UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
RAINER GONÇALVES SOUSA
BEZERRA DA SILVA E O CENÁRIO MUSICAL DE SUA ÉPOCA:
ENTRE AS TRADIÇÕES DO SAMBA E A INDÚSTRIA CULTURAL
(1970 – 2005)
Goiânia
2009
RAINER GONÇALVES SOUSA
BEZERRA DA SILVA E O CENÁRIO MUSICAL DE SUA ÉPOCA:
ENTRE AS TRADIÇÕES DO SAMBA E A INDÚSTRIA CULTURAL
(1970 – 2005)
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História, da Faculdade de
História, da Universidade Federal de Goiás,
como requisito para a obtenção do Título de
Mestre em História. Área de concentração:
Culturas, Fronteiras e Identidades. Linha de
Pesquisa: Sertão, Regionalidades e Projetos de
Integração.
ORIENTADOR:
Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Júnior
Goiânia
2009
RAINER GONÇALVES SOUSA
BEZERRA DA SILVA E O CENÁRIO MUSICAL DE SUA ÉPOCA:
ENTRE AS TRADIÇÕES DO SAMBA E A INDÚSTRIA CULTURAL
(1970 – 2005)
Dissertação defendida no Curso de Mestrado em História, da Faculdade de
História da Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do grau de mestre, defendida em
__________/__________/__________, perante a banca examinadora composta pelos
seguintes professores:
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Júnior (UFG)
(PRESIDENTE)
__________________________________________________________________
Profa. Dra. Adriana Fernandes (UFPB)
(ARGÜIDORA)
__________________________________________________________________
Profa. Dra.Maria Amélia Garcia Alencar (UFG)
(ARGÜIDORA)
__________________________________________________________________
Prof. Dra. Fabiana de Souza Fredrigo (UFG)
(SUPLENTE)
Goiânia, _____, de ___________________ de 2009
Para todos aqueles que possuem a ciência de que nada disso seria possível sem a marcante
presença que meu pai ainda tem na minha vida.
AGRADECIMENTOS
À todas as figuras que fizeram desse caminho uma experiência de valor inestimável:
Todos os meus familiares e amigos, que mesmo nem sempre compreendendo
exatamente a importância desse trabalho, me apoiaram com gestos e palavras mais
valorosas que qualquer discussão acadêmica.
Camila Ligeiro, uma namorada de paciência e carinho infinitos, que deu grandes
contribuições subjetivas e formais à dissertação.
Carlos Oiti, um professor de incrível capacidade, que, justamente no último semestre da
graduação, renovou a minha relação com a História.
Fabiana Fredrigo, que apareceu nos instantes finais desse trabalho com sugestões de
uma pertinência fantástica.
“Eu sou do pico da colina maldita
E se Deus deu asa a cobra,
a um punhado de bambas
Já mandei a minha nega pro inferno
E também viajei no apolo do samba
Sou produto do morro
Sou malandro rife nesse mundo cão
Gatuno que entra na casa de pobre
Toma tapa da minha sogra sapatão
E depois sai gritando pela rua:
– Pega eu que eu sou ladrão!
O Chico também não deu sorte
Para o bicho feroz tenho a planta maneira
Liberdade é um lindo samba de quadra
Fruto da minha querida Mangueira
Veja bem que o malandro era forte
Mas cipó caboclo foi quem lhe amarrou
E virou comida de piranha
Porque não aprendeu a ser um bom sofredor
Ele se diz da pesada
Porém é um judas traidor
Quis bagunçar o meu coreto
Fez a cabeça sozinho, esquecendo do vovô(…)
Veja bem que o mané só fez graça
E o que fez o pai véio 171
Ele vendeu a bata do vovô
Pro tal Zé Fofinho de Ogum
Sou federal, já falei com você
Crocodilo comigo acaba no pinel
Defunto cagüete foi barrado no inferno
Como é que ele pode ter vez lá no céu
E por isso que vou contar até três
Pra tu sair da aba do meu chapéu
Aqueles morros que eu exaltei
É do Pedro Butina, eu posso provar
Joel Silva diz que não tem culpa
Se ele não tem onde morar
Saudações às favelas é do Sérgio Fernandes
Todos do Morro do Galo, que é o meu lugar”
(Romildo – Edson Show – Naval)
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo fundamental estabelecer uma leitura sobre a trajetória do
sambista Bezerra da Silva a partir do legado artístico por ele deixado. Nesse sentido,
promovemos uma revisita às temáticas e questões inseridas na história do samba e pensamos a
importância do sambista no contexto de sua época a partir do diálogo com sua obra. Para
repensarmos os valores de seu trabalho e a estima de suas contribuições para a música
brasileira, recorremos aos conceitos de tradição e Indústria Cultural, aqui entendidos como
elementos riquíssimos para a explorarmos os contrastes e a complexidade da sua produção
artística.
ABSTRACT
This work aims to establish a reading about the pathway of Bezerra da Silva from the artistic
legacy that he left. Thereby, we promoted one revisit to the themes and questions inserted on
the history of samba and we thought about the sambista’s importance in the context of his
time from the dialogue with his work. To rethink about the values of his production and the
esteem of his contributions to the brazilian music, we appeal to the concepts of tradition and
cultural industry, understood here as rich elements for us to explore the contrasts and the
complexity of his artistic production.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10
CAPÍTULO I – AS TRADIÇÕES MARCADAS NO SAMBA .................................. 13
1.1 TRADIÇÕES NO SAMBA: A RAÇA E A RESISTÊNCIA ............................... 16
1.2 DA CASA, DA ESCOLA, DO RÁDIO ............................................................... 28
1.3 FORA DAS ESCOLAS, DENTRO DAS RODAS... E MAIS DISCOS.............. 44
CAPÍTULO II – BEZERRA DA SILVA: UM CAMINHO BIOGRÁFICO E
MUSICAL ........................................................................................................................ 57
2.1 A CHEGADA ATÉ O MALANDRO .................................................................. 60
2.1.1 “Mas eu sou aquele que chegou do Nordeste para tentar...” ......................... 60
2.1.2 “Com o Bezerra não tem amor, né?” ............................................................ 64
2.1.3 “Eu sou favela” ............................................................................................. 67
2.1.4 Os “compositores de verdade” ...................................................................... 71
2.1.5 No tempo em que Bezerra “não via nada assado” ........................................ 75
2.2 “O POBRE INTELIGENTE” : DISCUSSÃO SOBRE O MALANDRO ............ 79
2.2.1 “Não tenho nada de polêmico” ..................................................................... 89
2.2.2 Bezerra: falando de seu tempo e a sua última malandragem ........................ 93
CAPÍTULO III – TRADIÇÃO E INDÚSTRIA CULTURAL: CONFLITOS E
DESAFIOS..................................................................................................................... 100
3.1 TRADIÇÃO: UM PONTO DE PARTIDA .......................................................... 102
3.1.1 Michael de Certeau e a bela morte da cultura popular .................................. 105
3.1.2 Hobsbawn e Bakhtin: o poder da invenção e a ruptura do diálogo............... 108
3.2 INDÚSTRIA CULTURAL: O CONCEITO E SUA PROJEÇÃO....................... 113
3.2.1 Conceituando a Indústria Cultural ................................................................ 113
3.2.2 A indústria no Brasil: projeções e experiências ............................................ 118
3.3 BEZERRA: NOSSO ÚLTIMO INTERLOCUTOR ............................................. 125
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 141
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 145
ANEXOS ......................................................................................................................... 149
ANEXO I ..................................................................................................................... 149
ANEXO II – FOTOS DIVERSAS DE BEZERRA DA SILVA .................................. 150
10
INTRODUÇÃO
Nesse trabalho, temos como intenção fundamental revisitar a vida e o legado
artístico do sambista Bezerra da Silva por meio de um processo que busca resgatar os
referenciais que abarcam as diferentes possibilidades de compreensão sobre nosso objeto.
Para tanto, optamos por desmembrar nossa produção em três capítulos que apresentam,
respectivamente, um panorama sobre a história do samba, a biografia de Bezerra da Silva em
contato com a sua obra, e, por fim, a maneira pela qual o conjunto de sua carreira pode ser
analisada e compreendida a partir dos conceitos de tradição e indústria cultural.
Sendo assim, inicialmente, procuramos fazer uma visita aos temas, discussões e
transformações que se destacaram na história do samba, de maneira a considerá-lo como um
gênero musical centenário que extrapola o recorte espaço-temporal da trajetória de Bezerra da
Silva. Contudo, a brevidade de nossos comentários foi necessária devido a impossibilidade de
abarcar toda narrativa do samba em apenas um capítulo. Assim, fomos levados a realizar
algumas escolhas que estabeleceram os critérios para a rápida apreciação desse gênero
musical longevo.
A seleção se deu em função do estudo das diferentes tensões que giraram em
torno do samba, que aparece como símbolo cultural moderno, e também do estudo do
desenvolvimento da indústria cultural brasileira. Dessa maneira, procuramos entender os
acalorados debates intelectuais que se propuseram a delinear a existência de uma tradição
musical nacional através do batuque do samba e buscamos expor o amplo leque de
negociações e mudanças que se manifestaram ao longo das décadas no campo musical
brasileiro, destacando os fatos e discussões do samba que são próximos à carreira de Bezerra
da Silva.
A partir daí, desenvolvemos o capítulo intermediário com enfoque na construção
da carreira do nosso sambista, primando por ressaltar seus primeiros contatos com a música e
também a série de desencontros que passou até alcançar sucesso. Mais que um restrito
exercício biográfico, essa parcela do texto tentou retratar a vida de Bezerra por meio do
diálogo travado entre as canções que interpretou e as declarações e os relatos oferecidos por
ele e pelos que o cercaram. Nesse sentido, foi possível analisarmos de que modo os eventos
de sua vida acabaram por ser retratados nos sambas que gravou e observarmos como essas
11
canções puderam trazer à tona a continuidade do debate que pretendia refletir sobre os
referenciais que definiam esteticamente e culturalmente os valores assumidos pelo samba.
Apesar de fazermos uma ponte entre a história do samba e o caminho percorrido
por Bezerra da Silva em sua carreira, primamos por também considerar o contexto em que ele
aparece como artista, destacando questões além da sua figura de malandro, morador do morro
carioca e intérprete de partido alto. Para isso, analisamos de que maneira ele conseguiu se
firmar como cantor, obtendo excelentes vendagens de discos e chamando a atenção da classe
artística, dos críticos e jornalistas em plena década de 1980. Dentro deste parâmetros,
destacamos como sua notoriedade no cenário musical brasileiro evidencia uma série de
símbolos que o apontam como representante de uma manifestação artística legitimada por
signos próximos ao samba, especialmente nas primeiras décadas que envolvem a
consolidação do gênero musical.
Todavia, nosso intuito não se limitou a encerrar a carreira de nosso objeto ao
campo de uma tradição a ser revisitada de forma purista. Assim, pela própria evocação dos
símbolos tradicionais, discutimos a singularidade da apropriação destes na obra de Bezerra
através do estudo de sua relação com o passado do samba que abre espaço para que a
reinterpretação da tradição se torne viva, podendo ser observada sob os pontos de vista de
diferentes teóricos. Nesse sentido, não nos mantivemos na tentativa de aplicar um conceito de
tradição adequado ao modo pelo qual Bezerra da Silva evoca as tradições do samba, mas
deixamos que o intérprete se tornasse um terceiro interlocutor que também pudesse fornecer
sua perspectiva para a reflexão sobre esta e outra questões que se travam dentro e fora do
universo do samba.
Paralelamente, nos focamos na extensão da obra de nosso intérprete, buscando
entender a notoriedade que alcançou com as canções que estabeleciam uma série de críticas
de natureza política, econômica e social. Tendo em vista a aparição, na década de 1960, de
diversos conjuntos, músicos e intérpretes que produziam as chamadas “canções de protesto”,
analisamos o modo pelo qual Bezerra empreendeu sua distinção deste grupo e como os
comentários, denúncias e opiniões que projetou em suas canções tiveram importância para
cultivar essa distinção mesmo que abarcassem os mesmos temas.
Por fim, nos centramos em mostrar de que maneira, no período em que começa a
experimentar o sucesso do público, a obra de Bezerra se coloca como uma manifestação de
significativa ruptura para aqueles cujo dilema se baseava na reflexão sobre o papel da cultura
12
nacional e sua situação diante os ditames da indústria cultural. Para tal, relevamos o fato de
Bezerra da Silva não reproduzir as antigas oposições que determinavam a compreensão da
arte musical brasileira de maneira a se portar como um malandro que observa outros
caminhos para a compreensão de sua produção, que se inclina para outras reflexões ocorridas
no cenário cultural nacional.
Para que a obra de Bezerra da Silva pudesse ser analisada desta maneira,
primando pelos diálogos que faz com a história do samba e com as demais manifestações
artísticas do Brasil e também para que a vida deste intérprete fosse revisitada, destacando a
força do homem que procuramos destacar, empreendemos uma escuta cuidadosa de toda sua
discografia e também tivemos acesso a um extenso cabedal de informações sobre nosso
objeto. Sendo assim, a discussão explorada nesta dissertação não se restringiu ao simples
conhecimento de sua obra e de sua biografia, mas ao uso de documentos teóricos, matérias
jornalísticas e letras de canções como material de exaustivo trabalho para a tímida
compreensão (pelo entendimento de que muito mais possa ser discutido) sobre os entremeios
que perpassam a vida e a produção do artista que aprendemos a admirar.
13
CAPÍTULO I – AS TRADIÇÕES MARCADAS NO SAMBA
“Uma coisa é certa: a idéia de preservação do samba tem uma força considerável”
Hermano Vianna
Os debates a respeito da identidade cultural brasileira sempre tiveram a
preocupação em levantar e defender quais tipos de manifestação artística poderia definir a
existência de bens culturais próprios. No que tange ao campo musical, o samba acabou
ganhando lugar de destaque ao ter seu processo de formulação traçado em uma mesma época
em que diversos intelectuais concordavam sobre a originalidade contida nos ritmos musicais
que entravam em consonância com a busca por práticas surgidas em meio aos “homens
simples” que habitavam os meios urbanos e rurais do território brasileiro.
Contudo, a história do samba também está vinculada ao processo de
desenvolvimento da indústria cultural brasileira, que dava seus primeiros passos no começo
do século XX. E esta relação tem sido tema recorrente nas obras mais recentes que pensam
sobre o samba em algum de seus momentos, pois se trata de um movimento de constituição
dos próprios ícones tradicionais desse gênero musical. Quem indica esse paralelo é Mareia
Quintero-Rivera, que, em sua obra, “A cor e o som da nação – a idéia de mestiçagem na
crítica musical do Caribe Hispânico e do Brasil (1928 - 1948)”, que fala sobre o
desenvolvimento dos estudos sobre folclore no Caribe e no Brasil.
Segundo a autora, só houve a preocupação em selecionar uma cultura que
pertencesse ao povo quando o disco e o rádio se puseram à frente dos pensadores da cultura
como novidades que levariam a arte a um campo de possibilidades bem distantes da
“autenticidade” estabelecida em outros tempos. Isto porque esta maneira ancestral de produzir
cultura parecia não mais se adequar, por questões estéticas ou sociais, ao dinamismo
industrial que permitia o consumo rápido da arte produzida em outras partes do mundo.
No que diz respeito à preocupação citada, Quintero-Rivera esclarece que a idéia
de popular não somente passou a se referir, necessariamente, à cultura de pessoas mais
simples, como também permitiu a construção de um conceito em que “povo” – que age em
prol da criação da ‘cultura popular’ – designa a formação de um “ethos nacional autêntico”
(2000, p.100). Seguindo o mesmo debate intelectual da época, Hermano Vianna, em sua obra,
14
“O mistério do samba”, tenta problematizar acerca das questões ligadas à construção de uma
identidade nacional sustentada pela definição de uma cultura popular.
Para tal, logo no capítulo inicial de seu livro o sociólogo carioca analisa um
encontro entre membros da elite intelectual da época e um grupo de sambistas na cidade do
Rio de Janeiro – considerada um dos principais locais de desenvolvimento do samba. Para ele,
este seria um exemplo vivo a partir do qual poderíamos compreender que o contato entre as
elites e as classes subordinadas afasta a idéia de uma cultura pura em que o samba seja
simplesmente reconhecido por meio de uma “inegável qualidade” que o tornou brasileiro e
portador de um intrigante “mistério”.
Para corroborar com a idéia de um misterioso processo sugerido por Vianna,
destacam-se, ainda, as obras “Nem do morro, nem da cidade – as transformações do samba e
a indústria cultural (1920 – 1945)”, do historiador José Adriano Fenerick e “Samba e mercado
de música nos anos 1990”, do musicólogo Felipe da Costa Trotta; ambas recentes e que, de
forma direta ou indireta, dão continuidade às primeiras hipóteses já oferecidas.
A primeira, publicada no ano de 2005, trata da defesa do samba como bem
cultural de natureza moderna que não pode ser admitido pelos pressupostos de ordem
folclórica que anteriormente pensavam e restringiam a história do samba. A segunda, por sua
vez, faz outro recorte espaço-temporal e descreve a história de um dos mais recentes estilos
do samba, o pagode. Oferece, ainda, uma curiosa perspectiva sobre seu surgimento através de
sua trajetória, o que leva à certeza de que modernidade e tradição continuam a se opor de
maneira a tencionar os debates em torno dos significados e características do samba no final
do século XX.
O que é possível perceber, mesmo na breve elucidação dessas obras, é a instigante
presença de um mesmo elemento em dois recortes distintos da história do samba: a indústria
cultural. Evidenciamos, assim, a constatação de que a “tradição do samba” caminha
constantemente ao lado de uma instituição responsável pela degeneração da música autêntica,
insubordinada às tradições e interessada em ampliar seus interesses, sempre prioritariamente
comprometidos com os lucros obtidos da exploração mercadológica dos bens culturais.
E é partindo dessa estranha aproximação observada nos mais diferentes contextos
que podemos perceber que o samba – pensado como lugar de uma tradição popular e nacional
– ao longo do tempo, nos fornece, através de sua antítese, um importante referencial de
sentidos referentes à sua complexa verdade estética. Assim, ao longo de outras análises mais
15
apuradas, iremos salientar de que maneira a eficiência lucrativa da indústria “sedenta” por
rentáveis atrações (musicais, cinematográficas e televisivas) enfatiza pontos que a tradição do
samba deseja ou não deseja ser.
Começaremos, então, por destacar o fato de que o samba ganhou reconhecimento
como estilo musical ao passo em que surgia uma nova maneira de se relacionar a cultura na
sociedade, o que gerou situações de interessante conflito. Desse modo, percebe-se que, tanto
nos estudo dos primórdios do samba, como em seus mais recentes desdobramentos estéticoculturais, a relação com uma indústria do entretenimento sedimentou os seus aspectos mais
“legítimos” a serem reconhecidos por uma expressiva coletividade pertencente ou marginal à
sua prática. Nota-se, ainda, que, nessa mesma relação, o samba negociou mudanças que
exprimiam interesses, idéias e projetos envolvendo diferentes maneiras de representá-lo.
Assim, ao longo do tempo, os costumes naturalmente arraigados e as invenções
intencionadas se integraram em uma relação que permeou as várias verdades do samba e
fizeram deste um gênero musical “portador de mistérios”. Estes reconhecidos dentro de uma
idéia de que a tradição não pode ser excluída, e nem mesmo colocada de forma imune ou
resistente a tantos outros valores que também merecem equivalente reconhecimento. Contudo,
antes de estabelecer tais verdades por meio de uma história da cultura voltada para o samba,
podemos aqui vislumbrar a coerência desse jogo de múltiplas (o)posições interligadas ao
reproduzirmos a letra de Escasseia, um samba gravado por Beth Carvalho, que diz:
O santo que faz milagre
Também castiga
O chão que dá flores
Também dá urtiga
A mulher que ama
Também odeia
E tudo que dá em abundância
Escasseia.
A partir dessa canção podemos fazer um primeiro contato que nos permite
reconhecer os campos de possibilidades de argumentos acerca da discussão entre tradição e
indústria cultural. Para tal, recorremos, a princípio, ao título do álbum do qual Escasseia faz
16
parte: Na Fonte 1, de 1981, que faz uma clara sugestão à ancestralidade, trazendo uma
referência para um passado a ser revisitado. Contudo, a letra da canção traz uma perspectiva
distinta, que enxerga uma noção de tempo, transformação e multiplicidade que deve ser vista
no mundo e nas coisas.
1.1 TRADIÇÃO NO SAMBA: A RAÇA E A RESISTÊNCIA
Antes de se estabelecer como gênero musical, o samba ainda não possuía uma
maneira específica de ser realizado e se manifestava através de formas bastante livres e
improvisadas, de maneira a não demonstrar uma unidade ou conjunto específico que
denotasse uma origem particular. Assim, só veio a ser reconhecido a partir de um processo de
formalização, relativamente eficiente, que veio a fixar algumas de suas práticas. Logo,
percebe-se que passou pela própria definição de uma expressão sonora sendo reconhecida
como música, e, depois, como um gênero musical, perpassando um complexo processo em
que os sons são utilizados como elementos produtores de sentidos expostos à interação de
grupos sociais – que respondem diversamente àquelas situações que poderiam nos contar
sobre a origem do samba.
Para ter uma idéia de seu surgimento, recorremos à cidade do Rio de Janeiro,
entre os séculos XIX e XX, já que admitimos ter acontecido nela as primeiras situações
históricas ligadas ao samba. Dessa maneira, destacamos os trabalhos que tratam sobre os
debates, mudanças políticas, urbanas e sociais estabelecidas nesse espaço de tempo e também
o fim da escravidão e a transição do regime monárquico para o republicano. Teoricamente, o
Brasil se colocava em um novo panorama, abandonando velhas práticas políticas e
convertendo os seus súditos em cidadãos que, vistos em conjunto, eram “compostos na sua
maioria por descendentes de escravos” (NABUCO, 2000, p.104).
Contudo, um novo regime e o fim da escravidão não traziam fim a outros diversos
problemas que se apresentavam, abrindo caminho para discussões de problemas que antes
eram encobertos pelas posições político-sociais adotadas pelo tão criticado “passado
colonial”, que imperava no lugar por meio da exploração dos indivíduos e a geração de
riquezas. Sendo assim, a superação desses dois problemas revelou uma urgência em se refletir
1
Beth Carvalho, Na Fonte, RCA Victor, 1981
17
a identidade nacional, que tomava maiores proporções dentro dos debates intelectuais da
época.
Com isso, apareciam novas discussões em que a superação do atraso deveria
contar com a defesa e a valorização de uma nação autônoma, de um país que poderia ter uma
identidade própria a partir do momento em que as mudanças sócio-políticas abrissem portas
para a reflexão sobre as características de uma nação pronta para a sua própria
autonomização. Assim, ao mesmo tempo que observamos a indefinição de elementos
estéticos para a formação nacional, vislumbramos o surgimento de um contexto em que
debates sobre a nação pululavam nos dizeres de uma elite intelectual preocupada em
contornar uma identidade brasileira ao mesmo tempo original e admirada pelo mundo todo.
Em linhas gerais, esses intelectuais discutiam a identidade nacional por um olhar
que sintetizava
duas tendências que circulavam no mundo cultural europeu: por um lado, o interesse
por elementos de culturas consideradas ‘primitivas’ e, por outro, a nacionalização da
expressão artística. A junção de ambas tentativas foi criando um novo olhar em
torno das diversas manifestações culturais que se desenvolviam no interior do
território nacional (QUINTERO-RIVERA, 2000, p.23).
Nesse sentido, havia uma preocupação em igualar o novo projeto de nação aos
percebidos nos países do Velho Mundo. Contudo, a tentativa de se equiparar com as culturas
européias definidas acabava gerando um desejo de se negar a própria Europa consolidada
como um paradigma a ser copiado. Dessa maneira, procurava-se estabelecer uma
nacionalização apoiada em diversos trabalhos interessados em conduzir o desafio de formação
de uma cultura original por meio da demonstração de uma série de manifestações originais.
De forma sintética, o mais novo intento dos intelectuais do período era direcionar o olhar para
sua própria cultura, na expectativa de conseguir alcançar o
projeto de criar uma expressão moderna e, ao mesmo tempo, atemporal [por meio]
de um processo de naturalização do novo (...). [e], perante a incorporação de
elementos da cultura popular no registro de símbolos da nação, o debate sobre a
autenticidade das manifestações populares adquiriu uma importância fundamental.
(ibidem, p.42).
18
Em um momento análogo ao “de um país que se modernizava, que queria ter um
projeto de nacionalidade expresso por um bem cultural moderno” (FENNERICK, 2005,
pg.25), o samba pincelava suas primeiras novidades sonoras e o moderno nacional abria
caminhos para uma série de negociações que exigiam o confronto de idéias completamente
antagônicas sobre que tipo de manifestação cultural melhor representaria a nação. Assim, os
ideais acerca desta viviam o embate entre as semelhanças estético-culturais do Velho Mundo
e a valorização daquilo que era visto como genuinamente brasileiro, de maneira que mimese e
originalidade articulavam diferentes vias defensoras da concretização de um cenário artístico
e intelectual autônomo e, ao mesmo tempo, integrado pelo reconhecimento amplo da cultura
brasileira.
Como o embate antagônico que permeava o projeto não foi resolvido, a ausência
de uma hegemonia nos ideais de consolidação da cultura revela, na verdade, uma seqüência
de ações e idéias de maior complexidade que acabavam por se tangenciar. Um exemplo dessa
indecisão pode ser percebido, inclusive, no próprio processo de reorganização urbana pela
qual passou a cidade do Rio de Janeiro, cenário que comportou o surgimento do samba.
Dessa maneira, percebe-se que a mesma cidade que progredia e se embelezava de
acordo com as inspirações arquitetônicas e urbanísticas européias, acabava por conviver com
problemas sociais distantes do progresso das novas construções. Isto porque a cada dia
chegavam mais pessoas – na sua maioria, ex-escravos, mestiços e populações rurais – à
capital federal em busca de novas oportunidades. Contudo, ao mesmo tempo em que
oficializavam o fim da barbárie e escravidão, pertencentes a um passado bem recente de nosso
país, criavam um impedimento à realização dos ideais de nação desenvolvidos pelos
intelectuais, bloqueando a constituição de um cenário de harmonia civilizatória com a
ocupação improvisada de casarões e cortiços espalhados em variados pontos do Rio de
Janeiro.
Percebe-se, assim, que a chegada desse contingente populacional trouxe uma
situação de improviso para uma cidade que, desde meados do século XIX, crescia para todos
os lados, com os novos trabalhadores ocupando diversos espaços de um lugar em desenfreada
expansão. Conforme explicação do geógrafo Andrelino Campos,
Historicamente, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, as favelas, assim como os
cortiços, surgiam no cenário urbano carioca para suprir o hiato formado pelo déficit
habitacional, abrigando, inicialmente, em sua grande maioria, uma massa de pobres
que procuravam habitar próximo aos locais onde era oferecido trabalho,
19
principalmente para aqueles que não detinham qualificação profissional (2005,
p.21).
Além de ocuparem novos postos de trabalho, os novos habitantes integraram
também as discussões do universo dos intelectuais que assistiam as contradições de uma
cidade que se embelezava e modernizava às custas de um população que simbolizava a
oposição a esse cenário de renovação urbanística. Assim, tanto os casarões antigos quanto
aqueles que, segregados, ali moravam, faziam parte de um cenário desprovido dos padrões
europeus buscados, de maneira que a percepção dessa população de maioria ex-escrava e
negra exigia uma compreensão mais direta, desvinculada dos horrores da senzala.
Tal como os intelectuais, eles se tornaram – mesmo que somente no plano do
discurso oficial – cidadãos a serem, de alguma forma, reconhecidos, trazendo para si o
interesse de se julgar suas práticas culturais. Contudo, por mais que sua aproximação desse a
idéia do fim do antagonismo entre escravos e livres, ainda estavam submissos ao julgamento
de uma visão de civilidade projetada na presença de uma humanidade hierarquizada em raças,
onde o negro ocupava posição inferior.
No âmbito da produção musical, essa hierarquização não se mostrava diferente,
pois, retomando a obra de Maria Quintero-Rivera, no que diz respeito às críticas musicais da
primeira metade do século XX, ela observa a existência de escritos que ressaltavam a
decadência do gosto musical por meio da popularização das experiências sonoras
influenciadas pelas tradições musicais africanas. Para ela, a partir dessa situação, vê-se que as
críticas partiam de uma visão universalista em relação à linguagem musical, associando os
sons de origem negra e africana ao “relaxamento dos princípios morais”, “ao álcool e ao
submundo” ou o “caráter supostamente anárquico e estrepitoso da tradição africana” (2000,
p.129).
Voltando à questão da ocupação dos cortiços, a retirada dessas habitações
integrava um projeto inspirado na ordenação espacial de grandes cidades européias vistas
como exemplo de harmonia, requinte e planejamento. Dessa maneira, surgiram várias
justificativas para seu desaparecimento com o intuito de empreender a higienização e a
modernização de vários espaços urbanos cariocas. Antes disso, conforme aponta José Murilo
de Carvalho, a cidade do Rio de Janeiro era conhecida
20
(...) pelas freqüentes epidemias de febre amarela, varíola, peste bubônica. Era cidade
ainda colonial, de ruas desordenadas e estreitas, com precário serviço de esgoto e
abastecimento de água. As residências não tinham condições higiênicas. Havia
numerosa população no mercado informal, acrescida nos últimos anos do século
pela migração de ex-escravos. No verão, a elite local e os diplomatas estrangeiros,
para fugir das epidemias, mudavam-se para Petrópolis, cidade de clima mais
saudável. (2001, p.73)
No entanto, a questão do entrave desenvolvimentista não se resumia aos fatos
desses trabalhadores estarem em um local inapropriado ou insalubre, pois a problemática se
estendia aos sujeitos pertencentes a esses espaços, que também eram vistos como um
prolongamento do atraso a ser superado pela reprodução de moldes eficazmente estabelecidos
pela modernidade do Velho Mundo. Nesse sentido, um dos pontos mais combatidos pelos
defensores do progresso à moda européia era a inserção, na cidade, das formas pelas quais
essa população economicamente subalterna utilizava para se divertir.
Esse discurso do atraso ganhou os terrenos da cultura ao criticar aqueles que
ficavam pelas ruas tocando violão, fazendo “arruaça” e perturbando a tão essencial “ordem
pública”, mesmo naquela cidade que ganhava ares de maior civilidade. Desse modo, observase que a dicotomia entre senhores e escravos, que não se resumia a simples condição
econômica, era agora deslocada para outra incompatibilidade proposta no ambiente da
república, cuja função seria – ao menos em uma teoria que esteve longe do que fora posto em
prática – de manter todos iguais mediante a proteção das leis. No que diz respeito a esse novo
contexto, Fenerick salienta que
Apareceram novas praças... novos prédios, novas avenidas... um imenso boulevard
‘botou abaixo’ as antigas construções coloniais e rapidamente se transformou na
coqueluche da burguesia carioca... foram expulsos todos os habitantes de cortiços e
malocas, os freqüentadores de botequins... Perseguia-se o seresteiro e instrumentos
populares como o violão e o pandeiro, os ‘pés descalços’ e os ‘sem camisas’, os
macumbeiros, os curandeiros populares... Os dois mundos, o da elite civilizada e o
da plebe atrasada, pareciam bem separados, mas isso era mais um desejo do que
propriamente um fato... As muralhas da cidadania estavam construídas, mas os sons
e a música, ao que parece, não respeitam muito essas paredes sócio-políticas
(FENERICK, 2005, p.30-31)
O autor aponta para a idéia de que esse processo excludente e distintivo
aconteceu, mas não determinou uma situação homogênea que poderia, dentro de tal contexto,
fazer do samba algum tipo de cultura de resistência ou restrita àqueles que sofriam com os
problemas de uma cidade em transformação. Isso porque, a esta altura de sua tese, ainda não
21
trabalha com o momento em que o samba experimenta situações de grande prestígio e
reconhecimento nos meios de comunicação da época.
Mesmo trazendo posteriormente essa perspectiva de encontro, percebe-se que a
conclusão dada por Fenerick não se encaixa nas explicações predominantes do mundo do
samba, que visam justificar suas origens e seu valor tomando como partida a questão da
exclusão social e econômica. Nesse sentido, para o autor, o samba se materializa por meio de
sujeitos inicialmente envolvidos com seu desenvolvimento estético, confirmando a idéia de
que estes saem em busca de uma cultura genuína e popular que parte daqueles historicamente
“afastados” dos padrões culturais importados.
De acordo com esta compreensão, o samba ganha contorno de cultura de
resistência vinculada, principalmente, à figura do negro, visto como homem simples, criador
de uma cultura autêntica e ligada a perspectivas folclóricas que visam definir uma feição
singular à identidade cultural da nação. Assim, seria acompanhado por uma interpretação com
bases na motivação histórica favorável à tese de que o samba nasce enquanto parte integrante
de uma narrativa de longa duração e através desta a idéia da inserção do negro na sociedade
brasileira é levada em consideração como um movimento análogo ao processo de
compreensão das influências e características pertencentes ao samba.
A partir dessa tese, percebe-se, então, que o samba estaria naturalmente
influenciado por um passado histórico longínquo, que abraça o transporte das tradições
culturais africanas por meio do tráfico negreiro. Vê-se, ainda, a idéia de perpetuação de uma
estratégia mantenedora da identidade de um grupo que sofre expropriações contínuas,
passando pela desterritorialização, exploração da mão-de-obra escrava e perseguição das
tradições através da violência ou da conversão religiosa.
Essa naturalização de uma continuidade histórica simplifica a interpretação do
samba como mais uma das estratégias de resistência buscada pelas populações africanas
trazidas ao Brasil para o trabalho escravo. Um exemplo que demonstra essa possibilidade
interpretativa encontra-se em uma das canções do álbum “Sonho de um sambista” (São
Paulo: Eldorado. 1995), gravado pelo cantor e compositor Nelson Sargento. No sugestivo
título da canção “Agoniza, mas não morre” 2, temos uma tentativa de explicação de toda
trajetória do samba por meio da personificação do gênero. O samba se torna portador de
determinadas características físicas e morais que se contrapõem a uma série de situações de
2
Este samba foi anteriormente gravado por Beth Carvalho no LP “De pé no chão”, de 1978 pela gravadora RCA.
22
natureza impositiva e efeito corruptor. Nesse processo de luta entre uma verdade essencial do
samba e a intenção de terceiros desvinculados ao gênero musical – mas interessados em
apropriá-lo –, este escaparia de sua própria morte ao resistir aos engodos dos que pretendem
envolvê-lo. Para esclarecermos melhor o quadro proposto pela letra, transcrevemos seu texto,
que diz:
Samba
Agoniza, mas não morre
Alguém sempre te socorre
Antes do suspiro derradeiro
Samba
Negro forte e destemido
Foi duramente perseguido
Na esquina, no botequim, no terreiro
Samba
Inocente pé no chão
A fidalguia do salão
Te abraçou, te envolveu
Mudaram
Toda sua estrutura
Te impuseram outra cultura
E você não percebeu
Nesta letra podemos perceber como a referência ao negro expropriado se
consolida enquanto elemento marcante do universo simbólico do samba. Apesar de este ser
apenas um exemplo em favor dessa perspectiva, iremos posteriormente trabalhar com outros
sambas, críticas musicais e trabalhos acadêmicos que também tentam reafirmar a temática da
resistência. Voltando à canção de Nelson Sargento, ainda podemos avistá-la ao lado do trecho
de uma recente entrevista em que o próprio artista explica quais motivações o inspiraram na
composição de “Agoniza, mas não morre”. Trazendo uma justificativa de traço bastante
contextual, o artista diz:
A juventude estava influenciada pelo "yê, yê, yê!". Que seria mais tarde o embrião
do rock brasileiro. Mas o Martinho fez o samba “Casa de Bamba”, que acabou
dando uma reascendida no samba que estava desgastado. E para combater essa
invasão de música estrangeira, apareceu também o baião, com Luiz Gonzaga. Foi
uma época em que a música brasileira se projetou muito. Naquela época, as
gravadoras preferiam receber fitas do exterior, prensar e vender, ao invés de gravar
disco de música brasileira. As novelas também contribuíam para isso. Elas tinham
trilha sonora nacional e internacional. A nacional tocava em 20 capítulos e a
internacional tocava em 100 capítulos. Mas os sambistas seguiram lutando, Noel
Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Sinval Silva, Zé com Fome, Geraldo Pereira.
Essa turma que tocava o samba para frente. E os que vieram depois também. Eu,
Monarco, Nei Lopes, a turma da Portela. Eu me preocupo porque hoje não existe
23
mais esse time de gente tentando manter o samba. O Fundo de Quintal, Zeca
Pagodinho, Dudu Nobre, Almir Guineto, Jorge Aragão, são poucos. Dizer que o
samba está bem porque o Zeca vende 1 milhão de cópias não é correto. Depois de
tanto tempo o samba está sendo tombado (SARGENTO, Nelson. “Nelson Sargento:
A história do bom samba”. A Nova democracia n. 41, março de 2008 <
http://www.anovademocracia.com.br/index.php/Nelson-Sargento-A-historia-dobom-samba.html > acessado em 14 de julho de 2008).
Deixando de lado as outras possíveis considerações que possam ser feitas,
assinalamos que o autor demonstra uma ação de resistência contra um cenário que estaria
contra a cultura brasileira e, conseqüentemente, contra o samba. Nelson Sargento denuncia a
aproximação da indústria cultural com os gêneros musicais estrangeiros em detrimento dos
demais e desabafa que a valorização do samba conta com poucos representantes, citando o
bom desempenho de Zeca Pagodinho, uma exceção alheia à realidade de outros sambistas
contemporâneos 3. A idéia de resistência se coloca aqui como um elemento fundamental para a
compreensão da letra do samba e da trajetória de muitos artistas. No entanto, mesmo que
considerássemos o depoimento de Nelson como sendo uma fala comprometida na defesa de
um mundo ao qual ele faz parte, podemos observar essa mesma idéia de resistência em obras
que remetem a períodos históricos anteriores ao surgimento do samba.
