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ABA TE ABA TE EXPEDIENTE Revista Abate ProacSP – Incentivo à Cultura do Estado de São Paulo 2015 Meio eu, Meio Sociedade, 2015 Graite sobre papel, Thaís Nozaki Coordenadora editorial Ana Maria Latgé Editores Bruno Yukio Ishisaki Marco Antônio Machado Marcus Groza Designer Victor Malta No escuro, 2013 Técnica mista (acrílica, posta e colagem, Magô Pool Revisores Ana Maria Latgé Marcus Groza ABA TE Autores Ana Maria Bomin Pitiu Arnaldo Akira Umeda Bruno Yukio Ishisaki Carolina Natal Laiana de Oliveira Marco Antônio Machado Marcus Groza Tiago Cfer ISSN 2447-5521 EDITORIAL “Liberdade é jogar contra o aparelho” (Vilém Flusser) Uma constatação inicial a ser indicada neste momento é que experimentamos, hoje, uma obsolescência da crítica ou, ao menos, da crítica nos moldes em que a conhecemos até agora. A arte e o estatuto de negatividade que a marcou no último século não oferece mais a mesma oposição e resistência. Um aparelho que não lhe dá a opção de jogar contra ele. O Capitalismo e os outros sistemas hegemônicos são tentaculosos e produzem abraços em que aquilo que tem potência disruptiva é rapidamente cooptado. A liberdade é ser e não ser o aparelho, incessantemente. Este maço de folhas avulsas foi arbitrariamente aglutinado. A ordem dos textos foi escolhida no dado. Há uma entrevista com o músico Rogério Skylab e outra com o encenador e dramaturgo Roberto Alvim. Os demais são textos cujos autores, de alguma forma, relacionam-se com a região que ica entre a Serra da Mantiqueira e o Litoral Norte Paulista. A única crença ferrenha, aqui, é o exercício da dúvida. SUMÁRIO Colagem de Citações Marco Antônio Crispim Machado A dança na imagem: o espaço-relação na obra de William Forsythe Carolina Natal 7 22 106 Anéis abertos – arte, literatura e ilosoia em devir Tiago Cfer 39 129 Do que se trata o Flickr? Arnaldo Akira Umeda Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo Marcus Groza 54 138 Entrevista com Roberto Alvim Marcus Groza. Ao amor! Boi, Juniokio, Marucs 80 158 Alô, alô! Ana Maria Bomin Pitiu 174 Poética da Ruína Bruno Ishisaki Aventures de György Ligeti – Uma música de fonemas Laiana de Oliveira Entrevista com Rogério Skylab Bruno Ishisaki, Marco Antonio Machado 99 7 COLAGEM DE CITAÇÕES Marco Antônio Machado* Isso que vai se seguir pode parecer fragmentado, uma colcha de retalhos de difícil estruturação. De fato o é. Por meio da linguagem, temos o hábito de usar palavras bonitas, às vezes rebuscadas, para emitir juízos de valor. Em algum momento passamos a acreditar que dizer que gosto ou que não gosto seria algo não cientíico, portanto não válido. Nos últimos anos me chamou à atenção o uso das seguintes expressões: pós-moderno; não idiomático; relativismo; colcha de retalhos; sem profundidade; falta de unidade. Notemos que essa lista relaciona uma série de conceitos normalmente utilizados para emitir juízo de valor negativo diante da apreciação do objeto da obra de arte, sendo esses o foco da maior parte de minhas perscrutações. O que se seguirá é, de fato, uma colcha de retalhos. Espero, entretanto, que o leitor não considere a priori que se tratará de um texto ruim. Pressupor que algo é ruim só por se caracterizar como uma colcha de retalhos é o mesmo que pressupor que para ser bom basta ter unidade, estrutura, organização. Eu, sinceramente, estou cansado dos códigos de lei, das estruturas de poder e do dogma da unicidade ontológica do homem. Proponho-me, então, a escrever sobre colagem de citações produzindo uma colagem de citações. *Marco Antônio Machado (joseense de 1983), músico e compositor, experimentalista e desperdiçador. 8 ABATE Existe, de certa maneira, algo de místico pelo descontrolado na colagem surreal. Como aponta Knizak em entrevista a Bousseur (1992, p. 59), no título Le sonore et le visuale, a colagem possui algo de mágico. Essa dimensão mágica se dá na esfera da signiicação, visto que os sentidos abandonam o campo original e passam a outras ligações. Recortes reutilizados em novas montagens, inseridos em ambientes caóticos (visuais, sonoros, textuais), podem adquirir não apenas uma nova signiicação, mas muitas novas, que vão depender do ambiente, dos expectadores, das histórias, dos mitos. Eis um modelo de destruição que cria: Pois há uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem restabelecida das representações, dos modelos e das cópias e destruir os modelos e as cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os simulacros e levantar um fantasma. (DELEUZE, 2009, p. 271) Na história da música do século XX ,podemos estabelecer um paralelo enrte essa dicotomia apresentada por Deleuze e o dodecafonismo schoenbergiano e o cubismo stravinskyano. Em primeira análise, o projeto de Schoenberg soa como um projeto de destruição, quando, de fato, estabelece uma destruição para conservar: conserva as formas tradicionais, a escrita tradicional e, acima de tudo, a essência desenvolvimentista da música ocidental. No cubismo analítico de Stravinsky (MACHADO, 2014, p. 2), porém, enxergamos mais uma destruição dos modelos e das cópias, podendo de fato instaurar um caos que cria, saindo da lógica da conversão para alcançar a subversão e até mesmo a perversão. O desejo pode se apoderar de qualquer coisa através do agenciamento. Cada agenciamento do desejo gera uma territorialidade. Como airmam Haesbaert e Bruce, para Deleuze e Guattari um território pode ser qualquer coisa (HAESBAERT; BRUCE, 2002, p. 6-7), podendo também o desejo extrair e transloucar territorialidades, promovendo desterritorializações e reterritorializações. No caso do colador musical, muitas vezes é o desejo acústico, o deleite sonoro que motivará as extrações. Abaixo, inserimos um comentário de Levi-Strauss no debate: Colagem de Citações [...] entre todas as linguagens, ser esta (a música) a única que reúne as características contraditórias de ser ao mesmo tempo inteligível e intraduzível – faz do criador de música um ser igual aos deuses, e da própria música, o supremo mistério das ciências do homem [...] (LEVI-STRAUSS, 1991, p. 26) Levi-Strauss dá à ciência musical o título de “supremo mistério” e justiica esse elogio pelo fato de ela comportar a contradição entre o inteligível e o intraduzível. De certo modo ,podemos olhar para o luxo sonoro tomando-o como um texto ou tomando-o como uma imagem ou grupo de imagens. É, por um lado, uma escolha do ouvinte, mas que pode também ser motivada por características da própria obra. Uma sonata de Beethoven, por exemplo, apresenta diversas características que demandam uma escuta textual; já uma peça como Music for 18 musicians, de Reich, promove uma escuta imagética. É importante ressaltar que essas demandas se dão aos ouvidos treinados, podemos dizer aos “ouvidos de músicos”, mas que é essencial para a música a escuta do leigo, a escuta apaixonada. Um ouvido destreinado, que não conhece o sistema tonal, que não procura desenvolvimentos motívico-temáticos, pode ser incapaz de encontrar a trama textual em uma sonata clássica. Esse ouvido poderia gerar, contudo, uma escuta totalmente nova, o que, de certo modo, é essencial para a criação do novo. Também seria ingenuidade supormos que apenas se dividem os ouvidos humanos em treinados e não treinados. Há incontáveis níveis de treinamentos, e um ouvido muito treinado em ragas hindu pode não reconhecer uma cadência plagal. Cada ouvido vai criar um projeto de escuta, e para todos será inteligível e ao mesmo tempo intraduzível. Nesse campo de relações quase livres é que se estabelece o deleite musical. É “livre” no sentido em que o desejo demanda o luxo de escolhas e é “quase” na medida em que a história, os costumes, a tradição, os “jeitos certos” impõem limites para esse luxo do desejo. Deleuze elenca três fantasmas da cultura que estabelecem essas fronteiras para o luxo do desejo, como comenta Ramacciotti: 9 10 ABATE [...] tudo é permitido, pois o que conta somente é que o prazer seja o luxo do próprio desejo, para tanto é preciso que a imanência ou plano de imanência composto na experiência com as múltiplas intensidades não seja interrompido por uma medida estabelecida pela “sombra dos três fantasmas postos pela cultura”: a falta interior, o transcendente superior, o exterior aparente. (RAMACCIOTTI, 2012, p. 120) É claro que Deleuze pensou esses três fantasmas no âmbito geral da cultura, mas podemos, como exercício, pensá-los no campo musical. Falta interior: seria a ideia de incorporação abstrata da falta, também chamada “felicidade negativa”, como a fome saciada. É como se precisássemos alimentarmo-nos interiormente e esperássemos que o mundo nos fornecesse esse alimento; por esse motivo, nas mais diversas culturas sempre houve os paralelos às unções, oblações e bênçãos. O fantasma da falta interior aparece na apreciação musical sempre que esperamos da obra algo de sacrossanto que possa alimentar nossos anseios mais íntimos, inclusive implicando à obra de arte musical uma espécie de funcionalidade sagrada. Transcendente superior: é como a ideia hermética de “assim como é acima é abaixo”; ou seja, assim como há pais para ilhos, reis para povos, deve haver um deus para os homens. Há, entretanto, o sistema de um deus centralizador e o sistema de vários deuses menores, que não se diferenciam no fato de serem sempre iguras de poder. Figuras de poder sempre “dizem” o que é certo e o que é errado (ou são usadas para dizêlo). Na música há também o transcendente superior, tais como a segunda escola de Viena, o gênio de Beethoven ou Brahms, a erudição e a tradição desenvolvimentista da música ocidental, sempre nos dizendo o que e como fazer. Exterior aparente: se refere às criações imagéticas e às relações entre elas. Cada indivíduo assume essas aparências em determinadas situações. O engenheiro, o pai de família, o corintiano... Há também essas iguras na práxis musical, como o músico clássico, o violinista, o maestro etc. Essas iguras estabelecem relações e expectativas, e limitam, desse modo, o luxo do desejo. Em suma, os três fantasmas, também no campo musical, limitam o luxo do desejo, o exercício do prazer. De fato, há sempre um conlito, um campo de batalha Colagem de Citações entre os territórios estabelecidos e os exercícios nomádicos. Isso se assemelha à ideia de compositor como reinterpretador das obras, apresentada por Barbosa e Barrenechea. Eles defendem que cada compositor reinterpreta e reage de maneira particular perante as obras dos antepassados, tornando seus trabalhos em uma espécie de intertexto relexivo, reinterpretativo (BARBOSA; BARRENECHEA, 2003, p. 125). Podemos colocar a história como um repositório coletivo das atividades humanas e cada compositor como uma singularidade que interpreta os dados à sua maneira, de acordo com suas experiências de vida e modos de pensar. Como cada vida humana é particular e possui muitas variantes, sempre haverá novos olhares (escutas) para a história. Mas também se pode airmar que quanto maior o peso da tradição e da história, maior a limitação do luxo do desejo da singularidade. Até por isso comentamos anteriormente a necessidade do ouvido leigo, do ouvido destreinado. Essas singularidades podem ressigniicar e projetar escutas inovadoras, eis o caso de compositores autodidatas, oriundos das mais diversas músicas ditas populares ou folclóricas. “Criam-se novas modalidades de subjetivações do mesmo modo que o artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispõe” (GUATTARI apud BRITO, 2012, p. 9). Deleuze, à sua maneira, prefere não fazer uso do termo “reinterpretação”, já que grande parte de sua obra conclama uma saída da lógica da interpretação para a lógica da experimentação. Em vez disso, ele usa o termo “novas maquinações” como indústria de sentidos: É, pois, agradável que ressoe hoje a boa nova: o sentido não é nunca princípio ou origem, ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundidade, mas é efeito da superfície, inseparável da superfície como de sua dimensão própria. (DELEUZE, 2009, p. 75) As ideias de criação de novas subjetivações, de Guattarri, e de “novas maquinações”, de Deleuze dão um caráter absoluto1 à noção de “colagem de citações” apresentada aqui, 1 Semelhante ao conceito da desterritorialização absoluta apresentada na conclusão dos Mil Platôs. 11 12 ABATE não sendo a tomada e reutilização de materiais musicais resultantes apenas uma técnica do compositor surrealista, mas de toda experiência de construção do sentido e de subjetivação na vida humana. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari propõem um exercício político de desrostiicação. Na visão dos autores, a identidade humana passa pelo dogma do rosto que compõe o “eu”, e esse mesmo rosto é formado de muro branco e buracos negros, sendo o primeiro da ordem do signiicante, e os segundos, da subjetividade. A ideia seria tomar a vida como um objeto de um labor artístico, para, através de um exercício político, produzir novos modos de seres, novos modos de pensar. E ainda insistem: “Procurem seus buracos negros e seus muros brancos, conheçam-nos, conheçam seus rostos, de outro modo vocês não os desfarão, de outro modo não traçarão suas linhas de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 64). A Esquizoanálise seria, assim, um projeto surrealista de viver. Anne Claire Gignoux apresenta, em seu artigo De l’intertextuallité à l’écriture, um breve levantamento histórico acerca da discussão sobre a intertextualidade. Ela aponta que a primeira aparição do termo ocorreu em 1967 e teve como pioneiros Bakhtine, Kristeva e Genette. Só em 1987, contudo, Marc Eigeldinger expande o conceito da intertextualidade para todos os campos da cultura, como, por exemplo, às belas artes e à música (GIGNOUX, 2006, p. 2-4). Esse levantamento mostra como essa relexão é recente e, ao mesmo tempo, urgente. É justamente no im dos anos sessenta que, normalmente, aloca-se a crise da pós-modernidade, momento em que passa a ser difícil posicionar artistas e pensadores em determinada escola ou estilo, o que é acentuado pela ausência de padrão de referência estética, de bom e mal, de certo e errado, de verdadeiro e falso. Afortunadamente, ideias como as de raça dominante, religião verdadeira, música universal e sexo forte começam a ser abandonadas, e é claro que no âmbito da produção artística, como produto da cultura, esse abandono exerceu uma inluência proeminente. Passa a não existir mais decisão errada ou falsa na elaboração de uma obra, não existe mais um repertório adequado a se ouvir, um conjunto de técnicas ou processos superiores a outro, e essa sobreposição de interferências extrapolam os campos clássicos da arte (pintura-escultura-literatura-dramaturgia-música). Vemos Joyce na Sinfonia de Berio, as experiências cinemáticas de Kagel e até mesmo uma partida de futebol em Santos Football Music, de Gilberto Mendes. Também, por conta Colagem de Citações disso, surge uma série de criações que icam em territórios sem nome, não sendo possível dizer se aquilo é cênico ou instrumental, se é poesia ou arte plástica, se é cinema ou música. De certo modo, nos aproximamos de novo do ritual primitivo. Vivemos a época do audiovisual, do prog-metal-sinfônico, da engenharia lorestal. O artista passa a poder se munir, se alimentar de tudo. Pode justapor e sobrepor tudo e todos. Sua consequência maior é a atitude expressionista elevando a criação e a construção ao grau de meio de expressão, sua instância operacional (KLEE, 2002, p. 10). Brincando com as terminologias poderíamos dizer que vivemos o supra-expressionismosurreal-intertextual. Danilo Marcondes, em seu tratado de Filosoia Analítica, separa a análise em duas grandes linhas de caráter. “A primeira como decomposição da proposição, reconstruindo-a em termos de uma concepção lógica de linguagem, produzindo-se, desse modo, uma elucidação”. Essa supõe um fundo ontológico que seria alicerce para todo conhecimento cientíico. E “a segunda como elucidação do signiicado de expressões linguísticas, através do exame de seu uso”, sem qualquer pressuposição ontológica direta (2004, p. 48). A segunda linha é como uma ferramenta para os artistas do hoje. Quando a unicidade do ser desapareceu, quando não mais procuramos investigar e encontrar o real, mas agora somos pluralidades singulares, inventores de realidades, passamos a coletar e agrupar os dados, reconigurar, produzir novos sentidos. A análise nomádica, não ontológica, vem a ser uma máquina de guerra, um mecanismo de lançar mão a qualquer coisa que se deseje. Não há moral para o neoestóico, somos nômades e saqueadores. A práxis da análise musical também poderia ser entendida respeitando essas duas linhas proposta por Marcondes. As análises musicais da primeira linha seriam aquelas que visam explicar, elucidar, encontrar a real natureza da obra musical, enquanto as análises da segunda linha seriam as que buscam jogar, se apropriar, manufaturar materiais e relações. Seriam análises pró-criativas, mecanismos de uso. Pode parecer que a primeira linha é cientíica e, portanto, imparcial e que a segunda linha é subjetiva e parcial. Mas acreditamos que ambas são parciais e dirigidas por interesses singulares. Concordamos com a compositora Mariza Rezende quando airma: “Estes dois autores (Charles Rosen 13 14 ABATE e Leonard Meyer), pinçados dentre muitos outros, apenas reforçam minha sensação de quanto uma ferramenta ‘metodológica’ – a análise –, no caso, pode ser dirigida para esse ou aquele im, e revelar um interesse especíico de seus autores” (REZENDE, 2012, p. 254). O uso criativo do mecanismo é ressaltado, por outro lado, por Carlos Almada: “Os escritos teóricos de Schoenberg sobre forma (e, mais especiicamente, sobre a construção temática), focalizados na obra dos grandes mestres e voltadas para suas estratégias didáticas, serviram também de base para sua própria prática composicional” (ALMADA, 2009, p. 41). E, é claro, nada precisa estar só de um lado ou só de outro. Ainda se referindo às duas possíveis linhas de análise, Schoenberg analisa processos históricos e propõe regras gerais que publica em sua obra teórica; de outra parte, os frutos das mesmas análises lhe nutrem criativamente e o produto de suas composições é inovador e criativo. Não acreditamos que deva haver uma hierarquização entre as duas linhas de análise. Mas há, nesse esquema, um posicionamento de uma ante a outra, e vamos, de uma maneira ou de outra, sempre puxar o cabo-de-força para o lado da análise criativa (maquinaria). De certa maneira, se partimos da noção de que a análise teórica (digamos assim) também é motivada pela subjetivação, mas que, em vez do uso, ela estabelece uma regra geral, um nomos, um entendimento – de modo que esse é o seu próprio uso –, é possível dizer que o interesse último do analista é marcar a posição de um fenômeno ou de uma coisa. Portanto, ao se criar um conceito, cria-se também uma determinada posição para um evento (de ordem natural ou artiicial). E, como diz Bataille, “a posição é inteiramente efeito dessa vontade deformada. A posição é, em certo sentido, o oposto de uma coisa: aquilo que funda é sagrado, e a ordem geral das posições recebe o nome de hierarquia” (BATAILLE, 2013, p. 82). Ou seja, não é outra a intenção do analista teórico que não fazer uso de nomenclaturas tecnocráticas e virtuoses de categorização para participar do jogo de relações micropolíticas do entendimento. É um jogo de forças: ele quer posicionar a coisa, o objeto de estudo, mas o que ele cria é uma “não coisa”, o conceito da coisa. Diante do mistério que é a vida humana na Terra, por muito tempo icamos satisfeitos com contos de Adão e Eva nas mais diversas cores e modalidades. Desde o século XIX, contudo, foram suplantados pelos conceitos darwinistas da evolução das espécies e da seleção Colagem de Citações natural, que compõem, hoje em dia, o conto que mais nos agrada, que se posiciona sobre os demais hierarquicamente. O conceito de trabalho para Platão era de um modo, para Locke era de outro, para Smith, de outro, para Marx, ainda outro. Notemos como isso tem implicações em todas as esferas sociais, em todos os campos do entendimento, em toda comunicação humana. Se Bataille diz que a posição é efeito da vontade deformada, podemos dizer que a criação é efeito da vontade deformante. Então, a análise teórica cria um conceito e estabelece uma posição, enquanto a análise criativa é um novo uso, uma outra coisa. A imagem do anjo de Benjamin, com as asas abertas diante da ruína, vislumbrando a tempestade, pode nos oferecer outro modo de ver essa questão. O ilósofo nos diz que, em vez de ver uma cadeia de eventos, o anjo vê uma catástrofe única que acumula ruína sobre ruína, e que um vento muito forte sopra do alto mantendo-o sempre com as asas abertas e o impelindo para o futuro. Há aqui a imagem de ruína representando o passado, em vez do passado como uma linha temporal de eventos. Há também uma tempestade representando o futuro, ou melhor, a força que move ao futuro, força que Benjamin chama de progresso (BENJAMIN, 2014, p. 246)2. A catástrofe única que acumula ruína sobre ruína é fruto da vontade deformada, da conceptualização dos eventos passados, dos campos de ciência, dos sensos comuns. E a tempestade é fruto da vontade deformante, do desejo, da máquina de guerra, da potência de agir. É interessante observar como toda abstração conceitual decorre de uma incorporação e uma metaforização espacial. Devido às nossa compleição material e nossa capacidade sensual, podemos experimentar o espaço apenas de maneira direta. Qualquer outro nível intelectivo é dependente de metáforas da experiência espacial. Isso está presente na linguagem o tempo todo, com expressões como “lá atrás, quando eu era uma criança” (não tem nada de fato “lá atrás”; o “antes”, do tempo, não é “atrás”, no espaço), ou “de repente a discussão icou pesada e os humores se esquentaram” (a gravidade não afeta o teor das discussões e tampouco existe variação de temperatura em estados emocionais). De fato, é muito difícil falar de qualquer coisa que não seja espacial sem recorrer a metáforas da experiência espacial. Mesmo toda a base do termo e do conceito é alicerçada nessa metáfora. 2 “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.” (IDEM) Paul Klee (1879-1940). Angelus novus, 1920. Transferência em óleo e aquarela sobre papel. 31,8 × 24,2 cm. Museu de Israel. 15 16 ABATE Para Kant tudo que é pensado é um continente e tem, por sua vez, um conteúdo (2012, p. 236), é um recipiente que tem seu interior repleto de substância. Dessa maneira, toda infraestrutura do pensamento é baseada na metáfora espacial e, desse modo, condicionada por nossos sentidos e corpos. A música é um campo onde se pode notar essa metaforização o tempo todo. Bosseur, em Le Sonore et le Visuale, dá exemplos de uma série de conexões entre as artes visuais e musicais, e de uma série de composições nas quais o projeto de escuta dos compositores foram motivados por experiências do espaço. Em especial, quando comenta a peça Volumina, de G. Ligeti, o autor diz: “tem como uma aspiração para uma fusão dos conceitos de tempo e espaço através de uma notação que nos leva a uma imagem ideal” (BOSSEUR, 1992, p. 11). A peça trabalha com densidade, volume, preenchimentos... Dentro dos Estudos para Piano de Ligeti há diversas experiências desse tipo, como subir na l’Escalier du Diable e em Coloana Ininita, ou a sensação de queda eminente em Vertige. Em alguns aspectos, a escuta musical sempre esteve ligada a uma imagem de justaposição e sobreposição de eventos; a própria partitura musical é um mapa-metáfora onde os signos dos objetos musicais são justapostos e sobrepostos em um campo espacial possível de se visualizar. A tradição da música ocidental, em especial, se alimentou da sobreposição de elementos de diversas maneiras, como a polifonia contrapontística, a composição dos blocos de acordes, o contraponto atonal livre, a heterofonia... E a metáfora da colagem musical foi um grande salto no século XX. A sobreposição ganhou evidência tendo como efeito a politonalidade, polirritmia, polimetria, politextura... Cope acredita que a collage emerge como uma técnica para o uso de superposições: Alguns compositores somaram o elemento da collage às técnicas politonais. Esse efeito combina politonalidade com distintas ideias. Os resultados normalmente contem polirritmias, polimétricas e politexturas pela superposição de diversos estilos musicais... Collage ainda provê uma técnica viável para estabelecer e clariicar a politonalidade. (COPE, 2001, p. 7. Tradução própria.) Colagem de Citações É claramente uma técnica inventiva, uma que surge da linha de análise criativa, que devém da força da vontade deformante. O campo onde os recortes são colados é um campo metafórico-espacial, os próprios recortes decorrem do uso de “tesouras” espaciais metafóricas aplicadas em “tapetes” de música. Promove uma desterritorialização, e poderíamos dizer, uma desterritorialização pura, pois reterritorializa o recorte na própria desterritorialização, já que a nova música poli-tudo é o próprio discurso da itinerância que vai produzir sentidos diversos momentâneos em cada singularidade fazedora do entendimento. Se, por um lado, entendemos collage como um produto da arte plástica que foi importado para o uso musical, por sua vez outros tantos produtos do uso musical foram importados para as artes visuais, como exempliica Cristiá: “A fuga pictórica como gênero [...] tem sido frequentada por Ciurlionis, Kandinsky, Kupka, Klee e Mardsen Hartley, entre outros” (2012, p. 2). A sobreposição, o recorte e a interlocução entre as diversas linguagens ou modos de fazer não deixam de ser formandores dos pontos de conexão em toda arte nova, ao menos desde a colagem surreal do começo do século XX, e cada vez mais evidente a partir dos anos cinquenta e nas atuais tendências do século XXI. Como airma Deleuze, a sobreposição, a possibilidade de se contar “várias histórias” ao mesmo tempo, “é o caráter essencial da obra de arte moderna” (2009, p. 266). Quando falamos de Colagem de Citações, já no título temos a interlocução entre dois pontos da arte, entre dois pontos sensuais. “Colagem” pressupõe recorte e reutilização, nos conduz às artes visuais, e, evidentemente, a uma composição igural. Por outro lado, “citação” nos conduz às artes do texto, às textualidades, ao paradigma da referência e do sentido, da sintaxe e da semântica. As duas juntas nos levam, então, a uma composição teleológica de sentidos. Deleuze e Guattari nos falam da ideia de desterritorialização nos Mil Platôs, e evocam seu primeiro teorema nos seguintes termos: Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve ver a reterritorialização como o retorno a uma territorialidade 17 18 ABATE primitiva ou mais antiga: ela aplica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade ao outro que também perdeu a sua. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 45) Em nosso caso, é como se a semântica e a sintaxe do texto se desterritorializassem da linguagem comunicativa e, ao mesmo tempo, as espacialidades das artes visuais (ideias como justaposição, sobreposição, equilíbrio, mistura etc.) se desterritorializassem da comunicação visual. A música passa a ser produto das novas reterritorializações, os recortes passam a ser novos territórios para os textos e os sentidos novos territórios para recortes. Ora, a música sempre se apropriou das linguagens dos vizinhos. No platô intitulado Máquina de Guerra e Aparelho de Captura, os autores enfatizam de tal modo a potência da desterritorialização que colocam a própria estrutura do pensamento humano como a desterritorialização dos valores do Estado. Para Deleuze e Guattari, a estrutura do Estado não é produto do pensamento humano, mas, em grande medida, a estrutura do pensamento é que se constituiu de desterritorializações do Estado. Para os pensadores, há dois estatutos, ou duas cabeças do Estado, a do imperador-mágico e a do sacerdote-jurista. O imperador opera sua fundação e outorga, portanto, a realidade última do estado, enquanto que o sacerdote trabalha com os campos de compensação, justiça (distributiva ou retributiva). Esses dois estatutos passaram a compor todo ordenamento do pensamento humano: o imperador mágico opera a noção de verdade última, de transcendentalidade, de mundo ideal; o sacerdote jurista estrutura toda lógica causal, noção de causa e efeito, de evolução histórica, etc. Os dois estatutos na estrutura do pensamento acabam por enrijecer e fortalecer o próprio estado e suas instituições (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 45-46). A Música é todo um arcabouço, um emaranhado de desterritorializações e reterritorializações, produto de agenciamentos maquínicos do desejo. A Música se vale da linguagem textual nas canções, se vale das artes marciais e das expressões corporais na dança, da sintaxe textual na produção do discurso musical, da sintética kantiana no desenvolvimentismo vienense, assim como de valores místicos ou numerológicos em diversas tradições de Colagem de Citações música de rito. No século XX, se valeu do processamento de dados para a elaboração dos algoritmos da eletroacústica, de técnicas de estúdio em itas magnéticas para reescritura, além de uma série de procedimentos matemáticos, como interpolação, estocástica, serialização, particionalidade, teoria dos conjuntos... Todos esses campos citados são territórios que, por meio de um agenciamento, foram retirados de seu local de origem (desterritorializados) e passaram a servir como territórios para outras desterritorializações, e vice-versa. É importante frisar que toda desterritorialização é produzida por um agenciamento e que todo agenciamento é um “traço extraído do luxo”, ou seja, compõe uma seleção, uma estratiicação. Um agenciamento é, portanto, “uma verdadeira invenção” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 94). E o agenciamento não vem de outro local fora do desejo, ou como airmam os ilósofos: Os agenciamentos são passionais, são composições do desejo. O desejo nada tem a ver com a determinação natural ou espontânea, só há desejo agenciando, agenciado, maquinado. A racionalidade, o rendimento de um agenciamento não existe sem as paixões que ele coloca em jogo, os desejos que os constitui, tanto quanto ele os constitui. (IBIDEM, p. 83) Todo argumento é uma composição do desejo, todo automóvel é uma composição do desejo, todo poema é uma composição do desejo, todo savoir faire é uma composição do desejo, cada arma de fogo é uma composição do desejo, cada corte de cabelo é uma composição do desejo, espécies de árvores, nomes de oceanos, sistemas solares... planetas, planeta-anão, gigante vermelha... A racionalidade é o rendimento de um agenciamento. Quanto mais rende um agenciamento, mais ele é racionalizado, mais adquire dimensões, sensos e contrassensos. Por isso, toda paixão que devém social acaba por se tornar um entendimento. E a totalidade dos coletivos das racionalizações vem a compor aquilo que Espinoza chamou de “ente da razão” ou “intelecto” (ESPINOZA, 2012, p. 67). Isso dito, é claro que cada sonata de Beethoven é uma composição do desejo, cada ópera de Wagner, cada raga hindu, cada “tom salmódico”, cada canção do Pink Floyd. E há 19 20 ABATE racionalização de toda sorte – forma-sonata, leitmotiv, ostinados, análises schenkerianas, categorizações estilísticas. Por vezes, a paixão é tão intensa ou abrangente que devém social e, assim, forjam-se estilos, modos de fazer e pensar música, modos de se escutar. E aquilo tudo que chamamos Música é um emaranhado de desejos, agenciamentos e racionalizações que, aglutinados, formam um importante membro do ente da razão. Isso que se apresentou é um fragmento, uma colcha de retalhos, algo de difícil estruturação. 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Aliás, pensar em deinição é sistematizar e aniquilar a emergência de elementos que impulsionam e interferem no fazer artístico da dança. São elementos que agem como interlocutores diferenciados ampliando as funções e contribuindo para uma relação interdisciplinar na qual não se pensa a dança isoladamente, mas como parte de um contexto, de um luir de relações. A criação de uma obra de dança na imagem em movimento sugere outras perspectivas que não faziam parte do contexto da tradição da dança, dessa que ocupa o palco italiano. A herança cultural do período da Renascença inluenciou não só os artistas plásticos na composição de seus quadros como também a compreensão e organização espacial adotado no teatro italiano. A perspectiva renascentista, submetida ao contorno quadrado e ao ponto de fuga, condicionou e orientou a noção do olhar centralizado, dirigido diretamente ao espectador; diante dele, na visão frontal. Esse processo unilateral de centralização do olhar criou estratégias para a sensação da simetria do acontecimento, como explica Perrin (2005, p. 94): O eixo central estrutura a cena e a coreograia. Se todos os espectadores podem se situar no prolongamento deste eixo, eles reconstituem, portanto, o papel de referência por meio de uma estratégia “iccional de simetria”, que consiste a restabelecer, de forma imaginária, a simetria do acontecimento. A dança desenha formas geométricas – linhas, diagonais, círculos – respondendo à estrutura do lugar e dando preferência à sua simetria. (PERRIN, 2005, p. 94. Tradução própria.) Resgatando a trajetória da dança atrelada aos espaços de apresentação, nos quais se produziam seus espetáculos, vê-se que ao longo do tempo a transformação desse campo artístico, inerente às questões de seu tempo, provocaram inquietudes que lançaram os bailarinos à experimentação de novos formatos de realização da dança, à ocupação de outros espaços e, cada vez mais, ao diálogo com a arte contemporânea. 24 ABATE 1 Refere-se ao que é externo ao palco, mas não necessariamente um espaço aberto. Com o surgimento da dança moderna no início do século XX, novas concepções foram sendo experimentadas. Como em todo processo de instalação de uma nova era, um pensamento que se destoa da tradição anterior – no caso, do balé clássico – trouxe novas motivações. A bailarina Isadora Duncan (1877-1927) prenunciou um desvio na história da dança ao ousar fazer do mundo e da paisagem o seu próprio palco. Antecipando e sugerindo a transição para a dança contemporânea, ela deixou percepções sobre o estímulo gerado pelo contato com o espaço real e natural, que depois foram fortemente revisitadas, na década de 1970, pelos bailarinos modernos, mais especiicamente aqueles que habitavam na cidade de Nova York. Nesse ínterim, margeados por Isadora Duncan e pelas novas investigações corporais atreladas ao espaço, as obras de dança percorreram vários espaços públicos, embora sempre mantendo paralelamente a tradição do palco italiano. A apropriação do espaço externo agregou novos elementos à concepção coreográica da dança, sobretudo no que se alude às referências espaciais. Ao fazer essa apropriação e descolar-se dos limites físicos do palco, a dança faz surgir uma nova representação sensível do espaço. Trata-se de distinguir duas concepções diferentes em relação ao espaço: o espaço cenográico construído para a obra, que é uma obra de arte em si, justaposta para dialogar com a proposta do espetáculo de dança; e o espaço externo1, que é o local onde as pessoas representam seu cotidiano diariamente, por onde elas passam, onde elas habitam, e ao qual elas, por vezes, não percebem. Manifesta-se, então, certa perspectiva de olhar que contribui para uma identidade da dança na imagem; a relação desta com o espaço externo, o espaço físico. Nota-se que o espaço externo, nesse caso, igura espaços comuns que não tomam necessariamente o teatro italiano como referência. Isso não quer dizer que a dança na imagem não possa ocupar o lugar tradicional, o palco; no entanto, justamente pela natureza das diversas possibilidades da imagem é que a dança vai propor novos desaios e provocações. Nesse sentido, um espaço físico dotado de uma arquitetura própria é um elemento de grande relevância. A dança na imagem:o espaço-relação na obra de William Forsythe É fato que a inserção do bailarino no espaço externo modiica completamente a relação entre o público e a obra, abrindo novos ângulos de relação entre a dança, o corpo e o espaço, incitando novas maneiras de se relacionar e de se construir a cena. Retomando o percurso histórico dos passos dos bailarinos rumo à ocupação dos diferentes espaços, é na direção da descentralização do espaço que se pode atribuir uma mudança fundamental ao trabalho da dança, deslocando o eixo centralizador e as forças de tensão do palco e em direção à construção de um “espaço-relação” fortemente atrelado à escolha do local e sua inluência inerente. Esse panorama descentralizador acerca-se dos estudos do bailarino e coréografo Rudolf Laban (1879-1958), o expoente iniciador da dança-teatro. Ele atribuiu o nome corêutica para o estudo da organização espacial do movimento, com tendências geométricas. Esse estudo propõe uma melhor organicidade e entendimento do gestual do corpo versus o espaço, compondo uma arquitetura de percepção corporal que tem como ponto central o próprio corpo. É a partir da direção do corpo que o espaço se organiza. Essa inversão de referências, concedendo autonomia ao corpo, sendo ele o centro referencial do espaço que ocupa, modiica o compromisso da estrutura coreográica que antes se ancorava no referencial do palco, do espaço, e não do corpo. Essa cinesfera (ou kinesfera) é o nome que Laban conferiu à esfera que delimita o corpo e seus movimentos. Esta cinesfera imaginária é móvel e se desloca conforme as ações do bailarino, criando seu próprio espaço. Rangel explica: Cinesfera é a esfera pessoal de movimento. Determina o limite natural do espaço pessoal. Cada agente tem a sua própria cinesfera, a qual se relaciona somente a ele. Esta esfera de espaço cerca o corpo, esteja ele em movimento ou em imobilidade. A cinesfera é delimitada espacialmente pelo alcance dos membros e outras partes do corpo do agente quando se esticam para longe do centro do corpo, em qualquer direção, a partir de um ponto de apoio. Ele determina o limite natural do espaço pessoal. A cinesfera se mantém constante em relação ao corpo; se o agente se move, mudando sua posição, ele “leva” consigo sua cinesfera e suas mesmas relações de localização. Assim, ele transfere sua esfera pessoal para um novo ponto de apoio. (RANGEL, 2003, p. 32-33) 25 26 ABATE A partir dessas diferentes perspectivas históricas da dança que aludem à noção do espaço, este estudo se inscreve para discutir também a manifestação de uma segunda integração delegada ao espaço, que é o espaço da tela, da imagem obtida não só com o enquadramento da câmera, mas sua posição, seu deslocamento, sua ixidez e todas as manipulações pós-produção que regem novas concepções da imagem. Delval explica as inluências dadas ao cinema: O cinema é também herança de duas outras tradições: uma pictórica e a outra teatral. Da primeira, ele herdou a composição do espaço e, sobretudo, o recurso da perspectiva, que estabelece um ponto de vista único da cena representada. Do segundo, a narração, a personagem, o realismo das situações, etc. O cinema sempre foi o terreno de conlitos entre essas diferentes veias. (DELVAL, 2010, p. 46. Tradução própria.) Ao propor a obra da dança pela imagem, novas ordenações espaciais, especíicas do dispositivo, determinam combinações que não eram possíveis anteriormente. Como visto, segundo Delval, o cinema implica o ponto de vista monocular, herança da tradição da pintura. No entanto, mesmo que haja um aparente afunilamento, assemelhando-se a uma restrição do campo de visão, existe o paradoxo que é a abertura também de outra possibilidade. Essa suposta restrição amplia novos agenciamentos. Mesmo que seja um espaço bidimensional, ele traz, inerente à sua condição, adaptações de montagem e de enquadramento que deslocam à outra percepção, impossível a olho nu. O espaço físico (local da cena) e o espaço da tela (imagem), que são intermediados pelo espaço do corpo, adquirem novas fronteiras ditadas e sugeridas pelo enquadramento da câmera. Ao direcionar o olhar para determinado ponto, a composição do corpo, em relação ao espaço e à imagem, adquire novos sentidos e engajamentos, propondo uma dimensão diferenciada para o olhar da dança, estabelecendo um espaço-relação. A tela integra-se à obra, assim como a pele é parte do corpo. Ela se manifesta como uma camada epidérmica que atravessa o espaço da obra e convida o olhar do espectador a A dança na imagem:o espaço-relação na obra de William Forsythe atingir a essência da intenção do movimento, do gesto, do olhar, da pausa. É na integração dessas manifestações, em que se busca a intimidade com o corpo, aliada à intenção do movimento da câmera, seus planos e seu devido enquadramento, que se pretende “tatear” a obra como um todo através da sensação. Disso segue-se que a percepção desse espaço-relação não se dá de forma pura, mas compartilhada entre as fronteiras que a tocam ou a interferem, provocando outras estéticas. Essa linha de relexão converge com a discussão que Mello propõe para o formato vídeo, em que expõe os modos como a estética contemporânea se apropria dele. Assim, Mello justiica sua escolha: Como uma estratégia híbrida de construção de sentidos, o vídeo é considerado, aqui, em suas situações fronteiriças, como um desvio ou estranhamento, como um processo descentralizado de linguagem, como um meio que expande as suas próprias especiicidades. Trata-se de conhecer o vídeo interligado a variadas manifestações expressivas, ou o vídeo nas extremidades. [...] Aborda os deslocamentos, as iniltrações e os desvios proporcionados pelo vídeo nos trânsitos e questionamentos do espaço-tempo midiático. (MELLO, 2008, p. 25) Ao se pensar em extremidade, atribui-se importância também aos elementos que tocam a extremidade do campo da dança na imagem em movimento, e que desviam a dança do seu eixo comum, ampliando e transformando seu processo de criação a partir das iniltrações e interferências das outras extremidades. Diante desse panorama, é pertinente se pensar que tipo de estética da dança se constrói a partir do olhar intermediado pela imagem? Como a dança e o espaço corporal se relacionam quando cercados dessas duas outras perspectivas de espaço: espaço da imagem e espaço geográico (físico)? Sugere-se que, nessa inter-relação, é pressuposto um local emergente de indagações, transigurações e, sobretudo, de um corpo quase plástico, modiicado e recriado para o exercício da percepção. 27 28 ABATE Interrogar sobre o espaço físico, que constitui praticamente a cenograia da obra artística, segundo Perrin, é ter consciência de que a estruturação do espaço é ancorada no corpo e na percepção. Ele ressalta: “É privilegiar as circulações, as modalidades perceptivas e as sensações visuais, sonoras e cinestésicas” (PERRIN, 2006, p. 4. Tradução própria). Trata-se de organizar as espacialidades corporais paralelamente à espacialidade arquitetônica, geográica. William Forsythe – ONE FLAT THING REPRODUCED (2006) – Os pontos do corpo sugerindo novos espaços coreográficos Fascinado pela história do balé nas suas rupturas e na mecânica do movimento, Forsythe aborda a dança como uma “arqueologia do corpo”, para desconstruir e reconstruir o balé. [...] Ele estuda os pontos, a partir dos quais o movimento se origina, e quebra o alinhamento rigoroso do corpo abrindo-o de forma radical ao espaço. (DANTO, 2011, p. 152) O bailarino e coreógrafo William Forsythe, americano radicado na Alemanha, é considerado um revolucionário por transformar os códigos do balé clássico em novas partituras coreográicas a partir de desconstrução. Utilizando a ideia de linhas imaginárias – que seriam “traçadas” entre pontos de distintas partes do corpo –, ele sistematiza rupturas por meio da reorganização do modelo clássico, lançando novas proposições de movimento. Ao acioná-los, buscam-se explorar trajetórias e composições, que são fruto de suas combinações, formando linhas que desenham movimentos no espaço, construindo novos diagramas de criação. Forsythe é conhecido por dominar a corêutica, que é o estudo de Laban. Tendo essa como base, mas atualizando-a, o coreógrafo amplia a orientação espacia, pois sua abordagem propõe a possibilidade de deslocamento do centro do corpo. Como Rangel explica: Forsythe questiona a premissa de Laban de estabilidade e orientação no espaço a partir do centro do corpo. Para ele, o centro pode ser colocado em qualquer parte do corpo, criando assim novos e diferentes centros do corpo. Estes outros centros do corpo agem simultaneamente ou em sucessão. (RANGEL, 2003, p. 32) A dança na imagem:o espaço-relação na obra de William Forsythe Partindo dessa relação dos diversos pontos do corpo com o espaço, criando diversas cinesferas, ou seja, diversas esferas de espaço ao redor do movimento, o coreógrafo traça um sistema de relacionamento entre os movimentos. Para Forsythe, a dança pode ser vista como alinhamentos de movimentos geométricos que desenham o espaço. Esses alinhamentos se alternam entre instantes de sincronização e não sincronização entre os bailarinos, compondo a coreograia. Devido à sua inclinação ao estudo estrutural da obra coreográica e dos movimentos, Forsythe desenvolveu um site chamado Synchnorous Objects2, no qual se debruça sobre a análise de One lat thing reproduced, tanto como obra a ser apresentada ao vivo quanto no contexto da imagem. Ademais, o coreógrafo explica que esse trabalho é dotado de vinte e cinco temas, os quais se repetem e se recombinam. Toda essa organização e alinhamento servem para revelar a estrutura coreográica, que é notavelmente mostrada nesse site, inclusive lagrando os recortes do espaço da câmera, evidenciados no espaço do conjunto, da obra ao vivo. Essa demarcação sobre a obra – que é preparada pelo site a im de facilitar o olhar do espectador, que pincela os alinhamentos que o coreógrafo deseja ressaltar –, permite ao espectador descobrir e compreender como Forsythe pensa e se organiza através da dança. A obra One lat thing reproduced é realizada em um espaço semelhante a um galpão abandonado com várias mesas de identidades dúbias, as quais representam não só parte do espaço da obra, mas também, pode-se dizer, parte do espaço do corpo, ou mesmo de um corpo dançante, já que, quando são apropriadas pelos movimentos dos bailarinos, a eles se misturam. Sua função cênica e integradora do movimento e gestual coreográico faz deste espaço físico uma incorporação do espaço do corpo. O espaço justiica a presença das mesas em cena, e os bailarinos as ocupam e as atravessam, formando novas composições que interferem fortemente na sua própria movimentação, na sua disposição espacial e no deslocamento entre eles e entre as mesas. A presença das mesas produz, ainda, contradições , já que elas atuam como uma barreira e um apoio, uma aproximação e uma rejeição, um acolhimento e uma exposição. São quase um objeto vivo que, metaforicamente, reage, conduzindo e propondo interrelações entre o corpo, o espaço e a imagem. 