Pirataria, não! Resistência. Um Estudo sobre as Práticas de Resistência do Consumidor
Brasileiro de Música Digital.
Autoria: Denise Franca Barros, João Felipe Rammelt Sauerbronn,
Leonardo Vasconcelos Cavalier Darbilly, Alessandra Mello da Costa
Resumo
O objetivo deste estudo é compreender como consumidores brasileiros de música digital
percebem e entendem o chamado “consumo ilegal” de música por meio da “pirataria virtual”.
De forma a alcançar tal objetivo, foram utilizados como referencial teórico o conceito de
resistência do consumidor e como referencial metodológico a análise de discurso. A partir de
uma abordagem qualitativa, foram coletados dados em dois grupos de foco compostos por
quatorze jovens universitários que declararam fazer download de músicas para consumo
próprio costumeiramente. Foram identificadas quatro formas de resistência praticadas por
estes consumidores: (1) a força de oposição ao mercado; (2) a agência do consumidor; (3) a
“saída”; e (4) a divergência frente à prática do mercado. Após uma breve contextualização da
mudança tecnológica no mercado fonográfico que originou o fenômeno da “pirataria virtual”,
apresentamos quadro referencial teórico sobre resistência e consumo. A interpretação dos
resultados e a discussão sobre download e resistência encerram este artigo.
1. Introdução
A crise e a retração do mercado fonográfico vem ocupando espaço na mídia nos últimos
anos (ÉPOCA, 2008). Tal fenômeno, de abrangência mundial, tem sido tema de vários
trabalhos na área da Administração (e.g. BARROS, 1993; BOTELHO, BOTELHO e
ALMEIDA, 2003; FILGUEIRAS E SILVA, 2002) Tais estudos, contudo, costumam focalizar
a situação das organizações do setor, especialmente a das grandes gravadoras que tiveram
seus lucros drasticamente reduzidos, e as estratégias que têm sido adotadas por essas
organizações como forma de contornar o problema.
Na Pesquisa do Consumidor, no entanto, alguns trabalhos mais recentes (GIESLER e
POHLMAN, 2003; HUANG, 2005; GIESLER e LUEDICKE, 2007) analisam o fenômeno de
outro ponto de vista, buscando observar motivações e percepções do consumidor.
Novas tecnologias, como o MP3 e programas que permitem a troca de arquivos de
músicas entre computadores domésticos, são apontados como causa fundamental dessa
alteração de cenário. A popularização destas tecnologias de aquisição e distribuição de
arquivos musicais, via internet, possibilitou o surgimento do fenômeno conhecido – segundo a
indústria – como “pirataria virtual”. A Associação Brasileira dos Produtores de Discos –
ABPD (2006) define a mesma como a violação dos direitos autorais pela utilização, venda ou
distribuição de obras musicais sem autorização.
No Brasil, há um grande mercado ilegal de música digital, tendo sido baixados no ano de
2005 mais de 1,1 bilhão de arquivos pela internet (ABPD, 2006). Apesar de alguns estudos
realizados sobre o assunto, acreditamos que para avançarmos na compreensão deste fenômeno
torna-se necessário preencher lacunas relativas aos estudos a respeito da percepção do
consumidor. Assim, o objetivo deste trabalho é compreender como consumidores brasileiros
percebem e entendem o chamado “consumo ilegal” de música por meio da “pirataria virtual”.
De forma a alcançar tal objetivo foram utilizados como referencial teórico o conceito de
resistência do consumidor e como referencial metodológico a análise de discurso.
Grande parte da pesquisa sobre o comportamento do consumidor tem se baseado em
entender o que faz o indivíduo “feliz” ao adquirir e consumir bens (FISCHER, 2001;
CARVALHO, 2002). No entanto, muito pouco é estudado sobre o que torna o consumidor
foco de resistência ao consumo (HEMETSBERGER, 2005; COVA, KOZINETS E
SHANKAR, 2007). O discurso do marketing oferece formas e padrões de consumo,
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entretanto, o consumidor se apropria de produtos, práticas e usos, recriando tais significados
(BELK, 1988). Estas interpretações fazem parte do escopo de resistência do consumidor, a
partir de novos usos ou novos significados para produtos e/ou marcas (PEÑALOZA e PRICE,
1993). Assim, podemos a priori considerar a prática de download de músicas como uma
forma de resistência do consumidor.
A resistência pode ser entendida como uma força oposta às forças dominantes
(DOBSCHA, 1998) e, desta forma, comportamentos diferentes daqueles determinados pelo
marketing podem ser enquadrados como resistência do consumidor (PEÑALOZA E PRICE,
1993; CLOSE E ZINKHAN, 2007). Partindo deste quadro teórico, buscamos investigar qual
o discurso assumido pelo usuário típico de download de música e procuramos entender como
tais discursos de consumo estão associados à resistência.
Por se tratar de assunto controverso acreditamos que a interação entre os respondentes
seria fundamental para acessarmos contradições e opiniões diversas sobre o tema. Dada a
orientação indutiva da pesquisa, foi utilizada uma abordagem qualitativa e os dados foram
coletados em dois grupos de foco, como sugerem Balch e Mertens (1999). Quatorze jovens
universitários participaram dos grupos de foco e declararam fazer download de músicas para
consumo próprio costumeiramente. Os encontros foram gravados, transcritos e os dados
coletados foram analisados a partir de análise do discurso (GILL, 2000).
Como resultado, realizamos a análise dos discursos dos integrantes e identificamos quatro
formas de resistência ao consumo praticadas por consumidores de downloads de música: 1) a
força de oposição ao mercado, conforme proposto por Dobscha (1998); 2) a agência do
consumidor, de acordo com Poster (1992), Peñaloza e Price (1993); 3) a “saída”, conforme
proposto por Hirschman (1973), Szmigin, Carrigan e Bekin (2007); e a divergência frente à
prática do mercado, segundo Close e Zinkham (2007).
O artigo foi dividido em cinco seções. Depois desta introdução, é apresentado o
referencial teórico composto pelo contexto de mudança tecnológica no mercado fonográfico;
pelas teorias sobre resistência e consumo; e pela discussão sobre download e resistência. A
terceira seção trata dos procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa, enquanto a
interpretação dos resultados é apresentada na seção seguinte. Por último, são feitas
considerações finais.
