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POLÍTICAS EDUCATIVAS EM CONFRONTO UMA DÉCADA DE TESTEMUNHOS SOBRE O SISTEMA EDUCATIVO EM PORTUGAL 3.º VOL. JOÃO RUIVO JOÃO CARREGA (Coord.) POLÍTICAS EDUCATIVAS EM CONFRONTO UMA DÉCADA DE TESTEMUNHOS SOBRE O SISTEMA EDUCATIVO EM PORTUGAL 3.º VOL. JOÃO RUIVO JOÃO CARREGA (Coord.) Título • Políticas educativas em confronto Uma década de testemunhos sobre o Sistema Educativo em Portugal Coordenação • João Ruivo • João Carrega Nota Explicativa • João Ruivo e João Carrega Nota de abertura • João Carrega Prefácio • João Ruivo Entrevistas • João Carrega e Nuno Dias da Silva Design • Carine Pires e André Antunes RVJ- Editores Edição • RVJ- Editores, Lda / Av. do Brasil n.º 4 r/c - 6000-979 Castelo Branco Tel: 272 324 645 / Telem.: 965 315 233 / Email: rvj@rvj.pt (chamada para a rede fixa nacional) (chamada para a rede móvel nacional) Propriedade • RVJ- Editores, Lda Tiragem • 500 Exemplares ISBN • 978-989-35370-2-2 Depósito Legal • 528 828/24 Data • Março 2024 Índice Nota explicativa João Ruivo e João Carrega | 11 Nota de Abertura João Carrega | 13 Prefácio Onde o autor revela a intenção de perscrutar e contextualizar uma década conturbada e não consensual da educação João Ruivo | 19 Entrevistas 1- As lacunas educativas de décadas condicionam a cultura e a prática Sobrinho Simões | 33 2- O 25 de Abril é irrepetível Vasco Lourenço | 39 3- Portugal pode transformar-se numa junta de freguesia da Europa João Ferreira do Amaral | 45 4- Falta uma cultura política de acordos em Portugal João Proença | 49 ‹5 5- Especialização no ensino superior é necessária David Justino | 55 6- “Se fôssemos mais organizados e rigorosos éramos um povo fantástico” Rui Rio | 59 7- O filósofo do futebol Manuel Sérgio | 63 8- Abolição de feriados feriu indentidade nacional Nuno Severiano Teixeira | 71 9- A escola serve para desbravar avenidas novas Eduardo Sá | 79 10- Nunca houve tantos meios de comunicação, mas nunca houve tanta solidão Mário Cordeiro | 87 11- Não basta pôr pessoas a estudar Eduardo Marçal Grilo | 93 12- É preciso um pacto de estabilidade no setor da educação António Saraiva | 99 13- A justiça não é imune ao erro Laborinho Lúcio | 107 14- Não temos potencial de crescimento Nuno Garoupa | 115 15- Há uma grande falta de reciclagem nas universidades Rui Tavares | 123 16- A escola do futuro António Sampaio da Nóvoa | 131 17- O ensino é decisivo para transmitir uma imagem de seriedade e decência Eduardo Paz Ferreira | 135 6› 18- A Igreja do Papa Francisco não deixa ninguém para trás Joaquim Franco | 143 19- Já há poucos cursos de lápis e papel Carlos Moedas | 151 20- O país corre o risco de ter de importar engenheiros civis Carlos Mineiro Aires | 157 21- É dificil ensinar a estudar Teodora Cardoso | 163 22- A aula magistral é insubstituível, mas não deve ser única Rui Vieira Nery | 169 23- A formação ética e cívica é fundamental José Ribeiro e Castro | 177 24- Relações no ensino prejudicadas entre Portugal e Brasil Arthur Chioro | 183 25- Quando Américo Thomaz foi questionado pelos estudantes de Coimbra Alberto Martins | 187 26- A escola tem de trabalhar para o futuro Maria Emília Brederode dos Santos | 195 27- Não podemos mudar constantemente de políticas educativas Miguel Poiares Maduro | 203 28- É preciso dar qualidade ao emprego Carvalho da Silva | 209 29- No futuro, a escola vai ensinar mais atitudes e menos conteúdos João Vasconcelos | 215 30- Se não for a escola a estimular a leitura, dificilmente a criança terá acesso ao livro Nuno Júdice | 221 ‹7 31- As cantinas escolares devem oferecer refeições saudáveis e seguras Alexandra Bento | 227 32- A educação é uma janela que possibilita ver mais longe Alexandre Quintanilha | 233 33- Doutaramentos serão uma realidade nos politécnicos Pedro Dominguinhos | 243 34- Na saúde o lucro é incompatível com a equidade Correia de Campos | 249 35- Existe um esvaziamento da função do professor Rui Zink | 257 36- Debate da educação está contagiado por aspetos sindicais e ideológicos Nuno Crato | 263 37- Portugal quer universidades e politécnicos Covid Free João Sobrinho Teixeira | 271 38- Esta é a hora da União Europeia fazer a sua prova de vida Carlos Zorrinho | 279 39- As crises ultrapassam-se com conhecimento, ciência e inovação Maria da Graça Carvalho | 285 40- Um novo vírus pandémico expande-se mais depressa que o nosso conhecimento sobre ele Constantino Sakellarides | 291 41- Esta crise combate-se com a manutenção do emprego e salvando empresas Paula Franco | 295 42- A educação e a ciência deviam ser prioridades Galopim de Carvalho | 301 43- O grande desafio é tornar cada aula um tempo fascinante Joaquim Azevedo | 307 8› 44- Portugal é um dos destinos mais atraentes para Startups Manuel Caldeira Cabral | 315 45- A Justiça não se faz debaixo dos holofotes Luís Menezes Leitão | 323 46- Magistradas querem sensibilizar escolas para as questões de género Paula Ferreira Pinto | 329 47- Impunidade não faz bem à democracia Maria Manuel Leitão Marques | 335 48- Abuso sexual de menores é uma tragédia Anselmo Borges | 341 49- É preciso um programa de emergência de literacia para a cibersegurança Jorge Bacelar Gouveia | 351 50- Geração pragmática Margarida Matos | 359 51- Economia do mar precisa de inovação e de jovens talentosos Assunção Cristas | 365 52- Um senado das regiões estancaria a desertificação do interior Álvaro Beleza | 371 53- Acesso ao ensino superior mais amigo dos candidatos Joaquim Mourato | 379 54- Os recursos humanos são o problema mais gritante do SNS Ana Jorge | 387 55- A cientista que estuda a existência de vida noutras partes do sistema solar e do universo Zita Martins | 391 56- Os inimigos da democracia estão entre nós Irene Flunser Pimentrel | 397 ‹9 57- Dormir mal sai caro à saúde das pessoas e das empresas Teresa Paiva | 405 58- A IA é uma espécie de vírus que se propaga Luís Moniz Pereira | 411 59- Resiliência digital pode prevenir dependência dos ecrãs João Goulão | 417 60- O mundo mudou, mas a escola ficou no mesmo sítio Carlos Neto | 425 61- 600 mil portugueses vivem em pobreza energética extrema Francisco Ferreira | 431 62- A violência sexual é um problema de saúde pública Rute Agulhas | 437 63- A liberdade é um valor tangível que tem de se proteger Maria Inácia Rezola | 443 64- “Os alunos não estão a aprender com a qualidade desejada” Domingos Fernandes | 449 10 › Nota explicativa A presente obra surge na sequência dos livros “Políticas e Políticos da Educação” e “Políticas Educativas em Portugal”, já esgotados, os quais reuniram uma seleção de entrevistas efetuadas a diferentes atores do sistema educativo e cultural entre 1997 e o início de 2014, e publicadas no 1Ensino Magazine. Com edição da RVJ Editores, o livro “Políticas educativas em confronto - Uma década de testemunhos sobre o Sistema Educativo em Portugal” retrata o caminho percorrido nos 10 anos que medeiam estas obras e de como as políticas educativas alteraram o panorama do ensino em Portugal. As 64 entrevistas selecionadas, efetuadas pelos jornalistas Nuno Dias da Silva e João Carrega, apresentam ameaças e oportunidades, indicam caminhos, e discutem o estado da arte de um setor fundamental para o desenvolvimento do país. Durante este período, o Ensino Magazine assinalou os seus 25 anos e continuou a acompanhar a situação da educação em Portugal, tendo realizado um conjunto significativo de entrevistas a responsáveis políticos e especialistas, alguns dos quais terão passado à oposição (e vice-versa), pelo que o confronto da alteração de opiniões, entretanto manifestadas, constitui um novo e interessante espólio de análise crítica. Esta obra, em conjunto com as suas antecessoras, é publicada no ano em que se assinala o 50.