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Modalidade: Comunicaçao Oral GT: Artes Visuais Eixo Temático: Múltiplas culturas, interculturalidade e inclusão: metamorfoses contemporâneas. A UTOPIA NO ESPAÇO SOCIAL E ARTÍSTICO CONTEMPORANEO: TRANSFORMAR REALIDADES ATRAVÉS DA ARTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A AÇÃO DO MOVIMENTO INTERCULTURAL IDENTIDADES. Madalena Zaccara, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. RESUMO: A arte pode ser um dos canais de promoção de uma utopia para novos tempos: o da sociedade do espetáculo. É trabalhando um intervalo micropolítico, que o movimento intercultural IDENTIDADES, nascido em Porto, Portugal, se manifesta em relação à possibilidade da concretização da utopia ao longo de sua história, que ora contabiliza dezessete anos de atividades. Atuando em comunidades situadas em três espaços geograficamente distintos, de colonização lusa, ele interage em comunidades situadas em Moçambique e Cabo Verde, na África e em Conceição das Crioulas, Pernambuco, Brasil promovendo uma relação de trocas que constitui o seu fazer artístico. Palavras Chave: arte; interação; utopia; movimento intercultural IDENTIDADES. THE UTOPIA IN CONTEMPORARY ARTISTIC AND SOCIAL SPACE : TRANSFORMING REALITIES THROUGH ART : CONTIDERATIONS ON THE ACTION OF INTERCULTURAL MOVEMENT « IDENTITITIES ». ABSTRACT Art can be one of promoting a vision for new times channels: the society of the spectacle. It is working one micropolitical range, the intercultural movement IDENTITIES, born in Porto, Portugal, manifests itself in relation to the possibility of utopia throughout its history, which now accounts for seventeen years activities. Working in communities located in three geographically distinct areas of colonization lusa it interacts in communities in Mozambique and Cape Verde in Africa and Conception of Creole, Pernambuco, Brazil fostering a relationship of burrows is your art making. Key words: art; interaction; utopia; intercultural movement IDENTITIES. 1 Sobre o espaço social contemporâneo. La consommation, comme noveau mythe tribal,est devenu la morale de notre monde actuel 1 A origem histórica da sociedade ocidental cujo objetivo é consumir cada vez mais aponta para algum momento entre 1820 e 1840 com o surgimento da revolução industrial. No século XIX, já encontramos uma sociedade de consumo 1 . J.P. Mayer in Baudrillard Jean. La société de consommation. Paris : Editions Denoel,1 970, Avant – propos estabelecida “com tipos de consumidores claramente diferenciados e novas modalidades de comercialização e técnicas de marketing” (BARBOSA, Lívia, 2004, p.27), bem como uma publicidade que atiçava, já desde então, o desejo dos consumidores “fornecendo um mundo de sonhos e impondo uma nova tecnologia do olhar” . A cultura do consumo, que encontra cada vez mais eco na contemporaneidade, segundo Don Slater (apud BARBOSA, Lívia, 2004, p.32), está vinculada a uma sociedade de mercado na qual as “práticas sociais, valores culturais, ideias, aspirações e identidades são definidas e orientadas em relação ao consumo” o que significa que vivemos em uma sociedade materialista e pecuniária na qual “o valor social das pessoas é aferido pelo que elas têm e não pelo que elas são”. Trata-se de uma cultura com características universais, uma vez que teoricamente todos teriam acesso aos seus produtos e impessoais dado que as mercadorias são produzidas para um mercado de massas e não para indivíduos. Estes, os indivíduos, fazem parte de um todo insaciável e uniformizador no que diz respeito à ação de consumir uma vez que o sistema capitalista os quer assim para sua própria sobrevivência. Travail, loisir, nature, culture,tout cela,jadis dispersé et générateur d’angoisses et de complexité dans la vie réelle,dans nos villes « anachiques et archaiques », toutes ces activités déchirées et plus ou moins irreductibles les unes aux autres-tout cela enfin mixé,malaxé, climatisé, homogénéisé dans le même travelling d’un shopping perpetuel,tout cela enfin asexué dans la même ambiance hermaphrodite de la mode.