2 Disponível em : <http://synchronousobjects. osu.edu/>. Acesso em: 29 out. 2015. 29 30 ABATE O espaço físico dessa obra, composto pelo grande salão com diversas janelas e as mesas, é o “cenário” escolhido para a realização dessa performance dançante. Trata-se de um espaço vazio que, por sua vez, permite a movimentação e o luxo dos bailarinos. É uma arquitetura que propõe uma estética dos espaços vazios e aparentemente abandonados que são ocupados coreograicamente. Nessa instalação espacial, busca-se uma intimidade que é revela, propulsiona e mesmo conduz toda a percepção que rege a experiência sensorial desse espaço. Guérin atribui a aproximação da dança à arquitetura como uma nova forma de sentir o lugar: [...] até que ponto essa descoberta de sensações íntimas conduz ao reencontro, visual mas também tátil, sonoro, e ainda social, cultural [...] do corpo do outro e desse corpo “coletivo” do grupo, que vai se implantar no espaço, obrigando cada um a ter em consideração essa presença viva. (GUÉRIN, 2006, p. 16. Tradução própria.) A abordagem de Guérin constitui praticamente uma leitura do corpo em relação ao espaço. Por esse viés, relaciona-se à obra de Forsythe, em que, por meio da dança, buscase ora evidenciar ora preencher espaços vazios. Usando palavras de Pichaud, o que o coreógrafo faz “[...] é estimular o campo perceptivo do espaço graças ao prisma da dança” (PICHAUD, 2006, p.19. Tradução própria). Vê-se que não só a dança é responsável pelo campo perceptivo do espaço, como também a composição da imagem fortalece uma nova organização espacial que interfere e empenha percepções outras. Evidencia-se a relação ativa entre os espaços geográico, do corpo e da imagem, reforçando também a criação de arranjos coreográicos diferenciados. O espaço da imagem, ou seja, o exercício da câmera demonstra a inserção dela não como uma dança junto aos bailarinos, mas como um recorte coreográico, lagrando a tentativa de inserir o espectador na mesma sensação de deslocamento dos próprios bailarinos. Ao propor novos enquadramentos, como na tomada na qual há uma vista de cima, permite-se um novo sabor de fruição da obra, em que a visualização da superfície das mesas organizadas nesse espaço concorre para a apreciação desse objetos como corpos A dança na imagem:o espaço-relação na obra de William Forsythe dançantes ou mesmo como o próprio espaço: as mesas seriam o espaço físico ou parte dele, tornando-se corpo, e a mistura de corpos e espaço seria intensiicada pela ação da câmera. As mesas ditam o espaço; elas são o eixo organizador da coreograia e da imagem; são elas também que dão mobilidade ao espaço ixo, além do espaço da imagem. A câmera praticamente passeia, desliza entre as mesas e desloca-se na mesma direção que os bailarinos. Ela designa ora um observador passivo, ora um observador que se lança, penetrando e ultrapassando a cena, criando outras. É em razão de sua condução que surgem novas perspectivas para a apreciação da dança. O próprio enquadramento sugerido à cena já propõe um recorte interessado, já sinaliza uma exibição moldada segundo uma intenção que modiica e interfere na ação do dançar, no sentido de que propõem novas determinantes que, naturalmente, direcionam a percepção desse corpo integrado ao espaço físico e ao espaço sugerido pela câmera. A câmera participa do movimento, no sentido de acompanhá-lo como um observador passivo, que praticamente escolta a cena; denota um espaço outro não só para o espectador como também para a cena. No que diz respeito ao espectador, ele não precisa se deslocar para acompanhar os bailarinos, diferente do que ocorreria em uma performance ou uma interação ao vivo, que poderia exigir um mínimo de mobilidade por parte do público para acompanhar o destino da obra. A própria imagem, ao se deslocar, conduz o espectador da dança, habituado a ver espetáculos ao vivo e em lugares ixos, a mover-se junto, a participar desse deslocamento peculiar, que se dissolve na gravidade e nas distâncias físicas. Nesse âmbito, com vistas a essa nova possibilidade descentralizadora do corpo, do movimento e do espaço, gera-se uma nova experiência de criação de espaços, que é dupla face: de um lado, a face do espectador, que é conduzido junto ao movimento dos bailarinos, o que lhe confere uma sensação dançante por ser embalado no ritmo, velocidade e movimentação deles, ajustando a si um novo espaço de percepção. Por outro, a face da própria obra, da dança, que atravessa os espaços, desenquadra-se, na qual a câmera se regula em função da intenção, propondo espaços outros para a cena que só se realizam diante dessa interface da imagem. 31 32 ABATE Agregada fortemente à escolha do espaço físico e ao espaço da imagem, a reconiguração do espaço da dança o transforma, tornando-o parte não somente do corpo coreográico, mas também da apropriação do espaço e do modo de captação da câmera. Forsythe propõe, corporalmente, uma desorganização da própria ordem dos movimentos, no sentido de investigar associações de movimentos que não disponham necessariamente de uma organização orgânica e contínua, mas que luam a partir do acionamento dos pontos imaginários que existem em todo o corpo. Esses pontos provocam também a ampliação do espaço corporal como portador de um grande território, onde os pequenos cantos imperceptíveis também são condutores de movimento. Nesse caso, não existem cantos ixos que não sinalizem rastros de movimento; tudo tende a deslocarse sem um eixo ixo permanente ou polarizador do movimento, assim como a ideia da imagem no espaço físico sem referenciais em relação ao espectador. A ideia de não existir a referência frontal na cena, na imagem, comunga com o corpo que dança, conectando-se mais ao espaço do que ao público. Ou melhor, se o público for representado pela câmera, é essa que realizará a intermediação e a orientação espacial, não necessariamente mantendo-se diante do espaço corporal frontal; a opção do seu enquadramento em relação ao espaço físico e em relação ao espaço corporal é que possibilita ao espectador criar suas próprias referências espaciais. Assim, a composição desse espaço-relação permite também que novas referências espaciais possam ser instaladas e criadas pelo olhar do espectador, sejam alusões norteadoras ou alusões que provoquem a sensação de desvio ou de perturbação em relação à sua orientação diante da imagem. As cenas que deslumbram essa condição autônoma de dar existência às referências espaciais, criando-as a partir da relação entre o espectador e a imagem, podem se revelar durante os momentos em que não aparece a ila de bailarinos ao fundo, no espaço da imagem. No entanto, no momento dessa aparição sinaliza-se que o espaço físico está sendo apropriado pela própria cena com a intenção de frontalidade. Na medida em que isso não é revelado tão explicitamente, vê-se que a posição da câmera é que imputa a responsabilidade de criar as espacialidades próprias. Tais espacialidades também geram A dança na imagem:o espaço-relação na obra de William Forsythe espaços outros, ao permitirem que uma designação referencial existente na obra possibilite ao espectador a interpretação de outra percepção referencial desse mesmo espaço. A disposição da cena nesse espaço físico que não apresenta a estrutura de um teatro – sendo justamente um espaço diversiicado escolhido para a apropriação coreográica dos corpos, das mesas e da câmera – é dada sobretudo a partir do enfoque da câmera. O fato de supor e tratar a cena do fundo como um espaço de transição, de permanência dos bailarinos, mesmo quando não estão no foco da cena, ocasiona uma hierarquia do primeiro plano, formado pelas mesas, em relação ao plano posterior. Tal desequilíbrio mostra que a cena ao fundo não tem a mesma expressão e força que a cena do primeiro plano; no entanto, em determinados momentos, a composição dos bailarinos que dançam sobre a mesa incide, logicamente, em diferentes profundidades de campo, com alguns dos corpos imóveis ao fundo. Esse encaixe aparente suscita, por instantes, uma função extraordinária ao que não tem visibilidade, ao que é visto unicamente pelo recurso e pela intermediação da câmera, que se organiza com os demais elementos do espaço-relação. Outra forte contribuição da câmera para a percepção coreográica é a possibilidade de fazer diversas tomadas sobre uma mesma cena, mas em ângulos diferentes. O corte rápido da cena da câmera em posição normal para a posição plongée transforma completamente a percepção do espaço e dos movimentos dos bailarinos. A mudança da visibilidade do eixo horizontal para o eixo vertical traz outra plasticidade, aparentando ser outra obra, outro objeto e outro movimento coreográico. A possibilidade de criar diferentes espaços a partir da mesma cena, tendo como fator variante o ângulo posicionado da câmera, contribui para a identidade da dança concebida juntamente com o olhar cinematográico. Essa composição proposital de promover a continuidade da cena sob outro eixo ilustra não só a coreograia dos movimentos corporais como também a coreograia cinematográica, ou seja, como o cinema se ajusta ao universo da dança. Trata-se de um ajuste que regula a intensidade da dança, proporcionando-lhe a versatilidade que já lhe é inerente; contudo, a imagem dá suporte ao que ela não realiza devido aos limites da realidade. A imagem permite que o espectador se desloque sem 33 34 ABATE sentir a distância geográica. É um passeio ao redor da obra, a partir do deslize da câmera, que simula onipresença, estando em todos os cantos e em planos surpreendentes. Uma elipse no tempo é registrada de forma evidente quando o plano apresenta apenas uma mesa e um casal, na ausência da ila ao fundo. As outras mesas sumiram do espaço num piscar de olhos. Burch explica que “a elipse é o hiato entre as continuidades temporais que esses dois planos representam” (2008, p. 25). Ou seja, o tônus marcado nessa nova composição se dá pela mudança do eixo das entradas e saídas, fazendo-se agora pelas laterais, assim como o espaço off que, deinitivamente sai da cena, retomando a suposição do espaço off composto pela ila ao fundo. É a câmera, portanto, que ajusta seu local. O bailarino confronta as diversas direções, não só do corpo, como também em relação à sua cabeça, dirigindo-se às frontalidades relacionadas a si, mas que mudam o tempo todo, de acordo com a mudança da sua posição corporal. No entanto, quando a câmera abaixa, ajustando-se em posição normal, exibe-se o limite ao fundo, retomando-se, então, a frontalidade em relação ao espaço e não mais à autonomia do corpo. A posição da câmera em diagonal em relação às mesas transforma-lhes o desenho da disposição sobre o espaço, retirando o caráter linear que elas apresentaram até então. Ao mudar o ângulo desse enquadramento, provoca-se outra visão e organização das mesas em relação ao espaço, apontando um momento raro na obra, em que, de fato, se perde a frontalidade estabelecida. Demonstram-se, então, nessa cena, os corpos dançantes e as mesas, criando novas frontalidades a cada instante, a cada movimento dos bailarinos. É o espaço do corpo assumindo o espaço físico, ou seja, é o corpo que dita, a cada movimento, a referência espacial em relação ao seu próprio corpo. Essa autonomia que se designa do corpo em relação ao espaço, no sentido da ocupação do corpo e do gestual no espaço de forma libertária, desconsiderando as referências espaciais norteadoras pré-colocadas, sinaliza, portanto, a independência do corpo, delegando a ele a condução da inscrição no espaço a partir de suas próprias referências. É o corpo gerando o espaço ao seu redor, a partir de seus movimentos e não do espaço que lhe é externo, aproximando-se da corêutica de Laban. A dança na imagem:o espaço-relação na obra de William Forsythe Essa capacidade de permitir que o corpo se descole do espaço para criar seu próprio espaço referencial, mas sempre interligado ao espaço físico contribui para as conexões do espaço-relação, gerenciando bem a zona comum em que ele habita: entre o espaço físico e o espaço da tela. É o entre que habita parte de cada um dos dois. Essa situação de autonomia do corpo permite estabelecer uma estratégia híbrida de construção de outros e diferenciados sentidos para a dança, quando na imagem em movimento. Cada novo ângulo interfere fortemente na apreciação do espectador. A possibilidade desses ângulos é um dos fatores que renovam e redeinem esse espaço-relação. A obra denota um tom de suspense, gerado tanto pela música minuciosa composta por vários ruídos, sem ritmo deinido, quanto pelos olhares e alguns momentos de movimentos bruscos sobre as mesas, produzindo essa tensão de olhares e de agilidade nos movimentos. Pela primeira vez, quando a câmera realiza um trajeto circular, contornando o espaço das mesas e inalizando no lado oposto, cumprindo o deslocamento de cento e oitenta graus, vê-se o local que fora predominantemente ocupado pela câmera nessa obra, e que denotava a frontalidade a partir da referência da ila ao fundo. Na verdade, só se percebe essa mudança de posição devido à câmera fazê-lo sem cortes, realizando o travelling de contorno, ou seja, o movimento de câmera com deslocamento no espaço, de modo a facilitar a orientação e compreensão espacial de quem vê. A movimentação dos bailarinos continua em todas as direções, o que signiica que, de fato, a frontalidade da maioria das cenas se dava não necessariamente pela direção do espaço corporal, mas sim pelas referências do próprio espaço físico. A câmera não para esse círculo; ela o faz lentamente até retomar seu ponto de partida, realizados os trezentos e sessenta graus do deslocamento circular ao redor das mesas. Ao inalizar esse movimento, ela assenta sua posição, imóvel, e os bailarinos também ilustram esse momento ralentando seus movimentos, com pernas ou braços estendidos, sinalizando a proximidade da pausa, mas imediatamente retomam o ritmo. Existe um único momento em que a cena ica vazia, rapidamente, na ausência de bailarinos e num espaço escuro, sem referências, um espaço qualquer. Em seguida, retoma- 35 36 ABATE se a cena das mesas em ila, até o fundo do espaço, no silêncio. Essa recuperação diferenciada caracteriza uma ruptura espacial e temporal. Cessando o som, renova-se uma suspensão. Os bailarinos ocupam o espaço entre as mesas, e, quanto mais longe da câmera, menos nítida ica a cena. Eles entram e saem da cena pela lateral, não existe ninguém parado ao fundo. O espaço fora da tela é representado pelas laterais fora da imagem. O corte dessa cena para a próxima, em plano geral com as mesas espalhadas no espaço, é anunciado por um enquadramento diferenciado. A câmera se aproxima dos braços dos bailarinos e, ao se distanciar, já exibe outro contexto da organização espacial, tanto das mesas quanto da disposição dos bailarinos. Estabelece-se um recurso de transição de cena a partir do foco sobre o corpo, o qual se desconectou espacialmente da sua referência em relação ao espaço físico. Assim, ao retomar o plano geral, já é outra cena e outra disposição. Essa desorientação espacial, quando provocada, acontece pelo espaço da imagem, constituindo um recurso interessante de variação da obra coreográica, tanto pela composição dos corpos ou partes dos corpos focados em cena, privilegiando determinadas partes, quanto pelo espaço físico recortado que entra em cena, ou seja, praticamente a “fresta” de espaço que é cabível quando a prioridade do foco é revelar o espaço corporal. One lat thing reproduced opta claramente por expor seu espaço físico por inteiro, até porque é um grande galpão desocupado e tudo se passa somente nesse local, sem outras locações. Durante as tomadas, em plano geral, é possível ter-se uma noção do espaço físico e de como o corpo se apropria dele. O tom do espaço da tela se dá, frequentemente, pela alternância da posição da câmera, ora plongée, ora normal, gerando diferentes perspectivas espaciais para a mesma cena. Criam-se espaços diversos a partir da mudança de enquadramentos. Se todas essas imagens feitas a partir de ângulos e aproximações diferentes fossem dispostas lado a lado, em um telão, notar-se-ia uma sequência com mesma coreograia e gestualidade dos bailarinos, mas com espaços outros. Outra variação do espaço se dá pela mudança da disposição das mesas, assim como as formas de relação que os bailarinos estabelecem com elas, e a partir de qual ângulo e em que aproximação o espaço da tela capta esse cenário. A dança na imagem:o espaço-relação na obra de William Forsythe Ainda que o espaço seja sempre o mesmo galpão, a organização do espaço-relação consegue extrapolar a unicidade e promover a pluralidade. Nessa perspectiva, vê-se que a dança na imagem se torna uma experiência para além da dança e além da questão da imagem, que seria o cinema. A autonomia da imagem predispõe novos encadeamentos de cenas, interferindo na composição coreográica da dança. Gonçalves ressalta, em relação à produção audiovisual contemporânea, que O que se nota aqui é a predileção pelo fragmento, a valorização do instante e do detalhe, uma aposta, enim, na força singular da imagem, na imagem como presença, como força expressiva fora das cadeias narrativas. [...] São outras lógicas que se divisam aqui, novos problemas, outros modos de explorar as potências do tempo e da imagem. (GONÇALVES, 2014, p. 22-23) Assim, a dança na imagem se conigura como um campo de experiências estéticas e um embate de diálogos de espaço-relação que obriga a dança, enfatizada nesse artigo, a reprogramar outras fruições que vão muito além da técnica, fruições que residem na nova organização multidisciplinar, atravessadas pela instabilidade de ideias e experimentações. Referências Bibliográficas BURCH, Noel. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 2008. DANTO, Isabelle. “William Forsythe.” In: Danser sa vie: Art et danse de 1900 à nos jours. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2011. DELVAL, Florent. “La danse à l´épreuve du hors-champ.” In: Vidéo/Scène. Pach: Revue du Centre des Écritures Contemporaines et Numériques, dez. 2010. GONÇALVES, Osmar (org). Narrativas Sensoriais. Rio de Janeiro: Circuito, 2014. 37 38 ABATE GUÉRIN, Philippe. “Toute architecture est un cadrage du mouvement.” In: Repères. Cahiers de danse. França: CDC/Biennale de danse du Val-de-Marne, nov. 2006. MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Senac, 2008. PERRIN, Julie. De l´espace corporel à l´espace public. These pour obtenir le grade de Docteur de l`Université Paris 8 – Vincennes Saint-Denis – U.F.R. Arts, philosophie, esthétique, 2005. PERRIN, Julie. “L´espace en question.” In: Repères. Cahiers de danse. França: CDC/Biennale de danse du Val-de-Marne, nov. 2006. PICHAUD, Laurent. ”Faire ‘voir du lieu’ avec la danse.” In: Repères. Cahiers de danse. França: CDC/Biennale de danse du Val-de-Marne, nov. 2006. RANGEL, Lenira. Dicionário Laban. São Paulo : Annablume, 2003. 2. ed. 39 AVENTURES DE GYÖRGY LIGETI – UMA MÚSICA DE FONEMAS Laiana de Oliveira* A obra Aventures, para três cantores e sete instrumentistas, do compositor húngaro György Ligeti, possui uma abordagem peculiar das concepções textual, vocal e instrumental, devido ao uso de agrupamentos fonéticos em lugar do texto linear. Por meio de recortes da obra, essas considerações apontam as implicações do uso de fonemas na escrita vocal e apresentam procedimentos inerentes à obra que possibilitam a conexão entre voz e instrumentos, usando o texto como gerador de material composicional. *Laiana Oliveira (Brasília / DF, 1987) é compositora, cantora e estuda processos de composição para voz solo em obras dos séculos XX e XXI. 40 ABATE Aventures A obra Aventures foi escrita em 1962 para a seguinte formação: três vozes – soprano, contralto e barítono – e sete instrumentistas – lauta, trompa, percussão, cravo, piano, violoncelo e contrabaixo. Drott airma que essa obra representa a crescente tendência entre os compositores de explorar o gestual, a dimensão não semântica da linguagem es ao mesmo tempo, a conexão entre os movimentos de poesia sonora e concreta (2004, p. 201). De fato, Ligeti pensava, anteriormente, em compor música simulando a fala, o que realizou primeiramente por meios eletrônicos em Artikulation (1958). (STEINITZ, 2003, p. 80) Em Aventures, o texto utilizado é composto por um inventário fonético que não consiste, aqui, em um idioma artiicial1, mas em agrupamentos fonéticos que não possuem signiicado léxico em idioma algum. A inteligibilidade da comunicação proposta na obra se deu devido a uma intersecção entre sílabas nonsense e plano não verbal, que engloba interjeições, efeitos auditivos e sons corporais, somados a estímulos cinéticos (ofegância, sons gulturais, risadas). Essas intersecções conferem ao discurso características que tornam Aventures “semelhante a óperas compactas em que os três cantores e sete instrumentistas encenam confrontos dramáticos que não estão vinculados a um enredo ou texto (somente sílabas abstratas são utilizadas)” (SMALLEY, 1970). No livro György Ligeti – Music of the imagination, Richard Steinitz relata que o interesse pela sonoridade da fala foi despertado em Ligeti ainda em sua infância. Seu primeiro afrontamento com a sonoridade de um idioma estrangeiro se deu quando ouviu um policial romeno gritando em uma língua “alienígena”. Essa experiência foi sintetizada quase quarenta anos depois, em Aventures. 1 Para maiores informações sobre estruturas da linguagem, consultar o The World Atlas of Language Structures, em <http://wals.info/>. Aventures de György Ligeti – Uma música de fonemas Conexões entre voz e texto O material textual de Aventures consiste em fonemas e agrupamentos fonéticos descritos através dos signos do Alfabeto Fonético Internacional, englobando uma imensa gama de sons referentes a signos diacríticos, consoantes não pulmonares, glides, e outras particularidades estranhas à maior parte dos idiomas ocidentais. Para tanto, o contato com o linguista Werner Meyer-Eppler (1913-1960) foi de grande importância para Ligeti, que airma: “foi o melhor professor que eu já tive” (STEINITZ, op. cit., p. 81). Através da catalogação dos fonemas da obra, identiicamos o uso do inventário fonético inerentes a três idiomas: Húngaro, Alemão e Inglês. Esses inventários possuem signos vocálicos e consonantais divergentes e comuns entre si. Além disso, são utilizados signos especíicos de dialetos como inglês escocês, norueguês e orientais. Para melhor compreensão, utilizamos Diagramas de Venn para apresentar signos comuns ou exclusivos de cada idioma utilizado em Aventures. Fig. 1 – Vogais utilizadas em Aventures pertencentes aos idiomas húngaro, alemão e inglês. 41 42 ABATE O compositor não fez uso de todas as vogais presentes no inventário fonético dos idiomas utilizados na obra. Das 14 vogais do inventário Húngaro, somente o grupo de vogais curtas foi utilizado. O complexo sistema vocálico alemão comporta 15 vogais, três ditongos, duas “vogais reduzidas” (ou vogais átonas, presentes no im de algumas palavras), três semivogais e seis vogais acrescidas em decorrência da internacionalização de alguns verbetes. Desse grande grupo, na obra são utilizados nove signos vocálicos sendo sete vogais [ɑ, ɛ, ɪ, œ, ø, ʊ, ʏ] e a vogal reduzida [ə], o “schwa”. Dos 29 sons vocálicos presentes nos onze principais dialetos do inglês, Ligeti se utiliza de 14. Dentre os signos pertencentes a dialetos podemos destacar os [ʉ, ɯ] presentes no dialeto escocês. No tocante ao uso das consoantes, podemos observar, na tabela consonantal do AFI, que signos descritos no mesmo campo – caracterizados como oclusivos (plosive) e fricativos – são dispostos como desvozeados e vozeados. 2 Disponível em: <http://118.69.69.195/1/ SOFT/Tu%20dien/Lingoes/appe/ipa/>. Acesso em 11 out. 2015. Onde símbolos aparecem em pares, o que está à direita representa uma consoante sonora moda, exceto pelo ɦ murmurado. As áreas sombreadas denotam articulações consideradas impossíveis. Letras em cinza não são oiciais do IPA. Fig. 2 – Tabela fonética de signos consonantais. (Tradução própria)2 Aventures de György Ligeti – Uma música de fonemas As línguas naturais possuem um maior equilíbrio consonantal, tanto que os inventários fonéticos do Húngaro, Alemão e Inglês possuem 28 signos cada, e 19 signos são comuns aos três idiomas, que consistem nas categorias: nasal bilabial, alveolar; oclusivas bilabial, alveolar, velar; fricativa labiodental, alveolar, alvéolo-palatal, glotal; e o segmento africado alvéolo-palatal. Fig. 3 – Consoantes utilizadas em Aventures pertencentes aos idiomas húngaro, alemão e inglês. Na igura acima, observamos que o inventário fonético para Aventures é composto por 34 signos e, em sua maioria, são consoantes comuns aos três idiomas. Entretanto, no círculo à parte constam signos pertencentes aos dialetos orientais orientais [ɩ, ᵼ, N], norueguês [ɲ] e turco [ϕ], que são utilizados como complementos dos conjuntos formados por consoantes fricativas, laterais e nasais que formarão a base textual da obra. É importante ressaltar que a versão do AFI aqui utilizada trata-se de uma revisão datada de 2005. Porém, considerando que a obra foi escrita em 1962, supomos que a versão do AFI utilizada por Ligeti seja a revisão feita em 1952, na qual os símbolos orientais [ᵼ, N] foram inseridos. 43 44 ABATE Apresentamos, a seguir, a revisão do AFI de 1952, tendo nos quadrados destacados os signos vocais e consonantais utilizados na obra. Fig. 4 – Alfabeto Fonético Internacional, revisão de 1952.3 3 Disponível em: <http://en.wikipedia.org/ wiki/History_of_the_International_Phonetic_ Alphabet>. Acesso em 11 out. 20115. Tendo-se deinido o material textual, podemos de fato, apresentar as relações criadas entre eles pelo compositor. A obra é organizada por “números de ensaio”, ou seja, por marcações não denotando qualquer mensuração; ao contrário, a música deve luir sem demarcações temporais. Os números de ensaio vão de 1 a 115, mas aqui os chamaremos de compassos para melhor assimilação. Ligeti caracteriza as seções por verbetes ilustrativos, sendo estes: Agitato, Senza tempo, Presto, Conversation, Alegro Apassionato, Sostenuto Grandioso, Eco (solene e fúnebre), e Ação Aventures de György Ligeti – Uma música de fonemas dramática. Porém, a análise textual revela outra coniguração estrutural, como indicada na igura abaixo: Fig. 5 – Seções em Aventures e seções denominadas pelo material textual. Observamos, na igura, que as sete seções textuais são agregadas às onze seções da obra. Nas seções Senza Tempo, o material textual da seção em questão é utilizado em tempo não mensurado. A seção que denomino como Ofegâncias vai dos compassos 1 a 9 e consiste na consoante fricativa glotal [h]. As diferenças timbrísticas são determinadas pelo modo de emissão do fonema que notado entre parêntesis (h) deve ser aspirado ou inalado, e, fora do parêntesis, deve ser exalado, com a maior liberação de ar possível. 45 46 ABATE Fig. 6 – Consoantes aspiradas [h] e inspiradas h.4 Além da notação do texto, os símbolos de inalação e exalação estão também na notação musical, enfatizando a alternância timbrística do fonema [h]. No compasso 6, a consoante [m] é inserida nas vozes do soprano e do contralto, integrando o cluster que acontece no ensemble, enquanto as ofegâncias, o morphing entre vogais e o peril de gargalhada são desenvolvidos na linha do barítono. Esses três elementos serão trabalhados de diversas formas no decorrer da obra, como, por exemplo, no peril de gargalhada, que se esfacela entre as vozes do soprano e contralto nos compassos seguintes. 4 Fonte: Aventures, partitura. 1962. Aventures de György Ligeti – Uma música de fonemas Fig.7 – Sons contínuos entre vozes e instrumentos, e ofegâncias na linha do barítono.5 No compasso 10, que denomino Morphing, remete-se àmudança gradual de um som para outro e são utilizadas variadas formas no domínio textual. Aqui, lauta, trompa e cordas do piano se combinam com as vozes, que emitem a vogal [u] com o formato de boca da consoante lateral velarizada [ɫ]. O morphing, composto por vogais posteriores [u, o, ɔ, ɒ], na voz do contralto, é produzido conservando o formato de boca [ɫ]. No compasso 12, ele se expande às vogais e consoantes nasais que constituirão o principal material textual até o compasso 17. No compasso 20, a seção Presto pode ser chamada de Consoantes desvozeadas. Aqui, Ligeti utiliza os signos consonantais oclusivos, fricativos e africados desvozeados, ou seja, 5 Idem. 47 48 ABATE que não apresentam vibração das cordas vocais. Para os signos naturalmente vozeados, o compositor usa o desvozeamento artiicial, representado por pequenos círculos abaixo das consoantes. Assim, o resultado sonoro é produzido pelos articuladores ativos e passivos da glote, alvéolos e língua, e ressoados somente pela cavidade oral, sendo necessário o uso de dinâmica f como se fossem sussurros extremamente articulados. Fig. 8 – Consoantes desvozeadas e sons pontuais. Aqui, como novo material textual podemos observar o processo de desvozeamento entre as consoantes e a inserção de sílabas pontuais em alturas deinidas compostas por vogais altas e fechadas orais ou nasalizadas [i, y, e]. Esse comportamento pontual é expandido para os instrumentos por meio de timbres que o compositor caracteriza como curto, staccattíssimo, interrompendo a coluna de ar com os lábios (sopros) e com três articulações diferentes de pizzicato (cordas). A seção Conversation, compasso 38, que possui maior ênfase no aspecto não verbal, possui três abordagens textuais que se alternam constantemente como num diálogo, em primeiro plano, e textura como plano de fundo. Aventures de György Ligeti – Uma música de fonemas Assim, os diálogos entre os cantores são construídos em três agrupamentos: • sílabas simples (consoante+ vogal) e complexas (3 consoantes + vogal); • morphing de consoantes fricativas e vogais desvozeadas (a im de moldar a saída do ar); • consoantes oclusivas e complexas (quando a terminação da emissão é indicada por vogal sobrescrita) [ma, le], utilizadas no diálogo do cantor consigo. Na igura abaixo, destacamos os agrupamentos textuais em preto (sílabas), cinza escuro (morphing),) e cinza claro (consoantes). Fig. 9 – Agrupamentos textuais em Conversation. 49 50 ABATE Nos compassos 47 e 49, todas as disposições textuais utilizadas em Conversation são condensadas no solo de barítono. Textualmente, denomino a seção Alegro Appassionato por Morphing Estruturais, como uma longa seção de mudanças graduais de peris, timbre e material textual, do compasso 49 ao 108. A partir do compasso 64, há uma lenta dissolução do ritmo musical e também há dissolução textual, visto que cada fonema representa uma nota. Essa dissolução rítmica e textual conduz gradualmente à seção de sons contínuos, formando clusters entre instrumentos e vozes na tessitura entre dó e mi3. Para garantir a junção dos timbres nessa região, há um morphing de consoantes nasais e vogais nasalizadas (compassos 79 – 88). No compasso 89, Ligeti parte do morphing para a criação de um Vibrato textual, ou seja, a execução dos fonemas [l, n, ʎ, ɳ, ŋ, ɭ, ɴ] sucessivamente, o mais rápido possível e numa mesma altura, resultando em alterações timbrísticas que poderíamos associar à técnica bisbigliando, inerente aos instrumentos de sopro. Esse vibrato se transforma em blocos rítmicos com o mesmo conjunto de fonemas, executados um pouco mais lentamente e formando uma textura rítmica cantada como um murmúrio, o mais grave possível. Aventures de György Ligeti – Uma música de fonemas Fig. 10 – Vibrato textual precedido de morphing de consoantes nasais. Blocos rítmicos constituídos do mesmo conjunto textual. O modo de emissão do conjunto fonético [l, n, ʎ, ɳ, ŋ, ɭ, ɴ] em blocos rítmicos se alternam com morphing de vogais orais (compassos 93 – 97). No compasso 99, os sons contínuos aparecem na região aguda das vozes e instrumentos, e no 103, na região grave. 51 52 ABATE No compasso 108, que chamo de Conversation + Cromatismo, os elementos apresentados no compasso 38 são novamente utilizados, tendo suas relações com os diálogos preservadas. Porém, a elas se agrega uma camada contendo a escala cromática espaçada entre as vozes. Para sustentar as notas da escala, Ligeti se utiliza do conjunto fonético da seção anterior [l, n, ʎ, ɳ, ŋ, ɭ, ɴ]. O 114, texto do Monólogo na voz do contralto, é composto por agrupamentos fonéticos complexos, sendo que o último fonema da obra, o [h], também é o primeiro material textual a ser explorado nela. Sendo vasto o material textual utilizado nessa criação de Ligeti, podemos observar, através desta análise, o agrupamento de fonemas, que são organizados: por ainidades visíveis no IPA; por categorias de morphing (vogais nasalizadas e consoantes nasais, vogais orais, consoantes fricativas), e por desvozeamento de vogais e consoantes para a produção de timbres. O uso do texto é sempre conectado a modelos de escritura instrumental e regiões da voz. Considerações Finais Devido a nosso interesse estrito pelas técnicas composicionais inerentes à voz e à fonética, não foram discutidos nem a abordagem instrumental nem o uso da extensa gama de afetos e das várias indicações de palco descritas na obra, itens que caracterizam a antiópera proposta pelo compositor. No entanto, através desta breve descrição apresentamos o uso de agrupamentos fonéticos como alternativa ao texto em obras vocais, bem como as implicações do texto por fonemas na obtenção de recursos timbrísticos para conexão de timbres vocais e instrumentais, tornando-os por vezes indivisíveis na escuta. Referências Bibliográficas CRISTÓFARO. T. Fonética e Fonologia do Português. São Paulo: Contexto, 2012. 10. ed. Aventures de György Ligeti – Uma música de fonemas LIGETI, G. Aventures. Para três cantores e sete instrumentistas. Frankfurt: C. F. Peters, 1962. MABRY, S. Exploring Twentieth – Century vocal music. A practical Guide to innovations in performance and repertoire. 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London: Faber and Faber, 2003. 53 54 EM CHINÊS MÃE E CAVALO SÃO PALAVRAS MUITO PARECIDAS. *Marcus Groza (joseense de 14 de março de 1984) é palavrero e devoto do céu violado. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo Marcus Groza* 55 }º ¢ – Anteprólogo Nietzsche abre o prólogo de A Gaia Ciência da seguinte maneira: “Talvez não baste somente um prólogo para este livro; e ainal restaria sempre a dúvida de que alguém que não tenha experimentado algo semelhante possa familiarizar-se com a experiência deste livro mediante prólogos”. Logo que li essas palavras, passei a tê-las como uma provocação virulenta a todo um sistema humanista de pensamento com o qual sempre comunguei e ainda parcialmente comungo. Sempre que abordo algo, tento me perguntar o quanto há de prólogo naquilo e no que se fala a respeito daquilo. Este texto também poderia se chamar PRÓLOGO, pois temo que ele termine sem que termine o prólogo. (Mas poderia se chamar também Falar a mesma língua não é garantia de nada). Por azar nosso, é “mediante prólogos” que temos o hábito de começar os textos, é mediante prólogos que os adultxs falam com as criançxs, é “mediante prólogos” que os amantes se fazem juras de amor, é “mediante prólogos” que os professores ensinam os alunos. Também é “mediante prólogo” que muitas vezes a arte opera, especialmente uma linhagem de arte que podemos chamar de pedago-sociológica. De tempos em tempos, é valioso questionarmos o quanto vale esta existência repleta de prólogos e se perguntar se haveria uma vida além-prólogo. Suspeito que são mais venturosas as tentativas de falar com pessoas que não falam um mesmo idioma que você: assim já se sabe, de antemão, que está em jogo a necessidade de instaurar novas – não importa se remotas – possibilidades de afetar o outro pela linguagem e assim talvez criar novas formas de vida. }º Prólogo IV – Da possibilidade remota de terminar o prólogo Estou escrevendo este texto com palavras que não são minhas. Ainda que possa vir a utilizar neologismos aqui, esses só poderão ser compreendidos se compostos pela aglutinação de palavras e partículas semânticas de uma língua preexistente ou pelo contexto formado pelas outras palavras. Na língua falada se passa o mesmo: quando falo, pronuncio palavras que não são minhas. Não falo: seria mais preciso dizer que sou falado. 56 ABATE 1 Referida por Freud em uma nota de pé de página de Totem e Tabu. Quando falamos, raramente nos damos conta de como o emprego de uma palavra tem pressuposto uma manobra (ou “bocobra”?): ao pronunciar ár-vo-re, opero uma depuração conceitual das inúmeras características acidentais, com a qual posso diferenciar, por exemplo, os formatos e espécies de plantas que sensorialmente percebo no mundo. Não importa se, ao pronunciar ár-vo-re, o meu interlocutor, falante da mesma língua, tenha um quadro referencial diferente e compreenda algo que talvez eu chamasse arbusto. Importa que, ao pronunciar ár-vo-re, opera-se essa manobra no meu espaço mental, de acordo com uma convenção que aprendi, como falante, e segundo a qual posso dizer árvo-re e, com isso, não signiicar arbusto. Dizer também o óbvio: a linguagem verbal é convencional e arbitrária. As palavras são extrínsecas às coisas que denominam. Comumente, uma convenção serve para enfatizar o vínculo social e opera a partir desse vínculo e em seu favor. Nem por isso a convenção deixa de ser algo tão artiicial e arbitrário como uma etiqueta luorescente pendurada em uma planta à venda em uma loja de jardinagem, dentro de um shopping, localizado no meio de um deserto... Tal aspecto artiicial e arbitrário, entretanto, muitas vezes se instaura de tal modo que o assumimos com ares de naturalidade. Um falante que estivesse a toda hora tentando se dar conta do aspecto artiicial da língua por certo não teria uma fala luída e tampouco seria muito agradável ao seu interlocutor. É importante que os artifícios se tornem um hábito. Tudo que aprendemos gradativamente se torna habitual e automático e isso é condição para a capacidade de adquirir novas habilidades: todos que se lembram da primeira vez em que seguraram uma caneta ou em que falaram uma língua estrangeira reconhecem que pouco a pouco o que era incrivelmente difícil acabou se tornando habitual e cotidiano. No entanto, é preciso ter claro também que, para a aquisição de novas habilidades, é valioso acessar um estado em que as couraças do cotidiano, se não cheguem a efetivamente cair, ao menos se afrouxem um pouco: os automatismos criam uma rigidez que é obstáculo à produção de novas formas de vida. Para Victor Shklovsky, operar no contraluxo desses automatismos envolve um “fazer estranho”. Em uma determinada sociedade tribal1, há um interdito segundo o qual, após a morte de uma pessoa, ela não pode mais ser designada pelo nome que tinha em vida. Há uma Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo disjunção entre vivos e mortos. O morto passa a ser uma alteridade, quase como um estrangeiro e, assim, num segundo batismo pós-morte, passa também a ser designado por um novo nome. Mas, para acúmulo, o substantivo comum com o qual aquele nome próprio era identiicado passa igualmente a ser interdito: quando morre Pedro, a palavra Pedra precisa ser substituída. A dinâmica a determinar a constituição lexical dessa língua está atrelada à instabilidade da vida humana individual, e podemos imaginar que se trata de uma dinâmica vertiginosa. O que chamamos, aqui, de produção de novas formas de vida tem parentesco com uma dinâmica dessa natureza, algo movente que faz da instabilidade seu mecanismo e do precário e frágil seu principal alimento. É tudo sobre imanência! Hoje é mais comum ver irromper novas formas de vida na arte, na música, na poesia, algumas vezes na ciência, nos movimentos sociais e, cada vez mais raramente, também na educação. Apesar de ser crucial uma dinâmica vertiginosa desse tipo, é necessário lembrar também que a constituição lexical dessa língua está ligada a um fator de manutenção do vínculo social e da estrutura comunitária da tribo: não se conigura como exceção ou transgressão da ordem. Pode-se entender que se trata de um idioma dotado de um caráter bastante sistemático (e arbitrário, é claro), tal como outros – o português, por exemplo – cuja dinâmica de mudança lexical é aparentemente mais estável e condicionada por outros fatores sociais e linguísticos. Nesse contexto, a poesia – como um modo de produção de novas formas de vida pela linguagem – seria algo como uma composição apenas com nomes mortos, quebrando o interdito. Poesia seria, então, um ato adolescente que se reduz à transgressão das regras? Não me resta dúvida de que a poesia e toda produção de novas formas de vida envolve a manutenção de um estado de juventude (“essa coisa maldita!”) e envolve, igualmente, a capacidade de não envelhecer vivo (vide novamente Tom Zé e tantos outros velhosmeninos. “O menino é o pai do poeta”, dizem). Antes, contudo, é crucial ter a dimensão de que a própria transgressão funciona muitas vezes como um mecanismo de compensação dentro do sistema, passando a ser uma ferramenta de preservação desse sistema: o sujeito enche a cara nos sábados para aguentar 57 58 ABATE 2 Michel Foucault, em “Loucura: ausência de obra”, escreve que “desde Mallarmé, sob cada uma de suas frases, sob cada uma de suas palavras, a literatura supunha o poder de modificar soberanamente os valores e as significações da língua à qual, apesar de tudo (e de fato), ela pertencia.” Assim, cada obra se constitui segundo um código interno, imanente, personalizando a comunicação e se alheando à convenção. Tal como na constituição lexical da referida sociedade, cada obra é um nome individual a ser substituído após a sua consolidação/morte. o seu trabalho e o seu patrão ao longo da semana. Além disso, não me resta dúvida de que a poesia ou qualquer modo de produção de novas formas de vida não é apenas reativo, como costuma ser a tenacidade dos adolescentes em contradizer. Gosto de repetir que a poesia é uma língua estrangeira dentro da língua. Nesse sentido, na analogia com a língua mencionada, a poesia antes seria algo como utilizar os nomes mortos para instituir uma nova língua, viva, frágil, precária e não estruturada numa esfera estritamente comunicacional2. É como a tentativa de falar com alguém que não fala um mesmo idioma que você: envolve mais intensidade do que a tarefa de falar, mediante prólogos, com falantes da mesma língua, mas incapazes de uma experiência assemelhada. Assim, na poesia e na arte, o foco não reside em produzir um efeito comunicacional, mas afetar pela produção de intensidades. Eis a diferença. A produção de novas formas de vida tem a ver com produzir intensidades. Por isso, falar a mesma língua não é garantia de nada. A produção de intensidades realiza o céu na terra, provoca a cessação dos prólogos, fá-los silenciar por um instante, um breve hiato, abre uma minúscula cratera no espaçotempo. Em ocasiões muito incomuns e precárias, produz-se miraculosamente essa cessação dos prólogos e nos enchemos da percepção de que é possível afetar o outro e ser afetado: olhamos no olho de alguém e ali se abre um portal ininito; um professor fala algo que nem entendemos ao certo, mas que produz em nós uma issura transversal; assistimos à uma cena de uma peça que se presentiica diante de nós como uma epifania. A possibilidade rara e remota de terminar o prólogo reside, pois, nessa produção de intensidades. Em outras palavras, trata-se de instaurar um campo efetivo de experiência. EXPERIÊNCIA? A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). [...] O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-europeia é per, com a qual se relaciona, antes de tudo, à ideia de travessia, e, secundariamente, à ideia de prova. [...] Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra PIRATA. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. (JOSÉ LARROSA BONDÍA) É magníico esse trecho, mas não importam exatamente as palavras: em si mesmas, as palavras são prólogos. Importa o que elas podem produzir. Gosto de repetir que a experiência pressupõe o perigo. A poesia igualmente pressupõe o perigo, tal como todos os modos de produção de novas formas de vida. “Aquele centro frágil e turbulento a que chamamos Vida”, de que falava Artaud. Vale ressaltar, pois, que a passagem do tempo e o envelhecimento não conferem experiência, porque experiência é algo que se dá num tempo forte, é a sucessão temporal da travessia percorrida sob o signo da intensidade. Walter Benjamim diferencia “vivência” e “experiência”. Observemos, então, que vivência é a sucessão temporal acumulada pelo vivente, e a experiência é quando tal sucessão temporal transcorre intensamente; experiência é uma ediicação na berlinda, um campo de invenção e reinvenção constante, uma dança entre o voo e a queda, um pirata que sabe saquear os inimigos e também as próprias feridas. Deixar de ter rosto. O mais são prólogos, inacabáveis e tediosos prólogos. _______________________________________________ A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços. Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça, ica com um braço de fora. Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos. Um anjo cinzento bate as asas em torno da lâmpada. Meu pensamento desloca uma perna, o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados. Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia, 59 60 ABATE um olho andando, com duas pernas. O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem. A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios. Só tenho o outro lado da energia, me dissolvem no tempo que virá, não lembro mais quem sou. Murilo Mendes }< ° Digressão XII – Do que falamos quando falamos Experiência na Política O que poderia conigurar o exercício da política num campo experiência? Fugiria de bom grado desse tipo de questão. Mas julgo também que, hoje, isso resulta um ponto incontornável, de modo que vou dar prosseguimento a este prólogo sugerindo um exemplo que me parece claro para caracterizar essa questão. No dia 15 de março de 2015, domingo, milhares de manifestantes foram às ruas em todo país em protesto contra corrupção, contra o governo Dilma, e se falava em impeachment e, uma minoria, até em intervenção militar. Dois dias antes, igualmente, milhares de manifestantes tinham ido às ruas para defender o estado democrático de direito, e então se falava em tom apocalíptico que impeachment equivaleria a golpe. Trata-se de uma situação complexa que não me aventuro aqui a tentar analisar diretamente. No entanto, vou terceirizar o problema mencionando duas diferentes reações a esse 15 de março, por parte de dois intelectuais da esquerda: André Singer e Vladimir Safatle. Singer, um dia antes das manifestações de 15 de março, em artigo na Folha de São Paulo, refere-se ao momento como um “inédito teste de estresse” da democracia brasileira, reitera o argumento de que impeachment seria “golpe branco” e termina citando a Constituição e dizendo que ir às ruas “incitar intervenção militar é fazer apologia do crime e deve ser denunciada enquanto tal”. São argumentos irretocáveis: momento político atual = teste de estresse da democracia; impeachment na atual circunstância = golpe branco; incitação Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo de intervenção militar = apologia ao crime. Argumentos irretocáveis, no entanto o tom é partidário e legalista, e minha impressão é que vem revestido de algum medo das pessoas irem às ruas defenderem uma tese contrária da sua. Em uma entrevista do dia 19 de março à Rede Brasil Atual, Singer tece algumas “críticas” ao PT, retomando uma argumentação sua: o PT teria perdido sua “primeira alma”, mais radical do que a “segunda alma” que estaria em vigor hoje no partido. André Singer é o principal teórico do Lulismo. É um grande intelectual, professor da USP, e foi porta-voz da Presidência da República durante o primeiro Governo Lula. Mas chegam a ser risíveis esses termos, “primeira” e “segunda alma”. Nessa entrevista, ele ainda airma que – enquanto alianças eleitorais, como a feita com o PMDB, são condenáveis – “alianças parlamentares são justiicáveis” por meio das ações que o Executivo tem desenvolvido. E se refere às ações airmativas de redução da extrema pobreza e da desigualdade. Essas ações airmativas são inegáveis, o problemático é dizer que servem de justiicativa aos conchavos políticos. Singer gasta bastante saliva tentando salvar algo da “primeira alma” do PT. Argumenta que falta “trabalho de base”, que o problema central foi o descompasso entre o Executivo e o Parlamento e não sei mais quantas coisas que pertencem a um ideal decrépito da esquerda partidária. Numa entrevista de 15 de março para o UOL Notícias, Vladimir Safatle airma que o país vive numa “partidocracia”, e que trocar o PT por outro partido seria como “trazer o Dunga de volta à seleção brasileira após a derrota na Copa”. Para ele, o que se vive hoje é o esgotamento de um modelo de política “sob o império da representação”. A democracia brasileira pós-ditadura se armou a partir de um jogo político que envolve justamente uma parcela da classe política surgida na ditadura. Isso vincula a política brasileira à defesa de interesses locais. Ele menciona a ligação do governo FHC com Antônio Carlos Magalhães e a ligação do governo Lula com Sarney. Sobre o esgotamento desse modelo, Safatle esclarece que “o problema da representação é que, quando ela se organiza, ela diz quais são as condições para a pessoa ser representável. Quem organiza o espaço de representação deine quem ocupa o poder da representatividade política”. Nesse sentido, o ilósofo argumenta que não se trata, portanto, de defender as instituições políticas que funcionam mal nesse sistema e destaca que uma democracia precisa não ter medo de desconstruir suas instituições. 61 62 ABATE Um processo de construção e desconstrução permanente. Nisso consiste a Experiência de que falávamos acima. Não é preciso dizer que a política é um campo onde a Experiência é algo crucial, já que atravessa completamente a nossa travessia, a nossa existência. Sem pensamento e ação políticos como exercício da Experiência não se torna possível a produção de novas formas de vida e a cessação dos prólogos. Quando questionado sobre possíveis alternativas ao modelo de política representativa, Safatle responde que é preciso ter “ousadia de pensamento” e que acredita na fragmentação da democracia direta. Aqui ica explícito o que é pensar a política como campo de Experiência. No lugar de icar se lamuriando por conta de algo como descompasso entre Parlamento e Executivo, Safatle acredita que o Brasil tem condições para instituir uma “democracia digital”, lançar mão da tecnologia para, pouco a pouco, passar a “atribuição de todos os poderes para a participação popular”. Em outras palavras, disparar um processo que não é o da reforma política, mas o de uma mudança mais profunda, como a que aconteceu na Islândia, em 2008, com a criação de uma Constituinte fora do Parlamento. E explica: “em crise de representação, vai-se ao grau zero da representação, aproximando o máximo possível da presença popular, reconstruindo a estrutura institucional a partir disso. A Assembleia tem que ter pessoas simples participando, professores, enfermeiros, pessoas comuns, e não só políticos.” Assim, Safatle aponta que esse esgotamento do modelo de representação da política atual se expressa na incapacidade dos principais partidos hoje em mobilizarem a população brasileira. Ter medo das pessoas nas ruas e do que pode surgir da desconstrução do modelo representativo atual só aprofunda a degradação. Safatle diagnostica: “o im do modelo é trágico e leva consigo os atores políticos, intelectuais e formadores de opinião.” A mim, me parece que André Singer, como tantos outros em níveis locais, está entre esses intelectuais e formadores de opinião que estão sendo ideologicamente tragados juntos com o im de um sistema que recalcitram em defender, ainda que indiretamente, ao defenderem a sua agremiação partidária. O cenário político atual é um vespeiro que vai exigir ousadia de pensamento e criatividade política. Aqui, me contento em deixar esse exemplo do que seria o exercício da política como campo de invenção e experiência: descontruir as instituições que funcionam mal na nossa democracia e ousar a “democracia direta” que quebrasse o modelo de política Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo representativa e propiciasse a participação popular. Defender o modelo atual é defender a estagnação. É necessário partir para a experiência de alternativas. Nessa direção, salienta Safatle: “claro que ninguém é ingênuo de achar que isso é implementado de repente e por mera vontade política. O que é imperdoável é que não se tente, não se teste isso, nem que seja em pequena escala. Isso permitiria que toda a população tivesse consciência das possibilidades de outras formas de poder e organização do Estado, e sua relação com a sociedade civil, organizada ou não.” _______________________________________________ O século XXI me dará razão, por abandonar, na linguagem & na ação, a civilização cristã oriental & ocidental, com sua tecnologia de extermínio & ferro velho, seus computadores de controle, sua moral, seus poetas babosos, seu câncer-que-ninguém-descobre-a-causa, seus foguetes nucleares caralhudos, sua explosão demográica, seus legumes envenenados, seu sindicato policial do crime, seus ministros gangsters, seus gangsters ministros, seus partidos de esquerda-fascistas, suas mulheres navio-escola, suas fardas vitoriosas, seus cassetetes eletrônicos, sua gripe espanhola, sua ordem unida, sua epidemia suicida, seus literatos sedentários, seus leões-de-chácara da cultura, seus pró-cuba, seus capachos do PC, seus bidês da Direita, seus cérebros de água-choca, suas mumunhas sempiternas, suas xícaras de chá, seus manuais de estética, sua aldeia global, seu rebanho-que-saca, suas gaiolas, seus jardinzinhos com vidro-fumê, seus sonhos paralíticos de televisão, suas cocotas, seus rios cheios de lata de sardinha, suas preces, suas panquecas recheadas com desgosto, suas últimas esperanças, suas tripas, seu luar de agosto, seus chatos, suas cidades embalsamadas, sua tristeza, seus cretinos sorridentes, sua lepra, sua jaula, sua estricnina, seus mares de lama, seus mananciais de desespero. Roberto Piva. Hora Cósmica do Búfalo. 63 64 ABATE }º Prólogo IX – Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas... Naji Nahas é um grande artista. Sem dúvida, dos maiores e mais audaciosos que já passaram por terras brasileiras: é prestidigitador versátil que manipula com destreza diferentes técnicas e procedimentos. Sua arte ganhou notoriedade quando da quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, em 1989. Se posso compreender o seu procedimento nessa ocasião, diria que ele tratava de produzir os ventos: com um aglomerado de empresas em sua mão, realizava empréstimos em bancos e investia pesado em determinadas ações, induzindo com isso outros investidores a fazerem o mesmo, o que aquecia artiicialmente o mercado. O bailarino Najas fazia dançar, sem música, para incitar os outros a entrarem no mesmo balé e com esse balé produzia os ventos. No entanto, seu monumental balé eólico ruiu, e Najas chegou a ser preso na operação Satiagraha. Mas terminou, por im, inocentado. Inocentado, mas inocente nunca. Pois sua arte envolve procedimentos sutis que, provavelmente, não compreendemos em toda amplitude. Vejamos outro caso em que se evidencia a astúcia dos seus procedimentos, o “Conto da Massa Falida”. Ao nascer do sol do domingo, 22 de janeiro de 2012, a polícia invadiu a Ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos. (Pois é, NÃO ESQUECEREMOS!) Com inalidade de reintegração de posse, cerca de mil e quinhentas famílias foram escorraçadas de suas casas, que icavam num terreno pertencente à massa falida da empresa Selecta. O dono dessa empresa em nome de quem se movia a reintegração de posse? Sim, Naji Najas. Tal empresa fazia parte do seu balé. O histórico do terreno onde icava o Pinheirinho – de 1,3 milhão de metros quadrados, numa região estratégica em plena valorização – oferece um contexto que ainda reveste de tom sombrio e enigmático esse Conto da Massa Falida. Existem versões que airmam que o terreno em demanda pertencera a uma família de imigrantes alemães até 1969, quando foram brutalmente assassinados, sem deixar herdeiros. De início, ica a questão sobre como uma herança vacante agora pertenceria à massa falida da empresa de Najas: notícias dizem que ele a teria comprado de um famoso grileiro na cidade. Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo Mas, para além disso, existe o fato mesmo de ser uma empresa falida, o que leva a pensar que o ativo da empresa estaria destinado a saldar a dívida com os credores: o terreno, assim, não pertenceria a Najas, mas aos seus credores. No entanto, podemos dizer que nesse procedimento Najas é, a um só tempo, o mar e o rochedo que o mar golpeia3. A partir da falência, uma empresa com sede no Panamá começou a negociar as dívidas da Selecta. E o dono da empresa do Panamá quem seria? Ninguém menos que o advogado de Najas, ou seja, um laranja a representá-lo. Assim, Najas realizou um salto mortal duplo carpado: conseguiu tornar-se credor de si mesmo. Isso evidencia a versatilidade desse artista dotado de muita ousadia e capaz de utilizar técnicas e procedimentos apurados. É preciso compreender que o sórdido Naji Najas é realmente um grande artista, na medida em que suas manobras jurídico-inanceiras são da ordem da experiência e da invenção, tal como se opera em grandes obras de arte. Estamos falando, aqui, de uma operação radical com os materiais artísticos, imaginação feroz capaz de invenção e reinvenção, a partir de diferentes procedimentos que cada situação poética exige. Vejamos exemplo disso em outro artista. Em “Ossário” – intervenção urbana iniciada em 2006, depois convertida em exposição –, o artista visual brasileiro Alexandre Orion teve a ideia de desenhar caveiras nas paredes cobertas de fuligem de um túneis viários em São Paulo. Munido de trapos de pano e baldes com água, numa técnica conhecida como reverse grafiti, o artista passou 13 madrugadas limpando as paredes cobertas de fuligem: as ossadas que, assim, foram “reveladas” por ele, já estavam ali antes. Orion mostrava que o túnel era uma catacumba do espaço urbano. A metáfora #mortepoluiçãoespaçourbano é muito sagaz, mas o ponto alto do seu procedimento reside em realizá-la “limpando”, pois instaura uma poética a condensar a metáfora proposta. Durante a intervenção, abordado diversas vezes por policiais, o artista argumentou que estava “apenas limpando” e, como não tinham o que alegar contra ele, pôde continuar o seu trabalho até a 13º madrugada – quando três caminhões-pipa da prefeitura chegaram para limpar as paredes. Mas limparam exclusivamente a paredes em que o artista tinha desocultado as ossadas, antes escondidas pela fuligem. Essa intervenção se instaura num ponto cego do sistema, tal como os balés inanceiros de Naji Najas. 3 Enquanto o povo desalojado do Pinheirinho seriam os náufragos, o Governador do Estado de São Paulo, um semideus em fúria sobrando o vento causador dos naufrágios, a Polícia seria Irínias a assolar os náufragos, e, ao longe, a presidente Dilma seria a sereia que os náufragos tinham acreditado ser sua madrinha, mas que ficou fazendo a egípcia diante da sua desdita. 65 66 ABATE 4 Vale lembra o que escreve Carlos Drummond de Andrade, em Confissões de Minas: “Entendo que a poesia é negócio de grande responsabilidade [...] Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos.” É possível evidenciar o que chamamos aqui de experiência e invenção ressaltando que o procedimento de Alexandre Orion ainda se prolonga simetricamente: ele utilizou a água suja dos panos com que limpou as paredes do túnel para obter, por decantação, a fuligem, e com essa preparou pigmentos que utilizou para pintar telas. Trata-se de um estado de invenção em que se instauram diferentes procedimentos para enfrentar a resistência do material. Orion mesmo esclarece sobre eles: “Por subtração, eu iz o trabalho do túnel [sobre morte]. Por adição, eu estou usando a mesma fuligem nas telas e falando de vida.” Como é característico aos prólogos, o que me parece necessário não perder de vista é algo bem elementar: toda obra de arte encerra um procedimento, um artifício, e existem diferentes tipos de procedimentos e artifícios. A potência que uma obra tem de afetar sensorialmente tem a ver com a maneira pela qual se instauram procedimentos e artifícios4. Quando fazemos uma compra com dinheiro, nos espantamos com os preços em alta, mas pouco nos espantamos com o processo associativo pressuposto na capacidade daquelas notas terem uma equivalência mágica com uma casquinha do McDonald’s ou com uma Coca-Cola. Mas numa manhã incomum, por algum motivo incógnito, você se põe a pensar no que há de miraculoso naquela equivalência e se espanta profundamente, e talvez comece até a se lembrar das suas aulas de história, as relações de escambo; lembrar que o primeiro salário era literalmente com sal, pois o sal era um produto durável e não tão comum, de modo a funcionar como um coringa nas negociações... Em algum momento, você ou seu amigo que está divagando junto com você possivelmente pode, a propósito, mencionar o padrão-ouro. O padrão monetário conhecido como padrão-ouro consistia numa paridade cambial entre o papel-moeda emitido dentro de um país e a sua reserva em ouro. Foi utilizado nos países desenvolvidos do século XIX até a Segunda Guerra Mundial. Tem a ver com o que conhecemos como lastro: uma redutibilidade entre quantia de papel-moeda e de ouro. O padrão-ouro possibilitava que o portador de uma quantia de dinheiro pudesse ir a um banco e pedir para convertê-lo equivalentemente em barras de ouro. A existência de um lastro em ouro conferia como que uma “autenticidade” ao papel-moeda, tal como dizemos de um cheque que tem fundo ou não. Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo Com a crise aberta pela Segunda Guerra Mundial, esse sistema foi substituído pelo chamado padrão dólar-ouro, onde o dólar estadunidense ixou paridade com o ouro e passou a servir, ele mesmo, de lastro à moeda de outros países, no contexto do pós-guerra em que os Estados Unidos se consolidaram como potência hegemônica. Então, dizia-se que o dólar era as good as gold. Depois disso, em 1971, mais uma vez o contexto internacional se alterou e o dólar se desvinculou do ouro. O padrão monetário utilizado a partir de então icou conhecido como dólar-dólar ou dólar autorreverenciado: onde a moeda estadunidense continua como moeda hegemônica, sem manter paridade ou ixação em relação a nada5. Trata-se, aqui, da constituição de regras voláteis, reversíveis, sempre instituídas segundo interesses especíicos. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Esse breve exemplo dos padrões monetários evidencia a capacidade do sistema inanceiro de se volatizar e se reverter ininitamente por meio de um sem-número de procedimentos. Diante disso, observa-se que os balés astuciosos de Najas não são estranhos ao sistema, antes consistem na elevação à enésima potência das regras do próprio jogo, terminando por subvertê-lo. São números que se apertam em computadores, são papeis que se assinam e se recebem outros em troca. A alquimia dos procedimentos reside em como mobilizar a maior força por meio de ações elementares e passar longe da ixação rígida em relação a uma origem6. Obviamente, não se trata de enfocar o sistema inanceiro e seus avatares, mas indicar que a arte envolve igualmente procedimentos em que não faz sentido operar com uma ixação em relação a uma origem. Arte não tem lastro. Os procedimentos nela envolvidos têm uma vinculação fantasmática com algo extrínseco, mas tal vinculação é sempre arbitrária e reversível: tão arbitrária quanto a possibilidade mágica de transformar um pedaço de papel em uma casquinha do Mc Donald’s ou em uma Coca-Cola. Tudo é composição. Na cultura, tudo é atribuição de valor. Na arte, não existe lastro, somente artifícios e procedimentos a constituir uma linguagem. Mesmo as estratégias de apropriação do real, do cotidiano, do acaso, da aleatoriedade na arte consistem em procedimentos e em nenhuma hipótese são redutíveis a uma “verdade” do real, do natural ou do mundo. Nas encenações do teatro realista de Stanislavski, a representação do silêncio muitas vezes se dava pela utilização do ruído de sapos e insetos, por exemplo. O 5 Cf. PAULANI, Leda M. “O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus impasses”. 6 Vale observar o que Lyotard, em O dente e a Palma, esclarece a esse respeito: “Na economia pré-capitalista, o produto, produção, consumo (que nem sequer são separados em esferas distintas) estão relacionados como signos ou como a atividade de criação-sígnica para posições consideradas originais ou pré-existentes: o objeto, o trabalho, a destruição ou a circulação de objetos são pensados dentro de uma Mística ou dentro de uma Física, que está lá por e para outra coisa. Parte da obra de Marx perpetua essa teoria semiótica da economia pré-capitalista, perceptivelmente através do uso da categoria de mais-valia (de mercadorias, mas principalmente da força de trabalho). Mas a experiência atual do crescimento da economia nos ensina que as chamadas atividades econômicas não têm fixação em uma origem. Tudo é trocável, reciprocamente, estando somente sob as condições inerentes à lei do valor: o trabalho não é menos signo que o dinheiro, o dinheiro não mais do que uma casa ou um carro, existe apenas um fluxo metamorfoseando-se em bilhões de objetos e correntes.” 67 68 ABATE 7 A chita no figurino não faz uma peça de teatro mais “autêntica” que outra: a chita como mero adorno não consiste num procedimento, é algo que chega a aviltar a própria cultura em que tal tecido é tradicional, tal como aviltamos a memória de um grande artista quando acreditamos que é possível, pura e simplesmente, repetir seus procedimentos. Existe a necrofilia que é amor ao futuro, da qual falava Heiner Muller, e existe um uso natimorto de conteúdos e modelos do passado, transfigurando elogio em aviltação. Sobre uso natimorto de procedimentos do passado, cf. Os Filhos do Barro, de Octavio Paz, em que o poeta e ensaísta trabalha com a noção de “tradição da ruptura”. silêncio não existe no campo da representação: numa câmara artiicial de silêncio, John Cage escutava os graves do seu coração pulsando e os agudos do seu sistema sanguíneo. Igualmente, o enquadramento de uma fotograia é composição: a crítica de arte Lucy Lippard aponta que “em sentido amplo, quem faz uma fotograia está geometrizando a vida”. Tudo é composição. Assim, quando falamos de representação não está em jogo uma duplicação do real. Arte não tem lastro. Tudo é composição. Representação é o próprio ato de enquadramento. Roland Barthes, em O óbvio e o obtuso, explica que a dinâmica de representação se baseia num duplo fundamento que é “a soberania do recorte e a unidade daquele que recorta. [...] Haverá sempre ‘representação’, enquanto alguém (autor, leitor, espectador) dirigir seu olhar para um horizonte e nele recortar a base de um triângulo cujo vértice será seu olho.” Quando se fala de representação nesse sentido, entende-se uma dinâmica de substituição que se preserva mesmo quando não há o que substituir; não há ixação em relação a uma origem, são signos sem lastro. Entender a representação desprovida de lastro é observar uma descontinuidade da linguagem em relação ao mundo, e não advogar uma suposta reposição transparente do mundo – a qual realmente não é possível, tal como só é possível representar o silêncio por meio do som. Nesse sentido, é valioso destacar que, muitas vezes, o emprego de termos como verdade, real, origem, natural etc. intentam advogar uma autenticidade para a arte, vinculando-a a um fator extrínseco, e isso quase sempre esconde uma má-fé e o interesse de defender interesses pessoais. Se nos editais as contrapartidas têm que ser pensadas em relação ao mundo, no interior da própria obra não cabe buscar fazer algo “autêntico” ou “verdadeiro”, se entendemos verdade como correspondência direta com o real. Assim, grande parte da arte pedago-sociológica tem seu valor apenas como programa social. Igualmente, grande parte da arte que trabalha no campo fronteiriço da cultura popular é completamente inócua, porque opera com a ideia de que a cultura é algo a ser preservado, como um corpo semimorto não sei quantos anos na cama. (Por uma arte eutanásica!)7 Dizer sim que – a contrapelo de qualquer possibilidade de autenticidade ou lastro – toda linguagem tem como principal característica uma opacidade. Acreditar que existe um lastro para a arte é negar essa opacidade, é hipostasiar que a linguagem pode ser transparente Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo em relação ao mundo, o que sempre resulta numa tentativa de ludibriar o outro, pois a linguagem é opaca e arbitrária, incapaz de representar o mundo de modo transparente. Aqui talvez seja necessário ressaltar que a ênfase na linguagem e no seu aspecto formal não consiste na defesa de uma autonomia da esfera artística ou da arte como torre de marim de iniciados. Dizemos que a linguagem é opaca e produz uma descontinuidade em relação ao mundo. O que não signiica traçar uma linha divisória, inviolável e estanque, entre linguagem e mundo. Signiica visualizar que a relação é de porosidade entre esses campos, mas não de luxo livre e desimpedido ou de transparência. A arte é uma língua estrangeira dentro da língua. Não está nem completamente fora nem completamente dentro. Habita uma dobra. Marcel Duchamp – Jonh Cage dizia que “os outros eram artistas, Duchamp coleciona pó”, tamanha a sua capacidade de operar a alquimia dos procedimentos com materiais elementares – escreveu, num texto chamado “O Ato Criador”, que “o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas.” A obra se faz na interface do expectador com ela8, e essa relação o artista não é capaz de dominar, embora possa trabalhar com procedimentos que trazem à tona aspectos impensados desse rebatimento inevitável entre linguagem e mundo, instaurando-se em pontos cegos dessa relação, tal como Najas atuava em relação ao sistema inanceiro. A obra de Marcel Duchamp é fundadora nesse sentido: seu urinol , batizado como A Fonte, e, principalmente, a sua obra chamada A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo, ou O Grande Vidro colocam sob questão o que chamava de “pintura retiniana”, um pintura voltada apenas para a retina9. Exemplos fora do âmbito artístico estrito também podem ser úteis. Snuff movies são ilmes que supostamente retratam homicídios reais, geralmente após abuso sexual. Esse gênero de ilme talvez integre apenas o rol de lendas urbanas. Mas há quem assegure que existem ilmes snuff “verdadeiros”. A polícia estadunidense (FBI) chegou a abrir investigação para apurar se, em alguns ilmes snuff, tratava-se realmente de assassinatos ou apenas de artifícios da icção. Foi exigido que diretores apresentassem os atores dos ilmes devidamente “redivivos”: um diretor chegou a lançar um making-off de um ilme, com relatos dos atores sobre o processo de ilmagem10. Essas averiguações acerca da 8 Nesse sentido, o crítico de arte Arthur Danto, no livro A transfiguração do Lugar Comum, escreve: “a diferença entre arte e realidade seria menos uma questão das coisas em si do que das atitudes, e, portanto, não dependeria das coisas com que nos relacionamos, mas de como nos relacionamos com elas.” 9 Cf. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza, de Octavio Paz. 10 Em 2011, o filme A Serbian Film – que aborda o tema dos filmes snuff – foi censurado no Brasil e em outros países. Isso mostra a contundência das questões suscitadas nos meandros em que se estabelece a relação entre arte/ficção e mundo/ realidade. 69 70 ABATE 11 O “estranhamento”, de Bertolt Brecht teve influência direta da conceituação desse teórico russo. No entanto, o seu desenvolvimento do estranhamento tem como objetivo “aumentar a dificuldade e a extensão da percepção” somente na medida em que quer desvelar as condições dos meios de produção capitalista: é como se tentasse mostrar que a reversibilidade do dinheiro em ouro é arbitrária e falsa e que a “verdadeira” reversibilidade é a do dinheiro em trabalho, quando o próprio jogo de reversibilidade é todo ele arbitrário. Vale aqui reportar a uma longa citação de Lyotard, ainda em O dente e a Palma, em que ele aponta para essa decrepitude do teatro brechtiano e, ao cabo, do próprio marxismo: “O que faz da representação em Brecht uma religião é o aparato de linguagem do marxismo: a total efetividade teatral que ele antecipa depende de um sistema de crenças, não apenas a crença de que existem determinações sociológicas que correspondem às estruturas econômicas, mas a crença de que essas determinações constituem o vocabulário e a gramática profunda das paixões históricas, que produzem e regulam os deslocamento de afetos e os investimentos do público teatral. É por isso que este teatro é chamado teatro épico. Mas o nosso tempo não é mais um momento da épica do que da tragédia ou da selvagem crueldade. O capitalismo destrói todos os códigos, incluindo aquele que dá aos trabalhadores industriais o papel do herói histórico. O marxismo de Brecht = Um épico enxertado em uma crítica. Após um século de Congressos Internacionais e meio século de Estados Socialistas, devemos dizer: o enxerto não se realizou, nem como dramaturgia, cenografia, nem como política mundial. A semiótica marxista é tão arbitrária no teatro como qualquer “autenticidade” mostram que, na interpretação corrente, predomina a ideia de que arte e representação devem ter um lastro. Continuamos sentindo certa raiva da atriz que faz a vilã na novela se a encontramos na rua. Se, por um lado, isso parece algo lamentável, por outro evidencia o quanto esse rebatimento entre linguagem e mundo constitui um campo fértil para a atuação artística. É valioso operar nesse campo fértil por meio de uma linguagem que não se instaura de modo estritamente comunicacional, mas operar por uma linguagem que opera com a produção de intensidades. Um argumento já antológico a respeito do que seja essa produção de intensidades foi oferecido pelo artista Hans Bellmer e retomado por Lyotard, em O dente e a Palma: tenho dor de dente e cravo minhas unhas na palma da minha mão. “Podemos dizer que a ação da palma representa a paixão do dente?”, pergunta Lyotard e, em seguida, explica que hoje: “o dente e a palma já não têm uma relação de ilusão e de verdade, causa e efeito, signiicante e signiicado (ou vice-versa), mas que coexistem, independentemente, como investimentos transitórios. Acidentalmente compondo uma constelação interrompida por um instante, uma multiplicidade de reais congelados na circulação de energia. O dente e a palma já não signiicam nada, são forças, intensidades, afetos presentes.” Trata-se, pois, de uma instauração de signos que não visa comunicar algo, mas produzir uma intensidade. A dor de dente e a palma sendo maltratadas nos interessam somente na medida em que se inserem nesse trânsito cambiante de intensidades. Assim, cada procedimento envolvido em uma obra difere na capacidade de afetar a nossa percepção. Victor Shklosky, no ensaio “Arte como Técnica”, escrito em 1917, airma que o propósito da arte é tornar os objetos “não-familiares”, agindo no contraluxo dos automatismos característicos da percepção humana. Para ele, à arte cabe “construir formas difíceis, aumentar a diiculdade e a extensão da percepção.” Por isso, o trabalho do artista seria atravessado por um “fazer estranho” (priem ostranemie)11. Esse “fazer estranho” condiciona a possibilidade do procedimento de uma obra instaurar uma relação em que se produzam deslocamentos para longe dos automatismos da nossa percepção. O procedimento envolve um enfrentamento do material, mas esse material só nos interessa Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo na medida em que, com ele, o procedimento artístico mobiliza um campo de forças em que nossa percepção é deslocada. “Arte é um modo de experienciar o artifício de um objeto: o objeto não é importante”, explica Shklovsky. Quando se entende a arte como essa instauração de procedimentos com o im último de aumentar a extensão da percepção humana, é possível ver a diferença entre procedimentos como os de Najas e os de um artista como Alexandre Orion: procedimentos e artifícios como os de Najas, embora encerrem versatilidade e astúcia de mestre, são realizados para conduzir a ins especíicos, segundo interesses mesquinhos. Não parece difícil observar, ainda, que muita “arte por aí” opera – inclusive com procedimentos admiráveis – num campo que está longe de ser o da possibilidade de expandir a percepção do espectador. Muito do que chamamos arte está engajado na tarefa de conduzir a percepção para direções especíicas (doutrina), e não expandi-la para direções que são imprevisíveis a seu criador. A esse respeito, o encenador Roberto Alvim, no livro Dramáticas do Transumano, faz uma observação que me parece emblemática: Eis o melhor critério para aferir se uma obra é arte ou não: se todos na plateia riem ao mesmo momento, ou choram ao mesmo momento, é porque se trata de uma obra cultural (norteada pelo senso comum, instauradora de sistemas formais reconhecíveis), que conduz de modo cultural as percepções, que nos trata a todos como criancinhas – ou como ovelhas sendo tocadas para o curral. Em uma obra de arte, enquanto alguém ri na plateia, outro alguém chora, e outro alguém empalidece; as reações de cada membro do público serão completamente distintas, na medida em que não se trata de conduzir as percepções, mas sim de desencadear processos sensíveis autônomos. (ALVIM) Não importa se uma obra se instaura de modo a conduzir o espectador para algo “melhor” ou “pior” – essa determinação é sempre arbitrária. O grande problema é que uma maioria das obras de arte busca justamente conduzir a nossa percepção, e, por si só, conduzir, nesse sentido, signiica colonizar, signiica dizer o que você deve fazer ou pensar. outra semiótica para correlacionar o performer e o performado e para permitir a comunicação do público com ele mesmo mediado pelo palco.” 71 72 ABATE Esse tipo de arte é como aquele médico que mal olha para você durante a consulta, pois sabe de antemão o que você precisa: sempre “amoxilina”. É possível perceber isso mesmo em coisas muito elementares. Não tem a ver só com ser arte ou não. Tudo é composição. Por exemplo, há pouco tempo pude observar, nos muros da cidade de São José dos Campos, a existência de duas pixações12. Em uma está escrito: |AMEM|. Na outra: |SEJ A VEGANO|. O primeiro tem uma polissemia que pode ser lida como o verbo amar no imperativo ou Amém, se na leitura livremente adicionamos um acento. O segundo tem o “a” de “Seja” (também um verbo no imperativo) grafado com o símbolo do Anarquismo, formando o “conselho” de que devemos ser veganos. Parece evidente que o primeiro pixo não está tentando conduzir ninguém pela mão como uma professora de primário: aponta para uma desconstrução da conduta no cotidiano da cidade de modo polissêmico, ao passo que o outro pixo, detentor de um modelo de conduta especíico, tenta eniar um ideal goela abaixo dos transeuntes. Não importa se aprovo tal modelo de conduta. Quando se trata com pessoas adultas, independente do que se quer eniar goela abaixo, é sempre uma colonização do outro que se produz por meio desse tipo de procedimento doutrinário. Desse ponto de vista, a estratégia de uma propaganda da Coca-Cola ou de uma acrobacia inanceira de Najas não difere do discurso de um Petista Utópico, ou de um Vegano Xiita, ou de um Evangélico Fundamentalista, ou de uma peça de teatro de um grupo de Esquerda Ortodoxa, ou de uma Feminista que destila sua misandria de modo generalizado... Todos defendem uma doutrina, querem colonizar a nossa percepção, não expandi-la de modo autônomo. O que é pior: as estratégias da Coca-Cola e do Najas comumente envolvem procedimentos mais soisticados. }< ° Panfleto VII – “Adote o artista, não deixe ele virar professor.” Ivald Granato 12 A grafia com x é voluntária e tem a ver discussões que ligam a pixação ao pixel, por exemplo. Um tema controverso que esteve recentemente em debate foi a redução da maioridade penal. O resultado foi a temerária aprovação, na Câmara dos Deputados, da redução da maioridade penal para crimes hediondos. Essa questão mereceria ao menos um plebiscito, se o esgotamento do sistema representativo atual fosse minimamente enfrentado. Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo Durante a controvérsia que mobilizou diferentes setores da sociedade civil, uma reação comum dos setores progressistas foi dizer que a solução para a criminalidade não é a redução da maioridade penal, mas a educação: educação é a solução, dizia o slogan. Mas que tipo de educação seria a tal solução? Que educação redentora é essa e onde ela existe? Lembro-me de uma professora de artes que tive no primário, numa escola pública, na zona leste de São José dos Campos. Ela desenhava muito bem e era capaz de copiar com perfeição uma fotograia. Algumas vezes, a nosso pedido, demonstrou essa habilidade na lousa. No entanto, hoje, quando penso nessas aulas de artes, não me lembro tão vivamente de nada como de uma das suas formas preferidas de punição: segurar o pingo do i. Ela desenhava um i sem pingo na lousa e recortava um pequeno círculo de papel. O “ser sem luz” a ser punido tinha que icar de cara para lousa segurando aquela bolinha de papel sobre o i que ela tinha desenhado. Agora, por minha vez, me converti eu em professor. Primeiro de Filosoia na rede pública. Depois, professor de teatro (vulgo oicineiro) em uma ONG, em São Paulo, para “menores em situação de vulnerabilidade social”, o que signiica que eram adolescentes de abrigos públicos e adolescentes em regime semiaberto da Fundação Casa. Essa ONG tem parceria com o SESCSP, que, dentre outras coisas, cede o espaço para aulas de restauro e de artes para os adolescentes. Em uma dessas aulas de teatro, propus o exercício de buscar o estado de atenção e pequenas reações de um animal, e o resultado foi uma algazarra generalizada. Sentei onde costumávamos conversar em roda e esperei que os ânimos abaixassem. Em seguida, perguntei se lembravam de como tinha sido diferente o mesmo exercício em outra aula e pedi que dissessem se lhes parecia conveniente eu ter proposto aquele exercício. Em suma, pedi que se colocassem abertamente. O segundo aluno a falar me disse que o problema não era o exercício proposto, o problema era que nós, os professores, “dávamos ousadia” para os alunos. Fiquei maravilhado com a deinição. Perguntei a ele e a toda a turma se em outro lugar que eles frequentavam alguém agia da mesma forma, lhes “dando ousadia”. Nessa mesma ONG, depois de um ano e meio de trabalho com os adolescentes, o valor da hora-aula foi diminuído. Na mesma época, um estagiário ia viajar por um mês e seu lugar precisaria de um substituto provisório. Precisando de dinheiro, me candidatei: professor e 73 74 ABATE estagiário. Nessa função, certa vez, preparando tintas para a aula de artes visuais que estava acontecendo na sala ao lado, fui abordado por uma aluna: “Professor, a professora lavou a minha tela!” A proposta da aula em curso era desenhar uma árvore, mas a menina tinha desenhado uma árvore e um sol em cima. A professora, porém, explicara que sol não deveria aparecer em primeiro plano, deveria estar incidindo nas árvores, efeito que poderia ser obtido pintando-se em tom mais claro algumas folhas do lado que a luz do sol estivesse incidindo... Por essa razão, me explicou a adolescente, a professora lavara a sua tela e a de mais uma aluna. Sim, a professora LAVOU a tela das alunas e pediu que elas as reizessem, sem mais. Minha vontade era interromper a aula e soltar alguns demônios nessa professora, mas certamente seria uma reação desproporcional, pois descarregaria conteúdos soterrados desde quando segurara o pingo do i na lousa, nas minhas aulas de artes no primário. Apenas reportei à coordenação o fato e icou por isso mesmo. Passado uma semana, descobri, por acaso, que a tal professora que lavara a tela de duas alunas não tinha sofrido, como os outros professores, o corte no valor da hora-aula: ela era amiga da dona da ONG. Acredito que a minha professora do primário, a professora-artista e a direção dessa ONG não são apenas a ponta de lança de um sistema educacional decrépito, mas são a demonstração da falência estrutural de um sistema de pensamento em que está baseada a nossa ideia de Educação. Na ONG, tratava-se do ensino não-formal, como dizemos. Havia todo um aparato para dar suporte à aula oferecido pelo SESC, não havia o descaso generalizado comum a tantas escolas públicas. Ainda assim, a professora procedia com uma violência simbólica incrível, pois lavar a tela de um aluno é uma violência simbólica (e a violência simbólica é sempre mais difícil de esquecer). Como professor e como aluno, reconheço que é raríssimo o espaço de “ousadia” e de Experiência nas escolas – falo principalmente das escolas públicas, onde sempre estudei, mas no ensino particular também é uma restrita minoria de escolas que esboça uma diferença em relação a isso. As escolas, hoje, são antes depósitos de crianças e adolescentes, servem para ocupar o tempo. Acredito ser necessário acabar, literalmente declarar a falência completa da Educação nos moldes como conhecemos hoje. E talvez, a partir daí, TALVEZ se possa experimentar outra coisa (não vou chamar de escola, pois precisa ser algo completamente Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo distinto) que possa ser território fértil para a Experiência. Como artista, me parece evidente que crianças e adolescentes são ininitamente mais capazes de ousadia e de criar novas formas de vida que qualquer professor. A educação redentora que alguns advogam pode existir em lugares longe do Brasil. Aqui, no que chamamos Educação – inclusive nas universidades –, predomina o prólogo, o bloqueio das possibilidades de experiência, predominam os conteúdos amortecidos que não sabemos direito a quem servem. }º Prólogo I – ...Há quem prefira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo Ganhei uma calça à prova d’água. Útil para andar por lugares frios e úmidos. Fiquei feliz. No entanto, não demorou muito e começou a minar suor dentro da calça. Minhas pernas logo estavam molhadas de suor, mas devidamente apartadas da umidade proveniente de fora. Os Marubo, povo indígena das terras baixas da Amazônia, entendem que o arco e a lecha foram trazidos a eles por meio de antigos xamãs que travaram contato com povos do mundo subaquático: arco e lecha são artefatos oriundos de um plano de alteridade, portanto. As armas de fogo trazidas pelo homem branco na invasão da América puderam, por exemplo, ser absorvidas na mesma medida em que já tinham sido o arco e a lecha, como mais um artefato proveniente de estrangeiros. O arco e a lecha, interpretados como “próprios” ou “naturais” aos povos indígenas, não o são do próprio ponto de vista deles. Claude Lévi-Strauss airmou que o primeiro ato cultural foi a divisão das mulheres, a diferenciação entre aquelas com que se pode ter relação sexual e as com que não se pode. Os interditos, as línguas, os hábitos, tudo que fortalece o vínculo social no interior de uma cultura condiciona também a existência de um “dentro” e de um “fora”, estabelece uma diferença, uma distância, um corte, uma fronteira em relação ao outro. Não existe cultura sem fronteiras, mas as fronteiras podem ser mais ou menos porosas13. No entanto, existe um mito da impermeabilidade que tenta fazer da fronteira algo intransponível. Esse mito é algo tão lamentável quanto é incômoda uma calça à prova d’água usada por muito tempo. A água constitui substancialmente o corpo, não faz sentido que se busque a impermeabilidade em relação à água como forma de vida. A pele não é impermeável, a troca com o ambiente é 13 Vale remeter, aqui, ao conceito de “predação ontológica”, desenvolvido por Viveiros de Castro para explicar o movimento de incorporação de predicados provenientes dos planos de alteridade no interior do “perspectivismo” ameríndio. Tal “predação ontógica” caracteriza um sistema simbólico que não só tem uma fronteira porosa, como também se constitui por meio de um “impulso centrífugo”, um movimento em direção ao tornar-se outro. Cf. A inconstância da Alma Selvagem – e outros ensaios de antropologia, de Eduardo Viveiros de Castro. 75 76 ABATE condição de existência para o corpo. Impermeabilizar pode evitar temporariamente a morte, mas não provê a vida. “Aquele centro frágil e turbulento que chamamos Vida!” (ARTAUD). Está em atividade, nos últimos anos no Brasil, um coletivo de pixadores chamado Pixo Manifesto Escrito (PME). Associo a pixação antes de tudo à contestação do direito da propriedade privada, mas igualmente se observa que, tantas vezes, funciona como não mais que uma demarcação de território: os pixadores e grupos (crews) costumam lançar suas tags e codinomes nos muros. O PME tem inovado: seus integrantes agem de modo anônimo e propõem que as ações sejam focadas em pautas políticas e coletivas. Durante um protesto, no dia 29 de janeiro de 2015, em São Paulo, o Monumento às Bandeiras foi pixado com a frase “Bandeirante é Assassino”, entre outras. Em entrevista a um jornal, um pixador do PME indica que o ato foi simbólico contra o que signiicam os bandeirantes, “matadores de índio”, e esclarece que o ataque também teve a intenção de trazer à tona a votação da PEC215 que, se aprovada, vai criar obstáculos à demarcação das terras indígenas; uma emenda constitucional que claramente defende o interesse dos ruralistas. Não é exatamente intenção fazer o elogio de uma ação como essa, mas é claro que despertam simpatia as pautas coletivas que defendem. O Pixo Manifesto Escrito me pareceu, então, interessante, na medida em que via ali a politização mais efetiva do pixo. No entanto, no dia 21 de julho de 2015, um grupo de pixadores invadiu uma galeria em São Paulo e mostrou que essa politização tem também outra faceta. Nessa galeria estava uma exposição com fotograias sobre pixações, feitas por três fotógrafos. As fotograias de um chamado “Choque” foram “atropeladas”, e a sala onde estavam foi completamente depredada. Havia, numa das paredes, a seguinte frase: “A rua não precisa de porta-voz”. Segundo consta, o ataque partiu do PME, e um dos pixadores, na ocasião, falou das desavenças com o fotógrafo que estava fazendo uso comercial da pixação e disse que o propósito do Pixo Manifesto Escrito é “cobrar todo tipo de irregularidade em questões políticas e uso indevido da pixação por parte de charlatões e aproveitadores.” Na notícia, lê-se ainda que o PME é uma espécie de “tribunal do pixo”, não tendo icado claro se a nomenclatura é do próprio PME. Parece incrível que algo como a pixação – que relaciono à contestação da propriedade privada e à necessária rebeldia diante do contexto urbano opressor – possa ter um “tribunal”. Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo Só há “charlatão” quando há doutrina e ortodoxia, porque fora da ortodoxia há apenas o livre experimento, que não oferece garantia de nada. O líder do PME, ao ser perguntado sobre a agressão contra o Monumento às Bandeiras, respondeu que a pixação não foi agressiva, que agressiva é a existência daquele monumento e o que ele signiica. E tem total razão quanto ao fato daquele monumento ser agressivo por celebrar o que celebra. No entanto, ações que defendam o “correto uso da pixação” têm antes familiaridade com o “banderantismo”, me parecem equivalentes à defesa da propriedade privada – a qual é defendida, hoje, a todo custo, não importando se isso infrinja os direitos humanos, como aconteceu no Pinheirinho. É óbvio que não se trata de defender o fotógrafo, mas de observar que de fato “a rua não precisa de porta-voz”, na medida em que a rua não tem só uma voz, a voz da rua não se reduz à do fotógrafo nem à do PME. A relação com os planos de alteridade, como muitíssimo bem sabiam os Marubos, costuma envolver, sim, antagonismos e inimizades, mas deles também é possível obter artefatos, armas e ferramentas que, um dia, poderemos manejar com tanta habilidade que alguém, à primeira vista, poderá pensar que sempre foram nossas. Ações como essa do PME são exemplos do que chamei de mito da impermeabilidade. Esse mito atravessa nossas condutas, sem nos darmos conta. Assim, existem formas de resistência à opressão que assumem estratégias semelhantes à da opressão a que tentam resistir e, em diferentes proporções, visualizo isso nos movimentos de esquerda, no feminismo, no movimento negro, na arte e em todos os movimentos e as pessoas que agem com algum ideal progressista – eu incluído. Tal como uma democracia para amadurecer não pode ter medo de desconstruir suas instituições que funcionam mal, conforme mostrou Safatle, cada movimento e cada pessoa necessita assumir a tarefa interminável que é desconstruir suas facetas autoritárias. Eu tenho um ditador que mora no meu peito; usar uma calça e um colete à prova de ditador não vai afastar de mim o ditador que eu sou. Preciso diariamente olhar no olho dele e desenvolver procedimentos próprios para enfrentá-lo14 e buscar habitar “a grande saúde” de que Nietzsche fala em A Gaia Ciência: “a grande saúde – uma tal que não apenas se tem, mas que constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar”. Eis uma tarefa da qual ninguém sai vivo nem vitorioso. 14 Observe-se que enfrentar esse ditador que nos habita não tem nada a ver com a inibição dos instintos ou com repressão do desejo. Digamos que o pirata opera no âmbito do desejo, da invenção de novas formas de vida e na transvaloração dos valores, enquanto esse ditadorzinho, longe de ser pirata, opera no âmbito do ressentimento, é um corsário, um “pirata” a serviço do rei, um mantenedor dos valores estabelecidos e das formas hegemônicas de vida. 77 78 ABATE Em oposição ao mito da impermeabilidade, é preciso abraçar a vulnerabilidade e a precariedade em que consiste a Experiência. Os prólogos cessam momentaneamente e principia a experiência apenas quando encaramos essa tarefa e agimos a contrapelo desse mito da impermeabilidade. Somos cada um uma legião, não há uma identidade imutável, não há sujeito idêntico a si mesmo para que possamos impermeabilizá-lo. Inteireza não tem nada a ver com completude. Não há essência. Quem tem essência é perfume, tudo o mais é oco. _______________________________________________ dançar nu em casas vazias primeiro sozinho depois tirar os ossos para dançar ocupar toda a casa emular com ombros pelves omoplatas as primeiras mobílias os futuros apoios em que você vem se sentar e descobre um menino rindo escondido num canto depois que você se bunda contra o chão e faz uma cara similar nesse lapso é possível ver de relance primeiros os escombros depois as ruínas a umidade da futura ruína que a casa é vai lhe fazer suar você pode usar os intervalos para lamber o suor em gotículas Em Chinês Mãe e Cavalo são Palavras muito parecidas. Há quem preira não falar com a Mãe a chamá-la de Cavalo que brotarão na maça do rosto e na testa mesmo sabendo a viga mestra o céu estrelado gravemente comprometidos e serão sim os escombros que ao sorrir vão mostrar os dentes primeiro e darão longuíssimos abraços de musgo nesse momento você – ou eu – talvez se pergunte se a saída não é deixar o mel evaporar destelhar a casa esperar que chova uma poção curativa para amenizar o coração dos homens ou escrever insistentes enjoativos poemas com a palavra coração coração coração coração até o dia em que nossas línguas falem um esperanto absurdo em que todas as palavras digam coração e não precisemos mais destas Marcus Groza 79 80 AO AMOR! Boi*, Juniokio**, Marucs*** Alea jacta est! ORESTES YMCA: Eu tava pensando em cortar o conceito da masturbação. Ou, por falar em jacta, eu posso introduzir o assunto da masturbação na roda… ALLAN MCTODD: Na roda? Mas masturbação na roda já não é mais masturbação… já é sexo. É que nem cu com acento. *Boi, Bon of Ox, Ox Axe, Obelix, Faustão, PITONISA DE DYONISUS ENGRAVATADO: O cu não tem assento ixo… ele vai tendo assentos e acentos, à medida que as coisas passam por ele e ele passa pelas coisas... Boiadeiro, comment vous voulez... ** Juniokio acredita que somente ele é JOLOLÓBILAS: Teria sido mais elegante ter começado citando Heráclito: “A mais bela harmonia cósmica é semelhante a um monte de coisas atiradas”. real e os outros são criações de sua mente. Nasceu em 10.820 a.C. na Atlântida, em Heferonapolitae. *** Marucs (nascido em Telaviv, 1989) é terrorista sem atentados, coadjuvante dono da bola, conhecido como revoltadinho. PICANHA: A masturbação é uma espécie de mentalidade. Ela não é um ato no pinto. Qual é a ilusão do masturbador? É a ilusão de que ele obtém qualidade a partir da quantidade. O cara bate punheta e pensa “quanto mais eu bato punheta, mais prazer eu sinto”. Associa-se o movimento periódico à obtenção do prazer, tanto que a ejaculação vem depois de certa quantidade de movimentos. Isso é uma mentalidade tecnocrática, a tecnocracia pensa assim. O que o masturbador não percebe é que, a cada mexida no pinto, 81 ele está reinjetando qualidade no sistema quantitativo. Quando o sujeito começa a bater punheta ele faz a primeira fricção, essa fricção gera um prazer, e esse prazer, por sua vez, gera uma imagem mental que o excita. É isso que acumula, já é qualitativo no princípio. Se fosse possível ao sujeito desligar sua imaginação, não interessa a quantidade de repetidas fricções, ele jamais ejacularia. THEONUNZIUS: Existe, como exemplo ilustrativo, uma série de ilmes pornográicos onde duas mulheres aproximam suas faces de um falo e beijam o membro e/ou passam a língua levemente pela glande sem, entretanto, realizar nenhuma fricção ou movimento intenso; isso dura alguns minutos até que o ator alcança o orgasmo. Como isso foi possível? O masturbador pensa que quanto mais ele mexe no pinto, mais ele vai ter prazer, mas não é isso. A fricção é só um modo de introjeção de qualidade. GAROTÃO 27: A mentalidade dos masturbadores está impregnada em todo lugar. Entenda-se também na esfera dos metedores, engenheiros, artistas, donas de casa, estocadores, esportistas, tântricos e yogues; está nas instituições: igrejas, botecos e puteiros. CAVALO AZUCRINADO: Seria, entretanto, da ordem do mistério esse salto do quantitativo para o qualitativo? Mistério ou não, me parece importante observar que existem e podem ser inventados outros modos de injetar qualidade num sistema quantitativo. FILHO DA CACOFONIA: Percebemos que, na linguagem, há uma grande confusão na maneira como as pessoas usam os termos “qualidade” e “quantidade”. Ouvimos coisas como “melhorou muito a qualidade” em determinado setor, produto. A qualidade, porém, não melhora nem piora: o que melhora é a quantidade, que aumenta ou diminui. Em música, o timbre é qualidade, não aumenta nem diminui. Não é possível dizer que o timbre do violino é maior ou menor que o da clarineta. Já o número de notas por segundo, a intensidade dos ataques são eventos da ordem da quantidade, portanto, mensuráveis. 82 ABATE 22CENTÍMETROS_NACAN sai da sala. TRAJANNO: É comum ouvir comentaristas de futebol falando frases como: “agora que o Ganso entrou no meio campo do São Paulo, aumentou muito a qualidade do passe”. Mas não aumentou a qualidade, aumentou a quantidade. O meio de campo icou maior porque esse jogador tem mais quantidades de jogadas. Um meio campista ordinário não consegue ver aquela iniltração, aquela virada de jogo, aquela linha burra de impedimento… o Ganso, então, teria uma série de quantidades de jogadas a mais a realizar. Isso aumentaria a quantidade do meio campo do São Paulo e não a qualidade. Porque o Ganso tem uma diferença de qualidade para com o Denílson que não é mensurável. O Ganso é de uma qualidade e o Denílson é de outra. Entretanto, a quantidade do Ganso é maior que a quantidade do Denílson, por exemplo… POPULARMENTE SE DIZ: “para mim não importa a quantidade e sim a qualidade”. Esse jargão é um completo contrassenso, já que, quando a pessoa fala isso, ela está falando novamente em termos de quantidade. Não há uma oposição entre qualidade e quantidade. Não são lados opostos da mesma moeda. São duas séries heterogêneas. Seria como dizer: “eu gosto de branco, preiro o branco ao cheiro de almíscar”, “eu gosto de Beethoven, não gosto de estudar pela manhã”. Quando alguém diz que prefere qualidade à quantidade, posiciona a primeira acima da segunda, colocando, portanto, os dois conceitos em uma relação quantitativa. Se gostasse mesmo de qualidade iria gostar dos dois, já que qualidade é diferença. BARBARELLA: Voltando ao místico, já que citamos yoga, tantra… recentemente fui a um evento de uma escola mística a convite de uma amiga. Seria uma aula introdutória na Rosa-Cruz, uma espécie de maçonaria cristã. O clima da conferência foi sempre muito ameno e os palestrantes (eram dois) buscavam sempre ser carismáticos e simpáticos. A temática ressaltada era de como nós desperdiçávamos nosso tempo, força, nossa vida, em vez de utilizarmos inteligentemente as energias para produzir uma vida mais signiicativa, de um nível espiritual mais elevado. Essa é basicamente a tônica de Ao amor! quase todos os grupos espiritualistas, espíritas, gnósticos, ligados à astrologia, ao yoga etc. Sempre coisas como “não sabemos viver de maneira inteligente, nosso nível mental, anímico, espiritual, nosso estado de consciência é inferior, temos que evoluir nosso estado de consciência para fazer um uso melhor de nossas energias, para desperdiçar menos e nos transformar em alguma coisa superior”. Isso aqui é uma coisa muito séria. Depois da palestra, indaguei aos instrutores: “vocês não percebem o quão capitalistas vocês são, ou a doutrina que pregam?”. Essa quantiicação das energias humanas, um projeto mercantil de vida, é uma das coisas mais capitalistas que eu já ouvi: a ideia de acúmulo de nível de consciência; fora o fato de estar completamente imbuída no dogma evolucionista. Isso também está no tantra, no sentido em que o yogue não desperdiça suas energias sexuais; ao contrário ele as acumula para despertar o kundalini (serpente ígnea) e colocar em reto funcionamento os chacras, então ser mais útil, mais. O grande laço deleuziano se vê aqui totalmente presente. A ideia do surgimento da moeda como laço, nexum, aparelho de captura para desqualiicar o valor e propiciar a garantia do lucro e do imposto inluencia largamente todo misticismo pós-Blavatsky. Para Deleuze e Guattari, o sistema do capital e a própria moeda surgem como um grande estratagema de enganação e encantamento, que operam como um grande laço que tudo envolve para dar, então, nexum ao escambo primitivo. O valor do produto em si está em sua qualidade; ao desqualiicar, o sistema monetário passa a poder quantiicá-lo. O valor que uma maçã tem é intrínseco e da ordem da qualidade; é, portanto, determinado por seu valor nutricional, alimentício, sabor, aroma... únicos, singulares. Mas o sistema monetário vem e desqualiica o valor da maçã e passa a determinar que ela “vale” agora dois dinheiros. Dois dinheiros que é o mesmo valor que quinze minutos numa lan house, um pão de queijo, uma olhadinha no carro, meia hora da zona azul... Assim é formada a máquina de captura do Estado (imposto), pois de outro modo ele não conseguiria subtrair seus vassalos. Imagine o Estado recebendo maçãs do agricultor, o pedaço de um carro de uma montadora, crédito em horas no futebol society, ou uma série de acordes de um músico... não, ele recebe tudo em moeda, quantidade: 83 84 ABATE O capitalismo se forma quando o luxo de riqueza não qualiicado encontra o luxo de trabalho não qualiicado e se conjuga com ele. (DELEUZE; GUATTARI, Mil Platôs – 7.000 a.C. – Aparelho de Captura) SOZINHO NO APÊ: Acredito que, recentemente, me ocorreu algo que tem a ver com isso. Fiz o lançamento do meu livro no Castelinho do Flamengo, no Rio de Janeiro. Coloquei vinte reais como contribuição voluntária e mencionei que era esse o preço de custo do livro. Mas disse também que, se alguém não pudesse pagar e tivesse real interesse em realmente ler o livro, podia levá-lo. Na minha imaginação, era algo como um potlatch, uma oferenda, um ebó, um gasto exuberante para marcar um rito de passagem. Nesse meio tempo, perguntei para uma garota que tinha demonstrado interesse: “Você pegou?”, e ela respondeu: “Peguei não. Te dei vinte reais”, e continuou: “você deveria valorizar o seu trabalho!”. Sem dúvida, a moça tinha como pressuposto que desmonetarizar é igual a desvalorizar. Nesse império em que nos fazem identiicar valor e dinheiro, é difícil para a maior parte das pessoas entender que, em determinados tipos de troca, não importa apenas a quantidade de dinheiro recebido por algo. Isso é crucial. Para mim, acredito que o livro será mais valorizado sendo lido, comentado, passado para outras pessoas, do que apenas sendo trocado por uma quantia de dinheiro. E, de maneira geral, a desmonetarização por meio do escambo pode propiciar modos de vida desviantes, que fogem desse aparelho de captura. RUY DO MOTOR entra na sala. BARBARELLA: Voltando ao místico mais uma vez, onde prolifera a imagem do super guru, mestre pop que vive na loresta... Recentemente, me ocorreu algo curioso numa comunidade em Paraty (Rio de Janeiro). É uma comunidade incrível, aberta, em que se vive, na loresta, de modo coletivo, em torno de princípios como permacultura, bioconstrução etc. Nessa ocasião, havia muitas pessoas, entre elas um casal de artistas. Como eles estavam com pouco dinheiro, pegaram sobras de comida em bares e restaurantes, e disponibilizaram Ao amor! o alimento para todos. No entanto, uma “iluminada” do veganismo, que tinha dado um workshop de comida viva, começou a esbravejar: “gente, tem um cadáver em nossa cozinha! Tem um cadáver na nossa cozinha!”, se referindo ao frango que estava no meio da comida trazida pelo casal de artistas de rua. Numa cena patética, essa pitonisa do veganismo disse que ia fazer o enterro do cadáver. Compactuo com várias das ideias que ela professa; no entanto, o modo como tenta resistir ao poder dominante, como tenta disseminar suas ideias causa asco. Sinto que é cada vez mais comum formas de resistência progressistas assumirem essa postura de evangelismo e opressão. Essa mesma garota – que parecia se sentir como um guru new age – protagonizou outra situação que aponta para isso. Nessa mesma comunidade, é comum a prática do naturalismo, nudismo etc. Entretanto, o local é ao lado de uma cachoeira movimentada que abriga também um restaurante sempre cheio de visitantes, além de casas da população local. Ainda assim, a moça queria a todo custo fazer topless por todo o terreno, inclusive na proximidade da cerca. Diante dos primeiros conlitos com os vizinhos quanto ao nudismo, os responsáveis pela comunidade conseguiram a autorização para fazermos nudismo em uma cachoeira próxima, porém mais escondida e afastada do circuito turístico. Mesmo assim, essa garota insistia em fazer topless ali mesmo. Isso incomodou tanto a vizinhança que ela foi atacada, lançaram-lhe pedras, e até foi ameaçada de morte por um cidadão do local que tem histórico criminal. Apesar de tudo isso, ela continuava segura e convicta de que devia fazer o topless daquele modo naquele horário e naquele lugar. Não tenho nada contra o naturalismo, muito pelo contrário, e nada também contra o veganismo. Mas é o modo de operar dessa moça que realmente chama a atenção… BUMBUM GULOSO: Fala-se muito do empoderamento das minorias. Tal discurso de empoderamento é traiçoeiro e leva sempre à proto-direita, que é a vivência de certa parcela da esquerda que se limita à reação dialética ao poder e que, eventualmente, pode vir a se tornar, pelo viés do empoderamento, uma nova forma de opressão. Devemos falar, portanto, de desempoderamento da maioria. Temos aí a dualidade entre poder e potência. Essa é uma dicotomia muito complexa: a potência articula-se com um segundo 85 86 ABATE termo, que é a vontade. Quando falo de potência, falo também da vontade que a energiza, e estamos, de fato, muito próximos de Nietzsche, aqui. O poder é a vontade de potência que, ao articular-se na matéria, oprime. É, portanto, uma falsa dicotomia, no sentido do recorte conceitual: o poder é uma extrapolação ética da potência. A diferença entre os dois conceitos está na relação entre os elementos dos quais são instâncias; normalmente, essa relação torna-se socialmente polarizada, e daí vem a percepção dicotômica. Nesse exemplo da moça vegana do topless: é difícil identiicar o que é potência e o que é poder. Quando a moça quer mostrar os peitos ela é movida pelo desejo, portanto é potência. Porém, quando ela impõe isso às pessoas e elas se sentem constrangidas, há uma extrapolação ética da potência, uma extrapolação que oprime e torna-se poder. A potência do cidadão que deseja viver segundo seus costumes, que não envolvem práticas de nudismo, converte-se em poder no momento em que ele lança a pedra contra a menina. Isso faz com que a moça cubra os peitos, cerceando sua vontade, ensejando uma nova extrapolação ética, uma nova opressão que é poder também. CAVALO AZUCRINADO: Será que nunca vamos poder distinguir de forma absoluta poder de potência? BUMBUM GULOSO: Acho que não, pois as distinções sempre estarão apoiadas sobre uma visão relacional, frequentemente polarizada, das situações. Podemos entender potência como tudo aquilo que permite a você multiplicar suas possibilidades sem subtrair as dos outros; portanto, sem que haja uma extrapolação ética. Claro que isso é imprevisível e está completamente condicionado pelo contexto e pela trama complexa de relações. EX-CULÁPIO: Observe o seguinte exemplo: em São Paulo, recentemente houve um alvoroço por conta de uma peça chamada “A mulher do Trem”, do grupo Os Fofos Encenam, uma peça que particularmente não me agrada, sobretudo se comparada a outros trabalhos fabulosos desse mesmo grupo. Mas então rolou que uma ativista do movimento negro viu um trecho da peça no youtube e escreveu uma carta de repúdio em que pedia a interrupção Ao amor! das apresentações. Havia um ator, nessa cena vista no youtube, com o rosto pintado de negro, fazendo o papel de uma empregada que era ridicularizada. Diante do pedido dessa ativista do movimento negro, a apresentação da peça foi cancelada e, no seu lugar, foi realizado um debate no Itaú Cultural, onde a peça estava em cartaz. De início, é um sério problema a interrupção de algo dessa forma, pois vivemos num país de mentalidade autoritária e com uma larguíssima tradição de censura prévia. Mas igualmente acredito que o fato desse debate ter acontecido mostra que não dá mais para negligenciar a questão racial do negro hoje no Brasil. A emergência de uma voz e de uma busca por reconhecimento são muito importantes, e envolvem trilhar um caminho nesse sentido de mobilizar forças de maneira mais potente. O referido debate no Itaú Cultural teve como tema gerador “Arte e sociedade – a Representação do Negro” e contou com falas muito lúcidas. No entanto, esse enfoque na “representação” me parece um problema: a ativista ligava a cena em questão à tradição do black-face de origem estadunidense, enquanto o grupo argumentava que sua pesquisa dizia respeito a uma tradição de máscara-tipo no circo-teatro, de origem ibérica e remontando à commedia dell’arte. Se fosse seguir esse tipo de argumento, poderia dizer, ainda, que o ator que usava a tal máscara negra – de quem fui colega na universidade – não era negro, mas também não era branco: ele tem uma feição que, fenotipicamente, remete mais para um índio. Esse tipo de argumento, porém, está baseado na ideia de representação como tendo um lastro com o real. Parece-me necessário entender que identidade não tem lastro é algo que se compõe, sempre mutante e incompleta. E representação muito menos teria um lastro, uma correspondência com o “real”. Assim, não acredito que lutar pela “representação” do negro nas telenovelas, por exemplo, seja uma luta que valha a pena. Primeiro, a novela é integralmente baseada em valores hegemônicos, não teria como “dar uma melhorada.” No Rio, existem propagandas (que vinculam uma causa ao seu produto) em que a chamada principal é: “Beijo Gay na novela é progresso.” Não sei. Não se trata de dizer que a representação não é política, mas sim pensar na performatividade da questão: acredito que seria progresso gays não serem atacados na rua, como hoje são, e não tenho dúvida de que é possível o Beijo Gay ser algo muito comum na novela e ainda assim gays continuarem sofrendo com esse tipo de violência. Ou o negro, que pode ser muito bem 87 88 ABATE representado em telenovelas e peças teatrais e continuar cotidianamente sendo perseguido à distância pelos seguranças dentro do supermercado etc. A luta focada na “representação” parte de um princípio equivocado. A luta precisa ser por reconhecimento, reconhecimento pela diferença. Não faz sentido, também, lutar por igualdade: políticas airmativas, como as cotas, têm a ver com o reconhecimento pela diferença. As condições sócio-históricas não colocam, hoje, negros e brancos na mesma condição para entrarem nas universidades. Reconhecer essa diferença exige, hoje, reconhecer a necessidade das cotas. Lutar por “igualdade” é o que faz o discurso da meritocracia. O mesmo acontece com o feminismo. É crucial a desconstrução do Patriarcado, mas isso não passa por tornar mulheres “iguais” aos homens, e sim com igualdade de direitos, onde sejam reconhecidas pela diferença. Ter a dimensão disso é necessário para não tornar nossas ações de resistência a uma opressão elas mesmas opressoras. A vítima, muitas vezes, acaba internalizando os métodos do feitor e reage à opressão por meio dos seus métodos, únicos que aprendeu. Nesse caso da peça, dizer se o uso de uma máscara negra é racismo ou não pode ser um debate interessante, mas, de todo modo, me parece muito claro que o racismo contra o negro atravessa nossa sociedade de cabo a rabo. Um debate ou uma carta de repúdio não pode determinar a permanência ou não de uma peça em cartaz. No Brasil, existe uma lei contra o racismo, a Lei Afonso Arinos. Acho que uma luta de valor seria mobilizar forças para que essa lei seja aplicada da melhor maneira possível, para além de uma instância personalista. A questão, para mim, não é perguntar se uma cara negra no teatro é ou não racismo. É muito recente o im da escravidão; o racismo atravessa nossa sociedade totalmente. A questão é como vamos lidar com isso: ater a luta contra o racismo à tarefa de cuidar do modo de representação do negro é como tratar apenas os sintomas de uma doença, dando menos atenção ao que os origina. BARBARELLA: Isso é equivalente àquela vegana que defende ideias incríveis, mas de uma maneira equivocada e autoritária. Ao amor! “É preciso não confundir ‘minoritário’ enquanto devir ou processo, e ‘minoria’ como conjunto ou estado. Os judeus, os ciganos etc. podem formar minorias nessas ou naquelas condições; ainda não é o suiciente para fazer delas devires. Reterritorializamo-nos, ou nos deixamos reterritorializar numa minoria como estado; mas desterritorializamo-nos num devir. Até os negros, diziam os Black Panthers, terão que devir-negro. Até as mulheres terão que devir-mulher. Mesmo os judeus terão que devir-judeu (não basta, certamente, um estado). Mas, se é assim, o devir-judeu afeta necessariamente o não-judeu tanto quanto o judeu... etc. O devir-mulher afeta necessariamente os homens tanto quanto as mulheres.” (DELEUZE; GUATARRI. Mil Platôs.) VAMO BRINCÁ DE RODÁ?: Hoje em dia há uma grande questão no Brasil. Reirome à ascensão evangélica. De cerca de vinte anos para cá, a população evangélica têm crescido muito no país. E é tradicional na atuação evangélica colocar para fora suas ideias e leis. Evangelho signiica “boa nova”, e o compromisso de anunciá-la está na base do cristianismo de um modo geral. No entanto, é mais comum, hoje em dia, a maioria dos católicos não se importar tanto com a sexualidade do outro como fazem os evangélicos – excetuando a ala católica conhecida como renovação carismática, que são como “católicosprotestantes”. Evidentemente que se fulano é homossexual, por exemplo, isso não implica nenhuma inluência ou perturbação na vida de sicrano. Nesse caso, explorar a sexualidade livremente, conforme se deseja, é potência. Entretanto, o cristão poderá argumentar: “os textos sagrados dizem que Deus julgou Sodoma e Gomorra e, condenados por sodomia, as cidades foram destruídas em uma só noite. Então, quando estou negando o direito das pessoas explorarem sua sexualidade conforme queiram, estou na verdade protegendo minha família e eu mesmo de um cataclismo.” Quando nos deparamos com esse tipo de argumento, é difícil reagir de outra maneira que não a do uso de poder, retrucando coisa como “vai para o raio que o parta, seu burro!” É claro que esses textos sagrados são norteados por regras e costumes que tinham, talvez, algum sentido em seus tempos históricos e condições geográicas especíicas. Para os gregos era diferente, para os sumérios outra coisa... Qual deus é melhor? Qual texto é maior? 89 90 ABATE FORA DILMA: Alguém de Miami quer teclar? OJOS NEGROS: Foi falado agora um lance interessante no qual quero me deter mais. Geograia. Um pensamento despótico, centralizador de um teomegalogos, um deus central e transcendente, é crucial para entendermos tudo que temos vivido ao longo da história, como a ascensão dos impérios, o capitalismo... proponho, aqui, chamar a teologia por trás de tudo isso de papai-piru: intersecção entre as esferas do patriarcado, do falicismo, da maioria (em um recorte deleuziano) e do poder, mantendo devires minoritários sob controle. Mais além dos eventos da história, podemos ver que o próprio materialismo histórico é repositório desse papai-piru; o modo como muita gente encara o materialismo histórico de Marx é teológico, no sentido do dogma e da religiosidade como mera consequência da aceitação de um discurso portador da Verdade. De certo modo, é justamente por sermos adoradores do historicismo teológico que, por exemplo, escritos de Moisés ainda têm tanta força nos dias de hoje. Será que não seria diferente se déssemos um peso maior à Geograia em detrimento da História (falando, agora, enquanto Disciplinas)? Que valor haveria de ter o que disse um homem que viveu entre os rios Tigre e o Eufrates, em clima árido, para mim, que vivo entre o Paraíba do Sul e a Serra da Mantiqueira, em clima subtropical de altitude úmido? Deleuze e Guattari falam sobre o surgimento do império arcaico nos Mil Platôs. E falam que o surgimento se deu no Oriente. Por que não foi na Europa? Foi uma questão histórica? Biológica? Não, foi uma questão geográica. O império deveio do estoque. O território laçado se torna propriedade, a atividade (cultivo) laçada se torna trabalho. É, portanto, o estoque que cria o império. Nunca haveria império na Grécia, tanto que nunca houve, lá onde o solo é pedregoso e o terreno irregular. Não que tenham faltado tentativas. Muitos tentaram lançar o laço sobre toda Grécia e imperar, ainal, o que Agamenon queria? Mas ele nunca conseguiria, porque a geograia era uma barreira intransponível, nesse caso. PEDRO DE LARA RISES: Uma pessoa realmente contra impérios (hoje capitalista) não teria geladeira, talvez o maior símbolo do estoque, já que preserva o que rapidamente apodreceria. E, em caso de solidão, ainda dá para dormir de conchinha com seu motor quentinho... Ao amor! CORIFEU: Se me permitem, quero trazer algumas ideias do Adorno. Na Dialética do Esclarecimento, ele com Horkheimer escrevem sobre Ulisses e colocam Ulisses como o primeiro capitalista, trabalhando com uma noção trans-histórica. O esquema historicista de análise do capitalismo desenvolvido em A ideologia Alemã, de Marx, por exemplo, cai por terra se é possível pensar Ulisses como o primeiro capitalista. Está em jogo, para Adorno, o fato de que toda racionalidade e dominação da natureza pelo homem envolvem um processo regressivo, o iluminismo acaba se convertendo em seu contrário. A dominação da natureza pelo homem acaba condicionando a dominação de si mesmo. É o homem dominado pela técnica que, de início, foi criada para fazer dele o senhor do espaço e do tempo. O próprio mito já é uma forma de dominação da natureza, e essa dominação da natureza seria o fundamento de um “capitalismo” que é trans-histórico e não diz respeito apenas ao desenvolvimento histórico da burguesia. O exemplo de Ulisses como primeiro capitalista aponta para isso. Depois de colocar cera no ouvido dos remadores, mantendo os seus desobstruídos, o que Ulisses faz para poder ouvir o canto das sereias? M@G@NO: Sabemos que a sereia introduz o Edugair1 na pessoa... “As sociedades ditas sem história colocam-se fora da história, não porque se contentariam em reproduzir modelos imutáveis ou porque seriam regidas por uma estrutura ixa, mas sim porque são sociedades de devir (sociedades de guerra, sociedades secretas etc.). Só há história de maioria, ou de minorias deinidas em relação à maioria. Mas “como conquistar a maioria” é um problema inteiramente secundário em relação aos caminhos do imperceptível.” (DELEUZE; GUATARRI. Mil Platôs.) ZEZINHO DAS ORQUÍDEAS: Voltando a reletir sobre História e Geograia. Desde a infância, temos essas duas Disciplinas na grade curricular e podemos pensar que, sendo a carga horária delas semelhantes entre si, não há preponderância de uma sobre a outra. Mas 1 Conceito Edugair: dissonância social impossível de ser medida, mensurada ou quantificada; a loucura e a arte manifestam o fator Edugair em diferentes instâncias. (Associado ao debate, sugerimos que o leitor escute a peça “Odisseu e as Sirenas”, de Bruno Ishisaki, disponível no link: <https://soundcloud.com/bruno-ishisaki/ odisseu-e-as-sirenas>). 91 92 ABATE uma análise detalhada faz a gente lembrar que existe um olhar que subestima a Geograia, com comentários como: “ahh, geograia... pintar mapa”. Enquanto que em História há uma valorização: sempre ouvimos coisas como “temos que conhecer os erros do passado para não voltarmos a cometê-los” e etc. A própria palavra “história” se converteu em uma palavra de poder: “Isso é histórico”. ANTEDEGUEMON: Além do ensino fundamental e médio, há mais implicações. Em nível superior acaso existe a Geograia da Música? Existe História da Música, História da Arte, História da Comunicação, História da Filosoia... até História da Matemática, da Engenharia... Em minha experiência como professor universitário na cadeira de História da Música da Faculdade Gestual de Repertório, cheguei à conclusão de que se trata de uma matéria babaca. Ela é divertida, eu gosto de escutar o repertório e gosto de mostrá-lo aos alunos, mas é uma matéria babaca. Não constrói nada e não é essencial para a construção de nada. E é essa essencialidade necessária que os historiadores gostam de sentir que têm. Semelhante à essencialidade necessária de deus, do imperador, da moeda... O que eu vejo, de fato, é que a história é mesmo o cortejo do esquife dos poderosos, como falou Benjamin. Toda vez que replicamos um certo discurso histórico estamos enaltecendo os vencedores, os déspotas. Como que um cânone do pensamento, um mantra ritual aos deuses mortos-vivos. Aqui concordamos com Nietzsche novamente, que coloca, em sua Segunda Consideração Intempestiva, três posturas históricas, modos de ver a história. A primeira, chamada monumental, que tende a ver o passado como o conto dos grandes heróis da virtude e da sabedoria, colocando-os em patamares inalcançáveis. Esse modo apenas produz frustração e descontentamento por nunca, no presente, reconhecermos esses heróis. A segunda maneira seria o historicismo-antiquário, que olha para o passado como um construtor de valores e padrões a serem respeitados, portanto, um passado que produz tradição e cultura, ou seja, um passado engessador, duro, que não permite o devir. O terceiro modo é o modo que Nietzsche propõe: o modo crítico. Esse deveria conjugar ciência e arte, gerando produções artísticas da história. Isso, para Nietzsche, Ao amor! seria fundamental para a instauração do estado dionisíaco. Essas criações deveriam ser plurais, múltiplas, e não narrativas da verdade, produtoras de ídolos e tradições. Em vez disso, ruínas, colagens, bricolagens, realterismo...2 SEDUTORA 42: Então, as sereias, que são o fator Edugair na história...?3. CORIFEU: O Ulisses vai lá, mete cera no ouvido da galera (galera é etimologicamente o lugar onde icavam os remadores) e, em seguida, se amarra no mastro da embarcação para poder escutar o canto das sereias, sem se arruinar pela sedução desse canto. Eis o fator capitalista e protestante na história. PEREIRA REFLETE: Entendo, entretanto, que há uma cisão no homem, na idade do homem (antropoceno), que tem a ver com a cisão entre pensamento e fala, e que, de certo modo, guarda relação com todos os binarismos que atravessam as nossas ações e forma de pensamento hoje. Por exemplo, para o grego a mente (phrén) se localiza na altura do diafragma, e daí vêm palavras como frenesi ou frenético. M@G@NO: E essa maneira traz, de novo, o fator Edugair. O saci também tem a ver com o fator Edugair. PEREIRA REFLETE: Para o grego antigo, o falante é entusiasmado (ter o deus dentro); não havia separação entre a fala e o pensamento. Se você gagueja, você é um mau pensador... Tampouco existia a diferença substancial entre ação e intenção, entre enunciado e sentido. Mesmo a leitura silenciosa, que para gente é habitual, não tinha muito cabimento na antiguidade. Até, numa passagem das Conissões, Santo Agostinho aponta que a leitura silenciosa de um cardeal lhe provocava espanto. Isso porque a noção de interioridade, hoje ligada à ideia de indivíduo, não existia aí. O indivíduo é uma ideia moderna, tal como ideia de autor. 2 Sugestão: ver o filme/composição Ludwig van, de Mauricio Kagel. 3 O desenvolvimento de uma realidade que o mundo vive que é a arte – mas isso é só um agenciamento maquínico de corpos. 93 94 ABATE JAMILA 40: Imagino que esse pensamento dualista chega ao seu ápice na oposição da ilosoia moderna entre corpo e espírito. FRUTA GOGOIA: E tudo isso acaba por desembocar no capitalismo, que é onde queríamos chegar e de onde nunca conseguimos sair. O capitalismo nasce da conjugação de duas séries heterogêneas, a do valor real-qualitativo (alimento, por exemplo) e a do valor desqualiicado-quantitativo (cinco reais, por exemplo). E as dicotomias se seguem: atividade-trabalho, território-propriedade, valor-preço, forma-conteúdo etc. No inal das contas, capitalismo é uma palavra esotérica, pois atua na conjugação de séries heterogêneas. EDMUNDO PREFEITO 40: É claro que essa construção nos leva à arte, e é claro que um grande artista, no fundo, é um grande mago. É um conjugador de séries heterogêneas. Toda máquina desejante é conjugadora de séries heterogêneas, mas um artista é mestre no metiê, suas conjugações e conjurações são convincentes. Nesse ponto, surge a pergunta: qual é a diferença entre o capitalismo e a arte? O capitalismo é arte? E, aí, podemos chegar no Naji Nahas como um grande dançarino e coreógrafo… ARISTÓFENIS DOS REMÉDIOS: Reletindo sobre o capitalismo, percebo que o mundo contemporâneo vem presenciando o renascimento dos deuses. Por exemplo, a Puta. Puta é o nome de uma deusa romana, uma pequena deusa, digamos, conhecida na época como a deusa dos cômputos. Os agricultores, após a colheita, computavam tudo que havia sido colhido e, ao alcançar um número satisfatório, faziam uma oferenda à Puta. Nessas ocasiões, as sacerdotisas saíam às ruas copulando com todos. Nove meses depois ,nasciam os ilhos-da-Puta. Onde a Puta está hoje em dia? Na internet, no computador. Os computadores são sacerdotes da deusa Puta. Todo usuário de xvideos.com é um iel da deusa Puta. É sabido que grande parte do conteúdo surface da internet é pornograia. Seu rito é a computação, não só no sentido do uso de tecnologia informática, mas no sentido de sermos uma sociedade viciada na computação, nos dados, nas estatísticas, tecnocracias de toda sorte. Assim como na antiguidade romana, em queas sacerdotisas Ao amor! da Puta permitiam aos homens realizar, durante aquela semana pós-colheita, coisas que não podiam fazer em outras épocas, do mesmo modo, hoje, a pornograia nos mostra e nos coloca frente a práticas que não só não experimentaremos, como não admitiríamos ter visto em vídeos. Ainda nessa linha do renascimento dos deuses: o que é o capitalismo? O capitalismo é Hades. Hades é aquele que acumula, e acumula morte e mortos. É a geladeira, é o estoque. Esse capitalismo trans-histórico não vive desde ou a partir de... não é algo que está lá fora. É algo que penetra e compenetra. Não existe fora. Ora, satanizar o capitalismo é um inocente vício da esquerda. FETICHISTA DO MERCADINHO entra na sala. BUMBUM GULOSO: A ciência descreve bem o mundo, mas não é capaz de habitar o mundo, é o que profetizava Merleau-Ponty. MUNRÁ SERTÃO: Bom, como estamos no mundo das palavras, é importante dedicar um pouco de tempo a elas. Entendemos aqui o ilósofo como o inventor de conceitos, o grande operador dos processos do pensar... Mas o ilósofo não pode ser associado ao que é chamado na atualidade de formador de opinião. Esse último está mais para a categoria dos soistas. Os soistas mercadejavam a sua capacidade de argumentar. Assim, eram contratados para defender certas opiniões e operar convencimento. Eles o faziam sem necessidade alguma de estarem de acordo com o pensamento professado, o faziam pela remuneração. É como opera, hoje em dia, o formador de opinião, que trabalha ligado aos meios de comunicação – podemos pensar no Datena – assoprando sortilégios na cabeça vazia dos telespectadores. E é nesse ponto que podemos diferenciar o capitalismo da arte. Pois ambos são conjugadores de séries heterogêneas, mas o capitalista (magnata -soista-formador-de-opinião) prestidigita em favor do pagamento, do lucro, enquanto que o artista o faz pelo desejo, porque aquilo lhe causa febre, insônia, empolamento na pele. Enquanto o capitalista cria em função do medo, o artista cria em função do desejo. O primeiro orbita a reação, e o segundo, a ação não-utilitária. 95 96 ABATE HAYDN DA RODOVIÁRIA: Mesmo no campo da arte, há uma série de personagens que produzem modelos despóticos, por exemplo, Pierre Boulez. Ele quer ser imitado, criar uma escola. Ainda assim, não se pode dizer que determinado artista apenas opera por despotismo e/ou apenas por invenção. Há sempre um misto... O que ocorre é que muitos artistas operam o laço, ou o nexum, no dizer deleuziano. Tentam, desse modo, criar uma unidade de pensamento ao redor de uma estrutura, fazendo com que outras pessoas acreditem que aquela é a maneira certa de se fazer, e deve, por isso, ser imitada. Importante frisar que não estou falando mal da obra de Boulez (em relação a ela não tenho nada a dizer), mas sim falando mal do exercício de poder em produzir hegemonia ao redor dela. ATIVO, 40, SJC: Mas o que está sendo feito de arte (ativa) em São José dos Campos hoje? M@G@NO sai da sala. HOMEM INFINITO: Tem que haver algum deslocamento para ser arte. O caso da canção guarda muito bem esse conlito. Ali há a conjugação de duas séries heterogêneas, o som e o texto, e é possível que a parte musical seja tradicional, tonal, convencional, ou seja, territorializada, e que o deslocamento se encontre no texto. Às vezes, o texto pode operar por ironia ou por humor: na canção “O Borboleto”, temos uma construção musical tradicional, mas o texto não opera nem por humor nem por ironia; há apenas uma construção em palavras esotéricas: O sol, o vento, suco de limão, Um pangaré, um azulejo. Seu picolé derrete o meu cata-vento. Um dia me chamei José no outro Bento. Ou talvez Bonifácio. Outra vez caramujo. Ao amor! Roda a roda, a roda, a roda, roda. Anzol, momento, tinta, piscinão. Um pangaré, um borboleto.4 ALEC FULL: É como o caso de certo sujeito que se candidatou à presidência da Holanda e que falava assim: “eu não tenho nada contra os árabes aqui na Holanda, eu transo com os árabes... mas eu não quero eles aqui, eles atrapalham, roubam emprego, desajustam a economia etc. etc. etc.”. Ou seja, um neonazista gay que ama os árabes e é islamofóbico! Esse é um bom exemplo de iguras que usam um discurso que pode se apropriar de um devir minoritário para emplacar um poderoso discurso de opressão. Há ideais progressistas incrivelmente potentes, como o veganismo, o ecologismo, a causa GLBT, o feminismo, o movimento negro, que são devires. No entanto, há um limiar tênue onde esses ideais e movimentos se traduzem em ações “econazi”, “oshonazi” etc. etc. É preciso vigiar o papai-piru interno. DONA PREÇUDA: Não haverá mundo novo enquanto houver herança. Não que a herança seja o único elemento que estrutura esse mundo velho, mas é, sim, uma das suas âncoras. A monarquia, no passado, era uma espécie de ordem, mas ela se desenvolveu e se transmutou em uma espécie de guilda. Ela percebeu que ser uma ordem a enfraquecia, por troná-la visível e aparente. Então, preferiram manter a monarquia, mas sob a forma de guilda, uma confraria de ladrões. Já hoje em dia, não se sabe quem é que tem a grana, quais famílias, onde moram exatamente. Alguns deles são prestidigitadores, outros encantadores, e também os sedutores etc. O que eles têm em comum é que são todos acumuladores, nessa era pós-geladeira. Abandonaram a estrutura de ordem de cavaleiros para a de guilda de ladrões, abandonaram a classe de paladinos para a de apenas ladinos. Essa guilda penetra e compenetra o mundo inteiro, são esburacadores. CORIFEU: Na vida pirata, a maior derrocada é converte-se predominantemente num corsário, “pirata do rei”. 4 Áudio disponível em: <https://soundcloud. com/bandadofolclorejoseensedesbocado/o-borboleto-banda-do-folclore-joseense-desbocado>. 97 98 ABATE VEGG NAIF: Existe um ditador estratiicado no peito de cada um de nós. O grande problema é quando você não admite isso e isso continua existindo apenas à socapa, no obsceno... E voltando de debaixo do tapete, essa sombra age, assim, quando ninguém espera, como uma ressaca do mar revolto. Por isso, tenho um amigo que repete: “ao mal é preciso temperar, não rejeitá-lo”. CORAZÓN DE PIRATA: Interessante é aquilo que Zygmunt Bauman chamou de “a vingança dos nômades”. Existiu a ruptura que mudou os homens da condição nômade para a sedentária. Criamos a agricultura e daí toda a tecnologia que se seguiu. Hoje vivemos a ruptura desse paradigma, ou seja, o momento em que o homem, a partir de sua técnica, consegue readquirir uma existência nômade. A lexibilização das relações de trabalho, aumento do terceiro setor, expansão dos gozos e prazeres, lexibilidade da vida de maneira geral apontam para isso. Mas essa vingança dos nômades pertence a quem? É a uma elite que essa técnica pertence. É uma elite que alcança esses gozos, essa lexibilidade. É uma elite que consegue fazer uma reunião como essa aqui, onde estamos bebendo cervejas gourmet e debatendo livremente ilosoias e pensamentos. E, sendo elite e agindo como elite, estamos celebrando a honra dos gloriosos, mesmo que estejamos falando contra eles. PAULINHO AZEVEDO 9FINGERS: O amor fati não é comodismo. Cada escravo tem, sim, responsabilidade sobre a escravidão. Se você amarrar um gato a uma coleira, é possível que ele se mate em vez de viver acorrentado. Não importa se o amor fati é suicídio: é entrega, é vertigem. O amor fati é a assunção da guerra. É se permitir à exuberância. O raro acontece, se você souber produzi-lo. O dó maior em uma peça serial integral é um esquecimento. Acontece... E se acontece uma vez, pode. 99 ENTREVISTA COM ROGÉRIO SKYLAB FOTO ALEXANDRE REZENDE/DIVULGAÇÃO “Vejam vocês, tudo é tão sem nexo… e ao mesmo tempo, ininito e complexo.” Um ouvinte menos atento pode pensar em Rogério Skylab como uma igura escalafobética e estrambótica. De fato, é assim que a mídia mainstream gosta de trabalhar sua imagem. Entretanto, por trás das performances extravagantes, há um cancionista original e incansável, intelectualmente poderoso, consciente dos mecanismos de sua poética como poucos na música popular brasileira. Nesta entrevista, deixamos de lado aquela tendência já desgastada de forçar o entrevistado a enunciar respostas de teor humorístico. Aqui, o que nos interessa é a força conceitual das ideias e opiniões de Rogério Skylab. 