Artigo de Revisão / Review Article
Transição epidemiológica, estresse oxidativo e doenças crônicas não
transmissíveis sob uma perspectiva evolutiva
Epidemiological transition, oxidative stress and chronic non-communicable diseases
from an evolutionary perspective
Maria Gabriela Valle Gottlieb1, Alessandra Loureiro Morassutti2, Ivana Beatrice Mânica da Cruz3
1
2
3
Bióloga. Doutora em Ciências da Saúde. Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia Biomédica do
Instituto de Geriatria e Gerontologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Bióloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Zoologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Bióloga. Doutora em Genética e Biologia Molecular. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Bioquímica Toxicológica e em
Farmacologia da Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Ciências da Saúde.
RESUMO
Objetivo: realizar uma revisão narrativa sobre o papel das transições epidemiológicas no desequilíbrio do metabolismo
oxidativo envolvido na etiologia das doenças crônicas não transmissíveis, sob uma perspectiva evolutiva, ambiental
e sociocultural da espécie Homo sapiens.
Fonte de dados: as fontes consultadas foram as bases de dados Medline, LILACS e do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística.
Síntese dos dados: diversos estudos têm investigado o papel do metabolismo oxidativo na gênese das doenças crônicas
não transmissíveis, sugerindo uma associação entre a quebra da homeostasia celular e o aumento do risco para estas
doenças. Evidências sugerem que essa quebra na homeostasia e o surgimento das doenças crônicas não transmissíveis
tenham sido causados pelas transições epidemiológicas que iniciaram no Período Neolítico, com alterações entre as
relações ecológicas entre humanos, plantas, animais e patógenos. Essas alterações levaram à perda de diversidade
de alimentos, sedentarismo e poluição, criando distúrbios no equilíbrio redox celular e aumento da incidência das
doenças crônicas não transmissíveis.
Conclusões: mudanças ao longo da história evolutiva humana afetaram o metabolismo celular promovendo o desencadeamento de doenças crônicas não transmissíveis. Portanto, é fundamental compreendermos como essas mudanças
ocorreram e qual o seu impacto fisiopatológico no organismo, para identificarmos indivíduos que são mais suscetíveis a
desenvolverem doenças crônicas não transmissíveis, bem como para a construção de planos de ação para a sua prevenção.
DESCRITORES: ESTRESSE OXIDATIVO; EVOLUÇÃO BIOLÓGICA; DOENÇA CRÔNICA; TRANSIÇÃO EPIDEMIOLÓGICA;
ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO; HUMANOS.
ABSTRACT
Aims: To perform a narrative review on the role of epidemiological transition in the imbalance of oxidative metabolism
involved in the etiology of chronic noncommunicable diseases from an evolutionary, environmental and socio-cultural
perspective of the Homo sapiens species.
Source of data: The sources consulted were Medline, LILACS, and the Brazilian Institute of Geography and Statistics
databases.
Summary of findings: Several studies have investigated the role of oxidative metabolism in the genesis of chronic
non-communicable diseases, suggesting an association between the breakdown of cellular homeostasis and the
increased risk for these diseases. Evidence suggests that this breakdown in homeostasis and the emergence of chronic
non-communicable diseases has been caused by epidemiological transitions that began in the Neolithic Period, with
changes in the ecological relationships between humans, plants, animals and pathogens. These changes led to loss of
diversity of food, sedentary lifestyle and pollution, by creating disturbances in cellular redox balance, and increased
incidence of chronic non-communicable diseases.
Conclusions: Changes along the human evolutionary history affected the cellular metabolism by promoting the onset
of chronic non-communicable diseases. Therefore it is essential to understand how these changes occurred and their
pathophysiological impact in the body, for identifying individuals who are more susceptible to develop chronic noncommunicable diseases, and to build action plans for prevention.
KEY WORDS: OXIDATIVE STRESS; BIOLOGICAL EVOLUTION; CHRONIC DISEASE; EPIDEMIOLOGICAL TRANSITION;
HEALTH TRANSITION; DEMOGRAPHIC AGING; HUMANS.
Endereço para correspondência/Corresponding Author:
Maria Gabriela Valle Gottlieb
Hospital São Lucas da PUCRS – Instituto de Geriatria e Gerontologia
Av. Ipiranga, 6690, 3º andar
CEP 90610-000, Porto Alegre, RS, Brasil
Telefone: (51) 3336-8153 ramal 213 – Fax: (51) 3320-3862
E-mail: maria.gottlieb@pucrs.br
Scientia Medica (Porto Alegre) 2011; volume 21, número 2, p. 69-80
Gottlieb MGV, Morassutti AL & Cruz IBM – Transição epidemiológica, estresse oxidativo e doenças ...