(BAUDRILLARD, Jean,1970,p 25)2 Ainda de acordo com Jean Baudrillard (1970, p. 18) somos submetidos ao « spetacle permanent de la célébration de l ‘objet dans la publicité et de centaines de messages journaliers vênus des mass media » 3 . Uma necessidade de sobrevivência do capitalismo que faz com que ele “eduque” as pessoas para consumir criando mecanismos de sedução e manipulação cada vez mais aperfeiçoados eficientes. Objetos e mercadorias são usados como signos culturais para produzirem efeitos identificadores e expressivos em determinado contexto onde o tempo deixa de ser o referencial para dar lugar à moda, fenômeno do mundo ocidental moderno, que age como um dos principais propulsores do consumo, o mecanismo que rejeita o poder da tradição e do tempo em função do presente social: do aqui e agora da sociedade do espetáculo. A moda que, segundo Guy Debord: se présente à la fois comme la société même, comme une partie de la société, et comme instument d’unification. En tant que partie de la société ,il est expressément le secteur qui concentre tout regard et tout conscience » 4. (DEBORD, Guy, 1992, p.16) 2 Trabalho, lazer, natureza, cultura, tudo isto antes disperso gerando angústia e complexidade na vida real, nas nossas cidades “anárquicas e arcaicas”, todas estas atividades esparsas e mais ou menos irredutíveis umas das outras- tudo isso enfim misturado, amassado, climatizado, homogeneizado na mesma viagem em um shopping perpétuo, tudo isso enfim assexuado no mesmo clima hermafrodita da moda(tradução do autor) 3 Espetáculo permanente da celebração do objeto na publicidade e de centenas de mensagens cotidianas vindas da mass media. (tradução do autor). 4 Apresenta-se a cada vez como a sociedade em sua totalidade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ela é expressamente o setor que concentra todo olhar e toda consciência. Vive-se sob a ditadura de uma mídia que condiciona o comportamento com o objetivo de promover produtos. Através dela se processa toda uma transformação de modos de vida, gostos e comportamentos. Trata-se de uma máquina de uniformização capaz de produzir uma "felicidade conformista", materialista e mercantil. Esta capacidade midiática de criar, em grande escala, segundo Lipovetsky (2004) gera fenômenos comportamentais e de emoções similares. Neste contexto a identidade deixa de fazer sentido bem como aqueles que estão excluídos do consumo como quase religião, e as alternativas quase utópicas. A utopia, entretanto, admite vários sentidos através do tempo. Inclusive aquele em que ela pode se constituir na possibilidade de construção de uma nova realidade. Neste sentido, a arte parece ser um dos canais de promovê-la. É sob este prisma que enfocamos a atuação do movimento intercultural IDENTIDADES. 2 A utopia como possibilidade de transformação. Soyons réalistes; éxigeons l'impossible 5 Mesmo existindo uma literatura sobre a utopia na Antiguidade, o termo aparece somente no inicio do século o XV, inventado por Thomas More, e pode significar « um não lugar » ou um “lugar de felicidade”. No século XVI a utopia se constitui em um gênero literário nos descrevendo um lugar sem identificação. Um mundo imaginário. Nestes relatos, a inacessibilidade da felicidade é uma constante. Entretanto, já nos textos sobre a utopia do século XVIII começa-se a ter uma função crítica e, desde o fim deste século e ao longo do XIX ela, a utopia, deixa gradativamente de ser um relato e se transforma um discurso que se constitui num suporte teórico para um projeto concreto. O texto sobre a utopia não é mais uma fábula, ele corresponde a uma vontade de fazer a história. O mundo em um processo transformação cada vez mais rápido vai mudar o conceito de utopia. Muita coisa aconteceu na modernidade do século XX, inclusive a fé e o desencantamento em relação a ela. A utopia contemporânea, entretanto, não só se apoia sobre um discurso, mas é animada pela vontade de transformar o mundo a partir de uma analise crítica da realidade. Ela não pode acontecer, sem a ambição de uma coletividade, de um grupo, de um objetivo concreto cada vez mais centrado na realidade. Seu conceito se transforma e se amplia transformando-se em um meio de ação destinado a sensibilizar para outras formas de interação social. Em seu novo sentido, a utopia é um desafio para a necessidade humana de esperança. Seguindo a linha de reflexão de Ernst Bloch (2005) a utopia não é algo fantasioso, ela possui uma base real visando uma reestruturação, procurando mudanças, objetivando uma nova sociedade. Ela seria viável à medida que puder ser realizada coletivamente. Revolucionária sim, mas quando posta em prática a partir de uma consciência da possibilidade de um mundo melhor. 