2. Mudança Tecnológica no Mercado Fonográfico
De acordo com Barros (2004), a indústria fonográfica vem passando pela pior crise desde
que ela surgiu, e a principal causa para tal acontecimento são os caminhos alternativos que
foram desenvolvidos para a obtenção de música, que fogem ao caminho tradicional, ou seja, a
oferta de produtos por parte das gravadoras e a compra do disco pelo público consumidor.
A situação da indústria fonográfica alterou-se de forma relevante nos últimos anos com o
advento da tecnologia do MP3 e de programas que permitem que os usuários troquem entre si
e transfiram para seus computadores arquivos musicais por meio da internet. Esta mudança
tecnológica fez com que as gravadoras multinacionais, que até então dominavam o mercado
nacional, perdessem o monopólio da rede de distribuição das obras musicais. Gravadoras de
menor porte passaram a utilizar essa tecnologia como forma de tornar seus produtos mais
acessíveis ao grande público, ao invés de posicionarem-se contra ela. Paralelamente, viu-se o
surgimento de diversos sites que comercializam arquivos musicais de forma legal, o que se
constitui numa mudança significativa no negócio da música.
O desenvolvimento do formato de arquivos musicais MP3 permitiu a compressão de
arquivos de áudio ou vídeo com objetivo de que estes possam ser armazenados facilmente em
qualquer microcomputador. Como conseqüência desta mudança de base tecnológica, a
reprodução ilegal de obras fonográficas tornou-se mais simples e isso possibilitou o aumento
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da pirataria que, apesar de recorrente na história da indústria fonográfica, apresentava
limitações dados os meios de armazenagem e reprodução anteriores (LPs, CDs etc.).
De acordo com Leal (2005), o desenvolvimento, em 1999, do Napster possibilitou a
instalação de uma eficiente rede de distribuição musical que até então era de exclusividade
das grandes gravadoras. A inovação desenvolvida pelo estudante Shawn Fanning permitia a
transferência ou download, de arquivos musicais de um computador para outro.
Desde então, as grandes gravadoras, que outrora dominavam a indústria fonográfica, têm
lutado para combater tanto a pirataria “real” quanto a “virtual”, muitas vezes chegando até a
processar não só os donos de tais programas que possibilitam a transferência de arquivos
musicais por meio da internet, mas também os próprios consumidores que os obtêm. No
Brasil, segundo a Associação Brasileira dos Produtores de Discos – ABPD - (2006), a
pirataria, no ano de 2003 correspondeu a 52% do que foi vendido e movimentou US$ 137
milhões de dólares.
O MP3 e o Napster deram origem, segundo Leal (2005), a um nova forma de relação entre
produtores e consumidores de música. A partir da internet passou a ser possível simplesmente
trocar arquivos de música entre usuários. As grandes gravadoras sentiram-se prejudicadas e
em 2002 impetraram ações na justiça norte-americana que puseram fim aos serviços de trocas
de arquivos musicais pela internet. O Napster teve seu fim, mas a tecnologia não poderia ser
revertida. Em pouco tempo surgiram outros programas de compartilhamento de arquivos
baseados fora dos EUA e, portanto, longe das ameaças legais daquele país. Em todo o mundo
são utilizados programas de trocas de arquivos, tais como KaaZaa, eMule ou LimeWire que
permitem a busca e o arquivos de canções ou mesmo de álbuns completos.
Alguns programas e sites de pequenas gravadoras passaram a permitir que o usuário, de
forma legal, fizesse a transferência de arquivos musicais em troca de determinada quantia
monetária que correspondesse ao pagamento de direitos autorais. Em conseqüência desta
tendência, iniciada pelas empresas de pequeno porte, as grandes gravadoras também passaram
comercializar seus catálogos virtualmente. Além disso, diversos artistas independentes,
acompanhando as mudanças ocorridas nos últimos anos no mercado fonográfico, passaram a
disponibilizar suas obras gratuitamente ou de forma paga em suas páginas na web.
De acordo com a ABPD (2006), no ano de 2004 as vendas de música no Brasil cresceram,
ainda que em meio à crise causada pela pirataria comercial e a troca ilegal de arquivos.
Segundo informações da página na internet dessa instituição, as grandes gravadoras
movimentaram cerca de R$ 706 milhões e venderam 66 milhões de unidades, o que é
atribuído pela associação ao aumento das vendas de DVD’s. Ainda, conforme a ABPD
(2006), 76% das unidades vendidas nesse período foram de artistas nacionais, cujos arquivos
musicais ainda não são encontrados com tanta facilidade na rede mundial ou cujos
admiradores não têm acesso pleno à internet. No ano de 2005, figuraram entre os mais
vendidos os álbuns de artistas como Ana Carolina, Ivete Sangalo, Bruno e Marrone e Zezé di
Camargo e Luciano e Maria Rita. (ABPD, 2006).
Para o consumidor, a popularização das novas tecnologias trouxe maior facilidade de
acesso ao produto musical. Esta vantagem trouxe mais poder para o consumidor e forçou o
surgimento de uma nova relação entre produtores e consumidores de música. Além da
possibilidade de compartilhamento de arquivos, surgiu um novo modelo de comercialização
dos produtos musicais. Desta forma, é possível encontrar na internet diversos programas ou
páginas que vendem as músicas separadamente, ou seja, não é mais necessário comprar um
álbum inteiro de um determinado artista, o que deixa patente a modificação na relação entre o
consumidor e as organizações produtoras e distribuidoras.
3. Referencial Teórico: Resistência e Consumo
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Como afirmam Friedman (1985), Hirchman (1973) e Ritson e Dobscha (1999), a rejeição
do consumidor contra o mercado ou contra as atividades específicas de marketing não é um
fato novo. No entanto, esta relação nem sempre harmônica entre consumidores e empresas
apenas recentemente passou a assumir lugar de destaque na pesquisa do consumidor. Desde o
trabalho pioneiro de Peñaloza e Price (1993), o tema resistência do consumidor vem sendo
foco de crescente interesse na academia: aspectos relacionados aos movimentos coletivos de
resistência (FRIEDMAN, 1985; HEMETSBERGER, 2002); aspectos relacionados às
comunidades de marcas, sejam elas pró ou contra (SCHOUTEN e MCALEXANDER, 1985;
KUCUK, 2008); novas comunidades de consumo (SZMIGIN, CARRIGAN e BEKIN, 2007),
como o Voluntary Simplicity (Simplicidade Voluntária) (DOBSCHA e OZANNE, 2001); as
diferentes leituras da resistência do consumidor (HOLT, 2002); entre muitos outros temas.