INTRODUÇÃO
As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)
são as principais causas de morbimortalidade em
indivíduos com idade acima de 60 anos, tanto em países
desenvolvidos quanto em desenvolvimento, como é
o caso do Brasil. Muitos idosos são acometidos por
DCNT, sob forma permanente ou de longa duração,
que requerem acompanhamento constante, em razão
da sua natureza.1 Essas condições crônicas tendem a se
manifestar de forma expressiva com o envelhecimento
e, frequentemente, estão associadas a comorbidades
que levam à perda da autonomia e da qualidade de
vida. As DCNT com maior incidência e prevalência
entre o segmento idoso da população são as doenças
do sistema cardiovascular, o câncer, as demências,
a osteoporose e a síndrome metabólica, que inclui
um conjunto de fatores de risco cardiovasculares. 1
Dentre os mecanismos relacionados à patogênese das
DCNT destacam-se as alterações no metabolismo
oxidativo. As investigações para averiguar o papel
do metabolismo oxidativo na gênese dessas doenças
indicam uma associação entre a quebra da homeostasia
do metabolismo oxidativo e o aumento do risco
para as DCNT.2-8 Cerca de 5% do oxigênio utilizado
pelos organismos, via metabolismo oxidativo, não
é utilizado nos ciclos mitocondriais que produzem
energia. Esse oxigênio excedente tende a perder dois
elétrons na sua última camada, produzindo o radical
superóxido ou, também, por ações enzimáticas e
metabólicas adicionais, pode formar outros tipos de
moléculas desemparelhadas de oxigênio, que são
genericamente conhecidas como espécies reativas
de oxigênio (ERO).9 Por serem moléculas altamente
reativas, o organismo controla a sua degradação
através de dois sistemas antioxidantes integrados:
um endógeno enzimático, diretamente relacionado à
degradação do superóxido em água, e outro exógeno
não enzimático, no qual compostos antioxidantes
presentes na dieta atuam sobre as ERO produzidas
pelo organismo. Deste modo, o estresse oxidativo
é visto como um desbalanço entre a produção de
ERO e sua degradação pelos antioxidantes segundo
a necessidade de cada célula.10,11 Nestes termos,
o acúmulo ou o descontrole da produção de ERO,
ainda que não seja, necessariamente, considerado
um fator causal, mas atuando mais com um fator
modulador dos mecanismos envolvidos no processo de
envelhecimento, está associado a um grande número
de condições patológicas.6,12
Muitas evidências têm indicado que essa quebra na
homeostasia orgânica e o surgimento de DCNT tenham
sido causados pela transição epidemiológica que
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começou no Período Neolítico (10.000 a 4.000 a.C.),
devido a alterações nas relações ecológicas entre humanos, plantas, animais e patógenos. Essas alterações iniciaram-se com a domesticação de animais e
produção de alimentos (agricultura de subsistência),
culminando com o processo industrial, o que ocasionou perda de diversidade de alimentos, sedentarismo e poluição, criando uma dramática alteração do
equilíbrio redox da célula e instabilidade genômica,
bem como da ecologia das doenças e envelhecimento.13-15
Por isso, o conhecimento da história evolutiva
e sociocultural do Homo sapiens, passando pelas
Transições Epidemiológicas, é fundamental para
compreendermos a origem das DCNT na sociedade
contemporânea. Além disso, o entendimento de
como e por que essas mudanças, ao longo da história
evolutiva do ser humano, afetaram o metabolismo
oxidativo celular e sua ação fisiopatológica no
organismo, é fundamental para identificarmos precocemente indivíduos que são mais suscetíveis a desenvolver DCNT. Sobretudo, este conhecimento é
fundamental para a construção de uma estratégia
de saúde pública de acordo com as características
biológicas, socioeconômicas e culturais de cada
sociedade. Dentro deste contexto, o presente artigo tem
o objetivo de realizar uma revisão narrativa sobre o
papel das transições epidemiológicas no desequilíbrio
do metabolismo envolvido na etiologia das DCNT, sob
uma perspectiva evolutiva, ambiental e sociocultural
da espécie Homo sapiens.
MÉTODOS
Foi realizada uma revisão narrativa, tipo de
revisão adequado para descrever e discutir o “estado
da arte” de um determinado assunto, sob ponto de
vista teórico ou contextual, segundo a interpretação
e análise critica do próprio autor. Para tanto foram
consultados livros, artigos de periódicos e trabalhos
apresentados em eventos científicos. As bases de dados
pesquisadas foram Medline, LILACS e a base de
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). As buscas foram realizadas nos idiomas
Português e Inglês, através das seguintes expressões:
doenças crônicas não transmissíveis e envelhecimento/chronic non-communicable diseases and
aging, transição epidemiológica e doenças/epidemiological transition and diseases, evolução humana e
doenças/human evolution and diseases, etiologia
das doenças crônicas/etiology of chronic diseases,
estresse oxidativo e doenças/oxidative stress and
diseases.
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TRANSIÇÃO EpIDEMIOLóGICA E
ETIOLOGIA DAS DOENÇAS CRôNICAS
NÃO TRANSMISSíVEIS
O termo transição epidemiológica é entendido
como o processo de mudança na incidência ou na
prevalência de doenças, bem como nas principais
causas de morte, ao longo do tempo. Esse processo está
ligado a algumas alterações básicas: a) substituição
das doenças transmissíveis ou infectocontagiosas
por doenças não transmissíveis e causas externas;
b) deslocamento da carga de morbimortalidade dos
grupos mais jovens aos grupos mais idosos; e c) transformação de uma situação em que predomina a
mortalidade para outra na qual a morbidade é dominante.16, 17
O declínio das doenças infecciosas e o surgimento
das DCNT desenharam a demografia contemporânea e
promoveram o desenvolvimento de estratégias de saúde
pública no mundo industrializado. Omran,18 em 1971, foi
o primeiro a propor uma teoria epidemiológica sobre as
mudanças nos padrões de doenças. Esse autor verificou
que as populações humanas modelaram a transição
epidemiológica, passando de um estado de infecções
induzidas por patógenos para um estado de doença
crônica induzida pelo próprio homem, antecipando o
papel da poluição e de outros subprodutos da indústria
no processo de doença. Na sua teoria epidemiológica,
Omran elencou cinco fatores fundamentais para tal
fenômeno: 1) mortalidade e tempo médio de vida
são fundamentais para a dinâmica de crescimento
da população; 2) durante a transição, ocorre uma
mudança na mortalidade e padrões de doença em
que as infecções, especialmente entre crianças e
indivíduos jovens, gradualmente são substituídas por
doenças degenerativas e provocadas pelo homem,
até a posição dominante das DCNT em idosos; 3) no
decurso da transição epidemiológica, as mudanças mais
acentuadas na área da saúde e nos padrões de doenças
ocorrem entre crianças e mães, que resultam em uma
diminuição da mortalidade, seguida pelo declínio da
taxa de natalidade; 4) a transição epidemiológica está
intimamente associada com a transição demográfica
e socioeconômica, com mudanças no estilo de vida
e modernização; 5) variações na velocidade com que
essas mudanças ocorrem podem ser demonstradas em
três modelos básicos: a) o modelo clássico ocidental,
b) o modelo atrasado, e c) um modelo de aceleração,
por exemplo, o Japão após a Segunda Guerra Mundial
até 1970.18
Atualmente, existe uma tendência emergente de
se aplicar a teoria de Omran16,18 dentro de um contexto
evolutivo. Por exemplo, Armelagos et al.13 argumentam
que as populações humanas já passaram por duas
transições epidemiológicas e que atualmente estão
se encaminhando para uma terceira. A seguir serão
feitas considerações críticas relacionadas às transições
epidemiológicas humanas.
primeira transição epidemiológica
• Período Paleolítico
O Período Paleolítico estendeu-se de 500.000 a.C.