3 A arte como possibilidade de concretização de uma utopia Além, onde as fronteiras terminam e os caminhos se apagam. 6 5 (sejamos realistas; exijamos o impossível) slogan da juventude francesa de maio de 1968. Citado por Agenor Brighenti in Esperança e Utopia. Estatuto epistemológico e formas de relação in http://ordosocialis.de/pdf/Brighenti/Esperanca%20e%20Utopia.pdf. Consultado em 3 de junho de 2014. Uma (re) conceitualização da noção de utopia, despida de toda a carga negativa que lhe foi sendo incorporada se faz necessária bem como uma adaptação a um presente que necessita de ser repensado em termos de desejo de mudança. A partir disso, de sua clarificação contemporânea surge por ela um interesse novo. Afinal como nos recorda Zygmunt Bauman (2000, p.15)“para tornar ainda mais complexas as agruras atuais e as perspectivas de soluciona-las, vivemos também uma época de privatização da utopia e dos modelos do bem”. A arte contemporânea traz uma relação nova entre ela e o mundo. A realidade transforma-se em um objetivo de investigação. Em se falando sob o ponto e vista de uma perspectiva histórica estas interrogações não são específicas da contemporaneidade. O realismo de Gustave Courbet, enquanto práxis artística, já questionava sobre arte e realidade. Outros criadores e pensadores também se debruçaram sobre o engajamento da arte com a realidade, entre eles Champfleury (apud ARDENNE, Paul, 2002, p.22) para quem a arte deve trabalhar para uma reconciliação entre os homens e a sociedade, o que seria seu objetivo supremo. Outros teóricos mais contemporâneos insistem nessa relação arte e sociedade que traz em seu bojo uma concepção micropolítica do social. Para Nicolas Bourriaud (2009, p. 31) “A arte visa conferir forma e peso aos mais invisíveis processos” e “ao tentar romper a lógica do espetáculo, restitui-nos o mundo como experiência a ser vivida”. Ela, a arte, seria, portanto, uma forma de mudar uma realidade social baseada no espetáculo e no poder neoliberal que, nas palavras de Guy Debord (1992, p 26) seria “l’auto-portrait du pouvoir à l’époque de sa gestion totalitaire des conditions d’exitence”.7Ela, a arte, poderia interferir nesse processo a partir da sua possibilidade de sensibilização sendo também uma utopia contemporânea enquanto veículo de transformação e educação. Jacques Rancière (2005, p. 26) nos diz que é a partir “do recorte sensível do comum, da comunidade, das formas de sua visibilidade e de sua disposição, que se coloca a questão da relação estética/politica” e só “a partir dai pode-se pensar as intervenções políticas dos artistas”. A arte poderia, portanto, agir nas fissuras do real e ainda manter relações com a utopia pela esperança que ela constrói. Paul Ardenne (2002, p.39) que denomina de “arte contextual” esta relação artista & sociedade citando Richard Martel, o teórico e artista canadense que se encontra a frente do Le Lieu em Quebec, nos lembra através das palavras de Martel que “ l’art contextuel suppose la matérialisation d’ une intention d’artiste dans un contexte particulier”. 8 Para Ardenne (2002,p. 41) “la première raison de l’art coxtextuel relève d’un désir social:intensifier la présence de l’artiste à la réalité collective.” 9 Jose Carlos de Paiva (2011, p.29), considera que a arte “se constrói como lugar reflexivo e contaminador”. As práticas artísticas seriam, portanto, uma possibilidade de interferir na realidade ou, pelo menos, tornar tal fato uma utopia menos distante. Através de ações micropolíticas possibilitadas pela arte poder-se-ia tentar mudar a dinâmica do mainstream. 6 Octavio Paz. Sonho de Penas. In Revista de Poesia e Arte Contemporânea in inhttp://www.mallarmargens.com/2012/10/viii-poemas-de-octavio-paz-escolhidos-e.html. Consultado em 3 de junho de 2014. 7 O autorretrato do poder na época de sua gestão totalitária das condições de existência. (Tradução do autor 8 A arte contextual supõe a materialização de uma intenção do artista em um contexto particular. (tradução do autor). 9 A primeira meta da arte contextual revela um desejo social: intensificar a preferencia do artista pela realidade coletiva.