DOSSIÊ
Psicologia & Sociedade, 29, e171283
IDENTIDADE: COLONIZAÇÃO DO MUNDO DA VIDA E OS DESAFIOS
PARA A EMANCIPAÇÃO
IDENTIDAD: COLONIZAZIÓN DEL MUNDO DE LA VIDA Y LOS DESAFÍOS A
LA EMANCIPACIÓN
IDENTITY: COLONIZATION OF THE LIFEWORLD AND THE CHALLENGES
FOR THE EMANCIPATION
http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29171283
Nadir Lara Junior e Andrea Paula Santos Lara
Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é fazer uma apresentação teórica do conceito de identidade na obra de Antonio da
Costa Ciampa e, em seguida, demonstrar como a colonização do mundo da vida causa entraves para que ocorra
o sintagma (identidade-metamorfose-emancipação). Para tanto, partiremos de uma breve contextualização de
como essa obra se inicia no Brasil, depois uma apresentação da conceituação de identidade e, por fim, um
debate contemporâneo sobre o mundo da vida e sua colonização, processo no qual as dificuldades criadas podem
constituir identidades fetichizadas.
Palavras-chave: mesmice; mesmidade; inclusão perversa; psicologia social.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es hacer una presentación teórica del concepto de Identidad en la obra de Antonio
da Costa Ciampa y demonstrar como la colonización del mundo de la vida causa obstáculos en el sintagma
“Identidad-metamorfosis-emancipación” Para ello, partiremos de un breve contexto de cómo la obra se inició
en Brasil, después de una presentación de la concepción de la Identidad y por último, un debate contemporáneo
sobre el Mundo de la Vida y su colonización y por su vez, las dificultades creadas que en ese proceso pueden
constituir identidades fetichizadas.
Palabras-clave: mesmice; mesmidad; inclusión perversa; psícologia social.
AbSTRACT
The aim of this article is to make a theoretical presentation of the concept of identity in the work by Antonio da
Costa Ciampa and then to demonstrate as the colonization of the worldlife cause hamper so that there takes place
the sintagma (identity metamorphosis-emancipation). For so much, we will leave from a brief contextualization
of as this work begins in Brazil, then a presentation of the conceptualization of the identity and for end a
contemporary discussion on the worldlife, and its colonization, in which the dificulties create in this process can
constitute identities fetishised.
Keywords: sameness; «mesmidade»; perverse inclusion; social psychology.
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Junior, N. L. & Lara, A. P. S. (2017). Identidade: colonização do mundo da vida e os desafios para a emancipação
Introdução
Contextualização da obra de Ciampa
Refletir sobre a proposta de Antonio da Costa
Ciampa é estar diante de um trabalho inédito,
importante e que merece nosso reconhecimento,
pois contribui sobremaneira para o estudo sobre
a identidade, dialogando com a Psicologia Social
brasileira e a realidade de nosso país. Interessante notar
que a perspectiva de identidade como metamorfose e
depois acrescentando a ideia de emancipação, Ciampa
abre um pressuposto importante para dizer que a pessoa
em sua história de vida, mesmo diante da pobreza e
da violência, não se rende ou se entrega facilmente às
adversidades.
Dessa forma, destacamos que no livro Novas
veredas da Psicologia Social, organizado por Silva
Lane e Bader Sawaia (2006), há diversos relatos dos/
das pioneiros/as da Psicologia Social no Brasil. Esses
relatos remontam às experiências de psicólogos(as) das
décadas de 1970 e 1980 e início de 1990. Nessa obra,
podemos perceber como estava sendo produzida uma
psicologia fora da clínica tradicional e dos moldes da
psicologia positivista. Gestava-se ali uma psicologia
social latino-americana e brasileira.
Por isso, o objetivo deste artigo é fazer uma
apresentação teórica do conceito de identidade na
obra de Antonio da Costa Ciampa e depois demonstrar
como a colonização do mundo da vida causa entraves
para que ocorra o sintagma (identidade-metamorfoseemancipação). Para tanto, partiremos de uma breve
contextualização de como essa obra inicia no Brasil,
em uma realidade social marcada por muita pobreza e
violência, que se acentua com a ditadura militar (1964
-1985). Nesse período, também os psicólogos sociais
brasileiros e latino-americanos buscavam desenvolver
uma perspectiva psicológica crítica e comprometida
politicamente com a emancipação do país e das
pessoas.
Em seguida, apresentaremos o modo como
a sociabilidade e o reconhecimento se articulam à
proposta de identidade de Ciampa. Veremos nessa parte
que mesmice, mesmidade, identidade fetichizada e
reconhecimento perverso são perspectivas decorrentes
dessa articulação, nos dando assim alguns referentes
das principais bases teóricas do conceito de identidade
elaborado por Antonio da Costa Ciampa.
Na terceira parte, trataremos do tema “políticas de
identidade e identidades políticas e reconhecimento”.
Veremos que as teorias de Axel Honneth e Erving
Goffmann, assim como a de Ciampa, tomam como
base comum ideias de George Herbert Mead e, assim,
estigma, políticas de identidade e reconhecimento
se articulam na proposta de identidade lançada por
Ciampa.
Por fim, propomos um debate contemporâneo
sobre a constituição da identidade numa sociedade
marcada pelo conflito entre o mundo da vida e o
sistema. A predominância do sistema, segundo
Habermas, provoca a colonização do mundo da vida,
provocando nas pessoas sérias dificuldades para
acessá-lo e, na perspectiva de Ciampa, lançando o
sujeito para a mesmice.