a 1.000 a.C. As tribos de hominídeos desse período
existiam como nômades e caçadores-coletadores
e tinham uma baixa expectativa de vida. Naquela
época não havia garantias de obtenção de alimentos
energéticos e nutritivos, já que sua obtenção era
estritamente dependente da natureza, o que levava à
ocorrência de períodos com abundância de alimentos
e períodos de fome. Por outro lado, como o homem do
paleolítico era nômade e não cultivava e nem produzia
o seu próprio alimento, a atividade física, o gasto
energético e as infecções eram variáveis constantes
na sua vida.19 A dieta paleolítica era baseada em carnes
magras, peixes, mariscos, frutas, legumes, raízes, ovos
e castanhas, não incluindo grãos e cereais.20
O padrão de doenças do paleolítico consistia
principalmente em doenças parasitárias. Sprent21 postula
que os parasitas que acometiam o paleohominídeo foram
herdados de hominídeos antropóides antecessores e
que permaneceram coexistindo depois da especiação
(processo evolutivo pelo qual as espécies vivas se
formam). Estima-se que as espécies de parasitas
humanos, incluindo bactérias, mais prevalentes desse
período, eram Pediculus humanus, Phthirus pubis,
Salmonella typhi, Staphylococci, Trypanossoma,
Schistosoma, Clostridium tetani, Trichinella, entre
outras.22 Além disso, os estudos mostram que as
populações do paleolítico não eram afetadas por
doenças infectocontagiosas como influenza, sarampo,
caxumba e varíola.13 Evidências mostram que,
como as mulheres eram basicamente coletadoras e
os homens caçadores, eles estavam mais expostos
a vetores de doenças na sua rotina de subsistência.
Esse ambiente poderia criar diferenças nas taxas de
infecções dependentes do gênero, ocasionando um
efeito desestabilizador na sobrevivência do grupo, bem
como na suscetibilidade a doenças e na expectativa
de vida.13
Desse modo, um dos fatores cruciais para as
variações na suscetibilidade a doenças e na expectativa
de vida do homem do paleolítico foi a periodicidade
entre abundância e escassez de alimento, causando
oscilações nos estoques de energia, bem como
alternância entre períodos de intensa atividade física
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e períodos de repouso.19,20 Esta foi a característica
decisiva do período paleolítico, do ponto de vista
biofisiológico, o que provavelmente poderia ter
conduzido à seleção de genes envolvidos na regulação
do metabolismo oxidativo. Nesse sentido, o genoma
humano foi selecionado a favor de um ambiente com
oscilações entre estoque de energia e intenso gasto
energético.23
• Período Neolítico
Uma vez garantida a sobrevivência da espécie no
Paleolítico, o ser humano enfrentou novos desafios
populacionais no período seguinte, o Neolítico (10.000
a.C. a 4.000 a.C.). Nesse período, a Revolução Agrícola
foi o marco crucial do velho mundo, que marca o
domínio do homem sobre a produção de alimentos e
o estabelecimento da vida sedentária em detrimento
da nômade. O desenvolvimento da produção primária
de alimento formou a base da mudança no padrão de
doenças.13 O modo de vida sedentário e a produção
agrícola levaram rapidamente ao acúmulo de alimento
excedente, o que impulsionou mudanças importantes na
sociedade humana. O rápido aumento da população e da
densidade demográfica, o sedentarismo, a domesticação
de animais, a extensiva quebra do equilíbrio ecológico
(ocupação de territórios para o monocultivo de alimentos
e inserção de espécies exóticas) e o surgimento de
desigualdade social são fatores que aumentaram o risco
de doenças infecciosas nas populações do Neolítico.13
Neste caso, o sedentarismo aumentou as infecções
parasitárias, devido à proximidade entre os recursos
hídricos e os descartes e dejetos humanos e dos animais
domesticados, que criaram, em conjunto, um ambiente
favorável a vetores de doenças.24 Aliada ao sedentarismo,
a agricultura de subsistência aumentou as deficiências
nutricionais, que tiveram grandes implicações na saúde
das populações. A agricultura de subsistência diminuiu
a variedade dos alimentos disponíveis aos indivíduos,
reduzindo o nicho dietético, o que pode resultar em
maior vulnerabilidade a doenças infecciosas. Assim,
a dieta humana, incluindo ingestão energética e gasto
energético, começou a se modificar ao longo dos últimos
10.000 anos, sendo que a maior mudança ocorreu
nos últimos 150 anos.14,20 As mudanças mais recentes
envolveram, principalmente, o tipo e a quantidade
das gorduras (ômega 3 e 6), fibras e vitaminas C e
E, bem como a inserção de produção e consumo de
novos alimentos, principalmente os cereais. Com a
inserção desses alimentos e a alteração no seu modo
de preparo, no Neolítico, houve uma disponibilização
maior de glicose ao organismo, modificando o padrão
de ingestão glicêmica e a densidade energética nesse
período, em relação ao Paleolítico.
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O final do Neolítico foi marcado por extensiva
urbanização e exploração de novos territórios, o que
resultou em intensas epidemias em áreas de contato.13
Apesar disso, as populações humanas superaram
as adversidades, mantendo o padrão reprodutivo e
de sobrevivência, alcançando gradativamente um
aumento na expectativa de vida, ao mesmo tempo
em que ocorria um desequilíbrio do seu metabolismo
energético, disparando o gatilho para o surgimento de
DCNT nas populações.
Segunda transição epidemiológica
A segunda transição demográfica ocorreu muito
recentemente, estando ligada à Revolução Industrial
e ao desenvolvimento científico, que permitiram
melhorias na sobrevivência das populações humanas, associada a um maior controle das doenças infectocontagiosas. Estes elementos tiveram como
consequência a diminuição na mortalidade infantil e nas
taxas de fecundidade, que foram determinantes para a
ocorrência do chamado fenômeno de “envelhecimento
populacional”. Tal fenômeno é notadamente marcado
pelo aumento proporcional no número de idosos da
população, que por sua vez tem como consequência
uma troca no perfil epidemiológico, já que leva ao
aumento na prevalência das DCNT.13,25
Terceira transição epidemiológica
Segundo os cientistas, as populações humanas estariam vivendo uma terceira transição epidemiológica,
diretamente relacionada ao ressurgimento de doenças
infecciosas, muitas das quais são resistentes a potentes
antibióticos e têm alto potencial epidemiológico e
pandêmico no que tange à sua rápida disseminação
global.26 Nesse sentido, o progresso contemporâneo
não eliminou a possível coexistência de doenças
infecciosas (febre hemorrágica, infecção por hantavírus
e vírus da imunodeficiência humana, pneumonias
atípicas, etc.) e DCNT, característica da segunda
transição epidemiológica.26,27 Apesar da emergência
da terceira transição, os problemas atuais ainda estão
fortemente concentrados no manejo das DCNT, que
ainda tendem a aumentar muito a sua prevalência
mundial.