(tradução do autor Esse envolvimento arte/politica, hoje, corresponde à iniciativa de alguns artistas que mergulham no campo ampliado da criatividade humana onde o caráter político é relacionado ao fato de uma interação do trabalho artístico com a vida. O trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassou a antiga produção de objetos destinados a serem vistos. Sim, porque a fusão entre arte e vida, caracterizada por Jacques Rancière (2005) como “partilha do sensível” não levou em conta a produção de objetos nem tampouco a modificação da vida pela beleza do gesto estético. Essa partilha seria antesa adoção de novos modos de vida, de engajamento social e consequentemente, de uma nova práxis artística. As intervençõesda arte na vida teriam, portanto, por finalidade, segundo Hans Obrist (2006, p.17) construir “espaços e relações visando a (re) configuração material e simbólica de um território comum”. Elas corrigiriam as falhas nos vínculos sociais ao redefinirem as “referências de um mundo comum e suas atitudes comunitárias” (RANCIÈRE, 2005, p.30). Uma estética que se pauta em função das relações inter-humanas que elas figuram, produzem ou criam. O mundo da arte e da vida está, portanto, cada vez mais fundido e a estética, como ciência do sensível, está em consonância com esse novo olhar. Ao artista relacional caberia assimevidenciar práticas e “modos de discursos”, que seriam novas “formas de vida”, formasestas que operariam comoresistênciaem relação àsociedadedoespetáculo(RANCIÈRE, 2005, p.50), esse espetáculo que é “l l’autre face de l’argent” 10 segundo Debord (1992, p. 44). Seuobjetivo seria criar condições de possibilidade para que experiências comunitárias seconcretizassem. 3 A utopia no espaço artístico e social segundo o Movimento Intercultural IDENTIDADES. Oh, oh, oh, et je rêve.Que Soudan, mon pays, soudain, se soulève.. Oh, oh,rêver, c'est déjà ça, c'est déjà ça 11 A história da relação entre arte e política é ponto crucial desde os seus primórdios. A arte sempre foi política se pensarmos, por exemplo, em seus comprometimentos com religião ou propaganda dos muitos Estados aos quais ela se atrelou. Hoje esse envolvimento com a politica corresponde a iniciativa de artistas que mergulham no campo ampliado da criatividade humana onde o caráter político é relacionado ao fato de uma integração do trabalho artístico com a vida. O trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassou a antiga produção de objetos destinados a serem vistos. Nas palavras de Jacques Rancière (2010:108): “a ação artística identifica-se então com a produção de subversões pontuais e simbólicas do sistema” A arte arrasta sempre a magia na sua sombra, o encanto do enigmático, a inquietação das mentes insubmissas, a incompletude do estabelecido, a procura da transcendência, a vontade de superação do conseguido. Em si isso se constitui em um alento nesse mundo de pouca esperança. O artista pode abrir caminhos, resistindo e isolando-se do ruído circundante do grande espetáculo que é promovido 10 11 A outra face do dinheiro (tradução do autor) Alain Souchoun. C’est déjà ça. Letra de música. para lhe retirar essa capacidade de gerar propostas e ressonâncias. E esta é a nossa esperança. A de uma nova utopia uma vez que segundo Jean Baudrillard: Todas as utopias de los siglos XIX y XX al realizarse expulsaron a la realidade de la realidade y nos dejaron em uma hiperrealidad vaciada de sentido, puesto que toda perspectiva final quedo como absorbida, digerida , y no dejó outro resíduo que uma superfície carente de profundidad (BAUDRILLARD Jean,2007,p 29)12 É trabalhando em um intervalo micropolítico, que o movimento intercultural IDENTIDADES, nascido em Porto, Portugal, se manifesta. Trata-se de um movimento artístico, atuante desde os anos 90, mais precisamente concebido em 1996, que participa dos conflitos da era pós-colonial tendo como objetivo as relações culturais diretas em vários espaços geográficos do planeta de histórico colonial português. Ao longo de sua história, que ora contabiliza dezessete anos de atividades, ele, o movimento, tem por intenção, nas palavras de um de seus fundadores Jose Carlos de Paiva e Silva (2009, p. 57): “promover este movimento intercultural enquanto espaço de partilhas múltiplas que possibilitasse a cada um dos seus membros (em si) absorver as