2
A partir dos 80 instaurou-se um debate importante
nas Ciências Sociais e na Psicologia Social a respeito
dos grupos organizados politicamente. Interessante
perceber na obra organizada por Lane e Sawaia
(2006) que os relatos dos autores trazem como ponto
comum, que unia todas as experiências dos psicólogos
brasileiros nas mais diversas realidades, o trabalho
realizado nos grupos e comunidades. Dessa forma,
a práxis do psicólogo social estava intrinsecamente
ligado aos processos grupais.
Nesse contexto, o debate se centrava na dimensão
da organização comunitária (Lane & Sawaia, 2006), a
análise dos processos grupais em grupos populares,
depois movimentos populares e, por fim, se consagra a
nomenclatura de movimentos sociais, especialmente na
década de 1990, na qual os movimentos populares não
estavam somente se organizando por classe social, mas
também por processos identificatórios de acordo com
demandas específicas de gênero, raça, ecologia etc.
Dessa maneira, a análise dos movimentos sociais foi se
tornando importante no cenário da Psicologia Social.
Nesse sentido, podemos perceber que a produção
de conhecimento na Psicologia Social tinha uma
predominância na análise dos processos grupais. Por
outro, em 1986, Antonio da Costa Ciampa defendeu
sua tese de doutorado na PUC-SP e já no ano seguinte,
1987, sua tese foi lançada como livro: A estória do
Severino e a História da Severina: um ensaio de
Psicologia Social.
A tese de Ciampa enfocava justamente a questão
da identidade do sujeito e não dava especial destaque
aos processos grupais como os demais trabalhos de sua
época. Essa originalidade na pesquisa de Ciampa logo
chama a atenção da comunidade acadêmica, pois com
seu referencial teórico conseguia demonstrar como o
sujeito se constituía na relação com a sociedade e sua
constituição não era simplesmente uma decorrência
de processos biológicos, como outras psicologias
apontavam. A tese de Ciampa convergia para uma
profunda relação entre sujeito e sociedade,
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O sujeito enfocado por Ciampa em seus estudos
sobre a identidade buscava formas de se emancipar da
opressão. Portanto, esse autor trazia para as perspectivas
de estudo dos processos grupais da Psicologia Social
brasileira a dimensão da individualidade de cada
pessoa diante de seus grupos (Lima, 2014).
A proposta teórica de Ciampa, obviamente, não
é individualista, ou essencialista, tampouco diz que a
pessoa se emancipa sozinha ou prescinde do coletivo.
Ao contrário, se usando da teoria de George Herbert
Mead, Erving Goffmann, Jürgen Habermas e Axel
Honneth, propõe um sujeito que se faz nas relações
sociais, na cultura, na coletividade, mas sem perder de
vista a dimensão subjetiva.
Vale destacar que essa proposta de identidade,
a partir da narrativa de história de vida, aponta para
uma concepção de pessoa que está sempre em luta por
emancipação. Portanto, sua ontologia não pressupõe
alguém estático, parado, encerrado em si mesmo, um
solipcista. Lendo a obra de Ciampa, somos convidados
a pensar não somente sobre as dificuldades e as agruras
de nossa sociedade, mas temos que olhar e valorizar
os sujeitos que, de alguma forma, buscam novas
possibilidades para suas vidas.
A linguagem poética de Ciampa demonstra uma
sensibilidade ao olhar com cuidado para a história
das pessoas, valorizando uma ética do cuidado com a
vida de cada sujeito, sendo assim esse autor se torna
fiduciário das origens da Psicologia Social brasileira,
historicamente comprometida com a vida das pessoas
mais empobrecidas e oprimidas por regimes políticos
que prezam pela exclusão social.
Sociabilidade, identidade e reconhecimento
Em sua obra A estória do Severino e a História
da Severina: Um ensaio de Psicologia Social, Antonio
da Costa Ciampa (2001) apresenta a ideia de que o
sujeito é uma representação de um momento histórico,
é parte do tempo, do lugar, da família de origem e da
vida que vive. Nessa obra, esse autor compreende de
maneira idiossincrática o ser humano, pois supõe que
a identidade se constitui como metamorfose e dessa
maneira atribui certa dinamicidade a esse conceito
demonstrando que a pessoa não pode ser reduzida aos
estereótipos que lhe são atribuídos. Com essa lógica,
Ciampa contraria as teorias vigentes até a década de
1980 que entendiam a identidade como algo estático
e/ou controlada por estímulos e reforços positivos ou
negativos.
Ciampa (2001) considera a importância das
relações sociais na sua concepção de identidade e
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afirma que ao compreendê-la se compreende a relação
do indivíduo com a sociedade. A partir da elaboração
das ideias de Ciampa acerca da identidade como
metamorfose humana, essa passou a ser entendida
como um conceito central para a Psicologia Social, que,
conforme afirma Lima (2010), “poderia ajudar a explicar
tanto como se dava a construção das desigualdades
e dos problemas sociais quanto entender como se
formavam as resistências individuais aos processos de
massificação e as buscas emancipatórias” (p. 138).
Antonio da Costa Ciampa (2001) em sua obra
A estória do Severino e a História da Severina: Um
ensaio de Psicologia Social analisa dois personagens,
um pertencente à ficção (Severino é personagem
do poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo Neto) e outro pertencente à vida real (Severina).
A partir da análise desses dois personagens, Ciampa
consegue demonstrar que na singularidade está
também a totalidade, como afirma Lane (1987, p. 10):
“Chega à identidade como metamorfose desvendando
a ideologia da não transformação do ser humano como
condição da não transformação da sociedade.”
Ciampa afirma que a forma de expressão da
identidade como metamorfose acontece por meio de
personagens que cada um “representa” socialmente;
nesse sentido “podemos dizer que as personagens são
momentos da identidade, degraus que se sucedem,
círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao
mesmo tempo, de progressão e de regressão (2001, p.