Ao trabalhar sobre essa mesma questão da tradição do samba, Eduardo Coutinho
define o estilo musical como um bem cultural das “comunidades negro-subalternas do Rio de
Janeiro que tem o samba como forma de expressão” (COUTINHO, 1999, p.242). Para tanto, o
autor se utiliza de uma profunda investigação sobre a trajetória artística e pessoal de Paulinho
da Viola para compreender que diversos fatos vividos pelo cantor legitimam uma verdadeira
relação com a cultura popular, em detrimento de outras perspectivas que também tentaram
interagir e compreender essa mesma cultura.
O ponto de vista defendido por Coutinho é o de que a tradição se torna elemento
dinâmico pelo qual o passado fornece um determinado acervo histórico-musical capaz de
romper com determinadas formas e perspectivas que definem a situação presente da cultura.
3
O musicólogo Felipe da Costa Trotta discorda de tal perspectiva em sua tese de doutoramento “Samba e
mercado de música nos anos 1990”. Segundo o pesquisador, a trajetória de Zeca Pagodinho tem uma dinâmica
interessante a ser considerada. Sendo primeiramente revelado com surgimento do sub-gênero pagode, no começo
da década de 1980, este artista vive um primeiro momento de projeção seguido por uma fase, entre 1988 e 1993,
de menor expressão mercadológica. Contudo, acompanhando diversas das transformações empreendidas pelo
pagode romântico, Zeca Pagodinho viria a dar tons mais profissionais à sua carreira artística ao mesmo tempo
em que permite novas experimentações musicais oferecidas pelo músico e produtor Rildo Hora. A partir de
1995, com a gravação do disco “Samba pra moças”, Zeca Pagodinho volta a experimentar uma nova ascensão
que vai além da explosão do pagode romântico e o permite, alguns anos depois, ser considerado como um os
referenciais de novos sambistas que surgiram por meio de seu apadrinhamento.
24
Deste modo, ele coloca o samba como um item da cultura popular de classes subalternas que
estabelece um tipo de manifestação capaz de representar a reflexão dos que compreendem os
problemas e questões de um grupo social específico que ”se encontra ameaçada sob a cultura
de massa” (ibid, 2002, p.15, http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2002/Congresso
2002_Anais/2002_NP13COUTINHO.pdf).
Quem compartilha de uma perspectiva semelhante à de Coutinho é o antropólogo
Muniz Sodré, que no livro “Samba, o dono do corpo” aponta as origens do samba em direção
a um comportamento universalmente partilhado pelas culturas musicais do continente
africano e trazido para o ambiente colonial americano durante todo período em que o tráfico
negreiro se desenvolveu nas várias regiões de exploração mercantil. Para Sodré, esse
comportamento universal teria uma origem musicológica na chamada sincopação rítmica, que
se manifestaria enquanto bem cultural trazido pelos africanos, sintetizando o pensamento
musical de várias culturas desenvolvidas em um mesmo espaço que teriam um relativo tom
hegemônico.
Contrário a essa hipótese, o musicólogo Luiz Fernando Nascimento de Lima,
salienta que Sodré implanta essa perspectiva universalizada da cultura africana ao apontar o
aparecimento de manifestações musicais semelhantes na África e em locais marcados pela
escravidão africana como os Estados Unidos (jazz/blues) e o Brasil (samba) (2005, p.8) 4.
Dessa forma, o samba passaria ter esse peso de continuum de uma mesma cultura que se
transporta incólume pela força de um elemento cultural resistente.
De fato, essa resistência estaria, para Sodré, presente tanto em nível estético como
sociológico, sendo este percebido quando o autor afirma que o samba (e suas síncopes)
também indicaria uma continuidade da história das populações negras, que, retiradas de seu
local de origem, buscam “uma fala que resiste à sua expropriação cultural... (e) um apelo a
uma volta impossível, ao que de essencial se perdeu com a diáspora negra” (SODRE,
1998[1979], p. 59 e 67).
4
A perspectiva de Nascimento vai de encontro com a de Sodré no momento em que o autor estabelece uma
crítica interessada em desvendar outros problemas existentes nos elementos musicais utilizados pelo seu
interlocutor. Para tanto, ele grifa na definição de síncope de Sodré a ausência de uma reflexão que considere as
transformações estruturais e significativas que esse elemento negocia na medida em que interage com diferentes
contextos históricos. Dessa forma, o autor acredita que essa vinculação da síncope e, conseqüentemente, do
samba com uma cultura “afro-negra” é apenas um dos vários “estratos de significação operativos” ligados ao
gênero musical em questão (ibidem, 2005, p.10).
25
Interessante notar que essa perspectiva defendida por Muniz Sodré continua
presente quando, quase duas décadas após a primeira edição de sua obra, o antropólogo revisa
a primeira versão de “Samba, o dono do Corpo”. Essa constatação se torna importante quando
percebemos que a reedição do seu livro é contemporânea ao lançamento da obra “O mistério
do samba”, escrito pelo antropólogo Hermano Vianna, que além de companheiro de profissão,
também tem sua carreira profissional estabelecida no meio acadêmico carioca.
Como Vianna parece não concordar com as respostas oferecidas por Sodré – o
que demonstra ao levantar alguns questionamentos inconformados 5 que mais parecem
reclamações –, supomos que este tenha, na segunda edição de seu livro, cristalizado sua
perspectiva com intenção de responder à nova obra. Dessa maneira, vemos que, em resposta
aos reclames de Vianna contra sua visão antagônica, capaz de anular qualquer possibilidade
de interação cultural que funcione além dos limites impostos pela ótica simplista de
dominação, Sodré prepara a reedição de “Samba, o dono do corpo”, com o intuito de afirmar
que sua obra, passadas duas décadas, trata do verdadeiro mistério do samba” (SODRE, 1998
[1979], p.7).
Talvez pela discordância e inconformidade perante o livro de Sodré, a revisão da
história do samba feita por Vianna parte de uma leitura das obras de Gilberto Freyre e dos
demais pensadores que falam sobre o tema da miscigenação e da formação de uma identidade
nacional. Nesse sentido, sua obra busca um olhar mais dinâmico sobre o objeto, se eximindo
de advogar em defesa da lógica da dominação e muito menos de uma narrativa harmoniosa
que exclua os conflitos presentes da nova compreensão.
Dessa maneira, se faz importante atentar para a perspectiva de Vianna, já que,
sendo um bem cultural moderno, o samba não pode ser visto através de referenciais que
exponham sua apreensão a riscos que possam tolher algumas de suas facetas. Assim, a análise
que o cerca não deve se dedicar nem à penosa compreensão de todas suas nuances, nem
priorizar a existência de uma simples disputa de interesses que supostamente lhe dão origem.
Contudo, essa dicotomia de análise existe e não deve ser desconsiderada, principalmente
quando reconhecemos no samba a existência de falas – de diferentes intérpretes,
5
Em dado momento de sua obra, Hermano Vianna questiona: “Por que fingir que essa interação entre elite /
cultura popular não acontecia? Por que dizer que nossos músicos populares eram simplesmente ou desprezados
pela elite brasileira?” (1995, p. 47)
26
compositores, críticos e entusiastas – que, vez ou outra, reproduzem a lógica da dominação,
sem ceder o devido lugar às transformações que se articulam em sua história 6.
Portanto, entendemos que, apesar da necessidade das várias falas que permeiam o
samba coexistirem em sua análise, é preciso, no entanto, relativizar o olhar que enxerga o
samba como elemento de uma cultura de resistência, de influência predominantemente
africana, pois, a realização desse tipo de “justiça histórica” nos obrigaria a excluir um
considerável número de obras – literárias ou musicais. É preciso que entendamos a gama de
opções estéticas, temáticas e contextuais do samba para estendermos a compreensão acerca da
resistência, que deve ocupar diferentes lugares e implicações em cada momento que for
revisitada, já que sua representação não apresenta os mesmos elementos essenciais para um
entusiasmado freqüentador da casa de uma “tia” do começo do século XX e um sambista que
hoje gasta longas horas compondo o seu próximo CD.
Entretanto, o reconhecimento da multiplicidade de óticas que tentam entender o
samba nos indica vários caminhos pelos quais podemos traçar nossa perspectiva em relação
ao objeto, obrigando-nos a negociar as referências que serão consideradas com maior
importância em nosso texto. Como se trata do dispendioso trabalho de se pensar um gênero
musical de história centenária, procuramos – em meio a um conjunto diverso de obras –
pontuar as referências mais pertinentes em relação à obra de Bezerra da Silva, pensando nela
como interlocutora da própria história do samba. Assim, buscaremos trabalhar com momentos
e questões inseridos nos diversos álbuns, entrevistas e demais fontes que falaram a respeito
daquilo que freqüentemente surgia nas gravações deste sambista.
Seguindo esse raciocínio, buscaremos defrontar a obra de nosso artista com a
história do gênero musical que representa, de modo a ressaltar os deslocamentos ocorridos em
todo seu cancioneiro que possam estar próximos aos temas, práticas e opções musicais
encontradas no samba. Para tal, pretendemos empreender uma visitação ao passado e
6
No artigo “Permanências e deslocamentos das matrizes arcaicas africanas no samba carioca” – da historiadora
Denise Barata – temos um exemplo desse tipo de problemática quando vemos a autora generalizando a dinâmica
criativa dos sambistas, vistos por ela de forma indistinta, ao dizer que suas obras” expressam o que eles são, o
que desejam ser e o que querem transmitir às novas gerações”. Logo em seguida, aponta uma missão homogênea
a esses sambistas com relação à indústria cultural quando aponta que eles “teimaram (e teimam) transpor a linha
que divide não só os espaços, mas sujeitos e culturas” (2002, p. 7). Para justificar tal proposição, alega que os
sambistas “que sempre foram desvalorizados” têm uma necessidade nata e maior de discutirem por meio de sua
arte a definição de sua própria identidade se comparados, por exemplo, com os artistas ligados à bossa nova.
(2002, p. 7). Por fim, depois de falar dos problemas trazidos com a massificação dos bens culturais, aponta que
“através da indústria cultural de diversos grupos musicais (...) a tradição é materializada durante a produção e a
difusão dos sambas. E o que se transmite é a compreensão de traços arcaicos que são recebidos para serem
conservados eternamente.” (2002, p. 10).
27
entendermos de que forma a história do samba se movimenta dentro de uma carreira artística
que, mesmo atentando para o gosto musical contemporâneo, ainda faz claras referências aos
elementos históricos de sua origem.
Para iniciarmos a supracitada revisita, voltaremos ao cenário estabelecido – por
vários artistas e estudiosos – como o “berço” das primeiras manifestações sonoras que viriam
a dar base ao que mais tarde se designou samba: a Praça Onze. Esta, pela convergência de
algumas ruas, possibilitou não só o encontro daqueles que viriam a serem considerados os
pioneiros do samba, como mostrou as “falhas” do projeto carioca de segmentação estéticosanitária, ao permitir um relativo intercâmbio entre diferentes origens sociais.
Contudo, nossa preocupação não se encontra na delimitação do local de origem do
samba que permita a definição de elementos fundamentais do comportamento musical, mas
na elucidação da importância da Praça Onze no que diz respeito à função social que teve ao
aglutinar vários personagens que nem mesmo reconheciam a criação de um novo gênero
musical, diferente dos demais. A partir desse reconhecimento, notamos a presença de um
“caldeirão sonoro” que agitava a vida cultural da capital federal desde os fins do século XIX,
que seria responsável pelo surgimento de novos espaços de divulgação e da transformação
dos lugares, funções e sujeitos envolvidos naquele cenário musical.
Isto porque, antes ainda do surgimento do rádio ou do disco como novos espaços
de consagração musical, o samba já possuía reconhecimento que o deslocava para além da
simples proximidade geográfica de um grande centro urbano. Desta maneira, notamos que o
samba não se inseriu nessas mídias e caiu no gosto popular por uma mera coincidência de
situação e oportunidade que aliasse o surgimento de novos espaços de divulgação com a
vontade de veicular qualquer coisa que atraísse novos consumidores para viabilizar
economicamente os dois empreendimentos aventureiros de nossa iniciante indústria de
entretenimento musical. Ele já se configurava como uma expressão artística de
reconhecimento, que, uma vez veiculada na incipiente mídia musical, seria um atrativo cada
vez maior para esses meios.
Em vistas de buscarmos compreender a jornada que permitiu ao samba sair do
status de uma musica restrita a determinados grupos sociais para se colocar em avançada
posição no leque de atrações do entretenimento carioca, voltaremos nossas atenções à Praça
Onze.
28
1.2 DA CASA, DA ESCOLA, DO RÁDIO
A Praça Onze, que, como já vimos, se consagrou como um dos mais proeminentes
palcos do samba carioca, fazia parte da chamada “Pequena África”, um amplo conjunto de
bairros do Rio de Janeiro, conhecida pela convergência de diversos dos primeiros sambistas a
serem eternizados no mundo do samba. Ao lado dela, também outros espaços se consagraram
pela reunião dos artistas que, muito mais pela habilidade criativa que por exercício de uma
atividade profissional, se destacaram neste gênero musical. Entre esses locais, podemos citar
as famosas “casas das tias”, que agrupavam parte da população de ex-escravos para
realizarem festas regadas a muita música e comida, reunindo diversos sujeitos que passariam
a compor o dinâmico processo de transformações já assinalado anteriormente.
Contudo, a mais famosa e prestigiada entre elas é a casa da Tia Ciata, pois esta
acabou se transformando em um espaço-síntese de diferentes experiências vividas em torno
da prática do samba, configurando-se como um espaço repleto de ambigüidades que iam
contra a eficácia do projeto civilizador que previa a separação das origens sociais. Desta
forma, foi uma das responsáveis por operar o vislumbre de uma cultura autônoma apartada
dos padrões exigidos pelas perspectivas elitistas, operando também diversas atividades e
relações sociais, como nos mostra a historiadora Mônica Pimenta Velloso, que, ao falar do
papel das mulheres negras dessa época, define a casa dessa tia como um
local de encontros, cura, conversas, criatividade e trabalho: um “verdadeiro
microcosmo do universo”, onde se processam as mais variadas atividades e saberes.
Entre os freqüentadores da casa estavam Donga, João da Baiana, Pixinguinha,
Sinhô, Caninha e Heitor dos Prazeres. Alguns jornalistas e intelectuais, como João
do Rio, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e o assíduo cronista Francisco
Guimarães (Vagalume), tornariam conhecido o pedaço (...) atraindo intelectuais e
elementos da classe média carioca. Geralmente eram carnavalescos da Zona Sul que
iam encomendar fantasias e acabavam ficando para o pagode. Também por essa
época, o candomblé e o jogo de búzios começavam a exercer certo fascínio entre a
alta sociedade. Através do samba, do Carnaval e da culinária a cultura negra foi
ganhando espaços no conjunto da sociedade, fazendo-se aceita. Os códigos culturais
começaram a se entrecruzar, mesmo que de forma precária (1990, p. 9 – 10).
Avaliando as várias situações descritas acima, observamos, curiosos, que, em
meio a tantas ações experimentadas e reproduzidas na casa da Tia Ciata, não temos um
momento de dedicação exclusiva – como era de se esperar – à criação e execução de
“sambas”. Isto porque a música realizada naquele ambiente não se ligava diretamente a um
29
momento único e direcionado à produção musical específica, mas integrava um vasto
conjunto de ações que ali se dinamizavam. Diferentemente do que acontecia nas demais
organizações culturais da sociedade carioca da época (como o sarau, por exemplo), não
existia compartimentação e especialização cultural nas casas das tias, de modo que as ações
eram desenvolvidas para favorecer o intercâmbio e a integração entre os integrantes daqueles
ambientes.
Nesse sentido, vemos que no próprio âmbito musical – como enfatizam vários
pesquisadores – havia, na casa da Tia Ciata, em seus vários compartimentos, a execução de
diferentes tipos de música, favorecendo uma hierarquia, da entrada para os fundos da casa,
conhecida por segregar esses espaços de acordo com os valores atribuídos a cada produção
artística. Desta maneira, notamos, como prova viva da situação marginal experimentada pelos
ritmos mais negros e “selvagens”, que estes eram legados para o agora tão simbólico fundo de
quintal. Por meio dessa constatação, nos questionamos se haveria, em decorrência da
segregação geográfica, uma verdadeira distância entre os ritmos musicais reproduzidos na
casa da Tia Ciata e como seria o comportamento daqueles que porventura pudessem circular
nos vários ambientes daquele lugar.
No entanto, nos questionamos se a casa da Tia Ciata, com toda sua versatilidade,
seria realmente um espaço diferenciado, cuja produção musical estaria afastada das
reproduções marginais, socialmente desaprovadas e luxuriosas. Questionamos, ainda, a
maneira pela qual deveríamos pensar o comportamento dos artistas que puderam circular em
ambos os espaços.
Essas perguntas não são tão relevantes para o objetivo do trabalho, mas deixam
claro a presença de ações que eram empreendidas na casa da Tia Ciata, fazendo desta um
local onde o fazer musical se transformava em um verdadeiro evento festivo. Fato que
destacamos quando observamos que nas declarações daqueles que lá freqüentavam não há
menção a um tipo de música exclusivo ou uma preferência sonora em detrimento das demais.
A partir dessa observação, podemos nos afastar da concepção hierárquica e
marginal de compreensão do samba, levando-o para dentro de um espaço festivo onde não era
enxergado como gênero musical distinto, sendo, por sua vez, reconhecido por todos aqueles
que circulavam naquele espaço. Sendo assim, como nos explicita Sandroni, o encontro de
figuras diversas e a experiência musical ali vivida eram aspectos de um mesmo fato em que
30
dança, música, bebida, comida e convivência não podem ser concebidos separadamente
(SANDRONI, 2001, p.101).
Essa forma indefinida de arranjo das práticas artísticas nos traz a idéia de que o
samba nada mais era que um fazer musical descompromissado, sendo mais uma forma de
celebração explicitamente afastada do arcabouço profissional. Todavia, foi nesse clima de
descontração que se criou o primeiro samba, gravado em 1917: “Pelo Telefone”. Considerada
a canção fundadora do samba moderno, sua gravação na recém-inaugurada indústria do disco
nos mostra que ambos (o samba e a indústria) se identificavam pelo tipo de indefinição que
sofriam pelo seu incipiente aparecimento e pela necessidade de aprovação.
Para salientarmos essa relação, percebemos que o estilo musical estudado, muitas
vezes marginalizado pela elite econômica e intelectual, será pioneiro no uso de um recurso
que mais tarde representaria uma verdadeira ameaça para aqueles que defendiam a
espontaneidade do fazer musical legítimo. Contudo, as transformações sofridas nesse meio
(disco) farão com que o que foi reconhecido como o “primeiro samba” gravado se distancie
bastante das posteriores inovações que se aglutinam ao que deveria ser popularmente aceito
como elemento estético pertencente ao samba.
Esta realidade nos indica como a gravação de “Pelo Telefone” e de outras canções
ligadas à primeira geração do samba estavam imbricadas apenas na busca pelo lançamento de
produções em um novo espaço de reconhecimento, para serem prestigiados por aqueles que
ainda entendiam o samba como uma grande festa. Sendo assim, não nos cabe afirmar que ali
não se transformava música em mercadoria e que o interesse dos novos cantores e
compositores não era o de retirar suas habilidades do espaço da casa e as levarem para o
grande público, em busca de reconhecimento. Para que esse tipo de afirmação tivesse algum
nexo, seria necessário o surgimento de novas situações, músicas e personagens no decorrer da
história da música desenvolvida no Brasil.
Não por acaso, ao fazer estudo sobre esse mesmíssimo evento, o sociólogo Jorge
Caldeira, tem o devido cuidado de dizer que a pioneira gravação de “Pelo Telefone”
representa uma nova situação para o samba que, até então, se resumia a uma festa cercada de
cantos coletivos 7. Segundo ele, a canção “não indicava apenas o aparelho, mas um caminho
7
Esses cantos coletivos fazem referência ao “partido alto” uma forma inicial de se compor o samba. Mesmo
havendo algumas imprecisões sobre o nome dado a esse tipo de samba original, existe uma fala consensual entre
diversos autores e sambistas. De maneira geral, define-se o partido alto como um canto composto por uma
primeira parte da letra que se repete e outra improvisada, onde um sambista cria novos versos em cima do ritmo
da música (FENERICK, 2005, p. 160).
31
de comunicação.” (2007, pg. 20). Compartilhando dessa mesma argumentação hesitante –
pois não podemos bem ao certo dizer o que vem a ser a busca de um “caminho de
comunicação” –, tentaremos, em meio às dificuldades, levantar quais as motivações que
impulsionaram essa ação de caráter transformador por um novo diálogo.
Após a pioneira gravação, as décadas de 1920 e 1930 são reconhecidamente
responsáveis por um número de transformações que – em um curto período de tempo –
colocaram o samba em outros patamares (não mais suportados apenas pelo processo de
inserção de ex-escravos no Rio de Janeiro). A partir deste dado, temos todo o interesse em
investigar algumas das explicações que dão conta dos fatos que contribuíram para que um tipo
mais homogêneo de samba estivesse surgindo em lugares que não mais se resumissem às
casas das tias espalhadas por toda a capital 8.
Nesse sentido, uma das hipóteses que levantamos diz respeito à questão do
contato – nem sempre muito amigável – entre o popular e o erudito, já que o Rio de Janeiro se
configurava como uma cidade cujo projeto urbanístico assumia a postura de afastamento entre
esses dois mundos culturais. Desta maneira, verificamos de que modo os que, porventura,
conseguiam contactar esses opostos se colocavam em situação indefinida e, muitas vezes,
contraditória, percebendo a perseguição e o reconhecimento como inerentes à prática musical
que ora era associada a um conjunto de sinais de barbárie a ser expurgado e ora era aplaudida,
pela sua pretensa legitimidade, por integrantes da elite e intelectuais da época. Ou seja, o que
hoje é considerado um dos mais significativos gêneros da história de nossa música popular,
poderia, à época, ter sido rechaçado por ser mais uma detestável “música de negros”, ou
acatado como uma proposta musical legítima que despertava interesses dos que se afastavam
dos paradigmas estabelecidos no meio musical.
Em relação à primeira situação, podemos perceber o preconceito contra o samba
na fala do sambista João da Baiana, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de
Janeiro, que relatou que o simples porte de determinado instrumento, no caso o pandeiro,
implicava em violenta retaliação das autoridades da época (FENNERICK, 2005, p.34). Em
8
O pesquisador Wander Nunes Frota é um dos que apontam para esse tipo de dificuldade quando investiga o
processo de popularização do samba no Rio de Janeiro, que já na década de 1930, não compartilhava a mesma
condição privilegiada com qualquer outro tipo de música popular. Para reafirmar essa dificuldade já apontada no
texto, ele questiona sobre “como e por que aconteceram todas essas transformações em menos de meio século de
história? Sim, porque é muito pouco tempo para que já se tenha tudo tão automaticamente definido, repassado e
batido. Os acontecimentos desta fase de nossa história ainda estão frescos na memória, mas é como se fossem
tão antigos e tradicionais; algo bem mais importante do que ocorreu há muito mais tempo na própria história do
Brasil como um todo” (2003, p. 130).
32
sua fala, o pioneiro sambista abre caminhos para que possamos entender de que maneira o
processo civilizatório (já tantas vezes mencionado) incidia diretamente sobre o campo das
práticas musicais da época, estabelecendo uma série de vinculações entre determinados
instrumentos musicais e alguns segmentos da sociedade.
Sendo assim, entendemos que, conforme salientou Michel Bozon, os diversos
fazeres musicais constituem “um dos domínios onde as diferenças sociais ordenam-se da
maneira mais clássica e marcante, mesmo se os agentes sociais (...) se recusem a admitir que a
hierarquia interna da prática é uma hierarquia social” (2000, p. 147). No que tange à
marginalização do samba propriamente dito, observamos que existia uma retaliação aos
instrumentos utilizados para sua prática, já que a eles não era conferida a respeitabilidade
daqueles instrumentos que geralmente eram tocados no conforto da casa e de alguns espaços
públicos seletos, o que significava que não se aproximavam de uma formação alinhada às
“admiráveis exigências”, por exemplo, necessárias ao aprendizado do piano 9.
Aparentemente,
o
exemplo
supracitado
poderia
demonstrar
como
as
manifestações musicais ligadas ao samba viviam uma completa depreciação por alguns
grupos dessa época. Contudo, a imagem de um indivíduo que porta seu instrumento musical,
apesar da existente repressão das autoridades, poderia também transformar aqueles encontros
animados em símbolos que comprovariam a faceta de “cultura de resistência” mais tarde
designada ao samba. Nesse sentido, percebemos no depoimento de Donga (sambista que
visitava a casa das tias e foi figura central no processo de patenteamento e gravação de “Pelo
Telefone”) a justificativa do interesse pela gravação da seguinte forma:
Tudo o que fiz foi consciente. Vocês deveriam perguntar aos outros brasileiros se
eles tinham visto um samba gravado... Eu sempre fui objetivo. Não pensava em
dinheiro, porque não tinha a menor noção de que a gravação iria dar isto ou aquilo.
Fiz o negócio pelo instinto e pelo grupo, porque (...) nos tínhamos que mostrar
àquela gente que o samba não era aquilo que eles pensavam (DONGA apud
CALDEIRA, 2007, p. 17).
9
Na verdade, essa exclusão de alguns tipos de instrumento musical era bem mais ampla e complicada, pois
também viria a ser estender ao surgimento de uma classe artística profissional. Nas primeiras décadas do século
XX, se reconhecer como artista em atividades não tão próximas aos padrões da cultura erudita implicava em uma
situação bastante embaraçosa para muitas famílias. Dois exemplos considerados clássicos desse tipo de situação
podem ser contemplados na trajetória de Noel Rosa e Braguinha. O primeiro que “se deu ao luxo” de abandonar
a faculdade de Medicina para viver de música e boemia. E o segundo, que também proveniente de setores
médios, receiou quando passaria a receber dinheiro em troca de suas apresentações artísticas quando
inicialmente formou o Bando dos Tangarás (FROTA, 2003, p.96).
33
Uma vez que não queremos colocar à prova o que foi dito por Donga, nos resta
refletir acerca da intenção (quase heróica) de redimir a imagem que se tinha do samba por
meio da gravação de um disco. Todavia, como dito anteriormente, o registro de “Pelo
Telefone” acontece em um momento embrionário da indústria do disco, de modo que o uso
dessa mídia ainda não tinha forças e autonomia para empreender uma nova idéia (redentora)
sobre o samba, não podendo ser utilizada como peça-chave de popularização deste gênero
musical.
Cabe aqui lembrar que o próprio Donga fala sobre a importância de seu feito em
um segundo momento, quando o registro fonográfico já era importante meio difusor que
possibilitava a afirmação de um gênero ou artista. Porém, devido aos problemas já levantados,
era necessário contar com outros espaços de divulgação capazes de fornecer a tão sonhada
consagração até que o disco (e o rádio) pudessem dar seu aval. Conforme salienta Jorge
Caldeira, para que o samba saísse da casa das tias e ganhasse as ruas da cidade do Rio de
Janeiro, outras situações viriam a contribuir para sua popularização (2007, p.20).
Entre elas, está um evento que adquiriu bastante importância e destaque no
cenário cultural desde o início do século XX: o carnaval. No entanto, este encontro não pode
ser generalizado como uma mera “festa popular” que romanticamente abraça um gênero
musical de igual característica, mesmo porque a relação entre eles não se deu de maneira tão
direta. Antes de serem artistas do samba, os músicos e/ou compositores atuavam em diversos
espaços, como nas salas de espera dos cinemas, nas lojas de instrumentos musicais (na função
de “pianeiro”) e nos salões de festa que agitavam o conhecido teatro de revista; mas foi o
carnaval o grande responsável pelo reconhecimento deles e pela fixação do samba como
gênero musical sinônimo de festa.
A princípio, as primeiras manifestações carnavalescas aconteceram por meio de
ações desenvolvidas no seio da elite, que organizava a festa em salões e clubes de público
bastante seleto, de maneira que a faceta mais popular dessa folia só se deu nas primeiras
décadas do século XX. Contudo, essa popularização não significava a presença do povo
nesses locais, mas apenas a participação de alguns intérpretes advindos das classes sociais
menos abastadas, reproduzindo, ainda, a clara distinção entre os membros da sociedade
carioca.
Conforme afirma o etnomusicólogo Carlos Sandroni, o tipo de manifestação mais
popular do carnaval se organiza, primeiramente, sob a formação dos “cordões” e “ranchos”,
34
reunindo diversos participantes que desfilavam pela cidade entoando as mais conhecidas
canções carnavalescas daquele ano e também as composições criadas pelos próprios
integrantes do agrupamento. A popularidade desta festa cresce e estabelece novos adeptos,
reunidos agora em “blocos”; esse novo nome “ganha importância nos anos 1920, e a imprensa
carioca, que sempre promovia os desfiles dos diferentes grupamentos, cria em 1926 o ‘Dia
dos Blocos’ no carnaval” (SANDRONI, 2001, p.143).
Desta maneira, salientamos mais um fracasso do processo civilizatório imposto
aos cariocas, uma vez que este não teve força suficiente para consolidar as distinções sociais e
econômicas que impedissem o encontro do samba com o carnaval, removendo os privilégios
de uma manifestação vivenciada apenas pelas “pessoas respeitáveis”. Nesse sentido, mais do
que abrir um novo campo de prática e ampliação do reconhecimento do samba, a proliferação
dos blocos ainda marcou uma nova passagem sobre a história deste gênero musical.
Essa nova organização trouxe uma nova forma de (re)conhecimento do samba, o
que ficou marcado pela ação criativa do bloco da Estácio, que concebeu uma nova maneira se
executar o samba, incorporando novos instrumentos e uma nova levada percurssiva. No que
diz respeito a essas transformações, o depoimento de Ismael Silva (um dos sambistas da
Estácio), esclarece que “... o samba não dava para agrupamentos carnavalescos andarem nas
ruas... Aí a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurundum...”
(CABRAL, 1996, p.242).
Em uma análise técnica, o músico Carlos Didier estabelece que a guinada estética
se deu entre a primeira geração de sambistas e os novos sambistas, que a partir da década de
1920, começam a se ligar aos desfiles carnavalescos. Conforme o autor, os novos sambas
ligados aos blocos carnavalescos “diferenciam-se daqueles consagrados por Sinhô, pelo
menos por sua pulsação rítmica mais complexa. Enquanto estes guardavam vestígios de
antigos maxixes, [a geração posterior optou] pela incorporação de mais uma célula rítmica à
marcação” (DIDIER apud SANDRONI, 2001, p. 32). Dessa maneira, o samba viria a se
transformar em um ritmo de características próprias e, em pouco tempo, vinculado a um tipo
de evento anual.
Uma das provas mais latentes desse processo se dá nos primeiros anos da década
de 1930, quando agentes do governo municipal e os mais importantes meios de comunicação
da época se interessam pelo arranjo da festa carnavalesca, ditando as regras sobre os
instrumentos adotados pelas escolas, a organização dos envolvidos no desfile e a temática das
35
letras dos sambas apresentados. Esse interesse demonstra a importância que o samba adquiria,
ao menos na capital, como gênero musical de visível popularidade. Nesse sentido, o processo
de legalização do samba não deixou de ser uma
forma de reconhecimento social da arte das classes subalternas, ainda que essa
integração viesse acompanhada de uma mudança estética dessa ‘arte popular’ e de
um forte (mas não onipotente e onipresente) controle social por parte do Estado
(FENERICK, 2005, p.136)
Neste momento, já podemos vislumbrar a história do samba em dois momentos: o
da ligação artesanal e coletiva da música produzida na casa das tias e o da apropriação do
samba como produção carnavalesca reconhecida. Assim sendo, percebemos que a primeira
geração de sambistas consolida sua carreira artística por meio da profissionalização (que
garantia oportunidades de emprego) que lhes permite divulgar a habilidade para criar e
executar músicas, de maneira que, em um período em que o rádio e o disco não eram os
principais meios de divulgação e consumo da música, aristas como Sinhô, Pixinguinha e
Donga consolidam uma primeira experiência do processo de individualização do compositor.
Por outro lado, nos anos de 1920 e 1930, os artistas experimentam uma nova
prática do samba, pois o novo elemento estético que o alia aos carnavais o transforma em
gênero singular, diferenciando-o dos demais. Deste modo, a segunda geração de sambistas
passa a se envolver com a realização dos carnavais e com a organização das escolas de samba,
ampliando o leque de atividades ligadas à essa prática musical. O monopólio significativo e
estético da casa das tias agora se afasta relativamente dessa outra safra de artistas que já
poderiam ser definidos como “sambistas”, fazendo com que estes experimentassem uma nova
situação, explicada da seguinte forma por José Adriano Fenerick:
A geração de Ismael Silva, Bide e Marçal era uma geração que cultuava o samba
(possivelmente tanto quanto a anterior), entretanto, o queriam preferencialmente
para as grandes festas populares (como o carnaval), uma vez que o show business
nascente em finais da década de 1920, início da de 1930, lhes fechavam as portas
(mas não para seus produtos: seus sambas) (2005, pg.117).
O quadro aqui descrito coloca em voga uma situação bastante peculiar em que a
tradição coletiva e improvisada do samba ganha um caráter completamente novo. Se antes o
samba ainda era considerado um gênero musical indefinido e sua prática envolvia formas
36
coletivamente improvisadas, agora tem-se um gênero musical que passa a se auto-definir por
meio de uma sincopa característica e letras produzidas por um sujeito compositor. Essas duas
novas transformações vão ganhar força na medida em que dois novos elementos do
entretenimento da época ampliam seu campo de atuação: o carnaval e o rádio.
A partir daí, percebe-se que o samba se insere no meio musical sobre variadas
possibilidades, já que sua composição poderia ser interessante tanto para “a festa”, quanto
para “o dial”, mudando suas destinações. Diante dessas possibilidades, nos perguntamos:
significaria isto a busca pelo reconhecimento social, vantagem financeira ou outro tipo de
benefício? Sem dúvida seria complicado amarrar uma única resposta para a questão
apresentada, pois, nesse momento, a divulgação de um novo samba envolvia uma gama de
sujeitos que variava de acordo com o fim dado a canção criada.
Assim, notamos que para ser veiculado nas mídias do rádio e do disco o samba
precisava do aval e interesse dos detentores dos meios de divulgação, além de contar com
certa articulação com um compositor que negociasse uma letra ou esboço capaz de chamar
atenção do público ouvinte. De maneira completamente diferente, para o carnaval, o samba
teria de partir de um filiado à escola de samba que pudesse ganhar a disputa pela canção
“imortalizada”na boca e no coração dos apreciadores. Contudo, de acordo com as regras
fixadas pelos organizadores do evento, existiam regras que delimitavam o tipo de letra mais
apropriada à suas intenções, quase sempre comprometidas com as instituições culturais do
próprio Estado.
No que diz respeito às vantagens obtidas com a popularização do samba também
encontramos uma variação de acordo com os casos, de modo que muitos estudiosos se
preocuparam em salientar as desigualdades que marcaram esse processo, falando sobre uma
nova fonte de renda para aqueles que tinham capacidade de alimentar artisticamente as novas
mídias do entretenimento. No entanto, essa perspectiva nega toda uma dinâmica através da
qual a própria noção de propriedade de uma canção existia em bases muito frágeis, pois a
venda de sambas indicava a existência de um mercado consumidor de arte popular que
funcionava às custas de sujeitos que nem sequer aspiravam algum tipo de prestígio
suficientemente capaz de superar a recompensa financeira imediata.
Sendo assim, apesar do peso a ser atribuído a essas situações – que serão
brevemente retomadas quando falaremos um pouco mais sobre o rádio e a formação de uma
classe artística profissional – não podemos atestar que foi por meio do advento das novas
37
mídias e do carnaval que se operou a transformação do samba. O que podemos destacar é que
as mudanças têm mais força com o surgimento desses eventos, de modo a ganhar formas
musicais mais estáveis que foram apropriadas por toda uma leva de apreciadores e músicos. A
partir daí, percebe-se a diminuição de um vasto leque de nomeações híbridas (que povoaram a
cena musical urbana do Rio de Janeiro entre o fim do século XIX e o início do século XX)
que não mais formavam um labirinto sonoro que vagamente lembrava o que mais tarde se
convencionou como sendo samba.
Nesse sentido, quando falamos de mudança, salientamos a adequação rítmica
trazida pelo pessoal da Estácio na tentativa aleatória de responder a uma expectativa gerada
no seio de uma disputa carnvalesca, pois a eficiência da nova levada é fruto de uma
competição anterior ao envolvimento do governo na cena cultural do período. Dessa forma,
quando o sambista Ismael Silva explica a motivação, conforme diz Carlos Sandroni, para o
novo “paradigma”, não podemos vê-lo como uma conseqüência mecânica à popularização do
desfile carnavalesco, apesar de admitirmos que o samba não teria o mesmo destino sem a ação
de seus interventores. Conforme salientou Fennerick, esses sambistas que surgem ligados às
escolas de samba pertencem à outra geração que vai estabelecer uma nova forma de samba.