DOENÇAS CRôNICAS NÃO
TRANSMISSíVEIS: UMA hERANÇA
NEOLíTICA
Segundo a Organização Mundial da Saúde, as
DCNT são responsáveis por 59% das mortes no mundo.
Gottlieb MGV, Morassutti AL & Cruz IBM – Transição epidemiológica, estresse oxidativo e doenças ...
A projeção para 2020 é que as DCNT acometam mais
de três quartos de todas as mortes no mundo, e que
71% das mortes por doenças isquêmicas do coração,
75% de mortes por acidente vascular encefálico e
70% de mortes por diabetes, ocorrerão em países em
desenvolvimento.28
As DCNT apresentam uma etiologia multifatorial,
onde a interação genético-ambiental tem um papel
decisivo. Os genes humanos foram selecionados no
Paleolítico, o que vem causando uma dissociação entre
o genoma e o estilo de vida moderno, promovendo o
desencadeamento de DCNT.19 Essa dissociação entre
genes selecionados ao longo de aproximadamente
dois milhões de anos e ambiente aconteceu muito
rapidamente, o que dificulta uma acomodação ou
adaptação genética. Conjuntos genéticos humanos
que garantissem menor gasto metabólico corporal
foram positivamente selecionados no Neolítico. Isto
porque os extensos períodos de fome e o grande gasto
energético para garantir a sobrevivência só poderiam
ser suportados por indivíduos que conseguissem
armazenar o máximo de quantidade de energia e
gastar a mesma de modo comedido. A profunda
modificação de um cenário de instabilidade dietética
para uma abundância de alimentos ricos em energia
e com menor necessidade de gasto energético, com
certeza teve um impacto metabólico. O aumento na
entrada da glicose e a diminuição do gasto energético
tem como resultado uma ativação dos adipócitos, que
passam a armazenar grande quantidade de energia
sob a forma de gordura (triglicerídeos).29 O aumento
do tecido adiposo, por sua vez, induz um processo
inflamatório que está diretamente relacionado ao
aumento do estresse oxidativo sistêmico.5 Por outro
lado, a constante ingestão de alimentos de alta energia
desencadeia aumento nos níveis plasmáticos de glicose
e, por consequência, liberação de insulina a fim de
direcionar a glicose excedente para o tecido adiposo.
Uma vez que a entrada da glicose, em grande parte
dos tecidos, é dependente de receptores de transporte
da glicose (GLUT – glucose transporter) a exposição
constante aos picos de insulina leva a um aumento na
tolerância dos receptores a este hormônio, resultando
em “resistência à insulina”.29 A resistência insulínica
é caracterizada por um aumento plasmático tanto
dos níveis de insulina quanto de glicose, já que a
passagem da glicose ao interior celular também fica
comprometida. Se o balanço energético positivo
persistir, esse quadro de resistência evolui para a
diabetes tipo 2, proporcionando o estabelecimento de
outras alterações metabólicas, como o aumento dos
níveis plasmáticos de lipídios, incluindo colesterol
total, HDL-colesterol (colesterol ligado à lipoproteína
de alta densidade), LDL-colesterol (colesterol ligado
à lipoproteína de baixa densidade) e triglicerídeos.29
Estas alterações servem como alavanca na alteração
de processos fisiológicos, onde a disfunção endotelial
tem um papel destacado e é desencadeadora da
aterosclerose. Isto porque a maior quantidade de
lipídios, especialmente de LDL-colesterol e de ERO,
permite a formação de subprodutos como a LDLoxidada.29 A migração de moléculas de LDL-oxidada
para o tecido conjuntivo desencadeia uma reação
inflamatória local, onde macrófagos são atraídos pelas
mesmas e as fagocitam. Consequentemente, ocorre um
acúmulo deste material dentro dos macrófagos, levando
à sua morte e à formação das chamadas “células
espumosas”.30 Estas células serão a base para a formação
das placas ateroscleróticas que são os fatores causais
das doenças cardiovasculares (DCV) como o infarto
agudo do miocárdio e o acidente vascular cerebral.31,32
A obesidade e a alteração glicêmica/insulínica também
impactam a fisiologia do controle da pressão arterial
sistêmica, propiciando a evolução da hipertensão. Deste
modo, o progresso da sociedade humana, que permitiu
uma disponibilidade maior de alimentos energéticos,
trouxe consigo alterações em cascata que levam ao
desencadeamento de diversas DCNT, como obesidade,
diabetes mellitus tipo 2, dislipidemia e hipertensão,
que formam a base da síndrome metabólica e das
DCV, todas estas consideradas entidades epidemiológicas diagnósticas da Segunda Transição Epidemiológica.33-35
As DCNT compartilham vários fatores de risco
modificáveis que estão associados à sua etiologia,
como sedentarismo, dieta inadequada, tabagismo,
obesidade e dislipidemia, bem como de origem
genética (mutações e polimorfismos genéticos, que
podem provocar síndromes progeróides e aumento da
susceptibilidade às DCNT).36,37 Nesse sentido, a origem
neolítica das DCNT evoluiu para duas novas linhas de
abordagem sobre os fatores causais da DCNT, dentre
as quais destacamos a hipótese de Barker33,38 e a teoria
dos radicais livres.39,40
A hipótese de Barker
Barker et al.33 postulam que as DCNT também
sofram influências de origem embrionária ou fetal,
relacionadas principalmente à nutrição, que atuariam
na vida intrauterina, programando o risco para o
desencadeamento de algumas DCNT e até morte
prematura na vida adulta. Esta teoria foi baseada em
estudos feitos em uma coorte histórica de Helsinki
(Finlândia), em que o peso corporal e o da placenta
ao nascer foram associados à ocorrência de DCV na
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fase adulta. Os autores observaram que crianças com
baixo peso ao nascer tinham um risco aumentado de
desenvolver DCV na vida adulta, independentemente
de outros fatores de risco.38 Como este mecanismo
