recorte selecionado para este artigo, percebe-se que as artistas, mulheres e negras têm em seus repertórios conceitos ligados à ancestralidade, aos femininos e aos afetos. Elas são senhoras de manifestações questionadoras. Suas proposições rompem com valores e estigmas coloniais; evocam sentimentos de identificação, reconhecimento e pertencimento. Evidenciam questões que por muito tempo foram abafadas. Elas tomaram para si temas e linguagens que expressam suas vidas e, simultaneamente, realidades plurais. Seus trabalhos mostram que as demandas das mulheres negras não se restringem ao Brasil. Reunidas na mesma plataforma suas obras geram possibilidades de reflexão e de ativação de redes colaborativas sustentadas pelos discursos do afeto, dos femininos e da ancestralidade. REFERÊNCIAS AJZENBERG, Elza e MUNANGA, Kabengele. Arte Moderna e o Impulso Criador da Arte Africana. Pesquisa em Debate. Edição 9, vol. 5, n. 2, jul-dez. 2008. BOUSSO, Daniela. Quem são os artistas negros da arte contemporânea?. Select.https://www.select.art.br/quem-sao-os-artistas-negros-de-artecontemporanea/. Acesso em 05 dez. 2017 CONDURU, Roberto. Arte Afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007. GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Bienal 12: um espaço de intercâmbios. Revista USP. São Paulo, n. 126, p. 112-124, jul./ago./set. 2020. KIYOMURA, Leila. Quando a arte das mulheres desafia a covid-19. Jornal da USP. Disponível em https://jornal.usp.br/cultura/quando-a-arte-das-mulheres-desafia-a-covid19/. Acesso 31 mar. 2021. 44 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. A reescrita da história. Jornal da USP. 16 out. 2020. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/a-reescrita-da-historia/. Acesso em 31 mar. 2020. OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. O jogo da memória. Jornal da USP. 20 dez. 2019. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/o-jogo-da-memoria/. Acesso em 11 ago. 2020. OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. A “Onda negra”: arte visual afro-brasileira, legitimação e circulação. Jornal da USP. 05 out. 2018. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/a-onda-negra-arte-visual-afro-brasileira-legitimacao-ecirculacao/. Acesso em 13 nov. 2018. OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Mulheres, negras e perigosas. Jornal da USP. 18 dez. 2017. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/mulheres-negras-e-perigosas/. Acesso em 11 ago. 2020. OLIVEIRA, Alecsandra Matias. Das ‘pequenas’ violências: um ensaio sobre história e arte. CIANTEC’16 A Força do Terro como Inspiração Criativa. Filhos do Cotidiano Contemporâneo. Itu: CIANTEC, 2016. OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Memória da Pele – o devir da arte contemporânea afro-brasileira. Arte e Cultura da América Latina. São Paulo: Terceira Margem. Vol. XXVIII, 2º. Semestre, 2012, p.p. 35-42. VIANA, Janaina Barros. A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero, artefato e epistemologias na arte contemporânea de autoria negra. 2018. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. São Paulo: PGEHA USP, 2018. 45 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA O SIMPÓSIO DA I BIENAL LATINO-AMERICANA DE 1978: DEBATE SOBRE A QUESTÃO IDENTITÁRIA NA ARTE DA AMÉRICA LATINA13 Simone Rocha de Abreu14 INTRODUÇÃO O Simpósio da I Bienal Latino-americana de São Paulo ocorreu entre três e seis de novembro de 1978, foram os três primeiros dias da mostra de arte promovida pela Fundação Bienal de São Paulo (FBSP) com o recorte latino-americano e que trouxe como tema: Mitos e Magia. A convocatória para tal simpósio foi feita no regulamento da I Bienal Latino-americana, que conclamou os “estudiosos de todas as partes do mundo, em diferentes disciplinas, para participarem do Simpósio” (FBSP,1978, p.20) e definiu-se os temas a serem discutidos de forma bastante clara: “1- Mitos e Magia na Arte Latino-Americana. 2- Problemas Gerais da Arte Latino-Americana. 3Propostas para a II Bienal Latino-Americana de 1980” (FBSP,1978,p.25-26). É importante notar que houve a explicita citação do tema da I Bienal, ou seja, Mitos e Magia, mas também existiu a abertura para a possibilidade de discussões de outras questões sobre a Arte Latino-americana, outro ponto relevante a perceber é que havia o claro projeto de fazer outras mostras específicas com o recorte latino-americano, ao menos uma segunda bienal, projeto este que não foi concretizado. A ideia de abrir a mostra com um simpósio discutindo as questões centrais engendradas parece excelente, mas não teria sido melhor um simpósio com essas discussões antes da organização da mostra? Nesta segunda opção me parece que o simpósio poderia trazer subsídios para as escolhas feitas para a organização desta Bienal. A despeito da situação política das ditaduras militares em diversos países da América Latina este simpósio reuniu pesquisadores e críticos importantes da cena 13 Este texto é uma síntese de parte do relatório de pós-doutorado em Artes, desenvolvido junto ao Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP – SP). 14 Docente Adjunta do Curso de Artes Visuais e do Mestrado Profissional em Artes da Faculdade de Artes, Letras e Comunicação da Universidade Fedral de Mato Grosso do Sul (FAALC- UFMS) e coordenadora do Projeto de Pesquisa “Arte da América Latina: habitando a decolonialidade em arte” Email: simone.rocha.abreu@ufms.br 46 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA cultural da época entre os quais relevantes latino-americanistas. Reuniu-se 33 conferencistas do Brasil, Argentina, Colômbia, México, Perú, República Dominicana, Venezuela e Estados Unidos da América, que expuseram suas ideias sobre os temas propostos. Esses conferencistas atenderam à convocatória, como também a outros convites formulados pelo Conselho de Arte e Cultura15 (CAC) da Fundação Bienal de São Paulo (FBSP) Estas conferências foram datilografadas e compiladas pela FBSP, e estão apresentadas em dois volumes presentes no acervo do Arquivo Histórico Wanda Svevo da FBSP. Este artigo comenta estas conferências apresentadas ao longo do Simpósio e, portanto, faz uma análise desses discursos. Como procedimento metodológico para a construção deste texto e apresentação das análises, assumi a decisão de agrupar os conferencistas pela tônica discursiva predominante e, portanto, não sigo a sequência das apresentações da programação desse evento científico, feita essa escolha procedimental cabe a ressalva de que algumas conferências permeiam mais de uma tônica durante a exposição de suas teses, essa decisão se justifica por julgar que o agrupamento seguindo a tônica central nas conferências favorece a percepção do que representou esse evento científico. Durante o Simpósio observou-se cinco tônicas predominantes e as apresento na seguinte ordem: primeiro as discussões sobre o conceito de América Latina; em seguida a procura de uma identidade plástica para a arte da América Latina e dentro desse tema analisaremos as conferências que relacionaram essa identidade exatamente atrelada ao tema da mostra, ou seja, Mitos e Magia na arte. Terceira tônica entre as conferências foi a apresentação do exercício da crítica de arte latino-americana, que parece cumprir o papel de responder a seguinte indagação: existe uma crítica de arte latino-americana? Como quarta tônica identificada reuno conferencistas que se dedicaram a defender abordagens metodológicas para as análises das obras. E por fim, como quinto tônica predominante agrupo conferencistas discutiram como questões centrais em suas falas a abordagem de aspectos específicos da cultura latino-americana, como: as 15 Conselho de Arte e Cultura (CAC) foi um colegiado que se formou em 1976 na FBSP e ganhou maiores poderes deliberativos à medida que o mecenas Francisco Matarazzo Sobrinho se afastou da presidência instituição, o que ocorreu em 1977, depois de cerca de dois anos de ensaios para isso. Coube ao CAC elaborar o regulamento da I Bienal Latino-Americana, discutir as representações, o CAC foi constituído por artistas e críticos de arte, entre eles: Jacob Klintowitz, Leopoldo Raimo, Marc Berkowitz, Maria Bonomi, Yolanda Mahalyi, Juan Acha, Alberto Beuttenmüller, Carlos Von Schmidt e Olívio Tavares de Araújo. 47 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA africanidades, indianidade e a arte popular, aspectos estes que nos distanciam dos ex-colonizadores, portanto, podemos dizer que esses conferencistas ao tecerem estas abordagens estão aliados à proposta de entendimento da arte e da cultura de modo anticolonial e antiimperialista. CONCEITO DE AMÉRICA LATINA A conferência proferida pelo antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997) procurou responder as indagações feitas ao público e a si mesmo sobre a existênia da América Latina. Ribeiro iniciou a suas reflexões para tecer respostas, mencionando o que o primeiro europeu encontrou no continente americano, e citou a enorme variedade de línguas e culturas, definindo o continente americano como uma “babel de povos” e prosseguiu analisando o encontro com o homem europeu de “grande desgraça”, “invasão”, “hecatombe” e de “deterioração, ao apodrecimento” de nossas culturas. Ribeiro prosseguiu analisando que no momento da invasão existiam na América Latina sociedades estratificadas em classes, com camadas de eruditos e de artistas com notável capacidadede expressão, citou que obras feitas em ouro foram fundidas pelo colonizador e por isso não podem ser estudadas, mas o que era feito em pedra foi preservado, e testemunha a grandeza dessas sociedades, esta visão de mundo extraordinária, para usar as suas palavras. Citou ainda que os europeus encontraram sociedades que dominavam o plantio de várias culturas como: o milho, a mandioca, a batata, que mais tarde passou a se chamar inglesa. Darcy caminhou elaborando conceitos em sua conferência repleta de indagações e apoiou-se nos principais aspectos de suas conclusões sobre os povos americanos que já tinham sido publicadas no livro intitulado “As Américas e a Civilização”, publicado cerca de oito anos antes, onde classificou os povos americanos em quatro categorias: Os povos testemunho, gerados no choque dos europeus com as civilizações, onde eles não conseguiram fazer a aculturação. Povos novos são os que assumiram uma forma totalmente distinta das matrizes europeias, indígenas e negras. Frente a estes dois povos, um deles carregado de passado e um que não tem memória existem os povos que o conferencista denonominou de povos transplantados – é o caso do Canadá, Austrália, Nova Zelândia, europeus transplantados para além-mar para continuar a história. Darcy 48 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Ribeiro questionou: “Que glória temos [para] atrás?” Afirma que somos um povo que sofreu uma pilhagem e nunca pôde desenvolver uma camada intelectual própria. E afirma que “Somos agentes europeus da ocidentalização”. Explica que estes agentes atuaram de forma eurocêntrica, voltados para fora, copiando a Europa com 20 anos de atraso e cerceando o próprio desenvolvimento e declarou: “um povo só de futuro porque não tem passado”. Estes povos vão formar a América Latina “num mesmo quadro”. E Ribeiro projetou a utopia: Dizendo que seremos algo maior, muito importante. Que no ano 2.000 seremos 650 milhões, marca que superamos. Ainda movido pela utopia, Darcy questionou: “Estaremos estruturados em uma confederação? Existiremos no mundo como alguma coisa respeitável como a Europa, por exemplo?” E vem a dúvida: “Ou seremos outra vez povo de segunda classe, um conjunto de povinhos que parece que são novos...” Depois de invocar a utopia, por um momento Darcy reclamou indignado com o discurso aleatório de que América Latina é uma área nova. Afirmou: “Não é não, é velhíssima!” Ele concluiu que temos tudo, indagou “por que não sermos povos que merecem influir?” E conclui afirmando: “Somos o melhor resumo da humanidade, das raças humanas, dos jeitos de ser, então a América Latina meus caros amigos é uma promessa boa, vale a pena votar nela,vale a pena jogar nessa promessa.” Outra conferência na qual a tônica predominante é o conceito de América Latina e em especial da “urbe latino-americana” foi a realizada pelo arquiteto Oscar Olea Figueroa (1930-2009), cuja atuação profissional principal foi a docência na Facultad de Arquitectura da Universid Nacional Autónoma do México (UNAM) e da Universidad Iberoamericana. Oscar Olea refletiu sobre as mudanças urbanas ocorridas desde o final da década de 1950 na América Latina, para indagar que América Latina é essa após quase trinta anos de forte êxodo rural. Olea nos trouxe reflexões sobre o êxodo rural que representou um trânsito muito expressivo de humanos para as cidades latino-americanas, êxodo que percebia como irreversível, tanto pela maginitude como pela descontinuidade com o passado, uma vez que o processo de êxodo das pessoas que perderam vínculos de afeto com os lugares, com as praças, com as fazendas, com os hábitos e pessoas do campo. Chamou esse fenômeno da “mais vasta transformação que conhece na história: números astronômicos 49 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA se registram e incrementam a demografia nas cidades16”, falou sobre o esgotamento eventualmente rápido das fontes de energia em uso. Oscar Olea apresentou uma conferência com pontos altos, como a sua análise das mudanças na urbe, mas em minha opinião, a conferência também mostrou fragilidades, como as apontadas acima. Nota-se certa preferência do crítico pela arte até os pósimpressionistas, que citou durante a sua conferência,em tom de saudosismo. IDENTIDADE LATINA-AMERICANA NA ARTE DE NOSSO CONTIENTE A terceira conferencista do Simpósio aqui analisada é artista brasileira e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Romanita Disconzi Martins (1940) que apresentou a conferência intitulada “Considerações sobre a busca de Identidade Cultural Brasileira (Latino-americana)”. Iniciou esclarecendo o seu lócus enunciativo de uma artista Latino-americana que vive e faz arte no Brasil. Afirmou ter dúvidas e perguntas sobre identidade cultural e as expôs ao longo de sua conferência, unindo por mais de uma vez a busca identitária percebida no âmbito daquele evento e a semana de Arte Moderna de 1922. Romanita citou o colonialismo e as relações de poder advindas da colonização e quanto a isso estou de acordo, o que parece faltar é o exercício do caminho contrário daquele feito pelo colonizador, isto é, contrário ao caminho que os portugueses e espanhóis fizeram caracterizado pelo apagamento das culturas dos povos que encontraram nas Américas e ainda os homogeneizaram sob o nome de índio, além de usurpação e roubo. Para que saibamosdeconolizar a arte, os corpos e as mentes (o saber) precisamos fazer urgentemente o caminho oposto e conhecer o nosso passado, ir ao encontro dospovos ameríndios. Mesmo assim devemos considerar (o que a conferencista desprezou) o que recebemos do europeu e deglutimos na concepção da nossa arte. Não podemos desprezar nem o que recebemos nem o que oferecemos à Europa. É evidente a influência do modo de vida dos povos ancestrais na modernidade europeia. 16 OLEA,O. El Arte de la Civilización Urbana em Latinoamérica. In: Simpósio da I Bienal LatinoAmericana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado. 50 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Caminhando para o encerramento da conferência Martins afirmou que o desafio é viver e criar nossa própria cultura a partir da nossa realidade e afirmou “Os estudiosos do fato artístico e cultural devem se conformar que aquele não pode ser determinado ou dirigido de fora para dentro, mas detectado e conhecido a partir de sua existência concreta”. Mito e Magia na Arte Catarinense é o título da conferência que a brasileira Adalice Araújo (1931-2012) apresentou no Simpósio, em sua explanação apareceu a figuração mito-mágica que ela percebeu nos artistas de Florianópolis, e cuja origem ela atribuiu ao imaginário do povo daIlha. A conferencista afirmou: o mito nos revela. Adalice Araújo foi responsável pela seleção de obras de Franklin Cascaes (1908 1983) e Eli Heil (1929 -2017) para esta I Bienal latino-americana, mas na conferência ela abordou um número maior de artistas catarinenses. Araújo argumentou que o que chamamos humano é o resultado daintervenção do sobrenatural e que, através do mito o homem pode se encontrar consigo mesmo. E prosseguiu “Se a religião é culto a este sobrenatural, a magia irá envolvê-lo com práticas secretas capazes de esconjurar os espíritos maléficos ou benéficos. Daí porque a psicologia vê nas práticas mágicas a sombra do inconsciente”. A crítica prosseguiu relacionando o sobrenatural, o mito e o símbolo com a arte, uma vez que defendeu a tese de que esta é a mais completa forma de comunicação humana, pois abrange a pessoa individualmente e também de maneira coletiva, registrando seus mitos de origem e seus mitos locais. Portanto, segundo Araújo, a arte é uma manifestação identitária, ou seja, reveladora da identidade de quem a elabora, mostra o seu lugar além de identificá-lo. Se arte é identitária, como impor padrões e modelos? Adalice Araújo passou a abordar a implantação de modelos desde a chegada da Missão Artística Francesa, em 1816, para fundar no Brasil uma academia de arte, objetivo que se realizou em 1826 com os preceitos neoclássicos, onde o ensino de arte era baseado na cópia dos grandes mestres, e esses eram todos europeus. O artista plástico, poeta, crítico de arte e curador argentino Carlos Esparco dedicou a sua fala para trazer outra definição de mito e afirmou que mito é o modo de contar, declarou: “Um mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Nesse 51 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA nível, o mito não seria um objeto, um conceito ou uma ideia, mas um modo de significação, uma forma17”. Carlos Espartaco dedicou-se aos estudos da linguagem, abraçou a fenomenologia de Merleau Ponty, passando por Martin Heidegger e Charles Pierce, todos apareceram refletidos em suas reflexões durante a conferência intitulada “El mito del avestruz”. Para desenvolver a conferência, Espartaco escolheu como ponto de partida o avestruz, que no pampa da América do Sul recebe o nome de Ñandú e afirmou que se deixarmos de lado o seu significado na zoologia o avestruz será somente uma palavra, mas se considerarmos o modo de ser do animal, ao qual é atribuído a capacidade de se colocar fora de perigo ao esconder a sua cabeça na terra, avestruz se torna um mito, representativo de quem se esconde. O historiador e crítico de arte mexicano Jorge Alberto Manrique (1936-2016) apresentou neste Simpósio a conferência intitulada “Uma reflexão sobre a presença do mito na arte latino-americana”18, o crítico mexicano iniciou conceituando mito como a maneira de relacionar-se com a realidade vivida, mito como uma criação de uma nova realidade que influencia a vida e as ações dos membros da sociedade que o criam. Portanto, essa definição distancia ao máximo mito do significado de inverdade, que segundo Manrique, só com olhar estrangeiro é que mito poderia ser entendido desta maneira e permeado por “[...] coordenadas lógicas e racionais de uma civilização que alcança mais em razão e menos na sua possibilidade de sentir”. Manrique abordou a riqueza mitológica dos povos ameríndios, sobre isso afirmou que “Na América a atitude mítica é eminentemente própria, no sentido de ser uma atitude normal nas sociedades anteriores à Conquista ou à predominância da cultura ocidental”. O crítico é muito feliz em suas definições sobre o mito e na sua observação sobre a forte presença entre os povos ameríndios, porém empregou o termo conquista que é um termo contestável, uma vez que, carrega uma visão eurocêntrica da história, pois o sujeito nesta narrativa é o europeu, e a América Latina é o objeto desta conquista, seria 17 ESPARTACO, C. El mito del avestruz. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado. 18 MANRIQUE, J. A. Una Reflexión sobre la presencia del mito en el arte Latinoamericano. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado. 52 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA mais apropriada a expressão encontro entre dois mundos, o mundo europeu e o ameríndio19. O crítico mexicano afirmou que a conquista da América, ou seja, a ocidentalização é a presença do mundo da razão na América Latina, o mundo da razão técnica e prática, neste momento citou o artista mexicano José Clemente Orozco (18831949) que representou a conquista como um robô de ferro. O crítico m salientou a contribuição dos africanos “transplantados através do mar” somando camadas míticas à América Latina, contribuição daqueles que chama “de outros irmãos da natureza”. Por diversas vezes, Manrinque salientou o caráter coletivo do mito, pois ele é criado e recriado no âmbito da coletividade dos indivíduos da sociedade, Marianne Tolentino, crítica de arte atuante na República Dominicana, discorreu sobre as condicionantes da arte naquele país na primeira parte de sua conferência, intitulada “Problemas y Esperanzas del Arte Dominicano de Hoy”. Em resumo, nos mostrou uma realidade de um ambiente cultural conservador e que oferecia poucas oportunidades ao artista. Por essas dificuldades, segundo ela, havia a tendência do artista sair do país e desenvolver toda ou quase toda sua carreira no exterior, além da necessidade para o artista que permanecesse no país, de trabalhar em outro ofício para provimento da sua vida. Durante a conferência, Marianne de Tolentino salientou as condições incipientes do circuito das artes mais graves ainda no interior do país quando comparado a capital, salientou também que a formação profissional atravessa dificuldades e insuficiências, mencionou que não há organização de mostras e se um artista jovem ou já conhecido resolve não seguir a “representação agradável e decorativa”20 ao gosto da burguesia, ele não venderá as suas obras. A crítica afirmou que a República Dominica é uma desconhecida ou incógnita no campo internacional das artes, e isso pode ser constatado pela ausência da arte dominicana em textos críticos multinacionais. Sobre esse questionamento da expressão “descobrimento da América” ver o trabalho de Edmundo O´Gorman, editado em português com o título “A invenção da América”, salienta-se que tal trabalho teve a sua primeira edição editada no México em 1958. O’GORMAN, E. A invenção da América. Reflexão a respeito da estrutura histórica do novo mundo e do sentido doseu devir. São Paulo: Editora Unesp, 1992. 19 20 TOLENTINO,M. Problemas y Esperanzas del Arte Dominicano de Hoy. In: Simpósio da I Bienal LatinoAmericana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução nossa. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado. 53 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A conferencista acrescentou “não se cita um artista dominicano, nem um fato que revele a plástica dominicana como manifestação vigente”. Sobre os textos multinacionais onde a plástica dominicana está ausente, Tolentino citou “Arte latino-americana actual” de Marta Traba, “La aparición de lo invisible” de Juan García Ponce, “El Arte em los Tres Mundos” (seleção de textos), com isso a crítica está afirmando que a República Dominicana vem sendo tratada como periferia da América Latina. Segundo Tolentino, as razões são muitas, tais como a ausência de um circuito comercial que facilite as relações entre artista, galeria, museu e público; fechamento insular, instituições culturais frágeis que não conseguem promover ou subsidiar os artistas dominicanos. Refletindo sobre o mercado internacional das artes, que poderia dar um aporte financeiro ao artista dominicano a critica afirmou: “Por outro lado, certamente na feroz competição internacional, nem as ofertas nem as oportunidades se apresentam por sentimentos utópicos de fraternidade ou solidariedade artística”. No Simpósio vinculado a I Bienal Latino-Americana de São Paulo, a argentina Silva Ambrosini, responsável pela representação argentina em várias edições da Bienal Internacional de São Paulo e consultora para a I Bienal Latino-Americana de São Paulo, proferiu a palestra intitulada “Critérios e enfoques dos mitos e da magia na arte. O Conceito de tempo no mito e na física atual”, ela desenvolveu o seu raciocínio realizando primeiramente o que defendeu ser um “inventário” das acepções de Mito. A conferencista prosseguiu a sua palestra dedicando-se a definir possíveis metodologias para o que definiu como “metodologia de aproximação ao mito” e afirmou que a dogmática de juízo deve ser afastada para a real aproximação ao mito uma vez que “o sentido do mito é inconsciente, por isso mesmo não racional”. O tema da conferência de Silvia Ambrosini é fabuloso e, ao longo da mesma, ela demonstrou a diferença entre as noções de tempo dos povos ameríndios, noção essa dominada pela natureza, e a noção de tempo da física moderna, essa última, a nós imposta no momento da colonização europeia da América Latina. O europeu entrou em contato com o outro com noções diversas às suas, dentre elas esta, referente ao tempo, não compreendeu e a inferiorizou, foi um dos motivos para a desqualificação dos povos ameríndios rotulados sob o título homogeneizador de “índio”, inferiorizando-os e privando as diferentes etnias de viverem as suas culturas e cidadanias. 54 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA O literato argentino Ernesto Sábato (1911-2011) apresentou a conferência intitulada “Anotaciones sobre la crisis occidental y la desmitificación”21 neste Simpósio, que se constituiu em um elogio ao pensamento mágico. O conferencista iniciou o seu discurso afirmando que o mundo está sob a pressão da mentalidade dos tempos modernos, regida pela razão pura, pelo positivismo e pela recusa ao pensamento mágico. Constatou que esta mentalidade nos jogou na crise mais grave da história e que os países em desenvolvimento deveriam parar e avaliar as virtudes e os defeitos deste “progresso”. Apelou para a retomada da unidade perdida e a revitalização da sabedoria existencial das culturas latino-americanas que a arrogância europeia taxou de “primitivas”. Sábato admitiu que se considera um renegado da ciência que buscou na literatura de ficção o homem concreto, lógico e mitopoiético, advertiu que suas aproximações são apaixonadas e discutíveis, mas, por isso mesmo férteis. Oreste Bruneto apresentou no simpósio vinculado à I Bienal Latino- Americana, em nome da dupla formada com Carmen Lariño22, a conferência intitulada “Sant-OMatic”. O discurso centrou-se em refletir sobre o encontro com os “outros”, abordando o “outro comercial” e o outro representado pelos ritos religiosos gerados pelas crenças, e isso inclui a utilização das crenças e seus correspondentes ritos pelo mercado, criando mercadorias para o comércio. O conferencista prosseguiu afirmando que na América Latina, como em todas as partes do mundo onde o povo foi invadido por outro, gerou-se sincretismos. A conferência passou a abordar uma obra de autoria dos palestrantes, da qual infelizmente não foi encontrada imagem, que aborda essa questão, onde há objetos de culto à venda, tais como velas adornadas, espigas, imagens de santos populares, e demais santos tradicionais. A proposta dos artistas é evidenciar o comércio associado aos ritos religiosos, mas também evidenciar uma hierarquização presente nas religiões. O conferencista destacou ainda a intenção de trabalhar em sua obra com a redundância, a repetição como um traço comum aos discursos, ao comercial e ao ritual religioso e assim evidenciar as convergências. Cabe-me ainda comentar que a 21 SÁBATO, E. Anotaciones sobre la crisis occidental y la desmitificación. In: Simpósio da I BienalLatinoAmericana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado. 22 Não foi possível conseguir dados biográficos dos conferencistas, apesar dos esforços empreendidos para tal. 55 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA fetichização mercantil ou mistificação de produtos comerciais é o contrário do mito, por isso a fala pareceu-me confusa, mesmo assim cabe pelo envolvimento ao tema. O argentino Guillermo Whitelow (1923-2011) apresentou no simpósio vinculado à I Bienal Latino-Americana de São Paulo a conferência intitulada “Magia e criação artística” e iniciou a sua exposição oral indagando sobre as concepções da obra de arte, primeiro passo para se discutir o que vem a ser a criação artística. Sobre isso afirmou: “Obra de arte, em princípio, não é a natureza, e que se produz por meios técnicos, ao que parecem controláveis23. Whitelow citou também Platão, para quem forças sobrenaturais garantiriam o caráter de obra de arte e neste caso, o criador se converteria em um mero intérprete dessas forças sobrenaturais ou poderes superiores, sobre isso afirmou: “De tal maneira, o processo criativo se explica pela intervenção de um “alter ego”, a quem corresponde o mérito da obra realizada”. Guillermo Whitelow desenvolveu a proposta entre arte e magia colocando-as entre o espetáculo e o ritual mágico-mítico que, no princípio, representou o desdobramento da expressão artística da pintura parietal para a dança, o canto e o teatro. Enfim este conferencista abriu frentes de debate ainda não elaboradas neste simpósio. EXERCÍCIOS DA CRÍTICA: EXISTE UMA CRÍTICA DE ARTE LATINOAMERICANA? O crítico brasileiro Jacob Klintowitz (Porto Alegre, 1941) atuou no Conselho Arte e Cultura (CAC) da Fundação Bienal durante a germinação da ideia e a organização da I Bienal Latino-Americana de São Paulo, Klintowitz defendeu que o tema “Mitos e Magia” não poderia ficar restrito ao passado e, portanto, solicitava que se pensasse nos mitos contemporâneos, e passou a defender o futebol como mito latinoamericano contemporâneo.Em sua conferência durante o Simpósio intitulada “A Implantação de um modelo alienígena exótico e outras questões pertinentes: A seleção Brasileira de Futebol 1978”, o crítico abordou o futebol como mito e a seleção de 78 como metáfora da questão central que caracteriza a cultura latino-americana. Mas que 23 WHITELOW, G. Magia y Creación Artística. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado. 56 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA seleção foi essa? A copa de 1978 não foi ganha pela seleção brasileira mesmo não tendo perdido nenhum jogo, mas a seleção brasileira perdeu no saldo de gols, ou seja, a seleção perdeu na regra estipulada. Estipulado por quem? Estipulada por qual estrutura de poder? Estipulada pelo que o crítico chama de “modelo alienígena exótico”? Mas o que significa isso? Para onde caminhou o pensamento de Jacob Klintowitz nesta conferência? O crítico prosseguiu informando que os jogadores da seleção de 78 foram “aqueles capazes de funcionar como bons elementos. Isto é bem comportados, obedientes, executantes de um plano geral”24 e concluiu “Nesta seleção, como numa sociedade industrial, o importante era o “planejamento” [...] Lembre-se, ao homem cabe apenas ser um elemento que produz e consome. E obedece ao plano”. Portanto, a Seleção de 78, formada por maioria de jogadores obedientes era anticriativa, era contra a livre expressão, era “exatamente o contrário do pensamento divergente, da fluência e da flexibilidade”. O crítico prosseguiu “nada de drible e iniciativa, nada dessa habilidade incontrolável. Além de exercícios de musculação na tentativa de alterar o próprio corpo (aproximando-o do modelo civilizado, o modelo europeu)”. E o crítico apontou que esta seleção passou a ser “um corpo vazio no qual pudesse insuflar conteúdo” ao sabor da publicidade, ao sabor do mercado, trata-se, portanto de um jogo de poder, onde os poderosos sempre procuram influir na expressividade e na linguagem popular, e o crítico concluiu “o nome que essa posição tem recebido é dirigismo cultural”. Ora, isso ocorre somente no futebol? Não. Ocorre nas artes, nas ciências, na filosofia. Isso acontece com a arte Latino-Americana? Sim, em vasta dimensão, mas somente com aquela colonizada, ou seja, com aquela obediente às teorias estéticas ou formais criadas fora, em outros contextos sócio-históricos e, portanto, alienígenas. Não podemos implantar modelos alienígenas exóticos na América Latina, usando as palavras empregadas no título da conferência, nem podemos ser obedientes às regras dessas estéticas, a ponto de negarmos as culturas populares das Américas Latinas. Então, pergunto, o que fazer com as teorias estéticas criadas na Alemanha e em outros países europeus? Devemos jogá-las fora para que não caiamos na esparrela de produzir uma 24 KLINTOWITZ, J. A Implantação de um modelo alienígena exótico e outras questões pertinentes: A seleção Brasileira de Futebol 1978. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado. 57 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA arte colonizada? Não, não devemos jogá-las fora e sim estudá-las para sermos conhecedores e fluentes, empregando o termo do crítico, e em consequência, sejamos flexíveis a ponto de saber lidar com essas ideias e com as demais caracterizadas pela nossa diferença, pela nossa latino-americanidade. A palestra do curador Donald Goodall teve como título “Visão Interior e Imagem Exterior; Carlos Mérida e Leonora Carrington”25, segundo o curador afirmou, a intenção do trabalho foi evidenciar através do paralelismo, as diferentes posições dos artistas em relação à mitologia e à magia. Segundo Goodall, os dois artistas se expressam através da pintura revelando o segredo da criação e da morte, do sagrado e do profano, da revelação e transfiguração, conceitos para “explicar o universo” através da dualidade dos contrários, usando as palavras do conferencista. Observou que os dois artistas escolheram o México para viver, mas o nascimento se deu em outros países, de fato, Carlos Mérida (1981 - 1984) é guatemalteco, descendente de indígenas do grupo maia-quiché, e se estabeleceu na Cidade do México a partir de 1922, já Leonora Carrington (1917-2011) nasceu na Inglaterra em 1917, chegou ao México em 1942. Explicou que a posição de Carrington é diferente da de Mérida, pois a pintora tem uma visão mais complexa consequência de um mergulho pessoal em sua imaginação, já Mérida tem uma visão herdada de seus antecedentes nas considerações sobre criação e morte, do sagrado e do profano, da revelação e transfiguração. Goodall atribui o adjetivo privilegiada à imaginação de Carrington, pois a artista não se contenta em contar o mito, mas em recriá-lo misturando outras e diversas referências e a pintora se lança a decifrar o inexplicável, portanto, Carrington não narrou a cosmogonia maia, mas ao fazer referência a ela, a pintora recriou e assim ampliou horizontes. Sobrepôs a sua capacidade fabular ao relato mítico maia em transparências abrindo outras portas de percepção míto-mágicas, ou seja, o mito em Carrington é acompanhado por outras camadas interpretativas. 25 GOODALL, D. Visão Interior e exterior: Carlos Mérida e Leonora Carrington. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. Nesta análise todas as colocações entre aspas são provenientes desta palestra, quando houver citação diferente será devidamente informado. 58 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Na conferência intitulada “Para una Lectura Exergetica 59 del Arte Latinoamericano”26, o crítico Carlos Silva referiu-se à teoria do conhecimento e destacando a tarefa da crítica como produtora de conhecimento na mediação entre obra e público. Explicou que o mundo está implícito na obra de arte e não refletido nela, e, portanto, tem um modo de leitura. Carlos Silva recomendou a crítica simbólica para a arte latino-americana e acrescentou que a arte tem uma superfície misteriosa que leva a uma sequência de extratos e níveis de significação que devem ser lidos pelo espectador em um processo de decodificação muito rigoroso. Segundo o conferencista a alegoria (leitura exegética) trabalharia com símbolos que tendem a uma cristalização emblemática. Em geral a alegoria não se apresenta em seu esplendor, mas já popularizada e empobrecida. O artista e crítico de arte radicado na Colômbia Galaor Cabornel (1938-1992) apresentou no simpósio um exemplo de crítica, a artista enfocada foi a colombiana Olga de Amaral (1936) e a título de registro de sua conferência enviou um elaborado e extenso texto que não tem a dinâmica de uma fala. Sabendo-se que Carbonell escreveu um livro sobre esta artista, inclusive com o mesmo nome da conferência, nos parece que o arquivo da Fundação Wanda Svevo possui uma cópia deste livro e figura nos registros tal qual fosse a conferência. O material se intitula “Olga de Amaral: Desarrollo del Lenguaje27”. Parece-me que Carbonell caminhou por um esforço de internacionalizar o trabalho da artista, mesmo para distanciá-la do artesanato que, por certo, em muitos momentos foi empregado na perspectiva de desqualificação de seu trabalho artístico.Carbonell associou o trabalho de Amaral às tessituras dos povos ameríndios e chamou o construtivismo de Amaral de “El suyo”. Destaca-se: “O seu é um construtivismo transbordante e enérgico cheio de imaginação, fantasia e gestos grandiloquentes. Este construtivismo pode localizar-se dentro dos limites gerais têxteis artísticos contemporâneos”. O crítico associa a obra de Amaral a um expressionismo pleno de fúria cromática e acrescenta uma comparação com o expressionismo abstrato norte- 26 SILVA, Carlos. Para una Lectura Exergetica del Arte Latinoamericano. In: Simpósio da I BienalLatinoAmericana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. 27 CARBONELL, Galaor. Olga de Amaral: Desarrollo del Lenguaje. In: Simpósio da I Bienal LatinoAmericana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA americano da década de 50 do século vinte, mas declara “Assim mesmo sua obra guarda fortes nexos com a produção textil artesanal e nativa da Colômbia: pelos materiais humildes, pela legitimidade técnica na excecução, pela inventividade [...] e pela sua associação aos processos mais profundos da cultura do país”. Parece-me que na busca por agregar legitmação à obra de Amaral, Carbowell, usa termos condicionados aos processos de colonização e suas consequências, exemplos disso, são os empregos de “materiais humildes” e “legitimidade técnica” na citação anterior. Carbonell conclui que a obra de Amaral é internacional e ao mesmo tempo nacional, melhor dito, parece-me seria dizer, a obra de Amaral é nacional e ao sê-lo atinge o internacional. Marta Traba (1923–1983) teceu um paralelismo entre artes plásticas na Colômbia e na Venezuela com o objetivo final de discutir a recepção estética, o que chamou de consumo das obras pelos cidadãos desses países na conferência intitulada “Consumo de Arte en dos sociedades, Colombia y Venezuela”28 durante o Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. A crítica salientou que o processo de recepção (ou consumo) de uma obra é dinâmico e faz com que a obra exerça um peso sobre a comunidade, a crítica afirmou que “estas circunstâncias não ocorrem na Colômbia nem na Venezuela”, assim a crítica iniciou uma apresentação de vários artistas dos dois países, contextualizando-os, tecendo comentários sobre quem os apreciava e porque o fazia, com o objetivo de averiguar a ausência total ou parcial dos fatores condicionantes para o consumo de arte ocorra de maneira efetiva. A crítica afirmou que nos dois países o “consumo” de arte não é efetivo, ou completamente exitoso, para concluir que na Colômbia ao menos há uma correspondência entre a obra e a realidade o que não há na Venezuela e esse fator favorece a recepção estética na Colômbia. Segundo o raciocínio da crítica, se a arte recai (ou deve recair) sobre o imaginário popular para que o público a receba como forma de conhecimento que ampliaria suas possibilidades de penetrar e superar a realidade, o processo é parcialmente alcançado na Colômbia, mas perdido na Venezuela cujo conjunto da produção artística, no seu entender é completamente independente das potencialidades culturais do país. 28 TRABA, MARTA. Consumo de Arte em dos sociedades, Colombia y Venezuela. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. 60 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 61 Encaminhando para as suas conclusões, a conferencista trouxe um quadro bastante decepcionado com relação à sua expectativa sobre o ambiente de arte na Venezuela afirmando que são rejeitados os mecanismos da crítica e sendo assim só há espaço para comentários complacentes e irrelevantes, não há uma teoria da arte para sustentar o sistema de arte. Assim, a área de arte Venezuelana aparece ferreamente marcada por interesses e motivações econômicas. Segundo Traba torna-se dramática a dificuldade de criar uma arte significativa em tal ambiente, a menos que os artistas se refugiem em si mesmos e passem a traduzir apenas suas próprias e pessoais esperanças, preocupações e aflições. Essa área facilmente influenciável aos diversos interesses, principalmente aos externos, é o que Traba chamou de área aberta no seu livro intitulado Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latinoamericanas. 1950-1970, lançado em 1971. ABORDAGENS METODOLÓGICAS PARA ANÁLISE DA ARTE DA AMÉRICA LATINA O celebrado crítico brasileiro Mário Pedrosa (1900-1981) apresentou no Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo a conferência intitulada “Variações sem Tema ou a Arte da Retaguarda29”. Refletiu sobre a criação da arte moderna como consequência da políica expansionista do imperialismo europeu, portanto na abordagem de análise da produção latino-americana em artes as fronteiras com a política e com a história devem ser vistas com atenção. O crítico salientou que a conferência une temas díspares e, portanto, os analisará em separado. Como “variações sem tema” ou “variações infinitas”; Pedrosa apontou as semelhanças sócio históricas que caracterizam as nações latino-americanas e assim as une apesar de suas diversidades, entre as semelhanças apontadas estão: a miséria, que é apontada como “primeiro traço constitutivo da unidade da nossa América Latina”. Nesse momento Pedrosa se aproximou do manifesto “Estética da Fome” de Glauber Rocha, porém sem fazer menção ao cineasta. O outro traço importante citado pelo conferencista é a não liberdade dos povos latino-americanos devido à opressão generalizada de norte a sul em 29 PEDROSA, M. Variações sem Tema ou a Arte da Retaguarda. Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo:Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA nosso continente. Outra face de nossa unidade é a mestiçagem do homem latinoamericano e, por fim, expõe a ideia central dessas semelhanças sócio-históricas que é “o destino de ser submetido, de alguma maneira ao imperialismo”. O crítico afirmou que a Arte Moderna foi formada no diálogo com as expressões das culturas não europeias, diálogos possibilitados nos encontros entre a Europa e os continentes desconhecidos pelos europeus ou ainda não explorados. Neste momento Pedrosa claramente chamou atenção para a contribuição das culturas ameríndias, africanas, asiáticas e da Oceania no que foi denominado “Arte Moderna” e que foi definido como ciência europeia e pretendida como universal. Portanto, Pedrosa afirmou haver um componente oriundo dos países colonizados (ou neocolonizados) na imaginação moderna europeia, ou seja, na ocasião do “encontro entre os dois mundos” que ocorreu (e ainda ocorre) quando “as correntes imperialistas se espalharam pelo mundo”, os dois lados desse encontro se transformam, se modificam. É importante observar que o crítico evidenciou o diálogo de mão dupla entre os países, não cabendo somente perceber como a Europa influenciou a arte da América Latina a partir do que se convencionou chamar “descobrimento”, mas é também preciso pensar ao revés e assim pesquisar o que mudou no imaginário europeu o fato da pretensa descoberta das Américas. Artistas como Picasso, Matisse e outros, segundo Pedrosa, foram os primeiros a considerar com o status de arte as peças oriundas desses países e colocá-las no mesmo patamar da arte grega ou renascentista, iniciando uma “revolução no gosto”. Jorge Glusberg (1932-2012) proferiu no Simpósio a conferência intitulada “Mitos e Magia do Fogo, o Ouro e a Arte30”. Importante dizer que, nesta ocasião o crítico argentino voltou ao Brasil um ano depois que o chamado Grupo de los Trece, organizado por Glusberg, ter recebido o Prêmio Itamaraty na edição anterior da Bienal Internacional de São Paulo, a décima quarta edição realizada em 1977, uma premiação polêmica, mas que demonstra o destaque deste grupo de artistas representantes do Centro deArte y Comunicación, fundado e dirigido por Glusberg desde 1968. Glusberg construiu ao longo de sua conferência a analogia entre o ouro e a arte, passando pelo fogo, já que este é tão necessário para as ações humanas, inclusive a fundição do ouro, salientou os mitos envolvidos, salientou que a manipulação do ouro e 30 GLUSBERG,J. Mitos e Magias do Fogo, o Ouro e a Arte. In: Simpósio da I Bienal Latino- Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p.(traduçãoda autora). 62 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA a arte são as duas máximas manifestações simbólicas da sociedade, são ambos os produtos do trabalho humano e originam bens sociais. E acrescentou que o ouro e o objeto artístico valem pelo que são, mas também valem pelo que representam em uma rede de critérios socialmente determinados. Assim o crítico defendeu que a arte é um produto social, precisa da sociedade tanto quanto do indivíduo que a cria e teceu a sua crítica à uma leitura restrita aos critérios formais intrínsecos de uma obra, e defendeu a análise da obra de arte em seu contexto histórico e em relação com as demais obras contemporâneas a ela. O ouro e a arte são símbolos de poder, mas a arte sozinha não garante o sucesso de uma mostra, é necessário pensar no crítico como outra instância de poder. Glusberg coloca a crítica como criação, assim como a arte. Néstor Garcia Canclini iniciou a sua conferência intitulada “Teoria da Superestrutura e Sociologia das Vanguardas Artísticas31” no simpósio vinculado à I Bienal Latino-Americana de São Paulo afirmando a “insuficiência interpretativa do materialismo histórico. O problema reside em saber se é uma incapacidade definitiva [...]”, citou Jean-Paul Sartre para defender que a incapacidade interpretativa do marxismo não é definitiva. O conferencista também refletiu sobre o ponto de vista do criador que, a partir da sociologia, percebe “sua obra se enriquecendo com os olhares e a imaginação de quem a recebe, alterando seu sentido ao circular por classes e sociedades distintas, ao intervirem os marchands, os editores, a publicidade”. A propósito da arte, Canclini, apresenta duas direções de modelos de análise formulados no materialismo dialético, uma direção se consiste em afirmar que as relações de produção artística determinam as representações artísticas, entendidas como uma forma particular de representação ideológica, como exemplo cita o “realismo socialista”; a segunda direção é considerar, sem descuidar o estudo da arte como ideologia, que a determinação principal da estrutura social opera sobre as condições de produção específica da arte, mais que sobre a representação artística. Canclini fechou o que me pareceu ser uma relevante contribuição para a elaboração de um método sociológico para análise de obras de arte e o emprego deste para a 31 CANCLINI, N. G. Teoria de la superestrutura y sociologia de las vanguardias artísticas. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p Tradução da autora. 63 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA compreensão das vanguardas argentinas da década de sessenta do século vinte. Ele finalizou concluindo que estes artistas vanguardistas descobriram que criar novas propostas artísticas requer que se alie a criação de novas obras o que chamou de “um conjunto de imagens nunca vistas” ao estabelecimento de novas maneiras de produzir comunicar, compreender. Referente a isso, acrescento que esses artistas precisaram estabelecer novas maneiras de expor as obras de arte e buscar novos espectadores que participem das obras, ou seja, os vanguardistas criaram obras novas e novos modos de se relacionar com a sociedade. A contribuição de Canclini foi bastante relevante para se pensar as questões de Arte, centrou a pesquisa na América Latina, porém não abordou o tema “Mitos e Magia” desta Bienal. A historiadora da arte Rita Eder apresentou conferência intitulada “El debate Latinoamericano en el Arte: notas para um analisis32”, nesta conferência a crítica mexicana convocou para uma leitura da obra da arte latino-americana influenciada pela realidade local em uma visão que ela denominou mais totalizadora da produção artística, portanto. Defendeu a análise da obra de arte como campo de estudos interdisciplinar. A crítica nos alertou que este ponto de vista, que se distancia por definição do formalismo e do idealismo, encontra grande resistência por parte de uma maioria de estudiosos que desejam conservar métodos que colocam a arte como fenômeno privilegiado, destacado dos demais ambitos da cultura. A crítica mexicana levantou uma questão importante sobre o conceito de arte, dizendo que o que é discutido sobre “arte latino-americana” é feito a partir da produção do continente sul americano que aparece em exposições, o que discutimos nestas reuniões tem quase sempre raízes na arte latino-americana que conhecemos através das bienais e das diferentes exposições organizadas pela União Pan-Americana. Cabe a pergunta se esta é realmente a produção dearte latino-americana, ou se já houve camadas de influência do que se convencionou definir como arte? Será que não seria necessário colocar outras manifestações em relação com outros campos estéticos, como a produção chamada artesanato, os meios de comunicacão de massa e até mesmo esses produtos de artistas de vanguarda que circulam por canais marginais? 32 EDER, Rita. El debate latinoamericano en el arte: notas para un análisis. In: Simpósio da I Bienal Latino-americana de São Paulo, 1978. São Paulo, Brasil: Fundação Bienal de São Paulo. s/p. Tradução da autora. 64 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A crítica de arte mexicana Rita Eder abordou vários momentos 65 da historiografia do século XX na arte da América Latina, e conclui que se amplia uma "gama de possibilidades metodológicas à medida que o estudo da arte se abre aos modos de análises presentes nas ciências sociais". É importante perceber que essa crítica se alia ao antropólogo Darcy Ribeiro e Néstor Garcia Canclini, entre outros cientistas sociais, nessa convocação do contexto sociológico para a interpretação das manifestações artísticas. O crítico Bengt Oldenburg, atuante na Argentina, também defendeu a leitura sociológica do objeto artístico em sua conferência que explorou os condicionantes da arte da América Latina. A sua conferência intitulou-se “Mecenazgo y Mecanismos Selectores” (Mecenato e mecanismos seletores) na qual o autor enfocou a situação atual da arte latino- americana através da análise de algumas estruturas sociais que condicionam, dominam e determinam a atividade artística. Essas estruturas sociais condicionam o artista desde a sua etapa formativa, à medida que cresce sua posição artística e socioeconômica, o artista se encontra cada vez mais emaranhado em mecanismos que o controlam e que na maioria das vezes, se confundem com os mecanismos de fomento para as artes. Outro crítico que se deteve em sua conferência em construir uma metodologia que possa revelar a arte da nossa América foi Juan Acha33 (1926-1995) a partir da premissa de que a arte é um fenômeno sócio cultural, o conferencista priorizou o sistema de produção sobre a conservação da herança cultural e, com isto, destacou a urgência de dar prioridade à inovação ou criação que seria benefício coletivo em vez do consumo individual majoritário na palestra intitulada: Das valorizações objetivas da estrutura artística (ou no original: Hacia las Valoraciones objetivas de la estrutura artística). O crítico argentino Jorge Romero Brest34 (1905 – 1989) apresentou neste Simpósio a conferência intitulada “A arte, a obra de arte e as artes” onde abordou os conceitos para a definição do que seria arte, como um objeto se torna arte e a relação do objeto com o sujeito, partindo da ideia de que a arte está em crise, para tanto se apoia no filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), mas adverte que nem sempre concorda 33 ACHA, Juan. Hacia las Valoraciones objetivas de la estrutura artística. In: Simpósio da I Bienal LatinoAmericana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. 34 BREST, J. R. El Arte, La Obra de Arte, Las Artes. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA com ele. Brest refletiu, como aproximação ao tema e a partir do aforisma proposto pelo artista Carl André para a definição de arte: “Arte é o que faz um artista”, o crítico apontou que este raciocínio gera um ciclo vicioso: os artistas fazem obras, logo estas são arte. Segundo Brest, Heidegger argumentaria de outra forma, pois “o que faz de uma coisa uma coisa não reside em que coisa seja um objeto representado, e esta “coisidade” não poderia de nenhuma maneira ser determinada a partir da objetividade do objeto”. Outro caminho seria pensar em arte como adjetivo qualificativo de obra na expressão obra de arte, mesmo dessa maneira o crítico salientou que também não há nenhuma característica que definiria uma coisa ser ou não arte. O crítico também refletiu se o modo de fazer define o que é obra de arte, ele se pergunta será que o obrar com as suas próprias mãos define o que é arte? E respondeu, pensar assim é insuficiente, “ainda mais nos tempos atuais onde a tecnologia alterou por completo a relação obra-sujeito”. O conferencista prosseguiu sua palestra reconhecendo que é necessário que a sociologia entre nesse debate, pois o artista é um ser social, neste momento citou José Ortega y Gasset. A conferência de Brest pouco abordou as artes da América Latina e também pouco abordou o tema desta mostra, Mitos e Magia, a não ser duas rápidas menções aos mitos na arte, dizendo são “explicações religiosas, ideologias, modos de reger o mundo, de inventar a origem, de assinalar o destino, Mitos e ideologias perduráveis quando são transformados pelos artistas em imagem que são símbolos”. Neste simpósio a propósito da I Bienal Latino-americana, parece-me que faltou especificidade aos temas e ao recorte latino-americano. Pinturas de Israel Pedrosa (1926-2016) estiveram presentes na I Bienal Latinoamericana de São Paulo, o artista também participou do Simpósio vinculado à mostra e o fez com a conferência intitulada “Arte – Documentação didática35”. O artista e crítico apontou que o seu apoio à I Bienal Latino-Americana nãosignifica acreditar na existência de uma arte latino-americana produzida nos diasatuais, pois há meios de diálogo entre os artistas, os meios digitais de comunicação, que facilitam a difusão de preceitos estéticos que influenciam de forma mais intensa do que os traços étnicos ou geográficos, portanto, para Israel Pedrosa, a temporalidade do artista contemporâneo é mais importante do que a sua etnia ou a geografia de origem ou de trabalho. Percebe- se que o conferencista, está tratando a questão da América Latina apenas como uma questão PEDROSA, I. Arte – Documentação Didática. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. 35 66 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA geográfica, realmente uma distância geográfica pode ser ultrapassada facilmente pelos meios de comunicação, mas quando falamos em busca da identidade latino-americana não é necessariamente do espaço geográfico que falamos, sim de espaço histórico e socialmente definido que caracterizam os diversos países da nossa América e as relações de poder inerentes construídas entre nós e os outros. ASPECTOS ESPECÍFICOS DA ARTE E CULTURA LATINO-AMERICANA As questões acerca da negritude foram abordadas por três conferencistas no Simpósio da Bienal Latino-Americana de São Paulo são eles: o sociólogo brasileiro Eduardo de Oliveira e Oliveira, o artista, coreógrafo e professor norte-americano Clyde Morgan e o antropólogo carioca Raul Lody. O sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira com atuações bastante relevantes de cunho antirracistas e ações articuladoras que estão na origem da criação, em 1978, do Movimento Negro Unificado, em São Paulo, mesmo ano em que ocoreu a I Bienal Latino-Americana de São Paulo, apresentou no simpósio a conferência intitulada “Pessoa” e “Persona” na Etnia Brasileira”36. Nesta fala Eduardo Oliveira revelou os mitos relacionados aos negros, usando a palavra mito como engano, engodo ou ilusão, a conferência é bem fundamentada e relevante, muito embora não seja esse o significado de mito, que esta Bienal procurava abordar como característica da identidade latino-americana. O conferencista iniciou a sua palestra conclamando um pensamento de Joaquim Nabuco, publicado no Jornal do Comércio, em abril de 1885, cujo teor é o seguinte: “Nenhum povo ganha em iludir-se em sua própria etnologia, nem há sentimento mais deprimente e atrofiante para a nação, como para o indivíduo, do que ter vergonha de si mesmo”. Essa reflexão abriu a sua fala que versou entre relações duais: o latinoamericano e o outro, e mais minuciosamente se deteve entre o negro e branco, ou o branco e não brancos. Segundo Eduardo Oliveira, esta Bienal ao propor o recorte no latino-americano está propondo um confronto com os valores ditos ocidentais que negam autonomia OLIVEIRA, E.O. “Pessoa” e “Persona” na Etnia Brasileira. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. 36 67 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA cultural e política à América Latina e declarou: “Pois é sem dúvida então, frente a esta “ocidentalização” assim homogeneizada que, acreditamos, uma Bienal LatinoAmericana se quer fazer representar”. O sociólogo levantou a questão de que uma Bienal Latino-Americana também homogeneíza, ele se pergunta: será que podemos fazer isso? E quanto às diferenças entre os países que compõem a América Latina? E levantou a pergunta-sugestão de que será necessário questionar internamente as diferenças entre os países latino-americanos para que esta também não se transforme em uma grande totalidade, enfim, em uma abstração. Sim de fato, a colocação de Oliveira nos deixa esta indagação: Se a Bienal já existente é internacional, porque devemos fazer uma latino-americana como se não pertencêssemos ao mundo? Parece-me que esta Bienal, no entanto, quer mostrar o que nos identifica e nos diferencia. Como falou o Darcy Ribeiro, neste mesmo evento, se América Latina existe de fato é uma província diferenciada do mundo e assim pode ser vista e compreendida como tal. É relevante a participação de Eduardo Oliveira e Oliveira, e considero da maior importância a realização desta Bienal Latino Americana, com todas as possibilidades que ela viabiliza para revelar os valores da africanidade entre nós, dando-lhe o destaque merecido, ainda que trazer a reminiscência da africanidade revele este infeliz preconceito de cor, vigente até hoje, quando escrevo esta crítica. O artista Clyde Morgan37 iniciou a sua fala durante o Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo, para a qual não definiu título, em tom confessional, em primeira pessoa narrou seu ingresso como aluno nas escolas de dança e confessou que naquele ambiente passou a admirar o que chamou de “as grandes companhias americanas e europeias com técnicas requintadas e produções luxuosas”, como americanas se referia as companhias norte-americanas. Morgan prosseguiu narrando o que denominou de “ponto de vista revolucionário”, ou o ponto de virada que o fez descobrir-se na “mesma situação dos africanos, índios e outros grupos culturais tidos como segunda classe”. Neste momento, o artista foi extremamente comovente ao descrever o seu processo de descoberta de si mesmo como cidadão do mundo e assumir a sua identidade, por consequência, a sua voz e a sua 37 Artista, coreógrafo e professor norte-americano, foi diretor Grupo de Dança Contemporânea da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia entre 1971-1978. 68 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA posição de artista. Confessou também que passou a entender que aqueles que não passaram pelo “ponto de virada”, aqueles que ele denominou como “pseudo intelectuais”, juntamente com os “europeus alienados”, são aqueles que se distanciaram da natureza e dele. Agora, já falando como representante da dita “segunda classe”, que havia aprendido a desprezar a sua cultura quando era aluno de dança. Morgan afirmou que o “ponto revolucionário” se iniciou quando assistiu “Les Ballets Africaines” do Senegal e afirmou ter sido convencido “de que através da dança, as pessoas podiam passar para uma outra dimensão, que não é deste mundo. Não tinha mais dúvidas quanto a existência da magia teatral”. Neste trecho o artista narrou que ao assistir “Les Ballets Africaines” ele encontrou o mito original e assim encontrou a magia, Morgan nos brindou com um belo exemplo de como se dá o mito e a magia em arte. Deixou claro que não é uma questão de sangue e sim de cultura. O antropólogo braileiro Raul Lody apresentou a conferência intitulada “Leitura da Iconografia Religiosa Afro-Brasileira. Introdução ao Estudo das Cores”, salientando a importância das cores e afirmou: “As cores têm significado preciso e certo nos variados implementos de culto. É através das cores que facilmente são identificados os Orixás, evidenciando as suas características pela representatividade das cores isoladas ou conjugadas entre si”. Enfocando os terreiros como estudo de caso, Lody defendeu o papel central da cor no conjunto sócio hierárquico afirmando que há um conjunto simbólico de cores fundamental para os elencos mitológicos e de terreiros. Esse conjunto atua como normativa e a leitura imediata garante ao iniciado nos ritos religiosos a identificação do Orixá-patrono ou o conjunto de divindades a quem estão ofertados os objetos de culto. A cor garante a leitura da iconografia de culto no contexto social e hierárquico do terreiro de candomblé. O professor brasileiro Fernando Albuquerque Mourão (1934-2017), que ajudou a criar o Centro de Estudos Africanos na Universidade de São Paulo, apresentou a conferência intitulada “A Especificidade e Universalidade da Arte Africana” e nesta refletiu como vem sendo construídas as análises e os sentidos para a Arte Africana, afirmando Fernando Albuquerque Mourão: a Arte Africana é, também, forma e não somente misticismo. O conferencista afirmou que somente poderemos analisar a questão das raízes africanas nas manifestações artísticas brasileiras se soubermos o conceito de Arte 69 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Africana e alertou que é importante refletir com quais concepções vem se construindo processos de interpretações e leituras das obras de arte produzidas no continente africano, porque é através desses processos que são construídas as narrativas da História da Arte e em consequência o conceito de Arte Africana. Estas concepções podem ser muitas e diferentes entre si: podem ser sociológicas, antropológicas, mitológicas, fenomenológicas em todas estas é dada grande ênfase ao contexto cultural no qual a obra de arte está inserida. A concepção para abordagem da leitura pode ser formalista, ou seja, que leve em consideração os elementos formais da linguagem visual presentes e trabalhados na obra de arte. Neste caso a ênfase é no objeto de arte e não no contexto onde foi produzido, ou onde está inserido no momento de leitura, nem mesmo no sujeito que o lê e lhe atribui sentido. Além dessas, a abordagem de leitura pode ser iconológica, empregando Erwin Panofsky, ou através da teoria da Gestalt de Rudolf Arnheim, que unem uma aproximação formalista com uma leitura do contexto cultural no qual a obra foi produzida. O que o conferencista pareceu reclamar é que ainda há a necessidade de fazer a leitura formal das obras africanas, pois a arte africana é também forma, alertou que foi feita a leitura sociológica, antropológica ou etnográfica, preocupando-se em estabelecer ligações com o contexto cultural, ligando a arte africana aos fenômenos das práticas religiosas, mas há a carência de dar ênfase no objeto de arte para a real apreensão da arte africana. Outro aspecto específico da cultura latino-americana abordado por Maria Heloisa Fénelon Costa (1927-1996) foi a indianidade, abordando o mito e o rito indígena, através de um estudo de caso na etnia Mehunákú. A conferência intitulada “O Mundo dos Mehináku: Representações visuais, mito e cerimonialismo38”, onde Maria Heloisa relatou trechos da cosmovisão da etnia Mehináku, trazendo com destaque as diferenças na linguagem e nas representações visuais para um mesmo ser vivente em diferentes situações. A conferencista abordou um rito chamado Xapukuyáuá dos indígenas da etnia Mehináku – de língua Aruak do Alto do Xingu, no estado de Mato Grosso. Neste rito o doente curado, através da mediação do pajé da aldeia, promove o rito do ser sobrenatural que lhe restituiu a saúde, esse ser sobrenatural 38 COSTA, M. H. F. O Mundo dos Mehináku: Representações visuais, mito e cerimonialismo. In:Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de SãoPaulo, 1978, s/p. 70 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA vai ser personalizado durante a festa. Xapukuyáuá é o ser da água de aparência antropomórfica, que exerce autoridade entre os peixes, aos quais também aparecem alusões várias durante o ritual. O Xapukuyáuá é representado por uma indumentária de palha trançada e ostenta um cetro de cabaça, relacionado com uma canoa antropófaga e sobrenatural, que também mostra características animais. Outro aspecto específico da cultura latino-americano discutido neste simpósio foi a arte popular. A tônica da discusão do conceito de arte popular foi predominante nas conferências da mexicana Eli Bartra, das brasileiras Lélia Coelho Frota e Alba Maria Zaluar, além do crítico Mirko Lauer, atuante no Perú. Eli Bartra apresentou neste a importante conferência intitulada “Retorno de um mito: A Arte Popular39” trouxe elementos importantíssimos para o entendimento da crescente ideologia em a favor do estudo centrado e a partir da América Latina percebidos no período do evento no qual ela palestrou, percebeu que para a construção desta ideologia muito influenciou o triunfo da Revolução Cubana e as lutas de caráter anticapitalistas e anti-imperialistas que ocorreram desde 1960 em diversos países da América Latina. Bartra afirmou “Se parece haver tanto esforço para encontrar o que é latinoamericano na arte, seria conveniente partir do reconhecimento da realidade dos colonizados”. A colonização nos trouxe uma série de imposições culturais referentes aos modelos e parâmetros implantados nos países da América Latina e essas mudanças impostas também fazem parte do que somos. Portanto, a conferencista clama pelo entendimento da identidade latino-americana no presente e não somente no passado précolonização. Por isso, Bartra afirmou que não podemos negar os elementos herdados do colonizador, em diferentes processos uns mais outros menos violentos, sobre isso destaca-se: “Fechar os olhos diante da realidade, negar a coisa ocidental na coisa latinoamericana, é negar a nós mesmos, em parte, é negar o que somos”. E quanto à arte popular? Bartra declarou: “Uma das respostas frequentes para a questão sobre o que é a verdadeira arte latino-americana é encontrada na arte popular. Esta arte seria a expressão autêntica de nossos povos [...]”, e isso a conferencista chama 39 BARTRA, E. Retorno de un mito: El Arte Popular. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana deSão Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. 71 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA de um mito, usando mito como sinônimo de engano ou ilusão, e que esta ilusão não é nova, de tempos em tempos a América Latina retorna a este mito, como se houvesse um original do homem latino-americano. Bartra afirmou que esta maneira de pensar sobre a arte latino-americana como vinculada a um passado longínquo e pré-colombiano desprezando a chamada produções artísticas modernos ou mesmo contemporâneas, por considerá- las “meras imitações da arte das metrópoles ocidentais” é o pensamento do colonizador que se interiorizou no colonizado, de um papel para América Latina de subalterno culturalmente destinado a ser uma “cultura de repetição”, usando o termo de Nelly Richard quanto discute as questões da cultura latino-americana. Lélia Coelho Frota (1937 – 2010) foi poeta, crítica e historiadora da arte brasileira que, e muitos de seus trabalhos foram dedicados às questões da arte popular e ao patrimônio material brasileiro, nessas áreas, é autora de célebres trabalhos como “Mitopoéticas de nove artistas Brasileiros”, “Mestre Vitalino” e “Pequeno dicionário da Arte do Povo Brasileiro”, onde a autora inovou por não separar o artistas e o autores das obras populares. A sua conferência neste Simpósio intitulou-se “Um reassumir do subjetivo e da realidade cultural próxima40” e nesta a autora clamou para que deixemos a tendência que identificou na América Latina de “filiar-nos, na esfera estética, à manifestações estranhas à formação das nossas culturas”, defendeu que a arte precisa ser entendida como parte da cultura em uma visão antropológica. Lélia Frota citou as palavras de Mário de Andrade que, sessenta anos antes, ao analisar música brasileira afirmou “A falha da cultura consiste na desproporção do interesse que temos pela coisa estrangeira e pela coisa nacional”, a autora comentou como as palavras Mário de Andrade são atuais. A professora universitária Alba Maria Zaluar apresentou a conferência intitulada “O Clovis ou a criatividade popular num carnaval massificado41” com o principal objetivo de evidenciar como os conflitos não estão ausentes das festas populares, para construir esta tese lançou análise sobre a festa popular chamada “Clovis” que ocorre na periferia carioca, alguns elementos criativos usados nessa festa estavam expostos na 40 FROTA,L. C. Um Reassumir do Subjetivo e da Realidade Cultural Próxima. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978,s/p. 41 ZALUAR, A. M. O Clovis ou a criatividade popular num carnaval massificado. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.I. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,1978, s/p. 72 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA mostra vinculada a esse simpósio. Em sua tese defendeu que a arte popular precisa ser vista como resistência onde se mesclam submissão e autonomia do povo frente aos parâmetros impostos. Encaminhando para a conclusão Alba afirma que Clóvis é a negação da participação daquela coletividade em umasociedade que determina um lugar inferior a ela, portanto é uma resistência a uma estruturação social que subalteriza as comunidades periféricas. Clovis é uma manifestação popular como forma de resistência. Assim como Alba Zaluar, Mirko Lauer42 também se referiu aos componentes de dominação e de resistência na Arte popular. Mirko Lauer trouxe ao Simpósio uma conferência sobre a situação do artesanato e do artesão no Peru contemporâneo, devemos lembrar que a referida palestra ocorreu em 1978. A principal contribuição de Mirko Lauer foi vincular as situações analisadas ao processo histórico cujo fato principal é a colonização iniciada no século XVI pelos espanhóis no Perú, mas também todas as decorrências da implantação do capitalismo no país, ele analisou a história e percebeu que o artesão perdeu lentamente as referências que guiavam o seu trabalho em consequência da dominação cultural, processo vinculado e tributário da dominação econômica e do fenômeno antropológico associado. Mirko Lauer entende o artesanato tanto quanto uma forma pré-capitalista de produção quanto como expressão artística genuína de diferentes setores da população. É somente partindo dessa dupla definição de artesanato que foi possível caminhar a pesquisa e análise que transcende antigos preconceitos referentes à arte popular, como um ponto alto do campesino sem qualquer valor ou significado econômico ou estético. Considerações Finais Desenhando considerações finais para as análises tecidas sobre o que representou este Simpósio destaco a abrangência dos temas que, em seu conjunto, procuraram acercar diferentes olhares para o nosso continente e para a arte produzida aqui, nesta procura pelas nossas especificidades foram abordadas, tais como as afrinidades, a indianidade, o lugar da arte popular, além da urgência de discutir o conceito de América Latina e de metodologias mais acertadas para a análise da arte latino-americana, essa abrangência pode ser traduzida no desejo de ver outras epistemes tendo espaço e voz nas sociedades. A análise das conferências revela que por um momento o sistema de 42 LAUER, M. Artesanía y Capitalismo em el Peru. In: Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Vol.II. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1978, s/p. Tradução da autora. 73 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA arte foi sensível e abriu o devido espaço para este debate, muito embora, o projeto de Bienais Latino-Americanas de arte foi descontinuado. Durante as análises, não foi somente uma vez que perplexa percebi que as pautas identitárias expressas em 1978 são ainda atuais, quase 43 anos depois. Talvez essa seja a maior motivação para este trabalho que busca resgatar os debates realizados e que evidenciam que as reflexões não podem ser descontinuadas para que se efetivem mudanças. Se em 1978 teve início do apontamento da abertura de portas para a frágil democracia brasileira, hoje vivemos um momento crítico, onde infelizmente existe a defesa de que essas frágeis portas deveriam se fechar e aliado a isso, o atual governo federal acata direitos e busca silenciar vozes, todo esse cenário torna urgente o resgate de toda as lutas a favor da pluralidade cultural, há de se ver e rever a história construída de luta para mais potentemente habitarmos o presente da luta. REFERÊNCIAS FUNDAÇÃO BIENAL. I Bienal Latino-Americana de São Paulo. Pavilhão Armando de Arruda Pereira, de 3 denovembro a 17 de dezembro de 1978. SIMPÓSIO DA I BIENAL LATINO-AMERICANA DE SÃO PAULO. Vol. I e II. São Paulo: FundaçãoBienal de São Paulo, 1978, s/p. 74 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 75 DIÁLOGOS ENTRE O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES MUSEAIS E O ACESSO DO TRABALHADOR À PRODUÇÃO CULTURAL: MÁRIO PEDROSA, A BIENAL DE SÃO PAULO E O MUSEU DA SOLIDARIEDADE SALVADOR ALLENDE Camila Vieira de Souza1 INTRODUÇÃO Este artigo apresenta reflexões a respeito da contraposição entre a realidade material dos trabalhadores brasileiros no século XXI com o ideário social de Mário Pedrosa, a respeito da função libertadora da arte dentro do corpo conceitual que o crítico determinou ao longo de sua produção crítica. A discussão que se apresenta diz respeito a uma tentativa de apontar a importância que as instituições culturais desempenham para possibilitar o confronto entre a linguagem artística e o sujeito. Simplificadamente, o papel que os museus e instituições culturais desempenham a partir de uma análise do discurso de Pedrosa. O crítico é um autor bastante estudado devido à riqueza de sua produção textual e do papel que desempenhou enquanto mediador das instituições culturais, tanto para o Brasil, quanto na ajuda que ele prestou para a construção do Museu da Solidariedade Salvador Allende. Uma das grandes contribuições do autor a respeito da crítica de arte foi a capacidade de contextualização entre o fazer artístico enquanto processo criativo e as condições materiais permitidas pelo Sistema Capitalista para essa produção. É impossível, portanto, fazer uma leitura a respeito do discurso de Pedrosa sem fazer ponte à condição social que ele denuncia em seus textos. O aspecto apontado neste artigo é a contraposição entre o discurso de acessibilidade através das instituições museais e culturais: sobre o quanto a Bienal de São Paulo, por exemplo, permitiu o trânsito de obras internacionais para dentro do coração financeiro do Brasil, ao mesmo tempo em que há uma restrição a esse acesso por causa da localidade escolhida para abrigar as exposições, geralmente bairros abastados e afastados da zona periférica e dos trabalhadores que, além de questões 1 Formada bacharel em Arte: carta.para.camila@gmail.com História, Crítica e Curadoria pela PUC SP. E-mail: ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA espaciais, enfrentam a falta de tempo e de recursos para acessar essas zonas centrais, portanto as obras de arte. Mário Pedrosa acredita que a partir do momento em que o trabalhador trava contato com essa produção artística, geralmente restrita aos círculos burgueses, o trabalhador passa por uma revolução interna, que o leva a entender a sua condição material e de classe, por meio das experiências sensoriais ou cognitivas que as obras de arte podem provocar. Neste sentido, para Mário, a obra de arte desempenha um papel social que leva os sujeitos à uma humanização a partir da sensibilidade. A arte, segundo o argumento, provoca uma reação à realidade material que o Sistema Capitalista impõe, por meio da exploração do proletariado pela burguesia. No entanto, ao contrário do Museu da Solidariedade, que se ergueu por meio de doações e da proposição do Governo de Allende, de um museu público, a Bienal de São Paulo e os primeiros museus paulistas foram erguidos por meio da intervenção de industriais e coleções particulares, por iniciativa da elite local. O ACESSO DO TRABALHADOR ÀS COLEÇÕES DE ARTE Mário Pedrosa é um autor largamente conhecido por sua crítica a respeito da produção artística inserida dentro do Sistema Capitalista, sendo, sem sombra de dúvida, um dos mais significativos críticos de arte brasileiro. Os escritos transmitidos no jornal O correio da manhã2, são fonte de adaptações, estudos e compilados teóricos até os dias atuais, propulsionando o nome do crítico ao patamar de respeito que ele merece. Apesar de Mário Pedrosa conjugar uma obra que é objeto frequente de indagações e pesquisas, por causa de seu apreço concilizaçã da Arte enquanto motor da conscientização de classe, e do sistema capitalista como alienador do fazer artístico e, por muitas das vezes, causa de um atraso social pavimentado, segundo as palavras do crítico pelo “consumo conspícuo da burguesia", há de se aferir que é impossível traçar a obra pedrosiana sem uma cuidadosa imersão na teoria crítica do materialismo histórico e da luta de classes, embasadas segundo as teorias econômicas de Marx e Engels. Mário, como um comunista que foi, em princípio se embasou no materialismo histórico para tracejar a crítica a respeito de uma arte capaz de ensejar no proletário a 2 Jornal no qual Mário Pedrosa atuou como crítico de arte 76 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA verve de liberdade, por meio de uma imagética intensa, que transmitisse o sofrimento ao qual a classe trabalhadora é endereçada, por causa de uma pequena parcela detentora dos meios de produção. A exemplo das gravuras de Kathe Kollwitz3 Mário acreditou que quanto mais próxima ao materialismo, mais a arte poderia comunicar diretamente essa necessidade de subversão. Mais tarde, ao aderir ao trotskismo como base fundamental de sua crítica, Mário amplia os horizontes de seu trabalho e insere as bases da Gestalt como forma analítica, aderindo ao conteúdo fluido que as abstrações concretas poderiam legar. De uma maneira ou outra, é premente alegar que a base da análise social outorgada por anos de leitura e militância comunistas possibilitaram a Mário Pedrosa descrever, como nenhum outro, a teoria de uma arte redentora, que aproxima o proletário de sua liberdade, não só como o exercício experimental artístico, porém como uma premissa básica de que a Arte media o contato do espectador com alguma coisa que o leva à reflexão, para além de seu mundo material e de seu papel dentro do sistema de produção de mercado. Ao abordar essa crítica ao sistema artístico, inserido no mercado capitalista, porém, não se faz clara a questão do papel que as instituições artísticas desempenham dentro dessa rede, cujo museu está na ponta, o que possibilita o contato do espectador com a criatividade humana expressa na obra de arte. Dentro do sistema Capitalista a porta de entrada de um artista dificilmente é o Museu, que funciona mais como uma instituição que autentica a obra de arte como valorosa, qualificando aquele artista como portador de uma produção interessante, aos olhos da sociedade. Sem mencionar diretamente as galerias de arte, mas sempre atento a este “mercado” direcionado ao “consumo conspícuo burguês” a arte, para Pedrosa, “uma vez que assume valor de câmbio, torna-se mercadoria como qualquer presunto”4. Ao abordar o Sistema capitalista e o modo de produção ao qual os artistas, como trabalhadores não producentes dentro dos moldes de valoração mercadológica - a não ser que este artista contribua efetivamente com a geração de capital, através de sua obra -, Mário Pedrosa deixa lacunas a respeito dessa questão econômica que é o acesso prévio ao museu. Podemos aferir, mediante os textos do crítico, que a instituição museal desempenha papel fundamental concernente a esse empoderamento das classes 3 4 Ver: As tendências sociais da arte e Kathe Kollwitz A Bienal de lá pra cá, p.448 77 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA trabalhadoras. No entanto, talvez por causa da época ou de sua classe Pedrosa nunca tenha discorrido sobre as fronteiras invisíveis que existem nas grandes cidades, como o poder de locomoção da população periférica ou dos altos custos que envolvem uma ida ao museu para os trabalhadores, que geralmente moram distantes dos centros nos quais os museus se encontram. Obviamente que, devido à larga abordagem que o autor realizou a respeito do Sistema Capitalista, do mercado de Arte e da exclusão social a que a classe trabalhadora é submetida, Pedrosa muitas vezes alcança certos setores sociais muitas vezes mais pauperizados do que os do proletariado aos quais a teoria marxista se dirige. No texto Arte culta e arte popular5, resultado de uma Comunicação que Pedrosa realizou na Cidade do México em 1975, o autor aventa como seria possível que o acesso à arte nas camadas mais pauperizadas da população fosse uma realidade: para o crítico, por meio da ampliação do acesso ao artesanato local e pela formação de cooperativas que controlam a distribuição e o mercado ao qual esse fazer popular se apresenta, poderia ser garantida à boa parte das comunidades que pudessem adereçar suas residências e tornar essa produção artística difundida não apenas num mercado externo, mas internamente. Pedrosa alerta que existe um mercado formado por grandes galerias ou atravessadores que exportam esses objetos artesanais, encarecendo-os ao ponto de que a própria comunidade na qual essas obras têm origem não pode consumi-los, tornando essa arte dita popular, portanto, objetos de luxo mais uma vez consumíveis apenas por famílias abastadas. Alienando a população de sua própria imagética. A difusão do artesanato entre os setores populares também contribui para a desalienação do “gosto”. Nas casas da pequena burguesia e nos lares proletários, lentamente, os tapetes criollos, as tecelagens de palha e crina, as estatuetas policromadas de Melipina ou as pedras de Toconao vão substituindo, nas paredes, as más reproduções e as folhas de calendário, contribuindo assim para a formação de um novo ambiente íntimo para o chileno (PEDROSA, 1975. p 546). Este texto exemplifica como a formação de cooperativas de artesanato chileno fizeram frente às grandes feiras de arte, a exemplo da Chilean Art, como forma de resistência e sobrevivência para além da transformação da arte local em objetos de 5 PEDROSA, Mário. Arte culta e arte popular. Publicado em Arte em revista, n. 3, 1980, pp. 22-26 (trad. Elisabeth Ferreira e Iná Camargo Costa). 78 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA consumo para turistas. Pedrosa, no entanto, assevera que a sobrevivência das mesmas é relativamente difícil pois “o mercado não permite que nenhuma outra atividade sobreviva fora dele”5, em outras palavras, essas cooperativas ou pequenos artesãos geralmente são engolidas pela demanda provocada por essas grandes redes que garimpam peças legítimas do artesanato local para sua venda ao mercado burguês; formando um ciclo de retroalimentação no qual, por um lado, o artesão não consegue produzir peças que não convergem ao tipo de imagética esperada por esses contratantes e por outro, essa comunidade ao qual o artesão está inserido não possua condições materiais de consumir essa produção, seja por causa do preço de mercado, validado por essas instituições, seja por causa da demanda ao qual esses objetos são destinados. Esse contexto é o primeiro gancho que permite uma leitura aprofundada sobre o significado que Pedrosa atribui à acessibilidade, uma vez que o conceito é recorrente em seus discursos sobre a função social dos museus. A acessibilidade, no caso, é a possibilidade de ver a obra dentro de um museu ou instituição cultural, o que, de fato, devemos considerar quando imaginamos que trazer as obras aos olhos do público local é uma das formas de se ampliar esse contato, outrora impossível à grande parte das populações latinas, uma vez que apenas a elites empresariais ou classe média abastada dos países colonizados conseguem viajar para fora de suas fronteiras a fim de contemplar a produção dos grandes mestres, com algumas exceções. A Bienal de São Paulo é um exemplo que podemos tomar de partida para investigar essa relação entre o acesso à arte e o público dentro do espaço cultural. Pedrosa, no texto A Bienal de lá pra cá, destaca a importância que o evento trouxe à cidade de São Paulo e à Sul-américa, transformando a cidade num polo cultural. O evento permitiu trocas diversas entre artistas latino-americanos e europeus, através das premiações e da presença de diferentes delegações internacionais, com a curadoria, à época, separada por países. “Ela proporcionou um encontro internacional em nossa terra, ao facultar aos artistas e público brasileiros um contato direto com o que se fazia de mais “novo” e de mais audacioso no mundo"6. 5 PEDROSA, Mário. Arte culta e arte popular. Publicado em Arte em revista, n. 3, 1980, pp. 22-26 (trad. Elisabeth Ferreira e Iná Camargo Costa). 6 PEDROSA, Mário. A BIENAL DE LÁ PRA CÁ. p.444. 79 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A Bienal insere o Brasil numa rede internacional de arte e abre o país ao mercado cultural. Criada em 1951 por Francisco Matarazzo Sobrinho7, a reboque da Bienal de Veneza, e por sua disputa com Assis Chateaubriand, que em 1947 criou o Masp, a Bienal de São Paulo viu o surto da industrialização paulista tomar impulso, gerando a ampliação da população urbana e a multiplicação da massa de operários que ocupavam os casebres e vilas da cidade. Neste caso em específico, e a respeito de um tema recorrente dentro da crítica de Pedrosa, é importante notar que a iniciativa privada foi essencial à construção de espaços culturais e coleções de arte no Brasil. Tanto o Masp, erguido com a contribuição de Assis-Chateaubriand, quanto a existência do Museu de Arte Moderna de São Paulo e da Bienal são devidos aos esforços dessa burguesia industrial. Mário Pedrosa jamais mediu esforços à crítica do que ele considera uma criação artística de mercado feita para “o consumo conspícuo da burguesia”, no entanto, é bastante difícil argumentar contra esses industriais e grandes colecionadores, como Yolanda Penteado, esposa de Matarazzo Sobrinho, porque foram eles os responsáveis pela inserção do Brasil dentro desse circuito mundial. Apenas para lembrarmos, a primeira exposição de Anita Malfatti ocorreu dentro da galeria de uma loja de departamentos cuja clientela era a classe média e a elite local8. É interessante notar que a alta sociedade local, no caso do Brasil, teve papel fundamental na construção de uma rede de museus e consequentemente num ambiente propício ao surgimentos de novos marchands, críticos e artistas, visto que o mercado de arte brasileiro e a rede de museus de Arte sequer existia já que o Estado brasileiro foi principal fiador de museus de ciência e históricos, prioritariamente. A São Paulo das décadas de 1940-1950 difere muito daquela cidade que sediou o movimento moderno de 1922. A política do café com leite da Velha República fez enriquecer os cofres da cidade e da burguesia local. A primeira ferrovia do Brasil conectava os interiores do Estado paulista ao porto de Santos, garantindo o escoamento da produção cafeeira que conduzida a República ao eminente progresso da industrialização. A vinda de imigrantes pauperizados, porém com um conhecimento 7 Francisco Antônio Paulo Matarazzo Sobrinho (1988-1977). Industrial, mecenas e político ítalobrasileiro. Filho de Andrea Matarazzo e sobrinho do conde Francesco Matarazzo. Responsável pela criação do MAM SP e da Bienal de SP. 8 Os cadernos de Anita Malfatti no IEB. 2018. 80 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA industrial acima da média brasileira, também foi fator essencial ao progresso da cidade que crescia exponencialmente, recebendo trabalhadores vindos de fora e das entranhas rurais. A nomeação de Lúcio Costa para a direção da Escola Nacional de Belas-Artes, na década de 1930 em conjunto com a determinação da autonomia da Faculdade Nacional de Arquitetura possibilitou a primeira geração de arquitetos modernos brasileiros. Pioneiros, os primeiros arquitetos fizeram extenso uso do concreto, e aqui devo prestar homenagem à fábrica de cimento Portland Perus, fundada em 1924, a primeira fornecedora nacional de cimento, construída, porém, com capital estrangeiro. A fábrica, atualmente desabilitada, sedimentou o bairro paulista que alcunhou o nome da empresa, bairro este que emergiu a partir de uma vila operária. A pulsão industrial e o apelo moderno que renuncia o estilo neo-clássico europeu empurrou as camadas populares para longe dos centros urbanos, a partir das décadas de 1940-1950, formando grandes zonas periféricas que consistiam em bairros satélite, ou bairros-dormitório, em cuja a população operária apenas residia, precisando se deslocar aos grandes centros industriais a fim de trabalhar ou usufruir das opções de lazer disponíveis na cidade. Aos que sequer conseguiam trabalho, estavam reservadas as favelas ao longo do Rio Tietê, como aquela retratada em Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus. Talvez, seja necessário destacar que houve relativo avanço nas leis trabalhistas com o governo de Getúlio Vargas, mas a questão urbana nunca foi de extrema relevância para a esfera pública, até o investimento arquitetônico feito por JK com o intuito da construção de Brasília. A estrutura brutalista da arquitetura brasileira e o estilo concretista adotado pelos mais importantes arquitetos brasileiros, segundo Mário Pedrosa, colocou o Brasil na vanguarda do mundo. Há diferenças entre o desenvolvimento da arte brasileira a partir da Semana de 1922 até a fase das Bienais. Segundo ele, a Semana de 22 tratava “de levar ao público [...] espécimes da revolução modernista”, reunindo artistas, intelectuais e pintores em nome desse modernismo a apresentarem-se ao “burguês provinciano”. A segunda fase da Arte brasileira, essa de cunho arquitetônico, já apresenta “uma certa conotação social e coletiva, e não por um acaso o protagonista [...] é o arquiteto”. Na 81 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA fase das Bienais “o pêndulo volta às artes individuais, a hegemonia passa à pintura, como era na Europa”9. Esse desenvolvimento das artes no Brasil, contudo, aconteceu bastante tardiamente, devido à história da Colônia, com o envio de artistas para a Europa, promovido por bolsas, ou através do investimento particular das famílias destes artistas. O investimento público sempre foi essencial ao desenvolvimento das Artes no Brasil, mas as coleções privadas tiveram desempenharam um importante papel nesse desenvolvimento. A iniciativa de industriais, em São Paulo, se diferenciou das tentativas empenhadas no Rio de Janeiro, por exemplo. Se pincelarmos a história arquitetônica das cidades, podemos lembrar que os passeios públicos do Rio de Janeiro, desenhados na época colonial, não foram pensados como ambientes de circulação da classe burguesa10 até Pereira Passos11, fato que manteve muitos dos casarões característicos do período monárquico e o hábito de prestar pouco cuidado com o trato às ruas e praças. A cidade de São Paulo, por sua vez, inaugurada pelo Jesuítas em 1554, com a delimitação do Pátio do Colégio, atendeu às primeiras estruturas de organização portuguesas, iguais às do Rio de Janeiro, com suas ruelas ao modelo medieval e a parca delimitação de lotes, porém, desapegada ao modelo neocolonial das fachadas, a cidade preferiu, sempre que possível, aderir ao gosto arquitetônico moderno. São Paulo nunca teve a sanha de manter suas raízes feitas de taipa de pilão, tendo rapidamente aderido ao concreto armado e aos materiais industriais para a construção de seus arranha-céus a partir do fim da Segunda Guerra. Muito ao gosto dos industriais locais. A facilitação do contato direto com a produção mais internacionalizada, mediante a popularização das pontes aéreas e da larga circulação de informações transmitidas por rádio e tevê, além da circulação de moedas dentro da capital paulista, acelerou o contato dos artistas e do público brasileiro com o mundo. Não por um acaso Assis Chateaubriand, que foi um grande industrial das comunicações, desempenhou papel fundamental na ereção do MASP, 1947, através da compra de peças e de doações de 9 PEDROSA, Mário. A BIENAL DE LÁ PRA CÁ. p.464. Conferir a excelente aula gravada em vídeo sobre História da Casa Carioca, com o professor William Bittar, disponibilizada em função da Exposição “Casa Carioca” no Museu de Arte do Rio (MAR) em 2020. 11 Francisco Franco Pereira Passos (1836- 1913). Prefeito do então Distrito Federal (Rio de Janeiro) entre 1902 e 1906, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves. 10 82 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA coleções particulares de arte francesa para o museu. A Bienal nesse ínterim, consolidou essa ponte entre artistas nacionais e estrangeiros, além de incentivar a produção de jovens artistas através de suas premiações. Por meio das Bienais, a população poderia, por fim, acessar as mais recentes e importantes obras produzidas no período, mediante uma curadoria especializada. É necessário lembrar, contudo, que devido a essa urbanização desenfreada e do processo gradual de gentrificação, grande parte dos trabalhadores de São Paulo provavelmente não puderam acessar as exposições. O Pavilhão da Bienal, inaugurado em 1957, arquitetado por Oscar Niemeyer, está localizado no coração do Parque Ibirapuera, numa zona habitada pelas classes médias altas e ricas da cidade. Como reflexão, é possível inferir que mesmo que se transfira obras de arte para museus e instituições culturais a fim de que a população tome conhecimento dessas peças e possa, segundo o que acredita Pedrosa, acessar esse conteúdo humanístico e libertador, que é a obra artística, ainda assim o museu, enquanto instituição, é um espaço criado aos moldes dos que a classe burguesa frequenta. No lugar que lhes é conveniente. Santiago do Chile, fundada em 1541 pelo espanhol Pedro de Valdivia, recebeu das mãos de Pedro de Gamboa a sua arquitetura, em estilo Espanhol. A expansão do centro e a divisão da cidade em lotes foi essencial para uma expansão mais controlada e organizada de seus prédios, o que difere, em muito, da maneira portuguesa, que não possui esse cuidado com o plano arquitetônico de sua colônia ou até mesmo de algumas de suas cidades. Essa urbanização, contudo, não conseguiu impedir o processo de gentrificação no século XX e a formação de bairros dormitórios que, igualmente aos brasileiros, são compostos por trabalhadores que precisam se deslocar ao centro para trabalhar e acessar as opções de lazer, de maneira similar aos nossos. Portanto o acesso às instituições culturais de fato é dificultado aos trabalhadores que precisam residir longe das fábricas e dos centros comerciais, o que impede essa intenção que Mário Pedrosa transmite em seus textos de que a arte esteja acessível ao trabalhador. Durante o seu pronunciamento em 1972, por ocasião da inauguração do museu da Solidariedade chileno, Pedrosa asseverou que: Los donantes quieren que sus obras sean destinadas al pueblo, que sean permanentemente accesibles a él. Y más que eso, que el trabajador de las fábricas y de las minas, de las poblaciones y de los campos entre en contacto con ellas, que las considere parte de su 83 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA patrimonio. La esperanza de los artistas y nuestras es contribuir de este modo a la espontánea creatividad popular para que fluya libremente y pueda coadyuvar a la transformación revolucionaria de Chile. Es así como pensamos que el “ Museo de la Solidaridad” deberá ser ejemplar en sus funciones específicas, ejemplar en sus tareas educativas y culturales, ejemplar en su accesibilidad democrática. Debe ser el hogar natural de las expresiones culturales más fecundas del Chile nuevo, consecuencia de su avance en el camino del socialismo. Este es el deseo entusiasta de los artistas del mundo que concurren para ello entregando el producto de su fuerza creativa.12 A reboque deste pequeno excerto, não é possível afirmar que uma vez presente nos museus as obras não estarão acessíveis ao trabalhador por causa das questões de deslocamento, uma vez que seria possível que o trabalhador se dispusesse a tomar o transporte público da cidade e ir ao local em que a obra está, mesmo que longínquo ou de difícil acesso. Não é possível ignorar, no entanto, uma outra crítica bastante pertinente que Pedrosa faz a respeito da alienação desse trabalhador dentro do Sistema Capitalista, baseando-se nos textos econômicos de Marx e na filosofia Trotskista do papel social da Arte. Uma observação importante à análise dos conceitos empregados por Mário Pedrosa para tratar dessa experiência afetiva entre a obra de arte o trabalhador é que mesmo considerando que Pedrosa jamais tenha tocado diretamente na questão do deslocamento urbano, ao tratar da luta de classes e da alienação no trabalho, além das condições materiais dos proletários, é difícil traçar alguma hipótese que confronte o autor neste ponto. A exemplo: 12 Os doadores querem que suas obras sejam destinadas às pessoas, para que estejam permanentemente acessíveis a elas. E mais do que isso, que trabalhadores de fábricas e minas, cidades e campos tenham contato com eles, que os considerem parte de seu patrimônio. A esperança dos artistas e da nossa é contribuir desta forma com a criatividade popular espontânea para que flua livremente e possa contribuir para a transformação revolucionária do Chile. É assim que pensamos que o “Museu da Solidariedade” deve ser exemplar nas suas funções específicas, exemplar nas suas tarefas educativas e culturais, exemplar na sua acessibilidade democrática. Deve ser o berço natural das expressões culturais mais fecundas do novo Chile, consequência de seu avanço no caminho do socialismo. Este é o desejo entusiasta dos artistas de todo o mundo que concorrem para isso, entregando o produto de sua força criativa. Tradução livre. In: Discursos pronunciados por el presidente de la república, doctor Salvador Allende, y por Mario Pedrosa, presidente del comite de solidaridad artística con Chile, con ocasión de inaugurarse la primera muestra de obras donadas al museo de la solidaridad. Santiago del Chile: 1972. p.21. 