Diante das mudanças ocorridas, nos perguntamos: com qual autoridade
poderíamos assegurar que essa outra geração de sambistas não iria provomer as mesmas (ou
outras) transformações no samba? Nesse ponto colocamos em posição relativa a falta de
autonomia da arte em tempos de indústria cultural, pois negar tal possibilidade, além de
excluir qualquer esboço de liberdade criativa, nos levaria a acreditar que os novos artistas já
teriam uma visão do samba que só seria apreciada e apresentada como baluarte do patrimônio
cultural brasileiro, em seu aspecto mais tradicional, apenas décadas mais tarde.
Não por acaso, percebe-se que as transformações empreendidas para que o samba
ganhasse diferentes espaços de reconhecimento partiram de grupos e sujeitos ligados
historicamente ao samba, de modo que, apesar de a indústria cultural ter sido de grande
importância para sua popularização, ela não conseguiu se infiltrar no gênero e cercear as
maneiras pelas quais era feito. Sendo assim, é necessário que se coloque em posição relativa o
papel desempenhado tanto pelos interesses dos novos agentes da cultura quanto pela
autonomia dos artistas, pois entre eles se desenvolveu uma tensão muito mais ampla que uma
simples relação de oposição excludente.
38
Isto porque os artistas estavam sujeitos às delimitações impostas pelos agentes e
produtores do meio artístico da época, que, por organizarem o evento carnavalesco, terem
fama artística consolidada ou conduzirem um programa radiofônico, eram responsáveis pelas
escolhas dos sambas que chegariam para a disputa do desfile ou ganhariam fama nas vozes
dos cantores do rádio. Contudo, apesar dessas escolhas se configurarem como uma relação de
tensão, elas não implicam, necessariamente, na definição estética que finda outros aspectos
formais e temáticos no mundo do samba.
Desse modo, percebe-se o surgimento de uma nova situação, em que outros
elementos passam a ter influência sobre o processo de popularização do samba. Assim, o que
se vê não é uma descaracterização involuntária desse gênero musical, mas a ação de vários
atores ligados ao mundo do samba – seja pela via do rádio ou do carnaval – em prol da
inserção de novos elementos e sujeitos na dinâmica de sua trajetória. Em decorrência dessas
ações, nota-se que, a despeito de certas expectativas, a percepção e as críticas acerca dessas
transformações se dão de maneira bastante acelerada.
Já no ano de 1933, o cronista carnavalesco Vagalume escreve o livro “Na roda do
samba”, em que dedica espaço considerável à denúncia destes novos sujeitos e elementos que
adentram o mundo do samba. Em sua obra, ele tece sua crítica a partir da perspectiva da
existência de uma historicidade cíclica, legítima e natural que torna o “homem rude dos
morros cariocas” uma espécie de sujeito universal que tem por direito conduzir e usufruir de
todas as possibilidades artísticas e financeiras trazidas pelo novo gênero musical 10. A partir
desse exemplo, percebemos a existência de um processo de reinvindicação já nos primeiros
anos da década de 1930, e, mesmo que não tenhamos certeza que outros indivíduos
partilhavam da opinião de Vagalume, a sua obra já nos indica que o bem cultural “samba”
circulava em outros meios, atingindo diversos grupos sociais, compostos por ouvintes,
entusiastas, homens do entretenimento e músicos.
10
Tal constatação pode ser feita em um trecho da obra do referido autor citada no livro “A construção do
samba”, de Jorge Caldeira. Na instigante citação selecionada por Caldeira, encontramos um relato feito por
Vagalume em que o cronista realiza uma narrativa precisa sobre como um samba “nasce” por meio do esforço
criativo de um sujeito nascido nos morros e tem sua popularização oral transmitida pelas rodas de samba.
Posteriormente, sua qualidade é atestada pelo tempo em que essa mesma canção consegue sobreviver na boca
daqueles que apreciam tal criação musical. Em contrapartida, indica a morte de um samba quando o mesmo é
expropriado de seu autor que, por conta de suas necessidades materiais, se vê obrigado a vendê-lo para empresas
e cantores que não participam ativamente do processo criativo, mas obtém expressiva fama e prestígio com a
obtenção do mesmo. Sem indicar outras nuances desse fato, o cronista estabelece uma narrativa cíclica ao
simplificar o comportamento, as motivações e conseqüências de todo o ocorrido (VAGALUME apud
CALDEIRA, 2007, p. 28).
39
No que diz respeito à popularização alcançada no meio radiofônico, o samba se
tornou um verdadeiro fenômeno de vendas e muitos compositores fizeram sucesso vendendo
suas canções para artistas de notório reconhecimento nesta mídia. Dessa maneira, vê-se que a
circulação feita por meio da venda também colocava em evidência a questão da exclusão
racial, pois se via imposta a preferência por artistas que satisfizessem as exigências estéticas
dos veículos de comunicação. Isto porque, apesar de a imagem nada significar para ação
comunicativa do rádio, vale lembrar que os artistas de sucesso da época eram também
rentáveis garotos-propaganda, viabilizando suas carreiras pela popularidade trazida também
pelos impressos, pela venda de produtos e pela oferta da aproximação imagética de um artista
preferido.
Essa popularização do rádio e dos seus artistas, que vinha acompanhada pela ação
da compra de sambas e de produtos, aponta para um tipo de relação em que
O samba associado aos olhos vedes de Carmen Miranda... ou à elegância do esguio
Francisco Alves, poderia muito bem anunciar (e, portanto, se vincular a imagem de)
um determinado produto ou empresa. O mesmo não poderia se dizer do samba
associado à imagem de, por exemplo, Cartola, um negro favelado, habitante do
morro da Mangueira, terra de infindáveis malandros (FENERICK, 2005, p.180).
A partir dessas considerações, percebemos que a própria exclusão promovida pela
associação do samba com a nascente indústria do entretenimento, que buscava em rostos
conhecidos e belos a veiculação deste gênero musical e dos anúncios de produtos diversos,
acabou por alcançar outro patamar estético que inferia diretamente nas letras do samba. Nesse
contexto, surgia a necessidade de se estabelecer o morro – local de presença marcante do
samba devido ao processo de exclusão sócio-econômica carioca e também pelo surgimento de
várias escolas de samba – como o lugar imaginado para explicar as origens do samba.
Contudo, esse espaço era usualmente compreendido como ponto de origem de
uma controversa personagem urbana da época: o malandro, de maneira que carregava em si
um estigma conflitante que não poderia surgir caso o samba quisesse ser transformado em
símbolo nacional. Mas afinal, quem era o malandro carioca? O habitante dos morros? O
sujeito alheio ao trabalho árduo e formal? O sinônimo dado a criminosos violentos? Ou um
apreciador de prazeres geralmente associados à bebida, mulheres, dinheiro fácil e o samba?
A dificuldade de definição, de fato, acaba trazendo à tona uma discussão em torno
de uma música que se tornava extremamente popular e, ao longo dos anos 1930 e 1940, não
40
mais se resumia a um gênero restrito à cena musical carioca. De fato, muitos que participaram
ou observaram de perto o processo de popularização (e nacionalização) do samba advogavam
contra a visão degradante de que o proeminente sucesso do samba nas rádios fosse produto da
criatividade de sujeitos ligados ao crime ou a imoralidade. No entanto, essa preocupação não
pode ser vista como sendo uma simples imposição de um novo meio de comunicação.
Retomando o depoimento de Donga ao Museu da Imagem e do Som, encontramos
a preocupação em se registrar o primeiro samba gravado e, ao mesmo tempo, mostrar as
pessoas que o gênero “não era aquilo que pensavam” (DONGA apud CALDEIRA, 2007, p.
17). Percebemos, então, que, ao utilizar essa justificativa, o sambista aciona uma polêmica
que não estaria simplesmente resumida a um processo de embelezamento do gênero, mas
implicaria necessariamente em redimir um simples estilo musical, trazendo uma outra
compreensão a respeito dos sujeitos envolvidos em sua prática.
Assim, quando nos reportamos às primeiras décadas do século XX, vemos no
malandro um conceito-chave capaz de exprimir uma faceta significativa da imagem negativa
construída sobre os habitantes dos morros cariocas e demais populações de ex-escravos e
afro-descendentes. Sem embargo, a figura do malandro antecede o processo de popularização
do samba sendo uma caracterização viva do cotidiano urbano carioca capaz de indicar os
possíveis desdobramentos do improvisado processo de inserção dos ex-escravos naquela
mesma sociedade.
Conforme observado por Fabiana Lopes Cunha, a figura do malandro salientava
os entraves presentes no processo de organização da sociedade brasileira. Como não se
adequava às exigências que defendiam a ordenação possível por meio do trabalho e de outros
papéis sociais rígidos, o malandro fugia à pretensa funcionalidade de dicotomias que
segmentavam mundos e indivíduos entre as obrigações e os direitos, as liberdades e as
proibições, os cidadãos e os marginais (2002, p.7). Havia uma complexa incógnita não
comportada por tais parâmetros de compreensão, mas que acabava sendo recorrentemente
associada a um tipo de compreensão negativa, muitas vezes, justificada pela sua inadequação
àquilo que era desejável para a construção de uma sociedade próspera e moderna.
Nesse sentido, vê-se que, antes mesmo dessas discussões ganharam terreno no
espaço das Ciências Humanas, vários sambistas já criavam canções que exploravam a
temática da malandragem sob os mais diferentes olhares. Um dos mais reconhecidos casos
que justamente apontam para essa inadequação do malandro à definições unívocas aconteceu
41
na “rixa poética” travada entre os sambistas Wilson Batista e Noel Rosa. O primeiro
salientava os aspectos exuberantes que o colocavam como uma figura imponente e capaz de
usar de sua ginga e de suas armas para se defender de alguma ameaça ou possível oponente.
Em contrapartida, Noel Rosa se opõe a esse estereótipo provocativo e oferece ao malandro a
oportunidade de se recuperar buscando no amor e na música as vias que pudessem
transformá-lo apenas em um rapaz folgado 11.
A partir da década de 1930, o rádio acabou aderindo à criação de sambas que
defendessem a malandragem como hábito bem quisto. Essa mudança ocorreu graças ao poder
de intervenção do Estado Varguista sobre os órgãos de propaganda, representado pelo
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), já que, utilizando de uma estratégia de trocas,
o governo – que pretendia firmar-se por meio de símbolos positivos vinculados à unidade e ao
trabalho – concedia atraentes cachês aos artistas perfilados a sua demanda institucional
(CALDEIRA, 2007, p. 95 – 100). No entanto, podemos ver que o tema da malandragem ainda
perdura dentro do samba tendo como grande temática a idéia da “morte eminente” do
malandro através de uma redenção obtida por meio do amor e do trabalho. Em diversos
momentos da história do samba percebemos essa alusão em canções como Se você jurar
(1931) 12, Cadê Tereza (1969) 13 e Não sou mais disso (1996) 14.
Esses exemplos nos deixam claro a falência da “higienização estética” que
pretendia conformar o samba aos moldes dos anseios de certos grupos políticos e intelectuais
da época. Sendo assim, a permanência da temática do malandro nos leva a compreender de
outra forma como se dá a construção de uma tradição dentro do samba, em que este
personagem representa a própria trajetória do estilo. Sobre esse aspecto, Jorge Caldeira
salienta que o samba
11
As duas representações sugeridas são oriundas das canções Lenço no Pescoço, composta em 1933 por Wilson
Batista, e Rapaz Folgado, criada naquele mesmo ano por Noel Rosa. Para muitos, devido a alguns indícios, a
canção de Noel foi feita como uma espécie de resposta a composição realizadas por Wilson Batista. De fato, em
várias outras canções e abordando outros temas, os dois compositores parecem trocar afrontas que encenavam
um tipo de inimizade. No entanto, todo esse jogo de provocações e respostas – levando em conta a boa relação
de ambos compositores com o meio artístico da época – nos indica a potencialidade do rádio e do disco na
divulgação do samba.
12
Francisco Alves, Duplas de Bambas – Francisco Alves e Mário Reis / Jonjoca e Castro Barbosa, Revivendo,
1993.
13
Jorge Benjor, Jorge ben, Philips, 1969.
14
Zeca Pagodinho, Deixa Clarear, Polygram, 1996.
42
foi construído num processo do qual participam todos os elementos importantes da
sociedade do período, mas é difícil imaginar que tenha sido uma imposição do alto.
Pelo contrário, seu ponto fundamental era a flexibilidade, a ligação complexa que
permitia manter com os diversos grupos. Se o caminho é cheio de inda e vindas, é
um caminho de trânsito. É universal não porque seus valores estão no alto, mas
porque é o único que transita por toda a sociedade (2007, p.95).
Contudo, além de declarar a condição transitória do samba para o entendimento
desse estilo musical, Caldeira ainda assinala o momento no qual o samba sofre
transformações e não pode mais ser visto da mesma forma. Para ele, sua condição de
transeunte entre os diversos personagens e concepções “morreu em 1930” com o surgimento
do governo Vargas (ibid, ibidem, p. 95), ocasião a partir da qual o samba seria alvo de um
processo de controle por parte do Estado, que determinaria os temas, as formas e o conteúdo
simbólico a serem veiculados por meio de um estilo musical financeiramente cooptado.
Em conseqüência desse processo, o autor aponta o desaparecimento completo da
“valorização simbólica dos dominados como portadores de um saber que lhes garantia
autenticidade” (ibid, ibidem, p.100). Dessa maneira, a autonomia estética e criativa aleatória
seria prejudicada pela intenção de uma agência central capaz de impor seus interesses sobre as
práticas culturais vigentes, fixando um modelo fixo sobre o samba que o transforma em
símbolo positivo de uma nação próspera (controlada por um governo de natureza autoritária).
Vemos, então, que a partir dessa intervenção o gênero musical popular teve
capacidade de servir como escape para os problemas e contradições sócio-econômicas da
nação em decorrência da criação de uma situação de reconhecimento pela arte (pelo samba ou
pelo carnaval) que escondia as demais exclusões que ainda estavam longe de serem sanadas.
Sendo assim, o samba passou a ser concebido por um “padrão de autenticidade definido de
cima”, onde “os de baixo passam a ser ‘felizes’, por viverem no morro, onde há poesia e onde
o céu fica mais perto” e, ao mesmo tempo, “são obrigados a gostar da pátria e do trabalho”
(ibid, ibidem, pg. 100).
Todavia, essa perspectiva levantada por Caldeira de maneira forçosamente
controladora e excludente ganha novos ares de compreensão na proposta levantada por José
Adriano Fenerick. Em seu entendimento, este destaca, na própria expansão do rádio e na
ampla difusão de gêneros musicais estrangeiros, uma possibilidade de construção de uma
identidade nacional fornecida por meio do reconhecimento artístico dos gêneros musicais
vindos de fora. Para sustentar sua hipótese, Fenerick exemplifica que
43
a grande expansão da música norte-americana [ a partir da década de 1930] fez com
que esta se transformasse em um paradigma para os músicos brasileiros. Imbuídos
de um pensamento que queria implantar no Brasil o mesmo processo de
desenvolvimento e projeção em escala mundial da música norte-americana, ao
mesmo tempo em que pregavam a necessidade do combate à ‘invasão’ yankee, parte
dos compositores e músicos brasileiros começam a visualizar uma carreira
internacional para o samba. Tal expectativa dos músicos brasileiros, de certo modo,
somava-se e se completava aos anseios do projeto varguista de uma música popular
nacional (2005, p. 74-75).
O que fica evidenciado na fala do autor é a diferença de perspectiva que este tem
em relação à maneira pela qual o samba assumiu status de símbolo nacional, passando por
uma transformação estética. Desse modo, a divergência de opiniões entre Caldeira e Fenerick
nos leva a perceber a existência de um caminho de trânsito percorrido pelo samba, tendo em
vista o embate entre a autonomia do campo artístico e os interesses para com a arte. A partir
dessa oposição, não se pode sinalizar a mea culpa para um único agente histórico responsável
pelas transformações e rumos tomados pelo samba até o fim da década de 1930.
O momento e o papel desempenhados pelo Estado, pela classe intelectual, pelos
sambistas e pela indústria cultural são constantemente reelaborados a ponto de ser impossível
pensar na predominância de um único fator ou na total anulação dos demais agentes para o
alcance das transformações percebidas. Para ratificar esse pensamento, tomamos como
exemplo um dos sambas mais conhecidos, ainda hoje, dentro e fora do Brasil, que foi
interpretado em 1939 (simbolizando a passagem para outra década e para uma nova
significação do samba) pelo consagrado cantor Francisco Alves, a famosa Aquarela do
Brasil 15.
Composta por Ary Barroso, esta canção se transformou em grande marco
referencial que não apenas solidificou definitivamente o samba como um símbolo nacional,
mas também o tornou uma referência para a compreensão da música popular no Brasil. A
partir dela também se verifica a sedimentação da distinção entre o que era considerado “bom”
ou “ruim” para o desenvolvimento de uma cultura musical reconhecidamente brasileira 16, pois
ela propõe o encontro da música “rude” dos morros com outro gênero musical reconhecido,
15
16
Francisco Alves, O cantor eclético, Odeon, 1969.
Partindo de reflexões anteriormente feitas por José Roberto Zan, a socióloga Rita de Cássia Lahoz Morelli
aponta que “uma certa hierarquia começa a se delinear na música popular em razão do refinamento instrumental
do samba carioca quando de sua transformação política em símbolo nacional [e por conseguinte] (...)foi nesse
momento de predomínio absoluto do discurso e da prática nacional-populistas que músicos e homens de
imprensa e de rádio começaram a estabelecer critérios de distinção” no julgamento de nosso cenário musical
(p.89, 2008).
44
produzindo um espaço de identidade nacional que se liga a uma das maiores criações
possíveis para a história de toda a música ocidental 17.
Em outros termos, observamos a inserção (sob uma concepção previamente
hierárquica) de instrumentos e paradigmas sonoros da complexa música erudita que é
temperada pela síncopa do samba. Assim, o requinte orquestrado varia entre o original e o
moderno, tendo a ele agregada uma letra que defende elementos de “inegável” brasilidade e
também instrumentos “luxuosos” para sua execução. A partir daí, podemos dizer que o samba
se transforma em indicador de nossa cultura musical, irrompendo com sucesso os limites da
alta cultura – mesmo que a custa de elementos trazidos por agentes externos à sua história – e
equacionando boa parte das tensões desenvolvidas ao longo desse procedimento.
Contudo, é preciso observar que a definição do estilo musical e sua elevação a
uma categoria de símbolo nacional não encerram as interpretações que se desdobram a
respeito do samba. Isto porque, se conseguimos, até agora, responder alguns questionamentos
levantados sobre esse gênero musical e suas transformações ao longo da década de 1930,
precisamos nos atentar ao fato de que muitas outras indagações surgiram após esse período.
Em linhas gerais, ainda nos falta abordar o momento em que o samba é apontado como
“matriz nacional” para o surgimento da “batida diferente” que consagrou a Bossa Nova; as
transformações articulam as escolas de samba como mantenedoras do gênero musical; e o
desenrolar da expansão do mercado fonográfico brasileiro a partir da década de 1970, em que
o pagode aparece assumindo papéis a favor e contra a preservação das tradições do samba e a
expansão da indústria cultural.
1.3 FORA DAS ESCOLAS, DENTRO DAS RODAS... E MAIS DISCOS
17
Nesse momento vemos a importância em destacar a proximidade da interpretação da concepção de arte
proposta pelo cronista Vagalume, em 1933, e pelo compositor Ary Barroso, em 1939. Apesar de inicialmente a
idéia da aproximação entre os personagens de Vagalume – o “coração amoroso de um homem rude” e sua “musa
embrutecida” – e a iniciativa de integrar música erudita e popular de Ary Barroso – ainda mais se levarmos em
conta a legitimação dos interesses políticos da época e o uso dos agentes de propagação da indústria cultural –
parecerem contraditórias, eles compartilham de ideais bem próximos no que diz respeito ao julgamento da arte.
Isto porque o primeiro vê que suas personagens, apesar de rudes e embrutecidas, são capazes de fazer arte para
ser apreciada e o segundo, mesmo percebendo que no samba existe a predominância de elementos musicais
simples, vê na conjugação destes com a complexidade estética presente na música erudita uma forma de atestar a
arte a ser reconhecida no samba.
45
Após adquirir sua própria definição estética e se diferenciar dos demais gêneros
musicais que corriam o Rio de Janeiro desde o século XIX, o samba ganha as ondas dos
rádios e as ranhuras dos discos. Seu processo de composição permanece nas mãos da
população que o mantém vivo, mesmo que a custa de críticas e desconfianças por parte dos
que pensavam os projetos civilizatórios e nacionalistas da época, de modo que os sambistas se
tornaram parte inicial do processo de produção e circulação das canções, participando
ativamente da venda de letras para as grandes vozes do rádio, nas chamadas parcerias 18.
Além do reconhecimento obtido pela popularização das letras nas rádios e pelo
aumento da venda de discos, os sambistas puderam vislumbrar uma via de prestígio
alternativa. Esta veio por meio do desfile carnavalesco, que a partir da década de 1930
instituiu uma banca julgadora para os novos critérios adotados, dentre eles a criação de um
samba que deveria nortear a composição das alas e dos carros alegóricos da apresentação. A
partir destas transformações, podemos notar o surgimento de novas escolas de samba, o
acirramento da competição e a busca pela admiração de novos espectadores, firmando o
reconhecimento do espetáculo produzido.
Porém, apesar do requinte produzido na festa carnavalesca, o samba continua
sendo visto como um tipo de produção musical nascida e produzida nos morros cariocas
(berço das escolas de samba), de modo que a idéia da origem “morro acima” encubra uma
circularidade que evidencia a pluralidade de berços para esse gênero musical. Nesse sentido,
verificamos que a fixação do local de prática do samba passa a legitimar sua originalidade
popular, reforçada para diferenciar esteticamente o samba do morro (do carnaval) e o do
asfalto (do rádio). Em busca dessa distinção, vemos uma hierarquia musical que liga a
sincopação dos instrumentos percussivos ao samba do morro – mais frenético e carnavalesco
– e a orquestra sinfônica e a voz de um cantor popular ao samba da cidade – mais suave e bem
elaborado.
Podemos ver exposta essa situação na fala do historiador Marcos Napolitano, que
aponta que:
Na medida em que a música popular e, particularmente, o samba tornavam-se o
carro chefe da música urbana-comercial no Brasil, fazia-se necessário contrapor uma
18
De fato, estas parcerias eram mais reconhecidas como os casamentos entre uma famosa voz do rádio e um
habilidoso compositor de sambas. Nesse processo, podemos destacar o “casamento” que havia Ismael Silva e
Francisco Alves documentado na obra de João Máximo e Carlos Didier (1990, p. 210).
46
expressão que delimitasse sua diluição cultural: assim, a Escola de Samba (o espaço
da tradição) ganha um outro sentido se comparada com o rádio (a modernidade)
(2005, p.53).
Percebemos, através da fala de Napolitano que as escolas de samba (como
espaços da tradição) funcionavam como ponto de convergência para o contato e a prática com
o mundo do samba, como uma fonte essencial de onde todo sujeito deveria buscar referências
primordiais para seu exercício ou apreciação, o que corrobora com a idéia da limitação de sua
diluição cultural. Em contraposição ao rádio, as escolas de samba eram pensadas como
espaços para criação autônoma de sambas, onde se mantinha a tradição através da ação de
homens simples e espacialmente setorizados, que se encontravam em um local que, apesar de
próximo, não estava contaminado pelos elementos da modernidade oferecida nas ruas.
Em decorrência dessa simbólica manutenção da tradição, percebemos que vários
sambistas que surgiram ao longo das décadas tiveram seus nomes diretamente vinculados às
escolas que pertenciam. Entre eles, um dos mais conhecidos é Cartola, ilustre membro da
Estação Primeira de Mangueira, cuja própria trajetória explicita a transição da preservação
para a autonomia do fazer musical no samba. Sobre essa mudança, o sambista Monarco, da
escola Portela, ressalta que as atividades em torno do desfile carnavalesco, inclusive o
processo criativo e as tomadas de decisões, eram definidas, exclusivamente, por meio de
escolhas da própria comunidade ligada à escola (MONARCO apud TROTTA, Felipe e
CASTRO, João Paulo M., op. cit., p.66).
Nessa altura da discussão, notamos, com bastante interesse, que a consolidação do
samba por meio do rádio e do carnaval estabelece uma situação de caráter duplo. Se de um
lado vemos sua inserção em novos meios de comunicação na tentativa de conquistar o
reconhecimento de várias classes sociais; de outro, vislumbramos sua importância como
representante de uma cultura tradicional vinculada às populações de baixa renda que
preservam e desenvolvem um bem artístico desconectado de outras manifestações
estrangeiras.
A percepção dessa duplicidade foi de grande importância para aqueles que
pensaram a música nacional como fruto de intensas disputas contra a perda de identidade que
era sistematicamente ameaçada pelas canções de fora. Elas se expandiram pelo rádio na
década de 1940, sendo presença constante no dial tupiniquim e ameaçando seriamente o gosto
e o prestígio alcançado pelas "coisas nossas". Desta maneira, conforme afirma José Roberto
Zan, nesse período, “jornalistas e radialistas contribuíram para o estabelecimento de critérios
47
de distinção (...) entre a música popular verdadeiramente brasileira e a que apresentava sinais
de estrangeirismos” (2001, p.111).
A proposição desse campo de rivalidades acabou estabelecendo uma "fase áurea"
da música nacional entre as décadas de 1930 e 1940. Contudo, a década seguinte seria
marcada por outra criação estética capaz de promover um grande ponto de interrogação em
relação a oposição entre o nacional (tradicional e autêntico) e o estrangeiro (modernizante e
cosmopolita): a Bossa Nova, que surgiu em nosso cenário musical no final da década de 1950
provocando vários questionamentos sobre a dicotomia citada.
A Bossa Nova foi, certamente, uma produção que gerou controvérsias, pois seus
defensores vislumbravam um momento de maturidade da música brasileira em diálogo com
uma identidade cultural consolidada pelo samba e seus críticos viam apenas a materialização
dos temores relativos à descaracterização da cultura brasileira, através de um distanciamento
das matrizes culturais nacionais em favor dos ritmos estrangeiros 19. Todavia, tanto as críticas
quanto os elogios a respeito dos destinos a serem seguidos pela nossa música partilhavam do
samba como sendo o ponto de partida para a construção de uma identidade cultural em
consonância com a emergência da Bossa.
Percebemos, assim, que o samba assume lugar de um bem cultural visivelmente
estabelecido no cenário musical brasileiro, servindo, incontestavelmente, como valor
referencial para a criação de uma cultura musical nacional. Dessa forma, às vésperas da
década de 1960, temos a praticamente indiscutível “vitória do samba” e a “vitória de um
projeto de nacionalização e modernização da sociedade brasileira” (VIANNA, 1995, p.127).
A polêmica em relação à Bossa Nova mostrava que o samba havia se tornado em gênero
incontestável tanto para a compreensão do trajeto da música brasileira, quanto para o
reconhecimento de outras possibilidades estéticas nesse mesmo campo.
Tendo em vista esse reconhecimento obtido pelo samba em âmbito nacional no
que diz respeito à sua importância referencial para a produção artística brasileira, retomamos
a idéia do morro como local de resguardo do samba, onde este, através das ações de seus
19
Essa divergência pode ser vista quando José Ramos Tinhorão e Edu Lobo participaram de um debate realizado
pela revista Civilização Brasileira, em 1966. Tinhorão defendia a idéia de que a Bossa Nova não poderia ser um
produto autenticamente brasileiro por claramente “assimilar e incorporar à produção musical ritmos, estilos e
harmonias de músicas estrangeiras”. Utilizando desse mesmo pressuposto, Edu Lobo ironiza o argumento de seu
interlocutor ao afirmar que se esse critério de autenticidade fosse posto em prática, o samba não poderia ser visto
como brasileiro mediante suas influências de origem africana. (TINHORAO; LOBO apud NERCOLINI, 2006,
p. 127, 128)
48
compositores e das escolas (comunidades), estaria a salvo das manifestações da modernidade.
Diante dessa perspectiva, nos questionamos se seria realmente possível “ocultar” o samba dos
modernismos e estrangeirismos em prol de uma “cultura genuína” e lançamos olhar sobre os
caminhos tomados por esse gênero musical estabelecido nos morros.
Em outras palavras, buscamos confirmar a real existência de “uma coincidência
ontológica entre realidade e representação, entre a sociedade e as coleções de símbolos que a
representam” (CANCLINI, 2006, p.163), dando especial atenção ao mundo das escolas de
samba, local onde o samba mantém, supostamente, as suas tradições através dos “mesmos”
grupos sociais que historicamente participaram da consolidação de sua prática. Para tanto,
recorremos ao livro “Escola de Samba – árvore que esqueceu a raiz”, obra em que Candeia e
Isnard destacam, no depoimento de Paulo da Portela, o fato de as escolas de samba possuírem
maior popularidade “só a partir da segunda metade da década de 50 [1950]” (1978, p. X).
Nesse processo, a fala de Paulo da Portela ressalta ainda que o controle sobre o
desfile carnavalesco seria “tomado de assalto” por outros elementos que passariam a se inserir
nesse espaço realizando "uma promiscuidade que só fez atrapalhar a beleza da apresentação
das escolas de samba" (CANDEIA E ISNARD, 1978, p.X). Dessa maneira, sua denúncia nos
indica um processo de popularização das escolas de samba em que o conceito de “popular”
perde sua característica de reserva cultural de grupos marginalizados, se estendendo a outras
esferas socioeconômicas. Essa popularização claramente criticada faz referência a uma nova
situação em que
as escolas de samba foram (...) se modificando, deixando de se basear em pequenas
iniciativas de grupos restritos com condições materiais limitadas, e se tornando
associações institucionalizadas e menos improvisadas (...) levando à assimilação de
membros externos àqueles grupos provenientes, principalmente, da classe média
(LIMA, 2002, p.92).
Percebemos, então, que a entrada de outros grupos no universo das agremiações
promove rearticulações discursivas e históricas, fazendo com que tanto a tradição quanto a
modernidade convivam interligadas ao samba. Assim, vemos que a popularização do
espetáculo carnavalesco ajudou a reforçar a idéia de que as escolas de samba seriam local de
prática e preservação do samba, e que a própria exaltação dos membros mais antigos por meio
da criação das “velhas guardas” passa a ser vista como uma espécie de tributo ao passado em
49
que as gerações mais novas reconhecem a importância daqueles que estão historicamente
contidos no trajeto das escolas 20.
Por outro lado, com a ampliação da competição carnavalesca, as escolas deixam
de ser espaço de manifestações improvisadas e aderem à dimensão moderna do desfile de
carnaval, que começa a se destacar, principalmente a partir da década de 1970, como
importante espetáculo turístico para aqueles que, vindos de várias partes do mundo,
pretendem conhecer de perto uma “manifestação típica” das terras brasileiras. Além disso, a
modernidade invade as agremiações quando o destaque dado ao carnaval extrapola as
fronteiras das escolas em outras épocas do ano através da possibilidade de adentrarem a
indústria do disco e gravarem sambas-enredos que participariam do desfile a cada ano.
Contudo, as mudanças experimentadas pelas escolas de samba acabam por
restringir a criatividade dos sambistas, uma vez que apenas o samba-enredo passa a ser
valorizado nas quadras das escolas. Esse subgênero, que prima pelo impacto sonoro dos
vários instrumentos musicais – sobretudo os percussivos – e pela composição de letras que
exploram extensas narrativas centradas em um só tema, passou a ser tão privilegiado que
acabou por reconfigurar a “função original” de diversidade do samba, instituindo uma
especialização que afastava as múltiplas e descompromissadas formas que marcaram o seu
trajeto.
A partir do momento em que se travam as novas relações no samba e este se
integra aos elementos da indústria cultural, várias reações são sentidas por críticos e
sambistas. Alguns destes, como os já citados Candeia e Isnard, reclamam de uma grave perda
de identidade do samba, enquanto outros, que vivem essa nova experiência, não se opõem aos
novos espaços de prática, de maneira a buscar o exercício de um samba que não necessite de
uma canção pensada em relação à disposição ordenada de “sons, cores, objetos construídos,
indumentárias, músicas, carros alegóricos e mais” (CHAGAS, 2002, p.18).
Essa flexibilidade conquistada, que fugia às exigências do espetáculo favorece o
aparecimento de novos lugares de socialização onde “o que está sendo valorizado neste
momento é, na verdade, uma vivência, a recuperação de uma atividade de lazer, de um
20
A idéia de velha guarda foi inicialmente disseminada por Almirante. O interesse desse compositor e radialista
em definir uma “reconfiguração de um passado musical” permitiu que esse conceito reunisse as várias vertentes
responsáveis pela consolidação do samba até as três primeiras décadas do século XX. Com isso, “neste conceito
cabiam músicos do primeiro samba (Donga, Pixinguinha), nomes ligados às Escolas de Samba (Ismael Silva), e
artistas diretamente relacionados com os primeiros programas musicais do rádio (Noel Rosa, João de Barro,
Silvio Caldas)” (NAPOLITANO & WASSERMAN, 2000, p.173).
50
espaço, dos valores que as rodas, as músicas, e os encontros propunham” (TROTTA, 2000,
p.67). Sendo assim, abrem brechas para a formação de novos espaços de prática musical,
como os “pagodes”, descritos assim por Luiz Fernando Nascimento de Lima:
não há cobrança na entrada, não há normas impositivas de comportamento ou
vestuário, o espaço é aberto, não há um plano predefinido para o programa musical,
aceita-se que músicos novos e inexperientes também apresentem suas composições,
os estilos musicais muitas vezes são semi-improvisados, não há uma estrutura
comercial estável para a venda de comida e bebida, não há limites temporais fixos e
não há regras que excluam a participação de qualquer pessoa(2002, p.97).
O que fica claro na descrição de Lima é a maneira pela qual os novos músicos têm
o olhar voltado para o passado, resgatando, de maneira muito similar, os primeiros momentos
da história do samba, quando este era realizado nas casas das tias. Desse modo, percebemos
que a retomada das práticas que haviam perdido espaço dentro das escolas de samba vinha em
resposta às perspectivas que temiam uma mudança irreversível nesse fazer musical. Contudo,
não podemos admitir que esse resgate negasse as possibilidades de inserção dos novos artistas
no cenário musical por meio dos meios de comunicação e da indústria dos discos, já que neles
não se reconhecia uma cultura de resistência cujo interesse fosse manter sua arte alheia aos
instrumentos e regras difundidos pela indústria cultural da época.
Essa retomada da valorização das formas improvisadas se dá por volta do início
da década de 1960 e ganha destaque nos debates culturais da época, de maneira que os
próprios artistas e críticos musicais – comumente de classe média – tiveram grande
preocupação em defendê-la como uma cultura autêntica e afastada das influências trazidas
pela “terrível invasão” dos valores estrangeiros. Nesse contexto, citamos o restaurante carioca
Zicartola como um importante local onde se buscava o samba enquanto elemento de uma
cultura pura e nacional, que promovia o “encontro entre demandas de grupos de sambistas à
procura de mercado e grupos intelectuais formadores de opinião sedentos por ‘sorver’ a
brasilidade que lhes parecia ameaçada” (TROTTA, 2006, p.70).
Entre os artistas ligados ao samba que surgiram nesse local podemos destacar
Paulinho da Viola, Zé Keti, Clementina de Jesus, Oscar Bigode, Zé Cruz, Araci Cortes,
Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Elton Medeiros 21; artistas que tiveram,
21
Nesse momento, faz-se necessário falar sobre o surgimento do Centro Popular de Cultura (CPC), iniciativa
tomada por estudantes ligados à UNE que demonstra esse novo panorama reflexivo onde o resgate da cultura
popular e o engajamento político se tornavam centrais. Artistas como Geraldo Vandré, Nara Leão, Carlos Lyra,
51
curiosamente, ao longo de suas carreiras, toda sua produção ligada às faixas de consumo
musical do samba e da MPB. Conforme afirma o próprio Elton Medeiros, os encontros no
Zicartola foram primordiais para o resgate das escolas de samba, contudo, o que se percebe na
trajetória desses artistas é que esta não possui ligação imediata com os conjuntos, artistas e
compositores que são comumente vinculados ao surgimento do pagode enquanto novo subgênero musical a ser comercializado a partir da década de 1970 (MEDEIROS apud LOPES,
2000, p.101).
Para esclarecermos as diferenças entre os sambas produzidos na época, não
podemos deixar de citar um outro local de grande importância para o desenvolvimento desse
gênero musical: o Cacique de Ramos. Surgido também na década de 1960, se configurou
como importante roda de pagode que promovia a inserção de novos artistas que não haviam
firmado carreira por intervenção de mediadores que defendiam a questão do engajamento
político e a valorização do nacional-popular dentro da música 22.
O pagode surge como novo subgênero musical em 1960 e seus sambistas se
destacam pelo vínculo aos debates culturais do momento e acabam por se transformarem em
ícones responsáveis pela continuidade do samba, integrando o nicho amplo e valorativo da
chamada “Música Popular Brasileira”. Tal posição não apenas contribuiu para aumentar o
valor estético e o prestígio desses artistas, como também permitiu a construção de um público
consumidor que compreendia o fazer musical e a carreira dos sambistas como indicativos da
manutenção do “popular” e do “nacional” no mercado fonográfico.
Contudo, a compreensão dada aos sambistas e ao público não pode ser vista de
maneira rígida, capaz de generalizar as diversas carreiras musicais, que, como bem sabemos,
atravessam contextos distintos, com diferentes preocupações estéticas e configurações. Dito
isto, percebemos que a distinção feita entre os “sambistas da MPB” (da década de 1960) e os
pagodeiros que surgem na década seguinte é feita a partir da idéia de que estes partem de
Sérgio Ricardo, Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle se preocupam em buscar redutos de onde poderiam acessar
esses artistas considerados populares. O mais reconhecido produto da associação entre essa perspectiva
apresentada e a busca desses artistas foi o show “Opinião”, onde “engajados” e “populares” dividiam o mesmo
palco.