Para Fournier (1998), ainda há muito que se estudar a respeito do assunto de forma a
melhor compreender o impacto sobre o comportamento do consumidor. Close e Zinkhan
(2007), no entanto, alertam para o fato de que a compreensão da resistência do consumidor
talvez não seja total, mas possível em determinados contextos. Encaramos resistência de
maneira mais ampla neste estudo, embora alguns autores entendam a resistência de maneira
mais restrita, como uma resposta negativa a um estímulo ou uma rejeição (ROUX, 2008).
Seguindo Peñaloza e Price (1993), acreditamos que existem muitas formas de resistência do
consumidor.
Partindo de Poster (1992) e DeCerteau (1992), Peñaloza e Price (1993) afirmam que
existem muitas formas de resistência do consumidor, alinhadas em quatro diferentes
dimensões: organizacional, objetivos, táticas de resistência, e relação do consumidor com as
instituições do marketing. Para as autoras, as reflexões de Poster (1992) sobre o trabalho de
De Certeau permitem ver a resistência do consumidor de maneira diferente da visão pósestruturalista, na qual o consumidor é apenas um receptáculo passivo de imagens e mensagens
pré-fabricadas. Desta forma, o domínio do consumo é também o domínio da criação e
recriação de significados e, portanto, da resistência (POSTER, 1992, p. 14).
Para Close e Zinkhan (2007), resistência ao mercado é qualquer ação que se oponha às
tradições presentes neste espaço. Os autores desenvolveram uma pesquisa a respeito dos
comportamento dos consumidores durante a comemoração do Dia dos Namorados e
perceberam algumas formas de comportamento que configuram resistência do consumidor.
Desta forma, se um grupo de solteiros decide comemorar em conjunto a data ou se um casal
decide não gastar dinheiro comprando presentes tradicionais da data (flores e bombons), tais
comportamentos são formas de resistência. Mesmo que envolvam justificativas ou razões
diferentes, o simples fato de divergir da prática dominante do mercado os coloca no mesmo
patamar.
Fernandes (1988) apresenta uma postura mais política e define resistência como “atitudes
sociais, comportamentos e ações contra-hegemônicas que objetivam enfraquecer
classificações entre categorias sociais e que são diretamente contra o poder dominante e
contra aqueles que o exercem, com o propósito de redistribuir igualdade” (FERNANDES,
1988, p. 174).
Para Dobscha (1998), resistência envolve uma força de oposição ou retardo. Tal visão
pode ser encarada como uma forma explícita de protesto. Os movimentos de resistência de
consumidores são enquadrados por alguns autores dentro da classificação de Hirschman
(1973) (e.g. KUCUK, 2007; SZMIGIN, CARRIGAN & BEKIN, 2007). Seguindo este quadro
teórico, os indivíduos podem responder às corporações de três formas: (1) por meio de saída,
ação caracterizada pela recusa ao consumo, pelo boicote de um produto ou marca; (2) por
meio de voz, caracterizada pela reclamação dos direitos e pelo ativismo consumidor; e (3) por
meio da lealdade, a submissão na esperança de mudança. No entanto, cabe ressaltar que a
única fonte de poder dos movimentos de resistência reside na possibilidade de saída. Mesmo
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que opte pela ‘voz’, ou seja forçado a adotar a ‘lealdade’, é a possibilidade radical de saída
que dá poder ao consumidor. Assim, mesmo os movimentos ligados apenas à conscientização
adquirem força pela suposta possibilidade de atuação extrema.
Ritson e Dobscha (1999) apontam alguns caminhos já mapeados a respeito da resistência
do consumidor: a) sob a forma de rejeição mais branda, a reclamação junto às empresas
(HUNT, 1991); b) o boicote, ou a saída coletiva de um mercado específico de produto,
empresa ou marca (FRIEDMAN, 1985); ou c) um movimento individual ou coletivo ativo de
rejeição a uma organização de marketing em particular. Para Ritson e Dobscha (1999), os
indivíduos, ativamente engajados em tais atos declarados de resistência são “heréticos do
marketing” (no original, “marketing heretics”). Tais atos de resistência podem ser atividades
anti-marcas (como a criação de hate sites, como KillerCoke ou AntiNike, por exemplo) e
podem ser vistos como uma ruptura clara na lógica de mercado. As práticas de persuasão da
publicidade e propaganda, assim como os gastos elevados para a construção da marca também
são alvos de resistência por meio de organizações como AdBusters e práticas “anti-eqüidade
da marca” (DOBSCHA, 1997). Close e Zinkhan (2007) reforçam que a resistência do
consumidor não trata de ausência de comportamento ou de mera passividade, mas sim de atos
deliberados que recriam tradições estabelecidas no mercado: “focamos na resistência a toda
uma vida de mensagens, promoções, atividades do mercado (...) nosso foco é nos
comportamentos” (p. 257).
O estudo de Eckhardt, Devinney e Belk (2006), aponta que nem sempre ações dos
consumidores que contrariam interesses e discursos das empresas podem ser descritas como
resistência explícita a tais instituições. Na referida pesquisa fica evidente que consumidores
de vários países do mundo adotam o discurso das empresas, muito embora nem sempre o
sigam. Isto é, “o fato de os consumidores acreditarem que as considerações éticas sejam
importantes não implica necessariamente que quando confrontados com uma escolha restrita
de opções eles ajam de acordo com tais crenças” (ECKHARDT, DEVINNEY E BELK, 2006
p.12). Mesmo ao comprar produtos de empresas que usam trabalho escravo, fruto de
contrabando ou ainda de pirataria, os consumidores possuem uma série de justificativas ou
desculpas que os permitem continuar pensando a respeito de si mesmos como pessoas éticas,
apesar de engajarem-se ostensivamente em comportamentos de consumo comumente
considerados não éticos.