º aniversário do 25 de Abril. Completa uma trilogia dedicada ao ensino e à educação, que percorre o último quarto de século e que constitui um património importante, agora registado para memória e estudos futuros. João Ruivo e João Carrega Coordenadores do livro 1 Principal publicação editada em Portugal, dedicada ao ensino, educação, cultura e juventude, com distribuição nacional e internacional (Espanha, Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e Macau). Com edições impressa e digital, em www.ensino.eu. ‹ 11 Nota de abertura Portugal e o mundo vivenciaram, nesta última década, um conjunto de acontecimentos que condicionaram políticas e reforçaram a importância da educação, da investigação e do ensino superior na resposta às necessidades do país, da sociedade e do mundo. Depois da intervenção do Fundo Monetário Internacional no nosso país, com a Troika, que deixou um lastro de asfixia socioeconómica - obrigou muitos jovens portugueses qualificados a emigrarem, condicionou carreiras e congelou investimentos -; e quando o país se preparava para recuperar, a pandemia trouxe ao mundo uma realidade que, sendo real e destruidora, tinha os argumentos de um filme de ficção científica. Veio ainda a invasão da Ucrânia por parte da Rússia, a subida da inflação - com novas dificuldades económicas para as famílias - e, mais recentemente, o conflito no Médio Oriente. A todos estes acontecimentos juntou-se a crise política e a queda do Governo Português, liderado por António Costa, em novembro de 2023. O período entre 2014 e 2024 foi, por isso, conturbado, mas também desafiador. O livro “Políticas educativas em confronto - Uma década de testemunhos sobre o Sistema Educativo em Portugal” relata, através de um conjunto de entrevistas publicadas, nessa década, no Ensino Magazine, um percurso de ameaças e oportunidades, mas também de resiliência, que influenciaram a educação no nosso país. E se o setor educativo (muito bem escalpelizado por João Ruivo no prefácio que se segue) resistiu às contingências sociais e políticas, a rede de ensino superior em ‹ 13 Portugal, muitas vezes, num passado não muito distante, colocada em causa por alegado excesso de instituições, foi confrontada com novos desafios, exigências e com o paradigma, enunciado pelo ministro Manuel Heitor, de que não “há instituições a mais, mas sim alunos a menos”. Com efeito, verificou-se que uma percentagem elevada de jovens que concluía os seus estudos secundários ou profissionais (sobretudo estes) não prosseguia a sua formação para o ensino superior. Adotaram-se medidas para mitigar o efeito da quebra demográfica e para garantir que mais alunos possam estudar no ensino superior. Na última década criou-se uma via de acesso ao ensino superior dedicada aos estudantes do ensino profissional; procurou-se garantir apoio social a mais jovens - a classe média continua excluída -; abriram-se avisos para a construção de residências de estudantes - o alojamento manteve-se, neste período, como um dos principais problemas com que as famílias e os estudantes se confrontam quando têm que se deslocar para estudar. Os estudantes internacionais, sobretudo oriundos de países de língua oficial portuguesa, assumiram um peso percentual significativo no número total de alunos de muitas instituições de ensino superior (IES), com mais incidência no interior do país. Este crescimento viria, porém, a ser condicionado em 2023/24, pela alteração da regra de afetação de vagas. A abertura de Cursos Técnicos Superiores Profissionais no ensino politécnico, na sequência da publicação do Decreto-Lei 43/2014, de 18 de março, constituiu mais uma via de entrada no ensino superior. Os CTEsP, que não conferem grau académico, preparam os jovens para o mercado de trabalho, mas também possibilitam a progressão de estudos nas IES, através da atribuição de equivalências de muitas das disciplinas para cursos de licenciatura. Estes novos cursos garantiram uma nova capilaridade aos politécnicos, com a abertura de formações em territórios vizinhos. A formação ao longo da vida foi outra área que mereceu atenção por parte das IES e que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) veio reforçar, através de cursos que pretendem qualificar jovens e adultos. Os programas Impulso Jovens STEAM e Impulso Adultos visam apoiar iniciativas a desenvolver por instituições de ensino superior, em parceria ou consórcio com empresas, empregadores públicos e/ou privados e incluindo autarquias e entidades públicas locais, regionais e nacionais. Embora ainda haja um caminho a percorrer, no sentido de garantir que mais jovens realizem estudos superiores, com incidência naqueles que se encontram no ensino profissional - melhorando a comunicação com esses estudantes para que possam, de forma mais informada, escolher o seu futuro -, o número de alunos nas universidades e politécnicos aumentou. Em 2014 2frequentavam o ensino superior em Portugal 362 mil e 200 estudantes, dos quais 168 mil 252 eram do sexo masculino e 193 mil 948 do feminino. Em 2 DGEEC/ME-MCTES, PORDATA 14 › 2023 o número de alunos nas IES portuguesas subiu para 446 mil e 28 estudantes, mantendo-se o domínio feminino, com 241 mil 356 alunas. A evolução positiva é referenciada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), no seu relatório “Education at a Glance 2023”. Refere o estudo que entre 2015 e 2021, a percentagem de jovens entre os 25 e os 34 anos que concluíram o ensino superior em Portugal subiu de 33% em 2015, para 44% em 2021. Por outro lado, a percentagem de jovens entre os 25 e os 34 anos com qualificações de nível secundário aumentou 5 pontos percentuais, sobretudo em resultado do aumento da percentagem de jovens com qualificações de nível secundário profissional (de 14% para 20%). Entre 2014 e 2022 o país 3diplomou 744 mil 956 estudantes. Dos 75 mil 906 diplomados, em 2014, passámos para 91 mil 870, em 2022. ******* Os números demonstram um caminho positivo que deve ser prosseguido