funcionaria? Quando o ambiente intrauterino é precário
em termos de disponibilidade energética e qualidade
nutricional, essa situação desencadearia uma resposta
adaptativa do embrião ou feto, que optaria pelo
desenvolvimento de órgãos chave, como o cérebro, em
detrimento de outros, como as vísceras e, em especial,
o sistema cardiovascular. Essa programação fetal teria
como objetivo aumentar as chances de sobrevivência
do feto e resultaria num metabolismo pós-natal
alterado, o qual também teria o objetivo de aumentar
as chances de sobrevivência sob condições de nutrição
precárias e intermitentes. Por outro lado, essa alteração
poderia ser no futuro adulto o gatilho para o surgimento
das DCNT. Logo após o nascimento, na tentativa de
compensar as deficiências nutricionais intrauterinas,
ocorreria um ganho de peso exacerbado, que geraria
sobrecarga no sistema metabólico, propiciando maior
suscetibilidade às DCNT na adolescência e na fase
adulta, o que poderia também contribuir para uma
menor expectativa de vida.41 Em termos evolutivos,
podemos imaginar que o ambiente intrauterino poderia
servir como um “termômetro das condições ambientais
de disponibilidade energética”. Em circunstâncias de
grande falta de nutrientes, o embrião se prepararia
para armazenar, já na primeira infância, o máximo
possível de energia sob forma de gordura, garantindo
assim sua sobrevivência e reprodução às custas de
uma potencial morte precoce. Atualmente, o grande
problema relacionado a esta questão diz respeito
ao impacto das DCNT em populações com baixo
desenvolvimento econômico e, por consequência,
baixo aporte nutricional na gravidez. Além dos
problemas epidemiológicos relacionados com a
mortalidade infantil nesta fase, outros problemas
também se acumulam nos indivíduos sobreviventes,
já que eles acabam sendo mais suscetíveis às DCNT na
fase adulta e idosa. Assim, pode-se dizer que as DCNT
estão longe de serem doenças de pessoas com perfil
socioeconômico e cultural mais elevado, atingindo
toda a sociedade humana, ainda que por caminhos
diferentes.
ESpÉCIES REATIVAS DE OXIGÊNIO
E ESTRESSE OXIDATIVO: UM
SUBpRODUTO DA pRIMEIRA
TRANSIÇÃO EpIDEMIOLóGICA?
A teoria dos radicais livres, postulada primeiramente por Harman,39 é outra teoria relacionada
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com as DCNT e envolve diretamente o papel do
metabolismo oxidativo no envelhecimento e na carga
de morbimortalidade a ele relacionada. Harman
propunha que a maioria das mudanças ligadas ao
envelhecimento era causada aos danos moleculares
causadas pelos radicais livres, ou ERO.39 Essa teoria
baseou-se na observação de que a irradiação em seres
vivos levava à indução da formação de radicais livres,
os quais diminuíam o tempo de vida desses seres e
produziam mudanças semelhantes ao envelhecimento.40
O aparecimento da molécula de oxigênio na
atmosfera e da vida aeróbia foi um marco na evolução
dos seres vivos. Não só proporcionou enormes
benefícios, mas também algumas desvantagens.
Por exemplo, nos organismos aeróbios, a maior
parte do oxigênio é reduzida a água dentro da
mitocôndria, através da enzima citocromo oxidase,
que transfere quatro elétrons ao oxigênio. Entretanto,
em decorrência da sua configuração eletrônica
(triplet 302), cerca de 5% do oxigênio que se consome
tem forte tendência a receber um elétron de cada
vez, ou seja, a transferência de elétrons pode
ser realizada em passos monoeletrônicos, com a
formação de espécies intermediárias.42 Deste modo,
aproximadamente 5% de todo o oxigênio consumido
é convertido em ânion superóxido (O-2), que é uma
das ERO.
As ERO são geradas em todos os organismos
aeróbicos em condições metabólicas normais.
Também ocorre a formação destes compostos em
situações particulares, como pela exposição à radiação, produtos de células fagocitárias ativadas e
drogas. São exemplos de ERO o ânion superóxido
(O2●-), o radical hidroxila (●OH), o óxido nítrico
(NO●), o dióxido de nitrogênio (NO2●) e o peróxido
de hidrogênio (H2O2).
As ERO podem ser encontradas em praticamente
todas as organelas intracelulares ou compartimentos,
e podem interagir com proteínas, lipídios e ácidos
nucléicos, causando danos a essas moléculas. Cada
organela ou compartimento tem alvos potenciais
para o dano oxidativo, bem como mecanismos para
a eliminação do excesso de acumulação de ERO.42
Um desequilíbrio no balanço energético celular pode
ocasionar um aumento na produção de O 2•- e/ou
outras ERO, ou uma ineficiência na maquinaria
antioxidante endógena, gerando estresse oxidativo,
o que é danoso para organismo como um todo.
Alguns autores postulam o que o estresse oxidativo
está na base da etiologia de diversas doenças
associadas ao processo de envelhecimento43-62 (Tabela 1).
Gottlieb MGV, Morassutti AL & Cruz IBM – Transição epidemiológica, estresse oxidativo e doenças ...
Tabela 1. Relação de alguns estudos associando o estresse oxidativo com a etiologia das doenças crônicas não
transmissíveis.
Delineamento
Neoplasias
Bexiga
população
principais Resultados
Referências
Detectaram alta oxidação lipídica
em tecidos cancerosos e ainda baixa
atividade das enzimas antioxidantes.
Nível de estresse oxidativo
aumentado e diminuição de defesas
antioxidativas por vitaminas e
enzimas.
LIN+ apresentaram maior frequência
de genótipo VV da SOD2, associado
com o marcador Ki-67 positivo.
Alelo V da SOD2 está associado
com altos níveis de O2●-.
Aumento da atividade das enzimas
detoxificantes. Dano a proteínas, DNA
e lipídio aumentado, principalmente
em pacientes pré-menopausa.
papel protetor significativo de 25
(OH) D (3) contra o stresse em
células epiteliais de mama.
