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2022, Amílcar Cabral: um nacionalista e pan-africanista revolucionário

Posfácio ao livro "Amílcar Cabral: um nacionalista e pan-africanista revolucionário", de Peter Karibe Mendy, lançado pela Editora Lutas Anticapital.

Quando comecei a estudar o processo de libertação nacional de Guiné Bissau e Cabo Verde, me chamou a atenção uma bibliografia bem peculiar brasileira. Alguns títulos atravessaram a década de 1980, uma literatura típica da abertura da Ditadura, lançada pelas editoras que marcaram aquela década, como a Paz e Terra, Brasiliense, Codecri nada profundamente acadêmico, nenhuma tese grandiosa. Entretanto, as publicações demonstravam certo interesse, certa atenção àqueles territórios e ao seu povo. O Brasil se aproximava daquelas realidades. A leitura de Amílcar Cabral me marcou profundamente quando, em um de seus primeiros textos que li, o prefácio para o livro de Basil Davidson, ele descreveu uma das etapas da luta dos povos guineenses e caboverdianos como a “derrubada dos muros de silêncio”. Como historiador, senti de imediato a profundidade daquela afirmação. Uma das funções de nosso ofício é apontar, evidenciar silêncios. Quase nunca a falta de atenção a uma temática representa de fato sua importância no âmbito histórico. Quais silêncios estão presentes no Brasil? Em relação à África, como um todo, podemos dizer que devagar vamos avançando na divulgação, na educação e na pesquisa 229 acadêmica. Entretanto, alguns absurdos ainda se fazem presentes. Um deles está sendo combatido pela publicação que o leitor segura em mãos. Trata-se da primeira biografia de Amílcar Cabral editada no Brasil. O absurdo em nada tem a ver com a qualidade do texto e do historiador que o escreveu, por óbvio. O absurdo advém de que temos isto ocorrendo apenas no ano de 2022; do fato de que Amílcar Cabral foi uma das maiores personalidades do século XX; do fato de que nossas universidades se voltam cada vez mais para temáticas africanas; do fato de que a Guiné faz parte dos PALOP e, pela lógica, a aproximação para com o Brasil deveria ser por isso facilitada. Poderíamos elencar muitos outros absurdos. E, com ele, escancararíamos vários silêncios. De uma forma ou de outra, trata-se de combater esses silêncios, evidenciá-los e procurar minimizar seus efeitos. Estamos próximos do centenário de Amílcar Cabral (1924-2024) e esta publicação, é, gostaríamos de pensar, um marco. Figura tão proeminente no cenário mundial, cujo centenário se avizinha e corpus teórico já foi capaz de criar nos principais centros de pesquisa do mundo incontáveis artigos, inúmeras teses e dissertações e centenas de livros. No Brasil, nunca superamos (por enquanto) a categoria de underground, para a biografia e teoria de Amílcar Lopes Cabral. Embora seu nome seja conhecido e eventualmente reivindicado – inclusive pela aproximação que Paulo Freire nos concedeu – o nome deste revolucionário africano é, de fato, mais conhecido do que sua produção literária, científica e política. A provar isto está o fato de que sua obra foi nada ou quase nada publicada no Brasil, enquanto em países como Portugal, Inglaterra, Estado Unidos, França e Itália (e até mesmo Suécia!) circula com muito mais facilidade. Em 230 Cabo Verde, a Fundação Amílcar Cabral deu novo fôlego à obra do fundador de sua nacionalidade, reeditando sua obra e realizando outras publicações de seus textos, conferências, intervenções, etc. No típico descompasso brasileiro, em que por vezes somos apresentados a pesquisas de ponta sem ter à disposição uma série bibliográfica mais extensa que dê coesão aos conhecimentos, o livro de Peter Mendy é um alento para os pesquisadores e, como ele mesmo chamou, a geração jovem de cabralistas, pois oferece uma leitura de qualidade e plena das principais questões que orbitam a vida e a obra de Amílcar Cabral. Ficará muito mais fácil para os pesquisadores se ancorarem nesta leitura e partirem para estudos mais aprofundados. A própria bibliografia citada deve ajudar em muito no trilhar da pesquisa. Para o público brasileiro, que por vezes pouco conhece os líderes africanos e as suas obras (de forma mais ou menos fragmentada), o percurso que Mendy realiza sobre a realidade guineense e caboverdiana até Cabral e o “retorno” deste a elas, é muito positivo. Outro aspecto importante é que o leitor também tem em mãos um livro guineense. Os autores do texto, prefácio e orelhas, são todos intelectuais e escritores de diferentes gerações da intelectualidade do pós-independência da Guiné. O que faz do livro um verdadeiro documento a ser celebrado no Brasil. Voltando ao nosso país, convido o leitor, após já ter terminado o livro, a pensar e repensar aquelas perguntas que, de certa forma, parecem absurdamente clichês e ao mesmo tempo seguem essenciais: por que conhecer a biografia e obra de Amílcar Cabral no Brasil? Fugindo do senso comum, não se trata apenas de ampliar o conhecimento brasileiro sobre a realidade africana, 231 como se aquela, como chave mestra pudesse nos abrir portas, escancarar entradas e aberturas e permitir nos ver a realidade brasileira de forma completa. Desta forma poderíamos estar depositando nos africanos uma responsabilidade que eles não têm. Ademais, dotando sua produção literária com um intuito que também não tiveram (e as subsequentes leituras que façamos podem se contaminar fortemente disso). A biografia, a teoria de Amílcar Cabral e as produções literárias acerca dele nos servirá (defendo) na construção de um conhecimento brasileiro. Sobre a realidade brasileira, sobre nossos conterrâneos. Cabral sempre soube aliar a teoria à prática. Partir de estudos de sua terra para criar suas teorias de independência, unidade e progresso. Criou e recriou a famosa práxis. Todas estas questões estão presentes no estudo de Peter Mendy, e é uma das maiores lições que pode nos deixar. Como mencionei, o esforço em publicar mais obras de e sobre Amílcar Cabral no Brasil se faz já sob o signo de marcar seu centenário (setembro de 2024) em nosso país, procurando superar de uma vez por todas o embaraçoso descompasso que perdurou por tanto tempo. Que este muro de silêncio caia e nosso diálogo com Cabral comece. Gustavo Rolim Doutorando pela UFRGS, desenvolvendo pesquisa sobre as lutas de libertação nacional em Guiné e Cabo Verde 232