experiências vividas e entender os acontecimentos”. Para ele (2009, p. 57) “trata-se de dirigir os esforços colectivos de modo a que cada um dos intervenientes possa incorporar o vivido no seu repertório cultural e saborear uma maior consciência de si próprio perante um universo de conhecimento alargado a culturas que lhe são distantes”. Atuando em comunidades situadas em três espaços geograficamente distintos e com características especificas, ele, o movimento, mobiliza artistas, professores e estudantes de arte que, fora do seu espaço de conforto buscam, através da reflexão partilhada, interagir nestes três espaços sociais. A partir de Porto, como já foi dito anteriormente, ele se relaciona com Moçambique, Cabo Verde e Conceição das Crioulas, comunidade quilombola no Nordeste do Brasil. O movimento intercultural IDENTIDADES é constituído por indivíduos que se congregam em um grupo não homogéneo tanto no que diz respeito a objetivos pessoais ou no que diz respeito à forma de criação e expressão. Eles têm em comum o interesse pelo resgate de um perfil de identidade cultural fragmentado, destruído ou em processo de destruição, procurando um sentido para a ação artística estabelecendo vínculos relacionais adequados aos interesses das comunidades em que atuam. É nesse terreno intercultural “onde a história confere posturas próprias e um tempo particular perante o contemporâneo” , segundo José Carlos Paiva (2009,p. 58), que os membros do grupo se assumem enquanto artistas e enquanto cidadãos. “A arte devia preparar ou anunciar um mundo futuro” afirma Bourriaud (2009, P. 18). É neste futuro que se inserem as propostas e esperanças do movimento. Para seus membros pode – se abrigar um sonho para além das servidões e uma promessa de reconciliação com o humano em sua expressão maior. As ações artísticas de grupos como o movimento intercultural IDENTIDADES procuram, portanto, construir e realizar modelos de ação dentro da realidade existente que tenham como objetivo maior fazer a diferença. 12 Todas as utopias dos séculos XIX e XX ao realizar-se expulsaram a realidade da realidade e nos deixaram em uma hiper-realidade vazia de sentido, uma vez que toda perspectiva final acabam absorvidas, digeridas e não deixam qualquer resíduo a não ser uma superfície carente de profundidade (tradição do autor) Em Moçambique o movimento intercultural IDENTIDADES encontra seu foco de interesse em um espaço onde: “o caos, a quantidade impressionante de moradores nas periferias desurbanizadas da cidade, a implantação urbana caótica, fruto do modo espontâneo como se ergueu, o trânsito, o ruído, o calor e a humidade, antecipam a entrada na cidade do cimento, onde o luxo colonial da elite branca, as avenidas guarnecidas de jacarandás lilases e de acácias rubras, foi ocupado pela população nativa que a vive do modo como quer e pode.” (Paiva, Jose Carlos, 2009, p. 90) Em Março de 1997, desembarca em Maputo o primeiro grupo que iniciou as ações do movimento. Chegou carregado de equipamentos e expectativas em relação ao estabelecimento de interações entre artistas lusos e moçambicanos. O mergulho na cultura do país marcou esse inicio relacional. Oficinas diversas de múltiplas formas de expressão artística localizadas na ENAV estabeleceram o espaço físico para as primeiras partilhas. Viagens, pelo interior de Moçambique, contribuíram para dimensionar melhor a força de sua cultura bem mais diluída em sua capital. De acordo com Paiva: “a partir de então (1997) o IDENTIDADES alojou a sua base de trabalho em Moçambique na ENAV, escola que passou a integrar o movimento. Gradualmente estabeleceram-se entre os protagonistas elevados níveis de confiança e uma sólida amizade que soldou a presença, particularmente de alguns docentes da FBAUP, no quotidiano da ENAV.” (Paiva, Jose Carlos, 2009,p. 83).Essa interação gerou oficinas, publicações (fig 1) entre outras ações. Fig 1.Imagem Passa Palavra. Editora Gesto do Movimento Intercultural Identidades Foi a partir da escola, portanto, da ENAV, que se estabeleceram as ações do movimento que investe nos diálogos proporcionados pelo intercambio artístico e nas relações culturais caracterizadas pelas trocas. Esses momentos relacionais aconteceram e acontecem desde 1997 tanto em Moçambique quanto em Portugal. Cabo Verde, arquipélago no qual suas ilhas