198).
Dessa forma, cada indivíduo apresenta-se
como representante de si mesmo e ator de diferentes
personagens, que se articulam e se revezam perante
os outros, e a articulação dessas personagens é a
expressão do Eu, sendo impossível que o indivíduo se
apresente em sua totalidade, pois a cada momento está
representando um personagem diferente, pertencente
aos muitos personagens que compõem sua identidade.
Nesse aspecto, Lima (2010) afirma que “a
concepção de personagem desenvolvida por Ciampa
mostra-se muito próxima da ideia meadiana de
articulação do ‘eu’ com vários ‘mim(s)’ (p. 144), em
que a relação entre o ‘eu’ e o ‘mim’ seria semelhante
ao relacionamento entre parceiros de um diálogo.
Nessa perspectiva, estamos sempre representando
a nós mesmos diante do outro e, ao contar uma história,
precisamos sempre de personagens, ou seja, somos
todos eternos personagens de nossa história e o outro
com o qual me relaciono também é um personagem,
e juntos construímos outra história, e, quando não há
mais personagens para representar, o ator caminha
para a morte:
3
Junior, N. L. & Lara, A. P. S. (2017). Identidade: colonização do mundo da vida e os desafios para a emancipação
Como é obvio, as personagens são vividas pelos atores
que as encarnam e que se transformam à medida que
vivem suas personagens. Enquanto atores estamos
sempre em busca de nossas personagens; quando
novas não são possíveis, repetimos as mesmas;
quando se tornam impossíveis tanto novas como
velhas personagens, o ator caminha para a morte,
simbólica ou biológica. (Ciampa, 2001, p. 157)
O autor acima define ainda que identidade seja,
ao mesmo tempo, diferença e igualdade com relação
aos outros, é ainda algo que une a subjetividade e a
objetividade, pois, “sem essa unidade, a subjetividade
é desejo que não se concretiza, e a objetividade é
finalidade sem realização” (Ciampa, 2001, p. 145).
Além disso, há ainda o aspecto mais importante
na definição de identidade apresentada por Ciampa
(2001): a metamorfose – um processo que ocorre
desde o nascimento do indivíduo até o momento
de sua morte, ou seja, o ser humano não é, ele está
sendo, como o vir-a-ser descrito por Heráclito, que
é movimento, algo que está se constituindo o tempo
todo, como uma obra sempre inacabada.
O autor afirma também que não é possível
dissociar o estudo da identidade do indivíduo do
estudo da sociedade, pois o indivíduo não pode deixar
de ser social e histórico. Se por um lado, o ser humano
não está limitado em um vir-a-ser determinado (como
uma semente, que tem como destino ser árvore), por
outro lado, também não está liberado das condições
históricas em que vive; desse modo, seu vir-a-ser não é
uma indeterminação absoluta.
Para Ciampa, a identidade é movimento de
transformação, é metamorfose. Esse movimento de
transformação tem um sentido para o indivíduo que
se apresenta por meio de seus diversos personagens,
pois ele se apresenta sempre a outro do qual espera
o reconhecimento de suas personagens; nesse sentido,
Almeida (2005, p. 85) afirma:
Em cada contexto, o indivíduo expressa sua
pretensão de ser reconhecido como determinada
pessoa (que supõe ou procura ser) e é reconhecido
ou não (conforme o que os outros pressupõem que
ele seja). Em cada contexto, ele é o que está sendo
para si e para os outros, ou seja, sua subjetividade
incorpora (de modo conformista ou conflitivo a
intersubjetividade, pois está agindo sempre levado
em consideração às expectativas dos outros e às
pretensões de si mesmo.
Nesse mesmo sentido, Lima (2010) afirma que
é na tese de Ciampa que aparece a proposição da
identidade como metamorfose. Nessa perspectiva,
delineiam-se duas afirmações relacionadas à questão
4
do reconhecimento: a primeira afirmação do autor é
que o desenvolvimento da identidade trata-se de uma
sequência de formas de reconhecimento, e a segunda
proposição afirma que, quando esse reconhecimento
é ausente ou feito de forma desumana, os indivíduos
vivenciam a experiência do aprisionamento à
“mesmice”, ao fetiche de uma personagem que
impede a concretização do sentido emancipatório da
identidade.
Essa pretensão de ser alguém frente aos outros é
sempre confrontada com as pressuposições acerca de
quem os outros (sociedade) esperam que o indivíduo
seja, há sempre uma identidade pressuposta, ou seja,
uma determinação externa ao indivíduo sobre a qual
ele pode agir no sentido de reproduzir ou modificar tal
pressuposição.
Um exemplo de identidade pode clarear essa noção
de identidade pressuposta. Antes de nascer, o
nascituro já é representado como filho de alguém e
essa representação prévia o constitui efetivamente,
objetivamente como filho, membro de uma
determinada família, personagem (preparada para um
ator esperado) que entra na história familiar às vezes
até mesmo antes da concepção do ator. Posteriormente
essa representação é interiorizada pelo indivíduo, de
tal forma que seu processo interno de representação
é incorporado na sua objetividade social, como filho
daquela família. (Ciampa, 2001, p. 161)
O indivíduo necessita repor sua identidade
cotidianamente para que possa apresentar-se como o
que está sendo, ele repõe no presente o que tem sido
até então, confirmando sua imagem diante dos outros,
ou, como afirma Almeida (2005), “ele re-apresenta sua
identidade: aquilo que representa hoje é igual a aquilo
que representou ontem e que se espera que represente
amanhã”.