22
Apesar desta diferença salientada pelo diferente contexto e formas de inserção no mundo artístico que marca
essas duas gerações de sambistas, não podemos de salientar que ambos estiveram ativos no mercado de discos.
Da década de 1960, temos a expressiva vendagem de Zé Keti com o disco “Máscara Negra” (1967) e a
conseqüente retomada de vários compositores em uma valorização tardia de nomes como Cartola e Nelson
Cavaquinho. Na década seguinte, aproveitando do surgimento do pagode como subgênero e a expansão do
mercado de discos no Brasil, temos o surgimento de vários outros artistas que seguiram toda uma carreira
artística ligada ao pagode (VICENTE, 2008, p. 108, 109).
52
outras temáticas, trajetórias e opções estéticas que permitem visualizar um novo momento na
história do samba. Assim, apreendemos que
A principal diferença entre, de um lado, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Fundo de
Quintal, Jovelina Pérola Negra, junto com outros artistas que apareceram neste
momento e, de outro lado, os cantores de samba que já tinham sucesso
anteriormente - como Martinho da Vila, Beth Carvalho, Agepê e Paulinho da Viola era a relação com a indústria, já que estes artistas eram projetados dentro do
contexto da MPB e da fabricação de ídolos, enquanto os pagodeiros, seus elementos
musicais e simbólicos eram apresentados de maneira mais próxima à de sua
veiculação nos pagodes informais ao vivo (LIMA, 2002, p.96).
Essa diferenciação indica o estabelecimento de uma nova conjuntura do samba,
através da qual os artistas puderam ser reconhecidos pelo percurso de outra trajetória.
Contudo, os novos sambistas tinham a preocupação de se aproximarem das formas originais
do samba, de modo que buscaram reproduzir temáticas e elementos sonoros que reforçavam o
descompromisso que marcou, em um primeiro instante, o reconhecimento das rodas de
pagode.
Um exemplo dessa situação pode ser vista na fala de Trotta, quando ele destaca
que
nas gravações das décadas de 1960 e principalmente nos anos 1970, há uma
explícita intenção de transpor para o ambiente do estúdio a informalidade das
rodas de samba caseiras, que é representada não só no aumento da importância da
polirritmia da batucada, mas também através de diálogos descompromissados entre
cantores, músicos e a inclusão deliberada de barulhos diversos (...) uma certa
"sujeira acústica", que se transforma em sonoridade do próprio arranjo. A
informalidade da roda é transposta para o estúdio, conferindo uma aura de
autenticidade na gravação (2006, p. 47-48).
A reprodução desse ambiente informal que destacamos na fala de Trotta
demonstra um visível contraponto a uma época em que as possibilidades estéticas e a
incorporação de novos instrumentos e efeitos de produção já poderiam “sofisticar” a gravação
sonora em estúdio. No entanto, como dito anteriormente, nem todos os grupos e artistas
primavam pela “sujeira acústica” que representava a estética dominante das rodas de pagode e
muitos deles permitiram, em suas obras, a intervenção de produtores musicais e a utilização
de instrumentos oriundos de outros gêneros musicais, nacionais ou estrangeiros (idem, p.49).
53
Percebemos, então, que o pagode não se impôs como um gênero de identidade já
estabelecida e definida, mas se configurou como um estilo aberto às experimentações e que
lançou o samba a outras possibilidades criativas que se consolidaram apenas na década de
1990. A partir deste momento, outra geração de artistas surge em meio ao franco fenômeno de
expansão comercial da música, que abarcou, entre outros novos gêneros musicais de apelo
popular, a música sertaneja e a axé music.
Nesse contexto, os novos pagodeiros foram sistematicamente criticados por
algumas opções musicais que supostamente descaracterizavam as principais referências ao
pagode – que definia sua identidade nos anos 1980 a partir do resgate das tradições estéticas
do samba produzido no início do século XX. Contudo, uma análise das novas opções nos
revela que, no que tange a esfera da escuta musical, a crítica é inoportuna, ainda mais se
seguirmos a opinião de João Paulo M. Castro e Felipe Trotta, que fizeram a comparação entre
o pagode dos anos 1980 e 1990, e concluíram que “a matriz estética-histórica de ambos os
‘estilos’ é exatamente a mesma, e que o discurso da ‘tradição’ não tem validade para
estabelecer essa distinção estética” (2000, p.74).
Todavia, não podemos deixar de lado a opinião lançada pelo sambista e
pesquisador Nei Lopes que define os pagodeiros da década de 1990 como frutos de uma
apropriação da “indústria internacional do entretenimento” que possibilitou a emergência de
um tipo de composição “sem a malícia das síncopes, sem as divisões rítmicas surpreendentes”
(2003, p. 111). Dessa maneira, notamos que, a partir da visível disputa quanto a compreensão
do termo “pagode”, não podemos mais pensar em “antigos” e “novos” pagodeiros, abarcando
as manifestações que surgiram nesse campo nas últimas décadas do século XX.
Diante dessa e de outras querelas que surgiram ao longo dos anos dentro do
mundo do samba, uma nova distinção se articulou com a criação do samba de raiz. A
formação de uma nova faixa classificatória poderia, finalmente, englobar – de forma não
muito precisa – todas as referências que estivessem ligadas às primeiras manifestações
históricas e artísticas desse gênero musical, abarcando, deste modo, artistas de diferentes
gerações sob o mesmo domínio. No entanto, essa nova divisão do samba acabou criando um
subgênero que se justificava muito mais através de questões históricas e sociais, que por
elementos musicais objetivamente reconhecíveis.
E mesmo dentro dessa nova classificação havia ainda os que – apesar do olhar
voltado para o passado – não hesitavam em buscar influências musicais fora do mundo do
54
samba. Assim, como tanto a turma “da raiz” como a dos “pagodeiros dos anos 90” buscavam
outros recursos para fazerem sua música, algumas incógnitas a respeito da divisão entre eles
ficaram no ar. Entre elas, está a levantada por Luiz Carlos, do grupo Raça Negra: ”Eu não
entendo o que é samba de raiz. O samba tem vários ritmos, a maneira de jogar com isso é que
varia. Quando eles falam que tocam samba de raiz nem eles mesmos sabem que raiz é essa”
(Revista de Domingo, JB, 10/09/1995) 23.
Através da verificação dessa dificuldade de estabelecer uma distinção do pagode
nas duas décadas mencionadas, percebemos que a legitimidade se torna um frágil meio para
tentar justificar a diferença. Dessa maneira, recorremos à análise de Luiz Nascimento de
Lima, que, ao interpretar essa situação à luz de um novo momento de expansão do mercado
musical, acabou por desestabilizar as dicotomias existentes entre o erudito e o popular que
definiram, por muito tempo, o campo das artes.
Segundo o autor, o momento citado se articulou justamente na década de 1980,
quando o interesse em se conceber gêneros musicais de amplo consumo mercadológico
quebrou “o caráter exclusivo ou exclusivista da oposição que funcionava antes entre as
categorias ‘popular’ e ‘oficial’” (2002, p.99). Ele ainda aponta que a cisão dessa dicotomia
também teve como contribuinte as práticas informais e inclusivas que marcaram o início dos
primeiros eventos, já que os pagodeiros se afastavam das imposições das escolas de samba
para experimentarem de forma aberta a prática do samba.
Sendo assim, o autor considera que a heterogeneidade do público do pagode
reforça a idéia de que as “condições de vários tipos convergiram para possibilitar o
crescimento de um estilo sintético capaz de dar voz aos valores subjacentes que estavam à
espera de expressão” (idem, p.100). Lima justifica essa capacidade a uma “competência
carnavalesca” sedimentada no conceito oferecido pelo teórico russo Mikhail Bakhtin, que, ao
estudar a transição da Idade Média para o Renascimento, percebeu uma maneira de articular,
na cultura, uma visão de mundo renovadora que irrompe contra as distinções que marcam os
diversos aspectos da vida cotidiana.
23
O “eles” citado por Luiz Carlos pode ser visto como um questionamento muito mais dirigido aos que
defendem a distinção entre o “pagode” e a “raiz”, do que necessariamente aos artistas associados a essa última
classificação. Um exemplo desse tipo de perspectiva pode ser notada em uma declaração de Bezerra da Silva,
que ao ser questionado sobre os novos pagodeiros, respondeu: “O sol nasceu pra todos, todos os colegas são
bons. Cada um tratando de si. Eu acredito que o meio está pra todo mundo. Graças a Deus, muitos colegas estão
fazendo sucesso. Um sambista carrega a bandeira do samba” (Folha de São Paulo, 8/12/2000, <
http://almanaque.folha.uol.com.br/pagodinho1.htm > acessado em 14 de julho de 2008).
55
A tese defendida por Lima nos permite visualizar uma perspectiva estéticohistórica que considera que, por meio do pagode, o samba alcançou uma posição imprecisa no
esquema que antes classificava claramente os gêneros percebidos no cenário cultural
brasileiro. Desse modo, vemos que as diferentes posições assumidas pelo pagode no mercado
musical, na sua própria musicalidade e nos eventos que inicialmente marcaram sua gênese,
acabam por sustentar a condição ímpar levantada pelo autor, pois, de fato, a eclosão dos
meios de comunicação e a capacidade destes de propagar a arte em outras culturas puderam
proporcionar uma quebra em determinados esquemas de classificação.
No bojo desse movimento de ruptura, notamos que as distinções trazidas pelo
pagode por meio de sua “competência carnavalesca”, acabam por influenciar outros estilos
musicais que antes poderiam ser vistos dentro de esferas fechadas em que as formas, os
símbolos e o próprio público estariam hermeticamente inseridos e classificados de maneira
precisa. Contudo, analisando tudo o que já foi dito, percebemos que ao longo de toda
trajetória do samba, existiram outros momentos em que a indefinição esteve manifesta em
diferentes pontos e questões.
Antes ou depois do pagode, pudemos observar as diferentes declarações e
visualizar a complexidade desse jogo composto por símbolos, práticas e referenciais
históricos que formularam orientações variadas. Notamos, então, que o processo de
compreensão e concepção artística se insere num campo que congrega a perspectiva de cada
músico, artista, crítico, fã e pesquisador, que se posicionam e compartilham suas opiniões,
reelaborando a significação dos elementos de uma mesma experiência.
Em decorrência dessa dinâmica, seria impossível dar conta de todas as vozes que
participaram do processo dialógico através do qual tentamos levantar alguns movimentos que
puderam nos permitir caminhar pelas obras, declarações e apreensões que marcaram a carreira
do sambista Bezerra da Silva. Dessa maneira, a contribuição oferecida por essa parcela do
trabalho destaca a reflexão que se sustenta sobre a insistente observância dos passos, dizeres e
sons produzidos por esse artista.
Nesse sentido, levantamos os rumos tomados pela sua carreira artística e
problematizamos sua via de inserção no cenário musical de sua época através de um
levantamento das questões que cercaram seu processo de criação musical – o que inclui a
análise de alguns de seus sambas – e também a apropriação de sua obra. Buscamos, assim, ver
56
as maneiras pelas quais se travou seu diálogo com as tradições do samba e de que maneira
isso foi exposto em sua obra.
Por meio de toda essa pesquisa, permitimos nos afastar de um simples elogio à
qualidade estética de sua obra, ligada as suas habilidades de gênio musical isolado em idéias
próprias, para verificarmos (por meio do mais variados indícios) como Bezerra da Silva
respondeu às questões de seu tempo e de sua arte, assinalando, sob uma nova entonação,
algumas temáticas e experiências ligadas ao samba. Assim, a aparente reinvenção que
buscamos na obra de Bezerra parte para um esforço reflexivo que instaura um olhar que pensa
sobre sua obra como uma criação contaminada por elementos que aparecem dentro do gênero
musical que representa, na contextualização de questões contemporâneas e também na própria
fala do artista.
Isto porque o próprio Bezerra, em diversas ocasiões, preocupava-se em justificar
suas opções artísticas e assinalar as implicações da sua obra no tempo em que viveu,
mostrando-se ciente de seu papel de “embaixador do morro”. Nesse sentido, nossa pretensão
fundamental é sinalizar os caminhos tomados pela sua obra, deixando esclarecidos alguns
pontos de sua trajetória através da análise de referenciais múltiplos que se interpenetram
constantemente.
57
CAPÍTULO II – BEZERRA DA SILVA: UM CAMINHO BIOGRÁFICO E MUSICAL
“Ao narrar sobre minha vida cujas personagens são os outros para mim, passo a passo eu me entrelaço em sua
estrutura formal de vida”
Mikhail Bakhtin
No dia 17 de janeiro de 2005, José Bezerra da Silva faleceu após sofrer uma série
de complicações decorrentes de um irreversível enfisema pulmonar. O sambista, que não era
mais um “José da Silva”, foi bastante ovacionado por compositores dos morros cariocas que
tiveram seus sambas gravados por ele. Dessa maneira, Bezerra (como era conhecido),
evidenciava sua importância no mundo do samba, onde retomou as formas tradicionais do
samba de partido alto e conquistou considerável fatia do mercado fonográfico de sua época.
Ele cantava temas que ligavam sua figura à extensa coleção de imagens que o traduziam
como um artista de feição popular.
O interesse em retratar a expressividade desse artista a partir de sua morte tem
inspiração no samba-homenagem “Pensando na morte do Bezerra” 24. Isto porque, na letra
desta canção – feita após a morte do cantor – o compositor Lula Queiroga diz que Bezerra da
Silva “deixou seu nome na fumaça da História, morreu no dia dezessete do um, pra provar
que a vida é um tremendo 171”. Destaca-se, nesses versos, a ironia que corteja a idéia de que
o fim da vida do sambista abraça os mesmos números que geralmente enquadram os crimes
praticados pelos famosos malandros.
Essa relação, que encaixa a morte de Bezerra, a malandragem (tão abordada por
ele em suas canções) e o artigo 171 do Código Penal pode ser vista como uma última tentativa
de se criar, como muito bem salientou Pierre Bourdieau, uma “lógica ao mesmo tempo
retrospectiva e prospectiva, uma consciência e uma constância, estabelecendo relações
inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final” (1998, p.184). Nesse sentido,
procuramos buscar na vida e obra desse artista os fatos que marcaram sua trajetória e o
transformaram em um intérprete de sucesso.
24 Este samba aparece nos créditos finais do documentário “O dia em que o bambu quebrou no meio”, dirigido
por Pedro Asbeg & Arthur Muhlenberg, onde vários sambistas falam de Bezerra da Silva no mesmo dia em que
acontece o seu velório.
58
Para tanto, nos focamos no trabalho que ele deixou registrado em LP’s, CD’s,
vídeos e entrevistas e observamos sua vida como um dado que aparece, repetidas vezes, nas
declarações e versos que pontuam sua longa carreira, que vai da década de 1970 e só “acaba”
– como já observamos – no dia em que falece.
Para começarmos o percurso que pretende resgatar a caminhada de Bezerra, não
podemos deixar de mencionar a obra “Bezerra da Silva, produto do morro: a trajetória e obra
de um sambista que não é santo”, da antropóloga Letícia Vianna, uma vez que ela consegue
capturar informações sobre sua obra que antes eram ofuscadas. Isto porque as diversas
matérias que falavam do sambista dividiam espaço com fotos, anúncios publicitários e até
mesmo com as próprias resenhas de seus discos, de maneira que não conseguiam retratá-lo de
modo completo.
Sabemos que Bezerra da Silva compôs poucas das músicas que gravou. Ainda
assim, temos em seu trabalho importante suporte para nosso estudo, já que muitas letras
parecem ter sido encomendadas, modificadas ou viabilizadas pelo convívio regular do
sambista com alguns dos compositores que apareceram durante sua carreira 25. Essa tentativa
de se eliminar as diferenças entre a vida e a obra do artista nos mostra uma dupla via que o
liga a um determinado “perfil estético, visual e comportamental do indivíduo que canta, que
soma à música em si” (TROTTA, 2006, p.17).
No caso de Bezerra da Silva, sua figura remetia-se ao arquétipo do malandro, que
se tornou, ao longo da história do samba, um personagem corrente nas diversas canções.
Tanto as letras das músicas de Bezerra quanto sua imagem convergiam para este estereótipo,
fazendo com que muitas pessoas confundissem
a autoria de uma canção com sua interpretação, através de frases como ‘a música do
Fulano’, quando se sabe que o tal Fulano não compõe. A imagem estética dos
produtos canção e disco se baseia na crença e na verossimilhança do artista enquanto
personagem-criador desses produtos. (ibidem)
25 No dia 28 de julho de 1991, o jornal “O Globo” trouxe na matéria ”O velho malandro ataca de novo” uma
série de pequenos textos que retomam alguns aspectos relevantes da vida e da obra do compositor. No último
deles, intitulado “Cantor sobe os morros em busca de novos compositores talentosos”, o autor da matéria destaca
essa confusão autoral ao afirmar que Bezerra da Silva “faz questão de citar o nome de seus compositores por que
muita gente acha que ele próprio compõe seus sambas”
59
Contudo, para que se entenda como esse perfil foi atribuído à Bezerra, é preciso
saber como ele se estabeleceu como artista e de que maneira os fatos essenciais de sua vida
foram determinantes para que ele se entendesse como homem e compreendesse sua arte.
Dessa maneira, vemos que essa amálgama entre vida e obra, que é uma discussão recorrente
em vários campos que estudam determinada manifestação artística, tem um valor específico
no conjunto do trabalho de Bezerra da Silva.
Reverenciado em diversos momentos como “artista popular”, nosso sambista
honrou esse mérito não por uma opção aleatória, mas por que os próprios fatos de sua vida o
levaram a querer “representar” o morro. E é justamente essa impressão harmônica sobre sua
história e seu trabalho – transmitida por meio de canções, declarações e imagens – que se
configura o conjunto portador de um nexo causal encarado como legímito e verdadeiro.
O fato Bezerra da Silva falar do que vive ou viveu através de sua própria arte, faz
com que ele seja avaliado por outros critérios que o legitimam como artista que carrega uma
verdade a ser transmitida, no caso, em forma de canção. Esse mesmo critério avaliativo foi
explorado pelo pesquisador Eduardo Coutinho no artigo “Os sentidos da tradição”, em que
trabalha com canções e depoimentos de outro conhecido sambista, Paulinho da Viola.
Coutinho retoma as experiências afetivas alocadas na infância e na juventude do
cantor para, logo em seguida, destacar seus primeiros passos na carreira artística. Ele ainda
promove uma série de conexões que destacam a peculiaridade da obra de Paulinho, uma vez
que sua vida foi pontuada por memórias sonoras e personagens do samba que lhe permitiram,
de maneira única, promover um “desenvolvimento dialético da tradição legada pelas gerações
passadas (...) operada a partir de dentro da cultura das classes populares e não como uma ação
realizada desde o exterior” (COUTINHO, 2002, p.13).
No caso de Bezerra da Silva, a relação entre popular e tradicional também é ponto
fértil para discutir as canções que gravou. Todavia, não queremos aqui apontar, por meio de
sua vida, a veracidade ou legitimidade dessa “aura tradicional” em sua obra. Nossa intenção é
reconhecer os signos, os mecanismos e as falas que nos permitem acessar as referências
depositadas no passado e traçar a história de vida do sambista. Em outras palavras,
pretendemos observar quais são as tradições que cercam a obra de Bezerra e de que maneira
elas são evocadas, de modo a relacionar a história de vida do cantor com a própria história do
samba.
60
Existe ainda uma outra vertente sobre a qual queremos nos debruçar para entender
a obra de Bezerra, pois não seria possível, apenas pela avaliação de sua história e obra,
discutir sua relação de afinidade com o passado e condensar a importância de seu trabalho. A
partir do momento em que a obra de nosso sambista não pode ser entendida apenas pela ótica
da sua trajetória de vida, outro elemento se coloca sobre nossa mira, nos fazendo enxergar a
consolidação de sua carreira artística. Nesse sentido, também temos interesse em explorar a
indústria cultural que o permitiu lançar seus sucessos e ficar conhecido nacionalmente como
“porta-voz do morro”.
Fazemos uma retomada das questões discutidas na primeira parte do trabalho para
tentar encontrar as articulações existentes entre o momento em que Bezerra trilha a sua
carreira, abrindo espaço para o consumo de sua arte via indústria cultural, e o surgimento de
novos campos de compreensão sobre sua obra. Para tanto, não consideramos a indústria
cultural como um agente que possibilita a sua transformação em artista, mas como tema que
se mostra recorrente nas próprias letras do sambista e que serve de referencial para uma
parcela significativa das críticas que buscam compreender o sucesso alcançado por alguém
que foi bem mais que apenas um intérprete de sambas.
2.1 A CHEGADA ATÉ O MALANDRO
2.1.1 “Mas eu sou aquele que chegou do Nordeste pra tentar...”
Ao contrário do que muitos pensam, Bezerra da Silva não nasceu nos morros do
Rio de Janeiro. A malandragem que fazia parte de sua figura foi construída somente quando
ele foi viver nas favelas cariocas. Contudo, assumindo sua identidade como artista, ele aponta
que sua inclinação para o mundo da música esteve presente desde a mais tenra idade, quando
já estaria em contato com seu “dom natural”. Na obra de Vianna, ele cita algumas vezes
passagem da sua infância e justifica sua condição de músico dizendo:
Gostava de cantar e encher o papo de galinha pra botar na lata e ficar batendo... mas
aquilo na minha época era crime (...) Ninguém admitia esse negócio de música,
música era coisa de vagabundo. E tinha uma rapaz lá, que tinha uma escola
profissional, que tinha uma banda. (...) eu tinha verdadeira adoração por aquilo! Mas
eu não podia porque minha família tinha horror a música. (...) Mas tinha um rapaz
61
que estudava na escola, ele tocava trompete e me ensinou, escondido. Foi o primeiro
instrumento que toquei na vida. Ele me ensinou a escala e aquilo nunca me saiu da
mente. (VIANNA, 1999, p.19)
A passagem mencionada se passou na cidade do Recife, quando, ainda com pouca
idade e nenhum tipo de apoio familiar, ele teve suas primeiras experiências musicais de forma
passageira e bastante incipiente. O gosto pessoal e a teimosia pueril eram um dos dos
primeiros indícios de que um amante da música teria que superar outros obstáculos para que
viesse a ser um cantor. Apesar de Bezerra ter saído de sua cidade natal no começo da
adolescência, seus primeiros discos parecem buscar exatamente esse lugar onde a primeira
identidade musical teria sido formada.
Assumindo o papel de “rei do côco”, ele grava dois discos em que se dedica aos
gêneros musicais nordestinos. Mesmo havendo uma considerável distância temporal entre sua
infância e o início de sua carreira como intérprete, ele parece recuperar os referenciais
daquela época para legitimar seu repertório. Na canção que recebe o nome de seu novo título,
“O rei do côco”, e que aparece nos dois discos dedicados ao gênero regional, Bezerra canta
que “a natureza deu a mim esse presente/ está no meu sangue, no meu eu/ no meu coração, na
minha mente”. Desse modo, ele mostra como cantar aquele esse tipo de música é sua
condição natural, que “não é banca, nem vaidade/ é pura realidade, O rei do côco chegou!”.
Todavia, ao mesmo tempo em que estabelece esse contato com suas raízes e
atribui naturalidade a essa conexão, Bezerra da Silva também busca uma estratégia de
singularização que se mostra muito comum a tantos outros artistas de sua época. Ele tenta,
portanto, firmar espaço no mercado fonográfico por meio da evocação de qualidades
peculiares; ele tenta se estabelecer a partir de um personagem que possa ser reconhecido,
destacando-se dos demais.
Enquanto cantor dos côcos do nordeste, a primeira de suas qualidades que se
destaca é a capacidade de reproduzir fielmente o jogo de palavras e rimas que marcam as
chamadas “obrigações”, que também nomeiam de forma indefinida as canções nordestinas.
Um exemplo dessa habilidade pode ser conferido em “A coisa mudou” 26, canção em que
Bezerra avisa que vai cantar só para mostrar que um outro cantor (no caso, o repentista) “fica
todo atrapalhado/ a língua cai/ o maxilar fica arriado/ Ele fica todo invocado/ apavorado e
tremendo/ Porque esta obrigação/ não é brincadeira, não/ E ele não vai dizer/ tudo o que estou
26 Bezerra da Silva, O rei do côco – Vol. 1, Tapecar, 1975.
62
dizendo”.Dessa maneira jocosa, o novo “rei do côco”, mesmo que não tenha criado um novo
gênero musical (como Luiz Gonzaga, “o rei do baião”) ou vinculado sua imagem a um
determinado instrumento (como Jackson do Pandeiro), se impõe no mercado pelas suas
habilidades que não poderiam ser apreciadas em outros cantores 27.
Sua condição de nordestino ainda o coloca como portador de um discurso que usa
a arte para evocar a idéia de que o “norte” é um lugar que deve ser valorizado, pois “não
admito que falem do norte, se ele faz parte do nosso torrão” 28. As noções de orgulho e
identidade seguem reafirmadas pelo uso de expressões que indicam um pertencimento àquele
local: “No norte biscoito é bolacha/ aipim é macaxeira/ a indivídua abóbora é gerimum (...)
Digo sem medo de errar/ No norte aprendi assim...” 29.
Bezerra da Silva ainda explora, com o objetivo de singularizar-se, a questão das
disputas em que a maledicência e a inveja são denunciadas como depreciadoras da qualidade
estética do cantor. Sem ser muito específico, ele canta que
Abel foi morto, meu amigo/ Pela bruta inveja de Caim/ Mas eu tenho fé em Deus/
Que a inveja dessa gente/ não pode matar a mim (...) A inveja é a arma do
incompetente/ E quem usa esse monstro/ é de fato infeliz/ Sei perfeitamente bem/
que eles não se sentem bem/ em me ver tão bem assim
Ao destacarmos estes aspectos que marcam os primeiros trabalhos de Bezerra e
compará-los com sua história de vida, percebemos que seu ingresso no mundo dos discos foi
marcado pela superação de imensos obstáculos. Isso porque, mesmo reconhecendo que seu
contato com a música se deu desde muito jovem, sua fala nos remete à reprimenda dos
familiares que eram contra essa aproximação e que o fizeram tentar a vida com outros ofícios.
Essa situação fica clara quando o próprio Bezerra (não sabendo esclarecer de fato a data do
acontecimento) decide ingressar na Marinha Mercante, assim como fizera Alexandrino
Bezerra da Silva, o pai com o qual nunca tivera contato (VIANNA, 1999, p. 19).
Nessa época de sua vida, ainda em Recife, ele tenta ingressar na escola de
marinheiros, mas descobre que para tal ele necessitaria de sua certidão de nascimento. Uma
27 Essa mesma questão vem expressa na canção “Côco do Trocadilho”, em que o cantor avisa que “Pra cantar
comigo/ tens que traçar bem o baralho/ Que é pra não se atrapalhar/ Viu, Zé? E não cair do galho (...)Eu fiz esse
trocadilho/ somente pra derrubar a sua fama” (Bezerra da Silva, O rei do côco – Vol. 2, Tapecar, 1976).
28 Verso da canção “Assim, sim” (Bezerra da Silva, O rei do côco – Vol. 2, Tapecar, 1976).
29 Ibid, ibidem.
63
vez que não possuía este documento, seus familiares propuseram que ele fizesse um registro
em que constasse a mãe, Hercília Bezerra da Silva, e o padrasto (cujo nome não é citado)
como seus progenitores. De forma inesperada, José Bezerra da Silva faz questão de buscar
notícias do pai que havia abandonado a família para morar no Rio de Janeiro e consegue, por
intermédio de um conhecido da Marinha, mandar uma carta para esta instituição, que lhe dá
como resposta o registro de nascimento que consta o nome de seu verdadeiro pai (Ibid,
ibidem, p. 19).
Bezerra recebe educação e treinamento para permanecer na Marinha, mas, depois
de ser assediado sexualmente por um de seus superiores, ele desiste de se submeter à
autoridade daquele lugar. Com intuito de expressar sua raiva e insatisfação, o próprio cantor
alega, em depoimento, que saiu xingando os membros da Marinha Mercante de “veados”
durante uma solenidade oficial. Esse evidente desacato acabou por justificar sua expulsão da
instituição e de uma via de inserção no mundo do trabalho.
Sua família, que tinha poucos recursos e se preocupava com o futuro do jovem
Bezerra, o repreende e desaprova seu comportamento exaltado. Conforme ele mesmo aponta,
“ficou aquele negócio que eu era ovelha negra da família, que eu não prestava, que eu era
vagabundo (...) então eu vim embora... direto do Recife”(Ibid, ibidem, p. 20). Depois dessa
desavença, Bezerra vai para o Rio de Janeiro. Nesta cidade, onde quase não possuia contatos,
ele decide procurar por seu pai, com o qual havia estabelecido uma precária identificação no
caso do registro de nascimento (Ibid, ibidem, p. 20).
Quando chega ao bairro de Jacarepaguá, Bezerra se depara com Ana, a nova
esposa de seu pai, e descobre que ele havia constituído nova família. A mulher, que havia
compreendido a situação entre os dois, resolveu dar-lhe abrigo. Contudo, seu relacionamento
com o pai, em poucos dias, resulta em nova situação conflituosa, pois, segundo Bezerra, este
o acusou de ter aparecido para “empatar sua vida”. Diante desta situação, o jovem preferiu
sair de casa e “nunca mais quis saber daquele pai” (Ibid, ibidem, p. 20). Ele foi em busca das
primeiras oportunidades de emprego na cidade em que era um completo estranho.
Com os versos “Pintor, pintor, pintor/ Eu já fui pintor/ Eu também já fui pintor/
agora sou tenor”, que fez em parceria com o sambista Dicró 30, Bezerra conta suas primeiras
experiências profissionais no ramo da construção civil, quando realizava a caiação externa de
30 Bezerra da Silva; Dicró; Moreira da Silva, Os 3 malandros in concert, CID, 1995.
64
edifícios em obra 31. De início, ele habitava os tetos erguidos nas construções em que
trabalhava, mas conseguiu mudar-se par ao morro do Cantagalo quando se envolveu com uma
jovem empregada doméstica dessa comunidade (Ibid, ibidem, p. 21).
2.1.2 “Com o Bezerra não tem amor, né?”
Ao entrarmos no mérito das relações amorosas de Bezerra da Silva, percebemos
que a infelicidade nesse aspecto tornou-se algo bastante freqüente em sua vida, deslocando-se
para suas canções, onde o amor era visto de maneira pessimista. Esse tipo de posicionamento,
além de reafirmar um traço de sua vida, também corrobora com a visão partilhada por outros
sambistas ao longo da história desse gênero musical. Segundo apontamentos do pesquisador
Felipe Trotta, desde as décadas de 1930 e 1940, “salvo raras exceções, o samba romântico
alcança sua densidade afetiva através do sofrimento, seja ele explícito ou manifestado apenas
pela descrição de uma situação” (2006, p.118).
Para salientar brevemente essa questão na obra de Bezerra da Silva, dentre todos
os discos gravados, preferimos fazer referência ao álbum “A gíria é a cultura do povo” 32,
gravado em 2002, pois, das quatorze faixas que contém, nove são destinadas aos problemas
de relacionamento com a figura feminina. Nas canções “Toda noite sonho”, “Madalena” e
“Eu senti”, esta retratada de maneira melancólica, através de um lamento por um amor que
não pôde se concretizar e da lembrança dos momentos de felicidade que repousam no
passado. Todavia, em algumas dessas composições é utilizada a divisão binária das estrofes
para alternar o reclame do amor perdido com situações ligadas à prática do samba. Desta
maneira, Bezerra sugestiona que, tanto na vida quanto na obra, a felicidade perdida no campo
das relações afetivas é alcançada com a música.
No mesmo álbum citado existem também canções em que a visão negativa é
representada de outra maneira, pois a decepção amorosa deixa de ser melancólica para ser
alívio, já que representa o afastamento daquela mulher que não soube dar valor ao amor
31 Em depoimento sobre a morte de Bezerra da Silva, o compositor Genaro da Bahia brinca com esse período da
vida do amigo, com quem chegou a gravar alguns discos, dizendo que ele era melhor pintor de parede do que
cantor. Para se explicar ele finaliza: “Isso não é ofensa. Nós pintamos muita casa de madame antes de
comerçarmos a cantar, e ele sempre deixava as paredes lindas” (Rio dá adeus a Bezerra da Silva, Folha de São
Paulo, São Paulo, 19 jan. 2005).
32 Bezerra da Silva, A gíria é a cultura do povo, Atração, 2004.
65
recebido e, por isso, merece abandono e rejeição do parceiro. Entre elas, destacamos “Já matei
os meus desejos” 33, em que Bezerra proclama “Cansei-me dos teus beijos/ já matei os meus
desejos/ Agora querendo embora, vai/ Bonitona do papai/ Eu estou sozinho agora/ para mim
será vitória/ deixei de ser o sofredor/ (...) Hoje o convencido sou eu/ direi com orgulho/ não
quero mais o teu amor ”.
Entre as decepções representadas e vividas, uma infidelidade amorosa que é
registrada na canção “Vizinha faladeira” 34 pode ser também comprovada como verdadeira
para o cantor, pois ela foi revelada em algumas entrevistas que Bezerra cedeu à Letícia
Vianna que tratavam sobre o famigerado e cômico “caso do pijama”. No samba, a introdução
é acompanhada pelo diálogo, que revela:
- Ô cumade, sabe da nova?
- O quê que houve?
- O Bezerra (...) saiu cedo pra obra e já tem ‘uns e outros’ lá dentro com o pijama
que ele nem usou.
- Ave Maria!
No caso em questão, Bezerra revela para Vianna que pegou o tal “uns e outros”
com sua mulher e que este vestia um pijama que o cantor havia comprado pra estrear no fim
de semana. Ele acrescenta que os vizinhos que assistiram ao flagra pensaram que haveria uma
briga em decorrência da traição, mas Bezerra (demonstrando uma enorme displicência com a
situação) apenas acendeu um cigarro e falou para o sujeito que ele poderia levar a mulher
embora porque ela não valia nada, mas que deveria deixar o pijama que era dele. Dessa
maneira, além de provocar o riso com seu comportamento irônico, Bezerra evoca, como em
vários dos seus sambas, os descaminhos que a vida amorosa sempre teria a oferecer 35.
Uma das poucas manifestações em que o amor é mostrado de maneira positiva se
dá em relação à figura materna. . Em “Segundo Nazareno” 36, Bezerra da Silva confessa que
33 Bezerra da Silva, A gíria é cultura do povo, Atração, 2002.
34 _____________, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982.
35 Na reportagem “A voz do morro”, de 28 de julho de 1989, Bezerra da Silva também justifica sua descrença
com relação ao amor por causa do interesse material de muitas mulheres. Fazendo um paralelo de sua vida antes
e depois do sucesso como artista, ele analisa: “Antes que eu vendesse disco, as mulheres nem me olhavam.
Agora me chamam de lindo. Quem faz isso ou está desgostosa da vida, é cega ou está afim dos 10% (...) Amor é
grupo, coisa de otário” (A voz do morro, IstoÉ Senhor, São Paulo, 28 jul. 1989).
36 Bezerra da Silva, Cocada boa, BMG-Ariola, 1993.
66
“Verdadeiro amor/ que se tem na vida/ só existe um/ é o da nossa mãe querida/ Mãe é um
grande tesouro/ cheio de sublimação/ É o segundo Nazareno/ na história do perdão/ Uma mãe
é sempre mãe/ na alegria e na dor/ Ela ama o seu filho/ seja lá ele o que for”. Essa
possibilidade de amor, que se dá de maneira incondicional 37, se coloca em perfeita
contraposição a do pai – que o renegou logo antes de nascer – e a das mulheres que o traíram.
No que diz respeito a possibilidade de Bezerra explorar a temática romântica, o
compositor 1000tinho, em entrevista ao documentário “Onde a coruja dorme” 38, confessa que
a “linha do Bezerra é a linha mais difícil. Eu tenho uma porrada de música aí dentro. Música
de amor eu gravo com qualquer um. Mas pra gravar com o Bezerra não tem amor, né?”. No
mesmo documentário, Bezerra aparece logo em seguida justificando que não pode cantar o
amor quando nunca o teve e conclui: “Eu sou realista, canto a realidade.”
Bezerra foi casado duas vezes. O primeiro casamento durou vinte e dois anos e
terminou porque o sambista enfrentou muitos problemas decorrentes do vício do álcool que o
impeliram a se separar. No final da década de 1980, quando já tinha uma carreira artística
consolidada, ele decidiu se juntar com Regina, que se separou de um compositor para viver ao
seu lado. Foi só ao lado dessa mulher que as decepções amorosas de Bezerra pareceram ter
sido superadas, pois a relação com Regina Bezerra da Silva, que durou até sua morte, foi
marcada por uma satisfação que, inclusive, ganhou versos na canção “Tantos anos se
passaram” 39, gravada quando o casal parecia comemorar uma década de união 40. A música
começa assim:
Essa é pra minha musa inspiradora, Regina do Bezerra, primeira dama do samba.
Mulher da melhor qualidade. É isso aí, malandragem. Se liga! (...) Tantos anos se
passaram/ Eu não gostei de ninguém/ Os meus sonhos fracassaram/ Porque não
encontrava outro alguém/ Foram tantas as conquistas/ Eu até perdi a lista/ Meu
37 Curiosamente, essa mesma canção aparece como sendo de Bezerra da Silva no LP “A braza do Norte”, de
1967, do cantor e ritmista Jackson do Pandeiro. Contudo, é registrada com o nome de “Verdadeiro Amor” e
conta com algumas modificações na letra e no próprio conjunto de arranjos musicais. Na biografia “Jackson do
do Pandeiro, o rei do ritmo”, Fernando Moura e Antônio Vicente apontam que essa era uma das poucas canções
que faziam o seu biografado ir às lágrimas (2001, p. 253).
