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Sobre a escrita

Ensaio literário escrito para a revista Leitura: Teoria & Prática.

Texto Literário TEXTO LITERÁRIO Sobre a escrita Alan Victor Pimenta1 estaria igual. Chegariam gritando, atravessariam poças d’água, fariam guerra de lama. Por fim, as mães. Todas voltariam, todas gritando. Talvez uma ficasse e sujasse com lama um muro de casa. O muro estaria marcado do vermelho da lama. O que era mesmo aquela ideia, a infância? Do que era feita? De que lições eram feitos os muros de pedra para a infância? A rua pararia de correr. O menino teria corrido. A mãe o receberia às chinelas. Ao longe, a chuva salpicaria. Perto seria toda confusão de cinzas e brancos. Desde há muito que a cidade não teria parado. Ainda assim não seria possível vê-los. Se pudesse ver pelas portas, a cidade estaria repleta. Para qualquer um que pintasse uma paisagem, pico vertiginoso seria aquele que despontasse acima da uniformidade dos cumes. O caminho apertado entre duas montanhas receberia o nome ravina; a água apertada entre duas montanhas receberia o nome torrente. Aquilo que se estendesse uniformemente a perder de vista receberia o nome vertente. Quem se apoiasse nisso procederia grosseiramente segundo a aparência da paisagem. Um alarme dispararia. Difícil entender uma cidade de ruas vazias e os barulhos que faz. Ontem teriam encontrado o carro da vizinha. O homem dentro do carro teria sido trucidado. Por fim, ele nada saberia do roubo, seria trucidado de novo. Ao longe, seriam homens batendo. Perto, seria profusão. Ela acreditaria na existência de bandidos. Mesmo se a encorajassem aos tapas, mesmo se lhe mostrassem o homem e sua cara, e a vizinha aos berros, não bateria. Nem nos que batessem. Talvez por ver que, de perto, os que batessem seriam os mesmos que conversariam de voz mansa quando Então escrevo para a Leitura. Este é um artigo que quer ser imagem e conto. A personagem deste conto seria, então, autora do artigo que você leria como quadro. Essa personagem-autora teria andado por horas sob o sol e se sentaria sem camisa para escrever. Estaria sem assunto. Se fosse escrever, escreveria sobre o Sol. Mas seria agora a estação das águas. À Leitura seria necessário escrever sobre olhos. Se olha, se enxerga, se finge não ver, sempre se esconde aqui e lá um sentido outro, um outro sentido para os olhos de mais tarde. Também assim se enganaria o tempo. Olhos, sol, chuva, você atravessaria a chuva e seria atravessado por ela. Também seria necessário que ela escrevesse assim, com pingos de chuva, esses pingos todos que se atravessariam no chão e pouco a pouco escorregariam pela rua. O sol sobre a chuva. A chuva abaixo do sol seria feminina e de nome Manhã. O sol estaria sobre tudo o que você veria. Esse seria o dia, se nossa personagem se decidisse por assim ser. Então seu pensamento pararia e ela teria nas mãos a tradução de um livro chinês, os Escritos sobre a pintura de Wang Wei, o pintor sem quadros. Em qualquer um que pintasse uma paisagem, a ressonância interior precederia o pincel. Do tamanho de um torso seriam as montanhas; de um pé, as árvores; de um polegar, os cavalos; de uma linha, os homens. Longe, os homens não teriam olhos; longe, as árvores não teriam galhos; longe, as montanhas não teriam rochedos e seriam confusas como as sobrancelhas; longe, as águas não teriam ondulações, se harmonizariam ao alto com o nevoeiro. Tal seria o procedimento. Quando se olha direto para o Sol há um árbol, ela pensaria. Após a chuva seria o clarear. Às vezes as crianças sairiam para ver se tudo ————–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 1 Historiador, fotógrafo e doutorando pelo Laboratório de Estudos Audiovisuais Olho na Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail: russo333@ hotmail.com 92 Texto Literário quisessem algo. E que ora e outra, bater e conversar seriam para eles a mesma forma de conseguir. Quem olhasse com penetração consideraria primeiro a manifestação dos sopros. Em seguida, distinguiria o puro do confuso. Determinaria a saudação dos hóspedes e do mestre. Ordenaria a atitude majestosa entre a multidão dos cumes. Muito, arrastaria à confusão; pouco, provocaria o relaxamento. Desapareceriam, então, o muito e o pouco. Seria o caso separar o longínquo do próximo. Não seria preciso que estivessem em relação as montanhas longínquas das próximas, nem que as águas longínquas se ligassem às próximas. Se a personagem decidisse que chove, e que por sobre a chuva o sol aguarda, as pessoas se cobririam com tudo, sombrinhas, cobertores, sacolas e seriam um batalhão a caminhar, de cabeças baixas, todas iguais. Então não se olhariam. Quem quer que as olhasse talvez visse em todas um único aspecto, não seriam mais feios nem bonitos, nem velhos nem jovens. O problema seria se mexer, o que fazer de si e do próprio volume. As pessoas se moveriam, contaminadas pela presença de quem as olhasse, com seus olhos inundados que nada mais veriam, e suas bocas abertas que nada