É o que Ciampa (2001, p. 165) chama de aparência
de não transformação, mas é apenas aparência, pois,
como o mesmo autor afirma, qualquer objeto mesmo
mineral ou vegetal, deixado à sua própria natureza,
transforma-se.
Na verdade, evitar a transformação – manter-se
inalterado – é impossível; o possível, e que requer
muito trabalho, é manter alguma aparência de
inalterabilidade, por algum tempo, como resultado de
muito esforço para conservar uma condição prévia,
para manter a mesmice.
Esse trabalho de reposição na tentativa de evitar
a transformação cria a aparência de uma identidade
atemporal, imutável, fixa, que é chamada por Ciampa
(2001) de “mesmice” e, embora seja frequente
no convívio social, pode ter como consequência,
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em muitas situações, a paralisia da ocorrência de
novas identificações e, assim, impedir o processo
emancipatório.
Esse movimento, que é decorrente da reposição
da identidade, pode ocorrer como uma busca de
estabilidade da identidade ou por compulsão à
repetição. A mesmice coloca o indivíduo em uma
condição aparentemente atemporal de repetir sempre
o mesmo personagem, processo que é chamado por
Ciampa de fetichismo da personagem.
O fetiche da personagem é percebido como um
aprisionamento no mundo da mesmice, ou seja, mesmo
que a atividade que engendra a personagem deixe de
ser desempenhada, a representação da personagem
persiste. Podemos exemplificar isso com a afirmação
presente na obra de Ciampa (2001) “Severino é
lavrador, mas já não lavra”: a atividade continua
determinando o personagem, mesmo não havendo
mais o exercício dessa atividade.
No entanto, a mesmice não é necessariamente
prejudicial ao indíviduo, Almeida (2005, p. 92)
esclarece que a reposição também pode expressar
nossas necessidades, servindo de base para lidar com a
alteridade e sendo uma forma de resistência no mundo.
Nem sempre o processo de reposição da identidade
expressa alienação e heteronomia. Com efeito, ele
pode ser fruto de uma atitude positiva frente à vida
específico, que se considera suficientemente válido e
digno de manter. ... O que se preconiza, então, é que
os indivíduos não se transformem em prisioneiros do
que estão sendo ou têm sido, de seus papéis ou das
situações que vivenciam ... . Os papéis representados
não podem ser tratados como uma realidade absoluta
da pessoa. Ao contrário, admitida a identidade
como metamorfose, os seres humanos devem ser
considerados do ponto de vista de sua potência, seres
capazes de ultrapassar limites, considerados esses
limites não como um término. (Almeida, 2005, p. 92)
Outra possibilidade de movimento da identidade
é o que Ciampa (2001) chama de “mesmidade”, que
é o processo de busca de transformação do indivíduo.
Essa definição deriva da ideia do “Eu” proposta por
Mead (1973) e já mencionada anteriormente. Essa é
a parte da personalidade que possibilita a criação de
novas alternativas de ação.
Em interação com suas diferentes personagens,
a pessoa procura reproduzir valores e símbolos sociais
a partir de sua análise interna e criar novas atitudes,
crenças e ideias que podem dar origem a novos
personagens. Esse movimento provoca a necessidade
da busca de novas maneiras de se relacionar com o
mundo e, em alguns casos, é capaz de modificar a teia
social.
Psicologia & Sociedade, 29, e171283
Segundo Lima (2009), o conceito de Identidademetamorfose apresentado por Antonio da Costa
Ciampa foi ampliado após 1999, quando o autor propõe
o sintagma identidade-metamorfose-emancipação:
Mais do que simplesmente incorporar a palavra
“emancipação” aos já associados identidademetamorfose, essa proposição indica que o autor
assume que pesquisar identidade é buscar compreendêla em toda sua abrangência e complexidade (cognitivo,
afetivo, estético, moral, sexual, corpóreo, motor etc.).
É considerar como pressuposto que o indivíduo, à
medida que vai adquirindo a capacidade de agir e de
falar, vai também passando a se reconhecer e a ser
reconhecido como alguém que pode afirmar “eu” de
si mesmo. Nessa guinada, incorpora-se a perspectiva
habermasiana de que a constituição do humano, a
subjetividade do indivíduo, é vista sempre articulada
com a objetividade da natureza, a normatividade da
sociedade e a intersubjetividade da linguagem. (Lima,
2009, p. 136)
Segundo Siebeneichler (2003), para Habermas a
emancipação está diretamente relacionada ao processo
de conquista e manutenção de autonomia, e é com base
nessa premissa que consideramos, assim como para
Ciampa, que muitas das metamorfoses vivenciadas
pelos sujeitos são direcionadas à emancipação;
consideramos ainda que o jogo do reconhecimento
e não reconhecimento presentes ao longo da história
de uma pessoa proporciona condições para que tais
metamorfoses ocorram.
É com base nesse sintagma que se buscam
aspectos da identidade dos sujeitos em pesquisas
desenvolvidas com essa perspectiva teórica, porque
se identifica não somente seus principais personagens
envolvidos com o tema pesquisado, mas também
o sentido de suas metamorfoses, bem como suas
possibilidades de busca por emancipação.
É importante enfatizar que a necessidade
de reconhecimento (Honneth, 2003) faz parte do
desenvolvimento da identidade humana, e a ausência
ou distorção desse reconhecimento tem como
consequência o aprisionamento à “mesmice”, que
impede a concretização do sentido emancipatório da
identidade.