84 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA [...] Hombres que operan los mecanismos del Estado y a los artistas del mundo que manejan instrumentos, en su mayoría destinados a atrapar sensaciones, vivencias, imágenes, intuiciones, “ la esencia del hombre” en suma, en eterno conflicto con su existencia, al fin del cual el nombre encuentra o debe encontrar su liberación total. [...] Aparte de mirarlas, contemplarlas, admirar esas corporificaciones, de dialogar con ellas por el tacto, por los sentidos, por el pensamiento, adquirimos una nueva experiencia vivencial, un nuevo enriquecimiento cognoscivo, que es sobretodo un vehículo de la Verdad todavía trascendente en su contraste con una realidad que la niega. Y mientras la realidad que la (sic) niega. Y mientras la realidad sigue negándola (sic), el arte sigue en su acercamiento permanente a una verdad cada vez más histórica y cada vez menos trascendente. Un día, en un punto del horizonte, los dos procesos se encontrarán, y entonces el arte será la vida y la vida será arte.13 Mário Pedrosa, ao se pronunciar acerca dessa função socializante das artes, que se encontra no processo de contato com a obra de arte e o incentivo a uma experiência vivencial que leve o homem à sua essência, que Pedrosa acredita ser a liberdade, não num sentido abstrato, mas no sentido do livramento da condição opressora a qual os trabalhadores são submetidos a fim de existir dentro do sistema capitalista. Por isso, para o crítico, a Arte tem a função social de despertar a consciência de classe dos sujeitos através de suas experiências sensoriais e cognitivas, de modo que ao ser interpelados por essa “verdade”, que consiste no materialismo histórico e na luta de classes, o trabalhador atinja a consciência de que está sendo oprimido e alienado de seu verdadeiro Ser. A partir disso, podemos argumentar que, de fato, as condições materiais do trabalho o impedem de ter contato com essas obras. Não seria contraditório não levar em consideração a localidade desses equipamentos culturais quando aplicada essa 13 Homens que operam os mecanismos do Estado e os artistas do mundo que manuseiam instrumentos, em sua maioria destinados a captar sensações, experiências, imagens, intuições, &quot;a essência do homem&quot; em suma, em eterno conflito com sua existência, no final do qual o nome encontra ou deve encontrar sua liberação total. [...] Além de olhar para eles, contemplá-los, admirar essas encarnações, dialogar com eles pelo tato, pelos sentidos, pelo pensamento, adquirimos uma nova experiência experiencial, um novo enriquecimento cognitivo, que é antes de tudo um veículo da Verdade ainda transcendente em seu contraste, com uma realidade que o nega. E enquanto a realidade que o nega. E enquanto a realidade continua a negá-lo (sic), a arte continua em sua abordagem permanente de uma verdade cada vez mais histórica e cada vez menos transcendente. Um dia, em um ponto do horizonte, os dois processos se encontrarão, e então a arte será vida e a vida será arte. Tradução livre. Tradução livre. In: Discursos pronunciados por el presidente de la república, doctor Salvador Allende, y por Mario Pedrosa, presidente del comite de solidaridad artística con Chile, con ocasión de inaugurarse la primera muestra de obras donadas al museo de la solidaridad. Santiago del Chile: 1972. p.19. 85 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA crítica? Tanto no caso da Bienal de São Paulo quanto no caso do Museu da Solidariedade Salvador Allende, estes equipamentos estão, ainda, fora do roteiro desses trabalhadores braçais, ainda que disponíveis. Não há, na obra de Pedrosa, uma consideração a respeito das barreiras econômicas internas que impedem esse acesso para muito além de uma obra de arte internacional ser apresentada numa Bienal, por exemplo. Ainda assim, ao discutirmos a questão das classes, da alienação e da exploração do trabalhador, acabamos por esbarrar na narrativa pedrosiana de que os museus tornam este contato mais próximo possível, contudo, essas condições mesmas, da cidade, do transporte público e do trabalho, são impeditivos invisíveis que se apresentam para além das estruturas que Mário Pedrosa acredita desempenharem essa função essencial na educação do homem ao caminho de sua liberdade. E do artista, a caminho de sua liberdade de criação. Não se pode alegar que Pedrosa não estivesse a par das condições de trabalho dos operários brasileiros, devido ao seu extenso contato com a militância comunista. Contudo, também não é possível afirmar que Pedrosa estivesse a par dos caminhos necessários a essa interação entre o trabalhador e a obra. Dos textos analisados e presentes nas referências, não houve menção a uma tratativa a respeito de se levar a cultura a esses polos afastados dos museus através de exposições itinerantes ou da necessidade da criação de espaços culturais que permitissem esse acesso mais próximo do trabalhador com o Museu a partir de seu local de residência. Atualmente, é possível que o trabalhador acesse coleções virtuais e faça tours guiados por diversos museus ao redor do mundo a partir do computador e até mesmo utilizando óculos de realidade virtual. Obviamente que o escritor jamais teve contato com essa tecnologia, uma vez que o mesmo faleceu no ano de 1981, contudo, é possível analisar que Pedrosa não foi precursor da defesa de novos espaços de contato com a arte que não os já conhecidos museus, feiras de arte, galerias e Bienais. Em algumas de suas críticas, principalmente àquelas direcionadas às intervenções que Hélio Oiticica, o crítico faz aproximações entre a questão de se levar os bólides para dentro das comunidades e não abre mão de discorrer a respeito de obras interativas, como os Parangolés de Oiticica ou os Bichos de Lygia Clark. Todas estas obras entram dentro do escopo que o crítico determina como sendo a experiência artística que pode levar o trabalhador à consciência de classe. Mas é 86 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA importante notar que quando se trata de determinar caminhos pelos quais o trabalhador poderá acessar essas obras, dentro da crítica de Pedrosa não há um caminho possível; algo que discorra sobre possíveis desdobramentos para uma crítica a respeito da mediação ou até mesmo da arte-educação. O impacto imediato da consciência de classe autodeterminada é quase uma entrelinha quando Mário Pedrosa discorre sobre a potência socializante da arte. O incômodo que o trabalhador pode sentir neste lugar construído pela burguesia para a burguesia, mesmo que dentro de um escopo público, como o é o Museu Salvador Allende, não é uma questão na crítica de Pedrosa. Por fim, as questões sociais que envolvem o acesso aos museus latino-americanos pela população periférica local abrem lacunas a respeito do discurso libertário que Mário Pedrosa emprega ao discutir o papel desempenhado pelas instituições de cultura, seja um Museu ou uma Bienal. Ao que parece, não há uma grande diferenciação entre um e outro, apesar da alfinetada que Pedrosa vez ou outra emprega ao afirmar que “a arte, uma vez que assume valor de câmbio, torna-se mercadoria como qualquer presunto”. (Pedrosa, 1972, p. 448). Apesar do crítico crer que as instituições, por estarem de portas abertas, estão disponíveis e podem ser acessadas por trabalhadores urbanos e mineiros, creio que ele, mesmo que socialista e crítico ao capitalismo, não consiga enxergar de fato as barreiras que impedem essa conscientização, que perpassa as condições materiais de sobrevivência dos sujeitos, necessidades mais urgentes do que a contemplação visual de alguma obra que mimetize a sua situação concreta. CONSIDERAÇÕES FINAIS De uma perspectiva pessoal, enquanto arte educadora, acredito que o discurso de Mário Pedrosa é dificilmente refutável, porque a raiz dos problemas que impedem o acesso à cultura no Brasil são de ordem econômica e social, questões contrárias às posições do crítico ao contextualizar a produção artística, a liberdade criativa e as engrenagens que movem os trabalhadores dentro do Sistema de Mercado. Contudo, diante dos desafios que o século XXI apresenta, principalmente quando consideramos o aspecto tecnológico, que possibilita o acesso a diversos catálogos e coleções de modo interativo, é essencial que uma releitura seja feita a respeito desse conceito que Pedrosa constantemente apresenta como sendo a resposta a uma desalienação do trabalhador, 87 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA mediante o contato com determinados artistas e obras de arte. Neste sentido, creio que a crítica que o teórico realiza a respeito dessa liberdade promovida pela arte e sua capacidade de transformação está impregnada por uma visão imediata, que precisa ser revisitada e confrontada com novos dados a respeito de ações educativas e processos que envolvam construção de conhecimento a partir da obra de arte para além do quadro pendurado na parede. REFERÊNCIAS PEDROSA, Mário. Crise do condicionamento artístico. In: Arte: Ensaios. 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A partir de esta estructura la lucha del Ejercito Defensor de la Soberanía Nacional de Nicaragua (EDSNN) fue conocida a nivel continental y la figura de su líder se convirtió en representante del antiimperialismo latinoamericano durante la primera mitad del siglo XX. Buena parte de la historiografía que analiza este momento histórico centra su atención en la figura de Sandino y su relación con algunos de los intelectuales más importantes de la época de forma fortuita. El objetivo de este trabajo es complejizar el análisis de esta relación a partir de una serie de vínculos que permitieron sostener la lucha sandinista en el periodo de 1927 a 1930. Para ello analizamos la conformación, desarrollo y disolución de una red de vínculos solidarios que establecieron organizaciones como la Liga Antiimperialista de las Américas, la Alianza Popular Revolucionaria Americana y el Unionismo Centroamericano, entre otras. Enfatizamos la tarea de propaganda realizada por esta red concentrándonos en Revista Ariel, publicación hondureña que de 1927 a 1929 fungió como vocería oficial del EDSNN. Ponemos especial atención en la narrativa elaborada por Froylán Turcios, editor de la publicación hondureña, que se caracterizó por una visión heroica y devota de la lucha sandinista en la cual colaboraron los principales intelectuales latinoamericanos: Gabriela Mistral, Waldo Frank, Isidro Fabela, César Falcón, Tristán Maroff, así como el mismo Sandino. Doctoranda del Programa de Posgrado en Estudios Latinoamericanos de la Universidad Nacional Autónoma de México (PELA-UNAM). E-mail: xtabayam@yahoo.com.mx 1 90 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA LA CONFIGURACIÓN ANTIIMPERIALISTA LATINOAMERICANA DE LOS AÑOS VEINTE La década de los años veinte del siglo XX puede ser considerada una bisagra en el tiempo (FUNES, 2006, p. 13). La primera posguerra definió que este periodo de transición estuviera marcado por tres hechos: la decadencia de Europa como referente civilizatorio; la consolidación de Estados Unidos como potencia imperialista y la Revolución rusa de 1917. Para América Latina la complejidad de los años veinte se expresó al menos en tres niveles: en el ámbito internacional los países latinoamericanos comenzaron a ser considerados como un espacio de influencia a disputarse entre Estados Unidos y la URSS; en el nivel regional se consolidó un discurso unificador de América Latina — basado en el binomio materialismo vs idealismo —, y, por último, los distintos países experimentaron importantes procesos de cambio social protagonizados por obreros, campesinos, indígenas, mujeres y estudiantes. En este contexto se articuló un movimiento antiimperialista configurado a partir de la convergencia de distintos proyectos políticos — nacionalistas, anarquistas comunistas, hispanoamericanistas, unionistas — que se expresaron en momentos clave como la intervención norteamericana en México, Nicaragua, Haití, Cuba y República Dominicana. El antiimperialismo como tópico en estos años consolidó una tradición antinorteamericana que se gestó desde finales del siglo XIX y que tuvo en la política del Big Stick una de sus expresiones más violentas. En esta década la idea de que existían varios tipos de imperialismo, uno parasitario (norteamericano) y otro civilizatorio (europeo), estaba puesta en duda después de los efectos causados por la Gran Guerra. A partir de esta premisa los grupos antiimperialistas latinoamericanos comenzaron a delinear estrategias comunes y plantearon sólidos argumentos para manifestarse contra la presencia estadounidense, especialmente en la Cuenca del Caribe. Bajo premisas como: la defensa de la autonomía, la soberanía y la independencia política y económica el movimiento antiimperialista latinoamericano anticolonialistas de Asía y África. entró en consonancia con los movimientos 91 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA La coordinación y la manifestación pública de las organizaciones antiimperialistas fue fundamental. Ya fuera conformando colectivos y revistas, manifestándose públicamente, realizando conferencias o a partir de expresiones individuales condenaron la estrecha relación de las oligarquías latinoamericanas con los grupos económicos y el gobierno estadounidense. Sin embargo, a pesar de sus coincidencias y de una aparente sintonía, el movimiento antiimperialista se caracterizó por sus tensiones, fracturas y confrontaciones. El periodo de 1924 a 1927 es clave en la configuración de este movimiento, pues se fundarán tres importantes organizaciones antimperialistas de proyecciones continentales: La Liga Antiimperialista de las Américas (LADLA), la Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA) y la Unión Centro Sudamericana y de las Antillas (UCSAYA). La LADLA se creó, entre 1924 y 1925, poco tiempo después de que México y la Rusia Soviética reestablecieran relaciones diplomáticas. La fundación de la Liga Antiimperialista respondía a varios objetivos entre los que se encontraban buscar el reconocimiento de los países europeos y latinoamericanos, y reorganizar, a través de los Partidos Comunistas, a las clases trabajadoras para combatir el capitalismo. De esta forma la LADLA fue: Un aspecto particular dentro de la estrategia de la Komitern para América Latina, que pretendió unir, bajo un mismo espíritu de combatividad a todos los sectores del continente enemigos de la hegemonía estadounidense y europea en la región, apoyándose para ello en la creciente conciencia latinoamericanista de los grupos obreros, campesinos y de las clases medias. (KERSFFLED, 2012, p. 11). Bajo esta lógica la Liga de las Américas fue financiada en gran medida por la Komintern y creo una estructura organizativa y de propaganda dirigida especialmente por comunistas norteamericanos. A esta estructura, encabezada por José Allen y Charles Phillips, se adhirieron connotadas figuras de la esfera política y cultural mexicana como Diego Rivera, Úrsulo Galván, Carlos Pellicer, José Clemente Orozco, Xavier Guerrero, David Alfaro Siqueiros, German Litz Arzubide y Enrique Flores Magón, entre otros. De igual forma se incorporaron importantes intelectuales y políticos latinoamericanos afincados en México como el dominicano Pedro Henríquez Ureña, el cubano Julio 92 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Antonio Mella, el peruano Edwin Elmore, y el venezolano Gustavo Machado. Como parte de esta estructura se crearon dos órganos de propaganda: El Machete y El Libertador. Por su parte la Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA) fue fundada en 1927 por el peruano Víctor Raúl Haya de la Torre2. Según el programa de la organización publicada en el documento ¿Qué es el APRA? (1926) se planteó la configuración de un movimiento antiimperialista conformado por un frente de trabajadores manuales e intelectuales latinoamericanos. La acción de este movimiento estaría articulado entorno a reivindicaciones como: acciones contra el imperialismo yanqui, la unidad política de América Latina, la nacionalización de la tierra y la industria, y la solidaridad de los pueblos y clases oprimidas del mundo. Los simpatizantes de la APRA fueron básicamente un grupo de peruanos trashumantes que por su condición de exiliados desarrollaron un ethos que les permitió sobresalir en el escenario latinoamericano y construir un culto a la praxis que les permite diferenciarse de sus antecesores peruanos y de una parte del mismo movimiento latinoamericano (BERGEL, 2009, p. 42). Entre los apristas más destacados se encontraron Magda Portal, Eudocio Ravines, Luis Heysen, Esteban Pavletich, Manuel Seoane, Carlos Manuel Cox, Antenor Orrego, Serafín del Mar, entre otros. Junto a estas dos organizaciones apareció la Unión Centro Sudamericana y de las Antillas (UCSAYA) en abril de 1927 (MELGAR, 2006) fundada por el venezolano Carlos León, quien fungió como presidente de la organización, y el argentino Alejandro Siux, director de la revista La batalla. El objetivo de la UCSAYA fue la defensa de “los intereses raciales, la propaganda contra la absorción injusta de parte de los poderosos, hacer prevalecer, hasta lo posible el derecho propio contra los desmanes del 2 La historiografía aprista suele datar la fundación de la APRA en mayo de 1924 en el marco de la ceremonia de la trasmisión de poderes de la Federación de Estudiantes de México. En ese evento Haya de la Torre pronunció un discurso en el que se asumía presidente de la Federación de Estudiantes Peruanos, y en el que sostenía las premisas latinoamericanistas que compartía con el filósofo y ministro de educación José Vasconcelos, —de quien fue secretario—. Durante el evento no se mencionó nada sobre la fundación de una organización como la APRA. En 1926, ya en su estancia en París, Haya de la Torre y un grupo de cuzqueños formarán el Frente intelectual Antimperialista y en enero de 1927 se fundará la primera sección de la APRA. El episodio fundacional en México tiene como preámbulo la conferencia de Bruselas (VALDERRAMA, 1979, 123-124) 93 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA imperialismo en todos sus aspectos.”3 A demás de Carlos León y Alejandro Siux, la primera plana de la UCSAYA estaba conformada por exiliados latinoamericanos como Jacobo Hurwitz (Perú), Francisco de P. Dávila (Colombia), Amado Chavarri (Costa Rica), Santiago Garza (Cuba), Gaspar Mora (Chile), Luis Felipe Obregón (Guatemala), Michel L. Giordani (Haití), Rafael Heliodoro Valle (Honduras), Hernán Robleto (Nicaragua) y Miguel Paredes (El Salvador). Definir políticamente a la UCSAYA es interesante. Ricardo Melgar (2006/2007) define la ideología de esta organización como un neobolivarianismo por incorporar a su ideario el legado unionista de Simón Bolívar que fue actualizado con tonos cooperativistas y militaristas que pretendían garantizar la “igualdad y la fraternidad” (MELGAR, 2006; 2007. p. 156). Pero, además, los dos personajes más importantes de la UCSAYA se movían ideológicamente en polos opuestos. Mientras Alejando Siux elaboraba un proyecto editorial desde su militancia anarquista, Carlos León se vinculaba estrechamente con las elites posrevolucionarias mexicanas de corte liberal (MELGAR, 2006). Como parte de las coincidencias de las organizaciones antiimperialistas latinoamericanas encontramos sus miras y proyecciones continentales. Estas organizaciones tuvieron, o aspiraron a tener, delegaciones en México, Argentina, Cuba, El Salvador, Costa Rica, Puerto Rico y Perú, además de que sus militantes provenían de las distintas nacionalidades latinoamericanas. Pero más importante aún fueron la confluencia entre las organizaciones en los mismos espacios, la relaciones entre sus integrantes y la colaboración entre sus órganos de propaganda. Daniel Kersffeld describe estas coincidencias de la siguiente forma: Las protestas, manifestaciones, mítines políticos y los encuentros culturales en apoyo a la guerrilla insurgente en Nicaragua se constituyeron en un punto de encuentro entre agrupaciones que se vieron obligadas a interactuar en el mismo escenario izquierdista y latinoamericanista y, aunque por momentos tensa, la camaradería imperante entre comunistas, apristas, liberales, socialistas, nacionalistas, etc., se construyó un fenómeno que, con sus propios matices, fue prácticamente inédito en la historia de los países de la región (KERSFFELD, 2009, p. 111). 3 Carta de Carlos León a Plutarco Elías Calles, 20 de agosto de 1927. AGN- México, Fondo Plutarco Elías Calles, exp. 4/489 94 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Un elemento que pasa inadvertido en los análisis del antimperialismo latinoamericano es su expresión unionista centroamericana que retomó el proyecto decimonónico de unificar a Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicaragua y Costa Rica en una sola nación. El unionismo centroamericano propuesto a inicios del siglo XX tuvo su máxima expresión en el Partido Unionista Centroamericano (PUCA) fundado en 1921 por el nicaragüense Salvador Mendieta en Guatemala, de corta vida. El unionismo centroamericano tuvo muchas significaciones y se nutrió de varias fuentes ya que no solo fue un movimiento intelectual influido por el arielismo rodoniano sino que también fue un movimiento político que “pugnó por un Estado social, se fundó en un pensamiento regeneracionista, rechazó la dictadura y el imperialismo y fue heterogéneo, pues representó la unidad de diversas facciones e intereses de la sociedad centroamericana.” (GIRALDEZ, 2010, p. 203). La principal fuente del unionismo fue el modernismo. Este movimiento artístico se desarrolló paralelamente a la incipiente modernización industrial de la región centroamericana y a la reacción de un grupo de intelectuales que expresaron su abierto rechazo a la presencia norteamericana bajo la premisa de la confrontación cultural entre la raza latina vs la raza sajona. (FUNES J., 2006, p. 196-197) El unionismo centroamericano, desde la segunda mitad del siglo XIX, se manifestó en contra de la presencia norteamericana en la región4, pero será en la década de los veinte que se estructurará más que como una organización como una postura común frente al intervencionismo estadounidense que adoptó múltiples formas. Las diversas actitudes con respecto a las dictaduras, las oligarquías y la presencia de Estados Unidos dependieron al menos de dos elementos: el primero fue el tipo de intervención que experimentaron los países centroamericanos — cultural, política, económica o militar — y el segundo se relacionó al tipo de desarrollo económico que esta 4 Una de las primeras expresiones unionistas que denunciaron la presencia estadounidense como una amenaza para la existencia de los países centroamericanos fue la presencia de William Walker en Nicaragua entre 1855-1857, cuando el proyecto cuando el proyecto colonizador del filibustero había sobrepasado los objetivos e intereses de los liberales nicaragüenses que había pedido su intervención. Como respuesta a la amenaza que representaban la presencia de Walker las clases dirigentes y letradas utilizaron distintos mecanismos para exacerbar el miedo respecto de la intervención de las huestes estadounidenses y la defensa de la unión centroamericana. Un ejemplo de esta acción en conjunto fue el folleto costarricense Clarín Patriótico que circuló desde 1857 y que contenía poesía y cantos exaltando tópicos como la nación, el patriotismo y la independencia, y representaba a los filibusteros como los bárbaros impíos, los representantes de la esclavitud y la traición. (QUESADA, 2010, 23-54) 95 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA intervención propició. Mientras que en El Salvador y Guatemala la presencia de las compañías fruteras norteamericanas mereció la expresión moderada de la oposición, en Honduras y Nicaragua la presencia financiera, corporativa y militar propició posiciones más radicales. Este proyecto fue enarbolado por los intelectuales centroamericanos de primer orden: Froylán Turcios, Alberto Masferrer, Rafael Heliodoro Valle, Salvador Mendieta, Maximino Soto Hall, José Joaquín García Monge, etc. En este panorama dos fueron las organizaciones protagonistas: la LADLA y la APRA. Ambas organizaciones se disputaron el liderazgo del movimiento en la región. La confrontación giró en torno a establecer quiénes eran los sujetos revolucionarios, quiénes eran los enemigos, en qué espacios y mediante qué mecanismos se llevaban a cabo la lucha antiimperialista. Las dos organizaciones habían colaborado en algunos espacios hasta el Congreso de Bruselas de 1927, en el que su rivalidad se hizo evidente en las Resoluciones sobre América Latina. En dicho documento se hacía un balance antiimperialista de la región y se pretendía avanzar en una serie de medidas para contrarrestar la presencia del imperialismo norteamericano, además de defender a la URSS, construir un frente de fuerzas antiimperialistas, pugnar por la unión política y económica de América Latina, defender la nacionalización del suelo y subsuelo, la liberación de las colonias de Puerto Rico y Filipinas, la salida de las tropas norteamericanas de Nicaragua y Haití, la independencia de Panamá, la libre circulación por el Canal y la supresión de las dictaduras de América Latina. (RESOLUCIONES,1927, p. 10-12) Como parte de este antagonismo la presencia de ambas organizaciones en Centroamérica se daría en su campo de acción. Mientras que la LADLA organizó a obreros, mutualistas, algunos campesino y estudiantes, la APRA tuvo una gran recepción en los ámbitos intelectuales del unionismo centroamericano. La principal coincidencia entre ambas posturas fue que el antimperialismo unionista no veía en las clases populares al sujeto revolucionario, al contrario. Su movimiento estaba conformado por las clases medias letradas que se oponían a las elites que, ejerciendo el poder político, vulneraban la soberanía nacional beneficiándose de las distintas formas de intervención estadounidense. Este es el contexto antimperialista en el que se enmarca el levantamiento encabezado por el guerrillero Augusto C. Sandino en 1927. La importancia del 96 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA movimiento armado nicaragüense residió en que llevó a los militantes de las organizaciones antiimperialistas a pasar del discurso a la práctica e incluso a elaborar una narrativa latinoamericanista potente. Tanto la LADLA como la APRA tratarán de influir en la lucha armada en Nicaragua. Sin embargo, esta disputa no se dará como una confrontación directa sino a través de la colaboración con las otras posturas antiimperialistas, especialmente con el unionismo centroamericano. LA RED ANTIIMPERIALISTA DE SOLIDARIDAD CON EL EJÉRCITO DEFENSOR DE LA SOBERANÍA NACIONAL DE NICARAGUA (EDSNN). El movimiento guerrillero nicaragüense encabezado por Augusto C. Sandino iniciado en julio de 1927 fue una de las expresiones concretas de los planteamientos formulados por el movimiento antiimperialista latinoamericano. La convergencia de la LADLA, la APRA, la UCSAYA y el unionismo centroamericano proporcionó a la lucha nicaragüense apoyo económico, militar y propagandístico por parte de intelectuales, artistas y políticos que participaron en organizaciones, espacios editoriales, manifestaciones de solidaridad e incluso dentro del mismo EDSNN. Este apoyo puede analizarse a partir de las relaciones que las distintas organizaciones establecieron en torno al Ejército Defensor de la Soberanía Nacional de Nicaragua en general y de la figura de Sandino en particular. Denominaré al conjunto de relaciones, que estuvieron activas durante el periodo de 1927 a 1930, como Red Antiimperialista de Solidaridad (RAS). Entendemos una red como el conjunto de relaciones efectivas (IMÍZCOZ, 2011) entre personas u organizaciones estructuradas en un espacio y temporalidad determinados con un objetivo particular. Los vínculos que componen una red pueden ser de diferentes tipos— personales, afectivos, de parentesco, amistad, patronazgo, vecindad, profesional, confesional asociativas—que, a partir de los intercambios, la colaboración y los conflictos se pueden observar las dinámicas e intereses de las facciones o grupos que actúan en el campo social o político (IMÍZCOZ, 2009, p. 81). Concebir la temporalidad y la espacialidad de una red implica considerar las relaciones que la constituyen como dinámicas de ahí que una red no sea armónica ni 97 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 98 completamente duradera. Si la intención es incidir en el rumbo de un proceso o un problema en el momento en que deje de haber tal coincidencia la existencia de la red se pone en juego. Ciertamente el conjunto de vínculos efectivos que analizamos tuvo objetivos, una temporalidad y una espacialidad. A demás cada una de las organizaciones que se involucraron en esta red tuvo una intencionalidad y a partir de ella actuó en consecuencia. Por ello cada una de las organizaciones integrantes de esta red desplegaron los recursos que tuvieron a su disposición para acercarse a la guerrilla sandinista con el fin de capitalizar a su favor la lucha nicaragüense. La efectividad de los vínculos durante este periodo radicó en la materialización de los objetivos en común de las organizaciones antiimperialistas— por un lado, el combate al imperialismo norteamericano y, por otro, la de una unidad latinoamericana— que les permitió presentarse como un bloque homogéneo y en acción coordinada. Si partimos de la idea de que la Red Antiimperialista de Solidaridad además de ser la configuración de las relaciones y las acciones coordinadas de las organizaciones antimperialistas dio sentido a las coincidencias y tensiones que existían entre ellas distintas posturas antiimperialistas, podemos entender cómo y en qué nivel actuaron cada una. De manera que, conforme intervinieron en el conflicto los intereses y las tensiones se expresaron los vínculos establecidos entre las distintas organizaciones las cuales a larga se diluyeron pues, aunque en algunos puntos pudieron establecer consensos pesaron más las diferencias. La solidaridad fue un valor humanista que tuvo dos funciones en este entramado. Por un lado, fue utilizada como una justificación para la intervención de las organizaciones antiimperialistas con el objetivo de nivelar la confrontación entre las huestes sandinistas y los marines norteamericanos. Para conseguir este objetivo fue fundamental la propaganda pues la circulación de información y de un imaginario favorable a la guerrilla sandinista permitió cuestionar la presencia de Estados Unidos en Nicaragua y legitimar el movimiento armado. Por otro lado, la solidaridad tuvo una expresión militar. Los vínculos articulados por las organizaciones antiimperialistas permitieron la circulación de dinero, armas y personas que engrosaron las filas del ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA EDSNN. En ambos niveles las organizaciones antiimperialistas se ubicaron y funcionaron de forma distinta. En agosto de 1927 la UCSAYA, desde México, organizó un comité contra la presencia estadounidense desde un perfil humanitario para poder apoyar a las victimas nicaragüenses. El objetivo de este comité fue comunicado al entonces presidente mexicano Plutarco Elías Calles, en una carta el venezolano Carlos León, explicaba: llenando nuestro deber estamos acudiendo a las organizaciones honradas del mundo, para tocar a las puertas de la honradez y pedir un auxilió a favor de las víctimas de la invasión yanqui en Nicaragua. La UCSAYA ha organizado un Comité con tales fines, y en nombre de él nos dirigimos a Usted para solicitar su ayuda. Las víctimas del invasor yanqui en el sufrido País centro-americano exigen por deber de humanidad, por piedad si se quiere, ya que no por cooperación de las clases bien intencionadas del Universo, exigen una ayuda en su calvario, un poco de dinero para levantar una parte de los muros derruidos por la dinamita destructora de los Estados Unidos, para cubrir las llagas abiertas por las bayonetas de los soldados extranjeros, para lleva a las bocas que dejó hambrientas la destrucción de las sementeras [sic]; para enjugar muchas lágrimas de huérfanos y para facilitar al pueblo nicaragüense los medios para continuar la resistencia.5 Cinco meses después al objetivo humanitario planteado por la UCSAYA se añadiría uno netamente político. En enero de 1928 lo exiliados nicaragüenses lidereados por José Pedro Zepeda fundaron el Comité Pro Sandino que en días posteriores se convertiría en el Comité Manos Fuera de Nicaragua (MAFUENIC) y que integraría a la mayor parte de las organizaciones antimperialistas que operaban en México como la LADLA así como a partidos y organizaciones filiales al Partido Comunista Mexicano (PCM) que puso a disposición su infraestructura para mantener informada y organizada a su militancia. Siguiendo las Resoluciones sobre América Latina la LADLA promovió y movilizó organizaciones obreras, campesinas y estudiantiles a favor de la guerrilla nicaragüense ya que ésta representaba una posibilidad real de enfrentar al imperio estadounidense. De manera que su objetivo en el MAFUENIC fue robustecer la 5 Carta de Carlos León a Plutarco Elías Calles, 20 de agosto de 1927. AGN- México, Fondo Plutarco Elías Calles, exp. 4/489 99 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 100 guerrilla nicaragüense sin evidenciar sus nexos con la URSS para evitar una reacción negativa de sus potenciales adherentes (KERSFFELD, 2012). Complementaban esta tarea el envío de medicamentos para Sandino y la propaganda contra las acciones de los marines norteamericanos en Nicaragua. Este tipo de apoyo había sido ya experimentado por las organizaciones de la Komitern a favor de los anarquistas Sacco y Vanzeti en Estados Unidos; con la huelga de hambre de Julio Antonio Mella en Cuba y con el Comité Manos fuera de China. (KERSFFELD, 2012, p. 40-46) La estructura aportada por la Liga Antiimperialista de las Américas fue la cara pública de la RAS ya que en un nivel menos público los unionistas centroamericanos configuraron una estructura diplomática y de inteligencia que permitió la comunicación y vinculación del EDSNN y de Sandino con varios actores entre los que destacaron las organizaciones antimperialistas así como los principales gobiernos de la región como lo fue el de México que sería fundamental para la resistencia sandinista hasta 1930. La estructura elaborada por los unionistas fue resultado de una intensa colaboración entre intelectuales y políticos centroamericanos que durante las dos primeras décadas del siglo XX construyeron una posición y una actitud común frente a la presencia norteamericana en la región, y que llegado el momento se articularon para actuar en conjunto. Esta oportunidad se presentaría en la década de los veinte con la ocupación militar estadounidense en Honduras y Nicaragua. En 1924 los marines norteamericanos ocuparon Tegucigalpa, este hecho fue leído como una vulneración a la soberanía de este país centroamericano. Particularmente los sectores intelectuales acrecentaron su posición antinorteamericana por lo que el levantamiento encabezado por Sandino tuvo una importante recepción en personalidades que como el poeta hondureño Froylán Turcios se habían opuesto activamente a la presencia norteamericana La cercanía del Cuartel General de Las Segovias, en el norte de Nicaragua, ayudó a que hondureños y nicaragüenses lograran construir una estructura de comunicación que permitiera llegar todo tipo de recursos al EDSNN. La presencia de hondureños en esta red fue importante, especialmente, en el periodo analizado, el papel desempeñado por Turcios fue fundamental para la RAS. ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 101 El vínculo entre Sandino y Turcios comenzó entre agosto de 1927, y puede ser considerado uno de los primeros vínculos que el guerrillero estableció fuera de Nicaragua. En septiembre de ese mismo año el hondureño fue designado vocero oficial del ejército sandinista y ayudó a confirmar la estructura de inteligencia y propaganda a favor de la guerrilla. Para realizar esta tarea Turcios echó mano de los contactos que estableció política e intelectualmente durante su trayectoria como diplomático en los Gobiernos de Manuel Bonilla y J. Bertrand (TURCIOS, 2007,456) Uno de los principales vínculos de Turcios en Ciudad de México sería su compatriota, también poeta, Rafael Heliodoro Valle (1891-1959) quien estableció contacto con los principales círculos intelectuales y políticos mexicanos desde 1906 llegando a Ciudad de México recomendado al escritor Juan de Dios Peza quien lo acogería en su etapa como estudiante en la Escuela Normal de Tacubaya (CHAPA BEZANILLA, 2010, p. 113-119). Esta primera estancia permite a Heliodoro Valle construir una serie de relaciones con importantes académicos, intelectuales y políticos de México, Centroamérica y América del Sur. Entre los principales vínculos que el hondureño estableció en esta etapa fue su acercamiento con políticos que serían protagonistas en el escenario centroamericano en la década de los años veinte, entre los que se encontraron los nicaragüenses José Santos Zelaya y Jan Bautista Sacasa, futuro presidente de Nicaragua; Policarpo Bonilla ex presidente de Honduras, y Manuel Estrada Cabrera, dictador de Guatemala (BEZANILLA, 2010, p. 123-126). La presencia que fue adquiriendo Heliodoro Valle en la década de los años veinte lo llevó a ser un punto de referencia. En 1921 es invitado a incorporarse en el proyecto educativo encabezado por José Vasconcelos y Jaime Torres Bodet como secretario del Director General de Educación Pública y catedrático de Historia de México en la Escuela Nacional Preparatoria y profesor de Literatura Mexicana en la Facultad de Altos Estudios (CHAPA BEZANILLA, p. 181-184). Y en vísperas del Centenario de la Independencia fue investido por el gobierno hondureño como Primer Secretario de la Misión Especial acreditada ante el gobierno de México para asistir a las festividades en representación del gobierno hondureño. Para 1925 Rafael Heliodoro Valle era considerado uno de los intelectuales centroamericanos más reconocidos en América Latina, por ello su labor ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA antinorteamericana frente a la ocupación de la ciudad de Tegucigalpa por parte de los marines norteamericanos y, posteriormente, la invasión a Nicaragua en 1926 lo llevaran intensificar su actividad política como el puente entre los intelectuales hondureños, nicaragüenses, guatemaltecos, salvadoreños y costarricenses con centroamericanos asentados en México, los intelectuales mexicanos, y el resto de los intelectuales latinoamericanos. Será en 1927 cuando la actividad política de Rafael Heliodoro Valle en la región tendrá relevancia, específicamente para el movimiento antiimperialista. Heliodoro Valle y Carlos León, ambos, parte de la UCSAYA, fueron personajes estrechamente vinculados con los grupos políticos e intelectuales en México. Junto con los nicaragüenses José Pedro Zepeda y Hernán Robleto, este último también miembro de la Unión Centro Sud Americana y de las Antillas, formaron un núcleo que desde México vinculó al MAFUENIC y a otras organizaciones antiimperialistas con la estructura que dirigirá Turcios en Tegucigalpa. En México Heliodoro Valle establecerá una estrecha relación con el líder de la APRA. En una carta de inicios de 1928 Víctor Raúl Haya de la Torre pide apoyo Valle: Querido Rafael Heliodoro (…) En la Argentina el movimiento a favor del viaje a Nicaragua es enorme. Palacios [Alfredo] vendrá velis nolis. Ayúdanos. La oposición vendrá de [Adolfo] Díaz y [Calvin] Coolidge. Hay que precisarlo. Tú, hombre de visión (porque eres en diarisimo como el Niño Fidencio, en medicina, monarca adolescente de estas regiones) comprenderás la fuerza que tiene que los países grandes e importantes de nuestra América se interese en Nicaragua como, a través de Palacios, está ocurriendo ahora en la Argentina.6 El viaje aludido se realizó en junio de 1928, el cual tenía por objetivo arribar a Nicaragua para reunirse con Sandino (PAKKASVIRTA, 2001, p. 16). La gira del líder aprista por Centroamérica consistió en una serie de conferencias mediante las cuales estableció contacto con importantes intelectuales unionistas como Alberto Masferrer y Joaquín García Monge. Como ha documentado Jussi Pakkasvirta la intención de la presencia de Haya de la Torre en Centroamérica era obtener información de la práctica revolucionaria, pero debido a varias objeciones que puso el peruano solo se estableció en San José. 6 Carta de Víctor Raúl Haya de la Torre a Rafael Heliodoro Valle. Torreón, 26 de enero de 1928. Biblioteca Nacional de México, Fondo Rafael Heliodoro Valle, exp. 1019., doc. 9 102 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Si bien Haya de la Torre no arribó al Cuartel General de Las Segovias sí consiguió varios adeptos en la intelectualidad centroamericana por coincidir con los postulados de unidad latinoamericana, justicia social alerta del peligro imperialista norteamericano, la educación para el pueblo y responsabilidad intelectual hacia las masas obreras e indígenas. REVISTA ARIEL Y LA PROPAGANDA DE LA RED ANTIIMPERIALISTA DE SOLIDARIDAD (1927-1929) El periodo que comprende los años de 1927 a 1929 fue el momento en que las organizaciones antiimperialistas actuaron y se mostraron como un solo bloque contra los Estados Unidos. Uno de los factores que ayudaron a esta percepción se plasmó en la construcción de una narrativa latinoamericanista y la iconización de la figura de Sandino elaborada por un grupo de ensayistas, artistas, poetas y políticos que se pronunciaron a favor del levantamiento nicaragüense y participaron activamente dentro de las organizaciones antiimperialistas o se adhirieron a la narrativa antinorteamericana. Este grupo de personajes coincidieron en ser opositores a las oligarquías y las dictaduras; defendieron la soberanía de las naciones latinoamericanas; se manifestaron a favor de la incorporación gradual de campesinos, obreros, indígenas y mujeres en la vida pública de sus naciones, y tuvieron una actitud ambigua frente a Estados Unidos pues, por una parte, se opusieron al expansionismo militar y cultural, pero, por otra, admiraban los logros de modernizadores conseguidos. Buena parte de los integrantes de este grupo procedió de una clase media letrada o fueron cercanos a oficios como la tipografía, por lo tanto, asumieron una importante participación en los medios escritos y tuvieron la oportunidad de recorrer algunas de las de las ciudades y puertos más relevantes de la región latinoamericana, Estados Unidos y Europa. La presencia de los intelectuales latinoamericanos más importantes de la época en el movimiento de solidaridad con Sandino se manifestó en el principal órgano de propaganda del EDSNN, la revista hondureña Ariel. El objetivo de la publicación fue informar sobre la presencia norteamericana en Nicaragua y contrarrestar la información 103 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA divulgada por los gobiernos estadounidense y nicaragüense que justificaban su presencia en Centroamérica y que descalificaban la resistencia sandinista. Como muchas revistas culturales de la época, Revista Ariel fue un espacio de convergencia de individuos y organizaciones de distintas ideologías, de manera que como portavoz de un proyecto político e instrumento de intervención política esta publicación tuvo un papel importante en el movimiento antiimperialista latinoamericano. Revista Ariel fue parte del proyecto editorial que Froylán Turcios construyó a partir de 1922 y desde 1927 —cuando el poeta y diplomático hondureño es designado vocero del EDSNN— se le incorporó como una pieza fundamental de la Red Antiimperialista de Solidaridad. La inscripción de la publicación hondureña al entramado antiimperialista no fue forzada sino todo lo contrario, de hecho, puede ser considerado como un movimiento natural, pues desde 1925 Revista Ariel dio cuenta del ambiente antiimperialista de la región reproduciendo notas sobre las reacciones cubanas a la enmienda Platt y las victorias del marroquí Abdel Krim (UN APLAUSO, 1925, p. 170-171). Bajo esta lógica en años posteriores la publicación hondureña dará cuenta de la conformación del campo antiimperialista en América Latina. Por ejemplo, durante el año de 1927 a parecerán en Revista Ariel dos organizaciones del antimperialismo latinoamericano cercanas a Rafael Heliodoro Valle la UCSAYA y la APRA. Sobre la organización dirigida por Carlos León aparecerán las manifestaciones de esta organización en contra de la presencia norteamericana en Nicaragua durante la sexta conferencia panamericana (CARTA DE CARLOS LEÓN, 1927, 55, 1060). Así como comunicaciones directas a Sandino en las que se muestran la simpatía de la UCSAYA y su adhesión al movimiento sandinista (CARTA DE CARLOS LEÓN Y ERNESTO CARRERA, 1928, p. 58, 1097) Mientras que por parte de la APRA se hará pública la intención de la organización antiimperialista, específicamente de su líder Haya de la Torre, de involucrarse en el devenir del conflicto nicaragüense: Una comisión del A.P.R.A. partirá a Nicaragua con el objeto de constatar la neutralidad y protección yanquis en las próximas elecciones presidenciales, solicitada urgentemente por la juventud intelectual y obrera de aquel país. En esta comisión, en la que figura 104 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Víctor Raúl Haya de la Torre, hablará más tarde con documentos y detalles, lo que nosotros podemos hacer desde ahora gracias a la práctica obtenida en casos idénticos, donde la Infantería de Marina y la Casa Blanca han mediado como árbitros y salvadores. Agite usted y fije en esta comisión desde Ariel, los desconcertados y entristecidos ojos de la nueva generación centroamericana (APRA, 1927, 1036) En el número 55 de Revista Ariel la APRA tuvo un espacio importante al publicar un manifiesto a favor de la resistencia nicaragüense, firmado por la sección parisina del APRA, así como el documento ¿Qué es el APRA? (1927, 55, 1057-58, 1061). Revista Ariel puede analizarse como un espacio-ficción en el que sus colaboradores están reunidos en un soporte, el cual los agrupa y caracteriza al mismo tiempo. Es decir, los integrantes de este espacio le dan un matiz a la revista y ésta a su vez reafirma su condición antimperialista. Analizar el resultado de las relaciones de esta red nos puede ayudar a comprender el momento e impacto de ésta. Ciertamente la red creó un clima antimperialista que se combinó con una exacerbación belicosa (guerra entre razas como metáfora, pero también como un hecho real); además de la constante comunicación entre los intelectuales y las polémicas en las que participaron evidenciaron las distancias y conflictos, y, por último, la construcción de un imaginario que estuvo influido notablemente por el arielismo rodoniano. Cada una de las colaboraciones publicadas en Revista Ariel da la sensación de que las distancias se acortan y el tiempo se sincroniza. Al establecer el diálogo entre Sandino y los intelectuales la empresa antimperialista no es solo del guerrillero y su ejército sino de cada uno de los hispanoamericanos que se sienten ofendidos por la presencia militar, financiera e incluso cultural de Norteamérica en los distintos países latinoamericanos. Parece que es el tiempo del antiimperialismo y la liberación de los pueblos hispanoamericanos. (GALICIA, 2015) Como propaganda pro Sandino en Revista Ariel se desplegaron al menos tres formas de generar información para influir en la percepción de la guerrilla nicaragüense. La publicación hondureña informó sobre el rumbo de los combates entre sandinistas y los marines estadounidenses. Como parte de este ejercicio se retomaron las principales noticias referentes a los combates poniendo especial énfasis en la desigualdad entre los ejércitos. Este elemento permitió retomar la presencia de los marines en otros países de la Cuenca del Caribe. De la misma forma que se informó sobre las polémicas que se 105 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA presentaron en el congreso estadounidense respecto a la presencia del ejército norteamericano en Centroamérica y el Caribe Una segunda estrategia fue intentar establecer un diálogo con la opinión pública estadounidense para que ésta cuestionara la política intervencionista de su gobierno en Nicaragua y en otros países de la Cuenca del Caribe: La opinión pública norteamericana, cuando se identifique con la realidad, limpia de pasiones y odios, y sepa que por fin el héroe del Chipote lucha por los principios sagrados, y que no es salteador de caminos reales, será la primera en reaccionar indignada, la primera en ejercer presión al presidente Coolidge para que se ordene el retiro de las fuerzas de marinería yanquee que actualmente ocupan buena parte del Estado nicaragüense. (REVISTA ARIEL, 1928, s/f) Una tercera estrategia está relacionada con las prácticas editoriales y de distribución de Revista Ariel. Por ser Turcios el receptor de información desde el Cuartel de Las Segovias y el editor de la publicación, la revista casi siempre fue la emisora de la información. Para que esta información fuera conocida se hizo uso de la práctica editorial de recortes que consistió en la reproducción de notas publicadas con anterioridad (VUI, 2017, p. 164-165). Uno de los editores más asiduos a esta práctica fue el costarricense José Joaquín García Monge. En la célebre publicación Repertorio Americano es común encontrar que los recortes llegan a articular los contenidos de la revista, pero también dan cuenta de objetivos programáticos. De manera que la reproducción de notas muchas veces salió de Tegucigalpa para distribuirse en el resto del continente. En esta tarea también influyeron dos elementos, primero la activación de los vínculos con importantes intelectuales que fue construyendo Turcios durante su época de diplomático que garantizaron la distribución de la revista tanto en la región latinoamericana como en España y Francia. El segundo factor que influyó en la replicación de la información fue el estrecho vínculo que Turcios tuvo con importantes editores como Joaquín García Monge que fue pieza fundamental para la difusión de la propaganda sandinista. La importancia de la práctica del recorte o la replicación de información en este periodo vinculó a las principales revistas culturales y antiimperialistas de la época. Esta lógica reforzó la percepción de un movimiento imperialista unificado de ahí la importancia de revistas como El Libertador, El Machete y La Batalla y revistas 106 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA culturales como Repertorio Americano y la peruana Amauta de José Carlos Mariátegui. Con sus matices todas estas publicaciones entraron en consonancia donde los ejes del discurso serán el enfrentamiento contra Estados Unidos como enemigo común, la defensa de un hispanoamericanismo y el apoyo a la lucha nicaragüense. En la articulación de estas tres estrategias convergieron un grupo de intelectuales, artistas, periodistas y políticos latinoamericanos, estadounidenses y europeos. Entre los que destacan intelectuales como Isidro Fabela (México); Jaime Torres Bodet (México); Rafael Heliodoro Valle (Honduras); Alfredo Trejo Castillo (Honduras); Alberto Masferrer (El Salvador); J.C Jolibois (Haití); Américo Lugo (Republica Dominicana); Víctor Raúl Haya de la Torre (Perú) Ricardo Palama (Perú); José Santos Chocano (Perú); César Falcón (Perú); Esteban Pavletich (Perú); Federico Madriz (Venezuela); Tristán Marof (Bolivia); Gabriela Mistral (Chile); Genera Araya (Chile); Manuel Ugarte (Argentina); Alfredo Palacios (Argentina); Carleton Beals (Estados Unidos); Waldo Frank (Estados Unidos), Luis Araquistaín (España) y Henrie Barbuse (Francia). A través de cartas, colaboraciones, comunicados, noticias y encuestas los intelectuales se vincularon con la lucha antiimperialista de la dupla Turcios-Sandino. Y buena parte de estas colaboraciones publicadas en Revista Ariel dan la impresión de que en ese momento la tarea emprendida por Turcios y el levantamiento de Sandino eran una sola. La cohesión de un movimiento no solo es legitimada por la presencia de importantes intelectuales, sino también por la colaboración de organizaciones obreras, organizaciones estudiantiles que muestran a Revista Ariel como un espacio de expresión para todo tipo de posturas antiimperialistas, ya que en sus páginas confluyen posiciones socialistas, apristas, unionistas, nacionalistas, mestizofilas e internacionalistas a favor de la lucha sandinista. 107 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 1 – Red de intelectuales en Revista Ariel. Fonte: Información: Revista Ariel (1928) LA NARRATIVA ANTIIMPERIALISTA EN REVISTA ARIEL Esta noción de unidad antiimperialista se reflejó en la construcción de una narrativa en torno a la lucha sandinista. Como hemos señalado en otros trabajos (GALICIA, 2015, 2019) el discurso que se desplegó en Revista Ariel se caracterizó por elaborar una identidad en clave hispanófila y un imaginario devoto y épico de Sandino: En las colaboraciones, coordinadas por Turcios, se delinearon los elementos que configuraron una idea de unidad e identidad hispanoamericanas y condensaron en la figura heroica de Sandino. La sensación de unidad se logró mediante un diálogo imaginario establecido entre Sandino y la intelectualidad latinoamericana. En ese diálogo se compartieron un problema –la presencia amenazante de Estados Unidos, un proyecto –la consolidación de las naciones 108 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA latinoamericanas–, y una utopía –la creación de la patria grande– (GALICIA, 2015, p. 148). La base de la configuración de este discurso radicó en el papel de Turcios como editor. Fernanda Beigel (2003,109) señala que la tarea del editor es fundamental para definir el perfil de la revista. Por ello la presencia de Froylán Turcios como uno de los principales articuladores de la RAS no fue fortuita, consideramos que su trabajo como diplomático, escritor, editor y activista antiimperialista definió las categorías con las que organizó su discurso. La narrativa elaborada por Turcios suele pasar desapercibida debido a que no coincide con las corrientes de vanguardia que definieron la estética y la política de los años veinte en los principales países de la región. Incluso, dentro del modernismo centroamericano la producción literaria de Turcios suele considerarse menor. Sin embargo, la empresa editorial turciana se caracterizó por contar con una base programática que incluyó lo estético y lo político. Como parte del primer elemento Turcios retomó el modernismo como la corriente que proporcionó una actitud rebelde y creativa, un refinamiento narcisista, un cosmopolitismo y una profunda renovación estética del lenguaje y la métrica. Mientras que desde lo político se ciñó a los preceptos unionistas en el que fue fundamental un antinorteamericanismo y el ideal de la unificación de las naciones centroamericanas. Froylan Turcios puede ser considerado uno de los centroamericanos más cosmopolitas de inicios del siglo XX y equiparse a figuras como la del costarricense José Joaquín García Monge (1881-1958). Su tarea como editor incluyó la publicación de algunos de los diarios de los que fue responsable, como El Heraldo (1909-1910) y El Nuevo Tiempo (19012-1916), y revistas como Esfinge. Revista de Altas Letras (19061916). Fue a partir de la fundación de la imprenta El Sol en 1916 y la librería Hispanoamérica en 1922, que pudo sostener y difundir una parte de su proyecto editorial, específicamente Esfinge, Hispano-América, Boletín de la Defensa Nacional (1925) y Revista Ariel (1925-1928). (GALICIA,2019, p. 98-99) Revista Ariel es la síntesis de tres revistas: Esfinge. Revista de Altas Letras, Hispano-América y Boletín de la Defensa Nacional. La primera de corte literario y promoción cultural, la segunda de corte netamente hispanista y la tercera con un fuerte tono de denuncia frente a la presencia norteamericana en Honduras. A partir de este 109 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA conjunto de revistas, el poeta hondureño definirá las características de su posterior línea editorial: de un lado, poniendo énfasis en el contenido literario cosmopolita e hispanófilo y, del otro, definiendo las categorías desde las cuales se elaborará la denuncia de la presencia norteamericana en Honduras. (GALICIA, 2019, p. 100). El discurso elaborado por Turcios es común dentro del antiimperialismo unionista, y la clave hispanófila, épica y heroica se reforzará con la reproducción y publicación de las cartas que Sandino enviaba a Turcios. Si bien las comunicaciones que tuvieron ambos personajes tenían como objetivo dar detalles sobre los enfrentamientos en los campos de batalla, también permitieron ir delineando al Sandino iconizado. Las primeras notas publicadas en Revista Ariel sobre la ocupación estadounidense en Nicaragua aparecieron a inicios de 1927 reproduciendo noticias a publicadas en la revista salvadoreña Patria, dirigida por Alberto Masferrer, así como notas sobre los primeros bombardeos a Chinandega (REVISTA ARIEL, p. 39, 1927). La comunicación directa entre Sandino y Turcios se establecerá desde agosto y a partir de este momento comenzará a perfilarse la imagen devota y épica del guerrillero. A este imaginario colaboró el mismo Sandino que en sus comunicaciones daba información sobre su lucha: La autonomía será el principal motivo del levantamiento nicaragüense, en otras publicaciones hará referencia al número de hombres que componen su ejército, arrojaría la cifra de dos mil, así como describió los ataques aéreos al cuartel general de Las Segovias, y denunciará la indiferencia de los gobiernos latinoamericanos respecto a la situación de Nicaragua. En las cartas de Sandino publicadas en Revista Ariel hay referencias a eventos personales que fueron definiendo su autobiografía cuando confiesa ser de origen popular y define su causa como “El ansia de libertad y el deseo de independencia”. En carta del 1 de abril de 1928 publicada con el título “Síntesis autobiográfica del Gral. Sandino” el propio guerrillero hace referencia a las motivaciones morales de su resistencia: Conservo gran número de constancia que acreditan mi conducta honrada, de las diferentes empresas en que presté servicio. […] confieso que en nuestro mundo profano jamás encontré felicidad, y por esto, y en busca de un consuelo espiritual, leí libros mitológicos y busqué maestros de religión […] 110 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA También he logrado comprender que las buenas doctrinas son menos preciadas e invocadas por hombres sin escrúpulos, solo para alcanzar prebendas, sin importarles la Humanidad ni Dios. En resumen de los conocimientos por mi adquiridos deduzco que el hombre ni podrá jamás vivir con dignidad desviado de la sana razón y las leyes que marcan el honor Amo la justicia y por ella voy al sacrificio. Los tesoros materiales no ejercen ningún poder en mi persona: los tesoros que anhelo poseer son los espirituales. (CARTA DE SANDINO, 1928, p. 65, 1213). Este tipo de declaraciones reforzarían la imagen de apóstol y santo de una causa que se leía como imposible, pues ante el poderío y superioridad militar y numérico de los marines norteamericanos el ejército muchos intelectuales anticipaban su derrota en términos heroicos. De esta premisa surgieron los epítetos de “General de Hombre Libres” de Henrie Barbusse y “pequeño ejército loco de voluntad y sacrificio” de Gabriela Mistral. Específicamente este último fue el resultado de la práctica editorial del cuestionario en el cual Gabriela Mistral dio su parecer sobre la resistencia del General Sandino a las fuerzas norteamericanas. En el texto titulado “Sandino. [Contestación a una encuesta]” Mistral, llamará a la colaboración continental a la lucha sandinista retando a: Los hispanizantes políticos que ayudan a Nicaragua desde su escritorio o su club de estudiantes, harían cosa más honesta yendo a ayudar al hombre heroico, héroe legítimo, como tal vez no les toque ver otro, haciéndose sus soldados rasos. […] Cuando menos, si a pesar de sus arrestos verbales, no quieren hacerle el préstamo de sí mismos deberían ir haciendo una colecta continental para dar testimonio visible de que les importa la suerte de este pequeño Ejercito loco de voluntad de sacrificio. Nunca los dólares, los sucres y los bolívares sudamericanos, que se gastan fluvialmente en sensualidades capitalinas, estarían mejor donados (SANDINO, p. 61,1928,1150). Si bien Mistral se encontraba en París cuando respondió a la encuesta, sus palabras describen un ambiente y ánimo de solidaridad generalizado en torno a la lucha sandinista en los países latinoamericanos. Otro de los ejercicios que se beneficiaron de la RAS y contribuyeron a la iconización de Sandino fueron los reportajes del periodista comunista estadounidense Carleton Beals7 quien dio cuenta de la red de inteligencia que 7 Estos reportajes fueron financiados por The Nation publicación periódica neoyorkina que los reprodujo entre febrero y abril de 1928. Los reportajes mismos fueron traducido al español y publicados por el 111 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Turcios ponía a disposición de todos aquellos que querían integrarse al EDSNN así como de su trabajo propagandístico. En vísperas de la salida de Carleton Beals de Tegucigalpa para llegar al campamento de Las Segovias se reunió con Turcios, en dicho encuentro el hondureño confesó que su tarea de editor y propagandista era una sola: “¿Ve Usted? Soy un librero muy tonto. Me quedo con los libros que creo valen la pena en cualquier literatura. Y trato de hacer de Ariel no solo un órgano sandinista, sino también una guía de lo mejor en los nuevos libros” (BEALS, 1983, p. 25). Las crónicas de Beals fueron publicadas en Revista Ariel y al igual que otros intelectuales latinoamericanos, incluidos en la revista, mostró una abierta simpatía y admiración por la lucha sandinista y particularmente por Sandino. Beals hace una descripción del guerrillero que abonará a su iconización al describirlo de la siguiente forma: Sandino nació el 18 de mayo de 1895, en el pueblo de La Victoria. Es bajo de estatura; apenas medirá 5 pies. Cuando yo lo ví, vestía uniforma café oscuro, de inmaculados botones; pañuelo de seda negro y rojo anudado en el cuello y un tejano de gran ala, carca Stetson, inclinado sobre la frente y prendido con un alfiler que hacia el tricornio. […] Sus ojos sonde admirable movilidad, y refractarios a la luz, llenos de vida, intensos ojos, de buen golpe de vista. No tiene ningún vicio, posee un inequívoco concepto de la justicia personal y desea ardientemente la felicidad del más humilde soldado (EL GENERAL SANDINO, 64, 1928, 1208). Resalta en esta pequeña crónica la actitud épica y martirológica que Sandino trasmite a sus soldados a través de frases sacrificiales como: “La muerte es solamente un trivial instante de incomodidad pero que no vale la pena de que se tome enserio” o “La muerte alcanza más pronto a aquel que la vive temiendo”. Este tipo de expresiones completarán el sentido trascendental que la narrativa turciana dotó a la lucha sandinista la que calará hondo en el movimiento antiimperialista latinoamericano y en la que coincidirán como eje rector de la propaganda pro sandino. CONCLUSIONES Comité Pro Sandino de San José de Costa Rica y el Universal Gráfico de México. En 1983 estos reportajes serían publicados por la Editorial Nueva Nicaragua bajo el título Banana Gold. 112 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 113 El discurso elaborado por lo intelectuales en Revista Ariel y la función de Froylán Turcios como uno de los articuladores de la Red Antiimperialista de Solidaridad con el ejército de Sandino terminará en 1929 cuando el guerrillero se opone a la realización de las elecciones nicaragüenses para elegir presidente por estar supervigiladas por Estados Unidos, y planea su viaje a México para pedir el apoyo político, militar y diplomático al gobierno de este país. A ambas decisiones Turcios se opone y rompe relaciones con Sandino, aceptando el cargo de cónsul de Honduras en Francia. La aparente homogeneidad del movimiento antiimperialista latinoamericano se fragmenta y a partir de este momento comienza una rearticulación de fuerzas en torno a la lucha nicaragüense. La tarea de propaganda será el ámbito que se verá más afectado con esta ruptura pues sin la estructura del proyecto turciano la información sobre el rumbo de la guerrilla nicaragüense adolecerá de difusión. Esta situación también repercutirá en su relación con las otras organizaciones antiimperialistas. En su viaje a México, ya como la figura antiimperialista más importante de América Latina, Sandino será visto como un proyecto en disputa por los nicaragüenses que fueron la base del Comité Pro Sandino y por la presencia de la LADLA en el MAFUENIC. En esta querella Sandino tomará partido por sus compatriotas unionistas rompiendo en 1930 con la estructura comunista. Esta sería el final de la Red Antiimperialista de Solidaridad y de la presencia latinoamericana en el EDSNN. En este trabajo retomamos el papel de la propaganda configurada desde Revista Ariel por considerar que nos permite dimensionar la función de una red, especialmente de los vínculos efectivos que se establecen. En el caso analizado la efectividad radicó en la creación de una narrativa antiimperialista impactó fuertemente en la opinión pública latinoamericana y estadounidense; cuestionó la presencia de los marines norteamericanos en Nicaragua y legitimó el levantamiento sandinista. De igual manera la narrativa elaborada desde Revista Ariel por Froylán Turcios trascendió en el tiempo. El ambiente que desplegaron las organizaciones antiimperialistas con la información proveniente de Tegucigalpa definió una postura política de los intelectuales respecto de las oligarquías y las acciones del imperio estadounidense. A partir de las expresiones de empatía, elogio, admiración se logró una ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA especie de simplificación de un ambiente belicoso exaltando lo hispanoamericano y el culto a la personalidad de un solo individuo al que se le dotó de cualidades épicas y devotas. Las que se siguen reproduciendo en los análisis históricos sobre el guerrillero nicaragüense. La empresa que realizó Turcios, como agente del antiimperialismo unionista, es fundamental para comprender la dinámica del movimiento antiimperialista de los años veinte, y el papel de la intelectualidad en el mismo. A partir de él podemos entender que cada uno de las organizaciones antiimperialistas tenían una agenda propia, y que fue a partir de ella que se articularon no necesariamente en torno a la figura de Sandino, sino a una serie de esfuerzos que permitieron ser a Sandino el héroe devoto representante de una de las gestas antiimperialistas más importantes del siglo XX. FUENTES “¿Qué es el APRA?” Revista Ariel, n°55, 1 de diciembre de 1927 “APRA. 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México, 28 octubre 1927 Revista Ariel, n°58, 15 de enero de 1928 114 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Carta de Sandino a Turcios, Revista Ariel, n°65, 1 de abril de 1928. Carta de Víctor Raúl Haya de la Torre a Rafael Heliodoro Valle. Torreón, 26 de enero de 1928. Biblioteca Nacional de México, Fondo Rafael Heliodoro Valle, exp. 1019., doc. 9 BIBLIOGRAFÍA BEALS, Carleton. Banana Gold. Managua: Editorial Nueva Nicaragua, 1983. BEIGEL, Fernanda. “Las revistas culturales como documentos de la historia latinoamericana”. Utopía y Praxis Latinoamericana, vol. 820, p 105-115, 2003 BERGEL, Martín. “Nomadismo proselitista y revolución. Notas para una caracterización del primer exilio aprista (1923-1931), E.I.A.L. 20, 1, p. 41-66, 2009. CAHAPA Bezanilla, María de los Ángeles. Rafael Heliodoro Valle, humanista de América. Tegucigalpa: Instituto Hondureño de Antropología e Historia, 2010. 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ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA SOCIAL NA NARRATIVA DE EDUARDO CABALLERO E JORGE AMADO Cristian Fabián Pulga Infante1 Hiolly Batista Januário de Souza2 INTRODUÇÃO Os diferentes vínculos que desde a antiguidade clássica se estabeleceram entre a história e a literatura têm revelado as múltiplas possibilidades de abordagem, análise e estudo dos seres históricos os quais têm uma caracterização bastante enraizada nas percepções e ações nos seus respectivos contextos socioculturais. Para o estudo a seguir, tomamos duas obras latino-americanas, que apesar de serem geograficamente distantes, compartilham significativamente uma temporalidade e características comuns. O interesse por essa abordagem surge a partir das considerações de Serna (2008) que enfatiza que o romance como narrativa de experiências é algo que nos pertence, nos preocupa e nos emociona, por isso é inevitável a identificação com as incertezas e sofrimentos dos personagens que passam pelas histórias. Decidimos traçar as representações da violência social nos romances Siervo sin tierra (1954) de Eduardo Caballero e Terras do sem-fim de Jorge Amado (1944), que brilham como obras que caracterizam as diferentes relações na Colômbia e no Brasil durante a primeira metade do século passado e tem relação com a construção de particularidades políticas, econômicas e culturais. Na qual a carga simbólica da violência é concebida como uma constante na construção social dos homens e mulheres representados. O objetivo não é outro senão abordar dois romances que fazem parte do patrimônio cultural de cada nação, pelos quais podemos nos reconhecer como pertencentes a uma tradição que há muito tempo enfrenta dor, frustração e tormento por parte do Estado e seus representantes. O cotidiano dos camponeses colombianos e 1 Licenciado em Ciências Sociais, Universidade Pedagógica Nacional - Colômbia. Professor da Educação Básica. Membro do Grupo de Estudos em História e Literatura (GEHISLIT) da PUC Minas. E-mail: cristianpulgainfante@gmail.com 2 Mestre em História Social – Unioeste/PR. Professora da Educação Básica – Seduc/MT. Membro do Grupo de Estudos em História e Literatura (GEHISLIT) da PUC Minas. E-mail: hiollybatista8@gmail.com 117 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA brasileiros condensado em múltiplas derrotas e fracassos, são vidas que falam pela pena dos grandes escritores Eduardo Caballero e Jorge Amado, intelectuais de nossa América que exploraram questões de nosso ser como povos que historicamente conviveram com as múltiplas manifestações de violência. EDUARDO CABALLERO CALDERÓN E A REALIDADE COLOMBIANA Dentro do cânone literário colombiano existem figuras que são respeitadas, apreciadas e insubstituíveis, para esta oportunidade e com grande prazer se deseja pôr em consideração uma delas: o grande mestre Eduardo Caballero Calderón (Bogotá, 1910 – 1993). Escritor prolífico, o qual publicou inumeráveis ensaios como volumes de memórias, contos e escritos históricos, é considerado por muitos como um autor com uma prosa transparente, consciente e comprometida. Sua obra de testemunho foi uma das pioneiras dentro da narrativa nacional colombiana ao tratar com persistência o fenômeno da violência. Foi tão importante seu legado que no ano de 2010, em razão dos 100 anos de seu nascimento, o Ministério de Cultura da Colômbia, através do programa de Recuperación de la Memoria Nacional del área de literatura, declarou o ano de Eduardo Caballero Calderón como uma homenagem ao escritor por seu valioso aporte à construção da cultura no país. Na exposição realizada na Biblioteca Nacional de Colombia, em maio de 2010, intitulada “Año de Caballero Calderón de ayer a hoy 1910-2010”, se define suas obras como: Novelas de una actualidad pasmosa, novelas que entendieron la clave de un momento en el que Colombia se debatía en una guerra partidista que dejó una estela de odios y de sangre en los años cincuenta y que aparecen en su pluma de manera magistral. No sólo por el registro de una voz que hasta entonces no había aparecido en la literatura, ese coloquialismo definitivo que nos dejó personajes entrañables, sino por su insistencia en incrustar la actualidad en los temas del arte para entender y hacer una exégesis de la situación de esa Colombia rural y dolida, a veces tan parecida a la de hoy. (BANCO DE LA REPÚBLICA, 2010, p. 03). É um verdadeiro prazer apresentar um trabalho que tem como ponto de referência uma das principais obras do mestre Caballero Calderón, Siervo sin tierra (1954). Esta novela é de suma importância para a história da literatura colombiana, dado 118 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA que nela se destaca o compromisso e a sensibilidade para com as causas sociais e culturais. Temáticas que hoje seguem chamando nossa atenção e que nos levam a uma série de reflexões que permitem fazer um balanço da construção social a partir das representações que se pode apreender de sua leitura. Aproximações entre literatura e história na Colômbia dos anos 1940 e 1960 Para ter um pouco mais de clareza sobre as distintas relações da literatura com a história recordamos que de 1946 a 1965 a Colômbia viveu um momento crítico, marcado por uma violência bipartidária, podendo ser considerado o evento sociopolítico e histórico mais impactante que ocorreu no país no século passado. Durante veinte años de violencia se instaura el imperio del terror en los campos y poblados, se despoja al campesino de la tierra y de sus bienes, o se le amenaza para que venda a menos precio. Se asesina selectivamente o de una manera masiva, la sevicia o la tortura contra las víctimas no tiene límite, se amedrenta a los trabajadores descontentos. Se produce un éxodo masivo hacia las ciudades, refugio temporal de los desheredados que pronto engrosan la marginalidad y se convierten en problema social por el abandono en el que se los deja. (ESCOBAR, 1996, p. 22). Com a intensificação desta violência se deu, a partir da literatura, um incremento na produção de relatos sobre o conflito bipartidário3 o que se conheceria como “la novela sobre la Violencia”4. Os livros que contam a dor da guerra se converteram na biografia desta terra, configurando a literatura como um dos mais atentos testemunhos que contam uma história de dor sem grandes façanhas heroicas, nem relatos apoteóticos. A partir do exposto se edificou um diálogo comum entre a história e a literatura, que tem realizado um contundente trabalho por parte de vários investigadores que analisam as diferentes possibilidades interpretativas, fortalecendo uma base teórica-metodológica para tais abordagens. 3 Augusto Escobar Mesa en o texto: La violencia: ¿Generadora de una tradición literaria? Cf. Revista Gaceta Colcultura, No. 37. diciembre de 1996. p. 21-29. Fala de 57 escritores que durante 20 anos escreveram mais de 70 novelas e numerosos contos formando assim um movimento literário que jamais se havia produzido na Colômbia. 4 Quando se escreve com maiúscula, refere-se ao período entre 1946-1965, denominado “la Violencia”. 119 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Essas narrativas comuns, ou de “homens comuns” consideradas dentro do campo da escrita literária - sendo a literatura já concebida nesses últimos anos como fonte profícua para o historiador- evidenciam, nos textos, por meio os quais são vinculadas, não somente uma forma aguçada de sentir subjetivamente a realidade; elas revelam, também, uma forma objetiva de perceber as realidades social e cultural, nas quais aquele sujeito está inserido, está vivendo (PESAVENTO, 2006, p.78). Essa citação nos convida a pensar em como abordar as perguntas da investigação histórica e sobretudo pensar a literatura como uma construção contextual. Propondo cada vez mais que considere a literatura como fonte documental a ser abordada, onde se converte em um vestígio que pode ser vista como ponto de apoio ao trabalho do historiador. Representações e Práticas, aposta metodológica Para elaborar a abordagem da literatura foram utilizadas duas categorias consideradas essenciais para o estudo da história e a análise cultural. Em primeiro lugar, se encontra a categoria de representação. As representações podem ser entendidas como o instrumento pelo qual se dá o conhecimento de uma ausência, ou seja, representar é estar no lugar do outro, incorporando alguém ou algo que não está. A ideia central desta é a substituição e a personificação. Deve-se considerar que a representação não é uma cópia idêntica da realidade, mas uma construção feita a partir dela. En las antiguas definiciones (por ejemplo, la del Dictionnaire universal de Furetiêre en su edición de 1727), las acepciones de la palabra “representación” muestran dos familias de sentidos aparentemente contradictorios: por un lado, la representación muestra una ausencia, lo que supone una neta distinción entre lo que representa y lo que es representado; por el otro, la representación es la exhibición de una presencia, la presentación pública de una cosa o una persona. En la primera acepción, la representación es el instrumento de un conocimiento mediato que hace ver un objeto ausente al sustituirlo por una “imagen” capaz de volverlo a la memoria y de “pintarlo” tal cual es. De estas imágenes, algunas son materiales, sustituyendo el cuerpo ausente por un objeto parecido o no: como los maniquíes de cera, madera o cuero que se colocaban encima del ataúd real durante los funerales de los soberanos franceses e ingleses (“cuando vamos a ver a los príncipes muertos en sus lechos de desfile, sólo vemos la representación, la efigie”) (CHARTIER, 1992, p. 57). 120 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA É necessário mencionar que as representações são o caminho pelo qual se pode designar os esquemas de percepção e juízo que posteriormente carregam as ações de classificação e hierarquização, que constroem o que conhecemos como o mundo social. Roger Chartier em seu texto El sentido de la representación (2012) nos diz que o conceito de representação tem mudado a compreensão do mundo social, visto que nos convida a pensar na construção das identidades, das hierarquias e as classificações como resultado de «lutas de representações», onde o importante é a força, afirmada ou negada, dos signos que devem ser reconhecidos como legítimos no domínio de uns sobre os outros. De maneira tal, as representações são as formas de visualizar e enunciar a realidade estabelecendo de que modo é visto o mundo desde uma perspectiva individual ou coletiva. Para Chartier também é importante compreender os mecanismos que operam na formação de representações coletivas sobre a realidade e os efeitos que essas representações têm na orientação da ação social. Se faz necessário examinar a função ativa da representação como um elemento que gera condutas e práticas sociais. Passa-se assim a outra categoria trabalhada por Roger Chartier que corresponde às práticas. Se pode entender que as práticas são as ações concretas de sujeitos ou grupos determinados em um lugar e tempo específico. Através das práticas é possível rever a atividade humana nos diferentes cenários, para este caso específico as práticas violentas que foram geradas ou às quais foram submetidos os temas históricos tratados no romance de Caballero Calderón. Desta forma, as práticas estão conectadas de maneira muito estreita com as representações, já que a ação do sujeito está medida pela representação que confere significado aos atos e movimentos e as converte em portadoras de sentido. Estas ações são um produto social que tem como suporte uma representação do mundo. Finalmente, Chatier (1992) sublinha que, por inscrever-se numa obra situada numa história das práticas historicamente diferenciada e numa história das representações inscritas em textos ou produzidas por indivíduos; pode-se compreender a maneira como os sentidos e os significados de si mesmos e do mundo são construídos e produzidos. As representações da violência política e econômica em Siervo sin tierra 121 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Assentadas as bases teóricas passam-se a exposição da construção de uma série de representações da violência em sua forma política e econômica na novela Siervo sin tierra, que Segundo Varón esta obra: Se caracteriza porque su personaje central es el campesino, su cultura y sus conflictos esenciales: psicológicos, religiosos, económicos. El lenguaje de este tipo de novela procede del lenguaje popular, cotidiano, del espacio donde se mueve el campesino, su protagonista, el cual es profundamente testimonial y crítico de la sociedad” (VARÓN, 2014, p.8). Esse traço essencial do romance permite vislumbrar que cada uma das representações que se apresentam a seguir se realiza sob a figura do camponês, suas construções sociais e suas decisões pessoais. É preciso mencionar que dentro do romance há uma referência direta à realização das próximas eleições presidenciais, este elemento é de extrema importância porque a partir dele entraremos para observar a força das representações e a subsequente gestação de práticas violentas. No início, este acontecimento eleitoral permeia as diferentes relações sociais de forma particular, visto que o discurso político está mais em voga do que nunca entre a população e só se pensa e se discute quem e de que forma vai ganhar as referidas eleições. A tensão no ambiente faz com que os conflitos pelo poder aumentem drasticamente. El año de 1946 las elecciones habrían de ser muy reñidas según los técnicos, porque los conservadores levantaron la abstención electoral la consigna de ambos partidos era la de conquistar las urnas como fuera, por las buenas o por las malas, pues se trataba ni más ni menos que de elegir un nuevo presidente de la república. Los liberales tenían en sus manos el poder, pero estaban divididos en dos bandos irreconciliables, por lo cual los de la oposición oficial, que eran conservadores, veían el cielo abierto y propicio para alzarse con el santo y con la limosna que habían perdido en 1930. Agentes electorales, candidatos del partido conservador y de los dos bandos liberales, directores políticos, recorrían el país dictando discursos y conferencias que terminaban en formidables batallas Campales en las plazas de los pueblos. Los periódicos se enseñaban los dientes todas las mañanas, y había que cogerlos con pinzas no solo porque hedían, sino porque abrasaban (CABALLERO, 1954, p. 90). Tendo em conta o cenário anterior o elemento que entra em jogo é a cédula de cidadania, esta era necessária para exercer o voto e pela qual se fazia válida a escolha do 122 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA candidato “X” ou “Y”. Este cartão de identidade que contém um número e algumas informações simples pode ser definido como uma representação da pessoa, de maneira que o portador da mesma se faz partícipe e merecedor de um lugar na sociedade. Sem ela se vê relegado a uma inexistência burocrática, sem ela se carece de todo sentido seu voto, sem ela não se existe dentro de um sistema que em aparência é transparente sob a figura da democracia. Assim pois, se compreende o valor que tem a cédula de cidadania como representação de uma vida adulta que participa do desenvolvimento das eleições na medida em que acrescenta ou subtrai no resultado final. Este documento será precisamente o flanco onde as práticas violentas são exercidas com mais vigor. —La política se está poniendo otra vez fea. Al Campo Elías, el que vivía arriba del puente, lo despacharon de un tiro hace tres noches. Donde los liberales nos descuidemos, los godos nos vuelven a meter un susto... — Cómo le parece! —decía Siervo. —Al Marcos de la Palmera, que es godo5, los guardias le hicieron una requisa y le quitaron la cédula. iFigúrese! iAhora los godos con cédula! —Yo creía que era liberal. —Pues no se crea. Resultó el indio más godo que el cura... (CABALLERO, 1954, p. 22). Recorda-se que dentro da novela da violência é corrente o inventário de denúncias de um ou outro partido. Ainda que majoritariamente os que ostentam o poder são os conservadores, verificamos que os liberais também estão envolvidos na prática da violência eleitoral que estamos analisando e que podemos entender como uma réplica dos abusos sofridos por eles no passado de forma mais intensa e prolongada. En otros grupos se hablaba de las próximas elecciones que serían muy reñidas porque los godos o conservasores de levantaron la abstención que habían practicado. ¿Los vamos a dejar votar otra vez? preguntó Manuelito Ramírez —Para eso, para no dejarlos, tenemos esto... uno de los Pimientos que tenía la cara bronca, dándose una palmada en el cinturón del que colgaba el machete—. Hace unos años, cuando sacamos el primer presidente liberal, no dejamos godo parado en la plaza de Capitanejo. —Cómo no recordarlo, si yo me hallé en ese trance. 5 No Dicionário de Colombianismos, dirigido por Günther Haensch e Reinhold Werner, publicado pelo Instituto Caro y Cuervo se faz referência ao termo quando, em política, é utilizado como sinônimo de “conservador”. 123 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA —Treinta y seis indios del puente quedaron tendidos en la plaza de Capitanejo. — iPara mí que fueron pocos!— observó Manuelito Ramírez. (CABALLERO, 1954, p. 59). O problema subjacente será que no momento de entrar nesta dinâmica as consequências serão piores, pois a aliança estabelecida entre o partido conservador, a Igreja, as forças militares, as autoridades civis e o Estado central não cederá a nenhuma ação do seguidores liberais. En los días anteriores al domingo en que deberían celebrarse, comisiones de policía municipal que habían sido pocos meses antes bandidos que andaban en veredas, requisando a los campesinos y revolviendo las piedras del fogón, para decomisarles la cédula electoral. Venían enardecidos por la cerveza que generosamente les habían distribuido el alcalde y el directorio conservador del pueblo. Se había roto la convivencia en todo el país y la consigna oficial era "palo a los liberales" (CABALLERO, 1954, p. 138). Essa agressividade exercida em práticas repressivas no abuso da força para eliminar o contrário com a supressão da representação de si através da cédula deixa claro que dentro do romance as disputas eleitorais dão um olhar ainda mais importante para analisar dentro da construção social, mostrando o caráter puramente instrumental da violência como forma de legitimidade política. A representação da vida sob a figura da cédula como elemento útil dentro da ação de votar é algo constantemente violentado. Entretanto, não era o único ponto de pressão sobre os campesinos, pois seu sustento estava submetido aos interesses dos poderosos fazendo com que o sofrimento fosse levado a esferas físicas. Em outras palavras, se poderia dizer que a identidade política de conservador ou liberal não existe como tal, como uma escolha livre e consciente, já que os camponeses assistem às campanhas por medo da repressão que implica não o fazer. Entendem que a não participação acarreta a perda do direito de cultivar e ser excluído das possibilidades de arrendar a terra e ocupação dos postos de trabalho. A constante pressão dos donos da terra e seus administradores leva os camponeses a serem títeres dentro de uma realidade permanentemente conflitiva. No hay quien entienda a los jefes. Primero lo mandan a uno que grite y alborote y mantenga a raya a los godos, y después, cuando se arma 124 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA la grande, ellos se lavan las manos y nos vuelven la espalda (CABALLERO, 1954, p. 94). Por conseguinte, a fraude e a eliminação da representação da pessoa por meio de sua cédula, além da repressão nos campos exercida pela fome, o desespero e a angústia, acompanhada pela violência estatal em todas as suas formas foi a maneira de entender as eleições para o campesinato de meados do século XX. Foi a forma de viver o horror da política. Queremos agora dar lugar a representação, que se enquadra na violência econômica, apresentando também as práticas que a acompanharam. Para isso é necessário destacar o papel aberrante dos gestores do Estado e a constante agonia do campesinato, especialmente aqueles que manifestaram tendências liberais. Para este indivíduo as representações do engano e da fraude estavam na figura de todos aqueles que trabalhavam como servidores públicos visto que a concessão do seu emprego se devia não tanto pelos seus méritos ou preparação, mas pela amizade e a afinidade com o alto comando das diferentes agências locais, departamentais ou nacionais. EI nuevo gerente es don Próspero y esta mañana me dijo cuando fui a pedirle un visitador para que evalúe la finca del otro lado del río, que la quiero vender cuanto antes... me dijo: "Los liberales que esperen... A mí me pusieron aquí de gerente para prestarles la platica a los conservadores" (CABALLERO, 1954, p. 145). Esta prática violenta, exercida de forma direta e aguda pelos conservadores desembocaria em uma crise econômica que marcará o fracasso de um projeto coletivo de ruralidade sustentável. Já que não existia maneira de lutar por relações comerciais justas, pelo contrário: os campesinos sempre perdiam nas negociações e transações efetuadas entre eles e os amigos dos poderosos. No sería por godo que te la quitaron. ¿Eres liberal? —Así me criaron, sumercé. —Yo soy godo porque odio a los liberales. ¿Entiendes? A una señal de don Arsenio, los dos guardias le propinaron a Siervo sendos culatazos en los riñones. —¿Conque el tabaquito es del Floro Dueñas? ¿Y cuántos bultos viniste a vender? Siervo se sobaba la espalda. —Dos meros, sumercé. Son de mitaca. —Te doy veinte pesos por ellos. 125 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA —La Compañía los está pagando a ciento veinte, por que son de capa... —se atrevió a decir el empleado que contemplaba la escena desde su reja de la ventanilla. —Al señor no le estoy hablando! —exclamó don Arsenio, llevándose un revólver al rostro para rascarse la barbilla. Siervo se fue con los veinte pesos y sin los bultos, seguido de la Tránsito y de Emperador II, que tenía el rabo entre piernas. Don Arsenio la emprendió con el segundo de la fila, después con el tercero, y luego con el cuarto, hasta acabar con ella. Compró al fiado todo el tabaco, más o menos cincuenta bultos, a razón de diez pesos cada uno, y luego se los vendió todos al de la ventanilla por cuatro o cinco mil pesos, de los cuales sacó para pagar sus deudas. Como algún cultivador se atreviera a elevar la queja ante el alcalde, éste le respondería que no se trataba de un asalto sino de un negocio (CABALLERO, 1954, p. 149). Como se acaba de evidenciar era bastante difícil ter algum tipo de garantia na hora de estabelecer relações comerciais em escala local, posto que os comerciantes conservadores enquanto representantes da fraude e do engano exerciam práticas de violência do princípio ao fim. Era cometido maltrato verbal, mentiras, golpes sem justificativa, o uso de armas de fogo para intimidar, ademais de uma amizade abusiva entre os administradores públicos, os guardas e o alcalde6. De fato, se algum camponês contava ao alcalde as formas de proceder de Don Anselmo, aquele empreenderia uma perseguição contra quem se atreveu a denunciar seu amigo. Isto ocorria assim porque o alcalde se reconhecia dentro de uma pequena coletividade que estava, hierarquicamente, sobre todos os demais e com Deus (Igreja) e a lei (Estado) a seu serviço. Nesse contexto existem muitos atores que, como participantes, frutificam novas formas de violência por meio das quais se reconhecem e estabelecem relações de todos os tipos. Não é incomum que para preservar os espaços de que se apropriaram através do uso do poder, desejosos para manter o domínio sobre certos tipos de recursos, onde infelizmente a maioria dos desafortunados são os camponeses. 6 Eduardo Caballero foi alcalde do município de Tipacoque no departamento de Boyacá entre os anos de 1968 a 1971, o que lhe permitiu criar uma consciência muito clara das ações do alcalde em relação à sua população e ser muito crítico quanto a ostentação do poder e proceder dos prefeitos de diferentes municípios da Colômbia. O seu texto Os Camponeses, de 1974, aponta a sentença exposta em Siervo sin tierra e os abusos por parte dos administradores locais “Las aldeas se mueren porque las siguen combatiendo estas alimañas. Alcaldes sin control, caciques que mandan sobre el alcalde, policía que a los dos les obedece y es como su guardia de combate, pájaros que anidan a la sombra del amo y escarabajos que muerden las raíces agazapados bajo las escamas del otro. Y el cacique y el alcalde siguen tan orondos y tan campantes en todo el país, pues para ellos no hubo mayo y continúan en su agosto” (Caballero, 1974. Los Campesinos. Pág. 152). 126 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Por outro lado, a representação de engano e fraude passaria pela máscara da indiferença, posto que o pouco apoio que se dá ao campesinato local com suas produções feitas da forma mais artesanal e rudimentar complementando com o estabelecimento de acordos internacionais, alimentaram de forma violenta a desocupação dos trabalhadores rurais e engrossando a lista de males. Agora, ao declive político, se somará o drama da fome. Las fábricas de hilados y tejidos dieron un golpe de gracia a las telas urdidas en toscos telares de palo, con lana cruda de oveja hilada en husos que las mujeres volteaban ágilmente entre los dedos cuando trotaban por los caminos con su carga de leña a las costillas. Los sombreros importados de Italia derrotaron parcialmente las jipas y las corroscas de tapia pisada, tejidas con una paja dura y amarilla. La carretera trajo, con el periódico, el testimonio de otros países, otras costumbres y otras actividades más productivas que la siembra del maíz en las laderas y la papa en los páramos (CABALLERO, 1954, p. 107). As reformas econômicas de meados do século XX estavam destinadas a prejudicar consideravelmente as classes menos favorecidas, contribuindo para a enorme crise que se vinha gestando há anos e suscitando múltiplas manifestações de violência em todas as esferas da vida. Basicamente graças a falta de gestão o fluxo de importações foi superior devido a pouca integração ao mercado internacional e a um interesse real de melhorar a qualidade de vida do campesinato colombiano. Isso se converterá em um dos traços definidores de nossa peculiaridade para os tempos atuais: La narrativa de Eduado Caballero Calderón refleja una concepción metafísica del universo, que presenta dos etapas, en la primera de las cuales reina la armonía en tanto que en la segunda todo está desconcertado.