Níveis das enzimas antioxidantes
estavam aumentados nos tecidos
cancerosos.
Enzimas antioxidantes em tecidos
tumorais apresentaram baixa
atividade quando comparados com
os saudáveis.
Os níveis de metabólitos de
oxigênio reativos no soro foram
significativamente maiores em
pacientes doentes.
43
Os genótipos deficientes para
MnSOD e CAT apareceram com
mais frequência nos indivíduos com
carcinoma hepático.
51
Os indivíduos apresentaram
resultados semelhantes em ambas as
populações. Níveis aumentados de
malondialdeído e baixa atividade das
enzimas antioxidantes.
52
China – 150 casos e 122 controles.
Avalia a relação entre tioredoxinas e
homocisteína com Doença Coronária
Arterial.
Nepal – 28 pacientes com isquemia
cardíaca e 30 controles. Avaliou o
nível de peroxidação lipídica e a
atividade enzimática antioxidante no
plasma e urina.
Pacientes com Doença Coronária
Arterial apresentaram os níveis de
tioredoxina-redutase e homocisteína
aumentados.
Os níveis de estresse oxidativo e a
atividade enzimática antioxidante
estavam aumentados em pacientes
com isquemia.
53
Turquia – 23 casos e 12 controles.
Avalia a peroxidação lipídica e o
potencial oxidante no eritrócito.
Observaram que em pacientes
diabéticos o estresse oxidativo estava
aumentado, provavelmente devido à
hiperglicemia.
55
Ensaio Clínico
Controlado
Turquia – 25 pacientes com câncer
de bexiga e 15 controles.
Estudo de Coorte
Índia – 50 pacientes com câncer
urotelial de bexiga e 40 controles.
Estudo de Caso-Controle
Brasil – 93 casos de câncer de mama
invasivo (metástase no linfonodo
auxiliar-LIN+) e 188 controles.
Estudo Transversal com
grupos de comparação
Índia – 60 mulheres pré e pós
menopáusicas com câncer de mama.
Estudo in vitro
Examinaram se o 25(OH)D(3)
protege células epiteliais de mama.
Colorretal
Estudo in vitro
Rins
Estudo in vitro
Pulmão
Estudo Transversal com
grupos de comparação
Fígado
Estudo Transversal com
grupos de comparação
Próstata
Estudo Transversal com
grupos de comparação
Turquia – Examinaram 58 biópsias
de pacientes com câncer de colo
retal.
Sérvia – 15 pacientes com câncer
de rins – análise das enzimas
antioxidantes em peças cirúrgicas de
tecidos cancerosos e saudáveis.
Turquia – 38 pacientes com
câncer de pulmão e 26 saudáveis.
Realizaram a dosagem da formação
dos metabólitos de oxigênio reativos
no soro dos pacientes.
Marrocos – 96 casos, 122 controles.
Avalia os diferentes polimorfismos
de 3 genes antioxidantes e sua
suscetibilidade ao carcinoma
hepático.
Macedônia e Turquia – 312
indivíduos. Compara os níveis
antioxidantes e marcadores do
estresse oxidativo no plasma de
indivíduos com câncer de próstata,
hiperplasia benigna e indivíduos
saudáveis.
Mama
Doenças cardiovasculares
Aterosclerose
Estudo Transversal com
grupos de comparação
Isquemia
Estudo Transversal com
grupos de comparação
Doenças metabólicas
Diabetes Mellitus
Estudo Transversal com
grupos de comparação
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44
45
46
47
48
49
50
54
75
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Tabela 1 (continuação)
Delineamento
Obesidade
Estudo de Transversal
com grupos de
comparação
Síndrome
Metabólica
Revisão
Estudo Longitudinal
Doenças neurodegenerativas
Doença de
Estudo Transversal com
Alzheimer
grupos de comparação
população
principais Resultados
Referências
Sérvia – 178 pacientes e 134
controles. Avalia níveis oxidativos e
compara a influência da obesidade na
diabetes.
Compara os aspectos entre as
principais doenças relacionadas à
Síndrome Metabólica
Estados Unidos – 8.808 adultos
com idade >20 anos com ou sem
Síndrome Metabólica entre o
período de 1988-1994. Compararam
concentrações circulantes de vitamina
A, C, e E; e ésteres de retinol,
carotenóides e selênio
Pacientes obesos apresentaram níveis
elevados de leptina e marcadores de
estresse oxidativo.
56
O desenvolvimento da Síndrome
Metabólica está associado com o
estresse oxidativo.
Indivíduos com Síndrome Metabólica
apresentaram níveis diminuídos de
retinol, vitamina C, vitamina E e
carotenóides em comparação aos
indivíduos sem Síndrome Metabólica.
57
Estados Unidos – 30 pacientes
com Alzheimer, 17 com demência
vascular e 29 controles. Compara os
parâmetros oxidativos.
Argentina. Avalia o perfil oxidativo
em pacientes com Parkinson (n=15),
Alzheimer (n=18), Demência
Vascular (n=15) e Controles (n=14).
Os níveis de estresse oxidativo
foram caracterizados por diversos
marcadores e em ambas as condições
patológicas estavam aumentados.
Os marcadores de estresse oxidativo
apresentaram atividade aumentada
nos pacientes com Parkinson e alguns
parâmentros foram compartilhados
com as outras doenças.
Os níveis de peroxidação lipídica
estavam aumentados em ambas as
doenças. A enzima SOD apresentou
menor atividade em pacientes
com EAL e GSH-Px foi menor em
Parkinson.
As concentrações plasmáticas
de peróxido lipídico e lactato
estavam aumentadas em pacientes
sintomáticos e também apresentaram
a atividade das peptidases diminuída.
59
Parkinson
Estudo Transversal com
grupos de comparação
Esclerose
Amiotrófica Lateral
Estudo Transversal com
grupos de comparação
França – 31 pacientes com EAL,
24 com Parkinson e 30 controles.
Determinaram os níveis oxidativos e
antioxidantes no plasma.
Doença de
Hungtington
Estudo Transversal com
grupos de comparação
Espanha. Analisaram os níveis
plasmáticos de peróxido lipídico
e lactato, bem como disfunções
da mitocôndria e atividade
de enzimas proteolíticas em
pacientes sintomáticos e naqueles
assintomáticos, mas com o genótipo
da doença.