Ao conduzir práticas em desacordo com as regras de mercado, estariam os consumidores
declaradamente atuando contra o mercado? Isto é, será que o discurso do consumidor parte da
idéia de resistência como forma de liberdade ou de atingir a eqüidade? Tanto as razões
observadas por Close e Zinkhan (2007) em comportamentos de resistência, quanto as
justificativas relacionadas por Eckhardt, Devinney e Belk (2006) envolvem de forma mais
visível as razões econômicas, mas também as não econômicas.
A pesquisa a respeito de como os consumidores entendem seus comportamentos de
aquisição de música pode trazer contribuições interessantes para a compreensão da resistência
no consumo. Giesler e Luedicke (2007) apresentam o mercado de música como o palco de um
drama: o download de músicas. De um lado estariam aqueles que associam o download ao
crime, pirataria e ilegalidade e do outro aqueles que desafiam a lógica corporativa, ligando a
prática de download às idéias de liberdade e igualdade. Tal drama é protagonizado por estas
duas interpretações culturais radicalmente diferentes, onde "o mercado serve como palco
central no qual os grupos divergentes de atores sociais se engajam em uma interação
dramática de estrutura e agência para legitimar suas próprias posições ideológicas de
identidade e poder” (GIESLER e LUEDICKE, 2007, p.489).
3. Procedimentos Metodológicos
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Por se tratar de assunto controverso, embora corrente entre jovens brasileiros, acreditamos
que a interação seria fundamental para acessarmos contradições e opiniões diversas sobre o
tema. Dado o caráter claramente indutivo da pesquisa, foi utilizada uma abordagem
qualitativa e os dados foram coletados em dois grupos de foco moderados por um dos
pesquisadores, enquanto outro servia de observador. Durante as reuniões foram discutidas as
experiências de consumo e aquisição ilegal de música, as caracterísiticas deste tipo de
consumo e a forma com a qual os consumidores classificam tais comportamentos de
consumo. O roteiro de discussão, previamente construído pelos pesquisadores com base nas
pesquisas anteriores que trataram do tema, incluía três partes: relação do indivíduo com
música; formas de aquisição de música e as justificativas para tal comportamento; além da
discussão a respeito de situações hipotéticas de consumo ilegal de música e de outros
produtos.
Quatorze jovens universitários declararam fazer download de músicas para consumo
próprio costumeiramente e se voluntariaram a participar das discussões, recebendo apenas um
brinde de participação ao fim de cada uma das sessões. A faixa etária dos participantes variou
entre 20 e 22 anos e homens e mulheres foram igualmente representados. Os grupos foram
montados levando em consideração os critérios propostos por Balch e Mertens (1999), de
maneira que todos os componentes possuíam experiência ou informação requerida para o
objetivo da pesquisa e demonstraram ter capacidade de comunicação frente ao restante do
grupo.
Os encontros foram gravados, transcritos e os dados coletados foram analisados a partir de
análise do discurso (GILL, 2000). Segundo Gill (2000) não existe uma perspectiva única de
análise de discurso, mas uma série de diferentes estilos de análise. O ponto em comum entre
as diferentes correntes diz respeito à centralidade da linguagem e do discurso na construção
da vida social. A autora destaca os temas principais da análise do discurso: “uma preocupação
com o discurso em si mesmo; uma visão da linguagem como construtiva (criadora) e
construída; uma ênfase no discurso como uma forma de ação; e uma convicção na
organização retórica do discurso”. (GILL, 2000 p. 247).
Desta forma, é importante ressaltar que um discurso é, por definição, circunstancial. Logo,
a mesma pergunta terá diferentes respostas de um mesmo indivíduo, dependendo do
interlocutor e do ambiente em que se encontram, a mesma frase poderá ter diferentes
significados. Por isto, é importante entender o contexto para compreender o discurso: gestos,
pausas, ritmo da conversação, modulação da voz, modificações no tom da pele (GILL, 2000).
Quando se trata de linguagem não existe nenhum ponto sem importância, qualquer fala ou
texto é uma prática social e são organizados retoricamente. Isto quer dizer que todo discurso é
organizado para persuadir e está compromissado com a construção de uma visão de mundo
que compete com outras diferentes.
4. Análise dos Dados
Nesta seção analisamos os discursos coletados levando em conta o referencial de
resistência e consumo e suas relações com o consumo e a aquisição ilegal de música. A partir
desta perspectiva, buscamos observar nos discursos entrevistados as formas com as quais os
mesmos tratavam de situações de aquisição de música através de download ou pirataria.
Foram exploradas e confrontadas as justificativas para este comportamento de consumo e as
suas diferentes classificações. Em alguns momentos houve clara concordância entre os
participantes e em outros as questões apresentadas traziam discussões acaloradas, quando foi
necessária intervenção mais ativa do moderador. O interesse e o envolvimento de todos com o
tema ficaram evidentes durante as sessões e os pesquisadores puderam explorar de maneira
profunda o comportamento do consumidor de música a partir de download.
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4.1 Compra Ilegal, Download e Pirataria: “Baixar” é Diferente de “Piratear”.
Inicialmente procuramos investigar como os consumidores constroem suas escolhas de
compra de música. Nenhum dos respondentes havia comprado CD original de música há pelo
menos seis meses. Como todos já haviam declarado anteriormente ter feito download de
arquivos de música através da internet e tido algum outro comportamento de consumo de
música considerado ilegal, exploramos suas razões para tais comportamentos.
As discussões trataram das diferenças entre as formas de aquisição de música. Ficou claro
que fazer o download de arquivos de música (tratado pelos informantes como “baixar”
música) não é considerado pelos informantes o mesmo que comprar um CD pirata. A fonte do
produto, desta forma, altera a percepção a respeito do comportamento de consumo adotado.
“A mídia chama baixar música de pirataria, os artistas também... ...mas para
mim não é a mesma coisa.”
“Baixar música é pirataria, mas eu não falo que o meu CD é pirata. Eu baixei
(ênfase) o CD.”