[…] En la segunda etapa el orden natural se vuelca: el autor piensa que campo y campesino se han convertido en realidades en desacuerdo, que el avance histórico, al integrar al campesino colombiano a otras relaciones económicas ha procedido inhumanamente, ha ido contra natura, porque tal ser no puede acogerse al nuevo sistema (está hecho para el antiguo); ve entonces en el campesino un ser desadaptado, deformado y desgraciado como no lo era antes. (PORRAS, 1977, p. 312). Dentro dessa maioria dos atingidos, é inevitável que surjam relações que se organizam segundo a mesma lógica da violência econômica, aquela que põe em jogo os 127 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA esquemas de perceção e ação dos sujeitos históricos, ou seja, foram levados a praticar uma série de atos que agora vão contra a lei. Ironicamente essa mesma lei que nunca os apoiou. Assim, a construção de sentido em torno da vida e da sobrevivência viria agora das mãos do contrabando. ¿Sembrar tabaco y esperar los días y los meses a que levante la semilla un palmo del suelo, y a que luego críe hojas, y a que el verano las eche a piquen a que en el caney se la roben los vecinos, y a que en la Compañía las paguen después por una miseria? eso para otros! Ya estoy viejo para sembrar tabaco. Seguiré a Cúcuta, que es buena plaza donde se gana mucho dinero pasando contrabando a Venezuela a través del río (CABALLERO, 1954, p. 121). Numa definição dada pela Dirección de Impuestos y Aduanas Nacionales (DIAN) estipula-se que: “o contrabando é entendido como a entrada, saída e venda clandestina de mercadorias evitando tarifas, ou seja, evitando impostos” (DIAN e UIAF, 2006, p. 3). É possível compreender que nesse conflito nascem novas formas de violência que de certo modo se opõem, enfrentando forças que ocuparão o centro das lutas simbólicas pelo poder cujas representações também serão modificadas. Sendo o contrabando o início da atividade ilícita, em resposta à representação constante e reforçada da fraude e do engano que os despossuídos sempre viram refletida pelos responsáveis do Estado e da administração comercial. O caminho percorrido até aqui, que consideramos curto mas substancial nos deixa muitas reflexões e elementos para pensar o futuro, já que as representações da violência construída em meados do século XX na Colômbia tiveram aquela capacidade de se manifestar como as formas pelas quais os homens entendiam a realidade por meio de palavras e imagens que mostram simbolicamente o que era a vida a partir de suas variantes políticas, econômicas e sociais. No entanto, há ainda muitas outras formas de representação na obra, tais como família, religião, ludicidade, dentre outras, que, devido aos nossos objetivos de pesquisa, não poderão ser aqui contemplados em mais vagar. Passemos, portanto, a algumas considerações acerca de Jorge Amado e sua obra em face da sociedade brasileira. 128 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA JORGE AMADO E O SER BRASILEIRO: REFLEXO DE UMA SOCIEDADE Pensar a história do Brasil, mesmo antes de ser Brasil, talvez seja pensar a construção social de um território em paralelo com a violência produzida e reproduzida continuamente ao longo dos séculos. Primeiro, podemos destacar as guerras justas, dos invasores portugueses contra as populações indígenas, seguidas de um modelo que escravizou negros vindos d’África e nativos durante mais de três séculos. Uma abolição mal elaborada que afirmava que todos eram livres, mas cujas práticas sociais reproduziam os aspectos estruturais da escravidão, que se mantém fortemente arraigados na sociedade brasileira. Assim, tal processo não concedia espaços para, nem mesmo minimamente, ao contingente populacional recém-liberto. No início do século XX parte dos grandes heróis da pátria eram os bandeirantes e os movimentos das bandeiras paulistas que tinham por objetivo o aprisionamento de indígenas para escravização, mas que, pelo discurso oficial, se tornaram os responsáveis por expandir as fronteiras do “Brasil” e assegurar o domínio português sobre essas terras. Para além dessas questões ainda convivemos com outros tipos de violência como no caso das mulheres escravizadas que eram violadas constantemente pelos senhores e capatazes, o que deixou uma marca racial complexa a ponto de, até pouco tempo atrás, ser comum dizer que “no Brasil todo mundo tem um pé na cozinha”, expressão que alude aos sucessivos estupros perpetrados contra as negras e indígenas escravizadas e dos filhos que resultavam de tais atrocidades. Esse complexo de violências que são efetivadas desde o Estado e seus representantes e reproduzidas pela população nos parece uma forma enraizada e naturalizada de um modus operandi social. É essa reprodução da violência enquanto traço marcante que nos interessa nesse texto. Para tal, trabalharemos com uma obra do autor baiano Jorge Amado, Terras do Sem-Fim (1944), na qual o centro é a disputa entre dois coronéis pela posse das terras do Sequeiro Grande. A escolha pelo autor grapiúna não se faz de maneira aleatória. Esse autor representa em suas obras a complexidade, a nosso ver, da sociedade tupiniquim. Ele constrói em sua obra as nuances que perpassam as relações sociais, evidenciando como a violência conforma e age nela no início do século XX. Amado consegue reproduzir 129 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA em sua obra as imagens e sentimentos que reverberam no cotidiano social do Brasil, em especial nas áreas de fronteira agrícola em expansão. Para escrever e analisar a realidade social brasileira nas primeiras décadas da República poderíamos nos ater aos dados e à produção científica, no entanto, a literatura produzida por Jorge Amado é um reflexo desse país complexo. Sua representação não se vale de escapismos e evidencia uma realidade baseada no que o autor observa e absorve de seu entorno. A partir disso, corroboramos com György Lukács quando o autor magiar afirma que: A literatura pode representar os contrastes, as lutas e os conflitos da vida social tal como eles se manifestam no espírito, na vida do homem real. Portanto, a literatura oferece um campo vasto e significativo para descobrir e investigar a realidade. Na medida em que for verdadeiramente profunda e realista, ela pode fornecer, mesmo ao mais profundo conhecedor das relações sociais, experiências vividas e noções inteiramente novas, inesperadas e importantíssimas. (LUKÁCS, 2010, p. 80). Estes contrastes e tensões sociais se fazem presentes nas mais diversas classes sociais representadas, suas formas de interação, as relações por elas estabelecidas. Bem como são apresentadas as estruturas do Estado e o reflexo das decisões tomadas em escala macro no impacto da vida cotidiana de pessoas distantes dos centros de poder. Coronéis: donos de terras e gentes - Jagunço? - Não é jagunço porque é fazendeiro rico... Zé Estique tem um mundão de fazendas, um nunca acabar de pés de cacau... Mas um número de mortes ainda maior. - Nunca foi preso? O homem espiou piscando os olhinhos: - Preso? – sorriu... – Ele é rico... (AMADO, 1979, p. 37). A narrativa construída por Jorge Amado no livro Terras do Sem Fim, de 1944, foi escrita quando do exílio do escritor grapiúna durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1930-1945). Nesse livro, Jorge Amado, recua até o início do século XX narrando as disputas de terras entre a família Badaró e o fazendeiro Horácio da Silveira, 130 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA compondo um cenário característico das disputas agrárias que são observadas até hoje no campo brasileiro, como o caxixe, ou seja, a grilagem de terras. O mote principal para o desenvolvimento da narrativa de Terras do Sem Fim é a disputa entre a família Badaró, liderada por Sinhô, e o coronel Horácio da Silveira por uma porção de terras ainda intactas, as matas do Serqueiro Grande. Para se apossarem da referida mata, os coronéis, ao longo do livro, se lançam dos expedientes mais diversos para garantir sua posse e, consequentemente, quem teria o mando político e econômico da região. A trama se desenvolve nas cidades do sul da Bahia, em especial Ilhéus, que foi uma grande região cacaueira durante parte do século XX. Durante o desenrolar da história somos apresentados às mais diversas personagens que compunham a sociedade cacaueira de então, desde os coronéis até os trabalhadores alugados e suas famílias. As relações de compadrio, alinhamento político, dominação de classe, o uso indiscriminado da violência, a impunidade das elites, se fazem presentes, nos evidenciando traços constitutivos da sociedade brasileira. Com o fim do Império e a ascensão do modelo republicano, em 1889, o título de coronel7 passou a ser algo mais fluido, não sendo algo exclusivo dos grandes proprietários, mas algo que poderia ser adquirido caso o indivíduo fosse aliado político de algum coronel mais antigo ou exercesse alguma profissão de prestígio como advogados, médicos, engenheiros (OLIVEIRA, 2017, p. 76-77). Os coronéis, fosse pela riqueza em terras por meio de heranças ou por uma questão de profissão, reproduziam as mesmas formas de agir: comandavam suas terras e a política de seus municípios de forma a sempre favorecer aos seus interesses, de suas famílias e de sua base aliada, enraizando uma noção turva entre o público e o privado no Estado brasileiro. A relação de clientelismo existente entre os coronéis e as populações locais também são evidenciadas na obra amadiana de Terras do Sem Fim. O autor apresenta como que atendimentos básicos que, em tese, são ofertados pelo Estado passam a ser controlados pelas famílias no poder e seus apoiadores, dando uma imagem pública aos coronéis de benevolência e bondade assim explicados por Janaina Oliveira: 7 Ao falarmos de coronel com quem não estiver familiarizado com a história do Brasil pode imaginar que nos referimos a alguém com posto e patente dentro do exército, por exemplo. A concessão do título de coronel remonta aos anos do Império brasileiro. Os grandes fazendeiros recebiam esse título a fim de serem os representantes armados do Estado em determinada localidade e garantirem a supressão de qualquer possível levante popular. 131 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA [...] ao estarem bem estruturados pela fortuna obtida tanto através da via da herança quanto por meio do comércio, o coronel tinha a possibilidade de realizar favores, assim como formar clientelas. Isso traz como consequência benefícios ao coronelista, porque ao existir indivíduos “devendo favores” aos coronéis estabelece-se uma relação na qual o devedor tenha sempre que obedecer e ser leal ao credo. Isso geralmente acabava rendendo bons votos aos coronéis, principalmente votos advindos dos roceiros aos quais projetavam no coronel um homem rico que, nos momentos de dificuldades, poderia lhe ser solicitado favores, acordando como pagamento trabalho gratuito na terra, ou em troca do seu salário e inclusive em forma de voto, fenômeno denominado historicamente como voto de cabresto (OLIVEIRA, 2017, p. 78-79). O funcionamento das instituições estatais sendo norteado pelos interesses privados levava muitos trabalhadores a se comportarem como partidários dos “poderosos” locais e votando, quando das eleições, nos candidatos apoiados pelos coronéis. Não necessariamente esses trabalhadores o faziam mediante violência física, mas era uma espécie de acordo tácito, como se devolvessem a ajuda concedida pelo coronel em dado momento de carestia. Em Terras do Sem-Fim são relatados como que alguns trabalhadores passam a prestar serviços e a fazer campanha para a família Badaró ou para Horácio da Silveira porque vislumbram nessa relação uma possível melhoria de vida. Essa parcela da população que sofre, em geral, as violências físicas quando dos barulhos. Pois os coronéis não se enfrentam, em dado momento, diretamente, ficando a população como um todo no meio dos conflitos, sofrendo represálias dos dois lados. Tal relação pode ser observada na seguinte passagem: Em Tabocas quem era amigo e eleitor de Horário mantinha sempre uma atitude de hostilidade em relação aos amigos e eleitores dos Badarós. Nas eleições havia barulhos, tiros e mortes. Horácio ganhava sempre e sempre perdia porque as urnas eram fraudadas em Ilhéus. Votavam vivos e mortos, muitos votavam sob a ameaça dos cabras. Nesses dias Tabocas se enchia de jagunços que guardavam as casas dos chefes políticos locais: a do Dr. Jessé, que era eternamente o candidato de Horácio, a de Leopoldo Azevedo, chefe dos governistas, a do Dr. Pedro Mata, agora também a do Dr. Virgílio, o novo advogado. Havia uma farmácia para cada partido e nenhum doente que votasse nos Badarós se tratava com Dr. Jessé. Era com o Dr. Pedro. [...] Havia também um dentista para cada um dos partidos. 132 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Todo o povoado estava dividido nos dois partidos políticos e trocavam desaforos pesados nos jornais de Ilhéus. (AMADO, 1976, p. 136). Além dos barulhos, um dos temas recorrentes no livro são os caxixes, ou seja, a apropriação indevida das terras de trabalhadores e pequenos proprietários rurais por parte dos coronéis. Uma das primeiras referências à prática de usurpação das terras no livro é encontrada nas primeiras páginas e se passa no navio que leva os trabalhadores de pontos mais ao norte da região nordeste, rumo às plantações de cacau do Sul da Bahia. Em um diálogo entre trabalhadores que estão migrando em busca de vida melhor e outras pessoas no navio, um senhor, ao ouvir o que falavam os outros passageiros sobre as terras ricas do Sul da Bahia, indaga se os presentes conheciam o caxixe, o descrevendo assim: - Já ouviram falar em “caxixe”? - Dizque é um negócio de doutor que toma a terra dos outros... - Vem um advogado com um coronel, faz caxixe, a gente nem sabe onde vai parar os pés de cacau que a gente plantou... [...] - Tão vendo? Plantei muito cacaueiro com essas mãos que tão aqui... Eu e Joaquim enchemos mata e mata de cacau, plantamos mais que mesmo um bando de jurupá que é bicho que planta cacau... Que adiantou? - perguntava a todos, aos jogadores, à mulher grávida, ao jovem. (AMADO, 1976, p. 31). No Brasil essa prática é conhecida, também, como grilagem de terras que, segundo Márcia Motta, é algo construído ao longo do nosso processo histórico de formação nacional, no qual os grandes proprietários se valem de fraude e violência para ampliar suas posses de forma quase infinita (MOTTA, 2010, p. 238). Podemos observar como que a fraude documental é acompanhada da violência física e simbólica. Os trabalhadores são expulsos de suas terras sem direito a nada e por força da ação dos jagunços, que são homens pagos para usarem de meios escusos contra outros trabalhadores e todos os que se opuserem ao coronel a quem servem. Luitgarde Barros assim os define: [...] jagunço era um homem valente, que alugava sua coragem a um grande chefe, na defesa de suas propriedades e nas lutas pelo poder entre membros da classe dominante. Servindo à manutenção de uma ordem social desigualitária fortemente 133 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA hierarquizada, os jagunços eram usados pelos patrões para ‘quebrar a castanha de sujeito atrevido’ – desobediente às ordens superiores. Fortemente armado e acobertado pelo patrão, o jagunço se impunha, na estratificação horizontal das baixas camadas universalizando, em todos os níveis da sociedade, a violência da dominação irradiada do sistema de poder de classes (BARROS, 2010, p. 267). A relação estabelecida entre os jagunços e seus patrões os colocava em posição privilegiada em relação aos demais de mesmo estrato social. Não eram respeitados, mas temidos, por serem braços armados, paramilitares, dos mandantes locais. Esses homens não refletiam sobre seu trabalho, apenas executavam as ordens. Aceitar esse cargo tinha seu prestígio junto aos outros indivíduos da mesma classe pois representava um ganho social de fato, algo que podemos encontrar num diálogo entre alugados: “- Um cabra certeiro na pontaria tem regalias de rico... Vive pelos povoados, com as mulheres, tem dinheiro no bolso, nunca falta saldo pra eles... Mas quem só serve pra roça...” (AMADO, 1976, p. 97). Esses pistoleiros, em geral, eram filhos de trabalhadores e prestar serviços para algum mandatário, era dispor de proteção jurídica, o que acabava representando uma ascensão social. Eles – os jagunços – eram responsáveis por manter a ordem localmente para seus patrões, no entanto, estavam sempre vulneráveis a emboscadas, tendo uma vida incerta e violenta. Os capangas, junto com os advogados, auxiliavam na expansão e manutenção do poder dos coronéis. Aqueles pela violência física e intimidação, estes pela violência simbólica, com a fraude de documentos em cartórios, em uma estrutura de complementação. Destacamos abaixo um trecho no qual um camponês busca explicações do coronel Horácio da Silveira acerca de terras que julgava serem suas. A narração explicita a vulnerabilidade dos pequenos donos de terras a todo um sistema que não os via como cidadãos e proprietários, estando sujeitos às vontades dos coronéis. A passagem segue assim: Horácio voltou a comer. Orlando rodou na mão o chap– Quer comer, Orlando? Se quer se abanque... - Não, sinhô, obrigado. 134 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA - Que lhe traz por aqui? Alguma novidade? - Uma novidade bem feia, inhô, sim. O coronel Ramiro aparece lá na roça, diz que a roça é dele, diz que comprou ao sinhô, coronel. - Se o coronel Ramiro é que diz deve ser de verdade. Ele não é homem pra mentira... Orlando ficou mirando o coronel Horácio que voltava a comer. Olhava as grandes mãos calosas do coronel, sua face fechada. Por fim, falou: - Vosmicê vendeu? -Isso é negócio meu... - Mas vosmicê não se arrecorda que nos vendeu esse pedaço de mata? Pelo dinheiro do contrato de cacau? - Vocês têm a escritura? – eéu enorme de palha. Tinha consciência de toda desgraça que lhe havia acontecido, a ele e aos dois companheiros. Sabia também que legalmente não havia como lutar contra o coronel. Sabia que não tinham mais terra, nem roça plantada, não tinham mais nada. Um véu de sangue turvou-lhe o olhar, não media mais suas palavras: - Desgraça pouca é bobagem, coronel. Vosmicê fique avisado que no dia que o coronel Ramiro entrar na roça, nesse dia vosmicê paga por tudo... Pense bem. [...] De noite Horácio chegou com seus cabras na roça dos três amigos. Cercou o rancho, dizem que ele mesmo liquidou os homens. E que depois, com sua faca de descascar frutas, cortou a língua de Orlando, suas orelhas, seu nariz, arrancou-lhes as calças e o capou. Tinha voltado para a fazenda com seus homens e quando um deles foi pegado, bêbado, pela polícia e o denunciou, ele apenas riu sua risada.” (AMADO, 1976, p. 53). A passagem acima pode despertar no leitor certa solidariedade com o coronel, que fora ameaçado pelo pequeno proprietário. Contudo, se fizermos uma leitura mais detalhada sobre a realidade da correlação de forças existente na disputa veremos que os danos que este poderia produzir àquele seria ínfimo diante do aparato paramilitar que este dispõe para sua própria segurança. Os mandatários locais tinham à sua disposição seus jagunços e, também, o braço armado do Estado, como as polícias. Dessa forma, o uso desmedido de forças por parte do coronel não se justifica apenas pelo zelo por sua vida e de sua família, mas está atrelado ao poder que exerce. Há nesse fragmento outro fator complexo que eram os acordos estabelecidos entre os grandes proprietários, que regiam a vida da população, grosso modo, e os subalternos que acabam acreditando que seus superiores se colocariam a seu favor contra algum outro coronel. Essa ideia de que estar sob o compadrio ou ao lado de algum membro da elite possa significar uma ascensão dentro do estrato social ao qual pertence o indivíduo – no caso de trabalhadores rurais -, cai por terra. Horácio da 135 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Silveira não iria privilegiar um pequeno produtor em detrimento dos interesses de um outro aliado seu de mesma envergadura. A defesa, por parte dos coronéis, dos trabalhadores, em geral, se dava como uma forma de fazer frente ao poderio de algum outro oligarca ou uma forma de garantir o seu próprio poder. A pertença de classe social se torna muito mais importante que acordos firmados entre patrões e empregados. Devemos atentar, também, para o fato de que assassinar o trabalhador é uma forma de “dar o exemplo” para que outros indivíduos que venham a sofrer com as fraudes realizadas, não queiram, reagir ou empregar atitude contrária aos coronéis. Essa forma de agir cria uma sociabilidade que tem no medo um contínuo, e uma descrença quase que total em qualquer órgão ou autoridade que represente o estado. Afinal, são os representantes locais dele (Estado) que perpetram as maiores atrocidades, sentimento comparável com o que tem, muitas vezes, guardadas as devidas proporções, os moradores de comunidades para com os policiais militares hoje. A violência cometida pelos coronéis, seus jagunços, seus advogados e toda a sua base de apoio contra os trabalhadores representa, grosso modo, apenas uma parcela da estrutura violenta na qual se assenta grande parte de nossa sociabilidade. Nos referimos ao uso da força para a ampliação das fazendas, doravante nos ocuparemos dos tratamentos dispensados aos trabalhadores nas regiões sob domínio do coronelismo representados em Terras do Sem-Fim. Trabalhador: livre ou escravo? Em terras de coronéis, qual a diferença? “- Eu era menino no tempo da escravidão... Meu pai foi escravo, minha mãe também... Mas não era mais ruim que hoje... As coisas não mudou, foi tudo palavra...” (AMADO, 1976, p. 98). Ao propormos a análise da violência enquanto parte integrante da forma de socializar no Brasil por meio do olhar de Jorge Amado em Terras do Sem Fim, um dos pontos que sempre retornam no texto é a semelhança no trabalho desempenhado pelos trabalhadores das lavouras de cacau e o passado escravagista do Brasil. A certeza de que a mudança de status de cativo para homem livre pouco impacto teve na vida dos homens pobres. Tal pensamento aparece, por exemplo, em uma reflexão do capitão do navio que tinha como destino Ilhéus: 136 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Por fim o comandante falou: - Por vezes me sinto como o comandante de um daqueles navios negreiros do tempo da escravidão... [...] - Daqueles que em vez de mercadorias traziam negros pra serem escravos... Apontou os homens dormindo na terceira [...] - Que diferença há? (AMADO, 1976, p. 43). A percepção de que a mudança de status jurídico não havia se realizado social e economicamente se evidencia como algo entendido entre as mais diversas camadas da sociedade brasileira. Mesmo que se fizesse um esforço institucional para que essa marca fosse, no mínimo, excluída das discussões que envolvessem as “grandes questões” da pátria, era no cotidiano que o processo de mais de trezentos anos de escravidão (1531 – 1888) se fazia presente. O processo de abolição da escravatura realizou-se por meio de inúmeras lutas que se fizeram nas mais diversas camadas da sociedade brasileira. No entanto, o modo como os patrões enxergavam seus empregados não mudou. Um antigo senhor de escravos não passou a encarar seu trabalhador assalariado como um cidadão, um indivíduo que não o pertencia e que era digno de direitos. Houve um processo de educação para a acomodação da população que antes era escravizada para que continuasse ocupando os postos subalternos. Essa situação foi abordada por Eloy Fagner Silva Rodrigues em Serviço doméstico e habitus senhorial: considerações sobre a regulamentação do trabalho doméstico em Fortaleza (18801888). Segundo Rodrigues: Ao se cogitar o fim da escravidão, não se admitiria a abolição da relação senhorial, tendo como epicentro de sua reprodução os espaços domésticos. A premência da abolição do elemento servil levou as camadas dominantes a adotarem formas de permanência da escravidão, inclusive culturalmente, sobretudo no mundo do trabalho, que constitui o locus privilegiado para a reprodução do habitus senhorial. Isto é, tratava-se de envidar dispositivos legais, a exemplo de códigos escritos, regulando o processo de contratação de trabalhadores. Além desses, haviam normas não escritas, mas igualmente eficazes na correção e controle dos indivíduos “sujeitos” ao trabalho de servir. Tudo isso concorreu para tornar o ex-escravo e o pobre, nascido livre mas também compreendido na zona social onde a liberdade era estruturalmente precária, em que se teciam experiências nas fronteiras 137 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA entre escravidão e liberdade, um cativo no mundo do trabalho. A abolição da escravidão trouxe consigo a demanda do controle dessa liberdade conquistada. A condição civil e social seria matizada por vários fatores combinados, de ordem dinâmica, cotidiana e estrutural (RODRIGUES, 2017, p. 422). Mesmo que o texto de Eloy Rodrigues se refira ao trabalho doméstico, podemos traçar paralelos entre os meios de se exercerem os trabalhos no campo e nas casas dos senhores. Sendo a mesma realidade pesquisada pelo autor aquela que se perpetuou nas casas dos coronéis quanto ao trabalho doméstico exercido pelas filhas dos trabalhadores ou, mesmo, pelas filhas dos patrões com as empregadas domésticas de suas casas. A perpetuação dessas práticas pode ser observada quando é contada parte da história de Raimunda, provavelmente filha do coronel Marcelino Badaró com Risoleta, a mulher negra encarregada da cozinha da casa grande: Dona Filomena tirou Raimunda da cozinha, a trouxe em definitivo para dentro da casa-grande. E protegeu sempre a mulatinha enquanto viveu. Depois, quando a esposa de Sinhô morrei tísica, ficaram os padrinhos, Sinhô e Don’Ana, mas aos poucos Raimunda foi tendo uma vida igual às demais crias da casa: lavar, remendar roupa, buscar água no rio, fazer doces. Só que nas festas Don’Ana lhe regalava um corte de fazenda para um vestido melhor e Sinhô lhe dava um par de sapatos e um pouco de dinheiro. Ela não tinha ordenado, para que precisava ela de dinheiro se tinha de um tudo na casa dos Badarós? (AMADO, 1976, p. 89). Podemos analisar a personagem Raimunda como a personificação de muitas das meninas e mulheres negras que foram criadas para o serviço doméstico dentro da lógica de uma sociedade desigual, na qual a abolição da escravatura praticamente não levou a elas qualquer mudança qualitativa de vida. Chamamos atenção para o termo cria utilizado pelo autor. Em geral, utilizamos tal termo para nos referirmos aos animais de uma fazenda, mas que era, por extensão, usado para os negros dentro das casasgrandes. Os patrões não pagavam à Raimunda um salário por acreditarem que, de fato, ela residir em sua casa era algo que agregava uma honorabilidade. Pois os patrões confiavam seus lares a essas pessoas sem instrução, sem estrutura familiar, advindas de uma classe social inferior. Dessa forma, essas empregadas “quase da família” deveriam se contentar com os presentes esporádicos, com as sobras de comida e em não ter sua 138 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA individualidade respeitada. Inúmeras vezes não se admitia que essas pessoas poderiam ter qualquer traço de desejo, sonhos, vontades. Para algumas mulheres das classes trabalhadoras a perpetuação do pensamento senhorial se dava por meio do trabalho doméstico nas casas dos patrões, para outras e para uma grande parcela dos homens era o cotidiano das roças que lhes situavam nessa “nova, velha, ordem social”. Eram denominados de alugados, e se caracterizavam por serem os migrantes de outras regiões que se dirigiam à Ilhéus e suas redondezas vislumbrando uma realidade melhor que a encontrada em suas localidades de origem. Esses trabalhadores eram escolhidos no porto de Ilhéus e redirecionados para os trabalhos nas fazendas da região. Ao se instalarem se deparavam com uma realidade diferente daquela que imaginavam e, a maioria acabava por se tornar escravo por dívidas. A configuração desse tipo de escravidão é explicada no livro de Jorge Amado por meio de uma personagem que trabalha nas roças para um recém-chegado, vindo do Ceará: - Amanhã cedo o empregado do armazém chama por tu para fazer o “saco” da semana. Tu não tem instrumento pro trabalho, tem que comprar. Tu compra uma foice e machado, tu compra um facão, tu compra uma enxada... E isso vai ficar por uns cem mil-réis. Depois tu compra farinha, carne, cachaça, café pra semana toda. Tu vai gastar uns dez mil-réis pra comida. No fim da semana tu tem 15 mil-réis ganho do trabalho [...]. Teu saldo é de cinco mil-réis, mas tu não recebe, fica lá pra ir descontando a dívida dos instrumentos... Tu leva um ano pra pagar os cem mil-réis sem ver nunca um tostão. Pode ser que no Natal o coronel mande te emprestar mais dez-mil réis pra tu gastar com as putas de Ferradas... [...] - [...]. Antes de terminar de pagar tu já aumentou a dívida... Tu já comprou mais calça e camisa de bulgariana... Tu já comprou remédio que é um Deus nos acuda de caro, tu já comprou um revólver que é o único dinheiro bem empregado nessa terra... E tu nunca paga a dívida... Aqui – e o homem magro fez um gesto circular com a mão abarcando todos eles, os que trabalhavam para os “Macacos” e os dois que vinham com o morto das “Baraúnas” – aqui tudo deve, ninguém tem saldo. (AMADO, 1976, p. 98). O cativeiro ao qual o trecho faz referência diverge da escravidão sofrida pelas populações negras durante os séculos XV e XIX. Esse novo tipo de servidão “manifesta-se de maneira completamente diferente: não tem a ver com a raça da pessoa, não existem vínculos duradouros entre escravo e o dono, e o escravo não possui valor 139 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA econômico” (LE BRETON, 2010, p. 194). Esses alugados que chegavam todos os anos para trabalharem nas lavouras de cacau optavam por esse deslocamento e se ofereciam para a função. As questões sociais degradantes que os levavam a ocupar tais postos são fundamentais para que entendamos a lógica que os impulsiona (seca, fome, miséria). Cabe ressaltar que a escravidão após o século XIX não se relaciona diretamente com a cor da pele, entretanto, num país como o Brasil, no qual o racismo é estrutural, a cor da pele ainda define grandemente o local social que o indivíduo ocupará. Le Breton diferencia escravidão de ocupação degradante, fazendo-o da seguinte maneira “a pessoa numa situação de trabalho degradante pode ser maltratada, pode trabalhar sem parar, mas tem a liberdade de sair. A pessoa numa situação de trabalho escravo não pode sair” (LE BRETON, 2010, p. 194). Os casos dos alugados retratados os enquadram no conceito de escravidão por dívidas da autora. Após contraírem a dívida nos armazéns das fazendas, esses empregados viam seu direito de ir e vir cerceado enquanto não quitassem a dívida. As dívidas fugiam ao controle dos funcionários e eram organizadas e contabilizadas pelos donos dos armazéns e pelos coronéis, que não estavam interessados em perder o trabalhador ou em ter que lhe pagar qualquer valor. Esse modo de agir poupava os fazendeiros de pagarem salários ou de terem quaisquer outros gastos com esses empregados. Sendo esta uma condição quase impossível de sair. Os que tentavam fugir eram perseguidos e, muitas vezes, capturados e surrados ou mortos para servirem de exemplo aos outros. Fosse o tratamento dispensado pelos patrões aos alugados nas roças de cacau, ou às empregadas domésticas nas casas das fazendas aquele era sempre uma marca indelével do passado escravocrata que não se fez esquecer nas relações sociais, políticas, econômicas e culturais do Brasil. Esse comportamento de manter os negros, indígenas e seus descendentes como subalternos nos permeia enquanto sociedade, mesmo que se tente, por vezes, disfarçá-lo das mais diferentes formas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em Siervo sin tierra de Eduardo Caballero podemos identificar a cédula como representação da vida e o medo generalizado que acompanhava o portador deste 140 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA documento mais a trapaça e o engano como carta de apresentação em negociações ou transações, foram os dois elementos que adquiriram significado especial para esta análise. A partir das figuras históricas expostas por Caballero Calderon (1954) abordamos a proposta feita pela professora Sandra Pesavento que considera que a principal aposta da história cultural será decifrar a realidade por meio das representações, tentando alcançar as formas pelas quais os homens de outrora se expressam sobre o mundo e sobre si mesmos. Dessa forma, a construção das representações teve uma carga simbólica que vinha de sua realidade mais próxima, gerando práticas e comportamentos que, conforme evidenciado, são dotados de uma força que os levou a se posicionar em uma luta constante pela construção de uma identidade que oscilou entre as imposições dos dirigentes políticos, que ao mesmo tempo eram donos do capital, e entre o sentimento rural caracterizado pela nobreza, pelo trabalho e pelo amor familiar. As temáticas abordadas na primeira parte deste trabalho, hoje ainda têm grande relevância. A fraude eleitoral foi permeada constantemente com o aniquilamento da democracia por meio da compra de votos, a manipulação de sua contagem e campanhas corruptas. Enquanto as miseráveis condições de vida da população continuam as mesmas, com um tratamento quase desumano, tendo seu trabalho remunerado com salários que não servem para levar uma vida digna, onde vencem os intermediários e onde os tratados internacionais são cada vez mais fortes. Por isso, ousamos dizer que a vida quotidiana não cessa de se refletir a todo o momento nas personagens que constituem as obras e que são essencialmente fruto do nosso proceder como povo e como nação. Na segunda parte do texto tentamos abordar alguns tipos de violência que são expressos pela narrativa de Jorge Amado em Terras do Sem-Fim. Primeiro, detivemonos nas relações de poder que os coronéis e seus partidários estabelecem e reproduzem no interior do Brasil nos primeiros anos da República e de como isso afetava a vida dos trabalhadores rurais e dos pequenos proprietários. Os caxixes, os jagunços, o compadrio e as formas de operar nessa sociedade. Num segundo momento nos dedicamos ao processo de não mudança social promovido pela abolição da escravatura. As formas como os trabalhadores são vistos 141 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA dentro do período republicano como uma continuação do pensamento escravagista que por mais de trezentos anos norteou as relações de trabalho do Brasil. Trabalhar com a obra de Jorge Amado nos leva a refletir sobre a constituição da sociedade brasileira em sua totalidade. Quando lemos seus livros nos deparamos com histórias que poderiam ter se passado em 1920, 1970 ou em 2019, no interior ou em alguma capital como São Paulo. A complexidade que o autor retrata em suas personagens e nas histórias que os cercam nos dão uma boa base para compreender a desigualdade e violência que se construíram dentro de todo o processo histórico brasileiro desde a invasão dos portugueses. Ao trabalhar com estas representações podemos compreender que não se trata de imagens enganosas que se dirigem apenas ao mundo abstrato das construções mentais. Contudo, são um impulso capaz de definir as fronteiras entre grupos, comunidades e indivíduos e que uma força é definitiva compondo a construção do mundo social. É importante considerar que, ao olharmos os dois países em conjunto através de suas obras literárias, é inevitável encontrar uma série de reciprocidades na ordem das condições de possibilidade de cada um, onde a violência é a essência de uma série de processos sociais, que, embora tenham nuances diferentes, têm a particularidade de que nas duas análises os enlutados foram sempre os mesmos, ou seja, os camponeses, os marginalizados e os despossuídos e entre os promotores da violência situa-se também os mesmos, a começar pelo Estado, os donos do capital e da moralidade prevalecente. É possível afirmar que o sofrimento historicamente vivido seja visto como um processo social que nos permite revelar alguns traços do sentido da cultura colombiana e brasileira, visto que os medos e desejos retratados nas diferentes obras em torno de uma violência vertiginosa e aparentemente mutante, foram descritos para tentar compreender por um lado os personagens que sentiram, interpretaram e agiram dando sentido à sua realidade e, por outro lado, a todos os seres que atualmente enfrentam as vicissitudes da vida nestas mesmas condições em nosso continente latino-americano REFERÊNCIAS AMADO, Jorge. Terras do sem fim. 34º ed. Rio de Janeiro: Record, 1976. AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. 36º ed. Rio de Janeiro: Record, 1979. 142 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA BIBLIOTECA NACIONAL DE COLOMBIA. Eduardo Caballero Calderón, a 100 años de su nacimiento. Exposiciones, (2013). Biblioteca Digital coleciones. 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ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA LYZ PARAYZO E ÉLLE DE BERNARDINI: NARRATIVAS DE CORPOS DISSIDENTES NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Débora Armelin Ferreira1 INTRODUÇÃO O presente texto tem como objetivo analisar como arte corrobora na inserção de corpos dissidentes entendendo que as produções das artistas brasileiras Lyz Parayzo e Élle de Bernardini assumem um papel social, político e cultural quanto à questão de identidade e expressão de gênero desde o enfrentamento à sua invisibilidade dentro da sociedade assim como o combate à violência sofrida por pessoas transexuais em um país que lidera o ranking em assassinatos a essa população, o Brasil. As marcas de um colonialismo patriarcal formaram identidades hegemônicas que produziram pensamentos de lógica hétero-cis-normativas dentro da sociedade brasileira impondo relações de poder sobre a população transexual e travesti que, historicamente, foi colocada às margens e expostas às situações de extrema vulnerabilidade social e violência. Há a necessidade de se levantar a discussão quanto ao lugar em que essa população foi obrigada a ocupar tendo como opções de trajetória de vida a prostituição, o crime ou o suicídio, sendo assim invisibilidadas e/ou discriminadas em outros locais que não estes aos quais são “pertencentes”. Na primeira parte desta pesquisa, apresenta-se uma leitura dos dados sobre a violência contra travestis e transexuais no Brasil, analisando como o discurso político atual pode influenciar parte da sociedade em reproduzir discursos de discriminação e violência. Em seguida, será feito um curto panorama das representações LGBTQIA+2 na História da Arte com recorte na Arte Romana, passando pelo Renascimento e pelo Pesquisadora independente com Especialização em História da Arte – Teoria e Crítica pelo Centro Universitário Belas Artes – SP. E-mail: deboraarmelin@hotmail.com 2 A sigla LGBTQIAPN+ refere-se à pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, Não-binárias e as demais orientações sexuais, identidades e expressões de gênero. 1 145 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 146 Modernismo, finalizando com a compreensão de como a performance surge como possibilidade para corpos dissidentes dentro da arte, sendo uma linguagem potente. E por fim, traçar a trajetória pessoal e artística das artistas Lyz Parayzo e Élle de Bernardini, propondo a leitura de algumas de suas respectivas obras. A relevância desse trabalho encontra-se no fato de que as abordagens artísticas de Lyz e Élle são descritas como tendo um caráter e mérito social e que, portanto, suas práticas artísticas poderão questionar o papel da arte visual como uma possível linguagem produtora de sentidos e significados quanto à invisibilidade, preconceito e violência de gênero no Brasil. A QUESTÃO DE GÊNERO NO BRASIL “Ser trans é cruzar uma fronteira política” 3 (Paul B. Preciado) Há uma urgência em se tratar da questão de gênero no Brasil e, principalmente, sobre pessoas transexuais e travestis em decorrência do alto número de assassinatos desta população fazendo com o que o país lidere o ranking mundial em mortes, de acordo com o relatório da Transgender Europe4 (TGEU). Ao verificar o Dossiê de Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras de 20205, foram registrados 175 assassinatos sendo que estas mortes são, em sua maioria, de travestis e mulheres transexuais. Vale lembrar que há subnotificações e ausência de dados governamentais. Os fatores sociais implicam em maior vulnerabilidade dessa população, principalmente das que moram na rua, intensificando a questão da violência e interpelando a falta de políticas públicas que assegurem uma qualidade de vida mais digna a partir do mapeamento de marcadores de idade, classe e contexto social, raça, Trecho do livro “Um apartamento em Urano” publicado por El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/09/cultura/1554804743_132497.html#:~:text=Paul%20B.,pol%C3 %ADtica%20%7C%20Cultura%20%7C%20EL%20PA%C3%8DS%20Brasil Acesso em: Fevereiro de 2021 4 Disponível em: https://revistahibrida.com.br/2020/11/17/em-2020-brasil-continua-lider-mundial-emassassinatos-de-pessoas-trans/ Acesso em: Fevereiro de 2021 5 Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf Acesso em: Fevereiro de 2021 3 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA gênero. Em 2020, tivemos um agravamento por conta da pandemia de COVID-19, expondo o crescimento das desigualdades sociais. Não é recente que a falta de conhecimento quanto à diversidade de identidade e expressão de gênero acarreta em repulsa (e até ódio) por pessoas que reconhecem apenas identidades cisgêneras6 e assim, inferiorizam e agridem verbal/fisicamente pessoas travestis, homens e mulheres transexuais, avançando na manutenção do cissexismo7. Conservadores e religiosos reforçam o preconceito e a intolerância se apoiando em estruturas sociais heteronormativas sob o viés da “moral e bons costumes”, determinadas pela classe hegemônica. O discurso transfóbico ganhou forças com a eleição do atual presidente (Sem Partido) e da Ministra da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos (Partido Progressistas), retrocedendo em conquistas sociais e legitimando diversas formas de violência. Em contrapartida, nas últimas eleições municipais de 2020, houve trinta pessoas transexuais eleitas em diversas cidades brasileiras, sendo sete delas as mais votadas, possibilitando uma representatividade um pouco mais significativa dentro das câmaras municipais. De acordo com Benavides e Nogueira: O Brasil naturalizou um projeto de marginalização das travestis. A maior parte da população trans no país vive em condições de miséria e exclusão social, sem acesso à educação, saúde, qualificação profissional, oportunidade de inclusão no mercado de trabalho formal e políticas públicas que considerem suas demandas específicas. Mas não só: o que era ruim piorou ainda mais neste este ano, com a eleição de um governo que é explicitamente transfóbico por ideologia. (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2020, p. 9). Tendo como base os Estudos Culturais de Stuart Hall, podemos afirmar que identidade não é algo inato, ela se desenvolve gradativamente por meio da relação entre indivíduos e grupos dentro de uma sociedade, construindo identidades que são 6 Entende-se por cisgênera a pessoa cuja identidade e expressão de gênero correspondem ao sexo biológico ao qual foi designada ao nascer. 7 Entende-se por cissexismo o conjunto de noções discriminatórias que estabelecem as pessoas trans abaixo das pessoas cis, de maneira institucional e/ou individual. 147 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA múltiplas, mas, ao mesmo tempo, são indissociáveis como raça, etnia, classe social e assim como a identidade de gênero. Há muito que se avançar, começando pela educação e na compreensão de que o sexo biológico não necessariamente é correlato à identidade e expressão de gênero. Como aponta Judith Butler (2003), essa dicotomia sexo vs. gênero é criada pela sociedade a partir de uma “ordem compulsória” que exige essa relação. A filósofa sugere pensarmos que: Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que designamos como gênero. (…) Quando a “cultura” relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Neste caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino. (BUTLER, 2003, p. 25-26). Somado ao pensamento de Butler, Paul Preciado, em Manifesto Contrassexual (2014), coloca que o gênero não é somente uma construção social, consequência de práticas culturais, mas também é determinado pelo fim da natureza onde há uma ordem que legitima determinados corpos à sujeitarem outros, e é justamente na materialidade dos corpos que este se torna a contraposição entre sexo e gênero que vai além do regime binário normativo. O corpo atua como espaço de construção biopolítica, como lugar de opressão, mas também como centro de resistência. Preciado se refere a “corpos falantes” que estão em constante transformação, um corpo de multiplicidade e que são orgânicos. Em entrevista8 realizada em 2018, Butler questiona o porquê da necessidade de se fixar identidades rígidas, como se qualquer possibilidade de experimentação ou manifestação de traços femininos em corpos masculinos e vice-versa possa ser condenado pela sociedade, sem necessidade de limitação nas representações corpóreas dos sujeitos. Há uma opressão executada pelo sistema em forma de mecanismos de poder e controle sobre o gênero e a sexualidade, e na resistência à normalização tanto da masculinidade quanto da feminidade, de uma identidade sexual fechada e rígida que não 8 Disponível em: https://resistaorp.blog/2018/05/08/a-vida-nao-e-a-identidade-a-vida-resiste-a-ideia-daidentidade/ Acesso em: Fevereiro de 2021. 148 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 149 aceita variações e multiplicidades quando poderíamos provocar mudanças de paradigmas na aceitação de gêneros não-binários e mais fluídos. A TRANSEXUALIDADE NAS ARTES Neste capítulo, traçaremos um breve panorama quanto às representações sobre sexualidade e gênero dentro da História da Arte. Selecionamos quatro obras específicas, fazendo um recorte na Arte Romana, Renascimento e Modernismo pelo fato de não encontrarmos referencias de artistas transexuais nos registros da história compreendendo esta ausência como um apagamento simbólico. Os corpos da população LGBTQIA+ estiveram, muitas vezes, presentes apenas como objeto de representação e relacionados ao que se é proibido, rechaçado e ao mesmo tempo, fetichizado, visto como objeto de desejo (de maneira velada). Muitas obras não se destacaram dentro da História da Arte, que se legitimou sendo patriarcal, branca e heteronormativa, pois, como colocou o curador Miguel López, em entrevista9 ao lançamento do “1º Caderno Sesc_Videobrasil – alianças de corpos vulneráveis: feminismos, ativismo bicha e cultura visual”, que, a partir do aparecimento dos estudos feministas e da teoria queer, na década de 1960, surge o questionamento de como as instituições artísticas delimitam o que merece ser visto ou não, disciplinando assim o olhar e os corpos dos sujeitos. Ao olhar para História da Arte, temos representações homossexuais tanto no Egito, Grécia e Roma Antiga, mas vale lembrar que, neste período, como não havia a compreensão de gênero em si, o desejo pelos corpos era dado pela concepção de um ideal de beleza. Há também as representações de deuses, em que sua sexualidade tampouco era questionada. No caso da escultura de Hermafrodito (Fig. 01), filho de Mércurio e Vênus, apresenta um corpo andrógeno no qual eram atribuídos os dois sexos. O termo hermafrodita está incluso no conceito de intersexualidade, usado para descrever um conjunto amplo de variações dos corpos tidos como masculinos e femininos10. 9 Disponível em http://site.videobrasil.org.br/news/2058869 . Acesso em: 03 de janeiro de 2021. De acordo com a ABRAI (Associação Brasileira de Intersexo), disponível https://abrai.org.br/informacoes-e-recursos/definicao-de-intersexo/ 10 em ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 1 – Hermafrodito. Império Romano, 27 A.C – 476 D.C. Museu do Louvre Fonte: https://tendimag.files.wordpress.com/2016/03/12-hermafrodita-impc3a9rio-romano-27ac-476-dc-museu-do-louvre.jpg Já no Renascimento, em um detalhe do teto da Capela Sistina, “O Juízo Final”, obra renascentista pintada por Michelangelo entre os anos de 1508 e 1512 (fig. 02), se observa uma cena de homens se beijando. Neste contexto conhecido na narrativa bíblica como dia do julgamento feito por Deus, o beijo gay representa o pecado condenável, o pecado da sodomia. Figura 2 – O Juízo Final, pintura afresco (1508-1512) de Michelangelo, Palácio Apostólico, Vaticano. Fonte: Imagem registrada em HuffPost, disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2017/ 09/13/9-obras-de-arte-consagradas-da-historia-que-retratam-genero-e-sexualidade_a_23208027/ 150 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Chegando ao Moderninsmo, no caso do artista Toulouse-Lautrec, pintor que costumava retratar a noite parisiense e pessoas comuns, pinta em “Na Cama, o Beijo” (fig.03), de 1892, a cena de duas prostitutas se beijando dentro do cabaré. Essa imagem é aceita dentro de certo contexto, pois, no imaginário de homens heterossexuais, ela é fetichizada e erotizada. Figura 3 – Na cama, o beijo, 1892. TOULOUSE-LAUTREC Fonte: Imagem registrada em Revista Bula, disponível em: https://www.revistabula.com/9966os-10-beijos-mais-famosos-da-historia-da-arte/ No início do século XX, encontramos o caso de Lili Elbe (1882-1931), artista queer conhecido como Einar Mogens (fig. 04), casado com a também artista Gerda Wegener e que em determinado momento, decide, de vez, em assumir sua identidade de gênero feminina. Lili Elbe chegou a fazer cirurgias para mudança de sexo, morrendo após a tentativa de implantar um útero. Apenas recentemente, se tornou referência na história trans, após sua trajetória ser conhecida quando foi retratada no cinema com o filme “The Danish Girl”, 2015, dirigido por Tom Hooper. 151 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 4 – Fotografia de Lili Elbe, 1926 Fonte: Imagem retirada de El Pais Brasil, disponível em : https://brasil.elpais.com/brasil/2016/ 01/02/estilo/1451748884_931165.html A produção artística contemporânea se apresenta de forma descentralizada, deixando-se um pouco o peso da utopia das vanguardas ao interagir a arte com a realidade. Encontramos também um pluralismo nas diferentes linguagens e formas de representação das quais são baseadas não somente nas experiências do cotidiano, mas igualmente na relação entre sujeitos, e na compreensão e percepção do outro. A arte pode surgir como uma ferramenta de confronto ao pensamento hierárquico no objetivo de decolonizar11 o olhar, romper com velhos discursos normativos a partir de novas narrativas de artistas transexuais para evitarem seu apagamento. A não-permanência e exclusão de corpos trans em locais como as universidades, museus e galerias de artes é refletido na dificuldade em ingressarem no mundo artístico, este campo de saber e de conhecimento que deveria ser livre de qualquer preconceito, aceitando diferentes corpos. A performance, então, aparece como uma possibilidade no que se refere ao acesso aos diferentes materiais para se produzir arte, se apresentando como uma potente linguagem provocadora de questionamentos e reflexões, uma vez que corpos dissidentes assumem seu local de fala e são utilizados como suporte de criação. São sujeitos que, a partir da ideia de Spivak (2010), “sob a condição de subalternidade”, nunca obtiveram espaço para falar de si e por si e essas vozes quando conquistam uma 11 Entende-se por decolonizar o termo cunhado pelo grupo Modernidade/Colonialidade nos anos 2000, definindo que decolinalidade indica o transcender da colonialidade e não apenas a sua superação (Ballestrin, 2013). 152 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA posição de prestígio e, nesse caso o acesso ao circuito de artes, obtém certa “visibilidade”. E esta linguagem faz com que todo o processo seja muito mais significativo que o resultado final, nos remetendo ao conceito de “artificação” proposto por Roberta Shapiro (2007) em que a “arte como atividade (e não como objeto)” aumenta “as instâncias de legitimação” que não apenas a academia, curadores e críticos de arte e que promove um mecanismo de reconhecimento de objetos considerados “não-arte” em arte, a partir de um contexto que abrange questões de âmbito social, econômico e político. LYZ PARAYZO: OBJETOS PARA SUA AUTO-DEFESA A artista nasceu Lisandro Coelho de Souza (fig. 05), no ano de 1994, em Campo Grande, subúrbio do Rio de Janeiro em uma casa entre mulheres: mãe, avó e suas tias. Lyz conta, durante uma entrevista12, que foi na adolescência que sua sexualidade se manifestou e tomou consciência de que não se encaixava nos padrões heteronormativos, relatando que o primeiro contato feminino com o seu corpo foi pintar as unhas, aí, então, teve uma relação diferente socialmente porque percebeu que, ao pintar as unhas, catalisava uma série de sensações de violência. Figura 5 – Lyz Parayzo, 2019 Fonte: Acervo Pessoal 12 Entrevista concedida por Lyz Parayzo em setembro de 2019. Entrevistadora: Debora Armelin Ferreira. São Paulo, 2019. 1 arquivo .m4a (28 min.) 153 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A família, sendo grande parte evangélica e outra parte espírita, teve grandes dificuldades em entender e aceitar a declaração do então Lisandro, o que teve como consequência relações bastante complicadas. Exceto com a sua avó que, após um tempo, percebeu a necessidade de estar ao lado da neta, embora ainda tenha dificuldade em usar o artigo “a” para se referir a ela e chamá-la de Lyz. Ingressa no curso de teatro, mas devido ao seu distanciamento e de sua família com as artes (em especial o teatro, visto que em Campo Grande havia apenas um cinema) sentiu dificuldade em lidar com o curso, o que a fez questionar a continuidade dos estudos. Decide então cursar a Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro e ali conquista seu espaço, não só no que se refere à questão de gênero, mas de classe também. Recebe uma bolsa de estudos e, ao ocupar aquele lugar, concebe seu entendimento de quem era e qual o seu papel como artista. Lyz narra que seu percurso de casa até à escola de artes sofria variações espaciais/sociais. Seu trajeto de Campo Grande até o Parque Lage, localizado em uma área mais nobre da cidade, levava duas horas entre ônibus, metrô e ônibus e sentia certos marcadores sociais. Enquanto em Campo Grande, os moradores faziam piadas quanto ao seu gênero, ao chegar ao local de destino, era como se houvesse um certo respeito, um “perdão de classe” por ela estar transitando aquele espaço. Adota, então, o nome de Lyz Big Field13, escolhendo este sobrenome que faz referência à sua origem geográfica, considerada periferia do Rio de Janeiro, como forma de falar de suas urgências, questionar os corpos que são julgados unicamente por serem de áreas periféricas, pois, no Brasil, o seu sobrenome e seu local de origem ditam quais são seus privilégios e, no seu caso, os acessos aos espaços de artes. Com sua ousadia, a artista queria romper fronteiras, queria desafiar a lógica colonial e patriarcal do Parque Lage que defendia um discurso superficial de inclusão. Foi censurada em três apresentações, a primeira, não tendo sua obra selecionada para uma exposição, fez uma intervenção dispondo uma série de fotografias de seu próprio ânus dentro dos banheiros masculinos. Foi neste momento que assumiu como nome social Lyz Parayzo, com o intuito de “abrasileirar” seu nome, devido a uma pergunta feita por um professor do Parque Lage sobre como queria que fosse chamada. 13 Lyz Campo Grande, em tradução nossa. 154 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Na segunda, fez uma crítica à “gourmetização” da cantina da universidade, o que faria com que os preços dos produtos se tornassem inacessíveis aos alunos bolsistas. E por último, na abertura de uma exposição, Lyz se posta seminua sob um tijolo enquanto Augusto Braz rasga grandes pedaços de um papel cor-de-rosa (que se assemelha aos papéis higiênicos considerados baratos e de baixa qualidade) e posteriormente cola em seu corpo tomando forma de um vestido de gala com o qual, ao fim, Lyz caminha lentamente pelo espaço. Os trabalhos da artista tratam não somente da temática do gênero e do corpo, que não anseia em ser encaixado em determinadas classificações, um corpo que é fluido, transitando entre o masculino e feminino, mas também fala sobre classes refletindo como os espaços institucionais no Brasil são elitistas e segregantes, um “local de disputa” em suas palavras. Suas obras seguiam uma lógica de crítica não somente dos espaços, mas também sobre quem os ocupava. Uma de suas obras é “Putinha Terrorista” (fig. 06) de 2017, em que panfletos impressos com sua foto nua ou seminua, afirmando o lugar de prostituta e suas respectivas descrições, com telefone e endereço de galerias de artes do Rio de Janeiro, são jogados durante aberturas aleatórias de exposições pela cidade. Assim, Lyz pensa em “transfigurar o lugar marginalizado da prostituição dentro da sociedade em algo potente, criticando os espaços museológicos” fazendo referência a este local como também um espaço que se vende, colocando-os como as próprias prostitutas e assim, expondo as fragilidades do mercado de arte. 155 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 6 – Putinha Terrorista, 2017. Panfleto em papel couchê, 10x 14cm Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/PutinhaTerrorista A consciencialização de que não poderia permanecer por muito tempo numa posição de apenas crítica às instituições artísticas chega quando decide revisitar sua história, sua ancestralidade. Com a obra “Manicure Política” (Figura 7), a artista traz à tona a história das mulheres de sua família: sua avó era manicure e sua mãe esteticista. Neste trabalho monta um salão de beleza intitulado “Salão Parayzo” construindo um cenário totalmente cor-de-rosa (cor socialmente relacionada ao universo feminino), em que pinta a unha do espectador enquanto conversam. E neste contexto de salão, quem está sendo atendido sente-se à vontade para todos os tipos conversas, e então, Lyz aproveita para questionar o que é ser mulher na sociedade atual, fazendo o público refletir quanto ao preconceito, discriminação e violência. Essa interação com o espectador faz com que a performance só aconteça com a participação do mesmo. 156 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 7 – Manicure Política, 2016. Dispositivo itinerante. Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/ManicurePolitica No primeiro semestre de 2018, Lyz se muda para São Paulo, para uma residência artística na FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado. Nesse momento resolve criar objetos, algo que sempre resistiu fazer por acreditar que estes não dariam conta de suas urgências, tal como o seu próprio corpo dava. Nesse momento segue com a ideia de olhar para a sua história: grande parte dos homens de sua família era ourives. Inicia então a série de joias no ateliê da faculdade, que era maioritariamente frequentado por homens. E ali sofre constantes ataques de violência psicológica por parte do técnico responsável pelo ateliê que chegou a quebrar uma de suas peças e dizer-lhe “Você não deveria estar aqui”. A artista que, nessa época, acreditava que ao vestir-se de forma feminina conseguiria melhor aceitação, chegou a cortar os cabelos a fim de amenizar os ataques que sofria. Lyz Parayzo estudou sobre a História da Arte Brasileira no Parque Lage e um dos movimentos do qual se identificava foi o Movimento Construtivista que tinha representantes artistas como Franz Weissmann (1911-2005), Waldemar Cordeiro (19251973), Lygia Clark (1920-1988) e Amilcar de Castro (1920-2002), tomando como referência a técnica de corte e dobra em suas peças de alumínio, uma vez que lhe faltavam recursos para a solda. Sua série “Bichinhas” (fig. 08) faz referência à série “Bichos” de Lygia Clark, atualizando a sua estética e utilizando o nome no diminutivo de uma maneira irônica em 157 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA razão de suas peças possuírem “um toque de violência no intuito de criar uma poética, da necessidade de se defender”, diz a artista. São objetos escultóricos que transcendem a função de ser apenas apreciado, num estado de passividade, tornando-se uma “arma” de defesa para que ela possa se defender da violência sofrida cotidianamente, resistir e sobreviver. Figura 8 – Bixinhas, 2018, alumínio, 15x15cm. Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/Bixinhas Há também a ideia de revisitar o Movimento Construtivista como uma “estratégia de hackeamento desse espaço”, em suas palavras para se referir a este território que era, em sua maioria, masculino, branco e de elite. Fala também de suas urgências, ressignificando a estética concreta como forma de dialogar com vários lugares e um público diverso, que conheça ou não as obras de Lygia Clark. E como desdobramento de “Bixinhas', a artista desenvolve as “Próteses Bélicas” (fig. 09 e 10) numa série de colares e anéis feitos com prata e algumas peças são banhadas a ouro e cravejadas com strass que, ao primeiro olhar, demonstram requinte em sua combinação, estilo e estética, mas que, na verdade, servem como um ornamento de auto-defesa. Essas obras são resultado de uma pesquisa dentro da história da comunidade LGBTQIAPN+ no Brasil e sua resistência e enfrentamento quanto às opressões, repressões e violência.14 Na década de 1987, ocorreu a chamada “Operação Tarântula” em que policiais perseguiam travestis que se prostituíam com o argumento de que seria um controle do VIH (vírus da imunodeficiência humana). Alguns travestis escondiam navalhas nas gengivas e se cortavam perante os policias, que se afastavam com medo que, do contato com o sangue, pudessem contrair a doença. 14 158 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 09 – Unha Navalha, 2016, da série Próteses Bélicas. Prata, aço, madeira, espuma, veludo e cetim. Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/Proteses-Belias Figura 10 – Gargantilha Lança e Top Dentado, da série Próteses Bélicas. Prata. Fonte: Cargo Collective, disponível em https://cargocollective.com/lyzparayzo/Proteses-Belias A partir de suas produções, Lyz Parayzo reflete sobre sua corporalidade, na tentativa de decolonizar o olhar num exercício que é constante e feito através de pesquisas e vivências dentro de território que se mostra hostil, apesar das conquistas feitas ao longo do tempo a partir do seu próprio trabalho. A artista assumiu um modo de se vestir mais androgênio e entende que seu gênero é fluído, muito além da lógica binária. 159 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Lyz participou do projeto Pivô Pesquisa, associação cultural sem fins lucrativos que serve como plataforma para experimentações artísticas15. Foi indicada para prêmio PIPA 2017 e foi finalista do prêmio EDP do Instituto Tomie Ohtake que visa à formação e valorização de jovens artistas. Tem obras compondo a coleção do MAC – Museu de Arte Contemporânea de Niterói e do MAR – Museu de Arte do Rio, e já participou em diversas mostras coletivas nacionais e internacionais. Em 2019, uma de suas obras compôs a exposição “Histórias Femininas: Artistas depois de 2000”, no MASP (Museu de Arte de São Paulo) e teve uma exposição individual na Galeria Verve. Atualmente, faz residência artística em Paris, França. ÉLLE DE BERNARDINI: NOVAS GEOGRAFIAS CORPORAIS Nascida em 1991, em Itaqui, Rio Grande do Sul, Élle de Bernardini (Fig. 11) tem hoje a consciência do seu privilégio não só de ser branca e pertencer à classe média, mas pela aceitação e apoio de sempre recebeu de sua mãe, talvez pelo olhar de uma educadora que acredita na multiplicidade de corpos. O único medo era por sua filha sofrer qualquer tipo de violência. Figura11 – Élle de Bernardini, 2021 Fonte: Acervo Pessoal Sua trajetória artística inicia-se no ballet clássico, tendo sua professora a sensibilidade de deixa-la participar do grupo feminino não somente por conta do corpo 15 Disponível em: https://www.pivo.org.br/sobre/ Acesso em: Fevereiro de 2021 160 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA delgado com traços andrógenos, mas por apresentar boa desenvoltura em passos e saltos. Porém, chega ao seu conhecimento que não poderia tirar a DRT16 pela rigidez e dureza na instituição do ballet clássico em reconhecer apenas os gêneros masculino e feminino. Neste meio tempo, Élle cursa três semestres do curso de Jornalismo no Centro Universitário Franciscano e dois anos de teatro na Universidade Federal de Santa Maria. Quando uma prima sugere que ingresse no Royal Academy of Dance de Londres, sendo a primeira bailarina trans a ser aceita nessa academia. Por mais que ela se destacasse, soube que jamais iria além do corpo do baile, o grupo não permitiria que assumisse posições de solista ou primeira e segunda bailarina. Decide voltar ao Brasil após dois anos. Tem contato com o Butô17 em Londres, um tipo de filosofia de vida que mescla diferentes artes como dança e teatro, considerada sem gênero e que explora temas como nascimento, morte, inconsciente e sexualidade. Teve a possibilidade de conhecer os mestres Yoshito Ohno e Tadashi Endo, experimentando assim seu corpo em diferentes níveis de expressão. Em seguida, cursa filosofia na Universidade Federal de Santa Maria e ali, tem acesso a leituras como “História da Sexualidade”, De Michel Foucault, “Problemas de Gênero”, de Judith Butler e “Manifesta Contrassexual”, de Paul B. Preciado, leituras voltadas para o gênero e sexualidade. Neste momento, relata a artista em entrevista18, que “o mundo inteiro se abre para mim”, e passa a pensar modos de expandir sua pesquisa compreendendo que a arte seja um meio de comunicar o inexistente, como uma possibilidade de se ler o real de diferentes formas. Devido a sua formação em dança e estudos de teatro, encontra na performance o suporte para iniciar sua produção artística, embora com cuidado para que seu corpo não seja objetificado. Explora, depois, outros suportes, poéticas e materiais. Entende-se por DRT – Delegacia Regional de Trabalho, uma espécie de registro profissional. Hoje a sigla foi substituída por SRTE - Superintendência Regional do Trabalho e Emprego 17 Conhecida como "a dança da escuridão" o butô surge no Japão na década de 1950, criado por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, sendo um resultado filosófico da confluência das culturas oriental (tradição milenar japonesa) e ocidental (substâncias da modernidade dos anos 50) 18 Em entrevista a Amanda Olbel disponível em: https://midianinja.org/news/ouro-e-mel-apote%CC%82ncia-em-ato-atraves-de-elle-de-bernardini/ Acesso em: Fevereiro de 2021 16 161 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Adota seu nome como Élle num jogo de ambiguidade enquanto que no Brasil “ele” se refere ao pronome pessoal masculino, na língua francesa, “elle” se refere ao pronome pessoal feminino. Em seus trabalhos, a artista procura construir um novo imaginário comum e social, transpondo para o mundo das artes sua preocupação assim como sua responsabilidade em abordar temas quanto a questão de gênero, sexualidade e identidade de forma lúdica e pedagógica, estreitando o dialogo com o espectador. Na performance “Campo de Contato II- Tapas para que te quero?” (Fig. 12), de 2016, a artista se coloca sentada em um espaço público com uma indicação atrás de sua cadeira: “Siga a indicação. Me dê um tapa na cara o mais forte que conseguir”. Nessa ação, vestida de forma elegante, com uma música instrumental ao fundo, Élle levanta a questão do que é moralmente certo ou errado. Há a permissão dela para que a agressão seja feita, mas, em contrapartida, cabe ao público decidir. Se não der o tapa, a ação perde sua finalidade, e se der o tapa, pode levar a uma questão moral do porque de ter agredido sem justificativa aquele corpo, como o espectador o único responsável por sua ação, porém seria esta uma escolha consciente? Lembrando o conceito de “a banalidade do mal”, de Hannah Arendt, quando o sujeito passa a obedecer regras/ordens sem qualquer tipo de questionamento, sendo incapaz de pensar por si, anulando assim a sua individualidade. Figura 12 – Campo de Contato II – Tapas para que te quero?, 2016 Fonte: Acervo Pessoal Élle também questiona a inserção de corpos trans em locais dos quais lhe são negados a partir da construção de um novo imaginário para esses corpos além da marginalizado. Em “A Imperatriz” (Fig. 13), 2018/20, com vestido de alta-costura na cor vermelha e joias, a artista se convida a ocupar espaços arquitetônicos que 162 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA representam tanto poder político quanto cultural, adentra estes locais de forma diplomática a fim de “seduzir” as instituições para que assim, outros corpos também possam ocupar estes lugares. A artista apresenta um novo olhar para o corpo trans além daquele já estereotipado pela sociedade. Figura 13 – A Imperatriz, 2020. Fonte: Acervo Pessoal Com a obra “Dance with me” (Fig. 14), 2018/19, a artista se utiliza da expressão popular, “nem se fulano(a) estivesse coberto de ouro” e assim, cobre seu corpo de mel e folhas de ouro e convida seu público para dançar acompanhada de músicas consideradas de bom gosto pela alta sociedade. Além de investigar os sentidos: tato, olfato e audição, Élle coloca em pauta a aceitação desde corpo pela sociedade. Ao aceitar dançar com ela, tocando o seu corpo, não só pontuando que houve ali uma aceitação deste para com a artista, mas o sujeito leva um pouco de ouro em suas mãos, um metal precioso, e não doenças, sujeira, tudo o que há atrelado à população travesti e trans. 163 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 14 – Dance with me, 2018. Fonte: Acervo Pessoal Dos estudos sobre o concretismo e neo-concretismo brasileiro, a artista cria estratégias para brincar com as formas geométricas e as cores, usando como repertório para instigar as cores azul e rosa, mostrando múltiplas possibilidades além do masculino e feminino. Nessa simbologia das cores, traz também o roxo que é a mistura das cores rosa e azul, o cinza como um espaço neutro, o branco a presença de todas as cores e o preto, a ausência delas. A chamada série “Formas Contrassexuais” (Fig. 15), de 2019, procura expandir a compreensão para além do binarismo rosa e azul e atrelado às formas, em alguns momentos, chega à abstração descontruindo as imagens a fim de criar novas possibilidades de geografias corporais. 164 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 15 – Série: Formas Contrassexuais Acrílica, ouro, feltro e prego sobre tela Díptico, 2 telas de 50x40 Fonte: Acervo da Galeria Pivô. Disponível em: https://www.pivo.org.br/residencias/participantes/elle-de-bernardini/ E a fim de discutir a questão do corpo trans, da sua história, Élle recorre a diferentes materiais que são atraentes ao olhar e ao tato e que faz correlação com a sedução e o erotismo: ouro, couro, pelo, feltro e pele sintética. Ela fala dos órgãos sexuais e dos órgãos do prazer: pênis, vagina, escroto, seios e ânus de uma maneira lúdica não só pensando no espectador, mas tendo como objetivo principal colecionadores de arte, colocando em xeque este mercado em que as obras mais vendidas são os quadros, e assim, este público se relacionaria de perto com determinadas geografias corporais excluídas deste meio. Utilizando de uma maneira a aproximar do universo do corpo trans, na série “Peludinhos” (Fig. 16), seleciona os materiais que faz com que, através do toque, o sujeito crie certa intimidade com a obra, modificando seu olhar na compreensão do que lhe parece estranho, criando um corpo expandido que se altera aos diferentes toques e ação do tempo. 165 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 16 – Le Vagin, série Peludinhos, 2019. Fonte: Acervo Pessoal Élle se muda para a cidade de São Paulo e participa, juntamente com Lyz Parayzo, do projeto Pivô Pesquisa. Suas obras compõem o acervo das seguintes instituições: Museu de Arte do Rio Grande do Sul / MARGS, MAC- RS, MAC-Niterói, Coleção Santander Brasil, Museu de Arte do Rio, Museu de Arte Moderna do Rio, Fundação de Artes Marcos Amaro, Museu Nacional da República e Pinacoteca do Estado de São Paulo. Participou da 12 Bienal do Mercosul, em Porto Alegre e da Bienal Internacional de Performance Ativismo, em Bogotá/Colômbia e exposições individuais na Verve Galeria, Galeria Kogan Amaro, Karla Osório, Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Casa de Cultura Mario Quintana e Museu de Arte de Santa Maria. CONSIDERAÇÕES FINAIS As artistas Lyz Parayzo e Élle de Bernardini trazem suas próprias histórias e vivências para o campo artístico envolto às questões que abarcam o universo travesti e transexual como parte de suas produções. Longe de rotulações quanto às artistas trans terem que unicamente falar sobre questões trans, é necessário ir além dos limites identitários impostos de forma opressiva com discursos de controle em detrimentos da liberdade e da autonomia dos seres. 166 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Ao assumir este lugar de sujeito do fazer, potencializa-se os enfrentamentos como invisibilidade, preconceito e violência, ao abrir espaço para que outros corpos dissidentes alcancem seu lugar dentro da sociedade ocupando todos os espaços que lhe são de direito. Pudermos observar que tanto Lyz quanto Élle utilizam o corpo como suporte de sua arte seja através da performance ou na desconstrução desses corpos criando novas geografias ao propor que o público consuma a ideia de corporeidade sem fetichização e objetificação. Sendo raça, classe social e gênero características intrínsecas ao ser, portanto, indissociáveis, percebemos então o quanto as diferenças sociais e econômicas são refletidas nos trabalhos das artistas. Enquanto Lyz busca enfrentar de forma um pouco mais dura e impositiva sua entrada em espaços de poder, como em “Putinha Terrorista”, causando surpresa e estranhamento dos que ali estão. Élle já procura a diplomacia para adentrá-los, pedindo que seja convidada na obra “A Imperatriz”. Podemos traçar esse comparativo também na série “Próteses Bélicas”, de Lyz, em que usa essas esculturas-objetos que se assemelham a armas para se proteger, se defender dos preconceitos e violências verbais que sofreu durante suas idas e vindas da faculdade para casa. Enquanto Élle, em “Peludinhos”, propõe um diálogo de forma lúdica e educativa, possibilitando ao público criar um novo olhar e novas composições de corpos, como se sugerisse uma possibilidade para a resolução didática desses enfrentamentos. São trabalhos que se apresentam complementares a partir de diferentes vivências, de atravessamentos que mostram sua potencialidade no tratar das urgências da população trans e que, inclusive, as duas artistas dividiram o espaço da Verve Galeria, em 2019, em exposições individuais “Quem tem medo de Lyz Parayzo” e “Sex Shock”. Ambas as artistas também optaram por não modificarem seus corpos sem tratamentos com hormônios e cirurgias, pois acreditam na fluidez de gênero e na constante renegociação de identidades. Há certa imposição para que o corpo feminino se adeque a modelos padronizados do que é ser mulher, reforçando a sujeitação destes corpos pelo sistema de poder. Como Preciado (2020), em “Um apartamento em Urano”, cita o termo “travessia” que seria esse deslocamento corporal, a transformação, um 167 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA entre-lugar situado no meio do masculino e do feminino, um espaço de reconhecimento de gênero que permite igualmente essa fluidez. Portanto, podemos pensar que a arte deve assumir seu papel político e social de maneira reflexiva e propositiva, e principalmente repensar na democratização destes espaços culturais para o acesso a um público variado assim como a multiplicidade de artistas expostos e na composição de acervos, rompendo o sistema heterogêneo de abarca também o mercado de arte. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1 Edição, 1999. BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial, Revista Brasileira de Ciência Política, n.11, p. 89-117, 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004 . Acesso em: 03 de jan. 2021 BENEVIDES, Bruna e NOGUEIRA, Sayonara N. B. Dossiê: Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil em 2020, Brasil: ANTRA/IBTE. Disponível em: hhttps://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf . Acesso em: 01 de fevereiro de 2021 BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003. BUTLER, Judith P. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de T. T. da Silva e G. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. MARQUES FILHO, Adair. Arte e cotidiano: experiência homossexual, teoria queer e educação. 2007. (Mestrado) Dissertação de Mestrado em Cultura Visual. Góias: Faculdade de Artes Visuais, UFG, 2007. PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. São Paulo: Zahar, 2020. PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual: prática subversivas de identidade sexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014. SAPHIRO, Roberta. Que é artificação?. Brasília: Revista Sociedade e Estado, v. 22, n. 1, p. 135-151, jan./abr. 2007. 168 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar?, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Documento sonoro: Entrevista a Lyz Parayzo (2019) Entrevistadora: Debora Armelin Ferreira. São Paulo, 1 arquivo.m4a (28 min.), registado em Setembro de 2019. 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ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA ESTOU NA WEB, LOGO, COLABORO? ANÁLISE DE INTERAÇÕES ENTRE MEIOS NATIVOS DIGITAIS DE JORNALISMO IBERO-AMERICANOS Edson Capoano1 Pedro Rodrigues Costa2 INTRODUÇÃO Questionar-se é uma forma de evoluir. Pessoas o fazem a todo momento em âmbitos íntimos e públicos. Quando reunidas por interesses em comum, também, como em associações e coletivos. Nas carreiras laborais, não seria diferente. Profissionais de um ofício se questionam individualmente sobre suas atuações ou sobre sua função enquanto corpo de grupo. No que se refere a um ethos muito específico, o de jornalistas, professores de comunicação e investigadores do campo, fazem-no tanto em redações de jornais quanto em corredores de universidades, questionando qual seu papel na sociedade e qual o futuro do jornalismo, entre outras questões que norteiam o campo. As Ciências Sociais se dedicam há algum tempo sobre as questões do campo profissional (BOURDIEU, 2001) ou das identificações de tribos urbanas na PósModernidade (MAFFESOLI, 2010). Mas devido às mudanças significativas nos suportes de informação (uma migração irreversível do impresso e material para o eletrônico e digital) e nos ambientes de trabalho (das redações de jornais para as plataformas digitais e o teletrabalho), o campo da comunicação em geral e a carreira de jornalismo em específico se deparam com as mesmas perguntas de sempre, renovadas, além de outras novas, cujas respostas vão definir como jornalista e jornalismo serão no século XXI. Questões alheias ao campo também vão defini-lo, como a ascensão da pós-verdade como fenômeno de relativização do que é fato, a matéria-prima por excelência do jornalismo; as fake news, que disputam tempo de atenção do consumidor de notícias nas atuais plataformas de troca de mensagens; os novos movimentos populistas, que elegeram a imprensa como 1 Doutor em Ciências da Integração da América Latina - PROLAM-USP. Pesquisador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, Braga, Portugal. e-mail: edson.capoano@ics.uminho.pt 2 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho. Pesquisador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, Braga, Portugal. e-mail: pedrocosta@ics.uminho.pt 170 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA um alvos das estratégias para dispersão de crítica sobre a política; e a precarização do trabalho e do emprego para várias carreiras, incluindo jornalistas, professores e cientistas. Felizmente, graças às redes de investigação e conhecimento estabelecidas no campo científico e profissional, pode-se atualizar os parâmetros de o que é jornalismo e o que não é (HUMANES, 2003, HANITZSCH, 2007; DEUZE, WITSCHGE, 2015), alcançar panoramas globais sobre a cultura jornalística e dos jornalistas (SALAVERRÍA, 2015; HANITZSCH et al., 2011) e compará-las (HANUSCH, HANITZSCH, 2017). O projeto Worlds of Journalism Studies (WJS), por exemplo, produz conhecimento dessa forma sobre o campo desde 2007. Já em sua primeira edição, cobriu 21 países de todo o mundo, evoluindo em uma segunda fase para mais de 27.500 jornalistas entrevistados em 67 países. Na rodada atual (2021-2023), o projeto abordará os temas jornalismo, risco e incerteza e terá 110 países envolvidos, com o apoio da UNESCO e da Federação Internacional de Jornalistas. A primeira rodada de investigação (WJS 1, 2007-2011) expôs o foco nas culturas do jornalismo em geral, mais especificamente, se os valores de distanciamento e não envolvimento reinavam supremos. Como resultados, o distanciamento, o não envolvimento, o fornecimento de informações políticas e o monitoramento do governo ainda eram considerados funções jornalísticas essenciais em todo o mundo. Menor unanimidade foi percebida nos valores de imparcialidade, a confiabilidade e a veracidade das informações, bem como a adesão aos princípios éticos universais. Já aspectos de intervenção, objetivação e separação de fatos e opiniões diferiram entre culturas e países abordados. Enquanto jornalistas ocidentais apoiaram menos a promoção de valores, idéias e mudanças sociais e aderiram mais aos princípios universais em suas decisões éticas, jornalistas não ocidentais, tendiam a ser mais intervencionistas em suas percepções de papel jornalístico e mais flexíveis em suas compreensões sobre ética profissional. Na segunda edição (WJS 2, 2012-2016), deu-se prosseguimento às questões anteriores, com atualizações sobre desafios que jornalistas e organizações de notícias enfrentam na atualidade, como o lugar do jornalismo na sociedade, ética, autonomia e influências na produção de notícias, confiança jornalística nas instituições públicas e a transformação do jornalismo no sentido mais amplo. Na empreitada atual (WJS 3, 171 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 2021-2023), espera-se compreender como o jornalismo lida e se adapta ao risco e à incerteza em diferentes contextos políticos, socioeconômicos e culturais e como o jornalismo se desenvolveu ao longo do tempo nos temas autonomia editorial; influências no jornalismo; papéis jornalísticos; epistemologias jornalísticas; ética profissional; segurança e resiliência dos jornalistas; bem como as condições de trabalho. DESENVOLVIMENTO Dos muitos tópicos para discussão da cultura jornalística do século XXI, optouse por discutir como se dá a influência da internet sobre o trabalho dos jornalistas e sobre o fazer jornalístico, especificamente a atuação desse ethos nas redes sociais, espaços sociotécnicos preponderantes na troca de informação contemporânea. Pela sua arquitetura voltada a plataformas de interação, graças a ferramentas digitais de produção, publicação e compartilhamento, as redes sociais potencializam ambientes digitais socializados, nos quais seus usuários moldam sua topografia ou têm seus hábitos moldados por ela. Não à toa, uma das metodologias mais utilizadas para compreensão da sociologia digital é a ARS (Análise das Redes Sociais), que permite a compreensão destas estruturas e o uso por parte de seus atores (QUANDT, SOUZA, 2008; COSTA, 2020). Assim, como as redes sociais materiais reúnem conjuntos de atores com relações entre si, as redes digitais acrescentam vínculos digitais através do fluxo de informação entre seus membros, categorizadas de diversas formas, como unilaterais, bilaterais ou triádicas (QUANDT; SOUZA, 2008), em torno de “relações recíprocas, relações indiretas, com intermediação, com representação, com bloqueio, com mediação e com coordenação” (COSTA, 2020, p.78). O desenvolvimento do campo jornalístico (BOURDIEU, 1994) dentro das redes sociais, com grupos identitários segundo atividades laborais (MAFFESOLI, 2007) geraram cibercultura (LÉVY, 2010), assim como o faziam através de linguagem própria a tribo de jornalistas antes da digitalização (TRAQUINA, 2008). As interações entre os novos meios de jornalismo (CAMPOS-FREIRE et al., 2016; MÉNDEZ, 2019), especificamente os Ibero-americanos (SALAVERRÍA-ALIAGA, 2016), realizam 172 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA dinâmicas comuns ao seu ecossistema (CANAVILHAS, 2015), utilizando a potencialidade das redes sociais, como a co-criação de conteúdos entre seus membros (SIXTO-GARCÍA et al., 2020). Da mesma forma, a organização das redes sociais gerou toda uma linguagem e procedimentos para compreensão de seus elementos individuais e seu funcionamento como um todo. Os grafos, representações visuais de redes sociais interativas, são compostos por atores (os membros das redes, representados por esferas ou pontos), arcos (ou arestas, as conexões entre nós, geralmente representadas por linhas), nós (ou vértices, geralmente representados por várias linhas conectadas a si). Tais grafos, que se interligam com a teoria social de Simmel (COSTA, 2020), podem gerar díades (ligações simples), tríades (subgrupos de redes) ou clusters (ou hubs, nós fortemente conectados). Estas medidas de análise (ou métricas) decorrem de tais componentes básicos que compõem uma rede, revelando suas dinâmicas (AMARAL, 2016; COSTA, 2020). Vaise utilizar essa nomenclatura e conceito para analisar as interações entre estudo de caso escolhido, meios nativos digitais de jornalismo ibero-americanos. Para restringir o objeto de estudo, foi utilizado um método misto de coleta e seleção. Inicialmente, optou-se pela metodologia snowball para delimitação do corpus da investigação (QUIVY; CAMPANHOUDT, 2003). Definiu-se que os jornalistas "embaixadores" da entidade Sembramedia (sembramedia.org/equipo), colaboradores locais em distintos países da Ibero-América, seriam os propulsores do questionário junto aos meios nativos de idioma espanhol na América Latina. Já para alcançar os meios nativos digitais em Portugal e no Brasil, utilizou-se a lista do site Media Alternativos (mediaalternativos.pt) e o Mapa do Jornalismo Independente (apublica.org/mapa-do-jornalismo), da Agência Pública, respectivamente, para disparo de e-mails solicitando a resposta do questionário. Finalmente, para o contato com os meios espanhóis, utilizou-se o Digital News Report 2020 (digitalnewsreport.org) para definir os meios digitais mais influentes da Espanha, aos quais foram enviados e-mails solicitando participação neste trabalho. Neste contexto, os jornalistas/meios respondentes foram questionados sobre a cultura jornalística que desenvolvem; se assimilam a cultura do meio que estão instaladas (as redes digitais), compondo uma rede informal não planejada de produção e circulação de informação, ou se atuam de forma autônoma nos ambientes digitais. As 173 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 174 questões enviadas foram inspiradas em tais características que as redes sociais comportam em si, como sobre produção coletiva, cultura do compartilhamento, conexão com outros elos, relativização de autoria e de propriedade digitais, interação e conhecimento dos integrantes da rede, interdependência entre membros, representatividade e ação direta dos atores na rede. Assim, foram desenvolvidas as seguintes questões: Você e sua organização se consideram representantes de algum setor da sociedade ou tem um público específico? Você e sua organização tiveram ou ainda têm suporte de outro meio? Você e sua organização têm atividades conjuntas com outros meios? Você e sua organização publicam regularmente em outros meios além do seu próprio? Pode divulgar alguns dados/perfil dos usuários das plataformas de sua organização? (CAPOANO, 2021). Estudos de caso Dessa forma, foi composta uma rede unimodal (todos membros da mesma natureza) com nove atores: Sebastián Auyanet (Sembramedia, Uruguai); Carlos Herranz (El Confidencial, Espanha); jornalista não-identificado (Gerador, Portugal); jornalista não-identificado (Fumaça, Portugal); jornalista não-identificado (Interruptor, Portugal); Aleen Khan (Connectas, Colômbia); Agostinho Vieira (Colabora, Brasil); Indhira Acosta (PolétikaRD, República Dominicana); Miguel Loor (Sembramedia, Equador). A seguir, será apresentada a análise das respostas coletadas pelo questionário enviado aos atores da rede composta para este estudo, a fim de definir se estes têm e quais são os elos relacionais entre si e como eles interagem através da rede. Decidiu-se não traduzir os depoimentos pela proximidade dos idiomas português e espanhol e pela característica mestiça das redes compostas na América Latina. Análise Em relação à questão “Você e sua organização se consideram representantes de algum setor da sociedade ou tem um público específico?”, as respostas variaram entre a declaração de vínculo com atores da sociedade civil (Sembramedia e Connectas) e com ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 175 a área cultural (Gerador), com o alinhamento a pautas do terceiro setor (Colabora) e com a percepção de autonomia editorial (Fumaça). Os demais não responderam à pergunta adequadamente. Somos una organización de la sociedad civil (Auyanet. Sembramedia, 2021); Nuestro enfoque es publicar noticias originales, primicias, reportajes que no tiene más nadie. Muy pocas veces publicamos la noticia que ya está "trending". Como el editor (yo) soy de la fuente económica originalmente muchas de esas primicias que nos llegan son de temas económicos pero estamos abiertos a todo (Khan, Connectas, 2021); Sim, da área cultural (Gerador, 2021); Nosso foco é na cobertura de sustentabilidade, no sentido amplo. Usamos os ODS da ONU como base para as nossas reportagens (Vieira, Colabora, 2021); O Fumaça é um órgão de comunicação social independente, progressista e dissidente. Não representamos qualquer setor social (Viegas, Fumaça, 2021); Não nos consideramos representantes de ninguém. O nosso públicoalvo são os millennials mais novos (nascidos no final dos anos 80 e ao longo dos anos 90) e geração Z (nascidos inícios dos anos 2000) (Interruptor, 2021); Somos un grupo de organizaciones y movimientos de la sociedad civil que trabaja en diferentes ámbitos, comprendidos en: salud, vivienda y hábitat, fiscalidad, seguridad ciudadana, transparencia, niñez y adolescencia, género, y municipalidad. Nuestro fin es lograr una sociedad más justa y menos desigual. (Acosta, PolétikaRD, 2021); SembraMedia es una organización sin fines de lucro (Loor, Sembramedia, 2021); Nuestro lector tipo es el que calificamos como influyente. Aquella persona con capacidad de influir en su entorno en cuestiones políticas, dinero y ocio (Herranz, El Confidencial, 2021). Em relação à questão “Você e sua organização tiveram ou ainda têm suporte/apoio de outro meio?”, os embaixadores de Sembramedia, Connectas, Gerador e El Confidencial declararam que tal questão não se aplica às suas instituições, sendo que estes dois últimos ressaltaram a independência de seus projetos; Colabora respondeu que espera gerar associação que promova outras instituições (Ajor, em desenvolvimento); Interruptor admitiu que há laços com outras entidades, ainda que ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA informalmente, e PolétikaRD afirmou seu vínculo com Acento; finalmente, Fumaça esclareceu que foi impulsionada pela Open Society Foundations, que detém uma linha de apoio ao jornalismo. Creo que esta pregunta no aplica para Sembramedia (Ayuanet, Sembramedia, 2021). No (Khan, Connectas, 2021) Não, não tivemos, nem requeremos esse apoio (Gerador, 2021). O nome do Projeto é #Colabora e procuramos seguir esse espírito. Trocamos muitas informações com outras organizações, como as citadas acima e mais a Lupa, o Nexo e outras. No momento, estamos discutindo a criação de uma organização de mídia independente no Brasil que tem o nome provisório de Ajor. (Vieira, Colabora, 2021) Não, mas a profissionalização do Fumaça foi financiada por uma doação da Open Society Foundations. O contrato dessa bolsa e de contribuições posteriores pode ser consultado. (Viegas, Fumaça, 2021) Não formalmente (Interruptor, 2021). Contamos con el apoyo del medio Acento, que publica nuestros contenidos en su plataforma. Esto como parte de una alianza estratégica con ese medio. (Acosta, PolétikaRD, 2021) Esta pregunta no aplica en nuestro caso (Loor, Sembramedia, 2021). De ninguno. Es un proyecto independiente, controlado por un grupo de accionistas estable desde su origen, sin vinculación en otro grupo mediático. (Herranz, El Confidencial, 2021). 176 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figuras 1 e 2: nuvem de palavras obtida pela pergunta “Você e sua organização se consideram representantes de algum setor da sociedade ou tem um público específico?”; e rede obtida com a questão “Você e sua organização tiveram ou ainda têm suporte/apoio de outro meio?”. Fonte: autoria própria Em relação à questão “Você e sua organização têm atividades conjuntas com outros meios?”, para reiterar o tema das interações entre meios digitais, Sembramedia e Colabora ressaltaram seu papel de cluster ou hub em tal ecossistema; Gerador e Fumaça destacaram a interatividade entre meios, na forma de encontros jornalísticos ou na divisão de ambiente de trabalho, respectivamente; os demais meios não responderam adequadamente à pergunta. La organización que integro como consultor, Sembramedia, tiene como objetivo fomentar la sostenibilidad del ecosistema de periodistas emprendedores y nativos digitales en América Latina. Tenemos un directorio con más de 700 medios, hacemos investigaciones inéditas sobre este ecosistema para detectar problemas, tenemos una escuela virtual y fondos para que estos medios puedan sostenerse de forma financiera. Entre otros roles, también soy embajador en Uruguay, y mi tarea es monitorear qué nuevos medios surgen e incluirlos en el directorio (Auyanet, Sembramedia, 2021). Brindamos apoyo a la comunidad de periodistas emprendedores de la región a través de capacitación, oportunidades, educación, etc.” (Loor, Sembramedia, 2021) Con Connectas solamente en respuesta a una convocatoria. No es que no estamos abiertos a colaboraciones con otros medios independientes 177 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA pero (sic) se alcanza más audiencia con colaboraciones con los medios grandes, tradicionales (Khan, Connectas, 2021). Sim, frequentemente fazemos encontros jornalísticos com outros media independentes, como por exemplo as Conversas Impróprias com o Shifter (Gerador, 2021). Sim, desde o início do projeto, há cinco anos, trabalhamos em parceria com outras iniciativas, como a Amazônia Real, a Agência Pública e a Ponte Jornalismo. Inclusive, já ganhamos um Prêmio Vladimir Herzog por um trabalho em parceria com essas organizações: a reportagem "Sem Direitos" (Vieira, Colabora, 2021). O Fumaça partilha a sua redação, o Disjuntor, com outro órgão independente, a Divergente, com que colaboramos pontualmente. A discussão e partilha de ideias é benéfica para o nosso trabalho (Viegas, Fumaça, 2021). Em relação à questão “Você e sua organização publicam regularmente em outros meios além do seu próprio?”, todos os meios responderam que publica em plataformas próprias, e especificamente nelas Sembramedia, Gerador e El Confidencial; Connectas produz para outros meios; Colabora oferece conteúdo a parceiros; Fumaça e Interruptor disponibilizam produção em plataformas de podcast, parceiros como Comunidade Cultura e Arte e a Rádio Universitária do Minho, além de seus canais próprios; PolétikaRD ressaltou a sinergia com o portal Acento, além dos sites Diario Libre e Hoy. Todo lo que generamos se publica en Facebook y Twitter (Ayuanet, Sembramedia, 2021); Sí, es una forma de financiamiento para nosotros, vender reportajes, noticias y "leads" (pistas) a otros medios (Khan, Connectas, 2021); Não, só no nosso (Gerador, 2021); Regularmente, não. Mas o nosso conteúdo é aberto aos parceiros. (Vieira, Colabora, 2021); Os nossos métodos de distribuição principais são o feed de podcast do Fumaça e o nosso website. No entanto, temos uma política de republicação aberta, permitindo que qualquer pessoa republique o nosso trabalho, logo que adequadamente creditado e sem sofrer modificações. Vários órgãos o fazem, como a Comunidade Cultura e Arte e a Rádio Universitária do Minho (Viegas, Fumaça, 2021); Nós publicamos no nosso site e em formato podcast (disponível no nosso site e plataformas habituais de podcast) (Interruptor, 2021); 178 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Acento. Por igual, otros medios como Diario Libre y Hoy han publicado nuestras notas de prensa (Acosta, PolétikaRD, 2021); SembraMedia tiene un blog dedicado a brindar información para periodistas emprendedores y una sección donde se publican casos de estudios (Loor, Sembramedia, 2021); En ninguno otro, aunque hay periodistas de El Confidencial que participan en tertulias o programas como colaboradores (Herranz, El Confidencial, 2021). Figuras 3 e 4 – rede obtida com a questão “Você e sua organização têm atividades conjuntas com outros meios?”; e rede obtida com a pergunta “Você e sua organização publicam regularmente em outros meios além do seu próprio?”. Fonte: Autoria própria Em relação à questão “Pode divulgar alguns dados/perfil dos usuários das plataformas de sua organização?”, a maioria dos respondentes sugeriu buscar os dados nas páginas das instituições ou nas das redes sociais, portanto, que se coletasse os dados segundo ferramentas digitais. Já PolétikaRD esclareceu que seus usuários são jovens de classe média, residentes na República Dominicana (detalhe pertinente dada a grande imigração jovem na América Central): “O nosso público-alvo são os millennials mais novos (nascidos no final dos anos 80 e ao longo dos anos 90) e geração Z (nascidos inícios dos anos 2000)” (ACOSTA, 2021). 