Segundo Lima (2010, p. 147), “O jogo do
reconhecimento faz com que a identidade seja sempre
pressuposta, abrindo o precedente para que ela seja
reposta”. Essa posição e reposição da identidade
mencionadas pelo autor podem ser tanto positivas
quanto negativas, uma vez que é o resultado da
articulação que o indivíduo faz com o que fizeram/
fazem dele em todos os momentos de sua vida,
podendo constituir movimentos de mesmice ou
5
Junior, N. L. & Lara, A. P. S. (2017). Identidade: colonização do mundo da vida e os desafios para a emancipação
mesmidade, levando o indivíduo a movimentos que
podem ser emancipatórios ou a um aprisionamento em
personagens-mito:
Daí a expectativa generalizada de que alguém deve agir
de acordo com suas predicações e, consequentemente,
ser tratado como tal. De certa forma, reatualizamos
através de rituais sociais, uma identidade pressuposta,
que assim é vista como algo dado (e não como se
dando continuamente através da reposição). Com
isso retira-se o caráter de historicidade da mesma,
aproximando-a mais da noção de um mito que
prescreve as condutas corretas, reproduzindo o social.
(Ciampa, 2001, p 163)
Na obra de Ciampa, podemos perceber a
importância do reconhecimento do outro para o
desenvolvimento da identidade quando Severina, que
sempre foi considerada não humana por todos e é tratada
com respeito e credibilidade, primeiro por um patrão e
depois pelos colegas de uma organização budista. Ao
ser reconhecida em sua humanidade, Severina pode
abandonar seus personagens fetichizados e reconhecerse como humana; ao abandonar a mesmice, pode
metamorfosear-se em outra pessoa sem deixar de ser
ela mesma.
Estigma, políticas de identidade e
reconhecimento
Ciampa (2002), ao tratar do tema políticas
de identidade e identidades políticas, analisa as
afirmações de Goffman sobre os discursos que podem
ser apresentados para o estigmatizado e vê que neles o
autor afirma que há um discurso com predominância
da fraseologia psiquiátrica (no exogrupo) e outro,
com predominância de fraseologia política (no
intragrupo). Goffman (1988, p. 134) apresenta a
expressão “política de identidade” e afirma que nela
ocorre uma orientação ao estigmatizado com a qual é
dito que “se ele adotar uma linha correta (linha essa
que depende da pessoa que fala), ele terá boas relações
consigo e será um homem completo, um adulto com
dignidade e autorrespeito”. Nesse sentido, Ciampa
(2002) analisa essa afirmação de Goffman, dizendo
que:
Tais observações mostram como essa questão
de políticas de identidade desde o início envolve
um conflito entre autonomia e heteronomia, em
pelo menos dois pontos. Em um, entre a suposta
autonomia do discurso do intragrupo (com fraseologia
predominantemente política) e a heteronomia do
discurso do exogrupo (com fraseologia que Goffman
chama de psiquiátrica, mas que poderíamos também
chamar de paternalista ou assistencialista, quando não
colonizadora). (Ciampa (2002, p. 3)
6
Em nosso entendimento, fica evidente que, ao
impor uma “linha correta” de conduta definida de forma
heterônoma – do ponto de vista de outra pessoa, que
impõe ao estigmatizado certas condições para que ele
possa ser “aceito” socialmente, ocorre uma aceitação
perversa que impõe ao indivíduo estigmatizado ocupar
lugares previamente definidos pelos “normais”. Esses
lugares, muitas vezes, possuem limites muito claros,
ou seja, não são lugares onde possa existir a expressão
livre da identidade da pessoa estigmatizada, mas
apenas a representação de papéis preestabelecidos.
Essas políticas de identidade que visam conformar
o diferente a uma linha traçada pelos “normais” levam
o indivíduo estigmatizado a uma percepção distorcida
de si mesmo, ou, como afirma Goffman (1988, p. 134):
“na verdade ele terá aceitado um eu para si mesmo;
mas esse eu é... um habitante estranho, uma voz do
grupo que fala por e através dele.”.
Como vimos anteriormente, Ciampa (2001)
considera que a identidade pressuposta surge a partir de
determinações heterônomas com as quais o indivíduo
se identifica, ou seja, a identidade pressuposta surge das
expectativas por parte dos outros (sociedade) acerca de
como deve ser um determinado indivíduo, então, tratase de uma determinação externa, no entanto, o autor
afirma que o indivíduo sempre pode agir no sentido de
reproduzir ou modificar tal pressuposição, pois ele não
é apenas um cidadão, um membro da comunidade, ele
reage também a essa comunidade e a transforma com
suas reações.
No mesmo sentido, Mead (1973) também
menciona a possibilidade de ação do indivíduo sobre o
que lhe é determinado socialmente quando descreve os
componentes do self – o “Eu” e o “Mim”: enquanto este
consiste na reprodução das regras sociais, exprimindo
adaptação, o Eu é a reação do sujeito às ações da
sociedade, à expressão de novas atitudes.
Honneth (2003) afirma que essa inserção do
indivíduo na sociedade organizada dentro do domínio
de experiências de cada indivíduo envolvido ou
incluído nesse todo é a base para o desenvolvimento
pleno da identidade do indivíduo. O autor afirma ainda
que, ao aprender a assumir as normas sociais de ação
do “outro generalizado”, o sujeito pode alcançar a
identidade de um membro socialmente aceito em sua
coletividade.
Ciampa (2001) lembra que, embora sempre
exista a possibilidade de um agir autônomo diante das
determinações sociais, há uma possível confusão entre
a questão da autonomia e a questão da autenticidade:
“como definir quando se trata de uma escolha original
e autêntica do próprio indivíduo?” (p. 3); ou quando
DOSSIÊ
podemos saber que o discurso (ou ação) do indivíduo
não é apenas uma reprodução de algo que pertence a uma
determinada massa e, portanto, trata-se de um “ajuste do
próprio ego à imagem e semelhança do ‘outro’”? (p. 3).