pelo país, através do reforço das IES em diferentes níveis, dos quais destacaria a autonomia das universidades e politécnicos, o seu financiamento, o alojamento, a cooperação e o reforço da rede de ensino superior existente. A autonomia revela-se vital para que as instituições possam ser ágeis a responder aos desafios do futuro. A falta de autonomia, ou falsa autonomia, é um ponto crítico sublinhado pelos responsáveis institucionais que condiciona o desenvolvimento das academias. O subfinanciamento a que as IES têm sido votadas, em que na maioria dos casos as verbas recebidas pelo Orçamento de Estado não são suficientes para fazer face aos custos com os vencimentos, obrigam ao recurso às receitas próprias. Em 2023, a fórmula de financiamento viria a ser alterada para ser implementada em 2024, tendo como ponto de referência principal o número de alunos de cada instituição. Fatores como a coesão territorial, a especificidade dos campus das diferentes academias, a dificuldade que as universidades e politécnicos dos territórios de baixa densidade sentem não foram tidos em conta. Foi o início de um processo, interrompido com a queda do Governo Português, no final de 2023. A falta de alojamento para os jovens estudantes deslocados marcou esta última década, com particular incidência nos anos mais recentes. Foi criado, pelo Governo, através de fundos do Plano de Recuperação e Resiliência, o Plano Nacional para o Alojamento para o Ensino Superior, que pretende reforçar o alojamento estudantil em 51 concelhos e que correspondem, contando com novas construções, adequações e reabilitações, a cerca de 18 mil camas. É um esforço de muitos milhões de euros (mais de 440), o maior que o Estado fez num curto período, mas que só em 2026 estará finalizado. 3 DGEEC/ME-MCTES, PORDATA ‹ 15 O cenário atual denota falta de investimento por parte do Estado, ao longo dos anos, numa área tão delicada como decisiva, mas também do Poder Local. Nem todas as câmaras municipais souberam, ou sabem, lidar com o problema. O não ter visão daquilo que pode ser o futuro das suas regiões e do país passa por estes pequenos grandes detalhes. A capacidade de olhar o presente e preparar o futuro não admite pensamentos restritivos. Exige ousadia, visão estratégica e comunhão de responsabilidades entre todos. Esta questão entronca numa outra, decisiva para o país: a rede de ensino superior em Portugal. Essa mesma rede, idealizada por Veiga Simão, que garante o acesso a formação superior a milhares de jovens em todos os distritos e nas ilhas, é também um dos instrumentos mais poderosos que o país pode utilizar numa perspetiva de coesão territorial. Uma rede onde o que é diferente deve ser tratado de acordo com as suas especificidades. Foi esta mesma rede que, pronta e eficazmente, respondeu de forma clara e objetiva ao que a sociedade civil precisou durante a pandemia de Covid-19 e que se soube adaptar a novas formas de ensinar, com o recurso ao ensino a distância. A resposta das IES foi exemplar, colocando-as no foco da sociedade, que depressa percebeu a sua importância e aquilo que a educação e a ciência representam para a humanidade. As IES devem, agora, procurar encontrar soluções e caminhos, não apenas per si, mas com os seus pares, para o seu futuro. A tarefa de desenvolver redes colaborativas dentro da própria rede foi (é) algo que as instituições de ensino superior procuraram concretizar, durante largos anos de forma tímida e, mais recentemente, de modo mais articulado com consórcios criados no âmbito do PRR e através de parcerias em diferentes projetos europeus. Numa outra dimensão, a rede de universidades europeias, aposta da Comissão Europeia, trouxe consigo mais oportunidades, mais dinheiro e a abertura da ‘universidade’ ao mundo. Esta política europeia vem, também, ao encontro daquilo que é uma das imagens de marca do Ensino Magazine e que o antigo reitor da Universidade de Salamanca, Ignácio Bergudo, muitas vezes sublinhou: “a educação e o ensino não têm fronteiras”. Mas o período entre 2014 e 2024 ficaria também marcado pelo início do processo de revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES). A reforma implementada por Veiga Simão, que de uma forma visionária, criou as bases para que o País pudesse ter uma rede de ensino superior robusta, democrática no acesso às universidades e politécnicos, decisiva na qualificação dos portugueses, a par do RJIES, lançado por Mariano Gago, tornaram Portugal um país mais competitivo e moderno. Dos 40 mil alunos em 1974 passámos para mais de 400 mil em 2023. A necessidade de atualizar o quadro legislativo foi destacado pelo Presidente da República, 16 › Marcelo Rebelo de Sousa, em maio de 2023, durante o I Encontro de Presidentes e Vice-Presidentes de Conselhos Gerais das Universidades Públicas Portuguesas, realizado na Universidade de Évora: “Temos hoje cidadãos mais aptos, com 30% do total da população portuguesa empregada com uma licenciatura. As universidades portuguesas dão um forte contributo para a inovação, criatividade, avanço científico e tecnológico, e estão entre os mais requerentes de patentes, ocupando seis das 10 primeiras posições no Instituto Europeu de Patentes. (...) Esta evolução não foi acompanhada pelo quadro legislativo (...) Há que reintroduzir a modernidade que reflita a realidade atual do ensino superior e não apenas no subsistema universitário, pois no politécnico houve mudanças quer na atribuição de graus, quer no estatuto adotado, quer nas soluções que questionam uma visão rígida de separação entre os sistemas politécnico e universitário. Se somarmos a isto os consórcios fundados por várias instituições de ensino superior, temos um quadro que já não corresponde minimamente ao que foi sonhado e começado a construir em 2007”. A atribuição de doutoramentos pelos institutos politécnicos e a alteração da sua denominação para Universidades Politécnicas (por enquanto apenas em inglês Polytechnic University - no quadro da sua política e estratégia de internacionalização) marcou o ano de 2023. A concretização deste objetivo por parte dos politécnicos foi assegurada com a aprovação, na Assembleia da República, no dia 23 de fevereiro, da alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo e do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior. As 64 entrevistas que selecionámos para este livro abordam, direta ou indiretamente, muitas das questões que marcaram, nesse seu tempo, o ensino e a educação no nosso país. São olhares de responsáveis de diferentes áreas que, no momento em que foram entrevistados expuseram a sua perspetiva, não apenas através da crítica, mas também indicando caminhos, numa época em que a inteligência artificial coloca novos desafios ao mundo educativo. João Carrega Diretor do Ensino Magazine ‹ 17 Prefácio Onde o autor revela a intenção de perscrutar e