serviram como ponto de escala para os navios portugueses e para o tráfego e comércio de escravos, que começava a crescer por essa época. Abolido o tráfico, em 1876, findou-se em paralelo, o interesse para o país que só voltou a ter importância a partir da segunda metade do século XX. Sua insularidade e suas estiagens fizeram do arquipélago uma terra de fome onde sobreviver era – e ainda o grande desafio. Ao longo de sua historia pouco foi feito para transformar essa situação, sendo do interesse colonial aproveitar apenas suas condições geoestratégicas, no quadro da expansão económica e política da Europa colonial. A grande exploração escravocrata e mercantil dos primeiros séculos, com a depressão comercial do século XVII que causa entre outros fatores a decadência das grandes lavouras de Santiago, cedeu lugar a pequena exploração baseada no recurso da mão de obra familiar. Cabo Verde, pelas suas singularidades geográficas e antropológicas, traz em si um espaço de laboratório ideal para o exercício das confrontações culturais que atraem, na contemporaneidade, artistas que se interessam e trabalham com relações interculturais. Em Outubro de 1996, o movimento intercultural IDENTIDADES partiu para Mindelo, que juntamente com a capital, Praia, são as duas maiores cidades do país. Um grupo de estudantes e quatro docentes da FBAUP do Porto juntamente com outro grupo de alunos e dois docentes da ENAV, de Moçambique juntos voltaram-se para a troca de conhecimentos através de um conjunto de oficinas artísticas de cerâmica, serigrafia, xilogravura, desenho, artes digitais, vídeo, fotografia, batick e pedra. A partir de então essas trocas permanecem. Professores e alunos de Cabo Verde se envolvem nas atividades do movimento IDENTIDADES em Porto e viceversa. Como exemplo, um relato do coordenador do movimento Jose Carlos de Paiva das atividades do grupo em Cabo Verde: “diariamente um grupo desloca-se à aldeia piscatória de S. Pedro para realizar exercícios de desenho e, nesse pretexto, aproximar-se da população envolvendo-a numa acção de intervenção sobre as suas próprias casas. A proposta consiste em cativar a comunidade para que sejam pintadas as casas (autoconstruídas e nunca finalizadas, apresentam um ar descuidado e não aconselhável do ponto de vista de saúde pública). A Câmara Municipal fornece os materiais e as tintas. Como acção exemplar todo o grupo IDENTIDADES se desloca num dia de Sábado para a aldeia a fim de pintar a escola primária. É um dia de festa, de trabalho, de contacto com a população, de aproximação às suas problemáticas sociais e políticas.” (Paiva, Jose Carlos, 2009, p. 117). De acordo com o site oficial do município de Salgueiro, Pernambuco, Nordeste do Brasil, ao qual pertence à comunidade Conceição das Crioulas II sua gênese, divulgada através da tradição oral, seria, segundo os moradores mais velhos, a ação de seis negras escravas que no inicio do século XIX, conquistaram a liberdade, chegaram à região e arrendaram uma área de aproximadamente três léguas. Com a produção e fiação do algodão que vendiam na cidade de Flores, conseguiram pagar a renda e ganharam o direito à posse das terras. Esta comunidade quilombola III faz parte das já reconhecidas pelo Estado Brasileiro por meio de “certificação feita pela Fundação Cultural Palmares (FCP) (certificação do autorreconhecimento) e da abertura de processo de regularização dos territórios quilombolas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)” (Silva; Gilvania Maria da, 2012, p. 28).Formadas a partir da reação à escravidão, essas comunidades constituíram-se em grupos de resistência negra espalhadas em quase todo o território nacional. O movimento IDENTIDADES descobriu nesse cenário sertanejo brasileiro um espaço de investigação e a possibilidade de “poder partilhar com uma abnegada população a construção do seu destino.” (Paiva; Jose Carlos de, 2009, p.141). Em 2003 estabeleceu-se o início de um relacionamento intercultural que permanece até hoje. (fig.2) Neste exato momento, janeiro de 2014, Elisabete Mônica Moreira Faria, doutoranda em Educação Artística pela Universidade de Porto, membro do movimento IDENTIDADES desde 2000, desenvolve sua pesquisa na comunidade Conceição das Crioulas. Sobre essa experiência ela assim se manifesta: “na educação artística a comunidade entendeu deve integrar as diversas áreas da expressão no seu currículo, num processo de cruzamento intercultural com o IDENTIDADES. Neste contexto o projecto ‘expressões artísticas nas escolas da comunidade’ visa elaborar uma discussão construtiva e participada de um Currículo nas Artes. No encontro, apresentaremos este projecto provocando uma reflexão que desenvolva e dimensione a sua análise e favoreça o seu sucesso no desenvolvimento das crianças e dos jovens e de um futuro melhor para a comunidade.” 