UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Economia
DIÁLOGOS ENTRE CAMINHA E FREI VICENTE DO SALVADOR
- Construção de uma “arqueologia” da consciência da diferença entre
colonos e reinóis em documentos luso-brasileiros dos séculos XVI e XVII
Milena Fernandes de Oliveira
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Instituto de Economia da UNICAMP
para obtenção do título de Mestre em
História Econômica, sob a orientação da
Prof. Dr. Fernando Antônio Novais.
Este exemplar corresponde ao original da
dissertação
defendida
por
Milena
Fernandes de Oliveira em 12/02/2003 e
orientada pela Prof. Dr. Fernando
Antônio Novais.
CPG, 12/02/2003
_____________________________
Campinas, 2003
i
(Ficha catalográfica)
Palavras-chave: arqueologia, percepção, consciência, diversidade, diferença, colono,
reinol, colonizador, colônia, metrópole, Antigo Sistema Colonial, nação, Brasil.
ii
“Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”.
(Chico Buarque, Fado Tropical)
iii
Agradecimentos
Ao longo destes três anos de pesquisa, sete de casa, pude contar com a ajuda de muitos:
colegas de trabalho, professores, funcionários. Muitos destes ao fim e ao cabo transpuseram as
barreiras formais que todo trabalho impõe e acabaram tornando-se muito mais do que meros
colegas. Acabaram tornando-se meus amigos e uniram-se à legião daqueles que desde muito me
acompanham.
Dentre estes estão funcionários da Secretaria: Alberto, Cida, Regina e Marinete, que me
ajudaram na resolução de muitos problemas burocráticos, com os quais nem sequer sabia lidar.
Acabei criando carinho especial por todos e até improvisando um “anjo da guarda” dentro da
instituição: meu querido Alberto.
Contei ainda com ajuda dos bibliotecários do instituto: Ademir, Almira e Lourdes,
muitas vezes ajudando-me na procura de material ou providenciando aqueles de que a Unicamp
não dispunha, como por exemplo o exemplar da Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do
Brasil usado neste trabalho e emprestado da Universidade de São Paulo.
Também tive a sorte - literalmente sorte porque nos dias de hoje, até mesmo os apoios
financeiros aos estudantes têm de ser decididos por meio de sorteios - em receber ajuda financeira
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico de Tecnológico (CNPQ), sem a qual não
poderia ter me mantido em Campinas.
Agradeço ainda aos colegas de turma e de trabalho: Rogério, André, Leovigildo,
Claudilei, Wolfgang, Laércio, Éder e Fernando Afonso. Pela companhia perene na lenta
caminhada destes três anos. Carinho especial devoto a Rogério, pela semelhança de
personalidade, e a Léo, “nosso professor”, como eu e Rogério o chamávamos e com quem tanto
aprendi nestes três anos. Agradeço ainda Eduardo e Fátima, outros orientandos do Professor
Fernando Novais, que me forneceram indicações preciosas de seus trabalhos.
Às amigas: Adriana, Andréia, Ana Paula, Glenda, Joely e Soraia, minha família nesta
cidade. Àquelas que me deram não somente força para continuar o trabalho, mas tempo para me
ouvir e companhia nos momentos de solidão.
v
Às amigas Ângela, Luciene, Lucimara e Márcia, amigas que desde os primeiros anos de
vida me acompanham e assim me acompanharam neste trabalho.
Às amizades que fiz nas Faculdades de Campinas (Facamp): Andréa, Fabiana, Helena,
Jackeline, Maria, Priscilla e Renata, com quem travei não somente laços profissionais, mas
amizades preciosas que me ensinaram coisas para toda a vida.
Aos amigos dos “timote” que reforçaram em mim a certeza de que a música é
indispensável para minha vida e que por meio dela me transfundiram toda sua alegria. Em
especial ao querido Melqui, hoje de volta à “terra Natal”, que não somente tocava habilmente o
violão, mas a alma de todos aqueles que o rodeavam. Também a Carlos, fã inveterado de Noel
Rosa, meu especial obrigado por me inspirar o gosto pela Velha Guarda e a ensinar-me um pouco
mais sobre Chico Buarque, ídolo de todos nós.
Ao amigo Sidinei, não mais entre nós fisicamente, mas sempre presente adoçando nossas
lembranças com a sua alegria. Meus votos de força aos seus pais e à meiga Tatiane, também
amiga de longa data.
À minha família, que mesmo sem ter conhecimento exato sobre o meu trabalho,
suportaram-me nas oscilações de que sofrem todos aqueles que escolhem o trabalho acadêmico.
Serviram como sempre suas mãos para me amparar, seus ombros para chorar e seus braços para
me aquecer.
A professores que adotei como parte dessa família, que conheci durante a graduação e o
mestrado e que se tornaram mais do que mestres: tornaram-se amigos; tornaram-se “segundos
pais”. Agradeço a Frederico Mazzuchelli, José Carlos de Souza Braga, José Ricardo Barbosa
Gonçalves, que me abriu as primeiras sendas rumo à História e a João Manoel Cardoso de
Mello, em quem encontrei literalmente um pai: rigoroso e terno a um só tempo.
Um agradecimento especial ao professor István Jancsó pela gentileza em ler meu
trabalho, pela hospitalidade com que me recebeu no Instituto de Estudos Brasileiros e pelos
conselhos que me abriram os olhos para graves falhas.
vi
Ainda aos professores Jobson de Arruda, Wilma Peres Costa e Lígia Osório por tantas
outras coisas aprendidas ao longo do curso.
Enfim, ao mestre Fernando Antônio Novais, que me foi mais do que orientador de um
trabalho, foi-me um orientador para a vida; àquele em quem via um porto seguro que me fazia
sentir a confiança de não estar só nessa difícil transição dos domínios da ciência estrita para a
História.
Ao longo deste trabalho lembrava-me sempre de uma frase do pequeno príncipe : “Les
hommes (...) ils s’enfournent dans les rapides, mais ils ne savent plus ce qu’ils cherchent (...) Les
hommes (...) cultivent cinq milles roses dans um même jardin (...) et ils n’y trouven pas ce qu’ils
cherchent (...)“, que me levava a refletir a respeito da necessidade de os homens saberem sobre
sua identidade, procurarem o seu ponto de referência, mesmo às vezes parecendo que “ils
s’agitent et tournent em rond”. Será que também eu estaria girando em círculos sem ir a lugar
algum? Acho que o que tentei procurar com esse trabalho foi saber um pouco mais sobre essa
identidade difusa que é a brasileira, da qual todos nós compartimos, buscando um primeiro
sentimento que fosse alguma manifestação mais definida de distanciamento em relação ao
português adventício. O andar em círculos não foi inevitável, mas o resultado da tentativa em
reconstituir esse sentimento, tentando fugir ao mesmo tempo do anacronismo e da
inevitabilidade em se pensar como economista, está nas páginas que se seguem.
Campinas, 26 de janeiro de 2003.
vii
ÍNDICE
Agradecimentos
v
Introdução
1
Capítulo 1: 1500-1618: de Caminha aos Diálogos das Grandezas do Brasil
15
1.1 Da primeira carta aos Diálogos
15
1.2 Contexto histórico geral 1500-1627
20
1.3 Tipos de Documentação e percepções de diferença
25
1.3.1 Tratados
25
1.3.2 Documentação Inquisitorial
34
1.3.3 Documentação Oficial
40
1.3.4 Documentação Jesuítica
45
1.3.5 Documentação “Estrangeira”
49
Capítulo 2: 1615-1627: dos Diálogos à História de Frei Vicente
53
2.1. Consciência da diferença entre colonos e reinóis nos Diálogos das Grandezas do
Brasil
53
2.1.1 A Obra
54
2.1.2 A autoria e a consciência da diferença
56
2.1.3. Da percepção da diferença à consciência de sua existência
60
2.2 Consciência da diferença entre colonos e reinóis na História do Brasil
75
2.2.1. A Obra e o autor
75
2.2.2 Natureza da “colonização” em Frei Vicente do Salvador
77
85
Capítulo 3: Novos diálogos
3.1 Diálogos entre Caminha e Frei Vicente do Salvador
85
3.2 “Arqueologia” da consciência da diferença e o Antigo Colonial
99
128
3.3 Travando novos diálogos
Conclusão
135
ANEXO
145
Fontes
147
1. Fontes Editadas
147
2. Bibliografia
153
xi
Resumo
Inspirado no conceito foucaudiano de arqueologia, esse trabalho é uma tentativa de
construir uma das condições de possibilidade da identidade nacional, qual seja, a consciência da
diferença. Antes de sabermos o que somos, afirmarmos a identidade por meio de um único e
mesmo caráter, fazermos parte de uma mesma comunidade imaginada que representa a nação,
começamos por saber o que não somos. Nesse sentido, entre o ser português e o ser brasileiro,
existe um estado fluido que é dado pela consciência de diferença do português morador da terra
em relação ao morador do Reino. A construção de tal consciência de diferença é feita dentro da
documentação dos séculos XVI e XVII a partir da hipótese de que essa consciência já existe nos
Diálogos das Gandezas do Brasil e se completa com a História do Brasil de Frei Vicente do
Salvador. O objetivo é o de entender como essa consciência de diferença foi sendo tomada pelos
diversos agentes que compunham a sociedade colonial: oficiais da Coroa, senhores de engenho,
jesuítas, inquisidores, não portugueses que, de passagem, deixaram seus testemunhos sobre o
modo de viver colonial. O movimento é o da passagem da pura percepção para uma consciência,
da diversidade para a diferença, da atenção centrada na natureza para o homem. Assim é que
tentamos reconstituir as condições de possibilidade da consciência de diferença, compondo uma
“arqueologia” de tal consciência.
xiii
Introdução
“(...) e como a caravela era um pensamento (...) a nau franceza sobrecarregada
finalmente foi alcançada (...)”.
(Frei Vicente do Salvador, História do Brasil)
“E como a caravela era um pensamento...”. Em uma metáfora maravilhosa, Frei Vicente
associa a velocidade do pensamento à velocidade de navegação das caravelas lusas. A caravela
desliza como o pensamento sobre as águas, enquanto o pensamento desliza como as caravelas
dentro da cabeça dos homens. Um pensamento ambíguo, contraditório, primevo aos nossos olhos,
mas não menos veloz. Pleno de magia. É nesse pensamento do homem dividido entre o mundo
medieval e o Renascentista, entre o velho e o novo, entre o sagrado e o profano, que encontramos
o ponto de partida para nossas reflexões. É nesse pensamento do século XVI que encontramos as
pré-condições para a formação de um pensamento brasileiro que começa a tomar contornos em
meados do século XVIII e a defini-los com maior exatidão no século seguinte. É nesse
pensamento que encontramos a “arqueologia” da identidade que fez, faz, desfaz e refaz nossa
própria História. E pensar que foi nos porões dessas primeiras caravelas velozes como o
pensamento, que nos foram trazidas as pré-condições para nossa História, as condições para a
formulação de nosso próprio pensamento, talvez não tão veloz, mas tão instável quanto aquelas
primeiras caravelas...
É na procura por essa História que fomos obrigados a buscar sua pré-história e recuar
ainda mais, rumo à sua “arqueologia”. Afinal, quando podemos falar em Brasil? Quando
podemos falar em História do Brasil? A História do Brasil se inicia com a carta de Caminha? A
resposta é afirmativa para alguns historiadores. Para outros se inicia anteriormente. Ainda há os
que acreditam que a História do Brasil começa a surgir em meados do século XVIII. Adotaremos
essa terceira concepção e explicaremos a seguir o porquê.
Quando falamos em História do Brasil, ou na História de qualquer nação, o anacronismo,
o maior problema que se tem ao se estudar História, se torna imediato. Isso não somente porque o
historiador é parte da identidade que originou a História que pretende estudar. O anacronismo
advém do fato de que como toda nação precisa de passado para se legitimar, seu estudo acaba
servindo para fundamentar tal legitimação, o que impõe um “telos” à História a partir daquilo que
1
a nação é hoje. O movimento correto seria o de entender a nação como uma construção de seu
passado e não o contrário: o passado sendo moldado pela identidade presente de uma nação.1
O anacronismo se torna ainda mais agudo quando se trata de uma nação de passado
colonial. Caio Prado atentou para isso em Formação do Brasil contemporâneo, em especial a
respeito das interpretações da Independência enquanto um movimento formador da nação
brasileira:
“(...) trata-se de uma situação que ainda não existe, que não tem conteúdo
próprio, mas é apenas um estado latente que se revela por alguns precursores,
sintomáticos mas isolados (...) O historiador, ao ocupar-se dela, enfrenta o risco
de tratar o assunto anacronicamente, isto é, conhecedor que é da fase posterior,
em que ocorre seu desenlace, em que ela se define, projetar esta fase no
passado. O que não raro tem sido feito. Como o processo que ora nos ocupa vai
dar na separação da colônia de sua metrópole, na Independência, são as
manifestações neste sentido que se procuram. (...) O final da cena, ou antes, o
primeiro grande acontecimento de conjunto que vamos presenciar será, não há
dúvida, a independência política da colônia. Mas este final não existe antes
dela, nem está ‘imanente’ no passado; ele será apenas a resultante de um
concurso ocasional de forças que estão longe, todas elas, de tenderem, cada
qual só por si, para aquele fim. Algumas, possivelmente, todas certamente não.
Mas como concorrem sem exceção, e têm cada qual seu papel, nenhuma pode
ser desprezada. Além disto, e sobretudo, são elas e não o seu desenlace que nos
devem inicialmente ocupar”. 2
Aqui estão subjacentes duas questões: a questão do que vem a ser Brasil enquanto nação e
a questão subseqüente do que é História do Brasil. Para nos orientarmos com relação à primeira
questão, adotamos o conceito de nação enquanto “comunidade imaginada” de Bendict Anderson.3
Baseados em tal conceito, a nação brasileira apareceria quando já existisse alguma forma de
identidade capaz de unificar os membros componentes dessa “comunidade imaginada”.4 Isso é
1
Inspirado por um texto de Gramsci: “El Risorgimento”, que assinala a maneira como a história se constitui
“biografia da nação”, ou seja, como a justifica, Rogério Forastieri tenta reinterpretar os “movimentos nativistas”
como base para o surgimento da nação. Para isso, utiliza como parâmetro o conceito de Antigo Sistema Colonial.
(Rogério Forastieri da Silva. Colônia e Nativismo: A História como “Biografia da Nação”. São Paulo, Hucitec,
2001).
2
Caio Prado Júnior. Formação do Brasil Contemporâneo- Colônia. 24a impressão. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1996,
p. 357.
3
Benedict Richard O'Gorman Anderson. Nação e consciência nacional.Trad. de Lolio Louren de Oliveira. São
Paulo, Ática, 1989.
4
“In an anthropological spirit, then, I propose the following definition of nation: it is an imagined political
community (...) It is imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their fellowmembers, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of their communion.(...) it is
imagined as a community, because regardless of the actual inequality and exploitation that may prevail in each, the
2
pré-condição para a inauguração de uma História própria. Até então, os acontecimentos eram
parte da História de Portugal, ou de outra forma, faziam parte de uma pré-história do Brasil. A
contestação ao Antigo Sistema Colonial é o que adotamos como um indicador da passagem da
pré-história para a História do Brasil.
Como conseqüência imediata do fato de a História de uma nação estar relacionada à
identidade que dá fundamento a tal nação, o historiador não somente se torna sujeito de seu
estudo, mas também objeto. O problema é que evitar uma história totalmente “desapaixonada” é
impossível.5 Tem-se de partir do reconhecimento dessa identidade e incorporá-la ao estudo da
nação, sem que isso, no entanto, chegue ao extremo do anacronismo.
São três os instrumentos dos quais dispomos para lidar com os dilemas engendrados pelo
estudo de uma história nacional. O primeiro deles é uma metodologia baseada no conceito
foucaldiano de arqueologia. Foucault inaugura um novo método baseado em uma analogia com
a técnica utilizada pelos arqueólogos de trazer à tona aquilo que está em camadas mais profundas,
visando explicar o que “está em cima”, o presente, a partir daquilo que “está embaixo”, ou seja, o
passado. Neste caso, as camadas já sedimentadas seriam as condições de possibilidade para as
camadas mais próximas do presente. No entanto, a analogia que Foucault faz com a arqueologia
em seu sentido estrito, para por aí: a do resgate das condições de possibilidade. Ao passar para o
campo da filosofia, ele quer estudar as condições de possibilidade para o nascimento de uma
episteme, mas ele quer fazê-lo desvinculando o estudo da filosofia de uma origem, como até
então tinha sido.6 O estudo da filosofia era encarado como o estudo de uma seqüência
nation is always conceived as a deep, horizontal comradeship. Ultimately it is this fraternity that makes it possible”.
(Benedict Anderson, Imagined Communities: reflection on the origin and spread of nationalism. 2nd ed. London;
New York, Verso, 1991, p. 5-7). O termo comunidade imaginada é o que melhor casa com o nosso projeto, uma vez
que buscamos a “arqueologia” de uma identidade não somente ideológica, mas política e cultural.
5
“Ao máximo que se chega (...) é admitir uma conexão entre história e política, porém sem levar em conta o filtro do
presente; deste modo, a conexão estabelece-se no terreno das idéias, das concepções do mundo, em que apareça
viciada pelo contágio com os interesses. Os historiadores acadêmicos, por sua parte, não chegam tão longe, ele estão
convencidos de que se limitam a investigar desapaixonadamente o passado, livre de qualquer preconceito cultural ou
político.” (Josep Fontana, História: Análise do Passado e Projeto Social. Trad. Luiz Roncari. Bauru, Edusc, 1998, p.
10)
6
“Esse termo não incita à busca de um começo; não associa a análise a nenhuma exploração ou sondagem geológica.
Ele designa o tema geral de uma descrição que interroga o já-dito no nível de sua existência: da função enunciativa
que nele se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte. A
arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo”. (Michel Foucault.
Arqueologia do saber. Trad. Luís Felipe Baeta Neves. Petrópolis, Vozes; Lisboa, Centro do livro brasileiro, 1972, p.
217). Reforçando o que Foucault entende por arqueologia: “A revelação, jamais acabada, jamais integralmente
alcançada do arquivo, forma o horizonte geral a que pertencem a descrição das formações discursivas, a análise das
positividades, a demarcação do campo enunciativo. O direito das palavras – que não coincide com o dos filólogos –
autoriza, pois, a dar a todas essas pesquisas o título de arqueologia”.(Foucault, op. Cit., p. 151).
3
cronológica de autores: de Platão, passando por Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, até
Descartes. A filosofia tinha a função de averiguar a contribuição de um autor em relação ao seu
precedente. A arqueologia de Foucault pretende romper com essa análise diacrônica ao
questionar sobre as condições de possibilidade de conhecimentos coevos. Daí partir do
questionamento do que há de comum entre a psiquiatria, a biologia, a gramática e a economia,
todas ciências que surgem na passagem do século XVIII para o XIX.7 Ao conjunto desses
conhecimentos que coexistem e que têm parte de suas condições de possibilidade em comum,
Foucault dá o nome de episteme.8 Não se trata de descartar a História, mas ao lado de uma
análise diacrônica e cronológica, como até então se conhecia, apresentar uma análise sincrônica e
estrutural.
Ao nos apropriarmos do método foucaldiano para estudarmos a identidade nacional,
estamos também fazendo uma analogia e é pela razão de ser somente um símile de seu método
que empregamos sempre o termo arqueologia entre aspas. Não se trata de estudar o saber, mas a
identidade; não se trata de estudar o conhecimento filosófico, mas as sensações envolvidas na
formação de uma nação. O que faz a diferença não é o fato de Foucault estar dentro do campo
filosófico e nós no da História, mas a natureza das idéias que são estudadas. A primeira, a
ciência, se relaciona com um pensamento lógico; a outra, a identidade, é derivada do sentimento.
No caso da ciência, é possível fazer um recorte que permita isolá-la das demais esferas sociais e
assim estudar o discurso científico como algo contido em si mesmo, algo que se relaciona com
outros discursos científicos sem necessariamente se relacionar com outras esferas. No caso da
identidade, é a inter-relação específica entre as esferas num dado período de tempo e ao longo
7
“Não quisemos mostrar que os homens do século XVIII se interessavam, de uma maneira geral, mais pela ordem
que pela história, mais pela classificação que pelo devir, mais pelos signos que pelos mecanismos de causalidade.
Tratava-se de fazer aparecer um conjunto bem determinado de formações discursivas, que têm entre si um certo
número de relações descritíveis”. (Idem, ibidem, p. 181)
8
“Por episteme entende-se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas
discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados; o modo
segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se realizam as passagens à
epistemologização, à cientificidade, à formalização; a repartição desses limiares que podem coincidir, ser
subordinados uns aos outros, ou estarem defasados no tempo; as relações laterais que podem existir entre figuras
epistemológicas ou ciências, na medida em que se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas. A episteme
não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas,
manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem
ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades
discursivas”. (Idem, ibidem, p. 151). Isto é o que Foucault entende por episteme. A respeito de saber, sobre o qual se
aplica o conceito de arqueologia, tem-se: “A esse conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma
prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se destinarem necessariamente a lhe
dar lugar, pode-se chamar saber”. (Idem, ibidem, p. 206, grifos nossos)
4
deste, que a produz. Portanto, uma visão global da História tem de ser mobilizada para o estudo
da identidade nacional, o que não é necessário no caso de um estudo arqueológico da ciência em
Foucault. Isso se relaciona com a afirmação de Fontana a respeito de a História, em especial a
História nacional, ser uma genealogia do presente.9
No entanto, tanto em um caso, como em outro, o que se busca são as condições de
possibilidade para o surgimento do fenômeno estudado. No caso da identidade entre os
indivíduos de uma sociedade, a pré-condição para sua formação é a consciência da diferença. É
um suposto do trabalho que a consciência de diferença preceda a identidade, assim como aquela é
precedida por uma percepção da diversidade. A identidade começa a se formar primeiramente por
negação: os membros de um dado grupo identificam-se a partir da contraposição a um outro
grupo, mas ainda não sabem o que são. É somente a posteriori que eles criam uma identidade
positiva entre si, e os indivíduos já não mais precisam contrapor-se a um outro grupo para se
sentirem como se estivessem em uma “comunidade imaginada”. A negação é pré-condição para a
afirmação. Mas nem sempre a identidade positiva se segue à negativa em ordem estritamente
cronológica. Na maior parte das vezes, as duas coexistem. A diferenciação em relação a um
determinado grupo é concomitante à identificação com outro. Isso acontece claramente no caso
da formação da nacionalidade portuguesa nas guerras de Reconquista, por exemplo. Segundo
Gilberto Freyre, a partir das guerras de Reconquista surge um grupo, que dará origem aos
portugueses, que não se identifica com nenhum daqueles aos quais se contrapõe. Há um ódio
mortal em relação aos castelhanos e aos moçárabes, ódio que, no entanto, não impede a
miscigenação.10 A partir da identidade negativa que permeava aquele grupo vai-se assumindo
uma nova identidade que é consolidada pelo processo de formação do Estado Nacional, o qual
9
“Toda visão global da história constitui uma genealogia do presente. Seleciona e ordena os fatos do passado de
forma que conduzam em sua seqüência até dar conta da configuração do presente, quase com o fim, consciente ou
não de justificá-la (...). Apresenta-se como uma averiguação objetiva do curso que vai do passado ao presente, o que
antes de tudo é, um partir da ordem atual das coisas para rastrear no passado as suas origens, isolando a linha de
evolução que conduz às realidades atuais, transformando em uma manifestação do progresso, com fins
legitimadores”. (Fontana, op. Cit, p. 9)
10
“O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a européia e a africana, a católica e a
maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português, fazendo dele , de sua vida, de sua moral, de sua
economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam”. (Gilberto Freyre.
Casa-grande & senzala : formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28a ed. Rio de Janeiro,
Record, 1996). Ainda, segundo Gilberto Freyre, a respeito da formação da identidade política portuguesa e de sua
relação com a negação que assume os extremos do ódio ao espanhol e o maometano: “O ódio ao espanhol, já
assinalamos como fator psicológico de diferenciação política de Portugal. Mas nem esse ódio nem o fundamental, ao
mouro, separaram o português das duas grandes culturas, uma materna, outra, por assim dizer, paterna da sua. A
5
passa então a comandar a unificação territorial, alimentado pela centralização do poder. A
identidade portuguesa que começou “arqueologicamente” pela negação de castelhanos e mouros
se encarna agora no Estado Moderno e assume uma positividade definitiva, passando, juntamente
com a religião cristã, a ser o elemento de unidade na sociedade portuguesa.
É dentro dessa concepção de “arqueologia” acima definida que situamos o nosso estudo.
As pré-condições que permitiram o surgimento da identidade nacional brasileira e a partir dela,
de sua História, devem ser remetidas, em primeira instância às pré-condições para a tomada de
consciência da diferença. Observemos que não se trata somente da percepção da diferença, mas
de sua consciência, um estágio um pouco além. A consciência corresponde a uma percepção mais
aguçada porque, conforme veremos depois com frei Vicente, ela não somente constata, mas
mostra os porquês da existência de tal diferença. A consciência pode, portanto, influir na
formação de uma identidade, ao passo que a mera percepção, não.
O nosso objetivo é entender, a partir da documentação dos séculos XVI e XVII, como
essa consciência da diferença vai sendo construída. Como não sabemos exatamente quando
aparece, o objeto escolhido para esse estudo “arqueológico” foram os Diálogos das Grandezas do
Brasil11 por acreditarmos que aí já existe uma consciência da diferença. Não queremos com isso
dizer que antes não há consciência da diferença, mas aqui ela é óbvia e ultrapassa os limites da
mera percepção. Isso porque ao tratar da uma discussão entre um colono e um reinol, cria-se uma
situação de contraposição que os diferencia e a discussão que se trava entre um e outro desnuda o
fato de viverem e conhecerem espaços diferentes. Alviano, um dos interlocutores é recémchegado à terra e reclama de sua falta de comodidade. Brandônio já aqui vive e sabe que há falta
de comodidade, mas ela pode ser remediada. Alviano não acredita nisso. Seu mundo e sua cultura
não abrem espaço para novas descobertas. O “novo” não é admitido dentro de seu aparato mental,
que interpreta todas as coisas adaptando-as, mas jamais as incorporando como novas. Brandônio
já não mais tem essa mentalidade restrita. O contato com a nova terra alargou-lhe os horizontes
do conhecimento. É um homem experimentado nas coisas da terra. Sabe de seu potencial e
conhece-a intimamente. O conhecimento íntimo da terra é o que o diferencia de Alviano. Mais do
que isso. Ele tem consciência de que esse conhecimento o diferencia de Alviano, o qual vai
hispânica e a berbere. Contra elas formou-se politicamente Portugal, mas dentro de sua influência é que se formou o
caráter português”. (Freyre, op. Cit., p. 242)
11
Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). 2a edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por Jose
Antonio Gonsalves de Melo. Recife, Imprensa Universitária, 1966.
6
também aos poucos descobrindo isso levado pelo calor da discussão com Brandônio. A
diferenciação é portanto recíproca. O capítulo segundo corresponde ao estudo minucioso da obra,
combinando interpretação de texto e análise.
Voltamos a repetir que o nosso estudo não quer definir os Diálogos como a primeira
tomada de consciência da diferença, mas sim como um dos documentos em que a consciência é
uma das mais claras. Essa evolui com o tempo. Na verdade amadurece, porque o termo evolução
dá brechas para que pensemos que existe um “telos” que desembocará em uma forma de
consciência pré-determinada. Desde a carta de Caminha até os Diálogos, as percepções da
diferença e as formas como foram concebidas mudam. A primeira percepção da diferença emana
da natureza, soprada por seus ares frescos e contida em sua aura paradisíaca. O segundo estágio
da percepção da diferença se dá com a passagem da diferença da natureza para o homem. O
homem se faz diferente, mais saudável, em razão dos bons ares da terra, mas também mais
preguiçoso, na visão do colonizador, em razão da abundância da terra. Assim como as
características da natureza passam diretamente ao homem, também o foco da percepção da
diferença se transfere da natureza para o homem. Em um terceiro momento, cujo expoente é Frei
Vicente do Salvador, os homens sabem que são diferentes não porque a natureza do lugar em que
moram é diferente, mas a sociedade em que vivem é diferente. Os colonos são o produto de uma
sociedade inteiramente nova e não de uma natureza paradisíaca. A preguiça, o comodismo, o
improviso, características ressaltadas por Frei Vicente, são percebidas como valores, fenômenos
sociais e não naturais. Ambrósio Fernandes Brandão, o nosso autor, está entre a segunda e a
terceira etapas. Algumas das características que aparecem no colono de Ambrósio Fernandes
Brandão ainda aparecem por propriedade da natureza. Outras são claramente sociais, mas a
diferença com relação a Frei Vicente do Salvador é que Brandão não sabe a verdadeira natureza
de tal sociedade e de sua função: a de ser complementar à metrópole. É por esse motivo que às
vezes não consegue explicar algumas coisas, como a negligência dos habitantes da terra, ou faz
propostas que seriam impossíveis se pensadas dentro da relação metrópole-colônia, como, por
exemplo, a diversificação das atividades coloniais e a construção de um Império a partir da
própria colônia, ou seja, uma negação dos pólos que compõem o sistema. É por isso que dizemos
que a História de Frei Vicente fecha algumas concepções que aparecem de forma embrionária
nos Diálogos. Frei Vicente tem uma visão da importância da complementaridade entre metrópole
e colônia e enxerga esta última como uma sociedade nova e não como um mero prolongamento
7
da anterior. Passamos do segundo estágio da consciência de diferença supracitado, qual seja, a
consciência de que os homens são diferentes por conhecerem uma natureza diferente e se
relacionarem com ela de forma diferente para a terceira consciência: a de que os homens são
socialmente diferentes. Frei Vicente não somente percebe isso, como percebe a gênese da
sociedade colonial: montada para atender interesses bem específicos da metrópole: poder, riqueza
e fé. Dessa divisão entre os estágios da consciência da diferença advém o título escolhido para
esse trabalho: Diálogos entre Caminha e Frei Vicente do Salvador. Em primeiro lugar, isso é
verdadeiro do ponto de vista cronológico, uma vez que os Diálogos se encontram entre a Carta de
Caminha e a História de Frei Vicente. Em segundo lugar, isso também é verdadeiro do ponto de
vista teórico, uma vez que a percepção dos Diálogos é mais atilada que a de Caminha, mas
inferior à de Frei Vicente. Por fim, o título explora o objetivo do trabalho que é o de travar
relações que vão desde a mera descrição da paisagem e suas gentes até a consciência de que o
português que vive na colônia se tornou diferente daquele que continua a viver no Reino.
Ao estudarmos parte da documentação que vai de Caminha aos Diálogos,12 estamos
tentando montar essa “arqueologia” da consciência de diferença. As pré-condições que
permitiram que essa percepção surgisse aí. O que está entre 1500 e 1618 faz parte do material
“arqueológico” que desemboca na consciência da diferença presente nos Diálogos, a qual sofre
um acabamento sob a pena de Frei Vicente de Salvador. A documentação que abarca o período
de 1500 a 1618 é objeto de estudo do capítulo primeiro. No entanto, no período que abarca 1500
a 1627, a consciência da diferença não somente se forma, como se torna completa. Com isso, já
temos um bom material para fornecer àqueles que queiram estudar a “arqueologia” da nação
brasileira. O nosso estudo, por ser um trabalho de Mestrado, se restringe à “arqueologia” da
consciência da diferença entre colonos e reinóis.
Implícita em nossa periodização está a idéia de que a História do Brasil não se inicia com
a carta de Caminha. Esta é uma polêmica que gerou e ainda continua a gerar diversos debates. Se
assim fizéssemos estaríamos cometendo anacronismo ao afirmar que “Brasil” existe já a partir do
momento em que é “descoberto”. Não há Brasil. Há história de uma possessão lusa, que depois se
torna sua colônia. A história dessa colônia faz parte da História de Portugal, que por sua vez faz
parte da História da Europa que assistia a três grandes acontecimentos: a formação dos Estados
12
A documentação se restringe àquela que seja importante para o tema da consciência da diferença entre colono e
reinol. Foi com base nesse critério que selecionamos a documentação distribuída ao longo deste trabalho.
8
Absolutistas, as Reformas protestante e católica, e o Renascimento do Comércio com o
capitalismo mercantil. Como dissemos acima, o poder tanto secular como religioso, que se
manifesta pela busca de terras, riquezas e fiéis, respectivamente, regem a História nesse
momento. A colônia aparece como uma encarnação disso. Ela se presta à acumulação de
territórios, fiéis e capital mercantil. 13
Aqui já entramos no nosso segundo suporte teórico: o conceito de Antigo Sistema
Colonial formulado por Fernando Novais, que será cruzado com o conceito de “arqueologia”.
Poderíamos com o método “arqueológico” rastrear a documentação compreendida entre Caminha
e os Diálogos, mas isso jamais nos levaria a refletir a respeito da relação de complementaridade
entre este e Frei Vicente do Salvador. O conceito de Antigo Sistema Colonial permite perceber
como a consciência da diferença se relaciona com a estrutura e dinâmica desse sistema. É preciso
voltar à História das grandes navegações e como e porquê, a partir destas, decidiu-se ocupar e
então colonizar. É preciso entender o significado disso para as duas partes do sistema, a
metrópole e a colônia, ou melhor, as metrópoles e as colônias. Sim, porque não nos esqueçamos
que antes das especificidades que caracterizam a relação bilateral entre a metrópole lusa e sua
colônia, temos um sistema bipolar que contrapõe Europa, o centro, e América, a área em que se
efetivou a colonização.
Precisamos desse conceito porque, ao contrário das ciências, a História não se fundamenta
tão somente na teoria. E usar o conceito “arqueológico” sem o suporte do Antigo Sistema
Colonial seria explicar a História, conferir-lhe um “telos”, e não reconstituí-la.14 A História, ao
contrário das ciências, possui fatos importantes que a teoria não consegue abarcar. O que
procuramos, em História, não é somente explicar, mas também reconstituir. A teoria se torna, nas
mãos do historiador, um instrumento para dar um sentido aos fatos, não para explicá-los ex13
Fernando Antônio Novais. “Etnocentrismo e Anacronismo no descobrimento do Brasil”. Entrevista concedida à
folha de São Paulo por ocasião dos 500 anos do descobrimento. (abr./2000).
14
“Em outras palavras, a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral; ela
procura descobrir todo o domínio das instituições, dos processos econômicos, das relações sociais nas quais pode
articular-se uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua especificidade não lhe
dão, por isso um status de pura idealidade e de total independência histórica; o que ela quer revelar é o nível singular
em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso que têm, eles próprios, seu tipo de historicidade e que
estão relacionados com todo um conjunto de historicidades diversas”. (Foucault, op. Cit., p. 189). Sempre é
importante lembrarmos que a descrição de Foucault serve para a filosofia, não para a História, mas dando
continuidade à analogia que estamos fazendo, o objetivo arqueológico se torna o mesmo, uma vez, que não
procuramos dar uma idealidade à história, teorizá-la ou explicá-la, senão interpretá-la. Nesse caso, o projeto
arqueológico casa-se perfeitamente com o conceito de materialismo histórico que estamos utilizando: o de uma teoria
da história.
9
ante.15 Ela é a chave que auxilia o historiador a montar os fatos dispersos e incógnitos.
Acreditamos que o materialismo histórico, quando bem interpretado, seja a melhor teoria da
História. Ele consegue encontrar um equilíbrio entre a teoria pura e o historicismo, ao interpretar
a História como genealogia do presente, ao misturar práxis e teoria, ao reconhecer que o
historiador é ao mesmo tempo sujeito e objeto de seu estudo.16 O materialismo histórico resolve o
problema da identidade sujeito-objeto partindo do pressuposto de que ele existe.17 Aquela mesma
identidade de que falávamos no início dessa Introdução. É justamente por não conseguirmos
montar uma “arqueologia” da mesma forma como se faz em filosofia, que tivemos de apelar para
a noção de Antigo Sistema Colonial. Esta nos dá a periodização. Quando dizemos que a nação
brasileira e a História nacional surgem nos séculos XVIII e XIX, estamos partindo desta
concepção, como poderíamos partir de qualquer outra. Por outro lado, ao interpretarmos a
sociedade que aqui se forma enquanto um modo de vida totalmente novo, que permite essa
diferenciação e inclusive a tomada de consciência de que essa diferença existe, recorremos ao
materialismo histórico, entendendo o modo de produção, não como forma de produzir ou como
conjugação entre forças produtivas e relações de produção, mas como uma inter-relação
específica entre esferas que produzem um modo de vida novo. É nessa terceira acepção do termo
que entendemos a sociedade colonial enquanto um modo de produção.18 Não o entendemos como
escravista ou capitalista, mas um modo de produção que surge subordinado ao capitalismo
comercial e com a função de alimentar a acumulação primitiva de capital comercial autônomo na
metrópole e servir para inflar o poder do Estado Nacional, ao mesmo tempo sujeito de tal
acumulação, seu empreendedor, e objeto, uma vez que é o maior beneficiado. O ouro que sai das
conquistas marítimas e vai para os cofres estatais se metaboliza em força e poder. E se essa
15
A respeito dessa camisa de força da teoria em relação à História, veja o que diz Fontana, em um comentário sobre
o estruturalismo de Althusser: “Partindo de uma combinatória de conceitos abstratos, pode-se resolver no plano
teórico todos os problemas (...) O segredo consiste em que a argumentação se mova sempre no plano da máxima
abstração – da ‘teoria’ – e em que, uma vez concluída sua operação, recorra à realidade apenas para buscar exemplos
com que ilustrar os resultados. Acomodada desse modo a seus esquemas pré-fabricados, a realidade não desmente
nunca os resultados da teorização estruturalista (...) Com isso temos um esquema único e necessário pelo qual
passarão todas as sociedades; uma armação que o historiador tem de encher de fatos. O caminho para converter o
materialismo histórico numa filosofia da história – algo contra o que Marx havia lutado explicitamente (...)”.
(Fontana, op Cit., pp. 226-229)
16
“A realidade é rica nas combinações mais estranhas e é o teórico quem está obrigado a buscar a prova decisiva da
sua teoria nessa mesma estranheza, a traduzir em linguagem teórica os elementos da vida histórica e não vice-versa,
a realidade que tem de apresentar-se segundo o esquema abstrato.” (Idem, ibidem, p. 237).
18
Fernando Antônio Novais. “Colonização e sistema colonial: discussão de conceitos e perspectiva histórica”. In
Anais no IV Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História. São Paulo, 1969, p. 243-268.
10
dinâmica já é uma dinâmica capitalista, não nos convém entrar nesse debate.19 Preferimos
entender essa dinâmica como uma dinâmica da transição e que é essa dinâmica que dá origem à
sociedade colonial. No capítulo terceiro, retomamos o estudo “arqueológico” e como este
contribui para os Diálogos. Retomamos Frei Vicente e como ele já nos dá indícios da pré-história
da nação. Tudo isso visto dentro do Antigo Sistema Colonial.
O trabalho que empreendemos é, portanto uma tentativa de fornecer um dos elementos
necessários para a construção de uma “arqueologia” da nação, qual seja, a consciência da
diferença. Utilizamos Frei Vicente porque é este que percebe a genealogia social de tal diferença
e nos ajuda inclusive a compor as esferas que montam o modo de vida colonial. Não é isso que
faz quando relaciona as esferas privada e pública na colônia dizendo que aqui as coisas estão
invertidas? Ao mesmo tempo percebe a lógica que rege a sociedade colonial e que esta lógica é
uma lógica diferente da metropolitana. Sua noção sistêmica é de tal ordem que não somente
percebe a sociedade que aqui se forma, mas também a estreita relação que guarda com a
sociedade metropolitana, os interesses que regem a montagem da colônia, dando-nos os
primórdios de um sistema colonial, que é o que precisávamos para fechar a relação entre teoria e
História.
Um estudo do qual nos servimos largamente como guia nessa longa jornada foi o estudo
de Laura de Melo e Sousa. Este é um estudo sobre a feitiçaria na colônia também dentro dos
quadros do Antigo Sistema Colonial. Foi importante para nós não somente do ponto de vista
teórico, mas também metodológico, uma vez que também constrói uma “arqueologia”. A
feitiçaria, quando vista dentro da colônia pelos olhos dos reinóis, corresponde à frustração do
projeto de Nova Lusitânia pelo lado religioso. Aqui, em razão das próprias condições que
engendraram e que regiam o cotidiano da colônia, criaram-se práticas religiosas que fugiam ao
catolicismo duro emergente da Contra-Reforma. Resgataram-se antigas práticas medievais.
Incorporaram-se práticas indígenas e africanas de feitiçaria. Não somente as esferas privada e
pública parecem estar invertidas. A própria religião parece estar sendo virada de ponta-cabeça na
colônia. Se Laura analisa a ruptura por esse ponto, nós tentamos analisá-la do ponto de vista da
identidade que aqui se cria. Ambos os estudos acabam tratando de uma mesma temática, a da
19
Debate Dobb “versus” Sweezy. Para maior detalhes vide as obras clássicas dos autores: Maurice Dobb, A
evolução do capitalismo. 7a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1980; Paul Sweezy, A transição do feudalismo para o
capitalismo, tradução de Isabel Didonnet, 3a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983; Eduardo Barros Mariutti, A
11
formação do Brasil, mas a partir de perspectivas diferentes. Embora analisem esferas diferentes
da sociedade colonial, isso é feito com o mesmo intuito: o de resgatar e reconstituir o modo de
vida desta. No entanto, nossa “arqueologia” se restringe à tomada de consciência da diferença nos
Diálogos, ou seja, vai até 1618, ao contrário do estudo de Laura de Melo e Souza, que faz uma
“arqueologia” de meados do século XVIII. Um estudo que toca, portanto, o começo da História
Nacional e se confunde com o nascimento da identidade nacional propriamente dita.
Não há tempo nem recursos para que façamos o mesmo com a identidade nacional. O que
tentaremos mostrar nas páginas a seguir é como essa consciência da diferença vai nascendo e se
torna muito clara com Frei Vicente. Essa é a percepção diacrônica: como ela evolui ao longo do
tempo. No entanto, dissemos que a sociedade é um compósito de esferas e tais esferas se
movimentam tanto sozinhas, como se relacionando umas com as outras. A sociedade colonial cria
uma dinâmica própria caracterizada pelo movimento de tais esferas ao longo do tempo. No
entanto, elas também se relacionam entre si num mesmo tempo. Ao discriminarmos a
documentação colonial por tipos, os Tratados, a documentação Inquisitorial, a Oficial, a
documentação Jesuítica e a dos viajantes, tentamos verificar como a percepção da diferença vai
sendo engendrada em diferentes esferas, para então defrontar uma percepção com outra. Os
interesses que conduzem um cronista a escrever sobre dado fato acabam por influenciar a visão
que tem desse fato. Um jesuíta relata esse mesmo fato de forma distinta da do cronista e um
funcionário da Coroa ou de um senhor de engenho vêm esse fato de forma diferente de todos os
observadores anteriores. A percepção da diferença evolui no tempo e é diferente na medida em
que é constatada por diferentes camadas sociais. Temos, portanto um movimento sincrônico,
dado pelos tipos de documentação, que representam a percepção da diferença nas várias
instâncias da sociedade colonial, em um mesmo tempo.
Faço minhas aqui as belas palavras de Gândavo, que, escrevendo há quinhentos anos
atrás, tendo outras preocupações e outra mentalidade, talvez não tivesse outros desejos: “Como,
pois a escritura seja vida da memória, e a memória uma semelhança da mortalidade a que todos
Transição do Feudalismo ao Capitalismo: um balanço do debate. Campinas, SP, 2000 - Dissertação de Mestrado em
História Econômica - Instituto de Economia, Unicamp.
12
devemos aspirar, pela parte que dela nos cabe,quis, movido destas razões, fazer esta breve
história...”20
20
Pero de Magalhães Gandavo. História da Província de Santa Cruz (1576). Advertência de Afrânio Peixoto. Nota
bibliográfica de Rodolfo Garcia. Introdução de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro, Anuário do Brasil, 1924.
13
Capítulo 1: 1500-1618: de Caminha aos Diálogos das Grandezas do Brasil
“Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho
que levava na cabeça e um sombreiro preto.
Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave,
compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio;
e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas,
que querem parecer de aljaveira”.
(Pero Vaz de Caminha. Carta de Pero Vaz de Caminha)
1.1 Da primeira carta aos Diálogos
Um barrete vermelho por um ramal de continhas brancas. Nessa singela troca de presentes
se contém o primeiro contato do português com a cultura da terra recém-descoberta. Neste
momento são os sentidos que predominam, em especial o tato. O tocar aquilo que o outro lhe dá
como presente é uma forma de entender o outro. O ouvir cede ao ver e o ver ao tocar. O tato, a
audição, o olfato, a visão e o paladar compõem a experiência que neste contexto e nessa terra
começa a se tornar o princípio de todo o conhecimento. É nessa experiência que reside o primeiro
embrião da diferenciação entre aquele que tem oportunidade de pisar essa terra e aquele que
permanece em Portugal; entre aquele que passa por essa experiência concreta e aquele que se
restringe a imaginar aquilo que ouve dos contadores de história. É nesta terra, portanto, que o
tocar começa a sobrepujar o ouvir, que até então era o sentido mais valorizado na cultura
ocidental.1 E isso já indica uma ruptura.
Aqui, no entanto, não há e nem pode haver uma consciência de que se começa uma
ruptura sutil do português em relação a suas próprias tradições. A construção dessa consciência é
lenta e vai depender de outros contatos. Em primeiro lugar, do contato com a natureza. Embora
ainda enxergue a natureza como espelho das imagens míticas que compõem o imaginário
renascentista, aos poucos vai se percebendo que ela não é mero reflexo da mitologia, mas uma
1
“Numa época em que o ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer; tudo
quanto se via era filtrado pelos relatos de viagens fantásticas, de terras longínquas, de homens monstruosos que
habitavam os confins do mundo conhecido”. (Laura de Melo e Souza. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e
Religiosidade Popular no Brasil Colônia. 4a Reimpressão. São Paulo, Cia. Das Letras, 1994, p. 21/22)
15
outra natureza. O primeiro rompimento se dá, portanto, com a percepção de que a natureza é
diferente. Esta percepção conduz à especulação em torno da origem de tal diferença, o que
desacredita antigas especulações a respeito do clima e da topografia dos trópicos. No entanto, a
ruptura convive com a continuidade em relação ao Velho Mundo em todos os elementos da terra:
a eterna primavera, a perene verdura das folhas, animais belos e outros monstruosos.2 É uma
descoberta lenta e bela a do Novo Mundo. Lenta porque antes de tudo se vê o “novo” já no
“velho”, antes de romper com esse velho por inteiro. Bela porque mistura ao mesmo tempo
imagens reais e míticas, a experiência concreta com aquela que existe somente na imaginação, o
que é, em certa medida, exótico para nós, homens modernos.
Ao lado da dicotomia entre os planos imaginário e real, nesse último plano, uma outra
dicotomia se faz presente: a que existe entre uma natureza farta e uma terra crua e vil, sem
comodidades. Essa dicotomia advém tanto de opiniões divergentes a respeito da terra, 3 como da
própria personalidade dividida do homem renascentista. Este pode pensar que a nova terra é o
Paraíso em um dado momento e o inferno em outro. Fonte em que bebe as mais doces delícias e
lugar em que purga os pecados. Sente ao mesmo tempo prazer e dor, se delicia para depois se
culpar, dividido como está entre o sagrado e o profano.
O segundo contato é o contato com uma humanidade diferente. Este contato, em primeira
instância, faz com que o português reforce sua identidade. 4 Ele se sente diferente da humanidade
descoberta por dois motivos: em primeiro lugar porque esta não é civilizada, não se veste como
2
Veja o que diz Cardim a respeito dos beija-flores, um ser ao mesmo tempo belo e assustador, que apresenta algo de
já conhecido, que é o voar, e desconhecido, que é pairar no ar ante as flores. Mistura de pássaro e borboleta? Para
quem jamais havia visto algo assim, o observar e o especular seriam as únicas formas de trazer a explicação que não
se encontrava dentro do “já visto” ou “já ouvido”. “(...) têm dois princípios de sua geração, uns se geram de ovos
como outros pássaros, outros de borboletas, de é coisa prá ver uma borboleta começar-se a converter neste
passarinho, porque juntamente é borboleta e pássaro, e assim se vai convertendo até ficar neste formosíssimo
passarinho, coisa maravilhosa e ignota aos filósofos, pois um ser vivente sem corrupção se converte em outro”.
(Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583). Introd. e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu
e Rodolfo Garcia. 3a edição. São Paulo, Cia. Ed. Nacional; Brasília, Instituto nacional do Livro, 1978, p. 36)
3
“A terra da colônia ‘é muito pobre e miserável, ‘nada se ganha com ela’ por serem também muito pobres os seus
habitantes, escrevia Nóbrega ao Geral da Companhia, padre Diogo Láinez. ‘Aqui não há trigo, nem vinho, nem
azeite, nem vinagre, nem carnes, senão por milagre’, continuava, decepcionado: ‘o que há pela terra, que é pescado, e
mantimento de raízes, por muito que se tenha, não deixaremos de ser pobres, e mesmo isto não o temos.’(...) Ainda,
segundo o padre Jerônimo Rodrigues, as pulgas foram a ‘perdição’ das ceroulas e das camisas dos padres, que
ficaram inteirinhas pintadas de sangue. Numa noite, às apalpadelas, diz o padre Jerônimo que chegou a matar 450
pulgas em sua cama, sem falar nas que fugiram.” (Souza, op. Cit., p. 47)
4
“A história do globo é feita de conquistas e derrotas, de colonizações e descobertas dos outros; mas (...) é a
conquista da América que funda nossa identidade presente. (...) A partir dessa data [1492] os homens descobriram a
totalidade de que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo”. (Tzvetan Todorov. A conquista da
América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 6).
16
gente, come carne humana, como bicho; em segundo lugar porque não crê em Deus, é gentílica,
chegando aos extremos de ser demônio. O termo “nova humanidade” não é adequado porque é
somente no começo que os índios são assim vistos. Diria Nóbrega que seriam como o papel
branco a ser escrito. Outros usariam o termo noble salvage. Mas do papel em branco de Nóbrega
passa para o ferro a ser forjado de Anchieta. Do noble salvage também se passa facilmente ao
perro cochino. Assim como a natureza é dotada de uma série de contradições, o índio também
pode ser gentio ou bicho, anjo ou demônio, inocente ou culpado. As contradições estão dispersas
por todos os lugares, mas elas têm origem, como já dissemos, no conflito permanente que vive o
homem renascentista, dividido entre o arcaico e o moderno.5
Mas é num terceiro contato que surgem as pré-condições para o nascimento de uma outra
identidade. Não queremos com isso dizer que aqui surge uma identidade diferente da portuguesa.
O sentido dessa nova identidade é o de criar, dentro da própria identidade portuguesa,
possibilidades para o rompimento com esta a partir da criação de mentalidades diferentes
decorrentes da experiência de vida em um espaço diferente da metrópole.
O nosso objeto de estudo é esse processo de tomada de consciência da diferença. Falamos
em processo, não momento. Consciência, não percepção. Diferença e não diversidade. Podemos
olhar a “arqueologia” desse processo a partir em três pontos de vista: lógico, cronológico e
metodológico. Do ponto de vista lógico, a percepção da diversidade é pré-condição para a
consciência da diferença e são as passagens e contradições entre uma e outra etapa que vão
compondo um processo. A consciência é um estágio além da percepção, que corresponde à mera
constatação. Pode-se ter consciência ou percepção da diferença ou da diversidade. A percepção
da diversidade implica em notificar que existem objetos distintos dentro de uma mesma unidade.
A consciência implica não somente em notificar como estabelecer o porquê e as relações entre as
partes. Quando uma unidade se rompe gerando uma nova, então temos o surgimento da diferença.
De forma análoga, a percepção constata o diferente sem maiores envolvimentos. O mesmo não
acontece com a consciência, que procura os porquês dessa ruptura.
No caso da identidade nacional, a consciência daquilo que não sou vai aos poucos se
convertendo na consciência daquilo que sou; a identidade negativa se converte em identidade
positiva: o português se converte em brasileiro, que são duas unidades diferentes. Do ponto de
vista cronológico, o brasileiro surge no século XIX, mas as pré-condições para sua formação
17
estão sendo engendradas desde o século XVI. A consciência da diferença entre o reinol e o
colono é uma dessas pré-condições e é sua “arqueologia” que pretendemos estudar. Para nós, essa
consciência da diferença em relação ao português adventício está manifesta nos Diálogos das
Grandezas do Brasil de 1618. Não queremos com isso dizer que a consciência começa ou termina
neste documento, mas simplesmente que aí ela é clara. Por fim, do ponto de vista metodológico,
no que se refere ao tratamento das fontes, estudar a “arqueologia” de uma sensação em um dado
documento implica em buscar as condições de possibilidade dessa sensação nos documentos
anteriores a ele. O estudo “arqueológico” que agora apresentamos tenta fundir essas três
dimensões, a lógica, a cronológica e a metodológica em uma só.
No entanto, como essa consciência da diferença não é uma consciência qualquer, mas a
consciência do colono que se percebe diferente de seu antecessor, o colonizador, precisamos de
um conceito que trate dessas três dimensões dentro de um sistema dividido entre metrópole e
colônia. Foi por isso que recorremos ao conceito historicizado de Antigo Sistema Colonial,
definido por Fernando Novais.6 Com isso amenizamos o dilema em torno do que viria a ser
nação, já que nosso estudo depende dessa definição para que possamos estudar a consciência da
diferença que é sua condição de possibilidade. De acordo com esse conceito, a nação surgiria no
momento em que se tomasse consciência da exploração dentro do Sistema Colonial, consciência
essa fundamentada em uma identidade positiva.7 A consciência da diferença é o que precede essa
identidade que está na base da contestação desse sistema. Essa identidade não é tão somente uma
identidade ideológica, mas também política e cultural, sentimentos que promovem a coesão da
colônia e que se manifestam politicamente pela contestação à exploração metropolitana.