contextualizar uma década conturbada e não consensual na educação A educação vale muito. Vale, pelo menos, a sobrevivência da humanidade. Vale a felicidade, o bem-estar e a melhor das qualidades da vida. Vale a cultura: a particularidade do que acrescentamos ao que já temos e conhecemos; mais a arte, a literatura, a pintura, a música.... Vale a cura e a salvação, a alternância, a tolerância e a diversidade. João Ruivo (2009) A escola portuguesa tem atravessado (quase sempre) uma conjuntura de grandes desafios, só paralelos às ameaças que a espreita. Mas nos grandes momentos dilemáticos da ação, os professores e os educadores sempre revelaram ser possuidores de forças internas que lhes permitem olhar de frente as oportunidades. Mantemos a crença que, em qualquer momento de eventual mudança de paradigmas, saberão, uma vez mais, adequar o sistema às condicionantes da sociedade pluridimensional da economia global, da revolução tranquila que as novas tecnologias da informação e da comunicação introduziram nos nossos lares e nas salas de aula e na inclusão de todos nos projetos educativos, independentemente da sua origem social, cultural, racial ou religiosa, num mundo prenhe de mobilidade das gentes e dos saberes que as acompanham. ‹ 19 É certo que o futuro está a exigir respostas demasiado rápidas às nossas instituições educativas que, como a maioria das organizações sociais, tendem a transformar-se em estruturas lentas, resilientes e quantas vezes pouco sensíveis aos processos de mudança. Mas acreditamos na força e na energia dos investigadores, dos professores e dos educadores para romperem com a indiferença e enfrentarem, com otimismo, o futuro que gera a crença e a esperança no melhor que o amanhã nos possa proporcionar. Este terceiro volume de relatos, em forma de entrevistas, publicados no Ensino Magazine, engloba a década que entremeia os anos de 2014 e o de 2024. Fornece-se, assim, uma publicação de continuidade cronológica sobre as políticas (e os seus protagonistas) da educação em Portugal, dado que o primeiro volume cobria o período de 1998 a 2010 e o segundo volume (então revisto e aumentado) de 2010 ao início de 2014. A década em que se enraíza esta edição consiste, talvez, na década mais prolixa, diversificada, controversa e de contextos inesperados de todo o período democrático que, como se sabe, comemora este ano o seu 50º aniversário. A atmosfera política e económica internacional também contribuiu para a criação de diferentes conjunturas de risco que atingiram as principais democracias europeias e mundiais e que empurraram, indesejavelmente, os cidadãos para posições maniqueístas, radicais e fundamentalistas, em claro retrocesso com os ganhos já obtidos de consciência pacifista, tolerância, equidade, convivialidade, qualidade de vida, pondo em causa, entre outras variáveis, a previsibilidade do futuro, umas vezes no imediato, outras no curto e médio prazo. São condições propícias ao aparecimento de uma calda favorável ao ressurgir dos referidos e temidos radicalismos, dos populismos, da xenofobia, do racismo e da intolerância para com a diversidade, que as redes sociais e muita da imprensa, supostamente fiável, não teve preconceitos éticos e profissionais em seguir, em nome das audiências e suporte do financiamento direto, através da publicidade, ou indireto, proveniente da aquisição, por grandes grupos económicos e financeiros de órgãos de comunicação social. Trata-se de um ambiente político acompanhado por alterações inesperadas (?) do perfil de políticos e de políticas no quadro internacional (por exemplo a vitória eleitoral de Trump, nos USA, ou de Bolsonáro, no Brasil, entre outros casos…). Da emergência de conflitos bélicos que contagiaram toda a economia e política mundial: a invasão da Ucrânia pela Rússia, o mais recente conflito entre Israel e a Palestina, a guerra na Síria e no Iémen, a permanente instabilidade em alguns países do Magreb, da orla Arábica, da África central e oriental, ou dos permanentes conflitos de interesses entre as grandes potências asiáticas. Conflitos que provocaram fluxos extraordinários de migrações e de refugiados, sobretudo a caminho da Europa. 20 › Antagonismos que redesenharam a estabilidade das economias ocidentais, com o aumento dos custos da energia, dos combustíveis, das telecomunicações, dos transportes, do disparar abrupto da inflação, do aumento progressivo das taxas de juro impostas pelo BCE, com as inevitáveis consequências na perda do poder de compra dos cidadãos, devido ao aumento dos preços dos bens de consumo, do custo das habitações e respetivos alugueres, e com a pesarosa perda de tranquilidade nas rotinas da vida diária. Rivalidades que provocaram o empobrecimento dos grupos sociais mais frágeis, o desgaste da classe média, a erosão de regalias tidas como adquiridas para toda a vida, ou seja, a degradação generalizada da estabilidade das famílias, dos povos e das populações, sendo uma deterioração geradora de movimentos sociais contestatários, de instabilidade social permanente, com a inevitável reconstrução dos quadros institucionais das forças e movimentos sociais, partidários e sindicais tradicionais…. Não bastasse o que temos vindo a referir, será, para além disso, importante e desejável mencionar outros fenómenos, que constituem importantes variáveis preditivas de um futuro próximo. Referimos, por exemplo, as alterações climáticas que se acentuaram exponencialmente nesta década, transformando os comportamentos climáticos em quadros de bipolarização, onde coexistem secas drásticas em determinadas zonas geográficas, em contraste com inesperadas cheias e aluviões, destrutivos de inteiras comunidades. Extensos fogos nas florestas, já por si massacradas pela desflorestação, o degelo e a destruição dos glaciares, a subida dos níveis de água nos oceanos, são alertas de que o clima está a mudar rapidamente, sendo que ainda não se generalizou uma consciência coletiva desse fenómeno, que impacta com as economias e o desenvolvimento social. A gravidade desta problemática, leva-nos a perguntar: vamos deixar à próxima geração um mundo onde se possa viver, ou um mundo onde apenas se possa sobreviver? O envelhecimento da população, nomeadamente em Portugal, e a quebra demográfica (só compensada por alguns fluxos de migração) acarreta porvires muito incertos quanto à qualidade e quantidade de infraestruturas sociais específicas, como o são os jardins-de-infância, as escolas, os serviços de saúde, os lares para seniores, os cuidados paliativos, o apoio aos cuidadores informais, e sabemos nós lá mais o quê! As universidades continuam a formar para profissões que, provavelmente, não existirão daqui a vinte anos, porque também não têm o poder da adivinhação que levante o véu das atividades que serão, a médio prazo, indispensáveis à humanidade: o que coloca na ordem do dia uma