38 Onde a coruja dorme, Márcia Derraik e Simplício Neto, Antenna & TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil, 2006.
39 Bezerra da Silva, Provando e comprovando a sua versatilidade, Universal, 1998.
40 Contraditoriamente, na mesma época em que gravou essa canção, em entrevista cedida para Paulo Vieira, da
Folha de São Paulo, Bezerra da Silva faz a seguinte declaração: “Criticaram uma música minha, `As favelas que
não exaltei, dizendo que era repetitiva. Mas criticam quem canta o amor? É o tema que mais repetem. Eu não
canto mentira. (...) Eu te amo? Favela é sufoco, fome, miséria. Não queira saber como é a vida do favelado”
(Não sei, não vi, não conheço, Folha de São Paulo, São Paulo, 04 set. 1998.).
67
coração não aceitava ninguém, ninguém, ninguém (...)/ Já voltou, minha querida?/ A
razão da minha vida/ Sou feliz, vivo bem/ Agora reina alegria/ em meu coração/ Não
sofrerei e nem terei mais nostalgia/ nem desilusão/ Reina alegria em meu lar/ pois o
destino assim quis/ Não tenho que reclamar, que reclamar/ sou feliz
A presença de Regina na vida de Bezerra parece estabelecer, de alguma forma, a
tentativa de profissionalização da carreira do sambista, pois sua presença e apoio são
destacados em várias matérias sobre o sambista. Em “Bezerra da Silva lança novo álbum” 41,
matéria de 29 de outubro de 1993, assinada pelo jornalista Enor Paiano, Regina aparece como
um dos compositores que ajudaram o sambista a finalizar mais um disco. Já em “Poetas do
samba”, escrita para o Jornal do Brasil em 16 de agosto de 2001, ela se mostra interferindo na
produção de um show ao sugerir a exibição do filme “Onde a coruja dorme” antes do início
da apresentação do marido. No ano de 1987, a jornalista Cleusa Maria fala sobre a reunião
que Bezerra da Silva faz semanalmente faz com os amigos compositores, salientando sua
aproximação com as figuras do samba e o cardápio da festa que era preparado pela mulher do
cantor.
Além de apoiar seu marido e conduzi-lo em sua vida artística, a matéria do
jornalista Ricardo de Souza para O Estado de São Paulo 42 evidencia que a participação de
Regina na carreira de Bezerra era muito maior, pois ela também se tornara empresária do
marido após este sofres vários golpes devido aos contratos injustos que assinou. Segundo ela
mesma confessa, “os empresários roubaram muito dinheiro dele (...) Agora leio tudo e
consulto advogados”. A reportagem deixa clara que este controle só não foi tomado
anteriormente porque Bezerra apresentava um comportamento machista, mas este se redime e
sustenta o argumento da esposa ao confessar que seria preso se atirasse em todo mundo que
abusou de sua boa-fé.
2.1.3 “Eu sou favela”
Regina foi, definitivamente, muito importante para a carreira de Bezerra, mas é
preciso que retomemos ao início de sua vida adulta, quando ele passa a vivenciar as
complexas relações sociais que se engendravam no morro e inicia a compreensão sobre este
41 Bezerra da Silva lança novo álbum, O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 out. 1993.
42 Bezerra da Silva volta para enquadrar os manés, O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 ago. 2000.
68
local que será o estandarte de sua produção musical. Bezerra da Silva, mesmo que tenha
enfrentado bandidos e presenciado a marginalização que as autoridades policiais dedicavam
aos moradores do morro, sempre defendeu este local, mostrando-se profundo conhecedor e
porta-voz dos problemas enfrentados na favela.
Em “Respeito às favelas” 43, Bezerra da Silva confessa a construção de sua
identidade neste lugar específico, ao cantar
Eu sou favela/ minha gente eu sou de lá/ Não sinto vergonha/ e nem vejo motivo pra
negar/ Tudo o que sei na vida/ aprendi com ela/ Por isso eu tenho respeito tão
grande/ por todas favelas/ Só quem mora no morro/ é que pode dizer/ O que é
padecer/ e se sentir feliz/ Vivendo e aprendendo/ a regra do bom viver/ Vendo a
nossa semente/ ali criar raiz/ Posso falar de cadeira/ favela é meu berço, minha
adoração/ Será sempre exaltada/ nos versos que faço na minha canção (...)/ Favela!
Sei que você não é tão diferente assim/ Não é esse lugar de gente tão ruim/ Nunca
foi ameaça para sociedade cruel/ Um dia você vai mudar/ em resposta dará sua volta
por cima/ E esse sistema terá que prestar contas às nossas colinas
Apesar de exaltar a favela, o sambista sempre se preocupou em alertar para o
conhecimento dos códigos de conduta deste local que se tornam imprescindíveis na hora de
abrir caminho para a possível vivência no morro. Na canção “A lei do morro”, Bezerra
explica que para ser um “considerado” é preciso aprender que a “lei do morro não é mole
não” 44, mas ele não volta seu alerta apenas para aqueles que desconhecem as regras de
convivência do lugar, pois também se preocupa em destacar que a marginalização do “povo
humilde da colina” é uma questão a ser resolvida.
Bezerra encarava o morro não apenas como local de gente humilde, mas também
como lugar de nascimento e prática do samba. Em “Aqueles morros” 45, ele buscava dar a
mesma origem às diversas favelas do Rio de janeiro destacando que nos primórdios “foi pra lá
o elemento homem/ trazendo batuque, barraco e festinha”. Sua perspectiva era a de que a
musicalidade do samba acabou subindo ao morro e por ali ficou, o que reforça na canção
“Partideiro Indigesto” 46, quando diz que “o morro provou que o partido é maneiro”. Ele ainda
43 Bezerra da Silva, Malandro é malandro e mané é mané, Atração, 2000.
44 _____________, Produto do Morro, RCA Vik, 1983.
45 _____________, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982.
46 Bezerra da Silva, Justiça Social, RCA Victor, 1987.
69
estabelece, em sua obra, vários indícios que fazem tributo ao lugar que, mesmo com as tantas
dificuldades passadas, foi o responsável pela sua reintrodução no universo musical.
Bezerra construiu sua imagem artística pautado na associação entre samba e
morro, reforçando um vínculo que aparece desde as primeiras discussões sobre o tema, ainda
na década de 1930. Cronistas como Vagalume (já citado no capítulo anterior) e Orestes
Barbosa realçam o time dos que fazem essa associação, que pode ser vista no livro “Samba”,
deste jornalista, em que ele afirma categoricamente que toda a emoção causada por esse tipo
de música “veio das montanhas da cidade” (BARBOSA apud FENERICK, 2005, p. 229).
Para Bezerra, essa relação era clara, pois as próprias canções que interpretava eram, em
grande parte, compostas por artistas da Baixada Fluminense, o que fazia dele um porta-voz do
morro.
Este local não era apenas a morada dos compositores com os quais mantinha
vínculo, mas o próprio “Q. G. do samba” 47, como afirma uma canção homônima, que destaca
este como sendo o abrigo de um “punhado de bambas” e, por isso seria “o quartel general do
samba”. Nesta mesma canção, a possível geografia deste estilo musical se expande para uma
região que engloba várias cidades próximas à capital, pois estas também possuem favelas que
se assemelham aos morros do Rio de Janeiro, compartilhando as mesmas situações e
personagens deste lugar. A noção de continuidade dos morros cariocas e semelhança entre as
realidades de cada um deles apontadas por Bezerra 48 também podem ser observadas na fala do
historiador Linderval Augusto Monteiro:
É comum somente vê-la como um conjunto de casebres não ou mal rebocados,
como um dos maiores bolsões de miséria do Brasil (...) [que] entre os anos 1920 e
1980 serviu como um verdadeiro depósito de sobras humanas dentro do processo de
despovoamento do campo e das freqüentes medidas de combate à favelização dos
morros cariocas (2005, p. 488).
Bezerra da Silva viveu por duas décadas no morro do Cantagalo, o que o fez
consolidar a relação de proximidade entre os moradores da favela e as situações descritas com
freqüência nos álbuns de sua extensa discografia. Contudo, antes de ser o local onde
47 Bezerra da Silva, Contra o verdadeiro canalha, RGE, 1995
48 Na matéria “Bezerra vai onde a coruja dorme”, o jornalista Silvio Essinger registra a seguinte definição de
Bezerra da Silva: “Morro, cê tá vendo aqui, é tudo igual. Muda só o nome. A situação é a mesma: pobre,
trabalhador, nêgo duro, desempregado, tá tudo aí.” (JORNAL DO BRASIL, 14 fev. 1999 )
70
reconhece o vínculo apontado, Letícia Vianna nos mostra que o morro foi essencial para
reintegração do sambista ao mundo da música, já que lá ele começou a participar dos pagodes
e tendinhas, tocando tamborim e gastando parte do seu tempo conhecendo pessoas e ouvindo
as canções daquele lugar.
A rede de relacionamentos que estabelece nesses espaços de prática do samba
acaba, no ano de 1950, pode colocar Bezerra em contato com o compositor Alcides
Fernandes, que o convida para exercer a função de instrumentista na Rádio Clube do Brasil. A
oportunidade, que ainda não se traduzia em profissionalização artística, permitiu que ele
tivesse contato com outros instrumentos musicais, mesmo porque o samba não era mais o
ritmo predominante nas ondas de curta, média e longa distância. Na década de 1950, novos
ritmos estrangeiros, como os boleros, os ritmos do caribe, a chanson francesa e, mais tarde, o
rock, estabeleciam uma ampliação na escuta musical da época, estreitando as oportunidades
do samba no período (ZAN, 2001, p. 9 e 10).
Em 1954, Bezerra da Silva perde o emprego na construção civil e a oportunidade
aprimoramento artístico via rádio. Ele ainda tenta se estabelecer em outros serviços, mas não
consegue, passando por uma fase bastante difícil em sua vida em que teve de se submeter a
inúmeras privações. Contudo, vamos entrar nesse mérito mais para frente quando trataremos
do lado mais penoso e escuro da vida do sambista. Por agora, é importante destacar que sua
entrada no meio artístico na “função coadjuvante” de instrumentistas foi determinante na vida
de Bezerra, não apenas pela importância que teve como um marco em sua trajetória, mas
também pelo fato ter sido essencial na formação da sua identidade como artista.
Depois do tempo sombrio mencionado, Bezerra só retorna à cena musical na
segunda metade da década de 1960, quando atua como instrumentista, músico de estúdio e
compositor, conquistando, rapidamente, a oportunidade de ser escalado para tocar nos discos
de sambistas bastante conhecidos, como Clementina de Jesus e Roberto Ribeiro. No ano de
1965 ele compõe a canção “Nunca mais sambo”, que, gravada pela cantora Marlene, vence
um concurso do programa de Manoel Barcelos, na Rádio Nacional (VIANNA, 1999, p. 29).
Nesse momento, a vida de Bezerra parece tomar um rumo melhor e ele passa a conquistar
oportunidades bastante significativas para alguém que, desde a infância, já havia perdido o
contato com a esfera musical em duas ocasiões.
Seguindo a boa maré, Bezerra lança, em 1969, seu primeiro compacto e já no ano
seguinte ele grava o já citado LP Bezerra da Silva, O rei do côco – Volume I. Nessa época, ele
71
decide apostar no nicho da música regional, mas seu disco, devido a problemas ligados à
escassez de petróleo no mercado internacional da época, ficou engavetado por cinco anos,
sendo apresentado para o grande público apenas em 1975. Ele aproveita o embalo desse
lançamento e um ano depois grava Bezerra da Silva, O rei do côco – Volume II. Bezerra
continua progredindo na carreira artística, mas ainda exercia, prioritariamente, a função de
instrumentista.
E é exatamente com essa função que Bezerra, no ano de 1977, trabalhando na
orquestra do Canecão na temporada de shows da cantora Elizeth Cardoso, recebe uma
atraente oferta de trabalho. João Luzes, responsável pela direção musical do show de Elizeth,
o convida para integrar o time de instrumentistas da orquestra da emissora de televisão Rede
Globo. Apesar dos primeiros discos gravados e a visível ampliação dos contatos no meio
artístico da época, a estabilidade oferecida pelas garantias trabalhistas, até então nunca
presentes em sua carreira, acabaram sendo decisivas nessa nova empreitada.
2.1.4 Os “compositores de verdade”
Segundo Letícia Vianna, a oportunidade de emprego na orquesta da Rede Globo
foi respondida com esforços claros de profissionalização artística, pois agora que Bezerra
“vivia de música”, ele se empenhava para aprender os princípios fundamentais da teoria
musical a fim de se tornar um profissional devidamente registrado na Ordem dos Músicos do
Brasil. Bezerra procura ainda ampliar seus conhecimentos musicais e estuda violão clássico
por oito anos, tempo em que domina os instrumentos percussivos comuns às rodas de samba e
também experimenta o cavaquinho. Ainda de acordo com Vianna, à época de sua pesquisa
Bezerra aprendia piano e freqüentava esporadicamente algumas aulas em um conservatório
musical.
Essa expressa necessidade de incrementar seus dotes musicais e dominar diversos
instrumentos aparece como um dado marcante no reconhecimento que o próprio Bezerra tinha
de si como artista. Como evidência de sua versatilidade, destacamos a canção “A
necessidade” 49, em que o cantor Genaro anuncia a chegada do pandeiro, do tamborim e do
agogô. Bezerra da Silva recebe a cuíca e o seu parceiro fecha pronunciando que ganzá, surdo,
49 Bezerra da Silva e Genaro, Partido Alto Nota 10, CID, 1977.
72
cavaco e viola chegam para deixar o ambiente pronto para se executar um pagode. Cantando
samba de partido alto, os dois alternam uma primeira estrofe fixa, onde se repetem os versos:
“A necessidade obrigou/ você a me procurar/ Você era orgulhosa/ mas a necessidade acabou
com a sua prosa/ Você era, orgulhosa/ mas a necessidade acabou com a sua prosa” 50.
Bezerra e Genaro se alternam nas partes faladas que sucedem o refrão, destacando
o improviso que caracteriza esse tipo de samba. No primeiro momento em que Bezerra versa
sozinho, vai logo avisando que "Artisticamente falando Bezerra da Silva tem muito valor/
Toca surdo, toca tamborim, canta partido alto e é compositor". Esse improviso inaugura
também o LP “Partido Alto Nota 10”, o primeiro disco em que Bezerra deixa de lado a
música regional para se dedicar exclusivamente à nova fase de sua carreira, marcada por uma
aproximação estética definitiva com o samba.
Depois de se render a esse gênero, várias das entrevistas que evidenciam a figura
de Bezerra da Silva no cenário musical brasileiro apontam para sua versatilidade e
inteligência, atestadas como qualidades únicas deste sambista, já que em certa medida sua
obra destoava do ambiente improvisado das rodas de samba e sua musicalidade não era
atribuída a um talento nato que marcava a vida de tantos outros artistas. Uma vez questionado
sobre a qualidade musical dos grupos e cantores de outros gêneros musicais que
reverenciavam sua obra, Bezerra disse de maneira bastante clara que “cada um faz o que sabe.
Eu não tenho gênero. Sou clave de sol na segunda linha, clave de fá na quarta”. No decorrer
da matéria 51 a fala do sambista é ratificada quando atestam que, em seu tempo livre, “Bezerra
toca piano e se esmera no estudo de trompete por partitura”.
Em outra ocasião, quando o artista explicava seu interesse pela teoria musical e
pelo aprendizado de outros instrumentos, ele atribuía seu aprimoramento à maneira de se
escapar das dificuldades que enfrentou desde os primeiros anos como trabalhador da
construção civil. “O meu negócio com a música desde o começo foi medo da fome (...)
Percebi que se continuasse na obra, ia ficar igual os outros; era capaz de virar uma escada, um
tijolo, um saco de cimento”, disse ele em entrevista ao crítico musical Tárik de Souza
(JORNAL DO BRASIL, 12 jul. 1991, p.04).
Contudo, Bezerra não enxergava o melhoramento como artista apenas como meio
de sobrevivência, pois, para ele, mesmo as músicas que gravava junto aos compositores da
50 Ibid, ibidem.
51 “Não tenho nada de polêmico”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 ago. 1997. Caderno B.
73
favela necessitavam desse saber. Em depoimento ao já citado documentário “Onde a coruja
dorme”, ele destaca que:
(...) o compositor aqui do morro, ele é analfabeto da vida. Ele é analfabeto musical e
também não tem instrução. Então ele faz uma melodia, uma linha melódica... e
depois ele também não sabe o que que é. Eu já tive essa experiência... é muito
bonito, cheio de acidentes, sustenidos, bemóis e tal... que eu já tirei melodias e
depois toquei no piano lá (...)
Com o intuito de melhor transmitir essa relação entre sua astúcia musical e a
produção do morro, ele encena um possível diálogo com um dos seus compositores:
- Mas tu senta aqui.
(Aí começo a tocar nota Sol lá...)
- E de quem é essa música aqui?
- Isso aí eu não sei não.
(E depois ele vai ouvindo e diz...)
- Eu acho que eu conheço isso aí.
(E digo...)
- Não, isso é seu!
Por meio desse tipo de conversa percebemos de que maneira Bezerra da Silva
utilizava de seus conhecimentos musicais e porque para ele seu aprimoramento era tão válido.
Ele funcionava como um intermediador entre o morro e a gravadora, pois, através de sua
técnica, podia transformar uma música, que, apesar de bela, possuía ainda uma apresentação
rudimentar, em algo que seria definitivamente aprovado para ser uma das faixas de seu álbum.
Todavia, ao contrário de práticas comuns ao mundo do samba – em que os grandes intérpretes
realizavam o processo de mudança e apropriação das canções, Bezerra sempre se preocupou
em reafirmar que seus compositores, apesar de suas limitações, eram os proprietários das
criações artísticas que gravava. E é justamente essa preocupação de conceder crédito as
pessoas certas que nos apresenta a importância do significado dos compositores para Bezerra.
Na canção “O rei da cocada preta” 52, uma das poucas faixas em que ele aparece
como autor em parceria com Décio Carvalho, ele retoma a questão da compra de sambas
como algo que deveria ser combatido por aqueles que possuem o privilégio de criar uma
canção e desabafa:
52 Bezerra da Silva, É esse aí que é o homem, RCA Vik, 1984.
74
Você pode ser a maior fortuna do planeta/ o rei da cocada preta/ o dono do samburá/
Sim, mas não é a mim/ que você vai subornar/ Você não é compositor/ Como é que
você quer gravar? (...) Deus não te deu inspiração/ Essa é a grande realidade/ Fazer
samba é privilégio/ não se aprende em faculdade/ Você diz que compra tudo/ mas a
mim você não corrompe/ Porque talento é um dom/ e não há dinheiro que compre
(...) Quem é você seu desonesto?/ Pra dizer a mim que é pagodeiro?/ Você é
“comprousitor”, intrujão e trambiqueiro/ A verdade só dói no mentiroso/ e por esse
motivo ela não agrada/ Quem está falando sou eu/ partideiro indigesto da pesada.
Percebe-se, então, que a possibilidade de obter lucros com a venda de sambas é,
para Bezerra, uma questão rodeada por tensões 53. Em 1984, numa entrevista para Giovanni
Faria do jornal “O Globo”, ele diz que a venda de sambas era prática bastante comum, mas
que naquele momento parecia experimentar uma visível mudança. Ele ressalta que “tem
muito branco aí que subia a favela para roubar samba de preto. Hoje, estes são mais espertos e
já não são mais enganados” 54. O sambista ainda destaca sua crença na existência de barreiras
que impediam o acesso dos compositores desconhecidos à indústria dos discos.
Em outra entrevista, concedida ao jornalista Ruy Castro 55, Bezerra reforça seu
argumento de que os compositores do morro são excluídos e se coloca como porta-voz deles.
Nesse sentido, ele aponta a existência de artistas do morro que, mesmo tendo o talento
necessário para compor sambas, chegavam nas gravadoras “(...) passavam na porta e não
entravam. Ou então eram roubados pelos cantores”. Contudo, ele se põe como defensor dessa
gente e proclama: “mas isso agora acabou porque eu subo ao morro, conheço todo mundo e
tomo conta”.
Mais uma vez, agora em 1988, essa temática é colocada em evidência por
Bezerra. Na canção “Pobre compositor”, do disco “Violência gera violência” 56 ele coloca em
evidência a fala de um sofrido compositor que pede ajuda aos “cantores brasileiros” para que
gravem suas canções, já que ele não tinha essa oportunidade. Ele destaca que, sem nenhuma
alternativa, a personagem faz uma última oferta aos senhores “comprousitores” musicais,
53 Bezerra da Silva denuncia como o controle sob a arrecadação dos direitos autorais não emprega uma política
condizente ao enorme sucesso que a canção “Malandragem dá um tempo” atingiu com a regravação feita pelo
grupo Barão Vermelho. Enquanto a banda de rock foi prestigiada com a venda de milhares de
discos,“Adelzonilton só recebe uns R$ 3,00 mensais de direitos autorais”. (Poetas do samba, Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 16 ago. 2001.)
54 Bezerra da Silva: o mestre da malandragem, O Globo, Rio de Janeiro, 17 out. 1984.
55 Cuidado, Moreira, o Bezerra não é mole. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 mai. 1985.
56 Bezerra da Silva, Violência gera violência, BMG Ariola, 1988.
75
dizendo que “vende barato” sua bela canção. Para mostrar a outra vertente dessa situação, a
que mais se aproxima de sua obra, Bezerra grava a canção “Compositores de Verdade” 57, em
que demonstra a importância dos compositores em sua carreira. O samba, que foi criado a
partir dos títulos das músicas que interpretou, termina em um agradecimento a todos os
“compositores de verdade” que garantem a “razão do seu sucesso”.
2.1.5 No tempo em que Bezerra “não via nada assado”
Depois de fazermos referência ao seu surgimento como artista e entendermos
como Bezerra alcança posição importante dentro do mercado musical de seu tempo, é preciso
que voltemos ao período obscuro de sua vida em que ele enfrenta grandes dificuldades ao ver
suas oportunidades profissionais tolhidas, tanto no ramo da construção civil quanto nas ondas
das rádios. Este tempo de penúria se passa entre os anos de 1954 e 1961, quando Bezerra
viveu como mendigo, morando nas ruas do Rio de Janeiro e passando por inúmeras privações
que definiriam os piores anos de sua vida. Neste tempo, ele enfrenta humilhações e desafios
próprios aos marginalizados e sente seu cotidiano como uma evidência da ruína a que
chegara.
No momento em que não reconhece nenhuma forma de reverter a situação de
miséria atingida, Bezerra decide atentar contra a própria vida. Segundo contou para Letícia
Vianna, ele arranjou um copo de veneno e foi para o meio da mata bebê-lo, mas, no exato
momento em que iria tomar a substância fatal, ele diz que uma força misteriosa arrancou o
copo de sua mão, impedindo que ele obtivesse o êxito do suicídio. Após essa intervenção,
outras mais aconteceram, como o surgimento da ajuda de uma senhora de nome Paula que,
vez ou outra, lhe dava algo para comer e lavava suas roupas. Foi ela que, após um desabafo de
Bezerra sobre sua condição, entregou-lhe certa importância em dinheiro e lhe deu o endereço
de um terreiro de umbanda localizado em Rocha Miranda (VIANNA, 1999, p. 27).
Ao chegar ao local indicado, Bezerra recebeu de Dona Iracema a revelação sobre
os fatos que acabaram por levá-lo a situação de miséria e desilusão. De acordo com a
médium, que ainda contou vários episódios de sua vida, ele teria sido vítima de dois
despachos realizados por mulheres que ele havia abandonado ou ofendido. Reconhecendo a
57 Bezerra da Silva, Alô malandragem, maloca o flagrante, RCA Vik, 1986.
76
explicação fornecida pela guia espiritual, Bezerra recebeu também a revelação da maneira
pela qual poderia superar a condição em que se encontrava.
Dona Iracema, ao invés de fazer alguma intervenção espiritual ou realizar algum
tipo de encomenda aos orixás – usualmente praticados em terreiros umbandistas – disse ao
pobre que este deveria “vestir de branco”, “desenvolver o espírito” e “fazer caridade” (Ibid,
ibidem, p. 27). Além disso, para realizar as transformações em sua vida era necessário que
Bezerra se voltasse para o desenvolvimento de suas habilidades musicais. Com suas palavras
e o conhecimento fornecido pelas instâncias sobrenaturais, a guia espiritual devolveu a razão
de viver a José Bezerra da Silva, que encontrava a solução para seus problemas em uma
profissão que sempre estivera próxima de suas escolhas pessoais.
Quando já no meio artístico, Bezerra não pôde esquecer desse período de sua vida
e também buscou gravar sambas que cantavam sobre as situações vividas nos terreiros de
umbanda. A importância dessa religião em sua vida pode ser percebida, por exemplo, na
matéria “A ira do homem de boa vontade”, quando a jornalista Cleusa Maria ressalta como,
ao longo de uma semana, o comportamento de Bezerra era orientado pelos santos católicos e
orixás, comportando-se com raiva, justiça, serenidade ou vaidade. Para demonstrar seu
argumento, ela relata que no dia da entrevista, realizada em uma sexta-feira, o cantor “(...)
recebe seu exu Bezerra do Galo. E fica difícil de aturar” 58.
A importância da umbanda em sua vida e também da orientação recebida por
orixás, pais, mães, vovós e vovôs dos terreiros aparece em várias letras que se remetem à
valorização do conhecimento e do senso de justiça trazidos por eles. Na canção “Meu pai é
general de umbanda” 59, Bezerra explica que sua fé permite que ele seja sempre atendido por
seus líderes espirituais chamados “rapaziada de Aruanda”. Em seus versos, o sambista
confessa ter “(...) fé na consciência/ e sempre andei correto/ Por isso sou bem protegido por
Vovó Catarina e Pai Anacleto/ Eles são meus protetores/ e garantem minha paz/ O que eu
quero mais?/ O que quero mais?/ Nada!/ O que eu quero mais?/ O que eu quero mais?”.
Contudo, seus relatos sobre a religião que o salvou não se encontram apenas em
canções em que homenageia as figuras da umbanda, pois ele também faz questão de
denunciar comicamente a ação daqueles que tentam tirar proveito indevido da liderança
58 Jornal do Brasil, São Paulo, 17 jun. 1987.
59 Bezerra da Silva, Justiça Social, RCA Victor, 1987.
77
espiritual. Nesse sentido, temos o samba sobre o “pai véio” 60 que, apressado e interesseiro,
pede, em troca de seus préstimos, “oito quilo de feijão/ dez galinha gorda e bem pelada/ dez
quilo de arroz e macarrão/ e dez latas de doce de marmelada/ dez garrafas de vinho do
bonzão(...)”. Bezerra ainda vai mais longe na denúncia e canta que o pai de santo promete
terras e gados em troca de dinheiro e que “se meu fio não tiver dinheiro vivo/ pode ser cheque
verde ou cheque ouro”.
Em outro caso de corrupção no terreiro, o suposto pai de santo “Zé Fofinho de
Ogum” 61, em troca de muito dinheiro, diz à mulher do delegado que ele a traía. Contudo,
quando o delegado aparece em seu encalço, Bezerra ressalta que “pelo santo ele não foi
avisado/ De repente pintou a caçapa/ Era o Zé frente a frente com o delegado/ O doutor muito
invocado/ gritou:’O coro vai comer!’/ ‘Tira a roupa do malandro’/ ‘e bate até o cavalo
correr’”. Nesse exemplo, a sorte de Zé Fofinho, que devia ser protegido pelos búzios e ter o
corpo fechado pela tatuagem de São Jorge nas costas, não lhe adiantou de nada, e Bezerra
brinca com sua incapacidade de ser um guia abençoado, já que não pôde, simplesmente,
prever o infortúnio que apontava para si mesmo.
Apesar de cantar sobre o interesse material do suposto pai de santo, Bezerra
dispunha de uma relação bem diferente no que tange à orientação espiritual recebida nos
terreiros. A religião que o trouxe de volta para o mundo da música lhe dotava de sabedoria,
proteção e segurança para encarar os desafios e ele não enfrentava relação de exploração com
seus orientadores. O agradecimento contido em suas canções, desdobrava, portanto, de uma
relação espiritual em que valores materiais não eram fins máximos da prática religiosa dos
terreiros 62.
Bezerra revelava ainda o lado sincrético desta prática religiosa, pois também fazia
menção a alguns santos católicos que intervinham em favor dos homens. Em “Alô, São
Pedro” 63, o guardião das portas do céu é chamado para observar de perto as condições de
60 “Pai véio 171”, Bezerra da Silva, Produto do Morro, RCA Vik, 1983.
61 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985.
62 Vale destacar que na grande maioria das canções que falam sobre o ambiente dos terreiros de umbanda,
Bezerra da Silva sempre fez questão de iniciar tais músicas com um solo de tambores que aparecem à frente dos
outros instrumentos e continuam no restante da gravação. Dessa forma, anuncia não só a presença de um novo
tipo de tema a ser explorado na canção, bem como apresenta nesses lugares uma musicalidade diferente. Na
canção “Vovó d’Angola” temos um claro exemplo de como os instrumentos percussivos têm uma função
importante na condução dos rituais que marcam a própria umbanda (Bezerra da Silva, Bezerra da Silva e um
punhado de bambas, RCA Vik, 1982.).
63 Bezerra da Silva, Partideiro da Pesada, BMG Ariola, 1991.
78
miséria nas quais viviam os brasileiros, obrigados a “roubar de noite (...) pra comer de dia”.
Todavia, assim como cantava a corrupção dentro dos terreiros, Bezerra não podia, dentro de
outra faceta religiosa, deixar de denunciar a ausência de princípios morais de alguns padres e
pastores que aparecem em sua obra.
Na canção “Pastor Trambiqueiro” 64, ele destaca a figura de um pastor que
abandonou a macumba por não conseguir vantagens financeiras no terreiro. Com uma letra
que traça a dicotomia entre as duas crenças, Bezerra alerta: “Cuidado com ele/ de terno e
gravata/ bancando o decente/ É o diabo vivo em figura de gente”. O sambista ainda se
preocupa em mostrar que a estratégia do trambiqueiro seria “falar mal da macumba/ dizendo
que a ela também pertenceu” e desmascara o personagem afirmando que este “(...) resolveu
ser crente para roubar os irmãozinhos/ Não é fé que ele tem/ É simplesmente a febre do ouro/
Custa caro a palavra de Deus/ O pastor chega pobre/ e arruma tesouro”.
Além da cobiça material, Bezerra canta ainda a atividade criminosa praticada por
alguns líderes espirituais, demonstrando que, apesar de sua espiritualidade, não perdera seu
senso de justiça. No disco “É esse aí que é o homem” 65, a faixa “Foi o doutor delegado que
disse” fala das lamúrias de uma autoridade policial que não pode prender um “filho de
bacana” e, por isso, decide “sair na captura desse tal de Satanás”. Atestando as dificuldades de
seu ofício, o tal delegado confessa que “o meu livro de ocorrência/ a cada dia está
aumentando/ Eu também prendi um pastor com a Bíblia na mão/ em um supermercado
roubando”.
Como a temática da desconfiança voltada, principalmente, para os líderes de
igrejas neopentecostais se tornou bastante recorrente na obra de Bezerra, a edição de
dezembro de 1995 da Revista Bizz fez uma sabatina com o sambista, em que além de outros
assuntos relacionados à sua carreira, o questionava sobre sua opinião a respeito da Igreja
Universal do Reino de Deus. Em resposta, Bezerra retoma aquilo que já havia levantado em
suas canções e afirma: “Olha, eu sou formado na universidade da vida, ou seja, sou difícil de
ser enganado. Para mim é tudo bandido! Aliás, todo lugar onde entra grana não é boa coisa.” 66
Todavia, uma das canções mais ousadas que gravou, “Canudo de Ouro”, diz
respeito a um padre que anunciava a venda de entorpecentes na missa, rogando em latim uma
64 Ibid, ibidem.
65 Bezerra da Silva, RCA Vik, 1984.
66 Revista Bizz, São Paulo, dez. 1995, p. 63.
79
cômica e estranha mensagem que “fazia milagre” para aqueles que sabiam da ação ilícita do
vigário. Na canção, Bezerra conta que após ser denunciado por “um dedo de seta”, o padre foi
“grampeado” pelos Federais, que o pegaram “vendendo bagulho na casa de Deus”. Mas este
contou com o auxílio de um advogado “que o direito penal muito entende/ fez uma petição
clamando ao juiz:/ ‘Doutor, perdoa que ele não sabe o que vende.””
Apesar da recorrente temática religiosa em sua obra, percebemos que Bezerra não
pretendia ir de encontro a nenhum tipo de crença, pois buscava apenas desmascarar injustiças
ligadas aos líderes das comunidades religiosas – quaisquer que fossem – quando estes usavam
de suas posições privilegiadas para obter vantagens para si. No que tange à sua relação com a
umbanda, vemos a importância desta para a formação da imagem de Bezerra como um
sambista que canta as situações vividas nas favelas e nos morros que se confundem com sua
própria história de vida. Nesse sentido, explicaremos mais adiante como essa religião
influenciou Bezerra a dedicar para si e para sua carreira a exploração de um importante
personagem: o malandro cantor de sambas.
2.2 “O POBRE INTELIGENTE”: DISCUSSÃO SOBRE O MALANDRO
A associação entre o samba e a figura do malandro não é nada recente, pois desde
as primeiras gravações deste gênero, no início do século XX, é possível perceber a referência
a este notório personagem do morro. Segundo Jorge Caldeira, no primeiro momento em que o
malandro aparece no samba, este assume o
deslocamento fleumático em meio a ameaças permanentes de exclusão, o que lhe
permitia identificar-se com todos e nenhum. Quando visto da ótica da aristocracia
dominante, aparece como um narrador que possui o caráter de autenticidade do
povo, cujo ponto positivo é a expressão da vida feliz dos dominados; carrega, por
outro lado, uma condenação, quando deixa de ser autêntico ou se revolta. Do outro
ponto de vista, o dos dominados, o narrador malandro aparece como a encarnação de
alguém que ascendeu, levando uma vida de folga e prazeres (2007, p. 85- 86).
A partir do exposto, Caldeira também enxerga, tendo como referência específica a
idéia de que o malandro aparece na época em que começa a vigorar a relação entre patrões e
empregados no Brasil pós-escravidão, uma outra função para esse personagem que,
80
assumindo conotação ambígüa, dialoga com os dois lados. O jornalista e sociólogo ainda
explica que
para os patrões, o prazeroso discurso do narrador malandro vai ajudar a manter a
idéia de que o trabalhador assalariado no Brasil seria pobre porém feliz. Para os
trabalhadores, o narrador malandro servia como ponto de identificação na denúncia
de um trabalho que não promove gozo, apenas explora e maltrata (2007, p. 86-87).
No entanto, quando observamos, já no final do século XX, a aparição de Bezerra
da Silva como um cantor de samba ligado ao mundo da malandragem, percebemos que os
significados atribuídos a esse personagem já não são mais os mesmos apontados por Caldeira.
A modificação pode ser sentida na tentativa de alguns jornalistas em relacionar a figura de
Bezerra como continuidade da de Moreira da Silva, um outro artista que também cantou
sambas e encarnou a figura do malandro que circulava no espaço urbano carioca.
Nesse sentido, temos a reportagem do jornalista Ruy Castro, em 1985 67, em que
ele tenta colocar Bezerra da Silva em um nicho estético que pertenceu anteriormente à
Moreira da Silva. Para tanto, ele apresenta, logo no título e subtítulo da matéria, a novidade
do novo malandro em relação a seu antecessor: “Cuidado, Moreira, o Bezerra não é mole –
Com um novo disco, o sambista Bezerra da Silva é o maior rival do velho malandro Moreira
da Silva”. No ano seguinte, o mesmo jornal, a Folha de São Paulo, teve a idéia de colocar os
dois artistas lado a lado em uma reportagem que ganhou o título de “O encontro dos reis da
malandragem” 68.
Nessa ocasião, quando perguntados sobre como entendem o tipo de samba que
cantam, Bezerra da Silva faz o seguinte esclarecimento:
Eu cheguei a conclusão que o meu gênero de música não tem nada a ver com o do
Moreira da Silva. O samba de breque que o Moreira canta, até hoje no Brasil é
somente ele que canta. Já tentaram fazer um Moreira por aí, mas não conseguiram.
Eu canto a realidade cotidiana que acontece no morro e na favela, e o Moreira fez o
personagem de um bom malandro. Você vê que na música do Moreira o malandro
só ganha. Ele não vai dar mole, que ele não é otário. (Moreira ri). Já no meu é
diferente. Tem hora que o malandro quebra a cara também. Então, muitas pessoas
confundem e dizem: “você é o sucessor do Moreira da Silva”. Mas quem sou eu prá
67 Folha de São Paulo, São Paulo, 24 mai. 1985.
68 Folha de São Paulo, São Paulo, 08 jun. 1986.
81
ser sucessor de Moreira da Silva? Não que eu não tenha valor, mas se eu não sei
fazer o que ele faz, como é que eu vou ser sucessor dele?
Em 1987, outra matéria jornalística da Folha de São Paulo - “Bezerra da Silva
reinveste no mito da malandragem” 69 – se propõe a compreender melhor a interpretação
narrativa e musical que Bezerra fazia de si. Com um texto que explicava as origens territoriais
do malandro, a idéia que transmitia era a de que o “estereótipo do malandro da Lapa, do
Estácio ou de Vila Isabel” foi o primeiro que se fixou nas letras consagradas pelo samba.