Teoricamente, nos fundamentamos no conceito de Benedict Anderson que vê a nação como uma
6
“Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, política mercantilista, expansão ultramarina e colonial
são, portanto, partes de um todo, interagem reversivamente neste complexo que se poderia chamar, mantendo um
termo da tradição, Antigo Regime. São no conjunto processos correlatos e interdependentes, produtos todos das
tensões sociais geradas na desintegração do feudalismo em curso, para a constituição do modo de produção
capitalista. (...) É nesse contexto e inseparavelmente dele que se pode focalizar a expansão ultramarina européia e a
criação das colônias do Novo Mundo. A colonização européia moderna aparece, assim, em primeiro lugar como um
desdobramento da expansão puramente comercial (...) Se combinarmos (...) esta formulação – o caráter comercial
dos empreendimentos coloniais da Época Moderna – com as considerações anteriormente feiras sobre o Antigo
Regime – etapa intermediária entre a desintegração do feudalismo e a constituição do capitalismo industrial – a idéia
de um “sentido” da colonização atingirá seu pleno desenvolvimento”. (Fernando A. Novais Portugal e Brasil na crise
do antigo sistema colonial (1777-1808). 6a edição. São Paulo, HUCITEC, 1995, p. 66-68)
7
Seguimos algumas das sendas abertas por Rogério Forastieri que adotou o conceito de Sistema Colonial guia-lo na
redefinição do nativismo. Para ele, a cadeia: colônia-nativismo-nação é desprovida de significado porque os
movimentos considerados “nativistas” deixam de ser compreendidos em seu significado histórico para servirem de
18
comunidade imaginária.8 Deixemos claro que ao propormos fazer uma “arqueologia”, não
estamos querendo dizer que os sentimentos que compõem a identidade brasileira do século XIX
já existissem no século XVI, mas sim que existiam formas primevas de identidade que
desembocaram nessa identidade do século XIX. Os sentimentos vão sendo construídos e não prédeterminados. Foi somente pelas primeiras formas de identificação de uns com os outros que foi
possível o nascimento da identidade nacional e não o inverso. Os colonos se sentiam tão ou mais
portugueses quanto os próprios reinóis. Eles se sentiam diferentes e não não-portugueses. Em
síntese, o conceito de Antigo Sistema Colonial nos serve de apoio para o conceito de
“arqueologia”. O ponto de partida não é o conceito em si, mas a documentação. O Antigo
Sistema Colonial fixa o nascimento de uma identidade nacional no século XIX e a “arqueologia”
busca formas primevas de identidade anteriores a essa, sentimentos de diferença que os cronistas,
jesuítas, inquisidores, oficiais da Coroa e viajantes, expressaram no século XVI, e que no
cruzamento de uns com os outros gerariam essa identidade.9
Nesse sentido, essa primeira etapa da consciência de diferença, dentro da qual estão
inseridos os Diálogos, termina quando se descobre que a natureza da diferença entre colonos e
reinóis guarda alguma relação com a condição subordinada da colônia à metrópole e que essa
condição produziu uma sociedade bem peculiar, com instâncias e uma lógica que as regula
específicas. Não há qualquer forma de contestação ainda. Tão somente a descoberta de que vivem
em um sistema dividido entre um espaço que controla e um que é controlado, e que um espaço é
condição para a existência do outro. Para nós, isso já acontece com Frei Vicente do Salvador e a
manifestação dessa percepção aparece na sua História do Brasil.
Neste capítulo, tentaremos construir a “arqueologia” da tomada de consciência presente
nos Diálogos, por meio de uma retrospecção das percepções de diferença anteriores a ele. A
percepção da diferença dos Diálogos e o acabamento dado a ela por Frei Vicente do Salvador é
apoio ideológico à formação da nação. (Rogério Forastieri da Silva. Colônia e nativismo: A História como
“biografia da nação”. 2a edição. São Paulo, Hucitec, 2001).
8
Vide Introdução, nota 2.
9
Partimos do pressuposto que a identidade nacional começa a dar seus primeiros passos a partir do século XVIII
porque temos como parâmetro o Antigo Sistema Colonial. Não estamos querendo dizer que os demais estejam
errados. A nossa preocupação é trabalhar com a documentação e construir a “arqueologia” de tal identidade; não
estamos preocupados com a inserção dentro de um debate historiográfico. Seria possível construir-se outras
“arqueologias” a partir de outras noções de sistema. A de Império, por exemplo. Um dos últimos trabalhos a tratar
sobre o Império ultramarino e as relações que as colônias estabelecem entre si foi O Antigo Regime nos TrópicosA dinâmica imperial portuguesa (sécs. XVI- XVII). Org. de João Fragoso, Fernanda Bicalho, Maria de Fátima
Gouveia. Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
19
objeto de estudo do próximo capítulo. Para isso, dividiremos a documentação em cinco tipos:
Tratados, documentação Inquisitorial, documentação Jesuítica, documentação Oficial e
documentação “Estrangeira”. A divisão em tipos de documentação, ao mesmo tempo em que nos
facilita o trabalho, também permite-nos ver como cada classe envolvida no projeto colonizador
paradoxalmente o tratava ao mesmo tempo como continuidade e ruptura com Portugal.
1.2 Contexto histórico geral 1500-1627
Apesar de a obra na qual se assenta nossa hipótese ter sido escrita em 1618, o recorte é
antecipado para 1500, data do primeiro documento informativo sobre o Brasil, a carta de Pero
Vaz de Caminha. Utilizamo-nos ainda da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador porque
nesta obra a consciência da diferença, que é algo ainda fluido e contraditório nos Diálogos,
parece assumir contornos mais definidos. Poderíamos explicar isso pelo fato de que Frei Vicente
já explicita uma certa relação entre as diferenças colono versus reinol e a subordinação do
“Brasil” 10 a Portugal. Há em Frei Vicente elementos muito fortes a respeito da percepção de um
sistema composto entre uma parte dominante e uma parte dominada que se complementam.11
Acreditamos que em razão disso, não somente tem consciência de que existe uma diferença entre
10
Não queremos associar o significado de Brasil à nação e é por isso que optamos por colocar o termo entre aspas.
No entanto, os próprios cronistas do século XVI e XVII já utilizavam o termo Brasil para designar a terra, embora
ainda estivessem indignados pela substituição do nome de Santa Cruz por este. Preferimos, no entanto, o termo
América Portuguesa. “Brasil” assume outros significados neste momento. Comenta Afrânio Peixoto sobre tais
significados com base nas cartas jesuíticas: “Nestas cartas há 4 acepções de Brasil. Pau-brasil: ‘cá há açúcar’e
algodão, brasil e ambre e resgates’; ‘pera ali carregarem de brasil’. A terra: ‘todo o Brasil que assim se pode dizer’;
‘Nestas partes podemos dizer com verdade que ajudamos a levar a crus do Cristo’. A gente: Os que tangiam eram os
meninos brasis’. A língua: ‘Espera em pouco tempo falar tão bem brasil como agora italiano’.” (Afrânio Peixoto.
Introdução a Cartas Avulsas: 1556-1568- Azpilcueta Navarro e outros. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo,
Edusp, 1998, p. V). Mais comentários a respeito do nome Brasil, vide Pedro Calmon, História do Brasil. Rio de
Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1939-1956, vol. I, cap. VIII, pp. 101-103. É incrível como no século XVIII, essa posição
ante o nome de Santa Cruz vis a vis o de Brasil se inverte radicalmente. Nas palavras de João de Barros: “Brasil em
vez de Santa Cruz deplorou João de Barros”. (Calmon, op. Cit, p. 103).
11
Não queremos dizer que Frei Vicente tem uma noção de antigo sistema colonial porque se assim fizéssemos
estaríamos cometendo anacronismo e impondo os fatos à camisa de força de uma teoria. O que podemos fazer é o
oposto: ver como alguns conceitos que utilizamos aparecem lá de uma outra forma. A mesma intenção tem Fernando
Novais ao refletir a respeito de como a ‘externalidade da acumulação primitiva de capital comercial autônomo’
aparece em Frei Vicente: “(...) quanto a Frei Vicente, dizia, na terceira década do século XVII simplesmente: ‘tudo
querem para lá’. É claro que essa frase, límpida e direta, contém todo o conceito longamente elaborado. Mais ainda:
liga este fundamento geral com os comportamentos, as práticas, esse ‘modo’ com que ‘se hão’ os colonizadores; e
não só os reinóis, como também os nativos”. (Fernando A. Novais. “Condições de privacidade na colônia”.
Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa, org. por Laura de Melo e Souza. Vol. I de História da
Vida Privada no Brasil. Coleção org. por Fernando Antônio Novais. São Paulo, Cia. das Letras, 1997, p. 32).
20
as partes, como, ao perceber a complementaridade entre estas partes de um sistema, percebe a
natureza de tal diferença. Daí escolhermos a data de 1627, ano em que foi escrita a obra, como
data para fechamento do recorte.
Para facilitar a análise que será feita no capítulo terceiro, qual seja, a da relação entre
“arqueologia” e Antigo Sistema Colonial, tentaremos já colocar neste capítulo, na medida em que
se reconstitui o período, uma análise mais geral do que seria Antigo Sistema Colonial. Afinal,
conforme dissemos na Introdução, não queremos tão somente explicar a História, mas também
reconstitui-la. O conceito de Antigo Sistema Colonial, ao ser um conceito historicizado, tanto
apreende a realidade histórica como lhe dá um sentido por meio do conteúdo teórico que nele se
encontra.
Nessa reconstituição há que se ressaltar quatro fenômenos divididos em três níveis. Os
fenômenos são: a formação dos Estados Nacionais; o Renascimento Cultural; as Reformas
Protestante e Ortodoxa Católica e a abertura do comércio no Atlântico. Estes fenômenos são
gerais ao mundo ocidental durante o período que abrange os séculos XIV ao XVII. Os três níveis
dos quais falamos nada mais são do que os três espaços que compõem o Ocidente: a Europa,
Portugal e América, no nosso caso, a América Portuguesa.
Começaremos pelo fenômeno político que corresponde à formação dos Estados nacionais.
A centralização de poder nas mãos do rei é feita usurpando-se poder das hierarquias inferiores
(vassalos) e das superiores (o imperador). Com a desintegração do feudalismo torna-se
impossível recompor aquela universalidade que se dava na Idade Média pela cristandade
ocidental. Os próprios imperadores dependiam da chancela do papa para serem coroados e a
coroação guardava por detrás de si toda uma simbologia cristã.
Na passagem da suserania para a soberania, da dispersão para a concentração e
centralização de poderes nas mãos do rei, são três os tipos de poderes envolvidos: o fiscal, o
judiciário e o militar, respectivamente, o monopólio da apropriação do excedente, da justiça e da
violência. Para se fortalecer e ao mesmo tempo enfraquecer os outros componentes da hierarquia
feudal e a Igreja, o rei realiza uma série de alianças que resulta na formação de um equilíbrio em
que ao mesmo tempo em que beneficia uma classe em um dado momento, a pune em outro por
privilegiar uma outra classe. Vê-se desde logo que as bases em que se assentam os estados
nacionais absolutistas são um tanto quanto frágeis e duram enquanto essas alianças são possíveis
e enquanto não surja nenhum poder tão forte quanto o do rei. Com a ascensão da burguesia, esse
21
poder do monarca vai claramente se fragilizando e essas frágeis bases em que se assentava vão
sendo corroídas. Mas esse fortalecimento da burguesia somente ocorrerá mais claramente no
século XVII, em especial com a Revolução Puritana de 1640 e a Gloriosa de 1680. Finalmente,
com a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, a burguesia assume total controle do
processo de acumulação, que se torna especificamente capitalista, e a monarquia absoluta perde
toda a sua força. O Estado termina o seu processo de modernização, passando de um Estado
Absoluto para um Estado Liberal Abstrato, que abole todas e quaisquer relações pessoais que
antes o perpassavam.12
Esse mesmo Estado Nacional Absolutista utiliza-se de alguns outros instrumentos para se
manter. Em primeiro lugar, subordina a Igreja. As longas lutas entre o poder secular e o religioso
que na Idade Média eram claras porque o poder temporal estava concentrado no Império e o
poder sacro no Papado se minimizam porque os conflitos entre a instância política e a religiosa
passam a ser internos ao Estado. Essa subordinação da Igreja ao Estado se relaciona com a perda
de seu caráter universal, o que já começa quando o papado pede apoio ao Reino dos francos nas
guerras contra os longobardos no século XIV, ao invés de pedir apoio ao Império Bizantino. Em
segundo lugar, perde seu caráter universal pela perda de espaço na justificação do mundo e da
sociedade medieval. Esta é uma sociedade estamental, em que os estados são definidos por uma
concepção divina do mundo: a de que existe uma ordem imposta por Deus que não deve ser
contestada. No entanto, essa própria rigidez imposta pelo cristianismo, contrasta com uma outra
característica sua: o seu forte tom igualitário. Como justificar uma sociedade desigual se no plano
ético se preconiza a igualdade entre os homens? Isso começa a ser contestado por dentro da
própria doutrina cristã, seja na forma como faz São Francisco de Assis, que prega uma reforma,
não da doutrina, mas da moral cristã, seja na forma como o fazem as heresias, que pregam um
retorno ao cristianismo primitivo.13 As Reformas heterodoxas, primeiro a de Lutero e depois a de
12
O fenômeno da abstração do Estado é resumido sociologicamente pelo conceito weberiano de dominação legal. Na
“dominação legal (...) todo direito pode ser estatuído de modo racional (...) todo direito é, segundo sua essência, um
cosmos de regras abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções; que toda judicatura é a aplicação
dessas regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses previstos pelas ordens da
associação, dentro dos limites das normas jurídicas e segundo princípios indicáveis de forma geral (...); que,
portanto, o senhor legal típico, o “superior”, enquanto ordena e, com isso, manda, obedece por sua parte à ordem
impessoal pela qual orienta suas disposições”. (Max Weber. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva.Trad. de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Revisão técnica de Gabriel Cohn. 3a edição. Brasília,
Ed. Universidade de Brasília, 1994, p. 142).
13
As primeiras heresias, situadas nos séculos I e II, não são propriamente heresias porque são doutrinas não cristãs,
como o maniqueísmo, por exemplo. Nos séculos IV e V, surge um misto entre doutrinas que cultuam o primitivo e o
judaísmo. Somente nos séculos XIV e XV é que a Europa é invadida pela onda herética que prega o resgate do
22
Calvino, enfraquecem ainda mais a Igreja porque a cristandade ocidental se cinde, abrindo
caminho para o fortalecimento do poder temporal. Como resposta, a Igreja Católica também sofre
uma reforma interna, sendo suas duas principais dimensões: a reunião do Concílio Tridentino e a
criação da Cia. de Jesus em 1540 pelo padre Ignácio de Loyola. O principal objetivo é o de evitar
a perda de fiéis para as Igrejas reformadas e tentar resgatar aqueles que foram perdidos. Podemos
dizer que as reformas, tanto a heterodoxa, como a ortodoxa católica, deixam a cristandade
ocidental cindida em duas: uma cristandade herética e uma cristandade ortodoxa.
O terceiro movimento que reforça a perda do caráter universal da cristandade ocidental é
o nascimento do racionalismo moderno. A Igreja perde o monopólio do saber com as mudanças
culturais que se processam no período. O Renascimento Cultural traz consigo a laicização do
mundo ocidental que contesta as justificativas transcendentes do mundo dadas pela religião cristã.
Do aristotelismo passa-se ao platonismo. Da Escolástica Medieval e do estudo da Suma
Teológica de São Tomás de Aquino, passa-se ao estudo dos exemplares originais de Ovídio, de
Virgílio, de Homero. O homem começa a ser valorizado tanto fisicamente como
intelectualmente; começa a ser o objeto central na arte e na filosofia.14 No entanto, é claro o
conflito que vive esse homem moderno, dividido entre o sagrado e o profano, entre Deus e a
humanidade, entre a sobrenatureza e a natureza.
Ao lado do humanismo, o desejo de descoberta é uma outra característica do
Renascimento Cultural. É daí que emergem as inovações técnicas do período. O astrolábio, a
bússola, a vela triangular combinada com o sistema de velas dos navegadores do norte e a
caravela são alguns dos principais empreendimentos levados a cabo pelo primeiro Estado que se
fez centralizar: o Estado português. É a centralização política que disponibiliza os fundos
necessários para os empreendimentos de alto risco que exigem as navegações no Atlântico. O
Estado português, que adquire contornos de Estado centralizado desde 1383 com a Revolução de
cristianismo em suas formas originárias, como é o caso dos cátaros, dos jansenistas, dos albigenses, e finalmente das
reformas propostas por Lutero e Calvino.
14
“Conforme já vimos, este período primeiro deu o mais alto desenvolvimento à individualidade, e depois levou o
indivíduo ao estudo mais zeloso e completo de si mesmo, em todas as suas formas e sob todas as condições. Na
realidade, o desenvolvimento da personalidade se acha essencialmente envolvido no reconhecimento dela mesma
dentro de nós e dos outros. Nossa narrativa colocou a influência da literatura antiga entre esses dois grandes
processos, pois o modo de conceber e representar tanto a natureza humana quanto a individual foi definido e colorido
por tal influência. O poder de concepção e representação, porém, está na época e nas pessoas”. (Jacob Buckhardt. A
cultura do Renascimento na Itália: um ensaio.
Trad. Vera Lúcia de Oliveira Sarmento e Fernando de Azevedo Corrêa. Brasília, Ed. da Universidade de Brasília,
1991, p. 184).
23
Avis e a coroação de D. João como rei de Portugal, é o único Estado capaz de agarrar esse
empreendimento. Não é a posição privilegiada que o empurra para a navegação no Atlântico, mas
principalmente sua centralização precoce.
A história das grandes navegações é paralela ao nascimento do capitalismo mercantil.
Nessa etapa, a acumulação se dá de forma primitiva. Primitiva porque dará origem ao próprio
capitalismo. Daí também o outro termo ser “originária”. Primitiva porque ainda não dispõe de
meios para efetuá-la estritamente pelos meios econômicos e necessita de forças extra-econômicas
para que se efetue. Ela ainda não se faz na produção, mas na circulação. O mecanismo é o de
“comprar barato para vender caro”.
Com a montagem do sistema colonial, é o sistema como um todo que promove a
acumulação. O capital acumula-se na metrópole, mas o processo de criação de mais valiamercantil depende exclusivamente da natureza da relação que a metrópole trava com sua colônia.
Daí falar-se em externalidade da acumulação.15 Não somente se comercializam produtos, como
se produz para a comercialização. O Estado Nacional, o exclusivo comercial e a compulsão do
trabalho são os elementos que, dentro do projeto colonizador, garantem a acumulação primitiva.16
No entanto, em relação à pura comercialização, algumas mudanças já se fazem, como por
exemplo, quanto à mentalidade. Um dos princípios em que se assentava o mercantilismo era o
metalismo: a riqueza se fundamenta na quantidade de metal nobre que um país consegue reunir
dentro de suas fronteiras. Com o passar do tempo, essa concepção de riqueza vai mudando e de
metal amoedável vai passando para bens que se pode produzir.
É nesse contexto que começa a história de um domínio luso na América que depois viria a
se chamar Brasil. Brasil aqui significa pau de tinta, índio, terra, língua, mas não nação, cujo
sentido somente adquire nos séculos XVIII-XIX a partir da formação de uma identidade
especificamente nacional e de uma ideologia anti-metropolitana. O que tentaremos reconstituir a
Fernando Antônio Novais. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6a edição. São Paulo,
HUCITEC, 1995.
16
Uma descrição do funcionamento da concorrência do século XVI, fundamentada nos monopólios: “Da mesma
maneira que, na sociedade capitalista do século XIX e, acima de tudo, do século XX, a tendência geral para a
monopolização econômica revela-se claramente, pouco importando qual competidor particular triunfe e supere os
outros; da mesma maneira que uma tendência análoga para a dominação mais clara, que precede cada caso de
monopolização, cada caso de integração, está se tornando cada vez mais visível na competição entre os ‘Estados’,
acima de tudo na Europa, da mesma maneira, ainda, as lutas entre as Casas medievais e, mais tarde, entre os grandes
senhores feudais e territoriais, demonstravam uma clara tendência para a formação de monopólios”. (Norbert Elias.
O processo civilizador - Formação do Estado e Civilização. v. 2. Trad. Da versão inglesa Ruy Jungman. Revisão,
apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993, p. 135).
15
24
seguir são as pré-condições para a formação da tomada de consciência de uma identidade
negativa, que por sua vez é um dos sentimentos que é pré-condição para a identidade nacional.
Em conjunto, todos os sentimentos anteriores ao século XIX, inclusive essa consciência da
diferença, correspondem ao que chamamos de “arqueologia da nação”, mas este estudo se
restringe às dimensões lógica e histórica dessa primeira etapa.
O estudo da consciência da diferença nesse trabalho está fundamentado em pesquisa
documental. Discriminamos a documentação por tipos a fim de verificar como as percepções se
distribuem nos diferentes tipos de documentos e como todas essas percepções em seu conjunto
caminham para uma consciência da diferença entre colonos e reinóis.
1.3 Tipos de Documentação e percepções de diferença
1.3.1 Tratados
Segundo José Honório Rodrigues os Tratados seriam crônicas ou elementos informativos
da nova terra, que não fazem parte da Historiografia do Brasil.
17
Embora Honório Rodrigues
considere tratado e crônica a mesma coisa, também acreditamos que não fazem parte a
Historiografia do Brasil, mas por motivos diferentes. Em primeiro lugar, não compõem uma
História propriamente dita, mas um aglomerado de informações que têm uma intenção mais
propagandística que histórica: atrair povoadores para a terra. Em segundo lugar, ainda não se
trata de Brasil enquanto nação, mas de “Brasil”, enquanto uma possessão portuguesa na América.
Uma das características que perpassam os Tratados é a brevidade, que segundo Emmanuel
Pereira Filho constituiria um traço marcante do estilo da época. Acreditamos que não somente
isso seja motivo das rápidas informações a respeito da terra, mas também o intuito com que se
escrevia. Não somente se tinha o objetivo de informar, mas informar para povoar. Daí o estilo
limpo, atraente e objetivo. Entretanto, ao lado destas informações breves sobre a terra, têm-se
também informações longas e detalhadas e respeito de sua fertilidade e riquezas concretas ou
potenciais. Páginas e páginas são escritas por Fernão Cardim detalhando minuciosamente os finos
17
O tratado é definido em José Honório Rodrigues como uma crônica geral: “É certo que a crônica é mais narração
do instante do acontecimento, que recriação e compreensão da estrutura factual e espiritual, tarefa da História (...)
mas como a crônica geral é a apreensão narrativa no momento da produção, quando também surge a documentação,
cabe-lhe a primazia da apreciação crítica. Já a História geral representa uma recriação posterior, que se nem sempre
aguarda a crônica, espera utilizar-se dos documentos acessíveis”. (José Honório Rodrigues. História da história do
Brasil. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1979, p. 425).
25
tecidos com que se vestiam os santos nas festas religiosas: “Estava todo o pátio enramado, as
classes bem armadas com guadamecins, painéis e várias sedas (...) O padre visitador lhes mandou
dar a todos Agnus Dei, relíquias e contas bentas, de que ficaram agradecidos (...) trouxe o padre
uma cabeça das onze Mil Virgens com outras relíquias engastadas em um meio corpo de prata,
peça rica e bem acabada”.18 Encher os olhos dos leitores com as maravilhas das viagens é um dos
recursos para se atrair pretensos povoadores.
O nosso primeiro cronista é Pero de Magalhães Gândavo. Segundo Barbosa Machado, era
de ascendência flamenga, natural de Braga, , humanista latino e professor de latim em uma escola
entre o Douro e Minho. A primeira tiragem da História da Província de Santa Cruz a que
vulgarmente chamamos de Brasil foi feita em 1576 na oficina de Antônio Gonsalves em Lisboa,
o mesmo local onde, em 1572, publicara Camões a sua primeira edição de Os Lusíadas.
Antes da redação definitiva da História, no entanto, passa-se por outras três redações. A
do Tratado da Província de Santa Cruz, a do Tratado da Terra do Brasil, um terceiro texto que
corresponde à fusão destes dois e que é uma forma preliminar da História e finalmente esta. A
nossa questão é se a passagem do Tratado para a História da Província de Santa Cruz implica em
alguma forma de tomada da consciência da diferença entre colonos e reinóis. Na opinião de
Leonardo Dantas,19 as informações do Tratado foram somente remanejadas para a composição da
História. Para nós, a grande diferença é que nesta última, Gândavo situa o descobrimento no
tempo quando no Tratado, ele aparece como um dado. Tanto, que Gândavo já parte da descrição
das capitanias hereditárias não se preocupando em descrevê-lo, como faz no primeiro capítulo da
História. Mesmo assim, a importância dos feitos pessoais sobrepassam a do fato histórico e o
objetivo, tanto no Tratado, como na História, permanece o mesmo: “terem também os nossos
naturais a mesma notícia, especialmente para que todos aqueles que nestes Reinos vivem em
pobreza não duvidem escolhê-la para seu amparo: porque a mesma terra é tal, e tão favorável aos
que a vão buscar, que a todos agasalha e convida com remédio por pobres e desamparados que
sejam”.20
Fernão Cardim. Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583). 3a ed. São Paulo, Cia. Editora nacional, 1971, p. 174.
Pero de Magalhães Gândavo. Tratado da Terra do Brasil, 5a edição. História da Província de Santa Cruz a que
vulgarmente chamamos de Brasil, (1576). 12a edição. Ed. De Leonardo Dantas. Recife, Fundação Joaquim Nabuco;
Editora Massangana, 1995.
20
Gândavo, op. Cit, p. 47. Segundo José Honório Rodrigues a História é ainda um livro de circunstância, como o
Tratado: “Com ele temos a primeira revelação histórica do Brasil nos seus 70 primeiros anos, quando estávamos no
quarto governo feral e já possuíamos um bispado. A História é um livro de circunstância, embora o primeiro a
assumir o caráter de composição histórica, superior em elaboração às cartas e relatórios jesuítas”. (José Honório
18
19
26
Embora o mesmo objetivo apareça em Cardim, o caráter propagandístico não parece ser
tão forte. A propaganda aparece mais como uma conseqüência do que como ponto de partida da
obra. O estilo doce e envolvente do jesuíta chegado à terra em 1583 parece ser derivado de uma
preocupação mais descritiva, conduzido pela necessidade em se relatar o desconhecido, o belo e o
estranho não somente para os portugueses em geral, mas também para os outros jesuítas. Desse
último ponto de vista, a narração de Cardim não serviria somente para propagar as características
da terra, como para mostrar os desafios que ela lançava para os soldados de Cristo.
Foram três os tratados escritos por Cardim e publicados em conjunto sob o título Tratados
da Terra e gente do Brasil. O primeiro, Do clima e terra do Brasil e de algumas coisas notáveis
que se acham assim na terra como no mar, trata mais especificamente da descrição geográfica e
corográfica da terra, do habitat animal e vegetal. Descreve tudo em minúcias, incorporando
inclusive a linguagem da terra, mas usando-se dos recursos comparativos para se fazer entender
pelos leitores na metrópole. O segundo tratado, Do princípio e origem dos índios do Brasil e de
seus costumes, adoração e cerimônias, traz uma especulação a respeito das tribos indígenas, os
costumes gentílicos e a visão que Cardim tem do índio. No entanto, é no último tratado, a
Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica, que se situa a descrição que mais nos
interessa, qual seja, a respeito da organização social e econômica da colônia. Procuraremos nos
deter neste último porque os outros tratados não apresentaram novidades em relação aos demais
tratados no que se refere à diferenciação entre colono e reinol, ao passo que este último levanta
algumas questões essenciais a respeito dos costumes dos moradores da nova terra.
O terceiro autor com que estamos trabalhando é Gabriel Soares de Sousa e sua obra, o
Tratado descritivo do Brasil, em 158721. Divide-se em duas partes: o Roteiro Geral da Costa
Brasílica e Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia. O autor é um senhor de engenho, de
posse dos de Jaguaribe e Jequiriçá, chegado à Bahia em 1570, durante o reinado de D. Sebastião.
Tinha um projeto de chegar às lendárias cabeceiras do rio São Francisco, mas morreu na empresa
em 1587.
Passamos agora à análise das obras dos autores supracitados. A História da Província de
Santa Cruz de Gândavo não altera a essência do conteúdo do Tratado da terra do Brasil, embora
se preocupe em dar uma gênese à terra descoberta. No entanto, a despeito dessa gênese, não se
Rodrigues. História da História do Brasil. São Paulo, Cia Ed. Nacional; MEC, 1979, p. 431). O que está em jogo,
portanto, é o que se considera como história.
21
Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.4a edição. São Paulo, Ed. Nacional, 1971.
27
tem um desdobramento histórico da ocupação na terra: o autor situa o descobrimento e então
prossegue na pura descrição que permeava o Tratado. Descreve as capitanias, o número de seus
habitantes, a geografia, a corografia, a etnografia, todas elas observações de caráter natural. A
dinâmica da sociedade se restringe aos números: o número de engenhos, o número de habitantes,
o número de escravos... O autor descreve o estado presente da terra, mas não o seu
desenvolvimento. As descrições aparecem soltas no tempo, sem que haja uma relação entre umas
e outras.
Para facilitar análise, organizaremos a apresentação dos tratados por temas. Colocaremos
alguns pontos que encontramos nestes textos e que consideramos pré-condições para o
aparecimento da consciência da diferença entre colonos e reinóis presente nos Diálogos.
Primeiramente, tal consciência nasce na natureza, porque é o que salta aos olhos como mais
diferente. Mesmo assim, a tendência do cronista, em primeira instância, não é enxergar o
diferente, mas o diverso, ou seja, elementos que ainda pertencem a uma mesma unidade. Mesmo
na natureza, o cronista usa os padrões metropolitanos para entender e se fazer entender. Como
explicar o gosto do ananás? Como explicar o que é um peixe boi? Seria uma sereia, como o viu
Colombo? O que muda são as medidas: a cor, a forma, o tamanho... Tudo na colônia aparece
maior e mais abundante do que na metrópole, mas não deixa de ser uma exponenciação do que já
existe na metrópole. Já o “diferente” implica na percepção de uma unidade diversa à da
metrópole. No caso da natureza, é quando os homens começam a percebê-la em suas
particularidades, sem necessitar de padrões ou de analogias22 para se fazer entender. O
rompimento da continuidade em relação a Portugal depende da intimidade que se vai criando
com a terra. Esse conhecimento mais íntimo da terra obtido a partir da especulação, da
22
A interpretação do mundo por meio de analogias é, segundo Sérgio Buarque de Holanda uma característica do
homem renascentista. “A mentalidade da época acolhe de bom grado alguns modos de pensar de cunho analógico,
desterrados hoje pela preeminência que alcançaram as ciências exatas. Em tudo se discernem figura e signos: o
espetáculo terreno fornece, em sua própria evanescência, lições de eternidade. A Natureza é, em suma, ‘o livro da
Natureza’, escrito por Deus e como a Bíblia, encerra sentidos ocultos, além do literal. Até a razão discursiva, feita
para uso diário, deixa-se impregnar, não raro, da influência o pensamento mítico, e entre os espíritos mais realistas
encontram-se as marcas dessa atitude, que traz no bojo um sentimento vivo da simpatia cósmica.” (Sérgio Buarque
de Holanda. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos do Descobrimento e Colonização do Brasil. 3a edição. São
Paulo, cia. Editora nacional, 1977, p. 64. Grifos nossos). Há um trecho ilustrativo em Cardim quanto ao modo de
pensar por cunho analógico: “Também tem um poço, fonte e tanque, ainda que não é necessário para as laranjeiras
porque o céu as rega; o jardim é o melhor e mais alegre que vi no Brasil, e se estiveram em Portugal, pudera chamar
jardim”. (Cardim, op. Cit., p. 33)
28
observação, da experiência,23 implica em uma outra ruptura com a metrópole: com as teorias
ocidentais sobre a interpretação do mundo. Isso já está claramente posto nos Diálogos das
Grandezas do Brasil.
Além da passagem do diverso para o diferente, temos a passagem da percepção para a
consciência da diferença. A percepção é a mera constatação. A consciência é um estágio além.
Não importa tanto a descrição, como o significado de sua existência e a relação entre os objetos
dos quais se toma consciência. Sua existência tem um sentido seja social, seja individual.
Há ainda uma terceira passagem, que é a fusão das considerações anteriores: a da
percepção da diferença na natureza para a consciência da diferença entre os homens; o
português se cindindo entre um homem vivendo na metrópole e um vivendo na colônia. É essa
consciência de diferença que já acreditamos existir nos Diálogos, e que foi sendo criada durante
os primeiros anos da montagem da sociedade colonial. Em síntese, passa-se de uma mera
percepção para uma consciência do diferente, cujo objeto é primeiro a natureza e depois a
sociedade. Passemos agora à descrição detalhada de como essa passagem é feita.
A primeira constatação de diferença é com relação à fertilidade da terra, cuja descrição é
um recurso propagandístico para atrair povoadores para a terra. Daí o exagero de suas medidas,
do maravilhoso, do inusitado, do estranho... O que se procura é despertar os sentidos por meio da
exaltação das qualidades de Portugal na nova terra, exagerando-as ao limite.24 A partir do
momento em que uma terra é percebida na outra, o que é diferente na realidade se torna diverso
na imaginação do colonizador. Já existe uma percepção de diversidade: a das medidas.25 Num
estágio anterior, os dois espaços, metrópole e colônia, eram exatamente iguais.26 Aos poucos, a
23
“Muito mais do que as especulações ou os desvairados sonhos, é a experiência imediata o que tende a reger a
noção de mundo destes escritores e marinheiros, e é quase como se as coisas somente existissem verdadeiramente a
partir dela (...) Podiam admitir o maravilhoso e admitiam-no de bom grado, mas só enquanto se achasse além da
órbita de um saber empírico.” (Holanda, op. Cit., p. 5. Grifos nossos). Quando é a experiência própria que passa a
dar sentido às coisas e inclusive explicá-las, a relação entre o ouvir e o ver, se inverte. É agora “o ver” que antecede
o crer e o explicar, ao contrário das antigas formulações, que eram constituídas a partir daquilo que se ouvira e do
colorido que a imaginação dava a isso que fôra ouvido.
24
“(...) há muito peixe em extremo e junto dele muita infinita caça de porcos e veados. Aqui se pode fazer uma
povoação, onde os homens vivam abastados e façam muitas fazendas”. (Gândavo, op. Cit., p. 7). Quando esse
potencial começa a ser aproveitado no decorrer da ocupação da terra, a fertilidade se mostra na alta produtividade
desta. A respeito das novilhas: “no qual engordam tanto que do muito viço dizem que morrem todas”. O exagero é
das figuras de linguagem mais usadas nas descrições.
25
“Esta terra sempre é quente quase tanto no inverno quanto no verão. A viração do vento geral dura até o meio dia
pouco mais ou menos, é tão fresco este vento e tão frio que não se sente mais calma, e ficam recreados os corpos das
pessoas”. (Idem, ibidem, p. 18)
26
“Colombo (...) acredita também (e não é o único na época) em ciclopes e sereias, em amazonas e homens com
caudas, e sua crença (...) permite que ele os encontre: ‘O Almirante diz que na véspera, a caminho do rio do Ouro,
29
projeção vai deixando de pertencer somente ao plano do imaginário, para pertencer ao plano
material também. Os primeiros povoadores desejam que este espaço seja em tudo uma réplica
daquele de onde vieram.
Quando não se consegue reproduzir “um outro Portugal”, justifica-se pelos limites da
terra. Há, portanto, uma iminente contradição dentro da própria percepção da fertilidade. Ora a
terra é considerada fértil, ora fraca: “Nunca faltou um copinho de vinho de Portugal, sem o qual
se não sustenta bem a natureza por a terra ser desleixada e os mantimentos fracos, vestem e
calçam como em Portugal”.27 A opinião sobre a terra depende da continuidade do projeto. Se ela
consegue reproduzir Portugal, ela é boa, se ocorre o contrário, ela é má. Esse comportamento
ambíguo se relaciona com a dificuldade de percepção que tanto a natureza, como os seus usos são
diferentes (e não somente diversos) conforme se trate de uma colônia ou de uma metrópole.
Quando passamos para a descrição dos homens que povoam as capitanias, vê-se que a
abundância passa da terra para os homens e a diferença entre um morador desta terra e um
morador em Portugal continua a residir nas medidas de corpo e nas suas posses: “Os moradores
destas capitanias tratam-se muito bem e são mais largos que a gente deste Reino, assim no comer
como no vestir de suas pessoas e folgam de ajudar uns aos outros com seus escravos e favorecem
muito os pobres que começam a viver na terra e fazem muitas obras pias, por onde todos têm
remédio de vida e nenhum pobre anda pelas portas a pedir como neste Reino”.28 Aqui já vemos
uma passagem sutil da mera diferença quantitativa para a qualitativa: a maior riqueza dos homens
justifica sua maior caridade, e isso é uma coisa que só acontece nestas partes. O mesmo valor, a
caridade, tem manifestações diferentes em lugares diferentes. O mesmo movimento de
transferência dos atributos da terra para os homens é visto em Cardim: “A gente da terra é
honrada: há homens muito grossos de 40, 50 e 80 mil cruzados de seu: alguns devem muito pelas
grandes perdas que têm com a escravaria de Guiné, que lhe morrem muito, e pelas demasias e
gastos grandes que têm em seu tratamento (...) Enfim, em Pernambuco há mais vaidade que em
viu três sereias que saltaram alto, fora do mar. Mas elas não eram tão belas quanto se diz, embora de um certo modo
tivessem forma humana de rosto’ (...) As crenças de Colombo influenciam suas interpretações. Ele não se preocupa
em entender melhor as palavras dos que se dirigem a ele, pois já sabe que encontrará ciclopes, homens com cauda e
amazonas. Ele vê que as ‘sereias’ não são, como se disse, belas mulheres: no entanto, em vez de concluir pela
inexistência das sereias, troca um preconceito por outro e corrige: as sereias não são tão belas quanto se pensa”.
(Tzvetan Todorov. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo, Martins
Fontes, 1993, p. 16/17. Grifos nossos).
27
Cardim, op. Cit., p. 176.
28
Gândavo, op. Cit, p. 17.
30
Lisboa”.29 A abundância passa da terra para os homens. Nesse momento ela é produzida pelo
contato físico do homem com a terra: a terra produz um tipo melhor porque ela é melhor. Nos
documentos posteriores, isso vai aparecendo como um valor, uma herança dos antepassados. A
abundância aparece pelo contato entre os homens e não somente entre homem e natureza. Por
exemplo, nos Diálogos, não se sabe como os homens chegam a ser negligentes. Desconfia-se que
é por causa da facilidade em se produzir as coisas, mas essa relação fica implícita. A certeza só
vem realmente com o estudo “arqueológico” da documentação, que mostra que a lassidão da terra
vai se passando lentamente para os homens até que aparece não mais de um valor natural, mas
social; não mais como uma diferença quantitativa, como as proporções dos homens, mas de uma
diferença qualitativa: a terra permite que os homens cultivem o ócio e o comodismo porque ela
lhes dá de tudo com pouco esforço.
Um outro valor que já começa a se verificar nos homens e que surge das condições da
terra, e principalmente do contato com os nativos, é a hospitalidade. Esse valor aparece pela
primeira vez em Cardim ainda dentro do tema da abundância. Há uma sutil diferença entre
fertilidade e abundância. A fertilidade era ressaltada como um potencial do que a terra poderia
produzir. A abundância é uma característica do que a terra produz. Essa mudança vai se fazendo
na medida em que se vai definindo uma base material para a colônia. Por meio da comparação
entre dois trechos, um que fala sobre o indígena e outro sobre o português, chegamos à conclusão
de que a hospitalidade é um valor desta terra. É como se pelo contato com as características da
terra e do índio, ela passasse aos novos moradores: “Nunca entre eles há desavença ou peleja (...)
mas em tudo são muito amigos e conformes. (...) saímos de casa algumas 40 pessoas, sem coisa
alguma de comer, nem dinheiro, porém, onde quer que chegávamos e a qualquer hora éramos
agasalhados por toda a gente de todo o necessário de comer, carnes, pescados, mariscos, com
tanta abundância, que não fazia falta a ribeira de Lisboa. Nem faltavam cama, porque as redes,
que servem de cama, levávamos sempre conosco, este é cá o modo de peregrinar, sine pena, mas
Nosso Senhor a todos sustenta nestes desertos com abundância”.30 O outro trecho, que fala da
mesma característica, mas constatada nos portugueses, é o seguinte: “Os engenhos deste
recôncavo são 36 (...) com muitas fazendas para ver. De uma cousa me maravilhei nesta jornada,
e foi a facilidade que têm em agasalhar os hóspedes, porque a qualquer hora da noite ou do dia
29
30
Cardim, op. Cit., p. 201.
Idem, ibidem, p. 178.
31
que chegávamos em brevíssimo espaço nos davam de comer a cinco da companhia (afora os
moços) todas as variedades de carnes, galinhas, perus, patos, leitões, cabritos, e outras castas e
tudo têm de sua criação, com todo o gênero de pescado e mariscos de toda a sorte, dos quais
sempre têm a casa cheia, por terem deputado certos escravos para isso, e de tudo têm a casa tão
cheia, que na fartura, parecem uns condes, e gastam muito”.31 A mesma característica que se vê
nas tabas, se vê nos engenhos. Como veremos no próximo capítulo, o fundamento dessa questão
é o mesmo da discussão de Frei Vicente do Salvador a respeito da inversão entre os espaços
público e privado.
A propaganda aparece, portanto, com uma dupla função: em primeiro lugar minorar os
problemas do reino: “Minha intenção não foi outra (...) senão denunciar em breves palavras a
fertilidade e abundância da terra do Brasil, para que esta fama venha à notícia de muitas pessoas
que nestes reinos vivem com pobreza, e não duvidem escolhê-la para seu remédio: porque a
mesma terra é tão natural e favorável aos estranhos que a todos agasalha e convida com remédio,
por pobres e desamparados que sejam”.32 Em segundo lugar, promover a povoação do domínio
português na América usando como instrumento a exaltação de suas qualidades: “(...) e esperam
o cavalo poldras de um ano, como as vacas a algumas vezes parem duas crianças juntas. São tão
formosas as éguas da Bahia como as melhores da Espanha; das quais nascem formosos cavalos e
grandes corredores, os quais, até a idade de cinco anos, são bem acondicionados, e pela maior
parte como passam daqui criam malícia e fazem-se mui desassossegados, mal arrendados e
ciosos”.33 No primeiro caso, o problema está na metrópole e a solução na colônia; no segundo
caso, o problema está na colônia e a solução na metrópole. Ao resolver-se um problema, o outro
fica automaticamente resolvido. O maior obstáculo à harmonia geral é o da escassez de
povoadores: “muitas terras perdidas por falta de moradores, das quais se conseguiria muito
proveito se as povoassem (...) as quais também se perdem por não haver gente que as vá
povoar”.34
O segundo problema que poderia atravancar a ocupação é a presença do indígena. Poderia
parecer contraditório porque ao mesmo tempo em que o autor diz atrocidades a respeito dos
31
Idem, ibidem, p. 193.
Gândavo, op. Cit, p. 3.
33
Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.4a edição. São Paulo, Ed. Nacional, 1971, p. 164.
34
Gândavo, op. Cit., p. 7
32
32
gentios que ocupam esta terra35, ele convida os conterrâneos a povoá-la. No entanto, a solução
está posta no próprio texto por dois meios: o primeiro é que o gentio vive em guerras intestinas
que se desenvolvem entre as tribos, uns comem aos outros36. O segundo, e mais importante, é o
projeto da conversão de almas, que está imbricado ao do povoamento. Ao povoar, o português
não somente não precisa temer o indígena, justamente pela sua condição gentílica e pelo trabalho
do jesuíta37, como também estará ajudando a salvar muitas almas ao servir como exemplo notável
àquele que desconhece a doutrina. Logo aqui já se vê como o projeto de colonização e
catequização se encontram imbricados, mas isso é objeto de estudo do capítulo 3.
Assim que se efetiva a povoação, qualquer falha que o projeto colonizador venha a
apresentar, a culpa é atribuída ao índio ou à terra, conforme vimos anteriormente, e jamais ao
português: “(...) e uma das coisas porque o Brasil não floresce muito mais, pelos escravos que se
levantaram e fugiram para suas terras e fogem cada dia; e se estes índios não foram tão fugitivos
e mudáveis, não tivera comparação a riqueza do Brasil”.38 Dessa forma, justificam-se as possíveis
frustrações que poderiam afastar os povoadores. Nos Diálogos, conforme veremos, a culpa pela
frustração do projeto está no próprio caráter do português que se transmudou em colono. Vê-se
que conforme avança o projeto colonizador, as justificativas de seu sucesso ou de sua frustração
são endógenas à própria sociedade colonial.
Em Gabriel Soares de Sousa, o conhecimento mais íntimo da terra já começa a ser um dos
motivos de diferenciação. Na nova terra, a experiência é o que passa a compor o conhecimento,
porque afinal, as antigas teorias caem em desuso com os grandes descobrimentos. Essa nova
postura perante o conhecimento e a forma como ele é gerado é uma das principais diferenças
entre Alviano e Brandônio. Em Gabriel Soares de Sousa essa postura pode ser vista nas
diferenças de atitude entre a Rainha D. Catarina e o governador Mem de Sá ante a expulsão dos
franceses do Rio de Janeiro: “mas como a Rainha soube desta vitória, e entendendo quanto
35
“(...) vivem entre os matos como brutos animais, são forçosos em extremo, trazem uns arcos muito compridos e
grossos, conforme as suas forças e as flechas da mesma maneira. Estes índios têm feito muito dano aos moradores
depois que vieram a esta costa e morto alguns portugueses e escravos, porque são inimigos de toda gente (...)
Finalmente, que não têm medo rosto direito a ninguém, senão à traição que fazem a sua”. (Idem, ibidem, p. 10)
36
“(...) e assim, como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns aos outros, e que houvesse entre eles
grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse, os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível
conquistar tamanho poder de gente”. (Idem, ibidem, p. 24).
37
“Aqui e nas mais capitanias têm feito estes padres da Companhia grande fruto e fazem com que a terra vá em
muito crescimento, trabalham por fazer cristãos a muitos índios e metem muitas pazes entre os homens; também
fazem restituir as liberdades de muitos índios que alguns moradores da terra têm mal resgatados. Assim que sempre
acodem as que se desviam do serviço de Deus e de Sua Alteza”. (Idem, ibidem, p. 13)
38
Idem, ibidem, p. 16.
33
convinha à coroa de Portugal povoar-se e fortificar-se o Rio de Janeiro, estranhou muito a Mem
de Sá o arrasar a fortaleza que tomou aos franceses e não deixar gente nela que a guardasse e
defendesse, para se povoar este Rio (o que ele não fez por não ter gente que bastasse para poder
defender esta fortaleza)”.39 Temos uma passagem clara da diferença de postura entre Mem de Sá
e a rainha para a diferença entre Alviano e Brandônio. Aqui, o conhecimento é algo construído
pela experiência cotidiana e vai sendo incorporado ao colono, tornando isso um traço de caráter
seu. A forma de interpretar o cosmos torna-se diferente. Já no primeiro caso, que é sua condição
“arqueológica”, trata-se não tanto de conhecimentos diferentes, mas de diferentes graus de acesso
a uma determinada informação. Passou-se de algo puramente circunstancial para algo que foi
incorporado como traço de personalidade do colono.
É também em Gabriel Soares de Sousa que encontramos as informações mais bem
acabadas sobre a organização material da terra, indo desde a descrição dos engenhos já montados,
passando pelas vilas, cidades40 e Igrejas já de cal e pedra e não mais de taipa, e chegando até às
armas da terra, construídas especialmente guerrear contra o indígena: “saibamos que tem alguns
aparelhos naturais da terra com que se possam ofender seus inimigos, não falando nos cercos e
flechas dos gentios (...) mas digamos das maravilhosas armas de algodão que se fazem na Bahia
(...) do que se os portugueses querem antes armar que de cassoletes, nem couraças, porque a
flechada que dá nestas armas resvala por elas e faz dano aos companheiros”.41
Passemos agora à introdução à documentação Inquisitorial.
1.3.2 Documentação Inquisitorial
São seis os documentos discriminados na documentação Inquisitorial. Quatro deles
correspondem à visitação feita por Heitor Furtado de Mendonça, que esteve na Bahia entre 1591
a 1593 e em PE, Paraíba e Itamaracá, em setembro de 1593 e fevereiro de 1595. Tanto a
39
Gabriel Soares de Sousa, op. Cit., p. 105.
A organização material na colônia e sua incipiente divisão do trabalho: “A terra que esta cidade tem, uma e duas
léguas à roda, está quase toda ocupada com roças, que são como os casais de Portugal, onde se lavram muitos
mantimentos, frutas e hortaliças, de onde se remedeia toda a gente da cidade que o não de sua lavra, a cuja praça se
vai vender, do que está sempre mui provida, e o mais do tempo o está do pão que se faz das farinhas que levam do
reino a vender ordinariamente à Bahia, onde também levam muitos vinhos da ilha da Madeira, das Canárias, onde
são mais brandos, e de melhor cheiro, e cor e suave sabor que nas mesmas ilhas de onde levam; os quais se vendem
em lojas abertas, e outros mantimentos de Espanha, e todas as drogas e sedas e panos de toda a sorte, e as mais
mercadorias acostumadas”. (Idem, ibidem, p. 139).
40
34
passagem pela Bahia, como por Pernambuco, resultou cada qual dois livros: um de confissões e
um de denunciações.42 A segunda visitação em 1618 foi feita por Marcos Teixeira na Bahia.43
A 13 de setembro de 1543 aparece a primeira acusação no Novo Mundo: João Barbosa
Paes denuncia Pero de Campos Tourinho, o qual é capturado em 1546 e em 1555 responde
interrogatório. Campos Tourinho é condenado “por se dizer papa e rei e fazer trabalhar aos
domingos”.44
A 9 de março de 1591, aporta na capital baiana, junto com o governador Francisco de
Sousa, o visitador Heitor Furtado de Mendonça. Também eram nomeados para cargos do Santo
Ofício, um notário e um meirinho. As funções destes, de início pré-fixadas, começam a variar
conforme o surgimento de novas heresias não abarcadas pelo monitório. “Sobre as atribuições do
notário e do meirinho devia ter influído de qualquer modo o novo meio a que vinham
transferidos”.45 A alteração no quadro de cargos e mesmo no formato das instituições, que têm
de se adaptar às condições locais, contribui para o movimento de diferenciação mais geral entre
colonos e reinóis que estamos discutindo.
O monitório enumerava as heresias e apostasias condenáveis pelo Santo Ofício. O grande
problema era que este monitório feito para a visitação no Brasil fora baseado nos monitórios
europeus.46 Vários dos casos que aparecem nas denunciações e confissões dos colonos não se
41
Idem, ibidem, p. 348.
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões
da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu, Rio, F. Briguiet, 1935.
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações
da Bahia – 1591-1593. Prefácio de Capistrano de Abreu, São Paulo, Ed. Paulo Prado, 1925.
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações
de Pernambuco – 1593-1595. Introdução de Rodolfo Garcia. São Paulo, Ed. Paulo Prado, 1925.
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil – Confissões de Pernambuco – 1591-1592. J. A. Gonsalves de
Melo (Ed.). Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1970.
43
Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil – Denunciações da Bahia (1618-Marcos Teixeira).
Introdução de Rodolfo Garcia. Anais da Biblioteca Nacional do Rio De Janeiro, vol. 49, 1927.
Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o licenciado Marcos Teixeira.
Livro das Confissões e Ratificações da Bahia (1618-1620). Introdução de Eduardo de Oliveira França e Sonia
Siqueira. Anais do Museu Paulista, tomo XVII.
44
Capistano de Abreu. Prefácio à Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor
Furtado de Mendonça – Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu. Rio, F. Briguiet, 1935,
p. I.
45
Capistrano de Abreu, Op. Cit., p. XIII.
46
“O monitório de D. Diogo servia ao duplo fim de facilitar o exame de consciência dos confidentes e de indicar o
caminho aos espiões e delatores”. (Idem, ibidem, p. XIII)
42
35
encontram previamente decodificados no monitório.47 O visitador muitas vezes não sabia como
lidar com estes casos. E será mesmo que o monitório realmente “facilitava o exame de
consciência” dos réus, conforme preconizava? Será que eles realmente se sentiam culpados?
Muitos nem sabiam porque estavam sendo condenados. Na maior parte das confissões, quando o
Santo Ofício pergunta se o réu tinha consciência de que aquilo que fazia era errado, este responde
imediatamente que não48. E não estão mentindo. Segundo Sônia Siqueira, “os cristãos não viam
aqui [na colônia] necessidade de militância. Não percebiam a erosão do Paganismo no terreno de
suas convicções religiosas”.49
A visitação de 1618 foi ordenada pelo inquisidor geral Fernão Martins Mascarenhas, e
teve Marcos Teixeira como visitador. Dessa visitação, diz Capistrano haver um códice de 322
folhas, sendo que algumas das pessoas que falam já haviam sido autuadas na Visitação de Heitor
Furtado de Mendonça. Ana Roiz, que no livro das Confissões da Bahia é acusada por ser cristã
nova, aqui, já octogenária é condenada à fogueira. A única condenação, aliás, que foi feita aqui
no Brasil.
Quanto às características internas ao tribunal do Santo Ofício colonial, é de se acrescentar
que na colônia, sua estrutura adquiriu contornos mais seculares do que religiosos.50 Isso acontece
porque os tribunais do Santo Ofício configurados especialmente para atuar nos domínios d’alémmar são antes de tudo um aparelho de Estado, conseqüência da subordinação da Igreja a este
durante o processo de centralização política: “A Inquisição, tal qual a impetrou D. João III e a
concedeu o papa Paulo III, era um tribunal régio, como o patenteia o fato do primeiro inquisidor
geral ter sido de nomeação del rei independentemente da Sé Apostólica. A pravidade dos jesuítas
arrancou a prerrogativa da Coroa, que só a reouve em 1771, quando nomeou a ele cardeal para o
cargo”.51 Não é à toa que seu ápice de atuação acontece justamente nos começos do século
XVIII, com a febre da mineração e a necessidade de permanente vigília sobre os colonos.52
47
“O monitório de D. Diogo facilitava as confissões e denunciações judaizantes, mas era deficiente. Clara Fernandes
previne ao inquisidor que a Boca Torta a infamava de ter um crucifixo que açoitava. Esta abominação, a mais
freqüente nas denúncias contra os cristãos novos, não figurava no monitório de D. Diogo”. (Idem, ibidem, p. XVII)
48
“e sendo perguntada respondeu que a sua tenção era entender que se o dito mestre e que o fora queimado teria
morte mais desonrada e que não teve outra tenção nem malícia e que não sabe que algum parente seu fosse
penitenciado ou preso pelo Santo Ofício”. (Primeira Visitação-Confissões da Bahia, p. 39).