Os argumentos utilizados pelos participantes dos grupos de foco para diferenciar o CD
pirata do CD “baixado” estão relacionados às conseqüências da venda ilegal e à qualidade do
produto pirateado. No primeiro caso, os informantes tratam das conseqüências dos atos e
apresentam aspectos negativos da pirataria e sua ligação com o crime.
“Quando eu baixo é para o meu uso e ninguém vai ganhar dinheiro em cima
disso. Eu acho um absurdo dar um dinheiro para aquele cara que está ali. Uma
coisa é você baixar o CD, outra coisa é comprar no camelô. Tá incentivando um
comércio ilegal.”
“Comprar pirata é diferente de baixar. Quando você compra pirata você está
dando dinheiro para o comércio ilegal. Bem ou mal, é um dinheiro que circula
na ilegalidade. Baixando da internet, você não está incentivando esta
ilegalidade. Não preciso comprar pirata porque é fácil baixar em casa.”
No tocante à qualidade do produto, alguns informantes alegaram ter tido problemas com
produtos piratas comprados no passado, incluindo CDs de música - “CD pirata estraga o
aparelho.” “Não compro de camelô porque eu acho que a qualidade não é a mesma.” Mas
surge certa desconfiança a respeito deste argumento. Esta desconfiança pode ser identificada
como uma justificativa para um comportamento de resistência. O informante identifica nas
empresas a origem de uma ação contra a sua opção de aquisição:
“Na minha cabeça não tem essa que o CD pirata vai estragar o aparelho. É um
mito. Um mito criado pelas empresas. Não tem porque estragar. Não sei se o
mito da má qualidade dos CDs ou do MP3 foi criado pelas empresas, mas é
muito conveniente para elas.”
Para alguns entrevistados o comerciante ilegal (o “pirateador”) adota as mesmas práticas
das gravadoras e isto serve como justificativa para sua opção por realizar download dos
arquivos de música ao invés de comprar CD pirata. O consumidor não identifica no
comerciante pirata uma opção à relação de troca estabelecida anteriormente com as
gravadoras.
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“Além de tudo, o pirateador compra um CD super barato, copia um material da
internet e quer te vender por R$5,00! Acho isso um absurdo! Ele está usando a
mesma lógica da gravadora e tendo lucros muito elevados. Ele é pior que a
gravadora, porque o que ele tem um lucro absurdo!”
4.2 Baixo Custo, Facilidade de Utilização e Disponibilidade
Os consumidores apresentaram ao longo das sessões de discussão uma série de
justificativas associadas à aquisição de música a partir de download. Mesmo não sendo
classificados como consumidores que tenham restrições financeiras elevadas (mesmo sendo
jovens, a maioria tem carro e todos possuem aparelho de reprodução de arquivos mp3), os
participantes apontaram o elevado custo associado à aquisição do CD original como
justificativa para o download de arquivos de música.
“Eu gosto de assistir de música, gosto de filmes. Quando vai alguém lá em casa
eu gosto de colocar alguma coisa. Se eu for comprar todos os CDs ou DVDs que
eu tenho ali, eu vou gastar mais de R$1.000,00. Aí eu baixo tudo da internet.”
Além do preço, outros argumentos foram apresentados pelos entrevistados – “O que
justifica eu baixar música sabendo que é errado? Preço, comodidade, facilidade, eu escolho
as músicas...”. Segundo os entrevistados, os CDs comercializados pelas gravadoras contam
apenas com uma ou duas canções que são de suas preferências e não há porque pagar por
vinte canções, quando desejam ouvir apenas duas – “Eu não escuto todas as músicas, então,
porque tenho que pagar pelo que não gosto?” Ao fazer o download das canções do CD, o
consumidor se sente livre para escolher as canções que gosta e descartar as indesejadas. O
incremento do poder de escolha do consumidor é acompanhado pela facilidade em se fazer os
downloads de arquivos e pela praticidade que o uso do formato MP3 oferece. A
disponibilidade dos arquivos de música na internet é ilimitada e o acesso a uma infinidade de
opções modifica a relação com o produto e sua utilização.
“A facilidade de baixar faz com que nós sejamos mais ecléticos. Eu ouço música
no computador ou no iPod, no aparelho de MP3, no celular, em casa, na rua. As
músicas ficam no iPod, no computador, não no CD.”
“Eu baixo o CD da internet. É muito mais fácil e, além disso, você não ouve
todas as músicas de um CD. Então, você formando o seu CD, você vai gostar de
tudo. O que eu não gosto eu deleto. Se entrar na moda, eu vou lá e baixo de
novo.”
“Nunca fiquei sem achar a música que eu queria. Há muitas fontes. Além dos
programas de troca de arquivos, tem comunidades no Orkut que oferecem a
música. Você procura o nome da música, o nome do cantor, ou um trecho da
letra e não tem como não vir algo. Agora tem um site que você cantarola a
música e ele te diz qual o nome da música.”
4.3 Justificativas Sociais
Além das justificativas de cunho econômico, os entrevistados apresentaram justificativas
sociais para os seus comportamentos de consumo. Mesmo reconhecendo que legalmente não
há distinção entre a aquisição de CD pirata ou download de música na internet, os
respondentes colocam em perspectiva a aprovação dos demais membros do seu grupo social.
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Como não há uma reprovação direta para seus comportamentos, os jovens compartilham com
o grupo cumplicidade pela sua opção.
“Tudo que é pirata é ilegal, mas eu não me sinto fazendo algo ilegal quando
baixo uma música. Eu me sinto fazendo algo ilegal, mas eu não me culpo. Todo
mundo faz...”
“Eu penso sobre ser ilegal, mas eu não sinto culpa. Acho culpa muito forte.
(rindo) ‘Oh meu deus, eu baixei uma música’.” (risos de todos)
“Baixar música, filme, séries é tão comum na nossa cultura, dos jovens, que a
gente considera pirataria a venda. Baixar, na minha cabeça, não é problema
nenhum. Quando eu baixo é para o meu uso e ninguém vai ganhar dinheiro em
cima disso. Mas isso é uma cultura do Brasil, porque lá fora é super-proibido e
quem faz não é visto com bons olhos.”