100 ABATE Sobre a questão da composição, quero trabalhar com a diversidade de materiais e de caminhos composicionais. O aleatório, o serialismo, a música tonal... A minha grande referência é Gilberto Mendes. BRUNO ISHISAKI (B.I.): Inicio esta entrevista com uma questão a respeito do seu processo criativo. Em outras entrevistas, você disse que é um processo racional e meticuloso, e um ouvinte atento logo percebe que seu trabalho, de fato, nada tem a ver com improvisação ou humor. Gostaria que você descrevesse os detalhes do seu metiê. Algumas questões particularmente interessantes, para mim, são aos caminhos harmônicos (um exemplo que me vem à mente agora é “Eu não consigo sair daqui”), e a relação melodia-letra: como você faz essas escolhas? Testa possibilidades em um violão ou piano, ou trabalha colaborativamente com a banda? Como é esse processo? ROGÉRIO SKYLAB (R.S.): Eu me lembro de uma gravação, na casa de André Midani, em que estavam os bambas da música popular brasileira, Caetano, Gil, Jorge Benjor... Rolou um papo sobre improvisação, coisa que o Jorge Benjor e o Gil sabem fazer muito bem, e o Caetano foi enfático: “eu não sei improvisar”. Eu também não sei improvisar. Acho até que é uma insuiciência de minha parte, entre tantas outras. Principalmente se pensarmos que a novíssima música brasileira (por favor, não pensem que eu estou falando do baixo Augusta) aponta cada vez mais nessa direção. Sobre essa questão do humor, ri quem quiser, rir não é proibido; só que jamais é o que almejo quando faço uma canção. Sobre a questão da composição, quero trabalhar com a diversidade de materiais e de caminhos composicionais. O aleatório, o serialismo, a música tonal... A minha grande referência é Gilberto Mendes. Quanto a essa relação melodia e letra, a que você faz referência, é o grande mistério da canção. Alguns se debruçaram sobre esse mistério e tentaram teorizá-lo. É o caso de Luiz Tatit, que, por sinal, vem a ser também um grande cancionista. No meu caso, o processo composicional é solitário. O processo colaborativo com a banda é um momento subsequente, que é também muito importante. Mas o nascedouro das canções se dá de forma absolutamente solitária. Por im, o processo harmônico de “Eu não consigo sair daqui” está contido na letra – talvez seja, das minhas canções, a de maior caráter metalinguístico. B.I.: Ainda sobre a manipulação de sonoridades, noto um uso intencional do idiomático de determinados gêneros (a sonoridade jazzy, em “Mastigando um Entrevista com Rogério Skylab chiclete”, ou a bossa, em “Você é feia”) que projeta seu trabalho para além de um suposto rótulo de rock alternativo. Percebo que seu trabalho tem muito mais a ver com um diálogo com a contemporaneidade, vejo nele um jogo de agenciamentos entre idiomas, gêneros musicais e enunciados, e temáticas que orbitam territórios-tabus. Seria algo muito próximo daquilo que Oswald de Andrade mencionava em seus manifestos: “transformar tabu em totem”. O que você pode comentar a respeito do uso de sonoridades idiomáticas? Pode exemplificar a escolha jazzy de “Mastigando um chiclete”, se quiser. R.S.: Quando você fala em “uso intencional do idiomático”, quero creditar a isso o antinaturalismo. Nenhum autor me foi tão enfático quanto Cabrera Infante em seu “Três Tristes Tigres”, no que tange a essa questão. Para ele, tudo é exercício de linguagem. Daí a multiplicidade de gêneros na minha música. Não tem nada a ver com ecletismo, que sempre me soou uma palavra vazia pra amaciar o ego de músicos-ginastas, tipo Hamilton Holanda e Yamandu Costa. Você não pode esquecer a questão do conceito. Por exemplo, o meu atual projeto, a Trilogia dos carnavais (já lancei dois volumes e estou trabalhando, atualmente, no terceiro), é um mergulho na linguagem da música popular brasileira – uma certa dicção, uma forma especíica de gravação, de arranjo, até a maneira de cantar – tudo, tudo, tudo é impostado, nada é natural. Em algumas músicas, eu abordo especiicamente esse tema – por exemplo, em “É Tudo Atonal”, do Skylab VII. Em outras, eu faço a junção de gêneros diferentes numa mesma canção – é o caso de “Música para Paralítico”. É mais aglutinação do que fusão. Não é síntese. Rogério Duprat, assim como muitos integrantes do movimento “Música Nova”, foram importantíssimos para o tropicalismo. Isso porque os tropicalistas conhecidos tinham a intuição, mas não tinham a técnica. B.I.: Em algumas entrevistas a programas de TV aberta, você mencionou a atração que sente pela figura do travesti, que traz a tensão de criar, para si, a imagem do feminino, imagem essa que contrasta com a afecção da genitália masculina. Você concorda que há, no travesti, em um sentido deleuziano, um devir mulher? Quando você diz que o travesti Rogério Duprat, assim como muitos integrantes do movimento “Música Nova”, foram importantíssimos para o tropicalismo. Isso porque os tropicalistas conhecidos tinham a intuição, mas não tinham a técnica. 101 101 102 ABATE traduz a contemporaneidade, há nisso uma analogia com o que é transitório, devir e presente? R.S.: O devir-mulher não é um Deleuze puro, é misturado com Guatari. Esse é o problema. Mas o que eu dizia sobre a contemporaneidade do travesti era a capacidade de produzir o seu próprio corpo, fugindo, portanto, de uma natureza. Isso me interessa. A outra questão do travesti, e nesse sentido devo confessar que sou mais atraído por ele do que pelo “viado”, é que não há síntese: você encontra os peitos de uma mulher e o pau de um homem. Esse é o desconcerto que me seduz. B.I.: O que acha do termo “pós-moderno”? R.S.: A crise das vanguardas acena para o pós-moderno, colocando em questão inclusive a ideia de autoria. O problema é que existe, hoje em dia, um descompasso entre a mentalidade e a tecnologia. O conteúdo não avança na mesma velocidade da técnica. Nas décadas de 1950 e 1960, esse processo era inverso: se pensarmos nas ousadias do concretismo, seremos obrigados a considerar suas experimentações no campo poético como atitudes heroicas. Eu sou ilho do tropicalismo. Mas sou patricida. É sob essa perspectiva que tendo a valorizar os trabalhos de José Agrippino e dos próprios Mutantes, que, contra o próprio contexto da época, tentaram abrir, na marra, um caminho próprio. B.I.: Em canções como “Fátima Bernardes Experiência”, “Câncer no cu” ou “Chico Xavier e Roberto Carlos” percebo um trabalho de desterritorialização dos ícones e personalidades da cultura de massa. Ao longo do século XX, muitos intelectuais e artistas de vanguarda satanizaram essa cultura, enquanto outros a abraçaram, às vezes genuinamente, outras vezes de forma mais cínica. O que você pensa a respeito da cultura de massa? R.S.: Essas músicas são produtos de um campo minado pela cultura de massa. Pense, por exemplo, o que veio a ocorrer no Brasil, a partir da década de 1960, com algumas pesquisas no campo da música erudita. Eu sou ilho do tropicalismo. Mas sou patricida. É sob essa perspectiva que tendo a valorizar os trabalhos de José Agrippino e dos próprios Mutantes, que, contra o próprio contexto da época, tentaram abrir, na marra, um caminho próprio. B.I.: Você acredita que exista uma distinção entre a música erudita e a popular? Ela não seria uma taxonomia burguesa enrustida, que serviria apenas para segregar a cultura assim como se faz com a sociedade? Beethoven era Entrevista com Rogério Skylab do povo (apesar de ser um elitista); do mesmo modo, em de Heitor Villa-Lobos (tido como o compositor erudito brasileiro mais influente) vemos uma obra permeada de trechos de música e de um pensamento musical “popular”: idiomatismos instrumentais, melodismos, caráter improvisatório, liberdade formal etc. Sem contar a erudição presente no Cartola, no Hermeto, no Hermelino Neder. Hermelino e Arrigo, que já seriam inclassificáveis dentro de uma distinção entre popular e erudito... R.S.: Essa tua pergunta me remete ao que falei acima. Será que a indústria cultural também não promoveu uma outra espécie de hierarquização? É a pergunta de Roberto Schwarz. O fato de Villa-Lobos trabalhar com materiais populares, tal como fazia Bella Bartok, Stravinski, não lhe excluía o campo erudito. Não há mal algum na distinção entre música erudita e música popular. Veja o caso de Arrigo: servia-se de materiais da música erudita para fazer música popular, processo inverso ao de Villa-Lobos – no caso de Arrigo, estou me referindo ao seu clássico “Clara Crocodilo”. Naturalmente, Arrigo se aventurou nas Não há mal algum na distinção entre música erudita e música popular [...] A grande mudança é que, hoje, Cartola e VillaLobos são igualmente valorizados, sem que seja necessário romper a diferença entre o popular e o erudito. missas, dentro de uma linguagem erudita, mas quero crer que sua força está na música popular. A grande mudança é que, hoje, Cartola e Villa-Lobos são igualmente valorizados, sem que seja necessário romper a diferença entre o popular e o erudito. B.I.: Você vê o seu trabalho como arte, artesanato ou produto? Por quê? R.S.: Vejo sob essas três perspectivas: envolve arte por causa do conceito; artesanato, porque é um trabalho com os materiais (no meu caso, a junção de letra e melodia, os arranjos); e também é um produto a partir do momento em que, enquanto criador, você deixa de ter um controle sobre teu trabalho quando é lançado num show ou num disco. MARCO A. MACHADO (M.M.): De certa maneira um criador permanece na encruzilhada entre o belo e o novo. De que modo você enxerga essa dicotomia? E como você vê o belo e o novo na sua produção? R.S.: Olha, essa encruzilhada é própria da arte, ainda que possamos admitir em alguns casos a prevalência do belo, em outros, a 103 104 ABATE prevalência do sublime (vou identiicar o novo como um elemento do sublime). Isso vem de Kant. A grande diferença é que o sublime é um símbolo do informal ou do novo; enquanto tal, ele tem aspectos formais simbolizando o informal. Essa me parece a grande encruzilhada – fazer com materiais conhecidos algo completamente novo. Mesmo usando o idiomático, como vocês observaram, a minha perspectiva é sempre tomando uma certa distância. O meu negócio é o silêncio. M.M.: Em uma entrevista ao Bate-papo da UOL você afirmou ser preconceituoso. Acreditamos que todo preconceito é bonito, já que nasce diante de um exercício do deleite, sendo uma escolha estética. Você concorda? O preconceito pode ser importante em seu processo de criação de canções? R.S.: Lembro que quando foi lançado “Cidade de Deus” eu falei assim: não vi e não gostei. Muitos são os ilmes e livros dessa espécie. O leitor ou espectador que não é capaz de tais atitudes preconceituosas, não gosta de ilmes nem gosta de livros. A relação de paixão envolve essas posturas. Não existe neutralidade nem espírito objetivis- ta para esses. “O amor é cego, Ray Charles é cego, Stevie Wonder é cego, e o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem”. M.M.: Gostaríamos de saber se você escuta música contemporânea (nacional e internacional) e, se sim, quais são seus gostos e comentários sobre estas experimentações sonoras. R.S.: Eu, na verdade, não escuto música, nem contemporânea, nem popular. O meu negócio é o silêncio. Mas devo confessar que vi, recentemente, “A Odisséia de Gilberto Mendes” e me apaixonei completamente por esse santista. Quem sabe eu ainda não faço um trabalho sobre ele. M.M.: Grande de possibilidades de ordem técnica ou tecnológica veio com o século XX. Vejo em várias de suas canções a exploração de alguns desses aspectos, como a repetição obstinada (minimalismo), o mergulho no sonoro (eletroacústica, espectralismo) e ideias ligadas à música conceitual. Esse trabalho é intencional? Fruto de pesquisa? Ou são consequência da incorporação dessas técnicas pela escuta? Entrevista com Rogério Skylab R.S.: Eu já tinha abordado essa questão do avanço tecnológico e isso realmente é muito importante, mas não é suiciente. Tenho sempre a sensação de que não se tem explorado até às últimas consequências o que temos em mãos. Por outro lado, há exemplos na História de esforços notáveis no sentido de se superar uma insuiciência tecnológica. No meu caso, é um intercruzamento de leituras e escutas, sem nunca perder de vista o campo da música popular em que estou inserido, com sua longa tradição e suas especiicidades. M.M.: O que lhe causa prazer acústico? O que tem ouvido recentemente? Você tem gosto por sonoridades não musicais? Quais sons? R.S.: Uma das pessoas que eu vim a entrevistar no meu programa Matador de Passarinho, exibido todas as segundas-feiras, meia-noite, no Canal Brasil, foi Lívio Tratemberg, um cara por quem tenho grande admiração e respeito. Estamos, inclusive, em via de produzir um disco juntos. Outro que eu iz questão de trazer ao programa foi Tim Rescala. Ambas as entrevistas foram maravilhosas e estão disponíveis no site do Canal Brasil. Quero dizer, com isso, que sempre me interessou esse segmento da música pura, que enfrenta todas as espécies de diiculdades, principalmente num país periférico como o nosso, sob a avalanche da indústria cultural. Por outro lado, eu trabalho com música popular e, ainda que eu veja com bons olhos esse intercruzamento de informações entre o popular e o erudito, não há como desconhecer a especiicidade de cada um desses campos. Reconhecer a separação talvez ajude, ao contrário do que pensam os tropicalistas e seus herdeiros, evitarmos uma nova hierarquia de valores, agora sob os auspícios da indústria cultural. Por exemplo: esse termo “inclassiicáveis”, que vocês usaram para mencionar Arrigo, e que foi uma febre a partir da década de 1990, teria justo essa função: derrubar muros que a lógica capitalista sempre fez questão de levantar, priorizando as segmentações. O fato é que os “inclassiicáveis” vieram a criar um novo segmento. E, o pior de tudo: os que faziam questão de se autodeinirem assim – me lembro daquela turminha (Chico César, Paulinho Mosca, Lenine, Arnaldo Antunes, Chico Science...) – não tinham nada de inclassiicáveis, muito pelo contrário, estavam totalmente inseridos dentro de uma música de consumo. Eu credito isso justamente à “grande revolução tropicalista”: você tem a informação mas não tem a técnica. Moral da estória: ou você se socorre daqueles que a tem ou então vive no mundo dos nomes, isto é, fala mas não faz. Nesse sentido é que eu credito grande importância ao trabalho de Arrigo Barnabé e dos poetas concretos. M.M.: E você vai continuar fazendo música? R.S.: Sim. Estou concluindo o terceiro volume da Trilogia dos carnavais (“Desterro e Carnaval)” e estou começando o segundo volume de Rogério Skylab & Orquestra Zé Felipe – uma espécie de experimentalismo primitivo que está cada vez mais tomando força na nova música carioca. Trabalhos como os de Negro Leo, Chinese Cookie Poets, Sobre a Máquina (do veterano Arto Lindsay) e mesmo o Metá Metá, do paulista Kiko Dinucci. O clima de revezamento entre os músicos, o projeto Quintavant, na Áudio Rebel... enim, propiciam uma nova cena que cada vez mais toma corpo. E o Rogério Skylab & Orquestra Zé Felipe está nos primórdios de tudo isso. 105 106 ANÉIS AB E RTO S Arte, Literatura e Filosoia em devir Tiago Cfer* Assim começa o espaço, somente com palavras, signos traçados sobre a página branca (Georges Perec, Espécies de espaços.) *Tiago Cfer, investigador de invasões bárbaras e desordens nas artes, literatura e filosofia em tardes mornas. LUZ ESTRELA FICOU FLAT QUEREMOS RADIÂNCIA ÓVNI (Waly Salomão, ÓBVIO & ÓVNI.) FOTO GEORGE STOCK/EUA: CIA 107 Livro/Nave/Ovni (le bateau (l)ivre) Curioso é notar, já em meados da segunda década desse novo milênio, o processo contínuo e mutante que envolve as políticas da arte e do pensamento. Observa-se uma incessante emergência de poéticas no descortínio de um mundo permanentemente nascente. Toda uma transição planetária, posterior às desconstruções históricas e às implosões de suas estruturas (depois dos pós), propaga-se a partir de issurações do que até então era compreendido em âmbitos ontológicos, e a epistemologia contemporânea, assaltada num transbordamento ao não-sabido e ao inexperienciado, passa a se situar num ambiente irrompido e em distensão. Trata-se de um momento inelutavelmente luente/lutuante, no qual se tem a impressão vertiginosa de certa deriva pelo tempo em seu jorro irresistível, a atravessar a coexistência confusa de passado, presente e futuro, a névoa e o embaçamento das dimensões cidade/campo, centro/ periferia, interior/exterior, atual/virtual que caracteriza qualquer tentativa de apresentação do presente em WWW. como uma nebulosa conurbação de franjas espaço-temporais. 108 ABATE Enquanto naufragamos na enxurrada tecno-informacional milenar, o livro – como suporte, meio ou dispositivo onde se hospedam diferentes tipos de registro e escrita – vai tornando-se um esteio de instalações. Uma espécie de transporte provisório para navegação urgente; blocos erráticos transformados em embarcação, que seja, à qual resíduos e fragmentos de matérias e memórias, dados e estilhaços coletados em percurso são incorporados segundo o corte operativo feito pelo nauta/autor/artista, transitando uma dimensão (sempre) singular e reigurada do tempo. Tal viés topológico do presente, no entanto, consiste numa espacialidade multitópica e heterogênea quase completamente administrada, já que, de certo modo, o mercado englobante e hiperinclusivo das artes, literatura e ilosoia, impõe dinâmicas analíticas deslocadas. E possibilita, na proposição deste estudo, um trabalho de disseminação investigativo sobre um fundo de dispersão, marcado por simulacros e provisoriedade, no qual se distribuem pacotes de consumo sob comandos diretivos e sistemas de rastreamento. Assombra essa geograia da (de agora em diante) mais nova/velha aldeia global uma paixão comum e arcaica. Trata-se de certa paixão inerente ao mundo técnico-historial, obcecado por verdades e notícias de todas as ordens epistêmicas e místicas, tal como postula o multiculturalismo do Ocidente, e que hoje implica o sistema nervoso do processo globalizante: paixão pela imagem de si replicada ao ininito numa “pulsão de teste”, segundo a irreparável expressão de Avital Ronell (cf. The Test Drive, 2005). Paixão estendida em agendas e cartograias sem-im de encontros e viagens, comunicações, comércios e exposições de todas as espécies. Testes de alteridade servindo sobretudo às campanhas de guerra, às economias de subserviência capitalistas. Paixão de uma existência intercambiante, em rede, issurada pela experiência. Uma interessante proposição de Philippe Lacoue-Labarthe, no ensaio “O nascimento é a morte”, publicado em Duas paixões: Artaud, Pasolini (2004) e Agonie terminée, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot (2011), sublinha esse traço maníaco-experimental do Ocidente: “Duas ‘cenas primitivas’ dominam, é provável, o Ocidente. E a sua literatura. Ou o Ocidente como literatura. // São ambas instaladas – para sempre – pelos poemas homéricos. É a cena da cólera (Aquiles, A Ilíada); e é a cena da experiência, literalmente da travessia de Arte, Literatura e Filosoia em devir um perigo – um termo marítimo, como sabemos (Ulisses, A Odisseia). O Ocidente é colérico e aventuroso, ‘experimental’ [...]” (Lacoue-Labarthe, 2011: 121). Interessante proposição na medida em que conjuga a história do mundo ocidental à literatura – vale sublinhar que Histórias, de Heródoto (seus relatos de viagens e guerras), foi uma obra recebida, na época, como nova forma de literatura –, e essa à travessia marítima, ao erro. A marca experimental, portanto, inscreve-se nas células da história desde as primeiras viagens da literatura; está ligada aos relatos e registros que, deslocados de sua língua ou ambiente, são postos à prova no contato/reação com o exterior. Ou seja, desvela-se desde sempre em negociações e jogos sobre limites e fronteiras, nos mais variados testes de passagens, resistências e gerações alternativas; no meio, em permeações, onde a própria ideia de alteridade implica um luxo de trocas e mutações incessantes, movimentos para fora de si que são verdadeiras alienações. É nesse devir-outro alienante pelo meio (na dissolvência) que a narração germina, quando a diferenciação da história no espaço-tempo se escreve em extravio e disseminação, de onde se torna comum a ideia de que numa narrativa igura sempre alguma monstruosidade, já que não se narra um estado, mas, sim, interregnos. A literatura tem lugar somente em colapso, quando algo desperta de sua condição autorreferente, de letargia, e põe-se em movimento. É na mudança de estado que ela se difunde, espectro transitivo, de modo que toda experimentação, alteradora, já constitui uma matriz ictiva. Embora esse ímpeto experimental esteja íntima e nervosamente ligado à nossa memória (literatura) mais remota, nota-se que, na modernidade, ele toma uma dimensão sem precedentes. Autores hoje cultuados, como Baudelaire, Poe, Rimbaud, Mallarmé, Lautreamont, Nietzsche, deram corpo, à época, para uma certa atitude transiguradora radical, e até mesmo sintomática, da vida cosmopolita no calor de sua emergência. Levaram aos extremos a atividade experimentadora, subvertendo inclusive a axiomática positivista, na medida em que suas obras mantiveram-se na mais alta tensão do risco especulativo, adquirindo o aspecto/ espectro incontornável de uma hipótese permanente, extravasando os critérios de veracidade e falsidade que até então enquadravam todo tipo de análise crítica/clínica. A lânerie baudelairiana, em meio às barricadas e conlitos de classes na Paris do Segundo Império, no auge do capitalismo, assalta a atividade poética de gabinete, deslocando-a para 109 110 ABATE 1 Cf. Hakim Bey, “A Arquitectonalidade da Psicogeografia ou os Hieróglifos da Deriva”, disponível em: <http://imagomundi.com.br/cultura/arquitetonalidade.pdf.>. Acesso em 23 out. 2015. as ruas, introduz na confecção do livro a mesma dinâmica deambulatória adotada pelo lâneur, “fazer botânica no asfalto”, sentindo-se em casa na rua “tanto quanto o burguês entre quatro paredes” (W. Benjamin). O microcosmo que é a cidade apresenta-se, então, como espaço de abertura ininitamente transitório, palco/passagem de acontecimentos sinistros e aberrantes que acabam por ativar, na literatura, uma paixão investigativa dependente da notiicação diária de enigmas e redundâncias. Benjamin sublinha a conexão entre a lânerie baudelairiana e o conto O homem da multidão, de Poe, narrativa onde o ilósofo vislumbra a “radiograia de um romance policial”. Trata-se sobretudo de uma eventualidade que já é extrapolação do sentido e do âmago metafísico do experimento, de seus modelos que relutam por preservar um viés constativo e sentencial sobre os acontecimentos. A lânerie – como capacidade de “esposar a multidão” (Baudelaire) – inlama uma manutenção da desconiança imprescindível ao suspense (à epoché husserliana), às exigências mais rigorosas e abrangentes do teste, asssim como a vida na cidade – com sua arquitetura irregular e labiríntica, onde a tecnologia passa a proporcionar uma convivialidade disjuntiva e cada vez mais contraída entre as diversas épocas da história humana – delagra uma consciência de initude ilimitada, deserdada de todo lastro essencialista, na qual a memória “perde o seu peso e assume um aspecto carnavalesco”1. Às artes, literatura e ilosoia impõe-se um chamado de presença e atuação corpo a corpo com esse contexto multitudinoso e fantasmal (fantástico?), com a propagação de uma cultura nômade concomitante à apropriação maquínico-capitalista do planeta. Rimbaud talvez seja o poeta que melhor tenha absorvido e performatizado essa conjuntura. O conhecido enunciado da carta visionária de 15 de maio de 1871, “O poeta se faz vidente por um longo, imenso e impensado desregramento de todos os sentidos”, enceta um índice entoativo, vocaliza mesmo uma certa reprogramação ética/estética da segunda metade do século XIX, pautada, então, na dilatação perceptiva e na intensidade da voz por apreender e evocar a realidade em suas múltiplas camadas e encarnações. Um livro como A gaia ciência (1887), por exemplo, prenúncio de uma tragédia, anunciador de uma ciência antinômica (incipit parodia) extremamente hipotética, torna-se imprescindível ao mapeamento dessas mutações cognitivas aceleradas desde a Arte, Literatura e Filosoia em devir modernidade. Nietzsche opera, aí, minuciosas subversões na imagem do pensamento ocidental – “precisamente esta arte da transiguração é ilosoia” (Nietzsche, 2012: 12) –, implementando um espaço de irrestrição à experiência ilosóica, tomada agora em sua superfície aforismática, fragmentária e incoercível. O surgimento, com A gaia ciência, de uma ciência sem-deus, enunciativa de uma comunidade por vir órfã – “Nós, os sem-pátria...” –, suscita um ambiente de resistência desvinculado de toda familiaridade ou instituição dialética, estruturada em critérios e categorias de presença/ausência, verticalidade/horizontalidade, visibilidade/invisibilidade, pertença/não-pertença; translada a experiência pensar-escrever de uma ética-estética campal, de confronto, liberando-a para relações mais permeáveis entre linguagem e pensamento, proporcionando um andamento desenquadrado à escrita, mobilizada então pelo contágio. Isso implica uma manobra elementar para pensarmos o espaço experimental da literatura que se abre na modernidade, sem reservas, para melhor nos situarmos na instância da História que se degenera em histórias quaisquer, no momento em que os empreendimentos históricos se revelam em sua ab-errância. A substituição do tempo historial, determinado por sucessões lineares, pelo tempo hipotético indeterminado, culmina com a instauração, assim, do próprio espaço-tempo do livro – suspensivo, excessivo, não-substancializado, dissimulador de porvires. É nessa sintonia que um livro (astrolábico) como o de Mallarmé, Um Lance de Dados (1897), a im de imprimir na extensão inita das páginas uma dimensão cósmica, descortina, segundo Blanchot em O livro por vir (1959), “um novo entendimento do espaço literário”: no desabrigo da noção de obra, situando-se numa abertura sem im que implica sua própria supressão, na urgência de “reunir a ininita diversidade”, de levar adiante uma “reunião pela dispersão” que já é “o futuro da exceção” (Blanchot, 2005: 343, 345 e 354). Argutamente recebido pelo concretismo no Brasil, o inquieto e inacabado projeto do Livro de Mallarmé, “ou bloc, como o poeta denomina, refoge completamente à ideia usual de livro e incorpora a permutação e o movimento como agentes estruturais. ‘Le livre, expansion totale de la lettre, doit d’elle tirer, directement, une mobilité’, escrevia o poeta em ‘Le Livre, instrument spirituel’ (1895), como que apontando para uma nova física do livro” 111 112 ABATE (Campos, 1969: 18). Galáxias (1974), de Haroldo de Campos, ressoa de modo signiicativo com essa nova física: “um livro de viagem onde a viagem seja o livro”. Observa-se, então, a fenda espaço-temporal que o livro potencialmente persiste em abrir. Desde suas origens, a (i)materialidade livresca nomadiza essa ubiquidade ambivalente, capaz de estar presente, circular pelo tempo histórico e, ao mesmo tempo, manter uma viagem (nas extensões de uma outra genealogia, silenciosa, irreconhecível e inominável) por fora dos gonzos. Assume uma qualidade ambígua de nau/nave ideal, máquina do tempo indócil: “o livro é o que está fora do livro / um livro é o vazio do livro a viagem é o vazio da viagem” (Galáxias). Nas décadas de 1960-1970, outra mutação no modo de apreender e produzir cultura, agora coadunada a um instigante processo de satelização do mundo, reverbera diretamente nas técnicas de composição do livro. Interessante perceber que junto à crescente mediatização dos diversos segmentos de produção, distribuição e consumo; junto à progressiva planiicação global na base de uma sociedade de controle, segundo o termo deleuziano, o espaço onde o pensamento e a arte vêm se inscrever se torna cada vez mais desbordado e irreconhecível, incapturável. Uma explosão em diversas vertentes da arte ambiente (site-speciic) acaba por se desdobrar em manifestações artístico-culturais intrusas/entrosadas ao trânsito cotidiano. Gradativamente vão se apagando fronteiras e critérios que separavam arte e vida, icção e realidade, e as próprias deinições de espaço público e privado começam a mesclar-se e confundir-se na geração de uma espacialidade indistinta ainda mais hesitante e complexa. Uma técnica de escrita como a cut-up – apreendida das artes plásticas e desenvolvida por William Burroughs a partir do uso de recortes/colagens de textos e registros de imagens/sons os mais diversos – desencadeia uma concepção narrativa que expande e dissemina a memória ao ininito. A delagração de uma mentalidade contagiada pela linguagem audiovisual (pela revolução eletrônica) acelera toda uma remodelagem nos sistemas de armazenamento de dados e arquivamento (mnemotécnicas), tornando-os cada vez mais portáteis e maleáveis. Nesse curso, o livro vai adquirindo um aspecto compacto de conglomerado narrativoconceitual, apto a veicular e presentar, em qualquer ambiente, uma ampliicação da Arte, Literatura e Filosoia em devir consciência experimental e da sensibilidade estética em meio à tendente massiicação monolítica da existência. A tarefa transiguradora da arte, literatura e ilosoia, diante da provável pasteurização sociocultural pelo mercado, se liga então ao urdimento de saídas dessa massa informe que se impõe como locus à criação (reduzida, portanto, à criação de nichos diversos de consumo), seja através da pirataria ou de invectivas apropriadoras. O espaço do livro torna-se um espaço dissinulativo de pilhagens, usos impróprios e incomuns de signos, imagens e conceitos, contra toda forma-modelo de propriedade e barragem que impeça a livre navegação do autor/nauta/artista pelo cyber mundo. Tornase uma nau pirata na medida em que o espaço de exposição das artes plásticas começa a migrar para instalações provisórias e ambulantes exteriores aos museus, nos interstícios das ruas da cidade e na natureza. A produção artístico-cultural entrança, portanto, à produção de meios de vida, de modo que a maneira do artista habitar e se deslocar pelo espaço já é constituidora de seu trabalho de resistência. Exemplo dessas extensões artístico-culturais, da satelização política do pensamento e da arte, Hélio Oiticica já em 1966 descrevia assim seu Programa ambiental: “Museu é o mundo; é a experiência cotidiana; os grandes pavilhões para mostras industriais são os que ainda servem para tais manifestações: para obras que necessitem de abrigo, porque as que disso não necessitarem devem icar nos parques, terrenos baldios da cidade...” (Oiticica, 1986: 79). Um livro publicado em 2013 como Conglomerado Newyorkaises – calhamaço em que se hospedam notas e textos em torno de programas de instalações, meditações e poéticas acerca de literatura, ilosoia, música, cinema, televisão e vida na cidade, produzidos por Hélio Oiticica entre 1971-1977, temporada na qual o artista viveu em Manhattan com bolsa da Fundação Guggenheim – sintetiza uma atuação e sensibilidade turbilhonantes. Apresenta uma apreensão viva do momento de estilhaçamento da história, nas fraturas de uma “história que, no mínimo, não se atém a si mesma, uma história que não se mantém, uma história que agora [maintenant] não se segura mais pela mão [main-tenant]” (Derrida, 2004: 34). Esse livro de H.O. – vale lembrar que o artista igurou como tripulante na edição única da revista Navilouca (1974) –, editado e publicado praticamente quarenta anos após seu projeto, testemunha um devir-ovni (objeto verbivocovisual não identiicado) do livro, 113 114 ABATE um espraiamento das artes, literatura e ilosoia na arquitetura de um condutor intelectivo feito de recortes e combinações indiscriminadas de materiais. Talvez o atraso editorial não seja por acaso. Hoje já pressentimos que cada internauta, a partir da caixa de ferramentas e inesgotável banco de dados que é seu notebook, está potencialmente apto a transformar-se no engenheiro de uma singular máquina de viagem, prestes a tornar-se um alien da comunidade sideral que vem; e que o livro, depois de suas mortes todas, continua sendo o veículo. Gostaria de permanecer, agora, em dois livros, de Mauricio Salles Vasconcelos, Stereo (2002) e Telenovela (2014), cujo traçado, que vai da primeira à segunda década deste milênio, orientará possíveis extensões analíticas às proposições brevemente introduzidas acima. FOTO GUSTAVO VEIGA STEREO, TELENOVELA: painéis da finitude Arte, Literatura e Filosoia em devir Pensar o lugar da escrita, sobretudo desde o espraiamento satelizado do mundo, exige ao menos atravessar uma zona desconcertante e estrepitosa, de interferências, ruídos e rumores; demorar numa experiência de distorção áudiovisual que seja suiciente para abrir a sensibilidade à captação de arranhões, borrões e rasuras que compõem a historiograia (em potencial) contemporânea. Um desregramento de todos os sentidos, capaz de sacriicar o sujeito e a identidade, de desvirtuar e confundir as mecânicas centralizadoras da vida (mantenedoras de certo sonambulismo social, enlevado por pacotes de consumo distribuídos em circuitos de pesquisas de mercado), impõe-se como método à leitura-escrita de agora. Pois ica-se atado ao continuum de certo espaço acústico ressonante enquanto não se opera uma minuciosa luxação no ouvido (diria no corpo inteiro) ilosóico, segundo o programa nietzschiano de Derrida em Margens da ilosoia, para recepcionar outros chamados que não apenas os das ordens informadoras e inquestionáveis – proclamações de homenagens e referendamentos previsíveis. Seria preciso atravessarmos o frame técnicoestatizado/diretivo-retiniano da cultura moderna, em sua disposição monolítica sujeitoobjeto, receptor-emissor, passivo-ativo, para plugarmos nossa sensorialidade às extensões audiovisuais mais estremecedoras, e, então, transcrevermos as radiâncias televisionadas até saturá-las, sulcando-as na tentativa de criar outras tramas descontínuas e intervalares. Seria preciso levarmos adiante o projeto escritural derridiano da différance: transcorrer as áreas de vizinhanças entre os saberes, até luxar “o corpo mesmo dos enunciados na sua pretensão à rigidez unívoca ou à polissemia regulada. Válvula aberta a um duplo entendimento, não formando mais um único sistema” (Derrida, 1991: 26). Um ambiente problemático e desabrigado nos aguarda, feitas as desconstruções todas. Qual essa válvula aberta a um duplo entendimento, convocando-nos a pensar uma ética/estética dissensual e antinômica, há uma autonomia destituinte para as emergentes singularidades maquínico-operativas. Como atuar com a ininidade de signos lutuantesque nos atravessam e incitam à deambulação pensativa mais borderline, à passagem de uma margem a outra da realidade sempre em contração-expansão? O que fazemos com o monumental residuário de objetos, produtos e mercadorias contingentes de um mundo pós-industrial e pós-apocalíptico? 115 116 ABATE Tais questões, que até há pouco pareciam secundárias às artes, à literatura e à ilosoia, e que foram denegadas durante muito tempo pela economia artístico-cultural – por se tratar de “física ilusória do devir”, do mundo sensível das cópias e aparências, ordem dos simulacros e das máquinas –, hoje reclamam atenção para o cerne instrumental e inautêntico da produção humana, para o horizonte conurbado ao qual nos dirigimos e já habitamos em dissociação a qualquer matriz originária, num adeus deinitivo ao paraíso. Aponta para um tempo da ubiquidade e da distopia, no qual o passado é reigurado a cada passo na implementação de uma historiograia outra, traçada e retraçada segundo uma sucessão sem im de presentes. CÂMARA DE ECOS, tal a ressonância de um livro – Algaravias (1996) de Waly Salomão. Esse tempo que se abre desde a segunda metade do século XX, e que contrai uma vicissitude deinitiva na passagem intermilenar, sobretudo a partir do 11 setembro de 2001, vela agora seu poente (os ins do tempo), sob o qual passa a suplementar uma barafunda sonora e imagética do excesso – a telecomunicação, os luxos e rumores mais ininteligíveis que cingem a terra, a varredura do globo em megapixels etc. Tempo no qual desponta uma initude irreparável, enunciada no poema “Carta aberta a John Ashbery”: A memória é uma ilha de edição – um qualquer passante diz, em um estilo nonchalant, e imediatamente apaga a tecla e também o sentido do que queria dizer. Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser levado junto de roldão. Onde e como armazenar a cor de cada instante? Que traço reter da translúcida aurora? Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas? O perfume, acaso, daquela rosa desbotada? Arte, Literatura e Filosoia em devir A vida não é uma tela e jamais adquire o signiicado estrito que se deseja imprimir nela. Tampouco é uma estória em que cada minúcia encerra uma moral. Ela é recheada de locais de desova, presuntos, liquidações, queimas de arquivos, divisões de capturas, apagamento de trechos, sumiços de originais, grupos de extermínios e fotogramas estourados. Que importa se as cinzas restam frias ou se ainda ardem quentes se não é selecionada urna alguma adequada, seja grega seja bárbara, para depositá-las? ... (Salomão, 2014: 235) Impossível não pensar nas frações invisíveis, da vida que se perde na insuiciência, e até mesmo incompetência documental, de um modo de fazer história neurótico, centralizador e ixado em aportes legitimados/legitimadores de registro (numa escrita excludente/excretora de tudo o que não lhe serve – os chamados imateriais – em proveito apenas de certa materialidade arbitrária e propensa). Impossível não pensar nesse eu esgotado e espantado com a não evacuação do mundo após tantas explosões/implosões sobre sua superfície. Envolve-nos, nessa passagem, uma impressão de encerramento da história imperativa, a suspeita de se adentrar numa noite sem estrelas, câmara de ecos onde qualquer arranjo vibra e reverbera sons e cores de um tempo que já não se sabe mais se passado, presente ou futuro. Tempo esgarçado e plasmado à simultaneidade de uma explosão cósmica: eterno presente. Toma-nos, evolado às sensações de déjà-vus, certo transtorno afásico, talvez decorrente um espaço-tempo intersticial e falho que de agora em diante se instala e inaugura mesmo uma ausência, a partir da qual perdemos o contato imediato com a 117 118 ABATE realidade, decorrente de um espaço-tempo mediado e tecnologizado, da radiação de sistemas de transmissão audiovisuais que se impõem entre o sensível e o inteligível sem intervalo, subvertendo toda ordem de visibilidade focal-objetiva na geração de uma presença multifocal e difusiva – potente tanto para replicar o controle quanto para assolar, de sua aparente posição inofensiva e excêntrica, as organizações mais poderosas. É nesse embate que um livrinho como Stereo (2002), de Mauricio Salles Vasconcelos, surge. Publicado pela já extinta editora Ciência do Acidente, Stereo se apresenta com a força acidental de um transbordamento, na irrupção de uma continuidade indiferente, na enunciação de um extracampo, de uma passagem para além do tempo encerrado nos calendários, ilha de edição desde o instante em que ambienta uma faxina no quarto do juiz, como se lê em sua primeira narrativa, “Faxineira”: “O homem inventa seu destino todo dia” (Vasconcelos, 2002: 09). Cindido e cerzido por duas séries, películas e vinis, o livro recenseia, através de 55 módicas icções, todo um mapa potencial, composto por linhas fotogramáticas, fílmicas e sonoras, na passagem pelo im/começo de milênio. Cada narrativa instancia um lugar, uma issura de promanação à literatura e atualização do livro; situa-se em instantes de arranjos e coordenadas singulares, expropriados de qualquer enquadramento pré-estabelecido ou de condições internais, inventariando traçados mutantes e qualidades de ser ainda não modeladas. Interessante observar, nessa virada, como que o espaço da escrita vai se constituindo cada vez mais rompido dos encadeamentos das instituições do literário, vulcânico. Relações, por exemplo, entre Stereo, Mínimos, múltiplos, comuns (2003), de João Gilberto Noll, e um livro como Retour déinitif et durable de l’être aimé (2002), de Olivier Cadiot, inevitavelmente apontariam para uma zona de pensamento nebulosa em torno do objeto literário, para uma desprogramação mesmo desse objeto na laboração de máquinas ictivas implacáveis. O que há em comum nesses três livros, desde uma economia do espaço escasso/expandido, é também o que os torna insólitos e inapreensíveis: certa compactação pelicular dos rumores e transtornos inisseculares, certa erupção arquipelágica apontando “para tudo o que não está ali” (Vasconcelos, 2002: 33). Entramos em livros como esses num contato com traduções/transmissões audiovisuais rompidas de seu script, em reinicialização pós bug milenar, com um framework desenvolvido Arte, Literatura e Filosoia em devir em meio a panes operacionais na decorrência do desastre. São icções que rizomatizam seu instante de reboot. Robinsonadas (vale evocar aqui o poema “Romance”, de Rimbaud, num devaneio amoroso em curso que substitui o exemplo viagem-cultural de Ulisses pela selvageria inexemplar de Robinson: “Le coeur fou Robinsonnes à travers les romans”) capazes de levantar as imagens e os elementos do mundo televisado em voos excepcionais, inimagináveis, que implicam a “perda de outrem” numa descoberta perversa da superfície do mundo, segundo a leitura de Deleuze sobre Tournier: “Não é o mundo que é perturbado pela ausência de outrem, ao contrário, é o duplo glorioso do mundo que se acha escondido por sua presença” (Deleuze, 2006: 328). A escrita de Stereo se ativa numa jubilação cosmonáutica, celebradora do espaço telescopado, visto à distância na medida em que qualquer ponto de vista se torna um ponto de vista remoto, caleidoscópico, móbile à deriva: transcrições de um olho partícula-sideral. Tratase de um livro sidéreo, disco comprimido de amontoados e acúmulos históricos sobrevoando o trânsito intermilenar, absorvendo e propagando essa nova dimensão do espaço “Público”: “espaço desprovido de beiras, ameaçador e aberto” (Vasconcelos, 2002: 11). Vale a pena transcrever uma narrativa inteira, como “Novela”: Na última vez que liguei a tv Jana encaminhou o jovem Arturo para uma chantagem fazendo trepidar o vibrador contra seu próprio corpo, um gozo violento e solitário, insuportável para o fogoso e zilionário adolescente, amarrado a uma pilastra de papel. Na última semana assisti ao enterro do rapaz rompido com o pacto o corpo da mulher. Três dias atrás preparei-me para a tv mas tive a vidraça atingida pelo tiroteio dos traicantes de geleia geral, o nome da Saúde entre os prisioneiros desta favela ainda ontem liguei a tv e no meio do ressurgimento do jovem Arturo a expandir seu fogo adolescente por sobre o tapete de ervas e cruzes do cemitério tive que recorrer a uma oração nascida do sangue borbulhante que eu mesmo fabricava a me derramar no sinteko, com os tacos soltos. Sob a última notícia de que todos na novela iriam morrer um dia (Vasconcelos, 2002: 10). 