49
Sônia Aparecida de Siqueira. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo, Ática, 1978, p. 44.
50
“Os escritores que negam a participação da igreja na estrutura inquisitorial e tudo atribuem ao então ávido de preia,
poderiam ainda afirmar que ao fisco não convinha repartir os bens dos condenados entre a metrópole e a colônia: a
metrópole queria a fazenda inteira para seu proveito exclusivo”. (Capistrano de Abreu, op. Cit., p. VIII)
51
(Idem, ibidem, p. X). Os regimentos do Santo Ofício formulados entre os séculos XVI e XVIII são as principais
fontes que demonstram a inversão de poderes que se sucedeu na Europa durante o período de vigência do
36
Entre os cargos que foram criados pelo Santo Ofício para a sua atuação na colônia está o
de “familiar do Santo Ofício”, o qual concentra todo o poder que pertenceria à alçada dos
tribunais, inexistentes no mundo colonial: “Com a falta de tribunais no Brasil não folgou nem
lucrou o gado humano marcado para a Inquisição. Supria-os pelo seu fervor e por sua ubiqüidade
o familiar do Santo Ofício, título muito cobiçado, porque explicitamente afirmava a limpeza de
sangue e implicava numerosos privilégios”.53 Tornar-se familiar era uma das formas de obtenção
de nobreza e prestígio, o que, para aqueles que deixavam Portugal e vinham para uma “terra de
ninguém” era de extrema importância. Daí a proliferação dos meios de enobrecimento dentro da
sociedade colonial.
Embora não possamos dizer que os depoimentos presentes nas visitações sejam
portadores de uma consciência de diferença entre colonos e reinóis, o exame minucioso de tais
depoimentos flagra algumas das pré-condições para o surgimento de tal consciência. Como
dissemos na introdução a este trabalho, antes que exista a consciência, é preciso que apareça a
percepção. Desse ponto de vista, os depoimentos ao Tribunal do Santo Ofício na colônia se
configuram em fontes bastante ricas porque captam o nascimento do movimento de diferenciação
dentro do âmbito da religião. Enumeraremos abaixo, alguns dos pontos que anunciam essa
percepção que se encontram tanto na primeira Visitação, como na segunda.54
Todos esses pontos giram em torno do perfil mais popular que a religião cristã adquiriu na
colônia. Fernão Gomes, por exemplo, é acusado de dizer “coitada de nossa senhora”.55 O colono
absolutismo. E demonstram como a Inquisição passa de um órgão subordinado à Igreja para um órgão de Estado.
Houve quatro regimentos ao todo: um em 1552, feito por D. Henrique, cardeal inquisidor geral; o segundo foi feito
por Pedro de Castilho em 1613; o terceiro em 1640 por D. Francisco de Castro; e finalmente, o quarto foi feito em
1774, por ordens do Marquês de Pombal ao Cardeal João Cosme da Cunha.
52
“No começo do século XVIII a Inquisição lavrou sobre tudo nas terras fluminenses e suas vizinhas, já porque a
proximidade das minas de ouro para elas atraísse gentes das mais diversas procedências (...)”. (Idem, ibidem, p. IX)
53
A respeito dos privilégios de que gozava o familiar: “Basta citar a C. R. de D. Sebastião, datada de 14 de dezembro
de 1562. Por ela o familiar ficava isento de pagar fintas, talhas, etc., de ser constrangido a ir com presos e dinheiros,
de ser tutor ou curador, exceto si as tutorias fossem lidimas, de exercer contra a vontade ofícios de concelho, de lhe
serem tomadas para a aposentadoria a casa de morada, cavalariças, etc., de lhe tomarem pão, vinho, roupa, palha,
cevadas, lenhas, galinhas, ovos, bestas de selas ou albarda; podia trazer armas ofensivas; a mulher, o filho e a filha
do familiar, enquanto sob o pátrio poder, podiam usar seda em seus vestidos”. (Idem, ibidem, . IX).
54
Alertados para o fato de que os depoimentos misturam a visão daquele que depõe e daquele que notifica,
respectivamente, o colono e o notário do Santo Ofício, o que privilegiamos na documentação Inquisitorial foram os
pontos de percepção, a qual muitas vezes se limita a uma simples notificação de um fato do cotidiano colonial, sem
que o colono saiba que isso se constitui num ponto de diferenciação. Pelo fato de os depoimentos da segunda
visitação não acrescentarem nada de essencial à primeira visitação; não havendo nenhuma ruptura entre 1591, ano da
primeira visitação, e 1618 no que concerne ao tema da diferenciação, ano da segunda, privilegiamos uma distribuição
menos cronológica que temática desses pontos.
55
Primeira Visitação- Confissões da Bahia... p. 24.
37
tem uma tal intimidade com os santos que se permite xingá-los, chantageá-los e questionar a
eficácia de seus poderes. Dizia Gonçalo Rebelo “que não havia purgatório, mas que somente
quando as pessoas morriam dava Deus às almas as penas em uma parte ou na outra onde Deus
queria e que não havia purgatório nenhum”.56 Já Álvaro Sanches foi mais além: “(...) tomou um
Flox Sanctorum e com um alfinete picou uma figura que estava debuxada no dito Flox Sanctorum
de Nossa Senhora e (...) picava a dita imagem para tirar em debuxo e lhe ser molde para por ele
tirar outros debuxos semelhantes e isto fez com esta tenção boa, sem ter tenção nenhuma ruim
nem pensamento dela (...)”.57
Esse tipo de intimidade jamais passaria em branco pela Igreja católica recém reformada,
que mantém o rigor quanto aos mínimos detalhes dos ritos: “e assim lhes ensinava o dito frade
seu mestre que quando se benzessem haviam de nomear o filho a destra no ombro direito e não
abaixo do peito, como Gênesis Alfonso em um seu livro ensina (...) e que depois que ouviu esta
doutrina ele confessante sempre usou do dito modo de benzer nomeando o filho no ombro direito,
até haverá quatro ou cinco anos segundo sua lembrança que (...) um padre da companhia de Jesus
lhe ouviu dizer nela que Deus não tinha mão direita nem esquerda, e ouvindo ele isto foi ao
mosteiro falar com o dito pregador e outros padres e lhe declarou este escrúpulo e eles lhe
ensinaram que deixasse o dito modo de benzer e que se benzesse da maneira que os cristãos todos
se benzem nomeando o padre na testa e o filho no peito”.58
Fica claro que nestes casos, aquilo que os réus fazem não tem uma real intenção herética
ou apóstata. Fazem-no porque a popularidade da religião colonial dá azo a uma certa flexibilidade
tanto nos ritos como em outras relações com o sagrado. Tanto o diabo, quanto Deus estão
presentes no cotidiano e a relação que guardam tanto com um como com o outro é a mesma: “(...)
disse o dito Pero Fernandes que estava segundo lhe a ele parece perdendo para os circunstantes,
Deixe-me jogar, parece-lhe que disse pelo amor de Deus. E depois disto tendo já jogado três ou
quatro mãos disse o dito Pero Fernandes para os circunstantes, Deixe-me jogar por amor do
Diabo”.59 A relação que estabelecem com o sobrenatural é muitas vezes uma relação de troca. O
colono negocia com Deus e com o diabo para conseguir aquilo que quer: “(...) primeiro pegara
com Deus para isto, porém depois que viu que Deus não quisera melhorar-lhe seu marido pegou
56
Primeira Visitação- Denunciações da Bahia, p. 497.
Primeira Visitação- Confissões da Bahia..., p. 46.
58
Idem, pp. 30/31.
59
Idem, p. 509.
57
38
com os diabos”.60 A relação que se estabelece com o sagrado não é uma relação puramente
espiritual ou transcendental, mas também material: “disse o dito Álvaro Velho as palavras
seguintes, descreio de Deus e da Virgem Maria se vos não hei de fazer tal e tal, e me haveis de
pagar não me dando a obra feita pela manhã”.61 A mesma mentalidade mercantil que perpassa a
relação entre homens e os santos “contamina” ainda a própria hierarquia clerical: “e lendo-se
assim a dita bula ele confessante disse que aquelas bulas se passavam para ajuntar dinheiro e
fazer algumas esmolas e que para isto as passavam aos papas”.62
Muitos desses traços populares da religião colonial foram legados pelas tradições judaicas
ou mouriscas que agiam num sentido “deseuropeizante”.63 Por exemplo, a prática de deitar água
fora quando morre alguém em casa: “e estas cousas [não] saber que eram de judia porque lhas
ensinou uma sua comadre cristã velha, Inês Roiz (...) dizendo ser bom e por isso o fez e cuidando
ela se isto bom o ensinou também neste Brasil a suas filhas Lianor mulher de Henrique Monis e
Beatriz Antunes mulher de Bastião de Faria”. 64 No cotidiano colonial, a supertição, que havia
sido banida da religião cristã pela reforma ortodoxa, volta a se fundir com a fé. Tanto cristãos
novos como cristãos velhos são acusados de tais práticas: “e ela confessante entrou no dito tempo
na dita sinagoga uma vez somente em companhia de Catarina Afonso (...) e entrando na dita
sinagoga sem fazer mesura nem reverência disse estas palavras Deus nos salve lei bem escrita e
mal entendida parecendo-lhe que dizia uma boa oração por assim lhe ensinar que dissesse a dita
Catarina Afonso”.65
O colono ainda não vê qualquer problema em substituir um culto por outro. O que
realmente vale para ele é a intenção e não o ritual. Esse é o caso das seitas heréticas. Uma seita
herética que é específica da América Portuguesa é a seita da Santidade. Nesta seita, misturam-se
rituais católicos com rituais indígenas. Fernão Cabral de Tayde “(...) confessando disse que
haverá seis anos pouco mais ou menos que se levantou um gentio no sertão com uma nova seita
que chamavam Santidade havendo um que se chamava papa e uma gentia que se chamava mãe de
Deus e o sacristão, e tinham um ídolo a que chamavam Maria que era uma figura de pedra que
60
Confissão de Paula de Siqueira. Idem, p. 50.
Primeira Visitação, Denunciações da Bahia..., p. 83.
62
Primeira Visitação, Confissões de Pernambuco, p. 34.
63
“Tanto quanto o contato com os mouros, resultaram da convivência com os judeus traços inconfundíveis sobre os
portugueses colonizadores do Brasil. Sobre sua vida econômica, social e política. Sobre seu caráter. Influência que
agiu no mesmo sentido deseuropeizante que a moura”. (Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala : formação da
família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28a ed. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 226)
64
Primeira Visitação- Confissões da Bahia, p. 139.
61
39
nem demonstrava ser figura de homem nem de mulher nem de outro animal, ao qual ídolo
adoravam e rezavam certas cousas per contas e penduravam numa casa que chamavam igreja
umas tábuas com uns riscos que diziam que eram contas bentas e assim ao seu modo,
contrafaziam, o culto divino dos cristãos(...)”.66 Não se trata aqui de um culto indígena mascarado
sob a forma católica, como aconteceu muitas vezes na América espanhola, em que os nativos
continuavam a cultuar os mesmos deuses mascarados pelo cristianismo. Aqui, os indígenas
realmente aderem ao cristianismo, mas na forma que ele mais se adapta ao seu próprio cotidiano.
E não somente os índios aderem a esse ritual mais simplificado, como também os católicos. Diz
Capistrano: “Aos índios não repugnavam os assessórios cristãos acumulados sobre a solidez do
fundo nativo, como adiante se verá a mais de um passo. Estranho seria que os acessórios cristãos
obscurecessem e tornassem aceitável aos católicos o gentilismo do fundo. Pois deste sincretismo
apareceram casos...”. 67
Essa mesma despreocupação com o rigor da prática cristã é vista na prática da feitiçaria.
A magia está relacionada com a vida amorosa do colono, com as relações vicinais, com a colheita
da cana, enfim, com todas as esferas do privado e do cotidiano. Guiomar d’Oliveira confessou
que “outrossim lhe deu também a dita Antonia Fernandes outros pós não sabe de que e outros pós
de osso de finado os quais pós ela confessante deu a beber em vinho ao dito seu marido
Francisco Fernandes para ser seu amigo e serem bem casados e que todas estas coisas fez tendo
lhe dito a dita Antonia Fernandes ensinado e declarado que eram diabólicas e que os diabos lhas
ensinavam.”.68
Na seqüência, passamos à documentação oficial.
1.3.3 Documentação Oficial
A documentação oficial selecionada para o trabalho é composta por regimentos, forais,
traslados, provimentos, alvarás e cartas. São estas últimas que descrevem com maior riqueza de
detalhes elementos do cotidiano colonial, ocultos nas ordens dadas nos regimentos e nas
operações contábeis dos provimentos seculares e eclesiásticos. Nos regimentos, embora não haja
percepção de diferença porque são ordens da metrópole para a colônia, imposição tão somente de
65
Op. Cit., p. 56.
Idem, p. 28.
67
Capistrano de Abreu, op. Cit., p. XIX.
68
Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 60
66
40
um lado sobre o outro, aparecem alguns dos objetivos mais gerais da colonização: “(...) procurará
por todos os modos lícitos descobrir todas as minas, assim de ouro, como de prata ou de pedras,
e tudo me irá avisando (...) fará povoações e fortes nos lugares e portos que melhor parecerem,
procurando a amizade dos índios, oferecendo-lhes a paz e a lei evangélica, sem os induzir nem
lhes prometer cousa que se não lhe cumpra (...) achando alguns índios que tenham cativos
contrários a uns que costumam matar em terreiro e comer, pelas guerras que com outros
incitem, os poderá mandar resgatar e assim poderá fazer nas mais ocasiões, não oferecendo
força nem violência (...) procurará em cada aldeia que receber a paz, se levante uma cruz com
muito acatamento e veneração, declarando-se o mistério dela”.69 A figura do Estado controla todo
e qualquer movimento dentro do projeto colonizador.
Começaremos pela carta de Caminha, que, cronologicamente corresponde ao primeiro
documento oficial sobre a terra. 70 Como acontece com os Tratados que a seguem, a carta de Pero
Vaz de Caminha mais escreve o que quer ver e ouvir do que realmente aquilo que vê e ouve. O
relato é mais feito para entreter do que para informar. Assemelha-se em muito às narrativas
maravilhosas do período.
Sendo a carta de Caminha o ponto de partida, qual seria o passo lógico para que ocorresse
uma primeira percepção de diferença? Como dissemos, a percepção da diferença surge
primeiramente na constatação de que as naturezas são diferentes. Primeiramente diversas, depois
diferentes. Isso vai no movimento contrário ao da Carta de Caminha que descreve um mundo
idêntico ao europeu, e não um outro mundo. Na carta de Caminha, e mesmo nos primeiros
tratados, apesar da natureza ser paradisíaca, em tudo lembra a Europa. Na verdade, é como a
Europa seria na idealidade. O clima, os troncos, as folhas, as cores, a umidade somente se
diferenciam pelo tamanho, espessura, forma e intensidade em relação à Europa. A diferença é
puramente quantitativa. O fato de a carta ter sido escolhida para definir o marco inicial do recorte
não segue um motivo estritamente cronológico, o primeiro documento informativo sobre o Brasil,
69
“Regimento que há de seguir o capitão-mór Pero Coelho de Souza nesta jornada”. In RIHGB, 1910, t. 73, pt. 1, p.
45. Pero Coelho de Souza foi capitão-mór da expedição enviada ao Ceará em 1603 durante governo de Diogo
Botelho (1602-1608). A bandeira de Pero Coelho de Souza fundou o Forte de São Tiago na Barra do Ceará, sede das
atividades de exploração das terras conquistadas. A posse oficial do Ceará deu-se com Martins Soares Moreno,
imortalizado por José de Alencar, como o Guerreiro Branco, em seu romance Iracema; que aqui chegou, em 20 de
janeiro de 1612, levantou o fortim de São Sebastião, no antigo local onde fora erguido o Forte de São Tiago,
introduzindo grandes melhorias na nova concessão.
70
Pero Vaz de Caminha. Carta de Pero Vaz de Caminha. In Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil:
Carta de Pero Vaz de Caminha, Carta de Mestre João Faras, Relação do Piloto Anônimo. Organização, introdução,
comentários, notas e bibliografia de Paulo Roberto Pereira. Rio de Janeiro, Ed. Lacerda, 1999.
41
mas também lógico: é nesse documento que a projeção da Europa sobre a terra descoberta é
máxima.71
O primeiro passo para a percepção da diferença depende, portanto, que os portugueses
percebam este mundo como diferente e não somente uma variação em grau da Europa. A
humanidade, seja ela demoníaca ou gentílica, também é uma outra humanidade. A percepção de
que o português que mora na terra é diferente do português que mora no Reino depende dessas
percepções de diferença: a que existe em relação à terra e a que existe em relação ao índio. É a
partir dessas percepções primeiras que se rompe com as antigas concepções sobre o mundo e os
homens. Brandônio se diferencia de Alviano por ter esse horizonte de conhecimento muito mais
largo que o do seu interlocutor. O índio, apesar de muitas vezes ser visto como uma continuidade
da natureza, é humano, vive em sociedade e também é um parâmetro para entender o colono. Este
afirma a diferença em relação àquele porque não quer se sentir índio, como também não quer se
sentir escravo. Muitas vezes, a reafirmação de alguns valores portugueses é fruto da tentativa dos
colonos de negar a todo custo que pertençam a alguma condição mais baixa. Mas, a despeito de
todo esforço em conservar ou adquirir costumes tradicionais, aqueles que residem na terra há um
certo tempo já vão se percebendo diferentes daqueles que acabam de chegar.
Na medida em que se começa a conhecer melhor o que antes era desconhecido, é
inevitável que com esse conhecimento venha o medo e com o medo novas imagens do índio:
índio demônio, índio animal, índio irracional. O contato já não é mais tão tranqüilo e as situações
começam a se inverter: “Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós entre eles”.72
Isso já indica uma percepção mais real do outro. Na verdade, a percepção da diferença envolve
perceber o outro como ele é.73 Isso também já fica indicado na percepção de que a nudez do
indígena não se deve à sua imoralidade, mas à sua inocência: “(...) e suas vergonhas tão nuas e
com tanta inocência descobertas que nisso não havia nenhuma vergonha”.74
A imagem daquele que chega na carta de Caminha não é ainda a do colonizador, mas a do
conquistador. É somente a partir de 1530, ano da primeira expedição colonizadora de Mem de Sá,
que a imagem do povoador começa a substituir a do colonizador nas narrativas. Da aventura da
71
Tanto a negação do desconhecido em primeira instância, enquadrando-o dentro do já conhecido, como sua gradual
descoberta, aparecem de forma mais sutil, quase que num tom de conformidade, na Relação do piloto anônimo, um
documento muito semelhante ao de Caminha, escrito em 1520. (Relação do Piloto Anônimo. In Os três únicos
testemunhos do descobrimento do Brasil. Org, de Paulo Roberto Pereira. Rio de janeiro, Lacerda Ed., 1999).
72
“Carta de Pero Vaz de Caminha”, op. Cit., p. 7.
73
A respeito do fato de que a descoberta do mundo é a descoberta do outro, vide Todorov, op. Cit., p. 6.
42
colonização, que passa a sobrepujar a aventura da conquista,75 surge uma sociedade ainda móvel,
instável, transitória e um tipo humano que tanto possui traços dessa sociedade, como da natureza
que o cerca. Aqui, começam a aparecer algumas diferenças em relação ao reinol, em decorrência
do tipo de vida empreendido para a fixação na terra. Um dos aspectos principais é a função que a
guerra contra o gentio passa a ter para o modo de vida do colonizador: “(...) e para fazer estes
assaltos me despia nu e me rapava a barba fingindo de negro com um arco e flechas e ajudandome dos índios falando-lhes e contínuo a língua e perguntando-lhe o que já sabia bem fazer”.76 As
experiências que aqui se têm com o gentio são um elemento de diferenciação: “Porque convém
que o governador que ali há de haver seja pessoa que tenha experiência com o gentio”.77 Novos
alimentos, novas técnicas de navegação, novas técnicas militares. O cultivo da cana abre espaço
para que rotina e aventura convivam lado a lado. A partir daqui o colonizador se desdobra em
duas figuras: o colono, associado ao povoamento e o colonizador, associado à exploração.
Essa divisão já se encontra bastante clara nas cartas de Duarte Coelho a el-rei D. Manuel.
E isso não é à toa porque afinal, Duarte Coelho é donatário da capitania que mais prosperou. As
cartas que escreve, de 1542 a 1549, mostram uma sociedade que se tenta implantar. Duarte
Coelho divide os portugueses entre moradores/povoadores e saqueadores, entre aqueles que
estabelecem agricultura, morada e família na terra e aqueles que somente vêm para explorar o
pau-brasil e destruir o que foi construído: “(...) algumas outras desordens de que aqui usam e
praticam por estas outras terras e capitanias de mim para baixo, para o sul, e não sei se lhes
chame povoadores ou se lhes diga e chame salteadores (...)”. 78 Duarte Coelho encarna os valores
de uma sociedade que deixa de dar ênfase somente à riqueza mercantil, para valorizar também a
terra que a produz: “(...) e embora me saia mais custoso, é necessário, Senhor, sofrê-lo pelo que
74
“Carta de Pero Vaz de Caminha”, op. Cit., p. 5.
Apesar da colonização sobrepujar a conquista, ambas são aventuras porque mesmo a empresa da colonização
envolve um risco, embora seja um risco planejado. (Fernando Novais. “O Brasil de Hans Staden”. Capítulo de Hans
Staden: primeiros registros e escritos ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes (1587). Trad. De Angel Bojadsen.
São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 1999.
76
“Relação do Ceará de Martim Soares Moreno” (1612). In Documentos para a História do Brasil e especialmente a
do Ceará. (1608-1625). Fortaleza, tipografia Studart, 1904, vol. 1, p. 135. No mesmo ano também se faz a conquista
do Maranhão e a narrativa da viagem se encontra no Livro que dá Razão ao Estado do Brasil de Diogo de Campos
Moreno. (Diogo de Campos Moreno. Livro que da razão do estado do Brasil (1612). Edição crítica, com introdução e
notas de Helio Vianna. Recife, Arquivo Público Estadual, 1955).
77
“Relação do Ceará ...”, p. 141.
78
Cartas de Duarte Coelho a el-rei D. Manuel . Ed. José Antônio Gonsalves de Melo e Cleonir Xavier de
Albuquerque. Recife, Imprensa Universitária, 1967, p. 91. Outro trecho significativo a respeito da diferença de
interesses entre puramente exploradores e aqueles que ele chama de povoadores: “que proveja e mande a todas as
75
43
importa ao bem da terra. Mas a esses a quem Vossa Alteza aí faz mercê de brasil, como lhes custa
pouco, nem estão com os trabalhos e nos perigos e derramamentos de sangue em que eu, Senhor,
estou e ando, não lhes dá nada, Senhor, de cousa alguma do que a mim dá, e o que eu sinto não o
sentem eles, nem a perda que Vossa Alteza terá”.79 O trabalho, juntamente com a terra que este
lavra, é ressaltado como um dos valores dessa estirpe de povoadores, uma outra ruptura, agora no
plano moral, entre colonos e reinóis. Há aqueles que continuam a cultivar os valores
metropolitanos, em especial os da nobreza, e há aqueles que rompem com eles. O abandono do
ócio como um valor em absoluto, fica explicado pelo próprio desejo de continuidade em relação a
Portugal no plano material: se essa colônia deseja ser uma continuidade perfeita em relação a
Portugal, como isso pode surgir sem o trabalho? Todos que assim se sentem, jamais deixaram de
se sentir portugueses. A diferença reside nos interesses e atitudes com relação à terra: “Convém
muito a seu serviço e ao bem e salvação das cousas daqui, mandar que, pois todos somos
portugueses e seus vassalos e súditos, não procedam uns como se fossem portugueses e outros
como franceses e outros como se fossem castelhanos”.80
Devemos ressaltar que estas percepções vêm do donatário da capitania que mais
prosperou, Pernambuco, doada a Duarte Coelho em 1534. Aliás, além desta capitania, somente a
de São Vicente, doada a Martim Afonso de Sousa em 1532, também tinha prosperado até o início
do século XVII. Mesmo assim, o segundo núcleo é radicalmente diferente do primeiro quanto a
valores que surgem, formas de organização da sociedade e da base material. O que buscamos não
são as diferenças regionais entre si ou uma base comum a todas as regiões - mesmo porque nem
com a instituição do governo geral em 1549 isso foi possível. As peculiaridades das regiões
foram mantidas em razão da manutenção da força política local, o que era de se esperar em terras
tão vastas. O que buscamos são alguns dos indícios da diferenciação entre colono e reinol,
pessoas a quem deu terras no brasil, que venham povoar e residir nelas (...) porque estes não fazem , mas desfazem
no bem que se deve fazer, porque mercenarius mercenarius sum”.(op. Cit., p. 89)
79
Idem, pp. 87/88. Nas palavras de Evaldo Cabral de Melo, essa mesma idéia da mudança de direção do projeto de
ocupação da terra: “Nas entrelinhas das suas cartas dá para perceber que sua resistência às pressões da Coroa visando
à busca de metais preciosos e sua oposição ao corte de pau-brasil, atividades eminentemente dispersivas do esforço
colonizador, por conseguinte, comprometedoras da estabilidade da capitania, resultavam do seu projeto de criação
de uma colônia baseada na produção de açúcar por número reduzido de engenhos, que concentrariam a etapa fabril e
que moeriam a cana de uma classe média de agricultores, encarregados do cultivo da cana”. (Evaldo Cabral de
Mello, “Uma Nova Lusitânia”. Capítulo terceiro de Carlos Guilherme Mota (org.). A viagem incompleta : a
experiência brasileira (1500-2000). Vol. I. Formação: Histórias. São Paulo, ed. Senac São Paulo, 2000, 2vols, p. 75).
80
Cartas de Duarte Coelho..., p.88.
44
presentes nestes valores gerados a partir de certo rompimento com o projeto de colonização nos
moldes impostos pela metrópole.
Passemos agora a algumas considerações sobre a documentação jesuítica.
1.3.4 Documentação Jesuítica
Nas cartas jesuíticas a percepção da diferença tem um movimento inverso ao que aparece
nos outros tipos de documentação. Se nos tratados, o foco da tomada de consciência se transfere
da natureza para os homens, na documentação jesuítica, esta passagem é um pouco confusa, em
razão dos interesses religiosos que moldam a figura do índio e do colono a seu bel prazer.81 Não
estamos dizendo que nas cartas jesuíticas não existe percepção de diferença, mas esta percepção
se concentra no sentido de diferenciar o colono do reinol a partir da deturpação da figura do
primeiro. Na prática, parte do trabalho do jesuíta é canalizado para uma “des”-diferenciação, ou
seja, o retorno ao estado moral dos primeiros portugueses que pisaram na terra82. As visões
jesuíticas do índio, tal como o “papel em branco para neles escrever à vontade”83, a cera macia
para se imprimir o que quiser, não somente servem para levar a cabo o projeto catequizador, mas
também o evangelizador, que representa a salvação da sociedade colonial dessa decadência
moral. O projeto catequizador é um projeto utópico em todos os sentidos, inclusive o literal: fora
do lugar. Mas ao pretender uma sociedade nova, isolada da anterior, o jesuíta se vê obrigado a
construir uma imagem do colono que possa dar suporte a essa utopia da catequização. Daí a
degradação moral à que submetem o colono.
Analisaremos a documentação jesuítica à luz de três significados que o termo conversão
adquire aqui na América. Conversão significa mudar, significa inverter e significa ainda, pela
81
“O grande estrago que o demônio nestas almas fazia - porque quase todos os moradores destas 3 vilas estavam em
grandíssimos pecados ofuscados, assim casados como solteiros e muitos mais os sacerdotes (...) estava alguma gente
cristã derramada e passava-se o ano sem ouvirem missa e sem se confessarem e andavam em uma vida de
selvagens”. “Extrato de uma carta do Padre Leonardo Nunes do Porto de São Vicente no ano de 1550”. In Cartas
Avulsas: 1550-1568- Azpilcueta Navarro e outros. Cartas Jesuíticas, vol. 2. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo,
Edusp, 1998.
82
“Os escravos dos cristãos e os mesmos cristãos muito se tem emendado e certo que nas capitanias, que temos
visitado, têm tanta diferença do que dantes estavam, assim no conhecimento de Deus, como em obrar virtude, que
parece uma religião”. (“Carta do Padre Manoel da Nóbrega, mandada da mesma capitania de Pernambuco, o ano de
1551”. In RIHGB, 1865, t 4, 2a ed., p. 13). A ruptura na visão do jesuíta é de tal forma forte que a capitania não vivia
em religião. Graças a eles, ela voltou a caminhar nos bons caminhos da fé.
83
“Carta do Padre Manoel da Nóbrega”. In RIHGB, 1865, p.287.
45
física nuclear, quebrar.84 No que se refere aos colonos, o trabalho do jesuíta é fazer com que
tornem à moral cristã. É preciso convertê-los, no sentido de inverter, porque afinal, nunca
deixaram de ser cristãos, mas nesta terra, os bons costumes desapareceram: “O jurar por Deus e
por seus santos, que nesta terra era moeda corrente e a menos jura que juravam era pela
Trindade, nem lhe ficando tripas, nem bofes de Deus por que não jurassem (...) e era isto tão
comum que meninos, que quase não sabiam falar, juravam pela hóstia consagrada, aprendendoo a seus pais”.85
No caso dos índios, os missionários nutrem uma esperança de constituição de uma
sociedade em que se anule o pecado originário. Uma sociedade sem mácula. Aqui, é o significado
de quebra que predomina. Em primeira instância há uma quebra com a realidade, exatamente por
ser um projeto utópico. Quando colocado em prática, outras quebras vão se fazendo e a partir
delas, os próprios jesuítas vão se diferenciando dos reinóis porque são obrigados a romper com
certos preceitos da religiosidade ocidental para que possam se fazer entender dentro de uma
cultura diferente. Essa quebra é feita tanto do ponto de vista das práticas religiosas, como dos
rituais (azeite de copaíba no lugar de azeite de oliveira durante a unção), como ainda nos
instrumentos de conversão, que é a mudança mais radical: os jesuítas têm de se adaptar à língua
indígena86 e aos seus deuses para se fazer entender: “Essa gentilidade nenhuma cousa adora, nem
conhecem a Deus; somente aos trovões chamam tupane, que é como quem diz cousa divina. E
assim nós não temos outro vocábulo mais convincente para os trazer ao conhecimento de Deus
que chamar-lhe pai Tupane”.87
Se por um lado, a diferenciação entre os jesuítas que trabalham na colônia e àqueles que
permaneceram na metrópole é desfavorável aos primeiros, por outro, muitas vezes o árduo
trabalho que empreendem lhes conferem status de santos. Nas palavras do padre Antônio
Quadros: “Disse-nos [Thomé de Sousa] e penso que dissera a el-rei, que o Brasil não era senão
nossos padres: que se lá estivessem seria a melhor cousa que el-rei teria, e se não, que nada
84
Contribuição da colega Fátima Maria de Melo Toledo.
“Carta de Porto Seguro (1566), Antônio Gonçalves”. In Cartas Avulsas..., p. 500.
86
O não entendimento da língua indígena acaba virando um óbice à própria catequização: “(...) e não saber declarar o
que queremos, por falta de intérpretes que o saibam explicar e dizer como desejamos”. (“Carta que o padre Antônio
Pires escreveu do Brasil da Capitania de Pernambuco aos irmãos da Cia., de 2/08/1551”, Op. Cit., p. 102).
87
Manoel da Nóbrega, “Informação das Terras do Brasil”. RIHGB, t. VI, 1865, 2a ed., p. 92.
“Te mandei um passarinho
Patitá mirim pupé,
Pintadinho de amarelo
Iporanga né iané”. (“Cantos do Padre José de Anchieta”. In RIHGB, 1918, t.84, p. 574).
85
46
teria no Brasil. Claramente nos disse que nós aqui, em comparação com os irmãos do Brasil,
éramos ruins e homens, a respeito a eles que eram anjos”.88
É o objetivo da conversão, nas três dimensões propostas acima, que faz com que a
consciência da diferença tome um rumo inverso ao visto nos Tratados. A imagem do colono
enquanto um demônio justifica a distância que estes devem manter do gentio, o caminho pelo
qual se pode construir uma sociedade ideal.
A visão que os jesuítas têm da natureza, assim como a que têm do índio, também é uma
visão contrária àquela que se encontra nos Tratados. Aqui, a terra pode produzir tudo e quanto se
queira. Basta que existam pessoas dispostas a povoá-la. Já na documentação jesuítica,
freqüentemente associam-se descrições da terra a imagens do inferno. Já reclamava o padre
Torres pela falta de comodidade da terra: “(...) por também não virem aqui navios do Reino, por
não haver aqui engenhos de açúcar deixam os padres muitas vezes de dizer missa por falta de
vinho e padecem outras necessidades que seria largo contá-las”. 89
A despeito de visões diferentes da natureza, o movimento de transferência das qualidades
da natureza para os homens é o mesmo. Se nos Tratados, a natureza é vista como produtora de
uma raça robusta e saudável, na documentação jesuítica, os colonos são contaminados pelas
qualidades mais torpes da terra.90 A degradação moral na colônia ora é decorrente da pobreza da
terra, ora de sua abundância, que faz o homem se deleitar em prazeres da carne e ceder ao pecado
da preguiça, ora está justificada no próprio tipo que povoa a terra: o degredado.91
Existe ainda uma visão intermediária a respeito da terra: a colônia como purgatório.
Purgatório moral, material e político. Correção de todos os desvios da metrópole: do pecado, da
pobreza e do crime. Aqui vemos com clareza o primeiro sentido da conversão atuando: o sentido
de mudança.92 A mudança espacial como sinônimo de correção moral: “(...) porque a terra é
88
Cartas Avulsas..., p. 45.
“Cópia de uma carta do Brasil do Espírito Santo para o Padre Dr. Torres por comissão do Padre Brás Lourenço de
10 de junho de 1562. Registrada a 20 de setembro do mesmo ano”. RIHGB, 1840, t. 2, 3a ed., Rio de Janeiro,
Imprensa nacional, 1916, p.432.
90
“(...) o demônio, inimigo da salvação dos homens, não podendo sofrer fazer-se tão grande desonra em terra onde
ele é tão honrado”. (Cartas Avulsas..., p. 217).
91
“mal empregada esta terra em degredados”. (Nóbrega Cartas do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte, Itatiaia; São
Paulo, Edusp, 1988, p.64)
92
“Parece-me coisa mui conveniente mandar Sua Alteza algumas mulheres que lá têm pouco remédio de casamento
a estas partes, ainda que fossem erradas porque casarão todas mui bem, com tanto que sejam tais que não tenham
perdido vergonha a Deus e ao mundo”. (Nóbrega, op. Cit., p. 80).
89
47
muito grossa e larga (...) de maneira que logo as mulheres teriam remédio de vida e estes homens
remediariam suas almas, e facilmente se povoaria a terra”.93
Um outro meio de correção moral apontado como solução não mais do Reino, mas da
colônia, é o casamento. Daí o fato de as órfãs da metrópole e mesmo as mulheres de moral
duvidosa serem tão requisitadas para a colônia. Da mesma forma como Brandônio acredita que a
negligência dos homens possa ser corrigida pelo seu trabalho, ampliando as oportunidades
econômicas na terra, diversificando as atividades, acentuando a divisão do trabalho, os jesuítas
acreditam que os desvios possam ser corrigidos pelo casamento oficializado pela Igreja. As
diferentes visões que têm do colono e da terra criam diferentes propostas para corrigí-los. O
casamento não somente é importante dentro do projeto de conversão, como dentro também da
colonização, como uma forma de estabilização na terra. A constituição de família significa uma
forma de enraizamento.
Na medida em que o projeto utópico vai por água abaixo e acaba se restringindo
unicamente às missões, colonização e catequização acabam se cruzando. Na idealidade, o projeto
catequizador pretendia-se separado do colonizador. Quando perceberam que não poderiam
prescindir deste desde logo pela força militar que com ele traz, o projeto catequizador se frustra e
então ocorre a quebra com a utopia de que havíamos falado94: “O maior trabalho que agora temos
é que haverá em esta povoação algumas 50 negras, ou mais (...) Não sabemos dar a isso talho,
porque se lh’as tirarmos, hão-se de tornar às aldeias e assim faz-se injúria ao sacramento do
Batismo; e se não lh’as tirarmos estarão uns e outros em pecado mortal”.95 Tanto a colonização
precisa da catequização, pela tranqüilidade que os jesuítas conseguem impor à terra, como a
catequização precisa da colonização, principalmente por causa da força militar, um dos métodos
da Companhia de Jesus para efetuar a conversão.96 A partir do momento em que a sociedade
93
“Carta que o padre Manoel da Nóbrega... Escreveu ao Pe. Simão... 1549”. RIHGB, 1886, p. 464. A preguiça é um
dos vícios largamente apontado na documentação jesuítica: “Os cristãos tão pouco tinham, senão alguns poucos,
porque os desta terra mais se dão a folgar e jogar e passear, fizeram nesta terra antes de tempo de côrte de príncipes,
havendo nela agora mister quem habite e trabalhe com foices e enxadas”. (Cartas Avulsas...,, p. 214)
94
“In social or religious terms Brazil was created to reproduce Portugal, not to transform or transcend it (...) Instead,
traditional forms of governance and settlement, modified to the new reality, were implanted in the colony.
Catholicism and Portuguese law provided uniformities in each of the settlements and the donatarial captaincies and
land grants (sesmarias) provided the means by which a reproduction of Portuguese seigneurialism could be created”.
(Stuart Schwartz. “The formation of a Colonial Identity in Brazil”. Ed. by Nychols Canny & Anthony Pagden.
Colonial identity in the Atlantic world : 1500-1800. Princeton; N.J., Princeton University Press, 1989, p. 19).
95
Nóbrega, Cartas do Brasil..., p. 109.
96
A Companhia de Jesus realmente tinha uma mentalidade militar misturada à religiosa. Tanto que se auto-intitulam
“soldados de Cristo”. (Idem, ibidem, p. 137)
48
colonial vai adquirindo contornos próprios, a catequização e os valores que tenta impor começa a
obstar os valores mercantis que vão se instalando. Conflitos entre jesuítas e colonos, em especial
pela mão-de-obra indígena são um exemplo disso e indicam a sobreposição dos valores mercantis
sobre os cristãos: “a contradição de todos os cristãos d’esta terra que era quererem que os índios
se comessem porque nisso punham a segurança da terra e quererem que os índios se furtassem
uns aos outros para eles terem escravos”. Não diria Nóbrega estupefato “são criaturas humanas
estas peças?”.97
1.3.5 Documentação “Estrangeira” 98
O primeiro documento que trataremos como “estrangeiro” é a obra de Hans Staden,
publicada em português com o título de Duas Viagens à terra do Brasil. O primeiro relato que
compõe a obra foi escrito em 1549, por ocasião da primeira viagem de Hans Staden ao Brasil.
Essa primeira expedição dura de 1548 a 1549, quando o navio aporta em Pernambuco, capitania
de Duarte Coelho. A segunda expedição, que compreende o período em que Hans é feito
prisioneiro dos tupinambás, dura de 1550 a 1555, acabando em São Vicente. Ainda em 1555,
Hans Staden chega a Honfleur e publica sua História Verídica em 1557 em Marburgo.
A visão que Hans tem do índio não é diferente da visão que o português, enquanto
colonizador, tem.99 Em todos os relatos feitos por “estrangeiros” a respeito do Brasil colônia, não
há um sequer que use algum termo equivalente a colono ou a reinol. Falam tão somente de
“portugueses”. A diferença constatada pelo “estrangeiro” é a dos portugueses em relação aos
índios. No limite, a diferenciação entre os portugueses daqui e os do reino se dá porque os daqui
se aproximam mais dos índios, inclusive em termos biológicos, já que muitos dos colonos são
mestiços. Mas a diferença, dificilmente ultrapassa esses limites biológicos. Para Knivet, trata-se
97
Nóbrega, Cartas do Brasil, p. 34.
A análise da documentação estrangeira é importante para perceber porque reinol e colono somente fazem sentido
dentro da identidade portuguesa. Isso pode parecer banal, mas não é. As diferenças que advêm do convívio na terra
não são enxergadas pelo estrangeiro. Isso acontece porque a percepção da diferença é uma sensação: somente podem
ser sentidas por aqueles que sofreram ou estão sofrendo as mudanças; somente quem é português pode perceber que
sem deixar de ser português, já não é mais como aquele que vive no reino. É por isso, e também porque é saído do
mesmo mundo do português, o mundo da cristandade ocidental e do renascimento, que o estrangeiro dá tanta ênfase
ao índio.
99
“Também, não podíamos confiar neles plenamente”. (Hans Staden. In Hans Staden: primeiros registros e escritos
ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes.(1587) Trad. De Angel Bojadsen. São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 1999, p.
48).
98
49
de uma visão racial: indeciso entre português e índio.100 Para Hans Staden, a visão do mestiço é
uma visão religiosa: “descendentes de selvagens e cristãos”.101
Quando a percepção da diferença ultrapassa os limites biológicos, ela fica detida no plano
da religião. Léry, em seu Viagem á Terra do Brasil,102 livro dedicado aos amantes de livros de
aventura,103considera os portugueses tão imorais quanto os índios, com a diferença de que têm
consciência do pecado que cometem, ao passo que os índios, não. Tanto é assim, que teme que
estes mesmos vícios, que já foram transmitidos aos portugueses, passem aos franceses também
durante o projeto de construção da França Antártica, cujo malogro conta neste livro: “(...) não
tinha eu outra solução, pois temia que os artesãos que eu contratara e para cá trouxera se
deixassem contaminar pelos vícios do gentio, ou que, em não encontrando oportunidade de
praticar a religião caíssem em apostasia, e esse temor findou com a chegada dos irmãos”.104
Portanto, a forma como se enxerga o português que aqui vive depende muito da religião
daquele que escreve. No caso de Staden, a visão do português é positiva, uma vez que também é
cristão, ao passo que a visão do índio é negativa. No caso de Léry e Knivet, a visão do português
é que se deturpa, em especial em Knivet, que teve certos problemas com o capitão Martim de Sá
o que de certa forma o fez montar uma imagem gloriosa do índio. Léry oscila entre uma visão
negativa, uma visão satírica e uma visão ideal do índio.
Percepções de diferenças mais concretas entre colono e reinol só serão feitas mais para
frente, por exemplo, com os frades capuchinhos Claude de Abbeville e Yves de Evreux, que por
sinal, possuem uma visão muito próxima à de Frei Vicente do Salvador a respeito da terra:
“Encantadores, os dois capuchinhos franceses na simplicidade de sua linguagem, dos seus
100
“Estava eu às ordens do sujeito que, na noite em que me aprisionaram, salvou-me a vida. Era esse sujeito um
mestiço, o que quer dizer meio português, meio índio”. (Anthony Knivet. Narração da Viagem que nos anos de 1591
e seguintes fez Antônio Knivet da Inglaterra ao mar do Sul em companhia de Thomaz Cavendish. In RIHGB, 1865,
p. 108). Knivet precisa explicar para os seus interlocutores o que vem a ser um mestiço. Provavelmente entendessem
o que é um “mestiço”, mas não significava a mesma coisa aqui e na Europa, uma vez que esse mestiço tinha o
sangue índio correndo dentro de si.
101
Staden, op. Cit., p. 48.
102
O tempo todo, Léry dialoga com André Thevet (André Thevet. Singularidades da França Antártica a que os outros
chamam de América. (1558). Prefácio, tradução e notas de Estevão Pinto. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1944),
chegando aos extremos de chamá-lo de “refinado mentiroso e um imponente caluniador”. (Jean de Léry. Viagem à
Terra do Brasil (1563). Trad. E notas de Sérgio Milliet. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1933, p. 15). Aliás, tanto a
este como ao próprio Villegaignon, a quem acusa de falso calvinismo.
103
Segundo o introdutor à obra, Sérgio Milliet: “Para os homens do século XVI, tais relatos de viagem tinham um
sabor inédito capitoso. Satisfaziam um dos quatro desejos fundamentais a que alude W. E. Thomas: o desejo da
novidade, talvez o mais irresistível de todos, aquele que drena para si todas as forças ativas do indivíduo”. (Sérgio
Milliet, Introdução à Jean de Léry, op. Cit., p. XVI)
104
Léry, Op. Cit., p. 8.
50
dizeres. Ora é um que nos aponta ‘os claros sinais do reino do diabo no Maranhão’ e outro que
nos fala dos ‘animais imperfeitos ali existentes’”.105 Quanto à descrição do modo de vida na
América, com Pyrard de Laval, em 1610, aparecem algumas descrições do cotidiano na América
Portuguesa: “Fala-nos dos engenhos de açúcar da Bahia, da pesca da baleia, das moléstias da
terra, dos bichos de pé, mil e um assuntos em poucas páginas”,106 percepções estas ainda
impossíveis de serem notadas na precoce colônia de Hans Staden. A respeito da vida material,
algo de muito próximo ao que se vê nos primeiros tratados é dito em 1567 por Jean de Léry: “(...)
advertiu Du Pont que, em chegando a essa terra da América, seria necessário contentarem-se com
certa farinha feita de raízes em lugar de pão; que não teria vinho, nem notícias dele pois não
havia aí parcerias e finalmente, que no Novo Mundo (conforme informava Villegaignon) far-se-ia
mister levar uma vida em tudo e por tudo diferente da nossa Europa”.107 O modo de vida difícil
na América, livre das comodidades do Velho Mundo, atinge dimensões utópicas também no
calvinismo porque era um mundo que se oferecia para ser transformado pelo trabalho.
Curiosa é a observação de Taunay a respeito de Franz Post. Sua arte, que abrange o
período das invasões holandesas a partir de 1624, também é significativa do ponto de vista da
captação das diferenças entre o mundo europeu e o mundo americano. Cores desconhecidas pelo
europeu são por Post criadas para se pintar um engenho, a natureza americana, o trabalho do
negro. Até então se desconheciam certas cores, formas e técnicas, que foram criadas em razão de
sua visita à América. “Assim, portanto, as Vistas da América, do ilustre pintor de Harlem,
ninguém lhes compreendeu o colorido: uns tons rubros incandescentes, os verdes e azuis
ofuscantes, os amarelos ferozes tão distantes das escalas cromáticas e finas dos mestres
neerlandeses.”108 O sentimento de incompreensão do europeu ante o quadro torna evidente sua
diferença em relação àquele que um dia já passou pela América.
105
Afonso de E’ Taunay. “Viagens e Viajantes do Brasil Colonial”. In RIHGB, 1922, v. 146, t. 92, p. 328. Ainda a
respeito dos relatos dos viajantes sobre os animais da terra recém-descoberta, Taunay compôs uma rica iconografia
dos viajantes dos séculos XVI e XVII, que mostram a influência fantástica do bestiário da Idade Média e da
Antigüidade sobre esses primeiros viajantes, e a projeção desse imaginário sobre a fauna local. Vide Afonso de E’
Taunay. Zoologia Fantástica Brasileira. São Paulo, Edusp, 2002.
106
Taunay, “Viagens...”, p. 327.
107
Léry, op. Cit., p. 24.
108
Taunay, op. Cit., p. 329. Nota-se ainda a diferença na dificuldade em se captar este mundo em sua peculiaridade:
“Quantas dificuldades aliás a vencer na reprodução da paisagem brasileira e de suas energias, o sol vivíssimo, as
sombras carregadíssimas, com todo o seu cortejo de extraordinárias pompas em que há muita riqueza, mas ao mesmo
tempo muita calma e serenidade”. (Idem, ibidem, p. 328).
51
No próximo capítulo tentaremos fazer algumas relações entre a documentação aqui
estudada e a consciência da diferença entre colonos e reinóis presente nos Diálogos. A esse
respeito, o trecho mais significativo é o que diz Alviano: “O ser ainda reinol e vindo de pouco a
esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos antigos nela são patentes (...)”.109 Percebe
Alviano não somente que desconhece a terra, como utiliza o termo reinol para expressar tal
desconhecimento, com isso dando uma razão para tal diferença. Não há em toda a obra qualquer
termo de oposição ao termo reinol, mas o que importa é o distanciamento que Alviano cria entre
si e Brandônio ao se intitular “reinol”.
Nos Diálogos, a percepção, embora enfoque a natureza e as características que esta
transfere ao homem, também abrange a diferença que o colono começa a adquirir a partir da
vivência com outros homens: tanto com o índio, ao qual se contrapõe pela religião e pelos
costumes, mas principalmente com aqueles que têm a mesma experiência que a sua: o viver na
colônia.
109
Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956,
p.56.
52
Capítulo 2: 1615-1627: dos Diálogos à História de Frei Vicente
“O ser novo ainda neste Estado me faz ignorar dessas grandezas, que me afirmais poder
nele haver, e para que fique melhor inteirado delas a me poder retratar da minha opinião,
vos peço que me digais como ou de que maneira
pode haver todas essas coisas que tendes dito ser o Brasil capaz de produzir?”
(Diálogos das Grandezas do Brasil)
“Era Thomé de Sousa homem muito avisado e prudente e muito experimentado, nas guerras
da África e da Índia, onde estivera, tinha mostrado valoroso cavaleiro; mas estava isto cá tão
em agro e enfadava-se de labutar com degradados, vendo que não eram como o pêssego, ‘o
pomo que da pátria persa veio, melhor tornado no terreno alheio’, que pediu com muita
instancia por muitas vezes a el-rei que lhe desse licença pêra se tornar ao reino. Contudo é
muito para notar um dito (que entre outros que tinha mui galantes) disse quando lhe veio a
licença: ‘Vedes isso meirinho? Verdade é que eu o desejava muito, e me crescia a água na
boca quando cuidava em ir para Portugal; mas não sei o que é que agora se me seca a boca
de tal modo que quero cuspir e não posso’. Não deu o meirinho resposta a isto, nem eu a
dou, porque os leitores dêem a que lhes parecer..”
(Frei Vicente do Salvador. História do Brasil.)
2.1. Consciência da diferença entre colonos e reinóis nos Diálogos das Grandezas do
Brasil
O que procuramos estudar com os Diálogos das Grandezas do Brasil não é a diferença
entre colonos e reinóis, e sim a consciência de que essa diferença existe. Isso porque as
diferenças aparecem desde os primeiros documentos, mas os “conquistadores” da América são,
na verdade, seus “inventores”, ou seja, não enxergam aqui um mundo diferente, mas adaptam
53
esse mundo ao aparelho mental que possuem.1 E a tomada de consciência não somente tem a ver
com a conscientização de que a América é um mundo novo, mas principalmente com o fato de
que as pessoas, por viverem neste mundo novo, se tornaram diferentes.
2.1.1 A Obra
Os Diálogos são em número de seis e foram escritos em 1618. São travados entre um
português já residente aqui desde 15832, Brandônio, e um português recém-chegado da Europa,
Alviano, que faz questões a respeito da terra ao primeiro. Há indícios de que seriam cristãosnovos, mas essa afirmação ainda não foi comprovada.3
Existem dois apógrafos dos Diálogos guardados em bibliotecas da Europa. O primeiro
apógrafo é o da biblioteca da Real Universidade de Leiden, e o segundo é o da Biblioteca
Nacional de Lisboa. De acordo com Antonio Gonsalves de Melo, organizador da edição dos
Diálogos feita pela Universidade de Pernambuco, o primeiro apógrafo foi sujeito a correções, em
razão de uma encadernação que recortou algumas partes do texto, que tiveram de ser
reconstituídas e o apógrafo da biblioteca de Lisboa apresenta alguns defeitos de cópia4 mal feita a
partir do outro apógrafo.
Quatro das edições da obra, por seguirem o apógrafo lisbonense, apresentam os mesmos
vícios deste. Os defeitos foram transmitidos através das sucessivas cópias dos Apógrafos.
“Desses defeitos enormes das edições anteriores (...) parece ser dupla a responsabilidade. Em
1874, Francisco de Adolfo Varnhagen encontrou na biblioteca da Universidade de Leinden o
1
Edmundo O’Gorman. A invenção da América: reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e da
consciência histórica do seu devir. Trad. De Ana Maria Martinez Correa e Manoel Lelo Belotto. São Paulo, Ed.
Unesp, 1992.
2
Há dúvidas se o residente seria português ou não, mas pelo correr dos diálogos se torna clara essa sua origem. O
ponto é que ele se sente diferente não pela sua procedência, mas pelo local de residência e conhecimento deste local,
conhecimento este que o recém-chegado não tem.
3
Ambrósio Fernandes Brandão aparece em uma das confissões de Pernambuco durante a primeira visitação, acusado
de adotar costumes judaicos. De biografia ainda obscura, provavelmente cristão-novo português, teria ido ao Brasil
em 1583 e lá permanecido até 1618, de início como arrecadador dos dízimos do açúcar em Pernambuco, e mais tarde
como senhor de engenho na Paraíba. Aí construiu ao todo três engenhos na várzea do Paraíba. Também tornou-se
precursor da medicina tropical, o que fica comprovado em muitas passagens de sua obra. Seus conhecimentos
farmacopéicos
foram
depois
aproveitados
pelo
holandês
Piso.
Fonte:
http://www.pbnet.com.br/openline/mfarias/ambrosio.htm).
4
“Apresenta vários defeitos de cópia e, elemento importante a considerar, incorpora ao texto quase todos os
acréscimos e correções feitos ao texto de Leiden (...) Da incorporação comprova-se que o apógrafo de Lisboa é uma
cópia do de Leiden, fato já salientado por Varnhagen, do que a princípio duvidei.” (José Antônio Gonsalves de Melo.
Introdução a Diálogos das Grandezas do Brasil. 2a edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por
José Antônio Gonsalves de Melo. Recife, Imprensa Universitária, 1966, p. XXVI).