Uma vez que obtém aprovação de seus pares para seu comportamento, o jovem
experimenta conforto moral com sua opção. Já que não há sanção moral para seus atos, os
consumidores questionam as sanções legais relacionadas ao download de arquivos de música.
“É errado no sentido legal, mas não no sentido moral. Eu não fico com crise de
consciência porque estou baixando música. É errado porque é crime, mas
moralmente não é errado. É como se a lei tivesse errada, mas, por outro lado,
tem alguém sendo prejudicado. Se não for para comercializar, não é problema
nenhum baixar as músicas.”
4.4 Nova Relação entre Consumidores e Produtores
O discurso dos informantes apresentou descontentamento com a forma com a qual as
gravadoras historicamente tratam os consumidores. Devido à exacerbação da assimetria de
poder entre produtores e consumidores de música, em favor dos primeiros, os entrevistados
afirmam que a indústria não precisa mais do consumidor de CD e, por isso, eles não se
incomodam com os prejuízos causados pelo download de música na internet.
“Quem toma na cabeça é a gravadora. O artista ganha centavos por cada CD
vendido. Ele sobrevive de shows que ele faz. Eu sei que as empresas exploram os
funcionários e fazem coisas erradas, corrupção, essas coisas... ...portanto, eu
não estou preocupada se a Sony Music perde dinheiro com músicas MP3.”
O surgimento de tecnologias que permitiram o desenvolvimento do formato MP3 e o
compartilhamento de arquivos alterou as relações entre a indústria fonográfica e os
consumidores de música. O exame um pouco mais atento de alguns participantes traz certa
desconfiança a respeito desta nova relação. Durante os grupos de foco surgiram
questionamentos a respeito da perseguição sofrida pelo consumidor e da tentativa de controle
sobre a pirataria focado no comportamento do consumidor.
“A pressão está no lugar errado. O controle é errado. Baixar música não é
errado porque eu consigo fazer. Se fosse errado teria algum empecilho. Eu
compro o iPod, que é compatível com meu computador. Eu baixo a música e o
iTunes aceita de forma mágica (com ironia). O arquivo é passado para o meu
equipamento e isto tudo funciona. A gravadora tem contrato com o iTunes.
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Logo, a gravadora deveria exercer pressão sobre a Apple para não deixar
arquivo baixado tocar no iTunes. O iTunes deveria bloquear arquivos de origem
desconhecida.”
“O Kazaa, o Napster, o eMule, tudo isso surgiu lá fora, dentro da indústria. O
meu gravador de CD em casa ‘queima’ uma cópia muito rápido e depois
pergunta: ‘Do you want another copy?’. Não fui eu quem pediu! Pô, é muito
fácil fazer isso. Em dez minutos eu posso fazer um monte de cópias de um CD.”
Os entrevistados apontam para uma nova relação, onde o poder exercido pela indústria
fonográfica tradicional poderá passar a ser exercido por outro produtor. Para eles, por conta
desta nova relação de consumo, aconteceu uma transferência do objeto de consumo. O CD se
descola do valor estritamente associado à música que ele contém e passa a apresentar dois
significados: simples meio de armazenagem ou transporte (CD virgem) ou objeto de coleção
(álbuns dos artistas pelos quais os consumidores nutrem profunda admiração).
“Só compra CD quem gosta de ter o encarte, o disco. É um objeto. Alguns
artistas eu posso até comprar o CD original, outros são só para baixar. A
tendência hoje é você só comprar se você tiver uma ligação muito forte com a
banda ou com a pessoa.”
“Eu vou ter que montar o meu CD para gravar (aborrecido)... Já tem um
aparelho, desse tamanho (aproximando o dedo polegar do indicador para
mostrar um tamanho pequeno), finíssimo... ...você vai comprar o CD para
passar para MP3, para ouvir... ...não faz sentido.”
A música pode ser descartada mais facilmente e não precisa ser transferida a partir do CD.
O aparelho reprodutor de arquivos MP3 (particularmente, o iPod da Apple) passa a ser o
objeto desejado. Além de meio de transporte, armazenagem e acesso à música, o reprodutor
incorpora também o status de objeto colecionável.
“Há um aparelho que permite que você escute música em qualquer lugar e isso
trouxe uma outra forma de se escutar música. Antigamente, você comprava o
disco, colocava o disco na vitrola e escutava em casa ou na boite. Depois veio o
CD, que você carregava para outros lugares, mas, comparado ao MP3 player, é
grande, desajeitado, pulava toda hora quando você andava ou corria. O melhor
momento”.
“A Apple faz várias edições limitadas do iPod maneiríssimas. Eu não tenho, mas
olho para o iPod dele: pô, maneiríssimo.”
4.5 Vestígios da Antiga Relação entre Consumidores e Produtores
Apesar de ter sido estabelecida uma nova forma de relação entre consumidores e
produtores de música no tocante à distribuição e comercialização, as gravadoras
multinacionais continuam exercendo forte poder de orientação sobre as preferências dos
consumidores. Através de ações de controle da programação de rádios, canais de TV
(principalmente a MTV), além da produção cinematográfica (alguns estúdios são de
propriedade dos mesmos grupos que controlam as gravadoras) e também de sites na internet,
as empresas buscam restringir de maneira bastante focalizada as informações às quais os
consumidores têm acesso.
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“O High School Musical, eu via na TV e achava muito legal, aí eu baixei as
músicas, mas eu não comprei o CD do filme, nem o DVD. Passa todo dia na TV
a cabo, eu não preciso comprar o DVD, mas eu comprei para dar para minha
prima.”
“A maioria das músicas que eu baixo são músicas de filme. Quando eu gosto
muito eu compro a trilha sonora. Agora, música que toca na MTV, só anoto o
nome e baixo depois. É uma nova forma de acessar o produto: eu baixo e ouço a
música na hora que eu quiser. É muito prático. Eu ouvi na MTV, vou lá e baixo.
Depois eu troco os arquivos através do MSN.”
“Tem uns sites com a lista das melhores das pistas e a gente acessa e depois
baixa. A Billboard tem um monte de listas que servem como referência. Eu pego
o nome da música e baixo, se for boa eu fico com ela, se for ruim eu apago o
arquivo.”