119 120 ABATE Assim, M.S.V. nos apresenta a trama novelística, numa instalação elementar estonteante, numa ambiência politemporal gerada na descontinuidade do espaço-tempo hegemônico. Cada peça em Stereo imaniza esse tom de última chamada e aparição urgente, opera no devir do presente até sua fosforescência, liberando o desejo para um passeio alegre nesse “espaço desprovido de beiras”. “O que deine potencialmente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao ininito, em todos os sentidos e em todas as direções” (Deleuze e Guattari, 2010: 514). Há aí uma organização minuciosa do delírio, uma transdução maquínica de certa “genealogia Cósmica do esquizofrênico [...] na produção de objetos esquizofrênicos inconsumíveis” (Deleuze, 2006: 324). O método compositivo do autor de Stereo inventaria toda uma topologia das máquinas artístico-literárias, em recorrências que poderiam ir de Duchamp a Kafka, Schwitters a Dubuffet, Buster Keaton a Beckett, Picabia a Basquiat, Lucio Fontana a Georges Perec, Hélio Oiticica ao punk ao rock ao blues ao jazz; de Derrida à música eletrônica, a Godard etc. Evocamos alguns nomes para dar cabo ao anseio de pressentir esse horizonte estelário de imagens e sons ao qual ilosoia, arte e literatura se dirigem em profusão, numa experiência inédita e absolutamente para fora da órbita do já-sabido. Seria preciso despertar para essa zona rumorosa e anônima na qual o narrador se situa no instante em que liga a tv; escutar/pensar com o corpo inteiro a emergência de uma tal sexualidade vibratória insuportável ao (super)humano – “amarrado a uma pilastra de papel”. Sobretudo, seria preciso estar atento àquilo que nos interrompe enquanto lemos uma icção na qual o narrador vai ligar a TV e é desviado por um tiro na janela. Que tipo de violência tem nos descontinuado? Em que momento um luxo se rompe, e pelo quê? O que é que está acontecendo para que eu sempre seja assaltado pelo exterior no instante mesmo de ligar um aparelho ou abrir o jornal? “Nunca se saberá o que acaba de acontecer, sempre se saberá o que irá acontecer – estas são as duas inquietações diferentes do leitor frente à novela e ao conto, mas são duas maneiras pelas quais o presente vivo se divide a cada instante” (Deleuze e Guattari, 1996: 64-65). As narrativas de Stereo se arranjam nesse lugar issurado e povoado de signos que é o presente em sua abertura ambivalente: “A rua é o alvo; aqui eu ico [...] Não há mais certeza Arte, Literatura e Filosoia em devir de onde vem essa onda simultânea de calor e horror” (Vasconcelos, 2002: 58). Jogam com as tensões da novela (o que aconteceu?) e do conto (o que acontecerá?), engendrando-se num vão de ausência ontológica em que a prosa airma uma luência de música ambiental-escultórica, alargadora dos limites do texto literário, conigurando seu aspecto incognoscível mesmo de ovni assolador do “ambiente [que] se autoplagia”: “Porque a escultura não acumula apenas em si um espaço escultórico. Ao propagar-se, promove o nascimento de uma imagem de totalidade ambiente, inicia um discurso visual que engloba as formas vizinhas” (Helder, 1987: 74). Não se sabe, portanto, o que são essas pequenas issura/icções irredutíveis a um gênero ou instituição do literário. Se sabe apenas que o leitor escapará aí para instantes suspensos, esquinas acústicas da “noite tomada pela música-do-mundo” (Vasconcelos, 2002: 60), deparando-se com certa economia instauradora de uma posição transversal e vibratória do texto. Na narrativa “Acústica”, temos uma pista sobre o que move a escrita em Stereo: “Conjugo galáxias de sintetizadores para habitar por poucas horas uma quina superpovoada do Monopólio” (Idem). De todo modo, esses instantes iccionais, para lembrarmos a recorrência aos Mínimos múltiplos comuns de Noll, são implementadores de uma nave-ovni capaz de empreender viagens por fora da agenda empresarial e turística do Ocidente, de escapar às excursões de certo experimentalismo psicológico, narcísico, que se desdobra desde Ulisses, centrado sempre em projeções e transposições de uma cultura para outros lugares, em viagens que implicam um eterno retorno às origens – o insaciável desejo das expansões comerciais. “Pintamos o mundo sobre nós mesmos, e não a nós mesmos sobre o mundo” (Deleuze e Guattari, 1996: 73). Stereo deinitivamente rompe com as cadeias signiicantes e sistemas monetários constituídos por pseudo-cortes, sempre monitorados e pré-deinidos, tal como se observa uma sexualidade “já vestida” imperando na indústria pornô (cf. os contos “Privê” e “Os igurantes”). Promove uma verdadeira evasão pela escrita, êxodo sem retorno, na medida em que erige uma linguagem e sensibilidade apreensoras do mundo em sua nudez, desprovida decomandos e coordenadas. Ainal, norte ou sul, centro ou periferia, são sempre e normalmente norte ou sul, centro ou periferia para alguém. Rachado, o espaço literário, 121 122 ABATE com Stereo, inscreve-se nas linhas espiraladas do disco compacto, sem rosto nem memória, e a escrita emerge no vórtice noturno coincidente com a planetaridade do mundo. Que aconteceu? Que acontecerá? Foram necessárias catástrofes e uma formidável explosão, diz Deleuze em “Michel Tournier e o mundo sem outrem”, para que a terra e a natureza tomassem seu lugar duplicado, elementar. No fundo da literatura, das artes e da ilosoia, não resta moral alguma, mas cantos ressonantes de um devir sem repouso. “Nada além de elementos. O sem-fundo e a linha abstrata substituíram o modelado e o fundo. Tudo é implacável” (Deleuze, 2006: 316). Assim chegamos, pois, à questão do romance – especialmente este de Mauricio Salles Vasconcelos, Telenovela (2014): um acontecimento ainda por vir e já ocorrido? A sinopse estampada na capa do livro nos situa: “A morte de Mãe Sara, uma médiumvidente, desencadeia uma série de transformações no interior de uma pequena família. Mãe de Aurora, uma renomada professora de Literatura Comparada, e de Aranha, funcionário público tomado pelo vício da cocaína e por memórias da juventude em um subúrbio carioca, Sara não cessa de exercer sua inluência. De retorno à casa materna, os ilhos realizam um lento trabalho de luto diante da tela da TV, que transmite a novela Capital de emoções, acompanhada por Mãe Sara no instante de seu falecimento”. Certa personagem (uma conidente), Da Guia, abisma-se logo na primeira página: “– Nós duas nos sentamos aqui e conversamos por cima do que passa na TV. Todas as noites. A gente se reunia. Olha, já estou falando em passado, e aconteceu ainda agora” (Vasconcelos, 2014: 9). A escrita de Telenovela se deslocará de um plano a outro da seriação ininita que se tornou a realidade doméstica, tomada na dimensão planetária em que local já é global e tudo ocorre num único e mesmo dia telemediado, numa extensa insônia; eterna velação do presente: mãe, morte, vidência, luto; uma casa onde as raízes daninhas do vício encontram repouso para implantar/enterrar cada vez mais seus cacoetes históricos em cultos e rituais; a televisão – caixa propagadora de passados recentes apresentados sempre como a última notícia, emissora de anúncios sobre anúncios de um mundo por vir que, no entanto, há muito já veio, sabe-se lá desde quando –, móvel instalado aí, nesse cerne, destruindo imperceptivelmente a própria Arte, Literatura e Filosoia em devir ideia de casa enquanto espaço privativo; o tráfego/tráico de informações, mercadorias, drogas etc. NOSSA MÚSICA. E a literatura e a vida que jorram e se tecem sobre/entre a trama radioativa de uma telenovela, diga-se, bem brasileira: Capital de emoções. Nesse romance de Mauricio Salles Vasconcelos, teoria e vida se entrançam de um plot a outro, num passeio que vai do subúrbio do Rio à capital do país, para depois espraiar num Encontro América Global (Espaços e Extensões) no México. A escrita deambula de site a site, orbita os nichos delirantes onde se hospeda, com certa familiaridade estranha, de inquilino do mundo, o telespectador/usuário, o viciado. Amontoa transcrições/anotações do que está acontecendo às voltas durante o movimento, realizando “um passeio fora do mapa de homenagens e referendamentos” (Vasconcelos, ibidem: 147). Em Telenovela talvez seja efetuado um travelling ainda inédito disso que é marca permanente – embora sem deixar vestígios – no mundo: a literatura, em sua deriva imperceptível pela noite-satélite da cultura mundializada, no traço de uma escrita “que é a decadência do querer, a perda do poder, a queda da cadência” (Blanchot, 1987: 17): desde sempre, o desastre. Telenovela se liga a uma memória sutil do romance no Brasil, que passa ao menos por Lugar público (1965), de José Agrippino de Paula, e A fúria do corpo (1981), de João Gilberto Noll. Conecta-se a uma topograia subterrânea, problematizadora de certa iccionalidade em curso no devir-mundo do Brasil. Aliás, há um ponto de convergência onde a linguagem aí se desabriga, de uma manobra textual em diálogo com o tempo presente que irradia desde Geleia Geral, coluna assinada por Torquato Neto na Última hora, nos anos 1970, e que atravessa A fúria do corpo e Stereo até ser atualizada em Telenovela. No romance de Noll, tem uma cena em que o narrador sobe um morro da Cidade de Deus junto com um menino envolvido com o tráico. Já no topo vão saindo dos barracos traicantes de cocaína que são leprosos armados com escopetas. Após uma rodada confusa de “cheiração” entre corpos estropiados, o narrador e o menino descem o morro. Logo depois o menino some e o narrador continua sua deambulação atrás dele; é detido pela polícia e levado para um lugar obscuro onde outros prisioneiros são torturados. Alude-se ali, frequentemente, ao fantasma Esquadrão da Morte. Depois de um tempo ele é solto 123 124 ABATE e enquanto perambula, num indiscernimento temporal entre noite/dia por Copacabana, depara-se com a foto do menino no jornal: Estranho o fervilhar da noite assim tão cedo. Pergunto as horas e a moça responde já passa da meia-noite. Estranho mais ainda o adiantado da noite porque a minha lentidão se choca com a realidade. Por onde andei tão lento que nem percebi? Vou até a última rua de Copacabana, entro na Atlântica, vou, vou, dobro na Constante Ramos, paro na banca da esquina de Copacabana e O Dia clama em sua manchete: GAROTO TRAFICANTE ASSASSINADO POR GANG RIVAL; embaixo a foto do menor com a tarja nos olhos e a ferida no coração; começo a ler a notícia e ponho o dedo sobre as iniciais do menino, não quero saber, ele é o menino, nada mais que o menino, penso no atraso da notícia, atravessa no ar o cheiro nojento da mentira e o atraso está explicado pois é preciso tempo para forjar a mentira, o menino não foi morto por gang nenhuma, o menino estava morto na casa da polícia e a sua morte foi coisa da polícia – mas não, não quero lembrar, que a lembrança permaneça num limbo qualquer, eu não conheci menino nenhum – e o menino existiu? –, meu êxtase com o menino é um sonho coagulado no passado, sou apenas eu nesse momento e preciso andar, continuar andando e não tenho documentos, dinheiro, sou apenas esses passos agora apressados pela Copacabana em direção nenhuma, não me perguntem, nada me diz respeito, sou fulano, sicrano, beltrano, ninguém. Eu vou. (Noll, 2008: 76-77.) É intrigante a força com que a narrativa explicita a tensão entre o informe publicitário da realidade, com seu ímpeto para forjar uma notícia deinitiva e indiscutível, e a luidez da escrita novelística dirigindo-se ao seu desaparecimento no anonimato diante de uma história impostora, amparada pela ordem polícia-estado-mídia, como testemunha oicial. Mais intrigante ainda é perceber que essa saída de cena da literatura se dá apenas como dissimulação e esquiva do confronto, pois, com o passar do tempo, é essa escrita que emerge ainda mais forte e metamorfoseada, na medida em que os meios oiciais de comunicação continuam no mesmo campo vazio onde patinam e digladiam, numa espoliação diária por Arte, Literatura e Filosoia em devir resolver qual versão será impressa como “a notícia mais quente” no palimpsesto do noticiário. Há uma potência subterrânea das artes, da literatura e da ilosoia, sobretudo na América Latina, para transportar e manter redivivas histórias apagadas pela assepsia de economias políticas colonizadoras, estabelecidas na produção de sonhos e fantasias, na venda de uma história fundada no esquecimento e na indiferença de classes. Nota-se o aspecto ovni de uma narrativa como “Novela”, citada acima, num momento em que o governo norte-americano forjava justiicativas e discursos apoiados no pânico geral para criar estratégias militares numa “guerra preventiva” tornada, então, sintoma do mundo ocidental contemporâneo. É muito curioso quando, nesse ardor bélico, o autor evoca “geleia geral, o nome da Saúde entre os prisioneiros desta favela”, numa subversão textual que ironiza a política sanitária que se implanta aqui no Brasil, com mais força desde a Revolta da Vacina no início do século XX. Lembrar que Saúde era o nome do morro onde houve maior resistência por parte da população contra a obrigação da vacina, é lembrar de um impasse histórico resolvido através do heroísmo médico-policialesco republicano; é tocar a história de Horácio José da Silva (Prata Preta), contemporâneo de Lima Barreto. Mas também de Manoel Moreira (Cara de Cavalo), contemporâneo de Hélio Oiticica; de Walter Gomes de Oliveira (Pato n’Água); de Amarildo Dias de Souza etc. A(s) história(s) da literatura e do livro convoca uma história do impoder, da escrita em retirada (e essa é sua resistência), desde sempre, de todo registro que se precipita nos cartórios das inscrições soberanas. Trata-se de uma conspiração discreta, noturna e silenciosa; de uma união pela dispersão. E o paradoxo do devir consiste exatamente nisso, na airmação de dois sentidos ao mesmo tempo como constituição da escrita em seu direito à morte/vida: “destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida [...] destrói o senso comum como designação de identidades ixas” (Deleuze, 2006: 3). Deixo agora com você, leitor, dois trechos selecionados do romance Telenovela. São trechos de uma conversa entre meninos que trabalham para o tráico de oxi, no topo do MORRO DA CORRENTEZA, e a fala de um personagem-narrador (Aranha) após o fuzilamento de um deles, disparado de um helicóptero da polícia. Gostaria, no entanto, de adverti-lo para uma postura de leitura com dois oximoros de ordem recorrentes na 125 126 ABATE produção televisiva, e que tanto intrigaram David Foster Wallace em seu ensaio “E unibus pluram: televisão e narrativa americana”: “FINJA QUE NINGUÉM TE OBSERVA / ATUE COM NATURALIDADE”. Mega: Esse momento tá pra gente. Não tem pra ninguém mais. Veloz: É. É esse momento mesmo. Enquanto a gente pode curtir aqui por cima as coisas boas. [...] Toy: É isso mesmo. A tal da vida é entrar num lance que já tá montado bem antes da nossa própria vida, de cada um começar a existir. E parece que não mudar. E continua (sem rastro da gente). [...] Mico: [...] Assim é o tráico: o tempo todo rola doido, desde sempre, e ninguém segura a onda... [...] Veloz: O que me interessa é que nunca o céu se abriu assim pra mim antes. Eu sinto entrar num grau mais acima que o terraço. O oxi é doido. Parece que criou um canal com alguma estrela. Dá tudo que a gente quiser, ali no ato de pensar. Só. [...] Toda vez que eu olho pro céu tenho a impressão que vai rolar um ovni especialmente na minha direção. Mico: Não, eu acho que o lance é diferente. Me passa que um ilme está em cima de mim com a câmera ixa o tempo inteiro. Toy: Ninguém ica indiferente. Bastou viver, pra icar dentro. Todo mundo está na rede. O tráico dá tudo pra gente. Mas a conta tá rolando. Você tá gozando. Mas tem uma lei que não é escrita. A gente chama isso tudo de Deus e nem se benze. Vai desaiando o invisível... io desencapado. Tudo no bruto. (Vasconcelos, 2014: 118-120.) [...] “Os jovens passam a morrer cedo demais. Foram mais crianças do que qualquer outra coisa. Não alcançam outra ideia do tempo. Mas icam logo montados com tudo o que o dinheiro pode oferecer e a maioria das pessoas não consegue reunir no tempo completo de duração de uma vida. Essas crianças estão no lugar central, pelo que há de mais breve. “Só se for agora”. Eles dizem e celebram, para imediatamente depois morrer. Arte, Literatura e Filosoia em devir • Os meninos se atiram no efeito de ter a vida inteira na mão – tudo o que não se vê – Do maior luxo e gozo até uma queda apressada. Metralha. Nada ao acaso. Tudo o que nunca ninguém daqui vai possuir. As crianças, cada vez mais rápido, se jogam de cabeça. De uma vez por todas. A satisfação da vida inteira, na real, na moral, no momento justo em que acaba. (Velhos soberanos da poeira pelos ares).” (Ibidem: 132.) Referências Bibliográficas BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _________. La escritura del desastre. Trad. Pierre de Place. Caracas: Monte Avila Latinoamericana, 1987. CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2006. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: 34, 2010. _________. Mil Platôs 3. Trad. Aurélio Guerra Neto et alii. Rio de Janeiro: 34, 1996. DERRIDA, Jacques. Papel-máquina. Trad. Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. _________. Margens da ilosoia. Trad. Joaquim Torres Costa e Antonio M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991. HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 1987. 127 128 ABATE LACOUE-LABARTHE, Philipe. Agonie terminée, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot suivi de L’emoi. Paris: Éditions Galilée, 2011. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. NOLL, João Gilberto. A fúria do corpo. Rio de Janeiro: Record, 2008. OITICIA, Hélio. Conglomerado Newyorkaises. Org. Frederico Coelho e Cesar Oiticica Filho. São Paulo: Azougue Editorial, 2013. _________. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. VASCONCELOS, Mauricio. Telenovela. São Paulo: Giostri Editora, 2014. _________. Espiral terra: poéticas contemporâneas de língua portuguesa. São Paulo: Annablume, 2013. _________. Stereo. São Paulo: Ciência do Acidente, 2002. 129 DO QUE SE TRATA O FLICKR? Arnaldo Akira Umeda* Um monge perguntava a Tchao-Tcheo: “Qual a única e última palavra da verdade?” [...] O mestre respondeu: “Sim” (BARTHES, 1988, p. 198) 1 Em algum dia de fevereiro de 2005, ao abrir a caixa do correio eletrônico, recebi uma mensagem me convidando para fazer parte da comunidade do Flickr1. Tempos antes, havia lido que os Achilpa, uma tribo nômade da Austrália, sempre escolhem a direção a seguir conforme a inclinação de um poste sagrado que transportam em suas peregrinações. O poste sagrado representa o eixo do mundo e o meio de comunicação entre os Achilpa e o ser divino Numbakula que, após a criação do mundo, desapareceu no céu através de uma abertura no topo do poste. Se esse poste sagrado se quebra, os Achilpa *Akira Umeda (São Paulo SP, 1966) é histori- ador de formação atuando no campo das artes. 1 Uma plataforma para compartilhamento de imagens técnicas através de website. Disponível em: <http://www.flickr.com>. 130 ABATE sentem o seu mundo regredir ao caos e, desorientados, após vagarem por algum tempo, deixam-se morrer2. Seria possível interpretar aquela abertura da minha caixa do correio eletrônico, que me mostrava um convite para participar do Flickr, como a indicação de uma direção a seguir? O fato é que me senti profundamente inclinado a aceitar o convite, ou seja, a seguir os passos de Numbakula. Seguindo aquela inclinação, comecei a caminhar, como o Desconhecido de Erico Verissimo em seu livro Noite, ou seja, com aquelas mesmas pernas que não pareciam pertencerme: seriam as pernas do próprio Numbakula?. Uma análise deine o Desconhecido como um Homem em crise, o Homem das grandes cidades, que “já não pode ser aquilo que ele faz; é aquilo que ele encontra feito na sequência das coisas acabadas e uniformizadas que ele consome”, e que se pergunta, angustiado: “Quem sou? Onde estou? Que aconteceu?”3. Essa estória sombria de “um homem que o autor apanha no momento exato em que ele perde a memória e se sente um estranho numa cidade para ele – e também para o leitor (e o novelista) – completamente desconhecida” foi escrita à beira mar nos dias luminosos do verão de 1952. Meu andar perdido com aquelas pernas (próteses?) não parecia ser exatamente sombrio: ao contrário, parecia haver algo de vagamente ensolarado – proveniente dos dias de sol nos quais Verissimo escreveu Noite? – na minha noite. 2 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p. 23. 3 CHAVES, Flávio Loureiro. “A Narrativa da Solidão”. In: VERISSIMO, Erico. Noite. Porto Alegre: Globo, 1980. 12. ed. p. IX-XVII. Um sol pálido que poderia ter iluminado a cena de um improvável encontro do Desconhecido com a fala de Walter Benjamin: “Saber orientar-se numa cidade não signiica muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa loresta, requer instrução” (BENJAMIN, 1987, p. 73). É possível interpretar essa prática, com Olgária Mattos, como a aceitação de que o labirinto da história não é pré-determinado e que não há io de Ariadne que conduza a uma saída, “pois somos nós que, ao caminharmos na história, construímos um labirinto”; mais que isto, trata-se de assumir “os acasos da história, a indeterminação inesperada que cria os labirintos, bifurcações onde nada é indício de boa direção” (MATTOS, 1992, p. 154-5). O meu caminhar fazia-se, então, articulando as pernas do acaso, do indeterminado, do nada. Do que se trata o Flickr? Ao comentar a explicação moderna para a origem do mundo e dos astros, a teoria do big bang, Vilém Flusser deine o ponto como sendo “a maneira geométrica de articular o nada”, e acrescenta: “Não podemos crer, por instante sequer, que tudo é resultado de um acaso. Seria uma explicação, cuja inautenticidade existencial grita para os céus. Mas, ainal, acaso não é sinônimo de milagre?” (FLUSSER, 2002, p. 23-29). De certa forma, saber se perder, aceitar as indeterminações com que se criam os labirintos e assumir o clima existencial que vem temperando a modernidade signiica operar milagres. Ao abrir a minha caixa do correio eletrônico com o convite para o Flickr, operei a minha abertura para o nada; ao aceitar o convite, comecei a caminhar, ou seja, a articular o nada rumo ao esgotamento das virtualidades contidas nessa mesma abertura, isto é, rumo a nada. 2 O processo (ou campo) desse milagre – os percursos ou dis-cursus do caminhante, “a ação de correr para todo lado, idas e vindas, démarches, intrigas” (BARTHES, op.cit., p. 1) – poderia ser entendido como sendo uma difusão de huellas, como as criadas por Antonio Machado: “Caminante, son tus huellas / el camino y nada más: / caminante, no hay camino, / se hace camino al andar”4. Ou como as huellas dos dois violinistas que, para executarem o trabalho “Hay que caminar sognando”, de Luigi Nono (1924-1990), “devem distribuir pelo menos oito diferentes estantes com partituras no local da apresentação e, concluída a execução da primeira, devem escolher outras duas, de um total de três a serem tocadas, como quem busca fazer um caminho” – segundo Josef Häusler, o esforço de Luigi Nono ao compor era no sentido de “encontrar algo, mas não algo claro”, assim como o cineasta Andrei Tarkovsky, que, em seu ilme Nostalghia (1983), tematizou uma busca “por algo que talvez não exista” (HÄUSLER, 2007, p. 10-11. Tradução própria). Ou, ainda, como se eu tivesse deparado com uma das Instruções de Yoko Ono: “Pintura para pisar – Deixe uma tela ou uma pintura concluída no chão ou na rua. y.o. 1960 inverno” (ONO, 2005, p. 70. Tradução própria). São diferentes huellas. A primeira delas é, à primeira vista, invisível**: meu corpo, como o das aparições fantasmagóricas japonesas (yurei; 幽霊) retratadas nas ukiyo-e do século 4 MACHADO, Antonio. “Proverbios y Cantares XXIX” apud CAMPOS, Augusto de. “Luigi Nono: A Lonjura Nostálgica, Utópica, Futura”. In: Música de Invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 217. ** No Flickr, não há o recurso que permite identificar os “visitantes do perfil”, como nos websites como o Multiply e o Facebook. As huellas desse intenso trânsito fantasma estariam alhures. 131 132 ABATE XIX, não tem pernas e desloca-se lutuando pouco acima do nível do chão. Esse vagar (vagueza; errância) fantasma (meu; do outro) pode se dar em várias direções e ocorrer em qualquer momento, o que, em boa medida, parece corresponder a um bordão bastante familiar da língua inglesa: “everybody does it”, ou seja, todo mundo o faz fora da vista dos outros. Essas huellas invisíveis podem ser presumidas no intenso trânsito de fantasmas que, estando uns fora das vistas dos outros, fazem uns o que fazem os outros. Um passeio que optei por iniciar foi pelas huellas de quem me enviou o convite para o Flickr, mas que poderia ter começado de outra maneira, não prescrita, caso tivesse me decidido por recursos como as tags (palavras-chave; huellas) ou as listas das imagens (huellas) adicionadas mais recentemente pelos milhares de usuários do sistema por mim desconhecidos. Uma visitação, espécie de mistério gozoso: naquele dia levantei-me, fui com pressa às montanhas a uma cidade de Judá, entrei na casa de Sérgio e o saudei5. A saudação é uma segunda huella. Adicionar um peril como contato, amigo ou familiar; enviar-lhe uma mensagem particular; deixar um comentário em uma imagem ou junto a uma coleção de imagens, e escolher uma imagem como favorita são ações que geram huellas visíveis, abertas. São aberturas para relacionamentos: saio (entro) por estas issuras e me mostro, ixo como a “aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” – a aura, segundo Walter Benjamin (BENJAMIN, 1985, p. 170). O que faço, então, é preencher o formulário com uma aura? O visitante seria a fonte de uma aura?6. Saudar é, nesse sentido, aureolar; aprender a se perder é seguir aureolando. 5 Bíblia Sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1964. 6 BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. p. 85. Entre os primeiros comentários que deixei em uma imagem fotográica, um deles diz apenas: “Yugen”. A resposta do meu contato: “ありがとう” (Obrigado). Meses mais tarde, leio um comentário feito por esse mesmo contato em uma das minhas imagens digitais: “Yugen!!!”. Princípio do charme sutil, a noção de yugen (幽玄), que tem ressonâncias do zen, refere-se ao “que a gente sente, mas não consegue descrever [...] a formação da linha delgada da fumaça do cigarro e a imagem de Greta Garbo são igualmente expressões do yugen, a beleza ideal, sublime, com uma aura de mistério” (KUSANO, 1984, p. 22-23). Do que se trata o Flickr? Desenvolvido no Japão a partir do século XII, essa noção estética pode ainda ser apreendida como “a misteriosa impenetrabilidade das coisas”, que “exprime-se tanto no teatro nô quanto num simples objeto ou nas manifestações da natureza” (SHIMIZU, 1995, p. 34-35. Tradução própria). Esse simples objeto poderia ser uma imagem técnica, ou seja, uma “superfície signiicativa produzida por aparelho na qual as ideias se inter-relacionam magicamente”, ou ainda, por um “brinquedo que simula um pensamento”, ou por um “objeto para jogar”, para realizar um jogo, a “atividade que tem um im em si mesma” (FLUSSER, 1985, p. 5). A imagem técnica é uma terceira huella, uma superfície signiicativa que cada usuário do Flickr utiliza para recobrir ou preencher formulários. Diante disso, inventar um caminho, o milagre operado pelo caminhante, pode ser entendido como um mosaico de atos, para utilizar outra expressão de Vilém Flusser (IDEM, 1983, p. 122): trata-se de criar o próprio chão que piso, que todos pisam. O chão do Flickr – e, talvez, qualquer chão – é um campo de tapeçaria cujos tapetes têm a espessura de uma imagem técnica, tão delgada quanto a linha da fumaça do cigarro, tão impenetrável quanto a imagem de Greta Garbo: 幽玄, 幽霊. Roland Barthes apresenta o rosto de Garbo como sendo “esculpido no liso e no friável, isto é, simultaneamente perfeito e efêmero” (BARTHES, 1985, p. 48). Donald Richie descreve o encontro de Garbo com o ator de kabuki7 Utaemon Nakamura: “[...] Utaemon icou a postos para a cena de abertura. Os batedores soaram, mas logo antes de as cortinas começarem a deslizar, Garbo subiu para o palco, correu sorrateira para a plataforma onde Utaemon estava sentado e tocou o onnagata8 no ombro. Assustado, ele se virou. Ela acenou. [...] Compreende-se o que sentia. Ao ver Utaemon, ou qualquer onnagata, no palco, surge o desejo de tocá-lo, de ter a certeza de que é real, pois uma pessoa produzida com tantos artifícios visíveis parece de fato irreal” (RICHIE, 2000, p. 126). É uma descrição que muito se aproxima do que ocorre sobre o chão do Flickr: todos os encontros parecem ter como modelo o encontro de Greta Garbo e Utaemon Nakamura, do sólido que desmancha no 7 Uma das formas clássicas do teatro japonês, originada no século XVII. 8 Ator que representa um personagem feminino no teatro kabuki. Onna=mulher, Gata, Kata=forma. 133 134 ABATE ar com a massa amorfa de kimono, peruca e maquiagem. Percebo, então, que no Flickr tudo é huella, inclusive aquilo que chamo de eu. O Flickr, um “aplicativo online de gerenciamento e compartilhamento” que objetiva “ajudar as pessoas a disponibilizar” seus conteúdos e “tornar colaborativo o processo de organizar fotos ou vídeos”9, é, de certo modo, algo tão simples quanto um pote de cerâmica, ou seja, um artefato muito familiar que vem sendo produzido repetidamente há cerca de doze mil anos nas mais diversas culturas humanas. No entanto, ao airmar que “apenas recentemente começamos a entender do que se trata a cerâmica: trata-se de produzir formas vazias para informar o que é amorfo [...] esse é um fato banal, mas de fato nenhuma teoria epistemológica e nenhuma teoria da informação chegou, por enquanto, a um consenso quanto a ele”, Vilém Flusser (1999, p. 99-103. Tradução própria) parece indicar que pode haver muito de yugen naquilo que se entende por algo simples. Ainal, após clicar em “criar conta” no Flickr, percebi que havia mesmo um princípio de charme sutil ao me ver subitamente convertido no fantasma de Greta Garbo perambulando dentro de uma tigela de cerâmica. 3 Lucia Santaella observa que “a novidade do ciberespaço não está na transformação de identidades previamente unas em identidades múltiplas, pois a identidade humana é, por natureza, múltipla. A novidade está, isso sim, em tornar esta verdade evidente e na possibilidade de encenar e brincar com essa verdade, jogar com ela até o limite último da transmutação identitária” (SANTAELLA, 2004, p. 53); Arlindo Machado, por sua vez, diz que “a interatividade não foi, portanto, colocada pela informática. Pelo contrário, ela já acumulou, fora do universo dos computadores, uma fortuna crítica preciosa. A diferença introduzida pela informática é que ela dá um aporte técnico ao problema” (MACHADO, 1997, p. 145), enquanto Roy Acott aponta que “A Internet é a infraestrutura crua de uma consciência emergente, um cérebro global” (ASCOTT, IBIDEM). 9 Sobre o Flickr. Disponível em: <https://www. flickr.com/about>. Acesso em: 30 out. 2015. Para Vilém Flusser, o que se torna evidente é que “A sociedade vai sendo vivenciada e captada sempre mais claramente como aquela rede de relações devido à qual não apenas Do que se trata o Flickr? somos o que somos, mas devido à qual somos tout court [...] o termo eu designa espécie de gancho imaginário sobre o qual as relações que sou estão penduradas. Descobrirei que, abstraídas as relações que me prendem à rede da sociedade, sou estritamente nada” (FLUSSER, op.cit., p. 153-154). Já para André Parente, “As redes são por demais reais. Para veriicar nossa dependência das redes basta imaginar uma viagem a um lugar remoto onde tudo o que compõe a galáxia emaranhada de redes e serviços que alimentam os nossos ecossistemas móveis e imóveis vai nos fazer falta: água, comida, eletricidade, os meios de comunicação, os meios de transporte etc. Elas sempre tiveram o poder de produção de subjetividade e do pensamento” (PARENTE, 2004, p. 91), e, por im, Cecília Salles nota que “Nada é mas está sendo. A forma nominal associada a processos é o gerúndio” (SALLES, 2008, p. 31). Um aplicativo como o Flickr, que é parte de uma infraestrutura crua que dá aporte técnico à interatividade, torna evidente a multiplicidade da identidade humana: eu sou (não sou, fui, deixei de ser, serei, deixarei de ser etc.) a imagem friável de Greta Garbo (os Achilpa, Numbakula, Erico Verissimo, O Desconhecido, a sequência das coisas acabadas e uniformizadas que consumo, Walter Benjamin, Antonio Machado, as huellas, a Virgem Maria, Sérgio, aura, yurei, onnagata etc). Como na expressão de Arthur Rimbaud: “Eu é um outro” (RIMBAUD, 1982, p. 253). Esse eu que vai sendo tout court pode ser descrito como vazio, ou seja, como abertura para o nada (tudo; outro), como dependente do nada (tudo; outro), e, com algum esforço, como incompletude. É possível imaginar esse eu como a não-existência do Tao, do pote de cerâmica: “A argila é trabalhada na forma de vasos / Através da não-existência / Existe a utilidade do objeto” (TSE, p.14). Na cerimônia japonesa do chá (Chado, 茶道), que Kakuzo Okakura deine como taoismo disfarçado, busca-se enfatizar essa não-existência em todos os seus detalhes: do aposento, passando pelos gestos e os utensílios, tudo contribui para propiciar a experiência do inacabado, pois “Em todas as coisas, a completude de todos os detalhes não é desejável; aquilo que é deixado simplesmente inacabado prende o interesse” 135 136 ABATE (OKAKURA, 2008, p. 52 e 135). De certa forma, durante a cerimônia, todas as coisas que nela se apresentam esperam ter a sua incompletude completada por cada participante que, por sua vez, espera ter a sua incompletude completada pelo outro: trata-se, aqui, de ser alterado pelo outro. Referências Bibliográficas ASCOTT, Roy. “Cultivando o Hipercórtex”. In: DOMINGUES, Diana (org.). A Arte no Século XXI. São Paulo: Unesp, 1997. BARTHES, Roland. Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 7. ed. BARTHES, Roland. “O Rosto de Garbo”. 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Suas obras exploram um terreno de instabilidades, desaiando os cânones da história do teatro e esgarçando modelos hegemônicos de percepção. Seu trabalho se encontra em sintonia com o que persegue o fotógrafo cego Evgen Bavcar: “se queremos ir às origens das imagens visuais, nós chegamos forçosamente ao espaço do invisível, este do verbo, e à noite que precede o dia das iguras conhecíveis.” Roberto Alvim tem desenvolvido um pensamento sobre arte que vai além das suas obras e encontra ressonâncias que não se restringem ao universo das artes cênicas. No seu livro, Dramáticas do Transumano, Alvim preconiza: “é tudo sobre magia. e sobre 139 amor, e sobre poesia (não na tradição do eu lírico memorialista, mas na transiguração de toda estabilidade). aí o invisível se torna perceptível – obliquamente. transigurar toda a nossa percepção estratiicada acerca do que seja o real.” A entrevista a seguir foi concedida pelo encenador a Marcus Groza, especialmente para a Revista Abate, em março de 2015, na sede do Club Noir, na Rua Augusta, São Paulo. MARCUS GROZA (M.G.): A primeira peça sua que eu li e assisti foi Anátema, quando eu fazia o curso de Dramaturgia na ELT [Escola Livre de Teatro de Santo André]. A convite do Kil Abreu, você foi falar com a gente lá. Anátema foi no início do Club Noir, sim? Acho interessante que você fale desse início, da parceria com a Juliana Galdino. ROBERTO ALVIM (R.A.): Anátema foi a peça que marcou a fundação da Cia. Eu conheci a Juliana Galdino no inal de 2005, na turnê do Antunes Filho no Rio de Janeiro. Eu vi a Juliana em cena, me apaixonei, casei com ela e vim para São Paulo em janeiro de 2006. Ela saiu do Antunes e nós começamos a trabalhar. Antes do Anátema, eu escrevi outras três peças, que ela rejeitou. Disse que eram uma porcaria. “Isso eu não vou montar! Isso eu não vou montar! Isso eu não vou montar!” Quando eu escrevi o Anátema, ela leu e falou: “Isso é incrível! Isso a gente vai fazer!” Ensaiamos durante o ano de 2006 e estreamos em janeiro de 2007 no Sesc – Avenida Paulista. Ficamos dois meses no Sesc, depois izemos Satyros, Parlapatões, um mês em Curitiba, alguns festivais pelo Brasil durante o ano de 2007. Depois izemos Homem sem Rumo, com Marat Descartes, Lavínia Pannunzio, Milhen Cortaz, texto do dramaturgo norueguês Arne Lygre. O texto é uma obra-prima, de um autor até então inédito no Brasil. Na sequência, alugamos este galpão aqui na Rua Augusta. Em março de 2008, ganhamos o Fomento [Programa Municipal de Fomento ao Teatro – criado em 2002], na época em que ele funcionava de outra maneira, não havia essa máia que há agora e que está deturpando as razões pelas quais o Fomento ao Teatro foi criado. Então, em 2008, ganhamos o Fomento e construímos o teatro, inaugurado em novembro com a montagem de O Quarto, de Harold Pinter. M.G.: E nessa trajetória, o que começa com Anátema, você destacaria como pon- 140 ABATE O difícil é a gente ouvir o acaso. Não procurar ter controle da situação o tempo inteiro e deixar que o acaso nos conduza por caminhos imprevisíveis. tos de virada mais flagrantes para esse projeto estético que hoje está presente nas suas obras? R.A.: No Anátema, ainda havia uma dramaturgia que desdobrava muito do que eu fazia no Rio de Janeiro e que não tinha muito a ver com o trabalho que eu faço agora. Eu escrevia fundamentalmente em prosa. Ainda não tinha essa visão do que signiica uma escritura poética, que não visa a comunicação e sim a transiguração dos sentidos estabelecidos, disparando processos autônomos na sensibilidade de cada espectador. Havia um sentido comunicacional, havia um esteio narrativo, personagem com biograia... A ideia de sujeito moderno ainda estava ali... Essa ideia, aliás, funciona na gente como se fosse uma espécie de vírus, nós a introjetamos e passamos a operar desse modo, inadvertidamente... No Homem sem Rumo começou a acontecer uma virada, não por conta da dramaturgia, mas por conta da encenação, e isso por obra do acaso total. Eu estava fazendo uma encenação convencional da peça, até um dia em que... A gente ensaiava num espaço chamado Barco, uma galeria de arte em Pinheiros. Era um inal de tarde, já estava escu- recendo, uma seis e meia da tarde, e a luz do quarteirão inteiro caiu, houve um blackout e acenderam-se as luzes de emergência da sala. Era uma luz luorescente colada na parede lá no fundo do espaço. Naquele instante, os atores pararam e perguntaram: “Vamos continuar?” Eu falei: “A gente está atrasado, tem uma estreia próxima, vamos continuar no escuro mesmo!”. Eles começaram a dizer as palavras no escuro. Foi quando eu percebi a força da fala humana, não no sentido de expressar coisas, mas no sentido de criar coisas. No meu espaço mental, comecei a ver todas as imagens que aquelas palavras desenhavam. Comecei a ser atravessado por sensações sem nome, comecei a perceber que a ausência do rosto dos atores criava um território no qual eu podia projetar e expandir uma série de conteúdos inconscientes. Para mim, esse foi o meu gênesis bíblico, foi o momento em que o Verbo começou a operar e a se fazer carne no meu espaço mental/sensível, por obra do acaso total. Mas acontece que o acaso é Deus. O difícil é a gente ouvir o acaso. Não procurar ter controle da situação o tempo inteiro e deixar que o acaso nos conduza por caminhos imprevisíveis. O ponto de virada se deu nesse episódio, na Entrevista com Roberto Alvim sala de ensaio do Homem sem Rumo; ouvir o acaso me possibilitou criar uma enenação que tinha alguns aspectos que vieram a caracterizar o nosso sistema cênico. Eu minimizei a movimentação dos atores e comecei a explorar a força das palavras ativadas pela fala humana por meio de diferentes formas de modelação vocal, dentro de desenhos de escuridão. Não escuridão completa, isso seria muito fácil: seria só apagar as luzes... O ponto é desenhar a escuridão de diferentes maneiras, criar essas zonas crepusculares, esses lusco-fuscos onde o sujeito culturalmente determinado não consegue se impor e um estatuto ontológico eclode – uma produção de presença de outra natureza começa a se delagrar e se instaurar. No Homem sem Rumo isso já começou a aparecer. O palco como um espaço vazio, justamente para poder estar pleno de linguagem, para poder ser transmutado permanentemente pela força da fala humana. E, depois disso, posso dizer que esse processo se desdobrou exponencialmente na encenação de O Quarto; explorei, ali, uma semente que vi brotar no Homem sem Rumo. Percebi então que poderia criar um planeta estético especíico, dar uma contribuição singular para a história do teatro, apresentar um ponto de fuga em relação a tudo que foi criado anteriormente, apresentar uma vereda estética até então desconhecida, para experienciação e diálogo com o público. Eu faço teatro para oferecer uma espécie de convite a cada uma das pessoas que vem aqui, um convite para trilharmos juntos uma vereda estética desconhecida. Ficamos um ano inteiro trabalhando em O Quarto, foram os meus quarenta dias no deserto, o período em que realmente procurei me descolar de todas as formas e discursos reconhecíveis e construir, inventar, descobrir – tanto faz como se queira chamar – um sistema cênico singular. O sistema técnico que a gente inventou também consiste no deslocamento permanente entre planos vocais, entre diferentes usos da linguagem. Isso tem a ver com a ideia de Nó Borromeano, de Jacques Lacan. Percebi que era preciso encontrar uma tradução técnica para esses diferentes usos da linguagem, o que gerou o trabalho de deslocamentos entre planos vocais. Às vezes, a linguagem cria uma situação iccional especíica. Às vezes, ela cria fatos-linguagem, aqui e agora. Às vezes, ela cria transparências que permitem ver uma espécie de subjetividade por detrás. Às vezes, ela bloqueia o nosso olhar. Eu percebi que O ponto é desenhar a escuridão de diferentes maneiras, criar essas zonas crepusculares, esses lusco-fuscos onde o sujeito culturalmente determinado não consegue se impor e um estatuto ontológico eclode. 141 142 ABATE diferentes texturas vocais, diferentes modelações rítmicas da voz, diferentes volumes – que operam em matizes muito amplos, desde sussurros tênues até gritos –, diferentes alturas de graves e agudos instauravam uma espécie de efeito estereofônico na sala – estereofonia que, além de física, tinha amplo alcance conceitual. Os atores estão imóveis, mas parece haver movimento dentro da cena apenas pelo deslocamento entre esses planos vocais. É como se os movimentos acontecessem não no espaço, mas no tempo. Isso só foi atingido plenamente em O Quarto e, depois, no Peep Classic Ésquilo, até porque o material dramatúrgico permitia isso; em outras obras esse sistema cênico estava presente, mas não na sua plenitude, às vezes era preciso não problematizar tão radicalmente o sujeito, porque as dramaturgias não se coadunavam com esse procedimento. M.G.: Um dos termos que já foram cunhados para caracterizar o seu teatro é “Estética da Penumbra”. Eu me pergunto se termos como esse não são redutores, considerando que, como você mesmo coloca, trata-se da manifestação do invisível. É como se você fosse um pintor e estivesse preocupado com a materialidade, um pintor que está interessado privilegiadamente nos tubos de tinta, como diz Duchamp. A penumbra é importante por aquilo que ela torna possível, não é? R.A.: Sim! Você pode encontrar familiaridade com a obra do [gravurista e ilustrador brasileiro Oswaldo] Goeldi, como já izeram, mas não se trata disso exatamente, ou melhor: o foco não é a produção de imagens penumbrosas, esse é apenas um dos elementos do sistema cênico... “Estética da Penumbra” foi um termo cunhado pela brilhante jornalista Gabriela Melão, numa matéria da extinta Revista Bravo!. Eu compreendo que isso salte aos olhos, mas o ponto, evidentemente, nunca foi esse; o ponto é a produção de uma qualidade especíica de presença habitando uma zona de instabilidade permanente. Sobre as artes visuais, tem algo aí a se explorar: no inal do ano passado, eu fui convidado a falar num simpósio que aconteceu na UFRJ, com artistas de várias áreas. Eles me convidaram para falar sobre a relação entre artes visuais e teatro. E na minha fala eu ataquei um ponto. Por exemplo, se você tem um apreço por Piet Mondrian: como esse apreço, Entrevista com Roberto Alvim como essa vinculação estética vai se revelar no seu trabalho? O cara adora o Picasso e aí coloca um quadro do Picasso no fundo do cenário de sua peça, ou faz um igurino baseado em Picasso, quando, na verdade, o caso é perceber quais foram as operações criadas por aquele artista e responder a elas, utilizando-se dos meios próprios ao teatro: atores, tempo e espaço. Vamos pegar o caso do Cubismo. Qual a operação revolucionária do cubismo, criado por Picasso e Braque? – para mim ainda uma operação extremamente fértil como inluência. Qual é o ponto ali? Até então a pintura era sobre espaço, o quadro era como uma janela através da qual podíamos ver uma paisagem ou um quarto ou um rosto... Era apenas sobre espaço. Mas no cubismo, quando uma mesma igura é vista por ângulos distintos, é introduzido o tempo dentro da pintura. Filosoicamente, essa operação pictórica nos mostra algo fundamental: não podemos olhar para as coisas de um único ponto de vista! Isso gerou, aqui no nosso trabalho, uma problematização da contracenação. Eu sempre tive muita angústia com essa questão da contracenação entre os atores. Essa coisa do olho no olho, aliás, é algo preconizado pelos próprios atores: “olho no olho, estamos jogando, estou contigo, você está comigo...”. Em todas as minhas peças praticamente inexistem relações olho-no-olho entre os atores. Em geral os atores estão voltados para vetores distintos no palco. E eu sempre digo para eles o seguinte: “se uma atriz está no proscênio à esquerda, numa diagonal em direção à plateia e o outro ator está lá atrás de peril, no fundo do palco, virado de frente para a parede oposta... Ainda que não se vejam, vocês estão falando uns com os outros. Vocês têm que projetar o outro diante de vocês.” A plateia faz a junção desse ator com aquele ator e cria um quadro ao mesmo tempo uno e estilhaçado, que se apresenta de modo multivetorial. É importante estilhaçar a relação entre os indivíduos em cena, desestabilizar essa relação: eles estão juntos e isolados, como inimigos no mesmo barco... Isso é uma coisa que eu aprendi com o cubismo. Outro de quem eu sempre falo é Willem de Kooning, para articular essa relação de modo um pouco mais soisticado. A obra de De Kooning me inluenciou profundamente. A partir de Excavation (1950), uma pintura seminal, De Kooning começou a criar planos pictóricos, começou a trabalhar com um pincel mais grosso, um pincel mais ino. 143 144 ABATE Diferentes modelações rítmicas são análogas às diferentes velocidades com que De Kooning pintava. Analogias! Os planos pictóricos do De Kooning me levaram a criar a técnica dos planos vocais. Às vezes aplicava a cor violentamente, às vezes aplicava de uma maneira enevoada, às vezes sugeria um desenho, sugeria uma instância igurativa, às vezes criava uma instância puramente abstrata. Eu percebi que havia planos pictóricos no De Kooning que se escavavam uns de dentro dos outros e mantinham o quadro numa dinâmica de deslocamentos permanentes. É importante, aqui, pensar em termos de analogia. Trazer a experiência de uma arte para aplicá-la em outra arte, fazer analogias entre procedimentos pictóricos e procedimentos cênicos. Eu percebi que seria com a voz que eu realizaria esses deslocamentos em cena. Uma voz mais sólida seria como uma pincelada mais grossa. Uma voz que ultrapassa o palco bloquearia a nossa entrada. Um sussurro nos convidaria a entrar num campo de subjetividade, criando uma transparência. Diferentes modelações rítmicas são análogas às diferentes velocidades com que De Kooning pintava. Analogias! Os planos pictóricos do De Kooning me levaram a criar a técnica dos planos vocais. Me inluenciou muito, também, a obra do pintor Cy Twombly. Ele trabalha com lápis em algumas obras e faz desenhos tão tênues; às vezes ele aplica a tinta em borrões, outras vezes apaga alguma coisa que acabou de fazer, deixando um rastro desse apagamento. Percebi que havia três procedimentos fundamentais ali: traços (os pequenos desenhos feitos tenuemente); apagamentos; e borrões. O que isso virou no nosso trabalho? Às vezes está na voz traçando, desenhando imagens. Às vezes, em um puro borrão de sensação, que é transmitido de modo vertiginoso. E às vezes se apaga tudo o que se instaurou. O que é o apagamento dentro do trabalho cênico? Os silêncios, uma qualidade especíica de silêncio, que promove uma espécie de decantação biofísica! Esses são alguns exemplos que eu posso te dar relativos a essas analogias... Agora, quando se fala em “Estética da Penumbra”, trata-se de um conceito que pode gerar leituras supericiais do trabalho, sim. Isso equivaleria a eu gostar de Edward Munch, por exemplo, que sempre trabalhou com tons escuros, ou do Goeldi, e fazer um similar imagético, quando a minha questão não é a imagem, não é a imago, não é a representação de alguma coisa. A escuridão aqui trabalha no sentido de constituir uma anti-imagem, uma espécie de não-imagem, como um território crepuscular de iminência no qual as palavras poderão desenhar desde uma bata- Entrevista com Roberto Alvim lha naval ou a porta de um palácio como em Os Persas, até uma plantação de beterrabas ou uma catedral, como em A Terrível Voz de Satã, um texto incrível do Gregory Motton que nós montamos também; enim: fazer do palco uma extensão e ampliação do espaço mental/sensível de cada membro da plateia. Além disso, tem a ver também com a problematização do sujeito. Isso é uma coisa muito difícil das pessoas perceberem, por falta de repertório ilosóico. Estamos falando aí de Derrida, num livro lindo que eu recomendo, Pensar em não ver. Ele escreve que o único modo de criar as condições para que o inconsciente jorre, para que as máscaras caiam, é por meio da escuridão, da ausência do rosto humano, da ausência do sujeito. Esse livro do Derrida foi também muito importante para mim, porque ali eu entendi e reairmei uma intuição estética que eu já tinha antes. A gente está aqui numa conversação e é muito difícil que luxos de inconsciente sejam delagrados. Mas você está, por exemplo, no quarto com a sua namorada, vocês acabaram de trepar e de repente as vozes de vocês mudam e começam a atravessar o inconsciente um do outro. A ausência do rosto e o território da escuridão proporcionam abertu- ras, atravessamentos, jorros, vazamentos de bolsões estéticos, por meio de uma queda das couraças, criando as condições para essa invocação do invisível, para essa qualidade de aparição que a claridade só mascara. A luz torna as coisas demasiado sólidas... E essa zona de lusco-fusco é uma forma de trabalhar com a igura humana num sentido mais nebuloso, não tão airmativo. As iguras humanas se tornam como fantasmagorias no espaço, quase imateriais: presença na ausência, ausência na presença. Trata-se de apagar a nitidez geométrica das coisas e trabalhar num esteio topológico. M.G.: Nesse sentido, no lugar de “Estética da Penumbra”, imagino que falar em uma “Estética da Recusa” seria mais apropriado, algo mais característico à sua poética. Agora, ao pensar isso em relação à conceituação sobre o Transumano que você faz, como eu poderia entender a penumbra e esses desenhos de escuridão? A penumbra e a escuridão, como materialidade, seriam uma forma de operar para se chegar a irromper o Transumano em cena? Mais uma vez, porém, não seria a materialidade o ponto crucial. Trata-se de apagar a nitidez geométrica das coisas e trabalhar num esteio topológico. 