54
apógrafo dos Diálogos cuja existência, ali, era até então desconhecida dos brasileiros, e o copiou
ou fez copiar. Três anos depois, ao passar por Pernambuco, ofereceu uma cópia deles ao amigo
José de Vasconcelos (...) Das mãos de Vasconcelos, parte da cópia foi parar ao Instituto
Arqueológico, pois em sessão de 11 de dezembro de 1882, José Higino Duarte Pereira propôs
‘que se mande extrair a expensas do Instituto uma cópia do manuscrito intitulado Diálogos das
Grandezas do Brasil, existente na Biblioteca de Leiden, na Holanda, da parte que falta cópia
existente neste Instituto.”5 Em 1886 publica-se na Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e
Geográfico Pernambucano, o Diálogo II, que não havia sido publicado na edição anterior de
1883. No entanto, Gonsalves de Melo diz não saber se a maior parte dos erros que a cópia dos
Diálogos apresenta é devida a Varnhagen ou José Higino, ou ainda, em razão da revisão
descuidada da revista. Além disso, novos defeitos foram agravados nas edições subseqüentes da
revista e ainda, mesmo a edição da Academia Brasileira de Letras, sob responsabilidade de
Afrânio Peixoto e Rodolfo Garcia é carregada de erros.6 No entanto, estes erros, conforme análise
detalhada, não influenciaram o estudo da diferenciação. Fizemos uma análise comparada das
duas edições e verificamos isso. O que importa para nós é como a consciência da diferença
aparece na contraposição entre Brandônio e Alviano.7 Os erros das edições não afetam este nosso
objetivo, embora cuidássemos o tempo todo de contrapô-las. Utilizamos duas edições, uma
baseada no apógrafo lisbonense, que é a de Capistrano de Abreu, e outra baseada no apógrafo de
Leiden, que é a da Universidade Federal de Pernambuco organizada por Antonio Gonsalves de
Melo. As correções que este faz às outras edições8 estão na Introdução ao livro.9
5
Melo, op. Cit., p. XXVIII.
Entre os erros encontrados por Gonsalves de Melo e confirmados pela nossa pesquisa estão: “’mais’ quando é
‘demais’; ‘haver’ por ‘a ver’, ‘até’ por ‘a lhe’, etc.” (Idem, ibidem, p. XXIX), todos no Diálogo II. O erro mais crasso
é aquele que retira uma parte do Diálogo II da edição original: “Na Revista no 31, citada, página 376: ‘ALVIANO –
Dou-me por concluído, porque pelas razões que me destes conheço ser este clima do Brasil o melhor do mundo, pela
parte por onde o não corta a linha equinocial, porque ali de força há-de ser de mau temperamento, como o são todas
as demais partes por onde ela passa.’ (...) Na edição da Academia, página 101: ‘ALVIANO – Dou-me por concluído,
porque ali de força há-de ser de mau temperamento como são todas as demais partes por onde ela passa. Falta, como
se vê, largo trecho da frase (...).” (Idem, ibidem, pp. XXIX/XXX)
7
Para maior detalhes sobre os erros dos apógrafos e das edições, consultar Gonsalves de Melo, op. Cit., Introdução.
8
Essas quatro edições são: a da Revista do Instituto Arqueológico Pernambucano, nos números 28 (1883), 31 (1886)
32 e 33 (1887); a edição da Academia Brasileira de Letras-Officina Industrial Graphica em 1930, com Introdução de
Capistrano de Abreu; a edição da Academia Brasileira de Letras sob cuidados de Afrânio Peixoto e Rodolfo Garcia
em 1933; a edição da Academia Brasileira de Letras-Ed. Dois Mundos, em 1943, com introdução de Jaime Cortesão
e Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo Garcia. Por fim, a edição de Gonsalves de Melo em 1966, que foi baseada
no apógrafo de Leiden.
9
Gonsalves de Melo, op. Cit., p. VII-XLIV.
6
55
Há fortes probabilidades de que os Diálogos tenham sido compostos na Paraíba. Tanto as
referências naturais como as sócio-políticas desta capitania se encontram presentes ao longo da
obra.10
De forma resumida, o primeiro diálogo trata das capitanias, desde o rio Amazonas, até
São Vicente e das características gerais de cada uma delas; o segundo trata do clima e
enfermidades do Brasil, e dos remédios que se usam contra tais enfermidades; o terceiro, das
quatro fontes de riqueza da terra, em especial as mercantis: o açúcar, o pau-brasil, o algodão e a
madeira; o quarto diálogo, dos mantimentos, hortaliças, frutas, legumes e tudo o que a terra
produz de si mesma; o quinto, das aves, peixes e animais terrestres, segundo os elementos a que
estão relacionados: ar, água e terra; o sexto trata, enfim, das gentes que habitam a terra, tanto
gentios, como portugueses, assim como dos costumes de cada um. Apesar de o sexto diálogo
parecer o mais importante para os nossos propósitos, por se propor a falar dos colonos, grande
parte do capítulo é dedicada ao gentio. Além disso, a análise da obra como um todo é de
particular importância porque a consciência da diferença vai sendo construída ao longo do texto.
Nem sempre o autor tem consciência de algumas coisas que fala e há outras que fala sem
perceber e que ficam perdidas nos vãos do texto. Na verdade há mais coisas nas entrelinhas do
que nas linhas propriamente ditas. Daí a importância da análise global do texto.
2.1.2 A autoria e a consciência da diferença
Existem controvérsias quanto à autoria dos Diálogos, bem como quanto ao número de
autores. A controvérsia que mais nos interessa não é tanto quanto a quem é o autor,11 mas quanto
10
“Entre estas podem enumerar-se primeiramente as numerosas referências a ela feitas, o modo desenvolvido por
que é tratada: pouco mais de três páginas tratam de Pernambuco; menos de quatro tratam da Bahia, ao passo que
quase cinco cabem à Paraíba. À Paraíba atribui-se o terceiro lugar entre suas irmãs e aproveita-se qualquer pretexto
para salientá-la: o administrador eclesiástico, prelado quase igual aos bispos nos poderes, é da Paraíba, esta, por
conseguinte, a cabeça espiritual das capitanias do Norte, a começar de Pernambuco; na organização judiciária
proposta para substituir a Relação da Bahia, um corregedor com amplos poderes deve residir na Paraíba, por ser
cidade real, e a ele serem subordinadas todas as justiças desde Pernambuco até Maranhão e Pará. Essa preferência
pela Paraíba não indica que à Paraíba o autor estava preso por laços muito particulares? Uma frase escrita
incidentemente legitima a resposta pela afirmativa. ‘Vos hei de contar, diz um dos interlocutores, uma graça ou
história que sucedeu há poucos dias neste Estado sobre o achar o âmbar. Certo homem ia a pescar para a parte da
Capitania do Rio Grande em uma enseada que aí faz a costa...’ A menos que não se provasse que o autor escrevia no
Ceará, o que está fora da questão, para a parte da Capitania do Rio Grande, só se podia escrever na outra Capitania
contígua, isto é, na Paraíba’”. (Capistrano de Abreu. Introdução a Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e
revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956, p. 2)
56
ao número de autores. Se for um único autor, a consciência da diferença se torna imediata: um
mesmo colono foi capaz de separar o português em duas outras denominações contrapostas entre
si: o colono e o reinol. 12
Já se fossem dois autores, a consciência da diferença poderia ser questionada, porque o
fato de duas pessoas se contraporem em um diálogo e falarem sobre as diferenças que existem
entre as terras e entre as pessoas que moram nestas, não significa que tenham consciência de tais
diferenças. Muito menos que façam parte de grupos diferentes. Podem se limitar à percepção,
somente. Há hipóteses de que um tal Nuno Álvares, que exercia funções idênticas à de Brandão,
teria sido Alviano, o interlocutor de Brandônio.13 Mesmo com dois autores, a conscientização da
diferença acontece e ocorre por meio do discurso de Brandônio. Ele demonstra conhecer a terra, e
utiliza para isso expressões muitas claras que o colocam em uma posição ativa dentro do diálogo,
submetendo Alviano ao seu conhecimento.14 Brandônio tem consciência de que é diferente. Em
11
Bento Teixeira, o mesmo autor de Prosopopéia, era o mais cotado para autoria dos Diálogos, até que Capistrano de
Abreu verificou que os Diálogos não eram de autoria deste, mas de Ambrósio Fernandes Brandão, um senhor de
engenho com propriedades de terra em Pernambuco e Paraíba, nascido em 1560 e morto em 1630.
12
Segundo Capistrano, os personagens se complementam, compondo antes um discurso com uma única tese do que
dois discursos com teses diferentes, o que poderia confirmar a hipótese de uma única autoria. “Parecem antes
personagens simbólicos: um representa o reinol vindo de pouco, impressionado apenas pela falta de comodidades da
terra; o segundo é o povoador, que desde 1583, veio para o Brasil, e, com as interrupções de várias viagens alémmar, ainda aqui estava em 1618, data da composição do livro. Tão abstratos os personagens, que às vezes saem dos
lábios de um palavras que melhor condiriam nos do outro.” (Capistrano, op. Cit., p. 2).
13
Informação dada por Rodolfo Garcia na edição dos Diálogos feita pela Academia Brasileira de Letras, op. Cit., p.
21/22.
14
Algumas das expressões que demonstram como a consciência da diferença vai sendo mostrada pelo jogo que criam
entre si ao serem proferidas pela boca de seus respectivos personagens (somente retiramos as presentes no primeiro
capítulo, uma vez que é suficiente para mostrar a contraposição e elas se repetem nos demais): Alviano, em
momentos de curiosidade: “e o que é que vos disse esse fidalgo?” (Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada
e revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956, p. 19), “pois dizei-me agora da grandeza (...) desta
província” (Op. Cit., p. 20), “E o que é que haveis ouvido?” (Idem, p. 21), “E de que modo?” (Idem, p. 24), “e qual é
a razão?” (Idem, p. 27), “pois não me encubrais”(Idem, p. 28), “pois dizei-me dela”( Idem, p. 30), “folgarei que me
digais” (Idem, p. 35), “pois dizei-me das grandezas” (Idem, p. 33); em certos momentos em que não acredita no que
Brandônio diz: “boa graça é essa” (Idem, pp. 12), “não posso me persuadir disso” (Idem, p. 12), “peregrina opinião é
essa vossa” (Idem, p. 14), “isto tenho eu por fábula” (Idem, p. 32), “isso entendo eu pelo contrário” (Idem, p. 39);
em certos momentos que acata ao conhecimento de Brandônio e é por ele persuadido a acreditar: “confesso ser isso
assim” (Idem, p. 13), “confesso o que dizeis” (Idem, p. 13); “fico já bem inteirado” (Idem, p. 38). Brandônio, em
momentos que demonstra conhecimento, chegando a se irritar às vezes: “quando vossa opinião tivera lugar” (Idem,
p. 13), “pois assim vos enganais” (Idem, p. 17), “já me há de ser forçado a fazer-vos retratar dessa erronia em que
estais” (Idem, pp. 19); em raros momentos que concorda com que Alviano diz: “tudo isso é verdade (...) contudo
(...)” (Idem, p. 14). Para Brandônio, não existe uma verdade absoluta, senão a que há por se descobrir. Em dado
momento do texto diz: “porque isso seria querer encontrar a verdade”. (Idem, p. 56). Por que para Brandônio não há
uma verdade absoluta? Talvez isso se relacione com sua idéia a respeito do “sempre haver algo para ser descoberto”.
Sabe que o conhecimento do homem é limitado e acatar a uma dada verdade, seria o mesmo que apostar no erro. Não
busca a verdade, senão explicações para as coisas e tem plena consciência de que essa explicação é efêmera. É essa
sua atitude que abre espaço para incredulidade e esta à permanente especulação. A dúvida se manifesta em Alviano
com um caráter de curiosidade. Em Brandônio, com um caráter de rompimento ou contestação.
57
várias situações identifica-se com aqueles que moram na terra e faz questão de ser diferente de
Alviano. Segundo Capistrano de Abreu: “O autor era português. A leitura cuidadosa o atesta a
cada passo e o próprio Brandônio o confirma explicitamente. Interrogado por que não secundou
as experiências de plantação de trigo, responde: ‘Porque se me comunica também o mal da
negligência dos naturais da terra’”.15 Brandônio incorporou uma característica da terra que o
distingue dos portugueses do Reino, e, embora não deixe de português, já não se sente como
reinol. A forma como ele fala denota a plena consciência que tem desse fato.
O interessante é que se for realmente um único autor, como as análises têm mostrado,
teremos dois níveis de consciência da diferença: a consciência que o autor tem de sua condição
de colono, como se identifica com essa condição e se sente diferente por sua causa, e a
consciência que é construída pela contraposição entre Brandônio e Alviano, entre colono e reinol,
que é um alargamento dos horizontes do primeiro nível de consciência, que ultrapassa as
sensações individuais para torná-las gerais. Ambrósio Fernandes Brandão, o autor segundo
Capistrano de Abreu, conhece os dois lados de que fala e então pode construir os dois vetores de
que se compõe a diferenciação: dos colonos em relação aos reinóis, e destes em relação aos
colonos. A contraposição é o que dá a dinâmica do diálogo e consistência ao argumento da
diferenciação.
Como para os nossos propósitos, a discussão quanto ao número de autores não é
importante, passemos às discussões que surgiram dentro da historiografia a respeito de quem
seria o autor. Começaremos pela polêmica. Depois, passaremos à descrição do autor.
Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e Gonsalves de Melo atribuem a autoria dos
Diálogos a Ambrósio Fernandes Brandão, um senhor de engenho da Paraíba, que possui uma
série de características coincidentes com Brandônio.16 Varnhagen atribui a autoria à Bento
Teixeira, o mesmo autor de Prosopopéia17 e o Professor Eládio Ramos apresenta um outro nome:
o padre Travaços, da companhia de Jesus da Paraíba. Uma leitura atenta dos Diálogos descartaria
essa hipótese imediatamente. Fica claro que o autor é um senhor de engenho e não um jesuíta,
como afirma o professor Eládio. O viés mercantil que perpassa sua forma de pensar não condiz
15
Idem, p. 3.
Veja que isso não elimina a possibilidade de dupla autoria, mas tanto Capistrano, como Gonsalves de Melo não
discutem isso. Somente citam em algum ponto das respectivas introduções. Procuram somente as coincidências entre
o suposto autor e Brandônio.
17
Bento Teixeira. Prosopopéia (circa 1601). Introdução, estabelecimento de texto e comentários de Celso Cunha e
Carlos Durval. São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL, 1977.
16
58
com a forma de pensar de um jesuíta. Resta a atribuição de Varnhagen à Bento Teixeira, mas as
informações também não procedem.18
Assim, resta a autoria de Ambrósio Fernandes Brandão. Em primeiro lugar, os autores
supracitados confrontaram as informações dadas pelo texto do hipotético autor com os dados que
se tinha sobre Ambrósio Fernandes Brandão. As afirmações são bastante convincentes e
detalhadas, mas não há espaço aqui neste trabalho para nos alongarmos neste tema.19 Melhor que
sigamos os conselhos do Mestre Capistrano de Abreu: “Os esforços até agora tentados para
levantar o anonimato dos Diálogos das Grandezas do Brasil têm sido perdidos. Para que aventar
novas hipóteses? Antes tomar do livro e penetrar em sua intimidade se pudermos”.20 Passaremos
então a indicar algumas características pessoais do autor, como sua formação pessoal e social, sua
condição dentro da colônia, elementos que delineiam o seu pensamento e dão forma à sua obra.
O autor era português e provavelmente recebera a formação literária e científica da época:
conhecia o latim (como se pode ver por muitas de suas citações) e lêra autores clássicos como
Aristóteles, Dioscórides, Vatablo, Juntino, com quem debate certas teorias que ele próprio
caracteriza como inadequadas à explicação da nova terra. Tem uma concepção extremamente
clara da história, geografia e a economia de Portugal e de suas colônias. Fundamenta-se na
experiência como mestra das coisas.21 Dotado de um espírito crítico extremamente aguçado,
questiona as crenças da terra, em especial a dos gentios. Segundo palavras célebres de Capistrano
de Abreu: “a credulidade, para ele, era o princípio da crítica e da sabedoria”.22 É dessa mente
astuta, de imaginação colorida e fértil, dotada de espírito crítico e capacidade em romper com
tabus, que emerge a consciência da diferença entre colono e reinol.
18
Gonsalves de Melo apresenta três hipóteses para refutar a tese de Eládio Ramos. (Gonsalves de Melo, op. Cit., p.
XX). Da mesma forma, um confronto entre dados biográficos de Ambrósio Fernandes Brandão e Bento Teixeira é
feito à p. XVII.
19
Para os que se interessarem pelo tema, as informações estão em Gonsalves de Melo, op. Cit., p.VII-XXIV e
Capistrano de Abreu, op. Cit., pp. 9-10.
20
Capistrano de Abreu, op. Cit., p. 2.
21
“Os casos vi, que os rudos marinheiros,
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as cousas só pola aparência,
E os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência,
Vêm do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos”. (Luís Vaz de Camões. Os Lusíadas. Comentários de Francisco Silveira
Bueno. São Paulo, Saraiva, 1960, canto V, estrofe 16).
59
2.1.3. Da percepção da diferença à consciência de sua existência
Dada a polêmica sobre a autoria, podemos passar então à análise de como a consciência
da diferença aparece na obra. Seguiremos a mesma ordem temática que o autor apresenta nos
Diálogos. Tentaremos, ao concluir, dar uma forma mais acabada aos respectivos temas
complementando-os com algumas reflexões de Frei Vicente do Salvador.
O Diálogo Primeiro trata da fertilidade da terra e da sua divisão em capitanias
hereditárias. Começa com uma discussão entre Alviano e Brandônio a respeito de uma certa
lanugem que este tem revolvida em um papel. Em torno dessa discussão, surge uma primeira
diferença entre Alviano e Brandônio, que é sobre a concepção de riqueza.23 Alviano pensa que
somente “diamantes ou rubis” deveriam demandar tanta atenção e não uma mera lanugem.
Brandônio tem uma outra concepção de riqueza, associada à terra e ao comércio, o que o torna
mais próximo da mentalidade mercantil emergente. Para Brandônio, o açúcar que esta terra
produz, é mais valioso do que ouro e prata.24 A percepção da diferença aparece na descrição da
terra e de como as coisas funcionam; de sua fertilidade e de como a terra é capaz de produzir
açúcar. A consciência aparece no fato de que Brandônio não somente conhece coisas novas,
como sabe que esse é um ponto que o diferencia de Alviano. E ainda: sabe que essa característica
não é somente dele, mas de todos os moradores desta terra.
O próximo trecho a ser ressaltado é o que fala sobre as gentes do Brasil. Brandônio monta
uma sociedade discriminando-a em grupos conforme o laço material que os unem à terra:
22
Capistrano de Abreu, op. Cit., p. 4.
“ALVIANO:(...) e assim me torno a afirmar, como já disse, que melhor fôra ser esse bisalho de diamantes ou
rubis, que são pedras descobertas e tidas por preciosas desde o princípio do mundo.
BRANDONIO: E quem vos há de negar que isso fôra de mais proveito pela reputação em que o mundo as tem, por
serem reluzentes e campearem muito, com alegrarem a vista com sua formosura; porque delas não sei outra
excelência, posto que nunca me inclinará a ter minha fazenda embaraçada nessa mercadoria; porque, quando assim
fôra, a teria por pouco segura.” (Diálogos..., p. 13). A concepção de Alviano é a concepção unânime da época.
Brandônio inova ao adotar uma posição anti-metalista. Isso é revolucionário para uma época em que o metal e a
pedraria eram a principal forma de riqueza, inclusive este é um dos princípios que regem a acumulação de riqueza
num Estado Absolutista.
24
“(...) contentando-se de, nas fraldas do mar, se ocuparem somente em fazer açúcares?
BRANDONIO: E tendes essa ocupação por pequena? Pois eu a reputo por muito maior que a das minas de ouro e
de prata; como alguma hora vo-lo mostrarei provado claramente. (....) E este é o respeito por onde no Brasil seus
moradores se ocupam somente na lavoura das canas de açúcar, podendo se ocupar em outras muitas coisas.
ALVIANO: (...) o lançarem-se no Brasil somente seus moradores, a fazer açúcares é por não acharem a terra capaz
de mais benefícios: porque eu a tenho pela mais ruim do mundo (...)
23
60
“ (...) porque deveis de saber que este estado do Brasil todo, em geral, se forma
de cinco condições de gente, a saber: marítima, que trata de suas
navegações,(...) mercadores, que trazem do reino as suas mercadorias a vender
a esta terra, e comutar por açúcares, do que tiram muito proveito;(....) oficiais
mecânicos de que há muitos no Brasil de todas as artes, os quais procuram
exercitar, fazendo seu proveito nelas, sem se lembrarem por nenhum modo do
bem comum. A quarta condição de gente é de homens que servem a outros por
soldada que lhe dão, ocupando-se em encaixamento de açúcares, feitorizar
canaviais de engenhos e criarem gados, com nome de vaqueiros, servirem de
carreiros e acompanhar seus amos; e de semelhante gente há muita por todo
este Estado, que não tem nenhum cuidado do bem geral.(...) A quinta condição
é daqueles que tratam da lavoura, e estes tais se dividem ainda em duas
espécies: uma dos que são mais ricos, têm engenhos com títulos de senhores
deles, nome que lhes concede Sua Majestade em suas cartas e provisões, e os
demais têm partidas de canas; a outra, cujas forças não abrangem a tanto, se
ocupam em lavrar mantimentos legumes”. 25
Ao classificar a população em cinco tipos, Brandônio os especifica pela ligação que os
homens guardam com a terra e uma especial ligação que guardam uns em relação aos outros. Os
contornos da base material na colônia começam a ser definidos e isso vai moldando os grupos
humanos de uma forma peculiar. Paradoxalmente, o colono é negligente e desafeito à mesma
terra que produz sua sobrevivência: “E daqui nasce haver carestia e falta destas coisas, e o não
vermos no Brasil quintas, pomares e jardins, tanques de água, grandes edifícios, como na nossa
Espanha, não porque a terra deixe de ser disposta pára estas coisas; donde concluo que a falta é
de seus moradores, que não querem usar delas”. 26 A negligência, que como vimos, foi um traço
de caráter bastante ressaltado na documentação anterior aos Diálogos mantém aqui sua força.
Por fim, o autor se propõe a falar das capitanias por ordem geográfica, desde o Pará até
São Vicente. Os trechos principais falam sobre a opulência da terra, sobre sua fertilidade, sobre
alguns fatos específicos ocorridos em cada capitania. Algumas lendas que compõem o imaginário
colonial, como a do Eldorado, do outro Peru,27 alguns heróis, como João Ramalho, e seus feitos
BRANDONIO: Certamente que tenho paixão de vos ver tão desarrazoado nessa opinião; e porque não fiqueis com
ela, nem com um erro tão crasso, quero-vos mostrar o contrário do que imaginais”. (Op. Cit., p. 15-16)
25
Idem, p.18.
26
Idem, p. 18. Ele associa ainda essa característica dos moradores às condições sociais em que se encontra a terra: a
carestia e a pobreza. No entanto, não sabe explicar, a despeito de Alviano lhe perguntar diversas vezes, de onde vem
esse comportamento, que inclusive se comunica a ele (Vide nota 15 à página 63). Aqui, a montagem da sociedade e
do sistema colonial se encontram de uma forma ainda rústica. Só em Frei Vicente se encontram de forma acabada e
então realmente fazem sentido.
27
“No ano de oitenta e seis veio a Pernambuco este homem de que trato, o qual (...) se meteu pelo sertão adentro (...)
até desembocarem neste rio, de que tratamos, das Amazonas; de onde por ser verão, na mesma canoa, ao longo da
costa, passaram às Índias, levando por mantimento do muito peixe que sempre pescavam, e alguma água que
61
ou curiosidades, a natureza edênica, vão aparecendo como novidades que existem somente nesta
terra. São criadas e permanentemente recriadas pelas condições que somente esta e sua gente
apresentam. Os moldes podem ser europeus, mas o colorido é tipicamente local.28
Entre maravilhoso ao miraculoso tem-se um limite muito tênue. A abundância e a
fertilidade da terra ficam no limite entre o material e o fictício, chegando ao extremo de serem
divinas: “ALVIANO: E de que modo se toma esse pescado, que dizeis não custar trabalho o
haver-se de pescar? (...) BRANDONIO: Mandam duas ou três canoas, (...) se põem inclinadas
com a borda pendente contra aquela parte donde a maré vem enchendo, e basta para o fazerem
assentarem-se os índios, que vão nelas, no bordo que pretendem que se incline; e estando assim
inclinadas por espaço de duas horas, sem mais outro beneficio, se enchem de peixe
excelentíssimo, que por si salta nelas; ALVIANO: (...) poderiam dizer que estavam na idade
dourada, da qual fabulavam os poetas que manavam rios de mel e de manteiga”.29
A capitania de Pernambuco é a que o autor descreve com maiores detalhes, talvez porque
aqui, não somente a base material, como a organização militar e a política tenham se instalado de
forma mais plena.30 Uma das características da particular organização política da colônia é como
ajuntavam em cabaços”. (Idem, p. 21). O outro Peru ou o Eldorado: mitos antigos, resgatados da Antigüidade
Clássica, e que desembocam em uma nova mitologia americana ou luso-brasileira, como descreve Sérgio Buarque de
Holanda em Visão do Paraíso. (Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no
descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994).
28
Outras lendas e mistérios, como aquele de que trata à página 28 deste mesmo diálogo, têm origem puramente local.
O mito é inédito, mas sempre se tenta encontrar nesse novo algo familiar ou antigo (mesmo que tal aproximação
exista somente no imaginário do colonizador ou do colono): “Relatou-me por coisa verdadeira que, andando
Feliciano Coelho de Carvalho, capitão-mor que foi da dita capitania pela mesma serra, fazendo guerra ao gentio
Potiguar, aos 29 dias do mês de dezembro do ano de 1598, se achara junto a um rio chamado Aragoagipe, que, por ir
então seco, demonstrava somente alguns poços de água, que o calor do verão não tinha ainda gastado, e que alguns
soldados, que foram por ele abaixo, toparam nas suas fraldas, com uma cova, (...) e ali por toda a redondeza que fazia
na face da pedra se achavam umas molduras (...) que tomavam princípio debaixo para cima de um tamanho, que
semelhavam, no modo com que estavam arrumadas o em que se pinta por retábulos o rosário de Nossa Senhora (...)e
no cabo destas mossas se formava uma moldura de rosa.” (Diálogos..., p. 28).
29
Op. Cit, p. 23. É preciso reparar que a propriedade divina da terra se aplica à natureza, mas nem sempre às suas
gentes: “A percepção do índio como uma outra humanidade, como animais e como demônios corresponde a três
níveis possíveis através dos quais se expressaram as considerações européias acerca dos homens americanos. Para
efeito de análise, pode-se dizer que, num primeiro nível, o europeu vê no ameríndio uma outra humanidade. (...)
[mas] como colonizar terra tão paradisíaca com homens que agiam como irracionais, ou, em outras palavras, agiam
como se não fossem homens? (...) A humanidade anti-humana se manifestava ainda no estado de pecado em que,
para o europeu católico, vivam os naturais da terra. (...) Vícios da carne – o incesto com lugar de destaque, além da
poligamia e dos concubinatos – nudez, preguiça, cobiça, paganismo, canibalismo. (...) Só assim cessaria ‘a boca
infernal de comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa’, diria ainda Nóbrega,
apontando já o terceiro nível de expressão das considerações européias acerca dos homens americanos: o dos índios
como demônios”. (Laura de Melo e Sousa. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no
Brasil Colônia. 4a Reimpressão. São Paulo, Cia. Das Letras, 1994, pp. 56-65).
30
“Essa capitania é tal que se antecipa a sua riqueza e abundância à fama que dela dão os que a viram pelo olho: é de
senhorio, porque de presente é capitão e governador dela, por Sua Majestade, Duarte de Albuquerque Coelho; (...) há
62
esta se encontra perpassada por relações familiares: “(...) todos os moradores deste Estado, como
nas capitanias onde moram são liados uns com outros por parentesco ou amizade, nunca levam
seus preitos tanto ao cabo, que lhes seja necessário concorrerem por fim com a apelação deles à
Relação da Bahia; porque, antes disso, se metem amigos e parentes e por meio, que os compõem
e concertam; de maneira que põem fim às suas causas, e daqui nascem ir poucas por apelação à
Bahia (...)”.31Aqui já estamos no âmbito dos laços criados dentro da colônia.
Não somente críticas são apresentadas, mas também sugestões para certos problemas da
colônia. Alviano, em diversas ocasiões pergunta a Brandônio como um ou outro problema
poderiam ser sanados e Brandônio lhe responde indo ao cerne deste problema.32 A solução que
apresenta é a prova cabal do seu conhecimento. Além disso, embora critique o comodismo dos
moradores da terra, ele sabe que padecem por grandes opressões. Ele não somente se mostra
conhecedor da organização da colônia, como das implicações decorrentes da forma como está
organizada e é nesse ponto que suas críticas e soluções mais se fazem presentes33. Todas estas
atitudes de Brandônio não demonstram uma simples percepção, mas uma consciência da
diferença entre colonos e reinóis.
infinitos engenhos de fazer açúcares, muitas lavouras de mantimentos de toda a sorte, criações sem conta de gado
vacum, cabras, ovelhas, porcos, muitas aves de bolateria e outras domésticas, diversos gêneros de frutas, tudo em
tanta copia que causa maravilha a quem o contempla e com curiosidade o nota. Dentro da vila de Olinda habitam
inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito preço, de toda a sorte, em tanta
quantidade que semelha uma Lisboa pequena (...) há o [colégio] dos padres da Companhia de Jesus, o dos padres de
S. Francisco, da ordem capucha da província de Santo Antonio, o mosteiro dos carmelitas, e o mosteiro de S. Bento
com religiosos da mesma ordem; em todos estes mosteiros assistem padres de muita doutrina, letras e virtudes (...).É
capaz toda a capitania de Pernambuco de pôr em campo seis mil homens armados com oitocentos de cavalos; porque
toda a gente nobre são por extremo bons cavaleiros, e, por se prezarem muita disso, costumam a ter seus cavalos bem
ajaezados e paramentados.”. (Diálogos..., p. 31)
31
Op. Cit., p. 35.
32
“ALVIANO: E que meio é esse que poderá Sua Majestade tomar?
BRANDONIO: Tirando e extinguindo de toda a casa da Relação da Bahia, podia em seu lugar criar no Estado três
corregedores com título de comarca, da maneira que os há no Reino, e com a mesma alçada; e quando se lhe
acrescentassem mais alguma quantidade, não o teria por desacertado”. (Idem, p. 35)
33
“BRANDÔNIO: (...) ficando remediadas grandes opressões que os moradores deste Estado de presente padecem.”
(Idem, p. 35). Em um outro trecho, Brandão associa a pobreza da população à ganância e negligência de outros.
Percebe que existem algumas desigualdades: “A pobreza dos moradores, que habitam no distrito da capitania, sem se
ajuntar também a isso pouca indústria, é causa de se não colher de suas minas muito ouro. E os que as poderão
lavrar, com levarem à dita capitania fábrica de escravos e mais cousas para o efeito necessárias, o não querem fazer.
E por este respeito estão essas minas quase desertas; (...) porque o primeiro que se devia de fazer, antes de se bolir
nelas, depois de estarem certos que eram de proveitos, houvera de ser plantarem-se muitos mantimentos ao redor do
sítio onde elas estão, e como os houvesse em abundância, tratar-se da lavoura das minas; mas isto se fez pelo
contrário, porque, sem terem mantimentos, entenderam em tirar o ouro, e como as minas estão muito pelo sertão, os
que vão levam de carreto o mantimento necessário, e como se lhe acaba, tornam-se, e deixam a lavoura, que tinham
começada.”(Idem, p. 39)
63
O diálogo seguinte se intitula “sobre o clima e enfermidades do Brasil e dos
medicamentos com que se curam”. Discute o bom temperamento da terra e seu maior reflexo: a
longevidade.34 Da mesma forma que Frei Vicente, Brandônio também percebe que aqui as coisas
se encontram muitas vezes invertidas. Esse é o caso da saúde dos habitantes: “(...) mas no Brasil
se acha isto ao revés, porque toda gente de qualquer nação que seja prevalece nele com saúde
perfeita, e os que vêm doentes cobram melhoria em breve tempo. E a razão é o serem estas terras
do Brasil mais sadias e de melhor temperamento que tôdas as demais”.35 Mas reparemos que não
se trata de uma diferença social, mas tão somente biológica ou fisiológica. Estas abundam dentro
dos Diálogos, ao passo que em Frei Vicente, elas são minoria.
Neste diálogo se encontra um dos principais trechos da obra porque Alviano utiliza o
termo “reinol” para definir aquele que desconhece as coisas da terra: “O ser ainda reinol e vindo
de pouco a esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos antigos nela são patentes, e por
isso não vos maravilheis se vos perguntar algumas já muito notórias (...)”. 36
Ainda neste diálogo, Brandônio mostra ter conhecimento das plantas e suas propriedades
curativas37. Mostra-se adepto de tais costumes e confessa ter rompido com antigas práticas
curativas, reforçando a consciência de que é parte desse mundo novo: “(...) porque em Portugal a
dois outros enfermos, que estavam muitas vezes sangrados, e os físicos determinaram de os
consumir ainda com mais sangrias, aconselhei o haverem-se de curar com água morna, porque
34
“Acham-se muitos índios por toda esta costa do Brasil, que têm de idade, mais de cem anos, e eu conheço alguns
destes, aos quais lhes não falta dente na boca, e gozam ainda de suas perfeitas forças, com terem três e quatro
mulheres, as quais conhecem carnalmente, e me afirmaram não haverem sido em todo o decurso da sua vida doentes;
e assim geralmente todo este gentio é muito bem disposto, do que tudo é causa os bons céus e bom temperamento da
terra.” (Idem, p. 54).
35
Idem, p. 55.
36
Idem, p. 56. A diferenciação é um vetor de dupla face. Tanto os daqui se diferenciam em relação aos de lá (embora
muitas vezes contrariem esse movimento), como os de lá se diferenciam em relação aos daqui - o que fazem
propositadamente, (principalmente pela adoção de novos costumes).
37
A discussão sobre o óleo de copaíba desnuda uma percepção de diferença entre colonos e reinóis quanto aos
hábitos medicinais e às reações a doenças da terra: “ALVIANO: E os nossos Portugueses que habitam por estas
partes usam do próprio remédio desse azeite de copaíba e bálsamo? (...) BRANDONIO: Sim, usam porque têm
experimentado ser excelente remédio para feridas; mas nas mais enfermidades guardam na cura delas diferente
estilo, porque se curam com médicos, barbeiros e cirurgiões Portugueses (...) Os Portugueses depois que vêm do
Reino os costuma apalpar a terra com uma febre e frio de pouca importância, porque com duas ou três sangrias
saram delas, e quanto mais se dilatam em serem apalpados do clima, se lhe comunica a mesma febre e frio com mais
força, mas de modo que nunca chega a ser doença de consideração. Também os antigos da terra são visitados das
mesmas maleitas, terçãs e ainda quartãs (...) mas morre muito pouca gente de semelhante enfermidade, a qual se cura
pelos médicos com purgas e sangrias.” (Idem, p. 61)
64
podia bem ser que fossem doentes do bicho, os quais, seguindo meu conselho, cobraram perfeita
saúde”.38 O poder curativo provém da própria natureza, que é milagrosa per se.39
O diálogo terceiro trata mais detidamente das riquezas da terra. Divide as riquezas do
Brasil em seis: “a primeira a lavoura do açúcar, a segunda a mercancia, a terceira ao pau a que
chamam do Brasil, a quarta os algodões e madeiras, a quinta a lavoura de mantimentos, a sexta e
última a criação de gados. De todas estas cousas o principal nervo e substância da riqueza da terra
é a lavoura dos açúcares.”40 Brandônio e Alviano recaem na discussão sobre o que seria mais
valioso: se açúcar, se pedraria. Para Alviano, o açúcar não deve merecer tanta consideração
quanto “drogas prestantíssimas, roupas muito finas, ouro, prata, pérolas, diamantes, rubis, e
topázios, almíscar, âmbar, sedas, anil e outras mercadorias”41 que a Índia produz. E Brandônio
não somente diferencia as riquezas a partir de suas fontes, como diferencia os homens que destas
fontes cuidam: “(...) os homens da Índia, quando de lá vêm para o Reino trazem consigo toda
quanta fazenda tinham, porque não há nenhum que tenha lá bens de raiz e se os têm são de pouca
consideração; e como todo o seu cabedal está empregado em cousas manuais embarcam-nas
consigo, e do preço por que as vendem no Reino compram essas rendas e fazem essas casas; mas
os moradores do Brasil toda a sua fazenda têm metida em bens de raiz, não é possível serem
levados para o Reino, e quando algum para lá vai os deixa na própria terra, e desses deveis de
conhecer muitos em Portugal, e assim não lhes é possível deixarem cá tanta fazenda e comprarem
lá outra, contentando-se mais de a terem no Brasil pelo grande rendimento que colhem dela. (...)
e, se os que vivem no Brasil, fossem mais curiosos, de maiores cousas poderiam lançar mão para
se fazerem ricos e Sua Majestade colher mais rendimento dele.42 Brandônio não somente
38
Idem, p. 57.
Alviano chama “de oculto segredo” às propriedades miraculosas das plantas (Idem, p. 57). “(...) porquanto na
memória dos homens não há lembrança que semelhante enfermidade se achasse nunca nestas partes, antes o seu
clima é tanto contra ela, que, vindo muitas pessoas do nosso Portugal no tempo que nele havia febre, iscadas e ainda
doentes do mesmo, em passando a linha equinocial para esta parte do Sul, logo convalescessem, e os ruins ares que
trazia o navio se desfazem e consomem, e, quando fica algum rasto dele, totalmente se extingue e acaba em o navio
tomando terra nesta costa, que não pode ser melhor temperamento da terra”. (Idem, p. 58).
40
Idem, p. 65.
41
Idem, p. 65. Brandônio mergulha nessa discussão, comparando o comércio de açúcar ao das especiarias da Índia:
“BRANDONIO: (...) me esforço a provar que, com se não tirar do Brasil senão somente açúcares, é mais rico e dá
mais rendimento para a fazenda de Sua Majestade de que são todas essas Índias Orientais. (...) ALVIANO: Estou já
bem nessa causa, mas não nessa longa computação que ides fazendo (...) BRANDONIO: Faço-a para provar minha
tenção que o Brasil é mais rico e dá mais proveito à fazenda de Sua Majestade, que toda a Índia (...). Pois o Brasil, e
não todo ele, senão três capitanias, que são a de Pernambuco, a de Tamaracá e a da Paraíba, que ocupam pouco mais
ou menos (...) lavram e tiram os portugueses das entranhas dela, à custa de seu trabalho e indústria, tanto açúcar que
basta para carregar, todos os anos, cento e trinta ou cento e quarenta naus (...)”. (Idem, pp. 66/67)
42
Idem, p. 70.
39
65
diferencia os moradores do Brasil em relação aos do reino, mas também em relação a outras
colônias. Nesse estágio do capitalismo, o capital mercantil avança em direção ao âmbito da
produção. Brandônio já possui uma idéia primeva de que a produção é tão importante quanto a
comercialização. Na verdade, a produção para a comercialização. Por isso que, a o contrário de
Alviano, valoriza mais o açúcar do que qualquer outra espécie de riqueza. E além do mais, se a
pimenta e outras especiarias são importantes, por que não plantá-las no próprio Brasil? Afinal,
“(...) toda a terra deste Brasil é tão caroável de dar pimenta que, de por si sem benefício algum,
nasce grande quantidade dela pelos campos de diferentes castas”.43
Descreve a seguir a disposição espacial dos engenhos e o processo de fabricação do
açúcar. Ao longo de toda a obra são comuns os questionamentos do autor a respeito de algumas
contradições presentes na natureza e na sociedade. E isso não é um traço exclusivo de Brandônio,
mas uma inquietação de todos os autores que escrevem nesta época. A purgação que branqueia o
açúcar é feita pelo barro escuro. 44 A mandioca é nutritiva, mas ao mesmo tempo peçonhenta.45
Essa dubiedade é um traço típico do homem renascentista, tanto de sua própria personalidade,
como da forma como vê as coisas. Suas percepções, embora não tenha consciência disso, estão
sempre divididas em duas partes em permanente conflito entre si.
Brandônio imputa ao Brasil a especificidade de ser “praça do mundo”: “Haveis de saber
que o Brasil é praça do mundo, se não fazemos agravo a algum reino ou cidade em lhe darmos tal
nome; e juntamente academia pública, onde se aprende com muita facilidade toda a polícia, bom
modo de falar, honrados termos de cortesia, saber bem negociar, e outros atributos desta
qualidade”.46 Isso gera um certo desentendimento entre Alviano e Brandônio a respeito da estirpe
das pessoas que povoaram o Brasil. O movimento de diferenciação se inverte. Alviano procura
diferenciar, porque afinal não quer ser igualado à estirpe das pessoas que povoaram a terra: “pois
sabemos que o Brasil se povoou primeiramente por degredados e gente de mau viver, e pelo
conseguinte pouco política; pois bastava carecerem de nobreza para lhes faltar a polícia.”47 Para
43
Idem, p. 70.
“ALVIANO: E como é possível que o barro, que, por razão o devia sujar e fazer preto, o embranqueça, é para mim
um segredo dificultoso de entender”. (Idem, p. 75).
45
“Pois também vos direi mais que também a raiz, antes de se lhe fazer o benefício que tenho dito, é veneno e mata a
quem a come (...) e, contudo a de outra sorte, posto que é tão peçonhenta, preparada como tenho dito, fica sendo
mantimento assás sadio e muito acomodado para a natureza humana, e não se sabe haver nunca feito mal a ninguém
por nenhuma via”. (Idem, p. 95).
46
Idem, p. 77.
47
Idem, p. 77.
44
66
contestá-lo, Brandônio imputa um valor diferente àquele que povoa e que é dado pela a riqueza
que ele produz com seu trabalho na terra. Ao fazer isso, ele está diferenciando o colono do reinol:
“(...) deveis de saber que esses povoadores, que primeiramente vieram a povoar
o Brasil, a poucos lanços, pela largueza da terra deram em ser ricos, e com a
riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e
pobrezas que padeciam no Reino os faziam usar. E os filhos dos tais, já
entronizados com a mesma riqueza e governo da terra despiram a pele velha,
como cobra, usando em tudo de honradíssimos termos, com se ajuntar a isto o
haverem vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgos, os
quais casaram nele, e se liaram em parentesco com os da terra, em forma que se
há feito entre todos uma mistura de sangue assás nobre. E então, como neste
Brasil concorrem de todas as partes diversas condições de gente a comerciar,
(...) tomam dos estrangeiros tudo o que acham bom, de que fazem excelente
conserva para a seu tempo usarem dela (...)em tanto que os filhos de Lisboa e as
das mais partes do Reino vêm a aprender a ele os bons termos, com os quais se
fazem diferentes na polícia, que dantes lhes faltava”.48
O valor que constitui o homem daqui tem uma outra natureza, que não é o nascimento. A
relação entre as riquezas que a terra produz e um novo homem, cujo valor e honra derivam da
simbiose que guardam com aquela, é o principal indício da consciência de diferença presente
neste diálogo.
No quarto diálogo, que trata dos mantimentos, tintas, hortaliças, frutas, lãs e legumes,
uma das formas pelas quais a diferenciação se manifesta é a culinária. Embora a forma de preparo
dos alimentos continuasse a ser tipicamente portuguesa, vários ingredientes foram substituídos
por ingredientes locais. O mais curioso é que os hábitos alimentares se tornam também uma
forma de diferenciar o colono do reinol. Diz Alviano que “(...) quando querem vituperar o Brasil,
a principal coisa que lhe opõem de mau é dizerem que nele se come farinha de pau”.49
A consciência da diferença vai ainda além neste diálogo. Brandônio já percebe algumas
das peculiaridades dos homens desta terra em sua relação com esta em com os outros homens que
cá vivem. Sente até mesmo que tais peculiaridades “já se lhe comunica”: “Por não me
envergonhar a mim e aos demais moradores deste Estado, desviava-me de mover prática sobre
esses mantimentos, os quais não produz a terra, não por culpa sua, senão pela pouca curiosidade
e menos indústria dos que a habitam; porque eu semeei já por duas ou três vezes na capitania de
48
49
Idem, p. 78.
Idem, p. 94.
67
Pernambuco trigo (...) ALVIANO: Pois, porque não tornaste a secundar com a experiência? (...)
BRANDONIO: Porque se me comunica também o mal da negligência dos naturais da terra (...)
porque a gente da terra se contenta somente com aquilo que os passados deixaram em uso, sem
quererem anadir outras novidades de novo, ainda que entendam claramente que se lhes há de
conseguir do uso delas muita utilidade, de maneira que se vem a mostrar nisto serem todos
padrastos do Brasil, com lhes ser ele madre, assás benigna”.50
O Diálogo Quinto trata das criaturas conforme o elemento ao qual se associam: o ar, a
água e terra51. Uma das características do Renascimento que se manifesta aqui é a atribuição de
atitudes e feições humanas aos animais, como é o caso dos bugios.
52
Pássaros têm vozes
humanas ou cantos que se assemelham a choros de crianças; alguns, como as emas, têm certas
propriedades fabulosas de comerem ferro; outros são tão belos que parecem ter sido pintados a
mão; outros, como o gavião,
ferozes a ponto de destroçarem um gato. Borboletas, aqui
consideradas aves (e por que não seriam se pertencem ao reino do ar?), que voam rumo ao Norte,
sem se desviarem um milímetro sequer de suas rotas. Nos domínios do elemento água, muitos
casos prodigiosos também são contados, como dos caramopins, “me mostraram claramente haver
também amor entre estes mudos nadadores”; 53 a estranheza do peixe-boi; a peçonha dos baiacus,
que da mesma forma que a mandioca, são venenosos, mas se bem preparados, de delicioso sabor;
os jacarés, que produzem ovos dos quais, ao tempo, saem lagartinhos; as baleias e o âmbar, e as
diversas histórias que em torno deste se criaram; mariscos estranhos, a quem acodem o mênstruo,
como nas mulheres54. Quanto aos seres que habitam a terra, Brandônio fala tanto dos selvagens
como daqueles que já foram domesticados pelo colono. Refere-se à cobra como um ser místico,
50
Idem, p. 99/100.
Do fogo não diz tratar porque diz ser estéril: “(...) com discorrer por aquelas coisas que os elementos que rodeiam
a terra do Brasil encerram dentro de si, sem tratar do mais alevantado deles, que é o fogo, porque de todo o tenho por
estéril, que a salamandra, que se diz criar-se nele, entendo por fabulosa; porque, quando as houvera, nas fornalhas
dos engenhos de fazer açúcares do Brasil, que sempre ardem em fogo vivo, se deveram de achar”.(Idem, p. 117).
52
“Antes de descerem das árvores, elegem dentre si três ou quatro espias (...) e os demais bugios, havendo-se com
esta prevenção por seguras, descem abaixo a fazer seu furto, levando cada um deles, por uma estranha invenção, a
três e quatro espias, e se não forem sentidos, se recolhem com elas; mas, se acaso vem gente, estando ainda ocupados
no furto, lhes fazem sinal as espias, com darem certos brados, que como são ouvidos dos demais, se recolhem com
presteza no estado em que se acham; e se acaso as espias se descuidaram, e sobreveio gente, sem lhes haverem dado
sinal, estando eles ocupados no furto, fazem o melhor que podem; e o primeiro que fazem é arremeterem às
sentinelas, e aos bocados as espedaçam, com lhes darem por esta via o castigo do seu descuido”(Idem, pp. 141/ 143)
53
Idem, p. 124.
54
“Diferente da que têm todos os mais, porque se acha nele sangue, na forma que o têm os pescados, sem embargo
de estar encerrado na sua concha, coisa de que todo outro semelhante marisco carece, e sobretudo o que mais espanta
é que, nas conjunções das luas, lhe acode o mênstruo, como costuma a vir às mulheres”. (Idem, p. 130).
51
68
ligado à capacidade de regeneração e ressurreição55. O real e o maravilhoso se misturam na
narrativa que Brandônio tece para Alviano. A consciência da diferença se mostra no fato de que
aquele acredita nas coisas fabulosas que conta, embora deixe de acreditar em outras lendas em
que antes, como reinol, acreditava. Isso significa que incorporou certas coisas do imaginário
popular da colônia. No caso de Alviano, a situação se inverte: duvida de certas coisas que
Brandônio narra, em outras acredita com ressalvas, mas tem consciência de que se contar tais
histórias em Portugal passará por tolo. O imaginário português não somente se enriquece com as
descobertas, como se cinde em dois: um antigo e um novo, que desloca os limites entre o possível
e o impossível.
O Diálogo Sexto fala dos costumes dos naturais da terra. Nessa categoria se enquadram
tanto portugueses, como indígenas. Descreve as formas de organização espacial desenvolvidas
pelos primeiros: “(...) têm suas casas de moradas nas vilas e cidades, não fazem residência nelas,
porque no campo é a sua ordinária habitação, onde se ocupam em granjear suas fazendas e fazer
suas lavouras, com a sua boiada e escravos de Guiné e da terra, que para o efeito têm deputados,
porque a maior parte da riqueza dos lavradores desta terra consiste em terem poucos ou muitos
escravos”.56 Quanto à forma de locomoção, diz Brandônio a respeito da impossibilidade de se
usar dos tradicionais palanquins: “(...) porque a rede é excelente para se andar nela por caminhos
e da cadeira seria trabalhoso usar-se, com respeito que sucedem estarem as igrejas desviadas
(...)”.57 Fala ainda de alguns dos costumes que os portugueses aqui desenvolveram: “ALVIANO:
Tudo isso tenho bem enxergado nas pessoas com quem conversei; demais que os acho a todos
muito bem falantes.(...) BRANDONIO: Assim é; porque já vos disse que o Brasil era academia
aonde se aprendia o bom falar, e isto baste por agora acerca dos brancos”.58
55
“E destas semelhantes cobras vi uma tão grande que tenho temor de dizer a sua grandeza, temendo de não ser
crido, e se afirma também delas uma cousa assás estranha, a qual é que, depois de mortas e comidas dos bichos,
tornam a renascer como a Fênix, formando novamente sobre o espinhaço carne e espírito”. (Idem, p. 144)
56
Idem, p. 147.
57
Idem, p. 148.
58
Idem, p. 148. Nas indumentárias, a tradição conspícua permanece. Isso acontece menos porque as classes que para
cá se transferem queiram preservar suas raízes do que em razão do desejo das classes que na colônia enriquecem
serem reconhecidas como nobres. Existe um rompimento no plano material e social, mas uma continuidade no plano
mental: “(...) colmadas de mercadorias de muito preço, como são toda sorte de louçaria, sedas riquíssimas, panos
finíssimos, brocados maravilhosos, que tudo se gasta em grande copia na terra, com deixar grande proveito aos
mercadores que os vendem”. (Idem, p. 150). O mesmo acontece com algumas ervas medicinais: “Pois aqui nem para
isso se aproveitam dele, e menos da virtude de muitas raízes e ervas medicinais e proveitosas, assim para purgas,
com cura de chagas, havendo por melhores as que vêm de Portugal já corruptas, porque custam dinheiro”. (Idem, p.
110).
69
Quanto aos indígenas, a consciência da diferença aqui apresenta um outro lado.
Brandônio sabe que os colonos não são mais iguais aos portugueses, mas também não se
tornaram iguais aos gentios, que ele considera bárbaros: “E por isso se diz geralmente que este
gentio do Brasil carece na sua língua, de três letras principais; as quais são F, L, R - em sinal de
que não tem fé, lei, nem rei; são todos inclinadíssimos a guerras, e entre si as têm sempre
travadas uma nação com a outra; comem carne humana, o que mais fazem por vingança, como
adiante direi, que para sustentação”.59 De uma forma geral, no entanto, os portugueses ainda se
encontram indecisos entre a natureza inocente e bárbara desse povo.60 Enquanto parte da
natureza, o índio simboliza a inocência de uma era dourada que não se vê mais em nenhum lugar
do planeta: “(...) em forma que se não enxerga entre eles, rosto nenhum de ambição, (...)
ALVIANO: Disso se lhe pode ter grandes invejas, por ser coisa de que a nossa Espanha anda
muito desviada.(...) Esse costume me faz grandes invejas, porque se me representa nele a idade
dourada”.61 Enquanto parte de uma nova humanidade, ele é gentio ou herege: “Não a têm eles por
pequena; e depois do desaventurado morto por esta via, o entregam às velhas, a quem pertence o
dividirem-lhe os quartos, e porem-nos a coser e assar, espedaçados para servirem de iguarias aos
circunstantes, repartindo-se por todos, que comem aquela humana carne com grande gosto, mais
por vingança que por matarem com ela a fome. (...) Por vingança se tela entendido que o fazem.
E as tripas e intestinos botam as velhas em uns alguidares e com grandes cantos e bailes andam à
roda deles com umas canas nas mãos, nas quais trazem atados alguns anzóis que lançara sobre as
tripas, fingindo com grandes risos que estão pescando dentro nelas.”62
Na documentação que antecede os Diálogos, a diferença é constatada, mas não faz parte
da consciência como acontece nesta obra. No entanto, há que se caracterizar como a diferença
59
Idem, p. 170.
Diz Laura de Melo e Souza a respeito dessa indecisão entre a inocência e a demonização do indígena: “Lembrou
Sérgio Buarque de Hollanda que, durante o primeiro século da conquista, os espanhóis que estiveram nas Índias
‘tenderam a ver os índios sob o aspecto, ora de nobles salvajes, ora de perros cochinos’. No Brasil, mostraram os
documentos que a segunda vertente levou a melhor, os antigos missionários do Brasil aproximando-se mais de um
Sepúlveda do que de um Las Casas”. (Souza, op. Cit, p. 63).
60
61
Diálogos..., Op. Cit, p. 168.