clara necessidade do permanente regresso à escola (em sentido lato) para a atualização permanente ou, até mesmo, para a reconversão profissional, dado que é certo de que não haverá mais emprego/trabalho para toda a vida. O tecido social também se viu alterado com o aumento de famílias monoparentais, com a frequente e inevitável mobilidade no emprego e nas regiões de residência, e na ‹ 21 institucionalização do teletrabalho, nalguns setores empresariais, situação que diretamente descarregou dentro das paredes da escola novos e diferenciados problemas. Se fosse possível produzir um organograma rigoroso do retrato deste período, desta década singular e sistémica, esbarraríamos, inevitavelmente, com momentos de rutura, intercalados com contextos de inovação e de renovação e com o surgir de conjunturas imprevistas (e para as quais não estávamos minimamente preparados), como as que nos foram impostas pela pandemia, que assolou as escolas de todo o mundo. Nesta conturbada década podemos, todavia, atrevermo-nos a tentar identificar quatro “bolhas” de políticas educativas, que, quais matrioskas, se mesclam e entrecruzam, apesar da cronologia e das opções políticas que as separam, ou como diria António Sérgio, como constituindo o fio invisível que faz de qualquer conjunto de pérolas um colar: 1- O baronato de Passos Coelho/Nuno Crato, e a defesa da escola neoliberal, elitista e comprometida com indicadores economicistas. 2- Com o protagonismo dos mesmos atores, sobreleva-se o espigão da Troika, que, infelizmente, martirizou Portugal e os portugueses. 3- O principado de António Costa/Tiago Brandão/João Costa, os quais tentaram retomar o paradigma da escola pública, democrática e para todos, mas onde se atravessou o espinho do Covid-19, que apanhou todas as escolas desprevenidas e a entrar em modo de improviso, ou, se preferirem, no salve-se quem puder. 4- Com os mesmos protagonistas surge um influente, diferente e heterogéneo movimento sindical, adepto da convocação de ações públicas e de greves, as quais abalaram a estrutura e postura do Governo e o arrastaram para uma grave erosão política junto da opinião pública. *** A iliteracia das conveniências muito tem ajudado ao silêncio, à omissão e ao solilóquio dos que não fazem, nem deixam fazer. Por isso mesmo, é nossa convicção que a devolução ao leitor destas entrevistas poderá contribuir para a transparência da análise e do debate em torno desse período, conturbado e singular, da história da educação em Portugal. Como referimos, vivemos numa sociedade que, aceleradamente, se transforma e internacionaliza. Atravessamos uma conjuntura em que a escola meritocrática perdeu a sua capacidade de alavancar a promoção social dos aprendentes. No instante, não se vislumbra uma correlação positiva entre a formação e o emprego. Assistimos a um momento casuístico em que os docentes se revoltam, sobretudo pelo muito que as últimas três décadas não fizeram, ou pelo que ficou por fazer. 22 › Todos nós sabemos que, infelizmente, o problema é endémico e se converte, recorrentemente, em tema de debates, congressos, estudos e artigos de opinião. Porém, o contínuo alternar de eternos ciclos de investimento e de desinvestimento na educação, a ausência de uma estratégia concertada, que coloque a promoção da escola como uma das mais urgentes prioridades nacionais, não tem contribuído para uma atempada busca de soluções satisfatórias, consistentes e consensuais. *** Numa tentativa de ensaio e síntese (eventualmente indispensável, forçosamente reducionista) intentemos, então, caracterizar cada um destes períodos: 1- O baronato de Passos Coelho/Nuno Crato, e a defesa da escola neoliberal. Nos anos em que tutelaram o Governo e Ministério da Educação, podemos afirmar que o sistema educativo, passou a ser encarado segundo uma filosofia neoliberal, elitista, ancorada numa vontade sistemática de redução de custos, a qualquer preço, independentemente das consequências plasmadas na comunidade educativa. A alteração do léxico pedagógico é denunciadora do novo paradigma. Os alunos começaram a ser designados por “clientes”, os professores por “colaboradores internos”, as aprendizagens por “produtos”, o sucesso escolar por indicador da “qualidade total”, o planeamento pedagógico por “ação de empreendedorismo”, a gestão escolar ancorou-se em resultados milagrosos de discutíveis “swots” e de “planeamentos estratégicos” e a comunidade educativa passou a ser acolhida como sendo um grupo heterogéneo de “stakholders externos”, sendo que, qualquer investimento, deveria ser considerado como um “custo orçamental”. Esta taxonomia “pedagógica”, substitutiva do “normal” glossário escolar, anuncia uma desregulação da organização das instituições educativas, destruindo, talvez, a melhor parte do edifício da escola pública, enquanto escola democrática, inclusiva e meritocrática. Progressivamente, passou a ser “razoável” que, já agora, os professores e a escola pudessem também cumprir uma imensidão de funções, que até então estavam cometidas ao Estado, às famílias e à sociedade, partindo do princípio que, mesmo que não tivessem tido preparação específica para essas novas funções, os docentes já tinham demonstrado, noutros contextos, que sabiam desenvencilhar-se e, sobretudo, que não sabiam dizer não. E desde então, essas tarefas passaram também a ser funções da escola e dos seus professores. A partir desse momento singular, passámos a ter uma escola que, por mero acaso, também era um local de aprendizagem formal, mas que, sobretudo, se ‹ 23 foi desenvolvendo como um campo de clivagens, burocracias injustificadas e distanciamento entre dirigentes e dirigidos. E assim se baralhou e se desvirtuou uma escola que, altruisticamente, queria ser para todos, transformando-a numa escola onde tudo cabia. Era a escola para tudo. Foram anos em que se assistiu à continuada devassa da escola pública e ao sistemático retrocesso do desenvolvimento da profissionalidade dos docentes e da sua formação inicial e permanente. Porque a memória é curta, convém relembrar, como exemplo factual, que o ministro Nuno Crato, em entrevista ao jornal Sol, em 2012, afirmou que o sistema educativo tinha, pelo menos, mais 30 mil professores do que seria necessário, pelo que a sua redução seria inevitável. Sublinhe-se que o trabalho do professor é socialmente incontornável. Não depende apenas das políticas e dos políticos: é uma exigência social, reconhecida e validada, que implica com a construção do futuro e com o bem-estar das novas e das mais velhas gerações. E, por isso mesmo, não pode constituir um vaivém de necessidades conjunturais, até porque os efeitos das inovações em educação só produzem resultados a médio e longo prazo, ou seja, para além do mandato dos políticos que as determinam ou condicionam. A escola é um bem não negociável. Não pode ser objeto de argumentos