13 Fig. 2. Jose Carlos de Paiva. Foto. Sessão de apresentação do primeiro vídeo produzido pelo Crioulas Vídeo na comunidade de Conceição das Crioulas,Pernambuco.Brasil. A imagem acima sintetiza as palavras do líder do Movimento Intercultural IDENTIDADES, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Porto, Portugal: Há uns anos já que o Movimento Intercultural Identidades percebeu que para manter vivo o desejo de manter a arte próxima da vida precisaria de procurar quem ainda pudesse sentir essa proximidade ou esse desejo, e que tal procura teria de se efectuar, por certo também fora da Europa, ou mesmo fora do mundo ocidental. Outros 13 Entrevista on line concedida a autora. Dezembro de 2013. lugares, outras culturas, outras artes, outras vidas. (PAIVA, José, 2011, p.5) Através de uma ação que pode ser localizada em seus projetos executados ou em execução tais como em Maputo, Moçambique, o Maputo, periferias urbanas, no qual o movimento se desloca para diversos Bairros da periferia urbana da cidade de Maputo. Em Cabo Verde temos o Lagedos. Santo Antão_ CV, juntamente com o Atelier Mar .Nesta comunidade rural, que se dedica essencialmente à agricultura de subsistência o IDENTIDADES se relaciona com vários sub- projetos que envolvem Educação – Escola Comunitária de Lajedos, Artesanato e Materiais e Tecnologias de Construção Civil . Finalmente, em Conceição das Crioulas ele desenvolve o Crioula’s Video além de interferir diretamente na comunidade quilombola através de processos que envolvem a educação de base. Desta forma, o movimento continua depois de mais de 15 anos de ação, com sua proposta de uma “construção de uma memória partilhável, de relacionamentos íntimos com comunidades, artistas, estudantes e professores de arte” (PAIVA, José , 201 ,p 29) De acordo com Rita Rainho (2011,p 40) , um dos membros do Movimento Intercultural IDENTIDADES, professora da Escola Internacional de Artes em Cabo Verde “Este dialogo promove um pensamento crítico, mais plural, politico (...). Capaz de um entendimento mais amplo no confronto intercultural”). Desta forma “o terreno da arte parece aqui ganhar sentido de existência” 4 Depois de analisar os fatos... Comme la societé du Moyen Age s’ équilibrait sur Dieu et sur le Diable, ainsi la notre s’ equilibre sur la consommation et sur sa dénonciation 14 A proposta de uma descolonização mental pode relativizar condicionamentos a partir de uma visão mais generosa, mais sensata e mais ética de mundo. A liberdade conceitual, imaginativa e perceptiva das práticas artísticas ditas utópicas que envolvem a política pode abrigar um sonho para além das servidões e uma promessa de reconciliação com o humano em sua expressão maior. A arte, devemos lembrar, pode ser o último reservatório do imaginário a escapar de ser incorporada/apropriada pelo sistema que hoje serve ao capitalismo neoliberal. A arte relacional ou contextual a qual se propõe o movimento analisado transforma o artista em participante da história imediata. Esse engajamento dessa forma de criar artístico com a realidade não visa o sublime ou o transcendente. O artista realista Courbet não queria pintar anjos justificando que não os podia executar por não tê-los nunca visto. A arte relacional também não se atém ao que não pode viver. Sua proposta se volta para a possibilidade de transformação do social e nele se encontra seus instrumentos. Citando Ardenne via Un art contextuel : L’art contextual (..) fait la preuve que l’activisme artistique peut valoir comme une politique,c’est –à-dire,à s’en tenir á étymologie du terme comme une des formes possibles « du gouvernement de la realité ». 