145 146 ABATE Em arte não se trata só do que você faz, mas também do que você se recusa a fazer. R.A.: Não, não seria o ponto crucial. A questão do Transumano é ininita. O modo como eu, como artista, respondi a ela, foi através de um sistema cênico que envolve desenhos de escuridão, imobilidade física e deslocamentos entre planos vocais. Esse foi o instrumental que eu descobri ou inventei para responder a essa proposição de utilizarmos o teatro com a inalidade de reinventar a anatomia humana, isto é, com a inalidade de reinventar a integralidade do ser humano, porque é sobre imanência. Foram essas as ferramentas que eu encontrei, mas outro artista encontrará outras, distintas, para propor essa reinvenção do humano. Houve um Festival de Curitiba em que um repórter disse ter assistido a várias peças com atores parados falando no escuro, em trabalhos “inluenciados” pelo Club Noir... É patético. Todas as imitações que eu vi do nosso trabalho não icam em pé. Porque é um problema anterior à escuridão e à imobilidade: é sobre conquistar sua singularidade. Se fosse sobre imitação, se fosse fácil assim, o sujeito espirraria tinta na tela e viraria um Jackson Pollock... O Transumano é ininito, pois para cada artista essa proposição vai resultar em estéticas diferentes. O meu sistema cênico não é a Dramática do Transumano, é apenas uma possibilidade de Dramática do Transumano, apenas uma! Se eu não achasse que a questão do Transumano é ininita, se eu achasse que ela só se aplicasse ao meu trabalho, então eu jamais escreveria esse livro. É um livro que não é sobre mim, é um livro que é para os outros e que pode disparar processos artísticos singulares em outros criadores. Sobre a questão da recusa que você falou, quero voltar nisso. É muito importante a gente perceber uma coisa: em arte não se trata só do que você faz, mas também do que você se recusa a fazer. Para os críticos é muito difícil ver isso. Quando você coloca uma lâmpada no chão, para algumas pessoas é só uma lâmpada no chão, mas para outras essa lâmpada no chão é a recusa em usar os 20 elipsos, 30 PCs e as 40 lâmpadas-pares que você poderia usar. Então, são recusas visando justamente criar um campo instrumental restrito, fazer um círculo em torno de você e cavar, para descobrir de que modo aquele campo aparentemente limitado pode se desdobrar ininitamente, como fez nosso amigo Piet Mondrian. Ele pintou quadros variados antes de descobrir sua poética. Em dado momento ele se propõe: “Vou fa- Entrevista com Roberto Alvim zer apenas linhas verticais, linhas horizontais e quadrados brancos ou nas três cores primárias.” E se você observa todas as obras do Mondrian, do começo até chegar na Broadway Boogie-Woogie, você observa que a sua proposição redutora nunca parou de proporcionar experiências estéticas novas; a cada obra aquilo ia se desdobrando surpreendente e ininitamente. Eu, de minha parte, quero conseguir reinventar o homem, o tempo e o espaço com apenas uma lâmpada luorescente que se acende no começo de um espetáculo e se apaga no inal. Eu sempre digo que colocar em cena 50 elipsos ou 200 igurinos ou 5 cenários gigantescos equivale a um indivíduo chegar numa boate com uma Ferrari ou trajando um Armani... Eu sempre iz questão de acreditar que um homem vale muito e tem muito poder – o poder de transigurar o tempo e o espaço e de reinventar a si mesmo, sem precisar da porra de uma Ferrari, sem precisar de igurantes em volta e nem de todas as relações servo-patrão que caracterizam esse tipo de coisa. Aconteceu algo assim na montagem de 45 Minutos, que eu iz com o ator Caco Ciocler; tinha uma lâmpada no chão e um letreiro de neon. O produtor chegou para mim, pró- ximo já da estreia, e me perguntou onde estava o cenário, e eu disse que eram apenas as lâmpadas. Ele icou nervoso comigo, disse que não teria como justiicar ao patrocinador o dinheiro do cenário, para o qual estavam previstos 30 mil reais. Mas eu não vou encher o palco de coisas apenas porque é preciso gastar o dinheiro do patrocínio... É muito importante me recusar a fazer muitas coisas, isso é fundamentalmente uma atitude estética, mas é também uma atitude ética. Quer dizer, toda estética gera uma ética, assim como uma estética é a tradução de um posicionamento existencial e esse posicionamento tem um ponto de gravitação política inevitável. Há que se pensar em todos esses aspectos da inserção do teatro no mundo? Sim, há que se pensar ferozmente nisso. É engraçado, há projetos que ganharam o Fomento, por exemplo, em que existem cinquenta mil reais destinados a colocar anúncios em jornal, anúncios pagos em jornal... É uma deturpação completa do sentido do Fomento. M.G.: Voltando àquela instância de acaso como um dos fenômenos que atravessam a criação, é possível pensar que 147 148 ABATE Não arrastar essa corrente pesada que é Roberto Alvim para dentro do único lugar em que se pode instaurar a morte múltipla dessa identidade. aquele busca por ser capaz de ouvir o acaso, aquela porosidade ao acaso tem a ver com um posicionamento que concorre para se desfazer o primado do eu, desse eu-autor, o gênio romântico...? R.A.: Exato: se desfazer do primado do artista romântico... Se desfazer da ideia de que minha obra é “o que eu penso, o que eu sinto”, “eu sou o tema da minha própria obra”... Tem uma confusão aí em vários níveis, por exemplo, quando as pessoas criam uma imagem minha. Você está com o meu livro, ele está na segunda edição. Vendeu dois mil exemplares no Brasil, o que para um livro de teoria do teatro é um blockbuster. Ele vendeu em muitos lugares do Brasil e tem gente que chega aqui para me conhecer. Esses tempos, apareceu aqui uma caravana de Fortaleza que vinha a São Paulo e disse que queria me conhecer. Quando eles me viram, eu vi a decepção no rosto dos caras. Eles estavam esperando encontrar o Mestre Yoda e encontraram um cara tomando litros de Coca-Cola, fumando um Marlboro atrás do outro, bebendo whisky. “Eu pensei que você fosse uma pessoa mais espiritualizada”, me disseram. Eu respondi: “Essa persona aqui não tem nada a ver com a obra. A obra não é sobre mim!” A luta que eu tenho é para tirar essa persona do controle, quando eu estou escrevendo, ou enquanto eu estou dirigindo uma peça. É uma luta em que eu já consigo me tirar da cadeira quando estou em frente ao computador, e me tirar da sala de ensaio quando estou dirigindo um espetáculo. Essa ideia é muito importante, nós fazemos arte como possibilidade de habitar o tempo e o espaço de outro modo, habitar a existência de um modo distinto daquele como a habitamos social, cotidiana e culturalmente. Não arrastar essa corrente pesada que é Roberto Alvim para dentro do único lugar em que se pode instaurar a morte múltipla dessa identidade. Eu tenho os meus procedimentos para fazê-lo, mas é sobretudo uma mudança de ponto de apoio que precisa se dar. Enquanto a obra é um espelho narcísico da minha persona, ela me causa uma repugnância muito grande. Quando eu olho para um trabalho e não me identiico, quando eu não vejo a mim mesmo, quando eu vejo uma alteridade em relação a mim mesmo, então eu digo: “Agora essa obra está pronta!”. A obra é muito maior que eu como indivíduo, até porque esse indivíduo aqui existe dentro de um jogo social especíico que a gente cha- Entrevista com Roberto Alvim ma de mundo, no qual ele tem que operar. Mas é a instância inconsciente que capitaneia uma obra de arte, esse outro que nos habita, que para algumas pessoas vem de fora, para outras vem de dentro. Mas tanto faz, fora ou dentro, o que importa é que é um outro, o grande Outro, não tem a ver com o mundo cotidiano, esse outro não poderia operar ali... Confundiram-se as duas coisas no caso de Antonin Artaud, por exemplo, que é um indivíduo dentro da história do teatro pelo qual eu tenho um amor profundo e uma gratidão ininita... Ele morreu por nós, morreu para que não cometamos o mesmo equívoco, que é identiicar essas duas instâncias. Se eu entro no táxi e o cara me pergunta para onde vou, eu falo o nome da minha rua, não digo: “Vou-me embora para Pasárgada...” Agora, não me peça para arrastar esse jogo de linguagem que a gente chama de mundo, de realidade cotidiana, para o único lugar em que é possível se libertar disso e reinventar a vida humana completamente! Esse é o meu ponto, fazer disso – o teatro – um lugar de morte múltipla desse jogo de linguagem que a gente chama realidade, instaurando outros jogos de linguagem, outros reais, de igual densidade, contrapondo-se ao mundo e mostrando que o modo como nós vivemos lá fora não é a única possibilidade. Isso acaba inluenciando o nosso trato cotidiano com o outro? Claro! É inevitável: uma revolução estética sempre será também uma revolução política. M.G.: Há uma porosidade, mas não uma identificação entre linguagem e mundo? R.A.: Exato. Por exemplo, foi o fato de ter visto, ainda criança, os ilmes Satyricon, de Federico Fellini, e Gritos e Sussurros de Ingmar Bergman, que fez de mim um homem incapaz de meter a mão no bolso de quem quer que seja... Nessa época, nos anos 1980, chegaram os primeiros videocassetes no Brasil. E um dia, por algum motivo, por algum sussurro do daimôn no meu ouvido, vi uma revista sobre programação de TV onde aparecia uma foto do Satyricon... Meus pais não tinham nada a ver com isso, meu pai é astrônomo, minha mãe é teóloga, não tinham relação com arte. Então, eu vi que iria passar Satyricon às duas horas da manhã e aprendi a programar o videocassete. Gravei o ilme. No dia seguinte, quando cheguei da escola, fui assistir. Ter sido exposto àquela obra de arte abissal fez com que eu me tornasse uma pessoa para quem roubar o seu dinheiro é uma impossibili- Fazer disso – o teatro – um lugar de morte múltipla desse jogo de linguagem que a gente chama realidade, instaurando outros jogos de linguagem, outros reais, de igual densidade, contrapondo-se ao mundo e mostrando que o modo como nós vivemos lá fora não é a única possibilidade. 149 150 ABATE dade. Alguém vai dizer: “Então o Satyricon é sobre corrupção?” Não, não tem nada a ver com isso! Mas o fato de eu ter experienciado sensivelmente aquela obra-prima me afetou de tal maneira que ampliou e aprofundou a minha humanidade. Não é uma questão de princípios, é uma questão constitutiva. M.G.: Não é por uma moral. R.A.: Até porque os princípios morais só existem para revestir as ações mais sórdidas. Moral é sempre mentira. Ou se trata de algo sensivelmente constitutivo ou é mentira! Por isso eu digo que a exposição a obras de arte é a única forma de revolução política. Mesmo que essas obras não tenham nenhuma relação óbvia com política. M.G.: Sobre essa instância política da arte, tem uma colocação sua que eu considero lapidar, na qual você diz que uma obra a que todos reagem da mesma forma, numa peça em que todos riem ao mesmo tempo, choram ao mesmo tempo, se entediam ou se enrubescem ao mesmo tempo não é propriamente obra de arte, antes seria algo da ordem do rebanho. R.A.: Sim: a conciliação harmônica de obra de arte com plateia evoca criancinhas sendo conduzidas pela mão por uma professora do jardim de infância, ou gado sendo tocado para o curral... M.G.: Justamente gostaria que você falasse mais sobre isso. Conhecemos muitos casos de artistas que fazem um uso extremo do aparato e da publicidade e que pretendem, contraditoriamente, propagar certa ideia de revolução e, além disso, o que é pior, tentam passar uma mensagem unívoca (e muitas vezes doutrinária) em suas obras, tratando o espectador como gado. É o mesmo sistema gregário, sob outra roupagem. R.A.: Nós somos constituídos, sim, por personas culturalmente determinadas; são pontos de apoio hegemônicos e castradores de nossa potência poética. Mas temos também outro ponto de apoio libertador. Vamos chamar de inconsciente. Cinco por cento da nossa atividade neuronal é consciente, os outros 95% dizem respeito ao inconsciente. Muito bem, você pode agir reforçando esse ponto de apoio da persona, que é o que os produtos culturais fazem, essas obras que Entrevista com Roberto Alvim trabalham com o senso comum, onde há ordens como: “agora é hora de rir, agora é hora de chorar”, conduzindo as pessoas de modo uníssono e inequívoco, porque essas obras estão falando para o eu culturalmente determinado de cada um... No meu trabalho, eu não falo para esse eu, eu ignoro esse eu. Procuro falar com os 95% de atividade inconsciente de cada um, e, assim, esse eu ica perdido, completamente perdido... Estamos tentando nos deslocar para um outro ponto de apoio... Em nossas obras, não é dado nenhum alimento a essa persona culturalmente determinada, que é justamente o que faz a maior parte das obras teatrais; que são produtos culturais, que promovem a manutenção das nossas identidades culturalmente determinadas. Se cada pessoa reage de imprevisíveis modos diante de uma obra, então essa é uma obra de arte, trata de instaurar a emancipação de cada um dos membros do público em direções autônomas. É sobre emancipação, não é sobre condução da percepção... É sobre disparamento polissêmico da percepção, não sobre condução unidirecional. Toda obra de arte é política, porque as implicações políticas são inevitáveis. A questão é que quase todas as obras de temática política são da ordem do dirigismo e não da ordem do disparamento emancipatório. Uma obra de arte convida as pessoas a se emanciparem das formas e dos discursos hegemônicos. E o que é a política em sua forma mais profunda se não proporcionar o descolamento das formas e dos discursos hegemônicos, para daí possibilitar a conquista de uma instância de percepção singular, uma instância de liberdade de impressão? As pessoas brigam por liberdade de expressão, quando deveríamos brigar por liberdade de impressão! Nós somos bombardeados com as mesmas informações, aí quando abrimos a boca reproduzirmos duas ou três opiniões hegemônicas sobre todos os assuntos... É porque nós vemos o mundo da mesma maneira que, quando abrimos a boca, expressamos, como bonecos de ventríloquo, esses discursos hegemônicos... É preciso conquistar uma liberdade de impressão! Ano passado a gente fez uma peça chamada Revolução, no Centro Cultural São Paulo, a convite do Kil Abreu, em um evento de descomemoração dos cinquenta anos do golpe militar. O Kil convidou algumas companhias de teatro para esse evento, entre as quais estava o Club Noir. O meu ponto nessa obra foi mostrar que a sombra totalitária exis- A questão é que quase todas as obras de temática política são da ordem do dirigismo e não da ordem do disparamento emancipatório. Uma obra de arte convida as pessoas a se emanciparem das formas e dos discursos hegemônicos. 151 152 ABATE te em todos nós, independente do projeto político, e que se nós não percebemos essa sombra que paira, continua pairando e vai pairar para sempre dentro de todos nós, então todos os projetos políticos vão resultar em totalitarismos... Foi mal recebido? Por metade do público sim, que saiu xingando. Mas pela outra metade não, e havia parentes de desaparecidos e sobreviventes que tinham sido torturados. A obra foi experienciada profundamente por essas pessoas, que vieram falar com a gente ao inal. A outra parte saiu xingando porque não admitiu que na própria esquerda havia uma sombra totalitária. Mas quem tem medo da sombra totalitária é só quem não a enfrenta. Nós não podemos ter medo da sombra totalitária. Eu sou um cara bem intencionado, no sentido de que quero justiça social, distribuição de renda, não estou metendo a mão no erário, não sou um corruptor. Ainda assim, na minha relação contigo aqui, na minha relação com as pessoas que trabalham comigo, com os meus atores, com os meus alunos – a gente está dando cinco oicinas concomitantemente aqui –, eu tenho que, o tempo inteiro, estar consciente para não exercer o papel de autoridade, de detentor da verdade. Perceber e ampliar a dimensão de trocas artísticas que se estabelecem, não horizontalmente nem verticalmente, mas em múltiplas dimensões, ao mesmo tempo, e sempre mutáveis, cambiáveis. Porque, caso contrário, você começa a adotar essa posição totalitária. A gente vê, no teatro brasileiro, como uma série de grandes gênios foi se colocando no lugar de mestres, num lugar de automistiicação, endossados por seus séquitos. O cara se acha Dionísio! Mas ninguém é Dionísio. Dionísio é uma força que age por meio de nós. Ninguém é detentor dos direitos, das benesses ou das loas de Dionísio. É preciso quebrar essa relação o tempo inteiro, e isso nunca acaba, isso se renova a cada dia, porque nós somos seres humanos e todos nós carregamos todas as possibilidades. Era sobre isso esse espetáculo Revolução, por exemplo. Foi mal interpretado por alguns e foi compreendido por outros. Não há nada mais que eu possa fazer, eu não posso lidar com a frustração das pessoas. Um artista cria obras, mas não determina sua leitura. M.G.: Ainda acerca dessa questão da recepção, existe um aspecto formal preponderante nas suas peças, há quem considere que são obras difíceis. Como você dis- Entrevista com Roberto Alvim se, não se trata de conduzir a percepção do público, mas disparar a percepção de modo imprevisível. Ainda assim, gostaria de saber se você visualiza que o público que você tem aqui em São Paulo dialoga mais com a sua obra? Você se radicou em São Paulo, vindo do Rio de Janeiro. R.A.: Primeiro preciso destacar que minhas obras não são para “iniciados”. Quando me dizem: “Porra, Alvim, o seu teatro é para iniciados!”, desminto sempre, veementemente, com exemplos que são da ordem da experienciação. As peças operam de modos muito distintos para cada pessoa da plateia e, geralmente, quem tem mais problemas em lidar com nossos trabalhos são justamente os tais iniciados, são as pessoas de teatro, que esperam uma reiteração de suas certezas. A peça Peep Classic Ésquilo – uma das obras mais radicais que nós izemos, se não a mais radical, no sentido de que montar todas as sete tragédias de Ésquilo, cada uma delas durando cerca de vinte minutos, num espaço único (um cubo de ferro) no qual não há trilha sonora alguma, somente a voz humana e uma lâmpada lorescente ao fundo é algo radical – nos rendeu um convite para nos apresentarmos na Bienal de Veneza, com um e-mail muito bonito: “Não é que nós gostemos ou não do que vocês fazem, é só que não existe ninguém fazendo isso no mundo”. Isso é lindo, porque aponta para a questão da singularidade na obra de arte. Com essa peça, nós rodamos dezenas de cidades do país, cidades do interior inclusive, nos apresentamos para públicos leigos, e as reações, incrivelmente, muitas vezes são mais potentes do que quando nos apresentamos para “iniciados”, que icam trazendo falsas problematizações: “Porque, Alvim, quando Ésquilo escreveu essas tragédias, seu objetivo era outro, seu espetáculo está equivocado historicamente...” O que isso me interessa? É preciso perceber a força poética daquelas palavras sendo ativadas aqui e agora. Não é uma questão arqueológica, histórica. A história não pode funcionar como um peso morto, como um bando de panos velhos nas nossas costas. O mais importante é a experiência aqui e agora, proporcionada pela força daquele evento estético, independente de uma vinculação com notas de pé de página de qualquer livro. M.G.: – E sobre a sua relação com São Paulo... Não é uma questão arqueológica, histórica. A história não pode funcionar como um peso morto, como um bando de panos velhos nas nossas costas. 153 154 ABATE R.A.: Quando saí do Rio de Janeiro, eu estava a ponto de dar um tiro na cabeça. Não é uma bravata, é real, eu tinha comprado uma arma na Rocinha, com numeração raspada, porque eu estava num nível de desespero abismal. Eu não via saída. Nos últimos anos no Rio de Janeiro, eu estava tendo uma carreira muito representativa, com uma reverberação muito grande, eu era diretor artístico do Teatro Ziembinski, – tinha, portanto, um esquema de produção muito bom, tinha dinheiro garantido pela Prefeitura do Rio para produzir duas peças minhas por ano, e tinha, ainda, o poder de convidar dez artistas por ano para que produzissem suas peças nesse teatro. Além disso, eu era professor da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), dirigia montagens de formatura lá; enim, tinha uma condição de renda excelente para uma pessoa de menos de trinta anos de idade. Mas o meu trabalho estava indo para o buraco... Eu tinha uma relação muito difícil com a crítica do Rio de Janeiro, que me bombardeava com uma violência brutal, uma diiculdade muito grande de diálogo com o público da cidade, porque embora eu saísse na capa dos jornais, minhas peças não tinham público... Lembro que olhava pela cortina para ver se tinha 25 pessoas para fazer a sessão naquela noite. Então, como acontece com todo aquele que encarna o arquétipo do louco, o diário da corte me dava bola, a crítica me destruía e o público me ignorava! Eu era uma espécie de bode preto na cidade, que tem que existir, porque exerce uma função simbólica. Mas era desesperador pra mim. Quando eu vim para São Paulo, para minha surpresa percebi que quanto mais eu forçava a barra, quanto mais eu forçava os limites do teatro convencional, mais o meu trabalho ecoava. Eu me lembro que, na época de O Quarto, nós ganhamos o Fomento e começamos a reforma deste prédio, que era um galpão abandonado, e, como em toda reforma, os gastos foram aumentando. No im, eu coloquei 17 mil reais do meu próprio bolso na reforma – não só não ganhei nada inanceiramente com esse Fomento como coloquei uma grana do meu bolso... O fato é que, sem dinheiro para gastar com reletores, pensei: “E se eu usar lâmpadas luorescentes e incandescentes na iluminação?” Aí, eu mesmo pensei de volta: “Não, eu não posso fazer isso. Isso é amadorismo, isso Entrevista com Roberto Alvim é precário demais! A gente está inaugurando um teatro, vão vir os críticos e vão dizer: Lâmpadas caseiras? Esse cara está de sacanagem com a nossa cara?” Então a Juliana falou: “Por que não?” É a sorte de ter uma mulher como ela do lado, que sempre dá linha na pipa. A pipa está longe pra caralho e ela vai dando linha, não puxa a linha de volta, vai dando linha na porra da pipa... Aí eu coloquei as lâmpadas caseiras na iluminação do teatro. A peça estreou. Um amigo meu do Rio de Janeiro, o Daniel Tendler, que é dramaturgo e cineasta, veio e assistiu. No inal da peça, eu viro para ele: “E aí, Tendler, eu nunca teria feito essa peça no Rio, não é?” Ele falou: “Não é que você nunca teria feito essa peça no Rio, você nunca teria sequer pensado nessa possibilidade no Rio de Janeiro”. Eu fui vendo que quanto mais nós forçávamos os limites, quanto mais a gente trabalhava no sentido do risco radical, mais a cidade nos acolhia, o público nos frequentava; a tal ponto que eu notei que, se eu fizesse concessões ao senso comum, aí sim eu seria apedrejado! Se você for pensar que uma peça como Peep Classic Ésquilo, feita num teatro de cinquenta lugares, foi eleita por cinco críticos convidados pela Folha de São Paulo como Melhor Espetáculo Nacional de Teatro em 2012; ou pensar no Tríptico Richard Maxwell, eleito também pelos críticos da Folha como Melhor Espetáculo Nacional em 2010... São coisas impossíveis de acontecer em outra cidade que não seja São Paulo. No entanto, São Paulo está passando, hoje, por um processo de retração em todos os sentidos. Se eu tivesse chegado a São Paulo agora, não seria a mesma coisa que em 2006. O país inteiro está nesse processo de retração, não vou entrar nos porquês, mas o fato é que houve cortes brutais no orçamento da cultura no âmbito municipal, estadual e federal. Estão rolando cortes e tudo está ficando mais caro. A Petrobrás deixou de patrocinar o teatro, coisa que era muito importante, porque fazia manutenção de cias. por dois anos e nós não temos mais isso agora. M.G.: Visualizo os aspectos trágicos das suas obras, não só no Peep Classic Équilo, mas também nas outras peças contemporâneas. Como você vê o estatuto do trágico hoje e como isso está presente no seu projeto estético? E, também 155 156 ABATE O trágico é o único contraluxo que existe em relação à hegemonia da neurose como modus vivendi contemporâneo. nesse sentido do trágico, o que haveria de teológico no seu teatro? R.A.: Que coincidência você falar disso! Nesse momento, eu estou reescrevendo o “Gênesis” [tira da bolsa um exemplar da Bíblia Sagrada]. Estou reescrevendo o Velho Testamento para uma peça que vai se chamar Gênesis e que vai estrear em breve aqui, no Club Noir. Para mim, a questão do trágico (e o sagrado e o trágico são indissociáveis) se relaciona com tudo aquilo que minha razão não alcança completamente. O trágico se relaciona com o im das ilusões de controle. Nós, como neuróticos que somos, não somos trágicos, e é por isso que o drama burguês acabou sendo uma forma cênica dominante. O neurótico é aquele que acredita que pode controlar a vida, o outro e a si mesmo. É claro que isso é uma ilusão, pois o implacável nos alcançará na próxima esquina, quando menos esperarmos... Para mim, é uma condição crucial que nós operemos no sentido trágico hoje, porque o trágico é o único contraluxo que existe em relação à hegemonia da neurose como modus vivendi contemporâneo. O trágico, isto é, a relação com tudo aquilo que minha razão não alcança completamente; o trágico, isto é, o im da ilusão de controle: eu não controlo a vida, eu não controlo o outro e não controlo sequer – como Nelson Rodrigues mostrou, e ele é um autor trágico – a mim mesmo. O desejo lui e relui, salta imprevisivelmente, vaza por pontos de fuga o tempo inteiro e, se nós soterramos essa instabilidade, nos tornamos mortos em vida. Fora isso, existe uma questão, no trágico, que muitas vezes se confunde. Quando cai um avião, as pessoas falam: “Ah, foi uma tragédia!” Não, não é uma tragédia. Existe um componente na tragédia que não está presente ali. Aquilo é um desastre. É um acontecimento terrível, mas não é uma tragédia. Existe um ponto crucial no trágico que é uma airmação de que a vida deve ser vivida em intensidade radical. O trágico consiste soberanamente na escolha por esse modo de vida intenso. Por isso um acidente não é uma tragédia. O herói é aquele que sabe que agir de determinado Entrevista com Roberto Alvim modo o levará à catástrofe e que, mesmo assim, diz: “Sim! Eu me irmano com a impossibilidade de controle da vida. Eu me irmano com a alegria, com a dor, com a paixão, com o desespero!” Por isso que tudo o que a gente faz em teatro, se não tem esse substrato conectado ao sentido trágico/sagrado da existência, é absolutamente irrelevante. E, pior do que irrelevante, está promovendo a manutenção da atual vida burguesa, desse quadro de referências mediocrizante. É um estado modorrento em que há um nível de autocastração muito grande. É um estado de autopreservação covarde. É importante se entregar à intensidade de cada instante, fazê-lo deliberadamente. A experiência de Lúcifer, de cair durante sete dias e sete noites, o encontro dele com o chão – não esse chão, mas o chão mais profundo –, aquilo é uma vida vivida plenamente! É só pela desobediência que nos tornamos criadores. Pinóquio só se torna humano porque desobedece, quem obedece permanece boneco... M.G.: A Hamartia!? R.A.: Exato! Há que se louvá-la, não refugá-la. Tem outra coisa que eu gostaria de colocar que está em Os Persas, uma coisa muito bonita. Os Persas [de Ésquilo] é a primeira peça de que se tem registro na história do teatro (embora alguns estudiosos sustentem que a primeira seja As Suplicantes). Veja que interessante, nessa primeira peça já é apresentado um fantasma em cena; o trânsito entre este mundo e o mundo dos mortos, entre o visível e o invisível, já está na primeira peça da história! Isso mostra essa potência do teatro de realizar a invocação do invisível, tornar presente o que aqui não estava. No inal, os persas invocam o antigo rei e falam: “Só você pode nos ajudar. O império foi destruído. O que a gente deve fazer?” Então, o fantasma do rei diz: “Alegrem-se e aproveitem enquanto vocês estão vivos. Porque entre os mortos nada signiica nada. Não importa se estão sofrendo, vocês estão vivos. Alegrem-se! Vivam isso!” Trata-se de mergulhar, entrar de cabeça na intensidade, viver a instabilidade até o último segundo, irmanar-se ao enigma. Para essa ventura, só é preciso coragem. Trata-se de mergulhar, entrar de cabeça na intensidade, viver a instabilidade até o último segundo, irmanar-se ao enigma. Para essa ventura, só é preciso coragem. 157 158 ABATE ALÔ, ALÔ! Ana Maria Bomfin Pitiu* Alô – De referências e experiências *Ana Maria Bonfim Pitu é artista plástica, arte-educadora, integrante do Grupo Núcleo, coletivo de artes de São José dos Campos. Meu avô era sapateiro na rua do cemitério, no centro de São José dos Campos. Andava de bicicleta preta com selim de couro e dínamo para iluminar seu caminho. Carregava uma garrafa de guaraná com café e rolha de papel de pão. Usava presilha na barra da calça e chapéu de palha por causa do sol. Não era Piraquara não. Em sua bicicleta, esse personagem da história da cidade atravessava a Rua XV de Novembro rumo ao CTA (Centro Tecnológico Aeroespacial), onde meu pai era professor do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Que privilégio histórico, arquitetura Niemeyer, móveis Zanini, “cinema de arte”, movimento político dos alunos do ITA! Mas também militares tensos! Nasci em São José dos Campos e, ainda por cima, no seio de uma família de São José dos Campos. Hoje percebo que essa é uma característica muito incomum na maioria dos habitantes da cidade, devido principalmente às fases históricas da formação da cidade, sempre trazendo pessoas de vários lugares do Brasil (como se sabe, primeiro a fase sanatorial, e, hoje, a fase industrial-tecnológica). Na minha relação com a cidade, acentuou-se a percepção da Cidade Ruína, nos anos 2000. Cada quarteirão tinha pelo menos uma casa, casarão, bar, loja derrubado. Anterior a esse período é a demolição do casarão do Colégio Synésio Martins, na Avenida Nélson D’Ávila, em frente ao Correios. Numa rapidez inédita virou o primeiro McDonald’s da cidade. Logo foi demolido, e diz a lenda que foi o único McDonald’s do mundo a fechar (pelo menos naquela época). Para nós, foi um orgulho. Alô, alô! Era caminhar em direção ao centro da cidade e assistir semanalmente a uma demolição. Ainda hoje, novas ruínas surgem, mas estão integradas à paisagem cotidiana, as pessoas se acostumam e nem percebem mais. Porém, essas alterações sempre são percebidas pelos artistas visuais. Sempre as observo, analiso e, muitas vezes, integro-as à poética de meu trabalho artístico. O muro do Parque Vicentina Aranha – antigo Sanatório – foi inúmeras vezes criticado por nós, que desejávamos sua retirada. O muro interditava a integração do Parque com a cidade. E, assim que foi demolido, iniciou-se todo um processo de gentriicação, erguendo outros tipos de barreira. Fiz inúmeras fotos e pinturas com esse tema, “muro”, e assim percebi outros muros que nos afetam, interditam. Os outdoors enileirados pelas avenidas eram também muros que interditavam a paisagem. Realizei muitos painéis com pinturas que eram como um zoom desconstruindo a imagem, uma imagem formada por bolinhas coloridas justapostas que de longe iludem e fazem uma integração, uma narrativa. A estética da propaganda. Passei a acreditar que a alfabetização visual, que entender o processo de construção das imagens e suas narrativas nos torna mais críticos em relação ao consumo. É como conhecer os bastidores dos espetáculos e ir percebendo como foram construídos, porque certas escolhas foram tomadas, que objetivo foi posto inicialmente, que conceito serviu de ponto de partida na criação e como ica na estrutura inal. (DERRIDA, Desconstrução). O poder da imagem se tornou meu foco de interesse principal. Como uma imagem, um símbolo, uma ação pode interferir na cena urbana e desestabilizar aquela percepção mimética do cotidiano? Como uma pintura pode ser construída com iguras sem ter narrativas? (DELEUZE, A lógica da sensação). Períodos da história da arte, obras e artistas entraram na minha pesquisa pela linguagem, pelo tema, pela técnica, pela beleza. Que jogo é esse das imagens abundantes? E como, diante dele, ainda ter issuras na percepção? 159 160 ABATE Principiei, assim, o período de estampar fotograias, primeiro das ruínas, depois retratos, e a fazer interferências com pintura e colagens. Depois, fotografar o trabalho pronto e imprimir novamente. O resultado mostrava uma massa de tinta da pintura, densa que deslocava a percepção da imagem como um todo, enganando a retina. Muitas pessoas precisavam tocar o trabalho para sentir se essa massa existia mesmo, se era pintura, se era fotograia, ou se era os dois, talvez. Sim, a fotograia de uma pintura feita sobre uma fotograia, (eis a lógica da sensação) planejada para conter massas de tinta com cores próximas à da foto referência. Não era abstrato. O procedimento artístico desviava a narrativa da igura. Foi uma pesquisa muito gratiicante e um enorme desaio. Trabalhar a pintura sobre a igura estampada, eliminando formas até chegar ao mínimo reconhecível da igura. O quanto se pode eliminar de uma imagem e ainda reconhecê-la? A partir dessas experiências, fui incluindo o pensamento de realizar interferências em outras ações artísticas, principalmente na rua e nos processos criativos voltados para a arte e educação. As ações na rua e a relexão sobre o espaço urbano me levaram, naturalmente, a questionar o sistema da cultura e da arte, devido a enormes diiculdades e impedimentos para poder realizar os trabalhos. Mas situações de impedimentos podem ser altamente criativas, exigem uma capacidade de análise e síntese para poder interferir, romper, agir sem ser interditado. Achar a issura ou produzi-la. Sou integrande do Grupo Núcleo, que atua no campos das artes visuais e do ativismo em São José dos Campos e região: dentre outras coisas, fazemos intervenções urbanas visando à ampliação do espaço da arte na cidade. Por impedimento de fazer arte na rua, nós do Grupo Núcleo criamos os DPA’s – Dispositivos Práticos Artísticos. São objetos já existentes que carregam uma mensagem artística, um procedimento usado na época da ditadura por alguns artistas brasileiros como Cildo Meirelles e, antes, por Marcel Duchamp, que inseriu os ready-mades nos Museus e Alô, alô! galerias. Assim, panletos que já circulavam pelas ruas passaram a ter mensagem críticas sobre essa situação da cultura e da arte na cidade. Colocamos inúmeros deles nas caixas de correio de casas, hotéis e espaços culturais. Inserções no jornal local, na sessão de classiicados, davam notícias de ausência de museu e de arte nas ruas, em contraste ao excesso de templos de consumo na cidade. Criamos os monóculos gigantes e resgatamos os pequenos monóculos de plástico contendo imagens alteradas do cotidiano ou referências de arte. Envelopamos com celofane laranja bancos de praça, postes, cestos de lixo, árvores, orelhões e bebedouros no centro da cidade. Estendemos faixas nos semáforos fechados com dizeres do tipo: Siga pensando. E os guardas “marronzinhos” nos ajudaram, pois confundiram com campanha de trânsito. Levamos uma porta com batente para a entrada do Mercado Municipal e as pessoas passavam por ela e viam escrito em cima: “Museu Municipal”. Nesse dia, ele, que estava sempre fechado, simbolicamente abria. Estampamos varias caçambas com estampas de artistas convidados que seriam colocadas na rua como outras caçambas em uso. No im, icaram no jardim do SESC, não conseguimos autorização, porque na rua roubariam o sagrado lugar dos carros. Criei adesivos na forma de caçambas com nossos endereços eletrônicos e site e levei para Bienal de Veneza; documentei com fotos todos os lugares em que colei os adesivos, dentro e fora da Bienal. Numa visita à Bienal do Merco Sul, criamos as Sacolinhas, novo DPA contendo outros DPA’s . Distribuí para artistas, curadores e público mais de 300 sacolinhas com mensagem sobre nosso território, que era bem o tema da Bienal. Em 2014, uma Sacolinha foi para o acervo da Biblioteca do MAM SP na sessão de ações artísticas de coletivos de arte. Nessa incluí um avião de plástico de loja de $1,99, com chita colada nele todo. Todos esses são exemplos de como nasceu meu inconformismo, que se tornou ativismo. Trabalho diariamente procurando viabilizar ações que integrem processos artísticos seja 161 162 ABATE no atelier, seja em escolas, grupos de pesquisa, mostras e exposições em instituições, ações urbanas, análises de resultados, pesquisas, curadorias. Quero realizar meu trabalho e ver outros artistas plásticos atuando, quero a ampliação das artes plásticas na cidade, quero o Museu Municipal aberto e com tipologia acentuada em Artes Visuais, e, acima de tudo, quero que se priorize a arte e cultura na infância e adolescência. É nisso que acredito: que as ações culturais devem eleger esses dois públicos, o que com certeza precisa incluir todas as escolas. Tendo em vista o desenvolvimento de processo criativo e a compreensão do signiicado da imagem, iniciei o projeto Recriarte, no Instituto Recriar em 2006. Pensado e totalmente voltado para crianças entre 7 e 12 anos, ele tem objetivo de oferecer aos alunos exposições de obras de arte para serem apreciadas (não apenas em livros), e também espaço para experimentarem o processo criativo. Assim, os alunos têm contato com técnicas e processos artísticos para desenvolverem a criatividade, ampliarem repertório e vocabulário de arte, reconhecerem e identiicarem nos seus próprios trabalhos processos similares aos dos artistas apresentados e ainda experimentarem o atelier como um campo criativo livre de datas comemorativas e das exigências de produtos inalizados. A alfabetização visual, por meio da experiência artística, estrutura conhecimento e posturas críticas em relação a modelos préestabelecidos e ao consumo massivo. Devido a essa experiência, fui convidada a estruturar o atelier de outras escolas da cidade. Dessa experiência de curadoria dos artistas para exposições no Instituto Recriar, comecei a fazer curadoria para outras instituições, o que ampliou muito meu campo de trabalho. “Aprendizado pela experiência e reconhecimento da própria capacidade de criar.” (Jorge La Rossa Bondía). A partir da prática com as crianças no atelier, me dei conta que seria profícuo passar tal experiência para professores de arte, relacionando técnicas, processos artísticos, referências de arte contemporânea: então iniciei mais uma atuação de trabalho. Elaborei Alô, alô! pesquisas de outras experiências e conclui que os professores de artes, na maioria, não são artistas, estão distantes do processo criativo, da prática artística, e isso prejudica sua ação nas aulas: ela não gera desdobramentos nem aproxima a arte do cotidiano dos alunos. Portanto, propus workshops voltados para desenvolvimento de processos criativos de professores de arte da rede municipal, uma metodologia que contém o pensamento da desconstrução dos processos e da empatia (colocar-se no lugar do outro). De um convite para fazer a pintura dos igurinos da peça Um dia ouvi a Lua, da Cia. de Teatro da cidade, passei a trabalhar também com grupos teatrais, criando e produzindo cenários e igurinos. Essas experiências exigiram a percepção do espaço cênico como campo criativo, no que minha experiência em arquitetura e design nas faculdades que frequentara me ofereceram subsídios fundamentais para integrar formas, planos, cores na caixa cênica. A percepção pela distância integrada com os atores. Atender à concepção estética de um diretor e dialogar com ela. Ser suporte do ator, da cena e da história contada. Hoje percebo esse trabalho como instalações que envolvem materiais, formas, cores, luzes, planos espaciais, como na pintura. Alô São José dos Campos. Arte e cultura já “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe” (Walter Benjamin) “O dia em que as políticas izerem o encontro entre educação e cultura efetivamente, a gente muda este país.” (Danilo Santos de Miranda) 163 164 ABATE A educação e a cultura são reconhecidas como pontos essenciais para o desenvolvimento, no século XXI. Estão na agenda da campanha de muitos políticos que, depois de eleitos, não assumem ações efetivas que possibilitem à população vivenciar o encontro da cultura e da educação, seja por meio do investimento em escolas mais culturais, em espaços culturais mais educativos, seja criando novas soluções, tão abundantes nas experiências contemporâneas em diversos lugares do mundo. Não se trata de uma questão de verba, mas de decisão política, priorização real, capacidade de planejamento e criatividade na concepção e execução de projetos, a im de que se concretizem as propostas acordadas com os cidadãos-eleitores. Não é impossível fazer. Basta analisar o caso do SESC-SP, que, por meio de experiências práticas em suas 36 unidades, vem fomentando debates, discussões abertas a outras instituições. São ações muito bem planejadas em todas as linguagens artísticas, pensadas como meio para formular teorias que suportem outras ações culturais, tornando, assim, a área da cultura um campo de pesquisa, experiência e ação. Conduzido pelo Prof. Danilo Santos de Miranda, o SESC-SP é uma prova concreta de que consistência e continuidade, ousadia e rigor são necessários para a geração de resultados concretos no campo das artes e da cultura, com benefícios tangíveis à qualidade de vida da população e à requaliicação dos espaços urbanos e de convivência. Na esfera pública, o SNC (Sistema Nacional de Cultura), o PNC (Plano Nacional de Cultura) e todos os sistemas estaduais e municipais decorrentes desses permitem sistematizar, organizar, especiicar as leis e normas na prática das políticas culturais, qualiicando um setor que, infelizmente, sempre tem estado a reboque nos discursos políticos eleitoreiros. Acredito ser extremamente importante a adesão ao SNC realizada em 2013 por São José dos Campos, pois boas políticas culturais em andamento – como, por exemplo, o Fundo Municipal de Cultura e a recente Plataforma Lugares da Cultura – não icarão suscetíveis à descontinuidade por alternância de partidos na gestão municipal. Queremos acreditar que sim. Um dos principais aspectos culturais da nossa cidade é a sua diversidade, caracterizado por matrizes culturais vindas de várias regiões do Brasil. Temos uma característica histórica Alô, alô! de ciclos que formaram nossa malha urbana com arranjos culturais híbridos, e assim continua a acontecer. Portanto, não podemos falar em matriz cultural única, como se existisse uma origem pura e inocente que estaria sendo destruída, violentada pelo avanço da cidade tecnológica. Não cabe ao gestor cultural público selecionar ou eleger preferências pessoais para desenhar uma ação cultural que comprove o seu ponto de vista. É o contrário: as ações culturais pautadas nessa diversidade cultural existente devem ser priorizadas, praticadas e analisadas rigorosamente, gerando parâmetros consistentes que irão alimentar novas ações e assim por diante. É um campo para inclusão e não para afastamento. É notável que – apesar da hibridização cultural claramente vivenciada pela população em suas diversas relações – parte signiicativa de quem trabalha com a Cultura em São José dos Campos está imbuída de um tipo de preconceito cultural de mão dupla: por um lado, nos pequenos (mas poderosos) círculos privados, a negação de que as raízes populares fazem parte do que somos; por outro, na atual gestão pública, a rejeição de nossa característica de polo tecnológico e de pesquisa, que já resultou em importantes produções culturais que se tornaram referência no Brasil e no mundo, em especial nos campos do design, da arquitetura e das artes plásticas. Por mais preocupados que sempre pareçam, nunca deram a devida atenção às obras modernistas que compõem parte de história de São José dos Campos. Como em outras manifestações da arte brasileira, a arquitetura produziu. no trabalho de Oscar Niemeyer, um dos artistas presentes nesse novo contexto de produção da cidade, uma união perfeita entre as formas do modernismo de Le Corbusier e nossa arquitetura colonial. Nossa cidade tem, ainda, um acervo importante de arquitetos, como Rino Levi e Roberto Burle Marx, que traduziram em espaços e volumes essa nova vocação tecnológica e industrial. Foram, porém, transformados em lamentáveis fachadas de shoppings alguns elementos importantes dessa arquitetura industrial: os edifícios da antiga fábrica da Ericson do Brasil, de Niemeyer, e o conjunto industrial da São Paulo Alpargatas, de Giancarlo Palanti. Foram destruídos porque sequer foram reconhecidos como obras importantes, exemplares históricos que deveriam ser protegidos pelo poder público como prioridade de valor cultural. 