As gravadoras sempre exerceram pressão sobre as rádios e canais de televisão (o chamado
“jabá”) e expandiram esse poder de sugestão sobre a preferência do consumidor através de
filmes, canais de TV e sites. O consumidor parece ainda não resistir a este processo e o aceita
sem questioná-lo. Desta forma, ainda resta à indústria fonográfica algum poder sobre o
consumidor.
6. Discussão – Download e Resistência
Historicamente, a relação entre consumidores e produtores de música foi caracterizada
pelo localização do poder quase exclusivamente nas mãos das gravadoras. Aos consumidores
era oferecida a chance apenas de gostar ou não do produto ou participar de um segmento
específico. Esta lealdade (HIRSCHMAN, 1973) era aceita pelo consumidor porque a
assimetria de poder frente às gravadoras era muito acentuada. Dentro deste ambiente, a
indústria fonográfica seguiu praticando o modelo clássico de marketing (desenvolvimento de
produto, distribuição física no varejo, ações de comunicação) durante anos sem experimentar
problemas.
A inovação tecnológica e o conseqüente surgimento do formato MP3 e dos softwares de
compartilhamento de arquivos (o primeiro deles, o Napster desenvolvido e difundido entre
consumidores) mudaram sobremaneira as práticas deste mercado. As organizações não
perceberam ou não foram ágeis o suficiente para perceber a mudança estrutural que estava por
vir em função desta tecnologia e passaram a enfrentar uma crise.
Na verdade, todas as tecnologias que transformaram a indústria de música ao longo do
tempo eram controladas pelas empresas, e as disputas ocorriam entre companhias que
ganhavam ou perdiam posições no mercado em função da posse de tal tecnologia
(DARBILLY et al., 2006). Ao se tornar capaz de adquirir e consumir música a partir do
download de arquivos de música de forma livre e gratuita, o consumidor passou a ter mais
poder frente às gravadoras. Mesmo sem localizarmos nos discursos dos consumidores um viés
mais acentuadamente político ou ideológico, como propõem Fernandes (1998) ou Giesler e
Luedicke (2007), pudemos identificar ações de resistência no consumo.
A recusa em comprar CDs originais e a insistência em realizar o download de arquivos de
música de forma gratuita e desautorizada pelas gravadoras é uma força de oposição à estrutura
do mercado, conforme proposto por Dobscha (1998). Esta ação de resistência estava clara nos
discursos dos consumidores – “Eu não compro CD, eu vejo algo que me chama a atenção e
baixo o MP3”. Como forma de se opor à ordem tradicional do mercado, o consumidor se opõe
11
ao rótulo de pirataria dado pela indústria e dá um novo significado à posse ilegal da música a
partir do arquivo “baixado”, o “que todo mundo faz”. Como conseqüência da mudança da
base tecnológica o consumidor passou a poder exercer sua resistência a partir da oposição à
forma de comercialização da música e ao rótulo estipulado pela indústria àqueles que utilizam
esta nova tecnologia para acessar arquivos de música.
A partir da possibilidade de download de arquivos de música, o consumidor passou a
poder fazer suas escolhas com mais facilidade e com menor risco. Desta forma, o seu poder
de agência foi ampliado, caracterizando, segundo Poster (1992) e Peñaloza e Price (1993)
uma forma de resistência do consumidor. As opções de acesso e aquisição de música são
ilimitadas – “Eu nunca deixei de achar algo que eu queria” – e o risco de erro de escolha é
muito reduzido – “Baixo o CD todo, o que eu gostar eu fico, o que eu não gostar deleto”.
Assim, o consumidor passa a ter maior poder de agência e se torna mais independente das
empresas.
O download de arquivos de música é a “saída” (HIRSCHMAN, 1973) alcançada pelo
consumidor. A partir desta tecnologia, o consumidor passou a ter uma opção frente às
gravadoras. Como estas organizações não ofereciam “voz” aos consumidores, só lhes restava
a submissão (“lealdade”) na esperança de uma mudança. A única fonte de poder dos
movimentos de resistência reside na possibilidade de saída (DOBSCHA, 1998; KUCUK,
2007; SZMIGIN, CARRIGAN e BEKIN, 2007), o que foi concretizado no momento em que
o consumidor passou a poder “baixar” suas músicas ao invés de aceitar as condições impostas
pelas gravadoras.
A relação com o objeto CD também mudou e não há mais dependência a um único meio.
Ao “baixar” música na internet, os consumidores passaram a divergir da prática dominante do
mercado, estabelecendo nova forma de acesso, consumo e armazenagem de música. Durante o
período em que não tinham suas posições ameaçadas, as gravadoras ofereciam conjuntos de
músicas em um CD, sem levar em conta preferências e desejos dos consumidores. O
consumidor passou a poder divergir desta prática dominante do mercado a partir do momento
em que passou a poder construir suas próprias opções de combinações de músicas – “eu não
escuto todas as músicas, porque vou comprar o CD?” Conforme Close e Zinkhan (2007), a
resistência do consumidor trata de atos deliberados que recriam tradições estabelecidas no
mercado. Os consumidores estabeleceram não só uma nova forma de relação com a indústria,
mas também uma “nova moral” que rege o comportamento de consumo de música “baixada”
– “Baixar música é ilegal, mas eu não me sinto fazendo algo ilegal. Todo mundo faz.”
Como vemos existem ações de resistência baseadas no download de arquivos musicais.
Entretanto, esta tecnologia possibilitou também a entrada de empresas advindas de outros
setores, mais notadamente da informática, que podem associar-se às gravadoras ou estabelecer
um modelo próprio de relação de mercado. A Apple, empresa da área de informática, tornouse um grande player deste mercado oferecendo aparelho que suporta a reprodução de arquivos
MP3 (iPod, disponível em diversas versões), software de administração destes arquivos
(iTunes) e loja virtual para a venda legal de música em formato MP3 (iTunes Store).
Mesmo com o incremento de poder nas mãos dos consumidores, percebemos nos
discursos dos entrevistados que as grandes empresas do mercado fonográfico ainda têm poder
sobre as preferências dos consumidores. As principais fontes de referência apresentadas pelos
consumidores ainda são dominadas pela indústria. As gravadoras determinam o que os canais
de TV e as rádios vão apresentar em sua programação musical através de acordos ou
manobras ilícitas (“jabá”) e ainda são os principais anunciantes presentes em revistas e sites
especializados. Além disso, as grandes corporações de entretenimento, que possuem redes de
TV, gravadoras e estúdios de cinema, ainda contam com uma poderosa ferramenta de
divulgação através dos filmes produzidos para o grande circuito.