Contudo, na mesma reportagem, temos a seguinte distinção:
a imagem clássica do malandro, um indivíduo escroque que sobrevive à sombra da
lei com trabalhos nunca bem definidos, amante da noite e da música de bar (...) está
anos-luz do maior protótipo da malandragem no samba atual – o pernambucano
Bezerra da Silva, 60. Ao contrário do malandro tradicional, Bezerra da Silva sempre
trabalhou, defende a honestidade, a lei de Deus e é radicalmente contra as drogas –
apesar de cantá-las sempre em seus discos. Ou será que a malandragem de Bezerra
da Silva é fazer crer que não é malandro – o que é sem sê-lo tradicionalmente?
Para tentarmos responder ao questionamento levantado e discutirmos sobre o
sentido da malandragem em Bezerra da Silva, recorremos, mais uma vez, aos vestígios
deixados pelas letras das canções desse sambista. Sendo assim, percebemos que, mesmo que
explicasse o significado do malandro, Bezerra não pretendia negar completamente os
significados anteriores atribuídos a este personagem que marca o próprio universo de
compreensão do samba. Podemos perceber isso na canção “Amigo do sereno” 70, em que
temos o clamor de um malandro que avisa à sua amada Leonor que seu relacionamento não
seria mais possível, pois
sou boêmio/ e vivo pelas madrugadas/ De pileque e cervejadas/ violões e trovador/
Ainda tem dia que nem apareço em casa/ Eu não tenho hora marcada/ nem momento
pra chegar/ Sou partideiro e vivo na remandiola/ Sou amigo do sereno/ e pra chegar
não tenho hora/ Gosto de andar bem arrumado/ Minha roupa bem lavada,/ engomada
e bem passada/ Eu não gosto da comida requentada/ Quero encontrar casa limpa/ e
toda louça lavada/ Eu também não gosto de mulher esculachada.
69 Folha de São Paulo, São Paulo, 22 mai. 1987.
70 Bezerra da Silva, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982.
82
Notamos que este estereótipo lançado por Bezerra se aproxima bastante daquele
amante dos prazeres que aparece nas canções de Moreira da Silva e que foi inicialmente
definido por Noel Rosa como sendo o mítico “rapaz folgado” 71. No entanto, ao contrário desta
figura, que aparece ligada a situações específicas, como à bebida e à boemia, o malandro de
Bezerra aparece deslocado para o morro, seu pretenso lugar de origem, e revela outras
qualidades e características que são colocadas em evidência.
Desta maneira, destacamos a faixa-título “Malandro Rife” 72, do álbum de 1985,
que nos providencia uma explicação sobre quem seria o malandro do nosso sambista. Em um
primeiro momento a canção valoriza a capacidade afetiva deste personagem, evidenciando
como ele é capaz de firmar boas relações com seus próximos. Para tal, ela destaca que “o
malandro de primeira/ sempre foi considerado/ Em qualquer bocada que ele chega/ ele é
muito bem chegado”. Contudo, o malandro é colocado como uma figura que nem sempre
alcança seus objetivos, mas que, honrado “quando tá caído não reclama/ Sofre calado e não
chora/ Não bota culpa em ninguém/e nem joga conversa fora”.
Por esses versos fica evidente que Bezerra suprime a idéia daquele personagem
sempre interessado em suas ambições pessoais. Ao contrário, ele reforça o argumento de que
o malandro seja liderança do morro preocupada em zelar de seus próximos e evitar que
ameacem a tranqüilidade do lugar. Essas e outras características desse novo malandro podem
ser observadas no restante da canção:
Quando o bom malandro é rife,/ comanda bonito a sua transação/ Não faz covardia
com os trabalhadores/ e aqueles mais pobres ele dá leite e pão/ Quando pinta um
safado no seu morro/ Assaltando operário botando pra frente/ Ele mesmo arrepia o
tremendo canalha/ e depois enterra como indigente/ Ele é decente!
Percebemos, então, que a letra de Bezerra promove uma ressignificação da
imagem do malandro, pois este, apesar de continuar vivendo de expedientes não muitos claros
no “comando de sua transação”, não mais se opõe aos trabalhadores que vivem ao seu redor,
mas os protege contra criminosos que querem tirar o que possuem. Entre o trabalhador e o
71Como já citado no capítulo anterior, Noel Rosa, com a canção “Rapaz folgado”, retirava o peso da
bandidagem do malandro para dar-lhe um ar de personagem maleável, sem maldades.
72 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985.
83
bandido, o malandro de Bezerra defende o primeiro e usa de violência contra o criminoso que
tenta tirar daqueles que ganham a vida de maneira honesta.
Outro expediente que marca a figura denotada por Bezerra é sua distinção tanto
no agir quanto no falar, pois ele se comporta de maneira única que atesta sua condição. Na
canção “Papo de malandro” 73, uma estranha introdução anuncia que “Siri esperto arranca
pelanca/ e não cai no puçá/ Ele come a isca por fora/ e de barriga cheia se manda pro mar”.
Mas Bezerra logo esclarece que “isso é papo de malandro/ otário não pode entrar/ Porque tem
língua cumprida/ e bate nos dentes se o bicho pegar/ É fácil enrolar em fieira,/ difícil é fazer o
fio rodar/ Com a malandragem não tem brincadeira/ quem corta madeira tem que carregar”.
Dessa maneira, compreendemos que as gírias seriam a forma de expressão
inerente aos malandros, que sabem com quem dialogar e não se deixam enganar pelos
“otários” que podem falar muito mais do que devem. Uma vez que Bezerra se coloca na
mesma condição de malandragem, ele toma para si o mesmo tipo de distinção e, mais adiante,
na mesma canção, ele canta: “a malandragem e a vivacidade sempre possui/ já comi muita
fruta/ mas o caroço nunca engoli/ É por isso que eu estou sempre no conceito da rapaziada/”.
Através de seu discurso, ele evidencia possuir estratégias de sobrevivência de um malandro e
demonstra pertencer ao grupo que se comunica por meio de uma linguagem específica,
entendida apenas entre eles.
Em “Campo minado” 74, a mesma questão se apresenta no enredo de uma narrativa
que se inicia pelo alerta de que “tem muita gente/ odiando a gente/ seja mais decente/ senão,
de repente, você dança/ E se não falar/ a linguagem certa/ tem homem de alerta/ mesmo não
ventando a roseira balança”. A partir desse trecho é possível perceber que Bezerra também
estabelece a atenção como elemento indispensável ao verdadeiro malandro. Sendo assim, o
samba ainda lista uma série de conselhos: “vai devagar na cerveja/ e no particular vai só se for
chamado/ não entre na porta da frente/ que evidentemente é lugar reservado/ Preste atenção
no que fala/ porque o ambiente exige cuidado/ Haja com muita cautela,/ pisando de leve, que
o campo é minado”.
A preocupação do malandro é explicada pela questão da perseguição das
autoridades policiais que tentam encontrá-lo por meio de ações que exporiam suas atividades
nem sempre lícitas – questão bastante recorrente nas letras de samba. Como exemplo, temos
73 Bezerra da Silva, Malandro é malandro e mané é mané, Atração, 2000.
74 Ibid, ibidem.
84
as canção “Pelo Telefone”, que dentre os mitos que circundam sua composição, tem a
explicação de seus primeiros versos atribuída a uma resolução que proibia a jogatina na
cidade do Rio de Janeiro (CALDEIRA, 2007, p.13-14).
Uma outra perseguição é descrita no samba “Maloca o flagrante” 75, em que a
chegada dos policiais ao morro é anunciada como um momento de tensão para os malandros,
que devem fugir para não serem presos. O que não consegue fugir das autoridades já tem
destino certo, pois “vai ser grampeado/ e depois terá que explicar tudo certo ao doutor
delegado”. Com o intuito de aconselhar a malandragem, Bezerra diz: “não vai dar pra
dividida/ Esconde a muamba e sai batido/ Quando o malandro é de verdade/ na briga não
gosta de sair ferido”.
Mas Bezerra também canta a perda do malandro, quando este é capturado pelos
policiais. Contudo, ele não deixa de dar seus conselhos e avisa o que fazer quando for pego na
música “Prepara o pinote” 76. Confiando na firmeza de caráter do malandro capturado, a letra
reitera que “quando é veneno/ não entrega o ouro na hora do pau/ Aceita o cacete de boca
fechada/ tudo isso em defesa da sua moral/ É aí que a gente vê/ quem é malandro e quem não
é/ É aí que a gente vê/ quem é firmeza e quem não é/ Porque o sangue puro é cadeado
blindado/ Ele não cagueta e nem banca o mané”.
A resistência à violência praticada pelos policiais se mostra como uma forma de
atestar o compromisso com seus convivas e o conseqüente descrédito para com as leis que as
autoridades representam. Sendo assim, o prestígio entre outros malandros se apresenta como
uma moeda de troca de maior valor, por isso a letra cantada por Bezerra ainda fala que
(...) malandro não conta história/ porque se garante quando é detido/ Ele morre
debaixo do pau, amizade/ E não cagueta os amigos/ E também quando sai de cana/ a
moçada faz festa para lhe receber/ Ainda ganha tudo que tem direito/ como
recompensa do seu merecer
Como já destacamos, é possível percebermos, por meio de suas músicas, de que
maneira Bezerra da Silva se integra ao universo dos morros e como ele adquire sua “patente”
de malandro. No caso da situação descrita nos últimos exemplos, em que ele canta o problema
da vigilância e da represália impostas pelas autoridades policiais, notamos que esta também
75 Bezerra da Silva, Alô malandragem, maloca o flagrante, RCA Vik, 1986.
76 Bezerra da Silva, Cocada da boa, BMG-Ariola, 1993.
85
faz parte da biografia de Bezerra e que ele a denuncia em várias de suas entrevistas. Como
exemplo, citamos a reportagem de Maurício Stycer 77 em que este questiona sobre as vezes em
que Bezerra da Silva foi levado para a delegacia. O sambista, remontando os fatos de maneira
bastante cômica, explica:
Fui campeão de averiguações. Naquela época, a polícia queria ver a carteira
profissional assinada. Mas eu trabalhava por conta própria (...) Teve uma vez que
entrei em cana duas vezes num só dia. Outra vez me prenderam para completar a
cota. O cara falou: `Sei que você não deve nada, mas o delegado não vai gostar se a
gente chegar com o carro vazio`. Outra vez, eles pararam o camburão em frente ao
botequim e foram tomar um café. Quando voltaram, eu já tinha sentado lá atrás, sem
ninguém mandar. (...) Mas, nesse dia, eles não me levaram, não. Quando eles me
soltavam, eu perguntava: ‘Vocês vão passar lá, amanhã? Então estou esperando
vocês, lá’.
Além de falar do malandro e dar dicas de sua identificação com este personagem
através do relato de suas próprias experiências, Bezerra também atribui a perseguição dos
policiais a uma outra figura bastante conhecida do morro, o “mané” ou “cagüete”, que, por
não ter os requisitos da malandragem, se alinha ao poder oficial. Sendo assim, o “mané” é
aquele que vai contra os malandros por não possuir as mesmas habilidades de vigiar as
autoridades e ponderar seu comportamento diante delas através de máscaras, artifícios e
improvisos. Em geral, sua chegada ou presença é um indicativo que desestabiliza códigos e
práticas do ambiente dominado pela malandragem.
Um exemplo da presença desta outra personagem pode ser visto na canção – já
citada – “Prepara o pinote”, em que Bezerra estabelece o comportamento do malandro, que
resiste às pressões policiais, e dá dicas do tratamento que o mané deveria receber por sua
delação. Já em “Venenosas serpentes” 78 – na qual faz alusão evidente aos cagüetes –, o
sambista substitui o elogio aos malandros para se focar apenas nas punições merecidas por
aqueles que os traem. Nesse sentido, Bezerra reforça que o delator da malandragem, também
conhecido pela alcunha de “língua de tamanduá/ tem que levar sapeca iá iá/ tem que apanhar
pra deixar de vacilar/ Levar rajada no pé/ tem que ser esculachado/ vestir roupa de mulher/
pra largar de ser safado/ E aprender a não bater com a língua nos dentes/ Fofoqueiro e
caguete/ são venenosas serpentes”.
77 Bezerra, O Estado de São Paulo, São Paulo, 26 jul. 1987.
78 Bezerra da Silva, Cocada da boa, BMG-Ariola, 1993.
86
Ainda outras canções retratam a ambigüidade existente entre o “malandro” e o
“mané”, essas figuras de evidência do morro. Entre elas, destacamos “Na hora da dura” 79, que
nos permite identificar a figura do malandro e do “otário” justamente no momento decisivo
em que são repreendidos e ameaçados pelos policiais. Segundo Bezerra, aquele que cede à
intimidação “abre o cadeado/ e dá de bandeja/ os irmãozinhos pro delegado (...) abre o bico e
sai caguetando/ Eis a diferença, mané/ do otário pro malandro/ Eis a diferença/ do otário pro
malandro”.
A partir da distinção estabelecida, notamos que o malandro de Bezerra não é
aquele que usa de todos os artifícios possíveis para resguardar benefício próprio, mas aquele
cuja proteção e consideração aos “irmãos” está acima do individualismo, em perfeito
contraste à deformidade moral do “mané”. Desta maneira, percebemos que a preocupação de
Bezerra ao mostrar a figura do malandro não é apenas elogiar a personagem que também
encarna, mas demonstrar para a população que termos como “malandro” e “malandragem” se
encontram incompreendidos, já que nada têm a ver com crime ou violência.
De acordo com Bezerra da Silva 80, o tom depreciativo associado ao malandro não
passa de “um jeito da elite chamar o pobre inteligente”. Apesar de entender que a maioria da
população encara de maneira negativa os habitantes do morro e das favelas, ele reforça que a
figura que acreditam ser do malandro não se aplica a eles, pois o “Malandro Moderno” 81 só
“usa bons ternos/ não liga para o azar/ Dólar na Suíça, mansão beira-mar/ Seu nome é
corrupção/ Pra quê trabalhar?”. Verificamos, portanto, através dessa canção (e de outras mais)
e dos depoimentos fornecidos por Bezerra da Silva, que a associação entre malandragem e
corrupção incorpora uma lógica inovadora que admite uma cisão sobre quem seria o malandro
a partir da fala daquele que tenta rodeá-lo de significados.
Nesse sentido, vemos que Bezerra tenta distinguir o malandro dos morros – que
ovaciona em suas canções – daquele que tem predicados condenados pela população, mas
que, pelo “colarinho branco”, circula entre ela sem ser denunciado. Na obra do sambista, o
malandro aparece como sujeito proveniente das classes marginalizadas e, dessa maneira, não
tem como passar ileso às desventuras da vida. Para Bezerra, a condição de malandro como
estratégia de sobrevivência nada tem a ver com aversão ao trabalho ou adoração ao prazer,
79 Bezerra da Silva, Justiça Social, RCA Victor, 1987.
80 A voz do morro, Isto É – Senhor, São Paulo, 28 jun. 1989.
81 Bezerra da Silva, Contra o verdadeiro canalha, RGE, 1995.
87
mas se estabelece como necessidade inerente à sua existência. Assim, não admite a negação
da jornada de trabalho, pois esta não é uma opção, mas um imperativo em sua vida difícil.
Essa condição fica evidente no já mencionado documentário “Onde a coruja
dorme”, que, dividido e orientado por alguns temas que povoam a obra de Bezerra da Silva,
concentra-se em mostrar o expediente de alguns dos compositores que tem seus trabalhos
gravados pelo sambista. Em certa medida, o argumento construído em torno dos participantes
sugere o trabalho como imposição quase que irrefutável a todos eles, mesmo que sejam os
responsáveis por retratar e definir a nova vertente do malandro 82. O próprio Bezerra, que
também não pôde se dar ao luxo de fugir do trabalho, em concordância com a fala dos demais
personagens do vídeo, alega que “o malandro é pessoa inteligente (...) a palavra malandro
quer dizer inteligência” 83.
Desse modo, para Bezerra, a astúcia inerente ao malandro não quer dizer aversão
ao mundo do trabalho ou a busca por caminhos violentos, mas apenas a condição de
inteligência que este possui para driblar os percalços da vida. Assim, este se difere daqueles
que se entregam indiscriminadamente aos caminhos alternativos da criminalidade e da
violência, pois de maneira sinuosa busca um tipo de sobrevivência que passa longe das
demonstrações de poder de bandidos que impõe a si uma posição privilegiada que os coloca
acima de qualquer outro.
E é esta pretensa superioridade que é retratada e reprimida na obra do sambista,
pois este outro inimigo do malandro – o bandido – é despido de seus artifícios para que sua
imagem de homem comum venha à tona por trás da máscara intimidadora que carrega. Em
uma das mais sucedidas canções de Bezerra, “Bicho feroz” 84, ele zomba da figura do bandido
que, sem sua arma, não é tão audaz quanto aparenta. Ao tratar dessa situação, ele canta:
“Você com revolver na mão/ é um bicho feroz, feroz/ Sem ele anda rebolando/ até muda de
voz/ Isso aqui cá pra nós?”.
82 O reconhecimento desse novo malandro também pode ser destacado especialmente em uma das canções da
“Ópera do Malandro”, musical todo realizado com canções de Chico Buarque, no ano de 1979. Na letra de
“Homenagem ao malandro”, a tal homenagem se torna praticamente póstuma, pois, discursando em primeira
pessoa, conta “aquela tal malandragem/ não existe mais./ (...) /O malandro pra valer, não espalha/ aposentou a
navalha/ tem mulher e filho tralha e tal/ Dizem as más línguas/ que ele até trabalha/ Mora lá longe, chacolha/ no
trem da Central ”
83 Onde a coruja dorme, Márcia Derraik e Simplício Neto, Antenna & TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil, 2006.
84 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985.
88
Bezerra ainda continua sua narrativa falando sobre o desconhecido passado do
bandido, que teria convivido na presença de outros que, tendo mais poder e liderança, o
humilham, acorvando-o e afeminando-o. Bezerra expõe sua condição de subalterno, dizendo
que ““lavava a roupa da malandragem/ e dormia no canto da cama”, de maneira a deixar
evidente que um sujeito que finge ter poder sobre os comuns, na verdade se acorvada diante
dos seus por não possuir a superioridade que clama ter. A imagem do “revólver na mão”,
exposta desde o início do samba, evidencia o exercício do poder, mas também os limites deste
quando o bandido perde acesso ao instrumento que assegura precariamente sua condição
marginal dominador.
Contudo, assim como tenta rebaixar os bandidos à condição de covardes, ele
também estende sua postura para os poderosos da polícia e da Justiça, já que, em sua opinião,
estes não tem discernimento capaz de promover a diferença entre os que merecem ser punidos
como criminosos e os que apenas habitam o morro. Sendo assim, em “Meu bom juiz” 85, ele
suplica para que o juiz “não bata este martelo/ nem dê a sentença/ Antes de ouvir/ o que o
meu samba diz/ pois esse homem não é tão ruim/ quanto o senhor pensa”. Ele continua
dizendo que a redenção do condenado só é possível sob a perspectiva do morro, pois lá “ele é
rei, coroado pela gente”.
Através desse ponto de vista, o réu não é bandido, pois oferece alento e proteção
aos membros de sua comunidade, onde é coroado. Nesse sentido, a despeito do que decidido
pelo juiz, Bezerra continua seu samba afirmando que “quando alguém se inclina com vontade/
em prol da comunidade/ jamais será marginal”. Percebemos, então, que a fala do sambista
assume o papel do advogado que sai em defesa do réu por meio de argumentos criados fora
dos limites e exigências dos códigos e leis vigentes.
Todavia, o descrédito que Bezerra tem para com as leis e as autoridades não
significa que ele não tenha admiradores entre eles. Em uma de suas entrevistas 86, ao ser
questionado sobre uma situação curiosa com algum fã, ele relatou:
Outro dia me contrataram para um show em Ribeirão Preto. Cheguei lá, me
prenderam no hotel e de noite me levaram para uma mansão. Fui obrigado a entrar
pela cozinha e ficar escondido. A festa rolou na casa e na hora de cantar parabéns,
um juiz de Direito veio me buscar e me apresentou ao aniversariante, um advogado
85 Bezerra da Silva, Alô malandragem, maloca o flagrante, RCA Vik, 1986.
86 Bezerra da Silva chega à Zona Sul carioca, O Estado de São Paulo, 15 jul. 1996.
89
muito famoso que é meu fã número um. Eu era o presente de aniversário dele. Fiz
um show e foi ótimo, para juízes, promotores e tal. O advogado me apalpava e
perguntava se era eu mesmo. Minha mulher, que estava lá, ficou até com ciúme.
Esse advogado me contou que conseguiu a absolvição de um cliente com uma frase
de uma música minha: ‘O cheiro da coisa jamais é flagrante’.
Porém, apesar de situações como estas, o desentendimento com as autoridades é
bastante explorado em sua obra e nas dos demais sambistas que também fazem a incursão no
mundo da malandragem. Isto porque a vida nada regrada do malandro provoca desconfiança
nos policiais, que são responsáveis por separar os indivíduos que cumprem as leis daqueles
que a ignoram. No samba “Senhor Delegado” 87, do paulista Germano Mathias, essa questão é
retratada quando um malandro se faz passar por um “rapaz honesto” que insiste em buscar
comicamente várias desculpas esfarrapadas para sua falta de documentos, para os trajes bem
acabados e para seu andar macio.
2.2.1 “Não tenho nada de polêmico”
Nas canções de Bezerra da Silva, por sua vez, essa relação de conflito ganha
contornos mais incisivos e apresenta alternativas que possam resolvê-la. A perseguição
policial se mostra ligada ao preconceito contra os moradores do morro e das favelas, o que é
salientado no samba “Vítimas da Sociedade” 88, em que Bezerra avisa: “se vocês estão a fim
de prender o ladrão/ podem voltar pelo mesmo caminho/ O ladrão está escondido lá embaixo/
atrás da gravata e do colarinho”. Este verso, que é repetido diversas vezes ao longo da letra, se
intercala com outros que tentam refletir sobre a incoerência entre ser pobre e ganhar dinheiro
com atividades ilícitas. Sendo assim, explora de que maneira os miseráveis da favela seriam
os responsáveis pelo crime, já que estes não desfrutam dos rendimentos da contravenção.
Na condição de intérprete, Bezerra canta essa mesma temática de acordo com a
nuance destacada por cada um de seus compositores. Desse modo, nos versos de “Preconceito
de cor” 89 a perseguição policial é explicada não apenas pela condição de habitante do morro,
mas também pela questão racial, já que o estigma de marginalização se estende em seu
87 Germano Mathias, O sambista diferente, Polydor, 1957.
88 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985.
89 Bezerra da Silva, Preconceito de cor, RCA Victor, 1987.
90
demérito à categoria de “preto” ou “crioulo”. A canção esclarece mais um desentendimento
com as autoridades, dizendo:
Eu assino embaixo doutor, por minha rapaziada/ Somos crioulos do morro, mas
ninguém roubou nada/ Isso é preconceito de cor, vou provar ao senhor/ Por que é
que o doutor não prende aquele careta?/ Que só faz mutreta e só anda de terno/
Porém o seu nome não vai pro caderno/ Ele anda na rua de pomba rolô/ A lei só é
implacável para nós favelados e protege o golpista/ Ele tinha de ser o primeiro da
lista/ Se liga nessa, doutor!
Contudo, na visão de Bezerra da Silva, o termo crioulo não se limita à distinção
racial, pois pode também se referir a uma condição social. Assim, ele explica que “crioulo não
é só epiderme, não. Crioulo é ser pobre” 90, opinião que ratifica em outra reportagem, quando
explica sobre quem é o crioulo descrito nas canções que gravou. Em “Bezerra da Silva, a
malandragem bem-sucedida” 91, ele explica quem é o crioulo dos seus sambas, desviando-o da
questão racial. Para tanto, ele destaca que o compositor, quando menciona esse personagem
da favela, “não está falando de cor de pele. Está se referindo àquele que morou (ou mora) no
morro, que pode ser branco ou preto. Sendo pobre, vira crioulo do mesmo jeito”.
Na canção “Não é conselho” 92, temos reforçada essa opinião ligada à condição de
marginalização quando, logo na introdução, uma outra voz anuncia: “Olha aí, rapaziada! Isso
não é preconceito, hein?! Pois todo branco pobre também é preto, falou?”. Os versos que a
precedem fazem a diferença entre as situações dos “brancos”, tidos como os que usufruem de
uma condição sócio-econômica melhor, e dos “pretos”, que são vítimas da perseguição
policial e vivenciam uma condição de miséria.
No que diz respeito à questão racial no samba, Luiz Fernando Nascimento Lima
aponta que este “supõe sua associação com valores simbólicos do ‘negro’ ou do ‘ser africano’
(...) ou de uma ligação com a África, com culturas africanas com traços culturais originados
na África ou que remetem à África” (2005, p.6), o que também podemos perceber
manifestado em alguns momentos da discografia de Bezerra. Nesse sentido, “Cipó Caboclo” 93
nos dá a discrição de um escravo que “trabalhava o dia inteiro na fazenda do senhor/ apanha
90 O fenômeno que está fora das FMs, Afinal, São Paulo, 6 ago. 1985.
91 Bezerra da Silva, a malandragem bem-sucedida, Folha da Tarde, São Paulo, 27 mai. 1986.
92 Bezerra da Silva, Presidente Caô Caô, BMG Ariola, 1992.
93 Bezerra da Silva, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982.
91
sem motivo na chibata do feitor/ cada gemido que dava/ desfazia no tambor”. Para enfatizar a
temática levantada, a canção ainda é marcada pela presença da musicalidade do instrumento
percussivo, mas não pressupõe que o samba seja compreendido como algo “vindo da África”
ou “criado somente por negros” 94.
Quando questionado sobre a questão do preconceito, Bezerra da Silva fez questão
de renegar esse tipo de posicionamento ao afirmar que “isso é uma mentira, uma
discriminação boba. Tudo depende da veia poética (...). Essa história de que branco não faz
samba é mentira. E também tem crioulo que não faz samba. Artista nasce em qualquer
lugar” 95. Nesse momento, percebemos que ao mesmo tempo em que Bezerra estimula a
divisão entre “brancos” e “crioulos”, valorizando a perspectiva sobre este, ele impõe limites
que não admitem uma única compreensão sobre esses personagens, principalmente no que diz
respeito à sua relação no mundo da arte.
A maneira como Bezerra desenvolve esta temática (não se preocupando em fixar
fronteiras e fazendo algumas declarações polêmicas) pode ser percebida no samba “O preto e
o branco”, de Zezinho do Valle, Carlinhos Russo e J.Laureano, que só pelo título nos passa
idéia de que a questão racial será retomada. Contudo, apesar de no decorrer da canção a
impressão ainda se sustentar em versos como “tem preto, compadre, que pára num
branco/Tem branco que pára num preto também (...) por isso que o preto se amarra num
branco/E o branco se amarra num preto também”, ela logo se desvanece quando o verso “tem
gente que aperta, tem outro que cheira” nos explica o que seria o tal “preto” e “branco”.
Nesse sentido, percebemos que Bezerra da Silva, ao usar essas palavras nos
reorienta em direção às gírias que recheiam sua obra, remetendo-nos à temática do uso das
drogas, que foi bastante explorada em seus versos e lhe rendeu várias polêmicas. Entre elas, o
fato de Bezerra ser sempre questionado em entrevistas sobre sua relação com o mundo dos
entorpecentes e a presença destes em seu cotidiano, o que poderia levar muitos fãs a
acreditarem que ele fosse o autor das canções que gravou ao longo de sua carreira.
94 Na perspectiva de Letícia Vianna, que também trabalha com esta mesma canção em sua obra, o negro aparece
como intermédio capaz de invocar o tema da escravidão. As punições físicas, o uso de tambores e o jogar
capoeira aparecem juntos em uma canção que aglomera a busca de uma tradição, a relação da mesma com uma
condição racial e a aproximação deste dois com um gênero musical específico (p. 93-94, 1999).
95 Bezerra, Estado de São Paulo, São Paulo, 26 jul. 1987
92
Em entrevista para a Folha de São Paulo 96, Paulo Vieira questionou Bezerra sobre
sua opção em gravar “Garrafada do Norte”, tida como uma canção que pretende defender o
uso da maconha. O sambista, esgueirando-se da pergunta com a malandragem que lhe era
peculiar, evita que o jornalista arranque qualquer declaração mais polêmica e retruca dizendo
que sua relação com um tema se limita simplesmente a “saber se o compositor escreveu
direitinho”.
Dois anos depois, em entrevista para O Estado de São Paulo, Bezerra foi mais
específico e relatou alguns dos embaraços causados pela presença da temática das drogas em
seus discos. Ele primeiro fala sobre “Malandragem dá um tempo” (quem sabe, o samba mais
conhecido de sua carreira), dizendo que “Uma vez me perguntaram se eu não estava
incentivando a juventude a fumar maconha, mas essa letra, se você ler com atenção, vai
perceber que a música diz para não usar (...) O trecho ‘Se segura malandro, pra fazer a cabeça
tem hora’ é um aviso para não fumar”. Além dela, ele destaca ainda “Overdose de Cocada” 97,
que também lhe rendeu alguns incômodos, incluindo a visita de um procurador de Justiça em
sua casa para lhe tomar depoimento sobre a canção gravada.
Todavia, percebemos em outras entrevistas com a mesma temática, que Bezerra
da Silva utiliza de vários argumentos para que sua imagem não se confunda com o conteúdo
de sua obra. Sendo assim, fica evidente que, diferentemente daqueles que se resguardam por
temer que construam uma imagem negativa sobre eles, a isenção de Bezerra se assemelha a
uma outra forma de reafirmar o malandro que aparece retratado em sua obra, o sujeito que é
comedido nas palavras e não se expõe a situações desvantajosas.
Esta postura que assume perante os meios de comunicação possivelmente foi a
responsável pelo taxativo comentário exposto em uma matéria não assinada de 1987 98, que
aconselha o público, entre tantos desvios de declarações bombásticas, a não esperar coerência
da parte de Bezerra. Dessa maneira, fica evidente que o autor anônimo tem dificuldades de
compreender que Bezerra não pretende sustentar uma relação
harmônica entre o que
interpreta, o que é apreendido pelo público e o que é pretendido pelo autor.
No ano de 1987, quando o disco Justiça Social era divulgado, vários jornalistas
fizeram questão de destacar a faixa “São Murungar”, que foi vetada pelos resquícios da
96 “Não sei, não vi não conheço”, Folha de São Paulo, São Paulo, 04 set. 1998.
97 Bezerra da Silva volta para enquadrar os manés, O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 ago. 2000.
98 Bezerra da Silva reinveste no mito da malandragem, Folha de São Paulo, São Paulo, 22 de mai. 1987.
93
Censura. A polêmica girava em torno do título da canção, já que utilizava uma gíria para se
referir à maconha (murungar) 99 e também porque a letra que Bezerra canta chorosamente
pergunta sobre “quem botou maisena no meu pó”, reclama e ameaça “misturou minha `rapa`/
hoje eu não vou cafungar/(...) juro por São Murungar/ esse canalha não perde por esperar”,
fazendo clara alusão ao consumo da cocaína e da maconha, respectivamente.
Na época, em entrevista à revista IstoÉ 100, Bezerra reclamou do alarde levantado
em torno da canção, ressaltando a injustiça das associações, pois, para ele, haviam outras
polêmicas acontecendo no meio artístico que também deveriam ser observadas e tratadas com
rigor. Injuriado ele dispara: “O Caetano pode beijar o Gil na boca na frente da minha filha de
5 anos, mas eu não posso contar que existe maconha e cocaína”. Todavia, se num primeiro
momento Bezerra assume a temática da sua canção, ele logo desvia do assunto e sugere que a
referência da letra “Pode ser pó de café, pó de cimento. O duplo sentido está na cabeça de
quem ouve, dos homens que põem o carimbo.” 101
2.2.2 Bezerra: falando de seu tempo e a sua última malandragem
Contudo, a fama de Bezerra da Silva, que foi bastante coroada por elogios e
enaltecida pela irreverência de sua malandragem, também teve seus momentos de deboche.
Vários jornalistas, ao notarem a temática recorrente em sua obra, questionavam se ele era
cantor de bandidos, argumento reforçado pelos vários shows que Bezerra realizava nas
penitenciárias. A relação entre Bezerra e a bandidagem acabou transformando seu samba em
uma espécie de gênero exclusivo, definido como “sambandido” ou questão, Bezerra diz 102:
“Para mim foi uma grande vantagem. Os bandidos, que nunca têm direito a nada, ganharam
um cantor. Hoje, todos eles gostam de mim”.
Ao lidar com todos os estigmas que povoam sua obra e se estendem a sua figura,
Bezerra não esconde a impertinência que o caracteriza e aproveita os comentários e polêmicas
que levantam sobre ele para revidar em forma de canção. Sendo assim, grava “Partideiro sem
99Ibid, ibidem.
100 Na ginga da malandragem, IstoÉ, São Paulo, 3 de jun. 1987.
101 A ira do homem de boa vontade, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 de jun. 1987.
102 “Não tem nada de polêmico”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de ago.1997.
94
nó na garganta” 103, cujos versos remetem à apreensão da crítica e do público em relação a sua
obra, dizendo:
“Vejam bem, mas eu sou eu/ partideiro indigesto e sem nó na garganta/ e defensor
do samba verdadeiro/ que nasce no morro, fonte de inspiração/ Mas eu sou assim/
sem papa na língua, meu bom camarada/ Não sou caô-caô, nem conversa fiada/ e
também detesto caguetação/ Sei que na minha ausência/ os invejosos demais não
sentem pena, nem dó/ Eles dizem até que eu fumo maconha e ando com a venta
entupida de pó/ O que vem debaixo não me atinge/ o meu sucesso incomoda muita
gente/ está provado que este monstro inveja/ ele é mesmo a arma do incompetente/
Dizem que eu sou malandro, cantor de bandido e até revoltado/ Somente porque
canto a realidade/ de um povo faminto e marginalizado/ Na verdade eu sou um
cronista/ que transmite o dia-a-dia do meu povo sofredor/ Dizem que eu gravo
música de baixo nível/ porque falo a verdade que ninguém falou”
Essa canção representa bem uma outra faceta bastante peculiar da obra de
Bezerra, que é mesclar a evidência de personagens autônomos ou figuras típicas do morro
com o simples exercício de “dizer a verdade”. Desse modo, o samba de Bezerra da Silva,
cercado pelas alegorias do morro, do malandro e da tradição do samba mistura essas temáticas
às denúncias de um sambista que desconhece os nichos tradicionais da música usados para
pensar e discutir as questões sociais e os problemas de natureza política.
Esse aspecto da obra do nosso sambista aparece também em matérias como a do
“Caderno B” do Jornal do Brasil (30 de abril de 1988) 104, que trouxe a resenha não assinada
de algumas canções do disco “Violência gera violência” e aproveitou o espaço do impresso
para rapidamente pensar sobre o significado da obra de Bezerra naquele instante. Para tanto,
destacou justamente as denúncias e críticas que o sambista condensa em formato de música e
concluiu dizendo que “o protesto de Bezerra da Silva ocupa um espaço que já foi dos
compositores do CPC e dos festivais. Faz política popular sem intermediação intelectual, nem
ideologia de limites definidos”.
Percebemos, pela declaração, que não podemos equiparar as canções de Bezerra
às músicas de protesto como se tratassem dos mesmos temas em épocas diferentes. Isto
porque Bezerra realiza suas denúncias sem nenhuma intermediação intelectual ou ideológica,
mesmo que, entre as décadas de 1960 e 1970, já existissem nichos musicais preocupados em
problematizar as questões de cunho social, político e econômico do país. Notamos, nesse
103 Bezerra da Silva, Presidente Caô Caô, BMG Ariola, 1992.
104 Protesto e humor no “sambandido”, Jornal do Brasil, Rio Janeiro, 30 abr. de 1988.
95
momento, que além da crítica às autoridades e às leis, Bezerra também preocupa-se em
destacar alguns episódios específicos que fogem da temática dos morros, o que leva seu
interlocutor a perceber a “cadeia de esclarecimento” que suas críticas percorrem. Através
deste processo, ele destaca outras polêmicas que tomavam conta dos noticiários e também
volta sua atenção para ações do Poder Público, vistas sempre com incerteza e desconfiança.
Seguindo esta outra abordagem, destacamos a canção “Da pesada” 105, de 1985, em
que Bezerra, além de apontar as dores e contratempos porque todos passam, aproveita o
espaço artístico para falar da inflação que pesava sobre o país. Além disso, ele usa a gíria que
nomeia o samba para se referir à frustração política vivida no ano anterior, quando da derrota
do movimento das Diretas. Nesse sentido, ele canta: “Da pesada é pneu de trator,/ beber vinho
em Parati/ É ser pedreiro na Barra/ e morar em Japeri/ É suportar vinte um anos/ uma
Ditadura Militar/ É querer escolher seu presidente/ e não ter o direito de votar”.
Bezerra gravava praticamente um álbum por ano, de modo que continuava a
empreender suas críticas, promovendo um diálogo com as situações de impacto do cenário
político-econômico brasileiro. Com este intuito, ele destaca as ações do governo José Sarney
(1985-1990) na compilação de músicas do disco “Alô malandragem, maloca o flagrante”, de
1986. Em “Rasteira do presidente”, Bezerra combina a situação de miséria do trabalhador –
obrigado a sobreviver com salário mínimo, inflação e impostos – a um (quem sabe)
inesperado elogio à política de regulamentação dos preços empreendida na época, como se a
solução proposta fosse uma “rasteira” que poderia resolver os problemas 106.