14 (Da mesma forma que a sociedade da Idade Média se fundou sobre deus e o Diabo, a nossa se funda sobre consumo e sua denuncia) in Jean Baudrillard. La societé de consummation. Paris: Editions Denoel,1970.p.316 (ARDENNE, Paul, 2002,p. 236)15 O movimento IDENTIDADES significa ação para além das teorizações. Ao tomar comunidades e suas relações interculturais como campo do fazer artístico que visa a desconstrução da subalternidade e o fortalecimento de sua identidade, o coletivo pretende encontrar outras modulações para as oposições entre periferia e centro, atrasado e desenvolvido, subalterno e dominante, popular e acadêmico, a partir de relações de reciprocidade e de dialogo. Nas palavras do coordenador do grupo José Carlos de Paiva (2011, p. 60) o que diferencia a ação do coletivo da política social é que «a ação artística não prepara nenhum amanhã, lida com o que habita em cada um, amplia a capacidade de admiração, de atenção, de reflexão”. A denúncia e a ação caminham, portanto, juntas. Sua proposta encontra-se para além das múltiplas grades com as quais o capital burocratiza e regula a arte incidindo em sua produção. Afinal, a arte, oferece uma alternativa para o desencanto. Trabalhando em um intervalo micro politico, o movimento interage com as comunidades nas quais atua e mobiliza trabalhando o conceito de utopia no sentido de torna-la possível. 5. Referências. ARDENNE, Paul. Un art contextuel.Paris,Flammarion.2002. BARBOSA, Lívia. Sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 68 p. BAUDRILLARD, Jean. La societé de consummation. Paris: Editions Denoel, 1970. ...........................El Complot del Arte. Buenos Aires: Amorrortu, 2007. BAUMAN, Zygmunt . Em busca da politica. Rio de Janeiro: Zahar Editora. 2000 BLOCH. E. O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. BORRIAUD, Nicolas. 2009. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes. DEBORDE, Guy. La société du Spectacle.Paris : Gallimard.1992. LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultural liberal: ética, mídia e empresa. Porto Alegre, Sulina. 2004. OBRIST, H.U. Arteagora: em5entrevistas.SãoPaulo:Alameda,2006. PAIVA, José Carlos de. Investigar a partir da ação intercultural. Porto: Gesto Cooperativo Cultural, CRL, 2011. .................. ARTE/desenvolvimento. Tese de doutoramento defendida junto a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto sob orientação do Professor Pintor Máro Bismarck. Porto. 2009. RAINHO, Rita. Arte: outra introdução politica para o desenvolvimento in Paiva Jose Carlos de; Martins Catarina s, org. Investigar a partir da ação intercultural: ID –CAI –Coletivo de Ação e Investigação. Porto: Gesto, 2011. ..................... Paiva Jose Carlos de; Martins Catarina s, org. Investigar a partir da ação intercultural: ID –CAI –Coletivo de Ação e Investigação. Porto: Gesto, 2011 RANCIERE Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. 15 A arte contextual prova que o ativismo artístico pode valer como politica, ou seja, para ater –se á etimologia do termo como uma das possíveis formas de "governo da realidade." (tradução do autor) ...................................O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. SILVA, Gilvania Maria da. Educação como processo de luta politica. A experiência de ‘Educação diferenciada’ do território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e Gestão da Educação. 2012. ZACCARA, Madalena. Identidade e Utopia: um discurso para os novos tempos in IV Congresso Internacional em estudos Culturais. Colonialismo, poscolonialismo, lusofonias, 2014.in http://www.estudosculturais.com/congressos/ocs2.3.5/index.php/ivcongresso/index/search/authors/view? firstName=Madalena&middleName=Pequeno&lastName=Zaccara&affiliation. ................................... ZACCARA, Madalena. Sobre Política e Identidade: vestígios do corpo como símbolo de resistência na arte contemporânea em eixos não hegemônicos in anais do XXII CONFAEB Arte/Educação: Corpos em Trânsito. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2012. Madalena Zaccara Doutora em História da Arte pela Université Toulouse II, França, professora associada do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE, membro do corpo docente do PPGAV - UFPE-UFPB, líder do grupo de pesquisa Arte, Cultura e Memória, autora de artigos, livros e capítulos de livros. Atualmente se encontra em Porto, Portugal em um estágio Sênior Pós-doutoral como bolsista da CAPES. http://lattes.cnpq.br/1876676115790550