179 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Finalmente, Carlos Herranz afirmou que os usuários gerados pelas plataformas sociais de El Confidencial estão em torno de 33% dos acessos totais, número parecido à porcentagem procedente do motor de busca do Google: “Nuestro lector tipo es el que calificamos como influyente. Aquella persona con capacidad de influir en su entorno en cuestiones políticas, dinero y ocio” (HERRANZ, 2021). CONSIDERAÇÕES FINAIS A rede artificial (composta apenas para este estudo) conta com ao menos quatro elos originais: “Embajadores de Sembramedia”, o nó modal dos atores hispanoamericanos; a lista “Mapa do Jornalismo Independente”, o site “Mediaalternativos.pt”, nós para meios de idioma português no Brasil e em Portugal, respectivamente; e o relatório “Digital News Report Spain 2020”, pelo qual chegou-se ao meio espanhol, mas que não foi inserido no grafo por não se tratar de um meio nativo digital como os demais elos. A maior parte das interações do grafo elaborado para este texto é de natureza bilateral, ou uma rede preponderantemente composta por díades. Algumas dessas relações têm força dirigida para fora da rede composta, para atores não investigados neste trabalho (ICIJ, Agência Pública, Acento, “meios tradicionais”, Shifter, Divergente, e Disjuntor). Trata-se de uma rede composta por um número considerável de atores, com arcos bidirecionais e poucos nós, dada a potencialidade do ecossistema. Sembramedia se apresenta como o grande cluster/hub da rede, já que nasce configurada justamente para o desenvolvimento e troca com outras instituições jornalísticas. Colabora, também com esta função, faz papel semelhante no cenário brasileiro, mas como papel de nó, mais restrito às relações construídas por atividades comuns. De forma semelhante, outros atores esclareceram suas formas de interação em ambiente digital, com destaque a PolétikaRD, com um processo produtivo idealizado junto ao parceiro Acento. Comprovou-se que tais atores são representantes da sociedade civil e terceiro setor imersos na cibercultura e/ou são representantes “puro sangue” do ciberjornalismo ou nativos digitais, com missão e objetivos contidos no campo da comunicação social. A maioria das instituições são projetos originais, criados sem auxílio de outra entidade 180 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA da rede. Outra característica claramente estimulada pela cibercultura do ecossistema digital é o conhecimento dos públicos atendidos, dada a possibilidade de métrica de consumo que as ferramentas digitais permitem aos novos meios. Ainda há muito potencial para aumentar a interação entre os meios nativos digitais, seja entre os membros apresentados neste texto, seja com outros atores. Sabese, contudo, que a falta de tempo, de mão-de-obra disponível e de capital para crescimento das iniciativas impede que as instituições possam se dedicar a objetivos que não sejam sua própria missão. Indício disso é a quantidade de atividades conjuntas em nossa amostra ser baixa, mas a disponibilidade de conteúdos produzidos para parceiros ser alta, demonstrando a intenção de compartilhamento entre os atores. É inegável, portanto, que nossa amostra tem características do campo da comunicação tradicional e os dilemas do atual momento do ofício carreira, imerso em ambientes sociotécnicos e em adaptação aos fenômenos pós-modernos. REFERÊNCIAS ACOSTA, Indhira. Respostas ao questionário. In CAPOANO, Edson. Questionário a meios nativos digitais Ibero-Americanos. 2021. Disponível em https://docs.google.com/spreadsheets/d/1B5vWj2WRRCYQIO7JLeStypbL5KqY51PNz vqSrKRjsbs/edit?usp=sharing. Acesso em 13/04/2021. AMARAL, Inês. Redes sociais na internet: sociabilidades emergentes. 2016. Editora LabCom.IPF, Universidade Beira Interior. ISBN: 978-989-654-350-1 (papel) 978-989654-352-5 (pdf) 978-989-654-351-8 (epub). Disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/45388/1/Amaral_Ines_2017_redessociais-emergentes.pdf. Acesso em 13/04/2021. ANDRE, Rui. Media Alternativos em Portugal. Disponível em https://mediaalternativos.pt/. Acesso em 13/04/2021. APUBLICA. Mapa do Jornalismo Independente. 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Na capital maranhense, São Luís, a principal atração nos arraiais, é o bumba-meu-boi, em sua variedade de ritmos, sotaques, coreografias e indumentárias, percebida pela programação oficial de órgãos do estado e prefeitura - o boi está presente em maior quantidade de apresentação. Festejar o mês de junho é comum, no Nordeste, ou seja, as festas juninas fazem parte do calendário local, que celebram os santos católicos Santo Antonio (13 de junho), São João (24 de junho), São Pedro (29 de junho) e São Marçal (30 de junho) este último exclusivo de São Luís e dedicado aos brincantes de bumba-meu-boi. Neste cenário temos comidas típicas, roupas e acessórios, quadrilhas e outras danças que lembram o interior. Todavia, no Maranhão quem comanda a festa é o Boi. Nas diversas cidades maranhenses, principalmente a capital, recebe muitos visitantes que conhecem e consome a cultura local, trazendo visibilidade, movimentação ao comércio em geral e resiliência aos grupos tradicionais que (con) vivem com a dinâmica cultural. A proposta do capítulo é demonstrar como os festejos juninos e o bumba-meuboi são responsáveis por atender a indústria cultural e turística, ao mesmo tempo esta manifestação tradicional, tornando-se um dos construtores de identidade do maranhense, principalmente na capital. Além de Patrimônio da Humanidade, que adiante será explicitado. 1 Doutoranda em Processos e Manifestações Culturais. Mestra em Bens Culturais e Projetos Sociais. Professora EBTT de História do IFMA (Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão e da SEDUC/MA. 184 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA De acordo com o IPHAN, cidade de São Luís foi reconhecida como Patrimônio Cultural Mundial pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) em 1997, “por aportar o testemunho de uma tradição cultural rica e diversificada, além de constituir um excepcional exemplo de cidade colonial portuguesa, com traçado preservado e conjunto arquitetônico representativo”. Aliado ao potencial turístico das festas juninas em São Luís a partir do bumba-meu-boi, que ao longo dos anos tornou-se o principal fator de identidade do maranhense, mola propulsora no turismo. Convidamos você leitor (a) a conhecer esta manifestação popular que está vinculado diretamente à imagem territorial e identitária do maranhense que alavanca o turismo dentro e fora da capital, recebendo incentivos da esfera pública e órgãos privados. Também é sinônimo de orgulho e aglutinação dos nativos. Sendo que o maior esforço, dedicação e trabalho são da comunidade, dos brincantes. A partir de múltiplos olhares (brincante, nativa e pesquisadora), trazemos contribuições desta manifestação. Pedimos licença para colocar impressões no texto e convidamos você a pensar, interagir com este evento regional/nacional/mundial como fonte inesgotável de mediação entre o poder público, a comunidade e pesquisadores. Se possível venha conhecer o bumba-meu-boi. Aqui as denominações usadas para expressar o trabalho, será bumba-meu-boi, boi, brincadeira, brincantes, arraial que é o local onde acontecem as apresentações. Neste estudo trataremos acerca do bumba- meu-boi em São Luís do Maranhão nos festejos juninos, tendo os grupos como atração turística na cidade, com o aumento de visitantes e propagandas, dando visibilidade às apresentações e surgimento de mais grupos de bois, tornando-os a principal atração. É sabido que a maioria dos turistas que chegam ao Maranhão vem a negócios, entretanto, focaremos na vinda do mesmo, no período das festas juninas e no seu maior atrativo – o boi. Este folguedo é um misto de festa profana com religiosidade católica e afro-brasileira, como o tambor de mina. Estes sujeitos são uma construção sócia histórica cultural, o imaginário por eles produzido são as representações de comportamentos e significados que comungam (coloco-me também como nativa a fazer parte dessa dinâmica). 185 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Assim, a pesquisa qualitativa que se justifica pelo fato do objeto em foco, é também objeto da realidade compartilhada na cidade, sendo assim, objetos da pesquisa social fazem parte da realidade social construída ao longo do tempo. Uma vez que, utilizamos a contextualização simbólica do boi, sentimentos e compartilhamentos para narrar este estudo. Ao longo da história, em cada localidade em que o bumba-meu-boi aparece ganha características próprias, o que ocorreu também no Maranhão, surgindo assim classificações de ritmos e característico afro indígena, denominados sotaques, todavia, os grupos não se reconhecem totalmente, com esta classificação, por regra. Adiante serão explicados os sotaques. Sotaque é ritmo, estilo e características dos grupos. A festa do boi é uma das mais conhecidas no Brasil e recebe nomes diferentes de acordo com a localidade. No Amazonas, por exemplo, chama-se Boi Bumbá, no Rio de Janeiro, boi de Mamão e assim por diante. No caso do Maranhão, é bumba- meu-boi. Historicamente o boi é um auto dramático, teatral, que por muito tempo foi representado em campo aberto ou em residências particulares, durante o período natalino, como referência das festividades cristãs medievais, que homenageavam o nascimento de Cristo. Já no estado, as festividades são no mês de junho e se estendem o ano todo com apresentações avulsas, de acordo com contratos. O boi tornou-se um fator identitário para o maranhense, onde os grupos crescem, ou seja, aparecem a cada ano, principalmente na capital. Um levantamento da Secretaria de Cultura identificou 450 grupos de Bumba-meu-boi em 70 dos 217 municípios maranhenses. A festa junina é pensada, planejada e organizada interna e externamente. Isso demonstra como esta manifestação é apreciada, possui múltiplos significados e signos para a população. O BUMBA-MEU-BOI, CORPOS, PERFORMANCE E ESPAÇOS CULTURAIS O estado do Maranhão encontra-se na região Nordeste, faz divisa com os estados do Piauí, Tocantins e Pará, além do oceano Atlântico. Estabelecido entre a região Norte e Nordeste, (também conhecido como meio Norte) possuindo características das duas regiões, até mesmo cultural. É o segundo maior estado do 186 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Nordeste e o oitavo do Brasil; sua capital é São Luís do Maranhão, a cidade mais populosa. No Maranhão, as primeiras festas de bumba-meu-boi são registradas no século XVIII, período de ocupação do sul, pelo ciclo do gado. É possível dizer que foi nesse período que surgiu a lenda de mãe Catirina e pai Francisco que vai pautar o enredo, personagens da festa ou brincadeira. Assim, ao longo do enredo, vão surgindo outros personagens para compor “a lenda de Catirina” ou o auto do bumba-meu-boi, como índias/índios, caboclos, vaqueiros, pajés, fazendeiro e outros. Assim, o auto constitui uma representação cênica que assume dimensões diferentes que são descritas pelos próprios brincantes e organizadores, por isso assume em cada localidade sua especificidade; sendo, no entanto, o tema central mantido: as relações entre Catirina, Chico e o boi. Esta uma manifestação cultural performática faz parte do folguedo, que conta uma história/enredo onde cada indivíduo performático utiliza seus corpos e adereços como simbologia da sociedade que faz parte. Sendo assim, os personagens são sujeitos conhecidos pela população, seja indígena, vaqueiros, homem e mulher do campo, além dos animais que constituem a localidade e cotidiano ali estabelecido. A identificação indivíduo/personagem no folclore pode ser um dos elementos que torne com que o boi seja tão popular. As figuras/sujeitos dentro da comunidade tem certo prestígio, seja como brincante ou parte da diretoria do grupo. Cada um tem a sua performance e status. A abordagem sobre performance de acordo com Bauman (2008) identifica três na qual se encaixa no trabalho é da Antropologia, ele explica que a performance como um evento de tipo especial e marcado, como rituais, festivais, feiras, espetáculos, mercados, e assim por diante. O boi se encaixa perfeitamente nesta performance. A concepção central nesta abordagem é que as performances culturais são ocasiões nas quais os significados e valores mais profundos de uma sociedade recebem forma simbólica, são corporificados, performatizados e exibidos perante uma audiência para contemplação, manipulação, intensificação ou experimentação. (BAUMAN, 2008, 03). O Bumba-meu-boi foi registrado pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como bem imaterial da cultura brasileira em 2011. O 187 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA registro, como define o IPHAN (2011), é a identificação e produção de conhecimento sobre o bem cultural pelos meios técnicos mais adequados e amplamente acessíveis ao público, permitindo a continuidade dessa forma de patrimônio. Sem dúvida é a manifestação cultural mais popular para o maranhense, basta ver a programação dos locais da apresentação, o boi impera, em maior quantidade, aguardado por uma multidão, principalmente aqueles grupos que possuem mais admiradores/seguidores, seja do sotaque de matraca, orquestra ou outro. Esta brincadeira, entretanto, já foi marginalizada e, ao longo do tempo, tornou-se um dos maiores referenciais de identidade cultural do estado. Os sotaques ou sonoridades de bumba-meu-boi mais conhecidos no estado são: zabumba, pandeirões, matraca, baixada, costa de mão e orquestra. Diferenciam-se também pela coreografia, instrumentos e indumentárias. A força e a simbologia desse folguedo popular são demonstradas, pela sua abrangência em grande parte do território estadual, constituindo traço identitário de diversas comunidades e tem no mês de junho seu auge. Em 2019, o complexo cultural do bumba-meu-boi foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Desta forma, “a possibilidade de partilharmos patrimônios culturais como os membros da nossa sociedade não nos devem iludir a respeito das inúmeras descontinuidades e diferenças provindas de trajetórias, experiências e vivências específicas”. (Velho, 1980, p. 16). O envolvimento da comunidade boieira foi fator primordial para este reconhecimento. Como transito entre grupos folclóricos, captamos diálogos dos dirigentes: “não é fácil e barato colocar uma brincadeira na rua, são muitas despesas, fazemos por amor e não por lucro”. Em vista disto, uma rede comunitária se organiza sociabilizando saberes e afazeres. A tradição cultural renova-se e mantém-se. Com o advento do turismo cultural, a cidade de São Luís, demais cidades maranhenses, com seus atrativos naturais e históricos, explora também, a cultura local. Nesse sentido, o folguedo do Bumba-meu-boi é inserido no circuito. As manifestações culturais passam a estabelecer um diálogo estreito com o mercado de bens simbólicos, nos espaços de produção e consumo turístico. De marginal, o boi passa a ser visto como patrimônio regional e nacional, e traz recursos e reconhecimento para todo o estado. 188 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Nesse sentido afirmamos que o boi se destaca como uma expressão da cultura popular maranhense como uma marca ativa e presente no cotidiano local, como afirma Ferretti (2011, p.19): “o boi é a maior festividade da cultura popular local e atrai grande número de participantes, envolvendo suas vidas durante boa parte do ano”. O termo sotaque no bumba-meu-boi indica o estilo rítmico, a forma de “tocar”, “dançar”, “brincar”, as especificidades nas indumentárias, nos personagens, criando características próprias a cada “sotaque”, que os diferenciam entre si. Para a pesquisadora Michol Carvalho, “representam os estilos, as formas, as expressões predominantes nos grupos de bumbas, enfim, a sua maneira de ser.” (Carvalho, 1995, p.47). Acerca da afirmação, salienta-se que. No Maranhão, o Bumba-meu-boi é uma referência cultural presente em todo o Estado, com variações regionais. Um levantamento realizado pela Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Maranhão identificou 450 grupos de Bumbameu-boi em 70 dos 217 municípios maranhenses. Apesar de não refletir a realidade global do Estado, os dados obtidos demonstram a importância dessa expressão cultural e a intensidade com que é vivida pelos maranhenses. Assim, a variedade de estilos foge à categorização feita por pesquisadores do Bumba-meu-boi do Maranhão que convencionou uma divisão dos grupos em cinco sotaques: Ilha, Guimarães, Baixada, Cururupu e Orquestra. (IPHAN, 2011, p. 25). O boi se organiza nas etapas ou ciclos: ensaio, batizado, apresentações e morte do boi. Antes e durante a etapa ensaio, surgem às ideias, personagens, toadas e tudo mais vão ganhando vida. Os brincantes no decorrer dos ensaios vão moldando os seus personagens, sejam eles pessoas ou animal, caso do boi, burrinha, cazumbá e outros que fazem parte do enredo. O encenar e/ou a representação cômica existente na festa do boi é denominada de auto. Remete-nos ao roteiro básico, à história original ou à história tradicional, com pitadas de modernidade em alguns casos. Como falei anteriormente, também sou brincante e há 29 anos me transformo em uma vaqueira (campeadora) que conduz o boi pelo terreiro, pelo arraial e este juntamente com os demais personagens, brinca e alegra São João, onde nativos e turistas se aglomeram as noites para assistir diversos grupos de manifestação cultural, além do boi. Nestes locais de apresentação buscamos observar, registrar e conversas com segmentos diferentes como brincantes, público e turista para saber sua recepção e percepção da festa popular. 189 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA O deslocamento dos brincantes e público para os espaços festivos - o arraial torna-se um evento e transforma a cidade, com aumento de carros, principalmente à noite, vendedores ambulantes, ônibus contratados pelas brincadeiras, cheiro de pólvora com as bombinhas, muitos enfeites e comidas regionais completam este cenário. Os arraiais, seus espetáculos formam e tem público garantido durante o mês de junho. Cada território, sujeito e brincadeira performatiza sua parcela de participação. As performances culturais são profundamente reflexivas, na medida em que são formas culturais sobre a cultura, formas sociais sobre a sociedade; elas são memoráveis e replicáveis, servindo assim como mecanismos de continuidade cultural; e são notavelmente eficazes em constituir públicos, disseminar conhecimento, elicitar comprometimentos e envolvimentos participativos, levando as pessoas à ação, e mais. (BAUMANN, 2008, p.04). A cultura é um fator vital para estabelecimento e diferenciação de um povo para outro, caso este, do ludovicense/maranhense, a formação da identidade quanto lugar de pertença. Estes constroem seus personagens com as indumentárias, gestual e encenam. Sendo assim, , os personagens são sujeitos da população, seja indígena, afrodescendente, trabalhador, homem e mulher do campo, além dos animais (boi, burrinha) que constituem a localidade e cotidiano ali estabelecido e seres místicos. Os espetáculos promovidos no mês de junho fazem parte de nosso cotidiano, enquanto nativos, também experimentamos sensações a busca pelo prazer de conhecer e consumir outras culturas, mesmo dentro do país. Desta forma, as festas juninas trazem toda uma preparação da cidade que vai do íntimo das famílias em usar adereços, compartilhar roupas parecidas ou iguais, comungando sentimentos e uma preparação para assistir aos festejos juninos à noite. Há toda uma preparação prévia para se assistir aos festejos juninos. Esta preparação vai desde ver a programação, escolher o local, roupas a vestir, quem vai dirigir o carro e outros. As festas propiciam um momento singular, de feriado, final de semana, ou seja, algo excepcional. O turismo em São Luís no período junino 190 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Na década de 1970, a capital sofreu um intenso processo de urbanização. Como em todo espaço urbano, as mudanças ocorridas na geografia da cidade São Luís interferem e interagem na vida de seus moradores. Surgem novas formas de relação entre as pessoas, novos vínculos com o espaço de moradia, novas abordagens da cultura local, novas fontes de renda e acompanhando o restante do país, surge oportunidade nos setores de comércio e serviços, onde se destaca o turismo. A cidade vem crescendo em termos de instalação de empresas, população, prédios e tudo que tange a uma cidade urbana/industrial, ainda preservam e trazem consigo a cultura popular afro indígena em confluência com seu tempo, portanto a continuidade, as transformações convivendo e as manifestações culturais constituindo um elo entre esses mundos, como afirma Velho (2003, p.27) assim, “na sociedade complexa, particularmente, a coexistência de diferentes mundos constitui a sua própria dinâmica”. Nitidamente, percebe-se que São Luís, nas festas juninas, enfeita-se, fica mais colorida, o comércio se diversifica para atender a tendência do período como roupas e adereços com motivos juninos, camisetas, chapéus bordados de vaqueiros, brincos e tudo que lembre fogueira, boi, bandeirolas e os santos festejados. A cidade brilha com os enfeites e paira a festa seja na escola, na comunidade ou nos arraiais espalhados nos bairros. Os agentes envolvidos com a produção dessa manifestação de cultura popular, os brincantes e público, com o crescimento do turismo na capital, perceberam uma oportunidade de agregar valor à cultura local, atrair mais visitantes, gerar receita e manter acesa a chama da tradição local. Mesmo que as mudanças provocadas pelo turismo possam causar uma sensação de saudosismo, em relação à forma com que eram feitas as brincadeiras de Bumba-meu-boi, em entrevistas, brincantes e público assumem que o turismo impulsiona e dá certo “orgulho de mostrar o que é nosso”. O boi como patrimônio vem de uma trajetória de lutas e conflitos de seus sujeitos/brincantes. Vale salientar que com a patrimonialização e salvaguarda a brincadeira local, comunitária tem adequações e interferências para atender uma demanda, no entanto, não a modifica a ponto de perder seus símbolos e sentidos. A promoção turística oficial do boi contempla a dimensão social, cultural e econômica com o estabelecimento de uma rede de ações que intervenham nas 191 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 192 manifestações populares tradicionais, e também promovam integração entre todos os segmentos sociais que reproduzem e reinventam suas tradições. No período junino, São Luís, transforma-se em um grande teatro. O teatro no Bumba-meu-boi do Maranhão é o “teatro do Boi” na forma em que na brincadeira ele se organize, inclusive territorialmente, afirma Borralho (2002, p.26). A festividade do boi tem a sua máxima no período junino que performatiza um grande arraial, a vida no campo estilizada, sujeitos que incorporam personagens rurais e se montam com suas indumentárias para (re) criar o auto do bumba-meu-boi. Vale ressaltar que as festas juninas também é uma festa religiosa, há o pagamento de promessas por graças recebidas, simpatias que são dedicadas aos santos, como a Santo Antônio, por ser conhecido como o “casamenteiro”, um sincretismo religioso onde o catolicismo e de matriz africana fundem-se em homenagem a entidades e Santos. Brinca-se em homenagem a eles. Na Antropologia esse olhar ao “nativo e o seu natural” causa um estranhamento e torna-se objeto de análise do antropólogo, estranhamento também ao nativo com certas práticas culturais, sensações e percepções as quais também compartilho. O boi artefato vive um ritual até mesmo de batismo e outros, sentidos naturalizados aos maranhenses e exótico/diferente/espetáculo a quem assiste. Daí a importância de procurar perceber “como os indivíduos da sociedade investigada constroem e definem a sua realidade, como articulam e que peso relativo têm os fatos que vivenciam”. (VELHO, 1980, p.16). A cultura pulsante e diversificada que há na localidade é mais que mola propulsora para escrever e descrever ritos, sutilezas e características da sociedade ludovicense, o qual Thompson (2011, p.165) afirma que o estudo dos fenômenos culturais pode ser pensado como o estudo do mundo sócio histórico constituído como um campo de significados. Com a pesquisa o meu “eu” percebeu o “outro” e em alguns pontos refletiu-se nele. Ao mostrar o performático nas festas juninas, o sentido que faz aos de “cá”, que transmite espetáculo para os de “lá” em uma troca cultural. Os grupos folclóricos de cultura popular iniciam seus ensaios após o carnaval e os intensificam no mês de maio. É comum nos bairros, praças e associações de moradores ouvirem sons dos ensaios, falas, vozes que vão se entendendo e melhorando a coreografia para o mês de junho, o tão aguardado período junino. A rotina nos fins de ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 193 semana é de preparação, danças e brincadeiras. Geralmente a comunidade participa ativamente dos preparativos ou torce por seu grupo que representa a localidade. Após os ensaios vem o batizado do boi (o padre dá as bênçãos ao grupo, ou rezadeiras), então as apresentações até a finalização que é morte do boi, realizada meses depois. Por conseguinte, o Bumba-meu-boi redefine-se na lógica de produção e consumo cultural, destacando-se como um elemento central de atratividade turística para a cidade de São Luís, dialoga com outros circuitos culturais e deles se retroalimenta, num processo de tradução da experiência. Tais fronteiras são possibilidades de contato com o que está do outro lado, não significam limites, nem separações Agregam, assim, características que promovem a cidade e o estado, possibilitando ao turista o contato com uma gama de manifestações culturais, culinária típica, belezas naturais e patrimônio histórico local. Por fim, as experiências vivenciadas, observações e pesquisas percebem como o boi transmite alegria, identidade, territorialidade e orgulho de quem observa/acompanha e de quem é brincante da brincadeira. São representações da sociedade aqui especificada, constituindo identidades. CONSIDERAÇÕES FINAIS – FIM DA FESTA O estudo proposto trouxe como temática o bumba-meu-boi e o São João do Maranhão, responsável por atender a indústria cultural e turística ao mesmo tempo em que o folguedo tornou-se um dos construtores de identidade do maranhense, principalmente na capital. Diante do que foi exposto o turismo cultural no panorama apresentado, o consumo do bumba-meu-boi pelos turistas beneficiaria todos os envolvidos, aos grupos de bois, a comunidade e aos setores públicos/privados dentro e fora da capital. Não existe uma inocência por parte dos fazedores de cultura que tiram “proveito” para visibilizar seu grupo, vender DVD, camisas personalizadas, indumentárias e tudo que gere renda e auxilie nos custos com a brincadeira. A cidade patrimônio, os bens culturais são visibilizados e consumidos. O São João no Nordeste é considerado um fato social. Em São Luís, este período é planejado, promovido e aguardado pelos fazedores de cultura e comunidade ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA em geral. Notadamente, novos grupos de bumba-meu-boi surgem, em média temos 500 grupos de bois no estado de sotaques diferentes. Este fato demonstra que a manifestação é dinâmica e corrobora para a identidade local. Diante da dinâmica das festas e dos espaços transformados para tal finalidade adquirirem formato de espetáculos, atraindo grande número de público. Em suma, a valorização do Bumba-meu-boi ocorreu por um processo de institucionalização e regulamentação por parte do estado, em que tal promoção está vinculada também, ao turismo. Assim, as brincadeiras típicas do estado passaram a fazer parte da indústria cultural, verdadeiros espetáculos. Com o incremento do turismo, o Bumba-meu-boi é elevado ao patamar máximo de consumo e de visibilidade por mídias, governo e patrocinadores. A visibilidade dos festejos juninos e o apreço pelo bumba-meu-boi é uma das características recorrentes das propagandas que vendem o São João no Maranhão, mostrando através de construções históricas, mercadológicas e simbólicas que as festas juninas giram em torno do boi, toda a sua complexidade de cores, sons, coreografias e bordados. As propagandas veiculadas nos meios de comunicação nos remetem sempre a imagem do boi e toda a sua dimensão. Como se o visitante ao se deslocar no Maranhão tem a “necessidade” ou é “atraído” a conhecer a manifestação que cultua o boi e este é o maior representante do estado. Assim, as camadas populares outrora perseguidas, são valorizadas e visibilizadas a partir do seu fazer cultural. Considera-se que o fenômeno de transformar manifestações culturais populares em patrimônio em bem consumível traz conflitos, reconhecimento e batalha simbólica. Os sujeitos/brincantes e a comunidade continuam com sua maneira de fazer a brincadeira, se reinventando sem deixar de ser manter sua tradição, memória e forma de fazer a brincadeira do bumba-meu-boi. O turismo relatado em entrevistas e conversas não é considerado malefício, a brincadeira se renova a cada ano, cultura é dinâmica com a festa popular que a cada ano ocorre é um evento que cria o sentimento de pertencimento. A brincadeira é apreciada pelo público nativo ou não, que participa em cada um deles de uma forma específica, em todas as fases do ciclo da festa (ensaio, batizado, apresentação e morte) notadamente, na circulação pelos arraiais. 194 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Ao utilizar a etnografia nos espaços festivos no período junino, possibilitou considerar sons, escutas, imagens, performances e dinâmicas da festa e da cidade aproximando a realidade vivida pelos nativos, comunidade e visitantes. A experiência resultou em um reflexo de “eu” no “outro”, percebi ritos performáticos compartilhados com indivíduos daquele espaço festivo. Não só a manifestação cultural do boi nos identificava, mas todo o cenário ali presente. Portanto, o espaço do arraial configura-se pela representação simbólica e as relações de sons com a apropriação dos espaço/arraial e as práticas sociais ali compartilhadas. Como brincante e pesquisadora a percepção da brincadeira consumida pelos visitantes e o seu direcionamento para este fim. Mesmo assim, a brincadeira no seio da comunidade ainda ressoa identidades e diferencia-se do “boi de casa”, aquele que trazemos significados, brincadeira e prática religiosa do “boi da rua”, este o espetáculo ao máximo, ao apogeu de meses de ensaios, idealização e confecção das indumentárias. Com base no que foi apresentado o bumba-meu-boi tornou-se o principal expoente de atração para os visitantes que chegam ao estado, principalmente na capital. Resta-nos refletirmos os impactos desse consumo cultural as comunidades e a forma de fazer dos populares que tenha sentidos a sua identidade construídas a partir de seu imaginário e até que ponto os benefícios e malefícios do consumo cultural desta prática - a brincadeira do boi, resinificará na sociedade maranhense. A sociedade no todo é mais do que uma sociedade em movimento, observa-se construções sociais relacionadas com a construção simbólica sobre o real, no qual sujeitos sócio histórico dão sentido ao mundo, construindo identidade social. É São João, brincadeiras, brincantes se encontram e forma um grande espetáculo chamado festas juninas, referência aos nativos, atrativo para visitantes. A análise realizada neste trabalho aponta quando assistimos uma apresentação de bumba-meu-boi, mesmo não conhecendo os sotaques que os define e diferencia, perceberam as expressões no rosto, os gestos, o cantar, sorrisos, e coreografias que mostram que o gestual popular é delineado, relacionado à produção histórico-cultural da comunidade. O corpo fala a linguagem do popular. O boi é memória, pertença, território, gerador de capital e de certa forma orgulho. 195 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Os resultados da pesquisa foram uma experiência única enriquecedora, constatado que a sociedade ludovicense se traduz em uma gama de processos históricos e refletivos na cultura. Com padrões e sujeitos sociais de consequências políticas, arranjos e obstáculos que impõem estratégias de aproximação, caso as festas juninas. Finalizando, o objetivo foi alcançado, a objetividade tanto quanto da subjetividade foram pautados e presentes. Espero que sirva para outros pesquisadores aprofundarem nas lacunas e discussões. Assim, conclui-se que, quando os sujeitos históricos, nas suas interações, com a cultura, contribuem para a criação de padrões de sociabilidade compartilhados. Com as inserções realizadas em campo constatamos o universo sócio cultural e simbólico que remete a identidades e territórios que se sobrepõem nas festas juninas, atraindo turistas e promovendo economicamente a todos os envolvidos, ou seja, os fazedores de cultura. REFERÊNCIAS BAUMAN, Richard . A poética do mercado público: gritos de vendedores no México e em Cuba. Antropologia em primeira mão, v.103. Florianópolis: PPGAS/UFSC, 2008. BORRALHO, Tácito. Freire. O teatro do boi no Maranhão – brincadeira, ritual, enredo, gestos e movimentos. Tese (Doutorado) Escola de Comunicação e Arte. Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, 2002. CARVALHO, Maria Michol Pinho de. Matracas que desafiam o tempo: é o bumbameu-boi do Maranhão, um estudo da tradição/modernidade na cultura popular. São Luís:[s.n.].Brasil.1995. FERRETTI, Sergio. Bumba-meu-boi e religiosidade no Maranhão. In: CUNHA, Stela de Almeida (org.). Boi de zabumba é a nossa tradição. São Luís: SETAGRAF, 2011. IPHAN. Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão. Dossiê do registro como Patrimônio Cultural do Brasil / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. São Luís: Iphan/MA, 2011. THOMPSON. John. B. Ideologia e cultura moderna. Editora Vozes. (9ª ed.). Rio de Janeiro. Petrópolis. Brasil.2011 VELHO, Gilberto. (Org.). O Desafio da Cidade: novas perspectivas da antropologia brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus. V. 1. 1980, 180 p. VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2003. 196 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA SOY LOCO POR TI: A AMÉRICA LATINA COMO CONCEITO E SUAS RESSIGNIFICAÇÕES NAS COMPOSIÇÕES MUSICAIS (1945 – 2020) Günther Richter Mros1 Rafaella Chueri Abreu Rodrigues2 Pedro Quinteiro Uberti3 INTRODUÇÃO O conceito de América Latina surgiu no Século XIX, em parte como obra da geopolítica francesa, em parte como elemento de coesão cultural dos povos em contraposição à América anglófona. No início do Século XX essa identidade se reforçou sob as luzes da civilisation française em oposição à barbárie germânica (MROS, 2019), quando, durante a Grande Guerra, as simpatias latino-americanas se voltaram para a França e seus aliados. Já durante a Segunda Guerra Mundial, a América Latina se viu novamente dividida sob dois polos culturais, ou seja, entre os germanófilos e os panamericanistas pró-Estados Unidos (MOURA, 2012). Este capítulo de livro estuda as constantes ressignificações da identidade latino-americana após esse período das duas Guerras Mundiais por meio das letras de músicas, desde canções ufanistas das virtudes do povo, passando pelas canções de protesto, pelo papel destinado aos latinoamericanos na Guerra Fria — de novo entre dois polos —, pela pobreza endêmica e pela violência urbana, até chegarem à massificação identitária de tempos mais recentes. A música, como elemento de identificação cultural, tem sido estudada no âmbito das diversas ciências sociais e humanas. É proposta aqui uma reflexão sobre algumas letras de artistas latino-americanos que representam caminhos e descaminhos da ressignificação do conceito de América Latina. Cabe ressaltar, todavia, que não houve a Prof. Dr. Günther Richter Mros – Coordenador do Grupo de Estudos em Instituições e Processos Decisórios nas Relações Internacionais (GEIPRI), vinculado ao DGP/CNPq, e professor adjunto no Departamento de Economia e Relações Internacionais (DERI) na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: gunther.mros@ufsm.br. 2 Rafaella Chueri Abreu Rodrigues (graduanda de Relações Internacionais do 7º semestre) – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: rafachueri@gmail.com. 3 Pedro Quinteiro Uberti (graduando de Relações Internacionais do 7º semestre) – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: pedro.uberti@gmail.com. 1 197 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA intenção, nesse estudo, de esgotar repertórios seja de artistas ou de países em específico, uma vez que esta tarefa seria inexequível para uma pesquisa com jovens historiadores. O caminho escolhido, portanto, foi o de elencar músicas e artistas que representaram elementos conceituais, que pudessem ser sistematizados em uma teia semântica para construção de narrativa histórica, acerca da ressignificação do que é entendido como América Latina. Nesse sentido, cabe aqui esclarecer que a ressignificação é “um ato de lançar olhar sobre o objeto histórico tendo a cultura [...] como fator de mudança social [...]” (MROS, 2019, p. 38). Destarte, ressignificar é dar um novo sentido e novas leituras a conceitos já estabelecidos por meio da memória histórica (PESAVENTO, 2008), possibilitando que a cultura seja um vetor das afirmações identitárias. O texto é dividido em dois períodos de tempo. No primeiro deles, são apresentadas cinco ideias que formam elementos ressignificadores ao longo do Século XX, facilmente identificáveis em suas forças narrativas, sobretudo nas canções de viés político utilizadas como instrumento de resistência aos governos autoritários que se sustentaram por muitos anos na América Latina. Com a reabertura democrática ocorrida entre os anos 1980 e 1990 é possível identificar um segundo período temporal para a construção narrativa do texto. Eram novos tempos de uma constante ressignificação conceitual por meio da música. Este período caracterizou-se por reafirmações de antigas canções em concomitância a movimentos de massificação cultural ocasionada pela globalização e pela difusão de novas mídias. A música latino-americana apresenta uma diversidade muito interessante de cenários sociais a serem refletidos, debatidos e estudados, e permite um passo para além da mera contemplação. São documentos históricos que podem ser literalmente ouvidos desde há muito tempo até hoje, cantados e constantemente ressignificados. AS CINCO IDEIAS RESSIGNIFICADORAS Entre as décadas de 1930 e 1950, catalisado pela ascensão das ferramentas midiáticas de massa, emergiu em toda América Latina um movimento de afirmação das identidades nacionais, que encontrou na música um importante instrumento de difusão. 198 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Assistiu-se ao resgate dos folclores nacionais a partir dos novos meios de comunicação, o que possibilitou a consolidação dos chamados gêneros musicais representativos, como o samba carioca no Brasil, o tango na Argentina e o bambuco andino na Colômbia (ALVARADO, 2004, pp. 54-59). Nesse contexto, era de se esperar que o conceito de América Latina fosse renegado nas canções de artistas latino-americanos em prol dos motivos nacionais. A análise das músicas do franco-argentino Carlos Gardel, e da chilena Violeta Parra reforçam tal inferência. Gardel canta os ídolos nacionais — El Sol del 25 (GARDEL, 2000); A Mitre (GARDEL, 2001a) —, seu amor pela pátria — Mi Buenos Aires Querido (GARDEL, 1946) — e a dor que é deixá-la — Mi Tierra (GARDEL, 2001b). Parra, por sua vez, apresentava-se como um símbolo da contradição entre a vida campesina e urbana, além de denunciar as mazelas e injustiças sofridas pelo povo chileno (ALVARADO, 2004, p. 63). O escopo das canções, quando ultrapassa a nação, restringe-se ao entorno geográfico imediato, como os pampas gaúchos em Gardel e os vizinhos andinos em Parra. A análise das músicas latino-americanas mostra que a partir da década de 1960 o conceito de América Latina torna-se cada vez mais presente nas composições, passando a influenciar e ser influenciado, enriquecer e ser enriquecido pelo trabalho dos artistas da região. O tom cantado a partir de 1960 permanece praticamente imutável até meados da década de 1980, e a leitura atenta das composições permite a abstração de cinco grandes ideias que, agregadas, ressignificam o conceito de América Latina para seus artistas. São elas: a idealização dos povos nativos; a denúncia de opressão; a exaltação da resistência; a necessidade de comunhão entre os povos; e a exposição das reivindicações populares4. A idealização dos povos nativos é marcada pelo resgate da memória dos mais diversos grupos habitantes da região, desde Mapuches5 a Guaranis6. O canto é 4 A abstração de tais ideias partiu da identificação, feita pelos autores, da alta incidência de certos conjuntos de palavras-chave presentes em dezenas de músicas de artistas latino-americanos que faziam referências diretas ou indiretas à América Latina. Para a idealização dos povos nativos têm-se índios, luta, libertação etc.; para opressão, morte, fome, pobreza etc.; para resistência, revolução, guerra, luta etc.; para a comunhão entre os povos, povo, irmão, unidade etc.; para as reivindicações populares, paz, justiça, liberdade etc. 5 Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra na região sudoeste da Argentina e boa parte do centro-sul do Chile (SICHRA, 2009, pp. 106-110). 199 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA inicialmente melancólico, relembrando o sofrimento desses povos tanto no passado, pelas forças colonizadoras, quanto no presente, pela mão das próprias nações latinoamericanas independentes. Seu modo de vida é ameaçado pelo avanço da sociedade de consumo, e sua cultura corre o risco de ser apagada. Rompi tratados, traí os ritos / Quebrei a lança, lancei no espaço / Um grito, um desabafo – “Sangue Latino” (RICARDO; MENDONÇA, 1973; interpretado por Secos & Molhados); Um selvagem / levanta o braço / abre a mão / e tira um caju / um momento de grande amor / de grande amor / Copacabana / Copacabana / Louca total e completamente louca / A menina muito contente / Toca a Coca-Cola na boca / um momento de puro amor / de puro amor – “Joia” (VELOSO, 1975) Em um segundo momento, no entanto, a trajetória histórica dos povos originários é exaltada como exemplo de luta e resistência. A herança ibérica é renegada, de modo que os povos latino-americanos passam a ser entendidos como que herdeiros de um legado direto de Charruas7 e Aruaques8, não apenas de portugueses e espanhóis. Dale tu mano al indio / Dale que te hara bien / Te mojara el sudor santo / De la lucha y el deber / La piel del indio te enseñara / Toda la senda que habras de andar – “Canción Para Mi América” (SOSA, 2009a); De ti aprendí Hermano / Querido indio de aquí / De ti aprendí yo a resistir / Cruel opresión / [...] Indio Hermano / Tú me has ayudado a revivir / Em mi pecho la llama / De la libertación – “Indio Hermano” (LOS JAIVAS, 1971); Talvez um dia o silêncio dos covardes / Nos desperte da inconsciência deste sono / E o grito do Sepé na voz do povo / Vai nos lembrar, que esta terra ainda tem dono – “América Latina” (ZANATTA; ALVES, 1987; interpretado por Clemar Guglielmi e Grupo Itapevi). 6 Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra na região sul da Bolívia, praticamente todo território paraguaio, o nordeste da Argentina, boa parte da região Sul e porções litorâneas do Sudeste brasileiro, além de parte do nordeste uruguaio (BRANDAO, 1990, pp. 53-57). 7 Grupo étnico nativo que vivia, grosso modo, junto à margem ocidental do Rio Uruguai (GARCIA; MILDER, 2012, p. 3). 8 Grupo sociolinguístico nativo que hoje se encontra em boa parte do território de Venezuela e Colômbia (SICHRA, 2009, pp. 454-456). 200 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA É a segunda grande ideia, da constante e multifacetada opressão do povo latinoamericano, que impulsiona a idealização dos povos nativos — a América Latina do período necessitava de símbolos de resistência. Isso porque o cenário latino-americano descrito e denunciado pelas canções era entendido como insuportável por seus cantores. As composições apontam direta ou indiretamente para dois fatores responsáveis por tal situação. Internamente, tem-se o estabelecimento e a manutenção de regimes autoritários por toda América Latina. Externamente, a lógica sistêmica da Guerra Fria renegava a América Latina ao posto de Terceiro Mundo, vulnerável aos interesses e pretensões de ambos os blocos antagônicos que protagonizavam o conflito9. Os efeitos dessa opressão materializavam-se nas mais diversas formas. Pela censura e pelo exílio: El nombre del hombre muerto / Ya no se puede decirlo, quién sabe? / [...] El nombre del hombre muerto / Antes que a definitiva noite / Se espalhe em Latino América / El nombre del hombre es pueblo / El nombre del hombre es pueblo – “Soy Loco Por Ti America” (NETO; CAPINAM; GIL, 1968; interpretado por Caetano Veloso); Amigo é coisa pra se guardar / Debaixo de sete chaves / Dentro do coração / Assim falava a canção que na América ouvi / Mas quem cantava chorou / Ao ver seu amigo partir – “Canção da América (Unencounter)” (NASCIMENTO, 1979). Assim como pela pobreza e pela fome: Eu sou apenas um rapaz latino-americano / Sem dinheiro no banco, sem parentes importantes / E vindo do interior / [...] Mas não se preocupe meu amigo / Com os horrores que eu lhe digo / Isso é somente uma canção / A vida realmente é diferente / Quer dizer / A vida é muito pior – “Apenas Um Rapaz Latino Americano” (BELCHIOR, 1976); Eu sou um homem comum / Eu sou um homem do sol / Eu sou um African man / Um South American man / A fome continental / Miséria que o Norte traz / A fome que a morte vem / A fome não vem da paz / O ódio que o ódio tem / Se espalha bem mais veloz / Que a 9 Como mostra Bandeira (2019, p. 214-223), o posto de Terceiro Mundo atribuído à América Latina durante a Guerra Fria fica claro ao analisarmos, por exemplo, a política externa dos Estados Unidos para com a região. Tendo como mote a defesa do hemisfério contra o comunismo, os Estados Unidos apoiaram política e economicamente o estabelecimento e manutenção de diversos regimes autoritários na América Latina. Portanto, os fatores internos e externos da opressão, cantados pelos artistas latino-americanos, se retroalimentavam, sendo impossível compreendermos os regimes autoritários desprezando a análise da conjuntura na qual estes foram estabelecidos. 201 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA água que a chuva traz / Que o grito da nossa voz – “Planeta Blue” (NASCIMENTO, 1987). O papel das canções, contudo, não era apenas o de denunciar a opressão das populações latino-americanas. Por meio de suas letras, cantores e bandas clamavam pela resistência popular em suas mais diversas expressões. A imobilidade não era considerada uma opção, de modo que as massas eram convocadas abertamente para romper com as estruturas as quais estavam submetidas, seja por meio de greves e protestos, seja por meio de lutas armadas, cujas explícitas alusões os censores não foram capazes de suprimir. Desacordonar compañeros / Desacordonar compañeros / Compañeros de las minas / Faculdades, oficinas / Sembrando ahora los /... usinas ... / Las secuelas e baches / De las secuelas e baches / La esperança campesina / Que camina, que camina – “Desacordonar” (VANDRÉ, 1969); De outra vida aguerrida / Que morre mais lá na frente / Da cor de ferro ou de escuro / Ou de verde ou de maduro / A primavera que espero / Por ti, irmão e Hermano / Só brota em ponta de cano / Em brilho de punhal puro / Brota em guerra e maravilha – “Canto Latino” (NASCIMENTO; GUERRA, 1970). A ideia da resistência, além de ser evocada a partir da idealização dos povos nativos, também passava pelo martírio de líderes latino-americanos ressignificados como libertadores. Sobe monte desce rio / Vida e barbas por fazer / Sobe monte desce rio / Sobe monte desce rio / E um dia de repente fez da morte mais viver / Quem temia teu caminho / Não podia te prender / E mesmo por traição / Pensando que te matava / No meu corpo americano / Fincou mais teu coração / Che – “Che” (VANDRÉ, 1968); Lo pagará la unidad / De los pueblos em cuestión / Y al que niegue esta razón / La Historia condenará / La Historia lleva su carro / Y a muchos nos montará / Por encima pasará de aquel / Que quiera negarlo / Bolívar lanzó una estrella / Que junto a Martí brilló / Fidel la dignificó / Para andar por estas tierras – “Canción Por La Unidad Latinoamericana” (MILANÉS, 1985). Outra grande ideia, fixada nas composições como forma de resistência, é a da necessidade de comunhão entre os povos latino-americanos. Tal ideia parte da 202 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA constatação de dois fenômenos. O primeiro, histórico, é de que os povos latinoamericanos foram divididos pelas forças colonizadoras, como meio de facilitação do domínio ibérico. O segundo, conjuntural, advoga que os regimes autoritários da região constantemente jogam as diferentes populações umas contra as outras, a fim de legitimarem seus governos. Nisso está implícita a ideia de que juntos os povos latinoamericanos são mais fortes, sendo sua união fator determinante para o rompimento com as forças internas – regimes autoritários – e externas – lógica da Guerra Fria – que os oprimem. Realizaron la labor / De desunir nuestras manos / Y a pesar de ser hermanos / Nos miramos con termo / Cuando se pasaron los años / Se acumularon rancores / Se olvidaron los amores / Parecíamos extraños / Qué distancia tan sufrida / Qué mundo tan separado / Jamás se hubiera encontrado / Sin aportar nuevas vidas – “Canción Por La Unidad Latinoamericana” (MILANÉS, 1985); Sol de Alto Perú, rostro Bolivia, estaño y soledad / Un verde Brasil, besa mi Chile, cobre y mineral / Subo desde el Sur hacia la entraña América y total / Pura raíz de un grito destinado a crecer y a estallar / Todas las voces todas, todas las mano todas / Toda la sangre puede ser canción en el viento / Canta conmigo, canta, hermano americano / Libera tu esperanza con un grito em la voz – “Canción Con Todos” (SOSA, 2009b). A ideia de comunhão acabou por escapar aos limites dos versos, concretizandose no estabelecimento de redes de cooperação entre artistas latino-americanos de diferentes nacionalidades. Exemplo de tal fenômeno foi a gravação do álbum “Corazón Americano”, em 1985, por León Gieco, Mercedes Sosa e Milton Nascimento, que contou com a regravação de composições de outros artistas da região, como a música “Volver A Los 17”, da chilena Violeta Parra. As canções, além de clamarem pela resistência do povo, também serviam como palco para a exposição das reivindicações populares. Dessa forma, ecoavam o grito das ruas, protestando diretamente por melhores condições de vida para os povos latinoamericanos. As três grandes metas eram a paz, a justiça e, principalmente, a liberdade. Eram estas as curas para as mazelas sofridas pelas populações da região, e os artistas consideravam-se peças-chave na propagação de tais ideais. A paz almejada pode ser entendida como o desejo pelo fim da opressão em suas diversas materializações, enumeradas anteriormente, tais como a fome e a pobreza. A 203 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA justiça reclamada diz respeito à reparação dos infortúnios historicamente derramados sobre os povos latino-americanos. A liberdade, a musa maior das composições, é cantada ao mesmo tempo como condição necessária para a obtenção de paz e justiça, além de fruto direto de ambas – é, simultaneamente, meio e fim. Sua materialização está diretamente ligada com o desmantelamento dos regimes autoritários então vigentes na região. Eu sou um homem comum / Eu sou um homem do sol / Eu sou um African man / Um South American man / A fome continental / Miséria que o Norte traz / A fome que a morte vem / A fome não vem da paz / O ódio que o ódio tem / Se espalha bem mais veloz / Que a água que a chuva traz / Que o grito da nossa voz – “Planeta Blue” (NASCIMENTO, 1987); Danos valor para pelear / Por lo que es nuestro y nos quieren sacar / Danos el maíz que alimenta, el agua que es vida / Y a lana que abriga del frío / Danos la paz, la justicia, el respeto a este pueblo / Sufrido que es tuyo y es mío / Sol, mi Padre Sol, calienta el aire / Con tu llama secular / Ayúdanos a derrotar / A los que quieren hacernos el mal – “Oración Al Sol” (RAMIREZ; LUNA, 1972a; interpretado por Mercedes Sosa); ¡Ay! Sudamérica mía / Que tu tempo se acerca / Sudamérica mía / Con fronteras de flores / Y fusiles de mentira / Díganlo como yo / Alcen la bandera y conquistemos hoy la liberación / Ándale paisano y conquistemos / Y la liberación, hoy la liberación / Díganlo como yo: ¡ya la libración! – “Alcen Las Banderas” (RAMIREZ; LUNA, 1972b; interpretado por Mercedes Sosa). A conjugação das cinco grandes ideias previamente expostas permite a abstração do significado do conceito de América Latina para seus musicistas. Antes de tudo, fica clara a oposição conceitual da América Latina em relação ao Norte, encarado inclusive como fonte externa de seu sofrimento. A América Latina é a materialização da espirituosidade de Ariel, de Rodó (2003), lutando contra a preponderância do utilitarismo frio de Calibã, que Santos (2014, p. 41), afirma representar as sociedades industriais do Norte, entre elas os Estados Unidos, país ligado diretamente com o estabelecimento de regimes autoritários na região (BANDEIRA, 2019, pp. 214-223). Em segundo lugar, nota-se a construção do conceito cantado quase que homogeneamente entre os anos 1960 e meados de 1980. A América Latina é uma terra sofrida, historicamente subjugada e espoliada. É lugar de um povo que foi e ainda é 204 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA mantido separado, pela ameaça que, junto, configura a seus opressores. É lugar de um povo que mesmo pobre, faminto e reprimido, é aguerrido, ávido a resistir e honrar sua herança nativa e seus heróis libertadores. Sobretudo, América Latina constitui-se como um conceito agregador, o amálgama que une brasileiros, chilenos, argentinos e colombianos. É ao mesmo tempo, portanto, símbolo de fraqueza e força, pobreza e riqueza, opressão e resistência, de constantes e complexas contradições. Por isso é cantada como o “porão da América”, por Caetano Veloso (1968), e como o “lixo ocidental” por Milton Nascimento (1970), ao mesmo tempo em que é exaltada por Veloso em “Soy Loco Por Ti America” (NETO; CAPINAM; GIL, 1968). Constitui-se, finalmente, em terreno fértil da nostalgia para aqueles que eventualmente a deixaram (BELCHIOR, 1978; RAMIREZ; LUNA, 1972c). A partir de meados da década de 1980, o desmantelamento de diversos regimes autoritários da região passou a influir nas composições dos artistas latino-americanos. O fenômeno materializou-se nas composições com a ascensão das ideias de esperança e conquista. Finalmente, aqueles desejos gravados nos versos tornavam-se cada vez mais realidade, o que foi amplamente comemorado no meio musical. O tom da vez passou a ser a recepção calorosa das redemocratizações em curso, sem deixar de pressionar pela chegada da democracia naqueles países que por ela ainda lutavam. Canta no dejes que muera / Que y a la primavera alumbrando el mapa / Que América canta / La canción de un tiempo de libertad / Va cruzando los cielos nuestra canción / Pájaro liberado que busca amor / Y encontrará la mano del indio marginado / Y del labrador / En el llanto materno la encontrarás / En los ojos del niño que busca pan / En la sangre minera y en la plageria obrera / De justicia y paz – “Tiempo De Libertad” (SOSA, 2009c); Siento que todo está cambiando a nuestro / alrededor / Respiro un aire cada vez mejor / Que exalta el grito de mi corazón / Hacia esta región / Me he despertado susurrando una nueva / canción / Y mi ventana se llenó del sol / Salgo a buscar el hecho y la razón / De tanta emoción / América despierta nuevamente / Y no es que sea feliz su despertar / Pero es que esta mañana se le advierte / Su decisión unida de luchar – “Buenos Días América” (MILANÉS, 1996). A América Latina cantada durante as décadas de 1960, 1970 e 1980 gradualmente se transformava em uma América Latina ressignificada. Dessa forma, 205 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA novos cantos passaram a figurar em meio àqueles que já eram cantados. O sentido desses cantos e, principalmente, o sentido que estes cantos atribuíam à América Latina, serão analisados a seguir. NOVOS TEMPOS PARA UMA CONSTANTE RESSIGNIFICAÇÃO É possível identificar duas faces ressignificadas nas músicas latino-americanas desde os anos 1990, que representam bem a dualidade do povo que habita esse espaço geopolítico. De um ângulo, tem-se uma face apaixonada e rítmica, que demonstra o lado alegre tão associado à América Latina, com sua mistura de cores e povos, com forte componente mestiço, proveniente de um processo de simbiose e transculturação10, desde o passado colonial (GONZÁLEZ, 2013). Por outro lado, existe também a representação triste e reflexiva, que canta até os dias atuais o passado comum cheio de violências e submissões. Esse passado é explorado a partir da categoria analítica do espaço de experiência, proposta por Reinhart Koselleck, em que “todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas que atuam ou que sofrem” (KOSELLECK, 2006, pp. 306). A música, assim como a história, constróise a partir da esperança e da recordação, vinculando o passado e o futuro. O passado segue sendo atual, na medida dos acontecimentos incorporados e relembrados. Sendo assim, existe uma integração de distintas realidades latino-americanas, construídas a partir da política, da economia e da cultura. Na década de 1990, como continuação de um movimento de ressignificação identitária em torno do conceito de América Latina, a música difundiu temas comuns, como: a exaltação de heróis nacionais e povos nativos; o ideal da liberdade frente à opressão dos países ricos; e a crítica ao cenário de violência e morte. Músicos que já produziam nas décadas de 1970 e de 1980 continuaram cantando essa América Latina em busca de libertação e autonomia, ao mesmo tempo em que exaltavam a beleza e a fertilidade das terras latinoamericanas, com um ascendente tom de esperança. A canção “Es Sudamérica Mi Voz”, de Ariel Ramirez e Félix Luna, e interpretada por Mercedes Sosa (1990), retrata bem o 10 Fenômeno que se caracteriza pela assimilação cultural de um grupo pela influência de outro. TRANSCULTURAÇÃO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2021. Disponível em: https://www.dicio.com.br/transculturacao/. Acesso em: 26/02/2021. 206 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA sentimento de unidade e identificação latino-americana, ao exaltar os povos e heróis sulamericanos, como também clama por paz e liberdade. Soja estadounidense / y yo crecí en esta tierra / Vibran en mí / Indios milenios / y español de los siglos / Corazón mestizo / que tarde en su extensión / Hambriento justicia, paz y libertad / Yo por Mis palabras / y La Cruz del Sur / bendice el canto que yo canto / como un largo crucifijo popular – “Es Sudamérica Mi Voz” (SOSA, 1990). A sensação de dependência latino-americana em relação aos poderes exploradores se manifesta nas músicas a partir de um forte grito por liberdade, palavra esta que aparece com expressiva frequência nas composições, como a eterna busca, o motivo da esperança de um futuro melhor. Negros, vermelhos escravizados / Moleques de rua, são panos largados / Sexualidade cobrando ilusão / Deuses e povos, vasta escuridão / Liberdade para conduzir / Nossas vidas é o que queremos / LIBERTAR nossas correntes / Esquecer o que sofremos – “Libertar Nossas Correntes” (GRITANDO HC, 1996). A reivindicação por liberdade frente aos regimes autoritários, muito presente nas músicas entre as décadas de 1960 até meados dos anos 1980, permanece nas décadas de 1990 e de 2000, com a diferença de que agora, após a conquista da democracia, passouse a reivindicar liberdades mais pontuais. Uma variedade de músicas populares difundidas, principalmente nos centros urbanos, foi submetida a processos de modernização, que renovaram a forma de reflexão e composição. Temáticas presentes em menor grau nas composições do século XX, passaram a ser pautadas com maior força na virada do século. Na voz de Violeta Parra, por exemplo, pode-se observar uma composição centrada na condição de mulher e na construção do feminino, seguida de estratégias para a ampliação da presença feminina, tanto na vida nacional quanto na carreira musical. Abre-se a discussão para a agenda da emancipação da mulher, a ação da indústria, e a negociação de identidades e discursos públicos: "Yo soy a la chillaneja, señores para cantar / Si yo levanto mi grito, no es tan solo por gritar / Perdóneme al auditorio si ofende mi claridad / Cueca larga militar" (PARRA, 2005). Observa-se uma dicotomia entre tradição e modernidade, na qual os opostos convivem e se necessitam (GONZÁLEZ, 2013). O espaço de experiência, que traz o 207 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA passado em tom reivindicatório, está presente, assim como o horizonte de expectativa, que corresponde ao futuro presente, voltado para o que pode ser previsto (KOSELLECK, 2006, pp 310). Acontecimentos passados tornam-se presentes, na medida em que se mostra uma insatisfação com a realidade e uma perspectiva de mudança para o futuro. Busca-se, portanto, construir os caminhos para a mudança, liberdade e conquista do espaço. Nos anos 1990 e 2000, a agenda de emancipação da mulher, cantada por Violeta Parra já em meados do Século XX, adquiriu maior alcance, como pode-se observar nas músicas de Elza Soares (2015) e Rita Lee (1999). E quando tua mãe ligar / Eu capricho no esculacho / Digo que é mimado / Que é cheio de dengo / Mal-acostumado / Tem nada no quengo / Deita, vira e dorme rapidinho / Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim – “Maria da Vila Matilde” (SOARES, 2015). Mexo, remexo na inquisição / Só quem já morreu na fogueira / Sabe o que é ser carvão / Eu sou pau pra toda obra / Deus dá asas a minha cobra / Hum, hum, hum, hum / Minha força não é bruta / Não sou freira, nem sou puta / Porque nem toda feiticeira é corcunda / Nem toda brasileira é bunda / Meu peito não é de silicone / Sou mais macho que muito homem – “Pagu” (LEE, 1999). Outra continuidade, ainda muito presente nas músicas, diz respeito à identidade dos povos nativos. Mantém-se os relatos de sofrimento, exploração e violência, que perduram desde os tempos da colonização. Encontra-se um elo com esses povos, visto que todo habitante deste entorno geográfico continua sofrendo, mesmo que a configuração das relações tenha se alterado. Já não existe mais o colonialismo propriamente dito. Contudo, parte das estruturas de exploração se mantém, materializando-se em uma assimetria nas relações, pautada na dependência da periferia para com as potências do Norte global11. Zapateca, Potossi, febre do ouro frenesi / Seu tesouro Inca, Maia, Asteca, Tupi / Nascemos pra servir / O regime escravagista mais duradouro foi por aqui / Quem te descobre te descobre / Levaram todo seu cobre e quem é que cobre esse rombo? / Pergunta pro Colombo / O que resta é só o escombro da história que te assombra / Só a sombra do passado que ainda carrega em seu ombro – “América Latina” (BRAZZA, 2018). 11 Relações teorizadas por Immanuel Wallerstein, na obra O Sistema Mundial Moderno, a partir do conceito de divisão internacional do trabalho, advinda da estrutura capitalista, que divide o mundo em três estamentos hierárquicos: centro, periferia e semiperiferia (SARFATI, 2005, p. 140) e (MARTINS, 2015). 208 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Outro ponto crítico, constantemente citado nas músicas, diz respeito à violência estrutural perpetuada pelo próprio Estado. A fome, a miséria, e a marginalização social, são temas recorrentes, principalmente nos ritmos urbanos. O rap é o estilo musical que hoje mais apresenta essas pautas nas canções. Rappers como Djonga, Francisco El Hombre, Emicida, entre tantos outros, cantam a luta diária nas ruas, na periferia e nas favelas pela sobrevivência, o sangue derramado pela violência e o esquecimento dos que mais precisam de atenção dos governos. É que as ruas me lembram / Massacre da Serra Elétrica / Eles tentam roubar, é o massacre da cerca elétrica / E o rap preocupa com povo ou preocupa com a métrica / Mas os tentáculos do polvo é o que vai te afundar – “O Mundo é Nosso” (DJONGA, 2017). O dólar vale mais que eu / Eita, fudeu / Vale mais que eu / Se essa vida se resume a dinheiro / Corre corre o dia inteiro para a vida se pagar / Faço o quê, se acordo sem trocado / Sem din din fico bolada / Sem tutu não valho nada – “Tá com Dólar, Tá com Deus” (HOMBRE, 2016). Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro / Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro / Eu sonho mais alto que drones / Combustível do meu tipo? A fome / Pra arregaçar como um ciclone (Entendeu?) / Pra que amanhã não seja só um ontem / Com um novo nome – “AmarElo” (BELCHIOR; EMICIDA; MAJUR; PABLLO VITTAR, 2019). Apesar de todas as mazelas, observa-se que o latino-americano carrega ainda o sentimento de esperança, sempre presente, por um futuro melhor, projetando um horizonte de expectativa a partir das experiências passadas. Esse sentimento representa, portanto, uma continuidade de tempos anteriores, nos quais se via o futuro sob as lentes da utopia — tal como pode se observar anteriormente na constante reivindicação por ideais como paz, justiça e liberdade. Ademais, ainda se tem a outra face da música latino-americana, a que mistura ritmos, e que se faz alegre e dançante. Uma representante dessa face é a cantora colombiana Shakira, que pretende representar o amálgama cultural latino-americano nos palcos. Em entrevista dada à rede de TV norte-americana MTV News12, no ano de 1999, MTV NEWS (@MTVNEWS). “Today is @shakira 's birthday! Back in 1999, she spoke with us on how Latin culture influences her sound and movement, but told us her music is a fusion of many different 12 209 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Shakira afirmou: "Não acho que a música pertença a um determinado local, não precisa pertencer. Minha música é sobre fusão, é isso o que sou, eu sou fusão, sou feita de fusão”. O lirismo musical, com as composições apaixonadas e românticas, também esteve presente, desde o sertanejo dos anos de 1970 e 1980, até os dias atuais. É manifestado em todos os gêneros musicais, sendo amor uma das palavras mais repetidas nas letras. O amor pela pátria, o amor romântico, ou o amor por determinadas identidades sociais se mantém presente, como o orgulho de pertencer a um grupo marginalizado, porém forte. A questão do racismo, por exemplo, é um ponto importante, que é cantado como denúncia, atrelado a uma exaltação da cor e da cultura. O nosso som não tem idade / Não tem raça e nem vê cor / Mas a sociedade pra gente não dá valor / Só querem nos criticar pensam que somos animais / Se existia o lado ruim hoje não existe mais / Porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real / Essa história de porrada, isso é coisa banal / Agora pare e pense, se ligue na responsa / Se ontem foi a tempestade hoje vira a bonança / É som de preto, de favelado / Mas quando toca ninguém fica parado – “Som de Preto” (AMILCKA, 2020). As fiestas são o que há de mais conectado entre as diferentes nações, tanto no continente americano como fora dele. Músicas sobre festas e ritmos dançantes dominam o pop e o reggaeton, estilos que se misturam e proporcionam parcerias entre diversos cantores como, por exemplo, a canção “Sim ou Não” de Anitta em parceria com Maluma (2016), uma união entre Brasil e Colômbia; a música “Sin Pijama”, de Becky G (2018) — cantora mexicana — com Natti Natasha — de origem dominicana —, entre outras. Parcerias como essas certamente não se restringem ao espaço latino-americano, tendo em vista as diversas assimilações de estilos norte-americanos e europeus. Esse fenômeno, conhecido como massificação cultural13, é um dos efeitos da globalização. Tais processos promovem certa homogeneidade cultural no mundo como um todo, focando em aspectos mais generalistas e descaracterizados de localidades e identidades nacionais. parts of who she is.” Disponível em:<https://twitter.com/MTVNEWS/status/1356648935461421063>. Acesso em: 2 fev 2021. 13 Conceito cunhado pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer. O sentido convencional referese à concepção de produção da obra de arte como esfera cultural dissociada da produção cultural derivada da nascente indústria de cultura (MARANHÃO, 2010). 210 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Notam-se, portanto, dois movimentos quanto às ressignificações de identidades. Para dentro do Estado, é possível visualizar maior divisão de subgrupos identitários, com características de classe social, gênero, entre outros. Esse movimento se dá na direção contrária à da identificação nacional, que, desde quando presente nas décadas anteriores, abarcava o território e a sua população como um todo, em parte devido às lutas por democracia e liberdades individuais. Agora as reivindicações passam mais pela dimensão micro, refletindo uma multiplicação de identidades intermediárias e específicas, a fim de torná-las mais visíveis e reconhecidas como parte importante do todo. O segundo movimento se dá para além do Estado, e possui um caráter mais generalizante e massificado. Não se tem mais tão presente o antagonismo para com o Norte global, mas um intercâmbio cultural cada vez mais forte, e a busca pela assimilação e influência, apresentando uma identidade mais genérica, proveniente de um movimento de homogeneização da cultura contemporânea. A música pop circula livremente pelo mundo, deixando para trás os nacionalismos, e apelando para problemas e sensibilidades comuns à contemporaneidade, gerando influências, cruzamentos e hibridismos (GONZÁLEZ, 2013) — por mais que a denúncia das contradições NorteSul não tenham cessado por completo. Por mais que haja um movimento em direção à homogeneização, não são abandonados os elementos característicos da cultura nacional, nem as suas raízes folclóricas, visto que heróis nacionais ainda são lembrados, povos nativos ainda são exaltados e tidos como exemplo de superação. Todavia, essas idiossincrasias culturais não são exportadas para além das fronteiras. O que ocorre, na maioria das vezes, é que as músicas de caráter mais amplo, que seguem padrões importados do exterior, são as que mais se disseminam e fazem sucesso fora do espaço regional. A cultura e a identidade latino-americanas configuram-se como aspectos muito ricos, que ainda são lembrados dentro do espaço regional, entretanto, não há força para fazer-se ouvir essa representatividade globalmente. Eu sou um erro que não se conserta / A ferida aberta em carne viva / Uma descoberta lucrativa / Sou Patativa, Tarsila do Amaral / Mais de 500 anos de um problema social [...] Sou um legado infeliz, Machado de Assis / A locomotriz dessa louca matriz / Descentes Zulus e Zumbis, Meretriz / Com a mania de achar que aqui é Paris / E zombar 211 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA da raiz, dizimar Kaiowas, Guaranis – “Filhos da Pátria” (BRAZZA, 2014). A música latino-americana se mostra plural tanto em seus temas como em sua representatividade. Constrói-se sobre um processo de ressignificação do passado e idealização do futuro, apresentando momentos de continuidade e descontinuidade quanto às agendas. Cada gênero musical também possui suas características marcantes, representando as camadas nas quais constroem e se consolidam. A vontade de lutar e a sede por justiça nunca saíram de cena. Existe uma forte consciência da condição e uma constante crítica a ela. CONSIDERAÇÕES FINAIS Já foi dito por Marc Bloch (2001) que a história é a ciência que estuda o Homem no tempo. Ao estudar as ressignificações conceituais da América Latina, por meio das letras de músicas ao longo de pouco menos de um século, o objetivo do capítulo foi propor uma construção argumentativa que pudesse localizar a cultura latino-americana no tempo e no espaço do imaginário que forjou a identidade, que permite o reconhecimento frente aos reflexos do espelho. Aos jovens historiadores envolvidos nesse estudo, coube a tarefa de buscar, captar, e auscultar os ecos do passado por meio de todas as músicas pesquisadas. As teias narrativas tecidas por meio dessas músicas representam o elemento essencial da tarefa do historiador, a de escrever a história. É um exercício de pesquisa que ensina o respeito aos antepassados. É enorme o desafio de novos e constantes estudos sobre a relação entre cultura e identidades regionais, sobretudo no que diz respeito à América Latina, tão diversa e tão mutável. As músicas são um testemunho de que o lugar das coletividades humanas é construído e reconstruído constantemente, e cantado em verso e prosa ao longo do tempo histórico. REFERÊNCIAS: ALVARADO, Rodrigo Torres. Cantar la diferencia. Violeta Parra y la canción chilena. Revista musical chilena, v. 58, n. 201, p. 53-73, 2004. 212 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA AMILCKA. Som de Preto — Funk Brasil Bem Funk. [2020]. Disponível em: <https://open.spotify.com/track/321K5lmG4pbW8YZBXuKigB?si=8bc58d1e96464851 >. Acesso em: 15 fev. 2021. ANITTA; MALUMA. Sim ou não: Sim ou não [2016]. Disponível em: <https://open.spotify.com/album/79GzhuqPAz4gohzwmFDK6b?highlight=spotify:track :4FxumkF81ICxITeqxx4nK9>. Acesso em: 14 mar. 2021. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. 853p. BECKY G.; NATTI NATASHA. 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Na crítica de língua inglesa, autores como Terry Eagleton (1991, p. 4-5, 7, 11-31) e Ian Watt (2010, p. 53-54) enfatizam a importância que periódicos como o The Tatler (1709-11) e o The Spectator (1711-12) tiveram na formação da opinião pública burguesa de princípios do séc. XVIII, atraindo escritores e indivíduos de grupos sociais muito diversos para o debate cultural e político. Segundo Ian Hargreaves (2014, p. 12-13), o acontecimento histórico de maior importância na origem dessas transformações teria sido a ampliação da liberdade de imprensa, impulsionada, em 1695, pela expiração da lei de controle pelo Estado (o Licensing Act). Pouco mais de meio século depois, essa crescente liberdade seria consagrada como um dos principais pilares das democracias modernas ao ser incluída na Primeira Emenda à Constituição dos EUA a partir de 1791. Ainda segundo Hargreaves (ibid.), essas mudanças não teriam acontecido sem a participação incessante de escritores e intelectuais, muitos dos quais acabaram adquirindo o estatuto de verdadeiras personalidades nacionais, como Joseph Addison, Richard Steele, Jonathan Swift e Daniel Defoe; ou como Thomas Paine, cuja militância cultural e política ultrapassou em muito os limites nacionais, estendendo-se entre os dois lados do Atlântico. Tendo em conta essas questões, meu propósito aqui é discutir trechos do Jornal Dobrabil (1977-1981), de Glauco Mattoso, procurando pensar algumas relações possíveis entre o “papel do escritor” e seu suporte, isto é, entre as tarefas intelectuais e Doutor pela Unicamp. É professor de Teoria Literária do Departamento de Letras da Unifesp – Guarulhos-SP. E-mail: gscudeller@unifesp.br 1 218 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA políticas que se atribui a jornalistas, poetas e romancistas e este que foi um dos suportes materiais privilegiados da sua atuação moderna até pelo menos o último quarto do século XX: o “papel”. Conjuntamente, gostaria de discutir como é que o Jornal Dobrabil pensa a América Latina e as tarefas dos escritores a partir dessas questões, tendo em vista o contexto de repressão e censura vivido na maioria dos países da região nos anos de circulação do jornal. O JORNAL DOBRABIL Talvez a maneira mais rápida de apresentar o JD e introduzir estas questões seja recorrendo a alguns trechos de depoimentos dados pelo próprio Glauco Mattoso, seu autor e editor. Esses depoimentos normalmente aparecem nas seções de cartas ou do editorial do próprio jornal ou, ainda, como no caso do trecho a seguir, em uma coluna, ocupando o espaço daquelas duas seções. Escreve Glauco (“UM JOLNAR ARTELNATIVO”, f. 432): Em janeiro de 1977, no Rio, dei inicio à publicação de um novo orgam nanico, e nem por isso menos orgástico: o Jornal Dobrabil. Não era livro, pois só tinha uma folha. Não era folheto, pois seria o numero ‘hum!!!’. Não era exatamente periódico, pois não teria sequencia: todos os números seriam numero ‘hum!!!’. Não era impresso, nem manuscripto, nem ilustrado. Era pura e simplesmente dactylographado, como qualquer stencil para mimeographo. Partindo da premissa de que ‘em arte nada se cria, tudo se copia’, substitui o mimeographo pela copiadora, e adoptei o systema xerox. [...] A forma (texticulos e grafismos dactylographados) e o conteúdo (sátiras, parodias e blagues escatológicas) eram maneiros como o maneirismo, mas com o suporte e o vehiculo resultavam em algo diferente. Cada numero resume-se a duas folhas de 33 x 44 cm, dactylographadas numa Olivetti Linea 88 typo paica, reduzidas ao tamanho officio e reproduzidas, em frente-e-verso, numa copiadora Xerox ou similar. Inicialmente a tiragem foi de dez exemplares. A distribuição, gratuita, pelo correio, em envelopes fechados. [...] o formato officio preserva a característica básica do vehiculo: quem recebe um exemplar offset copia em xerox e passa à frente. (MATTOSO, 2001). 2 A edição de 2001 não possui numeração de página. Adotei aqui o mesmo princípio de numeração usado pelo autor, sendo “f.” para o número do folheto, com acréscimo de “v” depois do número, quando se tratar do verso. Também optei por manter a ortografia original dos textos, justificada por Glauco em inúmeras passagens do Jornal e em outros materiais publicados por ele. 219 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Essas observações preliminares de Glauco são bem conhecidas e frequentemente retomadas, às vezes literalmente, por ele e por outros autores. Por exemplo, como no texto que serve de apresentação à 2ª edição do JD em livro, publicado pela Iluminuras, em 2001 (a 1ª edição saiu em 1981). Aqui, transcrevo apenas o trecho que completa a passagem anterior: Falava-se muito, então, de ‘poesia marginal’. Centenas de novos poetas imprimiam livros e periódicos por conta própria, em mimeógrafo, e intercambiavam esse material por todo o país, de mão em mão ou pelo correio, à margem do esquema de distribuição das editoras comerciais. A princípio o DOBRABIL se confundia com essa faixa de produção e foi incluído na categoria de ‘imprensa marginal’. [...] Após quatro anos de folhas soltas mandadas pelo correio, reuni a coleção toda num álbum luxuoso, impresso em cuchê e publicado em 81. A partir daí ganhei reputação de poeta vanguardista-maldito, ou pornô-erudito, como queiram. (MATTOSO, 2001). Os dois trechos dão uma boa ideia de como o confronto com os suportes e meios de publicação constituía o foco de experimentação literária de Glauco. Começando pela máquina de escrever, Glauco passa ao papel “stencil”; desse, ao mimeógrafo; e daí, para o correio. Com o tempo, modifica o processo: começa com a máquina de datilografar, agora com marca e modelo (uma “Olivetti Linea 88 typo paica”); em seguida, passa para a copiadora, também uma máquina com marca (“Xerox”); é nela que manipula os blocos de texto, reduzindo-os para o tamanho ofício, até obter a prova final. Finalmente: fotocopia, envelopa e manda pelo correio. O uso do envelope não é supérfluo: ajuda a preservar o conteúdo, o remetente e o destinatário, driblando, eventualmente, a censura. O resumo de Glauco é ligeiro, bastante conciso. De uma ponta a outra dele percebemos a linha de um avanço técnico que coincide com a ampliação do acesso econômico do autor e do público a esses meios. Uma máquina de escrever custava certamente muito menos que uma máquina de fotocopiar, lá pelo fim dos anos 1970, mas bem mais que um aparelho e material para reprodução com “stencil”. O custo de nenhum deles, porém, se compararia ao de um “offset”. Aliás, nem seria o caso: uma fotocopiadora pode ser colocada a serviço de uma clientela média, cobrando-se pela cópia. Mas uma máquina de offset precisa justificar seu alto custo, sendo empregada mais frequentemente na impressão em escala, em geral de materiais que exigem elevada 220 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA qualidade de reprodução. Continua Glauco, na sequência da primeira passagem mencionada: Na verdade, ultimamente o JD passou a ser photolithado e impresso em offset, para maior nitidez na redução. Mas o formato officio preserva a característica basica do vehiculo: quem recebe um exemplar em offset copia em xerox e passa à frente. O alcance do Jornal Dobrabil vem a ser, com efeito, bem mais amplo que o restricto circulo no qual se tornou um vehiculo de massa (cinzenta, of course!) (MATTOSO, 2001, f. 43). A diferença no custo de aquisição e de acesso aos meios reflete de algum modo o próprio estatuto do trabalho que se realiza e circula através deles: uma arte barata, acessível e de circulação pequena, dirigida a um público também pequeno, cuja qualidade do material também varia em razão dessas diferenças de acesso aos meios. Por exemplo, o que pode ser dito do maquinário, vale também para o papel. Ao falar do material utilizado, Glauco menciona primeiramente o “stencil”. Mas, antes dele, fala do papel “ofício”, normalmente usado em máquinas de escrever: um almaço ou A4, provavelmente. Depois, vêm as cópias em 33 x 44 cm: pelas medidas, alguma coisa semelhante ao C3, de hoje. É nelas que Glauco montava, de fato, o jornal. Essas cópias eram novamente reduzidas, frente e verso, ao tamanho ofício, utilizando Xerox, depois offset; só então é que eram replicadas e distribuídas. Por fim, quatro anos depois, na edição luxuosa do “álbum” em livro, aparece o papel “cuchê”. Seria importante não perder de vista todas essas diferenças de qualidade e operações relacionadas ao papel. O sulfite, que é o tipo de papel mais barato, vem antes de todos os outros. É nele que se bate à máquina. No polo oposto, o cuchê é um tipo de papel quimicamente tratado de modo a ficar com uma superfície brilhante, o que melhora o acabamento, a legibilidade e a duração do papel; é o tipo de papel empregado na indústria, principalmente para impressão de propaganda e embalagens. Mas o estêncil é um tipo de papel de composição material e operação inteiramente diferente dos dois. Seu funcionamento se parece muito mais com o da chapa de impressão do offset, ou com o do uso que Glauco faz do C3, no processo de diagramação do Dobrabil. Seu funcionamento não é o de um papel primário (Cf. DERRIDA, 2004, p. 223-224), aquele que se utiliza para fazer os esboços ou a primeira versão de um 221 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA projeto, mas o de uma matriz, isto é, o de uma versão final, a partir da qual deve se reproduzir as cópias de um trabalho pronto. Observando os comentários de Glauco, notamos que a função do papel primário é cumprida pelo papel sulfite, batido diretamente à máquina. Glauco não menciona o uso de qualquer tipo de caderneta ou bloco de anotações para esboço. Ainda que pudessem existir, o importante é que Glauco foca a escrita à máquina como o ponto de partida do seu trabalho de criação, ainda que o processo principal de elaboração do Jornal (a sua diagramação) aconteça mesmo sobre o C3. Outro ponto importante é que, observando a reprodução do jornal na edição em livro de 2001, nada indica que as mudanças descritas por Glauco tenham acontecido no período de circulação do Dobrabil, entre 1977 e 1981, já que os 53 fascículos do jornal apresentam uniformidade de impressão. Neste caso, se houve uso do mimeógrafo, é de se suspeitar que teria ocorrido num período de prova, antes das primeiras edições do jornal; embora seja possível, também, que Glauco tenha reimprimido esses primeiros fascículos em offset, a fim justamente de garantir a pretendida uniformidade das edições, conforme mencionado logo nas primeiras frases do primeiro trecho do Jornal citado por nós (“Não era exatamente periódico, pois não teria sequência: todos os números seriam número ‘hum!!!’”, MATTOSO, 2001, “UM JOLNAR ARTELNATIVO”, f. 43). Enfatizo esses aspectos porque, embora até aqui a discussão não diga nada a respeito da América Latina mais diretamente, essas dessimetrias nas formas de distribuição e acesso aos meios de produção e tiragem de uma obra literária refletem algo de um dos principais problemas econômicos e políticos da região: o da dependência tecnológica e industrial em relação aos países desenvolvidos. No cerne desse problema, as próprias histórias do desenvolvimento e dos usos da máquina de escrever e do papel — coincidentes, mas também muito diferentes entre si — constituem etapas específicas da história cultural brasileira e latino-americana3. Ver, por exemplo, o que escreve Eduardo Galeano (2018, p. 344), em “A deusa tecnologia não fala espanhol”, de As veias abertas da América Latina (1970/1977): “O mero transplante da tecnologia dos países adiantados não só implica a subordinação cultural e, em definitivo, a subordinação econômica, como também — após quatro séculos e meio de experiência na multiplicação do oásis de modernismo importado em meio aos desertos do atraso e da ignorância — pode-se afirmar que não resolve problema algum do subdesenvolvimento. Esta vasta região de analfabetos investe em pesquisas tecnológicas uma soma 200 vezes menor do que aquela que os Estados Unidos destinam para esses fins. Em 1970, há menos de 1.000 computadores na América Latina e 50 mil nos Estados Unidos. É no norte, por certo, que são desenhados os modelos eletrônicos e são criadas as linguagens de programação que a América Latina 3 222 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA O INTELECTUAL E A AMÉRICA LATINA Más venturosos eran poetas y cuentistas o novelistas nuevos. Pues había, como ya decíamos, el editor que los lanzaba, ya que el gasto de la impresión del libro era poco y, en fin, cualquier empresa podía correr con el empleo de tales sumas. Esto ya hoy no ocurre. El costo de producción editorial se ha ido muy alto: mano de obra, papel, tintas, impresión, y el público saturado de libros-drogas-sexuales, libros-drogasimágenes, jamás se arriesgaría [...]; primero, porque al alto costo de producción corresponde un alto costo en el precio del libro; segundo, por falta de tiempo. Miguel Ángel Asturias, em Latinoamérica y otros ensayos, p. 98, 1970. A epígrafe de Asturias dá uma noção das modificações pelas quais o mercado editorial da América Latina veio passando no último século e do tipo de resposta que os intelectuais e escritores procuraram dar a ela. No Jornal Dobrabil as referências à América Latina são abundantes, embora em sua maioria alusivas e distribuídas de maneira dispersa. Basta folhear alguns fascículos do jornal para se dar conta disso; por exemplo, diante de um dos três principais suplementos do jornal: o “Zero alla izquierda”, cujo título, redigido em espanhol, e dedicado especialmente a assuntos políticos, e o slogan, uma “PUBLICAÇÃO AUTOMINORITARIA DA THEORIA DA MENOSVALIA”, indicam o problema da dependência e a identificação do Jornal com as tendências e os grupos marginalizados à época como alguns dos seus principais focos de interesse. Essa preocupação com as disparidades políticas, econômicas e sociais em nível nacional e regional parecem fazer parte também da percepção de Jorge Schwartz (1981) sobre o Dobrabil: “[F]ruto do já decantado ‘maior parque industrial da América Latina’”, escreve o crítico, o Jornal Dobrabil pode ser tomado como um “projeto anarco-poético por excelência, onde o sistema é criticado através das armas tecnológicas oferecidas pelo próprio sistema: uma Olivetti & Xerox”. As aspas, como se nota, importa.” As estimativas, segundo menciona Galeano, são de Manuel Sadosky, publicadas em “América Latina y la computación”, Gaceta de la Universidad. Montevideo, maio de 1970. 223 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA realçam o distanciamento do crítico em relação ao entusiasmo dos anos anteriores com o então chamado “milagre” econômico brasileiro, desmentido nos anos 1980. Mas não é só no “Zero alla izquierda” que a maioria das referências à América Latina aparecem. Muitas alusões a personalidades políticas e literárias surgem já na primeira página do jornal, na seção de cartas ou nas colunas laterais; ou então, de forma mais interessante, na seção de “CORRESPONDENTES / no exterior”. Um caso significativo é o do folheto 10, em que são citados os nomes de três escritores latinoamericanos: Clemente Padín, poeta e artista gráfico uruguaio; Jorge Caraballo, poeta também uruguaio; e Horacio Zabala, artista plástico argentino. A seção, que normalmente é usada por Glauco para aproximar de forma irônica personalidades díspares da cultura e da política, parece apresentar, neste caso, um outro desenho: o de uma possível rede de colaboradores, destinatários ou mesmo simpatizantes latinoamericanos do jornal.4 O número de frases redigidas em espanhol ou atribuídas a personalidades latinoamericanas é grande. Elas podem aparecer em qualquer parte do jornal. Há um grupo de citações escritas em espanhol e atribuídas apocrifamente a alguma personagem estrangeira, não falante do espanhol ou que não o tem como língua materna. Neste grupo, costumam aparecer escritores, cientistas e intelectuais, como Noam Chomsky (f. 33v) e Erich Fromm (f. 41v), figuras da cultura, como Theda Bara (f. 52v); e, também, personalidades da política como Mao Tse-Tung (f. 33v) e Jânio Quadros (f. 27). Há, também, o grupo de personalidades latino-americanas ou espanholas, cujas frases são citadas em outras línguas, como o português, o francês ou o inglês. Semelhante ao caso anterior, temos aqui políticos, como Anastasio Somoza (f. 39) e Pinochet (f. 4); opositores, como Salvador Allende (f. 24), Che Guevara (f. 28) e Fidel Castro (38); e escritores, como Vargas Llosa (f. 3); Unamuno (f. 27v), Neruda (f. 28) e Octavio Paz (f. 28). 5 4 No folheto 28, aparecem Manuel Puig, escritor argentino, e Aristides Klafke. Klafke é brasileiro, mas a citação não exclui a possibilidade de que estivesse fora do país, ou que “exterior”, aí, signifique qualquer coisa como “fora do círculo imediato ou de interesses” do Jornal. Na mesma nota, os correspondentes internos mencionados são: Lula, Paulo Leminski, Júlio Mendonça, Décio Pignatari e Sebastião Uchoa Leite. 5 Se quisermos um quadro mais completo, podemos incluir no primeiro grupo: Iaac Asimov (f. 45), Euclides da Cunha (f. 45v) e Florestan Fernandes (f. 43v), entre os intelectuais; Trini Lopez (10v), Opalong Cassidy (f. 43), Arlo Guthrie (f. 27) e Pete Seeger (31v), entre os artistas; e, enfim, Enrico Berlinguer (f. 43), “um general linha dura” brasileiro (f. 44) e Farah Diba, a última imperatriz do Irã (f. 224 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Todos esses nomes aparecem assinando citações que envolvem reflexões sobre política, arte e literatura. O conteúdo é, na maioria das vezes, insólito, visando a crítica e o riso, efeito que decorre no mais das vezes da incongruência entre o que é dito e a pessoa que o assina, ou entre o dito e a circunstância que a envolve. Alguns exemplos: “El que ama su patria, no puede amar nada.” – PERÓN (f. 13v) “El secreto de todo poder consiste en saber que los demás son aún más cobardes que nosotros” – A. SOMOZA (f. 24v) “Tal vez pudo comprarse más barato al pescador que al pez.” – EVITA PERÓN (f. 30v) “Qué cosa tan simple vuestra política! De un lado, los que tienen todo, dinero, honores y cargos; del otro, los que nada poseen. Aquéllos todo lo encuentran bien. Éstos lo encuentran todo mal. A la derecha, la digestión; a la izquierda, el apetito” – LIZA MINNELLI (f. 26v) Glauco reuniu muitas dessas citações em Galeria Alegria (2002), livro publicado pelo Memorial da América Latina. Os textos do livro são todos atribuídos a Garcia Loca, heterônimo de Glauco que fazia frequentes incursões pelas páginas do Dobrabil. O personagem é uma versão debochada do poeta espanhol, morto durante a Guerra Civil, e de quem chegou-se a discutir muito sobre a sua sexualidade6. Procurando avaliar o interesse do material ao escrever uma nota para o livro, Barros Toledo (“Glauco Mattoso: um poeta latino-americano” in: GALERIA ALEGRIA, 2002) lembra os vínculos de Glauco com a literatura latino-americana, mencionando-o como tradutor de Borges, do mexicano Salvador Novo e de Severo Sarduy. Toledo considera o castelhano de Glauco “quase tão macarrônico quanto o portunhol dum portenho apaulistanado”; e destaca: “[Glauco] sente-se à vontade para versejar desabridamente 46), entre as personalidades associadas ao poder. No segundo grupo: Alfredo Stroessner (f. 2, 39) e Omar Toerijos Herrera (4); Maria Estela Martinez de Perón (6), entre os políticos; Hubert Matos (f. 33), Zapata (f. 39) e Sandino (f. 47v), entre os opositores; entre os escritores: Carlos Castañeda (f. 31); Gabriela Mistral (f. 28); Alejo Carpentier, Borges e Cortázar (f. 15v); e, dentre os artistas ou personalidades da cultura: Salvador Dali (f. 2), Carlos Gardel (f. 13v), Picasso (f. 16v), entre muitos outros. 6 Quanto a essa polêmica, ver “A verdade sobre Garcia Lorca”, matéria publicada no número zero do Lampião da Esquina — de autoria de Agnaldo Silva, um dos seus editores. Segundo a matéria, a dúvida sobre a sexualidade de Lorca ainda era assunto à época do surgimento do Lampião (1978), tendo voltado à discussão com a encenação de El Público (1930) no Teatro da Universidade de Porto Rico. A peça ficou desconhecida até 1976, quando foi editada pela Universidade de Oxford (SILVA, 1978, p. 4). 225 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA sua latinidade desde a pesada década de 1970, quando todo o continente atravessou um período de dictaduras, quarteladas e guerrilhas, cyclo que tende a repetir-se ao longo da história” (ibid.). Reynaldo Jimenez (“El contra-perogrullo” in: GALERIA ALEGRIA, 20027), poeta peruano, nascido em Lima, em 1959, e radicado em Buenos Aires desde 1963, é de opinião semelhante. Para ele, “la lengua escrita originalmente mixturada” dos escritos de Glauco se parece muito com aquela procurada por outros poetas latinoamericanos e brasileiros que, transitando por “ambos lados de la frontera”, têm procurado fazer “sin embargo del portuñol una rumia devastadora de las ‘perfecciones paralelas’” dos dois idiomas, engrossando essa espécie de “río de varias corrientes”, que atravessa os países que ladeiam suas margens. PAPÉIS DE ESCRITOR Nem todas as citações do Dobrabil são apócrifas, entretanto. O critério de distinção, segundo Glauco, está no “Índice”, incluído na última folha da 2ª edição do jornal em livro. Ali, pelo menos uma frase de Anastasio Somoza (f. 50v), ex-ditador da Nicarágua, é apresentada como autêntica: “Vocês são todos seres humanos, como eu. E, se são como eu, somos todos una mierda”. A frase, segundo consta no jornal, teria aparecido em uma edição da revista Isto é, dada como resposta a jornalistas. No índice, consta também uma frase atribuída a Mario Benedetti: “El pan nuestro de cada día provoca gases y malas digestiones”, f. 26v. A frase forma um conjunto com outros dois poemas escritos pelo próprio Glauco e publicados na mesma página. Os poemas são: “DESPISTANDO / MARIO BENEDETTI” e “DANDO-LHE / CRÉDITO” (ver figura 1, a seguir). Como se pode notar, os poemas de Glauco fazem menção direta a Benedetti, aludindo ao tema bastante moderno da possível conciliação entre amor e política, vida pública e privada, desejo pessoal e compromisso cívico, que o poema de Benedetti glosa, particularmente em versos como: “Te quiero porque tus manos / trabajan por la justicia”, “porque tu boca / sabe gritar rebeldia”, para “que em mi país / la gente viva feliz / aunque no tenga permisso” e “porque sos / mi amor mi cómplice y todo / y en la 7 A versão eletrônica do livro disponibilizada publicamente pelo autor não possui numeração de página. 