Outras questões que abordavam esta preocupação com a política e a economia do
país foram discutidas em vários de seus álbuns, mas damos especial destaque para “Meu
samba é duro na queda”, de 1996, cuja faixa “Seja o que Deus quiser” trata sobre a reforma
agrária. Nesta época, os sem-terra estavam em evidência em decorrência do massacre de
Eldorado dos Carajás, que dominava os noticiários do Brasil e do mundo. Bezerra se apropria
desta temática em seu samba ao recorrer à providência divina para que o problema fosse
resolvido. Para tanto, ele canta:
105 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985.
106 Vale destacar que o título da canção e o conteúdo da letra apresentam uma certa disparidade de sentidos se
observadas isoladamente. Usualmente, o termo “rasteira” é empregado para definir situações em que alguém
engana um terceiro por meio de uma artimanha inesperada. Assim, retomando a constante crítica das canções
gravadas por Bezerra, o título poderia indiciar a denúncia contra algum ato de corrupção do presidente. Contudo,
na letra, a rasteira do presidente é colocada como uma ação em favor do povo, que, segundo a canção, sofre com
os baixos salários e as imposições tributárias.
96
Seja o que Deus quiser/ pro bem do nosso país/ Cada um fala o que quer/ mas
ninguém cumpre o que diz/ É só plantar que dá/ nesse nosso torrão/ Tem solo para
todo mundo nessa imensidão/ E eles matam o sem-terra/ por um pedacinho de chão/
Será.../ que só tem lei no Brasil pra punir meu povão, será?
Na mesma época, em meio a uma crise econômica internacional que deu os
primeiros golpes no Plano Real, Bezerra critica o governo do então presidente Fernando
Henrique Cardoso em duas faixas de seus álbuns “Bezerra da Silva – Provando e
comprovando a sua versatilidade” (1997) e “Eu tô de pé” (1998). No primeiro, a canção
“Coisa bendita” faz um chamado aos “trabalhadores no meu Brasil” para criticar um “cara
cheio de ‘h’, que faz clara referência ao presidente e suas declarações sobre o poder de
compra do salário mínimo da época. Bezerra ironiza a situação, falando que o governante
diz que com esse salário/ ele curte adoidado/ bebe whisky importado/ e faz compra
pra mais de mês/ Tira onda lá no Palace Hotel de Copacabana/ e bacalhau é comida
de pobre, acreditem vocês/ No seu cardápio é faisão dourado/ com vinho francês e
dá uma de artista/ Essa, nem brasileiro acredita (nem eu)/ Essa nem brasileiro
acredita (esse cara...)/ (...) Ele diz que tem casa de praia em Ubatuba e Guarujá/
Altos e baixos no Morumbi e mansão no Juá/ Seu salário no bolso parece milagre,
ele se multiplica/ E a Feira do Boi, lá de Araçatuba, é ele que agita/ Com cento e
vinte reais ele manda e desmanda/ não anda de trem, nem usa marmita/ Essa, nem
brasileiro acredita (nem eu)/ Essa nem brasileira acredita (esse cara...)
No outro álbum, em que destaca os efeitos da mesma crise econômica, as críticas
se mostram ainda mais contundentes ao governante. Um exemplo disso é o samba “Presidente
cara-de-pau” em que Bezerra utiliza o cômico efeito sonoro de uma galinha cacarejando e
dispara: “Quando a galinha criar dente/ e o sol nascer quadrado/ Vamos ter um presidente/ no
seu lugar adequado”. A evocação desse futuro impossível surge no início de uma narrativa
que ainda cobra as benesses do Plano Real, que, com quatro anos de existência, parecia não
ter modificado substancialmente a situação dos assalariados do país. Ao colocar o presidente
como responsável por essa situação, Bezerra prossegue cantando:
Foi assim.../ Foi assim que ele disse/ quem não lembra?/ O real vai ser valorizado/
no Brasil, meu doce amado/ O inocente acreditou/ eu que sou cobra criada/ não fui
no caô-caô/ não fui no caô-caô/ O inocente acreditou/ eu que sou cabeça feita/ não
fui no caô-caô/ Todas as vezes que tem eleição/ no meu Brasil doente/ ele contam a
mesma história/ porém em sentido diferente/ E meu povo com fome/ na beira da
praia, num banco sentado/ Na esperança do mar pegar fogo/ pra ver se come peixe
assado/ E na cara-de-pau, ele diz/ que as coisas vão melhorar/ mas na tremenda
97
miséria, meu povo está/ E esse plano de ‘H’/ engrupiu de novo o povão/ No dia
primeiro de abril/ vai acabar a inflação
Para Vianna, a presença destas denúncias e a abordagem de temas que tiveram
bastante repercussão na mídia fazem com que a obra de Bezerra da Silva tenha um valor
próprio, pois, ao mesmo tempo em que resguarda as tradições do samba e da malandragem,
também se coloca como forma de resistência ao processo de alienação de muitos artistas que
não assumem nenhuma postura crítica. Não por acaso, a autora conclui em seu trabalho
etnográfico que Bezerra era “um artista notável que atesta a possibilidade de uma contramão
para a fortíssima tendência na cultura de massa de desvalorização da velhice, banalização e
despolitização das formas artísticas” (1999, p.156).
Todavia, a conclusão da antropóloga está longe de encerrar a importância desse
sambista que agregou elementos de sua vida na obra que construiu e divulgou a partir da ótica
de vários personagens a quem deu voz. Sendo assim, acreditamos que Bezerra ultrapassa a
definição de crítico, marginal, tradicional, bem humorado, malandro, favelado e sambista,
pois sua singularidade se atestava justamente nas suas ambigüidades e na sua capacidade de
suscitar polêmicas, que o acompanharam até sua morte, em 2005.
Em 2002, uma das contradições mais relevantes de Bezerra da Silva veio à tona
em entrevista concedida ao jornalista Silvio Essinger, do Jornal do Brasil. Na reportagem, a
questão de maior relevância não se pautava na apresentação do novo trabalho do sambista (“A
gíria é cultura do povo”) ou na recuperação de sua carreira, que já estava bastante
consolidada. A polêmica girava em torno da perplexidade de Ulisses, filho de Bezerra, que, ao
chegar dos Estados Unidos viu que “o pai, conhecido no mundo do samba como Bezerra da
Silva, o partideiro da pesada, tinha começado a freqüentar a Igreja Universal do Reino de
Deus, do Bispo Macedo”. Uma vez que a repercussão da notícia não era surpresa apenas na
esfera familiar, o texto realiza a seguinte projeção crítica:
Muito menos deverão entender os fãs do sambista, afinal seu trabalho não deixa
dúvidas do que pensava sobre a religião em geral (...) ele canta sobre o pastor que
fora flagrado com a Bíblia, num supermercado, roubando. Depois, na capa do disco
Eu não sou santo, Bezerra aparecia crucificado, em frente à favela, com as mãos
cheias de armas. Mais tarde, gravou Cuidado com o bicho (de Luizinho Nenen
Chama), que contava a história do bispo que escondia maconha nas sagradas
escrituras.
98
Em meio as especulações levantadas pela notícia bombástica, Bezerra esclarece
ao JB que as canções de cunho religioso não passavam de mera estratégia comercial e que a
responsabilidade pela mensagem transmitida não era dele, mas dos compositores. A partir daí,
o jornalista tenta relacionar os problemas financeiros do cantor com a opção pela conversão
religiosa e destaca, entre as falas da matéria, a do pastor da igreja e de sua mulher que
comemoram a mudança de Bezerra como se a nova religião pudesse acalmar seu
temperamento crítico e desconfiado. Todavia, a entrevista com Bezerra parece mostrar que
seria impossível lhe retirar sua desconfiança e seu olhar atento de malandro, já que estes
predicados não poderiam ser radicalmente abandonados por ele.
O cantor confessa a Silvio Essinger que não entendia o porquê do dízimo cobrado
pela igreja e questionava “‘Se Jesus não precisava de roupa, ia precisar de dinheiro? ’”.
Contudo, ele ressalta a explicação do pastor que lhe disse que “não é o dízimo de Jesus, mas o
dízimo que Jesus mandou dar para a Igreja”, mas ainda não dava indícios de que estivesse
aderindo à prática, pois afirmou não ter condições financeiras suficientes para realizá-la.
Desse modo, ao fim da reportagem, talvez aliviando a expectativa dos fãs que pudessem
temer alguma mudança radical no repertório que o consagrou, Bezerra da Silva garante não
renegar as polêmicas que cantou.
O jornalista, numa última tentativa de abordar a questão da conversão religiosa,
destaca outros personagens do meio artístico, como o cantor Rodolfo (ex-vocalista da banda
Raimundos) e o violinista Baden Powell, que deixaram para trás os versos e as canções que os
haviam consagrado por não retratarem sua nova personalidade. Entretanto, mostra que as
contradições e incertezas que marcaram a vida e a obra de Bezerra ainda estavam claramente
preservadas no novo disco.
Ao tentarmos entender a obra de Bezerra e a maneira pela qual sua biografia se
confunde nas letras das canções que gravou, voltamos o olhar para essa etapa de sua vida sob
um posicionamento bastante otimista. Isto porque acreditamos que, independente da postura
ou religião que adotasse, Bezerra nunca perderia a peculiaridade de seu discernimento e da
sua crítica e não deixaria que lhe impusessem algum tipo de comportamento rígido ou
taxativo. Sendo assim, nos questionamos sobre qual seria o significado da conversão religiosa
que acontece após toda uma vida e carreira cercadas por temáticas marginais que abrangem
favelas, manés, delegados, cagüetes, políticos, mulheres ingratas e clérigos desonestos.
99
Para respondermos a mais uma indagação, evocamos nosso instrumento de
trabalho: a música. Contudo, dessa vez, preferimos explicar as novas opções de Bezerra a
partir de uma canção que sintetiza a última polêmica que antecedeu sua morte. Para tanto,
seguimos a veia bem humorada do sambista e primamos pelo inesperado que acompanha sua
obra ao destacarmos uma produção do álbum “Carnavelhas”, da banda de rock “Velhas
Virgens”.
A sexta faixa do disco de 2004 (que mistura instrumentos do rock com o ritmo
debochado das marchinhas de carnaval) começa com a saudação “Alô Bezerra!”, que o
performático vocalista Paulão usa para fazer menção ao sambista e contar a história de um
malandro que, depois de velho, decide se converter e levar uma vida sob as regras da Igreja.
Essa canção, que poderia ser encarada como uma provocação aos últimos anos da vida de
Bezerra, cabe aqui para nós como uma brincadeira que pode perfeitamente encerrar nossa
apresentação sobre nosso sambista. Desse modo, recorremos, com a irreverência que
aprendemos a admirar ao verso dos roqueiros: “Isso pra mim é aposentadoria de malandro,
isso pra mim é aposentadoria de malandro...”. 107
107 Velhas Virgens, Carnavelhas, MNF, 2004.
100
CAPÍTULO III – TRADIÇÃO E INDÚSTRIA CULTURAL: CONFLITOS E DESAFIOS
Nesta parte final do trabalho, pretendemos promover um último diálogo entre os
temas tratados nos capítulos anteriores. Nesse sentido, buscamos destacar os elementos do
samba e da carreira de Bezerra da Silva em um debate teórico que prima por duas vertentes: a
que discute a idéia de tradição como eixo valorativo da cultura popular e das manifestações
ligadas ao samba; e a que destaca o surgimento da indústria cultural no Brasil. Desta maneira,
pretendemos descobrir como Bezerra, sendo um artista do morro que resgata a tradição do
samba, se insere na indústria cultural brasileira e como esta influencia no significado de sua
obra entre as décadas de 1970 e 1990.
Contudo, para darmos início ao debate, é preciso destacarmos também a própria
voz de Bezerra da Silva, que, nos depoimentos e nas letras de suas canções, também nos fala
sobre sua obra e nos fornece pistas para tentarmos desvendar de que modo suas manifestações
artísticas se encaixam em nossa reflexão teórica. Uma vez que não é possível sabermos ao
certo a maneira pela qual Bezerra pensava a tradição e a indústria cultural, podemos, através
do resgate de sua obra, ter uma idéia de seus referenciais se pensarmos nele como artista que
refletiu sobre a cultura nos instantes em que a vivenciava.
A pertinência em pensar em Bezerra da Silva em meio aos dois conceitos
levantados (tradição e indústria cultural) se dá pela observação da carreira do artista, quando
percebemos que sua visibilidade no cenário musical se dá por meio da interpretação de
sambas – gênero musical de longa data – em uma época em que várias novidades musicais
surgiam no Brasil, ampliando as possibilidades estéticas trabalhadas. Além disso, a
importância desse estudo também se dá pela curiosidade de percebermos que, em plena
década de 1980, a imagem de um sambista malandro conseguia chamar a atenção do grande
público e também dos críticos. Isto porque, no período mencionado, a indústria fonográfica
brasileira colocava em evidência uma gama de novidades que prestigiava os jovens artistas
que viriam a definir um momento singular do rock brasileiro.
Pensando nesse contraste, destacamos que por muito tempo acreditávamos que
tradição e indústria cultural configuravam pólos distintos quando se pretendia pensar sobre
alguma manifestação artística. Desta maneira, víamos esta como incentivadora dos interesses
comerciais (lançamento de novidades mercadológicas e divulgação em massa de artistas que
renderiam lucro certo) e aquela como uma mantenedora de manifestações de longa data,
101
geradas no seio das camadas populares, que visava preservar um conjunto de referenciais
estéticos. Para nós, essas manifestações seriam estanques e não proveriam modos de
interpenetração.
Todavia, a carreira de Bezerra da Silva nos fez pensar diferente, pois seu
surgimento como intérprete de samba lhe proporcionou aparecer em diversas mídias, ter
sucesso junto ao público jovem e vender milhares de discos. Sendo assim, refletimos sobre
uma nova compreensão a respeito das relações existentes entre os elementos que aqui
exploramos. Por meio das opções de sua obra vemos como as tradições evocadas não
conseguem resumir a dimensão dos vários significados de sua obra e seus próprios
questionamentos nos permitem observar como ele reclamava sobre o poder de intervenção
dos órgãos que representavam a indústria cultural, que davam preferência para os grandes
nomes e impunham barreiras para os artistas desconhecidos.
Se por um lado Bezerra era atraente na figura do malandro que cantava partido
alto e morava no morro, sua imagem e suas canções surgiam como uma novidade, uma
atração ainda não observada no crescente mercado musical que se avolumava no Brasil desde
a década de 1970. Apesar de encarnar uma personagem de longa data, o arsenal de
composições alheias que interpretava aparecia como um conjunto de temas que, até então, não
havia sido retratado de maneira tão contundente por um sambista. Desta maneira, Bezerra da
Silva surgia como constante novidade ao abordar as situações do morro e fazer crítica social,
questões que eram assumidas também nas capas de seus discos, em suas declarações aos
jornais e também nas letras que interpretava.
Aparentemente, a obra de Bezerra parece assumir uma antiga demanda, que é a
realização de uma arte popular conjugada às questões políticas e sociais. No entanto, sua obra
se mostra provocadora e atraente, pois as críticas aparecem em um outro nicho musical,
diferente daqueles já consagrados pela denúncia que promoviam. Dessa maneira, Bezerra
consegue se tornar um cantor popular que canta sobre problemas populares, de modo que
representa uma inovação na esfera musical do período em que aparece. Sendo assim, o
destacamos como personagem que driblava os conceitos estanques de tradição e indústria
cultural, representando novidades para ambos os eixos e permitindo que estes pudessem se
interpenetrar. A partir daí, estudaremos como as relações entre esses elementos influenciaram
na compreensão (nossa e de Bezerra) sobre o sambista que retratamos.
102
3.1 A TRADIÇÃO: UM PONTO DE PARTIDA
Na contemplação de alguns estilos musicais, é fácil perceber a manutenção de
algumas características que lhes são próprias. Isto porque são reconhecíveis por suas
constantes e se sustentam por meio da nuance de suas particularidades. Desta maneira, a
busca por padrões envolvendo o uso de determinados instrumentos, a específica afinação dos
mesmos, o tempo da melodia e o tema das canções são importantes itens que circunscrevem
uma manifestação a um conjunto de características singulares. Essa seria a forma pela qual se
articula a nossa relação com a música, pois existiria a proposta de um tipo de vivência capaz
de definir, através da sistematização das experiências sonoras, uma maneira de se “organizar
os sons”.
No entanto, estudos no campo da musicologia revelam que a maneira pela qual se
dá essa observação transcorre de outras relações e experiências, que já vêm sendo observadas
por uma considerável gama de pesquisadores. Para eles, a proposta é tentar contrapor a
maneira pela qual uma determinada cultura classifica os “gêneros musicais” com as diferentes
formas pelas quais ela mesma julga as distinções e destinações dos vários sons produzidos por
seus integrantes – músicos profissionais, sacerdotes, chefes de família e meros partícipes de
eventos que não se julgam como agentes do fazer musical. A simples proposta desse tipo de
pesquisa já reflete a múltipla capacidade interpretativa que se pode extrair das mais variadas
práticas musicais e revela, ainda, a impossibilidade de vê-las de maneira autônoma, como se
fossem parte integrante de um referencial próprio advindo de uma mera combinação de sons.
Percebe-se, portanto, que existe uma capacidade comunicativa inerente à música,
que faz dela um importante item de compreensão da cultura. Contudo, questiona-se como
uma seqüência de sons que, por si, não dizem nada, tem a habilidade de transmitir algum tipo
de conhecimento? Segundo a filósofa Susanne K. Langer,
se a música tem qualquer significação, é semântica, não sintomática. Seu
‘significado’ é evidentemente não o de um estimulo para provocar emoções, não o
de um sinal para anunciá-las; se tem um conteúdo emocional, ela o ‘tem’ no sentido
que a linguagem ‘tem’ seu conteúdo conceitual – simbolicamente. Não é comumente
derivada de afetos nem tencionada para eles; mas cabe dizer, com certas reservas,
que é a respeito deles (2004, p. 217).
103
Para referendar a citação acima e atestar a falta de autonomia que se reconhece no
fazer musical, podemos, ainda, utilizar as palavras do musicólogo Philip Tagg:
(...) é absurdo tratar a música como um sistema de combinações de sons autoreferente porque as mudanças em estilos musicais são historicamente encontradas
em conjunção com (acompanhando, precedendo, seguindo) mudanças na sociedade
e na cultura da qual a música faz parte (TAGG apud TROTTA, 2006, p. 25).
Uma vez que concordamos com as perspectivas lançadas pelos dois estudiosos
citados, concluímos que a música traz consigo todo um conjunto estético preciso ao mesmo
tempo em que carrega uma história sobre como e onde se dão as origens, mudanças e
compreensões de um gênero ou prática musical. Assim, acreditamos que todo fazer musical
esteja imbuído de uma carga histórica que relaciona os símbolos ou questões de uma época
aos sons nela produzidos.
A partir desta conclusão, temos o interesse particular em retomar pontualmente a
trajetória musical de nosso objeto de pesquisa. Para tanto, precisamos verificar os caminhos
percorridos pelo samba até o momento em que Bezerra da Silva surge como artista e também
buscar um conceito historicamente ligado à cultura musical brasileira que nos indique um
caminho viável para estudar e entender a prática musical de nosso sambista.
Nesse sentido, entre tantos outros conceitos que podem servir como meio de
compreensão do nosso objeto, observa-se que uma revisão sobre o conceito de tradição pode
se revelar em uma interessante contribuição. Isto porque é possível notar que a música não
empreende um campo de significados autônomos, mas busca na compreensão de seu passado
a base de sustentação capaz de definir sua importância no interior de uma cultura. Dessa
forma, a tradição se põe como um modo de organizar o passado – utilizado em diversos
momentos da cultura brasileira – e funciona como importante eixo constituinte das formas de
compreender os estilos musicais que a ela se ligam, como o samba.
O estudo da inserção da tradição em nossa cultura será realizado mais adiante,
quando poderemos relacioná-la às questões referentes ao samba. Por agora, tendo em vista a
gama de dados e questões destacadas sobre o samba e Bezerra da Silva, levantamos um
debate sobre o que vem a ser tradição, compreendendo que, em essência, esta se constitui em
um elemento elevado acima do tempo e da discórdia, pois empreende uma resistência ao
fluxo das mudanças ao mesmo tempo em que exclui todo e qualquer artefato estranho à sua
104
própria natureza. Assim, entende-se que, no momento em que busca uma determinada
permanência, ela se coloca para fora do tempo histórico.
Contudo, o fato de “permanecer fora da história” não significa que a tradição deva
ser excluída como resposta ao seu tempo, já que o aspecto tradicional não pode ser colocado
como um dado natural a todas as manifestações artísticas existentes. Assim, deve-se
considerar seriamente as maneiras pelas quais a tradição é evocada, visto que os gestos e
hábitos adotados em um processo de consolidação do tradicional envolvem um olhar
direcionado a certos grupos, idéias e situações passadas que constroem uma lógica própria de
sentidos. E também porque as questões presentes que convocam uma ligação com o passado
são de fundamental importância para a relação interpretativa que concebe uma tradição.
Percebe-se, a partir dessas considerações, as aproximações existentes entre a
busca pela tradição e o estudo da História, já que ambas envolvem um processo de escolhas
obtido pela fala de um ou mais interlocutores interessados em resolver alguns problemas que
surgem no campo imediato da cultura e das idéias. Ao admitir tal justaposição entre o
tradicional e o histórico, percebe-se ainda que a busca pela tradição não se dá pela acolhida
fria e objetiva de dados que se ligam organicamente às manifestações artísticas e aos grupos
sociais, mas se configura em um processo de escolha gerado no seio de falas que não se
repetem integralmente.
No caso do trabalho aqui apresentado é de grande valia limitar um conceito de
tradição que se aproxime do samba e da obra de Bezerra da Silva. Para tal, não é necessário
trabalhar uma extensa historicidade do conceito de tradição, mas buscar o universo de idéias
que o relacionam com o samba e a obra de Bezerra da Silva. Para tal, pretende-se buscar
estudos sobre tradição que se relacionem com aquilo que podemos observar na obra de
Bezerra da Silva e do samba, tendo em vista que estes são evocados como vozes fundamentais
que nos permitam pensar sobre esse conceito de maneira inteirada e pertinente a esses dois
elementos que se movimentar historicamente.
Estudos recentes, como os de Hobsbawm, Certeau e Canclini, apontam a tradição
como um objeto carente de novas abordagens e suas pesquisas atestam a urgência em se
configurar um novo olhar sobre os juízos e características do termo e em avaliar suas
implicações práticas. Na verdade, a preocupação de se desconstruir esse conceito chega ao
ponto sustentar um tipo de inconformismo que o rebaixa à condição de “idéia
empobrecedora”. Isso porque arrisca-se assumir um tipo de perspectiva condenatória que
105
considera, por exemplo, que os estudos folclóricos próximos a esse conceito-chave são
dotados de um valor eminentemente negativo. Despreende-se desse pensamento que as
manifestações tradicionais estariam colocadas no espaço das falsas práticas culturais –
manipuladas por grupos sociais detentores ou interessados em certo tipo de poder – ou no
degredo crítico da construção incapaz de prestigiar os outros elementos de uma cultura, que,
por alguma razão, são deixados para trás.
Desta maneira, o pensamento sobre a tradição se torna uma árdua tarefa que
caminha entre duas penosas perspectivas: a que se liga à idéia de que a tradição se configura
em uma mentira a ser desvendada, e a que a assume como ação arrebatadora suficientemente
viva para eliminar todo e qualquer movimento contrário a ela. Seguindo os debatedores que
irão aqui falar a respeito do tradicional, apontamos uma relação bem mais complicada, situada
no enfrentamento entre estas duas posturas que podem muito bem, entre a rivalidade de suas
perspectivas, criar um radicalismo que nenhum tipo de ajuda oferece para a concepção de
outras considerações.
3.1.1 Michael de Certeau e a bela morte da cultura popular
Um dos grandes nomes que já levantaram o debate sobre tradição, imprimindo um
tom bastante crítico a ela, foi o pensador e historiador Michael de Certeau. Em seu artigo “A
beleza do morto”, pretendeu traçar uma linha de raciocínio que partia da idéia de que o
tradicional se constituiu ao longo de uma rede de relações, interesses e concepções advindos
por meio de uma demanda específica. Com vistas para a preocupação de determinados grupos
sociais em delimitar que tipo de capital simbólico deveria velar os valores culturais
representativos das camadas populares, Certeau traça a origem desse ideário, utilizando a
análise de uma situação estabelecida no contexto da burguesia liberal francesa do século
XVIII.
Ao partir deste recorte específico, o pensador enfatiza algumas peculiaridades do
período. Uma delas diz respeito às intensas transformações vinculadas ao desenvolvimento
das sociedades industriais, já que a vida nas cidades e o individualismo dessa nova e intensa
realidade atestariam as justificativas presentes nos relatos e documentos que discorrem
positivamente sobre a condição do homem ligado à natureza. Segundo o próprio autor, ocorre
uma nova tendência ao “retorno a uma pureza original dos campos, símbolo das virtudes
106
preservadas desde os tempos mais antigos”, o que representa, provavelmente, “uma espécie
de entusiasmo pelo “popular” interessado em demarcar as permanências detectáveis de um
tempo cingido por várias rupturas. (CERTEAU, 2005, p.58).
Outra perspectiva trabalhada, mais tarde, pelo intelectual francês, intrigado pelo
universalismo de um projeto que pensa um grupo social tão extenso e indefinido como
“povo”, é calcada na preocupação de se pensar a respeito da natureza das tradições escolhidas
para se definir o popular. Para tanto, Michael de Certeau trabalha com o sentido político dos
sujeitos envolvidos com projeto de concepção do popular.
Partindo para as discussões já no século XIX, Certeau se utiliza do trabalho do
colecionador francês, Charles Nisard, que atuou como secretário de uma comissão censora da
chamada literatura de “colportage”, já que esta possui uma aparente circularidade entre as
classes populares francesas e também porque, segundo a fala de algumas autoridades da
época, seus escritores costumavam disseminar um tipo de entretenimento favorável à
construção de uma sociedade dividida entre a exploração dos ricos e a penúria dos mais
pobres.
Por meio da análise do trabalho desenvolvido por Nisard, Certeau conclui, de
forma bastante crítica, que a “idealização do ‘popular’ é um tanto mais fácil quando se efetua
sobre a forma do monólogo” (ibidem, p.59). Ainda segundo Nisard, o trabalho de seleção e
censura do sujeito histórico único seria a expressão maior de um processo de definição de um
popular desprovido de capacidade crítica, pois seus componentes são “pessoas facilmente
influenciáveis, como os operários e os homens do campo” (ibidem, p.62). Desta maneira, a
imagem do que vem a ser popular se torna desprovida de autonomia intelectual, subjugando
uma massa como incapaz de participar plenamente das promessas libertárias que deveria lhes
conceder o direito natural de definir livremente quais temas, questões e perspectivas deveriam
integrar sua produção literária ou quaisquer outra de suas manifestações.
Nesta análise oferecida por Certeau, o mesmo povo que inicialmente é elogiado
pelo seu vínculo ao natural, recebe, paralelamente, uma crítica em tons ameaçadores quando a
natureza é reinterpretada como o oposto da civilização, aproximando-se da selvageria
contrária à ordem. Assim, da escolha pelo monólogo à censura e ao exemplo de Charles
Nisard, o pensador mapeia o conjunto de idéias que perpetuaram o popular no âmbito de uma
tradição restritiva.
107
Vê-se que a cultura popular é transformada a ponto de suas contradições serem
equacionadas no lugar onde o poder de revolta do camponês (e dos operários) seja
eficientemente impugnado de seu escopo. Por fim, a bela morte da cultura popular (ou seja, a
fixação de uma tradição) atestada por Certeau, reforça traços onde “o popular está associado
ao natural, ao verdadeiro, ao ingênuo, ao espontâneo, à infância.” (p.63)
O mesmo tipo de impressão que atenta para a exclusão do tradicional vinculado
ao popular pode ser vista na obra Culturas Híbridas de Néstor García Canclini. Uma vez que
concorda significativamente com a perspectiva de Michael de Certeau, ele afirma que “a
comemoração tradicionalista assenta-se freqüentemente sobre o desconhecimento do passado”
(2006, p.168), e, partindo para as visões constitutivas de uma cultura erudita e outra popular,
se preocupa, ainda, em desarraigar noções rígidas sobre esses dois campos da cultura. Para tal,
ele demonstra a interpenetração existente entre eles, fazendo com que as tentativas de
setorização da arte caiam em total descrédito em sua perspectiva.
Ampliando a hipótese do artigo de Certeau, Garcia Canclini sugere, ainda, que a
tutela do Estado liberal sobre o tradicional se mostra perceptível em diferentes contextos
históricos contemporâneos. Segundo ele, a ação preservacionista dos institutos de arte e
cultura se coloca como um fruto da ação presente de projetos nacionalistas configurados em
diferentes partes do mundo. Em certa medida, possuiu maior pujança no continente
americano, local onde a elaboração do moderno ainda convivia com um debate muito inicial
sobre a questão das identidades. Não sendo apenas fruto de uma medida contensora de elites
urbanizadas, também apresentam a contradição de territórios nacionais onde o espaço e a
língua comuns não bastam para definir as especificidades de um povo sentido e imaginado.
Talvez por isso, seria de vital importância especular sobre a tensão vivida em um
mundo de transformações, um mundo que se reconfigura em intervalos de tempo cada vez
mais ágeis do que a própria capacidade de reflexão sobre os mesmos. Em diversas
manifestações artísticas dos séculos XIX e XX vislumbra-se esse desconforto trazido pelas
constantes inovações, fazendo com que o tradicional venha como uma demanda por
permanências que ofereça sustentação frente às novas experiências. Conforme aponta
especificamente o próprio autor:
(...) o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as
contradições contemporâneas. Nessa época em que duvidamos dos benefícios da
modernidade, multiplicaram-se as tentações de retornar a algum passado que
imaginamos mais tolerável. Frente à impotência para enfrentar as desordens sociais,
108
o empobrecimento econômico e os desafios tecnológicos, frente à dificuldade para
entendê-los, a evocação de tempos remotos reinstala na vida contemporânea
arcaísmos que a modernidade havia substituído (ibdem, p.166)
Assim, se a incorporação do tradicional acarreta no desconhecimento do passado,
a percepção do moderno como um incontido elogio às mudanças também pode vir a ser outra
forma de desconhecimento que encobre questões fundamentais que refletem a própria
modernidade em suas mais diferentes vertentes. Conforme salientado por Canclini, as
incertezas de seu tempo seriam peça constitutiva tanto da tradição como da modernidade
(ibdem, pg. 18).
3.1.2 Hobsbawn e Bakhtin: o poder da invenção e a ruptura do diálogo
Ainda no que diz respeito à tradição, é preciso privilegiar, também, a perspectiva
traçada pelo historiador britânico Eric Hobsbawn, segundo a qual é possível realizar uma
clara distinção entre as tradições legitimadas – em um fluxo impensado de ações que se
desenvolvem com o passar de uma longa duração de tempo – e as que se fixam pelas ações
decorrentes da intervenção de grupos focados em um interesse específico. Para Hobsbawn,
elas seriam classificadas com os conceitos de “costumes” e “tradições inventadas”,
respectivamente.
O que o autor entende por tradições legitimadas recebeu, em sua classificação, o
nome de costume pelo fato de que este “não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a
vida não é assim” (1997, p.10). Isto quer dizer que sua manifestação se fundamenta na
compreensão de um passado naturalmente compartilhado, cuja invocação tanto pode
reivindicar algum tipo de permanência ou mudança. Para Hobsbawn, o costume seria tão
orgânico quanto a vida e, por conseqüência, tão sujeito a mudanças e grande propulsor de
experiências múltiplas que reafirmassem a sujeição do homem ao tempo. Desta forma, o
costume recebe um reconhecimento que o coloca sobre uma perspectiva positiva diante da
qual sua legitimidade não pode ser desacreditada como fruto de algum tipo de ação
manipuladora, mas enaltecida, já que suas origens remetem a um tempo impreciso, imemorial.
Já no que diz respeito às tradições inventadas, o autor entende que sua ação
recorre ao passado com o claro objetivo de suplantar o tempo, proporcionando uma relação
com o passado completamente diferente. Isto porque elas trazem consigo um “conjunto de
109
práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas(...) que visam
inculcar certos valores e normas de comportamento por meio da repetição(...) o que implica
em uma continuidade em relação ao passado” (ibidem, p. 9) e seu objetivo maior consiste em
instituir-se enquanto referência ao presente por meio de um repertório particular sobre o
passado. Assim, Hobsbawn entende que o conceito de tradição inventada se origina de
escolhas deliberadas em que outros interesses prévios possam ser levantados por meio de
minuciosa investigação.
Com o intuito de fornecer uma sustentação histórica à sua classificação, o autor
destaca que uma quantidade considerável dessas tradições inventadas podem ser percebidas
durante as revoluções que assumiram a tarefa de derrubar os costumes e instituições do
Antigo Regime. Em favor dessa argumentação, o historiador aponta ainda que
ao colocar-se conscientemente contra a tradição e a favor da inovações radicais, a
ideologia liberal da transformação social, no século passado [século XIX], deixou de
fornecer os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes,
gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradições inventadas (ibidem,
p.16)
Para encerrar o seu entendimento sobre as duas categorias trabalhadas, Hobsbawn
revela seu posicionamento mediante cada uma das experiências culturais por ele elaboradas.
Nesse sentido, no momento em que revela que “a força e a adaptabilidade das tradições
genuínas não devem ser confundidas com a invenção das tradições” (ibidem, p. 16), o
historiador britânico ainda fornece uma espécie de alerta para os pesquisadores ligados à
investigação da cultura, para que eles não se deixem cair no engodo das criações que partem
de “muitas instituições políticas, movimentos ideológicos e grupos (...) sem antecessores”
(ibidem, pg. 15), fazendo uma clara referência ao apartamento existente entre os conceitos por
ele estruturados no que diz respeito à sua relação – sincera ou destorcida – com o passado.
Todavia, é necessário apontar as limitações dessa divisão levantada por
Hobsbawn, uma vez que a descoberta das invenções tradicionalistas exige um esforço
operacional que se limita aos rigores metodológicos do pesquisador interessado pela
genealogia de certas práticas culturais. O intuito não é desacreditar, de maneira alguma, esse
tipo de pesquisa, mas apontar a necessidade de se observar a idéia de obliqüidade presente
nesse tipo de busca criteriosa e de se perceber a movimentação dos costumes e das tradições
presentes em diferentes sociedades. Isto porque, lançados ao campo das práticas culturais e ao
110
conseqüente desenvolvimento de suas ações históricas, costumes e tradições são reinventados
a ponto de não conseguirem mais firmar uma explícita separação na fala dos sujeitos que
dispõem de tais elementos em sua própria cultura.
No que diz respeito às tradições inventadas, mesmo pensando na capacidade de
grupos ou agentes sociais detentores de privilégios e suficientemente fortes para inculcar
determinadas visões de mundo na sociedade, observa-se que não existem bases seguras que
possam afirmar que elas derivam, necessariamente, de ações premeditadas que visam
legitimar interesses ao longo dos contextos históricos que se modificam. Se o projeto
conservador de uma tradição nega ou reinterpreta o som das diferentes vozes presentes no
passado de uma cultura, não poderia escapar dessa mesma possibilidade de transformação.
Para comprovar a viabilidade desta perspectiva, pode-se fazer, aqui, uma breve
referência ao trabalho do pensador russo Mikhail Bakhtin, que lançou esse mesmo problema
em sua obra antes mesmo das teorias que pensam o estado da cultura contemporânea. Bakhtin
é também citado na obra de Hobsbawn pela proximidade de sua obra no se refere a este tema.
O livro “A invenção das tradições”, sendo uma coletânea de artigos inaugurada
pela chancela teórica do organizador, é composto por um conjunto de textos que revelam
instigantes perspectivas. Em toda coleção de textos que exemplificam o problema da
invenção, o conjunto dos temas trabalhados demonstra a recorrência de um quadro mais geral
em que cada objeto analisado advém da presença fundamental de uma classe detentora de
poderes capaz de viabilizar uma nova tradição inventada. Assim, mesmo quando tal operação
sob o passado não se origina de grupos dotados de algum poder, a influência deles aparece
enquanto dispositivo essencial para a sua perpetuação.
Desta forma, existe uma chance de reavaliar o poderio das tradições inventadas
em relação aos grupos a serem por elas atingidos. Não se pode afirmar que todo e qualquer
tipo de tradição tenha como intuito frisar um ideal de segregação sócio-econômica legitimado
por meio de festividades, vestimentas ou feriados institucionalizados pelos que detêm ou
procuram conservar o poder. Existe a possibilidade de a própria comunhão interna de um
grupo justificar a busca de seus partícipes por novas e diferentes formas de reafirmação
identitária.
A hipótese mais presente na obra de Hobsbawn, como já levantado, se refere ao
poder das classes mais abastadas em ditar as tradições a serem recepcionadas pelas demais
camadas da população. Contudo, é possível obter outra análise, para fora da lógica da
111
dominação, ao levar em consideração as distinções culturais elaboradas enquanto um
prolongamento das diferenças que se articulam nos domínios políticos e econômicos de uma
sociedade. Para tanto, deve-se considerar que a força advinda de pressupostos externos à
cultura podem ser instrumentalizados a ponto de criar uma tradição que possa também ser
contemplada por aqueles que normalmente a estabelecem.
Entretanto, segundo a obra de Bakhtin, esse tipo de situação considerada não se dá
tão facilmente, pois a força de uma tradição repetitiva e legitimadora de um status quo, ao se
dirigir para o âmbito público, abre outros lugares de compreensão para as “invencionices dos
poderosos”. Isto porque o autor admite a existência conjunto de práticas culturais no interior
de classes dominantes que vêm a reafirmar a sua situação de poder.