de facção, de olhares recriminatórios e de invetivas de autoritarismo psicológico. Não pode, porque o que se faz à escola tem um efeito multiplicador e de imprevisível bumerangue. O desrespeito desleal pela escola marca e não esquece os seus manipuladores. A cicatriz social que daí resulta leva tempo a sarar, porque para com os professores temos uma dívida impagável, que permite absolver os momentos menos felizes do exercício da sua profissão. Porque lhes devemos uma boa parte do que somos. E até gostamos de pensar que nem somos tão maus por aí… 2- Com os mesmos atores, mantém-se a convivência com o espigão da Troika, que aprisiona as rédeas da política económica portuguesa. Durante este período, imposto pela insustentável e progressiva degradação económica do país, o Governo e a Troika mantiveram o corte aos docentes de dois vencimentos mensais, bem como a manutenção da abolição dos feriados oficiais e religiosos, aconchegaram cortes de até 10% do salário, determinou-se a continuação do congelamento das carreiras e viu-se mantida a “taxa fiscal adicional de solidariedade”, em termos de IRS. Pediu-se para a educação um corte orçamental de 175 milhões de euros, abusivamente ultrapassado. Esta poupança precisaria de ser conseguida através da “racionalização” da rede escolar, da reorganização dos agrupamentos, da diminuição do recrutamento de recursos humanos e da centralização do aprovisionamento. 24 › Neste período, o sistema de ensino perdeu cerca de 26 mil professores, por aposentação ou não renovação de contratos. Reduziram-se/aboliram-se os horários zero, aumentou-se o número de alunos por turma, redimensionaram-se os quadros de zona pedagógica (de 23 para 10!). Nalgumas áreas, a revisão curricular também permitiu reduzir o número de professores, como foi o caso da extinção do par pedagógico da EVT. Nuno Crato começou por anunciar o encerramento de 297 escolas do 1º Ciclo, tendo sido, no balanço final, encerradas 612 escolas primárias. A conclusão de fusão de escolas levou à criação de mais de 300 agrupamentos, alguns deles com mais de 3000 alunos (!). Finalmente, assistiu-se ao aumento do número e peso dos exames e do investimento num núcleo duro de disciplinas (por exemplo na matemática e no português) e um desinvestimento nas disciplinas com dimensão afetiva, relacional, criativa e artística. Não estranha que, durante esse período, se tenha vivido uma época de desânimo e desencanto profissional e social, provocada por esse sistema complexo-adaptativo. Assim, caos, auto-organização e adaptabilidade foram algumas palavras-chave para descrever este processo, aparentemente contraditório, que envolveu a sociedade, a escola, os educadores e os aprendentes, quase até à sua exaustão. 3- O principado de António Costa/Tiago Brandão/João Costa, com o inesperado advento do espinho do Covid-19, que apanhou todas as escolas desprevenidas, obrigadas a ingressar em modo de improviso. Um principado que se inicia com a tentativa de retomar o conceito de escola pública, democrática, uma escola inclusiva e para todos (ver, por exemplo, o Dec. Lei 54/2018), autonomia na gestão curricular, descongelamento das carreiras, contratos-programa com agrupamentos escolares para o desenvolvimento de experiências inovadoras e, com o passar do tempo, a redefinição e reorganização dos quadros de zona pedagógica, que passam de 10 para 63, tendo como objetivo reduzir as distâncias a percorrer pelos docentes entre escolas, após a sua colocação (de 150 ou 200 quilómetros, para máximos de 50 quilómetros), com a alteração da contagem total e contínua do tempo de serviço, e a vinculação de mais de 8 mil professores (...). Acrescente-se, ainda, a devolução aos docentes dos cortes salariais, dos tempos de feriados, da abolição das taxas fiscais especiais, reorganização dos escalões do IRS e outros cortes que a Troika tinha imposto aos trabalhadores portugueses. Nuno Crato tinha afirmado, como referimos, que havia excesso de professores e de escolas. Em claro contraste, o ministro João Costa afirmou este ano, ao JN, que Portugal necessitaria de pelo menos mais 30 mil professores e educadores até 2030. E, de nossa lavra repetiria o que desde há muito temos vindo a afirmar: os professores que neste momento estão no sistema não estarão daqui a 15 anos e os que os devem substituir ainda nem começaram a ser formados. ‹ 25 Em suma, as anteriores medidas de política educacional, integrantes de uma conceção conservadora do papel da escola e da função dos docentes (aumento do número de alunos por turma, segregação por níveis de aprendizagem, endeusamento dos exames e dos rankings, entre outros) colocavam na ordem do dia, e uma vez mais, a defesa da escola pública. Porém, este período de intenções renovadoras foi, inesperadamente, sujeitado à pandemia do Covid-19 que, como se sabe, apanhou todas as escolas desprevenidas, sem meios para o ensino a distância, o que exigiu aos docentes um esforço tremendo de atualização quanto à sua eventual iliteracia digital e o apetrechamento tecnológico das escolas. Convindo sublinhar, desde já, que grave foi, como se veio a detetar, a perda de aprendizagens dos alunos. Na verdade, o confinamento escolar veio trazer novos e incontornáveis desafios. Como se sabe, para fazer face ao ensino não presencial, os docentes, que nunca tinham utilizado um sistema de ensino a distância (que obriga à utilização de metodologias e técnicas específicas) viram-se condicionados a implementar um tipo de “ensino remoto de emergência”. Não nos interessa, agora, centrar o debate nessa particularidade académica. O importante, para nós, é o facto de: 1 - os professores terem recuperado, durante este período, mais de uma década de formação na utilização dos meios digitais de apoio ao ensino e à aprendizagem, ao demonstrarem quão rapidamente se adaptaram às tecnologias que os confinaram ao ensino não presencial; 2 - a Internet ter tido um papel fundamental quanto ao desempenho da comunicação, da informação e da formação das populações escolares, neste particular contexto pandémico. Face às circunstâncias, o que se fez, fez-se bem, fez-se muito, com empenho e numa (quantas vezes impossível) postura inclusiva. Neste particular aspeto, os professores foram verdadeiros heróis sociais. Se alguma coisa a pandemia nos ensinou, foi o facto de este fosso de literacia digital se ter atenuado significativamente. Ou seja, a referida “emergência” de comunicação a distância aproximou, no domínio das tecnologias, as diferentes gerações integrantes da comunidade escolar. Muitos de nós fomos apenas preparados para agir em situação de sala de aula, pouco na comunidade escolar, raramente na aldeia digital e na comunidade parental. Aí, começam as fobias, os preconceitos, as reservas e os desencantos. Aí, os discursos começam sempre a ser menos pedagógicos e mais defensivos de