226 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA calle codo a codo / somos mucho más que dos”. Nos poemas de Glauco — assinados por Pedro o Podre —, amor e política se conjugam, também. Mas os poemas de Glauco acentuam principalmente os aspectos repressivos e violentos da ditadura à época, especialmente em relação à sexualidade (“em política é muito / mais fácil ter a cuca / quente que o pau duro”; “Un torturador / no se redime / suicidándose. / Pero algo es algo”). Glauco também sublinha as hesitações de Benedetti, bem enfatizadas nos títulos dos seus poemas (“DESPISTANDO MARIO BENEDETTI”, “E DANDO-LHE CRÉDITO”): Fica mais fácil compreender os poemas de Glauco e a polêmica com Benedetti quando observamos outros dois poemas publicados pelo próprio Glauco no verso do folheto seguinte, o 27 (“SOMAMOS” e “O FACTOR GENET/ICO”, ver figura 1): Figura 1 - verso do f. 27 Fonte: MATTOSO (2001). Ali, o diálogo crítico de Glauco com Benedetti é bastante evidente, já que Glauco aproveita por inteiro o verso final do poema de Benedetti (“somos mucho más que dos”), bem como todo o contexto enunciativo que o acompanha (“Si te quiero es 227 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA porque sos / mi amor mi cómplice y todo / y en la calle codo a codo / somos mucho más que dos.”). Mas não é só isso. O que Glauco faz é tresler o poema de Benedetti a partir de uma clara defesa do respeito à diversidade sexual e da plena legitimidade das relações homoafetivas que, a princípio, o poema de Benedetti não desaprova nem censura, mas também não defende explicitamente, deixando essa interpretação a cargo do leitor. Aqui o contexto político e cultural de fundo no poema de Glauco é claramente o da criação do grupo “SOMOS” em 1978, uma das primeiras organizações políticas de gays e lésbicas surgidas no Brasil e considerada um marco do começo do ativismo LGBT no país.8 Os poemas de Glauco emulam um tipo de composição semelhantes àquelas da época mais radical do concretismo. Baseados em operações combinatórias simples, eles procuram refutar os argumentos habituais com que o senso-comum conservador procura defender a heteronormatividade, muitas vezes, apelando a razões de fundo pretensamente lógico ou natural — operação que Glauco ironiza, ao aludir à matemática e à biologia em defesa da diversidade (por ex., em expressões como “SOMAMOS”, “MUC/H[O] M+”, “HOM[ENS]”, “SOMOS”; “O FACTOR GENETICO”, “CROMOSSOMOS” etc.). Observando em detalhes, a página de verso do folheto 26 (ver figura 1) é ela mesma um bom exemplo do tipo de trabalho artístico primoroso que Glauco realiza com a diagramação do jornal. Note-se, por exemplo, os efeitos de contraste e complementaridade produzidos quando comparados os conteúdos das frases do 8 Segundo James N. Green (p. 178-179, 2014), o grupo surge em resposta ao chamado do número zero do jornal Lampião da Esquina, de março de 1978, publicado em seu editorial. Avaliando a nova conjuntura de enfraquecimento do regime militar e visando a abertura política, o editorial defendia ser o momento de gays, lésbicas e transexuais, assim como outras minorias, abandonarem o gueto e participar do movimento de redemocratização do país adotando uma postura afirmativa e sexualmente assumida em defesa de seus direitos. A proposta era inspirada em grupos como o Nuestro Mundo, de 1968, e Frente de Liberação Homossexual (FLH), de 1971, ambos argentinos, e, também, em outras iniciativas surgidas nos Estados Unidos e Europa. Ainda de acordo com Green (p. 185), o próprio nome do grupo brasileiro era uma homenagem ao boletim Somos do FLH, material com o qual uma parte dos ativistas do grupo tiveram contato no momento em que muitos ativistas argentinos começaram a migrar para o Brasil, com o agravamento da repressão na Argentina. Glauco manteve contato com o Somos, tendo participado de sua criação. No Jornal Dobrabil, publicou pelo menos uma carta do grupo, em que os editores acusam recebimento do Dobrabil e parabenizam Glauco “por levar adiante tal trabalho, com tanta criatividade e inovação” (“Curreio”, f. 51). Glauco permaneceu no Somos até 1981, quando se afastou por divergências internas. Para mais detalhes, ver o artigo de Cecilia Palmeiro (2017, p. 36-42). Aproveito aqui para agradecer muito especialmente à Milena Mulatti Magri, que me apontou a relação dos poemas de Glauco com o Somos e sugeriu a leitura do texto de J. N. Green. 228 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA cabeçalho, de um lado, com as do rodapé, no lado oposto. O arranjo em “x”, ou quiasmo — figura poética de largo uso na poesia conceptualista do séc. XVII — é bastante visível (cf. figura 1 e 2, logo a seguir, juntas). Observemos em detalhes. Logo no começo da página, no canto superior esquerdo, o primeiro fragmento que temos é uma espécie de máxima, redigida e assinada pelo próprio Glauco, em que a instabilidade política é comparada às mudanças astronômicas e meteorológicas (“A política depende dos políticos, mais ou menos como o tempo depende da meteorologia e dos astrólogos”, diz Glauco, MATTOSO, 2001, f. 27v). Já ao pé da página, no canto direito, o que vemos é uma manchete em que a realidade política e social do país — e, por extensão, da América Latina, pela língua em que a frase esta redigida — é comparada a um “INFIERNO de MIERDA”. Se passamos ao lado esquerdo de novo, mas ainda mantendo os olhos no rodapé, é a frase já mencionada de Benedetti que encontramos (“El pan nuestro de cada día provoca gases y malas digestiones” — frase escatológica e sardônica, como o tom geral da poesia de Glauco, o que mostra não só divergência, mas, sobretudo, reverência, identificação de Glauco com a obra de Benedetti). Por fim, se voltamos ao cabeçalho da página, olhando para o lado direito, o que encontramos, em posição simetricamente oposta à citação de Benedetti, é um outro aforismo assinado por Glauco — agora, porém, redigido em um tom sério, bastante diferente do adotado por ele no Jornal Dobrabil, e no qual a “luta das minorias” é defendida como centro de todo engajamento cultural e político do momento (“’Luta maior’ é a luta das minorias, que, além de lutar pelo pão, têm que defender sua cor e sua cultura, seu sexo e sua sexualidade [...] arriscando a própria pele”, diz Glauco). O diagrama desses paralelos da página fica mais ou menos assim: 229 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 2 – verso do f. 26 MATTOSO (2001). As citações do Dobrabil a escritores latino-americanos, evidentemente, não se resumem apenas a Mário Benedetti. Na página de rosto do f. 10, Glauco apresenta um miniconto intitulado “ANADIDURA”, concebido, segundo ele, como uma emulação de Anderson Imbert, escritor, professor e ensaísta argentino. Nos folhetos 42 e 44, Glauco volta a se referir ao autor: agora, para apresentar a tradução de dois contos dele — um deles, o da f. 42, intitulado “O PRÍNCIPE”. De comum, entre os contos, a ambientação mágico-fantasiosa e o caráter abrupto com que os acontecimentos se precipitam nas narrativas, reduzidas a não mais que três frases cada uma. Um caso mais perceptível de formação de redes de colaboração intelectual e amizade latino-americana, porém, pode ser percebido na correspondência trocada por Glauco com o poeta Álvaro Miranda, de Montevideo. Glauco publica pelo menos uma carta dele no “Curreio” do folheto 28. Na carta, Miranda saúda com alegria Glauco e o Dobrabil: “Me impresionó muy favorablemente vuestro JORNAL”. Também menciona ter apresentado alguns trechos a um amigo, o poeta Rolando Faget, que estaria difundindo passagens do Dobrabil por rádio, em Montevideo. Na sequência — pelo menos a da edição dos folhetos em livro —, Glauco publica três poemas de Miranda no Dobrabil: dois sob o título “Tableaux Dada”, na primeira página do f. 39; e um fragmento de poema, sem título, no f. 43. Os três, em espanhol. Os dois primeiros, mais visuais; o último, um fragmento de poema em verso livre, ligeiramente espaçado. Os três, porém, de cunho erótico-amoroso e sugestões homoafetivas. 230 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Talvez tenha vindo por intermédio de Miranda e Faget, ou de outros de Montevideo, o “NOMENCLATURA Y APOLOGIA DEL CARAJO”. Trata-se de um dos mais longos poemas publicados por Glauco no JD. Ele aparece distribuído em três colunas, entre a face e o verso do folheto 53. O poema é apresentado como sendo de autoria de Francisco Acuña de Figueroa, e como tendo sido publicado em Montevidéu em 1922, mesmo ano de explosão do movimento modernista no Brasil. Traz também a seguinte observação, ao lado do título: “para la circulación privada”. Do começo ao fim, o poema é uma longa enfiada de nomes em espanhol para... “caralho” e, como composição literária, ilustra a irreverência típica das vanguardas modernistas de começo do século. Sua publicação no Dobrabil exemplifica uma atitude bastante característica da literatura de Glauco e do desbunde dos anos 1970: o mergulho na pornografia e na cultura underground como uma tentativa de esvaziamento, pela via do absurdo, das violentas contradições da sociedade brasileira, agravadas na fase de maior repressão durante a ditadura; situação que não era em nada diferente do restante da América Latina. Uma das passagens mais contundentes do Jornal Dobrabil, a esse respeito, é um trecho de prosa que aparece ao pé da folha 17, atribuído a Miguel Ángel Asturias, escritor guatemalteco, prêmio Lenin da Paz em 1965 e Nobel de Literatura em 1967. Publicado em português, a trecho corresponde a algumas passagens do último capítulo de El señor presidente (1946), livro mais famoso de Asturias. O título do capítulo de que se serve Glauco, no livro de Asturias, é “Parte sin novidad”. No Jornal Dobrabil, porém, o trecho aparece sem nenhuma identificação de fonte, exceto o nome do autor. O trecho narra uma cena de tortura. Nela, um jovem é visto preso num calabouço, sem nenhuma comunicação com a superfície, exceto uma pequena grande, por onde todos os dias vê descer uma lata preenchida alternativamente com fezes ou comida, a depender da hora do dia. Depois de muito tempo nessa situação, já perdendo os sentidos, o rapaz avança sobre a lata e devora seu conteúdo, sem levar muito em conta o que come. O episódio é publicado na página do Dobrabil ao lado de outras passagens semelhantes tiradas de José Veríssimo, de Julia Lopes de Almeida, das Mil e uma noites e dos 120 dias de Sodoma, de Sade. Nelas se cruzam alguns dos temas mais caros a Glauco Mattoso: a escatologia, o sadomasoquismo e a tortura. São temas que constituem o centro do interesse de outras obras de Glauco, como o Manual do 231 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA podólatra amador (1986) e Tripé do Tripúdio: e outros contos hediondos (2011). Aqui, porém, a insistência sobre aspectos asquerosos da dejeção e do prazer sexual aponta para um outro traço característico da poesia de Glauco e do Jornal Dobrabil: a nivelação da literatura e da arte com a “merda” (ou a “obra”, se optarmos pela expressão mais polida) e, do jornal, com o papel higiênico9. É, contudo, ainda no trecho citado de Miguel Ángel Asturias que o compromisso de Glauco com a arte do papel, bem como com as diferentes figuras que o intelectual pode assumir, fica mais evidente. Para dizer a verdade, a cena descrita por Glauco não corresponde exatamente ao que se passa no romance de Asturias. As palavras e os trechos são tomados ipsis litteris do romance. Mas é com o corte e a justaposição das passagens que Glauco cria a cena anteriormente descrita, fazendo parecer que os dois momentos aconteçam simultaneamente. No romance de Asturias, o personagem não chega a se lançar sobre a lata de excrementos, pensando ser comida. Ele sequer chega a se confundir. Mas o que Glauco percebe muito agudamente é que a possibilidade de que isso aconteça é sugerida nas entrelinhas do próprio livro de Astúrias. Astúrias somente não desenvolve a situação por aí, enquanto Glauco, em sua versão, explicita-a duramente, deixando o leitor sem alternativa. O truque e malícia muito sutis de Glauco está em deslocar o último dos três trechos selecionado do capítulo de Asturias para o meio da sua versão, fazendo com que as duas cenas, a da descida da comida e a das fases, pareçam a sequência natural uma da outra. Mas não são: a sequência em que o jovem corre para a lata é continuação da cena de descida da comida; ele nem mesmo se engana sobre o conteúdo da lata. O que há de mais impressionante no efeito conseguido por Glauco, porém, é ele conseguir reescrever o trecho, usando exatamente os mesmos trechos de Asturias, carregando-os com ainda mais violência. A diferença, portanto, não está somente no texto, isto é, na sua retórica ou composição, mas no investimento de Glauco em operações de escrita que incorporam e guardam a memória daquelas operações típicas e especificamente ligadas à cultura do papel, como o corte, a colagem, o embaralhamento (cf. DERRIDA, 2004, p. 222-223). São operações que já estão em jogo em todo o trabalho de diagramação do jornal, como “Comparar a arte à merda é como comparar o jornal ao papel higiênico: questão de ponto de vista (*)”; “(*) basta encarar o jornalismo como arte...”, dizem duas notas assinadas pelo próprio Glauco, no verso do f. 46 (MATTOSO, 2001). 9 232 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA no caso mencionado, do verso do f. 26 (figura 1 e 3), e que aqui, tanto como lá, evidenciam o enorme poder de criação ficcional desse suporte – o papel – e seus meios, tão bem conhecidos e explorados pelo jornalismo, pela editoração e pela publicidade. EPÍLOGO: SEM NOVIDADE Insisti muito nas questões ligadas ao suporte. Mas o papel do intelectual também é discutido muito diretamente por Glauco em outras passagens do Dobrabil. Por exemplo, na coluna “LITTERATURA DE DENÚNCIA”, do f. 33; ou em “¿metaphysica?”, do f. 44v. Seria difícil abordar aqui a intrincada problemática que esses trechos sugerem; já tentei fazê-lo em outros trabalhos recentes, ainda que muito lateralmente. Destaco, portanto, apenas o que se relaciona mais especificamente à discussão de agora. A primeira passagem, a do f. 33, é uma matéria de primeira página do jornal, publicada na posição que costuma ser reservada à seção de cartas e ao editorial. Nela, Glauco faz uma espécie de balanço crítico da literatura de denúncia publicada no Brasil até aquele momento. Na mira, estão os livros de quatro escritores brasileiros com estreitas relações com a América Latina: Augusto Boal, Gabeira, Fon e Fialho. A segunda passagem, do f. 44v, vem publicada no rodapé, e traz trechos de uma carta escrita por Glauco em resposta ao jornal Movimento, na época em que, como deixa entender, o jornal vinha sofrendo intimidações e agressões de agentes da ditadura. O trecho não diz nada de específico sobre a América Latina. Mas pela grafia do título — em pontuação exclusiva do espanhol —, dá a entender que as críticas de Glauco à postura confrontadora, e, por vezes, temerária, do jornal poderiam ser também generalizadas ao modo como a luta armada ou o sacrifício pessoal eram idealizados em toda a América Latina como formas viáveis de resistência à repressão. É muito significativo, a propósito, que Glauco chegue a nomear a América Latina pelo menos uma vez, como tema, em um dos poemas-manifestos mais importantes do Jornal: o “Manifesto coprofágico” (f 11v). O poema parte de uma associação sugestiva: a semelhança fônica entre “latina” e “latrina”. As palavras, invertidas, constituem as rimas iniciais e finais do poema. Obviamente, a crítica não se dirige à América Latina como um todo, mas às camadas dirigentes e suas tendências autoritárias e retrógradas, que dominam a vida política e social da região: religiosos, 233 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA militares, burocratas, funcionários de alto escalão e donos de empresa, em particular. “[A] merda na latrina / daquele bar da esquina / tem cheiro de batina / de botina / de rotina”, dizem os primeiros versos do poema. E segue na invectiva: “merda de gente fina / [...] de teresina de santa catarina / e da argentina”. Se as disparidades que caracterizam esse espaço geográfico, político e cultural são as mesmas que se coagulam na privada de um bar qualquer de esquina, é porque, apesar de tudo, a “latrina” é, ainda, um ponto de chegada ou de encontro; ou, mais dramaticamente, de dejeção do melhor e do pior de todos (“bosta com vitamina / cocô com cocaína / merda de mordomia de propina / de hemorroida e purpurina”). É para essa dejeção que Glauco procura olhar atentamente, inclusive com forte carga de identificação afetiva (“és meu continente [...] onde germina / minha independência”). É dela, dessa “merda”/continente, principalmente, que procura fazer o seu jornal e a sua poesia, aceitando o que ela tem de descomunal e monstruosa (“palindrômica”); também de fecunda e irreverente: merda comunitária cosmopolita e clandestina merda métrica palindrômica alexandrina [...] tu és meu continente terra fecunda onde germina minha independência minha indisciplina és avessa foste cagada da vagina da américa latina (MATTOSO, 2001, f. 11v) Como se pode notar, a América Latina tem um papel importante na poética de Glauco e do Jornal Dobrabil, embora esse interesse não seja elaborado de forma temática, mas alusiva. Sejam diretas ou indiretas, apócrifas ou autênticas, essas alusões formam uma espécie de quadro ou pano-de fundo contra o qual o Jornal Dobrabil projeta as questões políticas nacionais e internacionais que mais o inquietam. A própria América Latina não está ausente dessas inquietações. Ela forma uma espécie de tópica ou lugar-comum, ou, ainda, se preferirmos, o próprio horizonte em vista do qual as discussões do Jornal ganham corpo. Procurando responder às questões mais dramáticas do seu tempo, em particular aquelas ligadas à repressão política e à censura, essas discussões buscam explorar e mesmo expandir a significação das relações entre cosmopolitismo, nacionalismo e questões especificamente regionais ou continentais ao 234 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA longo da obra. Embora discreta, a visão que o Jornal Dobrabil nos dá da América Latina tem muito pouco a ver com o cosmopolitismo dominante das vanguardas de meados do século e das elites dirigentes, quase sempre restrito à cultura e ao desenvolvimento econômico dos países ricos; e nos pontos em que se coloca em evidência, chama atenção, com particular delicadeza, para os laços de solidariedade que unem e uniram, de diferentes maneiras, os povos latino-americanos, em especial, durante os anos 1970, quando esses laços constituíam, para muitos, a única rota de fuga à perseguição política. REFERÊNCIAS ASTURIAS, Miguel Angel. Latinoamérica y otros ensayos. Madrid: Guadiana de Publicaciones, 1968. DERRIDA, Jacques. O papel ou eu, os senhores sabem... In: DERRIDA, Jacques. Papel Máquina. Trad. Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. P. 217-247. EAGLETON, Terry. A função da crítica. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1991. GALEANO, Eduardo. 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Apesar de ser considerado como território estadunidense desde a proposição da primeira constituição cubana, a base naval de Guantánamo encontra-se instalada em Cuba, o que permite considerarmos que, pela primeira em sua carreira, a artista retornou a ilha para uma performance3. A apresentação da cantora, que havia retornado a ilha de Cuba apenas uma vez desde seu exílio iniciado em 19594, integrou as ações de divulgação de seu álbum Abriendo Puertas (1994), que tinha como temática a aproximação entre os países do continente americano e, em especial, a integração latino-americana globalmente através das identidades latinas. Largamente coberto pela mídia televisiva e impressa, o show foi realizado nas dependências da base militar estadunidense para agentes norte-americanos que ali estavam e, em especial, para a comunidade exilada que estava dentro de Guantánamo aguardando pela autorização para deixar Cuba e ir aos Estados Unidos. Nesse show, a 1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina com bolsa CAPES-DS. Graduado e mestre em história pela mesma instituição. Desenvolveu estágiodoutoral junto a University of Miami por meio do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE). E-mail: igorlemoreira@gmail.com. 2 O presente ensaio é resultado das reflexões que venho desenvolvendo em minha pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Em minha investigação analiso a trajetória artística de Gloria Estefan entre 1977 e 2011, com ênfase em seus diferentes engajamentos políticos, sociais, econômicos e culturais, assim como na elaboração de representações de cubanidades e latinidades no exílio. 3 Neste artigo consideramos apesar dos acordos diplomáticos existentes desde a primeira constituição cubana, a baia de Guantánamo é um dos principais palcos de disputas políticas entre EUA e Cuba desde 1959, tendo servido em diversos momentos como centro de operações para a saída de exilados cubanos para os Estados Unidos. Neste sentido, dimensionar a complexidade dessa região, que é arrendada aos EUA, mas está sob território cubano é fundamental para refletirmos sobre a importância política e simbólica da performance de Gloria Estefan em 1995. Apesar disso, é importante destacar que a cantora até os dias atuais não reconhece diretamente esse “entre-lugar” e afirma que nunca pisou em solo cubano para realizar um show ou uma apresentação desde o início de sua carreira. 4 A primeira viagem de Gloria Estefan a Cuba ocorreu ainda no início de sua carreira musical, quando ela e seu esposo e companheiro de banda, Emílio Estefan Jr., viajaram ao país para tratar do processo de migração de um familiar. 237 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA cantora apresentou um repertório de canções recentes em sua trajetória e integrantes dos álbuns: Abriendo Puerta e Mi Tierra (19935). Tal apresentação, para além de integrar uma fase da trajetória artística de Gloria Estefan em que pretendeu aproximar-se novamente das questões culturais, sociais e políticas em Cuba também ocorreu no auge do Período Especial em Tempos Paz, momento em que o país vivia uma crescente crise econômica e social provocada, em especial, pelo colapso do bloco socialista após a Queda do Muro de Berlim (1989), que aumentou o número de cubanos/as solicitando deixar o país com destino aos EUA. Em função da alta procura, inclusive através de meios ilegais e perigosos como as práticas de balsas nas quais cubanos/as se jogavam ao mar, o governo dos Estados Unidos passou a instalar todos/as aqueles que aguardavam pelo visto estadunidense na base militar localizada na ilha. Neste breve ensaio pretende-se analisar fragmentos do show realizado por Gloria Estefan em Guantánamo (1995), com foco em no processo de construção da performance de Gloria Estefan naquele contexto, procurando perceber quais os sentidos e projetos associados, em especial por meio da problematização de suas intencionalidades. Como discussão central, mobiliza-se a noção de performance a partir dos estudos de Diana Taylor (2013). Mais que respostas conclusivas, no decorrer deste capítulo pretende-se demonstrar que a apresentação realizada em 1995 foi fundamental para a construção de uma narrativa sobre Cuba e o exílio cubano. A escolha de repertório, ou do arquivo como destaca Diana Taylor (2013), foi dimensão central para elaborar um show pautado em canções de lamento, de saudade e de nostalgia. GUANTÁNAMO RECEBE GLORIA ESTEFAN Nas primeiras semanas de setembro de 1995 a cantora cubana exilada Gloria Estefan visitou a base naval de Guantánamo junto com o artista Andy Garcia, também cubano exilado. O objetivo principal era realizar uma apresentação de cerca duas horas acompanhada pela banda Miami Sound Machine6 para aproximadamente 10 mil pessoas 5 Entre as canções que integraram o setlist do show estavam: Mi Tierra, Guantanamera, Montuno, Tres Deseos e Abriendo Puertas. 6 Entre 1975 e 1989 Gloria Estefan foi vocalista do Miami Sound Machine, grupo no qual não apenas atuou, mas também foi sua base para consolidação como artista latina proeminente na indústrias fonográfica. Em especial, esse processo de expansão da banda, e por consequência da artista, teve início em 1980 com a assinatura de contrato da banda com a CBS Discos International que, naquela época 238 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA na base militar. Apesar de entre as pessoas estarem membros das forças armadas e diplomáticas estadunidenses que viviam ou trabalhavam em Guantánamo, a maioria do público que acompanhou a performance era de cubanos/as que aguardavam autorização para deixar Cuba em direção aos Estados Unidos. Ao publicar uma fotografia da cantora na baia de Guantánamo em 01 de setembro de 1995, o jornal Gazette7, um dos principais veículos de comunicação que circulavam na região, narrava detalhes sobre a experiência de Gloria Estefan e Andy García na ilha, afirmando que ambos haviam passado por uma agenda intensa de entrevistas e depoimentos para televisão, jornais e emissoras de rádio e que, após essa fase, estavam descansando e se preparando para o show a ser realizado em 08 de setembro. Atualmente os registros da visita encontram-se dispersos em fragmentos do universo digital, podendo ser localizadas em plataformas digitais entrevistas de Gloria Estefan para veículos estadunidenses, cubanos e produzidos por exilados em diferentes regiões do globo. As falas da cantora nestes registros são entrecortadas, em função do formato no qual estão disponíveis, mas apontam para a emoção da artista com a visita a região, o impacto de sua chegada entre os/as cubanos/as alojados na base militar8 e o interesse global dos veículos midiáticos por cobrir aquela ocasião. A apresentação de Gloria Estefan em Guantánamo, marcando a primeira apresentação da cantora na ilha de Cuba, foi motivada por uma série de fatores políticos, globais e de interesse profissional da cantora. A década de 1990 é reconhecida pela historiografia da Revolução Cubana (CHOMSKY, 2015; BUSTAMANTE, 2019) como um momento de crise econômica, política e social, fase denominada como “Período Especial em Tempos de Paz”. Com a queda do bloco socialista, Cuba perdeu não apenas seu principal apoiador na geopolítica, mas também um dos maiores negociadores tendo criava uma seção visando o mercado latino-americano e/ou falante de língua espanhola a partir do estabelecimento de uma sede da CBS Discos em Miami. 7 Gazette, 01 de setembro de 1995. 8 Diversas imagens sobre o período da cantora na base militar registram o encontro com a comunidade exilada através de muros, grandes de contenção, de encontros em ambientes fechados, fotografias com crianças. O potencial de tais imagens (DIDI-HUBERMAN, 2020) que, em muitos casos, foram “montadas” a partir das intenções de quem as registros para construir uma imagem de Gloria Estefan como “salvadora” ou um “ídolo”, reside justamente em demonstrar o impacto de sua visita para aquela comunidade exilada e, apesar dos esforços do regime revolucionário (MOORE, 2006) o reconhecimento de sua figura em Cuba como parte da oposição. Alguns fragmentos de cenas gravadas podem ser observados em: < https://www.youtube.com/watch?v=MNFVd039jho> 239 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA em vista que apesar dos avanços da revolução o país seguiu focando sua economia majoritariamente na exportação de cana de açúcar, levando a necessidade de importar uma série de produtos de subsistência básica, como o próprio petróleo (GOTT, 2006). Entre as consequências da crise econômica esteve a intensificação das ondas de exílio com destino, em sua maioria, para os Estados Unidos em função da existência de leis que facilitavam a entrada de cubanos/as no país. Todavia, a não autorização da maioria destes sujeitos de deixarem o país acabou por gerar uma nova crise de proporções humanitárias ao iniciar um grande movimento de saídas ilegais de Cuba através de balsas construídas de maneira artesanal com sucatas (em especial garrafas e plástico), além da sobrecarga do sistema estadunidense de avaliar as solicitações de vistos, o que iniciou o processo de transferência daqueles que aguardavam para Guantánamo. A crise dos balseiros, como ficou conhecido esse processo, mobilizou uma série de intelectuais, artistas, políticos e ativistas em torno da política cubana e da questão dos exilados. Soma-se a isso os movimentos do presidente estadunidense Bill Clinton em, como manobra de pressão e aumento de embargos a Cuba, flexibilizar as regras de concessão de vistos provisórios para cubanos/as que chegassem ao país através da reformulação do Cuban Adjustment Act9. Apesar do movimento dos balseiros, nem todos os/as cubanos/as que que desejavam deixar o país se jogavam aos desafios das 90 milhas de oceano que separam Havana e o estado da Florida. Muitos procuravam a base militar estadunidense, solicitando abrigo humanitário e/ou a entrada nos Estados Unidos a partir da instalação em Guantánamo, criando assim um grande acampamento de exilados/as que por vezes superou a marca das 10 mil pessoas (CHOMSKY, 2015). Quando Gloria Estefan decidiu realizar sua performance, com apoio/parceria do governo estadunidense e da base militar de Guantánamo, esse era o cenário em que estava consolidando sua “guinada latina”. A ideia de “guinada latina” (MOREIRA, 2019), refere-se ao processo de artistas latinos ligados ao mainstream de retomarem as suas identificações latinas nas produções. No caso de Gloria Estefan, nesse processo não 9 Em 1996 o Cuban Adjustment Act foi reformulado pelo presidente estadunidense e o congresso nacional, passando a adotar uma política conhecida como “Pés-Secos, Pés-Molhados”, garantido a concessão de visto para qualquer cubano/a que chegasse ao país independente da forma. Sobre isso ver: M OREIRA, Igor Lemos. Half of my heart is in havana: Uma análise da trajetória da cantora cubana Camila Cabello (2012-2018). Dissertação (mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências Humanas e da Educação, Programa de Pós-graduação em História, Florianópolis, 2019. 240 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA ocorreu necessariamente uma retomada, pois seu projeto artístico-cultural sempre foi pautado na música latina, em especial cubana, que era articulada a ritmos e gêneros estadunidenses como o rock, blues, disco e pop. Desde seu primeiro disco em 1977, como vocalista do Miami Sound Machine, a artista já trabalhava nessa hibridização, identificando sua produção como parte do movimento Miami Sound, definido como movimento artístico e musical das comunidade cubanas exiladas em Miami (PEREZFIRMANT, 2012). Todavia, quando o Miami Sound Machine passou a integrar o catálogo da CBS Discos International, percebe-se que progressivamente ocorre uma fase de maior destaque para as sonoridades ligadas a world music. Apesar da latinidade de sua produção ainda se fazer presente, essa ocupou segundo plano em diversos momentos nos anos 1980, com raras exceções a exemplo da canção Conga (1985). Foi apenas no início da década de 1990 que a cantora deu início a “guinada latina” em sua produção, ou seja, um movimento de inversão no destaque de determinados ritmos e gêneros musicais colocando as sonoridades caribenhas em destaque. Inicialmente, esse processo se materializou na produção do disco Mi Tierra (1993), produzido junto de grandes artistas cubanos exilados, a exemplo de Tito Puente, Arturo Sandoval, Cachao López, Chamin Correa e Paquito d'Rivera. O álbum Mi Tierra, que garantiu a Gloria Estefan seu primeiro Grammy além de permanecer nas primeiras posições das paradas musicais latinas da Billboard por mais de um ano, marcou a carreira da artista pois foi seu primeiro álbum solo totalmente em espanhol e com canções compostas a partir de gêneros cubanos como a Conga, Salsa e Montuno. Mi Tierra, em linhas gerais, era um álbum romântico, nostálgico e de exaltação de uma Cuba imaginada não somente pela artista, mas por um grupo de artistas cubanos/as exilados/as nos Estados Unidos que buscavam na música formas de construir uma comunidade ligada pelas emoções. Tal comunidade emocional (SARDO, 2010) era ao mesmo tempo uma forma de se aproximar por meio das sonoridades que determinavam uma identidade artística, mas também reforçar elos de pertencimento coletivo, territorial e temporal. Após o sucesso midiático, comercial e de crítica do álbum Mi Tierra em 1993, Gloria Estefan produziu um segundo disco totalmente em espanhol. Lançado em 1995, Abriendo Puertas possuía algumas semelhanças com seu predecessor, em especial pela 241 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA língua oficial do disco e pela proposta de construção de uma identidade latina pelas canções. Contudo, enquanto Mi Tierra tinha como central a identidade cubana, ressaltando esse laço pelas composições, letras, sonoridades, capas e afins, o disco Abriendo Puertas expandia esse projeto para uma identificação latina ampliada e diversa. Apesar da questão territorial ser central, assim como foi no disco anterior, o álbum Abriendo Puertas focou-se na construção de um narrativa sobre a própria identificação latina globalmente, interpretando a latinidade como não limitada apenas ao território físico, mas a construção de um sentimento de pertencimento, uma representação, e uma identidade aberta a múltiplas visões (MIGNOLO, 2007). Conforme destaca Marcos Napolitano (2016), a análise de canções (e álbuns) na história deve buscar “mapear as camadas de sentido embutidas em uma obra musical, bem como suas formas de inserção na sociedade e na história, evitando as simplificações e mecanismos analíticos que podem distorcer a natureza polissêmica” (NAPOLITANO, 2016, p. 78). Entre as múltiplas camadas de sentido que compõem a narrativa de Abriendo Puertas, uma se destaca: a proposta de construção de um sentimento de latinidade que unificasse e servisse como vínculo para a construção de uma identificação coletiva acerca da América Latina em diferentes lugares do mundo. Segundo Mignolo (2007), a noção de latinidade emerge como uma identidade inventada a partir de processos coloniais e da construção de um outro, visto em especial pela Europa como um grupo inferior. Racializada, a latinidade, todavia não pode ser vista como um conceito fechado ou apenas como parte das estruturas coloniais tendo em vista, ao longo do tempo essa identificação passou a ser apropriada por diferentes sujeitos, grupos e comunidades enquanto forma de identificação, por vezes inclusive positivando seu significado (MORALES, 2019). Tal processo ocorreu, em especial, a partir dos anos 1980 e 1990 na ocasião em que nos Estados Unidos o termo “latino” passou a ser reivindicado pelas populações latino-americanas no país em oposição ao emprego do conceito de Hispanidade, tendo em vista que este, entre as diversas críticas, destacava muito mais o vínculo colonialista europeu e invisibilizava a historicidade, cultura e identidade de sujeitos nascidos na América Latina (CHOMSKY, 2007). Com dez faixas, Abriendo Puertas abraçou tal ideia em um contexto estadunidense de novos debates em torno dos direitos civis de migrantes e exilados, em especial na alteração do Cuban Adjusment Act (1996). Diferentes canções como La 242 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Parranda, Milagro, Más Allá e a própria faixa título de Abriendo Puertas reforçavam tal intencionalidade e foram mobilizadas na construção narrativa do disco. Neste sentido, o álbum expandiu, mas também demonstrou o projeto cultural, social e político de Gloria Estefan em suas produções nos anos 1990: construir narrativas sobre cubanidades e latinidades em perspectiva global através da música. As canções de ambos os discos, além de outras músicas da artista, integraram o repertório do show realizado em setembro de 1995 na base militar de Guantánamo. A articulação das interpretações com falas ao público e momentos de conexão entre artista e espectadores auxiliaram a estruturar essa narrativa possibilitando perceber, a partir dos fragmentos das gravações no tempo presente, questões fundamentais sobre os projetos e identidades envolvidas na estruturação do show. Tal repertório buscava, de forma ampla, articular canção, memória, oralidade e performance ao projetar sentimentos e laços de pertencimento que respondiam a demandas do presente, mas demonstravam horizontes de expectativas (KOSELLECK, 2006) possíveis visados pela cantora e as comunidades exiladas. O SHOW Nos momentos finais do show de Gloria Estefan em Guantánamo a artista dirigiu-se ao público descrevendo como se sentia emocionada por retornar a Cuba, afirmando que para ela a base estadunidense na ilha era parte do território cubano. Em sua breve fala, que antecedeu a performance da canção Mi Tierra, a cantora destacou que aquele era um momento de retorno temporário ao país, mas que ela aguardava a todos/as que integram o público naquela noite nos Estados Unidos, e mantinha expectativas de um dia regressar a Cuba. Ao mencionar a espera pelos/as cubanos/as exilados/as nos EUA a artista não estava falando apenas por si, mas também colocandose como representante da comunidade exilada e, indiretamente, como uma forma de porta-voz estadunidense utilizando o pronome “nós”. Tal fala demonstrava um elemento central de toda a viagem e do performance: a voz individual da artista era na verdade a elaboração de uma identidade coletiva cubano-americana da qual ela se sentia portavoz. Mesmo que como pessoa individual, sua expressão estava sempre no plural, 243 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA articulando a coletividade em torno de uma narrativa que destacava uma promessa nacional (BUTLER; SPIVAK, 2018). A fala, bastante breve e entrecortada pelo caminhar de um lado ao outro do palco, demonstrava a síntese da narrativa e das intencionalidades da visita de Gloria Estefan à base naval. Sua viagem não tinha apenas a intenção de divulgar sua música, mas foi perpassada por intencionalidades políticas de reforçar uma narrativa constante desde a Revolução Cubana na qual os Estados Unidos se colocavam em posição de “solidariedade”/“protecionismo” com aqueles que desejavam deixa o país (ORTIZ, 2018). Tal discurso foi um dos principais instrumentos de pressão política contra Cuba tendo em vista, além das políticas institucionais adotadas para facilitar o exílio, o governo estadunidense por vezes optou por ignorar os movimentos políticos de exilados no estado da Florida, em especial de iniciativas como a Cuban American National Foundation (CHOMSKY, 2015). A fala de Gloria Estefan, assim como seu show, incorporaram essa narrativa buscando construir três representações complementares e intrínsecas: os Estados Unidos como nação “salvadora”; Cuba como um país corrompido e que precisava (aos olhos da artista) se tornar livre como nos anos 1940/50; a ideia de que a comunidade cubana e latina precisava se unir globalmente. Ao elaborar essa narrativa, a cantora construiu tais representações por meio de relações que se desenvolvem entre o visível e o invisível em função da ausência do próprio objeto (RANCIÈRE, 2018). As representações mencionadas foram elaboradas a partir da construção de narrativas e foram pautadas em perspectivas políticas, sociais e culturais que orientaram suas formulações. Neste sentido, o que era representado eram processos de construções guiados a partir de regras e intencionalidades, pois como elaboração que dá visibilidade a algo ausente, a representação não consegue determinar suas significações por parte do público. Todavia, apesar de não ser possível determinar os sentidos atribuídos ao que foi representado, é possível criar estratégias de orientações que fornecem indicativos prévios acerca das intenções e projetos presentes naquelas representações (RANCIÈRE, 2012). A fala final de Gloria Estefan no show foi um mecanismo fundamental nesse processo. A mensagem, que servia como forma de orientação ao público, foi repetida constantemente no decorrer da apresentação, mas na ocasião que foi proferida antes da 244 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA apresentação de Mi Tierra ela foi potencializada pelo próprio simbolismo da canção. Mi Tierra é uma canção que fala dos laços emocionais de pertencimento a Cuba, mas que invoca uma terra sonhada, que não existe mais. A utopia presente na canção forma uma narrativa sobre um passado cubano pré-revolucionário. Neste sentido, a narrativa da canção possui uma conotação engajada ao invocar não apenas um país que não se faz mais presente, mas ao lamentar acerca de uma promessa de nação que não foi cumprida (VILLAÇA, 2004). De certa forma, a “terra” que se representa é uma ruína (HUYSSEN, 2014) localizável pelas sonoridades, mas também pelos vestígios que ainda habitam o país. Certamente um dos pontos mais impressionantes do show é o diálogo com o público, assim como o volume de pessoas que o integravam. Ao longo da performance, percebe-se que os espectadores que acompanhavam o show seguravam faixas em homenagem à cantora, com frases como “Gloria Estefan – Mi Tierra” em alusão tanto à canção como aos projetos sonoros da cantora de buscar pela canção estabelecer laços com Cuba. Em diferentes momentos o processo de edição da gravação do show focou em pessoas cantando uma determinada música em coro, exaltando a cantora ou dançando. Destaca-se também os momentos de diálogo da cantora com o público que respondia imediatamente as falas de Gloria Estefan entre as músicas. A participação ativa do público durante a performance, levantando faixas, cantando as canções junto a artista ou substituindo a voz de Gloria Estefan quando a artista voltava seu microfone para a plateia, ou mesmo com camisetas com frases das canções indicam que apesar dos esforços do governo revolucionário a produção da cantora, assim como de outros artistas exilados conseguiam adentrar e circular na ilha. A circulação das canções de Gloria Estefan, assim como de Willy Chirino e outros, foi parte do processo de abertura econômica pensado como via de resolução da crise econômica do Período Especial em Tempos de Paz. Nesse momento, One unexpected result of the capitalization of music making is that recordings of exiled artists rarely heard on the island since the 1960s are more accessible. For years, Cubans listening to Osvaldo Farrés, Celia Cruz, Olga Guillot, Rolando Laserie, and others had to do so in their own homes behind closed doors; their music now appears on store shelves once again and on the street in pirated form. Releases by New York salseros are available as well, and in some cases even discs by devoutly anti-Communist Cuban Ameri cans Gloria Estefan and 245 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Willie Chirino! Market forces seem to have broken down what Cubans refer to as the autoblockade: state policies that restricted the domestic circulation of certain products. Concern for sales has taken precedence over the ideological content of recordings in most cases (MOORE, 2006, p. 233-234). É interessante perceber o conhecimento de cubanos de artistas exilados em meio ao processo de inversão de abertura do controle da arte que circulava em Cuba, com a ascensão da economia acima da ideologia em um país que durante os anos 1960 e 1970 havia criado instituições de controle da arte para que essa se enquadrasse nos planos revolucionários (VILLAÇA, 2004). Em especial, se pensarmos na própria visita e no discurso anticastrista de Gloria Estefan, é possível considerar que a entrada de suas produções, assim como a recepção por parte daqueles que eram contrários ao governo, mas ainda vivam na ilha, foi um dos pontos que levou a mais cubanos/as a desejarem partir ao exílio. Tal hipótese, mesmo que ainda superficial em análise, pode ser percebida não apenas pela circulação, mas em especial pela recepção da performance pelos/as exilados/as em Guantánamo. Percebe-se que, ao longo do show, a participação do público e as canções apresentadas mobilizavam relações que podem ser interpretadas entre arquivo e repertório. Para Diana Taylor (2013), arquivos seriam registros escritos, uma forma de vínculo fixado no tempo por meio do ato de registrar enquanto o repertório é a manifestação viva de tais memórias, uma forma de vivência constante da temporalidade que se dá pela performance. Segundo Taylor, o ato performático une o arquivo e o repertório de forma complementar, articulando-os “para produzir ritmos novos e transculturados para responder a essa realidade nova e transculturada” (TAYLOR, 2013, p. 365). No decorrer do show em Guantánamo parte das relações entre arquivo e repertório se deram pela relação entre a memória do público e sua performance manifestadas, especialmente as registradas em suportes audiovisuais. As vozes que cantavam coletivamente, neste sentido, mobilizavam essa relação buscando criar um laço de pertencimento a uma nação que era não apenas inventada, mas que naquela ocasião passava a viver apenas na própria performance (BUTLER; SPIVAK, 2018) e na temporalidade que fixava a representação sobre Cuba. Em especial, percebe-se nesse processo uma forma de desterritorialização que ocorre muito mais pela voz e pela 246 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA performance do que necessariamente pela geografia ao percebermos que Gloria Estefan, a banda e o público entoam junto canções sobre um país e uma identidade latina que estaria bastante próxima territorialmente, tendo em vista que o show ocorreu em Guantánamo, mas que parece distante do ponto de vista emocional, político e imaginativo. Além das faixas e da participação do público, a proposta do show de Gloria Estefan foi incorporada também ao palco que contava com uma numerosa banda de artistas cubanos/as exilados/as entre músicos e backing vocals, além de uma equipe de filmagens que transitava por todo o espaço. Todos/as os/as integrantes da banda usavam roupas brancas, o que pode ter sido pensado como traço de simplicidade, mas também de reforço da relação com a cultura yorubá tendo em vista que, em mais de uma ocasião ao longo da vida de Gloria Estefan ela mencionou sua conexão com tais práticas. Alguns dos figurinos, em especial dos músicos, tinham bandeiras de Cuba e dos Estados Unidos desenhadas de forma cruzada com dizeres como “Cuban-American”, reforçando uma narrativa que ligava o exílio cubano aos EUA. Ao longo do show de Gloria Estefan em Guantánamo a relação entre Cuba e Estados Unidos é tematizada, seja pelas canções ou através de falas. Todavia, esse processo não é oposto, mas sim complementar a construção de uma narrativa sobre Cuba que reforça a oposição anticastrista da cantora, dos EUA e da comunidade exilada. O encadeamento/roteiro do show foi central neste sentido, inclusive ao próprio a reinterpretação de canções tradicionais cubanas a exemplo de Guantanamera, música que usa de frases de um poema de José Martí, que foi apresentada junto a faixa Montuno, de Gloria Estefan, e que tematiza o próprio gênero musical cubano. Tais elementos de referência foram fundamentais na construção das representações, narrativas e no próprio projeto político, cultural e social que simbolizou a ida da cantora, e Andy Garcia, a Guantánamo para realização do show. Tais referências, retomando a ideia de arquivo para Diana Taylor (2013) foram centrais para a manifestação do repertório da artista (no sentido teórico e artístico da palavra), o que conferiu a sua performance sentidos políticos e de mobilização de temporalidades múltiplas na busca por reforçar um pertencimento seu e das comunidades exiladas no tempo. 247 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA CONSIDERAÇÕES FINAIS O show de Gloria Estefan em Guantánamo marcou o processo cubano de abertura econômica e cultural gerado pelo Período Especial em Tempos de Paz. Anteriormente à visita da cantora, em 1995, outros artistas exilados e publicamente anticastristas já haviam visitado a base militar estadunidense no país, a exemplo de Célia Cruz no início dos anos 1990. Assim como Cruz, Gloria Estefan visitou espaços locais, concedeu entrevistas e apresentou um show para cubanos/as que desejavam deixar o país com finalidades semelhantes: divulgar sua produção articulada a construir uma narrativa que reforçava o papel dos Estados Unidos como nação que receberia todos/as aqueles/as que desejassem deixar Cuba. Interligados, os dois pontos convergem na reafirmação de uma narrativa anticastrista e antirrevolucionário que integra a própria negação que perpassa o exílio Cubano pós-revolução de 1959 (DUANY, 2011). No caso de Gloria Estefan, essa narrativa havia se apresentado de diferentes formas desde sua entrada na banda Miami Sound Machine em 1975. Inicialmente sua produção representava a condição exílica (SAID, 2003) como uma sensação nostálgica, uma descontinuidade com o seu horizonte de expectativas e com a própria nação com a qual se identificação. Na década de 1990 essa narrativa nostálgica ainda permanecia (MOREIRA, 2020), mas como artista solo é perceptível que essa representação passava a assumir contornos políticos mais definidos, presentes em especial em canções e falas que reforçavam a possibilidade de um dia retornar a Cuba quando o governo de Fidel Castro deixasse o poder. Essa expectativa estava associada, em certos aspectos, a incorporação de uma identificação de Gloria Estefan como Latina e como Cubano-Americana, destacando desta forma não apenas a dimensão global de sua identificação ao se perceber como parte da comunidade latinx, mas também sua concordância com o posicionamento estadunidense sobre Cuba. O show realizada em 1995 demonstrou tal intencionalidade tendo em vista que ocorreu em uma base militar estadunidense na ocasião em que a cantora divulgava um disco que buscava promover a identificação latina globalmente e no qual Cuba passava por processos de reorganização social, política e cultural, tendo como uma das consequências principais a dolarização e abertura ao capital estadunidense de forma 248 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA controlada (GOTT, 2006). As canções apresentadas, a cobertura midiática, a participação do público e outros elementos que foram pontuados neste ensaio fornecem elementos para contextualizar e refletir sobre esse processo que atravessa a carreira da cantora, mas que diz respeito a diferentes redes culturais existentes na América Latina. Em especial, através da análise da performance, percebe-se de que forma a artista transitava entre Cuba e os Estados Unidos na dimensão artística (através de sua produção), mas assim como outros artistas foi fundamental do ponto de vista político e das relações internacionais/diplomáticas culturais ao se apresentar em Guantánamo. Entre elementos que transitam de memórias a performances, arquivos a repertórios, redes a circulações, Gloria Estefan possibilita refletir sobre o papel central dos artistas exilados na construção de narrativas sobre Cuba no Tempo Presente. Desta forma, pensar a revolução cubana através de seus desdobramentos é um exercício de refletir sobre a atuação de diferentes sujeitos através de um longo período que não se limita apenas ao calor do momento revolucionário ou ao espaço geográfico do Caribe (BUSTAMENTE, 2019). As interpretações apresentadas são breves ideias que estão sendo desenvolvidas no âmbito de minha pesquisa de doutoramento em História no qual analiso a trajetória artística de Gloria Estefan entre 1977 e 2011. Este texto, de caráter ensaístico, constitui uma breve análise da performance como manifestação de sentidos, intencionalidades e redes decorrente de relações entre corpos, memórias e sujeitos (TAYLOR, 2013). Procuramos, em linhas gerais, mais que respostas fechadas apontar para processos que atravessaram o show da cantora em Guantánamo, atentando em especial para a centralidade das narrativas e representações centralizadas pela performance. Desta forma, pretendemos estimular o debate e a reflexão a respeito das circularidades entre Estados Unidos e Cuba por meio dos artistas exilados compreendendo sua atuação política, social e cultural na construção de visões sobre o país, sobre os Estados Unidos e a própria revolução de 1959. REFERÊNCIAS BUSTAMANTE, Michael. Cultural Politics and Political Cultures of the Cuban Revolution: New Directions in Scholarship. Cuban Studies, Volume 47, 2019. 249 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 250 BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Quem canta o Estado-nação? Língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UNB, 2018. CHOMSKY, Aviva. História da Revolução Cubana. São Paulo: Veneta, 2015. CHOMSKY, Aviva. "They Take Our Jobs!": And 20 Other Myths about Immigration. Boston: Beacon Press, 2007. DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens Apesar de Tudo. São Paulo: Editora 34, 2020. DUANY, Jorge. Blurred Borders: Transnational Migration between the Hispanic Caribbean and the United States. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011. GOTT, Richard. Cuba: Uma História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. HUYSSEN, Andreas. 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A concepção biológico-telúrica é mais afeita aos regimes oligárquicos e ao nacionalismo de direita, pois entende a nação como uma unidade definida por laços naturais, seja geográfico (o espaço territorial), seja biológico (a raça), e irracionais (o amor à terra natal, a religião). Esta concepção integradora desconsidera as diferenças sócio-culturais e políticas que compõem a nação e busca, no plano simbólico, operar com uma identificação hegemônica do que considera como “interesse nacional”. Nessa política cultural, o “Ser nacional" é estabelecido pelas grandes famílias privilegiadas e aristocráticas, com suas concepções de submissão à ordem e respeito às origens. A constituição histórica e conflituosa da nação é diluída na noção apaziguadora de “tradição” em prol das instituições: Igreja, Exército, Família e Propriedade. A política cultural correspondente à concepção biológico-telúrica tem como base a promoção do “folclore”, que é a fossilização e a despolitização da cultura das camadas populares. Assim, não está interessada em entender as “novas práticas de apropriação com que os setores populares tentam modificar sua dependência da cultura hegemônica 1 Doutor em Cultura e Sociedade (IHAC/UFBA). Pesquisador bolsista de pós-doutorado da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência (IEA/USP). e-mail: juanbrizuela@usp.br. 2 Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Professor permanente dos PPGs em Sociologia e em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará e em Comunicação da Universidade Federal do Ceará. E-mail: alexandrealmeidabarbalho@gmail.com. 252 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA ou criam, inventam, o que o sistema dominante não lhes dá para satisfazerem suas necessidades” (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 41). O movimento que importa é o de afirmação da identidade nacional em contraposição à alteridade daquele que não pertence ao meio, mas que vem perturbar a sua paz. A segunda concepção é a estatista, também apoiada em uma visão substancialista do nacional. Só que aqui a base da nacionalidade é o Estado. É ele quem legitima os valores a serem cultuados pelo povo e que integra a sociedade, regulando os conflitos. Afasta-se do ideário liberal do Estado democrático já que se sustenta nas corporações e no ideário “populista”, geralmente personificado na figura de um “grande líder”, como Vargas no Brasil e Perón na Argentina, ou de um partido coeso, como o PRI no México. A política cultural estatista, na simbiose entre nacional e Estado e se posicionando contrariamente às oligarquias, procura unir as camadas populares e a burguesia nacional. Para isso, promove tanto determinadas expressões das culturas populares, como o samba no Brasil e o tango na Argentina, quanto das indústrias culturais, como o rádio e o cinema. A outra concepção é a mercantil, onde o Estado se faz presente pautado prioritariamente, não pela questão da cultura nacional, mas pela constituição de um mercado nacional. O esforço é o de unificar os padrões e os costumes, de modo a formatar o consumidor e potencializar a circulação das mercadorias, inclusive, ou principalmente, a de bens simbólicos. Se na lógica estatista há a transformação do étnico e do popular no nacional, na lógica mercantil eles se reduzem ao “típico”, mais uma vez em detrimento da pluralidade e das diferentes expressões culturais da nação. Geralmente esse típico é apresentado (e/ou vendido) recorrendo a formatos espetaculares, em um movimento que, como define García Canclini (1983), perde em explicação e ganha em exposição. O que ocorre, desse modo, é uma política cultural promotora da padronização em nome do mercado. A quarta concepção é a militar que tomou sua forma mais bem acabada após o golpe no Brasil em 1964 e que, posteriormente, foi seguido por outros países latinoamericanos, como Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Peru e Uruguai. Como força presente nos rumos políticos da região desde os momentos iniciais da independência, o Exército resolve assumir o controle do Estado e da sociedade diante das ameaças externas (o comunismo), da desordem interna (conflitos sociais) e em nome da ética no 253 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA combate à corrupção dos chamados “governos populistas”. A base ideológica e pretensamente legitimadora dos golpes militares de Estado na América Latina é a “Doutrina da Segurança Nacional”, motivada pelos temores gerados pela Guerra Fria e pela revolução cubana e fundamentada nos ensinamentos vindos da Academia Militar Norte-Americana, com posterior contribuição dos militares franceses. A política cultural gerada por tal doutrina é a da apologia de determinados elementos da cultura nacional mais apropriados à necessidade de controle por parte dos militares e, por outro lado, inibindo a participação da população e de suas organizações (sindicatos, organizações de bairro, estudantis etc). Por fim, a concepção histórico-popular. Analisando o que naquele momento representava as experiências desta concepção (Cuba, Nicarágua, Guatemala, El Salvador, Unidade Popular Chilena, Peronismo Revolucionário Argentino), García Canclini conclui que esses movimentos estão unidos mais pelas ações políticoeconômicas e sociais do que por suas políticas culturais e que existem várias e divergentes concepções acerca do “popular”, sendo que, muitas vezes, a cultura não está nem explicitada como vetor das lutas sociais. O que há, portanto, é muito mais um “repertório de problemas” do que uma “fórmula alternativa ou de projetos elaborados do que seria uma política popular na cultura” (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 48). A análise de García Canclini, no momento em que foi feita, não poderia dar conta de fenômenos que são imediatamente posteriores como, por exemplo, o fim do bloco socialista, a ascensão do neoliberalismo, a escalada do processo de globalização e o gradual retorno à democracia nos países latino-americanos. Faz-se necessário, portanto, atualizar sua tipologia – o que não será feito neste artigo, diga-se logo de antemão – e um dos caminhos possíveis é recorrer ao conceito de “espaço cultural latino-americano”, tal como desenvolvido por Manuel Garretón. O autor levanta três hipóteses que considera básicas para compreender este espaço na contemporaneidade: 1. “no habrá integración de los países latinoamericanos a la globalización si no es por medio de la integración en un bloque proprio”; 2. “la dimensión cultural constituye un eje fundamental en la conformación de un bloque latinoamericano que se integra al mundo globalizado”; 3. “si la conformación del gran espacio mundial se hace a través de espacios culturales, América Latina puede ser uno de esos espacios” (GARRETÓN, 2008, p. 45-48). 254 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 255 Por outro lado, Garretón enumera três dificuldades a serem enfrentadas para que esse espaço consiga se efetivar. A primeira é que com a crise das comunidades nacionais provocada, entre outros vetores, pela globalização, faz-se necessário recompor os parâmetros de pertença. O que pode ser uma oportunidade de superar os padrões de nacionalidade excludente, elaborados pelas concepções anteriores (biológico-telúrica, estatista, mercantil e militar), e efetivar um modelo mais democrático não alcançado pela concepção histórico-popular, mas que dê conta dos parâmetros locais, nacional e supranacional. A segunda dificuldade é a da exclusão social, ou seja, “la expulsión de masas que ya no pertenecen a las comunidades nacionales ni siquiera en calidad de explotadas u oprimidas, sino que aparecen como simplemente sobrantes” (GARRETÓN, 2008, p. 48). Por fim, a falta de vontade política dos grupos dirigentes para a construção do espaço cultural latino-americano, que está formado por alguns componentes básicos: identidades; patrimônio; memória; educação; ciência e tecnologia; indústrias culturais. No que diz respeito a esse ponto, quando se observa as relações entre as políticas culturais na América Latina, a constatação é de que, historicamente, tais relações são muito tênues. No caso do Mercosul, por exemplo, a questão da integração cultural e a discussão sobre o seu significado e consequências só foram introduzidas na Cúpula de Fortaleza, em 1996, de onde surgiu o “Protocolo de Integração Cultural do Mercosul”. Apesar de pouca ação prática ter sido de fato executada, algo se avançou em termos de discussão sobre o assunto desde então, em especial nas reuniões dos ministros da Cultura dos países membros. Na de 2002, no Rio de Janeiro, se deu o “Seminário Indústrias Culturais no Mercosul”, cujo documento final recomendava, entre outras coisas, a criação de um sistema de informações culturais; a constituição de um Observatório Cultural do Mercosul; o aumento do intercâmbio das indústrias culturais entre os países do bloco; e a criação de contas satélite na cultura (ÁLVAREZ, 2003). No entanto, as recomendações privilegiavam mais o setor privado do que o público e a participação do Estado no processo de produção, circulação e consumo de bens culturais se restringia ao papel de financiador, observador e regulador. Como se verá, o Mercosul terá papel singular em relação aos Pontos de Cultura, objeto de reflexão deste capítulo. Partindo desse contexto, o que se propõe é analisar a formação de redes políticoculturais no espaço latino-americano contemporâneo, tendo como foco de investigação ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 256 o processo de internacionalização e territorialização da experiência dos Pontos de Cultura (PCs) e o surgimento da rede “Cultura Viva Comunitária” na América Latina, a partir da sua implantação como política pública de cultura no Brasil no primeiro governo Lula. O artigo se organiza em quatro partes seguidas das considerações finais. Na primeira, aborda-se os momentos iniciais de circulação e formação de redes entre os intelectuais latino-americanos. Na segunda, apresenta-se a política cultural vigente no Brasil de 2003 a 2016, com destaque para o Programa Cultura Viva (PCV) e os PCs. Por fim, nas seções seguintes analisa-se a constituição da “teia” – para usar um termo caro aos “ponteiros”3 – de PCs na América Latina e como essa política foi redesenhada em sua expansão pelo subcontinente. REDES DE INTELECTUAIS NA AMÉRICA LATINA: UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO Há uma história, ou talvez mesmo uma tradição, de circulação e formação de redes entre intelectuais latino-americanos que é bem anterior e diferente do contexto de trocas entre pesquisadores que se formou por meio do campo acadêmico, a partir da segunda metade do século XX. As redes acadêmicas se constituíram com fins eminentemente científicos e, eventualmente, abordaram as políticas para o setor4, com perfil mais institucionalizado e apoio de governos locais e instituições de financiamento privadas norte-americanas e europeias ou organismos como a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (DEVÉS, 2012; PEÑA, 2014). Já as redes de intelectuais de fins do século XIX até a década de 1970 eram de literatos e ensaístas e possuíam, geralmente, o intuito de interferir na conjuntura político-cultural de seus países ou mesmo do subcontinente. A partir das definições de Gisèle Sapiro (2009) e Pierre Bourdieu (1999), pode-se afirmar que se tratavam de intelectuais entendidos como produtores culturais que, com a autoridade adquirida nesse campo, participavam ativamente da esfera pública e de seus debates e embates; em 3 Termo com o qual se auto nomeiam os agentes envolvidos com os pontos de cultura e seu movimento no Brasil. 4 A título de exemplo, ver as redes constituídas nos campos acadêmicos da teoria e da crítica literária (PEÑALOZA, 2013) e também da literatura comparada (ZÓ, 2013). ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA outras palavras, da ação política e da produção ideológica de seu tempo. É o caso, por exemplo, da Unión Latino Americana (ULA) que existiu entre 1923 e 1930 e se propôs a reunir os intelectuais latino-americanos para se contraporem ao imperialismo estadunidense, tendo como veículo de circulação de suas ideias a revista Boletín Renovación (González et al, 2019). O fundador da organização foi José Ingenieros, um pensador ítalo-argentino com grande inserção em vários campos da vida pública argentina e um dos divulgadores do pensamento socialista em seu país. As revistas, tais como a Boletín Renovación, que possuíam o perfil de publicações político-culturais, foram o principal meio de materialização das relações entre intelectuais latino-americanos e de circulação de suas ideias ou foram elas próprias constituidoras de redes a partir de sua existência. Pode se dizer, também, que as redes se transformaram a partir de suas revistas, na medida em que estas foram incorporando colaboradores não previstos. Percebe-se, desse modo, uma relação rica entre redes de intelectuais, circulação de ideias e periódicos (MAÍZ, 2013; MAÍZ; FONSECA, 2019). Um bom exemplo é o da Martín Fierro, fundada em Buenos Aires em 1924 que reuniu os modernistas argentinos. Ainda que de forma tortuosa, o periódico relacionavase com o “americanismo”, ou seja, com “a inclusão em um ‘nós’ mais amplo, a partir do qual a revista se situa como parte do ‘despertar intelectual da América Latina’”, como situa Karina Vasquez (VASQUEZ, 2005, p. 76). Tanto que um de seus principais colaboradores, Oliverio Girondo, saiu em missão pela América e pela Europa para divulgar a produção literária e os periódicos de seu país e estabelecer laços e intercâmbios com escritores americanos e europeus, tendo passado inclusive pelo Rio de Janeiro. É importante ressaltar, ainda, o papel que desempenharam os partidos e as agremiações de esquerda, em especial os comunistas, para a circulação de intelectuais engajados e de suas obras. Caso emblemático, no Brasil, é o de Jorge Amado, que iniciou seu envolvimento com a juventude comunista em 1920 e esteve atuante no partido, pelo qual foi eleito deputado federal em 1945, até 1956. Como situa Marisa de Mello em sua pesquisa sobre o processo de consagração de escritores brasileiros, Amado era o tipo ideal de intelectual a ser promovido pelo PCB entre os setores progressistas brasileiros e internacionais, de modo que “a grande rede cultural que 257 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA envolvia o partido, como jornais, revistas, as editoras, os congressos e os prêmios, contribuiu para a divulgação de seu trabalho” (MELLO, 2019, p. 58). Também foram importantes as redes constituídas em torno dos movimentos revolucionários latino-americanos e, particularmente, da revolução cubana. Como situa Adriane Costa, o movimento vitorioso em Cuba promoveu, nos anos 1960, uma rede intelectual de esquerda cujos integrantes possuíam opiniões semelhantes, se expressavam praticamente nos mesmos periódicos, reuniam-se periodicamente em congressos e trocavam correspondências. O seu repertório discursivo “apelava, principalmente, para o fomento da integração cultural latino-americana, o fortalecimento do compromisso político-social do escritor, a defesa da causa cubana e do socialismo e, por fim, a promoção da luta anti-imperialista” (COSTA, 2009, p. 47). Observamos, assim, que a construção de redes artísticas e culturais no continente latino-americano ao longo do século XX, em especial até o final da guerra fria, tinha uma lógica muito mais hispano-americana do que efetivamente latino-americana, em toda a sua abrangência. O papel do intelectual, engajado politicamente em partidos de esquerda, também era comum na liderança destes intercâmbios político-culturais. Dessa forma, não era raro a participação destes “notáveis” na construção de políticas públicas ou na gestão de instituições artísticas e culturais, embora sejam contribuições mais a título individual e não em nome das redes. Finalmente, embora possa ser exagerado sinalizar que a maior parte vinha das elites econômicas, claramente detinha um alto grau de capital simbólico, bem como uma formação e uma legitimação civilizatórias atreladas a um mundo eurocentrado. De todo modo, não se observa, ao longo dessa trajetória, a constituição de redes de intelectuais oriundos das classes populares, muito menos que compartilhem e promovam uma política cultural popular5, pois, como visto na introdução, não era esse o caso do tipo "histórico-popular", descrito por Garcia Canclini. O que posiciona como inovadora a rede dos PCs e da Cultura Viva Comunitária que se estabeleceu no espaço cultural latino-americano no novo milênio. Antes, contudo, de analisar a formação dessa rede ou dessa "teia", é necessário localizar a criação do PCV e dos PCs no contexto da política cultural brasileira. 5 A esse respeito ver o levantamento realizado no âmbito da Cátedra Andrés Bello, ligada à Universidade Federal da Bahia, para o contexto íbero-americano (RUBIM; PITOMBO; RUBIM, 2005). 258 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA O PROGRAMA CULTURA VIVA E A POLÍTICA CULTURAL NOS GOVERNOS PETISTAS O Programa Cultura Viva (PCV) e a ação dos Pontos de Cultura (PCs) podem ser considerados como paradigmáticos da política cultural brasileira estabelecida a partir do primeiro governo Lula, sob liderança do ministro da Cultura Gilberto Gil. Como demonstra uma ampla e consolidada bibliografia (ver, entre outros, BARBALHO; RUBIM, 2007; BARBALHO; BARROS; CALABRE, 2013; BARBALHO; CALABRE; RUBIM, 2015; CALABRE, 2009; RUBIM, 2010, 2011), tratou-se de um momento em que o Estado retomou o papel de formulador e executor das políticas públicas de cultura, o que implicou, entre outras consequências, no esforço em institucionalizar essas políticas, como demonstram, por exemplo, a elaboração do Plano Nacional de Cultura, de duração decenal e a implantação do Sistema Nacional de Cultura, e no desenho de programas e ações inovadores que tornaram-se, inclusive, referências para outros países como o DOC-TV. Lançado em julho de 2004, o Programa Cultura Viva sintetiza esses dois aspectos, pois busca se configurar como política estruturante - tanto que foi promulgada a Lei 13.018 em julho de 2014, criando a Política Nacional de Cultura Viva - e apresenta um formato arrojado ao eleger como público alvo parcelas da sociedade brasileira que historicamente ficaram à margem das políticas culturais, a partir de uma concepção ampla de cultura, privilegiando sua dimensão comunitária, popular e participativa. Não se trata aqui de fazer uma análise, muito menos uma avaliação do PCV e dos PCs, tarefas que já foram enfrentadas por diversos pesquisadores e pesquisadoras (ver, por exemplo, BEZERRA, 2014; BARBOSA DA SILVA, 2014; BARBOSA DA SILVA; ARAÚJO, 2010; BARBOSA DA SILVA; CALABRE, 2011; BARBOSA DA SILVA; LAMBREA, 2017; DOMINGUES, 2013; MENEZES, 2013; OLIVEIRA, 2018), mas apenas apresentar suas linhas gerais de funcionamento. Segundo o Ministério da Cultura (MinC) o Programa foi concebido como “uma rede orgânica de criação e gestão cultural, mediado pelos Pontos de Cultura, sua principal ação”. Pensado como uma política de continuidade, seu intuito principal era articular a atuação governamental com experiências político-culturais já existentes na 259 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA sociedade – que passariam a ser nomeados de PCs – buscando, dessa forma, criar “um ambiente propício ao resgate da cidadania pelo reconhecimento da importância da cultura produzida em cada localidade” (BRASIL, s/d, p. 18). O papel do MinC era o de “agregar recursos e novas capacidades”, ofertando, por meio de seleção pública no formato de edital, aporte financeiros e equipamentos de informática repassados por meio de convênios a PCs selecionados em todas as regiões do país. Entre os objetivos do PCV, destaca-se, para fins deste artigo: “identificar parceiros e promover pactos com diversos atores sociais governamentais e nãogovernamentais, nacionais e estrangeiros”; dar “vazão à dinâmica própria das comunidades e entrelaçando ações e suportes dirigidos ao desenvolvimento de uma cultura cooperativa, solidária e transformadora”; e “fomentar uma rede horizontal de transformação, de invenção, de fazer e refazer, no sentido da geração de uma teia de significações que nos envolve a todos” (BRASIL, s/d, p. 18, grifo nosso). Inicialmente implementados como uma política federal, posteriormente os PCs foram objetos de editais estaduais e municipais, em parceria com o MinC, tornando-se assim uma espécie de exercício prático do Sistema Nacional de Cultura, que vem sendo desenhado e implementado pelo Ministério desde 2003 (BARBALHO, 2019). O público prioritário, como antecipado, era constituído por setores da sociedade brasileira até então pouco ou nada beneficiados com as políticas culturais que, desde a redemocratização, tinham como suporte central as leis de incentivo, instrumento de financiamento que tende a favorecer a elite da produção cultural do país. Em outras palavras, o PCV buscou alcançar as populações de baixa renda, mais sujeitas a situações de vulnerabilidade social, além das minorias (comunidades indígenas, rurais, quilombolas, ciganos, GLBTQ+) e agentes culturais e ativistas sociais envolvidos com ações de combate à exclusão sócio-cultural. Os elaboradores do PCV previam, no contexto da política externa do governo Lula, formalizar como PCs experiências semelhantes realizadas por comunidades de brasileiros no exterior, nomeadamente nos Países do Mercosul e na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Esses pontos se conectariam com seus congêneres brasileiros, constituindo uma rede internacional, “fortalecendo a relação sul-sul, horizontalizando a relação sul-norte e colaborando com a construção de uma corrente 260 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA solidária e contra-hegemônica” (BRASIL, s/d, p. 22). Contudo, essa proposta não chegou a se concretizar, pelo menos não na forma inicialmente prevista. Além dos PCs, o PCV executava outras ações: Agente Cultura Viva, Cultura Digital, Escola Viva e Griôs – mestres dos saberes. A ação Agente Cultura Viva, em parceria com o programa Primeiro Emprego, do Ministério do Trabalho e Emprego, visava estimular na juventude o interesse e a qualificação em uma profissão relacionada à cultura. A Cultura Digital buscava promover a produção de conteúdo digital nos PCs por meio de softwares livres. Essa produção cultural circularia na rede digital que interligaria todos os PCs, compartilhando não apenas o conteúdo, mas também experiências inovadoras e participativas de gestão pública. A ação Escola Viva, em colaboração com o Ministério da Educação, objetivava integrar os PCs à escola e, assim, expandir o “capital social” dos brasileiros. Por fim, a ação Griôs estava voltada para a cultura tradicional e seus mestres. O gestor que se tornou a imagem pública do PCV foi Célio Turino6, secretário de Programas e Projetos Culturais (renomeada em 2008 como Secretaria de Cidadania Cultural e em 2011 como Secretaria de Cultura e Diversidade Cultural) do MinC. É de Turino a “narrativa” mais conhecida sobre os PCs, intitulada Ponto de cultura. O Brasil de baixo para cima, publicado em 2009. Nela, relata que o termo “ponto de cultura” nasceu na gestão de Antônio Augusto Arantes, antropólogo e professor da UNICAMP, quando secretário de Cultura de Campinas no final da década de 1980, para nomear dois espaços culturais municipais na periferia da cidade. Na sua avaliação, houve uma adesão efetiva ao PCV e aos PCs por parte de setores da sociedade civil, a ponto de se identificarem como movimento social, se auto-intitularem como “ponteiros” e dos gestores dos PCs terem assimilado os conceitos centrais do programa (autonomia, protagonismo e empoderamento). Turino defende em seu livro que o PCV e os PCs só foram viáveis por conta do ambiente político e social proporcionado pelo governo Lula e pelo simbolismo da presença de um líder operário na Presidência da República. Ao longo da sua execução inicial (2004-2010), o PCV e os PCs consolidaram, portanto, um movimento social e uma rede nacional que retroalimentam ou, ainda mais, que são constitutivos da política governamental. Trata-se de uma experiência de política 6 Historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Foi Secretário Municipal de Cultura de Campinas (1990-1992). 261 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA cultural inédita no Brasil que buscou conectar e dar nome a diversas entidades artísticas e culturais e que batizou e alimentou um movimento sociocultural, como é o Cultura Viva. Com a sua circulação por meio do que Elodie Bordat-Chauvin (2020) chamou de "cenas transnacionais de encontro de atores institucionais", e, dessa forma, com a contribuição de outros países latino-americanos, o PCV terminará sendo o "Cultura Viva Comunitária", como se verá em seguida. A EXPANSÃO “OCASIONADA” PELOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS: DAS PRIMEIRAS TEIAS E CONGRESSOS... Em seu livro, publicado cinco anos após a implantação do programa, Turino já indicava o interesse pelos PCs no espaço latino-americano. Ele faz referência ao Congresso Íbero-Americano de Cultura a ser realizado no Brasil exatamente por conta da experiência dos pontos, bem como a pretensão da Secretaria Geral Ibero-americana (SEGIB)7 em transformar o conceito em política pública no subcontinente “integrando nossos povos pela cultura” (TURINO, 2009, p. 119). Contudo, essa interação no espaço latino-americano não era óbvia. Em depoimento a essa pesquisa, Emiliano Fuentes Firmani8 sugere que o Cultura Viva não tinha previsão de se relacionar com a América latina. Todos os primeiros registros de internacionalização dos PCs, tanto nos discursos de Gil, quanto nos de Juca, estavam orientados para a Europa e Estados Unidos de modo que "a participação dos intelectuais no que foi a internacionalização dos pontos de cultura, na primeira etapa, foi europeia, não foi latino-americana".9 Fuentes Firmani observa, por exemplo, que os intelectuais convidados para o seminário internacional que ocorreu durante a Teia10 de Fortaleza em 2010 eram em maioria europeus. 7 A SEGIB, com sede em Madrid e criada em 2005, é um órgão de apoio institucional e técnico à Conferência Ibero-americana e à Cúpula de Chefes de Estado e de Governo e reúne 22 países iberoamericanos. 8 Fuentes Firmani é Secretário Executivo da Unidade Técnica do Programa IberCultura Viva (SEGIB). Graduado em Gestão Cultural pela UNTREF, foi assessor do programa Puntos de Cultura na Argentina. Fundador da RGC Ediciones, projeto especializado em publicações sobre gestão e políticas culturais. 9 Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 15 jan. 2021. 10 As Teias foram encontros presenciais com pontos de cultura de todo o país. Na gestão de Célio Turino, ocorreram três: 2007 (Belo Horizonte), 2008 (Brasilia) e 2010 (Fortaleza). 262 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Alguns fatos reforçam a tese de Fuentes Firmani. Em depoimento para esta pesquisa, Turino afirma que não tinha uma rede anterior de contatos na América Latina, nem como gestor cultural, nem como militante partidário. Ele ressalta, no que diz respeito à internacionalização, o esforço de criar PCs para atender a comunidades brasileiras no exterior, o que teria sido uma sugestão do presidente Lula, quando Gil e a equipe do MinC apresentaram a proposta do PGC no final de 2004. Lula teria dito na ocasião para "não se esquecer dos brasileiros que vivem fora do Brasil, dos imigrantes"11. A partir de 2005, seriam estabelecidos três PCs nos EUA e um na França, com repasses de recursos do governo brasileiro por meio do Itamaraty. Outros, como o da Áustria, receberam apenas o "selo" de PC. No entanto, a ampliação dessa ação se tornou inviável por conta das restrições legais no que diz respeito ao envio de dinheiro, na época, 20 mil dólares por PC, e às prestações de conta. Por sua vez, a Itália foi o primeiro país a adotar os PCs, com o projeto Officine dell’Arte que oferece oficinas de arte e cultura multimídia destinadas ao público jovem, em áreas urbanas deterioradas, como forma de desenvolvimento social e territorial. Em 2006, Gil participou do lançamento do projeto italiano12. Em 2010, ocorreu o projeto “Pontos de Contato”, coordenado por Alexandre Santini, então consultor da Secretaria de Cidadania Cultural, que promoveu o intercâmbio de vinte PCs com organizações não-governamentais do Reino Unido ligadas à arte e a questões sociais13. Santini, por sua vez, destaca que na Teia de 2010 ocorreu a internacionalização dos PCs com a realização do seminário, ao qual Fuentes faz referência, e a criação de um Conselho Internacional do PCV, que reuniu representantes de quinze países provenientes da América Latina, Europa e Estados Unidos. O Conselho não chegou a se efetivar por conta do processo de desmobilização do PCV na gestão da ministra Ana de Hollanda no MinC. O próprio Santini reconhece que, a despeito da participação de alguns representantes latinoamericanos, “não há uma relação entre a iniciativa daquela proposta [Conselho Internacional] com o movimento Cultura Viva Comunitária” (SANTINI, 2017, p. 102). 11 Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021. A esse respeito ver http://cultura.gov.br/pontos-de-cultura-no-exterior/. Acesso: 26 fev. 2021. 13 A esse respeito ver http://cultura.gov.br/pontos-de-cultura-na-inglaterra-1134590/. Acesso em 26 fev. 2021. 12 263 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Também Turino aponta esse encontro da Teia em Fortaleza como momentochave para a conexão dos PCs brasileiros com a América Latina. A Teia foi uma espécie de despedida sua do cargo de secretário. Ele recorda que a organização convidou vários intelectuais latino-americanos, tendo patrocinado a vinda de alguns deles. Na ocasião, eles teriam então visto "algo fantástico", um "governo que tinha abraçado a cultura das comunidades, a cultura comunitária, daquela forma (...) foi uma explosão, porque foi o ápice mesmo, três mil pontos de cultura, cinco, seis mil pessoas do Brasil todo e aí o pessoal da América Latina fez um encontro, acho que tinha umas trinta pessoas, e ali foi a germinação maior".14 Mas os primeiros contatos dos PCs com intelectuais e ativistas da América latina ocorreram já na primeira Teia, em São Paulo, em 2006, com a participação de representantes de grupos teatrais ligados à Red Latinoamericana de Teatro en Comunidad, por conta de uma atividade promovida pelo grupo de teatro Pombas Urbanas, atuante na periferia da capital paulista, que também era um ponto e integrante da rede. Dessa ação, entre outros grupos, participou a Corporación Cultural Nuestra Gente, de Medellín, cujo diretor, Jorge Blandón, na avaliação de Santini, “passou a ter um papel ativo na difusão do programa Cultura Viva na Colômbia e na América Latina, convertendo-se em um dos articuladores da Plataforma Cultura Viva Comunitária" (SANTINI, 2017, p. 135). Outro momento importante do início dessa rede foi a realização do I Congresso Ibero-americano de Cultura, promovido pela SEGIB em 2008 na Cidade do México, no qual os PCs foram apresentados como ação paradigmática da política cultural brasileira. Tendo causado impacto positivo, pautou a realização do congresso seguinte no Brasil, quando o PCV seria discutido como modelo de política de cultura para a Iberoamérica (SANTINI, 2017). De fato, em outubro de 2009, o II Congresso Ibero-americano de Cultura, ocorrido em São Paulo e reunindo 22 países, teve como tema central “Cultura e transformação social”. O propósito do encontro foi "analisar as potencialidades da cultura ibero-americana" e reforçar ações conjuntas entre os países membros visando "a formação e o fortalecimento das políticas públicas que considerem a cultura como um campo fértil para o desenvolvimento económico e social" (grifo nosso). Um dos elementos salientados pelo então secretário-geral da SEGIB, Enrique Iglesias, foi os 14 Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021. 264 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA PCs, qualificados por ele como uma "forma imaginativa de política cultural"15. A ação do MinC foi tema do painel "Pontos de Cultura, Casas de Cultura, Missões Culturais e outras experiências de protagonismo sociocultural". Turino destaca esse Congresso como central para a visibilidade do PCV e, em especial, dos PCs para o restante da América Latina. Para tanto, foi fundamental a montagem da peça Quixote, em que cada país, no total de 13, tinha que representar uma cena. O importante, segundo o gestor, não foi propriamente o espetáculo - que teve duas apresentações no SESC-SP - mas o movimento que desencadeou a vivência entre 90 artistas de vários países que ficaram alojados durante quinze dias no ponto de cultura Pombas Urbanas. Foi ali que teria se criado o "entendimento" do que era um PC para os participantes de fora do Brasil16. … AO FÓRUM, PASSANDO PELA PLATAFORMA E CHEGANDO NA “CARAVANA CONTINENTAL” De todo modo, ainda que Fuentes Firmani desconheça essa circulação da proposta dos PCs pela América Latina, tanto ele, quanto Santini e Turino convergem em apontar para o Fórum Social Mundial realizado em Belém, em janeiro de 2009, como momento privilegiado desse processo17. Para o gestor argentino, foi mesmo o momento inicial. Na ocasião, ele junto com outros produtores culturais montaram uma mesa de discussão intitulada “A articulação latino-americana de cultura e política" na qual participaram representantes de pontos de cultura. Em outra mesa, sobre políticas públicas, na qual Eduardo Balán18 participou para falar da experiência argentina, teve a presença de Turino apresentando a experiência do PVC e dos PCs. 15 Disponível em https://www.segib.org/pt-br/o-ii-congresso-ibero-americano-da-cultura-apostou-natransformacao-social/ Acesso em 08 fev. 2021. 16 Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021. 17 O Fórum teve como lema "Um outro mundo é possível" e discutiu, entre outros temas a integração latino-americana com a participação dos então presidentes do Brasil, Luiz Inácio “Lula” da Silva, da Venezuela, Hugo Chávez, do Equador, Rafael Correia, do Paraguai, Fernando Lugo, e da Bolívia, Evo Morales. 18 Eduardo Balán é editor, educador e comunicador popular; fundador do coletivo cultural “El Culebrón Timbal”, produtora, espaço cultural e educativo que inclui o plurimédio comunitario “La Posta Regional”. Atualmente trabalha na gestão pública no município de Moreno, Província de Buenos Aires, Argentina, na Direção Geral de Educação Popular e Comunitária. Para um depoimento de sua relação com o Cultura Viva Comunitária ver Balán (2018). 265 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Turino ressalta a participação, no Fórum, do "Arte para a transformação social", movimento do qual faziam parte, entre outros, Ines Sanguinetti e Jorge Blandon, e que promoveu a mesa da qual o gestor brasileiro participou. Do cruzamento que a mesa possibilitou, resultou uma reunião sobre o Cultura Viva e eles, nas palavras de Turino, "abraçaram" a proposta dos PCS, no momento em que começavam a articular a Plataforma Puente, da qual se falará mais adiante19. A mesa sobre políticas públicas ao qual se refere Fuentes Firmani foi uma promoção do Instituto Pólis, de São Paulo, ele próprio um PC e integrante da "Articulação Latino-americana: Cultura e Política" (ALACP)20. A mesa se chamou “Pontos de Cultura: Políticas Públicas e Cidadania Cultural” e reuniu uma centena de representantes de PCs e de organizações culturais comunitárias da América Latina. Hamilton Faria, um dos fundadores do Instituto, em entrevista concedida à Silvia Chejter (2010), ressalta que a ideia de regionalizar os PCs surgiu no Fórum. Para o lançamento formal da ALACP durante o evento em Belém, Faria propôs a mesa para a qual foram convidados representantes da América Latina, com destaque para a Argentina e a Colômbia. Segundo Faria, as pessoas ficaram "fascinadas" e perceberam que os PCs eram "uma proposta universal e poderia ser replicada em outros países". A partir de uma mobilização dos argentinos presentes no evento é que surgiu uma proposta de lei para o Parlamento do MERCOSUL, da qual se falará mais adiante. Na sua avaliação, os PCs são "uma experiência concreta de articulação entre redes, de uma articulação em torno a uma política de cultura para América do Sul e não só discursos gerais, discursos ideológicos sobre a diversidade, etc., senão um intercâmbio e uma aproximação de fato" (FARIA apud CHEJTER, 2010, p. 143). 19 Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021. A ALACP é uma rede de mobilização de entidades da sociedade civil da América Latina e composta por organizações como INESC, CEPAD, Instituto Pólis, CFEMEA, Red Mesoamerica de Arte y Transformación e AVINA. Sua pretensão é "descobrir novos caminhos para a integração latinoamericana e contribuir para a reinvenção da democracia e da cidadania cultural, por meio de articulações inovadoras entre movimentos culturais e sociais". A ALACP se define como "uma rede de experiências e de comunicação composta por organizações sociais, culturais e de expressões artísticas que visa contribuir para os processos de democratização/cidadania cultural, construção de valores e símbolos que sejam capazes de mobilizar manifestações e posições de afirmação a favor de uma sociedade mais justa, plural, equitativa, sustentável fundada na radicalização e implementação dos direitos humanos nas diversas sociedades e povos da América Latina". A esse respeito ver https://polis.org.br/noticias/articulacaolatinoamericana-de-cultura-e-politica-e-lancada-no-fsm/ e https://www.af2comunicacao.com.br/cultura-eprotagonismo-social-na-america-latina/. Acesso em 08 fev. 2021. 20 266 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Para Santini, as participações dos PCs no Fórum sinalizavam o fato de que a rede criada pelos pontos “começava a assumir os contornos de um movimento políticosocial” que, embora articulado a partir de uma política pública e com interlocução com o Estado, apresentava “uma perspectiva de dialogar e incorporar outros espaços de debate e participação social construídos de maneira autônoma pela sociedade civil, pautando a dimensão cultural nos debates políticos dos movimentos sociais” (SANTINI, 2017, p. 136). O depoimento de Santini remete à análise que Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar fazem na introdução à coletânea que organizaram com textos acerca das relações entre cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos. Os autores propõem uma nova forma de compreensão desses movimentos ao defenderem que todos eles, de maneira mais ou menos consciente e com maior ou menor extensão, põem em prática políticas culturais. Por política cultural, entendem a relação constituinte entre cultura e política, posto que as práticas sociais e seus significados simbólicos (dimensão cultural) não podem ser consideradas de forma separada das relações de poder (dimensão política) e vice-versa. Em outras palavras, a política cultural é o “processo posto em ação quando um conjunto de atores sociais moldeados por, e que encarnam diferentes significados e práticas culturais, entram em conflito uns com outros” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 24). As políticas culturais dos movimentos sociais, e especificamente dos latino-americanos, se revelam em suas ações concretas na luta contra os projetos dominantes de "nação", “democracia”, “cidadania”, "gênero", “etnia”, etc., de modo que desafiam a cultura política vigente, desestabilizando-a e ampliando seu significado. As articulações propiciadas pelo Fórum levaram a que intelectuais e ativistas culturais comunitários de vários países latino-americanos passassem a demandar, dos poderes públicos de seus países, políticas que se inspirassem no desenho do PCV e do PC. Ainda em setembro de 2009, a ALACP realizou o seminário "Cultura e Protagonismo Social na América Latina" em Brasília como parte da programação da nona edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. O objetivo era dar continuidade aos debates ocorridos em Belém e contou com a participação dos seguintes convidados latino-americanos como palestrantes ou mediadores: Wal Mayans (Paraguai- Proyecto Tierra sin Mal/Hara Teatro), Carlos Hugo 267 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Molina (Bolívia/CEPAD), Inés Sanguinetti (Argentina - Crear vale la pena), Mirtha Palácios (Paraguai - Parlasul) e Eduardo Balán (Argentina - El Culebrón Timbal). Desse encontro surgiu um projeto recomendando aos países membros do Mercosul que adotassem os PCs. O projeto foi apresentado pela senadora brasileira Marisa Serrano (PSDB/MS) e aprovado pelo Parlasur em 2009. George Yúdice chama atenção para outro evento ocorrido em Mar del Plata, em dezembro de 2009, o Primeiro Congresso Internacional de Cultura para a Transformação Social - na sua perspectiva, a "pré-história imediata" do Cultura Viva Comunitária - que reuniu redes e líderes de organizações e movimentos culturais. Ainda que, pelo que foi exposto anteriormente, tudo indique que essa pré-história tenha ocorrido antes, Yúdice traz uma análise interessante sobre o que permitiu a realização desse congresso: o fato de muitos deles terem se conhecido na virada de esquerda dos governos latino-americanos no início dos anos 2000 que priorizou, nestes páises, "o protagonismo das classes populares e de grupos marginalizados como os afrodescendentes e indígenas". Como exemplo, cita a realização, em São Paulo, em 2004, do Fórum Cultural Mundial, inspirado no Fórum Social Mundial ocorrido três anos antes. "Os participantes desses fóruns", segundo Yúdice, "procuraram capacitar os desfavorecidos através da arte e da prática cultural, não como espectadores, mas como participantes ativos" (YÚDICE, 2019, p. 144) e destaca a atuação de Jorge Melguizo, então secretário de Desenvolvimento Social de Medellín, e ex-secretário de cultura da cidade. Esse dado é interessante porque Santini (2017) destaca outro caminho, em paralelo ao do Brasil, que se deu nos territórios culturais latino-americanos e que favoreceu a formação da teia do Cultura Viva na região. Trata-se, exatamente, da experiência de Medellín, que desde fim dos anos 1990, adotava políticas de incentivo a organizações culturais comunitárias, como parte da estratégia de combate ao narcotráfico. Nesse contexto, algumas dessas organizações, junto com a Secretaría de Cultura Ciudadana da cidade e o Museu de Antioquia, promoveram em 2010 um encontro reunindo cem organizações culturais comunitárias latino-americanas, como resultado da articulação dos ativistas de Medelim em redes culturais na região, tais como: Red Latinoamericana de Arte y Transformación Social (RLATS), Red Latinoamericana de Teatro en Comunidad, Red Centroamericana de Arte Comunitario 268 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA (MARACA), Asociación Latinoamericana de Experiencias Radiofónicas (ALER) e a ALACP. Essas redes surgiram entre fins dos anos 1990 e o início da década seguinte e foram subsidiadas por fundações privadas e agências de cooperação internacional (Avina, Hivos, Ford etc). O esforço do encontro era o de buscar autonomia frente a essas instituições financiadoras, ampliar a capacidade de agendar as políticas públicas e estabelecer ligações com outras esferas públicas e questões sociais. Desse movimento surgiu a Plataforma Puente que reúne iniciativas culturais da região latino-americana e de diversas linguagens e esferas de ação. O documento que cria a rede faz referência explícita ao PCV, como experiência em nível nacional, e às políticas culturais de Medellín, no nível local, como paradigmas de políticas públicas a serem adotadas na América Latina. O documento informa que a Plataforma, uma "acción mixta entre lo público y la sociedad civil", se articula como "una gestión conjunta entre redes, en torno a: Políticas de arte y cultura, Arte y transformación social, Arte puente para la salud, Arte y educación, Comunicación para el desarrollo, Gestores sociales para el desarrollo, Ciudades sustentables, ciudades imaginadas" (CULTURA VIVA COMUNTARIA apud SANTINI, 2017, p. 139). O encontro em Medellín foi fundamental para os desdobramentos seguintes ao estimular a articulação de organizações culturais comunitárias na América Latina. Voltando ao Brasil, entre 2009 e 2010 foram realizadas diversas articulações latino-americanas com Juca Ferreira à frente do MinC e Célio Turino na Secretaria de Cidadania Cultural que tinha, conforme registrado pelo IPEA, o orçamento mais importante da pasta (BARBOSA DA SILVA; ARAÚJO, 2010). Contudo, já no final de 2010 a situação começou a se modificar com a saída de Turino da Secretaria e se radicalizou no primeiro governo Dilma Rousseff, a partir de 2011, com a nova ministra de Cultura, Ana de Hollanda. A titular da pasta extinguiu as Secretarias de Cidadania Cultural e de Identidade e Diversidade Cultural e criou a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural cuja primeira gestora foi Marta Porto. Em menos de dois anos, tanto a ministra como a secretária foram substituídas do cargo, e um dos principais movimentos de oposição que enfrentaram foi, justamente, o dos pontos de cultura. No primeiro governo Dilma (2011-2014), portanto, o PCV foi perdendo protagonismo e 269 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA orçamento, como expressa a quantidade cada vez menor de PCs apoiados com recursos federais. Mas se no plano interno brasileiro, a instabilidade, a redução do orçamento e a sensação de “desmonte” do programa Cultura Viva (TURINO, 2013) geraram profundas contradições na gestão do MinC e nas próprias redes e conselhos de pontos de cultura que tinham sido criados anteriormente, as relações com os países latinoamericanos pareciam ir em direção totalmente diferente, seja no nível governamental, seja nas redes dos movimentos culturais comunitários. Afinal, foi na gestão de Ana de Hollanda que se assinou o memorando de entendimento com a então Secretaria de Cultura da Argentina com foco, justamente, no PCV e nos PCS como experiências análogas de cooperação, formação, capacitação e intercâmbio técnico e foi lançado o "Programa Nacional de Puntos de Cultura". Na Costa Rica, El Salvador e Guatemala o conceito de Cultura Viva Comunitária começou a ser debatido por organizações comunitárias e instituições governamentais21. No Peru, o recém-criado Ministério de Cultura implantou uma experiência piloto de PCs nesse período que vale a pena destacar porque, junto com Argentina, são as iniciativas públicas mais duradouras da região fora do Brasil. Para Paloma Carpio22, o movimento da cultura viva comunitária no Peru é interessante, também, pelo fato de não ter tido um governo progressista ou de esquerda nos moldes de outros países da região. Tanto o Ministério quanto o programa Puntos de Cultura resistiram às mudanças de gestão e uma profunda instabilidade presidencial que foi uma constante ao longo dos anos. Carpio23 reforça a importância das redes preexistentes e o papel impulsionador das fundações de cooperação internacional na aproximação do país com os processos da Cultura Viva, que no caso dela se inicia em 2007 e se fortalece no FSM de Belém do Pará em 2009 e na Teia de Fortaleza de 2010. Através de um contato acadêmico, o prof. Victor Vich, se aproximou da gestão cultural no município de Lima em 2011 - que tinha uma prefeita recém eleita de centro-esquerda, Susana Villarán - e em 2012 chega ao 21 Memorando de Entendimento entre o Ministério de Cultura do Brasil e a Secretaria de Cultura da República Argentina, assinado em Buenos Aires, 2011. Disponível em https://iberculturaviva.org/wpcontent/uploads/2018/03/Memorandum-de-Entendimiento.pdf Acesso em 15 fev. 2021. 