Esse autor lembra que, ao postular a malignidade
das massas, corremos o risco de retirar a legitimidade
de qualquer ação ou discurso autônomo do intragrupo,
mas, ao mesmo tempo, proclamar a necessidade sempre
de um controle externo é só admitir como legítima
a heteronomia decorrente da ação e do discurso do
exogrupo.
Ciampa afirma que as políticas de identidade estão
presentes em todos os setores da sociedade, embora a
maioria dos estudos acerca de políticas de identidade
faça menção a grupos com identidades discriminadas,
marginalizadas ou oprimidas por setores dominantes.
Não podemos ignorar a existência de políticas de
identidade também em setores dominantes e/ou
elitizados da sociedade, onde apenas os “personagens”
(ou psiques de massa) são diferentes entre si, mas a
articulação dessas “personagens coletivas” com a
noção de identidade pessoal é a mesma em qualquer
setor social:
Utilizando uma linguagem dramatúrgica, pode-se
dizer que a política de identidade de um grupo ou
coletividade refere-se de fato a uma “personagem”
coletiva; fala-se tanto de um “branco” ou um
“negro”, quanto se pode falar de um “judeu”,
um “psicanalista”, um “velho”, um “jovem”, um
“corintiano”, um “trabalhador”, um “vagabundo” etc;
como os exemplos estão no masculino, vamos incluir
também um “homem”, uma “mulher”, lembrando
que podemos fazer várias combinações: um “homem
branco”, uma “mulher negra” e assim por diante.
(Ciampa, 2001, p. 4)
Esse autor afirma ainda que o estudo das políticas
de identidade torna possível discutir a especificidade
de lutas pela emancipação em diferentes grupos
sociais, mas não é suficiente, pois não há como definir
previamente o caráter emancipador de qualquer ação
coletiva antes da constituição da identidade coletiva.
A identidade para Ciampa (2001) é quase sempre
referida a uma personagem: “negro”, “trabalhador”,
“mulher”, “sem-terra”, etc., a cada um correspondendo
um ou mais movimentos, mas a questão que se
apresenta para que possamos determinar o caráter
emancipatório do movimento seria a de articular
múltiplas personagens e assim constituir “uma
identidade pessoal singular que pudesse também ser
considerada uma identidade política?” (p. 6).
Para Honneth (2003), o engajamento individual
na luta política restitui ao indivíduo um pouco de
seu autorrespeito. Pensamos que esse engajamento,
Psicologia & Sociedade, 29, e171283
quando não se trata de um movimento motivado
apenas de forma heterônoma, mas também como
forma de superação das experiências individuais de
desrespeito, pode levar a uma forma de identidade
política, que, como afirma Honneth (2003), tem como
efeito reforçativo a experiência de reconhecimento que
a solidariedade do grupo político propicia, fazendo os
membros alcançarem uma espécie de estima mútua.
Honneth (2003), em sua obra Luta por
Reconhecimento, propõe um modelo teórico de
análise da identidade fundada na concepção de
reconhecimento de Hegel e na teoria da sociabilidade
desenvolvida por Mead. Nessa obra, o autor sistematiza
uma teoria do reconhecimento buscando fundamentar
solidamente, a partir dos escritos do jovem Hegel,
a ideia de que é a luta por reconhecimento que
constitui a verdadeira gramática dos conflitos sociais.
Honneth constrói a hipótese de que é a experiência
de não reconhecimento (ou desrespeito) que leva à
resistência social.
Segundo essa perspectiva, as lutas por
reconhecimento ganham a dimensão de fundamento
para os avanços normativos sociais. Esse autor propõe,
a partir das proposições de Hegel, uma tipologia
progressiva de formas de reconhecimento: amor, direito
e solidariedade. A esfera do amor permite ao indivíduo
uma confiança em si mesmo; na esfera jurídica, a
pessoa individual é reconhecida como autônoma e
moralmente imputável, desenvolvendo uma relação
de autorrespeito; na esfera da solidariedade, a
pessoa é reconhecida como digna de estima social,
potencializando os projetos de autorrealização.
A esses três padrões de reconhecimento
intersubjetivo correspondem três maneiras de
desrespeito: a violação, a privação de direitos e a
degradação; e é em resistência a essas formas de não
reconhecimento que se desencadeiam os conflitos
sociais, tendo-se muitas vezes como resultado sua
gradativa superação ao longo da história.
A teoria de Honneth, assim como a de
Ciampa, conflui com as ideias de Mead acerca do
reconhecimento e da sociabilidade. Nessa perspectiva
Honneth (2003, p. 125) nos traz a seguinte afirmação:
Em nenhuma outra teoria, a ideia de que os
sujeitos devem sua identidade à experiência de um
reconhecimento intersubjetivo foi desenvolvida
de maneira tão consequente sob os pressupostos
conceituais naturalistas como na psicologia social de
George Herbert Mead.
Esse autor enfatiza que, em sua análise, Mead
deixa claro que a consciência de si mesmo só pode
surgir em um sujeito à medida que ele aprende a
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Junior, N. L. & Lara, A. P. S. (2017). Identidade: colonização do mundo da vida e os desafios para a emancipação
perceber sua própria ação da perspectiva de uma
segunda pessoa, ou seja, é a partir do reconhecimento
do outro que surge a autoconsciência.
A colonização do mundo da vida e os entraves
para o sintagma
Portanto, o desafio contemporâneo de se pensar
a questão da identidade vem sendo apresentado nos
trabalhos de Lima (2010, 2014, 2015) que, seguindo
as pegadas de Ciampa, nos diz que mesmo diante
das adversidades típicas de uma sociedade capitalista
há sempre possibilidades de luta pela emancipação.