Op. Cit, p. 169. Explica Laura como o imaginário europeu lida com esses comportamentos aberrantes do gentio:
“Assaltados por ilusões fantásticas, os pobres índios vivem aterrorizados, temendo o escuro e levando consigo um
fogo quando saem à noite. As ilusões não podem ser explicadas pelo raciocínio, pois os índios são destituídos da
verdadeira razão: explicam-se pela incansável perseguição que move o maligno contra aqueles que não conhecem
Deus. Induzidos ao erro pelo Maligno, incapazes de discernimento por serem privados da razão, os indígenas atolamse mais e mais no engano da idolatria: adoram o Diabo através de seus ministros, os pajés, ‘pessoas de má vida, que
se dedicaram a servir o diabo para receber seus vizinhos’”. (Souza, op. Cit., p. 70)
62
70
entre colono e reinol aparece para Brandônio. A diferença é mais uma decorrência de os homens
viverem em espaços geograficamente diferentes do que do fato de viverem em sociedades
diferentes. A diferença entre colono e reinol se deve mais às características da natureza brasílica
que foram incorporadas no adventício do que às relações que se estabeleceram entre os homens
para que a colônia se fizesse. Não que isso não aconteça nessa obra. Mas aqui, a vivência em
sociedade não gera diferenças, mas tão somente as reproduz. Não se sabe exatamente a origem
das diferenças que ali existem e a natureza entra como a principal responsável por isso. As
menções sobre a relação metrópole e colônia e sobre as relações dos colonos entre si são pontuais
e desintegradas. A integração de todos esses planos: entre a natureza e a sociedade colonial, entre
esta e a metrópole e entre os elementos que compõem a sociedade colonial é feita de forma mais
completa em Frei Vicente do Salvador. Portanto, as consciências de diferença de Brandão e de
Frei Vicente pertencem a estágios diferentes. O último já consegue estabelecer algumas relações
de ordem sistêmica e isso é demonstrado pela forma como se relaciona com a história.
Nos Diálogos, são dois os níveis em que a consciência da diferença se manifesta. O
primeiro nível é o explícito. Corresponde às diferenças apontadas por Brandônio ao longo das
discussões com Alviano, o qual vai sendo envolvido pela argumentação daquele de tal forma, que
no decorrer dos diálogos, ele próprio passa a enumerar as diferenças que sente em relação ao
outro enquanto colono, tanto, que usa o termo “reinol” para denotar esse sentimento.63 Ele
mesmo admite, ao final, conhecer um mundo muito mais restrito que Brandônio. É esse nível
explícito que discutimos no item anterior, ao rastrear as diferenças e a consciência delas ao longo
dos Diálogos.
O segundo nível é o implícito. Este nível não tem somente a ver com “o que” se fala, mas
com “o como” se fala, o que remete à formação, forma de pensar, posição política e social do
autor dentro da colônia. Muitas vezes, o autor não tem consciência das diferenças que se
processam neste nível, mas estas aparecem ao longo de seu discurso e de seu estilo. Nesse nível
das diferenças implícitas, a primeira diferença é quanto à concepção de mundo. Alviano ainda é
um “Colombo”.64 Ele não vê a América como um mundo diferente, mas ele a inventa, ele a
63
“O ser ainda reinol e vindo de pouco a esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos antigos nela são
patentes, e por isso não vos maravilheis se vos perguntar algumas já muito notórias”. A respeito dos termos que
designavam o morador da terra diferenciando-o do adventício, vide anexo. (Diálogos... , p.56)
64
“A descoberta da América talvez tenha sido o feito mais espantoso da história dos homens: abria as portas de um
novo tempo, diferente de todos os outros (...). Entretanto, o achado não foi, de imediato, apreendido na sua novidade:
nas ilhas caribenhas, Colombo buscava, inquieto, os traços asiáticos que lhe assegurassem ter chegado à terra do
71
encaixa em seu aparato mental prévio. Da mesma forma, ele não acredita que novas coisas
possam ser descobertas “(...) porque o mundo é tão velho e os homens tão desejosos de
novidades, que tenho para mim que não há nele coisa por descobrir, nem experiência que se haja
de fazer de novo que já não fosse feita”.65
As descobertas de uma nova natureza e de uma nova humanidade recriam e ampliam o
imaginário europeu. O conflito entre natural e sobrenatural, embora presente em Brandônio, é
mais sutil do que em Alviano. A natureza não mais é fonte incontestável de ensinamento moral e
manifestação de milagres.66 Certos fenômenos podem ser questionados e sua resposta não mais
está no âmbito do sagrado, mas no do racional, que neste momento é representado pela
experiência. Esta abre espaço para a especulação, que permite buscar, ou pelo menos sofismar a
respeito das causas das coisas. O diálogo que se trava entre os interlocutores desdobra-se em dois
tempos, tempo aqui entendido enquanto época, diferentes: um corporificado em Alviano, um
homem tipicamente tradicional, e outro em Brandônio, um homem que realmente incorpora o
espírito renascentista. Além disso, a concepção do tempo que aparece em um e noutro não é a
mesmas. Para o primeiro, o tempo parece compacto e as descobertas se efetuam todas de uma
vez. Não há mudança. É o tempo estacionário, típico da mentalidade medieval, improdutivo.
Brandônio, ao contrário, tem uma concepção de tempo ativa, em que se insere a mudança, a
descoberta e o aperfeiçoamento.67
Grande Cã, chamando os índios aborígenes que encontrava, procurando associar o que via às narrativas de viagem de
Montecorvino, Pian del Carpine, Polo (...) Todo um universo imaginário acoplava-se ao fato novo, sendo,
simultaneamente fecundado por ele: os olhos europeus procuravam a confirmação do que já sabiam, relutantes ante o
reconhecimento do outro. Numa época em que ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavam primeiro o que se
ouvira dizer (...).” (Souza, op. Cit., p. 21).
65
Diálogos..., p.12.
66
Uma das formas pelas quais a relação entre natural e sobrenatural passa a se dar nesse contexto é a relação que o
homem trava com a natureza por meio de seu trabalho: “Quando essa vossa opinião tivera lugar, parece que se devia
também conceder que os homens fossem os criadores desses frutos, a que seria tirar a Deus o haver criado tudo, e
pelo mesmo caso blasfêmia; pois sabemos bem que Deus criou esse trigo, linho e legumes pelos campos, e depois a
indústria humana os cultivou para se poder melhor aproveitar deles; porque nem pela Escritura dizer que Noé
plantou vinha, se deve de cuidar que ele fosse o criador dela, senão que tomou o vidonho, donde estava agreste,
criado por Deus nos campos, e o pôs em uso de se cultivar; com o qual levou o fruto mais perfeito. E se o trigo e
mais legumes não nascem de per si nos campos, é porque lhe falta a semente; e quando alguma cai, de onde se
produz, o gado e as aves a trilham e comem; mas, se fôra semeado em parte onde não pudesse ser destruído das
alimárias, ele por si produziria da semente que lhe fosse caindo ao pé, como fazem as demais plantas.” (Op. Cit., p.
13). Aqui, descortina-se claramente um fenômeno que é típico do Renascimento do século XVI. Deus é visto na
natureza e não como uma entidade fora dela. Natural e sobrenatural se fundem, mas o natural, agora não mais
corresponde a uma natureza bela que deve ser somente admirada, mas a uma natureza que também deve ser
transformada pelo homem.
67
O que responde Brandônio a Alviano quando este diz que não há mais coisas a serem descobertas: “Essa opinião é
nova, e como tal engano manifesto; porque quem vos amostrara, há hoje trezentos anos, uma cana de que se faz
72
Embora essa ruptura da forma de pensar esteja presente em toda a obra, ela se torna mais
clara no diálogo segundo, que trata da polêmica da inabitabilidade das zonas tórridas. Brandônio
contesta a teoria clássica e propõe uma nova, baseada em sua própria experiência.68 É essa nova
forma de pensar, clara, aberta e a capacidade em admitir o novo, que abre espaço à
conscientização. Existe uma relação biunívoca entre consciência e diferença. A percepção desta é
o primeiro passo para que se crie uma consciência de que se pertence a uma totalidade diferente.
Por outro lado, a consciência de que essa totalidade existe, torna o homem suscetível a novas
transformações e portanto, gestação de novas diferenças.
A mudança no imaginário é de tal ordem que até mesmo uma mitologia especificamente
colonial começa a aparecer. Durante a conquista da terra, os contatos com os gentios
modificavam antigas crenças e criavam novas. Novos heróis, novos feitos, novas lendas, novos
santos, novos lugares sagrados e relíquias. Tudo conflui para um novo imaginário.69
O segundo traço da consciência implícita de diferenciação é a postura de defesa das
qualidades da terra. Na maior parte da documentação anterior aos Diálogos, a postura que se tem
ante a terra é, pelo contrário, totalmente hostil. Mas Brandônio tem uma concepção de riqueza
diferente da de seus antecessores. Defende a terra por suas potencialidades, embora seus
habitantes não estejam muito preocupados com tal potencial. Não estamos dizendo que a defesa
açúcar, e vos dissera que daquela cana se havia de formar com a indústria humana, um pão de açúcar tão formoso
como hoje o vemos, tê-lo-eis por causa ridiculosa; e por conseguinte, se vos fosse mostrado pedaço de pano velho de
linho, e vos afirmassem que daquele pano se havia de fazer o papel, em que escrevemos, quem duvida que o teríeis
por zombaria? E da mesma maneira, se vos pusessem diante um pouco de salitre, enxofre e carvão, com vos jurarem
que daqueles materiais se havia de compor uma coisa que, chegada ao fogo, derrubasse muros e fortalezas, e matasse
homens de muito longe, não me fica dúvida que, quanto mais vô-lo afirmassem, menos o creríeis; porque haveis de
saber que os primeiros inventores das coisas as acharam toscamente com um princípio mal limado, e depois os que
lhe sucederam as foram apurando, até as porem no estado de perfeição em que hoje as vemos”. (Idem, pp. 12/13)
68
“ALVIANO: Pois em que estava o segredo desses filósofos haverem errado?
BRANDONIO: Em nenhuma outra coisa senão que, como lhes faltava a experiência desta zona, ignoraram os
ventos frescos que nela de ordinário cursam, exceto em pequeno espaço da costa, e que chamamos de Guiné; os quais
são poderosos para resfriarem os ares; de maneira que causam um temperamento tão singular, para a humana
natureza, que tenho por sem dúvida, ser esta zona mais sadia e temperada que as mais; porque o calor, que nela causa
o sol de dia, é temperado com a umidade da noite; e também porque Saturno e Diana, planetas por qualidade frios,
fazem nestas partes mais influência, por se comunicarem nelas por linhas mais retas”. (Idem, p.12/13)
69
Esse processo de formação do imaginário colonial, que já tem seus contornos quase definidos no século XVIII,
encontra aqui suas condições de possibilidade: “Aos poucos, talvez com traumatismos, as evidências da novidade
cresceriam sobre o acervo milenar do imaginário europeu, destruindo sonhos e fantasias, somando-se a outros
elementos desencantadores do mundo: em 1820, Leopardi acusou e lamentou esse movimento. Europeu, como tal se
perdia na incapacidade de reconhecimento do outro: o universo novo que se constituiu em torno da imagem
americana. Haviam-se passado trezentos anos, tempo suficiente para que as projeções mentais dos europeus
quinhentistas se espraiassem pelo continente recém-descoberto, somando-se ao universo imaginário de povos de
outras culturas e, finalmente, fundindo-se a eles. Com o processo colonizador, tecer-se-ia um imaginário colonial
americano, do qual outros europeus, além de Leopardi, não dariam conta”. (Souza, op. Cit., p. 22).
73
da terra não apareça na documentação anterior. Ela aparece sim em uma ou outra documentação,
mas são opiniões isoladas e até mesmo contraditórias: um mesmo autor pode defender e atacar a
terra ao mesmo tempo. Somente nos Diálogos é que se tem uma postura totalmente a seu favor.
Mas o que isso teria a ver com a consciência da diferença entre colonos e reinóis? A
consciência não seria da diferença entre as naturezas? Não, porque ao mesmo tempo em que
defende a terra por suas qualidades, o autor condena os habitantes por sua negligência, que é um
traço de caráter que os diferencia dos reinóis. São negligentes porque a única coisa que fazem é
plantar açúcares. O valor que se imputa à terra está em íntima comunicação com o valor que se
imputa aos seus habitantes. Entretanto, Brandão tem uma visão distorcida de como as coisas
funcionam exatamente por não conseguir visualizar seu funcionamento dentro de uma ordem
sistêmica. Para ele, a negligência dos habitantes e a produção de açúcares são questões de
escolha. O desvio de caráter provém da natural abundância da terra que, por produzir tudo com
facilidade, torna os homens acomodados e menos engenhosos. Em Frei Vicente, não se trata de
uma questão de escolha: é a forma como a colônia está organizada para atender aos interesses
metropolitanos que dita o que será produzido e o tipo de relação que o homem tem com a terra e
com outros homens. Sabe-se a origem da diferença de caráter e por isso dizemos que a
consciência da diferença se torna completa.
Falamos tanto em diferenças, que a impressão que se tem é que Brandônio é um homem
localizado no extremo oposto de Alviano. Não é bem assim. Na verdade, é como se eles se
complementassem, fossem desdobramentos de uma mesma mentalidade em tempos diferentes.
Afinal, ambos são saídos de um mesmo mundo, um mesmo contexto, um mesmo espaço e como
diria Capistrano de Abreu, “às vezes saem dos lábios de um palavras que melhor condiriam nos
do outro”.70 E isso não é válido somente para Alviano, que complementaria Brandônio, mas para
este último também, que reforça algumas concepções tradicionais de Alviano. Afinal, ainda não é
um homem totalmente liberto delas. A opinião de Brandônio a respeito do nome Brasil, dado
“por respeito de um pau chamado desse nome, que dá uma tinta vermelha, estimado por toda a
Europa, e que só desta província se leva para lá”,71 é uma das provas de que continua atrelado a
certas concepções tradicionais. Apesar de ter uma concepção de riqueza tipicamente comercial,
não concorda que o nome da terra deva ter sua origem neste fato. Antes crê que o nome Santa
70
71
Diálogos..., p. 2.
Op. Cit., p. 20.
74
Cruz haveria de dar-lhe maior opulência, uma vez que foi primeiramente colocado por seu
descobridor Pedro Álvares Cabral.72 Da mesma forma, em muitos dos mitos “luso-brasileiros”
que Brandônio narra, ainda persiste o velho. A religião cristã ainda é o que dá coerência aos
elementos do imaginário e o que legitima os novos que vão sendo agregados. É a religião que
organiza essa mentalidade conflituosa do homem renascentista. A razão aparece somente na
forma prática, jamais abstrata. O homem renascentista, como o medievo, é incapaz de abstrair. A
única abstração em que acredita, é Deus, e mesmo assim, este se manifesta por meio de
elementos bastante concretos.
73
A diferença é que além da religião, a experiência também passa
a definir a ordem das coisas. Brandônio descobre que alguns elementos que antes eram fabulosos,
realmente existem. A descoberta do Novo Mundo desloca o limite entre o real e o fabuloso. Na
verdade, ambos os domínios são inflados: descobre-se uma nova natureza e uma nova
humanidade que contêm inúmeros elementos que exponenciam a capacidade imaginativa do
homem deste tempo. Abre-se espaço ao conhecimento concreto, ao mesmo tempo em que esse
conhecimento quando falha, deixa certos vácuos onde a capacidade imaginativa do homem do
Renascimento encontra um campo fértil para criar e recriar.
2.2 Consciência da diferença entre colonos e reinóis na História do Brasil
2.2.1. A Obra e o autor
Pouco se sabe sobre Frei Vicente do Salvador. As fontes que dele tratam são: sua própria
História do Brasil escrita em 1627, o Novo Orbe Seráfico Brasílico74 e o catálogo genealógico de
Jaboatão.75 Este diz que provavelmente nasceu em 29 de janeiro de 1567 na sé da cidade de
Salvador. Seu pai, João Rodrigues Palha, era fidalgo vindo com uma expedição para as terras
brasílicas organizada pelo amigo Luis de Mello Silva.
72
De três naus e duas caravelas que
Idem, p. 19/20
Para os elementos míticos, vide Holanda, op. Cit. e Souza, op. Cit. A manifestação de Deus na natureza é clara na
sensitiva, ou pudicícia, de grande admiração entre os cronistas. Tanto aqui, como em Frei Vicente, ela é citada. “há
mais uma erva ou planta que chamam viva, a qual, em lhe tocando uma pessoa com a mão, se marcheta e torna seca,
e assim persevera por um espaço, até que, pouco a pouco, toma a reverdecer, tanto aborrece ser tocada. E posto que
se trabalhado por se saber a teoria da causa disso, não se há podido até agora alcançar (...)”. (Idem, p. 108).
74
Antonio de Santa Maria Jaboatão. Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Crônica dos frades menores da Província do
Brasil (1761). Rio de Janeiro, Tipografia Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1858.
75
Impresso pelo Instituto Histórico, Revista Trimestral, 52, 1. Também Frei Venâncio Willeke apresenta a biografia
de Frei Vicente do Salvador por meio da história das as gestões individuais da ordem de São Francisco na Bahia .
Frei Venâncio Willeke. Livro dos guardiães do convento de São Francisco na Bahia (1587-1862). Rio de Janeiro,
73
75
partiram, só uma se salvou. E em uma destas estava João Rodrigues Palha. O Naufrágio ocorreu
no dia 11 de novembro de 1554.
Provavelmente foi iniciado nas letras por algum capelão de engenho, continuando os
estudos na cidade de Salvador, onde nosso autor tomou um maior contato com a vida urbana na
colônia. Foi instruído pelos padres da Companhia de Jesus.
Em 1606, após missionar os índios na Paraíba, entrega-se à direção das obras do convento
dos capuchos de Santo Antônio no Rio de Janeiro. “Os signatários da doação, datada de 4 de
Abril, obrigaram-se a desabafar o mato da várzea, a fazer uma rua até o mar, com largura comum
de trinta palmos, e levar á praia uma vala para sangrar a lagoa, de modo a não ser nociva aos
religiosos que habitassem sua vizinhança. (...) a 4 de junho de 1608 frei Leonardo de Jesus pôde
lançar no fundo dos alicerces a primeira pedra dos corredores do atual convento de Santo
Antonio”.76
Parte para Olinda em 1609, por ocasião da vinda do governador D. Francisco de Sousa. Aí
leciona até 1612, quando parte para o convento da Bahia, onde exerce a função de guardião do
convento e depois de custódio (15 de fevereiro de 1614). Torna ao Reino onde se dedica à
publicação de sua Crônica da Custódia do Brasil, em que fala sobre as missões indígenas
confiadas aos capuchinhos e de outros assuntos mais gerais sobre a colônia. Alguns historiadores
afirmam que na História encontra-se parte da Custódia, mas Capistrano de Abreu diz que foram
escritas com objetivos diferentes. Já para Varnhagen, Frei Vicente teria aproveitado parte da
Custódia para escrever a História, trabalho esse que foi todo feito em Portugal. 77
De retorno à Évora, conhece o chantre Manuel Severim de Faria. Muito do estilo do nosso
autor foi influenciado por Severim de Faria, esse erudito com quem Frei Vicente trava
conhecimento em Évora. É inclusive Severim de Faria que incita o frei à história. E para isso põe
à disposição deste sua seleta biblioteca. Frei Vicente do Salvador voltou ainda uma vez ao Brasil,
onde ficou pouco tempo. Ao retornar a Portugal, seu navio foi aprisionado pelos holandeses, de
quem ficou refém até 1627. Após a Reconquista da Bahia, termina de escrever sua História em 27
de dezembro de 1627, dedicando-a a Severim de Faria.
Instituto Pastrim de História Nacional, 1978. Tem-se também um artigo saído na RIHGB: “Frei Vicente do
Salvador: Pai da História do Brasil”, RIHGB, v. 227 (1967), p. 99.
76
Capistrano de Abreu, op. Cit, p. XIII.
77
“Considerar a Crônica da Custodia primeira parte deste Historia, como fez Varnhagen, é esquecer o tamanho das
duas, as datas das respectivas publicações, o intuito bem definido de cada uma”. (Idem, ibidem, p. XIV).
76
Em 1630 é eleito pela terceira vez guardião de sua ordem na Bahia e desta vez,
diferentemente das outras, tomou posse.
Deve ter falecido entre 1636 e 1639.
2.2.2 Natureza da “colonização” em Frei Vicente do Salvador
Conforme já vínhamos discutindo, a consciência da diferença se completa em Frei
Vicente do Salvador porque ele não somente a constata, como sabe conhece sua natureza.
Percebe que a sociedade colonial tem uma organização específica, completamente diferente da
sociedade metropolitana e as diferenças entre colonos e reinóis advêm dessa forma específica de
organização. Isso está claro no trecho em que fala da inversão das esferas pública e privada na
sociedade colonial: “Era grande canonista, homem de bom entendimento e prudência e assim ia
muito rico. Notava as cousas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe
para comer e nada lhe traziam, porque não se achava na praça nem no açougue e, se mandava
pedir as ditas cousas e outras mais às casas particulares, lhas mandavam. Então disse o bispo:
verdadeiramente que nesta terra andam as cousas trocadas, porque toda ela não é republica,
sendo-o cada casa.”
78
Não somente percebe as relações endógenas à sociedade colonial, como
também a relação de complementaridade entre colônia e metrópole. A gênese da colônia reside
no fato de que ela deve atender a interesses específicos da metrópole e por isso jamais poderá se
tornar sua réplica, ou seja, uma Nova Lusitânia.
Daí o fato de as coisas se encontrarem
invertidas.
Ao perceber que a colônia nasce a partir de certos interesses metropolitanos específicos,
em especial o de acumulação de riqueza nos cofres reais, e que isso determina inclusive a forma
como as instâncias se relacionam dentro da colônia, Frei Vicente alcança um nível de consciência
superior ao de Brandão. As diferenças entre colonos e reinóis não advêm somente da forma como
os primeiros se relacionam com a natureza, a qual lhe transfere seus atributos, mas
principalmente da forma como se relacionam entre si para atender aos desígnios da metrópole.
Ao discutir a mudança de nome de Santa Cruz para Brasil, Frei Vicente faz um ataque sarcástico
a tais interesses: “Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha
sobre os homens, receando perder o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se
78
Frei Vicente do Salvador. História do Brasil (1627). 3a edição, revista por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia.
Cia. Melhoramentos de São Paulo, São Paulo/Caieiras/Rio de Janeiro, 1931, p. 17.
77
esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor
abrasada e vermelha com que tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a
todos os sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firme e bem fundada
como sabemos”. 79
A revolta de Frei Vicente reside no fato do interesse mercantil estar sobrepujando o da
Igreja. Como vimos nos trechos precedentes, o litígio entre secular e religioso parece ser uma
característica comum do período. A religião vai sendo subjugada pelo secular em três frentes: no
plano mental, o pensamento escolástico vai cedendo lugar a uma forma pré-moderna de pensar;
no plano político e institucional, os Estados absolutistas em formação subordinam a Igreja como
forma de reafirmar o seu poder; no plano material, o capitalismo mercantil vai criando novos
valores que entram em choque com valores tradicionais. É na colônia que muitos desses
conflitos, que se encontram encobertos na metrópole, chegam a se externar o que torna mais fácil
sua visualização. Até mesmo os padres designados para propagar a fé nestas terras cedem aos
imperativos da ganância:
“E assim iam em barcos por esses rios e os traziam carregados deles [de índios]
a vender por dois cruzados, ou mil reis cada um, que é o preço de um carneiro.
Isto não faziam os que temiam a Deus, senão os que faziam mais conta dos
interesses desta vida que da que haviam de dar a Deus. E principalmente veio
um clérigo a esta capitania, a que vulgarmente chamavam o Padre do Ouro, por
ele se jactar de grande mineiro e por esta arte era mui estimado de Duarte de
Albuquerque Coelho e o mandou ao sertão com trinta homens brancos e
duzentos índios, que não quis ele mais. Nem lhe eram necessários porque, em
chegando a qualquer aldeia do gentio, por grande que fosse, forte e bem
povoada, depenava um frangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas ou
folhas lançava pêra o ar tantos demônios negros vinham do inferno lançando
labaredas pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobre gentios, machos
e fêmeas, tremendo de pés e mãos e se acolhiam aos brancos que o padre levava
consigo, os quais não faziam mais que amarrá-los e levá-los aos barcos e
aqueles idos, outros vindos, sem Duarte de Albuquerque, por mais repreendido
que foi de seu tio e de seu irmão, Jorge de Albuquerque, do reino, querer nunca
atalhar com tão grande tirania, não sei si pelo que interessava nas peças que se
vendiam, si porque o padre mágico o tinha enfeitiçado”.80
79
80
Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 15.
Idem, ibidem, p. 204.
78
Um dos primeiros trechos em que Frei Vicente exprime sua consciência da diferença entre
colonos e reinóis é aquele em que chama pejorativamente os povoadores de caranguejos.81
Quando aqui se instalam, os portugueses parecem perder certas qualidades de conquistadores, tão
aclamadas por Camões nos Lusíadas.82 Esse comodismo é uma característica geral que atinge
também os governantes da terra: “Mas o que fez mal a estes senhores, depois das guerras, foi não
seguirem o descobrimento das minas de ouro e prata, como determinavam. E parece que
herdavam deles esses descuidos seus sucessores”. 83
Algumas das características gerais são muitas vezes ilustradas por Frei Vicente por meio
de casos particulares. Ao descrever Tomé de Sousa, Frei Vicente o faz considerando-o uma
exceção à negligência, um traço da personalidade do colono: “Onde ouvi dizer a homens do seu
tempo (que ainda alcancei alguns) que ele era o primeiro que lançava mão do pilão para os taipais
e ajudava a levar a seus ombros os caibros e madeira pêra as casas, mostrando-se a todos
companheiro afável (parte mui necessária nos que governam novas povoações)”.84 Tomé de
Sousa é uma figura extremamente importante na percepção da diferença.85 Para descrever a
ruptura de caráter que se dá entre reinóis e colonos, o governador utiliza uma metáfora
camoniana, que utilizamos como epígrafe deste capítulo: “Era Thomé de Sousa homem muito
avisado e prudente e muito experimentado, nas guerras da África e da Índia, onde estivera, tinha
mostrado valoroso cavaleiro; mas estava isto cá tão em agro e enfadava-se de labutar com
degradados, vendo que não eram como o pêssego, ‘o pomo que da pátria persa veio, melhor
81
“Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por
negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentamse de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”. (Idem, ibidem, p. 19)
82
“Ouvido tinha os fados que viria
uma gente fortíssima de Espanha
Pelo mar alto, a qual a sujeitaria
Da Índia tudo quanto Dóris banha,
E com novas vitórias venceria
A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.
Altamente lhe dói perder a glória
De que Nisa celebra inda a memória”. (Luís Vaz de Camões. Os Lusíadas. Comentário de Francisco Silveira
Bueno. São Paulo, Saraiva, 1960, canto III, estrofe 57)
83
Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 96. Já diria Anchieta em 1586: “Os estudantes nesta terra, além de serem
poucos também sabem pouco, por falta dos engenhos e não estudarem com cuidado, nem a terá o dá de si, por ser
relaxada, remissa e melancólica, e tudo se leva em festa, cantar e folgar”. (Capistrano de Abreu, op. Cit., p. XI)
84
Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 151.
85
Também outras figuras como Mem de Sá, João Ramalho, Jerônimo de Albuquerque e Duarte Coelho são citadas.
Meio homens, meio deuses, contribuem, juntamente com outros mitos, para a formação de uma “cosmogonia”
colonial.
79
tornado no terreno alheio’”.
86
É também sua a fala da epígrafe inicial em que se mostra o forte
apego à terra e o receio em se sentir deslocado na própria terra natal justamente por já se sentir
diferente. O mesmo sentimento que Tomé de Sousa tem em relação à terra o demonstra D.
Francisco de Sousa, governador do Brasil em 1591: “(...) chegou uma caravela de Lisboa que
trouxe cartas ao governador da morte de sua mulher, com o que ele se resolveu em não tornar ao
reino, mas ficar cá até á morte e assim o publicava. Nem o dizia ociosamente, senão, que, como
era prudente e por isso chamado já de muito tempo D. Francisco de Manhas, entendeu que era
boa esta para cariciar as vontades dos cidadãos e naturais da terra, fazer-se cidadão e natural
com eles”.87
O tema da abundância também é uma constante em Frei Vicente. Mas sofre algumas
nuanças quando comparado a Ambrósio Fernandes Brandão. Em Frei Vicente, a admiração pela
terra parece não ser um sentimento exclusivo do autor, mas de todos que aqui moram:
“Quis um pintar uma cidade mui abastecida e abastada e pintou-a com as portas
cerradas e ferrolhadas, significando que tudo tinha em si, e não era necessário
vir-lhe alguma de fora (...) Mas não faltou quem contrafizesse e pintasse outra
com as portas abertas, e por elas entrando carretas carregadas de mantimentos,
dizendo que aquela era mais abastecida e abastada (...) Conforme a isto digna é
de todos os louvores a terra do Brasil, pois primeiramente pode sustentar-se
com seus portos fechados, sem socorro de outras terras.” 88
Na direção oposta à da abundância, a falta de condições da terra faz com que surja um
outro comportamento específico de seus moradores: o improviso. Foi o que sucedeu ao
governador Martim de Sá no dia do outeiro: “E porque haviam ido na armada mercadores, que
entre outras mercadorias levaram algumas pipas de vinho, mandou-lhes o governador que o
vendessem atavernado e, pedindo eles, que lhes pusesse a canada por um preço excessivo, tirou
ele o capacete da cabeça com cólera e disse que sim, mas que aquele havia de ser o quartilho. E
assim foi e é, ainda hoje, por onde se afilam as medidas, donde vem serem tão grandes que a
maior peroleira não leva mais que cinco quartilhos.”89 Essa mesma característica do improviso
aparece de uma forma mais consistente no trecho a seguir, em que não somente se trata de um
feito individual, mas de uma característica geral da terra: “(...) porque no Brasil tudo se compra
86
Idem, ibidem, p. 156.
Idem, ibidem, p. 348.
88
Idem, ibidem, p. 50.
89
Idem, ibidem, p. 193.
87
80
fiado, e estes nestas cousas querem superabundâncias, a que os mercadores já não acudiam e
era necessário fazê-los ele prover, e aviar uns e outros era infinito”.90 Aqui também se encontra
uma inversão de costumes em correspondência àquela da inversão entre a esferas pública e a
privada. O improviso é algo que passa a se tornar, com o tempo, um rótulo do colono, e sempre
vem associado a um outro traço que o diferencia do reinol: a malícia: “(...) dizendo-lhes mais que
o general era homem do reino, fora de malicias e enganos que com eles usavam os do Brasil, e
estava muito bem informado de sua amizade antiga com os brancos, pelos quais sabia que
quebrara a paz, e que, si os capitães Ataíde e Caldas foram vivos, os mandara el-rei castigar”.91
Uma outra diferença com relação a Brandônio é quanto à postura perante alguns valores
tradicionais, como a honra, por exemplo. Nos Diálogos a “honra” aparece relacionada ao trabalho
na terra e é tão valiosa quanto àquelas obtidas pelos meios tradicionais. Em Frei Vicente, esses
meios tradicionais são esvaziados por completo. Esse conflito entre a cultura metropolitana
tradicional e a cultura emergente na colônia fica claro no atrito entre o português doutor Antônio
de Salema, designado para governar as capitanias do sul, por volta de 1575, e o mameluco
Martim Afonso de Sousa:
“E foi bem recebido no Rio de Janeiro (...) o primeiro e principalíssimo Martim
Afonso de Sousa, Araribóia, (...). Ao qual, como o governador desse cadeira e
ele, em assentando, cavalgasse uma perna sobre a outra segundo o seu costume,
mandou-lhe dizer o governador pelo intérprete que ali tinha que não era aquela
boa cortesia quando falava com um governador, que representava a pessoa de
el-rei. (...) Respondeu o índio de repente, não sem cólera e arrogância, dizendolhe: ‘si tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi
el-rei, não estranharas dar-lhe agora este pequeno descanso; mas, já que me
achas pouco cortesão, eu me vou pêra minha aldeia, onde nós não curamos
destes pontos e não tornarei mais á tua côrte’. Porém, nunca deixou de se achar
com os seus em todas as ocasiões que o ocupou”. 92
A passagem em que Frei Vicente discute a confusão criada em torno do testamento de
Mem de Sá93 toca num ponto importante que é o do conflito entre as instituições políticas e a
Igreja na colônia: “Porém, depois que tiveram experiência no julgar, e expediência nos negócios
que dantes um só não podia ter, não sei eu quem pudesse queixar-se com razão, senão o juízo
90
Idem, ibidem, p. 287.
Idem, ibidem, p. 292.
92
Idem, ibidem, p. 229.
93
Idem, ibidem, p. 208.
91
81
eclesiástico, porque eram nesta materia demasiadamente nímios e, à conta de defenderem a
jurisdição de el-rei, totalmente extinguiam a da Igreja, o que Deus não quer, nem o próprio rei,
antes el-rei D. Sebastião, que Deus tenha no céu, mandou que em todo o seu reino se guardasse o
concílio tridentino, o qual manda aos bispos que na execução de suas sentenças contra clérigos e
leigos não usem facilmente de excomunhões, senão que primeiro prendam e procedam por outras
penas, pelos seus ministros ou por outros”.94
Para finalizar, é importante que coloquemos como Frei Vicente vê a relação que existe
entre as classes dominantes de ambos os lados. Isso porque a diferenciação geral que se dá entre
colono e reinol é reforçada pelos conflitos que se estabelecem entre tais classes dominantes. Na
metrópole, a classe dominante está dividida entre a nobreza tradicional e a burguesia mercantil.
Na colônia, ela é representada pelos senhores de engenho. Há uma dinâmica de diferenciação
entre essas três classes. A nobreza tenta se diferenciar da burguesia, que compra títulos
nobiliárquicos como forma de obtenção de status, mas que por outro lado quer se diferenciar ao
máximo do senhor de engenho, que por sua vez também quer adquirir valores nobiliárquicos.95
Embora as mentalidades convirjam para uma só, a do nobre, este nada representa do ponto de
vista das transformações que vêm acontecendo, inclusive as mentais. Tornou-se uma classe
simplesmente decorativa e os valores que preconizam têm seu tempo contado. O que importa
para nós realmente é a relação entre as duas últimas classes: a burguesia mercantil metropolitana
e os senhores de engenho. Trata-se de uma relação contraditória: ora de convergência, ora de
divergência. A acumulação de capital é um desses interesses convergentes:
“(...) nem depois da morte de el-rei D João Terceiro, que o mandou povoar e
soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher as suas rendas
e direitos. E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais
94
Idem, ibidem, p. 416/417.Veja como o trecho a seguir complementa a percepção da inversão entre os domínios
público e privado. “Uma cousa vi nesta materia com a qual concluirei o capitulo (...), e foi que tendo o dito bispo
declarado por excomungado nominatim a um homem, agravou para a relação, e saiu que era agravado e não se
obedecesse á excomunhão menor, que se incorre por tratar com os tais, e como fugiam por não se encontrar e falar
com ele, mandou-se lançar bando que sob pena de vinte mil cruzados todos lhe falassem, cousa que antes da
excomunhão não faziam senão os que queriam, porque era um homem particular.” (Idem, ibidem, p. 417) . O que ele
viria aqui a dizer com a expressão “homem particular”? Ainda, sobre o mesmo tema, o conflito de interesses entre a
esfera secular e a religiosa, vide páginas 506/507.
95
Como o desejo de atingir determinado “status” se mostra pela Indumentária: “E o governador se foi de São
Vicente á vila de São Paulo, que é mais chegada ás minas, até então os homens e mulheres se vestiam de pano de
algodão tinto e, si havia alguma capa de baeta e manto de sarja, se emprestava aos noivos, e as noivas pêra irem á
porta da Igreja; porém, depois que chegou D. Francisco de Sousa e viram suas galas e de seus criados e criadas,
houve logo tantas librés, tantos periquitos e mantos de soprilhos que já parecia outra cousa.” (Idem, ibidem, p. 382)
82
arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a
Portugal e, si as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhe
houveram de ensinar a dizer como os papagaios, ao quais a primeira cousa que
ensinam é: papagaio real pêra Portugal, porque tudo querem para lá. E isto não
têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros
usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a
desfrutarem e a deixarem destruída.”96
No momento em que alguns passam a divergir dessa mentalidade puramente exploratória
e até mesmo a criar certa afeição em relação à terra, como foi o caso de Tomé de Souza e D.
Francisco de Souza, começa a surgir a diferenciação entre o colono e o reinol e o morador da
terra já começa a ser identificado como colono e não mais como colonizador. A posição do
governador Manuel Telles Barreto já é um indício dessa mudança: “Foi este governador mui
amigo e favorável aos moradores e o que mais esperas lhe concedeu para que os mercadores os
não executassem nas fabricas de suas fazendas e, quando se lhe iam queixar disso, os despedia
asperamente, dizendo que eles vinham destruir a terra, levando dela em três ou quatro anos que
cá estavam quanto podiam e os moradores eram os que a conservavam e acrescentavam com seu
trabalho e haviam conquistado á custa do seu sangue”.
97
Ao contrapor as diferentes posturas
que morador e mercador têm ante a terra, o autor está implicitamente contrapondo colono a reinol
e diferenciando-os. Morador é aquele que não somente reside na terra, ou seja, na colônia, como
a cultiva. O mercador, que é aquele que vem do reino, simplesmente se preocupa em desbastá-la.
O fato de haver uma sociedade já minimamente consolidada, conforme se conclui do trecho
anterior, muda radicalmente as coisas. Em Brandônio, a defesa da terra era uma defesa contra a
exploração indiscriminada de seus recursos. Reclamava-se a falta de moradores porque ninguém
queria vir para ficar permanentemente. Em Frei Vicente, a defesa da terra é a defesa de algo
construído pelo homem contra aqueles que vêm para destruir essa organização. Não se trata mais
somente da defesa dos recursos naturais. O que diferencia um do outro não é como vêem a
96
Idem, ibidem, p.15. “E assim é que, estando as casas dos ricos (ainda que seja á custa alheia, pois muitos devem
quanto têm) providas de todo o necessário, porque têm escravos, pescadores e caçadores que lhes trazem a carne e o
peixe, pipas de vinho e azeite que compram por junto, nas vilas muitas vezes se não acha isto de venda. Pois o que é
fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque, atendo-se uns aos outros, nenhum as faz,
ainda que bebam água suja e se molhem ao passar os rios ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto vem de não
tratarem do que há de ficar, senão do que hão de levar para o reino. (...) Estas são as razões por que alguns com
muita dizem que não permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atráz tocamos de
lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado e ter estabilidade e
firmeza”. (Idem, ibidem, p. 17).
97
Idem, ibidem, p. 329.
83
ligação entre o homem e a terra, e sim, a ligação que o homem guarda com seus semelhantes em
busca de um objetivo comum: dar continuidade ao projeto de construção de uma sociedade nova
nesta terra.
84
Capítulo 3: Novos diálogos
“Esta terra é a nossa empresa”.
(Padre Manoel da Nóbrega)
Neste capítulo retomaremos algumas considerações importantes dos discursos estudados
remetendo-as ao conceito de Antigo Sistema Colonial. Na primeira parte deste capítulo faremos
um estudo mais colado aos documentos, relacionando suas percepções com alguns dos principais
acontecimentos que a formação do Antigo Sistema Colonial envolveu. Na segunda parte,
trataremos desses acontecimentos em nível mais amplo: o das esferas a que pertencem e cujo
movimento compõe a dinâmica do Antigo Sistema Colonial, e como isso se relaciona com a
consciência da diferença presente nos Diálogos. Finalmente, na terceira parte, tentaremos
dialogar com outras questões. O título do capítulo, “Novos Diálogos”, refere-se ao conjunto de
reflexões de que tratamos neste capítulo: às relações travadas entre a “arqueologia”, os Diálogos
e Frei Vicente do Salvador; às relações entre as percepções dos documentos e os principais
acontecimentos do período, que determinam a estrutura e a dinâmica do Antigo Sistema
Colonial1 e, por fim, como o movimento das esferas que o compõem se relaciona com a tomada
de consciência da diferença.
3.1 Diálogos entre Caminha e Frei Vicente do Salvador
Antes de nos fixarmos nas considerações sobre os documentos, tratemos de um fato que
pré-existe o problema: a União das Coroas Ibéricas, que abarca o período estudado, teria
1
“Temos assim os dois elementos essenciais à compreensão do modo de organização e dos mecanismos de
funcionamento do antigo Sistema Colonial: como instrução de expansão da economia mercantil européia, em face
das condições desta nos fins da Idade Média e início da Época Moderna, toda atividade econômica colonial se
orientará segundo os interesses da burguesia comercial da Europa; como resultado do esforço econômico coordenado
pelos novos Estados modernos, as colônias se constituem em instrumento de poder das respectivas metrópoles (...)
Para se completar o quadro, falta, porém um elemento, e essencial (...): a política econômica mercantilista.
Efetivamente, a expansão da economia de mercado para assumir o domínio da vida econômica européia, esbarrava
em uma série de óbices institucionais legados pelo feudalismo; ao mesmo tempo, como vimos, o grau de
desenvolvimento espontâneo da economia mercantil não a tinha capacitado para ultrapassar os limites geográficos
em que até então se vinculava o comércio europeu (...) A política do mercantilismo ataca simultaneamente todas as
frentes, preconizando a abolição das aduanas internas, tributação em escala nacional, unidade de pesos e medidas,
política tarifária protecionista, balança comercial favorável com conseqüente ingresso do bulhão, colônias para
complementar a economia metropolitana”. (Fernando Antônio Novais. “O Brasil nos quadros do Antigo Sistema
Colonial”. Capítulo 2 de Brasil em perspectiva. Prefácio de João Cruz Costa; organização de Carlos Guilherme
Mota. 20a edição. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995, p. 50)
85
influenciado o aparecimento da diferenciação? Em primeiro lugar, devemos ressaltar que o
conceito que temos hoje de nacionalidade, e que implicaria nesta “rivalidade” como possível
motor da diferenciação e de sua conscientização, não existia ainda nesta época, pois surge
somente no século XIX com a finalização do processo de formação dos Estados Modernos, agora
não mais absolutistas, mas liberais. Essa nacionalidade do século XIX implica em uma identidade
abstrata, assim como o Estado, cujo elemento-base é o cidadão. O sentimento da nacionalidade
está essencialmente ligado a esse Estado abstrato e ao território nacional, e não ao chefe de
Estado. Não estamos com isso querendo dizer que no século XVI não havia nacionalidade. Havia,
mas ela não era o princípio unificador do Estado e da nação. O princípio unificador é o rei e a
nacionalidade é tão somente um instrumento para legitimar a unificação e a centralização. A
nacionalidade aparece mais como um produto do próprio Estado centralizado do que como seu
princípio. A identidade entre aqueles que compõe o Estado são feitas por intermédio deste, pelas
relações de soberania, não mais pela suserania e não ainda pela cidadania. Este Estado se resume
à figura divinizada do rei e a identidade está ligada à lealdade que se presta a esse rei. O Estado
Absolutista é um estado de equilíbrio entre as classes. Ora, o monarca concede privilégios a tais
classes, ora os retira e é essa política que mantém as classes sob seu controle. A crise do Estado
Absolutista entre 1777 e 1808 está ligada ao rompimento desse equilíbrio em razão do
fortalecimento da classe burguesa e da Revolução Industrial. O capitalismo mercantil, um dos
elementos que alimentava permanentemente o poder do Estado cedeu lugar ao capitalismo
industrial e o Estado deixou de ser Absolutista para ser burguês. 2
Portanto, se a identidade está ligada ao rei, e não ao povo, a União das Coroas Ibéricas
não influencia a diferenciação entre colonos e reinóis. O Estado passa a ser visto da mesma
forma, porém incorporado em um Habsburgo e não mais em um Avis. Os súditos somente devem
fidelidade a um outro soberano. E isso é visto largamente na documentação estudada. Todos os
cronistas falam em “nossa Espanha”, e em nenhum documento, menciona-se Portugal em
separado da Espanha. O que continua a existir é a rivalidade da Espanha em relação aos demais
Estados em formação: a Holanda, principalmente. A formação dos Estados uns contra os outros é
conseqüência da associação entre centralização de poder, conquista de territórios e acumulação
2
“(...) o Estado centralizado, capaz de mobilizar recursos em escala nacional, tornou-se um pré-requisito à expansão
ultramarina; por outro lado, desencadeados os mecanismos de exploração comercial e colonial do ultramar, fortalecese reversivamente o Estado colonizador. Em outras palavras, a expansão marítima, comercial e colonial, postulando
86
de riquezas. A rivalidade não emana dos súditos, mas do próprio Estado corporificado na figura
do rei.3
Tendo explicado que a consciência da diferença não proviria da União das Coroas
Ibéricas, de onde ela proviria? Isso talvez seja uma pergunta que pertença ao domínio da ciência e
não ao da História. Nosso objeto de estudo é a tomada de consciência da diferenciação e sua
“arqueologia” e não a busca de uma causa única para que essa conscientização aconteça. Não há
uma causa. Há, sim, instâncias que se movem e produzem a consciência da diferença mais como
parte orgânica do movimento do próprio sistema colonial do que como um resultado imediato e
isolado de suas partes. É a própria situação em que o Sistema Colonial se encontra nesse
momento e o grau de maturidade da sociedade colonial que permite que a consciência da
diferença apareça. Ela é algo intrínseco ao Sistema. Ao compararmos a precocidade da tomada de
consciência na América espanhola com a tomada de consciência mais tardia na América
portuguesa – o que faremos na conclusão desse trabalho - poderemos entender melhor que a
tomada de consciência é um fenômeno social que não pode ser estudado isoladamente nem da
sociedade em que se encontra, nem do Sistema que produziu tal sociedade.
Cabe ainda um último adendo antes que comecemos a fazer as relações entre os Diálogos
e sua “arqueologia”. Deixemos bem claro que estamos trabalhando com a consciência da
diferenciação e não da diversidade. Também não estamos trabalhando com uma percepção, mas
com uma conscientização, que está um passo adiante: não significa somente a aquisição de um
conhecimento por meio dos sentidos, do ouvir, do ver, do tocar. No caso simplesmente da
percepção, a diferença pode existir, mas continuar no nível do subconsciente; realidade existente,
porém insignificante para o observador. A consciência vai além porque incorpora esse
conhecimento como um valor desse observador. No caso diversidade/diferença, a primeira indica
nuanças dentro de uma mesma unidade. Já a segunda implica em unidades diferentes. Os
Diálogos, ao diferenciar o português entre colono e reinol, demonstra a consciência da cisão de
uma unidade se partiu. Não há mais tão somente colonizadores. A passagem de uma sociedade
móvel para uma estável implica no aparecimento de uma nova dicotomia: o colono e o reinol.
um certo grau de centralização do poder para tornar-se realizável, constitui-se, por seu turno, em fator essencial do
poder do Estado metropolitano”. (Novais, op. Cit., p. 49).
3
“Na medida em que os velhos reinos medievais se organizam em Estados, de tipo moderno, unificados e
centralizados, vão, uns após outros abrindo caminho no ultramar e participando da exploração colonial: Portugal,
Espanha, Países Baixos, França, Inglaterra, do século XV ao XVII, realizam, sucessivamente a transição para a
forma moderna de Estado, e se lançam à elaboração de seus respectivos impérios coloniais”. (Idem, ibidem, p. 50).
87
Essa dicotomia está fundamentada na habitação de espaços diferentes e tudo o que isso implica,
inclusive os valores que surgem na sociedade colonial nascente.
Respondidas essas questões preliminares, passemos agora ao estudo das considerações
“arqueológicas” a respeito da consciência da diferença presente nos Diálogos. A primeira
percepção que é comum entre a “arqueologia” e os Diálogos é sobre as disputas entre o poder
temporal e o poder religioso na colônia, que se tornam ainda mais contundentes em Frei Vicente
do Salvador. O que há de comum é o enlevo do poder local em relação ao estatal. Isso chega ao
máximo na percepção de Frei Vicente do Salvador de que “toda casa é uma república”.4 A
corrupção, tanto no secular como no religioso, é exacerbada pelas condições de vida na colônia,
na visão dos escritores. As relações familiares, que contaminam todas as outras ordens de
relações que se estabelecem entre os homens, são um forte indício disso: “(...) os moradores deste
Estado, como nas capitanias onde moram são liados uns com outros por parentesco ou amizade,
nunca levam seus preitos tanto ao cabo, que lhes seja necessário concorrerem por fim com a
apelação deles à Relação da Bahia; porque, antes disso, se metem amigos e parentes e por meio,
que os compõem e concertam; de maneira que põem fim às suas causas, e daqui nascem ir poucas
por apelação à Bahia (...)”.5 Entretanto, nos Diálogos não aparece aquele exagero dos primeiros
jesuítas que pareciam apontar isso como algo exclusivo da colônia, tendência da qual a metrópole
escapava incólume.
No que se refere à temática dos potenciais da terra, os Diálogos já não fazem somente
propaganda da fertilidade, como seus antecessores, mas já divulga um modo de vida diferente e
melhor que o da metrópole. O tema da fertilidade vai aos poucos cedendo lugar ao da
produtividade, à medida que a base material começa a definir seus contornos. O objetivo da
propaganda passa mais efetivamente a ser o de arregimentar moradores efetivos para terra,
colonos. A diferenciação entre o colonizador e colono já aparece em Duarte Coelho na forma da
oposição entre moradores/povoadores e salteadores. A conotação é a mesma à que aparece nos
Diálogos, quando Brandão se refere aos primeiros povoadores: “Nesse nosso Brasil os seus
4
“Notava as cousas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer e nada lhe traziam,
porque não se achava na praça nem no açougue e, si mandava pedir as ditas cousas e outras mais às casas
particulares, lhas mandavam. Então disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as cousas trocadas,
porque toda ela não é republica, sendo-o cada casa”. (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1627). 3a edição,
revista por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Cia. Melhoramentos de São Paulo, São Paulo/Caieiras/Rio de
Janeiro, 1931, p. 17)
5
Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). Introdução de Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo Garcia. Rio de
janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1930, p. 35.
88
primeiros povoadores deram em lavrar açúcares (...)”.6 Aqui, no entanto, ele associa diretamente
o povoador àquele que se liga à atividade econômica principal da terra. A percepção de diferença
expressa na forma povoador/morador é um dos eixos da consciência da diferença expressa na
forma colono-reinol. Neste sentido, a primeira é pré-condição da segunda.
A mesma mentalidade mercantil que norteia a plantação de açúcares transforma também o
conceito de riqueza que nos Tratados se ligava não tanto à produção, mas principalmente às
descobertas de metais preciosos. Os primeiros mitos, ligados mais ao povoamento do que à
colonização efetiva, relacionam-se ao Eldorado, à montanha de Esmeraldas. Não que a busca de
minas não exista em Brandão, mas aqui, a riqueza que o homem colhe por meio de seu trabalho é
mais valiosa do que a riqueza brota espontaneamente da terra. Além disso, as minas só não se
desenvolvem porque primeiro, o homem não está disposto a trabalhar nelas, segundo, não se
criam condições para que elas se desenvolvam, ou seja, o trabalho continua a ser o meio para a
produção de riqueza, mesmo no caso da mineração: “porque o primeiro que se devia de fazer,
antes de se bolir nelas, depois de estarem certos que eram de proveitos, houvera de ser
plantarem-se muitos mantimentos ao redor do sítio onde elas estão, e como os houvesse em
abundância, tratar-se da lavoura das minas; mas isto se fez pelo contrário, porque, sem terem
mantimentos, entenderam em tirar o ouro, e como as minas estão muito pelo sertão, os que vão
levam de carreto o mantimento necessário, e como se lhe acaba, tornam-se, e deixam a lavoura,
que tinham começada”.7 A lavoura que se constrói ao redor da mina não é menos importante do
que a mina em si. A exploração já não mais se restringe à extração metais preciosos da terra, mas
é uma exploração que exige a construção de uma base material estável, fixada na lavoura e nos
engenhos de cana e que, portanto, exige uma fixação mínima do homem à terra. O povoamento
para a exploração traz uma nova mentalidade. Uma mentalidade que demonstra o anseio da
fixação na terra que é clara tanto em Duarte Coelho, como em Brandônio, como depois em Frei
Vicente do Salvador. Afinal, não condenam aqueles que vêm à terra tão somente para explorar?
Até mesmo Nóbrega é contagiado por essa forma de pensar: “Não querem bem à terra, pois têm
sua afeição em Portugal, nem trabalham tanto para a favorecer como por se aproveitarem de
qualquer maneira que puderem”.8 Tanto o senhor de engenho, como o donatário, como ainda o
6
Diálogos..., op. Cit., p. 15. Brandônio praticamente desconsidera a etapa da exploração do pau-brasil. Para ele, a
terra tem início quando se começa o povoamento efetivo e a organização da produção açucareira.
7
Idem, p. 39.
8
Manoel da Nóbrega. Cartas do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1988, p. 32.
89
jesuíta percebem os interesses que movem os homens a vir para cá. A percepção disso tanto por
um leigo como por um membro da Igreja, já é um indício de que os projetos de catequização e
colonização não mais são totalmente díspares, mas começam a confluir em alguns pontos: tanto
um como o outro quer acabar com a exploração sobre a terra levada às últimas conseqüências;
ambos querem acabar com a corrupção moral que se fez no ser que colonizou a terra. A
percepção comum de um mesmo fato pelos dois lados, o secular e o religioso, é outra précondição para a tomada de consciência da diferença. A percepção do sentido da exploração vai
aos poucos engendrando uma consciência de que todos são explorados, pertençam eles ao projeto
colonizador ou catequizador. Essa consciência de exploração atingirá contornos mais definidos
no século XVIII. Aqui já se pode falar em uma ideologia contestatória ao sistema colonial e não
mais tão somente às ações do governo.9
Outra das percepções comuns entre a “arqueologia” e os Diálogos é a percepção da
religião enquanto um locus em que se resolvem problemas práticos do cotidiano. Tanto os
Tratados, como a documentação jesuítica, mas principalmente a Inquisitorial tratam do caráter
popular da religião colonial. Nos Diálogos, isso não aparece pela discussão da religião em si,
mas pela descrição de certos elementos materiais e certos atos que a aproximam de uma religião
primitiva; aparece também por meio das propriedades curativas de determinadas ervas, de certas
curas misteriosas feitas por negros e índios, por meio dos feitiços.10 Brandônio fala dos casos de
mandinga, como por exemplo, o caso do negro que enfeitiçou uma negra sua.