22 Paloma Carpio é formada em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidad Católica de Perú, fundadora de Tránsito-Vías de Comunicación Escénica. Foi assessora cultural no município de Lima e coordenadora dos Pontos de Cultura no Ministério de Cultura do Peru. Mais informações em Carpio (2015). 23 Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 09 abr. 2021. 270 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Ministério da Cultura também por contatos universitários da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP). Em síntese, Cárpio não foi formada como militante e funcionária cultural por um partido comunista ou de esquerda tradicional ou progressista (aliás, o comunismo no Peru está muito associado, ainda, aos movimentos armados mais radicalizados como Sendero Luminoso) mas pelas redes da sociedade civil, da cooperação internacional e da qualificação universitária. Em setembro de 2011, em Mar del Plata, ocorreu o IV Congresso Iberoamericano de Cultura, com o lema “Cultura, política e participação social”. Contudo, o evento não previa a participação de organizações culturais não governamentais. Diante desse impedimento, ocorreu uma articulação a partir da rede estabelecida em Medellín que pressionou a organização do Congresso e conseguiu garantir a realização de uma programação paralela que se intitulou “Cofralandes de Organizaciones Culturales Comunitarias”. Naquele espaço se realizou a “Asamblea Latinoamericana de Cultura Viva Comunitaria”, com a participação de representantes de 21 países. Do encontro da Plataforma Puente em Mar del Plata, surgiu a proposta de realizar a Semana Continental de Cultura Viva Comunitaria, que ocorreu em abril de 2012, e "consistió en la realización de actividades tales como encuentros, festivales, debates, seminarios y manifestaciones culturales en varios países, para promover la Cultura Viva Comunitaria y los debates en torno de las políticas culturales en el ámbito local, nacional y continental" (SANTINI, 2017, p. 148). A Semana Continental foi importante também por mobilizar e organizar a participação dos movimentos de cultura comunitária na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) que se realizou em maio do mesmo ano no Rio de Janeiro. Os ativistas da cultura comunitária se congregaram na Cúpula dos Povos, com representantes da Colômbia, Argentina, Perú, Equador, Bolívia, Costa Rica e El Salvador, além de dezenas de PCs brasileiros. Na ocasião ocorreu a Caravana por la Vida: de Copacabana a Copacabana, um projeto de Iván Nogales24, que consistiu em uma caravana entre a cidade de Copacabana, na Bolívia, e a praia carioca de Copacabana, da qual participaram os artistas do Teatro Trono - Comunidad de Productores en Artes (COMPA), dirigido por Nogales. 24 Ator, diretor de teatro e gestor cultural, Iván Nogales foi o criador do Teatro Trono e da Fundación Compa (Comunidad de Productores de Artes) na Bolívia. Sobre a atuação de Nogales ver Mongis (2021). 271 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Destaca-se a Caravana Continental da Cultura Viva Comunitária realizada por intelectuais, artistas e ativistas bolivianos já que, inicialmente, nasce como uma das iniciativas de mobilização a serem realizadas durante a Semana Continental da CVC. Conforme registrado por Nogales (IBERCULTURAVIVA, 2016), a sua ideia original era ainda mais ousada, buscando interligar o oceano pacífico com o atlântico. Contudo, por questões econômicas, decidiram pela trajetória “mais curta”, mas não por isso menos desafiadora, conectando distintas cidades bolivianas e brasileiras no seu percurso. Na sua trajetória em território brasileiro, os viajantes fizeram intercâmbios com PCs em Campo Grande (MS), Presidente Prudente (SP), São Carlos (SP), São Bernardo do Campo (SP), Diadema (SP), Taubaté (SP), São Paulo (SP) e Vassouras (RJ). Além disso, essa Caravana Continental da CVC gerou um forte impacto nas lideranças orgânicas do movimento, que não imaginavam que uma articulação desse tipo pudesse surgir de um dos países mais pobres da região. Isso fortaleceu a posição que, como se verá posteriormente, o resto dos países e grupos do movimento da CVC precisava retribuir esse gesto histórico dos bolivianos com uma nova Caravana Continental, desta vez, com destino final na Bolívia. Traçando uma linha de atuação da Plataforma Puente, Santini aponta que a rede havia consolidado um "trabajo de incidencia y diálogo en instancias de participación política internacional, posicionando sus objetivos junto a los de los gobiernos y organismos internacionales" (SANTINI, 2017, p. 156) e avançou na implementación de políticas públicas inspiradas no Cultura Viva Comunitaria em diferentes países. Contudo, e por conta dessa trajetória positiva, era preciso alcançar um novo patamar organizativo e criar um fórum próprio. Dessa necessidade, surgiu o Congresso Latinoamericano de Cultura Viva Comunitária, que ocorreu em maio de 2013 em La Paz, Bolívia, sob coordenação do Teatro Trono e com a participacão na fase preparatória de Santini, Dorian Bedoya (Guatemala), Iván Nogales (Bolivia), Jorge Blandón (Colombia), Sebastián Pedro (Costa Rica), entre outros. No encontro, reuniram-se cerca de 1.200 participantes de 17 países do continente. Como atividade do Congresso, ocorreu o Encuentro Latinoamericano de Redes y Organizaciones, que discutiu os aspectos políticos e organizativos do movimento Cultura Viva Comunitária. Desses debates, por sua vez, surgiu a necessidade de se criar um Consejo Latinoamericano de Cultura Viva Comunitaria, vinculado à Plataforma 272 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Puente, com representantes indicados pelas redes nacionais e articulados em torno de grupos de trabalho sobre os temas "incidência política", "comunicação", "formação" e "sustentabilidade". Não é sem razão que Turino indica o ano de 2013 como o de consolidação do movimento, por conta do Congresso, que reuniu 1.200 pessoas de 17 países, apesar de ressaltar também, em 2014, a realização do Congresso Iberoamericano pela Cultura Viva Comunitária, na Costa Rica em 2014, de onde surgiu o programa IberCultura Viva, ganhando uma institucionalidade plurinacional25. CONSIDERAÇÕES FINAIS Retomando a pergunta que abre essas reflexões, "é possível pensar uma política pública de cultura transnacional e popular no contexto latino-americano?", é possível responder de forma afirmativa, a partir do estudo de caso dos PCV e dos PCs. A regionalização dessa experiência surgida no Brasil sinaliza para outras formas alternativas àquela definida por Garcia Canclini (1983) como "histórico-popular" onde sobressaíam os propósitos políticos, econômicos e sociais, relegando a plano secundário o papel da cultura. O que se pode observar na trajetória que vai do Cultura Viva brasileiro ao Cultura Viva Comunitária latino-americano é a atenção ao espaço cultural latinoamericano, onde a dimensão cultural, e mais especificamente popular e comunitária se constitui como eixo fundamental, não na conformação de um bloco latino-americano, como esperava Garretón (2008), mas de um rede de intelectuais oriundos, em grande parte, das parcelas subalternizadas das sociedades da região, que por isso reinventam os parâmetros de pertença a esse espaço, de modo mais inclusivo e democrático. Aliás, a articulação continental termina atuando como uma rede de redes, incorporando diversas capas no movimento, desde o nível local até o internacional. A política pública transnacional, por sua vez, também se articula em numerosas políticas culturais locais, regionais e nacionais, chegando até a organismos intergovernamentais como no caso do Ibercultura. Esse contexto, por outro lado, não está isento de contradições, recuos e ambiguidades. Basta constatar que no Brasil, onde surgiu o PCV e os PCs, o MinC 25 Entrevista concedida aos autores por videoconferência em 05 fev. 2021. 273 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA perde o protagonismo e liderança, que é assumido por governos locais que vão municipalizando a experiência e alimentando as redes e as interações com o resto da América Latina. De todo modo, vários dos ativistas, intelectuais e ex-gestores brasileiros que participaram dos eventos realizados desde 2004, a exemplo de Turino e Santini, continuaram realizando ações, visitando países, estimulando as redes de cooperação internacional; enfim, militando para além das esferas estatais e governamentais mais tradicionais. Dessa forma, foi construída uma rede alternativa híbrida que a cada ano vai somando países, incluindo governos locais, ativistas comunitários, fundações globais, ex-gestores estatais, instituições de ensino superior, artistas mais eruditos e fazedores da cultura popular, tudo junto e misturado. REFERÊNCIAS ÁLVAREZ, Gabriel (org). Indústrias culturais no Mercosul. Brasília: IBRI, 2003. ALVAREZ, Sonia; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. Introdução. O cultural e o político nos movimentos sociais latino-americanos. In: ALVAREZ, Sonia; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo (org). Cultura e política nos movimentos sociais latinoamericanos. 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ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA MANUEL MENDIVE HOYO: O PERFORMER AFRO-CUBANO1 Marcelo Mendes Chaves2 “Si Dios y Eleggua quieren, todo es posible” Manuel Mendive Hoyo INTRODUÇÃO A estética de Mendive, “El Maestro Manolo”, me foi apresentada em 2008, durante a aula de uma professora convidada para a disciplina na Linha de Pesquisa “Processos e Procedimentos Artísticos”, ministrada pela Professora Dra. Lalada Dalglish. Durante sua ilustre apresentação, a Professora Dra. Mariza Bertoli, descortinava por meio da produção de artistas latino-americanos, modernos e contemporâneos, o ponto de inflexão para a retomada do questionamento acerca da independência colonial: o centenário da Revolução Mexicana. Por seus slides elaborados com rigor e extrema dedicação ao tema, observava-se a plástica dos “Três Grandes”, os mais difundidos muralistas mexicanos, Diego Rivera, David Siqueiros e Clemente Orozco, dentre os quais se tornara uma das maiores referências para Carybé, artista que estudo desde então. O mergulho nas entranhas de Pacha Mama e sua forçada união marcada com o colonizador, ritmada por encontros, desencontros e tamanho desencanto, com atenção para série de autorretratos de Frida Kalho, ao citar a análise do conjunto da obra na dissertação da Professora Dra. Simone Rocha Abreu e as políticas afirmativas das “minorias” na arte pública do equatoriano Pavel Égüez, exemplos espaçados no intuito de mencionar diminutamente a matéria de explanação daquela tarde. No decurso de cinco anos, o projeto de doutoramento submetido ao PROLAM, procurava por meio da metodologia de estudos equiparados na linha de pesquisa comunicação e cultura, analisar dois artistas: Carybé, objeto de estudo do mestrado e Manuel Mendive Hoyo. A dupla de artistas com inúmeras aproximações, apresentava Tradução: “Se Deus e Exu quiserem, tudo é possível” Pós-doutorando Programa de Estudo Pós Graduados em Ciências da Religião CRESP PUC (2020) Pontifícia Universidade Católica da Universidade de São Paulo. E-mail: marcellomendez@yahoo.com.br. 1 2 278 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 279 uma singularmente de grande interesse , a prática religiosa afro-latino-americana, o candomblé no Brasil e a santeria em Cuba, ambos artistas sacerdotes, complementos de interlocução da autoetnografia, ao considerar minha iniciação para o orixá, 2009, e o oráculo de Ifá, 2017, pelo líder religioso do Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy3, o Babalorixá e Babalaô Ogundarê, Pai Léo de Logun-Edé. Apesar da convicção sobre o tema de pesquisa, surgiram dois desafios a serem enfrentados, os diferentes suportes dos objetos, arte mural em Carybé, performance para Mendive, e mesmo com o apoio da pesquisa pela agência de fomento CAPES (20142017), os recursos financeiros não foram suficientes para um período de estudo de campo em Cuba. Após o exame de qualificação para o doutoramento, o segmento afro-cubano, representado pela maestria de Mendive, foi retirado da pesquisa e a defesa da tese foi concluída a partir dos conceitos da formação da identidade na América Latina concebidos pelo antropólogo Darcy Ribeiro e projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer; o objeto de estudo em questão, o conjunto arquitetônico do Memorial da América Latina, em particular o Salão dos Atos com painéis heráldicos de Carybé e Poty Lazzaroto, a interposição entre identidade, arte, arquitetura e cidade na “Análise dos Painéis de Carybé e Poty Lazzaroto para o Salão dos Atos do Memorial da América Latina”. A oportunidade de retomar o marcante vigor de Mendive, como também a possibilidade de fundamentar alguns conceitos desenvolvidos pela Professora Doutora e crítica de arte Mariza Bertoli, primeiro mestrado e doutorado em arte pelo programa sob a orientação da Professora Doutora Lizbeth Rebollo, apresenta-se na forma de consumação. O ARTISTA AFRO-LATINO-AMERICANO: A PROGNOSE DO PRINCÍPIO ONÁ4 AO CONSIDERAR A PERFORMANCE DE MENDIVE NA PERSPECTIVA DA CULTURA MATERIAL RELIGIOSA AFRO-CUBANA. 3 Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy: casa de culto de candomblé queto fundada em 1968 e tombada como patrimônio cultural pelo condephaat em 2020. Em: www.condephaatsp.org.br 4 Oná: Conceito de Arte iorubá. ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Bertoli enfatiza a necessidade de conhecer os mitos fundantes das Américas, a cosmopercepção desses povos e seus registros, de que maneira a cultura tradicional rompe a barreira da repressão colonial e neocolonial resistindo bravamente. O homem renascendo a cada estação e a arte ressurgindo feito a flor de maiz, narrativa mitológica conciliante em toda América Latina. No texto - A utopia na construção da América latina, elaborado para o IV Fórum Arte e Cultura da América Latina - “Para não deixar morrer a utopia”, Bertoli afirma que a América nasce sob o signo da utopia e no meio de tantos direitos que lhe foram usurpados, possui o direito à memória. “Estamos vivendo mais um momento evocativo para a América Latina. Há um século dos modernismos e das vanguardas, em que também nos questionávamos sobre as nossas culturas e a nossa independência, os destinos comuns deste continente nos propõe novos enigmas, e todas as repostas cabem nas utopias. Alguns as evocam para alimentar a esperança na luta por uma sociedade mais justa, enquanto outros as contestam como enganos demagógicos. O fato incontestável é que lá na zona primacial onde a imagem prevalece, nos encontramos no mito que está perto da utopia porque vive da saga do herói, que não é mito mas cujos aros se aproximam de lides mitológicas na expectativa dos esperançosos. Esta onda generosa nos envolve como um abraço, e será o elo para a integração latinoamericana. (BERTOLI, 2014, pág. 33)” A abordagem analítica de Bertoli advém em parte da teoria do antropólogo e filosofo Gilbert Duran em “As estruturas antropológicas do imaginário”, num dinamismo constelar desenha uma dança cósmica entre registros imagéticos de códigos solares e lunares, representantes do masculino elevado na figura do condor ou do jaguar, o guardião da noite, transformando-se no feminino profundo. O particular caso de Cuba, com o extermínio das etnias autóctones da ilha e a posterior ocupação dos povos africanos em diáspora, nos apresenta uma sui generis configuração, fruto do colonizador e dos escravizados, uma fusão da cosmogonia e cosmologia africanas subsaarianas, e o catolicismo espanhol, de mãos dadas com a oportuna figura do Demônio cristão, grande aliado na construção da Europa como continente e temida quimera no domínio das regiões exploradas e colonizadas ao redor do planeta, ao marcar a visão eurocêntrica e voltar o eixo do mundo ao velho continente. Sem embargo Bertoli acrescenta: o centro está em toda parte. 280 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Darcy Ribeiro classifica esse tipo de formação identitária como os novos povos, “gente feita pelo desfazimento: na medida em que índios e negros foram desfeitos, fizeram-se novos homens; cada cultura original deu o amálgama desse novo ser latinoamericano” (Catálogo Memorial da América Latina, 1990). Mendive nasce em uma família que pratica a santeria5, um artista extraordinário, artista sacerdote impregnado na pele e na plástica de valores transcontinentais como elucida o professor Dr. Fábio Leite6: a existência mantida pela força vital (Axé para os Iorubás), o poder da palavra, o homem como centro da vida, a socialização dos saberes físicos e metafísicos, os ancestrais como detentores do destino, a família extensa e a produção sustentável do grupo. Os povos de origem iorubá, África Sudanesa, no continente e em diáspora, concebem o corpo matizado pela memória ancestral, elementos fisiológicos que determinam o orixá7 da pessoa relacionando os quatro elementos da natureza, fogo, terra, água e ar, tendo o Orí, a cabeça, como o condutor da existência terrestre, todos guardados pelo Alá (Grande Manto) de Obatalá, o deus da criação do homem. O recorte para a produção de Mendive é o conjunto de performances que inaugura o evento de abertura da Bienal de Havana8 desde 1984. Seu processo criativo 5 Santeria: Palo Monte ou Regla de Ocha, é uma prática sincrética religiosa afro-caribenha, concilia fundamentos da religião tradicional africana em diáspora e o catolicismo espanhol. 6 África Negra: a questão ancestral. 7 Orixá: deuses iorubanos relacionados aos elementos da natureza, numa tradução literal seria a entidade protetora do Orí, cabeça; 8 Bienal de Havana: Ano de fundação: 1984 Organizador: Wifredo Lam Center of Contemporary Art Desde a segunda Bienal de Havana de 1986, também participaram artistas da África, Ásia e Oriente Médio. A Bienal de Havana foi criada em 1984 e sua primeira edição foi dedicada a artistas da América Latina e do Caribe. Desde a segunda Bienal de 1986, também participaram artistas da África, Ásia e Oriente Médio. Esta tradição, que se manteve durante cada uma das edições subsequentes, fez de Havana um importante local para a reunião e exibição de arte "não ocidental". A Bienal de Havana tem focado sua atenção nos artistas do Sul cujas obras representam preocupações e conflitos - muitas vezes de alcance universal - comuns a suas regiões. Temas como as tensões existentes entre tradição e contemporaneidade, o desafio aos processos históricos de colonização, as relações entre arte e sociedade, o indivíduo e sua memória, a comunicação humana diante do desenvolvimento tecnológico e as dinâmicas da cultura urbana têm sido temas de interesse particular pela Bienal, sem distinção entre as múltiplas formas de visualidade que operam na cultura como sistema. Durante o seu desenvolvimento a Bienal de Havana reconheceu a reconfiguração geopolítica ocorrida e consequentemente o aumento do número de países que se aproximam das condições do chamado Sul e daqueles que, em posições precárias de desenvolvimento, buscam inserir-se no econômico. blocos de países mais favorecidos. 281 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA parte dos itans, narrativas mitológicas iorubás, percorrendo um extenso caminho entre a oralidade transmitida de geração em geração, seja pelo viés étnico e ou religioso, sobrepostos aos estandartes e corpos pintados em movimentos vibrantes pelas ruas de Havana velha. Ao recorrermos a Gell evocamos a vivacidade desses corpos e possíveis adereços-objetos, num sistema de fruição, não diante de uma apresentação de arte performática, mas um comboio de seres reais, humanos ou não, nascidos da Tecnologia do encanto9: Em vez de enfatizar a comunicação simbólica, concentro-me nas ideias de agência, intenção, causalidade, resultado e transformação. Vejo a arte como um sistema de ação cujo propósito é mudar o mundo, e não codificar proposições simbólicas acerca dele. A abordagem da arte centrada na “ação” é inerentemente mais antropológica do que a abordagem semiótica, já que se preocupa com Agora, a Bienal de Havana se dá dentro de um mundo supostamente globalizado que se apresenta com muitas faces, complexidades e conflitos, principalmente quando o discurso a que se refere tende a ordenar por ordem de importância a hegemonia econômica, a dependência e o controle da informação, ignorando o diferentes estágios de desenvolvimento e as orientações sociopolíticas que coexistem no planeta. A Bienal de Havana é organizada a partir de um processo de pesquisa e curadoria, e todos os participantes são selecionados de acordo com alguns parâmetros como a sujeição temático-conceitual ao tema de reflexão. Nesse processo, a equipe curatorial da bienal, do Centro de Arte Contemporânea Wifredo Lam de Havana, recebe o apoio de colegas de outros países que contribuem com suas sugestões e se tornam os elos necessários no diálogo com os criadores. Fonte: www.bienalhabana.cult.cu https://www.biennialfoundation.org/biennials/havana-biennale/ 9 Tecnologia do Encanto: O antropólogo britânico Alfred Gell (1945-1997) desenvolve seu conceito de arte como parte de sua proposta de estabelecimento de uma nova antropologia da arte. Responsável por uma rotação de perspectivas nesse domínio, Gell revisa conceitos como obra de arte, artefato, tecnologia da arte, estética, encantamento, magia e estilo, o que resulta em uma complexa teoria sobre a agência do objeto artístico. No artigo “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia” (1992), o autor considera as diversas artes como partes de um vasto e frequentemente não reconhecido sistema técnico, que ele denomina “tecnologia do encanto”. Nessa perspectiva, objetos de arte seriam fruto de uma atividade técnica de transubstanciação engenhosa de materiais e das ideias a eles associados. Gell reivindica aí o emprego de um “filisteíismo metodológico”, postura de total indiferença do antropólogo no tocante ao valor estético das obras de arte. Para elucidá-la, utiliza como exemplo objetos de arte criados com a intenção de funcionar como “armas” em uma “guerra psicológica”; é o caso das tábuas que ornam as proas das canoas dos participantes do kula, sistema de trocas realizado pelas populações das ilhas Trobriand. A intenção por trás do uso dessas tábuas é fazer com que os parceiros da troca que estão em outras ilhas, ao observarem as canoas chegando, se deslumbrem a ponto de perderem os sentidos, oferecendo braceletes e colares mais valiosos do que de costume. A eficácia dos objetos de arte como componentes da tecnologia do encanto e o poder de fascinação que exercem são resultantes do encanto da tecnologia empregados em sua construção. Gell prioriza, assim, a análise da eficácia do objeto de arte, seu poder de agência. Fonte: http://ea.fflch.usp.br/conceito/arte-alfred-gell 282 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA o papel prático de mediação exercido pelos objetos de arte no processo social, e não com a interpretação dos objetos “como se” eles fossem textos. (GELL, 2018, n.p.) Para Gell, mesmo sendo possível reconhecer uma categoria pré-teórica de objeto de arte que se divide em duas subcategorias: arte ocidental e arte Indígena ou etnográfica, no entendimento da antropologia tudo poderia ser tratado como objeto de arte, incluindo pessoas vivas, uma vez que a antropologia da arte se ajusta à antropologia social das pessoas e seu corpo. Assim, do ponto de vista da antropologia da arte, um ídolo em um templo que acreditamos ser o corpo da divindade e um médium que ofereça o corpo à divindade temporariamente são tratados, em termos teóricos, no mesmo nível, mesmo que o primeiro seja um artefato e o segundo, um ser humano. (GELL, 2018, n.p.) O processo criativo e a produção das performances de Mendive podem ser equalizadas num processo-padrão apresentado por Gell nas seguintes categorias: índice10, Abdução11 e Agente Social12, evidentemente que em “Arte e Agência”, a teoria 10 Índice: A antropologia da arte não seria a antropologia arte se não se limitasse ao subconjunto de relações sociais que associam “objeto” a um agente social de uma forma distinta – “artística”, por assim dizer. Descartamos a ideia de que os objetos se relacionam “artisticamente” com os agentes sociais se (e somente se) consideram esses objetos de um ponto de vista “estético”. Se é assim, porém, de que outros meios dispomos para distinguir uma relação “artística” entre pessoas e coisas de uma relação “não artística”? A partir de agora, para simplificar o problema, limitarei a discussão ao caso da arte visual – da arte “visível”, pelo menos –, excluindo a arte verbal e a musical, embora reconheça que elas costumam ser inseparáveis na prática. Assim, as “coisas” de que falo poderão ser entendidas como reais, tendo uma existência física, sendo únicas e identificáveis, e não como atuações, leituras, reproduções etc. Essas observações pareceriam fora de lugar na maioria das discussões sobre arte, mas são necessárias aqui, já que as dificuldades que enfrentamos podem ser mais bem superadas se abordadas uma de cada vez. Além disso, é muito difícil propor um critério que distinga os tipos de relações sociais que se enquadram no escopo da “antropologia da arte” daí que fumaça é um “índice” de fogo . ( Gell, Alfred. Arte e agência (Coleção Argonautas) . Ubu Editora. Edição do Kindle.) 11 Abdução: O termo empregado na lógica e na semiótica para designar tais inferências é “abdução”. A abdução é um caso de inferência sintética “no qual encontramos algumas circunstâncias bastante curiosas, explicáveis pela suposição de que ela seria um caso de alguma regra geral, motivo pelo qual essa suposição é adotada” (Eco 1976: 131, citando Pierce ii, 624). Em outras ocasiões, Eco afirma que “a abdução […] consiste em traçar, de forma arriscada e hesitante, um sistema de regras de significação que possibilitem que um signo adquira seu próprio significado […] a abdução ocorre com aqueles signos naturais que os estoicos chamavam de indicativos, dos quais se suspeita que sejam signos, ainda que não saibamos o que eles significam” (Eco 1984: 40). A abdução abrange a zona cinzenta na qual a inferência semiótica (dos significados a partir dos signos) se funde às inferências hipotéticas de um tipo não semiótico (ou não convencionalmente semiótico), tais como a inferência de Kepler a respeito do movimento aparente de Marte no céu à noite, a partir da qual concluiu que o planeta percorria uma órbita elíptica: A abdução é uma “indução a serviço da explicação, na qual uma nova regra empírica é criada 283 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA de Antropologia da Arte se desenrola primorosamente e corrobora como o ultimo atributo do autor em sua publicação póstuma, no esclarecimento de uma tese medular para a cultura material religiosa ao nomear, numerar e articular a relação de ideias para tal compêndio. Isto posto, vale ressaltar que a teoria da antropologia da arte visa as relações sociais nas cercanias que envolvem a obra de arte ou o índice, considerando a vida social do quadro antropológico de referência, no caso a complexa ação artística de Mendive performático, não considerando o desenhista, o pintor, o escultor, o pesquisador, o sacerdote. A obra do artista pode ser detalhada doravante as técnicas supracitadas ou no amplo espaço em que habita e concentra parte de seu acervo, atelier e jardim, chamado “Manto Blanco”, lugar provavelmente destinado no futuro a ser uma casa-museu, como também a presença transgressora desse belo homem negro de dreads longos e brancos, vestimentas sempre brancas, um sujeito da revolução cubana, que pode absorver da manifestação artística e se lançar mundo afora, compondo o acervo de importantes museus, “The British Museu” ou “Musée D’art Moderne de Paris”. O autor enfatiza, “As relações sociais só existem na medida em que se manifestam em ações. Quem desempenha as ações sociais é “agente”, que age sobre o “paciente” (um agente social na posição de “paciente” em relação a um agente em ação). Tais relações entre agentes e pacientes sociais, abrangem distintos termos: os índices como entidades materiais que motivam interferências abdutivas e interpretações cognitivas; artistas ou outros que “dão origem”, a quem atribuímos a responsabilidade para tornar previsível aquilo que de outra forma seria misterioso” […]. A abdução é uma variedade de inferência não demonstrativa, baseada na falácia lógica segundo a qual afirmar o antecedente obriga a afirmar o consequente (“se p então q; mas q; portanto p”). Por meio de premissas verdadeiras, ela produz conclusões que não são necessariamente verdadeiras. No entanto, a abdução é um princípio de inferência indispensável, pois é o mecanismo básico que permite limitar a enorme quantidade de explicações compatíveis com um dado evento. (Boyer 1994: 147, citando Holland et al. 1986: 89) (Idem) 12 12 Agente Social: No entanto, como geralmente acontece com as definições, a afirmação de que o índice deve ser “visto como o resultado e / ou o instrumento da agência social” é em si mesma dependente de um conceito que ainda não foi definido, o de “agente social” – aquele que exerce a agência social. É claro que não é difícil dar exemplos de agentes sociais e de agência social. Qualquer pessoa deve ser considerada um agente social, pelo menos potencialmente. A agência pode ser atribuída a essas pessoas (e coisas, conforme discutirei a seguir) que são vistas como iniciadoras de sequências causais de um determinado tipo, ou seja, de eventos causados por atos da mente, da vontade ou da intenção, e não de uma mera concatenação de eventos físicos. Um agente é aquele que “faz com que os eventos aconteçam” em torno de si. Como resultado desse exercício da agência, certos eventos acontecem (não necessariamente os eventos específicos que foram “pretendidos” pelo agente). Enquanto as cadeias baseadas em relações físico-materiais de causa e efeito consistem em “acontecimentos” que podem ser explicados pelas leis da física que governam o universo como um todo, os agentes dão início a “ações” que são “causadas” por eles próprios, por suas intenções, e não pelas leis da física do cosmos. Um agente é a fonte, a origem dos eventos causais, independentemente do estado do universo físico.(Ibidem) 284 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA causal pela existência e características do índice. Os destinatários, a quem se considera que os índices exercem agência ou que exercem agência por meios de índice. Por fim os protótipos: entidades consideradas, por abdução, como representadas no índice, talvez em virtude de similitudes, mas não necessariamente. Mendive o agente social, propicia por meio de seu processo a composição do índice, a performance. A relação entre o agente e pacientes no campo performático produz uma estranheza, peculiar ao habitat da performance, uma fenda entre o real e o utópico, dessarte bailarinos, atores, circenses, o público em geral, moradores, estrangeiros, artistas convidados e autoridades mesclam as categorias e passam de pacientes à agentes com a presença marcante do “Maestro” no cortejo. O Lugar como conceito tem passado por grandes transformações a partir do desenvolvimento das novas tecnologias. O autor Mário Costa, em seu livro O Sublime Tecnológico aponta para uma evolução dos deslocamentos espaciais que as tecnologias da comunicação propiciaram ao mundo da arte contemporânea. O primeiro momento apontado por Costa refere-se à emissão de informação através dos dispositivos eletroeletrônicos como microfones, câmeras de vídeo etc; o que amplifica a performance sem altera-la. No segundo momento, a própria obra de arte tem que se transformar para poder comunicar-se, diferenciando a performance do deslocamento, mas-medial, segundo o autor. No terceiro momento do desenvolvimento das tecnologias, Mário Costa, vê o fim da diferenciação entre performance e deslocamento. A obra nada mais é do que o fluxo audiovisual transmitido, assim como acaba toda distinção ente “públicos”, não havendo nenhum outro senão aquele que acede aos canais mass-mediáticos. (CIOTTI, 2014, pág. 38) Quem seriam, portanto, os destinatários em vista disso? Nos anos 1980, marco inicial das performances de Mendive, possivelmente o grupo que assistia e compunha o quando sobre o “arrebatamento do amor de Xangô por Oxum ao encontra-la em companhia do irmão Oxóssi”, ou “a paixão de Xangô vivida ao lado de Oyá, que sem pestanejar abandona a numerosa prole de nove filhos do marido Ogum para viver aventuras de guerra ao lado do Obá13 de Oyó”, seja pelas ruas cubanas ou no Teatro Símon Bolívar, na década de 1990, no memorial da América Latina. Atualmente, anos 2021, aquele que acessar por uma plataforma digital uma performance, seja “Las Cabezas”, “Los Abrazos”, “El água”, estará presente na cosmogonia e cosmologia 13 Obá: Rei. 285 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA iorubá, no exato momento de sua criação por Olodumaré, uma variante iorubá para o nome do Pré-existente. Conquanto a gênese da sociologia e por conseguinte da “Escola Francesa” nos remeta a Durkheim, compete à Mauss em seu tratado “As técnicas do corpo” apontar um bívio: a diferenciação do exame do corpo e os escritos sobre o corpo. Imprescindível aludir a desmedida filosofia de Nietzsche ao elaborar o lugar do corpo no contexto pós iluminismo, ao lançar frases: “eu só acreditaria num Deus que dançasse”, “A vida sem a música seria um erro”, “o que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte”, nano-conceitos, que mesmo destacados da obra original ou sem referência bibliográfica alguma nos acomete imediatamente a elocubrações corpóreas. Ademais, como o modo segundo coteja HALL a respeito da identidade desse sujeito social do século XIX: O sujeito do iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “Idêntico” a ele – ao longo da existência do Indivíduo. O centro essencial do “eu” era a identidade de uma pessoa [...] (HALL, 2015, pg. 10-11) No século XX Foucault mantem-se nessa linha inaugurando sua importante contribuição para o escopo, o que me faz refletir em especial no conteúdo a ser decifrado das culturas tradicionais, em questão, os iorubás, cujo corpo é entendido como principal suporte para a construção do ser individual e social, uma sociedade agrafa estabelecida na memória corporal como garantia de seu legado às gerações vindouras; a existência em seu máximo potencial. Afora o imensurável quinhão em termos gerais de sua obra, Foucault conjuntamente se dedica no que concerne a relação entre poder e corpo, práticas subjetivas impostas doravante dispositivos culturais adequados a vivências coletivas. O corpo se apresenta num circunspecto de energias em contínuo embate, suporte sobre o qual a identidade é construída. Temos que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem a constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não 286 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações de “poder-saber” não devem ser analisadas a partir de um sujeito de conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema de poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a atividade do conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento. (FOUCAULT, 1975, pág.161) África e América Latina se afastam pontualmente do ocidente, trazem em seu cerne pré-invasão europeia percepções impares quanto a existência e a natureza que a cerca. Na disposição de potencializar a dicotomia entre os dois mundos, segue uma tabela14 comparativa de valores civilizatórios, onde esforço-me na melhor interpretação do termo: Mundo Ocidental Mundo Africano Subsaariano no continente e em diáspora Universo regido por leis estáveis Universo regido por forças conflitos Progresso e Evolução Tempo circular, ciclos, espirais Tecnologias e Máquinas Fenômenos Naturais Tempo medido por mecanismos Tempo calculado pelo social-história Ciclos naturais: Lua, chuva e marés Lógica centrada na economia Lógica centrada no ser humano Força do Mercado Força Vital - AXÉ Estruturas Estruturadas Estruturas Estruturantes Noção de morte como fim em si mesmo Noção de morte como passagem Ser humano dependente das forças Ser humano manipulador das forças vitais sociais Esquematicamente, para uma melhor compreensão, a relação entre o préexistente e sua creação se estabelece na seguinte condição: 14 Elaborada a partir do texto do Prof. Dr. Fábio Leite, supracitado. 287 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Primeira geração Segunda geração ou Atributo ou divina união elemento Olorun ou Olodumare Exu, o primogênito Orixá Função cosmogônica da Movimento Comunicação Elemento fogo Olorun ou Olodumare Oxalá, o grande pai Criação do homem Homem como centro da existência Elemento Ar Nanã, origem jêje-fon Primeira consorte de Oxalá Iemanjá, origem iorubá Segunda Oxalá consorte de Morte Empresta sua matéria para a feitura Elemento terra do homem Vida Grande Mãe Elemento água Mãe dos Orixás Mãe dos homens Mãe dos Peixes Ajalá Ajalá modela a cabeça do homem Odudua15 criou o mundo Obatalá criou o ser humano Obatalá fez o homem de lama, com corpo, peito, barriga, pernas e pés. Modelou as costas e os ombros, os braços e as mãos. Deu-lhe ossos, pele e musculatura. Fez os machos com pênis e as fêmeas com vagina, para que um penetrasse o outro e assim pudessem se juntar e se reproduzir. Pôs na criatura coração, fígado e tudo o mais que está dentro dela, inclusive o sangue. Olodumare pôs no homem a respiração e ele viveu. Mas Obatalá se esqueceu de fazer a cabeça e Olodumare ordenou a Ajalá que completasse a obra criadora de Oxalá. Assim, é Ajalá quem faz as cabeças dos homens e mulheres. Quando alguém está para nascer, vai a casa do oleiro Ajalá, o modelador das cabeças. Ajalá faz as cabeças de barro e as cozinha no forno. Se Ajalá está bem, faz cabeças boas Se está bêbado, faz cabeças mal cozidas, passadas do ponto, mal formadas. Cada um escolhe sua cabeça para nascer. Cada um escolhe o orí que vai ter na terra. Lá escolhe uma cabeça para si. Cada um escolhe seu orí. Deve ser esperto, para escolher cabeça boa. Cabeça ruim é destino ruim, cabeça boa é riqueza, vitória, prosperidade, 15 Odudua: Deusa da criação do mundo pela cosmogonia iorubá. 288 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA tudo o que é bom. (PRANDI, 2002, pág. 471) Desse modo, no momento em que o homem é criado recebe o Emí, sopro de vida que faz seu corpo Ara, por hora inerte, receber a força vital, Axé; frente a oportunidade da vida, concebe a beleza em forma de arte, Oná, e celebra o propósito fundamental da realidade do corpo: dançar, visto que a vida é uma dança, um xirê16, realizando desse modo o seu Odú, destino, firmado no além céu, Orun, pelo seu Orí, a cabeça; enunciação da órbita de toda concepção “del Maestro Manolo”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Manuel Mendive Hoyo é um artista essencial para hoje, sua produção contemporânea, rompe os limites do tempo-espaço e lógica, difícil classifica-lo, impossível não se deixar encantar, seja por um pequeno búzio que sirva de ornamento para uma escultura em seu jardim ou num corpo negro pintado com ofun, pequenos círculos brancos que marcam o iniciado e os objetos de culto prestes a receber libações. Wilfredo Lam é um dos ancestrais cultuados por Mendive em sua fala de mansidão, artista que se tornou um igbá17 para a arte e cultura afro-cubana, um escudo para proteção nas encruzilhadas neocoloniais. É preciso decolonizar, África e América Latina, e desse modo construir a urgente integração. Para Mendive os elementos da natureza são casas: a água, uma casa, o vento, outra; valoriza a presença de pássaros à sua volta, agentes das temidas e destemidas Mães Ancestrais, que regulam a deterioração de tudo que é vivo, puro extrato do feminino e aguardam à noite para realizarem seus passeios. O menino premiado na década de 1950 do século XX em um concurso internacional da UNESCO, considera o mundo um só e convida, ao modo da roda de Oxalá, parte final do xirê em uma festa pública numa casa de matriz africana, todos a dançarem, porque para o Deus da criação iorubá somos todos um. 16 17 Xirê: roda, brincadeira e dança Igbá: representação do Orixá, recipiente onde se deposita a pedra otá e as insígnias de cada Orixá. 289 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 01 – Laz Cabezas. Manuel Mendive. 2009 .Fonte: Coleção Particular Miami. Série de Imagens da Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana – 2012.18 18 Las Cabezas performance de Mendive. Por: Ismael Francisco En este artículo: Arte, Bienal de La Habana, Cuba, Cultura, Fotografía, Frank Fernández, La Habana, Manuel Mendive, Sociedad, XI Bienal de La Habana. El pintor, escultor y grabador cubano Manuel Mendive paseó sus "lienzos humanos" dentro de una acción plástica que recorrió una de las más concurridas avenidas de La Habana y a su paso provocó la sorpresa de muchos transeúntes atraídos por la originalidad de su propuesta titulada "Las cabezas". Casi 200 personas entre actores de teatro, bailarines, artistas circenses, estudiantes y hasta algunas sin vínculo directo con las artes plásticas, prestaron a Mendive la piel de sus cuerpos -una quincena totalmente desnudos y otros con el torso descubierto- y lo dejaron estampar su pincel sobre ellos. El artista dijo a EFE que con esta nueva intervención plástica quiso "hacer un homenaje a nosotros mismos, a 'Las cabezas', las buenas, las malas y las regulares para que todas sean cada vez mejores". En víspera de la inauguración de la XI Bienal de La Habana, Mendive presentó esta muestra como "un llamado al mejoramiento humano, al amor a la naturaleza y entre los hombres". Su nuevo trabajo irrumpió en el medio urbano con pinturas sostenidas por caballetes rodantes mezcladas con piezas escultóricas, e instalaciones, a las que se integraron la danza, la música y también la pantomima de los participantes, algunos con máscaras que cubrían sus cabezas.Además incorporó al conjunto otros elementos como los populares "bicitaxis" -bicicletas que arrastran un asiento de dos plazas techado- y carretillas de las que utilizan actualmente los vendedores ambulantes de productos agrícolas. Fiel a la esencia de su obra, en la que acostumbra a combinar lo cotidiano, lo tradicional, lo moderno y un mundo de figuras "mágicas", esta nueva "performance" arrancó expresiones como "impactante", "sorprendente", "es algo fuera de lo común", "espectacular" del público que la presenció. "Es fantástico, todo es posible en el arte cuando se hace con disciplina, cordura y equilibrio, aunque no es la primera vez que Mendive hace este tipo de acción artística", recordó Evelio, un admirador de la obra de Mendive. Roxana y Mairelys, dos jóvenes estudiantes se declararon "fascinadas" porque les pareció "algo fuera de lo común", mientras que Rosa Hernández, una señora entrada en años dijo a EFE que "nunca había visto un acto así con personas desnudas", pero le pareció que "eso es cultura y no me resulta chocante ni vulgar". A uno de los turistas que frecuentaban este jueves la populosa zona, se le escuchó comentar a sus acompañantes "is wonderful (maravilloso)". Mendive inició esta acción artística con la pintura corporal de los participantes en el vestíbulo del Gran Teatro de La Habana y luego encabezó la representación que desfiló a lo largo de varias calles del Paseo del Prado hasta su intersección la avenida malecón, y desde allí regresó para cerrar la caminata frente al edificio de "El Capitolio". Allí en una plataforma se completó la obra artística con la intervención de voces de la Opera Nacional de Cuba, bailarines de los grupos Danza del Caribe, Danza Fragmentada y Rakatán, el grupo teatral de muñecos Okantomí y el pianista Frank Fernández. Con el "performance", procedimiento 290 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 02 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performancede-mendive-fotos/ Figura 03 – Cartaz da Performance Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performancede-mendive-fotos/ que Mendive estrenó en 1986, este artista fusiona su manejo de técnicas y recursos propios del arte africano, su gusto por la escultura, la pasión por el color y un primitivismo voluntario, según las valoraciones de algunos especialistas. Pero sin duda, un observador de su obra dijo al ver "Las cabezas" que el principal mérito de Mendive es que consiguió trascender "lo exótico" y ha impuesto una visión plástica "original". Mendive ha participado en todas las ediciones de la Bienal de La Habana, según han señalado los organizadores de esta nueva edición de la cita cuya inauguración oficial será este viernes con la asistencia de más de 180 artistas de 43 países y volcada a los espacios públicos y las calles de la ciudad. Fonte:://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-de-mendive-fotos/ 291 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 04 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performancede-mendive-fotos/ Figura 05 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ 292 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 06 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ Figura 07 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ 293 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 08 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ Figura 09 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ 294 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 10 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ Figura 11 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ 295 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 12 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ Figura 13 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ 296 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 14 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ Figura 15 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ 297 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 16 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ Figura 17 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ 298 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Figura 18 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ Figura 19 – Performance Laz Cabezas: XI Bienal de Havana - 2012 Fonte: http://www.cubadebate.cu/fotorreportajes/2012/05/11/las-cabezas-performance-demendive-fotos/ 299 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA REFERÊNCIAS BERTOLI, Mariza. A utopia na construção da América Latina. O ressurgimento do muralismo, o direito à memória-sentido. Em: Arte e Cultura da América Latina / Sociedade Cientifica de Estudos da Arte. – V. 31 (2º sem. 2014). – São Paulo: CESA: Terceira Margem, 2014. CIOTTI, Naira. O Professor-performer. Natal, RN: EDFRN, 2014. FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir. São Paulo: Editora Vozes, 1975. Fundação Memorial da América Latina. Catálogo Memorial da América Latina. São Paulo: Empresa das Artes, 1990. GELL, Alfred. 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Augusto Boal (1931-2009), homem de teatro, reitera tal afirmativa quando expõem em seus escritos e em sua militância de décadas no teatro que, tanto a discussão sobre a política quanto a discussão sobre o teatro são, de fato, questionamentos antigos e que se estendem ao longo do tempo, perpassando diferentes gerações de artistas. Logo, cada vez mais percebe-se a estreita relação entre o fazer teatral e os temas político-sociais, especialmente nos contextos sócio-históricos referentes à essa produção, a exemplo das experiências no século XIX em países como Alemanha, França, Rússia e posteriormente União Soviética que tinham como proposição utilizar o teatro como ferramenta para tratar principalmente da formação crítica dos trabalhadores e o engajamento nos processos das lutas sociais. Desta forma, diferentes grupos surgiram dentro dos próprios movimentos e se vincularam ao teatro, entendendo a potência do fazer teatral para pautar, de outra forma, as questões político-sociais, a exemplo das experiências militantes das vanguardas russa e alemã dos anos (a proletkult2, o agit-prop3 e os blusões azuis4). Assim, o teatro do 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: michelleferreira@usp.br. 2 Proletkult é a abreviatura da expressão russa "proletarskaya kultura", que significa "cultura proletária". Foi um movimento literário surgido na Rússia em 1917. Entre seus criadores estão o teórico Alexander Bogdanov e o poeta Mikhail Gerasimov. Durante a sua existência reuniu uma ampla gama de artistas, de decadentes a futuristas. 3 A expressão foi criada pelos revolucionários russos em 1917 para divulgar os projetos políticos da revolução, bem como para potencializar a agitação das massas no processo de transformação social. No que se refere ao teatro de agitprop, grupos culturais organizavam trabalhos de curta duração visando à politização das massas. 4 Grupo de teatro que foi criado no período da Revolução Russa e que realizou uma série de atividades, desde a formação de novos agitadores, até a produção e a publicação de uma revista intitulada Revista Blusa Azul. 304 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA século XIX, especialmente os teatros na Rússia e Alemanha foram experiências importantes para a consolidação do que se entende sobre teatro político. Portanto, é possível se pensar no fenômeno teatral enquanto elemento discursivo de uma sociedade. Os artistas que estavam à frente dos movimentos artísticos e dos coletivos populares de teatro buscaram vincular o fazer teatral com o cenário político vigente, com destaque para o teatro russo da década de 1920, que se tornou instrumento de mobilização das lutas sociais. Nesse sentido, partindo sobre esse panorama sucinto do surgimento do teatro político mundial; a abordagem neste trabalho será a produção teatral engajada desenvolvida na América do Sul, no período das ditaduras militares. Logo, o teatro político, que ganhou “berço” na Rússia por meio das revoluções e lutas de classe, também terá ambiente propício na América Latina, especialmente na América do Sul. No período das ditaduras militares, artistas e trabalhadores do teatro se mobilizaram na luta contra os regimes responsáveis pela censura da imprensa, de inúmeros intelectuais, artistas e coletivos de teatro, bem como pelas torturas, assassinatos e desparecimentos nas décadas de 1960, 1970 e 1980. É esse cenário que nos interessa como objeto de análise e no qual nos debruçaremos em seguida. TEATRO POLÍTICO NO BRASIL E NOS DEMAIS PAÍSES DA AMÉRICA DO SUL Enquanto na Europa e na Rússia/União Soviética, o teatro político sofreu a influência do agitprop e dos partidos comunistas; no Brasil, ele surgiu, primeiramente, com o teatro operário de influência anarquista, protagonizado pelos imigrantes europeus que aqui chegaram para trabalhar, especialmente de italianos, que traziam em suas bagagens tal tendência. As formas teatrais do século XIX, que elegeram a linguagem simples do gesto grandiloquente, arrebanhando grandes massas para as plateias, ou então, que resgataram para o teatro os temas sociais a partir da observação aguda da realidade, esbarram, sob a perspectiva de uma intenção transformadora da sociedade, na ausência de um arcabouço ideológico que permita ao trabalhador reconhecer sua condição de explorado e vislumbrar a via de sua emancipação. As 305 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA condições para a organização desses impulsos transformadores e essas experiências de caráter popular não nasceriam apenas dos próprios processos internos: são os fatos políticos que vão determinar a conjuntura adequada para que o teatro de natureza política se institua, e o Partido Comunista e o Estado terão aí um papel preponderante. A Rússia seria o berço desse fenômeno. (GARCIA, 1990, p.3) Cabe ressaltar a perspectiva de formação crítica dos trabalhadores que começou com o teatro russo, aos poucos, começa-se a instalar também em outros países e questões sociais começam a ganhar a cena também no teatro brasileiro. Percebe-se que este teatro com os imigrantes europeus que se iniciou no país, tinha como propósito reafirmar a identidade cultural dos italianos em solo brasileiro. Desta forma, era um teatro concebido por eles e tendo como público seus próprios companheiros de nacionalidade. Aos poucos, tais grupos começaram também a se organizar em sindicatos e partidos socialistas, a fim de pautar em cena as questões que diziam respeito ao cotidiano dos operários. Pensar o teatro político é pensar a relação que se produz entre a obra e o mundo, entre o mundo e o artista. E, neste sentido, não é mais que um dos tantos fenômenos discursivos que produzem, a partir de um artifício particular, uma determinada imagem desse mundo. Essa imagem produzida pelo teatro político entrará definitivamente num jogo dialético com os outros discursos. (IRAZÁBAL, 2004, p. 37-38). Logo, a perspectiva dialética que começa a ganhar também o discurso engajado na cena começa a se desenhar nas produções teatrais neste período, especialmente junto aos trabalhadores vinculados a um mesmo sindicato. Entretanto, é somente a partir do final da primeira década do século XX, que se percebeu uma vinculação mais estreita do teatro com as associações operárias. Trata-se de um período no qual eclodiu várias greves de trabalhadores no país, com a extradição de inúmeros estrangeiros tidos como anarquistas. Pode-se dizer que se tratava de um teatro com temáticas de contexto político, porém, tratadas de forma pontual e sem desdobramentos significativos. A presença de uma ativa produção cultural enfrentando a ditadura, como lembra Ronaldo Lins, testemunha as inúmeras modalidades de luta. O desafio central é, pois, capturar os traços fundamentais que produzem esse amálgama peculiar entre o velho e o novo, entre o 306 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA mesmo e o outro, assim como o caráter social que dele resulta, com suas contradições multiplicadas. (IASI; COUTINHO, 2014, p.12). Iasi e Coutinho já nos apontam para a importância da produção cultural no contexto da ditadura militar, bem como para o seu caráter social e de proposição de mudanças por meio do reforço à capacidade crítica do público. Assim, será necessário dar um salto histórico nessa trajetória, uma vez que o se tem de marco temporal efetivo da consolidação do teatro político no Brasil reporta à década de 1960, com a criação dos Centros Populares de Cultura vinculados à União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Junto com estes espaços, grupos e artistas de tendência mais questionadora começaram a se reafirmar. É o período no qual se buscou a presença em cena do homem brasileiro, da reafirmação da identidade nacional. Não apenas no teatro, mas em outras linguagens artísticas como o cinema, percebe-se a tentativa de abordar e dar visibilidade para as mazelas sociais do povo brasileiro. Assim, a atuação dos artistas de teatro junto ao CPC, mostrou-se uma experiência mais direta com as massas. No Rio de Janeiro, os CPCs (Centro Popular de Cultura) improvisaram teatro político em portas de fábrica, sindicatos, grêmios estudantis e, na favela, começavam a fazer cinema e lançar discos. O vento pré-revolucionário descompartimentava a consciência nacional e enchia os jornais de reforma agrária, agitação camponesa, movimento operário, nacionalização de empresas americanas etc. O país estava irreconhecivelmente inteligente. O jornalismo político dava um extraordinário salto nas grandes cidades, bem como o humorismo. Mesmo alguns deputados fizeram discursos com interesse. Em pequeno, era a produção intelectual que começava a orientar a sua relação com as massas. Entretanto, sobreveio o golpe, e, com ele a repressão e o silêncio das primeiras semanas. (SCHWARZ, 2009, p. 21). A criação do CPC ocorreu no Rio de Janeiro, em 1962, no período do governo de João Goulart, pautada por um cenário de forte mobilização política, com a expansão das organizações de trabalhadores, seja no campo ou nas cidades. A formação inicial do CPC se deu no teatro, expandindo, posteriormente, para a reunião de artistas de várias áreas (cinema, música, artes visuais e outros setores). Juntamente com o movimento estudantil, eles foram responsáveis pela circulação de apresentações artísticas em sindicatos, favelas e espaços públicos. 307 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA O eixo do projeto do CPC se norteou pela tentativa de construção de uma cultura nacional, popular e democrática, por meio de ações culturais, educativas e artísticas que sensibilizassem a conscientização das classes populares. A ideia do projeto dizia respeito à noção de arte popular revolucionária, concebida como instrumento privilegiado da revolução social. Desta forma, são artistas que trabalhavam com o teatro a partir de uma perspectiva transformadora. Entretanto, seu trabalho sofreu uma fratura com o Golpe de 1964, o que torna complexa a análise de um desenvolvimento efetivo da curta trajetória do CPC da UNE. Destaca-se ainda, neste período, o trabalho de Augusto Boal, importante encenador brasileiro que desenvolveu a técnica do Teatro do Oprimido, atualmente conhecida e replicada no mundo todo. O teatro era visto por Augusto Boal como um instrumento de emancipação política. Grupos teatrais como o Opinião5 e o Arena 6 fizeram forte resistência política por meio de suas peças teatrais, sendo uma forma alternativa de denunciar os atos arbitrários e de abuso de poder por parte dos militares. Por todas as questões ora explicitadas, percebe-se que os anos que antecederam à ditadura militar no Brasil e, mesmo quando a ditadura já tinha se efetivado; a produção teatral foi profícua, tendo, muitas vezes, a função de enfrentamento e resistência ao cenário opressor que ora se apresentava como a realidade da população brasileira. Os que pretendem separar o teatro da política pretendem conduzir-nos ao erro – e essa é uma atitude política. Por isto, é necessário lutar por ele. Por isso, as classes dominantes permanentemente tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação. Ao 5 O Opinião foi um grupo de teatro carioca da década de 1960. Após o golpe militar de 1964, um grupo de artistas ligados aos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes se reuniu com o objetivo de fazer frente à situação político-social enfrentada pela sociedade brasileira. Em 11 de dezembro de 1964, ocorreu a estreia do legendário show Opinião, dirigido por Augusto Boal e João das Neves e que dá nome ao grupo. Desde a sua fundação, o Opinião privilegiou o teatro popular. Mais informações vide: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo399366/grupo-opiniao. Acesso em 23/04/2020. 6 O Arena foi um grupo paulistano fundado na década de 1950 e reuniu um expressivo número de artistas comprometidos com um teatro político e social, a exemplo de José Renato, Henrique Becker e Sérgio Britto. Somaram-se depois artistas como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Milton Gonçalves. O grupo teve sua estreia em 1953 com a peça “Esta Noite É Nossa”, de Stafford Dickens no Museu de Arte Moderna de São Paulo- MASP. Uma de suas montagens mais emblemáticas foi o texto de Guarnieri “Eles não usam black-tie” de 1958. Mais informações vide: http://54.232.130.51/grupo399339/teatro-de-arena. Acesso em 22/04/2020. 308 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA fazê-lo, modificam o próprio conceito do que seja o ‘teatro’. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de liberação. Para isso, é necessário criar as formas teatrais correspondentes. É necessário transformar. (BOAL, 2019, p.11). O teatro político brasileiro no período da ditadura militar foi um ato de resistência e enfrentamento dos artistas que reagiram à censura imposta pelos militares e por segmentos ultraconservadores da sociedade. A censura, histórica no país desde o período da monarquia; tem seu auge após a publicação, em dezembro de 1968, do Ato Institucional número 5 (AI-5). A classe teatral foi um dos alvos preferidos dos militares: Entre 1964 e 1968, a censura foi exercida ainda predominantemente nos estados, mas, a partir da promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, o governo federal centraliza o controle sobre a opinião pública através da perseguição a jornais e demais meios de comunicação e a censura violenta e sistemática da prática artística. Sob jurisdição dos estados ficam apenas processos considerados menos agressivos à Segurança Nacional. Inicia-se o período de maior conflito entre o governo militar e a classe teatral, que, madura e organizada, produz as melhores páginas de sua história, e manifesta-se abertamente contra a repressão, que aposenta um projeto nacionalista e democrático. A contribuição do teatro na luta pela liberdade e pela democracia, sob a forma de produção de textos, apresentações e atitudes políticas assumidas pelos artistas ainda está para ser plenamente analisada. (COSTA, 2008, p. 20-21). Neste mesmo período, outras ditaduras militares também eclodiram na América do Sul, quando ocorreu o enfrentamento de vários coletivos e grupos teatrais frente às medidas arbitrárias dos governos militares. Logo, passaremos ao panorama desta produção teatral nos demais países da América do Sul. DITADURAS MILITARES E TEATRO POLÍTICO NOS DEMAIS PAÍSES DA AMÉRICA DO SUL Ao mesmo tempo em que o Brasil enfrentava a ditadura militar; outros países da América do Sul, a exemplo de Uruguai, Chile e Argentina também passaram por processos semelhantes nos quais artistas e intelectuais, por sua postura de enfrentamento, sofreram graves violações de direitos: foram presos, duramente torturados, muitos foram exilados e outros ainda constam na lista de desaparecidos. 309 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Essa relação conflituosa de segmentos progressistas da sociedade com os governos de exceção se deve, em grande parte, pela proposição coletiva de uma atuação militante que extrapola o fazer artístico e intelectual e tenta inserir na realidade cotidiana um olhar crítico e reflexivo que possa levar à mobilização dos mais diferentes setores, especialmente daqueles nos quais recaíram a mão pesada e opressora do Estado. Nestor García Canclini (1980), em sua obra “A Socialização da Arte”, discorre amplamente sobre a importância dos movimentos de diferentes coletivos artísticos, especialmente nas últimas décadas, de aproximar a cultura e a arte das pautas sociais. No que se refere ao teatro na América Latina, Canclini menciona a relação intrínseca dos coletivos teatrais com as questões da conjuntura político-social de seus países. Nesses últimos quinze anos, vimos surgir em nosso continente mais de uma centena de conjuntos teatrais que entretêm, com trabalhos coletivos, a vida cotidiana dos bairros populares na Colômbia e na Argentina, no México e no Chile; representam, pela primeira vez em quíchua, a história do Peru, e em guarani, a história do Paraguai; inventam procedimentos para estimular a interação entre atores e público, a fim de converter a ilusão cênica em consciência crítica. A estreita relação das novas manifestações artísticas com as transformações sociais torna evidente algo que é válido para a arte de todas as épocas: a necessidade de analisá-la junto com seu contexto histórico. (CANCLINI, 1984, p.2-3). A Argentina, por exemplo, foi o país que concentrou o maior número de assassinatos, segundo organizações de direitos humanos (cerca de 30.000). O Uruguai teve o maior número de presos políticos (cerca de 8.000 presos, mantidos em detenção de três a cinco anos). Desta forma, foi expressiva a produção de diversos grupos teatrais nos países latino-americanos neste período, que procurava dar visibilidade ao cenário políticosocial de seus países, assim como promover o diálogo, em alguns casos, com outras realidades latino-americanas que sofriam com a repressão militar. A exemplo, temos importantes grupos teatrais, como o Teatro de los Andes na Bolívia, o Teatro La Candelária na Colômbia, o Grupo Yuyahkani no Peru, que refletiam em seus trabalhos os processos ditatoriais de seus países. Tais coletivos teatrais buscavam, por meio de seus espetáculos, não apenas denunciar os casos de violações de direitos, mas provocar, junto com o público, novos posicionamentos e formas de reagir a tais arbitrariedades. 310 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA É importante dizer que tais grupos teatrais e seus membros tinham uma atuação para além da cena: os coletivos possuíam uma perspectiva de atuação independente. Muitas vezes, eles contavam apenas com recursos próprios e colaborações de alguns segmentos da sociedade e nenhum financiamento do poder público; além do fato de seus integrantes terem uma vinculação com partidos políticos progressistas ou movimentos sociais. Ainda na Colômbia, podemos citar o Teatro Experimental de Cali, que tinha como premissa o método de criação coletiva e de abordagem crítica de fatos históricos da Colômbia em seus trabalhos: [...] É o caso do teatro experimental de Cali, dirigido por Enrique Buenaventura. Embora não possamos nos referir amplamente à sua produção por não ter visto suas obras, a leitura de algumas delas e de seus textos teórico-metodológicos revelam uma considerável maturidade na formação de técnicas de investigação social e de elaboração gradual para a redação das peças. Eles concebem os textos teatrais de forma parecida aos roteiros cinematográficos, ou mesmo aos textos abertos da Commedia Dell ´Arte, como ‘esquemas de conflitos’ que servem de base aos atores para improvisar e elaborar grupalmente a documentação obtida sobre um fato (por exemplo, em ‘La denuncia’, o resumo do debate da Câmara de Representantes sobre a greve ‘das bananeiras’, massacre dos operários de 1928 na Colômbia), e ir identificando as ‘forças em luta’, ao redor das quais se organiza o conflito. (CANCLINI, 1984, p.162). O Teatro Experimental de Cali teve uma trajetória relevante, considerando sempre em suas criações coletivas o comprometimento social com o povo colombiano e com a América Latina como um todo; além de apresentar, em seus trabalhos, a inconformidade política como um sentimento motivador, uma primeira etapa para produzir as mudanças sociais. Logo, um fator relevante nas décadas de 1960 e 1970 é que muitos questionamentos, não somente sociopolíticos, mas também éticos e estéticos, foram levados para a cena latino-americana: Como lo describe Mugercia, hay una vocación ‘etnologica e politica del arte latinoamericana’ que aparece exacerbada entre la década del 50 y 60 cuando la radicalidad presente en Latinoamérica produce subversiones realizadas por el movimiento estudiantil hasta que las dictaduras provocan las respuestas revolucionarias en Brasil, Chile, Argentina, Uruguay, Perú, Venezuela y Colombia, inaugurando el 311 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA tiempo de los años de la revolución. Anacronismo, memoria, parodia de los discursos, mezcla de presentación performática y representación, inserción de lo real, relecturas de la teoria de Brecht y exageraciones de la teatralidad son constantes de la nueva escena latinoamericana preucupada com los temas políticos. (GUERRERO, 2018, p.25). Nesse sentido, falar do teatro latino-americano no período de 1960 a 1980 é vinculá-lo, em grande parte, com os movimentos políticos de seus países, especialmente o movimento estudantil e relacioná-lo, também, a uma forma de pensar e contestar, por meio da cena (forma e conteúdo) os discursos hegemônicos; especialmente aqueles advindos do capitalismo norte-americano. Na Argentina, muitos grupos, coletivos e movimentos teatrais tornaram-se referências importantes, a exemplo do Movimiento del Teatro Abierto, criado em 28 de julho de 1981, com repercussão significativa na sociedade. O Movimento foi idealizado pelo dramaturgo Osvaldo Dragún e era composto por atores, diretores e outros profissionais de teatro, que se reuniram no Teatro del Picadero, um espaço com capacidade para 500 pessoas. El autor Mauricio Kartun reconoce que Teatro Abierto fue ‘el emergente de las necesidades que estaban presionando desde distintos sectores del pueblo para que, efectivamente, se dijera lo que estaba sucediendo’. Otro dramaturgo, Roberto Perinelli, miembro de Teatro Abierto en 1981, señala que la experiencia fue ‘además de una respuesta a la opresión política, un síntoma de que el teatro argentino todavía existía. (YENI, 2005). A reação a esse movimento não tardou em aparecer: no dia 06 de agosto de 1981, um grupo paramilitar colocou três bombas no Teatro del Picadero, que ficou completamente destruído. Logo, no dia seguinte, os artistas já se mobilizaram e 16 salas se ofereceram para abrigar as obras, envolvendo diversos atores, diretores técnicos e demais trabalhadores do teatro. Outros ciclos se sucederam ao movimento durante a ditadura argentina, com o envolvimento crescente não somente dos profissionais do teatro, mas, também, do público, sempre com o lema “Em defesa da democracia, pela liberação nacional e unidade latinoamericana”. Demais espaços teatrais também tiveram que conviver com ameaças constantes e atentados durante a ditadura argentina. Felisa Yeni, que foi diretora do Teatro Payró, 312 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA relata que durante o ensaio da montagem “Telarañas”; a obra foi proibida e o teatro fechado. Ainda na Argentina, o Grupo Outubro, criado e conduzido por Norman Briski, que teve o auge da sua produção política no período de 1970 a 1974, conseguiu desenvolver um intenso trabalho em bairros operários e favelas de Buenos Aires, assim como no interior do país. No Chile, o surgimento de grupos teatrais teve uma vinculação estreita com núcleos comunitários, organizações de direitos humanos, bem como com movimentos de educação popular. Após o golpe de Estado no Chile, em 1973, os estudos apontam para um forte impacto nas produções culturais e, um ano após o golpe, a produção teatral era ainda incipiente. A partir de 1975, surgiram várias companhias e movimentos teatrais independentes, dentre os quais, cabe destacar, nomes como Imagem, Teatro del Ángel, La Feria, Taller de Investigación Teatral, Teatro Universitário, dentre outros. Muitos profissionais do teatro chileno reforçaram em seus discursos que a atuação artística tinha como premissa contribuir para a rearticular a consciência nacional dos cidadãos em um cenário autoritário. Destaca-se a atuação também de coletivos junto à Universidade Católica do Chile, que sediou o Teatro ICTUS, desde 1955 e que potencializou as suas atividades no período da ditadura. Até o final da década de 1980, o teatro chileno desenvolveu uma intensa atividade em vários pontos do território. Já na ditadura uruguaia, destaca-se a forte atuação do Grupo El Galpón e de outros grupos teatrais independentes, a exemplo do Teatro Circular e Teatro Uno. É importante dizer que estes e outros coletivos integravam a Federação Uruguaia de Teatros Independentes, criada em 1947. Eles apontaram algumas características importantes referentes ao teatro independente uruguaio para se vincularem à Federação, a saber: autonomia e desvinculação de toda sujeição comercial bem como da ingerência do Estado em suas produções, valorização das experimentações nos processos criativos, fortalecimento da dramaturgia nacional e latino-americana, enfoque no teatro popular, relevância do trabalho coletivo e, por fim, a militância para além da cena. É importante dizer que muitas dessas prerrogativas ainda seguem presentes em muitos grupos de teatro do Uruguai, a exemplo do próprio El Galpón. 313 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Es decir, que el teatro independiente no solo involucra puestas en escena comprometidas con una realidad social uruguaya y/o latinoamericana, sino que involucra una experiencia colectiva de construir las salas, un proceso de trabajo comunitario y cooperativo donde el grupo es más fuerte que la suma de sus partes, y brinda un sentido de pertenencia, de identidad, de solidaridad y de integración a sus miembros (SCARAFUNNI, 2016, s.p). Como aponta Luciana Scarafunni, a proposta coletiva dos grupos uruguaios se consolida não apenas na criação artística, mas se vincula a todo o trabalho para além da cena: desde a construção das salas do teatro, que são viabilizadas com o apoio da própria população, seja com recursos financeiros advindos não do Estado, mas da comunidade, até a prestação de serviços voluntários e a gestão do grupo. O Grupo El Galpón foi criado em Montevidéu, ao final da década de 1940. É um dos grupos mais antigos da América Latina, contando com mais de setenta anos de atividades ininterruptas. Em 1951, o grupo fundou a sua primeira sede, um pequeno teatro para 150 espectadores, a Sala Mercedes. Trabalhando de forma totalmente independente e colaborativa, contando com apoio de pessoas físicas e doações para manter as suas atividades; eles tinham como premissa estimular a dramaturgia latino-americana e nacional, bem como de realizar o intercâmbio com artistas de outras áreas artísticas. Em 1964, o aguerrido grupo adquiriu um antigo cinema a fim de reformá-lo em uma sala teatral mais ampla e com capacidade para receber um número maior de espectadores, agora para 650 pessoas. Entretanto, em 1971, ocorreu o golpe cívico-militar em Montevidéu, com o então presidente Juan M. Bordaberry; em 1973 foi dissolvido o Congresso e os militares assumiram definitivamente o poder. Apesar das repressões, sucessivas ameaças e censura, o grupo seguiu com suas atividades. Entretanto, em 1976, por meio do Decreto de 07 de maio de 1976, os militares tornaram ilegais as ações do grupo, confiscaram seus bens, proibindo os mesmos de darem prosseguimento ao seu trabalho. Muitos de seus integrantes foram exilados, presos e os demais impossibilitados de exercer as suas atividades artísticas e a docência. En primer lugar, los ataques de las bandas fascistas parapoliciales, que asolaron la vida montevideana entre 1968 y 1972, a los locales de El Galpón, bajo la forma de bombas de petróleo y ‘malones’ armados de 314 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA hierros, que destruyeron las puertas de acceso a los mismos. [...] En segundo lugar, la dictadura ya establecida, publicó en febrero de 1974 un suplemento, a ser repartido junto a la escasa prensa no clausurada, en el que se presentaba a toda la cultura uruguaia como ‘aliada a la subversión’; y en dicho suplemento, El Galpón ocupaba un lugar prominente. El significado de estas publicaciones ya era conocido por el pueblo uruguayo; ambientar o justificar una violenta acción represiva. [...] La tercera etapa de esta escalada, se produjo en octubre del 75, cuando una nueva ola represiva incrementó en miles el número de presos; y tomó la forma de prohibirles, a algunos integrantes de El Galpón, ‘actuar, dirigir, escribir, o tener contacto alguno con organismo cultural en todo el territorio nacional’. (YÁÑEZ, 1984, p.74). Tendo em vista o tenso cenário político no Uruguai, muitos de seus integrantes foram exilados e passaram a viver em outros países da América Latina, como Argentina, Cuba e especialmente no México, onde seguiram com suas atividades, ainda configurados como Grupo El Galpón. Paralelo a esta situação, os integrantes que permaneceram em Montevidéu seguiram engajados no processo de luta a favor da redemocratização do país. É importante pontuar o empenho do grupo e seu êxito em terse mantido coeso e ativo durante o exílio. Foi neste período, exilados, que os seus integrantes viveram profissionalmente do teatro e se apresentaram em diversos estados mexicanos. Somente em 1984 quando começa a se discutir o processo de redemocratização no Uruguai é que os integrantes exilados finalmente puderam retornar. Em 1985, os bens confiscados do grupo são devolvidos, mas uma parcela significativa dos equipamentos, vestuário e de seu acervo foram perdidos, assim como a sala Mercedes havia sido demolida. Novamente o grupo se empenhou para a reconstrução do seu espaço e reorganizou uma série de atividades como apresentações, seminários e oficinas. Durante a sua trajetória, o grupo se apresentou em mais de 20 países, percorrendo muitos países na América Latina, Canadá e na antiga União Soviética. O grupo mantém, até hoje, a sua sede em Montevidéu, com diversificada e intensa programação que está limitada agora, como todo o segmento cultural, às questões da pandemia do Covid-19. É importante dizer que a atuação coletiva irrestrita dos grupos teatrais do Uruguai era também uma forma de fortalecer os artistas para resistir às pressões da 315 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA ditadura e, assim, criar uma proposta de trabalho artístico coletivo mais horizontal. Outro ponto que merece destaque é a consideração dos artistas uruguaios de não apenas valorizar a dramaturgia nacional, mas de estabelecer pontes com outros autores da América Latina. O próprio Grupo El Galpón chegou a montar textos teatrais de autores brasileiros, com destaque para peça de Millôr Fernandes (1965) intitulada “Liberdade, Liberdade”, que teve sua estreia em 1968 enquanto a cavalaria militar percorria a porta do teatro. Como pontua Verzero: “los grupos de teatro militante e independiente de Uruguay tendían puentes con la latinoamericanidad en pos de configurar un movimiento teatral latinoamericano, pero también respetaban las especificidades nacionales y los contextos históricos que se vivían en aquella época” (VERZERO, 2012, s.p). Por fim, é importante retomar a trajetória de Augusto Boal, dramaturgo, diretor e educador brasileiro que teve e continua tendo, mesmo após a sua morte, a proposta de promover a função social e transformadora do teatro, especialmente junto às lideranças de movimentos sociais. O trabalho do Teatro do Oprimido se consolida, especialmente, por meio da atuação do Centro de Teatro do Oprimido, sediado no Rio de Janeiro e por inúmeros Núcleos de Teatro do Oprimido na América Latina e no mundo, que atuam a partir do trabalho desenvolvido por Boal. Seu legado enquanto homem de teatro impulsionou diferentes e diversos grupos de Teatro do Oprimido por todo o território latino-americano e no mundo; contribuindo, efetivamente, para um teatro no qual se insere como protagonista homens e mulheres das camadas menos desfavorecidas como os responsáveis por efetivarem as mudanças sociais: Ninguém, tampouco, realizou um trabalho tão vasto em quase todos os países do continente: iniciou no Brasil, nos anos cinquenta, a renovação dos métodos de encenação em salas comerciais; de 1960 a 1964 realizou experiências de teatro popular em diferentes regiões do mesmo país; depois dirigiu variadas formas de teatro de resistência, que continuou em Buenos Aires, exilado, a partir de 1971; em 1973 participou da Operação de Alfabetização Integral, patrocinada pelo governo peruano, quando preparou alfabetizadores para desenvolverem a linguagem teatral entre o povo; e deu cursos em muitos países da América Latina com o fim de transmitir seu repertório de técnicas de representação dramática que, simultaneamente, foi sistematizado em livros e artigos. Como diretor do Teatro Arena de São Paulo, criou o teatro jornalístico, modalidade adotada e difundida pelos Centros Populares de Cultura, organizações integrais dedicadas a atender os problemas básicos de cada 316 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA comunidade e nos quais Boal teve uma ativa participação. (CANCLINI, 1984, p.165-166). Todas essas experiências do teatro latino-americano apontam para uma produção significativa de grupos e coletivos muito atentos e sensíveis aos contextos históricos de seus países. Trata-se, portanto, o retrato de um teatro político que pretendeu colaborar para ampliar a capacidade crítica de suas plateias e, assim, potencializar a participação social no campo da política. A FUNÇÃO SOCIAL DO TEATRO Após a contextualização sobre o teatro político latino-americano, é essencial tratarmos de um ponto significativo que envolveu e direcionou a atuação desses coletivos teatrais: seus trabalhos priorizaram a função social do teatro, se comprometendo, efetivamente, com a pauta política e social progressista. Se refletirmos, de forma mais ampla e não apenas com o recorte no teatro; sobre a vinculação arte e sociedade, percebemos que sempre houve uma aproximação, de fato, em diferentes contextos e com fins diversos das duas áreas: as esquerdas a utilizavam no processo de mobilização social e para alavancar as lutas sociais e, no caso das direitas, o intuito era defender e manter o status quo das elites. Nesse sentido, sobre a produção cultural e sua relação intrínseca com as questões sociais, Canclini (1982) nos diz que: A cultura não apenas representa a sociedade; cumpre também, dentro das necessidades de produção do sentido, a função de reelaborar as estruturas sociais e imaginar outras novas. Além de representar as relações de produção, contribui para a sua reprodução, transformação e para a criação de outras relações. (CANCLINI, 1982, p.29-30). Assim, falar sobre a função social do teatro é abordar uma série de fatores para além da encenação em si. Diz respeito, também, a uma nova forma de relação da cena com o espectador: a valorização do trabalho coletivo e horizontal dos grupos e companhias teatrais, a uma vinculação mais estreita com os movimentos sociais e em situar o fazer teatral a partir de outra perspectiva, uma perspectiva transformadora, pois como dizia Boal: “não é o teatro que transforma a sociedade, é o homem quem a transforma e o 317 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA teatro pode ser sim, uma forma de transformar o homem para que eles proceda às mudanças necessárias” (BOAL, 2019, s.p). Muitos questionamentos surgiram a partir da atuação deste teatro, que visava fortalecer principalmente as lutas de classe, como diz a companheira de Augusto Boal, Cecília Boal: Quem faz teatro se vê confrontado com demasiadas condições e com a necessidade de dar uma resposta às mesmas perguntas: Qual é a relação do artista com o poder? Qual a função da arte? A arte e, mais especificamente o teatro, tem, na verdade, alguma função, alguma possibilidade de modificar a realidade, as relações de poder? Qual é a contribuição que a arte pode trazer para uma sociedade? (BOAL, 2015 p.18). Nesse sentido, a função social do teatro pode ressignificar a própria finalidade do ato teatral: para além da fruição estética ou mero entretenimento, não excluindo, porém, tal objetivo; o teatro torna-se ferramenta de integração palco-plateia a partir de uma reflexão proposta pela encenação, que pretende recolocar o espectador não só como cúmplice da cena, mas partícipe do acontecimento teatral. Canclini também foi um estudioso que abordou em suas obras sobre a função social do teatro por vários coletivos teatrais da América Latina: Desde os primeiros anos da década de sessenta, houve, em vários países da América Latina, tentativas para mudar a função social do teatro. Às vezes eram experiências solitárias de profissionais que abandonaram as salas fechadas e o arsenal teórico e técnico de sua carreira, para recomeçar, a partir de um despojamento total, a reconstituição de seu ofício. (CANCLINI, 1984, p.161). Essa tentativa de sair da convencionalidade teatral para ganhar um espaço mais democrático do teatro junto à sociedade foi uma característica de vários coletivos e artistas da América Latina, especialmente no contexto das ditaduras militares na América do Sul. Eric Bentley, crítico de teatro nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970, embora tivesse um perfil mais conservador nas suas análises críticas da produção teatral deste período, reconheceu em sua crítica a relevância de alavancar a função social do teatro, para quem ele efetivamente deveria se destinar: 318 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A quem se dirige o Teatro Engajado? Não a todo mundo. Ele tem inimigos; e os homens que admiram os inimigos, ou se sentem de alguma maneira solidários com eles, só podem desligar-se ou ir embora. Os inimigos não podem constituir um bom público. E os aliados? Pode-se sustentar a tese de eles não precisam ser catequizados. Mas a propaganda pode preencher as finalidades do ritual, uma das quais é fortalecer as pessoas dentro das convicções que possuem e prepará-las para novas lutas. Mas acredito que a plateia ideal para o teatro engajado não é nenhum dos campos militantes, e sim a massa humana que está no meio e que pode ter uma vaga simpatia para com a causa apregoada no palco, mas que se encontra numa atitude um tanto entorpecida e apática. Os integrantes dessa massa podem concordar, mas não estão realmente engajados; e a missão do teatro engajado não consiste em se pronunciar a favor do engajamento, mas em levar as pessoas a se engajarem. Creio que a maioria de todos nós pertence a esse tipo de público, e que o teatro engajado pode contar, por conseguinte, com uma freguesia suficiente ampla (BENTLEY, 1960, p.174-175). Logo, o crítico alerta para o fato de que caberia aos coletivos e artistas do teatro político ampliar a função social do teatro e falar não apenas para os seus pares, mas para grande parcela da população alijada do processo de uma politização. Bentley foi crítico ferrenho de diversos dramaturgos, mas reconheceu aqueles que efetivamente contribuíram, no seu tempo, para o teatro engajado. Dentre estes dramaturgos e encenadores, ele abordou amplamente sobre a produção e a obra de Bertold Brecht. Antes de Brecht, Erwin Piscator, já tinha lançado também “a semente” do que viria a ser o teatro político, comprometido com a sociedade e suas principais questões. As concepções cênicas de Piscator decorrem da ideia central do teatro como instituição político-didática. Conscientemente, subordinou a esta ideia à da arte: todos os recursos estéticos e técnicos deveriam ser postos a serviço da função política do teatro. Visando a apresentar e analisar didaticamente a situação do homem do nosso tempo, para torná-lo capaz de transformá-la, supunha ser necessário mostrar no palco a vasta trama de fatores condicionantes, derivando deles o destino individual. (ROSENFELD, 2012, p.49). Nesse sentido, Piscator foi um dos encenadores que mais levou a sério a proposição do teatro político, aprofundado em seguida por Bertold Brecht, dentro da perspectiva do seu teatro dialético, didático e poético. 319 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Assim, o destino da sociedade não era visto como imutável. Para tanto, Piscator apontava para a necessidade de aproximar o teatro das classes operárias e camponesas, arte esta que sempre esteve, não só do ponto de vista econômico, mas na luta de classes, em um “patamar inalcançável” imposto pelo teatro burguês. Logo, era preciso devolver às classes populares o teatro como ferramenta de mobilização social. O ativismo cultural do período deve-se à formação de um novo público, produtor e consumidor de arte, que exige a renovação do fazer artístico. Quando se fala de arte na República de Weimar, a atenção volta-se exclusivamente para as expressões da ‘alta cultura’, o expressionismo e a nova objetividade, e tende a ignorar o movimento cultural subterrâneo que se desenvolveu em torno do movimento operário. (FREDERICO, 2016, p.113). Desta forma, os profissionais do teatro alemão deste período rompem com as expressões destinadas apenas à burguesia (como o drama burguês) e procuram, por meio de novas formas, valorizar as expressões que pudessem traduzir os anseios populares e, especialmente, as demandas da classe operária. Nesse ponto, o dramaturgo e encenador alemão Bertold Brecht, tornou-se referência do teatro épico em todo mundo. Ele, que chamava as suas peças de “experimentos sociológicos”; foi declaradamente um marxista e viveu entre as duas grandes guerras mundiais. Brecht conseguiu sistematizar uma teoria que tratava, justamente, sobre a função social do teatro, aliando conteúdo e estética como primordiais para se fazer avançar a transformação social e contribuir para o processo da luta de classes: O teatro que Brecht propõe é justamente aquele que preserve e incentive a capacidade de reflexão crítica do público, para que este seja capaz de participar do processo de transformação justamente com as forças progressistas e democráticas populares e revolucionárias, porque o destino do homem é o homem. (PEIXOTO, 1981, p. 48). Nesse sentido, considerar o espectador como sujeito no processo de condução das mudanças sociais que se faziam urgentes na sociedade, levou o encenador a buscar, por meio do teatro dialético, não somente suscitar a emoção do público, mas a capacidade de reflexão crítica, procurando, para além de uma perspectiva estética, uma perspectiva sociológica no fazer teatral. 320 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A plateia deve começar a estranhar aquilo que o hábito lhe tornou familiar. As coisas que nos parecem muito familiares, e por isso naturais e imutáveis, devem ser distanciadas, tornadas estranhas. O que há muito não muda, parece imutável. A peça deve, portanto, caracterizar determinada situação na sua relatividade histórica para demonstrar sua condição passageira e mutável (ROSENFELD, 2012, p. 34-35). Assim, como pontua Rosenfeld, a consciência de classe começa o seu processo a partir do momento em que os processos sociais deixam de ser vistos como naturais e enraizados, mas que tem relação com o contexto sócio-histórico e, portanto, são capazes de mudanças, uma vez que são construídos historicamente. O dramaturgo alemão preconizava que o teatro épico serve ao processo democrático, enquanto o teatro burguês, que prega a identificação e a empatia a determinados grupos da elite, serve às ideologias autoritárias, a fim de manter estagnadas as relações sociais e o status quo das elites. Logo, cabia ao teatro daquele período, que tinha a função social como relevante, não apenas denunciar o fascismo e as relações assimétricas de poder advindas do capitalismo; mas contribuir para o processo de mobilização coletiva que permitisse vislumbrar as mudanças sociais necessárias, fortalecendo a função sociopolítica do teatro. Estamos nos ocupando do teatro precisamente porque queremos encontrar um meio a mais para levar adiante a nossa causa. Isso significa subordinar o teatro à política? A resposta é clara: a urgência não nos deve levar a destruir esse meio que pretendemos utilizar. Não se deve correr quando se tem pressa. A arte, enquanto arte, assumindo e aprofundando seus instrumentos expressivos, estruturada segundo as exigências do mundo de hoje, pode ser uma arma. Leve como um pequeno bisturi manejado com precisão e delicadeza pelos gestos de um cirurgião, mas a arma a serviço da libertação. (PEIXOTO, 1981, p.105-106). Como delineia Fernando Peixoto na fala acima, não se trata de sobrepor a política ao teatro, mas de buscar a interlocução entre essas duas importantes áreas, entendendo suas especificidades e seus fins. Importante demarcar, portanto, que todo o teatro brechtiano se estruturou em analisar e questionar o modo de produção capitalista como fixo e inalterável. Para Brecht, caberia ao novo teatro desencadear um processo 321 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA junto ao público de compreender as relações sociais a partir de uma perspectiva histórica, portanto, não imutável, e, a partir daí, procurar avançar nos meios possíveis de se efetivar a transformação social. Para reforçar esse argumento, Rosenfeld nos diz que: Sempre quando o teatro visa integrar o homem em amplos contextos universais ou sociais, impõe-se recorrer a qualquer tipo de recurso narrativo a fim de ampliar o mundo para além dos limites da moral individual e da psicologia racional, ou seja, para além dos limites do diálogo interpessoal. [...] Mas não é somente para ampliar o mundo cênico para além do diálogo que Brecht recorre ao teatro épico. Há uma outra razão, igualmente importante. O teatro deve ser épico, também, para corresponder ao intuito didático de Brecht, para esclarecer o público sobre a sociedade e a necessidade de transformála. O fim didático exige -segundo Brecht - que se elimine a ilusão, o impacto mágico do teatro tradicional, que, devido à sua estrutura peculiar, leva o público à identificação intensa com o mundo cênico e o convence da necessidade inexorável dos destinos apresentados. (ROSENFELD, 2012, p.30-31). Assim, era necessário romper a ilusão do teatro tradicional, que reforçava o lugar cômodo e passivo da plateia. Não à toa, o teatro dialético desenvolvido por Brecht segue como uma das grandes referências dos grupos e coletivos teatrais progressistas no mundo todo. Sua forma de entender o teatro propulsionou um teatro dinâmico, vivo, divertido, atrelado às questões sociais de cada realidade, promovendo, de forma efetiva, a função social do teatro. Além disso, o teatro, muitas vezes, se vincula diretamente à militância de movimentos e coletivos sociais, de forma a fortalecer a luta destes atores. A exemplo, podemos citar as experiências exitosas do teatro junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Diversas ocupações do MST têm promovido, por meio de suas Brigadas de Teatro, um trabalho profícuo e louvável: Na rotina de luta desses movimentos, a linguagem teatral cumpre diversas funções para além, inclusive, do trabalho específico desenvolvido pelos coletivos teatrais, a saber: teatro de ação direta em ações de massa, teatro do oprimido em trabalho de educação popular com comunidades, pesquisa com as peças de Bertold Brecht em espaços de formação de educadores e militantes, utilização de técnicas teatrais por coordenações de cursos de formação política. Ainda assim, a linguagem teatral voltou a ser explorada em suas múltiplas potencialidades a partir das demandas do MST. Como arte, como tática de comunicação, como método de formação, como linguagem vigorosa no processo de alfabetização pela dinâmica dos múltiplos 322 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA letramentos, como arma de combate em ações diretas massivas ou de brigadas compactas por meio de diversas formas de teatro de agitprop, como forma estética que permite um olhar distanciado e autoavaliativo. (BÔAS, PEREIRA, 2015, p.459-50). Mencionar, portanto, a atuação das Brigadas de Teatro do MST, implica em apresentar um movimento que apreendeu, de forma ampla, a função social do teatro para outras dimensões das suas lutas, sem deixar que a arte teatral fosse relegada em segundo plano em sua militância. Cabe ressaltar que a função social do teatro tem sido preconizada, ao longo do tempo, pelos mais diferentes artistas e coletivos teatrais. Mais do que do ponto de vista teórico, percebe-se que ela se efetiva na práxis de vários coletivos. Entretanto, alguns grupos, como a paulistana Companhia do Latão, dirigida pelo dramaturgo, diretor e professor Sérgio de Carvalho e criada em 1996 já é notabilizada por seu repertório pautado no teatro dialético brechtiano e nas pautas sociais brasileiras. O grupo conseguiu a façanha de alinhar a produção dos espetáculos à produção teórica e reflexiva significativa acerca do teatro brasileiro e sua função social, com destaque para a produção da Revista Vintém, em 1997 que tem como proposta analisar o teatro a partir da sua prática. A Companhia do Latão também possui trabalhos colaborativos com o MST desde 2006. A função social do teatro, apresenta, desta forma, colaborações significativas junto à participação social e mobilização de classes. Desta forma, o teatro pode (e deve) colaborar para ser um campo de luta e de reflexão sobre política e sociedade. Sendo o teatro uma arte essencialmente coletiva, embora não possamos afirmar que ela cumpre, de forma central, com o papel de democratização da arte e de torná-la acessível às diferentes camadas da população; podemos dizer que é uma das manifestações artísticas que mais têm se aproximado desse objetivo: O teatro é uma ação coletiva. Outras artes, por exemplo, as artes plásticas favorecem o individualismo criador, o desenvolvimento subjetivista da sensibilidade e apresentam dificuldades intrínsecas ao tentar-se socializá-las. No teatro, a ação prevalece sobre a relação sensível com os objetos e seu caráter grupal facilita a superação do narcisismo dos artistas e a participação coletiva do público. Não é casual, por isso, que as experiências mais radicais, dedicadas a transferir para o povo os meios de produção artística se tenham cumprido em seu âmbito. [...] Os grupos mais avançados são os que 323 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA descobriram que a formação teatral inclui, além da aprendizagem técnica, a análise das condições socioeconômicas e comunicacionais do meio em que se procura operar, suas necessidades básicas e os conflitos que impedem de satisfazê-las. (CANCLINI, 1984, p.155156). Por fim, é importante dizer sobre a efemeridade também do teatro político e de sua função social; ainda que o seu legado seja uma importante fonte de consulta, até mesmo histórica. Isso porque esse tipo de teatro está afinado, de forma intrínseca, a um determinado contexto político-social no qual a obra foi criada. Como nos aporta Julian Boal (2020), filho de Augusto Boal e que deu continuidade ao trabalho do Teatro do Oprimido: O que foi político ontem não o é necessariamente hoje. [...]