As “narrativas de histórias de vida” nos mostram
que ainda há pessoas fazendo sintagma: identidademetamorfose-emancipação, portanto, essa perspectiva
sinaliza que esse não está totalmente determinado pelo
sistema e que o mundo da vida ainda não foi totalmente
colonizado, pois há possibilidades de mudança do
sujeito e da sociedade.
Nesse aspecto, os esforços de Ciampa, Almeida
(2005), Lima (2010, 2014, 2015) e muitos outros
pensadores dessa perspectiva teórica são para criticar
as maneiras como a sociedade cria empecilhos para
o sintagma, fazendo com que o sujeito recaia na
mesmice. Eles se usam da crítica também para apontar
possibilidades para que se constitua uma sociedade
que saiba reconhecer e criar sociabilidades para que o
sujeito tenha mais acesso ao mundo da vida.
No entanto, os trabalhos de Lima (2010, 2014,
2015) vêm nos mostrar que a sociedade capitalista
contemporânea causa diversos entraves para a vida das
pessoas fazendo com que essas incorram no que Ciampa
chamou de fetiche da personagem. Para aprofundar essa
questão, Lima busca fundamento teórico em Jürgen
Habermas e Axel Honneth sobre como a colonização
da vida e o reconhecimento perverso se tornam os
principais entraves para o sintagma.
Nesse sentido, Habermas (1999) irá nos mostrar
uma oposição entre o “sistema” e o “mundo da vida”,
que acarreta uma desvinculação, por exemplo, entre
a vida do trabalhador e seu trabalho, fazendo com
que esse se vincule ao trabalho de maneira alienada e
constituindo assim uma “mesmice”, que o impossibilita
de acessar o mundo da vida com mais frequência.
Por isso, Habermas (1999) nos dirá que a
sociedade deve ser discutida sob a ótica de duas razões:
a instrumental e a comunicativa, sendo que, com esta
última, propõe um novo paradigma, que parte de uma
crítica à razão instrumental weberiana e diverge para
uma racionalidade pautada na comunicação, em busca
do consenso intersubjetivo.
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Habermas (1999) concebe o mundo da vida como
a dimensão na qual impera a razão comunicativa, espaço
das sensações, dos sentimentos, da comunicação, da
cultura e do entendimento entre os sujeitos. Araújo
e Cinalli (2005, p. 7), baseados em Habermas, nos
dizem que “o mundo da vida é o ambiente cotidiano
onde as pessoas agem e se defrontam com suas ações
e reações, relações sociais, interpessoais e subjetivas”;
em contraponto a esse mundo, o mundo sistêmico é a
esfera do trabalho e do mercado, orienta-se pelas ações
estratégicas e instrumentais, a razão instrumental é
imperativa no mundo sistêmico.
Segundo Siebeneichler (2003, p. 25), “Habermas
procura reagir contra o que chama de irracionalidade
dominante na sociedade atual, interpretando-a
num quadro macroscópico como manifestação
do predomínio de uma racionalidade técnica,
instrumental”; o autor percebe a irracionalidade atual
como uma colonização do interior do mundo da vida,
e a partir dessa análise reformula o antigo problema da
reificação ou coisificação, em termos de patologia do
mundo da vida induzida pelo sistema.
Nesse sentido, Freitag e Rouanet (1980) afirmam
que Habermas descreve dois processos de transformação
de conotação negativa: a dissociação e a racionalização.
A dissociação implicou o “desengate” entre “mundo da
vida” e sistema, que, segundo o autor, é quase irreversível
em nossos tempos. A racionalização contaminou a
economia e o Estado e se expandiu a diversas instituições
do mundo da vida, isso leva Habermas a falar em
“colonização” do mundo da vida pelo sistema.
Habermas (1999) atribui o que ele chama de
“patologias da modernidade” a essa colonização, e
a primeira patologia descrita pelo autor faz com que
os sujeitos modernos submetam suas vidas às leis
do mercado e à burocracia estatal, como se fossem
forças estranhas contra as quais não há nada a fazer.
Essa apatia generalizada reforça as tendências da
dissociação, permitindo que a economia e o Estado
sejam controlados por uma minoria, que determina as
regras, sem consultar a maioria. A segunda patologia
decorre da primeira, porque, à medida que o sistema se
fortalece em detrimento do mundo da vida, ele passa a
impor sua própria lógica e suas regras do jogo.
A colonização, portanto, refere-se à penetração
da racionalidade instrumental e dos mecanismos
de integração do dinheiro e do poder no interior das
instituições culturais, ocupando, como tropas invasoras,
os espaços privilegiados da razão comunicativa e
substituindo-a pela razão instrumental.
Nesse sentido, Araújo e Cinalli (2005) afirmam
que, para Habermas, o período no qual as tradições
DOSSIÊ
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culturais, administrativas e produtivas reinavam
era mais equilibrado que o momento em que a
razão instrumental e econômica predomina, e o
distanciamento do homem com relação aos mitos e às
tradições faz com que se percam aspectos importantes
como a espontaneidade e a criatividade.
Nessa lógica, Lima (2010, p. 230), baseado
em Ciampa, irá afirmar que “um reconhecimento
perverso, reduz as infinitas possibilidades de criação
das personagens à representação de uma identidade
fetichizada, estigmatizada”, sem possibilidades de
“mesmidade”, recaindo na “mesmice”.
No entanto, não podemos deixar de observar
que sistema e mundo da vida não são passíveis de
separação, não há uma maneira de excluir um ou outro
da composição da sociedade. Podemos entender ainda
que os seres humanos sejam influenciados em seu dia
a dia por interferências dessas duas esferas, no entanto,
o que Habermas aponta como a “colonização” do
mundo da vida trata-se de uma anulação de aspectos
referentes a esse mundo em decorrência do domínio da
lógica sistêmica.