uma neutra profissionalidade, que nem sempre sabemos definir ou, por ausência de outro modelo, definimos com base na tradição e no pior da narrativa oral. O alargamento das tarefas e funções dos docentes obrigam-no a intervir numa nova geografia pedagógica, obrigam-no a caminhar em terrenos e a traçar percursos em que ele nem sempre se sente profissionalmente confortável. Obriga-se a que o 26 › professor também seja tutor e educador, quando ele, de facto, apenas foi treinado para ensinar, em contacto direto com os seus alunos, sem intermediários “internéticos” que propiciem a aprendizagem a distância. Existe, então, um enorme desafio que se coloca futuramente à escola, às famílias e aos educadores: o de conseguir fomentar as aprendizagens das tecnologias digitais, sabendo, simultaneamente, integrá-las num ambiente educativo, sem ostracizar os meios e instrumentos “analógicos”, como o são, por exemplo, o livro e a escrita em suporte de papel (…). Mas para que essas tecnologias digitais e analógicas promovam as mudanças esperadas no processo educativo, devem ser usadas não como simples instrumentos para ensinar, ou aprender. O objetivo será de as incluir na listagem de ferramentas pedagógicas disponíveis, desde que criem um ambiente interativo, que proporcione ao aprendiz, face a múltiplas situações problema, investigar, levantar hipóteses, testá-las e redefinir as suas ideias iniciais, construindo o seu próprio conhecimento e adquirindo uma hierarquia de valores que integre uma aguçada competência quanto a critérios de escolha do verdadeiro e do falso, do luxo e do lixo que prolifera nas redes sociais, ou nos meios de comunicação mais tradicionais. Conhecer e saber utilizar as fontes de informação e as bases de dados fiáveis e fidedignas, é hoje uma competência formativa imprescindível a qualquer aprendente que se reveja na aldeia global do século XXI. Por outro lado, o Estado terá de promover a democratização do acesso de todos os estudantes, em pé de inteira igualdade, aos equipamentos necessários à comunicação síncrona, ou à não presencial. Porque, também aqui, a igualdade do acesso promove a igualdade do sucesso escolar. Sabemos que a escola de massas dificulta, particularmente, a inclusão digital de todos os alunos, já que promove um novo tipo de estratificação escolar que divide os que têm computadores em casa e os que não os têm; os que têm Net em casa e os que a não têm; os que têm Net de alta velocidade e os que não a têm, os que…. Todavia, essa mesma escola de massas pode favorecer o atenuar da exclusão a que muitos alunos estariam votados, se souber, como referimos, democratizar o acesso e a utilização de todos (os novos e os mais tradicionais) os instrumentos educativos, organizando-se em torno de objetivos claros, de equipamentos acessíveis e de um corpo docente motivado, informado e formado no uso da diversidade das metodologias e técnicas pedagógicas, promotoras de aprendizagens. Importa, finalmente, reconhecer que o conceito de sala de aula desde há muito que está a mudar. Para lá das quatro paredes da escola, a sala de aula é todo o lugar, todo o espaço, todo o momento singular e único, onde se conjuga o prodígio de integrar momentos de ensino com instantes de aprendizagem. ‹ 27 4 - Com os mesmos protagonistas surge um influente movimento sindical, adepto da convocação de greves, as quais abalaram a estrutura e postura do Governo e o arrastaram para uma grave erosão política junto da opinião pública. A tampa da panela, que há décadas fervia em lume lento, rebentou, subitamente, com a aparecimento de novas forças sindicais, de diferentes organizações sociais populistas que arrastaram as escolas e os professores para interrupções intermináveis da atividade letiva, prolongando a continuação da perda de aprendizagens dos alunos e cujas reivindicações ainda não foram totalmente satisfeitas. De salientar que alguns desses movimentos “espontâneos” seguiram percursos à revelia do enquadramento sindical, e acabaram por revelar comportamentos pouco éticos, de insensibilidade social para com alunos e escolas, de desrespeito institucional, por vezes com a utilização de iconografias pouco edificantes, enquanto exemplo a apresentar aos seus aprendentes. Tais ocorrências revelavam que a mensagem da renovação não atingiu o público-alvo! A comunicação não se revelou eficaz. As anteriores décadas de atavismo e imobilismo, tal dialética Hegeliana, conduziram a que a acumulação quantitativa de problemas e aspirações mal solucionados, ou por solucionar, provocasse um salto qualitativo, de imediatismo inesperado. Ou seja, da antítese passou-se a uma nova tese, sem amadurecimento, intermédio, de uma síntese consensualizada. Nos tempos que correm, surgem já inúmeras vozes reclamando por uma nova prática, uma diferente cultura e, consequentemente, uma nova postura sindical, distinta dos grandes “movimentos de massas” sorvidos das práticas ancestrais nascidas no Século XIX e XX. Sabendo que as grandes transformações históricas nascem sempre junto de minorias que expressam o seu pensamento e o pretendem levar à ação, talvez não fosse despropositado ter em conta o contributo daqueles que pretendem mudar o sentido das rotinas instaladas, na busca de procedimentos mais consentâneos com o respirar dos novos tempos e com os movimentos geradores da evolução, da renovação e da mudança. No que respeita ao sindicalismo docente, a responsabilidade sente-se acrescida não só porque na classe dos professores e educadores se tem vindo a assistir, como já vimos, a enormes alterações nas suas competências funcionais e no sistemático acrescentar de novas e distintas obrigações pessoais e profissionais, mas também porque pertencem a um grupo profissional intimamente ligado às alterações do tecido social, económico e cultural que, necessariamente, se refletem nas suas vivências escolares, pessoais, sociais e familiares. O ignorar da existência de uma estratégia inadaptada aos quotidianos das escolas, as atuações a reboque de táticas do momento, a cedência evitável às pressões de 28 › grupos conjunturalmente melhor posicionados dentro e fora do movimento sindical, ou associativo, deixando de lado a defesa daqueles que, sendo voz passiva ou minoritária, não deixam de aspirar em se reverem nas atuações reivindicativas, dificulta a adesão desinteressada e tranquila junto de muitas organizações profissionais. Em verdade se diga que uma parte muito significativa dos documentos estratégicos aprovados em congressos e jornadas sindicais revelam uma qualidade e pertinência indiscutíveis e constituem uma referência histórica para quantos se debruçam sobre a atividade profissional dos professores e educadores. Todavia, também facilmente se constata que, para lá das palavras, essa produção teórica nem sempre se reflete na atuação diária daqueles que têm por obrigação