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7. Considerações Finais
Como pudemos ver, a mudança de base tecnológica que permitiu o download dos
arquivos de música ofereceu ao consumidor uma nova posição na relação com as gravadoras.
O consumidor passou a exercer uma força de oposição ao mercado (DOBSCHA, 1998),
acessando a música sem comprar o CD e recusando rótulo de pirata para suas ações. O
consumidor passou a ter maior poder de agência e passou a decidir de maneira mais ativa
aquilo que consome (POSTER, 1992; PEÑALOZA e PRICE, 1993), resistindo ao que era
imposto pelas gravadoras.
A possibilidade de “baixar” músicas trouxe ao consumidor a alternativa de “saída”
(HIRSCHMAN, 1973). Como colocam Dobscha (1998), Szmigin, Carrigan e Bekin (2007) a
“saída” do mercado e uma opção de resistência ao consumo que é garantida pela possibilidade
de acesso e consumo de música através do download de arquivos na internet.
Os discursos dos entrevistados apresentaram também as divergências dos consumidores
frente à prática dominante do mercado liderada pelas gravadoras. O consumidor passou a ter a
capacidade de discordar da prática estabelecida pelas organizações e construiu uma nova
“moral” que é capaz de justificar seu comportamento divergente da norma. Conforme
apontam Close e Zinhkhan (2007), a divergência das práticas dominantes do mercado é, per
se, uma prática de resistência.
Como vimos, os consumidores que fazem download de arquivos de música apresentam
em seus discursos características que podem ser consideradas como resistência do
consumidor. O quadro abaixo resume os principais achados desta pesquisa.
Quadro 01– Formas de Resistência do Consumidor de Música
Resistência do
Ação do Consumidor
Discursos dos Consumidores
Consumidor
“Não compro CD há muito tempo.
Recusa de compra do
Baixo tudo da internet.”
Força de oposição ao
mercado (DOBSCHA,
CD;
“A mídia chama baixar música de
1998)
Oposição ao rótulo de
pirataria, mas para mim não é a
pirataria.
mesma coisa.”
“Eu nunca deixei de achar algo que eu
Agência do
Consumidor (POSTER, Incremento do seu poder queria”
1992; PEÑALOZA e
de agência a partir do
“Baixo o CD todo, o que eu gostar eu
PRICE, 1993)
fico, o que eu não gostar deleto”.
download
Consumo de música
“Só compra CD quem gosta de ter o
“Saída”
“baixada” como
encarte, o disco. É um objeto. Alguns
(HIRSCHMAN, 1973;
possibilidade radical de
artistas eu posso até comprar o CD
DOBSCHA, 1998;
saída que empodera o
original, outros são só para baixar. A
SZMIGIN, CARRIGAN consumidor;
tendência hoje é você só comprar se
e BEKIN, 2007)
Falha na identificação
você tiver uma ligação muito forte
com o produto.
com a banda ou com a pessoa.”
Escolha e construção de
“Eu não gosto de todas as músicas,
Divergência frente à
opções de consumo;
porque vou comprar o CD?”
prática dominante do
mercado (CLOSE e
Nova “moral” adaptada e “Eu não me sinto fazendo algo ilegal
ZINKHAN, 2007)
apoiada pelos pares.
quando baixo uma música. Todo
mundo faz...”
Fonte: próprios autores.
Alguns resquícios da antiga relação com os produtores de música permanecem e as
grandes empresas permanecem vivas nesta nova relação, podendo criar armadilhas para o
13
consumidor. As gravadoras continuam tendo grande influência sobre as preferências dos
consumidores ao deterem controle sobre as principais fontes de informação do consumidor de
música, através de canais de TV, rádios, sítios eletrônicos e revistas.
Na verdade, as empresas continuam orientando o consumo, apesar de não obterem os
níveis de lucros tão elevados como outrora. Novos entrantes neste mercado parecem dispostos
a construir uma nova relação com os consumidores. Alguns movimentos já foram feitos no
sentindo de acompanhar as preferências dos consumidores, como a venda de downloads de
canções individualmente a partir de sites de compra de música na internet (iTunes Store, entre
outros). Estas empresas obtêm lucros associando a venda de arquivos de música à venda de
aparelhos de reprodução de MP3.
Tal movimento estratégico denuncia como as empresas já transformaram iniciativas de
resistência em ferramentas de marketing. Ainda na década passada, Peñaloza e Price (1993)
mostraram que comportamentos, originalmente de contracultura, foram rapidamente
absorvidos e reciclados pelo mercado e apropriados por grandes marcas. Da mesma forma que
empresas criam falsos blogs de consumidores fictícios, os chamados fake blogs, são criados
pelas empresas e aceitos por consumidores reais como fonte de informação ou entretenimento.
Segundo Close e Zinkhan (2007) e Peñaloza e Price (1993), posturas de resistência estariam
no mesmo patamar de novas interpretações de produtos ou marcas. Ritson e Dobscha (1999)
colocam em dúvida tal resistência do consumidor perguntando: afinal como poderia o
consumo ser contra o consumo? Seguindo esta lógica, a resposta ao sistema de dominação por
meio de sua mesma linguagem e forma de ação estaria contribuindo para a manutenção do
sistema e não deveria ser categorizado como ação de resistência.
Este artigo procura trazer uma contribuição inicial para a discussão a respeito da
resistência ao consumo manifestada por consumidores brasileiros. Acreditamos que os
estudos que buscam compreender as práticas de resistência do consumidor são
complementares aos de consumerismo e politicamente importantes no contexto atual.
Compartilhamos da postura de Denzin (2001), para quem uma pesquisa de consumo mais
radical deve evidenciar sua postura política e denunciar como opera a ideologia. Da mesma
forma, Bazerman (2001) considera que os estudos de consumo podem contribuir para
maximizar a autonomia do consumidor avaliando práticas e escolhas de consumo.
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