Habermas e Sennett nos alertam que a maneira
pela qual as pessoas se identificam com os valores
(capitalistas) e assim organizam suas vidas está
provocando sérias dificuldades para o sujeito
contemporâneo. Nessa lógica, Lima (2010) dirá que
isso decorrerá numa identidade tendendo à mesmice
e assim com sérias dificuldades em seu sintagma,
pois como vimos anteriormente, Severina ao ser
considerada não humana por todos sofre em sua
situação de pobreza e descaso.
O reflexo dessa colonização do mundo da vida
pelo sistema no mundo do trabalho é muito claro, sendo
a já citada desvinculação entre a vida do trabalhador e
seu trabalho o principal aspecto dessa influência; dessa
forma, há uma cisão entre a “vida pessoal” e a “vida
profissional”, esfacelando-se os valores individuais,
que são muitas vezes diversos e contraditórios com
relação aos valores do mundo do trabalho.
Diante desse cenário, a crítica cumpre a função de
desmantelar formulações discursivas que trazem erros,
ilusões, insinceridades e cinismos que se estruturam
na sociedade capitalista e que, portanto, sustentam
relações opressivas.
Citamos aqui a dimensão do trabalho como um
exemplo, visto que esse ainda toma uma grande parte
da vida das pessoas e muito de suas identificações
decorrem dessa relação. Nesse aspecto, pensamos
que o mercado de trabalho na atualidade é regido por
normas e valores muito particulares ditadas pelo que
Sennett (1998) chamou de “capitalismo flexível”, ou
seja, um modelo de capitalismo que ataca qualquer
forma de burocracia ou rotina e valoriza trabalhadores
que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças em curto
prazo, assumam riscos continuamente e dependam
cada vez menos de processos formais. Portanto, um
sujeito que evita se vincular com qualquer valor ético
ou moral; sentimentos a pessoas ou grupos, pois o
que predomina é a fluidez das relações para poder se
dedicar exclusivamente à personagem desenvolvida
no mercado de trabalho.
Deste modo, a colonização do mundo da
vida, atrelada a um capitalismo flexível, certamente
influencia nas formas de subjetivação contemporâneas
e com isso as possibilidades de emancipação do
sujeito vão se tornando cada vez mais difíceis. Nesse
sentido, Lima (2010) vai nos referir a um sofrimento
de indeterminação e reconhecimento perverso como
algo típico de uma sociedade capitalista e as formas
de administração desse sistema tendem a dominar o
sujeito a tal ponto que sofra por não saber como lutar
por emancipação.
Por isso, criticar e apontar essas maneiras de como
o mundo da vida está sendo colonizado, possibilita um
reconhecimento dos entraves para o sintagma, para
que assim possamos fazer um movimento de buscar
uma “descolonização” do mundo da vida. Nesse
sentido, Ciampa nos aponta possibilidades para isso,
pois quando Severina passa a ser reconhecida em sua
humanidade e tratada com respeito e credibilidade
pelas pessoas, ela pode abandonar a mesmice, pode
fazer seu sintagma, sem deixar de ser ela mesma.
Considerações finais
A questão da identidade debatida até aqui nos
traz a dimensão da história da Psicologia Social
brasileira: compromisso ético com os mais pobres; luta
por emancipação; organização social e comunitária.
Dessa maneira, pensamos que Antonio da Costa
Ciampa apresenta para nós possibilidades de pensar a
Psicologia Social numa perspectiva crítica e, até certo
ponto, regada por uma dose de otimismo com relação
à vida social que levamos.
Mesmo diante dos desafios da colonização do
mundo da vida e do capitalismo flexível, a perspectiva
teórica de Ciampa sempre aponta para uma saída que
não é ingênua ou desnudada de crítica, muito pelo
contrário, pois como citamos anteriormente, esse autor
está vinculado a uma tradição da Psicologia Social
brasileira que prima pela criticidade e pela ética do
cuidado com as pessoas que sofrem com a opressão
em nossa sociedade.
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Junior, N. L. & Lara, A. P. S. (2017). Identidade: colonização do mundo da vida e os desafios para a emancipação
Desta feita, o pensamento de Ciampa nos
possibilita olhar um ser humano capaz de realizar um
movimento para emancipação, mesmo em situações de
colonização do mundo da vida; inclusão perversa. Isso
o afasta de visões derrotistas e estigmatizantes que
percebem as pessoas como um acumulado de doenças,
deficiências e inconsistências e que só lhes restam fazer
a “mesmice”, seja pela condição de ser reconhecido
como um incapaz ou pelos próprios efeitos da relação
com as pessoas que reforçam essa posição.
Fazer sintagma na perspectiva desta teoria
de Ciampa é colocar a pessoa sempre em busca de
possibilidades para desfrutar da sua felicidade de
abdicar a mesmice, e se metamorfosear em outra
pessoa, preservando a si mesmo, não como essência,
mas como condição de ser no mundo da vida.
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Agências de fomento: Nadir Lara Junior bolsista FAPESP (processo 2016/05322-4). Andrea
Paula dos Santos Lara – bolsa CAPES DS.
Submissão em: 30/10/2016
Revisão em: 16/05/2017
Aceite em : 18/06/2017
Nadir Lara Junior é mestre e doutor em Psicologia Social
PUC-SP. Pós-doutorando em Psicologia Clínica pela USP.
Bolsista FAPESP.
Endereço: Rua Dona Saza Lattes, 472 B - Bairro Uberaba,
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Andrea Paula Santos Lara é psicóloga, Mestre em
Psicologia Social pela PUC-SP.
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