Esse aumento na geração de ERO pode ser causado
pelo próprio metabolismo do oxigênio, via reações
enzimáticas e não enzimáticas, além da respiração
celular.9 Quando as ERO são geradas por reações
enzimáticas, as principais moléculas envolvidas são as
lipoxigenases, cicloxigenases, óxido nítrico sintetase,
peroxidases e outras proteínas heme.63 Para conter os
danos causados pelos ERO, as células são providas de
mecanismos de defesa enzimáticos ou não enzimáticos.
Uma variedade de moléculas desempenha a função
antioxidante não enzimática, tais como as solúveis em
água, como a glutationa e o ascorbato, e as solúveis
em lipídeos, como o α-tocoferol e o ubiquinol. Defesas
enzimáticas incluem moléculas que são capazes de
remover ou neutralizar as ERO, como as enzimas
superóxido dismutases (SODs), glutationa peroxidases
(GPXs), peroxiredoxinas (PRXs) e catalases (CATs).41
76
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58
60
61
62
Os antioxidantes não enzimáticos ou exógenos são
obtidos basicamente de alimentos de origem vegetal e
desempenham um papel complementar na prevenção
de processos deletérios das ERO no organismo,
minimizando seus efeitos.64,65 Evidências sugerem
que esse balanço redox foi alterado ao longo dos
últimos 10.000 anos passados. A homeostasia orgânica
foi construída ao longo do Paleolítico, sujeita a um
ambiente interno e externo baseado na oscilação entre
alta ingestão calórica, fome e intenso gasto energético,
a qual proporcionou a seleção e adaptação do genoma
e do metabolismo energético humano. Alimentos ricos
em carboidratos simples, de fácil absorção, gorduras
saturadas, sal e potássio foram introduzidos na dieta
em detrimento de fibras, vitaminas e compostos
bioativos com potencial antioxidante.14 A abundância
de alimentos e o sedentarismo fazem com que as
Gottlieb MGV, Morassutti AL & Cruz IBM – Transição epidemiológica, estresse oxidativo e doenças ...
células funcionem num ciclo retroalimentável ou crie
um “ciclo vicioso”, como no caso da diabetes tipo 2,
na qual ocorre um aumento nos níveis glicêmicos, sem
que a glicose consiga entrar nas células, ao mesmo
tempo em que há um aumento na liberação de insulina,
resultando em hiperinsulinemia.
As células obtêm a energia de que necessitam
através da oxidação dos nutrientes. Essa energia
possibilita algumas transformações químicas e de
trabalho, tais como síntese química de moléculas,
trabalho mecânico, alterações de gradientes osmóticos
e elétricos e transferência de informação genética.29
Durante estas reações é liberada muita energia sob
a forma de calor para o meio externo, levando a um
aumento de entropia (grandeza que, em termodinâmica,
permite avaliar a degradação da energia de um sistema).
Todas essas reações que envolvem um fluxo de elétrons
são designadas de reações de oxidação-redução.29
Contudo, o aumento de lipídeos e carboidratos na dieta
induz a um aumento de produção de O2●- pela cadeia
de transporte de elétrons da mitocôndria. A evolução
humana fluiu em direção ao melhor aproveitamento e
armazenamento energético, visando a manutenção e
o reparo orgânico, tendo em vista os longos períodos
de escassez de alimentos, intempéries climáticas e
ambientais. O excesso de lipídeos é armazenado nos
adipócitos, e o de glicose, sob forma de glicogênio
e triglicerídeos, nos músculos e hepatócitos. Entretanto, como anteriormente comentado, como
esse padrão energético foi bruscamente alterado em
termos evolutivos, a quantidade de entrada de energia
nas células é muito maior do que a saída (feedback
negativo), causando um armazenamento maior de
gordura. Esse desbalanço entre entrada e saída de
energia é extremamente prejudicial, pois na presença
de maior quantidade de glicose, lipídeos e proteínas
disponíveis para o ciclo do ácido cítrico, mais doadores
de H+ se formarão, aumentando o gradiente de prótons
e a produção de O2●- e de outras ERO e promovendo
danos às macromoléculas celulares. 66 As ERO,
por serem altamente reativas, tendem a reagir com
lipídios, proteínas e ácidos nucléicos, em especial o
DNA. A reação com lipídios (peroxidação lipídica)
é um processo irreversível, e as células não possuem
mecanismos capazes de utilizar os produtos finais. A
incapacidade de realizar o turnover (processamento
ou reutilização) desses produtos tem efeitos
cumulativos. Por este motivo, tem sido sugerido que a
lipoperoxidação está diretamente associada ao processo
de senescência celular via alterações na estrutura e
fluidez da membrana, o que causa importantes alterações
funcionais, como aumento da permeabilidade vascular,
reação inflamatória e quimiotaxia leucocitária.42, 67 Por
outro lado, oxidação de proteínas afeta todo o sistema
celular e corporal, porque age na sua estrutura e função.
Por exemplo, o aumento da glicemia gera estresse
oxidativo que permite uma reação de glicação de
proteínas, como é o caso da formação da hemoglobina
glicosilada (ou hemoglobina glicada), utilizada como
marcadora da eficiência do controle glicêmico em
pacientes diabéticos. Danos oxidativos na molécula
do DNA, por sua vez, predispõem as células não só ao
acúmulo de importantes disfunções, mas ao aumento
da suscetibilidade ao desenvolvimento de neoplasias.
Desse modo, podemos considerar que o efeito do
estresse oxidativo no organismo é de alto impacto, em
cascata e sistêmico.
Alterações da dieta humana, a partir de uma
dieta paleolítica até o padrão atual de consumo, têm
resultado em mudanças profundas na epidemiologia das
doenças. Isto influenciou negativamente os parâmetros
dietéticos sabidamente relacionados à saúde, resultando
em aumento da obesidade, DCV, diabetes e câncer.