levar às escolas o novo pulsar dos movimentos e das organizações que representam. Vale a pena começar de novo, acreditar, acompanhar e investir na organização profissional dos docentes, o que irá requerer um esforço sério de renovação de mentalidades e consequentes modos de sentir, pensar e de agir. E quem não o compreender arrisca-se a perder o comboio que, intranquilamente, nos transporta ao futuro. *** Afinal, o que queremos ser, saber e saber fazer? Todos percebemos, ou julgamos saber, como deve ser e o que deve ter uma escola pública que promova a aprendizagem efetiva dos seus aprendentes e o bem-estar e a profissionalidade dos seus formadores. Mas, em balanço final, temos de reconhecer que a escola de massas, a verdadeira escola pública, ainda não conseguiu que a igualdade do acesso se transforme numa igualdade de sucesso; assim como tarda a que a escolaridade seja por todos vista como um valor de promoção social e de meritocracia. Nestes contextos, o professor, que é simultaneamente cidadão e educador, vê-se confrontado com esse duplo dilema: o de ajudar a construir uma sociedade mais justa e o de erguer uma escola gratificante para quantos nela trabalham e nela se revêm: alunos, docentes, funcionários, pais e membros da comunidade local. Confrontados entre o desejo de realizar cada vez mais e melhor e a míngua dos resultados oficialmente e superiormente reconhecidos, sentem-se frustrados e menorizados na sua profissionalidade. Sentem-se assim, não por incúria, mas porque são profissionais responsáveis e de dedicação para lá dos limites do imaginável. Reconhece-se que os professores são intelectuais livres. É certo. Mas num aparelho de Estado centralizador, como é o nosso, também são chamados a serem dóceis funcionários executores de medidas de política educativa, das quais por vezes discordam e para as quais só episodicamente são chamados a opinar. ‹ 29 Daí resulta um estranho equívoco: muitos docentes assumem como derrota profissional a falência desta ou daquela medida deste ou daquele governo. Entendem que foram o problema quando, de facto, os normativos burocrático-administrativos não os deixaram ir em busca da solução. Se queremos que os professores assumam, em plenitude, toda a responsabilidade do que ocorre na escola, então revela-se indispensável que eles a si chamem a gestão de uma boa parte dos destinos das instituições educativas. Não há responsabilidade total sem assumida autonomia. Não deve ser exigida a prestação de contas a quem não foi autor dos objetivos a contratualizar e da missão a cumprir. Como referimos, o Estado e as famílias demitem-se, todos os dias, de objetivos educativos que só a eles deviam ser remetidos e dos quais contratual e socialmente se responsabilizaram. O Estado e as famílias pedem à Escola que os substituam. E apontam o dedo acusador quando a máquina falha por excesso de carga profissional, emocional ou administrativa. Daí que alguns jovens sejam levados a acreditar que a escola é terra de ninguém, onde a ética e a deontologia ficam à porta da sala de aula e onde todo o individualismo exacerbado pode substituir o trabalho honesto e colaborativo. Nestas circunstâncias, muitos professores são apanhados em curvas de desencanto mais apertadas, durante o exercício da sua profissão, porque são induzidos a julgar que foram formados para serem exclusivamente gestores de conflitos numa arena que, em algumas escolas, resvala o limite do bom senso e da decência. Porém, não há futuro sem escola. É por essa razão que jovens, crianças e pais todos os dias a procuram. É na escola que a população adulta quer vir a saber mais ou, se se sentir desajustada, deseja ser reconvertida; é aí que os arrependidos, que cobiçam reiniciar um novo ciclo da sua vida, vêm bater à porta; é ela que acolhe os que não tiveram oportunidade (porque a vida também sabe ser madrasta) e agora buscam o alimento do sucesso. E, mais que tudo, a sociedade e o Estado já não sabem (e não podem…) viver sem ela, sobretudo porque os professores e educadores são a alma, o sal e o sangue de que se faz, todos os dias, essa grande construção coletiva que é um país e uma nação. A escola, tal como a conhecemos, é uma invenção recente da humanidade. Mas não é um bem descartável, de uso tópico, a gosto de modas e de falsas conveniências financeiras e orçamentais. A escola vale muito mais que tudo isso. Vale bem mais do que aqueles que a atacam. Vale por mérito, por serviço ininterruptamente prestado, socialmente avaliado e geracionalmente validado. Ao longo da história (como diria a minha colega Alen), a sociedade já precisou que os professores fossem heróis, para que assegurassem o ensino nos momentos mais difíceis e nas condições mais adversas; já necessitou que fossem apóstolos para que aceitassem ganhar pouco; que fossem santos para que nunca faltassem, mesmo 30 › quando doentes; que se revelassem sensíveis, para que garantissem as funções assistenciais e se substituíssem à família e ao Estado; e que, simultaneamente, se mantivessem abertos e flexíveis para aceitarem todas as novas políticas e novas propostas governamentais. Mesmos as mais ilógicas e infundadas. Porém, agora é bom que os mantenhamos lúcidos, para que possam ultrapassar com sucesso esse porvir, complexo e desconhecido, que se avizinha rapidamente, porque a educação e os professores são semente e pão de todos os futuros. A educação não é uma dádiva dos deuses. A educação é uma obra assombrosa, fruto da frágil elaboração humana. Quando bem utilizada, reconhecemos-lhe a força e o vigor próprio das forças cósmicas. Quando instrumentalizada, em nome de valores inconfessáveis, revela-se débil e ténue, como se não soubesse ser outra coisa que não fosse a de ajudar a humanidade a ser cada vez melhor. Por isso, reafirmamos: não queremos uma escola que seja de baixa qualidade! Nesse desafio, estamos com todos quantos defendem ser urgente relançar a defesa dos princípios fundadores da escola democrática e inclusiva, uma escola que seja exigente na valorização do conhecimento e promotora da autonomia pessoal. Uma escola pública, laica e gratuita, que não desista de uma forte cultura de motivação e de realização de todos os seus membros. Uma escola pública que, enfim, se assuma como um dos pilares da democracia e como um dos motores da construção de um país onde seja orgulhoso viver e conviver. João Ruivo (PhD) Ex-Vice-Presidente do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal). CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – Universidade Nova de Lisboa (Portugal). IRCIT – Centro Internacional de Investigação para a Inclusão e Formação de Professores – Universidade Europeia de Roma (Itália). CEDEFOP Stakeholder (Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação Profissional) (Bélgica). Professor Colaborador nas Universidades: UEX e USAL (Espanha). ‹ 31