No caso dos mitos associados à colonização, as discussões entre Alviano e Brandônio
tornam explícita a diferença entre colono e reinol no campo da mentalidade. Na verdade, aqui
existe mais uma diversidade do que uma diferença porque o imaginário continua ser o mesmo,
9
“(...) o objeto das manifestações de desagrado, freqüentes desde os primeiros séculos de colonização, deslocava-se,
nitidamente, de aspectos particulares de ações de governo para o plano mais geral da organização do Estado. Não se
tratava mais, nesse final do século XVIII, do constante irromper das contradições e tensões a desaguarem nos
violentos conflitos que pontuaram a história do sistema colonial português na América”. (István Jancsó. “A sedução
da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. Cap. 9 de “Condições de Privacidade na
Colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol. Organizado por Laura de Melo e
Souza. In História da Vida Privada no Brasil, Coleção organizada por Fernando Antônio Novais. São Paulo,
Companhia das Letras, 1997, p. 387).
10
“(...) e para isso vos direi o que vi por próprios olhos, que não ousava de afirmar em parte onde me faltassem os
testemunhos, que aqui tenho: um negro de Guiné, meu escravo, chamado Gonçalo, se lhe cerrou de todo as vias
ordinárias que temos para fazer câmara e urinas, e se lhe abriu pelo umbigo um buraco, por onde por muitos dias fez
semelhante exercício, o qual se lhe tornou também a cerrar de per si com se lhe abrir outro igual buraco na ilharga
direita, pelo qual obrou também suas necessidades mais de seis meses, ao cabo dos quais, sem nenhuma cura, nem
medicamento, tornou a sarar, abrindo-se-lhe de novo as vias ordinárias, pelas quais foi purgando, como de antes,
90
adquirindo colorido local. No entanto, o imaginário que é exposto na documentação
“arqueológica”, em especial nos Tratados, adquire a forma de consciência da diferença nos
Diálogos, por meio da cisão que Ambrósio Fernandes Brandão faz entre o colono e o reinol.
Extensas discussões entre Alviano e Brandônio giram em torno da veracidade dos
acontecimentos. O fato de acreditarem em coisas diferentes comprova que primeiro a conquista e
depois a colonização alteraram definitivamente os limites do possível e do impossível para o
homem renascentista. Os mitos presentes nos Diálogos já não se relacionam tanto às heranças
deixadas pela Antigüidade Clássica, mas já adquirem colorações locais. Os primeiros heróis da
colonização, Tomé de Souza, Martim Afonso de Souza, Diogo Álvares Caramuru, João Ramalho
já começam a compor uma mitologia local. O colonizador teve de enfrentar uma natureza
íngreme e uma humanidade selvagem para que conseguisse se fixar na terra. Fixados, o
colonizador convertido em colono preserva na memória estes primeiros heróis que tanto fizeram
pela sociedade que agora vê tomar contornos. Nos mitos narrados pelos Diálogos, diferentemente
dos mitos dos tratadistas em que o paraíso era uma dádiva da natureza, há uma idéia de paraíso
construído, semelhante àquela falada por Sérgio Buarque em Visão do Paraíso.11 As obras
humanas se mesclam às obras de Deus. Da mesma forma como acontece com a discussão em
torno do verossímil, aqui, o novo e o velho também se desdobram na figura de Alviano e
Brandônio. Nos primeiros anos de colonização, a documentação jesuítica trata esta terra como se
fosse um inferno. Se Brandônio representa o novo, a defesa da terra, adotando em sua
argumentação o tom otimista dos Tratados, Alviano representa o velho, ao incorporar o estilo
tosco e desiludido dos primeiros jesuítas: “porque eu a tenho [a terra] pela mais ruim do mundo,
onde seus habitadores passam a vida em contínua moléstia, sem terem quietação, e, sobretudo
faltos de mantimentos regalados que em outras partes costuma haver”.12 Tanto a idéia de paraíso
relacionada à construção de um outro Portugal como os mitos que dela derivam aparecem nos
Diálogos na forma da contraposição entre Brandônio e Alviano, mas as pré-condições para que
essa idéia aí surgisse estão colocadas na documentação anterior. O paraíso, antes de ser
construído, é uma dádiva terrena de Deus. Antes disso, ainda, era extraterreno e é só com as
influências da leitura dos antigos clássicos que ele se torna terreal. Os mitos, antes de serem
com ter perfeita saúde e viver muitos dias”. (Diálogos..., p. 59). Nessa religiosidade popular não se separam práticas
mágicas e doutrina religiosa.
11
Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos do Descobrimento e Colonização do Brasil.
3a edição. São Paulo, cia. Editora nacional, 1977, p. XIX.
91
locais, são as mais puras heranças da Antigüidade Clássica. Essa fluidez entre antigo e novo,
herdado e construído vai sendo mostrado pelo estudo da documentação anterior aos Diálogos.
Em Frei Vicente do Salvador, essas diferenças também aparecem, sem que haja uma
alteração muito profunda do conteúdo dos Diálogos. Os milagres e os santos estão presentes em
quase todas as conquistas: “(...) deram graças a Deus por tão grande benefício, e por os haver
livres de perigo tão grande pela voz e assombro de uma fraca mulher, ainda que depois
declararam os mesmos inimigos que não fôra por isto, senão por haverem visto um combatente
estranho, de notável postura e beleza que, saltando atrevidamente de suas canoas, os enchera de
medo. Donde creram os portugueses que era o bem-aventurado s. Sebastião, a quem haviam
tomado por padroeiro desta guerra”.13 A ética da aventura também colore suas narrativas.14 As
estratégias militares mudam para se adaptar às novas condições da terra.15 O mito do Eldorado,
da Serra de Esmeraldas também estão presentes em Frei Vicente.16 A cobra como símbolo da
ressurreição e da sobrevida.17 Algo, portanto bastante distinto do que se encontra na Europa
Ocidental e que foi engendrado por condições especificamente coloniais. 18
12
Diálogos..., p. 35.
Frei Vicente do Salvador. História do Brasil (1627). 5a edição, São Paulo, Melhoramentos, 1965, p. 183.
14
“Vendo Duarte Coelho que a terra estava quieta e os moradores contentes, determinou-se a ir para Portugal (...) O
intento que o levou devia ser para requerer seus serviços (...) devia estar mexericado com el-rei que lhe tomara a
jurisdição, quando lhe foi beijar a mão lho remoçou e o recebeu com tão pouca graça que, indo-se para casa,
enfermou de nojo e morreu daí a poucos dias. Pelo que, foi indo Afonso de Albuquerque com dó ao paço, e sabendo
el-rei dele por quem o trazia, lhe disse: Pesa-me ser morto Duarte Coelho, porque era mui com cavaleiro. Esta foi a
paga de seus serviços, mas muito diference a que de Deus receberia, que é só o que para dignamente, e ainda ultra
condignum, aos que o servem.” (Salvador, op. Cit., p. 114/115)
15
“E não se espantem falar dessa maneira sendo tão poucos, porque, como as guerras destas partes são nos matos,
sempre vão enfiados por ruim o caminho uns atrás dos outros, e assim ainda que poucos, como não podem ir em
fileira nem ordem de guerra, ocupam muita terra ao comprido. Por esta causa á grita da vanguarda se concertou cada
um em seu lugar e começaram a marchar depressa.” (Idem, ibidem, p.310)
16
Idem, ibidem, p. 27.
17
As cobras “(...) que depois de fartas rebentam e corrupta a carne se gera outra do espinhaço, porque já aconteceu
achar-se alguma presa com um vime que tinha em sai incorporado. O que não podia ser, senão que ficou junto ao
vime quando rebentou e se lhe corrompeu a carne e depois, criando outra de novo, o colheu de dentro e incorporou
em si. Porém não se há de dizer que morrem (como os índios cuidam), senão que com a carne corrupta ficam ainda
vivas, e assim não ressuscitam mas saram, e algumas se viram já de sessenta palmos de comprido. (...) Também me
contou uma mulher de credito na mesma capitania de Pernambuco que, estando parida, lhe viera algumas noites uma
cobra mamar em os peitos, o que fazia com tanta brandura que ela cuidava ser a criança (...)”. (Idem, ibidem, pp.
43/44). A cobra sempre aparece ligada à morte e ao nascimento ao mesmo tempo. (Holanda, op. Cit. 74)
18
“Descoberto, o Brasil ocupará no imaginário europeu posição análoga à ocupada anteriormente por terras
longínquas e misteriosas que, uma vez conhecidas e devassadas, se desencantaram. Como escravismo, este acervo
imaginário seria refundido e reestruturado, mantendo, entretanto, profundas raízes européias. Prolongamento
modificado do imaginário europeu, o Brasil passava também a ser prolongamento da Metrópole, conforme avançava
o processo colonizatório. Tudo que lá existe, existe aqui, mas de forma específica, colonial. Mais uma vez, é o
argutíssimo frei Vicente quem percebe a semelhança na diferença: ‘de Portugal vem farinha de trigo? A da terra
basta. Vinho? De açúcar se faz muito suave, e, para quem o quer rijo, com o deixar ferver dois dias embebeda como
de uvas. Azeite? Faz-se de cocos de palmeiras. Pano: faz-se de algodão com menos trabalho do que lá se faz de linho
13
92
A “arqueologia” da consciência da diferença presente nos Diálogos é uma “arqueologia”
que se compõe de diversas partes, diversas percepções diferentes da sociedade colonial, que
dependem da instância da qual provém o observador dos acontecimentos. Dessa forma, a
“arqueologia” da consciência da diferença se fragmenta em uma série de peças que se
contrapõem, se contradizem e se complementam. A “arqueologia” da consciência da diferença
vai sendo montada não somente pela confluência e harmonia de toda a documentação anterior aos
Diálogos, mas pelo próprio jogo de uma contra a outra. E tudo isso disperso no tempo e sendo
modificado por ele e pela própria sociedade em que se inserem: “A presença de um representante
da Inquisição em Pernambuco veio revelar a vida dos residentes em Pernambuco, Itamaracá e
Paraíba de forma crua, de maneira totalmente diferente da que era vista pelos primeiros
cronistas que aqui aportaram. Sob ameaça de penas espirituais foram reveladas (...) importantes
informações sobre as primeiras famílias, as festas de igreja, o ensino das primeiras letras, os
primeiros advogados, médicos e boticários, as manifestações de música e teatro, a prostituição, as
normas morais e religiosas, a guerra pela posse da terra, a guerra contra os corsários (...)”.19 No
conjunto, cronistas, tratadistas, inquisidores, jesuítas, oficiais da Coroa, recompõem as diferentes
instâncias da sociedade colonial. O que os cronistas não viram, em razão dos seus interesses em
relação à terra, a visitação do Santo Ofício o mostrou por meio de depoimentos. “A Inquisição
escancarou sobre nossa vida íntima da era colonial seu olho enorme, indagador”.20 Há ainda
coisas que o Santo Ofício não conseguiu ver. Então entram em cena os oficiais e os jesuítas e os
demais observadores da terra. Os diversos tipos de documentação se complementam na
percepção da sociedade colonial e no conjunto compõem as pré-condições para a consciência da
diferença dos Diálogos.
e de lã... Amêndoas? Também se excusam com a castanha de caju, et sic ceteris’”.(Laura de Melo e Souza. O Diabo
e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colônia. 4a Reimpressão. São Paulo, Cia. Das
Letras, 1994, p. 31) Temos aqui presentes vários elementos da temática que estamos tratando. Em primeiro lugar, a
crença quase ingênua de que o prolongamento do espaço europeu produziria uma sociedade idêntica, uma Nova
Lusitânia. Laura de Melo e Souza começa por analisar esse prolongamento no imaginário, mas percebe que na
verdade essa tentativa em prolongar produz o seu contrário, o rompimento com ele, embora persistam alguns traços.
Em segundo lugar, a sensibilidade de um Frei Vicente do Salvador em perceber essa descontinuidade. Da
descontinuidade do imaginário, passamos imediatamente para uma descontinuidade da esfera material, que, embora
pertencendo a domínios diferentes, são perpassadas por algo em comum: o modo de vida colonial, que ao mesmo
tempo as engloba e as une em um todo diferente.
19
Leonardo Dantas. Nota à Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de
Mendonça – Confissões de Pernambuco – 1591-1592. J. A. Gonsalves de Melo (editor). Recife, Universidade
Federal de Pernambuco, 1970. Nota do Editor Leonardo Dantas.
20
Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28a
ed. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. LXVI.
93
Todas essas pré-condições expressas na documentação anterior aos Diálogos das
grandezas do Brasil, e que caminham no sentido de uma conscientização da diferença entre
colonos e reinóis, também estão presentes de forma ainda mais acabada na História do Brasil de
Frei Vicente do Salvador. Em Brandão, a consciência da diferença advém do contato entre o
homem e a natureza da terra, que por suas características especiais, principalmente a abundância,
produz um homem diferente. Os sintomas sociais dessa diferença, embora presentes, não
possuem uma lógica social que lhes confira coesão. Já em Frei Vicente, a natureza da diferença já
possui uma explicação social. Frei Vicente percebe que aqui se monta uma sociedade diferente
não em decorrência do fato de a natureza ser diferente, mas porque isso propicia a montagem de
uma economia complementar à da metrópole, e é na exploração dessa economia que reside a
diferença. A economia colonial é voltada para o mercado externo, primeiro, com a extração do
pau-brasil, depois, com a produção de açúcar com base na mão-de-obra escrava. Esse “sentido da
colonização”21 já está expresso de forma um pouco mais simples em Frei Vicente do Salvador:
“E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estejam
e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, si as fazendas e bens que possuem
souberam falar, também lhe houveram de ensinar a dizer como os papagaios, ao quais a
primeira cousa que ensinam é: papagaio real pêra Portugal, porque tudo querem para lá. E isto
não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra,
não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída”.22 É
esse quadro histórico que produz uma nova sociedade e não simplesmente as características
diferentes da terra ou a relação que o homem trava com esta. A base material que se constitui
visa a complementar a economia da metrópole, oferecendo matérias-primas baratas para a
manufatura e outros produtos de alto valor lucrativo no mercado europeu, como o açúcar, por
exemplo. A domínio das rotas de comércio com o Oriente pelos holandeses torna a colonização
na América a principal via de acumulação de capital para o Estado português.23 Ao dizer que os
homens da colônia são negligentes porque poderiam produzir tudo o que quisessem, mas não
produzem porque preferem o ócio ao trabalho, Brandônio não percebe a verdadeira natureza da
sociedade colonial, o que Frei Vicente percebe, conforme atesta o trecho supracitado. A própria
Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo. 22a edição. São Paulo, ed. Brasiliense, 1992.
Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 15.
23
Charles Boxer. Os holandeses no Brasil-1624-1654. Trad. Olivário M. de Oliveira Pinto. São Paulo, Nacional,
1961.
21
22
94
intenção em se fazer uma História e não mais um mero tratado ou uma crônica, é sintoma disso.
A História se diferencia dos outros documentos por pretender relatar um modo de vida dinâmico
composto pela relação entre homem e natureza, dos homens entre si no espaço da colônia e, num
âmbito mais amplo, entre metrópole e colônia.
Brandônio dedica páginas para discursar a respeito disso. Não entende porque não se
produz pimenta no Brasil uma vez que isso eliminaria a navegação para as Índias “que tanto tem
custado a Portugal”. Para ele, isso é “um mal velho do nosso Portugal que não leva remédio”.24
No entanto, o que Brandônio não percebe é que essa característica estrutural não é somente um
defeito de caráter como aparece na sua formulação. Ela adquire força ainda maior nesse momento
da história do capitalismo ocidental. Em primeiro lugar, a navegação para as Índias, mesmo que
custosa, tem um outro significado dentro desse contexto, que é o fortalecimento do poder do
Estado Absolutista. Os Estados Nacionais estão se formando uns contra os outros e o período que
abarca o Antigo Sistema Colonial é um período de conflitos entre os Estados em formação pela
conquista da hegemonia ultramarina. Portanto, do ponto de vista político, não tem qualquer
sentido abandonar a navegação para as Índias. Em segundo lugar, olhando agora pelo ponto de
vista econômico, a colonização se caracteriza pela produção de um único produto, altamente
lucrativo, comercializado no mercado externo. É o mercado, portanto, que dita os produtos que
serão produzidos e seus preços. Nos séculos XIV e XV, o açúcar torna-se um produto altamente
valioso dentro do mercado europeu, embora sua entrada na Europa date de 995 pelos portos de
Veneza. Portugal faz uma primeira experiência nas Ilhas da Madeira em 1450, mas é em 1485,
durante o governo de D. Manuel, que uma série de medidas são tomadas para garantir reservas de
mercado na Europa e a boa qualidade do açúcar madeirense, o que mostra a forte ligação entre o
24
Veja que aí temos na fala de Brandônio, ao mesmo tempo, capitalismo comercial, atuação de Estados nacionais,
percepção de diferenças: “(...) à imitação de el-rei D. Manuel a poderia mandar vender por preço que ficassem os
Holandeses perdendo muito dinheiro, se vendessem a sua que vão buscar à Índia. A esse respeito e por esta maneira,
como a essas gentes se lhe não seguisse proveito de seu comércio, não tinham para que continuar com semelhante
navegação, e se acabaria sem despesa nem sangue porfia, que tanto tem custado a Portugal, e Sua Majestade,
mandando vender a sua pimenta mais barato, perdia pouco, se não ganhasse dinheiro, pelo menos custa que lhe havia
de fazer em a levar para o reino, e o menos preço por que a havia de comprar no Brasil. (...) Já o pratiquei com um
ministro que tinha grande lugar em sua fazenda, e com lhe parecer a traça maravilhosa, me respondeu que estava já
tão introduzido em Portugal o modo da navegação da pimenta, que custaria muito trabalho o querer-se tratar agora de
remover noutro modo; e assim como entendi ser aquilo mal velho no nosso Portugal que não leva remédio, desisti da
minha prática, e da mesma maneira o farei agora, deixando a cargo aos que lhe toca remediar semelhante
necessidade, se o quiserem fazer.”(Diálogos..., p. 73)
95
Estado e os empreendimentos colonialistas. 25 Ao pregar a diversificação da colônia, Brandônio
não vê esses fins específicos para os quais fôra erigida.26 Tanto esse “mal velho do nosso
Portugal”, como a “negligência dos habitantes” têm sua natureza aí. Ao imputar dois vícios,
respectivamente a reinóis e colonos, ele tem consciência da diferença, mas não percebe que tais
“vícios” têm uma mesma raiz: o sistema colonial.
“não há homem em todo este Estado que procure nem se disponha a plantar
árvores frutíferas, nem fazer as benfeitorias acerca das plantas, que se fazem em
Portugal, e por conseguinte se não dispõem a fazerem criações de gados e
outras; e se algum o faz, é em muito pequena quantidade, e tão pouca que a
gasta toda consigo mesmo e com a sua família. E daqui nasce haver carestia e
falta destas coisas, e o não vermos no Brasil quintas, pomares e jardins, tanques
de água, grandes edifícios, como na nossa Espanha, não porque a terra deixe de
ser disposta pára estas coisas; donde concluo que a falta é de seus moradores,
que não querem usar delas”.27
Em Frei Vicente, essa negligência dos moradores existe, mas a falta e carestia das coisas
não decorrem desse fato, e sim, do fato de que os portugueses, tanto os daqui, como os de
Portugal, tudo querem para lá.28 A diferença provém não da natureza, mas da própria função
social desta e dos homens que aqui residem. Esse passo “além” pode ser percebido na forma
como ele e Brandônio organizam a sociedade colonial. Brandônio a divide em tipos humanos,29
que são quase que um prolongamento imediato da relação que o homem trava com a natureza nos
trópicos. Já Frei Vicente faz uma organização um pouco mais complexa. Trata a sociedade como
se estivesse dividida em instâncias com uma dada função social. Na colônia, as esferas do público
25
“D. Manuel (...) ordenara, em 1485, que todo o mestre de açúcar deveria ser examinado e aprovado por três
homens bons, ao mesmo tempo que estipulava a obrigatoriedade de uma vistoria qualitativa ao açúcar, após a sua
laboração, por oficiais competentes: os alealdadores”. (Fonte: Site do Centro de Estudos de História do Atlântico
(CEHA): http://www.ceha-madeira.net/sugar/introd.htm).
26
“(...) quando a gente que houver no Brasil for mais daquela que de presente se há mister para o grangeamento dos
engenhos de fazer açúcares, lavoura e mercearia, porque então os que ficarem sem ocupação de força hão de buscar
alguma de novo de que lancem mão, e por esta maneira se farão uns pescadores, outros pastores, outros hortelões e
outros tecelões, e exercitarão os demais ofícios, dos que hoje não há nesta terra na quantidade que era necessária
houvesse; e como isto assim suceder, logo não haveria falta de nada, e a terra abundaria de tudo o que lhe era
necessário, enxergando-se ao vivo a sua grande fertilidade e abundância, com não ter necessidade de coisa nenhuma,
das que se trazem de Portugal, e quando a houvesse, fôra de poucas”. (Diálogos ..., p. 146)
27
Diálogos..., op. Cit., p. 18.
28
Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 15.
29
A divisão que Brandônio faz está no capítulo segundo, à página 66 deste trabalho.
96
e privado não somente estão imbricadas, como têm suas funções trocadas.30 A percepção de
Brandônio em relação à sociedade colonial aparece assim como uma percepção intermediária
entre um aglomerado humano, cujas características são dadas pela natureza, tal qual aparece nos
Tratados, e uma sociedade colonial já praticamente formada como aparece em Frei Vicente do
Salvador.
É em torno do açúcar que se organiza a sociedade colonial. Os detentores dos meios de
produção, os senhores de engenho, compõem a aristocracia da terra. A sociedade é fortemente
estratificada e tanto os estratos inferiores, como os meios de reprodução do poder, como os
espaços desta sociedade são controlados por essa aristocracia. É em razão disto que as esferas
pública e privada se apresentam invertidas. Na colônia, os interesses pessoais perpassam as
relações sociais em todos os sentidos.
Tanto os Diálogos como a História do Brasil discutem longamente as capitanias
hereditárias. A colônia precisava se organizar de uma forma que efetivasse o projeto da
colonização. Embora o Estado seja o verdadeiro empreendedor de tudo isso, muitas vezes é do
âmbito privado que saem os recursos para levar a cabo essa empresa. Já não diria Gabriel Soares
de Sousa que muitos donatários tiveram seu cabedal totalmente esvaído com tais
empreendimentos? Os poucos que conseguem se fixar na terra vêem sua esfera de influência
aumentada por sua capacidade de organização em uma terra tão inóspita e extensa. Esse é o caso
de Tomé de Sousa, de Duarte Coelho, de João Ramalho.Tanto os conflitos entre Estado e poder
local, como entre a Igreja e o Estado, aparecem também na obra de Frei Vicente do Salvador.
Enfim, aqui temos montada a sociedade colonial segundo as visões de Brandônio, ainda
de forma primeva, e de Frei Vicente que possui uma visão mais coesa dessa sociedade. Por isso
utilizamos a sua História para fechar o recorte cronológico. Talvez sejamos obrigados a discordar
do grande Mestre Capistrano de Abreu, que diz que sua obra seriam mais histórias do que
História.31 Realmente, há momentos em que sua história se confunde com o mito. 32 No entanto,
30
Fernando Antônio Novais, “Condições de Privacidade na Colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na
América portuguesa. Vol. Organizado por Laura de Melo e Souza. In História da Vida Privada no Brasil, Coleção
organizada por Fernando Antônio Novais. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. A respeito do trecho de Frei
Vicente que expressa essa inversão e imbricamento entre as esferas, vide nota 4 deste mesmo capítulo.
31
“Seu livro é afinal uma coleção de documentos, antes reduzidos que redigidos, mais histórias do Brasil do que
História do Brasil”. (Capistrano de Abreu. Introdução a Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. XXI)
32
“E assim não havia branco, por pobre que fosse, nesta capitania, que não tivesse vinte ou trinta negros destes, de
que se serviam como cativos, e os ricos tinham aldeias inteiras. (...) Durou esta era, que ainda hoje os moradores
antigos chamam de dourada, enquanto viveu o capitão velho (...)”. (Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 128).
Ainda, sobre a idade de ouro: “(...) só sei que ouvi dizer a um dali a muitos anos que aquele fôra o tempo dourado
97
essa história nos dá o mapa social da colônia e de sua relação com a metrópole. E é isso que nos
permite visualizar o colono como “ente” distinto do reinol. São suas percepções da colônia como
um locus explorado pela metrópole que explicam as tantas diferenças enumeradas nos Diálogos.
Frei Vicente é um natural da terra, que ao compor sua história, toma consciência de sua própria
diferença em relação ao reinol. E essa consciência chega ao paroxismo do amor pela terra. Nas
palavras de Capistrano:
“Para tentar a História habilitava-o o amor á terra natal, a certeza no seu
futuro e tais sentimentos eram raros naquele tempo, como se pode ver também
nos Diálogos das Grandezas. Seu amor à terra natal estendia-se a tudo nela
existente. Conta a história de índios sem revelar antipatia ou menosprezo. Um
negro do convento baiano acha nele seu Homero. No principio Bastião pendia
para os holandeses quando foi tomada a Bahia; mas quiseram tirar-lhe um facão
e ele tratou de escondê-lo no peito de um dos invasores e ganhou gosto pelo
sangue flamengo. Nos encontros avançava o mais possível, pretextando o
pequeno alcance de sua flecha e bradava na sua meia língua que o bom do
cronista conservou: sipanta, sipanta, incitando os companheiros a recorrerem á
espada pois a arma de fogo mentia.”33.
Protegidos devidamente contra os assomos de patriotismo e os riscos do anacronismo,
consideramos que Frei Vicente sente-se aqui tão português quanto qualquer outro que nascera em
Portugal. O grupo ao qual está se opondo não é o dos portugueses e sim, o dos holandeses. No
entanto, a sua narrativa engloba a diferenciação entre colono e reinol, subjacente às guerras
contra os “estrangeiros”.
A esta altura já é possível comentar a nossa epígrafe: “Esta terra é nossa empresa”? Essa
frase de Nóbrega parece resumir nos múltiplos significados de empresa todo o Antigo Sistema
Colonial. O sentido de Nóbrega está relacionado exatamente ao trabalho que se empreende na
terra: uma ação árdua que enobrece o homem. Em segundo lugar, o sentido de empresa é o
sentido de negócio. E o que é este senão a negação do ócio, uma ruptura radical com os valores
da nobreza metropolitana? A terra é o negócio de muitos e serve para enriquecer e produzir
lucros que serão acumulados na metrópole de forma primitiva. O sentido de empresa adquire aqui
sua conotação burguesa. A burguesia do capitalismo mercantil, claro. Também o Estado se lança
a esta empresa, fundindo o conteúdo ideológico, a ideologia da catequização, ao seu conteúdo
pêra esta Bahia pelo muito dinheiro que então nela corria e muitos índios que desceram do sertão, e bem dizia
dourado, e não de outro, porque para este outras cousas se requeriam.”(Idem, ibidem, p. 223).
98
econômico, a política mercantilista. Portanto, o fato de a terra ser uma empresa, reúne uma
conotação religiosa, uma econômica e uma política, ou seja, esta terra é a empresa que produz
fiéis, riqueza e poder para sua metrópole.
3.2 “Arqueologia” da consciência da diferença e o Antigo Colonial
Retomaremos aqui alguns pontos importantes para a gestação da consciência da diferença
que foram tratados no primeiro capítulo remetendo-os ao conceito de Antigo Sistema Colonial.
Tentaremos reconstituir essa consciência de diferença, relacionando-a com as esferas sociais que
compõem o sistema colonial, tanto em suas dimensões metropolitanas como coloniais, bem como
as relações de continuidade e ruptura que essas esferas estabelecem entre si e que compõe a
própria dinâmica do Antigo Sistema. O intento é o de perceber o processo de diferenciação e a
tomada de sua consciência em dimensões mais amplas que as mostradas pelos documentos. Isso
também é necessário porque além de uma diferenciação geral entre colono e reinol, existem
diferenciações mais restritas, que ocorrem dentro de uma mesma esfera, como por exemplo, entre
os jesuítas daqui e os de lá34, os oficiais da Coroa que atuam na colônia e os que atuam na
metrópole, a Inquisição Colonial e sua equivalente metropolitana. Isso acontece porque a
adaptação de certas instituições e funções na colônia gera uma tensão permanente que acaba por
romper com o padrão metropolitano, gerando uma diferenciação, que é explicada pela função da
colônia para aquela instância do Antigo Sistema Colonial.
Dessa forma, a consciência da diferença pode assumir direções diferentes, dependendo da
classe a que pertence o observador, da instância na qual se insere e do significado de tal classe
para o Antigo Sistema Colonial. É por isso que nos jesuítas a direção da percepção da diferença é
inversa à dos Tratados. A visão que o observador tem da sociedade colonial e de seus aspectos
depende do projeto ao qual pertence: catequização ou colonização. Por exemplo, o índio, na visão
do jesuíta, é gentio, inocente porque o interesse de seu projeto reside na construção de uma
33
Capistrano de Abreu, op. Cit., pp. XIX/XX.
“(...) não me sei determinar quanto ao espiritual se parece na observância, com concerto e ordem com qualquer dos
bem ordenados de Portugal: e estes padres velhos são a mesma edificação e desprezo do mundo, e esta fruta
colheram cá por estes matos sem prática nem conferências, e são um espelho de toda virtude e muito temos os que de
lá viemos para andar, se havemos de chegar a tanta perfeição da sólida e verdadeira virtude da Companhia”. (Fernão
Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583). Introdução e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e
Rodolfo Garcia. 3a edição. São Paulo, Cia. Ed. Nacional; Brasília, Instituto nacional do Livro, 1978, p. 211). Ainda
34
99
sociedade ideal, sem a mácula do pecado. Nesse caso, é o português quem aparece como o imoral
e atrapalha o projeto da catequização. Para o cronista, cujo interesse reside no desenvolvimento
da terra para o bem do Reino, o índio é o imoral e é este que aparece como óbice ao projeto
colonizador: “causa de escândalo e prejuízo às consciências dos moradores da terra. Porque como
estes índios cobiçam muito algumas coisas que vão deste Reino, convém a saber, camisas,
pelotes, ferramentas, e outras peças semelhantes vendiam-se a troco delas uns aos outros aos
portugueses”.35
Portanto, a ocupação da terra envolve dois projetos utópicos: um que se relaciona com o
objetivo de catequizar, que encontra sua realização máxima nas missões jesuíticas, e o outro que
tem como meta a colonização, que no plano ideal corresponde ao desejo de reprodução de
Portugal, na forma de uma Nova Lusitânia. Construídos no plano ideal, na prática tanto um
quanto outro se frustra e o que acontece é que um projeto se torna complementar ao outro e
precisa dele para dar continuidade ao seu próprio projeto. Muitos dos jesuítas defendiam o uso da
força militar na correção do ânimo gentio, embora se opusessem à utilização destes como força
de trabalho. Os colonizadores, por outro lado, precisam do trabalho catequético porque pela
conversão do gentio à doutrina católica, põe-se fim às guerras que destruíram muitas das
primeiras tentativas de colonização.36 Para cada projeto, existe um “Brasil” diferente, tanto no
sentido de idéia, como no sentido de lugar geográfico.37 A colônia é o locus de disputa entre esses
diferentes projetos e a imposição de um sobre o outro. A nação aparece quando esses projetos não
mais pretendem dominar os outros, mas conciliar-se com eles, caminhando no mesmo sentido
que os demais na construção de um só projeto para o Brasil.38
não há uma diferenciação, mas somente uma separação de um mesmo grupo segundo o espaço que atuam. As
virtudes são as mesmas.
35
Cardim, op. Cit., p. 122. Há um trecho em Gabriel Soares de Sousa em que isso fica ainda mais evidente: “(...)
também são [estes caetés] mui cruéis uns com os outros para se venderem, o pai aos filhos, os irmãos e parentes uns
aos outros”. (Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.4a edição. São Paulo, Ed. Nacional,
1971, p. 63).
36
Realmente, as guerras contra os índios adiaram em muito o projeto colonizador. O povoamento é instável e há
uma imensa dificuldade em se recompor: “E quando o governador se recolheu, se despovoou este princípio de
povoação, sem se contar mais a bulir nisto”. (Gabriel Soares de Sousa, op. Cit., p. 68)
37
Sobre o significado de “Brasil”, tanto enquanto idéia, quanto lugar; tanto projeto, quanto realidade. As duas coisas
convivem ao longo de toda sua história: “Desde os primórdios de sua existência, o Brasil tem sido tanto uma idéia
quanto um lugar (...). O Brasil, enquanto idéia, foi freqüentemente mais um projeto do que uma realidade, às vezes
geográfica, às vezes nacional ou até social”. (Stuart B. Schwartz, “’Gente da terra braziliense da nasção’. Pensando o
Brasil: a construção de um povo”. Cap. 4 de MOTA, Carlos Guilherme. A viagem incompleta- a experiência
brasileira (1500-2000). Vol II Formação-Histórias. São Paulo, Ed. Senac, 2000, p. 106)
38
“De alguma forma, sempre houve uma variedade de ‘Brasis’ que se disputavam, projetos diferentes para o que o
Brasil deveria ser ou representar. Essas concepções diferentes dependiam, em especial, das divisões sociais, das
100
Também as demais Igrejas nascidas da Reforma protestante carregam consigo um projeto
utópico quando para cá vêm: o da reconstrução de um mundo novo baseado na fé reformada.39
No entanto, ao contrário dos portugueses em que os projetos religioso e material, de catequização
e de colonização, possuem limites próprios, o projeto de fundação da França Antártica é um
projeto único, devido à ética calvinista, que funde conquista material e espiritual.40 A conquista
material não é destoante do projeto espiritual. Este não se caracteriza pela ampliação do número
de conversos, senão pela conquista de um espaço para aqueles que seguem tal fé a possam
exercê-la em liberdade: “Em 1555 [Villegaignon] manifestou a vários personagens notáveis do
reino o desejo, que de há muito alimentava, não só de retirar-se para um país longínquo, onde
pudesse livremente servir a Deus de acordo com o evangelho reformado, mas ainda preparar um
refúgio para todos os que desejassem fugir às perseguições”.41 A utopia reside na tentativa do
isolamento total dos vícios que a terra impõe: “E parece-me que só o conseguiria afastando do
convívio do gentio os artesãos que comigo trouxera. E refletindo sobre isso compreendi que não
fora sem audiência de Deus que nos metêramos nesses negócios e tudo ocorria em virtude de nos
levar o ócio a dar rédeas aos nossos desordenados apetites”.42
À cada esfera social está associado um acontecimento importante que integra a gênese do
Antigo Sistema Colonial. À esfera política se relaciona a formação dos Estados Nacionais
Absolutistas. À esfera religiosa, as Reformas Protestante e Católica. À esfera cultural, o
Renascimento dos séculos XIV, XV e XVI. Enfim, à esfera econômica, o nascimento do
capitalismo, expresso na forma mercantil ou também chamada acumulação primitiva. O intuito é
o de analisar como a percepção da diferença vai se formando dentro dessas esferas e como se
expressa nos diferentes tipos de documentação. Enfim, como essas diferentes percepções se
identidades e das expectativas da população colonial. Antes que pudessem existir os brasileiros, um povo que se via
enquanto comunidade política, essas diferentes concepções de Brasil tiveram de ser reconciliadas de alguma forma,
embora a realização desse objetivo numa sociedade multirracial e escravista tenha sido um processo extremamente
complexo”. (Schwartz, op. Cit., p. 106). A nação aparece quando estes diferentes “Brasis” confluem em um só.
39
“Por isso nos transportamos para uma ilha situada a duas léguas mais ou menos da terra firme e aí nos
estabelecemos de modo que impossibilitados de fugir, ficassem os nossos homens no caminho do dever. E como as
mulheres só vinham a nós com seus maridos, a oportunidade de pecar contra a castidade se achava afastada”. Jean de
Léry. Viagem à Terra do Brasil (1563). Trad. E notas de Sérgio Milliet. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1933, p.
10.
40
Léry usa as belas palavras de Virgílio para resumir o ethos que o guia: “Os apetites que guiam o homem são, em
suma, seu principal Deus”. (Léry, op. cit., p. 9)
41
Idem, ibidem, p. 22.
42
Idem, ibidem, p. 10.
101
fundem em uma consciência da diferença, uma sensação um pouco mais aprimorada que a
percepção, presente nos Diálogos e em Frei Vicente do Salvador.
Começaremos pela esfera política. No entanto, torna-se difícil definir com exatidão os
domínios das esferas em razão do próprio caráter transitório entre o feudalismo e o capitalismo:
as esferas e seus domínios ainda estão fortemente imbricados e um mesmo fenômeno pode ter
uma ou mais facetas. Dentro desse domínio, daremos especial atenção à documentação
“estrangeira” e oficial, que se relacionam na sua maior parte, com os acontecimentos políticos
do período, embora no caso da documentação Inquisitorial, haja um misto entre as esferas
política e religiosa, uma vez que o Tribunal do Santo Ofício no século XVI é um tribunal mais
pertencente ao Estado que à Igreja. A documentação “estrangeira” está, em sua maior parte,
relacionada à atividade de corsários e piratas nas costas do “Brasil” e que durante sua ação ou em
tentativas de estabelecer um domínio na América deixaram relatos sobre o cotidiano colonial.
Transparece, portanto, o fenômeno da formação dos Estados Absolutistas e a rivalidade entre uns
e outros pela conquista de territórios e poder. Na documentação oficial, o que fica mais evidente
são as relações internas ao Estado português e a ligação entre os monarcas e seus súditos.
As primeiras invasões “estrangeiras” da América Portuguesa já datam do século XVI.
Dentre os inúmeros saques de pau-brasil, tentou-se, pela primeira vez, a montagem de uma
colônia por membros de uma Igreja Reformada. Em 1557, Villegaignon e toda sua frota aportam
no Rio de Janeiro, na tentativa de constituir a França Antártica.
Antes disso, em 1548, Hans Staden aporta na capitania de Pernambuco, doada a Duarte
Coelho em 1534. Em 1555, o mesmo navio aporta na capitania de São Vicente, doada a Martim
Afonso de Sousa em 1532. Entre a primeira e segunda viagens, acontecera a unificação política
da colônia por meio do governo geral de Tomé de Sousa (1549). Segundo Fernando Novais, uma
tentativa de se efetivar o projeto colonizador impondo um mínimo de centralização na colônia.43
A questão a ser feita é em que medida contribuem os viajantes para a percepção da
diferença entre colonos e reinóis. O problema é que quase todos vêem não o português se
43
“Entre 1548 e 1555, efetivamente, joga-se o destino da implantação portuguesa; a criação do governo geral (1549)
e a ação dos primeiros governadores (Tomé de Sousa, Duarte da Costa) consolidam a posição lusitana na Bahia e no
Rio de janeiro (...). Com isso estabelecia-se uma relativa articulação dos núcleos até então implantados ao sul (São
Vicente, desde 1532, por Martim Afonso de Sousa) e ao norte (Pernambuco, 1534, pelo donatário Duarte Coelho).
Note-se, desde logo, que ‘as duas viagens’de Hans Staden, incidem, precisamente sobre esses dois núcleos (...)”.
(Fernando A. Novais. “O Brasil de Hans Staden”. Capítulo de Hans Staden: primeiros registros e escritos ilustrados
sobre o Brasil e seus habitantes(1587). Trad. De Angel Bojadsen. São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 1999, p. 17).
102
desdobrando em colono e reinol, mas somente o português enquanto colonizador, conquistador.
Por que isso acontece? Por que o índio é a figura mais ressaltada na documentação “estrangeira”?
Tanto portugueses, como franceses, como holandeses, ingleses ou o tedesco Hans Staden,
são saídos de um mundo no qual as transformações que se processam - seja o renascimento, a
reforma ou a formação do Estado nacional e com este o capitalismo - 44 têm uma tendência à
expansão da esfera em que se manifesta pela dominação de outro território. Dominação cultural
por meio da imposição do civilizado e de suas próprias formas de interpretar o mundo;
dominação religiosa, por meio da propagação da fé: seja na forma de catequização, seja na de
evangelização; dominação política, ampliando o número de súditos e territórios em poder do
Estado Nacional; e, por fim, dominação econômica. Nas primeiras expedições, o tipo que se
destaca é o do aventureiro45. Aqui, é a mobilidade, as guerras contra os indígenas, disputas entre
os corsários e os portugueses, que compõem o modo de vida. À bravura exigida pelo
empreendimento aventureiro, associa-se a honra da conquista: “Se não nos resolvermos a
transpor esta montanha, poderemos viver aqui, é certo, enquanto, aprouver a Deus, mas sem
honra, sem fama e sem religião, viveremos quais brutas alimárias”.46 O exótico, o diferente é o
índio. Não há ainda como contrastar colono e reinol porque esses tipos ainda não existem.
Somente com a capitania de Pernambuco é que aparece um modo de vida diferente, mais estável,
44
Como ilustração da íntima relação entre formação dos Estados Nacionais e expansão ultramarina, é brilhante a
observação de Taunay a respeito do atraso em a França se lançar à corrida por territórios ultramarinos: Por que, a
despeito de serem valente cruzadistas foram medíocres navegadores? Embora muitas vezes o valor pessoal seja
ressaltado nas grandes navegações, o motivo é menos individual que estatal. É pela centralização estatal que as
navegações se fazem. O próprio Camões percebe isso pela usa frase “fraco rei, fraca gente”. Se o Estado é o rei, é
este rei que faz a história da expansão ultramarina e não as características individuais: “reforçando o conceito
camoneano de que ‘um fraco rei fraca a gente’diz um grande historiador que o alheamento da França ao enorme
movimento quinhentista das navegações e descobertas foi devido à ignorância prodigiosa e à absoluta certeza de
espírito de Carlos VII, contemporâneo de Colombo e à grande leviandade de Francisco I”. (Afonso de E’ Taunay.
Viagens e Viajantes do Brasil Colonial. In RIHGB, 1922, v. 146, t. 92, p. 311). Outro trecho elucidativo a respeito
desse fenômeno é a resposta que D. João III a Saint Blancard quando este diz que o mar é livre pelo próprio fato de
os portugueses terem tomado a nau Pelerine, que saqueava os navios portugueses: “Os mares que todos devem e
podem navegar são aqueles que sempre foram sabidos de todos e comuns a todos, mas os outros, que nunca forma
sabidos e nem parecia que se poderiam navegar, e foram descobertos com tanto trabalho, por mim, estes, não”.
(Taunay, op. Cit., p. 313).
45
“Nesta etapa, por assim dizer a pré-história da colonização, a figura que se destaca como um tipo ideal é a do
aventureiro, pois todas essas atividades constituíam uma autêntica aventura nos trópicos: aventureiros,
evidentemente, os piratas e corsários que disputavam o comércio do pau-brasil, aventureiros, também, os capitães e
as tripulações portuguesas (...) aventureiros, enfim os missionários que se enterravam por esses confins, para engajar
o diálogo de conversão do gentio. Dominação política, exploração econômica, missionação, as três vertentes
básicas da colonização; três esferas da mesma aventura, porque absolutamente imprevisível”. (Novais, op. Cit., p.
19).
46
Anthony Knivet. “Narração da Viagem que nos anos de 1591 e seguintes fez Antônio Knivet da Inglaterra ao mar
do Sul em companhia de Thomaz Cavendish”. In RIHGB, 1865, p. 240.
103
assentado no engenho47. Em São Vicente, no planalto de Piratininga, a instabilidade, a
mobilidade e a provisoriedade, continuará sendo ainda por muito tempo a lei que rege a vida
bandeirante.48
São três os focos de diferença encontrados na documentação “estrangeira”. O primeiro é o
da diferença entre o “estrangeiro” e o índio. Neste caso, a percepção de diferença entre colono e
reinol se apaga porque os “estrangeiros” são tão iguais aos portugueses quando comparados ao
índio que não faz sentido dividi-los.49 Afinal, todos são civilizados e professam uma fé, seja ela
católica, seja ela protestante, ou calvinista. O segundo foco é o da diferença entre os
“estrangeiros” e os portugueses, menos pelo caráter nacional, porque não é esse o eixo principal
da identidade, do que pela religião. Por isso a percepção do português varia tanto de um Hans
Staden para um Léry, conforme visto no capítulo primeiro. Nesse caso, embora não haja uma
diferenciação entre colono e reinol, o português é equiparado ao índio pelos seus costumes vis
que chegam ao limite da crueldade em um Knivet. É preciso separar estes níveis de diferença em
que o “estrangeiro” se coloca porque é a partir destes níveis que ele pode chegar a ver uma
diferença entre colono e reinol. Por exemplo, quando percebe que os colonos são mais próximos
dos índios do que os reinóis, em razão de alguns costumes seus. Este terceiro foco de diferença
muitas vezes aparece como mestiçagem. Tanto Staden, como Knivet dela falaram. Não chegam a
dividir os portugueses em colonos e reinóis, como faz Brandônio, mas muitas vezes diferenciam
o português do mestiço. Dessa forma, é preciso ver antes a diferença que o próprio “estrangeiro”
47
“Pouco a pouco, com enormes esforços, transita-se do comércio para a produção (produção para o comércio, é
certo – tratava-se da agroindústria do açúcar), que envolve fixação, povoamento, organização dessa nova vida; o
navegante, o mercante, o combatente, vai se transformando em povoador, produtor, colonizadores, enfim. O
empreendimento continua dificultoso e arriscado, exigindo tenacidade e espírito de aventura; mas nessa transição,
lentamente, esse espírito, vai cedendo o passo à mentalidade da rotina”. (Novais, op. Cit., p. 20)
48
“O povo da terra não se mostrou animado ante as perspectivas de introdução dessa nova granjearia, receoso de que
se convertesse em causa de novas obrigações". (Sérgio Buarque de Holanda. Caminhos e Fronteiras. São Paulo, Cia.
das Letras, 1994, 176). Este modo de vida instável conduz a um livre-arbítrio que contradiz a obediência ao poder
central. A vontade individual sobrepuja a vontade estatal. Isso fica claro no episódio em que Martim de Sá condena
Léry à morte. A respeito disso se manifestam João de Sousa, Graned del Galbo, Fortino Albano: “Que poder tem um
capitão para dar morte a este homem? Não viemos a estes sertões em serviço do rei, senão em proveito próprio, e o
capitão não é mais que um bastardo do governador”. (Knivet, op. Cit., p. 237).
49
Cremos que esse comportamento é semelhante à percepção que aconteceu na guerra dos emboabas. A consciência
ocorre porque no contato com o holandês durante a expulsão de Pernambuco, o colono percebe que há interesses
regendo a invasão e que estes interesses não são diferentes dos motivos porque os portugueses ocuparam a terra.
Aqui, o processo é o inverso, e não podemos falar ainda em consciência, mas tão somente uma percepção: na visão
do estrangeiro, os colonos não se diferenciam do indígena porque todos fazem parte de um espaço em que tudo e
todos são explorados para atender aos interesses da Coroa a que pertencem. O colono se torna sem identidade, ou
quando muito assume a identidade do índio, porque dentro do lado colonial, não interessa saber quem é quem, mas
que todos sejam dominados.
104
tem em relação ao português, para depois perceber que o português daqui é diferente do de lá. Por
isso fizemos a discriminação da diferença em três níveis. Para o “estrangeiro” , os portugueses
daqui, pelo contato com o gentio, tornam-se muito próximos destes; os portugueses recémchegados da Europa são mais próximos destes “estrangeiros” que relatam as viagens.
Antes de analisar como a documentação “estrangeira” manifesta as percepções de
diferença dentro do Antigo Sistema Colonial, comentemos algumas passagens dos regimentos50
porque é nestes que mais se mostra o fenômeno da centralização de poder e formação dos
Estados Absolutos. A visão que se depreende dos Regimentos é a visão do Estado português
seiscentista e seus projetos para a colonização. Não há aqui percepção de diferença, mas uma
imposição dos interesses do Estado sobre a colônia. Ainda nos regimentos, outras relações que
são mostradas são as relações entre Estado e Igreja e entre o Estado e seus súditos.
Transplantadas da metrópole para a colônia, estas relações entre o Estado e seus oficiais, Estado e
Igreja, Estado e seus súditos, têm de se adaptar. É nesse processo de adaptação que muitas vezes
nasce a diferença.
Durante o processo de formação dos Estados Absolutistas, o rei concentra em sua pessoa
três poderes, retirando-os das instituições que antes os detinham: o poder judiciário, o poder
fiscal e o poder militar. Ao usurpá-los, tenta estabelecer um equilíbrio entre a nobreza, a
burguesia e a Igreja, cujos interesses caminham muitas vezes em direções opostas. Na verdade, o
Estado absolutista se alimenta do próprio conflito que engendra entre essas classes, o que acaba
por enfraquecê-las, facilitando o seu controle sobre elas. Quando um novo território é
incorporado aos domínios deste Estado Absolutista, as classes que aí surgem entram também para
a mesma política de equilíbrio deste Estado.
Na documentação “estrangeira” exposta no capítulo primeiro, pudemos ter uma ilustração
das relações de rivalidade que um Estado trava com o outro. O embate de uns contra os outros é
fundamental para a acumulação de poder. Com a expansão marítima, resultado da centralização,
outros tipos de relações e conflitos são trazidos para dentro do Estado. Estas relações são, na
verdade, as mesmas que se processam em nível nacional, mas ampliadas agora para a colônia. Ao
serem ampliadas para a colônia, os domínios aos quais tais relações pertencem, quer seja o
político, o religioso, o administrativo, o econômico, não somente aumentam, mas sofrem
modificações. Não somente apresentam continuidade, mas rupturas. A ruptura se percebe quando
50
Enquadrados da documentação oficial.
105
comparamos as esferas que pertencem aos domínios da metrópole com suas análogas nas
colônias. Ela é uma ampliação e uma continuidade do projeto, mas na prática é uma mudança e
uma ruptura. Um exemplo é a própria centralização de poder do Estado. Na colônia, ela se
manifesta espacialmente pela forma como os núcleos de povoamento estão distribuídos. A esse
respeito, é bastante ilustrativa a comparação de Frei Vicente do Salvador entre os colonos e os
caranguejos, tão pregados à costa ficam51. Essa mesma centralização, em torno do poder real é
mostrada no “Instrumento de Serviços” de Mem de Sá, quando observa a organização das
fazendas em torno das cidades, centros militares e administrativos, nos primeiros séculos de
colonização: “Achei toda a terra de guerra sem os homens ousarem fazer suas fazendas senão ao
redor da cidade pelo que vivam apertados e necessitados por não terem peças e descontentes da
terra”.52 Mas não há somente centralização de poder, como também seu oposto, a dispersão. A
dispersão dos núcleos enfraquece o controle do Estado português sobre a colônia, abrindo
brechas para a ação do poder local: “e porque se segue muito prejuízo de as fazendas e povoações
deles se fazerem longe das vilas de que ande ser favorecidos e ajudados quando desse houver
necessidade, ordenareis que daqui em diante se façam mais perto das vilas que puder ser e aos
que vos parecer que estão longe, ordenareis que se fortifiquem de maneira que se possam
defender quando cumprir”.53 Aqui reside a ruptura em relação ao projeto metropolitano. Parece
ser uma ambigüidade essa centralização coeva à dispersão, ambigüidade essa, que se faz presente
em todas as esferas sociais e não somente a política. Isso acontece porque a própria colonização é
ao mesmo tempo continuidade e ruptura: ao mesmo tempo reproduz a metrópole e cria algo novo.
O governo geral, instalado na colônia portuguesa em 1549, tendo como governador geral
Tomé de Sousa, é uma tentativa de centralizar o poder em nível colonial, facilitando o controle da
metrópole sobre a colônia. A despeito das tentativas de centralização, o fato de ser uma colônia
muito grande, impede o controle total da metrópole sobre o seu domínio e o poder local acaba
51
“Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por
negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentamse de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”. (Frei Vicente do Salvador, Op. Cit., p. 19).
52
Wanderley Pinho, “Testamento de Mem de Sá”. RIGHB, V.3, 1941, pp. 3-161. A esse respeito vide também Stuart
Schwartz. Segredos internos : engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Tradução Laura Teixeira
Motta. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 238. Schwartz diz que a vida urbana na Bahia tem presença
marcante até meados do século XVII, quando o meio rural começa a tomar importância em razão da expansão da
zona açucareira. Alguns dos proprietários de terra abastados que mantinham residência em Salvador, e uma
participação ativa na vida urbana, passam a residir no campo, embora muitos deles delegassem a administração do
engenho a algum feitor ou agente. (Schwartz, op. Cit., p. 238).
53
“Primeiro Regimento que levou Tomé de Sousa governador do Brasil”. RIHGB, 1898, T. XI, p. 58.
106
substituindo o central na resolução de muitas contendas.
54
Na documentação oficial, essa
dificuldade de controle aparece nas inversões entre poder local e poder geral, entre o privado e o
público, entre o senhor de engenho e o rei. Pois não dissera Frei Vicente do Salvador
“verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república,
sendo-o cada casa”?55 E a respeito das tentativas frustradas do Estado em constituir armazéns
públicos: “E quando algumas das ditas se queiram prover das ditas cousas ou de algumas delas,
hei por bem que vós lh’as façais dos meus armazéns, havendo-as e n’eles, pelos ofícios que se
achar que me custam lá postas”.56 A dificuldade em centralizar o poder na colônia, além do fator
extensão territorial, deve-se também ao fato de as esferas pública e privada estarem imbricadas
nesse período de transição entre o feudalismo e o capitalismo.
Com a criação do governo geral externaliza-se um conflito que até então tinha ficado em
estado de latência: o conflito entre o Estado português e os principais da colônia. Isso fica
bastante claro por algumas das cartas de Duarte Coelho, que reclamam o fim dos privilégios
concedidos no foral de doação da capitania (1534) por ocasião da criação do governo geral em
1548.57 Parte desse conflito é às diferenças que o Estado faz entre os nobres do reino e os fidalgos
da colônia. Essa insatisfação não a tem somente Duarte Coelho, mas muitos dos funcionários da
Coroa58 também reclamam que não estar sendo devidamente recompensados por seus serviços.59
54
Isso até mesmo se manifesta pelo contato e conhecimento do índio. Muitas figuras adquiriram grande poder local,
justamente pela estabilidade que conseguiram dar aos primeiros núcleos de povoamento ao adquirirem respeito tanto
frente ao gentio quanto frente ao colono. Os grandes patriarcas são a mais profunda expressão desse forte localismo.