Alguns estudos de intervenção mimetizando padrões
alimentares do Paleolítico têm demonstrado resultados
promissores com mudanças favoráveis nos fatores de
risco para DCV e diabetes. Os autores sugerem que
seria vantajoso investir na promoção de alimentos
funcionais que o homem do Paleolítico consumia,
como por exemplo, ácidos graxos ômega-3, polifenóis,
fibras e esteróis vegetais, devido aos seus efeitos
antioxidantes benéficos à saúde, reduzindo o risco de
DCNT.68 Alguns estudos mostram que dietas pobres em
compostos antioxidantes aumentam o risco para DCV e
diabetes. 58 Contudo, adotar um estilo de vida saudável
(dieta rica em antioxidantes e fibras, atividade física
moderada e regular) e um ambiente ecologicamente
equilibrado necessita de investimentos em políticas de
educação para a promoção da saúde, pautadas em uma
abordagem integrada e interdisciplinar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cada vez mais a literatura sugere que o estresse
oxidativo está na base da etiologia das DCNT, principalmente das DCV, diabetes tipo 2 e câncer. O
estresse oxidativo promove danos às macromoléculas
e à membrana celular, causando disfunção endotelial,
aumento do processo inflamatório, disfunção mitocondrial e alteração do padrão de metilação do DNA,
o que poderá levar ao desenvolvimento de doenças.
As evidências científicas sugerem que a quebra da
homeostase do metabolismo oxidativo provavelmente
ocorreu quando os humanos deixaram de ser nômades,
tornando-se sedentários e, consequentemente, alterando
o seu hábito alimentar, no Neolítico. Isso acarretou
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77
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distúrbios metabólicos e instabilidade genômica
(aumentando a probabilidade de ocorrerem mutações
e aberrações cromossômicas), principalmente devido
ao excesso de ERO resultantes da respiração celular.
Esta hipótese torna-se consistente, uma vez que alguns
autores mostram que a mitocôndria produz mais radical
livre quando o organismo está em repouso, respirando
em ritmo lento e consumindo pouco oxigênio. Quando
a mitocôndria está trabalhando ativamente, mais oxigênio é consumido e menos ERO são geradas.69,70 Em
paralelo, outros autores demonstraram que quando
ocorre uma formação excessiva de glicose-6-fosfato,
isso devido ao excesso de glicose na corrente sanguínea, ocorre uma estagnação dessa atividade, a respiração celular fica lenta e a glicose não é mais consumida reproduzindo os sintomas da diabetes.71-73 Desta
forma, parece que o sedentarismo aliado a uma dieta
hipercalórica são fatores que promovem um desequilíbrio no metabolismo energético celular, sugerindo que
o estresse oxidativo pode ser um evento primário e desencadeador de DCNT, e não um evento subsequente.74
Dentro deste contexto, é importante ponderar
alguns aspectos cruciais para o entendimento de como
o ser humano evoluiu a partir do paleolítico: 1) a
conformação anatômica músculo-esquelética humana
é destinada para o movimento (longas caminhadas,
dispersão continental e fugas de animais selvagens
e de catástrofes ambientais); 2) a arcada dentária
mais aberta é característica de hominídeos e reflete a
alimentação onívora (diversificada); 3) o cérebro e a
caixa craniana maiores proporcionaram a inteligência,
a articulação da fala e diferenças comportamentais
(necessita de um aporte energético mais denso, porém
de qualidade); 4) o sistema gastrointestinal mais
eficiente (estômago e intestino maiores) proporcionava
um maior armazenamento do alimento rico em fibras
insolúveis e uma absorção mais lenta do mesmo para
prover energia em tempos de escassez de alimento; e
5) um ambiente natural saudável sem contaminação
do solo, água e ar por poluentes.13,23,75,76 Entretanto,
ao longo da evolução, o ser humano, com suas
ações, alterou profundamente o equilíbrio entre o seu
estilo de vida e o meio ambiente. Estilo de vida que
passou a ser sedentário, com menos horas de sono,
com dieta hipercalórica, de rápida absorção intestinal
e pouco diversificada, consumo de tabaco, álcool e
medicamentos de forma indiscriminada e com a adoção
de uma conduta não eticamente ecológica em relação
ao meio ambiente. Com relação ao meio ambiente, é
fundamental levar em consideração o profundo impacto
negativo que o processo industrial e seus subprodutos
tóxicos causaram à saúde, não somente dos humanos, mas de toda a vida na Terra. Um exemplo desse
78
Sci Med. 2011;21(2):69-80
efeito danoso em humanos diz respeito à epidemia de
obesidade no mundo. Segundo Baillie-Haminton,77
a causa da epidemia de obesidade em sociedades
industrializadas, como Estados Unidos e Inglaterra,
ultrapassa a questão de manter um padrão de dieta
e atividade física saudável. O fator desencadeador
desse distúrbio do peso seriam os subprodutos tóxicos
que a indústria libera diariamente no solo, na água e
no ar, e que acabam sendo incorporados nas células
adipócitas.77 Durante a perda de peso, os adipócitos
se encolhem e liberam essas substâncias de volta para
a corrente sanguínea, atacando órgãos vitais como
cérebro, fígado e rins. Diversos estudos têm mostrado
que esses produtos químicos atuam como disruptores
endócrinos, alterando profundamente o metabolismo
dos organismos, desencadeando processos tumorais,
neurodegenerativos e ganho de peso.78-81
Esse conjunto de fatores incide diretamente sobre
os nossos genes e pode levar a mutações e/ou modificação do padrão de expressão gênica (epigenética),
alterando dramaticamente o metabolismo celular. Isso
pode provocar queda do metabolismo basal, levando
a maior produção de ERO e maior probabilidade de
incidência de DCNT nas populações. Nesse contexto,
é essencial investir em uma agenda científica e
tecnológica de investigação interdisciplinar para
se elucidar os fatores envolvidos na etiologia e os
mecanismos fisiopatológicos das DCNT, que, em
última instância seja aplicável à saúde pública. E
esse planejamento deve passar necessariamente pelo
profundo conhecimento antropológico, geográfico,
ecológico, epidemiológico e genético, integrados aos
princípios evolutivos, para a construção de planos de
ação que possibilitem identificarmos indivíduos que
são mais suscetíveis a desenvolver DCNT, bem como
ao combate da incidência dessas doenças ao longo do
envelhecimento das populações.
AGRADECIMENTOS
Ao Programa Nacional de Pós-Doutorado da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) pela bolsa e auxílio financeiro.
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