mais diriam. Restaria ainda o problema do caminho. Restaria o saber onde se enfiar. Um lugar coberto sairia o preço de um café. Restaria despender dinheiro. Daqui, por detrás do barulho do dinheiro, não se escutaria a chuva. Seria ainda mais brutal a chegada da noite. Se caísse a chuva, não se distinguiria nem céu nem terra, nem Leste nem Oeste. Se ventasse sem chuva, se veriam somente os galhos das árvores. Se chovesse sem vento, as copas das árvores se inclinariam. Após a chuva, as nuvens se recolheriam, o céu seria de azurita onde finas brumas voltejariam quase imperceptíveis. À luz da manhã várias montanhas desejariam iluminação, enquanto as brumas e os vapores diminuiriam. Vaga seria a luz em seu declínio, agitados e confusos os sopros e as cores. A luz da tarde e o sol vermelho tocariam as montanhas, os caminhos, e os passantes se apressariam. À noite o horizonte se perderia. A personagem também estaria ali, um pouco afastada dos outros, não de propósito, seria como um atraso seu em relação aos outros; mas talvez fosse o contrário, um interesse tão total que a paralisasse, que a impedisse. Ela não saberia que a multidão também a estaria olhando. Se ouviria voz de prisão. As crianças estariam todas brincando de polícia, de bandido, de se estripar, de atirar balas, de berrar juras de morte, tudo sem pretexto e sem explicação. O vento pararia. Mais claros que a noite estariam seus olhos na amplidão cega do que haveria para ver. Quem pintasse uma paisagem deveria conformar-se às quatro estações. Não seria preciso que os cumes fossem idênticos, nem que as copas das árvores se assemelhassem. Aquele que possuísse um tal poder de pintar a paisagem poderia ser chamado mão que nomeia. À noite, o movimento dos céus quase desapareceria. Nossa personagem estaria confinada em sua casa. Até agora as formas e as proporções de sua escrita teriam sido calculadas. Estariam então em mãos de escrita que pouco saberiam do manejo. Essa força manual não seria bem conhecida, apenas se começaria a conhecê-la. Mas ali, eis que a escrita se encontraria presa à mão. Tão uniforme estaria a noite que pouco se saberia dela. Ela arriscaria um assunto, Eu..., daí não seguiria. Pouco saberia ela sobre o Eu, a não ser pela palavra. Seria estranha, como se estivesse sempre pronta a tomar um sentido, mas não conseguiria. Em nada faria eco à história, ou, nela, nossa personagem talvez não visse possibilidade de sair de si – o que também seria possível. Eu, seria a palavra e seria ainda o ela que olhasse e o que visse, seu Eu em separamento do interior ao exterior do que olhasse e visse. Para que a vida surgisse sob o pincel, haveria que se esparramar a água nas proporções convenientes, seria preciso recusar-se às montanhas vagas; em seguida, seria necessário colocar bifurcações, evitar os caminhos ininterrompidos. Um embarcadouro cairia um centímetro de solidão melancólica; os homens andando aí colocar-se-iam conforme suas distâncias. Onde paredes abruptas, abismos assustadores surgiriam, pelas veredas seria impossível passar. De novo ela olharia o livro, sentiria estranheza na leitura do livro, veria as páginas e também as paisagens descritas, um caminho de tábuas que às vezes as pessoas abandonariam e pisariam no chão, a luz evidenciaria o caminho de tábuas; se sentiria olhada por tudo no quadro que não veria; a confusão longínqua das montanhas por onde estaria um jovem calado e de olhos fechados, e nada o diferen- 93 Texto Literário Tudo seria, parece, presença ou retração, tanto no alto como no baixo. Nossa personagem gostaria de ser dessas pessoas que, mal acabando de tomar conhecimento das coisas, já saberiam pensar, dizer e concluir. Gostaria de ser dessas pessoas, porque, antes de mais nada, elas iriam querer perder aquele saber, iriam querer perdê-lo, passando já ao resolvido, só falariam da chuva depois de suas causas, falariam de deus apenas depois da religião. Nada mais aconteceria no quadro escuro. Ela repetiria seu nome sob a palavra. Eu. E a história. Nunca a teria encontrado. Seu fim estaria em todas as páginas. Ela o teria nas mãos. O livro. O livro não teria fim, o fim não teria sido escrito. O autor teria morrido. O fim do livro lido não existiria, não existe. ciaria dos outros, a não ser por essa atenção dedicada a um pensamento secreto enquanto dorme; ela veria que as pessoas se olhariam a perder de vista, sem poder separar seus olhos de seus olhos, não teriam gestos e não se tocariam, estariam tão repletos de si como dela, que permaneceriam quietos, tomariam o cuidado de que não adivinhassem sua presença; ela veria que nada aconteceria, nunca. A mão favorecida pelo pincel e pela tinta traçaria em profusão; ela teria todo o tempo para vagabundear, divertindo-se com as três obscuridades. Os anos e as lunações se afastariam na eternidade. Quem se consagrasse a escutar as trevas e o ínfimo, quem iluminasse o misterioso não se acharia nas palavras muito numerosas. Ele seria hábil em estudar, obedecendo ainda ao compasso e ao esquadro. 94