. Este princípio que estabelece que somente pode ser considerado político o que se relaciona de maneira crítica com seu tempo, é muitas vezes esquecido no campo da arte, até mesmo naquela que, justamente, se denomina como política. Muitas vezes nos esquecemos que o que faz o caráter político da arte não é ela abordar certos temas ou utilizar certos procedimentos, mas é a relação, formal, temática, de modos de produção, que ela tece com uma certa conjuntura política, social, econômica e até mesmo com uma certa conjuntura que podemos chamar de sensível, e que essa conjuntura se dá dentro da história, que ela está sempre se modificando. O desconhecimento desse princípio faz com que muitas vezes formas e procedimentos de uma época sejam usados em outras provocando efeitos contrários a aqueles que se queria. [...] Toda arte que se quer política é necessariamente ligada à conjuntura da qual sabe que surge e sobre a qual quer intervir. Ela é uma intervenção dentro de um momento histórico preciso. Por isto, ela muitas vezes não se focalizou tanto em criar obras ‘eternas’ a serem colocadas dentro do Panteão da Literatura Mundial, mas em criar processos em diálogo com seu público, tomado não como uma abstração, mas como constituído por pessoas reais, envolvidas em processos concretos, a quem se devia se opor ou aliar. ‘Teatro para ser queimado’ disse Dario Fo de suas obras do período mais militante. (BOAL, 2020, p.1-4). Desta forma, a partir do que foi exposto sobre a produção latino-americana, especialmente localizada na América do Sul e sobre os pressupostos da função social do teatro; é possível traçar considerações acerca dos principais pontos da produção teatral que pretende contribuir para o processo de luta de classes. CONSIDERAÇÕES FINAIS 324 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Por todas as questões já explicitadas referente ao teatro latino-americano; percebe-se o quão significativo é o legado dos coletivos e grupos teatrais da América do Sul, especialmente inserido nos processos de enfrentamento às ditaduras. Trata-se de importantes agentes questionadores das medidas arbitrárias dos governos de exceção e que tinham como premissa a formação de uma consciência social e de uma postura engajada. Nem mesmo a censura e todo o mecanismo repressivo exercido junto aos artistas e outros segmentos sociais conseguiram “frear” a atuação dos grupos. Embora seja evidente as consequências nefastas que a censura exerceu na criação e produção teatral, a exemplo dos vetos em diversas obras e mesmo das proibições dos espetáculos no dia da estreia, jogando, “por terra” o trabalho de meses de toda uma equipe, a audácia e coragem das pessoas de teatro promoveram um teatro vivo, corajoso, atento ao seu tempo e importante para se pensar de forma crítica as conjunturas latino-americanas de então. Outro ponto que merece destaque é o fato de que a arte também esteja em função dos movimentos sociais, dos povos marginalizados, da parcela alijada de uma efetiva participação social. Diferentemente de uma elite que sempre teve como papel tornar a arte acessível a uma pequena parcela da sociedade; é função da arte engajada desconstruir esse papel. Nesse sentido, talvez seja esse um dos grandes diferenciais do teatro político: ele não irá constar nas obras do legado universal; uma vez que diz sobre o seu tempo, sobre determinado período e contexto histórico e de como a sociedade se organizou (ou não) a fim de se efetivar as mudanças sociais necessárias. Teatro político que se constrói e se consolida não apenas com os artistas, mas, principalmente, se dá por meio do diálogo, troca e formação permanente com diferentes atores dos movimentos sociais e que respalda a importância do fazer teatral, arte coletiva destinada para além da encenação, que se propõe a estar e atuar no mundo. Por fim, podemos afirmar que o teatro político é aquele que dialoga com o seu tempo e com os seus, que articula uma relação horizontal com os movimentos sociais e que, finalmente, tenta romper com a lógica do sistema capitalista e burguês, que 325 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA considera necessário questionar, constantemente, as relações sociais e a conjuntura política como fixas, permanentes, imutáveis. Embora os próprios agentes teatrais tenham a consciência de que o teatro, de forma isolada, não pode transformar o contexto social; eles compreendem como o teatro pode contribuir, de forma efetiva, no processo de mudanças, ao impulsionar a capacidade de reflexão crítica do público. Não podemos deixar de problematizar que, desde a produção localizada nas ditaduras militares sul-americanas; é ainda um desafio diário a mobilização de grande parcela da sociedade para a formação crítica pela via teatral; uma vez que, as questões diárias de sobrevivência da maioria da população, não contribui para uma formação humana que considere o papel de protagonista das artes desde a infância. Assim, os coletivos teatrais ainda lidam com questões que se arrastam por décadas, tais como o desafio de ampliar e democratizar suas produções para além das plateias já formadas, a fim de se aproximar daqueles potenciais espectadores que, muitas vezes. nunca foram assistir uma peça teatral. Trazendo todo esse processo de luta e mobilização dos quais os artistas fizeram parte nas ditaduras para os contextos atuais da América Latina, com a derrocada de diferentes governos progressistas e o retorno ao poder de políticos ultraconservadores e nos quais vemos retrocessos sociais sem precedentes, governos que voltam, inclusive, a atacar os artistas; como é o caso do Governo do Brasil, com o atual presidente Jair Bolsonaro; é premente retomar e reforçar o papel do teatro enquanto agente mobilizador dos coletivos que seja capaz de refletir sobre o processo das mudanças sociais tão caras, necessárias e urgentes em nosso território. Para tanto, precisamos de um teatro que fale do nosso tempo, a partir do nosso lugar de enunciação e com o foco nos nossos territórios. REFERÊNCIAS: BENTLEY, Eric. O teatro engajado. Tradução de Yan Michalski. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Editora 34, 2019. 326 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 327 BOAL, Cecília Thumin. Teatro em tempos difíceis in: Residência agrária da UNB: teatro político, formação e organização social, avanços, limites e desafios da experiência dos anos de 1960 ao tempo presente. / Eliene Rocha; Rafael Litvin Villas Bôas; Paola Masiero Pereira e Rayssa Aguiar Borges (organizadores) .--1.ed.- São Paulo: Outras Expressões, 2015. BOAL, Julian. Teatro do Oprimido em tempos neoliberais: Do Che Guevara ao motorista do Uber. Rio de Janeiro: 2020 BÔAS, Rafael Litvin Villas, PEREIRA, Paola Masiero. 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ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA DOENÇA, CONTROLE DOS CORPOS E DEMOCRACIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE CAIO FERNANDO ABREU Milena Mulatti Magri1 DOENÇA E CONTROLE DOS CORPOS O escritor brasileiro Caio Fernando Abreu elabora em sua obra diferentes imagens do corpo e da doença por meio das quais podemos depreender uma mudança significativa no regime do controle dos corpos pelo Estado, na passagem do regime militar para a democracia. Até fins dos anos 1970, verificamos a recorrência da imagem do corpo e da doença, elaborados sobretudo por meio da experiência da loucura ou da imagem da peste. A loucura, a princípio, era vislumbrada como uma forma de contestação do controle dos corpos exercido pelo regime militar, que se valia sobretudo do uso da força, por meio de prisões forçadas, torturas e desaparecimentos. A imagem da peste, por sua vez, estava circunscrita a uma visão de certo modo complementar e indissociável àquela proposta pela loucura, pois figurava também como possibilidade de ameaça à ordem social estabelecida. Caio Fernando Abreu iniciou sua carreira de escritor ainda jovem, no final da década de 1960, já nos primeiros anos do regime militar que se instalara no Brasil em 1964 – primeiro país latino-americano em que foi instalada uma ditadura militar na segunda metade do século XX, tal qual as que seriam encampadas em países vizinhos, como Bolívia, Chile, Argentina e Uruguai. Essa primeira fase de sua produção procurava estabelecer um diálogo com vertentes que despontavam na literatura hispanoamericana, sobretudo por meio da incorporação de traços do realismo mágico ou fantástico. Seu primeiro livro de contos, O Inventário do Irremediável, publicado em 1969, por exemplo, apresenta o conto “O Ovo”, cujo protagonista enxerga uma parede branca no horizonte, que a cada dia parece se aproximar, como se fosse o interior de “Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (FFLCH- USP). Concluiu pesquisa de PósDoutorado na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (IBILCE-UNESP) e um Estágio Pós-Doutoral na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). E-mail: milenamagri@yahoo.com.br 1 329 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA uma casca de ovo, reduzindo assim seu campo de visão e mobilidade. Após revelar a outros personagens a sua visão, o protagonista é considerado louco e internado à força. Há uma tensão permanente, no conto, reforçada pela dúvida de não sabermos se os demais personagens também seriam capazes de enxergar a parede branca. A imagem claustrofóbica da parede pode ser lida como uma metáfora do contexto de opressão do regime militar, no qual quem ousasse contestar a limitação a que todos estavam sujeitos sofreria as consequências da perseguição, exclusão e violência institucionais – representada, no conto, por uma política sanitária. Já na década de 1970, podemos encontrar imagens de peste em outras obras do autor, como no conto “O Afogado”, da coletânea O Ovo Apunhalado, publicada em 1975. No texto, um médico de uma pequena vila resgata um rapaz desconhecido, aparentemente um náufrago, que misteriosamente aparece na praia, e o leva para casa ainda desacordado. Com o passar dos dias de recuperação, a população da cidade se incomoda com a presença do forasteiro a quem imputa a responsabilidade pelo surgimento de inúmeros males que acometem o vilarejo, incluindo as doenças. Por outro lado, a presença do rapaz exerce um fascínio sobre o médico que encontra, nele, a possibilidade de ruptura com a ordem social estabelecida pelos moradores e endossada pelos poderes institucionais, representados pelo padre e pela estátua do general, patriarca da cidade. No desfecho, os moradores lincham o rapaz na presença do médico. A partir da segunda metade dos anos 1980, com a passagem da ditadura para a democracia, há uma mudança no tratamento da imagem do corpo e da doença na obra do escritor brasileiro que coincide, ao menos temporalmente, com uma alteração no regime de controle dos corpos operado pelo Estado, que passa a ser orientado não mais pela violência física, mas pela acentuação do controle dos processos vitais, em consonância com aquilo que Michel Foucault identifica, em sua História da Sexualidade I, como biopolítica. Neste estudo, o filósofo francês procura retraçar a história da sexualidade no Ocidente, que se constituiu, na modernidade, como um conjunto de normas que, amparadas em discursos médicos e jurídicos, regulamentam o comportamento dos corpos e determinam o que é considerado normal, saudável e socialmente aceito. O sexo se torna privilégio do casal heterossexual, em situação de matrimônio e para fins exclusivos de procriação. Tudo o que não atende a esse padrão é 330 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA considerado doença ou desvio e deve ser combatido; e, no limite, aqueles que não se enquadram devem ser excluídos do convívio dito saudável. Para sua definição de biopolítica, o filósofo remonta à Idade Média, quando o governo, centralizado na figura do rei, detinha o poder sobre a vida de seus súditos, determinando, inclusive, quem tinha o direito de permanecer vivo e quem deveria morrer, seja servindo aos exércitos, seja por meio da pena de morte. Na passagem para a modernidade, contudo, este poder sobre a vida se torna mais difuso e menos centralizador. Ele continua existindo, mas por outros meios que elegem, sobretudo, o corpo como objeto último que deve ser controlado, mensurado e vigiado. Deste modo, estabelecem-se saberes sobre o corpo que passam desde o discurso médico e jurídico, até a instituição de comportamentos considerados socialmente válidos. Criam-se inúmeros meios de controle sobre a vida, como o estudo de estatísticas, expectativa de vida, natalidade, saneamento etc., que têm como resultado um crescimento populacional nunca experimentado. Como consequência, no entanto, é preciso estabelecer normas e condutas socialmente válidas para poder gerenciar estas “vidas a mais” que passaram a integrar o corpo social. Dentro deste quadro, o controle sobre a sexualidade se revela um mecanismo chave, uma vez que ele permite, ao mesmo tempo, estabelecer um controle sobre a natalidade e sobre o comportamento. É justamente no contexto histórico da reabertura política – que coincide com o aumento dos casos de contaminação por HIV e Aids, no Brasil e em toda a América Latina –, que verificamos, na obra de Caio Fernando Abreu, uma mudança na forma de representação do corpo e da doença. A partir de então, sobressaem em sua obra os sofrimentos provenientes da epidemia de Aids, que afeta principalmente, num primeiro momento, os homossexuais. A Aids é tema recorrente na obra de Caio Fernando Abreu desde o início dos anos 1980, quando surgiram as primeiras notícias da doença e dos grupos minoritários especialmente atingidos. Por sentir-se de certa forma ameaçado e por conviver com amigos, artistas e pessoas que admirava e que haviam sido infectadas, o escritor procura dar destaque para este tema em obras como a novela “Pela noite”, de 1983, e a coletânea de contos Os Dragões não Conhecem o Paraíso, de 1987, assim como em seu último romance, Onde andará Dulce Veiga?, de 1990. Contudo, é sobretudo depois de ser diagnosticado como soropositivo, em 1994, que a experiência da doença passa a figurar em sua obra de modo ainda mais intenso. 331 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Caio Fernando Abreu torna público seu estado de saúde por meio da publicação de suas crônicas, no jornal O Estado de São Paulo, posteriormente reunidas na publicação póstuma Pequenas Epifanias (2006), passando a relatar os dramas físicos e também psicológicos de saber-se contaminado com uma doença potencialmente mortal – como de fato era a Aids até meados da década de 1990 – e sobre a qual recaíam preconceitos e estigmas. Apesar do pouco tempo de vida que de fato teve, após o diagnóstico da doença – Caio Fernando Abreu veio a falecer em menos de dois anos, em 1996 –, sua obra dedica especial atenção à questão, que, para além de suas crônicas, surge também na sua última coletânea de contos, Ovelhas negras, de 1995, e em algumas de suas peças de teatro, reunidas em seu Teatro Completo (2009), revistas e reescritas nesta mesma fase. A AIDS NO MEIO ARTÍSTICO E INTELECTUAL Ao saber-se soropositivo, Caio Fernando Abreu, ainda hospitalizado, decide tornar público seu diagnóstico. O escritor publica uma série de três crônicas conhecida como suas “Cartas para além dos muros”, por meio da qual anuncia e compartilha com seus leitores seu estado de saúde e, especialmente, seu estado emocional. Na “Segunda carta para além dos muros”, Caio Fernando Abreu, ainda sem mencionar claramente o diagnóstico da doença, revela que estava hospitalizado e vivenciava um momento difícil, no qual contava com a ajuda de “anjos”. Estes dividiam-se em três tipos: os profissionais de saúde e toda a equipe que cuidava de seu corpo e de sua manutenção naquele momento delicado; os amigos que vinham visitá-lo; e os mais variados artistas, que lhe chegavam tanto por meio do rádio e da televisão quanto por meio da memória. Deste último grupo, em especial, Abreu recupera uma lista com inúmeras personalidades vítimas de Aids: Reconheço um por um. Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nuriev, identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro Santo Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nélson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de Cyrill Collard, enquanto Wilson Barros esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nélson Perlongher. Ao som de Lóri Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta 332 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA para o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passa a mão devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: “Quem tem um sonho não dança, meu amor”. (ABREU, 2006, p. 110). Ainda sem mencionar de modo explícito a Aids, a listagem, que se divide entre epitáfio e homenagem, dá a dimensão do impacto devastador que a doença teve no campo das artes. São rememorados músicos, dançarinos, atores, diretores de cinema e teatro, artistas plásticos, escritores, todos das mais variadas nacionalidades – o que permite vislumbrar a capacidade de destruição da doença em termos globais. Algumas destas personalidades atuaram no campo da indústria cultural e, desse modo, têm ampla circulação, como é o caso de Freddy Mercury, uma personalidade internacionalmente conhecida, ou Cazuza, exemplo de uma personalidade brasileira imediatamente reconhecida pelo público leitor. Outros artistas citados são menos conhecidos do público em geral, mas ainda assim facilmente identificados por terem seus dramas pessoais expostos publicamente a partir do adoecimento por HIV e Aids, como Derek Jarman, Nuriev ou Hervé Guibert. Dentre os nomes rememorados constam duas referências a artistas e intelectuais latino-americanos: Reinaldo Arenas e Néstor Perlongher, este último, ao que tudo indica, mencionado equivocadamente como Nélson2. Néstor Perlongher foi um antropólogo e poeta argentino erradicado no Brasil no início da década de 1980, que deixou seu país para fugir da ditadura militar em vigor. Antes disso, contudo, foi um dos precursores na luta pelos direitos dos homossexuais, na Argentina. Perlongher faleceu, no Brasil, em 1992, em decorrência da Aids. Dentre muitas de suas publicações que vão desde sua obra poética até seus estudos como antropólogo, Perlongher também se dedicou a pensar o impacto social e sanitário do HIV e da Aids. Ele publicou, na Argentina, El fantasma del SIDA (1988) e, no Brasil, O que é AIDS (1987). Em seu estudo “A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes”, Larissa Pelúcio (2009) retoma a noção de “dispositivo da 2 Caio Fernando Abreu redigiu suas três crônicas dentro do hospital, sem condições de consultar nomes ou fatos, por isso cita de memória. O equívoco cometido pelo escritor não foi revisado pelo jornal, que assim o publicou, nem mesmo pelos editores do volume de crônicas, que mantiveram a grafia da publicação original sem adicionar nenhuma nota explicativa. 333 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Aids”, mencionado nos textos do poeta argentino sobre a doença, conceito este baseado na noção foucaultiana de dispositivo. Deste modo, o discurso elaborado em torno da Aids operava como um meio de controlar o comportamento e gerar exclusões e perseguições a partir de noção de grupo de risco. Baseada em Perlongher, Pelúcio retoma o fato de que os bancos de sangue eram fontes de contaminação tão arriscadas quanto a relação homossexual sem que, contudo, fossem imputados aos primeiros os mesmos estigmas que recaíram sobre os segundos – que eram, na verdade, vítimas da doença e não responsáveis por ela: os cuidados sanitários com o sangue usado em hospitais e centros hematológicos em países como o Brasil, por exemplo, não foram levados a sério. Mas, no imaginário social, o temor do sangue contaminado justificou o banimento de pessoas “suspeitas” de suas comunidades, assim como o isolamento compulsório, como se deu em Cuba. (PELÚCIO, 2009, p. 133). A segunda referência latino-americana presente na crônica de Caio Fernando Abreu é Reinaldo Arenas, escritor cubano que foi perseguido, censurado e preso por ser homossexual, durante a ditadura castrista. Arenas consegue se refugiar nos EUA, onde contrai HIV e vive seus últimos anos, até dar fim à sua própria vida, em 1990, uma vez que a morte, com o agravamento da doença, era inevitável. Antes, contudo, Arenas organiza os originais de sua autobiografia, Antes que anoiteça (2009), publicada postumamente por seus amigos, na qual relata todas as adversidades vividas em Cuba e, por fim, como escritor exilado. A rememoração e homenagem de Caio Fernando Abreu a Reinaldo Arenas vai além da menção nesta crônica, na qual o escritor cubano aparece elencado junto a inúmeras personalidades artísticas vítimas de Aids. A Arenas, Caio dedica uma crônica em especial por ocasião da publicação da primeira edição de Antes que anoiteça, no Brasil, em novembro de 1994. Mastiguei suas últimas palavras como se fossem cacos de vidro. Jamais sofri tanto com um livro [...]. Censurado, perseguido e preso em Cuba por homossexualismo (sic), Arenas fugiu para Miami, primeira estação do seu calvário de solidão e exílio, dedicando-se a desmascarar figurões tipo García Márquez, Severo Sarduy, Eduardo Galeano, Julio Cortázar e outros asseclas de Fidel Castro, que odiava. 334 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Livra a cara de poucos – Lezama Lima e Virgilio Piñera, malditos (e grandes) como ele. (ABREU, 2006, p. 128-129). A autobiografia de Arenas apresenta uma estrutura circular, como se o autor abrisse e fechasse sua obra sob o signo da morte. Suas primeiras palavras na “Introdução”, rebatizada em seguida como “O fim”, remetem ao momento presente em que o escritor anuncia sua tarefa de contar sua própria vida, tarefa que realiza sob o signo inexorável da morte provocada pela doença. Em suas palavras: “não posso afirmar que quisesse morrer, mas considero que quando não existe outra opção a não ser o sofrimento e a dor sem esperança, a morte é mil vezes melhor” (ARENAS, 2009, p. 7). A primeira informação que o escritor apresenta ao leitor sobre sua vida é, justamente, o diagnóstico recente de HIV/Aids. A referência à doença, contudo, é retirada de cena, ressurgindo somente no capítulo final, prestes ao fechamento de sua história. Todo o miolo do livro – digamos assim – é preenchido com sua vida em Cuba, desde a infância pobre e livre no campo, passando pela Revolução Cubana, pela descoberta da homossexualidade e consequente perseguição, prisão e exílio, tendo sido, neste meio tempo, insistentemente censurado em seu próprio país. Para Arenas, tanto o gozo de sua sexualidade quanto sua escrita eram o que conferiam sentido à sua vida, tendo sido ambos motivos de perseguição por meio do governo ditatorial de Cuba: A própria beleza é perigosa em si, conflituosa para toda ditadura, porque implica um âmbito que vai além dos limites em que essa ditadura submete os seres humanos; é um território que escapa ao controle da polícia política e onde, portanto, não pode reinar. Por isso mesmo, irrita todos os ditadores, que querem destruí-la de qualquer maneira. A beleza sob um sistema ditatorial é sempre dissidente, porque toda ditadura é por si mesma antiestética, grotesca; praticá-la representa, para o ditador e seus agentes, uma atitude escapista ou reacionária. (ARENAS, 2009, p. 117). Assim como Caio Fernando Abreu, que inicia sua carreira de escritor sob uma ditadura militar, no Brasil, também Néstor Perlongher e Reinaldo Arenas experimentam, em diferentes medidas, as consequências de viver sob regimes militares em seus respectivos países. O fato de Arenas abrir e fechar sua autobiografia com a referência à Aids – e, portanto, à morte –, mas preencher toda a sua história com sua luta para sobreviver sob um regime ditatorial, é elucidativo de como estas duas 335 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA dimensões da experiência – a doença terminal e a privação da liberdade – são experiências em alguma medida equiparáveis, a partir da perspectiva do escritor cubano. Por fim, uma outra referência artística latino-americana vinculada à Aids, presente na obra de Caio Fernando Abreu, se dá um seu último livro de contos, Ovelhas negras. Esta última coletânea do escritor é uma recolha de textos que escreveu ao longo de sua carreira e que por diferentes razões ainda não haviam sido publicados, somados a textos recém escritos. Trata-se, portanto, de um livro escrito e organizado sob a perspectiva da morte iminente, como uma espécie de fechamento de sua própria obra literária. O penúltimo conto do livro, intitulado “Metâmeros”, apresenta dois breves fragmentos que aludem ao impacto da doença e à perspectiva da morte. Recorto, a seguir, um trecho do segundo fragmento, que o autor nomeia como “Sobre o vulcão”: Naquele tempo, minha única ocupação diária era tentar não morrer. [...] numa espécie de ensaio geral da treva definitiva deflagrada pela hospitalização de Daniel, pouco mais de quarenta quilos e nódulos púrpuras espalhados pelo novo corpo quase de criança onde, do antigo, restavam apenas os enormes olhos verdes, e também pelo suicídio de Julia, pulsos cortados e a cabeça enfiada no forno do fogão a gás, vestida de bailarina com tutu de gaze azul e sapatilhas, depois de ter grafitado em spray rosa-choque no lado de fora da porta da cozinha alguma coisa em espanhol, alguma coisa amarga, alguma coisa assim: no se puede vivir sin amor. (ABREU, 2002, p. 222-223). No excerto, o narrador, abalado pela ideia da própria morte, rememora a morte de duas pessoas próximas, Daniel e Julia. Daniel, segundo a descrição apresentada no fragmento, enfrentou até o fim as consequências do adoecimento; Julia, por sua vez, se suicida por não suportar a ideia de uma vida de privação e solidão, sobretudo no campo afetivo. Os diferentes desfechos de Daniel e Julia remetem aos destinos de Perlongher e Arenas – seja por meio da morte em decorrência do agravamento do quadro de Aids, seja por meio do suicídio. Nos chama a atenção, no fragmento acima, a menção a um verso em espanhol: “no se puede vivir sin amor”. Este é o verso de uma canção, um pop rock de uma banda chilena que surgiu no final dos anos 1980, chamada Síndrome. O grupo tinha como atrativo o fato de não apresentar os rostos dos membros da banda, sempre escondidos por máscaras, nem suas identidades. Jaime Ayala, o líder do conjunto, anos mais tarde revelou que o sigilo sobre os membros se devia ao fato de que ele, um publicitário com 336 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA carreira recém iniciada, não desejava arriscar seu trabalho com uma espécie de aventura no campo da indústria cultural. Indagado sobre o motivo da escolha do nome da banda, ele responde: “El sida estaba todos los días en los diarios y en la televisión. Ésa era publicidad gratis, además era polémico, sugestivo”3. Sua resposta é um tanto chocante ao revelar, aparentemente sem nenhum pudor, o oportunismo de quem se vale de uma doença grave e mortal – como era a Aids nos anos 1980 –, sem considerar o sofrimento das vítimas, a fim de transformá-la em mera estratégia publicitária de um produto da indústria cultural. O fato é que Caio Fernando Abreu cita seus versos sem nem mesmo apresentar a referência à banda, gesto raro na obra do escritor brasileiro, sempre repleta de nomes e referências não só da alta cultura quanto da própria indústria cultural. Não podemos afirmar se Caio, àquela altura, tinha conhecimento da história da banda chilena; no entanto, parece que, ao omitir o nome do grupo de rock, ele realiza uma espécie de condenação à postura do grupo que, se por um lado dava visibilidade à Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, por outro, não apresentava nenhum discurso reflexivo ou crítico sobre o impacto social da Aids. Esta ambivalência na postura pública do grupo – à época – já poderia ser interpretada como oportunismo e falta de ética pelo escritor. Ainda assim, Caio Fernando Abreu se apropria do verso do grupo chileno, sem lhes atribuir nenhuma referência, para dar vazão a um dos sentimentos que mais lhe afligiam diante da doença: a falta de amor. O diagnóstico de HIV e Aids implicava não só o risco de morte, mas também a dificuldade de estabelecimento de relações sexuais e, portanto, afetivas e íntimas. “No se puede vivir sin amor” é um verso que expressa, portanto, um dos maiores dilemas enfrentados pelo escritor brasileiro em seus últimos momentos de vida. Este tema é desenvolvido, justamente, no conto “Depois de agosto”, que encerra a coletânea Ovelhas negras, em seguida deste fragmento de “Metâmeros”. No último conto do livro, o protagonista, uma espécie de alter-ego do escritor, também soropositivo, vivencia uma relação afetiva e íntima com um outro rapaz, também soropositivo, quando já imaginava que nunca mais lhe seria permitido este tipo de prazer. Para além do jogo de sedução, o protagonista também experimenta uma possibilidade de felicidade ao se reconhecer na experiência de um outro, uma vez que, As informações sobre Jaime Ayala e a banda Síndrome estão disponíveis no site Música Popular – la enciclopedia de la música chilena, disponível no endereço https://www.musicapopular.cl/artista/sindrome/>consultado em 03 mar 2021. 3 337 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA desde quando se soube contaminado, ele passou a ver a si mesmo como uma exceção, uma aberração. O encontro amoroso é, portanto, uma possibilidade de identificação e de felicidade. AIDS E AMÉRICA LATINA NO PRESENTE Passados vinte anos desde a elaboração destas questões na obra do autor, permanece a necessidade de se pensar de que maneira o regime de controle dos corpos continua atual, corroborando processos de exclusão de minorias. E, sobretudo, diante de um processo político conturbado como o que se vive hoje no Brasil e em outros países da América Latina, com fortes indícios de riscos à democracia – uma vez que incorpora cada vez mais valores antidemocráticos em instituições que deveriam resguardá-la –, importa pensar de que maneira este mesmo regime de controle dos corpos participa deste processo. Apesar dos avanços em saúde, com o controle e tratamento do HIV, e da consolidação de processos democráticos, após a promulgação da Constituição Brasileira em 1988, o que incluía o amplo direito à saúde, deparamo-nos hoje com um quadro de aumento dos casos de HIV, principalmente entre as populações mais jovens e minorias (homossexuais, mulheres e negros), e com a violação cotidiana de direitos fundamentais que atinge especialmente as populações periféricas. Uma pesquisa rápida sobre os dados da epidemia de HIV e Aids, hoje4, apontam para dados preocupantes. Desde meados da década de 1990 que a Aids já não é mais uma sentença de morte. Com a descoberta do coquetel – uma combinação de medicamentos retrovirais capazes de controlar o avanço do vírus e preservar o sistema imunológico do soropositivo e, deste modo, reduzir as chances de manifestação da síndrome – e a consequente distribuição gratuita da medicação pelo SUS, no Brasil, medida que foi tomada como exemplo pela comunidade médica internacional, a sobrevida do paciente soropositivo passou a ser uma realidade. Hoje, contudo, há duas gerações diferentes de pacientes soropositivos: aqueles que sobreviveram à epidemia 4 A primeira versão deste trabalho foi apresentada na VI Jornadas Internacionales de Problemas Latinoamericanos, que ocorreu em novembro de 2019, na Universidad de Valparaíso, Chile. Apesar de alguma distância temporal entre a versão inicial do texto e o momento da publicação, os dados verificados, à época, e apresentados a seguir não se alteraram substancialmente. Ao contrário, os conflitos que discutimos adiante intensificaram-se com a pandemia de coronavírus, que teve início nos meses seguintes à apresentação oral deste trabalho. 338 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA dos anos 1980 e 1990, e que de fato escaparam da morte; e grupos tanto mais jovens quanto mais velhos, que foram contaminados anos depois, quando a Aids já não era considerada potencialmente mortal. Isso porque o acesso ao tratamento da doença não é capaz de garantir o controle epidemiológico do vírus. Mais recentemente, a disponibilização de medicamentos como o Prep e o Pep (Profilaxias Pré ou Pós Exposição) é capaz de evitar a contaminação quando administrados imediatamente antes ou depois do contato com o vírus. Essa forma de prevenção, contudo, ainda depende, fundamentalmente, de uma ampla rede de informação sobre a epidemia e conscientização contra preconceitos consolidados sobre a doença. Apesar dos avanços na área farmacológica, o uso do preservativo ainda é o meio mais recomendado como prevenção. Tais medidas, contudo, esbarram em dificuldades políticas e culturais. Em matéria do jornal O Globo, de fevereiro de 2019, especialistas apontam um aumento preocupante de cerca de 700% do número de contaminações de HIV, no Brasil, especialmente entre jovens de 15 a 24 anos. Entre os anos de 2007 e 2017 houve o registro de aproximadamente 16 milhões de novos casos, dado que se revela ainda mais preocupante quando comparado com os índices mundiais, que indicam a queda do número de contaminações. Segundo Richard Park, Diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), tendências conservadoras têm dificultado o trabalho de prevenção. Segundo Park: “Os ministros falam sobre necessidade de se respeitar a família brasileira e deixar o debate sobre a educação sexual para os pais. É a receita para o desastre” (ALEIXO & GRANDELLE, 2019). Soma-se ao quadro de aumento da contaminação por HIV um estado de tensão permanente em relação à manutenção da política de distribuição dos retrovirais a soropositivos por meio do sistema público de saúde. Desde 2017 há reclamações de usuários do sistema, o que levou a própria UNAIDS a publicar uma nota assegurando sua atuação no acompanhamento da distribuição da medicação, no país. Ainda assim, verificamos notícias cada vez mais recentes que acusam a deficiência na distribuição dos medicamentos em diferentes estados. Uma matéria publicada pelo The Intercept Brasil, em abril de 2018, identificou algum tipo de problema na distribuição dos remédios em 14 estados diferentes: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina, Pernambuco, Ceará, Alagoas, Piauí, Paraíba, Acre, Amapá, Pará, Rondônia e 339 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Roraima. Constatou-se atrasos no recebimento da medicação pelos postos de distribuição; baixa nos estoques de medicamentos; ou a necessidade de fracionamento da medicação em mais de um comprimido, sem comprometimento para o tratamento. O jornal Correio identificou, em Salvador, em maio de 2019, a falta ou baixa no estoque de diversos medicamentos, entre eles, alguns medicamentos para soropositivos. Um deles, em especial, é administrado para crianças recém-nascidas filhas de soropositivos para evitar a transmissão do vírus, a chamada transmissão vertical. O medicamento não existe na rede privada e só é acessível pelas redes de farmácias públicas. Também o jornal G1, em junho de 2019, identificou falhas na distribuição de remédios para soropositivos no Rio Grande do Norte, onde 48 pacientes chegaram a ficar sem a medicação. Caso ainda mais grave é o enfrentado por soropositivos na Venezuela, onde, desde o agravamento da crise econômica e política nos últimos anos, há falta de medicamento e interrupção forçada do tratamento. O jornal El País, em matéria de setembro de 2018, apontava que a situação da Venezuela se assemelha à crise enfrentada nos anos 1980, quando ainda não havia medicação eficaz para controle da síndrome. O médico Carlos Pérez, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital Geral do Oeste (HGO), relata: A cada semana morrem dois pacientes meus. Estão chegando já na fase de Aids e esses casos de recém diagnosticados estão muito imunossuprimidos. Isso levou a um aumento significativo das mortes por HIV. Nos últimos meses, temos tratado a crise discriminando os pacientes que estão melhor, distribuindo doses para uma semana de tratamento, usando os medicamentos deixados pelos pacientes que morrem ou receitando o esquema incompleto, embora tenhamos consciência de que isso favorece a aparição de um HIV resistente. A situação é tão grave que eu recomendei que os pacientes emigrem ou, se tiverem a possibilidade de que lhes tragam medicamentos do exterior, que façam isso, mas isso é algo insustentável para muitas famílias. (SINGER, 2018). A falta da medicação é um dos fatores que agravam a crise humanitária vivida na Venezuela e que força a migração de sua população para outros países, sobretudo latino-americanos, onde é possível ter acesso ao tratamento. A matéria relata a migração de pacientes soropositivos para o México, Colômbia, Peru, Chile, Brasil e Argentina, onde o tratamento é possível. Alguns pacientes, contudo, morrem antes mesmo de ter 340 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA acesso à medicação no novo país. Segundo Eduardo Franco, secretário-geral da Rede Gente Positiva, os dados sobre a epidemia na Venezuela são estipulados a partir de “estimativa feita às cegas porque faz anos que o Governo não publica informações epidemiológicas e, neste 2018, a pasta da Saúde eliminou seu portal na Internet” (SINGER, 2018). A previsão é de agravamento da situação, uma vez que, com a crise econômica, a população mal tem dinheiro para comprar preservativos. Ao compararmos as diferentes representações da doença, na obra de Caio Fernando Abreu, nos períodos anterior e posterior à reinstalação do regime democrático, no Brasil, e à emergência da Aids, identificamos algumas questões pertinentes para pensar o problema da epidemia de HIV e Aids ainda hoje. Se até o final da década de 1970, as diferentes imagens da doença apontavam para uma possibilidade de contestação das forças exercidas pelo Estado sobre os cidadãos, a partir dos anos 1980 verificamos a imagem do corpo adoecido e, portanto, fragilizado diante de uma conjuntura nova e ameaçadora. Apesar dos esforços em políticas públicas e de saúde para prevenção e acesso ao tratamento de soropositivos, adotadas de modo crescente desde o fim dos anos 1980, vemos ainda a dificuldade em garantir uma política eficaz, que esbarra em forças conservadoras disseminadas no tecido social. Além disso, a atuação social de grupos soropositivos e de organizações sociais contra o HIV não é suficiente para garantir a esta camada da população uma completa independência em relação às decisões de Estado, tornando-as sujeitas aos impasses e revezes políticos que incidem sobre governos e populações. Os quadros latino-americanos aqui discutidos, sobretudo a partir das experiências de Brasil e Venezuela, são paradigmáticos de como as instabilidades na ordenação democrática tornam estes grupos populacionais especialmente vulneráveis. REFERÊNCIAS ABREU, Caio Fernando. Inventário do irremediável. Porto Alegre: Editora Movimento, 1970. ABREU, Caio Fernando. O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&PM, 2001. ABREU, Caio Fernando.Ovelhas negras. Porto Alegre: L&PM, 2002. ABREU, Caio Fernando.Pequenas epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006. 341 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA ABREU, Caio Fernando.Onde andará Dulce Veiga? Um romance B. Rio de Janeiro: Agir, 2007. ABREU, Caio Fernando.Pela noite. In:___. Triângulo das águas. Porto alegre: L&PM, 2007. ABREU, Caio Fernando.Teatro completo. Rio de Janeiro: Agir, 2009. ABREU, Caio Fernando.Os dragões não conhecem o paraíso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. 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ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A POÉTICA DA ABSTRAÇÃO NA VENEZUELA E O MANIFIESTO DE LOS DISIDENTES (1950) Vanessa Beatriz Bortulucce1 “Dissidente”: (lat. dissidens, entis part.pres. de dissidere) Adjetivo e substantivo de dois gêneros: 1 que ou o que diverge (de algo); 2 que ou o que sai de um determinado grupo ou organização (p.ex. política, religiosa), por divergir de seus princípios, ideias, doutrinas, métodos etc. - Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa INTRODUÇÃO No início dos anos 50, formou-se em Paris um coletivo de artistas venezuelanos conhecidos por Los Disidentes (doravante neste texto usaremos a tradução em português Os Dissidentes). Motivados pela necessidade de renovação da cultura venezuelana, criaram uma revista homônima, que, no seu quinto número, apresentou o manifesto do grupo. O texto, assinado em 1950, propunha uma renovação do campo artístico de seu país, liberto das amarras das instituições tradicionais, como a Escola de Belas Artes de Caracas. Os Dissidentes causou um impacto no panorama das artes plásticas da Venezuela ao introduzir as linguagens da abstração, a preocupação por uma investigação dos problemas formais da pintura e a proposta de uma arte que fosse para além da paisagem e dos temas sociais. Estes artistas já haviam protagonizado na Venezuela uma série de manifestações e protestos contra os métodos e currículos de ensino transmitidos pela Escuela de Artes Plásticas y Aplicadas Cristóbal Rojas, que substituiu a Academia de Belas Artes a partir de 1936. Os alunos reivindicavam a necessidade da Venezuela em alinhar-se com as propostas vanguardistas europeias; posicionavam-se contra a pintura de caráter naturalista e descritivo, enfatizado a necessidade de estabelecer um diálogo com as tendências abstratas, especialmente aquelas alinhadas com a poética do construtivismo. 1 Doutora em História Social (UNICAMP). Docente da Faculdade Casper Líbero, Museu de Arte Sacra de São Paulo e Centro Universitário Assunção. bortu@hotmail.com 344 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A consolidação da arte abstrata na América Latina ocorreu principalmente graças a formação de grupos de artistas, escritores e estudiosos que, ao criarem revistas especializadas e textos programáticos, como os manifestos, puderam divulgar suas ideias, bem como fortalecer as suas próprias produções plásticas. A criação de periódicos, manifestos e grupos de artistas, já existiam na Europa há tempos; contudo, atendem a um propósito especial no que diz respeito a poética da arte abstrata, principalmente aquela de tendência cinética, que irá marcar o grupo Os Dissidentes, de influência construtivista e seus conceitos de racionalização e modernização mecânica. Este texto tem como objetivo analisar o Manifesto dos Dissidentes, e a sua importância no cenário da arte venezuelana do século XX. Ele está estruturado em três partes. Na primeira seção, será problematizado o percurso da arte abstrata na América Latina e na Venezuela em particular; em seguida, refletiremos acerca da poética do manifesto como importante componente para a afirmação de novas propostas artísticas. Por fim, apresentamos uma análise do Manifesto de 1950. A ABSTRAÇÃO NA AMÉRICA LATINA O período que compreende o fim da Segunda Guerra Mundial até a década de 60 testemunha o surgimento de importantes artistas plásticos latino-americanos ligados às poéticas da arte abstrata. Este contexto, contudo, não é nada simples: ele está associado com o desenvolvimento da arte abstrata a nível internacional, no início do século XX, e também com a presença dos Estados Unidos como espaço de destaque na divulgação destas correntes, a partir de 1945. A abstração começa, de fato, na Europa, logo no início do século XX, e expandese para diversas poéticas e propostas. Seja numa abordagem mais lírica, como aquela de Kandinsky, ou mística, como a de Hilma au Klimt, ou numa acepção mais geométrica e estruturalista, como aquela de Mondrian e do grupo de Stijl, ou ainda, no caso do construtivismo russo, onde as formas das máquinas são o ponto de partida para a construção do não-objeto, a Europa testemunhou um grande momento na abstração até o início da Primeira Guerra Mundial. Ao término do conflito, a arte abstrata sofre seu primeiro grande baque: as trágicas consequências do conflito a sensação de insegurança redirecionam a arte para a 345 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA figuração, na tendência conhecida como rappel a l´ordre. Os anos 20 e 30 ainda procuram manter algumas experiências no campo da abstração, contudo, seja nos países capitalistas, cuja ascensão dos regimes totalitários criaram políticas persecutórias em relação à arte moderna, ou na recém-formada União Soviética (e especialmente a partir de 1934, com o Realismo Socialista imposto por Stalin), a arte abstrata não conseguiria retornar ao seu momento “heroico”, pré-1914. Com o início da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas abstratos emigraram para os EUA, em busca de melhores condições para o desenvolvimento de suas pesquisas. O país da América do norte tornou-se um prolífico campo de testes no sentido de expandir e consolidar diversas vertentes da arte abstrata; vencedores do conflito de 1945, assumem-se como o novo centro artístico e cultural do globo, num cenário onde uma Europa destroçada conta seus mortos (artistas entre eles) e a América Latina, até então atrelada culturalmente ao Velho Mundo, inicia um processo de reconfiguração cultural, num diálogo com os desenvolvimentos da Guerra Fria, onde a ideologia estadunidense impõe para o restante do continente.2 De uma forma que ressoa parte da poética construtivista soviética, a presença da abstração no continente americano possui vantagens para além de seu aspecto formal: está intimamente associada com as qualidades da sociedade industrial: alude à cultura de massa, às máquinas, o ritmo urbano, a racionalização do trabalho, mas também se inclina ao gestual, ao lírico e ao ethos primal que serve como um desafogo destas mesmas características da modernidade. Assim, a experiência da abstração nos EUA abraça tanto o estruturalismo visual de um Mondrian (que insere um ar festivo e luminoso a esta poética, como, por exemplo, em Broadway Boogie-Woogie, de 1942) quanto o dripping de reminiscências navajo de Jackson Pollock. Este último, como sabemos, tornou-se um dos nomes de destaque no chamado Expressionismo Abstrato, movimento respaldado por instituições como o MoMa, e por colecionadores como Peggy Guggenheim. No caso específico da América do Sul, desde a década de 40 já existem propostas voltadas a uma arte de valores abstratos, notadamente a abstração geométrica. Em muitos países, com destaque para o Uruguai, a Argentina, o Brasil e, em um 2 Não sem alguma resistência, claro. Em alguns casos, nota-se um conflito em alguns locais, onde uma arte de cunho social divide espaço com e a abstração, como o México. 346 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA momento posterior, a Venezuela, a arte construtiva, com propostas que privilegiavam o racional, foi a primeira tendência abstrata a se fazer dominante3. Sua difusão, contudo, deve ser estudada com cautela, considerando os percursos sociais, históricos e culturais de cada local. Os sistemas de artes locais devem ser considerados, uma vez que eles podem se relacionar com as novas tendências de forma amistosa ou não. Nos países da América Latina a abstração alarga-se e torna-se conhecida pelos artistas também pelo fato de esta corrente ganhar força e ser promovida pelos EUA. Se não se trata de uma única explicação, certamente trata-se de um aspecto relevante. A nação da América de Norte, com o objetivo de expandir e consolidar suas zonas de influência no continente, irá realizar grandes investimentos dirigidos à modernização da produção, em território nacional e fora deste. Seja em empresas particulares ou com empréstimos estatais, a América Latina participou de um momento de modernização onde a arte abstrata insere-se como um importante componente de inserção social e valorização de mercado. Sem dúvida, a linguagem da abstração geométrica atende aos anseios de uma modernidade voltada para o campo gráfico, o design, a arquitetura, a exploração do potencial plástico das formas, mas sobretudo o desejo por uma arte de valor universal, democrática, descolada de quaisquer regionalismos. Trata-se de uma poética que, como observa Couto (2012), busca estabelecer uma modernidade para depois superá-la, de um modo original. Acrescenta-se, aqui, a observação feita por Jimènez (2011) acerca das transformações plásticas e seu diálogo íntimo com as modificações sociais que ocorriam no período: Os artistas deixam de atuar no âmbito de povoados maiores ou menores, e passam a lidar com organismos cada vez mais amplos e 3 Como exemplo podemos citar Joaquín Torres García (1874-1949) que, após 20 anos na Europa, volta ao Uruguai e através de cursos, aulas e palestras, defende a abstração geométrica, fundando a Asociacíon de Arte Constructivo e a edição da revista Quadrado y Círculo. A poética construtiva também é identificada na Argentina, com o trabalho de Tomás Maldonado e Carmelo Aden Madí, às voltas com a criação de associações, grupos e revistas teóricas. As obras criadas no final da década de 1940 pelas pessoas do grupo Madí (que vai durar até o final de 1950), bem como as criações de Lucio Fontana facilitam a entrada da Argentina à arte geométrica-construtivista internacional. O grupo Madí é particularmente relevante, posto que desenvolveu de forma perene poéticas da arte cinética, bem como a quebra de molduras, numa referência direta ao construtivismo russo. Neubauer observa que estes movimentos “(...) trouxeram importantes conceitos internacionais para a arte sul-americana e tornaram-se, posteriormente, referências no cenário mundial, ao utilizar o vocabulário construtivista de uma forma única” (SILVA, 2012, p. 33). 347 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA complexos, cada vez mais diversificados e heterogêneos (...). As duas grandes guerras mundiais, com sua amplitude quase planetária de miséria e morte, também implicaram uma mudança radical tanto nos problemas plásticos que se colocavam os artistas, como nas estratégias individuais que adotaram para alcançar soluções adequadas. A pintura e a escultura, tal como vinham sendo praticadas ate então, mostraramse limitadas para alcançar esse publico cada vez mais amplo, e responder de modo eficaz as novas circunstancias urbanas. Os artistas mais importantes, aqueles que melhor exprimiram as necessidades de sua época, sentiram então impelidos a avançar alem dos limites convencionais das “belas-artes” (JIMÉNEZ, 2001, p. 12-13). A Venezuela, no início do século XX, alcança a unidade política ao longo do governo ditatorial de Juan Vicente Gómez (de 1908 a 1935), que encerra as lutas civis que se estendiam desde o século anterior. Em 1914 o petróleo é descoberto no país, o que não foi suficiente para evitar a estagnação econômica do governo Gómez, que os sucessores tentarão superar. A ditadura de Juan Vicente Gómez foi um marco político na criação do Círculo de Belas Artes, que teve sua origem no protesto que eclodiu em 1909 contra os métodos de ensino aplicados por Antonio Herrera Toro, então diretor da Academia de Belas Artes de Caracas. Os jovens que solicitaram a reforma da referida instituição começaram a se reunir na Praça Bolívar da capital, local de convivência da época. Os artigos publicados por Leoncio Martínez (Leo), no El Universal, junto com os esforços de Antonio Edmundo para unir as vontades dispersas de jovens artistas, foram, em última instância, o preâmbulo da fundação do Círculo de Belas Artes. Em termos gerais, esta organização foi um importante ponto de encontro para a projeção de renovação, não só das artes plásticas, mas também da literatura. Em seus primórdios, realizou uma série de exposições que contribuíram para que o público passasse a valorizar o empreendimento artístico como digno de ser considerado igual a qualquer outra profissão ou ofício. Embora o Círculo de Belas Artes tenha tido uma vida curta de 5 anos, marcada inclusive por repressões da polícia de Gómez, esta instituição contribuiu notavelmente para o redimensionamento da arte venezuelana em todas as suas facetas: conseguiram dar vida a novos gêneros, antes pouco cultivados ou em decadência nos tempos da República, como a natureza-morta, o nu, as artes aplicadas, o design, o desenho, conferindo-lhes autonomia e rompimento com os ensinamentos. 348 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA De 1935 a 1950, apesar das eleições indiretas e de um golpe de estado, a sociedade venezuelana será marcada por uma relativa abertura nas relações sociais e democráticas, modernização na economia e aumento na imigração. A Segunda Guerra Mundial ocasionou um investimento internacional no país, que testemunha uma diversificação da atividade econômica, com uma forte urbanização que se estende até a década de 60, bem como estimula a busca por novos modelos culturais. Artistas de diferentes países absorvem e problematizam de modos variados as propostas modernistas. No final da década de 1940 podemos identificar, conforme destaca Jiménez (2011) quatro correntes artísticas na Venezuela, todas voltadas, cada qual ao seu modo, para a constituição de uma poética visual nacional. A primeira dessas correntes, influente desde o início do século, era representada pela pintura de paisagem, de tendência impressionista, onde a figura de Armando Reveron merece destaque, tanto pela sua pesquisa formal do uso da luz, quanto pela sua personalidade solitária. A segunda corrente era marcada por uma estética nativista, com ênfase na exploração da história nacional. Uma terceira corrente defendia uma arte de caráter político, engajada, tendo como influência o muralismo mexicano. Por fim, a quarta corrente, com impacto menor, explorava a temática indigenista. Todas elas, em suma, orientadas pela figuração e pelo viés nacionalista. É neste cenário cultural que alguns artistas, estudantes da Escola de Belas Artes de Caracas, manifestaram interesse pelas ideias de modernidade e progresso, no desejo de realizar uma arte nova, desatrelada dos valores reforçados pela ditadura militar imposta por Juan Vicente Gomez entre 1908 e 1936. Muitos destes artistas irão encaminhar-se para uma poética de tendências cubistas, construtivas e marcadas pelas experimentações formais de Cézanne, na tentativa de superar a tendência da pintura de paisagem e de valores agrários que era constante no país. A ascensão do cinetismo na Venezuela estava diretamente ligada ao surgimento de uma classe média poderosa que cresceu vertiginosamente rica com a economia do petróleo. A demanda explícita desta classe emergente apontou para dar, por meio da arte, a imagem de desenvolvimento, alta tecnologia e expectativas do futuro. O cinetismo foi duplamente apoiado por essa classe e pelo Estado, que estava de acordo com aquela imagem de país moderno e permanente. Marta Traba observa que 349 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Se considerarmos a geometria, tal como apareceu na década de 1950, como a maneira adequada de entrar em um circuito universal, onde os localismos foram neutralizados e a possibilidade de emissão de uma nova mensagem foi atenuada ou desapareceu além do visual, é lógico que o maior desenvolvimento dessa tendência ocorreu nos países "abertos", em particular Argentina e Brasil, e em menor medida, por causa de sua população, no Uruguai e no Chile (TRABA, 1994, p. 107-08). A POÉTICA DO GÊNERO MANIFESTO O manifesto é um dos textos mais representativos de um tempo e de um espaço específicos da modernidade. De modo geral, entende-se o manifesto como um gênero textual, de caráter persuasivo, que se propõe a declarar publicamente princípios específicos, chamando a atenção do público, incitando à ação e alertando para a necessidade de realização de algum tipo de mudança. Quanto mais ele circular entre as pessoas, mais ampla será sua repercussão. Sua estrutura é relativamente livre, mas alguns elementos são típicos de seu formato: o texto, que não deve ser nem demasiado curto nem muito extenso, possui estrutura de dissertação e tom de convocação, com presença de vocativos. A linguagem pode variar dependendo a quem o texto é dirigido; geralmente, contudo, usa-se a linguagem formal, com verbos no presente do indicativo ou no modo imperativo. Além disso, o manifesto, na maior parte das vezes, possui um título, além de identificar o local, a data e os signatários do texto. Do século XVII até à primeira metade do século XIX, o manifesto situou-se no terreno específico da política, como uma declaração ou proclamação feita por líderes, por um Estado ou por um partido. Isso fez com que ele também pudesse ser utilizado como um instrumento de legitimação política. Neste sentido, o propósito do documento é tornar conhecido, para o público em geral, algum fato já estabelecido. É uma comunicação de “mão-única”, validada pelo status do emissor (aquele que detém o poder civil e militar) e pelo contexto do texto, que deve ser de interesse público. Aos seus receptores é negada a possibilidade de uma resposta, de uma réplica. Foi a partir da segunda fase da Revolução Francesa que surgiram importantes modificações no gênero: grupos radicais de jacobinos publicaram manifestos nos quais apresentavam suas exigências de uma urgente mudança social. Ao colocar o povo como autor dos manifestos, a Revolução Francesa apresentou-se como um verdadeiro turning 350 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA point na história do gênero. O manifesto passou a ser visto como um documento "revolucionário", uma "resignificação subversiva do gênero" (HJARTARSON, 2007, p.174), o que irá aproximá-lo das políticas revolucionárias dos períodos seguintes. O manifesto político cada vez mais passa a apoiar não somente a práxis política – ele é concebido como ato revolucionário em si. A segunda metade do século XIX, contudo, foi caracterizada não somente por uma proliferação de manifestos políticos, mas também pela apropriação do gênero por parte de grupos artísticos e literários. Ao tornar possível a emergência de um tema, o manifesto aponta para a necessidade de uma completa reorientação de um campo – cultural, político, histórico. Na transição do século XIX para o XX o manifesto tornouse parte integrante da poética de diversas escolas artísticas e literárias que surgiam, representando suas ideias e seus objetivos, destacando-as de outros grupos. Em muitos casos, o manifesto de vanguarda rompeu radicalmente com a função tradicional do manifesto estético como um meio secundário. Assim, na vanguarda do século XX "não existe somente o manifesto, mas sim uma reflexão acerca da escrita de manifestos, uma poética do manifesto in nuce" (HJARTARSON, 2007, p.177). A integração do termo militar “vanguarda” no campo da literatura e das artes levou à emergência do manifesto estético, que acabou por tornar-se a forma discursiva das vanguardas par excellence, pois ele vê a si próprio como a vanguarda do discurso, a coragem do diferente, em suma, o novo. Como afirma Martin Puchner (2006), a mudança na concepção de arte foi a consequência de maior impacto da disseminação dos manifestos na Europa; o manifesto, com o tempo, deixaria de ser um programa artístico, para integrar a experiência estética em si. Tais aspectos constituíram a chamada modernidade, que abriu caminho para o modernismo e a vanguarda do século XX, bem como estabeleceu a utilização das grandes narrativas de caráter teleológico. O Modernismo é “modernidade crítica”, que articula uma série de respostas à modernidade, contrárias ao projeto progressista, positivista, racional. Ele é “uma tentativa de interromper a modernidade que nós vivemos e entendemos como um modo de vida social, se não ‘normal’”. (EYSTEINSSON, apud SOMIGLI, 2003, p. 5). Eysteinsson entende o modernismo como uma tentativa de trazer à tona as experiências culturais que são reprimidas ou postas de lado pelos desdobramentos das narrativas da modernidade. Perry Anderson, 351 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA em “Modernity and Revolution”, sintetiza: “O modernismo europeu (...) floresceu em um espaço entre um passado clássico ainda usável, um presente técnico ainda indeterminado, e um futuro político ainda imprevisível” (ANDERSON, 1984, p. 100). Somigli ressalta esta posição ambígua dos manifestos: Manifestos são instrumentos cruciais (...) porque, devido à sua posição ambígua em um espaço entre o domínio criativo (eles são emitidos pelos seus próprios produtores) e os locais de mediação e recepção das obras (elas aparecem em jornais e na imprensa popular, participam nos debates do público e da crítica, e não clamam por um status autônomo como a obra de arte), eles funcionam como uma espécie de ponte entre os dois campos. Em outras palavras, a função formativa dos manifestos cumpre-se em dois níveis. Primeiro, eles servem para diferenciar o campo da produção cultural de outros domínios sociais, e legitimar sua autonomia. Segundo, no campo restrito de produção artística, eles servem para articular a identidade dos vários grupos de indivíduos que, ou por assinar o manifesto ou assumindo o nome que ele propõe, afirmam de forma explícita sua fidelidade a ele, e o agregam ao campo simbólico associado com os seus nomes (e, por sua vez, partilham o capital simbólico do grupo) (SOMIGLI, 2003, p. 54). O caráter ambíguo do manifesto cria uma ponte entre o artista e a sociedade, pois a arte, uma vez autônoma das várias funções sociais, distancia-se da experiência vivida. Já que o conteúdo da arte está cada vez mais próximo da individualidade e das preferências particulares do seu criador, fica cada vez mais difícil encontrar uma poética que una o seu tema ao mundo da experiência vivenciada. O artista moderno encontra-se diante de um dilema: ao mesmo tempo em que conquista um discurso estético autônomo, livre para rejeitar todas as formas de convenções tradicionais de código e conteúdo, sente a necessidade de fazer circular sua produção num ambiente social dominado pelas regras da troca capitalista. Isso posto, uma análise do manifesto moderno implica na discussão acerca dos elementos que caracterizam a sua comunicação, que se faz de forma específica. Sua textualidade procura ir além dos limites do próprio texto, que gera outros discursos, que possui a urgência de ser colocado em prática. Trata-se da necessidade premente de inserir-se no presente, seu locus por excelência. Porém, Puchner observa que a modernidade possui uma temporalidade específica que plasma-se de forma especial no manifesto. Esta temporalidade é caracterizada por 352 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 353 (...) rupturas e novos começos que não obstante continua a ser confrontada com um passado que nunca está abandonado completamente. Esta temporalidade, com todas as suas tensões e contradições, surge na filosofia iluminista e na declaração política, no primitivismo modernista, na poesia da vanguarda, nos contos modernistas, mas em nenhum outro lugar de forma tão sucinta e notável como no gênero do manifesto (PUCHNER, 2006, p. 7). Assim, o manifesto é um gênero que representa as esperanças, fantasias, desejos e contradições da modernidade. Encontrar uma definição para o manifesto moderno ainda é algo desafiador: mesmo quando refazemos o percurso histórico do manifesto, persistem as dificuldades para encontrar uma definição entre os autores contemporâneos: Claude Abastado (1980, p. 23) afirma que encontrar uma única definição para manifesto significa tolher seus múltiplos aspectos; o manifesto é mutável e “não existe como um absoluto”. Mas, de forma geral, o que faz de um texto um manifesto? Somigli observa: (...) A classificação de um texto como um manifesto depende dos resultados pragmáticos que a sua inserção em um determinado campo (político, estético, religioso, etc.) de relações provoca. Em outras palavras, um manifesto não precisa clamar por mudança de maneira explícita, desde que sua função de ruptura se torne evidente como uma consequência dos efeitos que ele tem sobre o espaço (...). Se o manifesto situa-se num espaço entre arte e vida, talvez seja possível considerá-lo como um gênero que questiona os contornos destes limites, e chama a atenção para um entendimento mais complexo do texto como evento e da textualidade do evento (SOMIGLI, 2003, p. 27). O autor reforça as ideias apresentadas por Abastado no que concerne ao caráter múltiplo do manifesto: não possuindo um locus único, o gênero permite uma nova relação entre texto e leitor, entre linguagem e meio, entre reflexão e ação. O manifesto se opõe ao apelo, à declaração, à petição e ao prefácio: o apelo convida à ação sem propor um programa; a declaração afirma uma posição sem pedir adesão aos destinatários; a petição é uma reivindicação pontual assinada por todos os que a fazem; o prefácio acompanha um texto que ele introduz, comenta e justifica. É possível notar que a existência de um texto programático e o pedido de uma adesão a ele são elementos que determinam, num texto, o seu caráter de manifesto. A isto se juntam outras obras não textuais que adquirem uma função de manifesto: é o que Abastado ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA chama de “efeito manifesto”: obras literárias, pinturas, filmes, canções e até mesmo atos terroristas são recebidos como manifestos. Cada caso deve ser analisado em seu contexto e nas relações que estes produtos estabelecem com seu público. O manifesto também é um ato de legitimação e de conquista do poder: poder simbólico – moral e ideológico – junto com a dominação política ou hegemonia estética. Os manifestos marcam a história das ideologias e permitem a sua periodização. Eles fundam datas, e, neste sentido, assinalam as mudanças de poder político e social. Neste cenário, a situação do manifesto é uma situação precária, pois, uma vez que sua mensagem seja absorvida de forma satisfatória, a marginalidade se transforma em norma, institui uma nova ortodoxia, enfim, “entre a consagração e o esquecimento, entre a vertigem e o naufrágio, se encontra uma terceira armadilha: a recuperação, forma latente de sucesso” (ABASTADO, 1980, p. 6). Eis uma contradição que todo manifesto, em algum momento, tem de enfrentar: quando a mensagem do manifesto é bem recebida, quando sua proposta é assimilada, enfim, quando o manifesto “se realiza”, ele perde seu propósito, transformando-se em fonte histórica, um documento do passado: Em um sistema político liberal e um contexto intelectual aberto, a mensagem de um manifesto passa, mas é muito rapidamente fagocitada, diluída nas contradições da ideologia dominante que se torna sua substância e tira o seu vigor: a ruptura proclamada é interpretada como um vínculo histórico, o discurso inaugural como um episódio numa controvérsia infinita; a bomba desarmada torna-se uma peça de museu e um pedaço de antologia (ABASTADO, 1980, p. 6). É importante observar também que, na poética do manifesto, nota-se delicado equilíbrio entre conformismo e polêmica, entre o tom amistoso e a violência argumentativa existente nos manifestos. Esta dualidade relaciona-se com a condição do artista e a sociedade capitalista: é necessário que o manifesto seja inteligível no contexto social da modernidade, acatando determinadas regras de mercado para que possa espalhar seu tom provocatório. Ser amistoso permite ao manifesto ser rebelde; ser “conformista”, ou seja, compreender a práxis da sociedade capitalista, permite ao manifesto difundir-se em seu público. Todos estes elementos atribuem ao manifesto um caráter fortemente “impaciente”, como afirma Puchner; uma impaciência em desfazer os limites entre discurso e ação, palavras e revolução, uma impaciência consigo próprio, entre ser ação e texto ao mesmo 354 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA tempo. Puchner observa que todo manifesto (inclusive artístico) possui um tom político, ou, pelo menos, deve adotar uma “voz política”, ou seja, um elemento de apelo, de urgência, direto e breve. Este chamado, este “grito”, colocam o gênero como ponto de referência para outros textos e ações. Isso acontece devido ao manifesto ser o responsável pela reconstrução de uma experiência: Se um manifesto (...) torna-se um ponto de referência, é porque ele desconstrói e reestrutura um campo ideológico: ele traz à luz, por meio do sistema que denuncia, as contradições lógicas, as distorções entre os dados da experiência e o significado que lhe damos; ele modifica a perspectiva, baseia-se em outros axiomas e novos valores, e restitui à experiência uma coerência (ABASTADO, 1980, p. 9). A análise estrutural dos manifestos permite reconhecer as estratégias e de compreender os seus efeitos. É necessário, ao analisarmos a práxis do manifesto, atentar para o uso dos tempos verbais, marcadamente o imperativo e o subjuntivo; o uso de neologismos, de intimidações e exortações implica num vocabulário exclamativo, de um texto que se dirija diretamente ao leitor: assim, a utilização dos pronomes “nós”, “vocês”, “vós”, reforça o caráter coletivo do projeto moderno. Tais pronomes definem um emissor, um destinatário e um programa, construindo uma relação de identificação, bem como também constroem um sistema mais complexo, misturando emissor e receptor. Trata-se de um recurso para fortalecer a mensagem por meio da construção de uma identificação entre aquele que lê o manifesto e aquele que o escreve. O MANIFESTO OS DISSIDENTES No processo de revisão estética que ocorria na Venezuela, a figura de Alejandro Otero (1921-1990) merece destaque. Aluno da Escola de Artes Plásticas de Caracas entre 1939 e 1945, obteve, neste último ano, uma bolsa de estudos do governo francês e do Ministério da Educação venezuelano, com o propósito de continuar seus estudos em Paris. O contato com as obras de Cézanne, Braque e Picasso acentuou ainda mais seu descontentamento com a pintura de paisagem que era realizada em sue país. Otero está especialmente interessado em estudar os efeitos luminosos da cor, os potenciais da linha e a desconstrução das formas. Estas pesquisas podem ser percebidas na série Las 355 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Cafeteras, realizada em 1947 na Europa, que recebeu duras críticas quando exposta em Caracas. Outro fato importante na história da arte abstrata na Venezuela foi a mostra organizada em 1948 pelo Ateliê Livre de Arte, dirigido por Alirio Oramas, que promoveu em Caracas a primeira mostra de arte abstrata no país, com obras dos artistas argentinos vinculados a Asociacion Arte Concreto-Invencion. Seria, contudo, a repercussão da mostra dos trabalhos de Otero, no ano seguinte, que inauguraria uma série de debates em torno das possibilidades estéticas do abstracionismo, especialmente aquele geométrico. Neste ínterim, a má recepção de suas pinturas em seu país estimula o retorno de Otero a Paris em 1950, onde o grupo Os Dissidentes será articulado. Esta geração de venezuelanos reunidos na capital francesa era formada pelos pintores Aimeé Battistini, Narciso Debourg, Perán Erminy, Carlos González Bogen, Luis Guevara Moreno, Dora Hersen, Mateo Manaure, Pascual Navarro, Rubén Núñez, Alejandro Otero; também por uma dançarina, Belén Núñez e um filósofo, José Rafael Guillent Pérez. Aimée Battistini, artista venezuelana de origem corsa e radicada na França desde 1928, é a ponte entre as culturas: apresenta a vanguarda europeia aos demais, estimula uma rede de contatos entre os artistas, promove uma reflexão acerca de experiências visuais desconhecidas na Venezuela. Bolsistas, aproveitam a oportunidade que se apresenta diante deste isolamento voluntário para refletir sobre o cenário cultural de seu país e propor um novo direcionamento para as artes, que se dá pela criação do grupo Os Dissidentes e pela fundação de uma revista com o mesmo nome. Isolamento, distanciamento, dissidência: ao distanciarem-se de sua terra natal, tomam consciência deste caráter duplo de distância, geográfica e cultural. Paris é uma tomada de consciência, uma percepção aguda dos problemas estéticos da Venezuela. Para estes artistas, a arte venezuelana apoia-se em uma estagnação profunda: a crítica local, por um lado, defende uma arte desatrelada das tradições artísticas europeias, ao mesmo tempo em que exalta a constituição de uma estética nacional calcada no academicismo de fundo histórico. Conforme observa Silva (2012), em consequência deste cenário, a postura do grupo, particularmente a de Otero, será a de adotar a abstração geométrica, “assumindo abertamente a natureza da arte latino americana em sua relação antropofágica com as grandes correntes do pensamento e estética europeus” 356 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA (SILVA, 2012, p.62). A abstração apresenta-se como uma escolha adequada, porque se mostra como a mais radical e contundente estética diante de um cenário artístico marcado por orientações acadêmicas. Além disso, a poética abstração é de teor internacional, contrapondo-se às tendências historicistas. De 1945 a 1951, o grupo permaneceu em Paris, retornando a Venezuela no ano seguinte. As criações artísticas a partir deste ponto não se limitarão aos espaços restritos dos museus, imprimindo-se nas arquiteturas e em outros espaços do cotidiano. Merece destaque o projeto do arquiteto Carlos Raúl Villanueva, que em 1951 convocou vários artistas para trabalhar na decoração da Cidade Universitária de Caracas, o primeiro grande conjunto arquitetônico e artístico que se ergue na América Latina. Villanueva reuniu artistas de outros países, como Alexander Calder, que trabalhou no teto de auditório, Arp, Laurens, Pevsner, Léger e Vasarely; a estas contribuições juntaram-se as atividades de artistas locais como Manaure, Vigas, Barrios, Gramas, Lobo, González Bogen, Narváez, Otero, Valera, Soto, Poleo, Arroyo, Carreño e Salazar. O Manifesto dos Dissidentes, escrito durante o tempo de estadia em Paris, alinhase a tendência, presente desde o século XIX na Europa, de divulgação e circulação de periódicos específicos sobre arte, bem como a produção de manifestos4. É nas revistas que as propostas artísticas, conforme Schwarz (1995), podem ser percebidas com maior clareza, uma vez que estas estão de certa fora desatreladas os status quo literário: Devido ao seu caráter contestatório, seja nas artes, seja nas questões sociais, elas mantém uma relação pragmática com o público leitor, e, pregando uma linguagem mais direta que o discursos estritamente literário, e possuindo um status menos “aurático” Há nelas um forte sentido de oposição que não passa pela censura ou pelo crivo da grande imprensa. Devido ao seu caráter efêmero, as revistas de vanguarda apresentam linhas ideológicas mais nítidas, tanto pelas definições explicitamente avançadas nos editoriais, quanto pelo escasso tempo que dispunham para assimilar uma nova tendência ou 4 Também merece ser destacada a importância das publicações e periódicos na difusão da arte abstrata a nível internacional. Segundo Couto (2012) um dos primeiros e mais importantes materiais de divulgação internacional da poética da abstração foi o catálogo inaugural da Galerie Art of this Century de Peggy Guggenheim, publicado em 1942, com textos como “arte abstrata” de Mondrian, “Notas sobre a arte abstrata” de Bem Nicholson e “Arte Abstrata e Arte Concreta” de Jean Arp. Posteriormente, na França, em 1949, Michel Seuphor editou o livro L´art abstrat, ses origines, ses premiers maitres, sobre a exposição realizada na Galeria Maeght. Ainda neste ano, também em Paris, André Bloc lançou a revista Art d´Aujord´hui, totalmente dedicada à arte abstrata. O mesmo Michel Seuphor publicou, em 1957, o Dictionnaire de la peinture abstraite, em Paris. 357 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA inclusive mudar a trajetória ideológica inicial (SCHWARZ, 1995, p. 54). A própria decisão de redigir um manifesto já indica a o desejo do grupo em inserir-se nos debates culturais do período. Conforme observa Couto (2012) o tom agressivo e polêmico dos manifestos então publicados não deixa dúvidas sobre o interesse do grupo em estabelecer um projeto de renovação e atualização artística. Manifestos são máquinas de desejo, pois estruturam e afirmam uma identidade, sendo o ato fundador de um sujeito coletivo, mas não institucionalizado, um grupo animado pelas convicções comuns e o desejo de ação. A análise da enunciação, neste sentido, é bastante significativa e explica o ritual de autodestinação dos escritos do manifesto: os signatários informam e vêem neles uma imagem espelhada. Trata-se de uma busca de identidade e do desejo de reconhecimento. É por este motivo que o manifesto, embora possa se distanciar do ambiente cultural no qual está inserido, não rompe totalmente com ele; a ruptura total com a cultura significaria a perda de ressonância em um público: O manifesto nunca rompe totalmente com o seu ambiente cultural, ao mesmo tempo em que toma distância dele. Ele é uma lacuna, mas, para se afirmar, implica uma norma. Ele proporciona forma e proclama, em face de uma ideologia reconhecida, o pensamento latente de um público virtual; ele serve como um ressoador. Ele oscila entre uma conformidade que torna possível a comunicação e os efeitos de surpresa ou de escândalo. (ABASTADO, 1980, p. 8-9) O manifesto preza pela brevidade, o que acentua o caráter incisivo do discurso. Em geral, textos de manifestos, quando curtos, conseguem atrair a atenção dos leitores de forma mais contundente. O texto apresenta dois momentos distintos. O primeiro, empenha-se em justificar a existência do manifesto, assinala de modo breve a situação da cultura venezuelana, explicita a necessidade de tornar público o descontentamento dos signatários. O segundo momento, marcada por frases curtas, onde o termo “NÃO”, em maiúsculas, marca um ritmo através de sua repetição, expõe as reivindicações do grupo, de forma clara e enxuta. A estrutura dos manifestos artísticos do inicio do século XX está na epiderme do texto dos Dissidentes: preserva a estrutura “clássica” dos manifestos, apresenta suas críticas de forma quase telegráfica. 358 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A redação começa, pois, sem rodeios, com a informação de que os signatários do texto não estão em Paris para “fazer cursos de diplomacia” ou “adquirir uma ‘cultura’ para desfrute pessoal”. Tais observações estão associadas ao universo da capital francesa, tão associada com o conceito de certa cultura de destaque, daí a palavra entre aspas. Já em 1950, o mundo das artes já possua um “novo centro”; Nova York. Ao contrário, estar em Paris, colocar-se como estrangeiro, como visitante, num estado de impermanência, significa tomar certa distância, para poder refletir, e elaborar a sua condição de “Dissidente”. Tomar distância do cenário cultural venezuelano proporciona aprender a “chamar as coisas pelo seu nome”, o que significa expor o descontentamento dos artistas com a cultura de seu país de origem, o consumatum est venezuelano, em suma5. As instituições oficiais de arte, bem como os seus críticos, os “músicos folclóricos” (provavelmente aqui, uma síntese de toda a cultura tradicional venezuelana), os poetas e escritores “de páginas vazias”, todos são alvos das críticas dos signatários, que, de forma sucinta, resumem todo um universo que legitima e respalda uma “arte” ultrapassada. Aqui, o valor do manifesto e especialmente, do periódico onde ele é apresentado, ganha especial importância, uma vez que se opõe ao jornal, forma tradicional de circulação dos valores culturais escritos pelos críticos e lidos por um público bovino, que “todos os dias se encaminha mansamente para o abate”. CONSIDERAÇÕES FINAIS A poética da abstração na arte latino americana a partir da década de 50 pode ser explicada por duas frentes: por um lado, a presença econômica, e portanto, ideológica, dos EUA, então principal geografia das experiências da arte contemporânea, que difunde a abstração para o restante do continente; e o próprio posicionamento cultural de parte dos artistas latino americanos, que projeta suas aspirações de modernidade nas poéticas da abstração. Trata-se, afinal, de aspirações concretas, relevantes e autônomas. 5 consummatum est (locução latina que significa "tudo está consumado"). Últimas palavras de Jesus Cristo ao expirar na cruz; citam-se a propósito de uma grande catástrofe, ou de uma vida que acaba de extinguir-se. Fonte: Vulgata, S. João, XIX, 30."consummatum est", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/consummatum%20est Acesso em 0403-2021. 359 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA É possível dizer que, no campo das experiências artísticas modernas na Venezuela, merecem destaque tanto o exílio de Reveron quanto a dissidência dos artistas latino-americanos que em Paris, lançaram seu manifesto. Dissidência e exílio andam de mãos dadas, anunciando um novo cenário na arte venezuelana do século passado; não em vão Armando Reverón e Os Dissidentes são citações obrigatórias nos estudos sobre a arte venezuelana na primeira metade do século XX. No que diz respeito ao grupo dos Dissidentes, uma nova orientação foi posta em movimento, uma nova disposição cultural passou a fazer parte do cenário do país. A arte cinética venezuelana, como vanguarda (...) não certificou a “morte da arte”, embora a tenha atestado de uma quase esquecida “pintura de cavalete”; Também não ajudaram a demolir instituições fortemente estabelecidas, mas, ao contrário, contribuíram decididamente para consolidar as instituições artísticas existentes na Venezuela. Nunca desempenharam o papel de iconoclastas que, segundo o estereótipo, deviam representar, embora atacassem a figuração na firme convicção de que com a abstração geométrica e o cinetismo, as artes visuais teriam atingido o mais alto grau de desenvolvimento (CASTILLO, 2014, p. 84). O impacto das correntes abstratas repercutiu de modo contundente na Venezuela da década de 50, especialmente em Caracas. É neste período que a poética do abstracionismo geométrico venezuelano esparramou-se para fora do país, estendendo-se para toda a década seguinte. O debate em torno da atualidade da arte abstrata ganhará novos contornos, com a entrada em cena de diferentes grupos e propostas. As obras de Jesus Soto, Cruz-Diez e Gego, em suas propostas cinéticas, luminosas e inventivas, alcançam projeção internacional, alargando o campo da experiência sensorial da pintura, sofisticando o diálogo entre a obra de arte e o espaço arquitetônico, explorando as qualidades cinéticas, cromáticas e cambiantes da percepção visual. Tais artistas também se tornaram relevantes ao afirmarem a autonomia criativa da Venezuela, que em nada se contradiz com o histórico da presença de estéticas internacionais no país, décadas antes; ao contrário, são justamente artistas como Soto e Cruz-Diez que formulam propostas visuais originais, inserindo-se na arte contemporânea de modo autônomo. Este cenário artístico venezuelano ecoa as palavras de Traba: 360 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA É verdade que no século XX a América Latina não criou nenhum "ismo" original. (...) No entanto, seu propósito invariável de articularse com sua comunidade por meio de mensagens visuais carregadas de significado tornou-se progressivamente um "banco de imagens", o que implica uma reserva real para nós e potencial para o resto do mundo (TRABA, 1994, p.164). Talvez seja o momento de refletir, no contexto de uma História da Arte que cada vez mais se desatrela dos colonialismos, das visões eurocêntricas, que se propõe global sem ser globalizada, a esterilidade do debate que procura identificar aspectos “originais” e “não-originais” nas obras de arte, especialmente aquelas produzidas por artistas latino-americanos. Manifiesto de Los Disidentes (Paris, 1950) Nós não viemos a Paris para fazer cursos de diplomacia ou para adquirir uma “cultura” para desfrute pessoal. Viemos enfrentar problemas, lutar com eles, aprender a chamar as coisas pelo seu nome e, portanto, não podemos ser indiferentes ao clima de mentira que é a realidade cultural da Venezuela. Acreditamos contribuir para sua melhoria, analisando suas deficiências com maior rigor, colocando a culpa nos verdadeiros culpados e naqueles que os apoiam. Parte razoável da tarefa que realizamos não nos caberia, mas frente a indiferença de seus responsáveis não hesitamos em torná-la nossa, especificando também tudo o que pudermos. Somos venezuelanos (e o continuaremos a ser) e somos as primeiras vítimas desse lamentável estado de coisas. Hoje nos rebelamos contra elas e clamamos porque é necessário. Somos contra o que consideramos retrógrado ou ultrapassado. Contra o que tem uma base falsa. Somos o resultado e testemunhas de muitos absurdos e ficaríamos mal se não disséssemos o que pensamos, na forma que consideramos necessário fazê-lo. Queremos dizer NÃO agora e depois de ‘Os Dissidentes’. NÃO é a tradição que queremos instaurar. O NÃO venezuelano que nos custa muito dizer. NÃO aos falsos 361 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 362 Salões de Arte Oficial. NÃO a esse anacrônico arquivo de anacronismos chamado Museu de Belas Artes. NÃO à Escola de Artes Plásticas e suas promoções de falsos impressionistas. NÃO às centenas de exposições de comerciantes nacionais e estrangeiros realizadas anualmente no Museu. NÃO aos falsos críticos de arte. NÃO aos falsos músicos folclóricos. NÃO aos falsos poetas e escritores de “páginas vazias”. NÃO aos jornais que apoiam todo esse absurdo e ao público que, todos os dias, se encaminha mansamente para o abate. Dizemos NÃO de uma vez por todas ao consumatum est venezuelano com o qual não seremos mais que uma ruína. Narciso Debourg, Carlos González Bogen, Luis Guevara Moreno, Mateo Manaure, Alejandro Otero, Pascual Navarro, Omar Carreno, Ruben Nunez, Peran Erminy Tradução: SILVA, 2012. REFERÊNCIAS ABASTADO, Claude. “Introduction à l´analyse des manifestes”. Paris: Littérature, n°39, 1980. ANDERSON, Perry. “Modernity and Revolution”. Londres: New Left Review I/144, Marçoabril de 1984. Disponível em <http://newleftreview.org/I/144/perry-anderson-modernity-andrevolution> Acesso em 01/03/2021. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. “A cor como evento: a série Fisicromia de Carlos CruzDiez. Campinas. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 20, p. 183-202, 2014. BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. “Manifesto Futurista: texto-ação”. Revista de Letras UNESP. v 50, nº 1, 2010. ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. 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ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A PRODUÇÃO PARTILHADA DO CONHECIMENTO NAS REDES COLABORATIVAS E O USO DA HIPERMÍDIA Douglas Gregorio Miguel1 INTRODUÇÃO – A PRODUÇÃO PARTILHADA DO CONHECIMENTO O pensamento de Friedrich Nietzsche2, cuja influência foi decisiva em toda cultura ocidental contemporânea inaugurou a reflexão crítica da modernidade, na qual ocorre a prevalência da racionalidade metódica que encontrou sua expressão mais significativa em René Descartes3. Apesar dos gigantescos avanços proporcionados pelo procedimento racional e metódico, fato era que a modernidade falhou na sua pretensão da universalidade das soluções apresentadas aos anseios humanos em seu relacionamento com a natureza e com a vida em sociedade. Assim, desde meados do século XX, ocorre no seio da cultura o esforço crítico de compreensão dos limites da racionalidade e a busca de novos paradigmas que sirvam de base a continuar o processo de construção de conhecimento. Neste sentido, o questionamento dos postulados epistemológicos da modernidade a partir de procedimentos diversos, entre eles, novos direcionamentos na compreensão de estatutos epistemológicos presentes em culturas ancestrais. O ser humano parece encontrar um certo desconforto no seio da modernidade, na medida em que a separação entre sujeito e objeto o coloca no dilema de que, ainda que 1 Doutor em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH-USP. Membro do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerância e Conflitos da FFLCH-USP. Contato: dgmsbc@gmail.com . 2 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão autor de obras como Assim Falava Zaratustra (1885), Genealogia da Moral (1887), O Anticristo (1888) entre várias outras. Seu pensamento funda-se principalmente na crítica à cultura ocidental, centrada na moralidade cristã, a qual considerava inibidora do espírito livre e da vontade, gerando uma civilização de homens submissos que negam seus mais valorosos talentos e atributos, criticando também a modernidade, fundada no primado da razão como fonte de verdade. Trata-se de um dos mais influentes pensadores da contemporaneidade. 3 René Descartes (1596-1650), filósofo francês autor de obras como Discurso do Método (1637) e Meditações (1641), entre outras. Inaugurou o pensamento moderno ao desenvolver uma epistemologia fundada no primado da razão e no procedimento metódico, o que provocou a fragmentação do conhecimento segundo sua especificidade e a distinção entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, revolucionando a ciência que a partir de então apresentou um desenvolvimento tão acelerado quanto diversificado, produzindo nos séculos seguintes um avanço sem precedentes. 365 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA se esforce, esta separação jamais será absoluta: o homem está cosmos, e a objetificação do mesmo, por conseguinte, jamais poderá operar de forma plena tal separação. O que fica, portanto, pairando neste liame inexorável entre sujeito e objeto? O telos do procedimento moderno de construção de conhecimento a partir de suas rígidas regras metodológicas é o de buscar a verdade naquilo o que o platonismo construiu há séculos, que é a permanência ideal numa unidade perene da unidade e da universalidade. Um pensamento que se tornou hegemônico na civilização ocidental. Tal hegemonia levou ao esquecimento de expressões do saber que compreendem construções cosmológicas e representações do real a partir de estatutos epistemológicos diversos que compreendem concepções hermenêuticas próprias na leitura dos fenômenos e de processos interativos onde a separação entre sujeito e objeto não ocorre. Assim, o liame que na concepção racional moderna de produção de conhecimento separa de modo radical sujeito e objeto passa a compreender sujeitos somente, o que equivale a dizer que não um sujeito, mas sujeitos múltiplos interagem incorporando em seu ser a situação de objeto, agora não mais como algo a ser apropriado pela razão; sujeitos e sujeitos agindo de modo interativo, e então surge a produção partilhada do conhecimento. Neste conjunto de representações do real, a visão do cosmos é aquilo o que constitui o imaginário e assim pode ser entendido. Na relação do indivíduo com sua comunidade, surgem inúmeras possibilidades de representações vindas do senso comum. Assim, se há uma origem em comum nas representações, por que diferentes perspectivas epistemológicas não podem interagir? Tratando-se de perspectivas epistemológicas distintas e diversificadas, o campo de operação daquele saber racional e metódico, que são as categorias de tempo e espaço entram em suspensão; a partir disso, aquele telos moderno, racional e idealista, também acompanhará tal suspensão, ou seja, abandona-se a partir daqui a ambição de verdades únicas, universais e imutáveis; a busca de um caminho metódico calcado na lógica matemática deixa de ser essencialmente significante, já que encontra-se num patamar transcendente daquela relação entre o eu e o outro dentro de perspectivas de que, ao mesmo tempo, sejam sujeito e objeto. O encontro deste eu e o outro ocorre num determinado momento: cada “eu” é situado dentro de uma determinada cultura, e cada cultura apresenta diferentes estatutos 366 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA e perspectivas epistemológicas; ferramentas como a escrita, tão fundamental ao conhecimento racional metódico, tornam-se incapaz de expressar o conhecimento que emerge desses encontros, já que a escrita consiste num registro que transcende o momento, tornando este saber registrado em escrita imune ao devir inerente ao momento. No momento do encontro entre o eu e o outro, ou entre os “eus” e os outros, ocorre a entrada no devir do momento, tornando cada uma dessas experiências únicas, ainda que se esteja falando sobre a mesma coisa. As expressões de cultura com diferentes estatutos epistemológicos, distintos daquela ciência racional metódica que é hegemônica nas universidades, faz com que nos deparemos com manifestações como o saber oral de tradições ancestrais que estão presentes, por exemplo, nas culturas indígenas, ou ainda, nas tradições quilombolas. Nelas, elementos ativos pensantes como os mestres da ancestralidade promovem a iniciação de novas gerações no saber herdado, unindo povo em torno de uma cultura. Envolvendo uma natureza totêmica, este saber não se submete ao estatuto da escrita que encerra o conhecimento na universalização dos conceitos. No momento do encontro do eu com o outro se estabelece o topos onde a produção do conhecimento vai acontecer. Neste terreno, certezas e universalizações são anuladas na diversidade de vários telos, referentes aos diferentes estatutos epistemológicos que estão interagindo, num intenso diálogo de compartilhamento de linguagens distintas. É nesta amálgama heterárquica que se torna necessária a construção de um código intercomunicacional, uma linguagem na qual se estabelece uma hermenêutica das representações em movimentos de apropriação e interpretações distintas, originadas naqueles mesmos estatutos epistemológicos diversos e distintos, o movimento de efetivação do processo de produção partilhada do conhecimento. É numa perspectiva dialógica que sujeito e objeto se fundem, diferente do saber racional metódico no qual se almeja como fim uma descrição enunciativa de caráter totalitário que se impõe de modo analítico de um sujeito ativo cognoscente que submete o objeto abordado a um estatuto epistemológico dominante e unilateral. 367 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Na relação que ocorre entre agentes cognoscentes o sentido é gerado a partir da produção partilhada do conhecimento, que é processo, e não fim. Não se busca o enunciado, mas o processo em si é a resposta. Concluindo-se que a produção partilhada do conhecimento é um encontro de saberes, ela pode, portanto, ser considerada um fenômeno associado a uma rede colaborativa. REDES COLABORATIVAS – A IMPORTÂNCIA DA INTEGRAÇÃO CULTURAL O filme Dersu Uzala4 mostra um personagem que lhe dá título, um eremita da tribo dos goudos, de etnia mongol, que numa noite depara-se com um pequeno grupo de militares soviéticos os quais tinham por missão mapear a inóspita região da Sibéria. O grupo, treinado e experiente nas técnicas que a missão exigia, estava encontrando dificuldades no cumprimento da mesma, uma vez que estas mesmas técnicas não estavam funcionando como o previsto, sendo inadequadas para as particularidades geográficas com as quais se depararam na região. No entanto, Dersu era um caçador nativo daquela região possuindo, portanto, alto conhecimento da mesma, e foi informalmente contratado para servir de guia da equipe. No entanto, aquele encontro ultrapassaria as expectativas do Capitão Vladimir, chefe da expedição. A partir do olhar nativo de Dersu, e da sua interação com a região, resultante de um processo alheio a aquele racionalismo técnico que embasava o olhar dos militares, a percepção dos olhares daquele grupo foi aprendendo novas formas de apreensão. Dersu desenvolveu uma percepção daquele ambiente a qual não podia ser expressa em termos técnicos, mas em termos relacionais. A visão holística que, ao contrário daquela separação moderna entre sujeito e objeto, opera na interatividade da presença e parte de um todo, junto dele coexistindo, é fundamental para o desenvolvimento de uma leitura do meio e da compreensão dos fenômenos. Naquele primeiro encontro, conversando em torno da fogueira, dado momento os militares estranharam como Dersu, diante do estalar dos gravetos na ardência do 4 Dersu Uzala (1975), direção de Akira Kurosawa, co-produção nipo-soviética ganhadora do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1976. 