165 166 ABATE Tanto no trabalho desses arquitetos como na pintura e na literatura, muitos artistas compreenderam essa mescla inseparável entre as manifestações das artes populares e daquelas que conquistamos por meio da pesquisa e do desenvolvimento conceitual. São entes vivos que se encontram em todas as atividades e devem se multiplicar juntos, em um mútuo enriquecimento. Existiu aqui, em São José dos Campos, de 1962 a 1970, a Escola de Belas Artes do Vale do Paraíba. Também foi aqui que aconteceu o atelier de artes infantil da Escolinha de Artes do CTA, criado pela professora Ivonne Tessin Weis em 1964, funcionando até a década de 1980. Pensar a partir de dois polos separados, como tem sido feito, não contribui em nada ao fortalecimento da cultura joseense. Ao contrário, criam-se e alargam-se cisões onde deveria haver convergência; desentendimentos onde deveria haver colaboração criativa. Pensamos que no âmbito privado as escolhas são feitas de acordo com gostos e interesses pessoais. Porém, fato grave é que a gestão cultural pública da cidade, que teria como missão fortalecer o movimento convergente, tem contribuído de forma direta para a consolidação do preconceito cultural, realizando escolhas enviesadas sempre a favor das manifestações populares, inclusive isolando-as do diálogo em razão de uma escolha purista que não favorece a relação com a sociedade atual em que vivemos. Pode parecer injusto para com os artistas e artesãos da cultura popular apontar esse problema. Mas não é, pois a crítica é voltada para política cultural da instituição Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), e não para os artistas. Acredito que um programa de política cultural democrático pode inclusive gerar ampliação e reconhecimento nãoestereotipados dos segmentos da cultura popular, permitindo inclusive que se relacionem com outras linguagens artísticas. Exemplo disso foi o Projeto Piraquara, sob direção do CECP (Centro de Estudos da Cultura Popular) – hoje um projeto que mantém apenas oicinas temáticas, sem o grupo de pesquisa com teatro. “As singularidades artísticas e culturais demandam do gestor atenção, capacidade de compreensão de seu contexto e ações efetivas, de modo a considerar os desaios de relacionar tradição e inovação, o local e o global, o especíico e o transversal da cultura”. (BARROS; JUNIOR. Pensar e Agir da Cultura: desaios da gestão cultural.) Alô, alô! O exercício da diversidade cultural é um elogio à condição humana. A gestão cultural está especializada e se amplia em todo Brasil. Portanto, buscar proissionais experientes em gestão cultural sintonizados com uma política cultural clara e de inclusão da classe artística, cultural e produtora é uma decisão política. É preciso limitar as contratações por selo partidário. O entra e sai dos cargos de coniança inviabiliza um trabalho continuado, exige que se aprenda a função durante o próprio mandato estabelecido: o tempo passa e as ações se interrompem ou mal se iniciam, são tímidas. O diretor de teatro responsável pela Cia. de Teatro da Cidade, Claudio Mendel, foi duramente criticado por grande parte do movimento cultural quando foi diretor cultural da FCCR, criticado inclusive por esse mesmo grupo que hoje está aí na administração municipal da Arte e da Cultura. Mas esses hoje à frente da FCCR não estão isolados numa administração de outro partido político. Formam um grupo, estruturado e selecionado entre seus pares, de carteirinha. Esse é o grande desaio: operar e potencializar a relação na diferença. E o campo da Arte e da Cultura é o mais propício para se iniciar uma experiência relacional que valorize a diferença. A importância dos equipamentos culturais como espaços de crítica, diálogo e criação Em agosto de 2009, dentro do já referido Projeto Caçamba, do Grupo Núcleo, criamos também um material gráico chamado Ilusão Cultural. O Ilusão Cultural foi uma DPA que surgiu justamente dessa falta de diálogo entre artistas e instituição cultural. Foram seis mil unidades de Ilusão Cultural distribuídas pelos espaços culturais da cidade e, para nossa surpresa, foram apreendidas pelo presidente da FCCR na época, que mandou retirá-las de todos espaços da instituição. Nossa avaliação foi de que o dispositivo atingiu seu objetivo de criticar, apontar um problema, fazer reletir; porém nunca concordamos com a censura que sofremos. E não concordamos agora, também, com a atual carência de ações voltadas para as Artes Plásticas. 167 168 ABATE No vídeo Quem tem medo da Arte Contemporânea, o curador Fernando Cocchiarale nos apresenta um panorama sobre os pré-conceitos sobre a arte contemporânea que permeiam principalmente as instituições culturais, seus administradores e seu público; e eu sempre pensei que tal avaliação se encaixaria como uma luva em São José dos Campos. Certamente esta cidade tem uma Instituição Cultural com medo da Arte Contemporânea. E é nesse ponto que ter tido o Museu Municipal tanto tempo fechado causou enorme dano cultural, pois assim não se dissemina essa diversidade artística existente, não gera debate, nem relexões, nem críticas, nem fomento. Quanto maior a convivência com obras de arte, maior a demanda para que elas existam no cotidiano da cidade. Apenas assim será possível permitir diversas leituras de acordo com o repertório de cada um e não somente um viés repetitivo. Já realizei vários trabalhos junto a artesãos, mestres e artistas da cultura popular, e já produzi inúmeras exposições para dar visibilidade a seus trabalhos; igualmente, tive oportunidades de conversar sobre seus processos criativos, experiências e tradições. Aprendi muito com esses mestres, reconheço na cultura popular possibilidades muito férteis de integração com outras áreas culturais e artísticas, desdobramentos entre tecnologias, materiais, procedimentos e processos. Precisamos potencializar a capacidade de interseção entre artistas, artesãos, cultura popular, tecnologias, arte urbana, artes plásticas, enim, libertar os artistas e seus processos de categorias e modelos pré-estabelecidos, e convocar possibilidades de críticas aos resultados. A crítica é necessária. Sim, nós podemos cobrar dessa Instituição da Arte e Cultura, a Fundação Cultural Cassiano Ricardo, muito mais. Porque nos organizamos antes, porque colocamos ideias para serem conjugadas e não apartadas após cargo assumido. No início do atual mandato, fomos convocados para iniciar um diálogo que não teve continuidade. Esse falso diálogo é cansativo e mina as possibilidades de apoio e o reconhecimento de algumas ações positivas, mesmo que tímidas. Esse processo é desgastante e gostaríamos de acreditar que estamos errados em desesperar, gostaríamos de ver que, na verdade, por trás de tudo existe, sim, um grande planejamento acontecendo, e que com o Alô, alô! tempo será possível ver surgir a grande ação cultural sem preconceitos, com forte investimento em ações voltadas para o regaste das artes plásticas e para a valorização da arquitetura na cidade. No entanto, não é isso que tem se demonstrado até agora: entra partido político e sai partido, a FCCR mantém o mesmo mecanismo. E a nós cabe acreditar! Até o meio do ano de 2015, eram ao todo 18 projetos na agenda anual da FCCR, entre Literatura, Música, Dança, Teatro, Cultura Popular, Patrimônio, Festas e nenhum de Artes Plásticas. Nenhuma mostra coletiva nem individual de artistas da cidade com critérios seletivos claros, nem de convidados, nenhuma bienal de gravura, pintura, fotograia; nenhuma itinerância vinda de outras instituições mais importantes, como CCBB, Bienal de SP, que costumam viabilizar esses recortes nas exposições que realizam e com os quais tantas outras cidades do estado são contempladas. Para não cometer injustiça, devo lembrar da Mostra de Fotograia, realizada em 2014, com excelente curadoria, envolvendo disseminação das imagens de maneira inovadora e criativa. São 19 os Espaços Culturais em São José dos Campos, sendo: 9 Casas Culturais, 2 Museus, 3 Bibliotecas, 1 Teatro, 1 Galeria de Arte e o Arquivo Público.1 Das 350 oicinas da Ação Cultural, 150 acontecem em 45 espaços parceiros e 200 nas 9 Casas Culturais da FCCR. O Teatro Municipal está fechado. A obra do novo Teatro (o Teatro Invertido) se encontra parada na justiça por questões político partidárias; o Centro de Estudos Teatrais (CET), interditado; a casa do Parque Roberto Burle Marx, sem data para restauro, e o Teatro Benedito Alves teve festa para marcar o início das obras. Viva! A Galeria, que funcionava na Igreja São Benedito, era um arremedo, sempre tentando ir para outro prédio, era um improviso; talvez vá para o Teatro Benedito Alves? A Galeria não tinha uma agenda coniável, não tinha um educativo trabalhando na ampliação de público nem do entorno e nem de escolas, não tinha procedimentos claros de seleção dos artistas para expor, não tinha seguro de obras, não tinha mão de obra especializada em montagem; portanto, não era uma Galeria de Arte. Fechada está. 1 Dados e nomenclaturas retirados do site oficial da FCCR no primeiro semestre de 2015. Disponível em: <http://www.fccr.org.br/>. 169 170 ABATE Criaram o CETinho. Que os colegas do teatro me desculpem, eles não deveriam se submeter a esse arremedo também do CET. Tanto quanto a Galeria de Arte, é cheio de “senões”. Chega de arremedos! As Artes Plásticas carregam um preconceito que surgiu nos idos anos 1980 e 1990 e que precisam ser desmistiicados. Por que as oicinas nos espaços culturais, casas de cultura têm uma demanda enorme inicial e depois mínguam? Isso ocorre ano após ano; muda administração e partido político e continua a acontecer. Não ando bisbilhotando listas de frequência, sei o que é sabido pelos que frequentam. As oicinas voltadas para a Infância chegam a 8% do total (análise feita no site). Numa política cultural, mesmo que de transição, a Infância já deveria ser contemplada com maiores dispositivos por meio de parcerias com as escolas vizinhas aos espaços culturais. A existência da oicina de yoga, que, pessoalmente, acredito ser muito importante, demonstra que tentativas inovadoras têm sido tomadas, mas que existem critérios seletivos de oicinas não muito claros (relembrando que a polícia cultural não deveria ser pautada em gosto pessoal). Espera-se que a Instituição que cuida da Arte e da Cultura na Cidade, a FCCR, tenha competência, ousadia e entusiasmo nas parcerias com as escolas e equipamentos culturais da Secretaria de Educação. Mas isso não acontece. Existem problemas de relacionamento entre as Secretarias. 2 Disponível em: < http://www.museus.gov.br/ wp-content/uploads/2011/05/gmb_sudeste. pdf>. Acesso em: 04 nov. 2015. O exemplo disso é o Museu Municipal. No site do Instituto Nacional de Museus2, indica-se que existem cinco museus na cidade de São José dos Campos e não dois, como consta no site da FCCR: Memorial Aeroespacial Brasileiro, Museu do Esporte, Museu do Folclore, Museu Relicário do Padre Rodolfo Komórek, Museu Municipal de São José dos Campos (com início em 1991, seu status atual aparece como fechado). O Museu de Arte Sacra ainda não consta no cadastro, o que totalizaria, então, seis museus. A ediicação para o Museu Municipal já existe ,com salas de acervo permanente, salas especializadas para documentos, espaço para restauro e reserva técnica, com o respectivo Alô, alô! projeto detalhado do mobiliário, bem como sala de restauro, salas climatizadas para fotos e ilmes e um grande espaço para exposições eventuais, capaz de abrigar uma bienal, se necessário. Essa ediicação está no Parque da Cidade e não se justiica qualquer outra adaptação de “Museu” em detrimento do seu funcionamento pleno conforme planejado e construído. Em seu andar superior, abriga hoje o CEFE (Centro de Formação do Educador). Em tempo, tem um auditório para 300 pessoas e um aniteatro para 1000. Existe um problema (herdado) relativo à origem da verba de construção (reforma), que limitou seu uso à Secretaria da Educação (falando grosso modo), e que os departamentos jurídico das duas instituições deveriam se debruçar com determinação e solucionar. O CEFE abriga, hoje, além do espaço do museu, um espaço expositivo de 800m2, que foi inaugurado com a exposição Usina14. A exposição foi vista por 38.635 pessoas, sendo 31.222 proissionais da Educação e alunos, numa demonstração clara que cultura e educação já estão andando juntas nesta cidade e só seus administradores ainda não entenderam esse potencial. Existe o público, existe a proposta educativa, existem os proissionais e existe a arte. E a política, com seus administradores, se esbarram pelos corredores da reeleição. A ediicação feita para o Museu Municipal e o espaço expositivo do CEFE estão fechados. Fechada também a diversidade e as possibilidades que seriam geradas a partir desses dois equipamentos culturais tão importantes. Parcerias permitem a ampliação da ação cultural, tirando o ônus de manter a estrutura necessária e a FCCR não tem estrutura suiciente de pessoal especializado. Outra decisão política importante, aliás, é a de ampliar o quadro de funcionários capacitados e investir na sua proissionalização. Gestores da Arte e Cultura: não se limitem ao seu quarteirão, seu quintal, seu canto do passarinho quando pensarem na cidade; deixem isso para a vida privada, porque tem quintal que toca axé, outro toca rap, outro música eletrônica e outro, queiram ou não, toca música erudita contemporânea. 171 172 ABATE Viabilizar processos criativos não requer a mesma metodologia de orçamentos, planejamentos e pesquisas. Todo processo criativo é uma experiência que estrutura saberes e criatividade, permitindo que se transira essa capacidade de atuação para outras áreas do conhecimento. Por isso é urgente mais arte nas escolas. Toda a estrutura institucional deve estar a favor da expressão artístico-cultural e não o contrário, como costuma acontecer, quando se cria impedimentos, entraves e antipatias. Conheço, percebo, aprecio e trabalho com artistas jovens e velhos, da cultura popular, da arte urbana e da arte contemporânea, e também educadores e produtores, das artes visuais, do teatro, da música, da dança, da literatura, da fotograia. Estamos conseguindo realizar nossos trabalhos de maneira independente. Ainda assim, todos percebem as enormes possibilidades sendo perdidas. Há um potencial artístico sem precedentes nesta cidade hoje, em 2015. Assumam a diversidade como nossa melhor característica cultural. Reconheçam nos jovens o nosso melhor potencial criativo. Transformem as escolas em plataformas de pesquisa e criação de processos artísticos integrados. Queremos o que esta cidade nunca viu: que as instituições de fomento cultural públicas e privadas defendam a Arte e Cultura da Cidade estando no cargo em que estiverem, seja de que partido forem, e não somente dando pedrada antes de assumirem. Que o discurso seja pautado na prática voltada para o benefício coletivo e não individual ou de grupos. Queremos mais arte na rua, queremos mais arte e cultura nas escolas, sem preconceitos. Alô, alô! 173 174 POÉTICA DA RUÍNA Bruno Ishisaki* memória *Bruno Ishisaki é compositor de ruínas, roqueiro de roça e sonólogo de meia tigela. Toda memória é um misto de percepção e lembrança: retemos, da experiência, as sensações produzidas pela percepção, misturadas às afetividades disparadas pela profusão descontrolada de reminiscências – algumas de ordem formal, como as que fazem perceber relações abstratas e estruturais; outras de natureza metafórica, que produzem associações entre uma obra e alguma emoção ou imagem. Não retemos percepção e lembrança em sua totalidade: “a percepção não é o objeto mais algo, mas o objeto menos algo, menos tudo o que não nos interessa” (DELEUZE, 2012, p. 19). Do mesmo modo, a lembrança pura inexiste no ser, pois tal pureza compreenderia a lembrança do todo, sem subtrações. A memória é, portanto, uma seleção do que nos interessa; das percepções e das lembranças que interessam. Sobre esse misto, “misturamos lembrança e percepção, mas não sabemos reconhecer o que cabe à percepção e o que cabe à lembrança; não mais distinguimos, na representação, as duas presenças puras da matéria e da memória, e somente vemos diferenças de grau entre percepções-lembranças e lembranças-percepções” (IBIDEM, p. 17). 175 “A experiência só nos proporciona mistos” (IDEM). O que nos interessa, neste texto, é este misto particular: a memória. Bergson e Deleuze apontam que o ser reside no passado. É no passado que a memória se acumula em diversos níveis. O presente é atualização, é devir. Viver exclusivamente no presente corresponde a não ser. O passado, esse crescente cone de eventos que nos deine, compreende todas as experiências que vivenciamos. Compreende, portanto, todos os mistos lembrança-percepção. O ser é memória. Eis um cone de eventos. 176 ABATE O ser é memória. Deleuze dizia: “sou aquilo o que me atravessa”. Pois todo atravessamento evoca lembranças. Todo atravessamento é percebido. Todo atravessamento produz memória. O que podemos airmar a respeito da incompletude da memória? Deveríamos julgála como um espectro de um atravessamento? Como o atravessamento em si? Como uma cópia de um evento material? O que sobra da experiência, na memória? O momento da experiência está preservado por completo nela? Um exemplo: quando eu era criança, ganhei um brinquedo. Naquela época, ganhar um brinquedo incluía, entre outras experiências: a sensação de abrir o pacote; tocar o plástico do qual o brinquedo era feito; sentir o cheiro da embalagem. E os afetos? A empolgação de possuir um novo objeto, a ansiedade de explorá-lo nas brincadeiras... o que retenho disso está incompleto. Não consigo reviver integralmente a experiência. Só guardei, em minha memória, um borrado de cores e sensações. O tato não é mais tato. Se tento focar a imagem do brinquedo com força, para ver seus detalhes, ela perde a nitidez. A lembrança do cheiro não tem mais nada a ver com o olfato. A ansiedade da brincadeira se foi, confunde-se com outra emoção – talvez nostalgia, talvez outra sensação para a qual ainda não tenho uma palavra... A memória passa a ser outra coisa. Não é um espectro, um duplo ou uma cópia. É uma ruína. É aquilo que a passagem do tempo permitiu que continuasse existindo na duração bergsoniana. Uma outra realidade que coexiste com o presente, um outro componente que não se manifesta na matéria, mas que compõe o ser. Há algo de quadridimensional na memória. É interessantíssimo ver aqueles modelos de hipercubos, simulações tridimensionais de objetos quadridimensionais coloridas de esoterismo tecnocrático. Esses modelos falham em nos proporcionar uma experiência quadridimensional verdadeira, dada a natureza disso que, a partir de Einstein, passaram a chamar de espaço-tempo – e que é, para Bergson, um exemplo de problema mal colocado: atribuir ao tempo atributos espaciais. Porém, a experiência em quatro dimensões sempre esteve presente, ela está presente no existir. Existir é experimentar as quatro dimensões. Em Poética da Ruína minha frente vejo um cubo – contemplo-o em três dimensões. Ao mesmo tempo, ainda em minha mente, imagino um cubo, e imagino-o em três dimensões A sobreposição temporal da memória do cubo sobre a percepção do cubo: eis aí uma bela experiência de um hipercubo. Se pudéssemos traçar linhas entre os vértices de meu cubo mental e do cubo à minha frente, as distâncias entre os pares de vértices seriam as mesmas – as linhas teriam o mesmo tamanho. Tente desconsiderar o absurdo de minha proposição (esse traçado de linhas paralelas entre objetos virtuais e atuais) para perceber a geometria quadridimensional de Proust. O que é sua obra No caminho de Swan? É um traçado perpendicular entre os vértices dos objetos-memória do autor e dos objetos-icção que compõem o livro. São ruínas da infância que ele completa com ruínas de escritor. Veja o desenho que esses traçados produzem! Redução bidimensional muito precisa de um poliedro proustiano quadridimensional. 177 178 ABATE Consideremos, agora, todo o esforço de Arnold Schoenberg em busca de uma unidade temática – fetiche goethiano –, esforço esse que culmina na criação do sistema serial dodecafônico. Que tipo de impulso criativo e organizacional se impõe ao material serial? Que tendências do processo de criação privilegiam, no uso de uma série dodecafônica, algumas combinações paramétricas em detrimento de outras? Com o que Schoenberg compõe sua música, além das séries? É fácil responder a última questão quando pensamos que, em suas primeiras obras dodecafônicas, Schoenberg faz uso de formas clássicas: é com suas ruínas que ele completa as lacunas de seu planejamento composicional. Qualquer processo criativo que faça uso de um mecanismo ou recurso extrapolativo será completado pelas ruínas de quem cria; a âncora de qualquer extrapolação é a memória. Exemplo de série e trecho de partitura da suíte para piano op. 25 de Schoenberg (SCHOENBERG, 1925). Poética da Ruína fluxo Assim, airmo que, no âmbito dos processos criativos, a ruína pode exercer dois papéis distintos: 1) ela pode completar a si mesma com outras ruínas e 2) ela pode completar as lacunas de um planejamento composicional. Tais papéis não precisam ser antagônicos; eles podem se alternar ao longo de um processo de criação, atuando colaborativamente, alternadamente, energizando-se mutuamente. O primeiro papel, associo-o às criações que dependem de luxos. Vamos pensar nos surrealistas, na écriture automatique; fala-se de um luxo de consciência no qual o impulso criador não deve ser barrado por mecanismos racionais de censura. As ruínas concatenam-se em mudanças de afecção: não há preocupação formal com a unidade, pois essa suposta unidade vem de uma variação contínua dos materiais – a repetição da diferença. As ruínas arranjam-se nas concatenações. A palavra sol puxa a palavra vento que, por sua vez, puxa um suco de limão. Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado no lugar mais confortável possível para concentração do seu espírito sobre si mesmo. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo, dos talentos de todos os outros. Pense que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e para fugir à tentação de se reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil decidir sobre a frase seguinte: ela participa, sem dúvida, a um só tempo, de nossa atividade consciente e da outra, admitindo-se que o fato de haver escrito a primeira supõe um mínimo de percepção. Isso não lhe importa, aliás; é aí que reside, em maior parte, o interesse do jogo surrealista. A verdade é que a pontuação se opõe, sem dúvida, à continuidade absoluta do vazamento que nos interessa, se bem que ela pareça tão necessária quanto a distribuição dos nós numa corda vibrante. Continue enquanto lhe apraz. Conie no caráter inesgotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça cair, por uma falta da inatenção, digamos, que o leve a cometer um pequeno erro, não hesite em cortar 179 180 ABATE uma linha muito clara. Após uma palavra cuja origem lhe pareça suspeita, ponha uma letra qualquer, a letra “l”, por exemplo, sempre a letra “l”, restabeleça o arbitrário, impondo essa letra como inicial à palavra que vem a seguir. (BRETON, 1924) Quando penso sobre o segundo papel da ruína (completar as lacunas de um planejamento composicional), me vem à mente os fetiches e “ismos” peculiares da arte de vanguarda do século XX. O agenciamento ruína-lacuna foi a grande tendência da arte do século XX. Tal agenciamento assemelha-se a um jogo. A ideia desse jogo, as questões que traçam seu limite continental resumem-se a: que tipo de ruínas completarão um planjamento com regras de censura? Qual será o resultado estético desse agenciamento? Que tipo de ruína surgirá a partir de um conjunto específico de censuras? Por isso é tão atraente ao criador adotar um planejamento. A música dodecafônica de Schoenberg só poderia existir se ele criasse um planejamento composicional tal que censurasse uma classe específica de materiais (no caso, as alturas) e permitisse a emergência de outras ruínas, que o completariam e resultariam na sonoridade muito particular da obra do compositor alemão. E veja o papel preponderante das ruínas que completam as lacunas no dodecafonismo: Alban Berg produz outro tipo de música, assim como Anton Webern, apesar de ambos adotarem o mesmo tipo de planejamento. O próprio surrealismo, com sua proposta de luxo, é, logicamente, um “ismo”, e, assim como qualquer outro “ismo”, é restritivo; não deixa de ser um planejamento. A crítica à censura da razão, no surrealismo, leva a um dualismo que não existe nos luxos: o polo “censura da razão” versus “censura da censura da razão”. O luxo em si, porém, não é restritivo, diferenciando-se o tempo todo na matéria, passando por todos os níveis de pensamento durante o processo criativo. Poética da Ruína Ismo Não pode... Dodecafonismo Serialismo integral Minimalismo Nacionalismo Neoclassicismo Pós-modernismo Impressionismo Expressionismo Surrealismo alterar a ordem das alturas nas séries ser simples ser complicado ser cosmopolita viver o presente falar que não pode ser objetivo ser sutil usar a razão Pequena tabela ismo-censura. Bergson diz que o impulso vitual, ao atualizar-se na matéria, diferencia-se por encontrar nessa um obstáculo para o seu luxo. Do mesmo modo, as ruínas, ao completarem a si mesmas ou ao completarem um planejamento, transformam-se em outra coisa. No caminho de Swan não é apenas um composto de memória e icção. A brincadeira, de Milan Kundera, também não. Tampouco O Processo, de Kafka. Esses são livros de ruínas. Não há obra de arte que não seja feita de ruínas: ruína-ruína (luxo) ou ruína-planejamento (ismo). Não há criação que não faça uso da memória, que não a utilize como matéria-prima ou como ferramenta combinatória. Em um primeiro momento, pode-se pensar no luxo como uma reconiguração de conteúdos já assimilados, enquanto o ismo engendraria a possibilidade de um ineditismo. Assim, corre-se o risco de associar o luxo ao belo e o ismo ao novo. Entretanto, tal associação é imprecisa. No ismo, o planejamento composicional é responsável pela descontextualização das ruínas. Ao completar as lacunas de um planejamento com ruínas, obteríamos novos materiais, que nos conduziriam a uma poética genuinamente sólida, fundada em um dado tipo de concepção que norteia o planejamento empregado. Foi a busca de um novo que direcionou a maior parte das pesquisas da vanguarda do século XX. Entretanto, um planejamento produz em nós suas próprias ruínas. Ele é tão ruína em nós quanto nossas memórias, já que ele também atualiza-se, passa a ser memória no momento em que é assimilado. Um 181 182 ABATE planejamento composicional produz memórias de natureza coercitiva ou restritiva. É um tipo muito especial de ruína, uma ruína-iltro. O dodecafonismo schoenbergniano é uma ruína que iltra o mecanismo de escolha de alturas. Ao ixar uma série, ele coage e restringe o campo de possibilidades combinatórias das alturas. O novo seria tão somente o arranjo insólito. No caso, um arranjo insólito produzido por uma ruína-iltro que força as outras categorias de ruína a diferenciar-se. Enquanto isso, o luxo seria uma recombinação daquilo que já foi assimilado. Isso não quer dizer, contudo, que não haveria novidade no luxo. Observe que o conceito de ruína inclui a ideia de incompletude da memória. Se me pedirem para desenhar O Grito, de Munch, reproduzirei apenas o que eu sou capaz de lembrar do quadro. O restante, os detalhes que não lembro (que são muitos), será completado por outras ruínas. Memória do quadro O Grito, de Munch, cheia de ruínas intrusas completando os detalhes que não lembro. Poética da Ruína O meu desenho do Grito é novo, pois é um arranjo insólito de ruínas. O belo seria uma ressonância afetiva entre minhas ruínas e a percepção do presente. Ora, associar o fluxo ao belo e o novo ao ismo seria, nesse ponto, uma falsificação do pensamento: em um ismo, a escolha em relação a como completar o planejamento composicional é pura ressonância afetiva, exatamente como a concatenação de ruínas no fluxo. Disso, conclui-se que a diferença entre o fluxo e o ismo está na mecânica das ruínas. No fluxo, as ruínas engendram mecanismos de concatenação livre das censuras de um planejamento, enquanto o ismo trabalha com filtros e processos de diferenciação. Ambos compartilham do belo e do novo, ambos são modos de se produzir o misto belo-novo. incompletude No âmago desses mecanismos reside um componente chave para se compreender o conceito de ruína: sua incompletude. A percepção não retém o todo de um objeto, pois reter o todo signiica perceber o objeto em sua totalidade. Da xícara posicionada em minha mesa, minha visão retém apenas uma parte de sua superfície. Olhando para a xícara de um certo ângulo, eu não posso perceber seu interior, tampouco a parte oposta de sua superfície. Do mesmo modo, ao tocar a xícara, eu percebo sua textura, densidade e peso, mas nunca a totalidade de sua materialidade. A percepção é parcial de imediato; desse parcial eu seleciono o que vai compor a minha memória. Após tocar a xícara, o que ica na memória é a sensação de tê-la tocado. A própria experiência – que já é parcial – é iltrada no momento em que deixa de experimentar. Isso é compreensível, visto que a percepção do presente e a memória da sensação são coisas absolutamente distintas. 183 184 ABATE Com efeito, em virtude do intervalo cerebral, um ser pode reter de um objeto material e das ações que dele emanam tão somente o que lhe interessa. Desse modo, a percepção não é o objeto mais algo, mas o objeto menos algo, menos tudo o que não nos interessa. Isso equivale a dizer que o próprio objeto se confunde com uma percepção pura virtual, ao mesmo tempo que nossa percepção real se confunde com o objeto, do qual ela subtrai apenas o que não nos interessa. (DELEUZE, 2012, p. 19) Essa parcialidade da percepção também está presente na lembrança. A lembrança pura seria o passado em sua totalidade, uma totalidade claramente inefável quando nos damos conta de que a lembrança não existe de maneira pura – ela está impregnada de sensações. Ela não é registro literal de cada evento do passado, em todos os seus ângulos e nuances, e sim reminiscência: um borrão, uma impressão, um composto de afetos. Percepção e lembrança formam o misto que chamamos de memória. Esse misto em si já apresenta incompletude, já que existe por meio de processos de filtragem cognitiva. A incompletude da memória permite encaixes entre memórias, permite que as lacunas de uma memória sejam completadas por outra memória. É essa instância que conceituo como ruína. Anteriormente, apresentei as duas dinâmicas da ruína, entendidas por mim como luxos e ismos. Não proponho um dualismo entre tais dinâmicas; suponho que o processo de criação não só faça uso de ambas como promova uma simbiose, uma interação indissociável entre elas. manutenção do fluxo Em Poética Musical em 6 Lições, o compositor russo Igor Stravinsky diz que a criatividade só se manifestava para ele dentro de limites. O compositor russo defendia a ideia de se estabelecer regras dentro de um projeto composicional – o que explica, em parte, a “adesão” ao dodecafonismo em sua velhice –, o que engendraria um esforço criativo por parte do autor. Poética da Ruína Vamos chegar a um acordo quanto a essa palavra “fantasia”. Não pretendo usá-la no sentido associado a uma forma musical deinida, mas na acepção que pressupõe um abandono do próprio eu aos caprichos da imaginação. E isso pressupõe que a vontade do compositor esteja voluntariamente paralisada. Pois a imaginação é não apenas a mãe do capricho, como também a serva da vontade criativa. A função do criador é selecionar os elementos que ele recebe daí, pois a atividade humana deve impor limites a si mesma. Quanto mais a arte é controlada, limitada, trabalhada, mais ela é livre. Quanto a mim, sinto uma espécie de terror quando, no momento de começar a trabalhar e de encontrar-me ante as possibilidades ininitas que se me apresentam, tenho a sensação de que tudo é possível. Se tudo é possível para mim, o melhor e o pior, se nada me oferece qualquer resistência, então qualquer esforço é inconcebível, não posso usar coisa alguma na base, e, consequentemente, todo empreendimento se torna fútil. (STRAVINSKY, 1996, p. 63) Por outro lado, as pesquisas e experimentos dos compositores serialistas da década de 1950 revelam como um planejamento composicional demasiado fechado deixa pouco espaço para a intervenção do compositor. Um terceiro apontamento: pesquisadores e performers de improvisação livre estão sempre buscando algum alicerce conceitual ou sintático para o que fazem, criando, muitas vezes, divisões e polarizações: figural versus sonoro, idiomático versus não-idiomático, harmônico versus inarmônico etc. Tais exemplos ilustram superficialmente o jogo que todo processo de criação engendra, e que funciona sob a interação dos seguintes componentes: obstáculos, linhas de diferenciação e impulso do fluxo. É natural que experimentemos um esgotamento do luxo criativo quando trabalhamos com modelos de criação sem limites formais, como a improvisação livre, a écritur automatique ou a livre associação. Uma relação inversamente proporcional se estabelece: quanto mais próximos de esgotarmos o luxo, mais recorremos aos clichês. Os processos mentais que geram mistos ruína-ruína sofrem uma espécie de fadiga, que leva ao uso centrífugo de materiais muito semelhantes. 185 186 ABATE 1 Sobre os efeitos de superfície, ver o texto “Dos Efeitos de Superfície”, em DELEUZE, 2011, p. 5-12. Quando sinais de esgotamento no luxo começam a se fazer perceptíveis no processo criativo, é desejável criar-se um obstáculo ao luxo. Esse obstáculo forçará o luxo a diferenciar-se. Os obstáculos são forças que deslocam o luxo e o colocam em movimento, desterritorializando seus materiais e promovendo novas situações e agenciamentos. O luxo que se depara com um obstáculo irá naturalmente buscar uma linha de fuga a ele; irá, portanto, diferenciar-se. As linhas de diferenciação deformam o material inicial, adaptando-o à nova situação imposta pelo obstáculo. Aquilo que antes era um clichê torna-se agora um arranjo insólito de ruínas. Uma vez estabelecida a linha de diferenciação, o luxo adquire uma sobrevida, obtida por meio dos processos até então descritos como o impulso do luxo. No processo de criação, podemos fazer uso de diversos obstáculos para garantir que o luxo mantenha seu impulso, ou que não o perca. Na prática, isto nos leva a uma constante troca de técnicas. A obra não será produto de um ismo, e sim de muitos, e todos a serviço do luxo. É nesse ponto que arte e artesanato se aproximam. Não há qualquer comprometimento com uma vertente ou escola, as técnicas servem a nós, e não o contrário. Aqui, o artista se assemelha ao alquimista – fazemos uso de qualquer procedimento que nos garanta o impulso do luxo, mesmo que uma técnica antagonize outra. Se num dado momento de uma obra, sinto a necessidade de trabalhar a harmonia de modo não-polarizado, empregarei alguma técnica de controle (ou descontrole) de alturas – séries, pitch class sets, aleatoriedade, patchs de Open Music. Em um momento seguinte, posso simplesmente abandonar tais técnicas, sem qualquer comprometimento com as vertentes ou movimentos históricos que as originaram. Creio que o artista do século XXI é um ser não-histórico, de efeitos de superfície, agente sem profundidade1. É principalmente alguém que superou – em certos níveis, sem recorrer a um relativismo simplório – o pensamento dual ou dicotômico nos âmbitos histórico, estético, ilosóico, moral, político etc. Aí alguém poderia me dizer: “isso é ecletismo, isso é decadente”. Mas é claro que é eclético! Estou falando de um processo criativo baseado na manutenção de luxos, que são constantes agenciamentos de memórias incompletas! E é claro que é decadente! Veja Poética da Ruína o nome que dei para o conceito-chave de minha poética: ruína! Ecletismo e decadência são apenas palavras, às quais podemos dar um valor ora pejorativo, ora lisonjeiro. Poderia escolher outras, poderia dar outros nomes. Dar nomes para as coisas... não foi essa a primeira coisa que Adão fez? Não há novidade aí. Não negarei que há, mesmo, alguma semelhança entre tudo o que expus até agora e o Movimento Decadentista. Mas não estou aqui para retomar bandeiras ou legitimar a História; pelo contrário: estou aqui justamente para queimar as bandeiras e desrespeitar a História. Eu jamais seria um “neo-decadentista” justamente por me negar a viver em um dos polos de um dualismo, que seria, no caso dos decadentistas, o de negar os parnasianos. Esse tempo já passou e todos estão mortos, assim como o passado. O passado está morto, mas vive-se mantendo seu apodrecido cadáver ao lado da mesa de refeições, e não se aproveita totalmente o banquete por causa do cheiro de sua mórbida presença. obra Alheio às discussões correntes que versam sobre o que é obra, permito-me estabelecer meus próprios recortes e realizar um juízo de existência a respeito do tema. Para mim, obra é desejo. A força motriz de uma obra é o desejo de realizá-la. Não há obra que não seja desejo; o compositor compõe uma música porque deseja que aquela música exista, todas as músicas do mundo não compensam a falta daquela que ele imagina. O mesmo se dá com o escritor, com o artista plástico – com artistas em geral. Não criamos pela necessidade de ser original, de buscar o novo, de dialogar com a história; criamos porque queremos. O som ambiente do espaço de concerto não é uma obra. O desejo de estabelecer o som ambiente do espaço de concerto como um continente de potência sonora é uma obra. John Cage é um exemplo da seguinte airmação: a obra independe de seus materiais – ou melhor – os materiais de uma obra não tangenciam o seu contorno. Os territórios limítrofes da obra são os do desejo. Por isso o ambiente de concerto em 4’33. Por que não um parque de diversões, um shopping center ou um puteiro? Porque Cage não quis. 187 188 ABATE É adequado quando um artista é questionado – “mas porque você fez desse jeito” – e ele responde: “porque eu quis”. Não há resposta mais bela. A obra, sendo energizada pelo desejo, torna-se uma força ativa no mundo. A obra contribui para a pluralidade e diversidade do mundo. A obra nunca é negação, mesmo quando nega. Quando Schoenberg viveu a negação do tonalismo, ele viveu também toda a potência do atonalismo e do dodecafonismo e viveu o desejo da ausência hierárquica das alturas. Talvez, de fato, nem tenha vivido a negação do tonalismo, e sim o seu esgotamento. Sendo criador e obra participantes de uma força ativa no mundo, precisamos considerar o papel do crítico. Reativo por excelência, nada mais faz que validar ou deslegitimar a obra dentro de um juízo de valores subjetivo, mas que é vendido como verdade. O crítico é, essencialmente, um produtor de discursos de verdade a granel, uma espécie de parasita ou peste que se alimenta da força ativa do artista. Daí surge a noção comum do crítico como “artista frustrado”. Não diria que seja o caso – se o crítico fosse minimamente artista, ele não se estabeleceria na reação. As forças reacionárias são forças fracas, fenômenos que dependem de um ativo. São desvios de energia insaciáveis, e se eles ainda são relevantes em nossa sociedade é por causa do modo como nossos dispositivos de poder estão conigurados. Mude a coniguração dos dispositivos e a crítica torna-se obsoleta enquanto discurso de verdade, passando a ser apenas uma opinião. A classe de indivíduos que busca uma validação crítica para seus trabalhos criativos não tem a ver com arte, e sim com artesanato. Não penso o artesanato como uma forma de arte menor, e sim como outra coisa completamente diferente. Em pleno século XXI, o artesanato pode funcionar como uma subversão do pensamento industrial vigente. É uma prática que envolve uma estética – talvez envolva uma poética –, e visa a realização de um produto. Um produto belo, talvez. Já a arte visa a realização de um desejo. Noções advindas de Foulcalt, tais como modos de subjetivação e vida enquanto obra de arte, ressoam poderosamente, aqui. Talvez a obra não esteja necessariamente subordinada às práticas artísticas. Talvez ela esteja vinculada a todo ato de criar: criar músicas, ilmes, Poética da Ruína textos, pinturas, mas também criar corpos, conceitos, ilusões, preconceitos. Criar com luxos, obstáculos e linhas de diferenciação. Utilizar o nosso ser no passado como paleta de cores para pintar o presente no devir. Talvez a obra seja a alternativa para suportarmos a transitoriedade da existência. As religiões, os dogmas e as metanarrativas, métodos mais danosos, precisam ser substituídos por algo que não tenha um padre, chanceler, líder ou monarca como ponto máximo de centralização de poder. As coisas eternas, paraísos e ideias nos conduziram para um êxtase tecnocrático que nos hipnotizou, no século passado. Esse êxtase culminou em duas grandes guerras, um punhado de guerras pequenas e bilhões de escritórios e operações numéricas. Bilhões de almas tristes, guiadas pelo senso estético de propagandas de margarina. Cultura de muros, de medo, de câmeras. De diálogos cordiais e cheios de desenhos coloridos nas redes sociais que não são transpostos para o mundo físico. O transitório é insuportável. Viver é decair; viver é decompor; viver é envelhecer; viver é morrer. Como lidar com isso sem ter um eterno, um paraíso, um ideal? Como lidar com a constante mutabilidade provocada pelo tempo, como aceitar ser inito? Fazer do desejo uma articulação no real. Criar uma obra. Essa é a minha resposta. Mas não qualquer desejo. Existem aqueles desejos que são atravessamentos efêmeros: “vi o meu vizinho com um carro novo. Também quero um carro novo”. Não. Falo dos desejos fundamentais, aqueles que deinem nossos contornos. Falo daqueles desejos que são voluptuosos o tempo todo, que não nos dão descanso, que são insaciáveis, que perturbam. Que transcendem noções de status social. Desejos que dão medo, que, se forem soltos, nos darão forças para abandonar uma vida medíocre e viver uma aventura: aventura de mendicância, de subversão, de marginalidade, de travestismo, de libidinosidade, ou – Deus te livre – de arte. Não obstante, nenhuma obra é sublime. O sublime pertence à categoria das sensações complexas, e não constitui intrinsecamente obra alguma. A obra é, contudo, um simulacro. Há pouca coisa na obra que se assemelhe ao seu projeto inicial. Os construtos que a compõem diferenciam-se nas articulações do real graças aos obstáculos da poética – as técnicas e ismos. Os agenciamentos entre ruínas formam outros entes que, ao assumirem 189 190 ABATE novas conigurações, contribuem para o desvio do projeto inicial. Se assim não fosse, a obra seria mera cópia de um modelo mental. As cópias são possuidoras em segundo lugar, pretendentes bem fundados, garantidos pela semelhança; os simulacros são como os falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essenciais. (DELEUZE, 2011, p. 262) A obra, enquanto simulacro, pouco tem a ver com a Ideia. Daí o frequente impasse de uma classe artística tecnocrata, que vê o rigor sistemático como uma qualidade desejável para garantir a idelidade da obra enquanto cópia de uma ideia. O simulacro signiica uma subversão do fetiche da obra enquanto cópia da ideia. Em suma, é a identidade superior da Ideia que funda a boa pretensão das cópias, e funda-a sobre uma semelhança interna ou derivada. Consideremos agora a outra espécie de imagens, os simulacros: aquilo a que pretendem, o objeto, a qualidade etc., pretendem-no por baixo do pano, graças a uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão, “contra o pai” e sem passar pela Ideia. (IDEM, p. 262-263) A obra é desejo, e sempre se deseja o que não se tem – desejamos mais, desejamos o que não existe ou o que existe em parte. O desejo é um complexo intricado de agenciamentos. O simulacro traz, portanto, uma imagem da ideia, imagem atrelada a outras coisas: imagem de algo no fundo subvertido, distorcido, tornado outra coisa; já que é “construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude” (IDEM, p. 263). A cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. O catecismo, tão inspirado no platonismo, familiarizou-nos com esta noção: Deus faz o homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança embora conservasse a imagem. Tornamo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência estética. A observação do catecismo tem a vantagem de enfatizar o caráter demoníaco do simulacro. (IDEM) Poética da Ruína A manutenção do luxo, com ou sem obstáculos, promove um constante arranjo insólito de ruínas. Tal manutenção permite a manifestação da repetição da diferença. Todo projeto formal cai por terra quando o luxo assume a força motriz de criação de uma obra. Em suma, há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado como o do Filebo, em que “o mais e o menos vão sempre à frente”, um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual. (IBIDEM, p. 264) A obra não é cópia, pois a cópia nada adiciona ao mundo. A obra adiciona algo ao mundo – ela mesma, e, sendo assim, ela faz parte do processo de construção do mundo. Ela nunca é reativa, e contribui para a pluralidade da vida. Ela não enseja transpor uma ideia, nem ser a cópia perfeita da ideia. Ela é por si só – é a diferença entre um plano e sua realização. Se o planejamento de uma obra serve para algo, é apenas para permitir que ela se desvie e se diferencie. O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução. Pelo menos das duas séries divergentes interiorizadas no simulacro, nenhuma pode ser designada como original, nenhuma como cópia. (IDEM, p. 267) Simulacro e ruína. Ruínas agenciadas, recombinadas em um luxo heterogêneo, sempre fugindo de um projeto inicial, desrespeitando um planejamento. Diferenciandose a cada instante de sua articulação no real. Ruína enquanto matéria-prima, e o simulacro sua forma inal. Nada mais tenho a dizer. 191 192 ABATE Referências Bibliográficas BRETON, A. “Segredos da arte mágica surrealista”. In: Manifesto do Surrealismo, 1924. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/breton.htm>. Acesso em: 06 nov. 2015. DELEUZE, G. Bergsonismo. São Paulo: 34, 2012. __________. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011. SCHOENBERG, A. Suite, op. 25. Vienna: Universal Edition. 1925. Partitura. Piano. STRAVINSKY, I. Poética Musical em 6 Lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.