João Ramalho, Jerônimo de Albuquerque, Duarte Coelho são exemplos disso: “(...) o que o dito Jerônimo de
Albuquerque por ser pessoa tão conhecida entre todos os índios desta costa mui amado e desejado deles poderia
alteá-los a fazerem pazes conosco o que lhe não seria mui dificultoso assim por seu respeito como pelo dos nossos
índios amigos (...)”. (“Regimento dado pelo governador Gaspar de Moura A Jerônimo de Albuquerque”. In
Documentos para a História do Brasil e principalmente do Ceará (1608-1625). RIHGB, vol. 1. Fortaleza, Tipografia
Studart, 1904, p. 95).
55
Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 17.
56
“Regimento dado a Antônio Cardozo de Barros” (1548). RIHGB, 1896, t. XVIII, p. 181.
57
Cartas de Duarte Coelho a el-rei D. Manuel. Ed. José Antônio Gonsalves de Melo e Cleonir Xavier de
Albuquerque. Recife, Imprensa Universitária, 1967, p. 11.
58
O quadro de funcionários especializados nos serviços da Coroa surge também durante a formação dos Estados
nacionais absolutistas, O Estado absoluto forma consigo uma burocracia especializada nos serviços administrativos.
Isso se deve à necessidade de organizar tanto as receitas de ordem fiscal, quanto as de ordem estritamente
econômicas, oriundas da acumulação primitiva de capital. Essa burocracia também se estende aos domínios
coloniais, à medida em que as conquistas vão se fazendo. Ao quadro administrativo burocrático se associa, segundo
Weber, uma “(...) qualificação profissional. Normalmente, portanto, só estão qualificados à participação no quadro
administrativo de uma associação os que podem comprovar uma especialização profissional, e só estes podem ser
aceitos como funcionários”. (Max Weber. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.Trad. de
Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Revisão técnica de Gabriel Cohn. 3a edição. Brasília, Ed. Universidade de
Brasília, 1994, p. 143)
107
Esse é um conflito entre a nobreza metropolitana e a classe dominante na colônia e que se
expressa pela dose de menosprezo dessa mesma nobreza em relação aos fidalgos que se tornam
capitães donatários e colonizadores. A nobreza tradicional se nega a igualar em status à nobreza
colonial. Esta, por outro lado, pretende adquirir os mesmos títulos, embora por meios diferentes.
Com a expansão marítima, a aventura por mares desconhecidos torna-se um dos meios
para a conquista de honrarias. Com a conquista da América, a aventura, primeiro a da conquista e
depois a da colonização, também se configuram em outros meios. No entanto, o fim continua a
ser o mesmo da nobreza metropolitana: o reconhecimento estatal e a percepção de privilégios e
honras. Este ritual tem raízes nas relações vassálicas da Idade Média e das Cruzadas e que se
preserva na forma de tradição. Com a implantação da empresa colonizadora, o lucro mercantil,
associado à aventura do empreendimento, passa a ser o meio para se conseguir esse
reconhecimento. O fim é político e social, mas o meio é econômico. A aventura vai, aos poucos,
cedendo lugar à rotina, à medida em que se constitui a base material organizada em torno do
engenho, mas ainda aqui a mentalidade senhorial é cultuada. No entanto, ao lado de alguns de
seus mais fortes valores, como o ócio, começam a aparecer outros aparentemente contraditórios,
como o esforço oriundo do trabalho na terra, claro que feito por escravos, mas organizado por
essa aristocracia colonial60.
Essa sutil mudança de mentalidade é conseqüência da mudança de interesses frente à
terra: a colonização substitui a conquista e aos poucos o colonizador vai cedendo lugar ao colono,
embora não deixe de existir.61 A cada nova vinda de portugueses, esse grupo é renovado, e
conseqüentemente,
a
contraposição
entre
colono
e
reinol,
expressa
pela
oposição
exploração/construção, também vai sendo reciclada. Vê-se que essas categorias não são fixas,
mas envolvem permanentes movimentos populacionais em sua renovação. Diferenças de opiniões
59
“Vinte de agosto de 1614. Carta de Gaspar de Sousa a el-rei queixando-se de ser tratado de modo diverso do que
merece por seus serviços e procedimentos”. (“Carta de Gaspar de Sousa a el-rei”. In Documentos para a História do
Brasil e especialmente a do Ceará. (1614). RIHGB, vol. 1. Fortaleza, tipografia Studart, 1904, vol. 1, p. 102).
60
No culto ao trabalho existe uma continuidade material em relação à metrópole e uma descontinuidade em relação
aos antigos valores cultivados pela nobreza decadente da qual brota estes primeiros aventureiros que para cá vieram:
“Quanto, Senhor, a esta Nova Lusitânia, posto que com muito trabalho e assaz fadiga, tanta quanta o Senhor sabe, a
cousa está bem principiada.” (Cartas de Duarte Coelho ... Op. Cit., p. 87)
61
“O propósito de fundar colônia de plantação, com a transmigração e fixação de um grupo de portugueses em terras
tropicais, o convívio com os nativos da terra colonizada, a intenção de estabelecer uma sociedade baseada na justiça
e na qual os interesses dos povoadores prevalecessem sobre os dos armadores e mercenários, são alguns dos aspectos
daquele esforço, bem documentados na correspondência de Duarte Coelho”. (Gonsalves de Melo. Introdução a
Cartas de Duarte Coelho..., op. Cit., p. 9).
108
surgem entre um grupo e outro em decorrência de posturas diferentes frente à terra. Opiniões por
exemplo a respeito do que seria um legítimo morador da terra.62
Uma outra implicação da centralização de poder durante o processo de formação dos
Estados absolutos é que a Igreja passa a ser subordinada ao Estado. A Igreja transforma-se em
uma Igreja de Estado, e inclusive torna-se um poderoso instrumento na montagem do sistema
colonial, em especial pela ideologia que o catolicismo reformado oferece à colonização.63
Da mesma forma como acontece com os espaços público e privado, as esferas religiosa e
política se encontram imbricadas. Se na Idade Média, a religião organizava o modo de vida e
dava coesão à sociedade feudal, nessa sociedade de transição rumo ao capitalismo, a política do
Estado Absoluto é o que dá sentido às demais instâncias. É do movimento destas que depende sua
dinâmica. O Estado precisa tanto da Igreja, como do mercantilismo para alimentar o seu poder.
Essa imbricação entre as esferas política e religiosa de que falamos pode ser vista, por exemplo,
pela confusão entre o crime e o pecado nesta época. 64 Na sociedade colonial, essa indefinição
entre o sagrado e o profano se acentua. É comum a confusão entre transgressão civil e culpa. Em
outros casos, membros da hierarquia religiosa utilizam alguns instrumentos que têm à mão para
se livrarem de alguns problemas no secular: “porque, se o bispo presume que algum homem
testemunhou alguma coisa no secular contra ele, na confissão lhe perguntam os seus clérigos por
isso e ainda que chegam que testemunharam verdade ou que não foram nisso, não os querem
62
Os funcionários utilizam a definição formal, que está no “Regimento dos provedores da fazenda Real, redigido
quando na criação do governo geral em 1548”, que definia o morador ou o povoador, somente enquanto detentor de
uma sesmaria doada pela Coroa. Duarte Coelho, de uma maneira análoga à figura de Brandônio associa o morador à
figura do povoador, definindo-o não como aquele que possui, mas aquele que reside, constitui família e contribui
para o bem estar material da colônia: “A esses tais não os queriam reconhecer por ‘moradores e povoadores’ contra o
que protesta Duarte Coelho, alegando que a ele e não aos funcionários da Coroa cabia decidir se eram ou não
moradores e povoadores ‘querem aí entender por moradores e povoadores o que eles querem, e não os que eu aqui
por minha ordem e por meu trabalho e indústria, ando adquirindo para a terra e mando assentar no livro da
matrícula e tombos das terras todos aqueles que são moradores e povoadores’”. (Idem, p. 12).
63
Fé e poder político andam juntos: “para exalçamento de nossa santa fé e proveito de meus reinos e senhorios e dos
naturais deles”. (“Primeiro Regimento que levou Tomé de Sousa governador do Brasil”. RIHGB, 1898, T. LXI, , p.
39).
64
O processo de separação entre crime e pecado somente se concluirá nos séculos XVIII/XIX, quando o pecado fica
restrito à esfera religiosa e o crime restrito à esfera jurídica. O pecado é uma violação, consciente, ou não, de alguns
princípios religiosos. O crime, uma violação da liberdade civil. A punição da alma é diferente da punição do corpo, o
que ainda não se via quando o pecado era idêntico ao crime. Punia-se a alma e o corpo pelo suplício e o espetáculo
visual deste era fundamental para a correção moral. Neste momento situamos num eixo intermediário entre crime e
pecado; entre o suplício e a prisão: “Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo
encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário: qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento,
pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e
como um bem”. (Michel Foucault. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis,
Vozes, 1987, p. 16).
109
absolver nem dar comunhão”.65 O bispo usa a confissão como forma de punir àquele que o
prejudicou e o ameaça a não receber um dos sacramentos da Igreja. Em razão da perda de poder
ao temporal e de sua sujeição ao estado, a Igreja passa a se utilizar de seus meios para não ser
punida pela lei secular. Secular e religioso estão em processo de separação, mas como se vê, tanto
na metrópole, como na colônia, os domínios ainda se interseccionam. 66
Se muitas vezes a instância religiosa caminha em sentido oposto à política, há momentos
em que caminham no mesmo sentido. Essa hesitação se dá em razão do próprio fato das esferas
ainda não estarem separadas. Um dos exemplos em que essa harmonia se dá, é pela função
corretora que a colônia tem dentro do Sistema Colonial. O degredo não serve somente para
povoar a terra, mas também corrigir as almas e os corpos desvirtuados.67 E não somente nos
planos religioso-moral e político-jurídico, a colônia exerce essa função corretora. Também no
econômico porque a colônia funciona como solução para a pobreza do reino e de seus habitantes.
Isso é a contrapartida da dominação efetuada nos planos político, econômico e religioso: um
espaço onde as instâncias não somente possam se completar, mas também possam se expandir,
conquistando riqueza, poder e fiéis. A esse respeito, o casamento parece ser uma instituição que
soluciona estes três problemas e funde as intenções provenientes das diferentes instâncias: a
política, a religiosa e a econômica. O casamento segue a lei dos homens e de Deus e além de
fundamentar uma família, serve como instrumento para ampliar o povoamento no território
conquistado, assegurando o domínio do Estado e da Igreja. O casamento e a constituição de uma
família servem para que a colônia ganhe estabilidade moral, política e econômica, ao mesmo
tempo em que livra a metrópole das instabilidades nestas três instâncias. Daí o fato de ser um
tema recorrente na documentação oficial, Inquisitorial, jesuítica e nos Tratados.
65
“Carta de 20/05/1551 de Duarte da Costa a el-rei D. João III”. In RIHGB, 1886, vol. 1, p. 575.
São bastante conhecidas as disputas que se travam neste sentido entre o governador Duarte da Costa, que vem para
a o “Brasil” em 1553 e o bispo D. Pero Fernandes Sardinha: “Não ignora quem estuda a nossa história, as desavenças
havidas entre D. Duarte da Costa, segundo governador do Brasil de uma parte, e o primeiro bispo do Salvador D.
Pedro Fernandes Sardinha e o provedor-mór da fazenda Antônio Cardozo de barros, de outra. Dentre as cartas (...)
aviltam as em que o governador e o prelado se acusam reciprocamente perante a corte de Lisboa. Elas poderão trazer
alguma luz à questão que entre a autoridade civil e a eclesiástica se estabelecera, causando não pouco alvoroço entre
os ânimos dos habitantes da nascente colônia (...)”. “Documentos Históricos Extraídos da Torre do Tombo”. In
RIHGB, 1886, vol. 1, p. 554.
67
O degredo é visto de forma positiva pela metrópole, mas de forma negativa pela colônia: “(...) e como é pouco
serviço de Deus e de Vossa Alteza e do bem e aumento desta Nova Lusitânia, mandar para aqui tais degredados (...)
Porque certifico a Vossa Alteza e lhe juro pela hora da morte que nenhum fruto nem bem fazem na terra, mas muito
mal e dano, e por sua causa se fazem cada dia males”. (Cartas de Duarte Coelho..., op. Cit., p. 89)
66
110
A imagem da colônia como purgatório coexiste com a imagem da colônia como um
inferno.68 Não nos diria frei Vicente que essa terra foi a terra em que o diabo conseguiu vencer?
Vence pela corrupção moral e política decorrente da cobiça que movimenta os homens para a
mercancia:
“Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio
que tinha sobre os homens, receando perder o muito que tinha em os desta
terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil,
por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que
tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os
sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firma e bem
fundada como sabemos. E por ventura por isto, ainda que ao nome de Brasil
ajuntaram o de estado e lhe chamam estado do Brasil, ficou ele tão pouco
estável que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se
começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares e, sendo a terra tão
grande e fértil como ao diante veremos, nem por isso vai em seu aumento, antes
em diminuição.”69
Parece ser contraditório que uma terra que serviria para a purgação nestes três planos,
acabe produzindo o seu contrário: a corrupção. Aqui, mais uma vez continuidade convive com
ruptura.
Indecisa entre a esfera política e a religiosa, situa-se a Inquisição, uma instituição que na
Idade Moderna torna-se mais um órgão do Estado do que um órgão da Igreja, fato esse que se
manifesta também na colônia e se reflete claramente na documentação Inquisitorial selecionada.
Em razão do caráter mais flexível da religião colonial, contraposto ao caráter mais rígido
do catolicismo reformado, o colono e o Santo Ofício falam linguagens diferentes. Algumas
práticas, como a feitiçaria, podem ser heresias aos olhos do reinol, mas são práticas tradicionais70
68
“Lembro também a Vossa Alteza quão necessários são nesta terra os casos do papa para dispensão, porque, como
estamos tão desviados dos remédios de Roma e não se pode dela haver recurso sem passarem 3, 4 anos, ficam as
almas desta maneira embaraçadas e em muito perigo, como lhe dirá o vigário geral, e das necessidades que viu
visitando a costa.” (“Carta do Bispo do Salvador para a Rainha Dona Catarina de 13/09/1560”. In RIHGB, 1886, vol.
1, p. 589).
69
Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 15.
70
Veja como se mostra o caráter tradicional de certas atitudes na confissão de João Roiz Palha, o que nos leva a
questionar o seu caráter pecaminoso dentro do contexto colonial: “o qual encantamento era para os bichos caírem ao
gado da maneira seguinte, tomava nove pedras do chão e diziam as palavras seguintes, encanto bisando com o diabo
maior e com o menor, e com os outros todos, que aos três dias caíram todos (...) e foi perguntado se entendia ele que
nisto avia contrato com o diabo, respondeu que sim (...) e que o fazia por que naquele tempo o viu fazer geralmente a
quase todos os pastores daquela terra (...)”. (Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado
111
para o colono. Não é a religião que muda com a condição colonial, mas a religiosidade, e com
esta mudança vêm os conflitos inerentes à dificuldade em se entender o outro.
O colono não vê culpa ou crime em atos que são considerados heresias na Europa porque
estes já fazem parte do seu cotidiano. O colono alega a ignorância para tais atos não porque
mente, mas porque realmente não entende o teor da culpa contida neles. Um desses exemplos é o
deitar água fora quando alguém morre na casa. Aos olhos do inquisidor, isso é um costume
judaico. Mas aos olhos do colono, realmente o seriam?71 Devido a esse caráter “vulgar” da
religião torna-se difícil saber se realmente se trata de uma heresia, um retorno às práticas
judaizantes, ou se a prática foi incorporada ao folclore colonial, tornando-se uma crença popular.
Na verdade, muitas vezes por não saber definir de que heresia ou apostasia se trata, o inquisidor
simplesmente qualifica o confessante como “judeu”.
Há que se considerar ainda o caráter sincrético da religião colonial que a diferencia da
reinol, não porque esta não seja sincrética, já que, segundo Gilberto Freyre, já havia absorvido
alguns elementos das culturas judaica e mourisca, mas porque algumas tradições medievais
européias, como essa intimidade com os santos, fundem-se com algumas práticas indígenas e
africanas. Sônia Siqueira explica o fenômeno da ruptura da religiosidade colonial com a
religiosidade ocidental a partir do fenômeno do sincretismo que confere à religião cristã
reformada essa maior informalidade, apta a atender as necessidades do dia-a-dia:
“O preto foi batizado. Defrontaram-se então o conglomerado fetichista negroafricano e o Catolicismo luso-brasileiro. A uma religião de estrutura
relativamente simples, facilmente redutível a objetivações prontas e cômodas,
Heitor Furtado de Mendonça – Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu, Rio, F. Briguiet,
1935, p. 121).
71
Anita Novinsky pergunta-se “quem era o cristão-novo baiano” e como este se inseria nos quadros da colônia. A
Inquisição, enquanto um tribunal de Estado, também adaptado para servir de instrumento à acumulação de capital
comercial, perseguia-nos pelo fato de estarem relacionados ao comércio colonial, mas também para expiarem as
acusações: “Os cristãos novos presos entre 1619 e 1644 apresentam um baixo índice de religiosidade judaica,
podendo contudo ser caracterizados como elementos dissidentes. (...) Sua vida não percorre um caminho coerente,
encontrando-se no seu comportamento as mais contraditórias e paradoxais atitudes. Os processos baianos presos que
examinamos mostram-nos que a Inquisição veio buscar na Bahia não o judaizante, mas o cristão-novo. (...) O Santo
Ofício da Inquisição, no seu processo perseguidor abarca tanto os ricos mercadores, de cujos bens confiscados
necessitava para sustentar seus funcionários e o rico aparato com que se revestia, como os pobres sapateiros de
Arrayolos, para justificar perante a sociedade e perante si mesmos a sua existência e os seus valores. Precisava das
longas filas de réus nos autos-de-fé como bode expiatório característico – para justificar o miserável estado do Reino
português. A inquisição precisava de testemunhos”. (Anita Novinsky. Cristãos novos na Bahia 1624-1654. São
Paulo, Perspectiva, Ed. Universidade de São Paulo, 1972, pp. 161/162). Para maiores detalhes, vide os Capítulos “A
posição dos Cristãos novos na sociedade Baiana” e “A experiência Inquisitorial na Bahia”. (Novinsky, op. Cit, pp.
57-102 e pp. 103-140, respectivamente).
112
contrapôs-se uma complexa organização religiosa, com um rico aparato de
conceitos sutis, difíceis, impossíveis de serem traduzidos em objetivações
acessíveis e plásticas. Durante muitos anos, os escravos viam na divindade
branca a encarnação de seus orixás e encontraram correspondências entre o
hagiológico cristão e o pantheon africano. A transição das idéias e práticas
herdadas dos ancestrais para ritos e crenças católicas ficou marcada por estágios
intermediários em que coexistiam elementos de ambas as religiões. Finalmente
procedeu-se ao ajustamento de ambas as culturas no campo religioso (...) Três
culturas diferentes – a ameríndia, a negra e a lusa – passaram a coexistir no
Brasil. Três estágios diferentes de crenças e espiritualidades roçavam-se no
dia-a-dia dos homens na Colônia. Homens que tinham sua atenção voltada a
problemas da subsistência, para os quais canalizavam o melhor de sua
disponibilidade para a luta”. 72
Ainda dentro dessa mesma religiosidade, a intimidade entre os homens e os entes
sobrenaturais é muito comum. Disse uma denunciante sobre Guiomar de Oliveira que “ela a
ensinaria e lhe daria mais quando se fosse para Portugal um vidro que ela tinha em que estava
uma coisa que falava e respondia quanto queriam saber e que em certos dias da semana havia de
ter cuidado de pôr cebola e vinagre perto do dito vidro porque aquilo que nele estava era amigo
deste comer”. 73 Intimidade essa largamente discutida por Gilberto Freyre. 74 O que fica claro nas
denunciações da Bahia, é que na colônia, os homens se colocam muito próximos a essas
72
Sônia Aparecida de Siqueira. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo, Ática, 1978, pp. 43/44.
A feitiçaria colonial é um dos exemplos mais claros do sincretismo entre todas essas seitas. Diz Laura de Melo e
Souza: “Por um lado, a feitiçaria colonial mostrava-se estreitamente ligada às necessidades iminentes do dia-a-dia,
buscando a resolução de problemas concretos. Por outro, aproximava-se muito da religião vivida pela população, as
receitas mágicas assumindo com freqüência a forma de orações dirigidas a Deus, a Jesus, aos santos à Virgem”.
(Souza, op. Cit., p.16). Também Schwartz é de mesma opinião: “O catolicismo, com efeito acompanha a base
espiritual, moral e social da vida no campo. Os conceitos universais da Igreja Católica expressos nos ensinamentos
dos jesuítas, e o código de conduta estabelecido pela arquidiocese da Bahia era reconhecidos, mas fundiam-se com
um variado conjunto de práticas e crenças populares. O culto dos santos era particularmente importante – são
Gonçalo para encontrar um marido, Santa Bárbara para proteger das tempestades, santo Antônio para objetos
perdidos – cada qual com poderes determinados. As pessoas temiam o mau-olhado e a feitiçaria, especialmente a
praticada por escravo. Os costumes locais eram freqüentemente permitidos, mesmo quando as determinações da
arquidiocese os proibiam”. (Schwartz, Segredos Internos..., op. Cit., p. 239).
73
Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 61.
74
“Os interesses de procriação abafaram não só os preconceitos morais como os escrúpulos católicos de ortodoxia; e
ao seu serviço vamos encontrar o cristianismo que, em Portugal, tantas vezes tomou característicos quase pagãos de
culto fálico. Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do povo achou de atribuir
milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade: Santo Antônio,
São João, São Gonçalo do Amarante, São Pedro, o Menino Deus, Nossa Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição,
do Bom Sucesso, do Bom Parto”. (Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 246).
Um caso que comprova o que Gilberto Freyre diz é o de Fernão Pires: “(...) e que entrando o dito Fernão Pires tirara
de um braço ou perna de uma das figuras de Nossa Senhora ou Cristo um pedaço de barro do qual fez uma figura de
natura de homem, e que andara com ela pela casa”. (Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo
Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações da Bahia – 1591-1593. Prefácio de Capistrano de Abreu,
São Paulo, Ed. Paulo Prado, 1925, p. 265)
113
entidades. Deus tem limites como um homem comum e alguns homens, por suas propriedades
heróicas, podem se tornar deuses. O primeiro caso fica claro na delação de Jorge Fernandes, que
“disse que Deus não lhe podia fazer tal coisa”75 ou como é muito comum também as pessoas
dizerem que “Deus não é Deus”, com isso querendo mostrar os limites da ação divina. O
segundo tipo, o dos homens-deuses, funde-se a outros elementos na formação de um imaginário
tipicamente “luso-brasileiro”, na acepção de Sérgio Buarque de Holanda e aparece inclusive em
Frei Vicente na narração dos feitos heróicos e miraculosos dos primeiros povoadores da terra.
Pois não diz Bento Teixeira a respeito de Jerônimo de Albuquerque que “vereis vosso irmão e
vós supremo no valor abater Quirino e Remo”?76 Durante a conquista e colonização, alguns dos
feitos adquirem contornos mitológicos.
Os homens comuns e suas funções seculares se colocam no mesmo pé dos homens de
Deus e de suas funções sagradas. Procriar é tão santo quanto o consagrar da hóstia. Daí o fato de
o adultério muitas vezes ficar justificado dentro do contexto da colônia. O adultério, que assim
como o caso acima, tem uma faceta de crime e pecado, adquire uma dimensão que é exclusiva do
Sistema Colonial. Cônjuges e filhos eram deixados do outro lado do Atlântico porque após o
enriquecimento havia o objetivo de retornar a Portugal. Não traziam família porque não tinham a
intenção de ficar, mas somente explorar. Esse seria o objetivo em uma colônia de exploração
enquanto tipo ideal: explorar, enriquecer e voltar. Nas colônias de povoamento, aconteceria o
inverso: a família viria unida porque o ideal de reconstrução é mais forte do que o ideal de
exploração. Na prática, não é bem assim e o caso do adultério serve para provar essa dissolução
dos dois tipos ideais. Nas colônias de exploração, povoa-se para explorar e nas colônias de
povoamento, explora-se para povoar. É por esse motivo que a intenção exclusivamente
exploratória do português se frustra. Afinal, como poderia uma Nova Lusitânia ser construída
sem pessoas que optassem pela fixação na terra? Muitas das denúncias e confissões sobre o
adultério dizem respeito a homens ou mulheres que deixaram seus parceiros no Reino e
construíram uma nova família na colônia.77 A confusão entre casais no trecho seguinte mostra
75
Op. Cit., p. 252.
Bento Teixeira. Prosopopéia. Com. Celso Cunha e Carlos Duval. São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL, 1977,
Canto III.
77
“e no fim dos ditos seis meses por ela ter grande aborrecimento ao dito seu marido por ser ele costumado a
embebedar-se e ser homem de ruins manhas e lhe dar mau trato lhe fugiu de casa e o deixou na dita cidade de
Málaga e se veio fugida com um homem castelhano chamado Francisco de Burgos que a trouxe consigo a este
Brasil(...)”. (Primeira Visitação-Confissões da Bahia, p. 63).
76
114
que o adultério não somente significa traição, mas também uma forma de se enfrentar a solidão e
a dúvida em ambos os lados do Atlântico:
“Os casos de bigamia eram comuns na época, em que os maridos deixavam as
mulheres para ir ao Oriente ou ao Brasil a serviço do Império ou a negócio ou
aventura, e não davam notícia de si por vários anos. Às vezes a paciente mulher
recebia notícia da morte do marido; noutras ocasiões, cansada de esperar,
esquecia o viajante e tornava a casar. Caso curioso ocorreu com Antônio da
Costa de Almeida e Filipa Barbosa. Aquele casou com a viúva Maria Simões
em Lisboa e vieram residir na Paraíba; um dia voltou a Portugal, e ali lhe
constou que morrera a mulher, pelo que casou com Filipa Barbosa; esta, por
sua vez, era mulher de um certo Manuel Tomás que fôra para a Índia e não
dera mais notícias pelo que o consideraram morto. Acontece que nem Maria
Simões nem Manoel Tomás eram mortos... Acresce também que Maria Simões
descobriu depois que o seu primeiro marido, do qual se dizia viúva era
vivo!”.78
Veja que não era intencional a traição, mas, a aquisição de um novo laço matrimonial se
devia à dúvida em relação ao marido que fôra para a colônia ou à desistência deste em voltar e a
necessidade em se constituir aqui uma nova família.
A equiparação entre homens comuns e clérigos, entre homens e deuses tem uma razão de
ser quando visto dentro dos acontecimentos da época: a perda de poder da instância sagrada para
a secular. Isso acontece em três frentes: perda de poder para a instância política devido à
formação dos estados nacionais; perda de poder para a instância econômica devido ao processo
de acumulação de capital mercantil; perda do monopólio do conhecimento para uma elite laica
devido ao Renascimento cultural. Muitas vezes, as relações com o sagrado aparecem nas
confissões na forma de uma transação econômica. Isso se relaciona com a própria natureza da
colônia: ter sido moldada a fim de servir de acumulação de capital primitivo na metrópole. Nada
mais natural que o pecado aqui se relacionasse de alguma forma com a mercancia, com a
negociação, com a base material. Até então, a única forma de pecado de natureza material que se
conhecia era a usura. Nesse caso, o pecado era claramente definido como o “dinheiro que gerava
dinheiro” por vias escusas ao trabalho. No caso da colônia, como as relações religiosas estão
coladas às mercantis, e vice-versa, torna-se difícil definir o que seria um pecado de fundo
78
Gonsalves de Melo. Introdução à Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor
Furtado de Mendonça – Confissões de Pernambuco – 1591-1592. J. A. Gonsalves de Melo (Ed.). Recife,
Universidade Federal de Pernambuco, 1970.
115
mercantil. Tanto elementos da religião são mercantilizados como certos elementos materiais são
sacralizados. Como exemplo desse segundo, a religião dentro da base material, serve-nos a
confissão de Ambrósio Peixoto de Carvalho: “e estando fazendo umas contas com Antonio
Nunez Reimão mercador, quis o dito mercador que se desse crédito a uns assinados de mestres e
feitores de um engenho de açúcar (...) disse sem deliberação que inda que São João Evangelista
lhe dissesse o contrário do que se continha no dito caderno lho não creria (...)”.
79
Como
exemplo da primeira espécie, ou seja, alguns elementos religiosos são mercantilizados, temos a
confissão de Antonio Gomez: “e vindo depois ter as ditas culpas à mão dele confessante as
queimou e por isso lhe deram dez cruzados, e isto o negociou com ele o dito Bertolomeu de
Vascogoncelos (...)”.80 Culpas e cartas de excomunhão se tornam objeto de venda.81 O
capitalismo mercantil nascente ainda não está totalmente circunscrito à esfera econômica. Da
mesma forma como acima vimos o imbricamento entre as esferas política e religiosa, aqui vemos
a sobreposição entre as esferas econômica e religiosa em sua manifestação na colônia. Os
serviços de feitiçaria também são objeto de comércio. 82
Em uma outra denúncia feita na Bahia, a mistura entre mercantilismo e religião no dia-adia colonial aparece claramente na forma como o colono enxerga o açúcar, o principal produto da
terra: “Outrossim denunciando disse que Diogo de Monis Barreto lhe disse que Pero Nunes
cristão novo rendeiro do engenho Del Rei (...) indo uma vez ao engenho da cidade e vendo-o o
açúcar que estava apartado para o dízimo de Deus estar no chão mascavado e preto disse: pois
este é o vosso Deus e assim o tratais, chamando Deus ao açúcar”.83 O açúcar é ao mesmo tempo
o deus que purga as culpas dos homens e a riqueza que o desvia da virtude: “Os engenhos eram
erguidos sob a invocação dos santos, e muitos possuíam capelas. (...) Contudo, a presença de
igrejas não era necessariamente um indicador da influência da religião. (...) Os padres que viviam
nas áreas açucareiras eram amiúde filhos mais novos de senhores de engenho ou, eles próprios,
lavradores de cana e senhores de engenho, tão preocupados com a colheita da cana quanto com a
79
Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 42.
Op. Cit., p. 53.
81
“tirou uma carta de excomunhão sua mulher Antônio Fogaça por muitas peças de escravos do gentio desta terra e
outros índios foros que desapareceram de sua casa (...) e depois de a dita excomunhão ser publicada nas freguesias e
notória a todos, ele denunciante sabe e vê que Felipa Tavares e mais três sobrinhos seus dela (...) têm, logram e
possuem ainda hoje muitos dos ditos escravos e índios”. (Primeira Visitação do Santo Ofício, Denunciações da
Bahia, p. 281).
82
Vide confissão de Catharina Frois: “e para isto deu algum dinheiro à dita Maria Gonçalves e a dita Maria lhe dizia
que já lhe fazia os tais feitiços pedindo-lhe mais dinheiro (...)”. (Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 53)
83
Idem, p. 282.
80
116
salvação das almas”.84 E se nessa riqueza mercantil está o princípio de toda a corrupção moral,
como atentará Frei Vicente do Salvador, muitas vezes é o diabo que se faz presente nas coisas e
não Deus: “outrossim, ouviu dizer que uma mulher que mora no Monte Calvário d’alcunha a
mineira também curava pela arte do diabo com ervas”.85 O divino e o demoníaco se alternam para
aliviar a sensação vazia a que o desconhecimento das coisas conduz.
Mais específica dos domínios da religião, a documentação jesuítica, nos mostra que a
consciência da diferença parece se processar num sentido contrário: ou as diferenças são
apontadas com o propósito de que sejam anuladas ou elas passam desapercebidas. Há uma
consciência da diferença que é peculiar a essa esfera, mas há também um desejo de retorno ao
primitivo, ignorando-se muitas vezes as condições impostas pela sociedade colonial, que criam
uma diferença estrutural que impede a continuidade do projeto.
Essa negação da diferença ou de sua anulação se relaciona com o projeto que a
Companhia de Jesus tinha para a América. Uma das funções da Companhia de Jesus dentro do
Antigo Sistema Colonial é fornecer uma ideologia da colonização. Como dissemos acima, há um
projeto material, cujo objetivo é a exploração e há um projeto espiritual, a catequese dos gentios,
que inclusive justifica o projeto anterior. Estes dois projetos, ora se cruzam, ora se afastam,
criando ambigüidades decorrentes da indecisão entre explorar ou seguir os preceitos morais
ditados pelo catolicismo. Um dos conflitos travados entre esses dois projetos é o referente à mãode-obra. A externalidade da acumulação de capital mercantil exige a compulsão do trabalho, o
que na maior parte das vezes significa a escravização do negro ou do indígena. A ambigüidade
reside no fato de que se o indígena for escravizado, ele morrerá e não poderá ser convertido. Por
outro lado, muitos dos jesuítas pregam a sujeição pela força e até mesmo que o gentio passe por
um período de servidão, para que seus ânimos exaltados sejam corrigidos. Esta é uma das tantas
ambigüidades em que se incorre quando se tenta seguir os projetos tais como foram arquitetados
na metrópole, mas impossíveis de serem seguidos à risca assim que são colocados em prática
deste outro lado do Atlântico.
O que se presumia era que esses projetos se fundissem, por meio do Estado Absolutista,
em um mesmo eixo: o primeiro representando a prática; o segundo, a ideologia. Com o passar do
tempo, o projeto da colonização passa a sobrepujar o processo de catequização. A ruptura desse
84
85
Schwartz, Segredos Internos..., op. Cit., p. 240.
Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 319.
117
projeto único é um indício do abalo à teia de equilíbrio em que se assentava o Estado absolutista.
Vê-se que a expansão territorial não contém somente o germe do sucesso do Estado Absolutista,
mas unida a outros elementos, dentre eles o fortalecimento da burguesia mercantil na metrópole,
traz consigo o seu fracasso. Também o fortalecimento do poder local frente ao do Estado é um
outro abalo às estruturas desse equilíbrio. E não somente frente ao Estado, como frente à Igreja:
“(...) e se não se casavam antes era porque consentiam viver os homens em seus pecados
livremente, e por isso nem se curavam tanto de casar, e alguns diziam que não pecavam porque o
Arcebispo do Funchal lhes dava licença”.86 Na realidade, em todas as instâncias, processa-se de
alguma forma uma independentização do poder local frente ao geral. Também se deve levar em
consideração a extensão da colônia e a dificuldade em controla-la, mas a crise também se deve a
fatores sociais, e não somente geográficos. 87 Estamos ainda nos domínios da passagem do século
XVI para o XVII. A crise definitiva do Estado Absolutista só acontece, em definitivo, na
passagem do XVIII para o XIX, embora fundamento seja o mesmo: o abalo do equilíbrio sobre o
qual está assentado esse Estado. E como vimos acima, as cisões não se restringem ao plano
político. No plano da religião, a religiosidade na colônia começa a cindir com a religiosidade
ocidental, adquirindo um caráter popular. Todas essas mudanças que ocorrem tanto na metrópole
como na colônia são partes de um mesmo processo: o avanço do capitalismo mercantil, que tem
reflexos na política, na religião, na mentalidade. Dentro do sistema colonial, as funções
diferenciadas entre metrópole e colônia provocam também diferenciações nestes planos que são
percebidas de formas diferentes pelos diferentes estratos da sociedade. O caráter popular da
religião colonial é a solução que a própria sociedade encontra para minorar os conflitos
decorrentes da colonização. Em uma sociedade em que o próximo passo pode ser para o abismo,
nada mais seguro do que ter uma religiosidade que o acompanhe no dia-a-dia. Como as esferas
religiosa e econômica ainda se encontram fortemente imbricadas - como aliás acontece com todas
as instâncias - acontece uma sacralização do econômico e uma mercantilização do sagrado. Essa
“secularização do sagrado” que culmina em uma nova religiosidade na colônia adquire assim um
86
“Carta do Pe. Manoel da Nóbrega”. sd. RIHGB, ? , 1840, t2, 3a ed. Rio de Janeiro, Imp. Nacional, 1916, p. 288.
Também a Inquisição encontra sérias dificuldades para atuar na colônia em razão de sua extensão. A esse respeito,
vejamos o que disse Salvador da Maia: “e que se aqui viesse a Santa Inquisição que não haveria de durar muito”?
(Primeira Visitação do Santo Ofício, Denunciações da Bahia, p. 464). A respeito do tamanho da terra, diz ainda o
padre Vicente Rodrigues: “(...) vinde nos ajudar que somos poucos e a terra grande, e os demônios muitos, a
caridade mui pouca. Vinde mui cheios dela e nela trazeis toda a livraria do colégio; mais acaba esta que todos os
meios humanos”. (Cartas Avulsas: 1550-1568- Azpilcueta Navarro e outros. In Cartas Jesuíticas, vol. 2. Belo
Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1998, p. 140).
87
118
traço fundamental: a forte analogia com algumas relações econômicas. Isso acontece em razão
das condições peculiares em que a colônia surge: servir como instrumento de acumulação
capitalista na metrópole. E isso se reflete sobre as pessoas: “Porque esta gente do Brasil não tem
mais conta que com os seus engenhos e ter fazenda”.88 Até mesmo os castigos vão deixando de
ser morais para se tornarem mercantis e os jesuítas têm de aderir a esta tendência porque a culpa
parece começar a “pesar mais no bolso do que na consciência”: “E a confraria era desta maneira:
que todo o que jurasse por Deus ou pelos evangelhos se ele mesmo se fosse acusar, pagasse dois
réis: mas se não acusasse e o outro o acusasse, pagasse dobrado, os que jurassem outras juras,
assim como pelos santos ou por outras criaturas de Deus, pagassem um real”.89
Um dos pontos de fissura com o projeto utópico90 se dá em razão da adesão do religioso a
esse processo, tanto no que concerne aos dogmas, quanto a valores, quanto à sua hierarquia
religiosa, o que se configura na diferenciação clara entre metrópole e colônia, segundo a óptica
jesuítica:
“Os clérigos d’esta terra têm mais ofício de demônios que de clérigos, porque
além de seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrina de Cristo, e
dizem publicamente aos homens que lhes é lícito estar em pecado com suas
negras, pois que são suas escravas, e que podem ter os salteados, pois que são
seus cães e outras coisas semelhantes, por escusar seus pecados e abominações.
De maneira que nenhum demônio temos agora que nos persiga, senão estes.
Querem-nos mal porque lhes somos contrários a seus maus costumes e não
podem sofrer que digamos as missas de graça em detrimento de seus
interesses.”91
88
Op. Cit., p. 212. Também a hierarquia religiosa é contaminada pelos vis interesses seculares: “(...) porque os
clérigos e também os leigos ministros de Satanás que ao princípio a esta terra vieram, lhes pregavam e falavam por
interesse de seus abomináveis resgates”. (Idem, p. 102)
89
Antônio Gonçalves, “Carta de Porto seguro (1566)”. In Cartas Avulsas..., p. 500. Cria-se até mesmo uma
Confraria, forma encontrada pelos jesuítas para corrigir os desvios na colônia por meio de uma punição material. Se
o valores mercantis também têm de ser levados em consideração pela ética, em razão daexpansão do capitalismo
mercantil no mundo e na sociedade, nada melhor do que encontrar meios mercantis para corrigir as faltas morais:
“Não é também pequena a emenda e correção em extirpar os outros vícios. Para evitar os juramentos foi instituída
uma Confraria de Caridade: os que desejam entrar nela, se se acusam espontaneamente no caso de jurarem, pagam
certa quantia para o casamento de alguma órfã; se porém são acusados por outro, pagam o dobro. Deste modo, só
rarissimamente se pronuncia com irreverência o nome de Deus.” (José de Anchieta. Cartas-Correspondência Ativa e
Passiva. 2a ed. Pesquisa, introdução e notas de Hélio Abranches Viotti. São Paulo, Edições Loyola, 1984, p.44)
90
Literalmente isolados, tanto espacialmente falando, quanto socialmente (a respeito disso, vide capítulo primeiro):
“(...) e por isto digo que quanto mais longe estivermos dos velhos cristãos que aqui vivem, maior fruto se fará”.
(Manoel da Nóbrega. Cartas do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1988, p. 108).
91
“Carta do Padre Manoel da Nóbrega, mandada da mesma capitania de Pernambuco, o ano de 1551”, In RIHGB,
1865, t 4, 2a ed, p. 106.
119
Sônia Siqueira diz o mesmo a respeito da Inquisição. A esse movimento mais geral de
diferenciação que abrange tanto o tribunal da Santa Inquisição, como as hierarquias eclesiásticas,
Sônia Siqueira chama tropicalização de consciências: “O Tribunal de Fé, pelo menos por duas
vezes neste fim do século XVI e início do XVII, visitou o Brasil, alarmado talvez pela
tropicalização das consciências. Os oficiais da Inquisição teoricamente pelo menos deviam estar
descomprometidos com o meio, colocados acima das hierarquias civis e religiosas. Esperava-se,
portanto, desses homens que aqui vinham inspecionar, procedimentos lúcidos. Não se
demorariam o suficiente para serem também amoldados pela esfera social”.92
Também os métodos de catequização e propagação da doutrina se adaptam a esse
processo de mercantilização. Se na documentação Inquisitorial, a doutrina ficava comprometida
pela religiosidade popular que incluía feitiços, juramentos em vão, brincadeiras com o sagrado,
aqui, embora a doutrina permaneça intacta, graças ao rigor com que a tratam os membros da Cia.
de Jesus, seus instrumentos de propagação se alteram porque ela tem de ser traduzida para os
índios de uma forma que estes possam entendê-la. O uso de um língua que intermedeie a
confissão entre o padre, que na maior parte das vezes não fala o brasil, e o confesso, quebra com
o segredo de confessionário: “Com esta mulher confesso algumas índias cristãs, e creio que é
melhor confessora que eu porque é muito virtuosa”.93 O uso da mitologia indígena para se fazer
entender também é, de certa forma, uma quebra com a religiosidade. Até mesmo o direito
canônico é posto em evidência: “(...) há costumes nestas partes de se permitirem os gentios nas
igrejas, à missa conjuntamente com os cristãos, e não cristãos, e não os deitam fora por os não
escandalizar se se guardará o direito antigo ou se se permitirá estarem todos em mistura”.94 Os
índios não são hereges como mouros e, portanto, podem receber a doutrina. O problema é que
não a entendem. A mesma ruptura com relação à religiosidade ocidental que foi vista na
documentação Inquisitorial, é aqui reforçada.
A adaptação da instância religiosa frente às transformações econômicas se mostra também
no problema da mão-de-obra. A necessidade de mão-de-obra para a lavoura nos primeiros
séculos de ocupação da terra, fez com que os padres criassem o conceito de “guerra justa”,
apropriado dos próprios índios que guerreavam uns contra os outros e justificavam a vingança
por tal conceito. Cria-se uma zona de possibilidade de escravização do indígena, se este for
92
Siqueira, op. Cit., p. 55.
Nóbrega, Cartas do Brasil..., p. 150.
94
Cartas Avulsas..., p. 142.
93
120
aprisionado em guerra justa. Mais uma tentativa de conciliação entre os dois projetos.95
Percebamos que ao mesmo tempo em que uma esfera se impõe sobre a outra, provocando
rupturas, novas alternativas são criadas para a minoração de conflitos, retornando-se ao projeto
original. Continuidade e complementaridade; ruptura e isolamento convivem num mesmo espaço
Continuidade no que concerne aos espaços diferentes: entre metrópole e colônia.
Complementaridade no que concerne aos diversos projetos convivendo em um mesmo espaço:
entre catequização e colonização, por exemplo. Os diferentes embates entre os projetos na busca
pela complementaridade, pelo isolamento, ou pela dominação em relação a outro projeto é précondição para a ruptura em relação à metrópole, e portanto, para a diferenciação.
É natural que a imposição do poder secular sobre o religioso gere conflitos permanentes
entre uma esfera e outra. A prova mais cabal disso é o testamento que Mem de Sá deixa para sua
filha Felipa de Sá, com obrigação de que esta desse um quinhão para o colégio de jesuítas e outro
para a Santa Casa de Misericórdia. Cria-se uma verdadeira batalha entre os jesuítas e a Santa
Casa que acaba rebatendo sobre a disciplina jesuíta. A esse respeito comenta Wanderley Pinho:
“Bem viam os padres da Cia quanto por isso se desprestigiariam, e sentiam por essa luta pública
afrouxar-se-lhes a disciplina”.96 As contendas temporais em que se engendram é mais um
motivo de diferenciação interna à própria Companhia de Jesus.
No entanto, a despeito de uma clara sobreposição do secular sobre o religioso, surgem as
contradições decorrentes do fato de não existir uma separação definida entre ambos. Muitas vezes
inverte-se o movimento e nos vácuos onde o temporal não consegue atuar, entra a religião: “As
outras ficam sob jurisdição do bispo. Este se mostra afeiçoado e zeloso da conversão dos índios e
acode por eles muitas vezes onde falta a justiça secular por serem pessoas miseráveis e têm
particular necessidade do braço eclesiástico”.97 Isso também se dá em decorrência da própria
insuficiência da atuação das instituições jurídicas na colônia.
Quanto aos fenômenos relacionados ao Renascimento Cultural e às suas manifestações no
novo mundo, o primeiro ponto importante se refere ao emprego da razão na explicação de alguns
95
Na medida em que se consolida a produção voltada para o mercado externo, a visão paradisíaca do indígena vai
cedendo lugar à visão deste enquanto mão-de-obra. Novamente, na tentativa de se conciliar os dois projetos, surge o
conceito de guerra justa: “Na América portuguesa, a visão paradisíaca do indígena, característica dos primeiros
contatos e cuja expressão mais provável é a carta famosa do escrivão da armada descobridora, Pero Vaz de Caminha,
foi logo abandonada quando se iniciou a valorização econômica através da implantação da economia açucareira; ela
cede lugar à ‘guerra justa’e outras formas de preação do braço ameríndio para o trabalho compulsório da instalação
da grande lavoura”. (Novais, “O Brasil nos quadros...”, op. Cit., p. 60).
96
Wanderley Pinho. “Testamento de Mem de Sá”. RIHGB, 1941, v.3, p. 22.
121
fenômenos que antes tinham explicação estritamente sobrenatural. Nos Diálogos aparecem alguns
indícios disso por meio da importância dada à experiência, que é o meio pelo qual se expressa a
razão nesta época. Neste contexto, ciência é sinônimo de experiência. É somente no século
XVIII, o Século das Luzes, que a experiência se torna um instrumento para se chegar à ciência e
as explicações se desprendem de seu conteúdo religioso para se tornarem puramente racionais.
Os fenômenos passam a ser contidos em si mesmos, explicáveis abstratamente por suas
propriedades intrínsecas. Natureza se separa totalmente de sobrenatureza. No século XVI, no
entanto, a despeito de algumas explicações começarem a ser fundamentadas na experiência, os
fenômenos inexplicáveis continuam a pertencer ao âmbito do sagrado. O forte crédito dado aos
milagres é um exemplo da força da explicação espiritual dentro da sociedade seiscentista. Na
colônia não é diferente.98
Com as aventuras marítimas, a experiência passa a servir não somente para explicar as
coisas, mas para enriquecer mitos. Alguns deles, como o do Paraíso Terreal, adquirem uma faceta
ao mesmo tempo secular, ao mesmo tempo religiosa; ao mesmo tempo profana, ao mesmo tempo
sagrada. Essa parte profana tanto advém de elementos resgatados da Antigüidade Clássica como
das experiências dos aventureiros e conquistadores. Na América, o Paraíso não é somente uma
dádiva, mas se torna também uma construção. O mito do Paraíso se torna um mito dinâmico. O
movimento de sua modificação é o mesmo movimento da percepção da diferença: vai da natureza
para a sociedade. Primeiro ele é projetado totalmente sobre a terra e sobre o gentio. Depois,
conforme se avança o projeto colonizador, ele passa a se identificar com o projeto de
reconstrução da metrópole. A toponímia expressa esse desejo de reprodução: Nova Inglaterra,
França Antártica, Nova Lusitânia: “Quanto, Senhor, a esta Nova Lusitânia, posto que com muito
trabalho e com assaz fadiga, tanta quanta o Senhor Deus sabe, a cousa está bem principiada”.99
É muito corrente na historiografia dizer-se que o ideal de reconstrução só existe nas colônias da
América anglo-saxã em razão de que as famílias que para cá vêm são perseguidas religiosamente
e todo o futuro que têm está nesta terra. Por isso povoam ao invés de explorar. Na verdade,
colônia de povoamento e colônia de exploração são tipos ideais. Na prática, acontecem diversas
97
Manoel da Nóbrega. “Informação do Brasil e de suas capitanias”. RIHGB, 1865, t. VI, 2a ed., p. 420.
Os milagres já residem na própria natureza paradisíaca da terra que produz tudo com abundância: “(...) e basta para
o fazerem assentarem-se os índios, que vão nelas, no bordo que pretendem que se incline; e em outros tempos a
arrumam contra a vazante da mesma maneira; e estando assim inclinadas por espaço de duas horas, sem mais outro
beneficio, se enchem de peixe excelentíssimo, que por si salta nelas”. (Diálogos..., op. Cit., p. 23).
99
Cartas de Duarte Coelho..., p. 87.
98
122
combinações entre esses dois tipos. Nas colônias de povoamento, explora-se para povoar, nas de
exploração, povoa-se para explorar. Mais do que as colônias da América Espanhola, que como
sabemos, nasceram banhadas em ouro, são as colônias da América Portuguesa que se aproximam
das colônias da América Anglo-Saxã, porque se o ouro não nasce das minas, ele brota nas raízes
dos canaviais. Lá é a visão do deserto e da selva; aqui, o da natureza que oferece riqueza com o
mínimo esforço.100 Nesse caso, o ideal de povoamento se relaciona com o próprio fato de a
América Portuguesa ser uma colônia de plantação, cuja base material se relaciona com uma
sociedade minimamente estabelecida. Nesse sentido, muitas vezes o trabalho também é
valorizado, tanto quanto o ócio. As imposições do desbravamento da terra criam uma ética do
trabalho muito própria da elite que se identifica com a figura do povoador. Falam muito em
esforço e em suor, mesmo que este suor não seja saído de seus próprios poros, mas sim dos de
seus negros. As referências ao trabalho na terra se encontram tanto na documentação secular
como religiosa.
Há momentos em que se tem a impressão de que o Paraíso deixou de estar na natureza,
para estar na virtude e no trabalho dos homens. A estética não somente está relacionada à
formosura da natureza, mas principalmente à construção material associada à colonização, que
vence aquele caráter primitivo e inóspito da terra, para torná-la cada vez mais parecida com
mundo do qual se vem: “(...) vai tudo povoado de formosas fazendas e tão alegres da vista do
mar, que não cansam os olhos de olhar para elas”.101 Muitas vezes, o natural aparece ao lado do
artificial, convivendo em perfeita sintonia: “(...) vai a terra fabricada com fazendas e canaviais
(...) Toda [ela] por aqui é muito fresca, povoada de canaviais e árvores de espinho”.102 O que
antes era somente potencial da terra em produzir aparece como produção efetivada e a
abundância; o que era fertilidade, torna-se agora sinônimo de produtividade: “Das árvores, a
principal é a parreira, a qual se dá de maneira nesta terra que nunca lhe cai folha (...) e quantas
vezes a podem, tantas dá fruto (...) em todo o ano amadurecem e são muito doces e saborosas, e
100
“Assim, se os primeiros colonos da América Inglesa vinham movidos pelo afã de construir, vencendo o rigor do
deserto e da selva, uma comunidade abençoada, isenta das opressões religiosas e civis por eles padecidas em sua
terra de origem, e onde, enfim se realizaria o puro ideal evangélico, os da América Latina se deixavam atrair pela
esperança de achar em suas conquistas um paraíso feito de riqueza mundanal e beatitude celeste, que a eles se
ofereceria sem reclamar labor maior, mas sim como um dom gratuito”. (Holanda. Visão do Paraíso..., p. XIX. Grifos
nossos). O que estamos tentando mostrar, a partir da documentação é que na América Portuguesa, mais do que na
espanhola, se combinam a idéia edênica do deserto e da selva à idéia do paraíso mundano.
101
Gabriel Soares de Sousa. Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. 4a edição. São Paulo,
Ed. Nacional, 1971, p. 147.
102
Gabriel Soares de Sousa, op. Cit, p. 147-149.
123
não amadurecem todas juntas; há curiosos que têm nos seus jardins pé de parreira que têm uns
braços com uvas maduras, outros com agraços, outros com frutos em flor, outros podados de
novo”.103
Novos mitos também vão surgindo ao lado dos que vão sendo reciclados. O mito de São
Tomé é um desses exemplos. Não é à toa que é identificado por Sérgio Buarque de Holanda,
como um “mito luso-brasileiro”, denotando a indefinição entre o não mais ser luso, mas ainda
não sendo brasileiro.
Chegamos finalmente à última instância a ser analisada: a econômica. Assim como no
caso dos jesuítas, que têm um projeto utópico de catequização, que depois é rompido pelas
condições impostas pela terra e pelas regras ditadas pelo Sistema Colonial, também os tratadistas
têm um projeto utópico para a colônia: primeiramente a construção de um Novo Império104 a
partir da América Portuguesa; posteriormente, o projeto de construção de uma Nova Lusitânia.
No entanto, assim como aconteceu com os jesuítas, o projeto é rompido e o resultado concreto é
algo totalmente diferente. Os primeiros cronistas não poderiam enxergar que aqui não se poderia
produzir uma sociedade idêntica à metropolitana, desde logo pela sua função: a de fornecer
gêneros complementares à economia metropolitana e artigos de alta lucratividade que
proporcionassem a acumulação de capital comercial autônomo na metrópole. Isso não é
percebido em nenhum momento na documentação “arqueológica”, é percebido de forma parcial
nos Diálogos das grandezas do Brasil, mas também não o é de todo, como demonstra o afã de
Brandão em acabar com a negligência da terra produzindo gêneros de diversas castas. Não
percebe que o caráter complementar da colônia à metrópole é o que a obriga a ser pouco
diversificada para que exporte gêneros de interesse para o centro e importe produtos
manufaturados. Somente com Frei Vicente do Salvador é que esse caráter complementar é
percebido.