368 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA fogo, dirigiu-se irritado aos mesmos, exigindo silêncio para não atrapalhar a conversa. Seria Dersu um transtornado? Não, não era. Aprenderam com ele, através dessa sensibilidade e dessa linguagem que aquele era o caminho para melhor cumprirem a sua missão. Isso implica numa hibridização de estatutos epistemológicos que constitui a essência da produção partilhada do conhecimento. A lógica que rege tais relações de grupos, promovendo tal hibridização intercultural e a interatividade de estatutos epistemológicos distintos não segue uma lógica conceitual, aquela com a qual trabalha a ciência racional institucionalizada nas universidades. Esta experiência não ocorre através da conceituação, da universalização das convenções. Ela ocorre através da experiência estética e moral, a qual ocorre no interior da relação propriamente dita dos elementos envolvidos dentro de uma mesma esfera. Peter Sloterdijk (2016) fala de uma conditio humana impregnada da evidência que, quer seja no círculo familiar, quer seja na esfera pública, ocorre um jogo incessante de contaminações afetivas entre os homens. A abstração individualista, característica da modernidade é posterior a tal fenômeno em que o espaço interpessoal está abarrotado de energias simbióticas, eróticas e miméticas concomitantes; isso estabelece uma constatação em que o axioma da ação de um sujeito racional alheio, que de forma autônoma aborda o objeto de estudo, é desmentido pelo encantamento recíproco que ocorre entre seres humanos. E talvez poderíamos ir além de Sloterdijk ao situar tal relação numa esfera que ultrapassa a intersubjetividade humana para uma esfera holística propriamente dita. Outro filósofo que fala da questão da interatividade entre o eu e o outro em processos de produção de conhecimento é Hans-Georg Gadamer (2005), quando afirma que é na linguagem que se realiza o acordo entre os interlocutores. Ao abordar uma mesma realidade, é na linguagem que o entendimento acontece. Dessa interatividade surge uma hermenêutica que garante um acordo através do qual o entendimento sobre a realidade e seus fenômenos vai acontecer. Cada conversação apresenta seu próprio espírito, e a linguagem empregada carrega consigo sua própria verdade desvelada. As verdades não se legitimam por métodos, mas pela própria experiência da verdade em si. Tais postulados permitem com que se compreenda a importância da integração cultural na perspectiva das redes colaborativas. Uma rede colaborativa constitui a base 369 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA propriamente dita da vida em coletividade, constituinte da sociedade. A partir das redes ocorre a dinamização de ações entre indivíduos, grupos, instituições, organizações, e mesmo entre entidades coletivas políticas, como uma cidade, uma província ou um país. É em seu interior que ocorre o desenvolvimento de potencialidades que promovem a organização e a dialética de processos de abordagem dos interesses coletivos, e neste ponto é que pode surgir o resultado da produção partilhada do conhecimento. Segundo Lílian Pacheco (2015), não é a partir de autores acadêmicos isolados, mas na espontaneidade criativa e vivencial de autores, grupos de pesquisa e ação comunitária, movimentos sociais que se reencantam, que ocorre a produção cultural diversificada em manifestações cotidianas, onde se dá a transversalidade de saberes, na educação, cultura viva e vivida, da diversidade, culturas, povos e etnias onde se promove a revisão de conceitos. A mesma Lílian Pacheco é a fundadora de uma importante rede colaborativa, a Associação Grãos de Luz e Griô. Surgida em 1995 em torno do conceito de pedagogia griô, esta organização não-governamental, sediada na cidade de Lençóis – BA, tem um trabalho focado no desenvolvimento sustentável em comunidades tradicionais, rurais e de periferia da Chapada Diamantina e do Brasil afora, buscando a efetivação de direitos à arte, cultura e educação, fortalecendo identidades, ancestralidade e celebração da vida. A Associação Grãos de Luz e Griô já recebeu vários prêmios nacionais e internacionais, e desenvolve três linhas de ação: a melhoria da qualidade da educação com o direcionamento à cidadania, ao protagonismo comunitário, à conquista de espaço nas universidades, mercado, coletivos culturais e ambientais; a garantia das referências surgidas em processos de educação contextualizada, e desenvolvimento sustentável através da institucionalização da pedagogia griô no ensino público das regiões onde atua; a promoção do desenvolvimento sustentável através da economia solidária, da promoção do turismo sustentável, valorizando o conhecimento tradicional e apoio, divulgação e promoção de práticas como a agricultura tradicional, a agricultura orgânica, a produção artesanal, a conservação da biodiversidade e à conservação das identidades culturais das comunidades rurais, grupos indígenas, quilombolas, assentamentos rurais e a articulação de redes locais, regionais e nacionais visando a intervenção institucional para a garantia de tais objetivos e defesa de interesses das comunidades e segmentos sociais envolvidos. 370 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A pedagogia griô é um exemplo prático da aplicação da produção partilhada do conhecimento. O termo griô é de origem semântica franco-africana, e significa “sangue que circula”. Consiste na sistematização em práticas pedagógicas do saber oral, mantidas e divulgadas nas comunidades tradicionais através dos mestres griôs, que são aqueles elementos comunitários que de alguma forma, nas perspectivas das culturas ancestrais de seus grupos, são os responsáveis pela transmissão do conhecimento, e com eles, da identidade ancestral. Os xamãs indígenas, os mestres de capoeira, as benzedeiras ou rezadeiras, os mestres de artesanato, os zeladores de tradições de folguedos populares como a Folia de Reis, a Congada, a Moda de Viola, a Catira, os mantenedores de expressões como as cantigas populares, os organizadores do puxirão agrícola dos quilombolas, entre outros, são exemplos de mestres griôs. A linguagem convencional é regida por regras gramaticais. Esta linguagem parte de pressupostos de universalização de conceitos. Assim sendo, a linguagem convencional é alheia ao que ocorre nos processos interativos entre diferentes grupos culturais onde a experiência vivencial dos sujeitos envolvidos vai construir o sentido em relação única e circunstancial. Esta interatividade é a mediação que substitui aquele rigor dos processos de conhecimento racional, e a abordagem do real através do conhecimento produzido pelas tradições orais passa a ser determinante na elaboração do sentido e significado. Jürgen Habermas (2011) afirma que é no interior de uma linguagem que significações são partilhadas, não somente num sentido cognitivo, mas de forma mais abrangente envolve a significância que reúne aspectos afetivos e normativos. Assim, a pedagogia griô, ao valorizar a tradição oral, vai promover uma integração cultural que seria impossível fora da perspectiva das redes colaborativas, por mais reduzidas que sejam, a exemplo do caso ficcional que se observou no filme Dersu Uzala, mas que de fato ocorre nos processos de socialização promovidos por tais redes. A colaboração em rede concomitante a processos de produção partilhada do conhecimento torna-se um caminho pelo qual as incertezas que sobram da superação de paradigmas epistemológicos desgastados, antes hegemônicos, acabam por encontrar alternativas de superação. Por isso mesmo é imprescindível a processos históricos e sociológicos de integração cultural que ocorrem no efetivar desses mesmos processos encontre eco em políticas que garantam esta mesma integração. Por exemplo, no Brasil tivemos a apresentação do projeto de lei 1786/2011, a lei griô, a qual tem como objetivo 371 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA conceder autoridade de magistério oficial aos mestres griôs para atuarem na rede de ensino de suas localidades, a qual se encontra em tramitação no legislativo federal até o momento de redação do presente texto, abril de 2021. Um exemplo prático deste processo pode-se observar na atuação do Mestre Alcides, na cidade de São Paulo - SP. Nascido em 1947 no interior do Estado de Minas Gerais, foi educado na infância através da tradição das Congadas5, folguedo popular de origem africana que rememora tradições herdadas por africanos escravizados trazidos de Angola. Ainda jovem transferiu-se para a cidade de São Paulo – SP, tornando-se funcionário da Universidade de São Paulo – USP, em 1960. Na universidade teve a oportunidade de integrar-se a grupos culturais que dentro dela atuavam, entre eles um grupo de Capoeira, tradição cultural desenvolvida por africanos escravizados, a qual mescla arte marcial, música, poesia, dança, e outros elementos culturais que representaram, na origem do movimento, atitude de resistência à escravidão, integrando-se de tal modo a esta tradição que hoje é considerado uma das mais eminentes autoridades da Capoeira. Graduado em Educação Física e em Pedagogia, o Mestre Alcides tem destacado papel como educador e ativista cultural que, em rede colaborativa, integra-se a diversos grupos de diversas tradições ancestrais, atuando em comunidades, instituições universitárias e em educação de base, firmando a posição de que a formação oferecida aos professores regulares de tais instituições é insuficiente para que eles se tornem agentes transmissores do rico patrimônio imaterial das mais variadas expressões presentes no conjunto da cultura popular brasileira, havendo nisso um prejuízo enorme na educação das novas gerações, que deixam de vivenciar processos de aquisição de ensinamentos sumamente necessários para a apropriação da identidade e da prática da cidadania plena, lembrando do papel que as Congadas tiveram em sua formação. 5 A Congada rememora a coroação do rei do Congo, seguida de um cortejo teatralizado onde se simulam lutas de espada, rememorando as guerras entre o Congo e Angola. 372 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA REDES COLABORATIVAS, PRODUÇÃO PARTILHADA 373 DO CONHECIMENTO E HIPERMÍDIA Martin Heidegger (1989) afirma que a atribuição do lugar único, exclusivo, universal e essencial da verdade, tradicionalmente atribuído à enunciação, é impertinente, já que a verdade não tem origem na proposição, questionando a abertura que tal reflexão oferece, a qual situa a medida como condição preexistente de verdade, a qual lhe confere somente aparência, não essência. Em outras palavras, trata-se da reificação do objeto que entra em conformidade com o intelecto do sujeito cognoscente, tal como ocorre na perspectiva cartesiana. O limite de tal concepção de verdade é que nesta distinção operativa torna-se impossível estabelecer uma relação necessária entre o ser universal e unificado e sua manifestação em cada ente, esta sim apreendida pelo intelecto. A produção partilhada do conhecimento faz do processo interativo entre sujeitos a essência da expressão de verdade, a qual não necessariamente vai ocorrer no consenso de uma verdade final, única e universal. A partir de procedimentos não-dogmáticos, sujeito e interlocutor aplicam sentido um ao outro. Davi Kopenawa, xamã Yanomami, e o pesquisador franco-marroquino Bruce Albert, na obra A Queda do Céu (2015) tratam da transição de pensamento que ocorre na experiência única do diálogo intersubjetivo e sua dificuldade de expressão na linguagem escrita. A palavra para o xamã representa algo sagrado, na medida em que ele solicita que haja um certo respeito e preservação das fitas K7 na qual suas falas foram gravadas, tecnologia disponível na época, década de 1970. O xamã declara que as palavras dos Xapiri, isto é, entidades espirituais relacionadas ao conhecimento na cultura Yanomami ficam gravadas “no mais profundo do seu eu”, explicando que elas são muito antigas, mas que os xamãs as renovam o tempo todo, vindas diretamente de Omama, divindade máxima dos Yanomamis, responsável pela criação do universo. Declara que são elas que protegem a floresta e seus habitantes. As palavras de um Yanomami não podem ser materialmente destruídas, por isso não são escritas. Toda vez que os espíritos dançam para um xamã elas são renovadas, de modo a jamais serem esquecidas, ao passo em que a escrita aprisiona as palavras em papel, tornando-as vulneráveis ao esquecimento. Não é na leitura que ele, Davi Kopenawa (2015), ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA aprendeu as coisas da floresta. Ele as aprendeu no sopro da vida transmitida pelos antepassados através de Yakoana (pó ritualístico de efeitos alucinógenos), o sopro dos espíritos que multiplicam suas palavras e estendem seus pensamentos nas mais variadas direções. A oralidade é contextualizada, e a escrita, descontextualizada. Inerente ao humano, não há possibilidade de substituição tecnológica plena da oralidade. Escrita e oralidade são modos de representação distintos que refletem a organização social na complexidade de relações que organizam a mente. Cognição é processo e produto da produção do conhecimento, que está na fronteira dos processos epistemológicos que surgem na perspectiva multicultural. O momento no qual ocorre a produção partilhada do conhecimento é único, uma experiência contextualizada historicamente, cuja recorrência não representa mera lembrança, mas a atualização do ser. Neste sentido o recurso das tecnologias digitais podem ser ferramenta para o desenvolvimento de uma hermenêutica que permita o desenvolvimento de uma linguagem interativa, expressa dentro de processos colaborativos que aproximam comunidades, culturas, cientistas, artistas e outros agentes produtores de conhecimento os quais, sem abrir mão de suas bases epistemológicas, encontram um polo onde cosmologias e verdades aparentemente distintas encontram-se como sujeito e objeto ao mesmo tempo. Sérgio Bairon (2000) afirma que antes de apelar à ampliação das generalizações na ânsia de explicar a evolução do pensar é preciso, antes, valorizar a narrativa alheia ao racionalismo metódico a partir de uma imersão em expressividades estéticas, o que nos afasta de afirmações obscurantistas e da estreiteza da submissão a limites explicativos. A hipermídia, enquanto tecnologia capaz de ampliar aquilo o que a escrita limitava, constrói textos mais dinâmicos que são apreendidos a partir de percepções individuais, ressalvando que este individual só fará sentido quando inserido na coletividade, constituindo assim uma manifestação estética da linguagem. É nela que vai se construir a hermenêutica que permite a diferentes culturas, e seus diferentes estatutos epistemológicos a interagir e gerar sentido a aquilo que surge dos encontros proporcionados pelo diálogo no qual necessariamente ocorre a rede colaborativa, gerando, assim, conhecimento, não estanque na ambição da unicidade e universalidade 374 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA das verdades, mas tão dinâmico quanto à natureza desse diálogo no seio do qual ocorre, não havendo aquela antiga fragmentação entre o enunciado e o processo. O mesmo Sérgio Bairon (2000) afirma que a hipermídia constitui, em metáfora, a manifestação estética da linguagem, reproduzindo de certa forma a multiplicidade de variáveis as quais enfrentamos diariamente, adquirindo experiência, compreendida na atitude pessoal que, ciente do limite gramatical das palavras, abdica da pretensão de apropriar-se do tempo e do futuro. A história, portanto, vai limitar a experiência de verdade na tradição, funcionando como a hermenêutica que nomeia a linguagem a partir de horizontes dados nos quais está imersa. A partir disso, a produção de conhecimento que surge na partilha do mesmo, promovida em rede colaborativa, faz com que se abandone a perspectiva linear e progressiva da via racional e metódica para operar dentro de uma perspectiva reticular, isto é, a rede interativa que pode ser potencializada pela hipermídia, na qual todos os envolvidos são emissores e receptores ao mesmo tempo, em movimento multidirecional. O cineasta e fotógrafo Bororo, Paulo Kadojeba, em depoimento no ano de 20136 comenta sobre a importância do ritual fúnebre como um dos elementos mais centrais no processo educativo e cultural dos Bororos, narrando como ele percebe o processo de produção de conhecimento a partir da interação entre culturas e estatutos epistemológicos distintos e as dificuldades que ocorrem no transcorrer deste processo. Neste depoimento, Kadojeba evoca a metáfora do espelho. Enquanto Bororo, nascido e educado nesta cultura e ciente de sua importância, valores e informações transmitidas de modo ritual, ele verifica que a introdução da hipermídia neste processo pode potencializar e difundir a compreensão desses elementos a culturas alheias, e justifica isso comentando sobre a sua redescoberta desses mesmos elementos na medida em que retoma a experiência vivencial a cada vez que se observa participante desse processo, como num espelho, redescobrindo e percebendo novos elementos que ali já estavam e lhe escaparam da percepção em momentos anteriores, percepção esta que ocorre sob outros ângulos, diversos dos quais esteve envolvido nas vezes anteriores. Verifica também que a introdução da hipermídia como ferramenta de registro comandada por Quando o índio filma a sua cultura, o vídeo é um espelho – disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rpCUsH8th0g&t=17s Acesso em abr 2021. 6 375 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 376 alguém de dentro protege tais elementos da especulação que decorre da postura racionalista, quando eles se tornam objeto da observação que ocorre a partir, por exemplo, do jornalismo convencional. Em seu trabalho Kadojeba percebe o reforço das identidades e valores de sua cultura, enriquecendo sua própria compreensão dos mesmos. Percebe Kadojeba que tal efeito transcende sua aplicabilidade na cultura Bororo, e desde então vem estendendo este trabalho para outras culturas indígenas, como os Kalapalo e Kuikuro. Em dezembro de 2012 na Universidade de São Paulo, reuniram-se professores junto com diversas entidades e organizações que percebem na tradição oral um caminho para a pesquisa e difusão no patrimônio imaterial da cultura brasileira, ocorreu um grande evento7, o Curso de Pedagogia Griô e Produção Partilhada do Conhecimento onde, entre os vários grupos da tradição oral presentes, estiveram representados os Karajás, Xavantes e Bororos. Na ocasião, entre diversas trocas e informações, um fato chamou a atenção: Xavantes e Karajás tradicionalmente eram etnias inimigas, em constante estado de guerra; no entanto, a interação promovida pela rede ali estabelecida, em colaboração com os recursos apropriados pela diversidade imensa ali presente, imediatamente anulou tal disposição e o processo que começou a partir de então desencadeou uma reconstrução cultural ressalvando a importância da união dos povos indígenas pela sua própria sobrevivência e a troca mútua da riqueza cultural e emocional que surgiu daquela nova perspectiva relacional que superou a disposição hostil. Entre os anos de 2010 e 2012 o prof. Dr. Caio Lazaneo, com a contribuição de Paulo Kadojeba, desenvolveu uma pesquisa sobre o uso da hipermídia na construção partilhada do conhecimento em duas aldeias indígenas, a Sangradouro, Xavante, e a Fontoura, Karajá, localizadas no Estado do Mato Grosso. Além da presença in loco do pesquisador, a pesquisa também compreendeu momentos nos quais representantes das duas etnias se fizeram presentes em atividades ocorridas na Universidade de São Paulo, protagonizando várias delas. Na ocasião, percebeu-se a confirmação daquilo o que Hans-Georg Gadamer (1997) afirmava como proposta de se colocar no lugar do outro como exigência 7 Vídeo descritivo do evento, com depoimentos e descrições https://www.youtube.com/watch?v=_Z7hN4dGWGo Acesso em abr 2021. está disponível em: ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA hermenêutica para entendê-lo, conhecê-lo no seio do diálogo, obtendo uma ideia clara de sua posição e horizonte. Descrevendo aquele momento, Caio Lazaneo (2012) fala da relação do indígena com a sua imagem, narrando um momento no qual uma criança se recusou a ser filmada, temendo que sua imagem fosse roubada e, outro momento no qual uma senhora que pintava o marido demonstrou entusiasmo com a imortalização da sua imagem pela filmagem. Tais perspectivas levam à reflexão de como os indígenas são envolvidos no processo: de um lado, uma postura “política” pelo temor do roubo de sua imagem, e de outro lado, uma postura oposta de uma mítica imortalização da imagem, suscitando um caminho científico sobre como caminham de forma interativa tais perspectivas na experiência estética sobre o uso da imagem, comprovando a importância da sensibilidade no processo de produção partilhada do conhecimento. Em diferentes momentos de suas vidas, a criança e o adulto se encontravam num momentum distinto, em que a história rememorada concede o tom da reação emotiva dentro do processo de interatividade. O Xavante que protagonizava tal captura hipermidiática das imagens, Divino Tserewuahú, constata que é impossível produzir tal documentação fora da perspectiva comunitária dos membros da aldeia dispostos a colaborar com o processo, sem a presença viva da comunidade no momento da concepção e desenvolvimento da obra, ressaltando que as contribuições mais valiosas seriam as dos mais velhos. Paul Ricoeur (2007) fala sobre a importância dessa reflexividade descrita por Caio Lazaneo, quando ressalta a importância da espacialidade corporal e ambiental na evocação da lembrança. Memória compartilhada remete à memória coletiva, a qual aparece ligada ao lugar consagrado pela tradição, um lugar de memória. Outra descrição importante de Caio Lazaneo foi a da produção do filme dirigido por Paulo Kadojeba, A Grande Tradição Bororo (2007)8 que contou com a colaboração de Divino Tserewahú, responsável pela montagem do mesmo; até então nada de extraordinário, exceto pelo fato de que a etnia de Divino Tserewahú, Xavante, mantinha tradicionalmente relações hostis não só com os Karajás, mas também com os Bororos, e Divino Tserewahú, Xavante, mantinha tradicionalmente relações hostis não só com os Karajás, mas também com os Bororos, e Tserewahú exibiu o filme na aldeia Xavante Sangradouro. O fato demonstra como a hipermídia potencializou o processo de 8 O filme está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iDGEjvx9YkM Acesso em: abr 2021. 377 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA produção partilhada de conhecimento e, ampliando a rede colaborativa, contribuiu para o processo de comunhão com os sentimentos e sensações dos Bororos em seu ritual fúnebre – objeto central do filme – com uma etnia que até então os hostilizava, o que abre caminho para a conscientização da importância da união dos povos indígenas, bem como para o enriquecimento multidirecional da produção de conhecimento. Junto aos Karajás, Caio Lazaneo (2012) fala também do processo de como acompanhou o ritual de passagem para a vida adulta dos Karajás, o Hetohokã. Entre os vários momentos do ritual, que compreende os preparativos e coleta de material na natureza, Lazaneo chama a atenção para o momento da extração do cipó sagrado Hatiryri, ao longo do rio Araguaia, na região do município de São Félix do Araguaia MT. Acompanhando três Karajás responsáveis pela coleta do cipó, seguiram numa embarcação pelo rio, contando com a apurada visão dos índios que conseguiam identificar à distância a presença do cipó. Dado momento, Caio Lazaneo lhes indaga sobre a beleza de uma árvore, e eles responderam que se tratava da morada do espírito do camaleão, uma vez que por algum motivo era comum a concentração desses animais naquela árvore. Mais adiante, no momento da coleta dos cipós, verificou que os jovens “encarnavam” o espírito da raposa, a qual se incomodava com o macaco. A interatividade entre o pesquisador e os indígenas representava um processo onde a hermenêutica da linguagem que surgia permitiu a Caio Lazaneo compreender o profundo sentido de compreensão dos elementos da cultura Karajá e sua importância na construção do conhecimento de características holísticas, naquele momento único que envolveu o pesquisador e os jovens indígenas num processo indispensável para a construção de verdades que jamais poderiam ser percebidas numa visão unilateral se aplicados procedimentos metódicos da ciência racionalista. REDES COLABORATIVAS E A RECONSTRUÇÃO CIENTÍFICA Uma rede colaborativa que proporciona a interação entre diferentes grupos culturais com diferentes estatutos epistemológicos não raro leva a surpreendentes resultados no desvelamento dos limites da ciência racional. Quando a universidade se encontra com a tradição oral surgem questionamentos que levam à reflexão sobre a necessidade da reconstrução dos paradigmas. 378 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA O ISA – Instituto Socioambiental, é uma organização da sociedade civil brasileira sem fins lucrativos, fundada no ano de 1994 com o objetivo de propor soluções de forma integrada a questões que relacionam sociedade e meio ambiente, buscando a defesa de bens e direitos sociais coletivos e difusos, calcados em valores dos direitos humanos, defesa do patrimônio cultural e dos povos. Com sedes em várias localidades brasileiras, o ISA constitui junto às comunidades assistidas, colaboradores e instituições uma grande rede colaborativa na execução destes objetivos. No ano de 2017, o ISA publicou um dossiê em dois volumes, no qual abordou o sistema agrícola tradicional do Vale do Ribeira, uma região de quilombos situada entre os Estados de São Paulo e Paraná. O principal objetivo desse dossiê, juntamente com uma documentação em hipermídia de uma grande pesquisa desenvolvida na região, era o de reivindicar junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN o registro oficial do reconhecimento desse sistema agrícola quilombola como patrimônio cultural do Brasil. Mais que mera formalidade de valor unicamente moral e histórico, este registro protegeria as comunidades de ataques dos interesses econômicos na região, garantindo a posse de terra, e com ela a preservação socioambiental. Para tanto, a documentação era burocraticamente necessária. Antes se torna necessário esclarecer o conceito de quilombo. O senso comum associa o termo quilombo ao período colonial do Brasil, quando então africanos escravizados se rebelavam e fundavam núcleos de resistência, com destaque para o líder Zumbi e o Quilombo dos Palmares. Decorrente deste equívoco, não raro quilombo é compreendido como um fenômeno histórico localizado que desapareceu com a abolição. No entanto, em seu sentido essencial, quilombo refere-se ao local onde os afrodescendentes compartilham seus sentimentos e cultura, espaço e tempo, a identidade em nível da alma, expressão coletiva da partilha na diáspora africana, onde a memória pode se fazer presente de modo consciente ou inconsciente, nas narrativas míticas, música, dança, arte, religião, rituais. Mais que um espaço físico, o quilombo tem uma dimensão simbólica. Um quilombo pode ocorrer tanto em áreas rurais quanto urbanas. Assim, um núcleo de cultos de matriz afro, uma escola de samba, um núcleo 379 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA comunitário do Jongo9, da Congada, do Moçambique10, todas estas expressões podem ser chamadas de quilombo. Uma das características mais básicas de um quilombo é o seu comunitarismo. Nele ocorre a comunhão material e cultural, presente do cotidiano dos afrodescendentes que dele participam em processos efetivos de produtividade cultural, econômica, religiosa, artística, entre outras. A área do Vale do Ribeira abordada pelo ISA compreende cerca 28.300 quilômetros quadrados, dentro da qual foram localizadas 66 comunidades quilombolas, segundo o dossiê elaborado. Cerca de 21% da Mata Atlântica remanescente encontra-se no Vale do Ribeira. Segundo este dossiê, organizado por Raquel Pasinato (2017), o biólogo Helbert Prado constatou nos quilombolas um vasto conhecimento de flora e fauna locais, e trabalham no rudimentar sistema de roças, isto é, agricultura itinerante com base em revezamento da área cultivada entre o pousio – período sem cultivo para recuperação da fertilidade do solo, e área ativa, sistema chamado pelos quilombolas de coivara. Este sistema é, segundo os cânones científicos racionais, considerado arcaico e agressivo para com o solo, garantindo baixa expectativa produtiva, empobrecendo o solo com o uso da queimada para realizar a limpeza dos campos de plantio. No seu trabalho, Helbert Prado baseou-se no modelo Ingold conforme informa Raquel Pasinato (2017) que consiste em considerar que o processo de aquisição do conhecimento ambiental não é fruto de códigos pré-experienciais adquiridos por transmissão social (incluindo formação acadêmica), mas adquirido pela vivência humana no ambiente em perspectiva, seja ecológica, seja fenomenológica quando ocorre em sociedades pré-industriais, como é o caso dos quilombos. Nesta empreita, Helbert Prado nos registros de Raquel Pasinato (2017) surpreendeu-se com o vasto conjunto de informações, práticas e conhecimentos desenvolvidos pelos quilombolas em vários aspectos ambientais, com prevalência indiscutível do conhecimento dos quilombolas sobre as informações acadêmicas. Por 9 Expressão cultural de origem bantu, o jongo, também chamado de caxambu, consiste em rodas de dança acompanhadas de batuque que ocorrem de forma concomitante a festejos católicos. 10 Dança que expressa o sincretismo religioso afrocatólico, que ocorre concomitante a festejos católicos como a Festa do Divino, onde os participantes, vestidos de branco, praticam um cortejo em louvor a São Benedito. 380 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA exemplo, os quilombolas tinham conhecimento sobre várias espécies animais e vegetais ainda não catalogadas, bem como seu ciclo de reprodução, condições exigidas para a preservação do ecossistema, hábitos alimentares dos animais e práticas de cultivo que observavam rigorosamente tais ciclos e características para a preservação de espécies vegetais para que não se quebrasse a cadeia alimentar. Além disso, o biólogo observou que, a prática da queimada, ao contrário daquilo o que é prescrito na ciência racional – uma prática destrutiva, empobrecedora do solo e agressiva para com espécies animais e vegetais do ecossistema – ocorria segundo rigorosas técnicas que reuniam informações sobre época do ano, condições climáticas, medidas e precauções corretas que garantiam não só as necessidades do sistema de cultivo, mas também a preservação ambiental, ocorrendo a combustão em níveis superficiais e funcionavam como processo de fertilização do solo a partir das cinzas, bem como o combate de pragas. No entanto, esta rede interativa estabelecida entre os pesquisadores do ISA com os quilombolas não se circunscreveu à mera observação. O ISA foi além, buscando a compreensão dos processos de formação de tais elementos culturais que, muito além do sistema agrícola, dispunham-se em toda uma cadeia de eventos sociais e processos interativos comunitários nos quais imergiram para que pudessem obter a compreensão dos mesmos. O processo socio-comunitário dos quilombolas é organizado em torno do processo agrícola, e tem um formato de mutirão, por eles também chamado de “puxirão”. Pode ocorrer sob variados formatos, conforme o número de pessoas envolvidas, e obedece a regras básicas, por exemplo, a observância do calendário lunar para as etapas de ceifagem, colheita, entre outros. Isto faz com que os membros da comunidade ajam de forma cooperativa para que se obtenha resultados satisfatórios em tempo hábil. Tal cooperação é sujeita a formatos de compensação que seguem uma linha de escambo, isto é, trocas. Ocorre de forma ritualística baseada em dois momentos principais: o trabalho durante o dia e o festejo durante a noite. Duas etapas são básicas: um mutirão ocorre na necessidade da “roçada”, que é a preparação da terra para o plantio, e outro na colheita. Cada mutirão possui um “dono”, isto é, a família beneficiada pelo trabalho, que se responsabiliza pela oferta e organização do festejo. Os trabalhos tem início pela manhã, por volta das seis horas, quando o dono do mutirão oferece o desjejum. No 381 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA intervalo que vai de meia a uma hora posterior ao início do desjejum, as pessoas se dirigem ao campo, dividindo-o em quadrantes demarcados por cordas estendidas, demarcando a parte do terreno da qual cada um é responsável pela execução do trabalho. Por volta das doze horas as mulheres, encarregadas da refeição, dirigem-se ao local de trabalho com grandes panelas, servindo o almoço que é composto basicamente de tubérculos e legumes, acompanhados de carne de porco ou galinha. O trabalho no campo encerra por volta das dezessete horas, quando então as pessoas retornam a seus lares para banhar-se e vestir-se para o festejo, que tem início ao anoitecer, e só acaba com o almoço no dia seguinte. Os músicos da comunidade tem participação optativa nos trabalhos na terra, já que sua função é a de animadores do festejo. Em verdade, a prática do mutirão, que reunia entre 25 e 100 pessoas, encontra-se em decadência e ocorre esporadicamente, havendo hoje algumas versões mais sumárias, como a reunida, a pojuva ou poiuva, a troca de dia e o compadrio, as quais diferem basicamente apenas no contingente de pessoas envolvidas, salvo a troca de dia que trabalha com pagamento por empreitada aos envolvidos. Nestes eventos, a troca e transmissão oral e prática de conhecimentos e técnicas agrícolas é intensa, partindo obviamente dos mais velhos aos mais jovens; de igual forma, as mulheres que trabalham na alimentação praticam a mesma interação no tocante às práticas culinárias. A confecção de instrumentos agrícolas, cestos, utensílios artesanais, peneiras, artefatos de madeira e palha, beneficiamento de produtos como arroz, cana-de-açúcar, milho, mandioca entre outros, bem como os pratos típicos cercados de explicações mitológicas ocorre de forma intensa durante o processo, altamente dialogado, onde a ancestralidade, valores, crenças, práticas religiosas (uma das principais motivações dos festejos) e outros elementos identitários e culturais é transmitido. É neste momento em que a simbologia, as lendas, os episódios históricos, as cantigas e poesia, rituais religiosos são transmitidos, havendo especial trato para com as crianças, atendidas à parte. A introdução pelo ISA do recurso das rodas de conversa representou o estabelecimento de uma prática comunitária colaborativa que aproximou os pesquisadores da comunidade. Dessa aproximação ocorreu a produção documental que se deu principalmente a partir da hipermídia, com a produção de uma série de três 382 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA vídeos11 que proporcionassem ao interlocutor a perspectiva interativa entre sensações, sentimentos e compreensão de sentido dos processos culturais, valores e significados que tinham como eixo o sistema agrícola tradicional do Vale do Ribeira, que não ocorria num lugar qualquer, mas na realidade de um quilombo, a qual não tinha uma proposta simples de preservação saudosista de tempos áureos, mas a proposta de uma nova forma de se abordar a questão ambiental abrangente e holística com contribuições sociais, culturais, econômicas e científicas, entre outras perspectivas. Enfim, esta interação proporcionou, após certa resistência do IPHAN, o reconhecimento definitivo e a obtenção do título de Patrimônio Cultural do Brasil ao Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira em setembro de 2018. CONCLUSÕES Caio Lazaneo (2012) apresenta uma reflexão sobre a importância da interatividade que ocorre em rede colaborativa na produção partilhada do conhecimento ao narrar suas sensações diante do fato de que, na sua atuação de pesquisador, ele buscou estar presente nos ambientes, locais e momentos nos quais os indígenas exerciam sua ação existencial no seio de sua cultura, com eles interagindo, e em contrapartida, noutro momento, os indígenas estavam a seu lado dentro do ambiente universitário. O tempo todo, em torno da produção hipermidiática, diferentes etnias indígenas com diferentes culturas interagiam entre si, compartilhando diferentes concepções de saber a partir do estatuto epistemológico da oralidade, e ao mesmo tempo envolviam o pesquisador universitário, interagindo com os recursos proporcionados pela sua racionalidade. Um encontro colaborativo de interlocutores em rede na relação entre universidade e comunidade. Nesta reflexão, Caio Lazaneo (2012) recorda das conversas que teve junto a indígenas em nas aldeias que visitou. Diziam que já tinham recebido a visita de outros pesquisadores que sequer retornaram o resultado de suas pesquisas. O cartesianismo do método prevalecia então sobre o dialogismo do método o 11 Vídeos disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=0B0ydEoqJ8E ; https://www.youtube.com/watch?v=sQhGq1ZkXiQ ; https://www.youtube.com/watch?v=J6nMulSoBvw Acesso em abr 2021. 383 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA qual ele buscava cultivar naquele momento. Não era o “eu” que estava conhecendo. Eram vários “eus” que construíam juntos o conhecimento. No tocante ao esforço do ISA em aprovar a titulação de Patrimônio Cultural do Brasil para o Sistema Agrícola Quilombola do Vale do Ribeira junto ao IPHAN, a resistência que provinha desse órgão residia no fato de que a documentação apresentada não supria as exigências informativas segundo a normatividade do processo; no entanto, a posição dos quilombolas frente a esta resistência foi a de insistir que o recurso hipermidiático dos filmes era o suficiente para promover de forma documental todos os atributos para que seus sistema agrícola pudesse ser entendido, legitimado e oficializado como patrimônio cultural, obtendo sucesso. Em ambos os exemplos pudemos observar elementos em comum: o encontro da universidade com a tradição oral; o uso da hipermídia, o rompimento com uma normatividade unilateral e enfim uma ruptura de paradigmas epistemológicos. E também em ambos os casos, a condição de ordem efetiva para que tal processo acontecesse foi o estabelecimento de uma rede cultural colaborativa. Desses encontros novas perspectivas epistemológicas surgem, e com elas novas possibilidades de conhecimento. O liame hipermidiático no qual se ampara a constituição de uma hermenêutica permita a ocorrência de processos de compreensão mútua, a qual ocorre entre diferentes estatutos epistemológicos, gerando uma partilha de sentidos e múltiplas possibilidades de conhecimento. Isso remete à reflexão desenvolvida por Peter Sloterdijk (1999) sobre a antropotécnica promovendo profundas comutações no homem, não só em nível cultural, mas também em nível biológico propriamente dito. A ocorrência dos fatos e fenômenos descritos e analisados no presente texto pode servir de advertência à sociedade de como o sistema educacional, imerso entre as demandas econômicas e orientado pela racionalidade da ciência moderna, leva as gerações à alienação sobre o real significado da história e da cultura ancestral, recaindo em efêmeras relações virtuais, estabelece relações de poder calcadas na distribuição desigual do conhecimento. 384 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA REFERÊNCIAS ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A Queda Do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami. São Paulo: Ed. Cia. das Letras, 2015. BAIRON, Sérgio. Hermeneutics and Hypermedia, in: Convenit – Selecta – 2 – ISSN – 1517-6975, Harvard Low School – Cambridge – 2000. pp. 57-62. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 2005. HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. 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ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA CAMINHOS MUSICADOS DA RESISTÊNCIA: BRASIL E URUGUAI (19671973) Bruno Henrique Bezerra Silva1 INTRODUÇÃO Esse trabalho analisa os movimentos de repressão cultural das ditaduras da América do Sul e seus mecanismos de censura à compositores de música popular, no Brasil e no Uruguai, no período de 1967 a 1973. Nesse recorte, o Brasil passa pelo endurecimento do Regime Militar, vigente desde o golpe de 1964. Os episódios analisados acontecem, sobretudo, à beira do governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e, suas consequências, dentro desse contexto. No Uruguai, por outro lado, esse período culmina exatamente no golpe de Estado, no dia 27 de junho de 1973. Apesar de ser um governo ainda considerado democrático, temos um período de forte repressão já cinco anos antes da efetivação do golpe militar, e é o período que abarca os principais momentos abordados. O trabalho não tem como objetivo analisar, de fato, os aspectos políticos dos governos militares e os movimentos de repressão de forma mais ampla, mas sim como esses movimentos afetam as representações culturais do período, neste caso, a música popular. Neste contexto, a repressão tem duas facetas. A primeira é a censura às letras, que abarca uma grande série de compositores e intérpretes, quando considerados subversivos e agitadores de massas. Além disso, serve de linha regulatória, para que não haja casos extremos onde é necessário aplicar força além do considerado normal. A segunda faceta, quando a primeira se mostra ineficaz, é a prisão de compositores e intelectuais que, em alguns casos, são, inclusive, vítimas de tortura. Neste trabalho, analisamos a obra de alguns artistas brasileiros e uruguaios com histórico de atrito com seus respectivos governos. São eles Caetano Veloso e Gilberto Gil, os dois artistas considerados fundadores do movimento tropicalista no Brasil e, no Uruguai, Daniel Viglietti, músico e radialista, representante do movimento posteriormente denominado Canto Popular Uruguaio. Nesse mesmo grupo havia simpatizantes do Movimento de 1 Licenciado em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E- mail: bhbs2008@gmail.com 386 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Libertação Nacional – Tupamaros, como Aníbal Sampayo, que ficou preso em Libertad, localizada a 50 km de Montevidéu, por 7 anos, proibido de cantar ou tocar qualquer instrumento durante este período (AGUIAR, 2010). O estudo desses movimentos e de seus expoentes nos auxiliará no entendimento das semelhanças entre um regime ditatorial já operante e em pleno processo de ‘endurecimento’, como foi o cenário brasileiro, e uma democracia desenvolvendo aspectos autoritários, caso do Uruguai, através da discordância dos governos com a forma como se expressam seus respectivos artistas. Mesmo não sendo ambas consideradas ditaduras dentro do nosso recorte, claramente as práticas repressivas são semelhantes e ambos são governos conservadores e autoritários. REPRESSÕES E CERCEAMENTOS Durante os anos de 1960, o Brasil sofreu com forte polarização dos setores de articulação política e uma discussão ideológica precária. Com a queda do presidente João Goulart, os militares tomaram o poder. Uma teoria, já bastante disseminada, com interpretações de historiadores como Angela de Castro Gomes e Jorge Luis Ferreira, sugere que o golpe já se articulava há 10 anos, ainda no Governo Vargas, e o seu suicídio teria sido, dentre outros fatores, um grande elemento de atraso para o golpe imediato. Goulart e Leonel Brizola, à época Governador do Rio Grande do Sul, eram bastiões dos direitos sociais na década de 1960, e a ideia de realizar uma reforma agrária era suficiente para convencer parte da população de que um golpe comunista estava sendo arquitetado. Instaurado o Governo Militar dito provisório, algumas manifestações aconteciam contra a tendência antidemocrática. Uma dessas manifestações eram os CPC, Centros Populares de Cultura, onde universitários criaram conteúdo artístico politizado para a juventude dos grandes centros urbanos. No CPC da Bahia, por exemplo, trabalharam juntos Tom Zé e Capinam, que mais tarde trabalhariam juntos no disco Tropicalia ou Panis Et Circencis. Assim como eles, diversos outros artistas importantes emergiram nesse momento. No mesmo período surgiram os grandes festivais de música popular brasileira nas emissoras de TV Excelsior, Record e Globo, onde se reuniram grandes nomes da música brasileira como Vinicius de Moraes, Elis 387 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Roberto Carlos e os fundadores do tropicalismo, Caetano Veloso e Gilberto Gil. O Festival de Música Popular Brasileira de 1967 da TV Record é o momento em que o movimento musical é apresentado ao público nas canções Alegria, Alegria e Domingo no Parque, de Caetano e Gil, respectivamente, sendo os primeiros a apresentarem-se em um festival com o acompanhamento de guitarras elétricas, não tocadas pelos compositores, mas por suas bandas de apoio. Caetano foi acompanhado pela banda de argentinos Beat Boys, que tocavam “iê-iê-iê” em São Paulo; e Gil foi acompanhado pela banda paulista Os Mutantes. Ambos, ainda de forma contida, vestindo terno (o de Caetano colorido) e tocando violão (no caso de Gilberto Gil), mas que causaram uma alvoroçada reação na plateia, dos fãs dos “emepebistas” mais apegados ao movimento de música popular representado por Geraldo Vandré, Elis Regina, Jair Rodrigues, Vinicius de Moraes, Baden Powell e até mesmo Nara Leão, com composições de cunho nacionalista, enaltecendo a cultura tradicional brasileira. O nome Tropicália, que se tornou, mais tarde, o título de uma canção de Caetano, escrita antes da nomeação do movimento, foi inspirada em uma instalação de Hélio Oiticica, de mesmo nome, cujo artista define como uma nova “posição diante das coisas. Uma posição estética”. Essa definição também pode ser aplicada aos conceitos do movimento tropicalista, que trazia referências da antropofagia de Oswald de Andrade e da poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, simpatizantes e, mais que isso, defensores do movimento dos baianos. Se a repressão se instaurou no Brasil num crescente através dos Atos Institucionais, a situação não era mais favorável no vizinho do Sul. Segundo o historiador José Fabiano Gregory Cardozo de Aguiar, em sua dissertação de mestrado sobre Daniel Viglietti: No Uruguai, o ano de 1968 foi importante também – Viglietti chama esta etapa de luta política de “Período Tupamaro” pelas ações do MLN – Tupamaros que se tornavam mais frequentes e notórios. Entretanto, o movimento estudantil também participava das lutas políticas e se opunha fortemente ao governo Pacheco Areco e a escalada autoritária no País. Viglietti, por suas canções e posições, começava a ser visado pelo governo. Com o governo Pacheco Areco, a censura aos meios de comunicação começou a ser sistematicamente utilizada. Ocorreu o fechamento de periódicos, a censura a programas de rádio e televisão, a limitação ao trabalho de jornalistas, comunicadores, locutores. Refletiu 388 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA também no campo específico da cultura. Teatro, cinema, artes e música também sofriam direta ou indiretamente com o autoritarismo estatal. No cenário musical, os cantores, principalmente aqueles vinculados ao movimento de produção da música popular de propuesta, começavam a sofrer restrições a seu trabalho e atuação no final da década de 1960 (AGUIAR, 2010, p. 116-117). O Uruguai passou a sofrer um processo de cerceamento de direitos, como no Brasil, em meados da década de 1960, que ficou conhecido como Pachecato no país (PADRÓS, 2005), nome derivado de seu governante, Pacheco Areco, que assumiu a presidência do Uruguai após a morte do presidente eleito Óscar Diego Gestido, fato que representou o início do cerceamento de direitos, cujo auge foi o golpe de Estado em 1973. Os governos de Pacheco Areco (1968-1971) e Juan María Bordaberry (19721973) inauguraram essa tendência coercitiva. Em um artigo, José Fabiano Gregory Cardozo de Aguiar enumera os direitos reprimidos pelas administrações conservadoras do Estado uruguaio: A proscrição de partidos políticos, a desarticulação dos sindicatos e a repressão aos movimentos estudantis, a censura aos meios de comunicação, o controle sobre a organizações sociais em diversos âmbitos, já apontavam para a exclusão de amplos setores sociais dos canais tradicionais de participação políticas e indicavam o “deslizamento” ao autoritarismo. A ampliação dos “ajustes” restritivos sobre a sociedade civil foi realizada para destruir a guerrilha e barrar os movimentos sociais. Também foi usada para proscrever partidos políticos, desarticular o movimento estudantil e a organização dos trabalhadores. Nos meios de comunicação fechou periódicos, vários deles de organizações e partidos políticos de esquerda; censurou programas de rádio e TV (AGUIAR, 2008, p. 2). Concomitantemente à tal repressão, estabeleceu-se um novo estilo, ou um grupo, musical no Uruguai, de caráter bastante contestador, que deixou como legado as músicas de Aníbal Sampayo, Alfredo Zitarroza, Daniel Viglietti, Los Olimareños e Nuno Moraes, entre outros. Seu estilo era uma mescla entre a música erudita e a popular, resgatando uma raiz folclórica nas composições que muito agradou seu público e nem tanto a seus governantes. Daniel Viglietti, além de músico, era, também, radialista do Servicio Oficial de Difusión, Radiotelevisión y Espectáculos, e suas opiniões lhe custaram seu emprego, suas apresentações e sua permanência no país, tendo que se exilar na França quando do golpe militar. 389 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA AS MENSAGENS MUSICAIS CERCEADAS Caetano Veloso Tropicália A letra de Tropicália é analisada por Celso Favaretto no livro Tropicália: Alegoria, Alegria. Ele exalta o aspecto cinematográfico do início da música que “delimita uma ‘moldura’”(FAVARETTO, 2000, p. 69) e cria uma imagem da tensão gerada pela ditadura no Brasil: Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés os caminhões Aponta contra os chapadões Meu nariz Esta música, assim como Alegria, Alegria, traz diversas referências da cultura popular e internacional, muito ligada a uma concepção cinematográfica hollywoodiana. É também a faixa onde a leveza e o peso estão presentes e dialogando. Favaretto divide essa letra em blocos estróficos e quadras. No segundo bloco estrófico, ele destaca as concepções de moderno e arcaico se confrontando na música passando pela “paródia do nacionalismo sentimental” (FAVARETTO, 2000, p. 73): É uma paródia potencializada, pois parodia também as referências literárias: o Catulo da Paixão Cearense de Luar do Sertão, os estilemas românticos – olhos verdes, cabeleiras negras – de José de Alencar e Gonçalves Dias (FAVARETTO, 2000, pp. 73-74). Este comentário se refere ao seguinte trecho: “o monumento é de papel crepon e prata os olhos verdes da mulata a cabeleira esconde atrás da verde mata o luar do sertão o monumento não tem porta a entrada é uma rua antiga estreita e torta e no joelho uma criança sorridente feia e morta 390 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA estende a mão viva a mata-ta-ta viva a mulata-ta-ta” Também, sobre o aspecto da construção dos monumentos modernos brasileiros, ele escreve que o primeiro verso desta quadra denota o “artificialismo de Brasília” (FAVARETTO, 2000, p. 74) e que essa imagem explicitada tem a função de contrapor o arcadismo. Afirma ainda que o “choque do arcaico e do moderno se intensifica com o efeito paradoxal de abertura-fechamento do monumento – a entrada é fechada, ou nem existe – e com a antítese sorridente-feia e morta” (FAVARETTO, 2000, p. 74). Ainda segundo Favaretto, na segunda quadra do terceiro bloco estrófico, Caetano faz uma analogia que remete ao aspecto ideológico da conjuntura nacional, sendo a direita representada por uma mão e a esquerda por um pulso. Representando a direita, uma analogia com uma velha cantiga: Caetano parte de uma cantiga de roda – “na mão direita tem uma roseira/ na mão direita tem uma roseira/ que dá flor na primavera” por “autenticando a eterna primavera”. Desmonta-se aqui o caráter mítico da direita, que manipula signos da natureza para validar a sua pretensa universalidade. No deslizamento do significante “direita” para “eterna”, indicia-se a ideologia que funciona como mito primaveril e brincadeira inocente. Mas o violento contraponto crítico, longo e nordestino, do verso seguinte, recoloca o sinistro: o urubu surrealista passeia nos jardins sempre à espera do que sobra; o mau agouro paira sobre a aparência de naturalidade, num movimento de carnavalização [...] (FAVARETTO, 2000, pp. 75-76). Para a caracterização da esquerda, Caetano usou como analogia o antigo faroeste, interessantemente lhe atribuindo uma figura do imaginário coletivo estadunidense, culturalmente abolido pelas próprias esquerdas brasileiras, mas com um “sentimento nacionalista” que traz uma “alusão ao populismo, inclusive se associada à famosa sequência de Terra em Transe, em que o senador populista, velho e retórico, cai no samba, no meio do comício” (FAVARETTO, 2000, p. 76). É Proibido Proibir Na música É proibido proibir, apresentada ao grande público durante o III FIC, no TUCA, em São Paulo, Caetano, por influência do empresário Guilherme Araújo, que 391 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA havia visto a frase pixada em um muro na França nas manifestações de maio de 1968 (CALADO, 2010), escreveu uma letra simples, mas de refrão bastante marcante, em que a frase-título era entoada repetidas vezes. A música em si não causava nada de especial em Caetano para que ele a inscrevesse no Festival, não fosse a insistência do empresário. A saída encontrada para tornar a música mais interessante foi transformá-la em uma performance. A apresentação, bastante mais extravagante que a de Alegria, Alegria, foi performada com acompanhamento d’Os Mutantes, que também estavam participando, em separado, com a música Caminhante Noturno, no mesmo festival. Caetano apresentou a música duas vezes, uma na eliminatória inicial e uma na final Paulista do III FIC, ambas no TUCA, e a reação da plateia não foi amistosa em nenhuma das duas apresentações. A segunda, inclusive, em que Caetano mal conseguiu cantar a música, eternizou o seu discurso crítico para a plateia que foi, semanas mais tarde, gravado em disco e distribuído. A plateia não se contentou em vaiar Caetano e Os Mutantes e parte dos espectadores nas filas da frente deram as costas para o grupo. Logo em seguida, em resposta à provocação, Os Mutantes também deram as costas para a plateia, sem deixar de tocar. Caetano, com ódio da reação, a essa altura já acompanhado de Gilberto Gil, desclassificado na eliminatória com a música Questão de Ordem, acompanhado pelos Beat Boys, lança um discurso que critica a concepção de música considerada genuinamente popular pelo público dos Festivais e suas aspirações revolucionárias. A indignação de Caetano pode ser verificada no início do discurso: Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada (VELOSO, 1968). Ainda é apontado por Veloso que a reação daqueles que se dizem a juventude “que quer tomar o poder” se assemelha, e muito, com a daqueles que eles querem combater, aqueles que reprimem a liberdade de expressão artística de resistência: Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, 392 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês (VELOSO, 1968). É também sugerido que não fosse a coragem do grupo baiano de trazer referências e instrumentos estadunidenses, ninguém o faria e, uma vez que já haviam feito as referências, já eram tomadas por outros artistas brasileiros que eram, inclusive, aplaudidos pelo público do III FIC: O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso! (VELOSO, 1968) Essa gravação demonstra um posicionamento brasileiro perante o movimento da contracultura, que contestava o sistema vigente e, principalmente nos Estados Unidos, questionava a intervenção do exército americano no conflito do Vietnã. Gilberto Gil Procissão Gilberto Gil, dentro da obra composta no período, pouco discorre sobre a questão das esquerdas e do governo militar, se atentando à composição produzida dentro e fora do Brasil. Porém, no período até o Festival da Record de 1967, Gil escreve a música Procissão, que mescla as procissões nordestinas com a “esperança nas passeatas”, como o compositor explica em Show realizado na Poli-USP em 1973. A composição trabalha com duas perspectivas: a mais clara é a religiosa, com sua análise do credo e da prática religiosa no sertão do Nordeste, que deixa seus fiéis suscetíveis a diversos tipos de opressão de homens poderosos que têm em suas mãos o destino do povo. A segunda é a perspectiva urbana, que relaciona a prática das procissões com as passeatas que aconteciam por toda a década de 1960, contra o Regime Militar ou contra o comunismo, personificado na figura do presidente João Goulart, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, entre março e junho de 1964. 393 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A faixa é lembrada no segundo volume do livro A Canção no Tempo: 85 Anos de Músicas Brasileiras, onde Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello lembram que essa música foi apresentada no programa ‘O Fino da Bossa’, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Essa composição é, segundo o próprio Gilberto Gil “Uma canção bem ao gosto do CPC, o Centro Popular de Cultura, solidária a uma interpretação marxista da religião, vista como ópio do povo e fator de alienação da realidade, segundo o materialismo dialético” (RENNÓ, 1996, p. 56). A composição foi feita para o espetáculo Arena Canta Zumbi, no grupo baiano que deu origem ao grupo tropicalista, com Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa e Maria Bethânia em 1965, como lembra Ramon Casas Vilarino em seu livro A MPB em Movimento – música, festivais e censura. Segundo Vilarino, em Procissão [...] Faz-se a crítica ao conformismo religioso. A figura divina tanto pode ser espiritual como se materializar em líderes políticos, de corte populista: “Muita gente se arvora a ser Deus e promete tanta coisa pro sertão” (VILARINO, 2006, p. 55). Essa ideia se materializa nos versos a seguir “As pessoas que nela vão passando Acreditam nas coisas lá do céu As mulheres cantando tiram versos Os homens escutando tiram o chapéu Eles vivem penando aqui na terra Esperando o que Jesus prometeu” Gil, no mesmo show da POLI USP, em 1973, negou alguns pedidos de músicas, caso de Ensaio Geral e, por pouco, não foi o caso de Procissão por já não acreditar nas questões abordadas pelas músicas, como a esperança na vitória das manifestações populares. Outra especificidade desse show foi o fato de Gilberto Gil não ter cantado nenhuma de suas composições em inglês, compostas em Londres. Isso pode ser uma questão relacionada ao uso exclusivo de violão no show, mas também pode indicar que Gilberto Gil não gostaria imprimir, nesse momento delicado, uma postura que pudesse ser considerada subversiva ao mencionar o exílio. 394 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Daniel Viglietti A Desalambrar Daniel Viglietti foi censurado fortemente durante o período que precedeu o golpe militar e dois episódios merecem atenção. Na noite de 30 de janeiro de 1969, quando se apresentava no canal 5 de Montevideo, no programa MUSICANTO 69, ao cantar a música “A Desalambrar” o programa teve sua transmissão interrompida. José Fabiano Gregory Cardozo de Aguiar analisa a interrupção afim de entender a práxis da censura no Uruguai, no período pré-ditadura. Segundo Aguiar, “a ordem partiu de Rúben Rodriguez, diretor interino do canal 5 que era também dependente da comissão do SODRE – Servicio Oficial de Difusión Radiotelevisión y Espectáculos, vinculado ao Ministério de Educação e Cultura – passou pelo diretor artístico do canal, Luis Alberto Negro, chegando ao responsável pela programação do canal, Alvaro Saraleguy, que retirou o programa do ar. Uma ordem que partiu do cume diretivo da empresa, que por sua vez possuía vínculos com o principal órgão estatal de difusão das atividades culturais no País. Interessante que, indagado sobre os motivos da proibição, o presidente diretivo do Canal 5 na época, Jorge Faget Figari, afirmou não conhecer a música que causou a interrupção do programa, mas que no ato da proibição estava cumprindo ordens superiores” (AGUIAR, 2010). A música é a seguinte: Yo pregunto a los presentes Si no se han puesto a pensar Que esta tierra es de nosotros Y no del que tenga más. Yo pregunto si em la tierra Nunca habrá pensado usted Que si las manos son nuestras Es nuestro lo que no den. A desalambrar, a desalambrar! Que la tierra es nuestra, Tuya y de aquel, De Pedro y Maria, De Juan y José. 395 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA O segundo episódio aconteceu no mesmo ano, quando seu programa de rádio no SODRE foi cancelado, considerado subversivo. A ordem também partiu do Ministério de Educação e Cultura. A partir daí, muitos artistas passaram a ser perseguidos. Representantes do Governo frequentavam os shows, em busca de membros e simpatizantes do MLN – Tupamaros . (AGUIAR, 2010) Cria-se um movimento, por parte do governo, de repúdio a essa música denominada “antinacional, divisora da pátria, desestruturadora das bases da nação.” Então, se constitui uma criminalização velada ao movimento musical mais politizado, colocando os artistas como subversivos, cujo objetivo é transformar o tradicional e clássico em algo vulgar e desconstruído. Ao mesmo tempo, dentro desse processo, se iniciou um movimento de crítica ao estilo de vida que levavam esses artistas, o que destoava da condição de seu público, as grandes massas. Esses movimentos de cerceamento moral e de costumes foram a justificativa do Governo para que se substituísse essa geração censurada e demonizada por uma que pudesse pensar o “Novo Uruguai” a ser construído, abandonando o contexto subversivo e adotando uma postura mais subserviente às vontades do Governo. Na nova safra encontramos o grupo Los Nocheros, Jorge Villalba y los Boyeros, José Maria da Rosa, Carlos Lopéz Terra e Rubi Castillo. Embora tenham feito relativo sucesso comercial, nenhum alcançou o carinho das massas e foi assimilado pela população como a geração anterior, sendo facilmente esquecido na história da música popular uruguaia. Não havendo espaço para se apresentarem artisticamente no Uruguai, muitos artistas buscaram trabalho fora do país, pedindo asilo. Esse movimento começou no governo de Juan María Bordaberry, que sacramentou o golpe de Estado com apoio das Forças Armadas uruguaias em 27 de junho de 1973. Cruz de Luz (Camilo Torres) A luta armada é um tema abordado com certa frequência por Viglietti em sua discografia. Não é segredo a simpatia de muitos músicos da época pelos movimentos de guerrilha armada. O próprio Aníbal Sampayo, músico importante do período, era militante do MLN-Tupamaros. Viglietti, embora não fosse militante, fazia apologia à insurreição pela luta armada em algumas de suas canções, como é o caso de Cruz de Luz 396 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA (Camilo Torres), que também foi interpretada por Victor Jara, sendo esta a versão mais famosa. Segue o trecho inicial: Donde cayó Camilo nació una cruz, pero no de madera sino de luz. Lo mataron cuando iba por su fusil, Camilo Torres muere para vivir. Cuentan que tras la bala se oyó una voz. Era Dios que gritaba: ¡Revolución! Aguiar (2010) analisa a letra, que é homenagem a um “padre católico e guerrilheiro colombiano vinculado ao ELN (Exército de Liberação Nacional) da Colômbia, morreu em 1966 pelas forças armadas colombianas” (AGUIAR, 2010, p. 167). A criação da imagem de um “Cristo revolucionário” tem o objetivo de se buscar apelo em um público ligado a práticas religiosas e que podem ter, no caso, apresentado uma inspiração para a revolta. Como acontece em muitas regiões da América Latina, é possível encontrar a utilização de figuras como a de Camilo Torres como ferramenta de comoção popular para que, além de homenagear os guerrilheiros mortos em combate, não haja esquecimento sobre as baixas do processo ditatorial. Solo digo compañeros O uso de símbolos para traduzir aspectos políticos é próprio desse período e espaço que emana a música popular que pretende unir música erudita e música folclórica. As referências de Daniel Viglietti, sobretudo dentro de casa, permitem que lhe seja quase orgânica essa fusão de estilos estéticos que entregam o que conhecemos como Canción de Propuesta ou Canto Popular. Também é resultado do intercâmbio cultural entre artistas dos diversos países da América Latina. O próprio Viglietti, além de ser amigo de Violeta Parra, viajou antes do exílio para Cuba para gravar um disco com canções de músicos cubanos e brasileiros. O disco Trópicos (2013) é uma experiência de solidariedade musical entre artistas da América Latina que buscavam resistir às ditaduras através da música. Na canção Solo digo compañeros, Viglietti revisita o MLN-Tupamaros e seus guerrilheiros: 397 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA “Escucha, yo vengo a cantar por aquellos que cayeron. No digo nombre ni seña, sólo digo compañeros. Y canto a los otros, a los que están vivos y ponen la mira sobre el enemigo. Ya no hay más secreto, mi canto es del viento, yo elijo que sea todo movimiento. No digo nombre ni seña, sólo digo compañeros.” Ainda se encontra presente a intenção de perpetuar na memória nacional os mortos pela ditadura e por um ideal de resistência e democracia. Aguiar (2010) posiciona a letra, que é um clamor por reconhecimento popular dos guerrilheiros que morreram na luta armada: Nessa canção, fica clara a posição de Viglietti: apoio a guerrilha e a revolução. Ao contrário de nomes, os que caíram, que ele prefere não divulgar – e aqui se pode apenas deduzir que se tratava de um cuidado do autor, provavelmente porque tinha conhecimento do desaparecimento ou das mortes de muitos militantes, em uma época que essas informações poderiam comprometer o próprio artista –, a sua posição é bem clara. O autor canta que não faz segredo sobre isso, seu canto é todo vento, todo movimiento – ou, quem sabe, Movimiento Liberación Nacional. (AGUIAR, 2010). CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o AI-5, em dezembro de 1968, muitos dos que ainda mantinham alguma liberdade de expressão passaram a também ser perseguidos pelo regime no Brasil. Caetano e Gil, foram mantidos presos durante 4 meses em prisões no Rio de Janeiro e mais tarde em prisão domiciliar, em Salvador. Quando foram mandados para Salvador, foram proibidos de dar qualquer entrevista, se apresentar publicamente ou serem fotografados, para que a imagem dos dois, sem suas características cabeleiras, não se espalhasse (TINHORÃO, 1998). Solicitaram saída do país no ano seguinte. Antes de ir para Londres, eles estiveram em Portugal, onde em uma emissora de televisão portuguesa no dia 04 de agosto de 1969, Caetano alega ter chegado ao fim o movimento tropicalista. No Uruguai, em 1972, Daniel Viglietti é preso e há uma grande campanha por sua liberdade, com participação de intelectuais como Jean Paul Sartre e Júlio Cortázar. Depois de liberto, se exila na Argentina. 398 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Em 1973, Viglietti é convidado para participar do festival Fête de L ́Humanité e viaja da Argentina para a França. Durante sua estadia na Europa, o governo uruguaio cancela seu passaporte e o proíbe de voltar para o Uruguai. Viglietti transforma sua estada na França em exílio e só lhe é permitido voltar para o seu país de origem 11 anos depois. Através da discussão levantada com as músicas dos dois movimentos, – aqui analisadas de forma mais específica, sem levar em conta a ampla discografia da época –, e analisando os processos de repressão aos direitos civis no Brasil e no Uruguai na época, podemos apontar uma tendência a um retorno das raízes conservadoras sulamericanas, no que, em um primeiro momento, parece acusar uma espécie de tendência cíclica na política sul-americana, mas, mais alarmante do que isso, pode acusar um eterno controle das alas mais conservadoras e reacionárias desses países, cuja ação é discreta até que o caminho tomado por determinado partido ou determinada administração saia de seus planos. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Daniel Viglietti, Aníbal Sampayo e outros músicos do Brasil e do Uruguai foram presos e exilados em nome desses governos autoritários por discordâncias de diferentes graus. Podemos dizer que nem Gil nem Caetano fazem resistência firme ao Governo Militar, tendo em vista que sua preocupação não era derrubar a ditadura, mas oferecer uma visão menos presa a aspectos tradicionais para a Música Popular Brasileira, que sempre apela ao estilo mais rural e tradicional da música (TINHORÃO, 2013). José Ramos Tinhorão ainda diz que o pensamento de Caetano Veloso e Gilberto Gil era muito mais à direita do que os militares pensavam: Pelo contrário, todas as declarações públicas de Caetano Veloso eram contra a posição das esquerdas em matéria de música popular, e Gilberto Gil, após breve envolvimento com a pretendida união de músicos contra a invasão da música estrangeira (chegou a participar de uma passeata de protesto contra a concorrência dos conjuntos à base de guitarras elétricas com os músicos tradicionais), aderira ao som internacional e confessava preocupações espirituais voltadas para religiões orientais (TINHORÃO, 2013, p. 304). Mesmo com diferentes composições, inspirações e militâncias, o tropicalismo e o Canto Popular Uruguaio trazem como semelhança a ação truculenta e repressiva dos governos que censuram a classe artística por seu potencial de comunicação. No caso do 399 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Brasil, existe certa restrição ao se falar disto, pois, embora o tropicalismo tenha vendido bastante, vendeu sobretudo para uma classe média que não a classe média universitária de esquerda. Eles estavam na televisão, mas a televisão alcançava, na década de 1960, uma parcela ainda restrita da população brasileira. O movimento uruguaio tinha um apelo um tanto maior para as massas, com uma influência folclórica que está presente em diversas camadas da sociedade. O estudo da repressão aos movimentos musicais na América do Sul é importante pelo impacto que a música imprime na construção da memória, tendo em vista o potencial de uma música de remeter quase que imediatamente ao contexto de sua composição e nos ajudar a entender contextos em que essa dimensão pode acessar melhor que um texto ou uma fotografia. REFERÊNCIAS AGUIAR, José Fabiano Gregory Cardozo. "Yo vengo a cantar por aquellos que cayeron". Poesia política, engajamento e resistência na música uruguaia – o cancioneiro de Daniel Viglietti. Me. 2010. UFRGS. AGUIAR, José Fabiano Gregory Cardozo. Vestígios do Passado: A História e suas Fontes. IX Encontro Estadual de História – Associação Nacional de História – ANPUH – RS. 2008, Disponível em: < https://eeh2008.anpuhrs.org.br/resources/content/anais/1212337236_ARQUIVO_anpuh2008.pdf > [acessado em 04 abril. 2021]. CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. 2ª ed. São Paulo: 34, 2010. CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e Outras Bossas. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. CYNTRÃO, Silvia Helena. A Forma da Festa – Tropicalismo: a explosão e seus estilhaços. 1ª ed. São Paulo; Brasília: EUB/Imprensa Oficial do Estado, 2000. FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria Alegria. 4ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. FERNANDES, Ananda. Simões. (2009). Quando o Inimigo Ultrapassa a Fronteira: As conexões repressivas entre a Ditadura Civil-Militar Brasileira e o Uruguai (1964-1973) (dissertação de mestrado, UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, 2009) (p. 77-126). Porto Alegre, RS. 2009. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17527> Acesso em: 04 abril. 2021. 400 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA FERREIRA, Jorge Luis. O Carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto. In: GOMES, Angela de Castro (org.). Vargas e a Crise dos Anos 50. 1ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. MELLO, Zuza Homem de; Severiano, Jairo. A Canção no Tempo: 85 Anos de Músicas Brasileiras Vol. 2: 1958 – 1985. 6ª ed. São Paulo: 34, 2015. PADRÓS, Enrique. Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e Segurança Nacional – Uruguai (1968-1985): do Pachecato à Ditadura Civil-Militar. Dr. 2005. RENNÓ, Carlos. (org.) Todas as Letras. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. SCHAEFER, Sérgio.; SILVEIRA, Ronie. Alexsandro. Teles. da. Caetano e a Filosofia. 1ª ed. Salvador: EDUNISC/EDUFBA, 2010. TINHORÃO, José Ramos. O Tropicalismo. In: TINHORÃO, José Ramos. Pequena História da Música Popular Segundo seus Gêneros. 7ª ed. São Paulo: 34, 2013. TINHORÃO, José Ramos. O movimento tropicalista e o “rock brasileiro”. In: TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. 1ª ed. São Paulo: 34, 1998 p. 323-349 Tropicália. 2012. [filme] Marcelo Machado. VAZ, Toninho. A explosão tropical (uma narrativa dos tempos fabulosos e heroicos). In: VAZ, Toninho. Pra mim chega: A biografia de Torquato Neto. 1ª ed. São Paulo: Casa Amarela, 2005. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. VELOSO, Caetano.; FERRAZ, Eucanaã. Letra só. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. VILARINO, Ramon Casas. A MPB em Movimento: música, festivais e censura. 5ª ed. São Paulo: Olho d’Água, 2006. 401 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 402 SOBRE OS AUTORES Adriana de Carvalho Alves Braga Adriana de Carvalho Alves Braga - Doutora em Educação, Arte e História da Cultura (Mackenzie), Mestre em Integração da América Latina (PROLAM/USP). Especialista em História, Sociedade e Cultura (PUC/SP) e em Gestão da Educação Pública (UNIFESP). Licenciada em História e Pedagogia. Coordenadora Pedagógica na Rede Municipal de Ensino de São Paulo. Integra os grupos de pesquisa “Movimentos Migratórios e Educação” (PUC/SP) e “Migrações e Identidade” (CERU/USP), onde realiza pesquisas relacionadas aos fluxos migratórios contemporâneos. Participante do “Conjunto Chile Lindo” e do grupo “Ameríndios”, interpretando canções do repertório folclórico e da Nueva Canción Chilena com voz e percussão. E-mail: andritsena@hotmail.com Alecsandra Matias de Oliveira Doutora em Artes Visuais (ECA USP). Pós-doutorado em Artes Visuais (UNESP), Professora do CELACC (ECA USP). Mestrado em Comunicações (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP). Membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Autoria do livro Schenberg: Crítica e Criação (EDUSP, 2011). Colaboradora da Revista DasArtes, Jornal da USP e Revista USP. E-mail: alemaoli@usp.br Alejandra G. Galicia Martínez Licenciada en Ciencias Políticas (2009) y maestra en Estudios Latinoamericanos (2015) por la Universidad Nacional Autónoma de México. Actualmente es doctoranda en el Posgrado de Estudios Latinoamericanos en la misma universidad con el proyecto “La América Latina trascendental. Esoterismo y Acción Política en México y Centroamérica, 1900-1934”. Es parte del &quot;Seminario de Estudios sobre Esoterismo Occidental desde América Latina&quot; dirigido por el Dr. José Ricardo ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 403 Chaves en el Instituto de Investigaciones Filológicas. Es miembro desde 2018 del Centro de Estudios sobre Esoterismo Occidental- UNASUR (CEEO-UNASUR), y forma parte del Grupo de Trabajo CLACSO “Antiimperialismo: perspectivas transnacionales en el Sur Global”. Entre sus líneas de investigación se encuentra la historia de México y Centroamérica; el antiimperialismo latinoamericano del siglo XX; el análisis de redes políticas, intelectuales y de solidaridad en América latina durante el siglo XX; el estudio de revistas culturales y la historia del esoterismo en América Latina durante el siglo XIX y XX. Ha publicado trabajos como “Sandino en Ariel: representaciones del héroe en una revista antiimperialista” (El imaginario antiimperialista en América Latina, Buenos Aires, 2015); “‘Cuando la autoridad es rebasada la ley es el pueblo compañeros’. Análisis de los marcos del discurso de grupos de autodefensa y policías comunitarias en Michoacán”, (Movimientos Sociales en México, México, 2016); “Froylán Turcios y Revista Ariel” (Revista Meridional. Revista Chilena de Estudios Latinoamericano, Santiago, 2019); “Revolución Mexicana y esoterismo. José Vasconcelos 1921-1924” (Revista Melancolia, Buenos Aires, 2020), y “Solidaridad con Nicaragua. La ambivalencia estratégica de la política antiimperialista mexicana en las décadas de 1920 y 1970” (Confrontación de imaginarios: Los antiimperialismos en América Latina, Buenos Aires/México, 2021). E-mail: xtabayam@yahoo.com.mx Alexandre Barbalho Possui licenciatura em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), bacharelado em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Estágio pós-doutoral em Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. É professor adjunto do curso de História e professor permanente dos PPGs em Sociologia e em Políticas Públicas da UECE e em Comunicação da UFC. Tem experiências nas áreas de Política, Cultura e Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: política cultural, política de comunicação, mídia e cidadania, mídia e minorias, mídia e política, elites. É autor, entre outros, de: Relações entre Estado e cultura no Brasil (1998); Cultura e imprensa alternativa (2000); ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA A modernização da cultura (2005); A criação está no ar: Juventudes, política, cultura e mídia (2013) - edição em espanhol: La creación está en el aire: juventudes, política, cultura y comunicación (2014); Democracia radical e pluralismo cultural. Para ler Chantal Mouffe (2015); Política cultural e desentendimento (2016) - edição em espanhol: Política cultural y desacuerdo (2020); Cultura e democracia (2017); e Sistema Nacional de Cultura. Campo, saber e poder (2019). É organizador de Brasil, brasis: Identidades, cultura e mídia (2008) e co-organizador, entre outros, de: Comunicação e cultura das minorias (com Raquel Paiva, 2005 - edição em espanhol: Comunicación y cultura de las minorías, 2012 ); Políticas Culturais no Brasil (com Albino Rubim, 2007); Comunicação e cidadania: Questões contemporâneas (com Bruno Fuser e Denise Cogo, 2011); Cultura e desenvolvimento: Perspectivas políticas e econômicas (com Lia Calabre, Paulo Miguez e Renata Rocha, 2011); Federalismo e políticas culturais no Brasil (com Lia Calabre e José Márcio Barros , 2013); Infância, juventude e mídia. Olhares luso-brasileiros (com Lídia Maropo, 2015); Políticas culturais no governo Dilma (com Albino Rubim e Lia Calabre, 2015); Os trabalhadores da cultura no Brasil: criação, práticas e reconhecimento (com Elder Maia e Mariela Vieira, 2017); e Retratos do Ceará moderno: emergência de um padrão de modernização cultural nas margens (com Mariana Barreto, 2020). E-mail: alexandre.barbalho@uece.br Bruno Henrique Bezerra Silva Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2017), educador. Experiência em pesquisa no Museu da Cultura - PUC-SP (2017) e pesquisa em música e censura através do programa de estágio em Arte Educação do Serviço Social do Comércio (SESC-SP) (2015-2016). E-mail: bhbs2008@gmail.com Camila Vieira de Souza amila Vieira de Souza é graduada em Arte: História, Crítica e Curadoria pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trabalha e pesquisa relações entre Instituições Culturais e Arte Educação. E-mail: carta.para.camila@gmail.com 404 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Cristian Fabián Pulga Infante Licenciado em Ciências Sociais da Universidad Pedagógica Nacional de Colombia (2017) professor de Ensino Médio. E-mail: cristianpulgainfante@gmail.com Débora Armelin Ferreira Licenciada em Artes Visuais pela FMU e especialização em História da Arte: Teoria e Crítica pelo Centro Universitário Belas Artes, atuou como professora de Artes no ensino fundamental e médio em escolas públicas do Estado de São Paulo e, atualmente, se dedica a pesquisa independente de artistas mulheres e da população LGBTIA+ na América Latina e África. E-mail: deboraarmelin@hotmail.com Douglas Gregorio Miguel Paulistano nascido em 1967, bacharel em Filosofia pela FFLCH-USP, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, Doutor em Ciências pela FFLCH-USP. Professor na educação de base entre 1988 e 2016 e professor no ensino superior desde 2010. Pesquisador ligado ao Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, e Conflitos, da FFLCH-USP. E-mail: dgmsbc@gmail.com Edson Capoano Atual pesquisador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade - CECS, da Universidade do Minho, sobre Jornalismo, Participação e Mídia Digital. Doutor em Comunicação e Cultura pelo Programa de Integração Latino-Americana da Universidade de São Paulo (PROLAM-USP, 2013). Mestre em Comunicação e Semiótica (2006) e Bacharel em Jornalismo (2001) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especializações em Jornalismo Ibero-Americano (Programa Balboa, 2007) e em Jornalismo Ambiental (Cásper Líbero, 2001). Estágios de pósdoutorado na Universidade de Castilla-La Mancha (2017) e na Universidade de Navarra (2015), pesquisando modelos de negócios para jornalismo. Doutorado visitante / 405 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA sanduíche na Universidade da Califórnia em San Diego (2012) pesquisando redes e identidades para o jornalismo. Autor dos livros “Como financiar o jornalismo?” (2018), “La jornada del periodista” (2017) e “A natureza na TV” (2015). E-mail: edson.capoano@gmail.com Fabia Holanda de Brito Doutoranda em Processos e Manifestações Culturais. Mestra em Bens culturais e projetos sociais. Professora de História do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Marahão (IFMA). E-mail: fabiaholanda@ifma.edu.br Francisco Prandi Mendes de Carvalho Francisco Prandi Mendes de Carvalho – Cientista Social e Mestre em Sociologia pela USP, atua como músico, sendo cantor, compositor. Atualmente, participa do grupo EntreLatinos e atua como mobilizador cultural no Dandô – Circuito de Música Dércio Marques, no qual desempenha as funções de apresentador, roteirista e produtor dos programas “Coluna Dandô” e “Dandô Clipes”. E-mail: franprandi13@hotmail.com Günther Richter Mros É professor adjunto no Departamento de Economia e Relações Internacionais (DERI) da Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, e coordenador do curso de graduação em Relações Internacionais. Doutor em História pela UFSM, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, UnB, e bacharel em Relações internacionais pelo Centro Universitário de Brasília, UniCEUB. Tem como áreas de interesse a história das relações internacionais e a política externa brasileira. Lidera, em parceria com a Profª Drª Joséli Fiorin Gomes, o Grupo de Estudos em Instituições e Processos Decisórios nas Relações Internacionais (GEIPRI), CNPq / UFSM. E-mail: gunther.mros@ufsm.br 406 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Gustavo Scudeller É professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp/Guarulhos- SP, da área de Teoria Literária. Pesquisa temas relacionados às relações entre épica, humanismo e erudição na poesia brasileira dos anos 1950 em diante. E-mail: gscudeller@unifesp.br Hiolly Batista Januário de Souza Graduada em História (UFF/2011), Mestre em História Social (Uioeste/2017), professora da Educação Básica (Seduc/MT). E-mail: bh.lolly@gmail.com Igor Lemos Moreira Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH-UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e Identificações. Entre 2021-2022 foi Visiting Scholar na University of Miami (Florida/EUA). Mestre e Graduado em História (Licenciatura) pela mesma instituição. Bolsista CAPES-DS, integrante do Laboratório de Imagem e Som (LIS/UDESC), do Núcleo de Estudos de Exílio e Migração da Universidade Federal de Minas Gerais (NEEM-UFMG), da Rede de Pesquisadores da História de Cuba e da Equipe de Apoio Editorial da Revista Tempo e Argumento. Associado a ANPUH, ANPHLAC, LASA e IASPM- AL. Tem experiência na área de História, com ênfase em História das Américas, Teoria da História, História Contemporânea. Atua principalmente nos seguintes temas: Relações e trânsitos entre Estados Unidos e Caribe; Biografias e Trajetórias Artísticas; Exílios; Representações; História de Cuba e identidades cubanas: Música Pop; Música Latino-americana; Audiovisual e Canção; História Pública e História do Tempo Presente. E-mail: igorlemoreira@gmail.com 407 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Juan Ignacio Brizuela Doutor pelo Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos - IHAC, UFBA. Colíder do grupo de pesquisa Observatório da Diversidade Cultural - UEMG. Pesquisador de pós-doutorado da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência - IEA/USP. E-mail: juanbrizuela@usp.br Marcelo Mendes Chaves Pós-doutorando junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP-CRE), Faculdade de Ciências Sociais, sob a supervisão do Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito. Doutor em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo PROLAM-USP (2017) na Linha de Pesquisa sobre Comunicação e Cultura. Mestre em Estética e História da Arte pelo Programa de PósGraduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo PGEHA-USP (2012) na Linha de Pesquisa sobre História e Historiografia da Arte Brasileira. Especialização em Cenografia pelo Centro de Pesquisa Teatral CPT-SESC (1999). Aperfeiçoamento em Arquitetura Ambiental Chinesa UNILUZ (1998). Graduado em Arquitetura e Urbanismo pelo Centro Universitário Belas Artes (1996). Integrou o Grupo de Pesquisa Museu e Patrimônio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo GMP-FAU-USP (2018-2020). Participou do Centro de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras do departamento de Antropologia da Religião da Universidade de São Paulo CERNe-USP (2013-2015). Professor e orientador nos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Interiores no Centro Universitário UNIFAAT (2015-2019). Possui experiencia no ensino de arte, cultura e religião afro-brasileira e afro-latino-americana; projeto de arquitetura, expressão plástica, história da arquitetura, paisagismo e urbanismo, teoria da arquitetura, design de interiores e paisagismo, projeto exceutivo de Design de Interiores, cenografia, vitrine e eventos, Design Residencial, Técnicas de Deocoração, Fundamentos do Design de Interiores, expressão plástica e composição de ambientes e 408 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA conceituação do Design de Interiores. Atua na área de Arquitetura de Interiores. Pesquisador nas áreas de arquitetura moderna brasileira, arte brasileira e latinoamericana, arte pública modernista no Brasil, cenografia, performance e religião afrobrasileira e afro-cubana, com ênfase na obra dos Arquitetos Oscar Niemeyer, Lina Bo Bard, Paulo Mendes da Rocha,i e, dos artistas plásticos Carybé, Poty Lazzarotto, Rubem Valentim e Manuel Mendive Hoyo; e do paisagista Burle Marx. Atualmente pesquisa a arquitetura expositiva na trajetória da Arquiteta Lina Bo Bardi no periodo de 1959 a 1984 com o tema; "Espaço expositivo de Lina Bo Bardi: a recepção da cultura afro-brasileira". E-mail: marcellomendez@usp.br Michelle Cristina Alves Silva Atriz, dramaturga, trabalhadora do teatro. Doutoranda pelo Programa Interunidades de Integração da América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo (USP) com a pesquisa: Teatro, Política e Sociedade - Grupo El Galpón e Cia do Latão - Estudos de caso no Brasil e Uruguai Milena Mulatti Magri. E-mail: floresdejorge@gmail.com Milena Mulatti Magri Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Concluiu pesquisa de pós- doutorado na UNESP, campus de São José do Rio Preto, com bolsa FAPESP, e um estágio pós- doutoral no exterior, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES. Autora do livro A Ficção na Pós-ditadura (Editora Unifesp, 2019), premiado com o terceiro lugar no Prêmio ABEU (Associação Brasileira das Editoras Universitárias). E-mail: milenamagri@yahoo.com.br Pedro Rodrigues Costa Atual pesquisador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade - CECS, da Universidade do Minho, sobre Ambientes Sociotécnicos Digitais. Doutorado em Ciências da Comunicação (Sociologia da Comunicação e Informação), pela Universidade do Minho, com a tese Entre o Ver e o Olhar: Ecos e Ressonâncias 409 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 410 Ecrãnicas (2013). É mestre em Sociologia (especialização em Sociologia das Organizações e do Trabalho) e licenciado em Sociologia. Entre as suas áreas de investigação constam as questões em torno da Cibercultura, Tecnologia e Estudos sobre redes sociais digitais. É investigador do CECS, onde integra o Grupo de Estudos Culturais e o Museu Virtual da Lusofonia. Na lista dos trabalhos de investigação mais recentes, constam os seguintes temas: A presença de arquétipos nos youtubers: modos e estratégias de influência (Costa, 2019); O medo do consumo solitário: comentários nos canais infantojuvenis de YouTube do Brasil e de Portugal (Costa & Capoano, 2020); Suicídio e redes sociais: aproximações em português no Facebook, no instagram e no YouTube (Costa & Araújo, 2020) e Dar “vistas” ao ecrã em rede: problemáticas, desafios e consequências da era digital (Costa, 2020). E-mail: pedrocosta@ics.uminho.pt Pedro Quinteiro Uberti Graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisador bolsista FIPE JR. no projeto de pesquisa “Tempo histórico e política externa nas relações internacionais do Brasil e da América Latina”, coordenado pelo Prof. Dr. Günther Richter Mros, do Grupo de Estudos em Instituições e Processos Decisórios nas Relações Internacionais (GEIPRI). Tem como interesses de pesquisa: História das Relações Internacionais da América Latina; e História da Política Externa do Brasil. E-mail: pedro.uberti@gmail.com Rafaella Chueri Abreu Rodrigues Graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Aluna pesquisadora no Grupo de Estudos em Instituições e Processos Decisórios nas Relações Internacionais, da UFSM. Tem se dedicado ao estudo nas áreas de História do Brasil, História das Relações Internacionais e Política Externa, em especial na influência da Imperatriz Dona Leopoldina no processo de Independência do Brasil. ID Lattes: 5466243526059887. E-mail: rafaella.rodrigues@acad.ufsm.br ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Simone Rocha de Abreu Docente da Faculdade de Artes, Letras e Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FAALC-UFMS), coordenadora do Programa de Extensão Arte na Escola, Polo Arte na Escola da UFMS e coordenadora dos cursos de Artes Visuais (2020-2011). Pós-doutora pelo Instituto de Artes da UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - 2019), sob a supervisão de Percival Tirapeli, com pesquisa intitulada: "Os discursos sobre a identidade da Arte Latinho-Americana na Fundação Bienal. Reflexões a partir do Simpósio da I Bienal Latino-Americana de 1978", pesquisa vinculada à seguinte linha: Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte do IA- UNESP. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo, na grande área: Linguística, Letras e Artes, área: Artes, sub-área: Fundamentos e Crítica das Artes, com a tese: Um olhar sobre as produções de Luis Felipe Noé, Antonio Berni, Rubens Gerchman e Antonio Henrique Amaral. Mestre pelo mesmo programa, área e sub-área, com dissertação sobre Frida Kahlo e Ismael Nery, especialização em História da Arte e da Cultura Contemporânea pelo Instituto de Artes da UNESP/São Paulo (2005) , bacharel em Artes Plásticas também pelo Instituto de Artes da UNESP/São Paulo(2004) e licenciada em Artes pelo Curso de Formação Pedagógica de Docentes do Centro Paula Souza. Possui experiência em docência e pesquisa, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Arte da América Latina, Perspectivas didáticas do Ensino de Arte, Arte e Cultura da América Latina, diálogos artísticos entre Brasil, Argentina e México, História do Mobiliário, História do design, Composição em suportes variados, Expressão Bidimensional e Ensino de Arte. Já atuou como professora da Academia Brasileira de Arte (ABRA; unidade Tatuapé), como docente do Centro Paula Souza, atuando nos cursos Técnicos de Comunicação Visual, de Processos Fotográficos e no ensino médio, atuou também como professora orientadora on-line no Curso de Especialização em Artes para Professores da Rede Pública do Estado de São Paulo Programa Rede São Paulo de Formação Docente, convênio entre UNESP e a Secretaria Estado da Educação durante dois anos e como docente na disciplina de História da Arte no curso de Especialização em Cenografia e Figurino do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, atuou também como formadora junto à Secretaria Municipal de 411 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Educação, promovendo cursos de formação continuada para estimular a efetiva implementação das leia 11.645/08 e 10639/03 na rede municipal de ensino, bem como fomentar a inclusão dos imigrantes latino-americanos no ambiente escolar mediante discussões sobre Arte, Cultura e História da América Latina. Pesquisa Arte da América Latina, membro do Fórum Permanente de Debates sobre Arte e Cultura da América Latina, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Sociedade Científica da Arte (CESA), foi docente do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), desde 2009 até setembro de 2016, professora substituta em Artes na UNILA (2016-2017). E-mail: simonerochaabreu@gmail.com Vanessa Beatriz Bortulucce Historiadora da imagem, da arte e da cultura. Pesquisadora e curadora independente. Graduada em História pela Universidade Estadual de Campinas (1997), Mestra em História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Possui Pósdoutorado pelo Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Atualmente é docente nas seguintes instituições: Centro Universitário Assunção (UNIFAI), Faculdade Casper Líbero e Museu de Arte Sacra de São Paulo. Tem experiência na área de História da Arte, atuando principalmente nas áreas da cultura do século XX: Arte Moderna, Arte Contemporânea, Futurismo Italiano, Umberto Boccioni, arte e política. Produziu vários artigos sobre a vanguarda italiana e sobre as relações arte e política no século XX. Traduziu diversos manifestos futuristas e colaborou com várias obras sobre o tema. É autora do livro A Arte dos Regimes Totalitários do Século XX – Rússia e Alemanha, publicado em 2008 pela editora Annablume/FAPESP. Traduziu os Diários de Umberto Boccioni (Editora da UNICAMP, 2016). Membro da ABEC (Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais) e do ICOM Brasil. E-mail: bortu@hotmail.com 412 ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA 413 SOBRE OS ORGANIZADORES Júlio César Suzuki Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso (1992), em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2004) e em Química pelo Instituto Federal de São Paulo (2021), com mestrado (1997), doutorado (2002) em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo e Livre-Docência em Fundamentos Econômicos, Sociais e Políticos da Geografia. Atualmente, é Professor Associado, junto ao Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM/USP). Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia Humana, atuando principalmente nos seguintes temas: Agricultura, Urbanização, Geografia e Literatura e Teoria e Método. E-mail: jcsuzuki@usp.br. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-7499-3242. Maria Margarida Cintra Nepomuceno Graduada em Comunicação Social pela Faculdade Cásper Líbero com especialização em Jornalismo, e em História da Arte, na FAAP. É Mestre e Doutora pelo PROLAMPrograma de Pós-graduação Integração da América Latina, da Universidade de São Paulo e, atualmente, exerce a função de pesquisadora-colaboradora nessa Instituição. É pós-doutoranda pela UERJ- Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no Departamento de História, onde desenvolve uma pesquisa sobre as relações do período Vargas na América Latina. Desde o Mestrado tem se dedicado aos estudos sobre as políticas culturais do Brasil em países da América Latina desde a criação das Missões Culturais Brasileiras, no início do século XX. Atualmente, é pesquisadora junto ao Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina (PROLAM/USP). margaridacn@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6439-0680 E-mail: ORGANISMOS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA A AMÉRICA LATINA. ARTE, CULTURA, RESISTÊNCIA Gilvan Charles Cerqueira de Araújo Graduado em Geografia pela UNESP – Campus Rio Claro/SP (2009), Mestre em Geografia pela Universidade de Brasília (2013), Doutor em Geografia pela UNESP – Campus Rio Claro/SP (2016). Atualmente é professor do Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina (PROLAM/USP) e professor de Geografia na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail: gcca99@gmail.com. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-4238-0139. 414