A tomada de consciência da diferença acompanha pari passu o desenvolvimento material
da sociedade colonial. De início, as percepções se restringem à natureza, exatamente porque
ainda não existe uma sociedade constituída. O objetivo é justamente o de arregimentar pessoas
para constituí-la. Daí o estilo exagerado no exaltar as qualidades, breve no diminuir os
103
Idem, idem, p. 166.
“(...) estará bem empregado todo o aumento que Sua Majestade mandar ter deste Novo reino, pois esta capaz para
se edificar nele um grande Império, o qual com pouca despesa destes reinos se fará tão soberano que seja um dos
Estados do mundo”. (Idem, ibidem, p. 39)
104
124
impropérios, útil ao informar tudo isso. Havia de ser ainda atraente, daí a exaltação do
maravilhoso, ora enchendo os olhos do leitor com pedras, safiras, moedas mil, ora atiçando a
curiosidade daquele com a narração de mitos quer fossem americanos, como o das amazonas, ou
de São Tomé, quer mitos apropriados da Antigüidade greco-romana, como o Eldorado, a Fonte
da Juventa, ou ainda mitos bíblicos, que aqui encontram seu lugar mais do que apropriado, com a
natureza abundante e com os rios que indicavam a presença próxima do Paraíso terrestre.
À medida que o povoamento vai se fazendo, o conquistador se transforma em
colonizador. O “colonizador” tanto significa aquele que desbrava para plantar, como aquele que
edifica morada, como simplesmente aquele que explora. Os valores dos homens são os mesmos
que se aplicam à natureza. A abundância, os excessos, o ócio estão todos eles relacionados à
lassidão da terra.105 Ainda assim, em nenhum documento estudado aparece a oposição nos termos
colonizador-colono. A oposição tão somente se refere ao lugar de moradia: o reino ou a colônia.
Daí a diferença percebida por Brandão residir no par colono-reinol. Essa oposição foi formulada
pela historiografia contemporânea: ao colonizador se associa o trabalho da exploração e ao
colono o trabalho agrícola. Aqui já se tem uma sociedade minimamente consolidada, com uma
organização material já definida e representada principalmente pelo engenho e por uma
organização mercantil da produção.
A percepção do diverso evolui para a consciência do diferente dentro da base material da
seguinte forma: de um projeto utópico de prolongamento e continuidade em relação à metrópole
para a percepção de sua posição complementar e subordinada àquela. Se a documentação
jesuítica e a Inquisitorial mostram que dentro da esfera religiosa acontece uma mercantilização do
sagrado, os Tratados mostram que também acontece o oposto: uma sacralização do econômico:
“Costumam eles [principais da terra] a primeira vez que deitam a moer os engenhos benzê-los, e
neste dia fazem grande festa convidando uns aos outros”.106 Isto guarda certa semelhança com a
105
“A terra em si é lassa e desleixada; acham-se nela os homens algum tanto fracos e minguados das forças que
possuem cá neste Reino por respeito da quentura e dos mantimentos que nela usam, isto é, enquanto as pessoas são
novas na terra, mas depois que por tempo se acostumam ficam tão rijos e bem dispostos, como se aquela terra fora
sua mesma pátria”.(Pero de Magalhães Gândavo. Tratado da Terra do Brasil, 5a edição. História da Província de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, (1576). 12a edição. Ed. De Leonardo Dantas. Recife, Fundação
Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 1995, p. 19) A transferência dos valores da terra para os homens cria uma
diferenciação entre os portugueses do Reino e os portugueses residentes na América Portuguesa.
106
Cardim, op. Cit., 198. A indignação do jesuíta ainda vai um pouco além. Também mostrando a relação íntima que
se estabelece entre a esfera econômica e a sagrada dentro dos parâmetros tipicamente coloniais (além de as esferas
estarem imbricadas, as relações que estabelecem umas com as outras adquirem uma nova dimensão, uma dimensão
que decorre da especificidade colonial), veja o que Cardim ainda diz: “Os encargos de consciência são muitos, os
pecados que se cometer neles não têm conta, quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; bem
125
não separação entre as esferas do público e do privado, conforme visto em frei Vicente do
Salvador. Tanto a imbricação entre as esferas do religioso e do econômico, como a continuidade
entre público e privado, denota um processo de especialização de espaços que ainda não está
concluído. Fernando Antônio Novais explica tal fenômeno: “(...) a imbricação das esferas do
público e do privado é uma das características marcantes da Época Moderna, do Renascimento
às Luzes (...) Entre a Idade Média feudal, quando no Ocidente cristão se configura propriamente
uma sociedade sagrada, e o mundo contemporâneo burguês e racionalista que se expressa na
laicização do Estado, estende-se essa zona incerta e por isso mesmo fascinante, já não feudal,
ainda não capitalista, não por acaso denominada de ‘transição’”.107 Dentro de uma ótica
weberiana, a divisão perfeita entre os espaços, de acordo com suas funções somente se
completará no século XIX e é fruto do mesmo processo que atinge a ética capitalista: o
desencantamento do mundo, fruto do desenvolvimento da razão ocidental.108
Ainda seguindo a mesma lógica, esse é um momento de indefinição entre magia e razão
no qual as relações entre os homens ainda são fortemente providas de um caráter pessoal. A
impessoalidade surge somente no momento em que o mundo é racionalizado. Ao contrário deste
momento em que tanto as relações internas ao Estado, como as que este estabelece com os
homens e ainda as que os homens estabelecem entre si são relações pessoais. Por esse motivo,
dentro desta sociedade, a honra ainda é um valor muito importante. Durante o processo de
centralização de poder por parte do Estado, a honra, que antes estava vinculada às relações
vassálicas, agora se vincula às relações entre o Estado e seus súditos. Na colônia, a relação
pessoal entre o súdito e o Estado ainda é mantida, mas os meios de obtenção de honrarias tornamse diferentes. Ao modo de vida tipicamente colonial, associam-se as honras obtidas das vitórias
cheio de pecado vai esse doce por que tanto fazem: grande é a paciência de Deus, que tanto sofre”. (Cardim, op.
Cit, p. 193).
107
Fernando Antônio Novais, “Condições de Privacidade na Colônia”. Op. Cit., p. 15.
108
O desencantamento do mundo acontece pela retirada de todo e qualquer conteúdo místico que possa perpassar
ainda uma sociedade capitalista. O processo de acumulação que possuía meios limitados por uma determinada ética,
torna-se um fim em si mesmo. A base racional do processo vai se convertendo no irracionalismo da acumulação pela
acumulação: “Somos tentados a pensar que estas qualidades morais pessoais não têm a mais superficial relação com
quaisquer máximas éticas, para não falar de idéias religiosas, mas que a relação entre elas é negativa (...).Em geral,
não há apenas uma ausência de qualquer relação entre as crenças religiosas e a conduta, mas também, onde existe
alguma, pelo menos na Alemanha tende a ser do tipo negativo. Tais pessoas, dominadas pelo espírito do capitalismo
tendem hoje a ser indiferentes, se não hostis para com a Igreja (....) os negócios com seu trabalho contínuo tornaramse uma parte necessária de suas vidas. É esta, de fato, a única motivação possível, mas ao mesmo tempo, expressa o
que, do ponto de vista da felicidade pessoal, é tão irracional acerca deste tipo de vida, em que o homem existe em
razão de seu negócio, ao invés de se dar o contrário”. (Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
126
contra os índios e contra outras agruras da terra. Uma das formas encontradas para substituir a
profissão das armas da nobreza tradicional foram as milícias locais. E tanto quanto a profissão
das armas, a “a atividade política era considerada pelos senhores de engenho um dever e um
privilégio. Como residentes permanentes (...) e homens bons – honrados e abastados – tinham o
direito de ocupar cargos na câmara municipal, o principal órgão de governo local”. 109 Também o
sucesso da empresa colonizadora e o enriquecimento do colono que a ela se dedicou, é um outro
meio de obtenção de honras.110 Essa mudança na forma como se vê a honra também está
relacionada a uma mudança no conceito de riqueza que surge com o capitalismo comercial.
Brandão, por exemplo, não mais valoriza a riqueza metálica, como os primeiros tratadistas, mas
valoriza a riqueza produzida pela terra e pelo trabalho. No entanto, esses atos heróicos e mesmo o
enriquecimento a partir da produção e comércio do açúcar parecem não ser reconhecidos pelo
nobre tradicional e mesmo o Estado tem certas reservas nas concessões de honrarias aos
colonos.111 Tanto é verdadeiro, que na colônia, as concessões jamais são herdadas.112
No entanto, há que se ponderar a diferenciação entre colonos e reinóis no que diz respeito
à postura perante a honra. Como sabemos, a política mercantilista e o surgimento do capitalismo
mercantil a ela indissoluvelmente ligado, fez com que ressurgisse a escravidão no mundo
moderno. Essa escravidão moderna associa-se não somente ao trabalho compulsório nas colônias
americanas, mas também à alta lucratividade do tráfico negreiro. Ao contrário da escravidão
antiga, o escravo pode ser vendido. Nas colônias em que o trabalho escravo se fez presente, a
sociedade adquiriu um perfil mais rígido, com estamentos sociais rigorosamente definidos.113 Isso
tinha implicações diretas a respeito da necessidade que os colonos, entenda-se a aristocracia
colonial, tinham em se igualar aos reinóis, diferenciando-se ao máximo da escravaria. Os
senhores de engenho tentam reproduzir aqui os meios tradicionais de obtenção de status: “Os
São Paulo, Livraria Ed. Pioneira, 1967, pp. 45/46). É a este processo irracional que associamos o desencantamento
do mundo.
109
Stuart Schwartz, Segredos Internos..., op. Cit., p. 232/233.
110
“Ao lado [das] opiniões negativas sobre os senhores de engenho havia o reconhecimento de sua riqueza”.
(Schwartz, op. Cit., p. 229).
111
Ao contrário da Coroa espanhola, que cria uma nobreza de títulos, reconhecendo o status nobre da elite colonial
“(...) a Coroa portuguesa era muito parcimoniosa nas concessões de foros de nobreza à classe dos senhores de
engenho ou quaisquer outros indivíduos na colônia (...) no Brasil, eles [os títulos] nunca foram concedidos”. (Idem,
ibidem, p. 230).
112
Idem, ibidem, p. 230.
113
“A sociedade se estamentiza em castas incomunicáveis com os privilégios da casta dominante juridicamente
definidos, que de outra forma seria impossível manter a condição escrava dos produtores diretos”. (Novais, “O Brasil
nos Quadros do Antigo Sistema Colonial.”, op. Cit., p. 62).
127
senhores de engenho ditaram os padrões sociais na colônia e foram os que mais se aproximaram
dos modelos vigentes na metrópole (...) A posse de vastas extensões de terra, apoiada no controle
de numerosos dependentes, caracterizara a nobreza em Portugal, e os colonizadores do Brasil que
estabeleciam propriedades açucareiras consideravam-se a nobreza da colônia. Em certo sentido,
eles eram uma classe social querendo passar por uma ordem ou estado medieval – novos ricos
que almejavam formas tradicionais de legitimação social”.
114
A despeito disso, os ditames da
sociedade colonial criavam a todo o momento diferenças entre os dois lados que não podiam ser
negadas. E da parte da classe dominante metropolitana fazia-se questão de lembrar a essa nova
classe as suas origens: “Não obstante, alguns dos primeiros senhores de engenho pudessem dizerse nobres em Portugal, a maioria, como vimos, provinha de origens menos ilustres. Cristãosnovos, comerciantes e imigrantes mais pobres foram atraídos para o Brasil porque a colônia
parecia oferecer oportunidades sociais e econômicas não facilmente disponíveis em Portugal. A
busca bem-sucedida da fortuna no contexto da colônia tropical subverteu as hierarquias
portuguesas de status, raça e riqueza e criou uma série de imagens negativas, que negaram aos
residentes do Brasil o reconhecimento social pelo qual tanto ansiavam”.115 Como dissemos, os
vetores de diferenciação agem em todos os sentidos. Nesse caso, é a nobreza metropolitana
tentando diferenciar-se da nova aristocracia que surge no âmbito da colônia.
3.3 Travando novos diálogos
Na medida em que se avança no estudo da documentação, percebe-se que os projetos de
catequização e colonização, que eram projetos díspares em princípio, passam a confluir. Tornamse complementares um ao outro. Com Padre Vieira no século XVII,116 há uma maior
aproximação dos objetivos da religião em relação aos objetivos seculares. No século XVIII, estes
114
Schwartz, op. Cit., p. 224.
Idem, ibidem, p. 229.
116
“No fim da carta que V. M. me fez mercê, me manda V. M. diga meu parecer sobre a conveniência de haver
n’este Estado, ou dois capitães mores, ou um só governador (...) Digo que menos mal será um ladrão que dois, e que
mais dificultosos serão de achar dois homens de bem que um (...) tais são os dois capitães mores em que se repartiu
este governo: N. de N. não tem nada. N. de N. não lhe basta nada; e eu não sei qual é maior tentação, se a
necessidade, se a cobiça. Tudo quanto já na capitania do Pará, tirando as terras, não vale dez mil cruzados, como é
notório, e d’esta terra há de tirar N. de N., mais de cem mil cruzados em três anos (…) o que além da injustiça que
faz aos índios, é ocasião de padecerem muitas necessidades os portugueses e de perecerem os pobres... Assim que,
Senhor, consciência e mais consciência é o principal e único talento que se há de buscar nos que vierem governar
este Estado”. (Padre Antônio Vieira. “Carta a el-rei de 4 de abril de 1654”. In Francisco da Silveira Bueno. Literatura
luso-brasileira. 3a ed. Refundida e ampliada. São Paulo, Edição Saraiva, 1951, p. 393).
115
128
projetos se fundem sob uma mesma identidade de contestação ao regime colonial, na passagem
da pré-história para a história do Brasil. No século XIX, ambos fazem parte de uma mesma nação
e compartem de uma identidade: a brasileira.
Entre o sentir-se diferente e o tornar-se brasileiro, há um espaço de três séculos. Espaço
este entre uma consciência de diferenciação diluída e uma identidade que se restringe muitas
vezes a saber-se não o que se é, mas o que se não é. O questionamento do que é ser “brasileiro”
gerou uma série de reflexões que ficaram consagradas como Interpretações do Brasil, destacandose entre elas, as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.
Curiosamente, na América espanhola, esse primeiro estágio da consciência de diferença ficou
marcado pelo fato de os colonos se auto-intitularem criollos desde o século XVII. Enquanto isso,
a única forma de consciência de diferença aparece no termo reinol, para designar aquele que
reside em Portugal. Não diria Alviano que era “reinol e novo na terra”?
Entretanto, é preciso ponderar essa aparentemente precoce consciência da diferença na
América espanhola, definindo os vetores de diferenciação aí presentes. Talvez isso também nos
ajude a definir um pouco melhor a consciência da diferença que surge nos Diálogos e que
encontra suas condições “arqueológicas” na documentação que a precede. Os vetores são os
mesmos da América Portuguesa, afinal, como dissemos no capítulo inicial, a história dos
descobrimentos é parte da história da Europa. Esse é o primeiro ponto comum entre América
Portuguesa e Espanhola. O segundo é que ambas são colônias de exploração, ou seja, designadas
para atender aos interesses de acumulação de capital primitivo na metrópole. Portanto, os
movimentos de diferenciação entre as classes do sistema são compostos pelos mesmos vetores:
entre as classes dominante colonial e metropolitana e entre a classe dominante colonial e as
classes dominadas da mesma sociedade. Ao mesmo tempo em que as condições de vida da
colônia criam uma diferenciação entre a camada superior colonial vis a vis classes dominantes na
metrópole, tanto burguesia, como nobreza, também a classe dominante na colônia preocupa-se o
tempo todo em diferenciar-se das classes subordinadas. Este segundo movimento de
diferenciação é proposital, ao passo que o primeiro é imposto pelos determinantes do Sistema
Colonial, passando desapercebido muitas vezes. Ao tentar diferenciar-se das camadas mais
populares dentro dessa sociedade já nasce estamental, a classe dominante colonial procura
adquirir os valores aristocráticos da nobreza metropolitana para reforçar seu distanciamento em
relação às primeiras. Compra títulos, reclama a concessão de honrarias pelo Estado, importa finos
129
tecidos para se vestir em pé de igualdade com a nobreza metropolitana, que embora decadente,
ainda reserva para si o monopólio da etiqueta, do bem vestir, da boa comida, enfim, do
comportamento cortês.117 O Antigo Sistema Colonial serve-nos como parâmetro das relações de
força entre essas classes que compõem o sistema: nobreza metropolitana, enquanto representante
dos valores de raiz, burguesia metropolitana, que controla o comércio em nível mundial,
aristocracia colonial, escravos e brancos livres pobres na colônia. Nesse sentido, o fato de os
colonos da América espanhola se autodenominarem criollos não significa necessariamente que
sejam mais conscientes de sua diferença em relação aos reinóis do que os portugueses, mas pelo
contrário, igualam-se a eles na tentativa de distanciar-se ao máximo das outras classes na colônia.
É sabido, que na América espanhola, diferentemente da portuguesa, o indígena tinha um forte
peso, em primeiro lugar pelo nível cultural das tribos indígenas ali encontradas. Em segundo
lugar, quando já da colonização e não tanto da conquista, o indígena era a mão-de-obra principal,
assumindo o mesmo papel que o negro no Brasil. Os sistemas de servidão indígena na América
espanhola, desde a encomienda e os repartimientos, que correspondem à exploração compulsória
do trabalho indígena nos primeiros séculos de colonização, até a mita e o cuatequil, que
correspondem ao recrudescimento da exploração do trabalho servil indígena na medida em que se
expandia a colonização e o trabalho minerador, comprovam esse fato. Dessa forma, o peso
cultural do indígena na América Espanhola representava um risco muito maior de aculturação do
europeu, o que o deixava “mal-visto” aos olhos dos demais europeus. Há, portanto que se
questionar se o termo criollo designava um distanciamento em relação ao reinol ou ao indígena.
Entretanto, qualquer que seja a intenção do criollo, se de questionamento às imposições
da Coroa espanhola,118 se de conivência com esta, o próprio fato de utilizar um termo específico
117
A respeito disso diz Cardim: “Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras
sedas, e nisto têm grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem freqüentam as
missas, pregações, confissões, etc.; os homens são tão briosos que compram ginetes de 200 e 300 cruzados, e alguns
têm três, quatro cavalos de preço. São mui dados a festas. Casando uma moça honrada com um vianez, que são os
principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e
outras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos. Aquele dia
correram touros, jogaram canas, pato, argolinha, e vieram dar vista ao colégio para os ver o padre visitador; e por
esta festa se pode julgar o que farão nas mais, que são comuns e ordinárias. São sobretudo dados a banquetes, em que
de ordinário andam comendo um dia dez ou doze senhores de engenho juntos, e revezando-se desta maneira gastam
quanto têm, e de ordinário bebem cada ano 50 mil cruzados de vinho de Portugal; e alguns anos beberam oitenta mil
cruzados dados em rol. Enfim, em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa. Os vianezes são senhores de
Pernambuco, e quando se faz algum arruído contra algum vianez dizem em lugar de: ai que d’el rei, ai que de Viana,
etc.”. (Cardim, op. Cit., p. 201/202).
118
“Like the settlements of the English in Ireland or America, or the Portuguese in Brazil, this new society was
intended to be a faithful image of one that had been left behind. Unlike either the English or Portuguese (or indeed
130
para designar a elite da qual faz parte é um indício de que se sente diferente. No primeiro caso, o
da diferenciação consciente em relação ao reinol, os hispano-americanos querem reforçar essa
diferença designando um termo específico para sua classe: uma nobreza americana com valores
próprios e diferentes, pelo menos em teoria, dos tradicionais. Essa é a posição de Nicholas
Pagden.119 Essa também é a posição de Fernando Novais, que diz que “Nas Índias de Castela
parece ter sido mais intensa essa tomada de consciência; lá, os colonos se nominavam criollos
(...) Quer dizer: os colonos hispano-americanos identificavam-se positivamente pelo que eram ou
acreditavam ser (“nós somos criollos”); os luso-brasileiros identificávamo-nos negativamente
(“nós não somos reinóis”), pelo que sabíamos não ser”.120 No segundo caso, o da aproximação do
colono em relação ao reinol, a criação do termo criollo ansiaria por anular o processo de
marginalização da nobreza tradicional em relação a essa nova aristocracia, adotando antigos
costumes dessa nobreza e discriminando as contribuições culturais do indígena dentro de um
processo sincrético que se impunha incondicionalmente. O fato de as independências terem se
sucedido antes na América Espanhola, que na Portuguesa, embora naquela tenha dado origem a
uma série de estados fragmentados, não nos deve conduzir à conclusão de que ali a consciência
da diferença positiva foi anterior também à portuguesa. A própria fragmentação da América
Espanhola por ocasião das independências e formações dos Estados nacionais nos leva a colocar
a possibilidade de convivência entre identidades extremamente heterogêneas sob o jugo espanhol.
Stuart Schwartz ainda acrescenta que na América Portuguesa, as primeiras sensações de
diferença não surgiram dentro da elite branca, mas ao contrário, dentro da comunidade mestiça:
“(...) o exame dos escritos de um grupo limitado de intelectuais eram os menos aptos a
desenvolver uma noção da diferença. Esses sentimentos provavelmente se alastraram mais
rapidamente entre os mestiços, os mamelucos e os pardos, que se sentiam pouco ligados a
Portugal e os quais, no final do período colonial, constituíam cerca de 40% da população da
colônia Infelizmente, dado que esse segmento da população era, em grande parte, analfabeto, é
the French), however, the Spanish settlers possessed a distinctive set of political aspirations. (…) the encomenderos
constant demands for a perpetual encomienda became source of bitter conflict with a crown that had no wish to see
the establishment in America of a social class it was doing its best to suppress at home”. (Anthony Pagden. “Identity
Formation in Spanish America”. Ed. by Nychols Canny & Anthony Pagden. Colonial identity in the Atlantic world :
1500-1800. Princeton; N.J., Princeton University Press, 1989, p. 53).
119
“The native-born (criollos) elite in Mexico and Peru, with whom this essay will be primarily concerned, had
already acquired by the middle of seventeenth century a clear sense of belonging to a culture than in many, if not yet
all, respects was independent of the “mother country”. In most other areas, economically more dependent upon
metropolis, such self-awareness came much later”. (Pagden, op. Cit., p. 51)
120
Fernando Antônio Novais, “Condições de Privacidade na Colônia”, op. Cit., p. 26.
131
difícil recapturar a percepção que tinham de si mesmos e do Brasil em que viviam”.121 Mazombos
e cabras,122 não surgiram para designar uma elite, como o termo criollo serviria para designar a
elite hispano-americana, mas ao contrário, camadas mais populares que se sentiam subjugadas
tanto pela aristocracia colonial, como pela metrópole.
O que há de comum é que tanto a América Espanhola quanto a portuguesa na medida em
que se aproximam do século XVIII vão adquirindo contornos próprios de uma nação, embora
nação de passado colonial, o que ficará eternamente gravado em seu destino. De mero
instrumento para a acumulação primitiva de capital na metrópole, a colônia foi consolidando um
mercado interno e realizando sua própria acumulação de capital.123 Poderíamos até mesmo fazer
uma associação entre formação do mercado interno e nação, mercado e identidade, se pensarmos
que a constituição do mercado interno, embora um fenômeno pertencente à esfera do econômico,
envolve uma série de peregrinações e estas, segundo Benedict Anderson também são criadoras de
identidade.124
Embora muitos associem o brasileiro ao herói sem nenhum caráter, o Macunaíma de
Mário de Andrade, não podemos dizer que a nação não se criou. Talvez esse caráter fluido seja
por si só a identidade. Esse debate, no entanto, está além de nossos propósitos. O que nos
propusemos estudar foram as condições de possibilidade para o nascimento da consciência da
121
Stuart Schwartz, “’Gente da terra braziliense da nasção’. Pensando o Brasil: a construção de um povo”. Cap. 4 de
Carlos Guilherme Mota. A viagem incompleta- a experiência brasileira (1500-2000). Vol II Formação-Histórias. São
Paulo, Ed. Senac, 2000, p. 112.
122
Stuart Schwartz utiliza o termo cabra para designar um conjunto de sensações comuns que são indicadoras já da
presença de uma identidade nacional: “(...) such a word might be used as a designation of his nationality signified a
transformation in the perception and discourse of national sentiments in Brazil. The use of such a term (…) certainly
did not portend the crumbling of color bar or the hierarchy of racial status, but the identification of nation with such
formerly despised elements as mixed-bloods or more commonly with romanticized version of the Indian was an
important sea change of self-perception”. (Stuart B. Schwartz. “The formation of a Colonial Identity in Brazil”. Ed.
by Nychols Canny & Anthony Pagden. Colonial identity in the Atlantic world: 1500-1800. Princeton; N.J., Princeton
University Press, 1989, p. 15).
123
A partir do século XVIII cria-se uma reprodução endógena por meio das minas e as relações de integração dos
diversos mercados regionais, bem como destes com os mercados externos, gera uma solidariedade específica entre os
mercados, ou seja, uma dada identidade.
124
Anderson compara os movimentos de peregrinação religiosos com os movimentos formadores do sentimento
nacional na América. Ambos são criadores de identidade. No primeiro caso, identidade religiosa; no segundo,
nacional: “Para nossos fins, a jornada modal é a peregrinação (...) Numa época pré-imprensa, a realidade da
comunidade religiosa imaginada dependia profundamente de inúmeras e contínuas viagens”. (Benedict Anderson.
Nação e consciência nacional. Trad. De Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, Ed. Ática, 1989, p. 64). Pelo fato de
a América estar subordinada à Europa em termos culturais, econômicos, políticos e sociais, a única forma de criação
de uma proto-identidade seria pelas peregrinações envolvidas no sistema colonial. E a função da peregrinação dos
funcionários peninsulares e dos magnatas criollos é o que explica a criação das comunidades imaginadas, mais do
que o Iluminismo, o liberalismo ou a independência das treze colônias norte-americanas. Em suma, Anderson
132
diferença, todas as sensações, as percepções, as constatações que a precedem e que sejam
importantes para o seu aparecimento. A consciência da diferença, por sua vez, é uma précondição do aparecimento da identidade e nesse sentido, ela integraria uma possível
“arqueologia” da nação. Mas isso já está muito além das possibilidades deste trabalho.
também busca uma explicação que seja endógena à própria colônia na criação de sua identidade. (Anderson, op. Cit.,
pp. 57-76).
133
Conclusão
Disse Mário de Andrade, em Prefácio jamais publicado em livro, a respeito de suas
intenções ao escrever Macunaíma:
“O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a
preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a
entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma
coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém
já tenha falado isso antes de mim, porém a minha conclusão é uma novidade
para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra
caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a
entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na
ação exterior no sentimento na língua na História, na andadura, tanto no
bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem
civilização própria nem consciência tradicional.
Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja
porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos
tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está
que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber
tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. (…)
Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão de
Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem
caráter.”.1
Aquilo a que Mário de Andrade se refere como caráter, é a identidade nacional que
vimos discutindo até agora. Ao contrário dele, acreditamos sim na existência de um caráter do
brasileiro, de uma entidade psíquica permanente - que é equivalente à comunidade imaginada
de Anderson - que reúne certos sentimentos que somente os brasileiros, enquanto membros de
uma mesma nação, conseguem ter. Se não acreditássemos nisso, esse trabalho não faria
sentido. Não faria sentido estudar as pré-condições para a formação de algo que não existe ou
nunca existiu. Portanto, o pressuposto desse trabalho é a própria existência da nação.
Nos clássicos conhecidos como interpretações do Brasil, a questão-chave é a mesma de
Macunaíma: existe um caráter brasileiro? Para responder a essa questão, todos eles resgatam o
passado da nação a fim de buscar os antecedentes desse caráter. Também em todos eles, essa
1
Prefácio Mário de Andrade à Macunaíma, não publicado na edição de 1928. Está publicado integralmente em
livro de Heloísa Buarque de Holanda, baseado em sua tese de mestrado, Heróis de nossa gente. Heloísa Buarque
de Holanda. Macunaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978.
135
reconstrução é tanto teórica quanto histórica. No caso de Gilberto Freyre, a construção da
nação é feita antes de um ponto de vista sociológico que histórico, embora este esteja
permanentemente presente. Em Sérgio Buarque, a construção funde a história à teoria
sociológica weberiana, principalmente enfocada nos tipos ideais. Por fim, a análise de Caio
Prado Júnior está toda fundada no materialismo histórico, que por pressuposto já é fusão entre
teoria e história. O trabalho “arqueológico” de construção da consciência da diferença também
é ao mesmo tempo lógico e histórico. A lógica, no entanto, reside mais numa lógica intuitiva
do que em uma lógica cinetífica. Esse ponto é a diferença em relação a Foucault. A identidade
pressupõe uma ruptura. Antes de sabermos o que somos, temos de saber o que não somos.
Antes de nos identificarmos com um grupo, temos de nos sentir diferentes em relação a outro
que nos serve de parâmetro. Tentamos construir essa consciência da diferença ao longo da
documentação, desde a carta de Caminha até a História de Frei Vicente do Salvador,
entretecendo análise literária e histórica.
Tentaremos agora encaminhar a conclusão do trabalho atravessando algumas das
sendas abertas por esses intérpretes. Para isso, procuramos uma questão comum que fosse
encontrada tanto nesses trabalhos, como no nosso também. Essa questão é a forma como
aparece a ruptura entre os que passaram a morar aqui e os que continuaram morando em
Portugal. Essa ruptura se expressa de diversas formas: entre o colonizador e o colono; entre o
português e o natural da terra; entre o morador de Portugal e o morador da terra; entre reinol e
colono. Antes da discussão do que vem a ser o brasileiro, os intérpretes procuram resgatar
algumas tradições portuguesas que ainda se encontram presentes neste brasileiro. Discutem
como alguns valores, ao serem para cá transplantados, sofrem uma transformação, seja
induzida pelo contato com uma natureza diferente, seja pela miscigenação com o índio e com o
negro, seja porque a própria condição de subordinação da colônia à metrópole provocam essa
mudança de caráter.
Dizia Gilberto Freyre em Prefácio de Casa-Grande & Senzala em 1933 que: “Nas
casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro: a nossa continuidade
social”.2 Antes que se fizesse, no entanto, uma continuidade entre os que aqui se criaram, fezse uma descontinuidade em relação aos que de lá vieram. Foi negando-se português que o
ibero-americano foi se fazendo brasileiro. Em Gilberto Freyre, essa negação vai se fazendo
2
Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. LXV
136
com a influência da ama de leite sobre o filho da sinhá, do moleque que serve de montaria ao
menino de casa-grande, da negra escrava que o principia nas artes do amor. A ruptura vai-se
dando lentamente pelas próprias condições impostas pela monocultura canavieira escravista. Se
de um lado, essa base material cria laços duros de sociabilidade, fundamentados
principalmente na relação entre o senhor e o escravo, de outro, essa relação é amolecida pelo
processo de miscigenação imposto tanto pelo sistema de produção, como pela escassez de
mulheres brancas: “A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre
vencedores e vencidos, entre senhores e escravos (...) O que a monocultura latifundiária e
escravocrata realizou no sentido da aristocratização, extremando a sociedade brasileira em
senhores e escravos (...) foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da
miscigenação”.3
Dessa forma, tanto a continuidade em relação ao adventício, como sua descontinuidade
é explicada pela família patriarcal. É a família patriarcal, que segundo Gilberto Freyre, se torna
a unidade colonizadora, intermediando as relações entre o homem e o ambiente que o cerca, e
daquele com outros homens, que, subjugados à experiência da monocultura da cana,
relacionam-se de formas bem peculiares, embora a estrutura patriarcal originária seja
conservada.4 A família patriarcal vai se moldando ao meio e à base material e isso se expressa
nos próprios contornos que adquirem as casas grandes. Tanto em Nordeste, como em CasaGrande & Senzala e Sobrados & Mucambos, a arquitetura expressa as relações sociais.
Abandonam-se os antigos solares portugueses e surgem habitações mais adequadas às
condições de vida na América tropical:
“A casa-grande de engenho que o colonizador começou, ainda no século XVI
a levantar no Brasil (...) não foi nenhuma reprodução das casas portuguesas,
mas uma expressão nova, correspondendo ao nosso ambiente físico e a uma
fase surpreendente, inesperada, do imperialismo português: sua atividade
agrária e sedentária nos trópicos, seu patriarcalismo rural e escravocrata.
Desde esse momento que o português (...) tornou-se o luso-brasileiro; o
fundador de uma nova ordem econômica e social; o criador de um novo tipo
de habitação (...) Distanciado o brasileiro do reinol por um século apenas de
3
Freyre, op. Cit., p. XLVIII.
“A formação patriarcal do Brasil explica-se tanto nas suas virtudes, como nos seus defeitos, menos em termos de
‘raça’e ‘religião’do que em termos econômicos de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui
a unidade colonizadora”. (Idem, ibidem, p. LI).
4
137
vida patriarcal e de atividade agrária nos trópicos já é quase outra raça,
exprimindo-se noutro tipo de casa”.5
Algo semelhante ao patriarcalismo de família aparece em Sérgio Buarque de Holanda
na forma do homem cordial.6 Na colônia, uma das manifestações disso é a visão do espaço
público como um prolongamento do privado; o civil como uma extensão da família. Isso já
havia sido expresso na célebre frase de Frei Vicente do Salvador de que toda a casa é uma
república7. Essa cultura da personalidade,8 como Sérgio Buarque a denomina, é caracterizada
pela importância dos laços afetivos na coesão social. O personalismo é parte da tradição
ibérica, comum tanto a portugueses como espanhóis. Na verdade é partindo dos traços do
caráter ibérico, que Sérgio Buarque vai compondo a ruptura do colono, luso-brasileiro ou o
hispano-americano, em relação ao reinol.
A rotina imposta pela colonização inaugura um novo tipo de aventura que é
caracterizada pelo modo de vida rural. Embora não tivesse tradição agrária forte, o português
aqui se tornou um homem mais ligado ao campo do que à vida urbana. As cidades,
instrumentos de dominação, segundo Sérgio Buarque, denotam, na América Portuguesa, uma
imposição do meio rural ao urbano. Expressam ainda o desleixo do português no que se refere
à organização dos espaços. O semeador, em oposição ao ladrilhador, o conquistador espanhol,
5
Idem, ibidem, p. LIII. Grifos nossos.
“Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo
expressões legítimas de fundo emotivo extremamente rico e transbordante. (...) A inimizade bem pode ser tão
cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do
familiar, do privado”. (Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. 26a ed. São Paulo, Cia. das Letras, 1995, p.
107) Em Gilberto Freyre, esse comportamento bipolar do homem cordial se deve ao fato de este ser mais movido
pelos afetos do que pelos sentimentos.
7
“O quadro familiar torna-se assim tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora
do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização
compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos,
não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas essas atividades. Representando, como há
se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais
normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem,
em toda a vida social, sentidos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma
invasão do público pelo privado, do Estado pela família”. (Holanda, op. Cit., p. 50)
8
Atentemos para o fato de que a personalidade é diferente do individualismo. Embora tenha um forte apelo
individual, o individualismo no sentido de qualquer ordenação impessoal da existência, é totalmente oposto a uma
cultura da personalidade. Tanto que o Estado Moderno brasileiro no século XIX, não se ordena por princípios
abstratos, mas continua a ser regido pelos laços de afeto e de sangue, tal qual a organização de uma família. Essa
cultura da personalidade também explica o caráter popular da religiosidade colonial, visto na documentação
Inquisitorial: “No Brasil, ao contrário [do Japão], foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor,
intimista e familiar a que se poderia chamar com alguma impropriedade ‘democrático’, culto que dispensava no
fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo (...)”. (Idem, ibidem, p. 111).
6
138
é a incorporação dessa assimetria na organização espacial: “Essa primazia acentuada da vida
rural concorda bem com o espírito da dominação portuguesa, que renunciou a trazer normas
imperativas e absolutas, que cedeu todas as vezes em que as conveniências imediatas
aconselharam a ceder, que cuidou menos em construir, planejar ou plantar alicerces do que em
feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão”.9 A ruptura entre o colono e o reinol
reside no aparecimento de um tipo eminentemente rural, a despeito de não provir de uma
cultura agrária.
Esse tema do modo de vida rural, também aparece no nosso último intérprete do Brasil
como uma forma de ruptura em relação à metrópole.
Para tratarmos de como ocorre a ruptura do colono em relação a algumas tradições
metropolitanas, principalmente em razão do modo de vida agrícola que aqui se criou e que
acabou por moldar um novo português, é preciso tratar antes de uma outra ruptura também
apontada por Caio Prado que é quanto ao que até então se entendia como colonização. Antes
que terras americanas fossem colonizadas pelos portugueses, a colonização como até então se
entendia, era sinônimo de feitorização. Ainda nos primeiros séculos após o descobrimento, é
esta que rege a ocupação da terra. A figura do traficante é mais presente que a do povoador. A
ausência de riqueza metálica levou a uma nova forma de ocupação da terra que tinha como
objetivo não somente a comercialização de produtos, como sua produção. Esta ruptura com a
antiga forma de colonização conduz à necessidade de se povoar, desligando-se do objetivo da
pura exploração. O povoamento se torna condição sine qua non para que esta seja feita.10 Esse
povoamento, no entanto, restringe-se ao litoral porque é aqui que se encontram as melhores
terras. O interesse central é produzir para o mercado externo. É esse que anuncia as melhores
oportunidades do momento e neste momento, a melhor oportunidade é o açúcar. A produção
para o mercado externo cria em torno de si um modo de vida baseado na grande propriedade
9
Idem, ibidem., p. 61.
“Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples feitorias, com
um reduzido pessoal incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa armada; era preciso ampliar estas
bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos
gêneros que interessassem ao seu comércio. A idéia de povoar surge daí, e só daí”. (Caio Prado Júnior. Formação
do Brasil Contemporâneo. 22a edição. São Paulo, ed. Brasiliense, 1992, p. 24)
10
139
agrícola11 e na mão-de-obra escrava. Esse complexo caracterizado pela monocultura
escravista voltada à exportação resume-se na unidade do engenho.12
Esse novo modo de vida, cuja função econômica é ser complementar à economia
metropolitana, começa a transformar o caráter português, criando um tipo humano novo,
embora a identidade se conserve portuguesa. Por exemplo, um traço de caráter que se adquire é
a extravagância. Isso se associa menos a um defeito de caráter do que ao sistema em que está
inserido: “(...) não se devem atribuir unicamente à incapacidade do colono (...) o mal era mais
profundo. Estava no próprio sistema, um sistema de agricultura extensiva que desbaratava
com mãos próprias uma riqueza que não podia repor”.13 Isso se casa perfeitamente com a
questão da negligência levantada por Brandônio.
Nascida do interesse mercantil metropolitano, essa sociedade carregará consigo este
estigma:
“Nos trópicos surgirá um tipo de sociedade inteiramente original (...) Há um
ajustamento entre os tradicionais objetivos mercantis que assinalam o início
da expansão ultramarina da Europa, e que são conservados, e as novas
condições em que se realizará a empresa daqueles objetivos (...) se manterão
aqui e marcarão profundamente a feição das colônias do nosso tipo,
deitando-lhes o destino no seu conjunto, e vista no plano mundial e
internacional, a colonização nos trópicos toma o aspecto de uma vasta
empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o
mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um
território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro
sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele
explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico, como no social da
formação e evolução históricas dos trópicos americanos”.14
Já não se admirava Frei Vicente de que o nome cristão de terra de Santa Cruz fôra
trocado pelo de Brasil, atendendo aos ditames de uma madeira de mercancia? Ou ainda não
11
“(...) é propriamente na agricultura que assentou a ocupação e exploração da maior e melhor parte do território
brasileiro”. (Prado Jr., op. Cit. p. 130).
12
“A grande exploração agrária – o engenho, a fazenda – é conseqüência natural e necessária de tal conjunto;
resulta de todas aquelas circunstâncias que concorrem para a ocupação e aproveitamento deste território que havia
de ser o Brasil: o caráter tropical da terra, os objetivos que animam os colonizadores, as condições gerais desta
nova ordem econômica do mundo que se inaugura com os grandes descobrimentos ultramarinos, e na qual a
Europa temperada figurará como centro de um vasto sistema que se estende para os trópicos a fim de ir buscar
neles os gêneros que aquele centro reclama e que só eles podem fornecer (...) Os três caracteres apontados: a
grande propriedade, monocultura, trabalho escravo, são formas que se combinam e se completam e derivam
diretamente e como conseqüência necessária daqueles fatores”. (Idem, ibidem, p. 120)
13
Idem, ibidem, p. 142.
140
corria pelos livros da Inquisição os falsos juramentos, a venda das culpas, a mercantilização do
que antes era puramente sagrado? E os jesuítas, que para corrigir tal sociedade, tiveram de
fundar uma confraria em que pecados e culpas também tinham o seu preço? A mesma
sociedade vista pelos olhares curiosos e interrogativos da época é aqui registrada por Caio
Prado na forma do sentido da colonização: “Aquele sentido é o de uma colônia destinada a
fornecer ao comércio europeu alguns gêneros tropicais ou minerais de grande importância: o
açúcar, o algodão, o ouro. (...) A nossa economia se subordina inteiramente a este fim, isto é, se
organizará e funcionará para produzir e exportar aqueles gêneros. Tudo mais que nela existe
(...) será subsidiário e destinado unicamente a amparar e tornar possível a realização daquele
fim essencial”.15 A distribuição dos núcleos de povoamento restritamente ao litoral que levou à
comparação de Frei Vicente de Salvador entre os colonos e os caranguejos que ficam pegados
à costa obedece a este mesmo fim, o fim mercantil, expresso no caráter de uma agricultura de
exportação: “Este desequilíbrio entre o litoral e o interior exprime muito bem o caráter
predominante da colonização agrícola – donde a preferência pelas terras férteis, úmidas e
quentes baixadas da marinha, e comercialmente voltada para o exterior, onde estão os
mercados para seus produtos”.16 A essa dispersão do povoamento se associa a ausência de
coesão social que não somente está presente na colônia, mas se transmite para a nação.
Seja por meio da unidade patriarcal, da cordialidade ou do ruralismo, esses três autores
procuraram no caráter do português algum traço que pudesse explicar o brasileiro. Estes três
alicerces representam tanto a continuidade como a descontinuidade em relação ao português. A
diferença vai sendo construída a partir do interior de uma mesma identidade, a portuguesa.
“Arqueologicamente” falando, a precessão da identidade é dada pelo sentimento da diferença
em relação ao outro. O “arqueológico” representa não somente a construção histórica, como
também lógica, do ponto de vista da sensação que precede a identidade. Antes de ser
brasileiros, fomos já portugueses e entre essas duas identidades existem uma série de outras
que foram se criando, principalmente as identidades regionais. Na sedição da Bahia em 1850 a
extensão do conceito de povo abarcava o povo baihense.17 Não se falava em brasileiro no
14
Idem, ibidem, p. 31.
Prado Jr., op. Cit., p. 131.
16
Idem, ibidem, p. 39.
17
István Jancsó. “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. Cap. 9 de
“Condições de Privacidade na Colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol.
15
141
século XVIII, como também não se falava em colono no século XVI. Usamos o termo colono
para designar um processo mais geral de diferenciação que vinha acontecendo, mas em
paralelo a ele, também vinham à tona as primeiras formas de identificação regional. Enfocamos
o caráter geral da identidade, mas não podemos nos esquecer de que as identidades regionais
surgem antes das identidades nacionais e ainda persistem depois do surgimento destas. No
processo de formação da identidade argentina, por exemplo, é somente no século XIX que a
identidade rioplatense, que desembocaria na identidade nacional argentina, começa a ser vista
com maior freqüência nos documentos oficiais. Antes disso, as formas de identidade são mais
comumente a provincial, ou local, e a hispano-americana, que incorpora a identificação fluida
entre a Espanha e a América. Antes da crise do Antigo Regime, as mais presentes eram a
identidade local e a americana. Com a crise e a série de declarações de independência e
formação de Estados nacionais americanos, o que começa a ser revogada é uma identidade
nacional. Principalmente como forma de justificar o nascimento desse Estado.18 José Carlos
Chiaramonte propõe portanto uma forma nova de se evitar o anacronismo peculiar ao estudo da
identidade nacional de nações de passado colonial a partir da convivência dessas três
identidades no momento em que a nação começa a dar seus primeiros passos indecisa entre o
passado subordinado a uma outra nação e sua própria história.19 Devido aos limites
Organizado por Laura de Melo e Souza. In História da Vida Privada no Brasil, Coleção organizada por Fernando
Antônio Novais. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 387-436.
18
“De manera que asistimos a un proceso en el que el sentimiento de español americano, que llevaba consigo un
comienzo de proyección política, pues extendía artificialmente el sentimiento de patria a toda América, por
necesidad de afirmación de derechos frente a una práctica discriminatoria de la nación española (...) declina sin
remisión (...) Al mismo tiempo, observamos que se va extendiendo, si bien lentamente y con altibajos, una
identidad rioplatense o argentina. Que esta variante haya sido la forma de identidad nacional que habría de
imponerse, no debe impedirnos advertir que tanto la tendencia hispanoamericana, como la provincial,
constituyeron otros tantos conatos de identidad nacional, como lo señalamos al comienzo, frustrados en su
desarrollo por motivos de diversa naturaleza. Y que esto es así nos los muestra también la dificultad con que la
identidad rioplatense o argentina logró expresarse como identidad nacional, tal como observamos en el lenguaje
de los primeros documentos político constitucionales”. (José Carlos Chiaramonte. “Formas de Identidad en el Río
de La Plata luego de 1810”. In Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana “Dr. E. Ravignani”.
Tercera Serie, num. 1, 1er semestre de 1989. Buenos Aires, p. 90)
19
“No es nuestro propósito explicar los procesos de formación de sentimientos colectivos expresados en la
afirmación de alguna forma de identidad, sino solo verificar y explicar la coexistencia, luego de la Independencia
de tres formas de identidad política – hispanoamericana, rioplatense o argentina, provincial (...) poco se ha
atendido a que el hecho mismo de su coexistencia, a la vez que reflejaba la ambigüedad en que se encontraba el
sentimiento colectivo inmediatamente después de producida la Independencia, traducía también, en el curso de las
variaciones de su importancia relativa, la dirección en que se movía el proceso de formación de una identidad
política dentro del crítico proceso de formación de nuevos países independientes”. (Chiaramonte, op. Cit., p. 7172).
142
institucionais impostos a esse trabalho, preferimos enfocar o âmbito mais geral ao invés do
particular, mas aqui atentamos para a convivência de múltiplas formas de identidade.
143
ANEXO
Alguns dos verbetes usados neste trabalho: 1
REINOL: reinol de reino; parece que no século XVI era vocábulo usado principalmente na
Índia: “Foram embarcados todos os Fidalgos reinóis (que assim chamam na Índia aos que
aquele ano vêm do Reino)”.2 Diogo do Couto. Décadas,3 V, III, 9; também se usava já pela
mesma época no Brasil: “não faltam baratas, traças, vésperas, moscas e mosquitos de tantas
castas, e tão cruéis, e peçonhentos que mordendo em uma pessoa fica a mão inchada por três
ou quatro dias, maximé aos Reinóis, que trazem o sangue fresco”. Fernão Cardim, Tratados da
Terra e gente do Brasil, pp. 108-109, ed. 1925.4
REINÍCOLA: rei + col (-cola-: elemento de composição culta que traduz a idéia de habitante.
Do latim colere “cultivar, tratar, cuidar de, habitar, praticar, honrar, adorar, praticar com
1
Fontes: Dicionário Etimológico J. P. Machado. 1a edição 1952-1959.
A. G. Cunha. Dicionário Etimológico. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.
2
O reinol, tanto na empresa puramente mercantil, como na empresa colonizadora, que une produção à
comercialização, significa aquele que “vem de fora”. No entanto, na empresa puramente mercantil, devido ao seu
caráter, a categoria reinol não implica em uma cisão tão profunda entre os que vêm de fora e os que ali residem.
Ela somente se contrapõe àqueles que habitam ali, juntamente com os nativos. Na empresa colonizadora, isso se
remete aos portugueses que vêm do Reino em contraposição aos portugueses que aqui residem, gerando uma cisão
dentro do que é ser português. Devido à complexidade da empresa colonizadora, que exige a instalação de todo
um complexo e com ele, de uma nova socieade, o termo reinol adquire também uma nova complexidade ao se
contrapor ao colono enquanto povoador, morador efetivo da terra: “Efetivamente, a empresa colonial é mais
complexa, envolvendo povoamento europeu, organização de uma economia complementar voltada para o
mercado metropolitano. Em outras palavras, pode-se dizer que nos entrepostos africanos e asiáticos, a atividade
econômica dos europeus (pelo menos nesta primeira fase) se circunscreve no limite da circulação de mercadorias:
a colonização promoverá a intervenção direta dos empresários europeus no âmbito da produção”. (Fernando
Antônio Novais. “O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial”. In Carlos Guilherme Mota (org.). Brasil em
perspectiva. Pref. De João Cruz Costa; org. e introdução de Carlos Guilherme Mota. 20 ª ed. Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 1995, p. 48)
3
Diogo do Couto (1542-1661). Décadas. Seleção, prefácio e notas de Antônio Baião. Lisboa, Livraria Sá da
Costa, 1947.
4
A qualidade que Cardim aponta nos reinóis é uma qualidade tipicamente natural: “Sobretudo tem este Brasil uma
grande comodidade para os homens viverem que não se dão nela percevejos, nem piolhos e pulgas he poucas,
porém, entre os índios, e negros da Guiné acham piolhos; porém não faltam barats, traças, vésperas, moscas e
mosquitos de tantas castas, e tão cruéis, e peçonhentos, que mordendo em uma pessoa fica a mão tão inchada por
três ou quatro dias, máxime aos reinóis, que trazem o sangue freso, e mimoso do pão e vinho, e mantimentos de
Portugal”. (Fernão Cardim. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Batista Caetano, Capistrano
de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro, Editores J. Leite & Cia., 1925, pp. 108-109). Já nos Diálogos, a
qualidade que Alviano aponta no reinol é uma qualidade já é uma qualidade estrutural, que não abrange somente o
estar, mas o ser: “O ser ainda reinol e vindo de pouco a esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos
antigos nela são patentes (...)”. (Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e revista por Capistrano de
Abreu. Salvador, Progresso, 1956, p.56).
145
respeito”). Reinícola é adapatação do latim regnicola (mais vulgar no plural), usado
especialmente no latim tardio na acepção de habitante do reino dos céus.
NATURAL: nascer do latim nascere: nascer de, tomar sua origem; nação: do latim natione:
nascimento, raça, espécie, tipo, tribo, nação, povo; no pl. nationes: os gentios, os pagãos nos
autores cristãos; nado: formada por nascimento, constituído pela natureza, destinado pelo
nascimento a, nascido para, que tem a idade de; nadio: do latim nativu “que nasce, que teve
nascimento, que tem um começo; inato; natural; não artificial”; natura do latim natura “o fato
de nascer, natureza; natural, estado natural e constitutivo de qualquer coisa; no homem,
natureza, natural, temperamento, caráter; a voz da natureza, a força da natureza, sentimento
natural; os dons naturais (do homem tanto físicos como intelectuais). 5
COLONO: de colonu por via erudita; cultivador, camponês, caseiro, rendeito, colono,
habitante da colônia no século XVI: “Distrito capaz para os nossos colonos”. (Monarquia
Lusitana, V, p. 1000, col. 2 (cit. De DV).
5
Não encontramos qualquer referência ao natural enquanto habitante da colônia.
146
Fontes
1. Fontes Editadas
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Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 584-586. Rio de janeiro, Tipografia Universal
de Laemmert.
“Carta de Jorge Fernandes a el-rei D. João III-07/1555”. In “Documentos Históricos”. RIHGB,
1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 579-581. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert.
“Carta do bispo do Salvador a el-rei D. João III-04/1554”. In “Documentos Históricos”. RIHGB,
1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 557-559. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert.
“Carta do bispo do Salvador a el-rei D. João III-07/1552”. In “Documentos Históricos”. RIHGB,
1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 582-583. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert.
“Carta do Bispo do Salvador para a rainha D. Catarina-09/1560”. In “Documentos Históricos”.
RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 588-589. Rio de janeiro, Tipografia Universal de
Laemmert.
“Carta do Padre Manoel da Nóbrega, mandada da mesma capitania de Pernambuco, o ano de
1551”. In RIHGB, 1865, t 4, 2a ed, pp. 285-289.
“Carta do Padre Nóbrega para o padre Mestre Simão, do ano de 1549”. In RIHGB, 1886. t. V, 3a
ed., pp. 461-462. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert.
“Carta que o padre Manoel da Nóbrega, Prepósito provincialda Cia. De Jesus, em o Brasil,
escreveu ao padre Mestre Simão o anno de 1549. MS. Copiado da Livraria Pública. In RIHGB,
1886. t. V, 3a ed., pp.457-460. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert.
“Carta que o Pe. Manoel da Nóbrega, Companhia de Jesus em as terras do Brasil, escreveu ao
Padre Simão, prepósito provincial da dita Companhia em Portugal no ano de 1549”. In RIHGB,
1886. t. V, 3a ed., pp. 463-470. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert.
“Carta que Vasco Fernandes Coutinho escreveu da Villa dos Ilhéus ao governador do Brasil
sobre cousas relativas ao mesmo Brazil durante o reinado de D. Sebastião-05/1558”. In
“Documentos Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 586-588. Rio de janeiro,
Tipografia Universal de Laemmert.
147
“Cartas de Duarte da Costa a el-rei D. João III- 04/1555”. In “Documentos Históricos”. RIHGB,
1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 559-579. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert.
“Cópia de uma carta do Brasil do Espírito Santo para o Padre Dr. Torres por comissão do Padre
Brás Lourenço de 10 de junho de 1562. Registrada a 20 de setembro do mesmo ano”. Fielmente
copiada do manuscrito que serviu de Registro das cartas dos Jesuítas do Brasil, desde o ano de
1549 até 1568. In RIHGB, 1840, t. II, 3a ed., Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916, pp. 432437.
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1o junho de 1560”- Copiada da coleção de Cartas Jesuíticas. MS. Da livraria Pública do rio de
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