Para chegar a esse posicionamento, principalmente no que se refere às práticas
culturais, Bahktin partiu da obra do renascentista francês François Rabelais – Gargântua e
Pantagruel –, construindo, inicialmente, uma averiguação crítica sobre os elementos desta
narrativa, para só então estabelecer uma nova categoria de análise. Para tanto, o pensador
russo refletiu sobre as descrições, alegorias e situações descritas e chegou à concepção de
mundo carnavalizado.
O conceito de “carnavalização” por ele elaborado superou a classificação
encerrada por Rabelais e se fixou no pensamento da cultura, principalmente no que se refere a
pressupostos de cisão entre mundos que se diferem não apenas por seus papéis sociais e
econômicos, mas também pela elaboração de práticas culturais que reafirmam essa separação.
Para corroborar com os ideais acerca do conceito elaborado, Bakhtin ressalta o contexto da
Idade Média, quando vislumbra nas festas oficiais um conjunto de valores que
(...) apenas contribuíram para consagrar, sancionar o regime em vigor, para fortificálo. O elo com o tempo tornava-se puramente formal, as sucessões e crises ficavam
totalmente relegadas ao passado. Na prática a festa oficial olhava apenas para trás,
para o passado que servia para consagrar a ordem social presente (...) tendia a
consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o
mundo: hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes
(...) [representava] o triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que
assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória (BAKHTIN,
2002, p.8).
Por meio desta visão defendida pelo pensador russo, pode-se fazer uma nítida
ligação com a obra de Hobsbawn e com as questões por ele levantadas no que concerne à
reflexão sobre as tradições inventadas e também às críticas feitas a outros teóricos. No
112
entanto, a obra de Bakhtin vai além da proposta básica contida no pensamento de ambos,
porque enxerga nas ações do mundo oficial, controlado por seus vigentes, um primeiro passo
a ser estabelecido para se compreender a totalidade de uma sociedade que não se encerra na
fala daqueles que detêm algum tipo de supremacia.
Para o russo, há uma viva contrapartida que se elabora no seio das camadas que
são submetidas a essa perspectiva de tempo e história, de forma que elas demonstram sua
autonomia em responder às concepções oferecidas pelas classes dominantes. Contudo, as
possibilidades de resposta dos menos favorecidos, segundo o autor, não se encerram em um
antagonismo raso que pressupõe, invariavelmente, que a autonomia vinda “de baixo para
cima” se limite a dizer não a todo e qualquer valor que vier dos dominantes. Na verdade,
Bakhtin atenta para existência de um diálogo entre essas camadas que implica numa ação de
grande profundidade, sobre a qual a instituição de um processo de comunicação entre elas
exige um olhar mais atento àquilo que é dito na partilha de uma mesma cultura.
Nesse sentido, quando se leva em consideração as particularidades do objeto
analisado pelo autor – a cultura popular medieval e renascentista – pode-se observar a
presença desse elemento dialógico apontado na fala oriunda das camadas populares, que,
segundo Bakhtin, “destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação
incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana,
que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades” (ibidem, p.43).
Dessa forma, percebe-se que a tradição legitimadora de uma visão unívoca se torna
insustentável no âmbito de uma cultura popular que, por meio de diferentes manifestações,
aponta de que maneira ela mesma se relaciona com a “cultura oficial”, fornecendo uma
resposta que, no mínimo, foge da pretensa e mera reprodução.
O autor russo, “responde”, assim, às tradições inventadas, colocando a perspectiva
de um diálogo existente entre os variados campos da cultura postos em separado. Ao contrário
de Hobsbawn, que enxerga no costume – e não na tradição inventada – uma relação mais
intensa com a vida, Bakhtin insere ambos no mesmo tecido de idéias que permeiam a
construção de um diálogo em que invenções, imagens carnavalizadas, costumes e distinções
têm o mesmo poder de “interrogar, escutar, responder [e] concordar” (BAKHTIN apud.
SCHNAIDERMAN, 1996, p.1388). Ele aponta, portanto, para o fato de que as diferenças
entre esses elementos se anulam em favor de uma visão em que não haja preocupações
prévias em apontar a legitimidade dos atos culturais, mas que vislumbre as trajetórias que
tornam o diálogo como um todo passível de uma análise compreensiva.
113
Para que isso seja possível, Bakhtin se vale das bases de pensamento de outra
categoria por ele estabelecida: o dialogismo. Através desse conceito, o pensador propõe que a
visão infinita do indivíduo se constrói por meio de um fluxo de perspectivas em que se
percebe o embate entre o indivíduo e aquilo que está a sua volta. Desta forma, o
conhecimento do sujeito é impensável fora do conhecimento de seu discurso e a sua
diversidade, em contato com suas manifestações, pode elucidá-lo de uma maneira relativa e
inacabada. É no interior desta proposta que admitimos uma nova visão sobre como as
tradições inventadas movimentam-se na fala de diferentes sujeitos.
Isto porque Bakhtin parte para uma visão de que as idéias sobre o mundo se
consolidam no fluxo realizado entre o “eu” e o “nós”, e o “eu” e os “outros”, descartando a
proposição de um sujeito moldado pelas concepções exteriores à sua identidade ou a
compreensão de um indivíduo pensante ensimesmado em idéias originais. A partir da
concepção bakhtiniana, começamos a estabelecer uma melhor ordenação sobre os diferentes
lugares que a perspectiva de um sujeito se aloca e encontramos uma via sinuosa pela qual
podemos compreender como o conceito de tradição é entendido, de início, no interior do
samba que pretendemos avaliar e, posteriormente, em nas questões percebidas através da obra
de Bezerra da Silva.
Contudo, para empreendermos essa nova compreensão acerca da idéia de tradição,
precisamos ser cautelosos. Deste modo, não podemos partir de uma discussão conceitual
autônoma sobre este conceito e simplesmente aplicá-lo arbitrariamente ao nosso objeto de
estudo, fazendo com que se coloque acima de certas especificidades do objeto de pesquisa.
Devemos, antes, considerar que, ao falarmos do samba e do “nosso” sambista, estamos
discutindo sobre elementos reconhecidos no interior do cenário musical, marcado por intensas
transformações que remetem aos primeiros passos e ao amadurecimento de uma Indústria
Cultural no Brasil, a ser debatida na etapa seguinte deste capítulo final.
3.2 INDÚSTRIA CULTURAL: O CONCEITO E SUA PROJEÇÃO
3.2.1 Conceituando a Indústria Cultural
114
Apesar do conceito de tradição ser de fundamental importância para nortear as
nossa compreensão sobre o samba e a obra de Bezerra da Silva, é preciso, ainda, considerar o
momento em que este artista surge e produz no cenário musical brasileiro. Para tal,
contaremos com outro conceito: o de indústria cultural, e iniciaremos uma breve reflexão
sobre o que vem a ser essa indústria e como podemos percebê-la no contexto abordado.
Dessa maneira, a discussão sobre o que vem a ser esse conceito é eficaz para
compreensão da situação da arte no tempo em que sua comercialização e divulgação
promovem mudanças significativas no seu comportamento e também para destacar a forma
como ela se articulou no período em que o samba e Bezerra da Silva, posteriormente, surgem
como partes integradas a esse mesmo referencial teórico-contextual.
Para iniciar o entendimento sobre este outro conceito necessário, não se pode
deixar de lado o texto “A indústria cultural”, do teórico alemão Theodor W. Adorno, no qual
ele singulariza a compreensão do conceito uma vez que promove sua radical distinção daquilo
que era compreendido como “cultura de massa”. Tal diferenciação demonstra a possibilidade
de se pensar sobre como a presença de uma indústria cultural implica na reflexão
sistematizada de mudanças que serão percebidas em várias instâncias, que partem do estado
da obra de arte e vão até o comportamento dos indivíduos diante dela.
Adorno aponta, ainda, para o poder transformador da indústria cultural ao
salientar que esta realiza um papel de integrar a arte inferior à superior, que, segundo seu
ponto de vista, estão historicamente separadas entre si. Contudo, qual seria o julgamento
aplicado a esse processo de integração das artes que encurtaria as distâncias entre elas?
Para o teórico, a junção ocorreria por meio de uma nova orientação pela qual as
obras de arte seriam transformadas em mercadorias na medida em que o lucro se tornaria um
pressuposto fundamental para sua produção. Nesse processo, a sempre tão difícil autonomia
do campo artístico passaria a ser completamente inexistente no momento em que fosse
“abolida pela indústria cultural” (1977, p.288).
A partir de então, a liberdade – tão necessária para o reconhecimento e realização
de uma obra artística – passaria a se configurar dentro de um novo sistema, onde a repetição
se transformaria em um dado que extirparia a faceta transgressora da obra. Além disso, o
lucro as colocaria na condição de mercadoria e o público, sabotado pela ilusão de
singularidade e novidade, se tornaria alvo e não mais responsável direto pela avaliação do que
a arte estaria prestes a dizer do (e para) o mundo.
115
Dessa forma, ainda segundo Adorno, a própria indústria cultural tomaria para si o
papel de elaborar os valores a serem divulgados pela arte que controla e tornaria mais amplo o
leque de manifestações que mantêm viva a sua aura de novidade, quase imperceptível para
aqueles que já não têm capacidade de elaborar uma percepção contrária ao que foi instituído.
Nesse sentido, Adorno expõe estratégias que permitem à indústria cultural “fazer referência à
ordem, simplesmente, sem sua determinação concreta e apelar à difusão das normas sem que
estas sejam obrigadas a se justificar concretamente ou diante da consciência”(1977, p.293).
Porém, se existisse ciência de tudo o que é imposto e houvesse manifestações a
esse respeito, haveria alguma possibilidade concreta de quebrar essa ordem? Segundo o
filósofo frankfurtiano, a resposta seria não. Isto porque essa mudança se tornaria impossível,
já que o aprimoramento da própria indústria instala uma falsa realidade e esta, ao longo de sua
permanência, cria um “círculo da manipulação e da necessidade retroativa (...) [onde] a
necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já é recalcada pelo controle da
consciência individual” (1985, p.114).
Dessa maneira, mesmo aqueles que pensam estar em uma posição autônoma e
consciente sobre uma infinidade de bens culturais de menor qualidade estética, nada mais
fazem do que integrar essa situação inverídica. Assim, vê-se que a idéia de singularidade está
previamente mascarada por mecanismos a cada dia melhor planejados pelas agências e
corporações que se preocupam em trabalhar todo o campo de possibilidades que garanta o
sustentáculo da indústria cultural.
Resolvido o questionamento, salienta-se que o teórico acredita, ainda, que a
distinção feita entre os bens culturais indica o grau de desenvolvimento e sistematização da
cultura e se torna arma útil para se cálculo sobre o lucro. Desse modo, as diferentes
qualidades de produção artística – canções, filmes, romances – se tornam referenciais para a
quantificação exata de todo o consumo. De acordo com essa perspectiva, o autor conclui que
As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre
as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu
conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e computação
estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém
escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de
uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais
completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em
conformidade com seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher
a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo (1985, p. 116).
116
Adorno evidencia que a conseqüência direita dessa capacidade de se organizar o
consumo da arte influenciou tanto no acesso às obras quanto na própria natureza da obra
artística, ao promover uma ressignificação da arte a ponto de anular as tensões que davam
sentido às manifestações cuja função era provocar em seu observador um tipo de reflexão
capaz de romper com as estruturas estabelecidas no mundo.
Dessa forma, a capacidade de contraste com o real, anteriormente perceptível nas
manifestações artísticas, se anula na formação de outra percepção em que a arte – submetida
ao predomínio dos efeitos e dos detalhes técnicos – promove agora “a ilusão de que o mundo
exterior é o prolongamento do mundo que se descobre” nela (1985, p. 118).
Seguindo esse raciocínio, a indústria cultural se transforma, finalmente, em um
“idioma” capaz de superar “a distinção própria do conservadorismo cultural entre o estilo
autêntico e o estilo artificial” (1985, p.121). Assim sendo, e tendo o conhecimento de sua
atuação nos mais variados tipos de manifestação artística, destaca-se o interesse particular em
se observar de que maneira essa indústria cultural promoverá transformações no campo
musical.
Nesse sentido, preocupa-se em deslocar sua compreensão para as preocupações
específicas que pensam sobre o processo criativo das peças musicais, fazendo-se necessário
observar o processo que se dá desde a produção das musicas expostas pela indústria cultural
até os desdobramentos que dela decorrem.
No que diz respeito ao meio musical, o exercício de reflexão e observância dos
detalhes que fazem dos sons uma obra inexiste no momento em que o próprio indivíduo se
torna incapaz viabilizar um experiência única com a música que lhe é apresentada, pois é
marcado pela impossibilidade de romper com os parâmetros impostos pela indústria. Adorno
acredita esse comportamento se cristaliza a medida que a música, permeada de padrões de
repetição, molda as expectativas dos ouvintes de maneira que eles se tornam incapazes de
responder positivamente às propostas alheias às produções de padrão industrial.
Nesse ponto, a perspectiva frankfurtiana justifica que a inapetência do ouvinte se
elabora por meio de um processo de regressão da escuta musical e da condução desse
indivíduo a um tipo de comportamento fetichista com relação às peças musicais que lhes são
apresentadas. O primeiro passo que se institui nessa direção busca dar fim à “preponderância
da pessoa sobre a ação coletiva na música [que] proclama a relevância da liberdade subjetiva”
por meio de um processo de sintetização capaz de transformar em verdade um outro processo
117
de experiência para com a música, onde a dimensão do êxtase se aloja na incessante busca por
um padrão musical completamente distinto daquele que tempos antes poderia ser observado
(ADORNO, 1975, p.175).
Desta maneira, as normas próprias à música são embaralhadas em uma nova
feição de modo que os momentos simples e complexos são utilizados de maneira a fornecer
um tipo de prazer não mais obtido por meio da cuidadosa compreensão orgânica que se
constrói ao longo de toda uma peça. Assim, a capacidade de comunicação é totalmente
deixada de lado em função de um prazer transmitido pela música. Este se dá através de uma
falsa tensão em que repetitivos esquemas de organização sonora se alternam de maneira a
chamar a atenção do ouvinte por meio de algo que parece impressioná-lo por ser realizado de
maneira original.
Portanto, por mais que exista um processo criativo por trás de uma peça musical,
ele só é reconhecido quando se mostra capaz de encantar um ouvinte que não consegue
explicitar as leituras que demonstram objetivamente as origens de seu deleite. Logo, nas vezes
em que esse espectador consegue denotar, para si, o significado de uma música, ele busca sua
argumentação fora da própria linguagem musical e se vale, inclusive, da opinião de críticos e
dos meios de comunicação para traduzir uma arte que ele mesmo não consegue compreender.
A relação fetichista se torna tangível nesse exato momento de completo
desvínculo entre a música e o sujeito, já que não se mostra como uma manifestação
proveniente de um estado psicológico particular, mas como uma nova regra cujos
‘valores’ sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades
específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor,
[constituindo] uma evidência (...) do caráter fetichista da mercadoria como aquilo
que é auto-fabricado [e], por sua vez, na qualidade de valor de troca se aliena tanto
do produtor como do consumidor, ou seja, do ‘homem’ (ADORNO, 1975, p. 180).
Contudo, para que “ouvintes e consumidores em geral [exijam] (...) exatamente
aquilo que lhes é imposto incessantemente” por meio de um sistema que torna aprazível as
canções pelo fato de serem “produtos normalizados e irremediavelmente semelhantes entre si
exceto por certas particularidades surpreendentes”, é necessário que a indústria cultural
disponha de condições técnicas e materiais para suportar a gama de tarefas que submetem
coletividades inteiras a um mesmo padrão de comportamento (ADORNO, 1975, p.180).
118
Dessa forma, supõe-se que exista um processo de ordenação minuciosa do que
passa a ser culturalmente absorvido que exige a existência de uma estrutura bem maior e mais
complexa que só pode ser desvendada pela cuidadosa análise do que é exposto pelos meios de
comunicação. Assim, existe a premissa de uma instalação da própria indústria cultural para
que assim possamos falar sobre o que ela oferece.
3.2.2 A Indústria no Brasil: projeções e experiências
Por meio dessa suposição, avançamos em uma nova etapa de reflexão acerca da
indústria cultural, utilizando a historicidade que ela adquire nos diversos contextos em que
aparece. Por conseguinte, faz-se necessário discutir de que maneira sua instalação se deu no
Brasil e em que etapa se apresentava na época em que Bezerra da Silva surge como artista.
Contudo, apesar da conceituação oferecida pelos frankfurtianos ser uma valiosa e
importante referencia, não se pode pensar que a natureza sistemática da indústria deva ser
estendida à historicidade particular que se refere ao reconhecimento de uma “indústria
cultural brasileira”. Logo, dedicamos algumas linhas para falar sobre como e quando essa
indústria se instalou no Brasil e sobre qual feição o cenário cultural brasileiro assume quando
abre suas portas para ela.
Em seu estudo sobre esse assunto, o sociólogo Renato Ortiz organizou uma
trajetória que visava equiparar a instalação da indústria cultural ao processo de consolidação
de mais um setor da economia capitalista do país. Nesse sentido, ele chegou à conclusão de
que
com o crescente desenvolvimento da sociedade industrial se consolidam e se
expandem as empresas, que passam a gerir as suas atividades a partir de uma
estratégia de cálculo que busca maximizar os ganhos a serem atingidos (...) [Da
mesma maneira], a indústria cultural nas sociedades de massa seria o prolongamento
das técnicas utilizadas pela indústria fabril, o que quer dizer que ela seria regida
pelas mesmas normas e objetivos: a venda de produtos. (ORTIZ, 1988, p.55)
Segundo Ortiz, os verbos “desenvolver”, “consolidar”, “expandir” e “gerir” só se
tornam comuns ao cenário sócio-econômico de um país se as iniciativas de indivíduos e
organizações estiverem consoantes às exigências para a formação de uma economia moderna.
119
O autor aponta que a intenção de modernizar as relações econômicas brasileiras recai não
apenas sobre o setor industrial mais amplo, mas também sobre a própria indústria cultural,
evidenciando um claro descompasso na efetuação desse projeto. Para ele, o distanciamento
entre a idéia e prática tem “peso importante no encaminhamento da discussão da cultura entre
nós e, conseqüentemente, na avaliação da amplitude e da influência da própria cultura popular
de massa” (ORTIZ, 1988, p.30).
Para desenvolver esse pensamento, Ortiz utiliza um amplo recorte espaçotemporal de três décadas – de 1940 a 1970 – para estabelecer uma narrativa marcada pela
sucessão de fatos históricos que pretensamente demonstrariam o desencadeamento de uma
sincronia entre o ideal de modernização capitalista-liberal e a concretização desse projeto com
a diversificação do mercado e das atividades industriais. Só depois de percorrer esse caminho,
finalmente trilhado na década de 1970, a indústria cultural brasileira alcançaria os patamares
exigidos pela escola de Frankfurt para sua aplicabilidade desse conceito em nossa cultura.
No entanto, nessa trilha que vai da incipiência à consolidação, seria simples
visualizar o desenvolvimento da indústria tal qual foi preconizado pelos primeiros
pesquisadores desse fenômeno? O próprio Ortiz parece se deparar com o peso desse
questionamento, mas opta por defender a idéia de que a lógica mecanicista presente na
indústria cultural se estende para sua própria consolidação. Sendo assim, ele conclui:
Não estou com isso sugerindo que a história da cultura na periferia deva repetir o
destino que teve nos países centrais (inclusive porque essa história é distinta na
Europa), mas apontar para o fato de que determinadas mudanças estruturais levam
necessariamente a certos fenômenos que me parecem ser internacionais. A
constituição de uma sociedade de consumo nos Estados Unidos dos anos [19]30 tem
traços semelhantes às mudanças que se consolidam no Brasil anos depois (1988, p.
144).
Ortiz se vale de diversos episódios e dados para demonstrar os traços específicos
que singularizam a sistematização da indústria cultural no Brasil. Entre outros pontos, pode-se
destacar como o sociólogo trata distintamente os papéis assumidos pelo Estado em relação à
possibilidade de expansão dos meios de comunicação no país e às noções de integração que
percorreram o Estado Novo (1937-1945), o período democrático-populista (1945-1964) e a
ditadura militar (1964-1985).
Além disso, não se restringe ao campo de explicações político-econômicas,
recorrendo também à fala de vários partícipes desse processo histórico, como os investidores
120
envolvidos no campo das artes, da comunicação e do entretenimento; os diretores artísticos de
grandes corporações e a movimentação estética dos artistas que surgem dentro desse amplo
contexto.
Entretanto, é instigante notar que o parâmetro comparativo utilizado por Ortiz se
volta para o processo de instalação da indústria cultural nos Estados Unidos, o que apenas
reforça a idéia de uma aplicação rígida dos primeiros escritos que pensaram a essa indústria à
luz do contexto freqüentemente utilizado por Adorno. Desta maneira, o rigor utilizado é
melhor percebido quando recorremos às análises que se voltam para o momento de
consolidação da indústria cultural durante a década de 1970. Sua visível capacidade para
atingir o mercado consumidor se destacou nesse período, que passou a enquadrar as bases
conceituais dos pensadores de Frankfurt, não abrindo outras possibilidades de relativização da
indústria cultural brasileira nas décadas seguintes.
Um dos pontos que expressaram essa limitação foi a profissionalização dos
artistas em prol da orientação mercadológica feita pela indústria cultural, incorporando
estratégias e articulações que possibilitassem o enquadramento do ator, músico ou escritor às
normas de reconhecimento ditadas previamente por essa mesma indústria. Uma vez que esta
pôde estabelecer e controlar as instâncias de consagração artística e dispôs da própria
variabilidade atingida pela classe artística, houve a possibilidade de selecionar os que seriam
aplaudidos por sua performance.
Por conseguinte, tornou-se inviável o reconhecimento da arte conquistado por
outras vias contrárias às vigentes, já que “a lógica mercadológica despolitiza a discussão, pois
se aceita o consumo como categoria última para se medir a relevância dos produtos culturais”.
Assim, se normatizou um tipo de segregação que afastou arte e política, admitindo apenas que
os integrantes da classe artística “enquanto cidadãos, como o resto da população, (poderiam)
participar das manifestações políticas; enquanto profissionais, (deveriam) se contentar com as
atividades que exercem nas indústrias de cultura ou nas agências governamentais” (ORTIZ,
1998, p.164)
No Brasil, a situação acima foi possível com a sincronia experimentada entre a
montagem do Regime Militar e a expansão do mercado de bens culturais. Dessa forma,
durante esse período o controle das manifestações artísticas permitiu, “após uma explosão de
utopia política, na qual a esquerda possuía a hegemonia do movimento cultural, [a instalação
de] um clima de conformismo e passividade” e a ampliação dos meios de comunicação.
121
Através deste controle, realizou-se uma transformação acerca do conceito de cultura popular
que “se identificava ao que era mais consumido, podendo-se inclusive estabelecer uma
hierarquia de popularidade entre os diversos produtos ofertados no mercado” (ORTIZ, 1998,
p.164).
Percebemos, então, que a obra de Ortiz encerra um círculo de discussões que
aponta e justifica diversos momentos que contribuíram para a definição da indústria cultural
brasileira. Contudo, verificamos que o cenário por ele exposto não é capaz de abrir brechas
para interpretações que relativizem ou adaptem o desenvolvimento de nossa indústria cultural
a partir da década de 1980. Isto porque sua discussão sobre o nacional-popular se encerra com
o processo de consolidação da indústria cultural, que disponibiliza uma imagem ilusória a
respeito da liberdade criativa dos artistas, críticos e demais partícipes da cultura.
Partindo do contexto transitório entre o fim do Regime Militar e a
redemocratização do país, Ortiz conclui:
o que os intelectuais do nacional-popular não perceberam é que eles são presas de
um discurso que se aplicava a uma outra conjuntura da história brasileira, e são,
portanto, incapazes de entender que a ausência da contradição os impede inclusive
de tomar criticamente consciência da sociedade moderna em que vivem (ORTIZ,
1988, p. 181).
Em oposição a esta perspectiva e pensando com maior especificidade a respeito da
questão musical no Brasil, a socióloga Rita de Cássia Lahoz Morelli afirma – com base nas
pesquisas de Eduardo Vicente – que “no campo da música popular brasileira não houve
exatamente uma transição do nacional-popular para o ‘mercado de consumo’ nos anos de
1970, uma vez que elementos ligados ao nacional-popular continuaram importantes no
período” (2008, p.88).
Para ela, durante esse período, os parâmetros que qualificavam o fazer musical
continuavam a ter importância tanto para o público quanto para a própria indústria, pois ainda
faziam referência ao “nível” de integração do artista às questões políticas e à preocupação em
se prestigiar os referenciais estéticos de caráter nacional e popular 108. Morelli ainda salienta
108
Ao falarmos de um determinado “nível” de integração, levamos em consideração o fato de que essa distinção
carrega um traço de interpretação bastante subjetiva em que o público e a crítica exercem papel crucial. Assim,
podemos avaliar que o exercício de interpretação das letras, a preferência por certos instrumentos musicais, a
forma de se vestir e as declarações feitas nos meios de comunicação compõem a viabilidade desse tipo de
observação.
122
que os mesmos artistas que faziam sucesso pela via do engajamento político na década de
1970 mantinham sua posição de prestígio mesmo diante das retaliações impostas pela ditadura
militar. Além disso, vários outros artistas que surgiram nesse cenário artístico admitiam e
celebravam a influência exercida por esses personagens engajados em suas obras (2008, p.89,
91).
Através da reflexão levantada por Morelli, chegamos a conclusão de que a
consolidação de uma indústria cultural massificada só se dá a partir da década de 1980, com o
surgimento de uma nova leva de bandas e artistas vinculados ao movimento do chamado
BRock 109, pois o referencial estético por ele lançado veio a confirmar o processo de afirmação
dos estilos musicais estrangeiros no mercado musical brasileiro, demonstrando claras
influências advindas do rock’n’roll britânico e inglês.
Todavia, o surgimento e o alcance desse movimento diferem bastante da vigência
do internacional-popular conceitualizado por Ortiz, uma vez que toma rumo diverso da
hipótese por ele lançada. A oposição é bem clara quando percebemos que vários artistas do
BRock não se subordinaram ao mercado e/ou aos modelos produzidos e disseminados por este
e mesmo assim conseguiram legitimar sua produção. Diante de tais perspectivas, Morelli
destaca a consolidação da indústria cultural brasileira no campo da música para outro
momento, diferente daquele salientado pelo processo substitutivo de Ortiz, que, segundo a
socióloga, não dá conta de uma série de questões que se apresentaram em nossa cultura
musical após a década de 1970.
O pensamento da socióloga se apóia sobre a maneira pela qual as bandas de rock
brasileiro se colocaram frente ao regime que se encerrava, de maneira autônoma e
provocativa. Essa autonomia é evidente diante das várias canções da época que abordam os
problemas do país de forma direta, de maneira a ganhar expressiva popularidade diante dos
acontecimentos políticos que marcaram o restabelecimento do regime democrático no Brasil,
109
O BRock equivale às bandas de rock surgidas na década de 1980 que ganharam reconhecimento do público
aparecendo em vários meios de comunicação e tendo uma expressiva vendagem de discos. Entre outros grupos,
podemos citar os Paralamas do Sucesso, Titãs, IRA!, RPM, Ultraje a Rigor, Legião Urbana e Barão Vermelho.
Vale lembrar que o aparecimento de bandas de rock no Brasil é bem anterior a essa época, mas o momento
ganha singularidade pelo grande sucesso comercial alcançado por essas bandas e pelo próprio período de
transformações de ordem social, política e econômica.
123
como as “Diretas Já”, as disputas eleitorais de 1989 e o impeachment do presidente Collor 110
(MORELLI, 2008, p. 91)
A partir desse contexto, é possível apreender a existência de um continuum entre a
MPB 111 de duas décadas atrás e a novidade do Brock, ambas tematizando criticamente as
questões de ordem política. A relação entre essas duas manifestações também se mostra
próxima – quebrando a simples passagem do nacional-popular para o internacional-popular –
quando recordamos que a MPB ainda “embalou efetivamente todas as campanhas pela
redemocratização do Brasil nos anos de 1980, e o fez até mesmo de modo indireto, graças à
rápida e aparentemente espontânea adaptação de sentido” de suas canções (ibid, ibidem, p.
92). De posse dessas informações, fica evidente que esses dois gêneros musicais tiveram uma
importância aproximada que se aliavam a um contexto, colocando-se como referenciais de
diálogo para vários artistas 112.
Ao demonstrar os demais entrelaçamentos possíveis entre MPB e BRock, Morelli
ainda destaca que esses movimentos musicais utilizam das mesmas vias para pensarem a
nação. E isto fica evidente pelo fato de a proximidade temática vir acompanhada de uma
mesma origem sócio-econômica: “classes médias urbanas, de escolarização bem sucedida”.
Para a socióloga, tal aspecto favorece a perpetuação de uma tradição política onde as
manifestações de protesto são feitas pelas massas e não das próprias massas (MORELLI,
2008, p.91)
Contudo, ela mesma encerra sua argumentação indicando que a problemática da
repetição é superada na década de 1990, quando a expectativa de uma nação moderna se
transforma no exercício de seu reconhecimento. A partir deste momento, a indústria cultural
assume sua característica monopolizadora, embalada pelo surgimento de novas maneiras de
110
Para se ter uma amostragem sobre o conteúdo de alguma dessas letras, recomendamos a leitura do capítulo
“Lugar Nenhum”, da obra “O mistério do Samba”, onde Hermano Vianna dedica algumas poucas páginas para
refletir sobre o processo de inserção do rock brasileiro oitentista.
111
A MPB entra aqui não como um gênero musical estritamente calcado em critérios de orientação estéticomusical. Em sua trajetória extensa e diversa, o gênero MPB abarcou possibilidades criativas múltiplas de
maneira que se torna difícil estabelecer uma definição para o termo. Com isso, preferimos admitir a MPB como
gênero que, a partir da década de 1960, aparece como um desdobramento dos debates que tentavam pensar sobre
o reconhecimento da música popular do Brasil (BAIA, 2007, p.6).
112
É importante deixar claro que esse tipo de compreensão não se mostrava unânime para muitos daqueles que
também presenciaram o surgimento do BRock na década de 1980. Hermano Vianna destaca algumas declarações
de articulistas, autoridades religiosas e artistas que desqualificavam a ascensão deste movimento acusando-o de
desviar a atenção da juventude brasileira para nossa própria cultura e dos problemas vigentes no país; ou
interpretando o mesmo como um novo entrave ao consumo de formas autênticas e prova maior de que a
sobreposição dos valores culturais estrangeiros. (1995, p.134 - 135)
124
produção, consumo e divulgação da música, que escapam ao controle dos grandes veículos.
Contudo, esse processo de descentralização não barra nem enfraquece a entrada de gêneros
musicais estrangeiros, de modo que o cenário musical brasileiro toma formas bem mais
diversificadas.
Como representação da pluralidade que se instala, temos o exemplo do rap e do
funk, que aparecem como dois gêneros incumbidos de materializar as novas propostas para o
mercado fonográfico brasileiro, conseguindo, finalmente, romper com o conservadorismo que
o BRock ainda trazia como herança da MPB construída ainda década de 1960. Eles surgem
como “expressões próprias das camadas sociais tradicionalmente subalternas” presentes nas
periferias de nosso país e de todo mundo.
Através desses exemplos que bem extraem a essência dos anos 90, Morelli
compreende a época como o exato momento em que ocorre nitidamente a “quebra do pacto
social nacional”, pois seus articuladores “dão as costas a tradição, como se não
compartilhassem experiência social alguma com os demais segmentos sociais e musicais do
país” (MORELLI, 2008, p.95). Todavia, não se trata necessariamente de uma oposição
consciente aos movimentos anteriores, mas da realização de um tipo distinto de ruptura –
como a que o movimento tropicalista fez ao buscar uma síntese original entre o cancioneiro
nacional e estrangeiro.
Dessa maneira, rap e funk surgem a partir de um circuito de produção e consumo
distinto, que não se presta a realizar uma reflexão acerca da nossa quase transcendente
alegoria da “linha evolutiva” 113 para injetarem sentido ao seu fazer artístico. Essa
despreocupação demonstra que outros rumos são tomados para estabelecer um julgamento
estético-musical no Brasil, refletindo uma nova conjuntura histórica, em que antigas
dicotomias, como nacional x estrangeiro, comercial x popular e mercado x legitimidade, não
mais dominam o processo de compreensão dos novos artistas e consumidores da arte.
Para encerrar esta argumentação, Morelli analisa:
113
O conceito de linha evolutiva a que nos remetemos faz referência ao termo empregado por Caetano Veloso
durante uma entrevista à revista Civilização Brasileira, em 1966. Nessa ocasião, ele pretendia levar à tona a
compreensão de um processo dialético em que o campo musical brasileiro deveria buscar suas inovações
promovendo um amplo diálogo com as manifestações musicais nacionais posteriores, mas sem abrir mão da
intenção de oferecer possibilidades modernas, inovadoras. Contudo, isso não significava a exclusão de
influências estrangeiras, consideradas como um artifício igualmente válido para que o novo viesse a surgir.
125
os novos tempos que chegaram atrasados no Brasil nos anos de 1990 não
substituíram os critérios da nacionalidade e do engajamento por outros critérios
quaisquer que continuassem unificando e hierarquizando o campo da música
popular: assim como ocorreu no próprio mercado contemporâneo de música
popular, em que a unificação deu lugar a uma segmentação radical, não mais
orquestrada pela indústria fonográfica nem por nenhuma outra agência, esse campo
se fragmenta, se descentraliza, se des-hierarquiza, e, numa palavra, deixa de ser
campo, ao mesmo tempo em que deixamos de ser uma nação que se concebe como
culturalmente homogênea (2008, p.96).
Uma vez percorridos os caminhos que nos levam a entender o desenvolvimento da
indústria cultural em nosso país, fizemos uma reflexão acerca de um quadro mais específico
da música brasileira e elaboramos o campo de discussões sobre o qual ambientamos a
trajetória do samba e a obra de Bezerra da Silva. Como este artista desenvolveu sua produção
artística entre as décadas de 1970 e 2000, temos um vasto campo de referenciais para
pensarmos a sua obra, ao mesmo tempo em que refletimos sobre a expansão e fragmentação
do mercado ocorrida durante o recorte espaço-temporal de sua carreira, avaliando de que
maneira esses momentos ganham vida em suas composições e em outras manifestações de
naturezas diversas.
Além disso, também temos o interesse em refletir como um artista que surge em
meio a um gênero musical fortemente marcado pelo signo da tradição opera a produção de
sentidos no interior de sua obra. Para tal, buscamos delinear os diversos contextos em que este
conceito de tradição se desenrola no longo caminho que assinala o desenvolvimento do samba
enquanto gênero musical. Desta forma, tentamos viabilizar o campo de intersecções que
demarcam o que é tradicional ao samba em encontro com a obra desse artista que desenvolve
uma carreira em um contexto marcado por diversas transformações, tanto no campo artísticocomercial quanto no campo concernente às questões políticas, sociais e econômicas do Brasil.
Diante destas considerações e de uma nova realidade de fragmentação do nosso
quadro da musica contemporânea, não queremos dizer que a produção de sentido sobre as
obras perca sua validade. Contudo, admitimos a vigência de um leque maior de elementos que
fogem da antiga lógica binária de simplificação dos olhares interessados em interpretar as
práticas culturais. Dessa maneira, passamos a direcionar nossos olhares para uma breve
trajetória do samba, podendo, finalmente, problematizar sobre os possíveis significados
oferecidos pelas canções de nosso objeto.
3.3 BEZERRA: NOSSO ÚLTIMO INTERLOCUTOR
126
Ao verificarmos os vários modos pelos quais o campo teórico compreende o
sentido de tradição, vemos que é possível analisar a carreira de Bezerra da Silva a partir do
enquadramento de alguns elementos que a representam em sua obra. A partir do momento em
que a tradição ganha forte sentido aliada à cultura popular, Bezerra se coloca como um
representante exemplar de sua força, pois além de ser morador da favela, ele canta para os
moradores desta, vistos como os “populares” em sentido cultural e econômico.
Nesse sentido, constatamos que o morro serve de cenário para que Bezerra
demonstre as situações interpretadas em seu vasto repertório, mesmo porque (como o próprio
sambista salienta) os compositores com os quais trabalhou habitam e retratam a favela em
suas canções, impregnando nelas os sentidos do universo que as rodeia. Dessa maneira,
incorporam o signo da tradição em meio a sua produção, perpetuando as idéias que permeiam
o fazer musical do samba.
Em consonância com essa perspectiva, destacamos a matéria de Maurício
Kubrusly para a revista IstoÉ de 1989 114, em que o jornalista destaca os temas principais
retratados nos discos de Bezerra, dizendo que
estes sambas trazem assinaturas que as paradas de sucesso desconhecem. Nada de
Michaels Sullivans nem de Paulos Massadas. Bezerra entoa obras de Adivinhão da
Chatuba e 1000tinho, Barbeirinho do Jacaré e Baianinho Em Cima da Hora,
Embratel do Pandeiro e Trambique, Zé Dedão e Jacaré e Popular P. Muitos desses
cronistas do Brasil-salário mínimo estão com Bezerra há vários anos – nas capas dos
LPs, o mais comum é a foto do Bezerra rodeado por esse time que ele garimpou.
A partir de sua fala, vemos a importância dos colaboradores anônimos de Bezerra
para o sucesso de sua obra. Isto porque, antes de apontar a equipe de compositores ligados ao
intérprete, ele destaca a famosa dupla de compositores – Michael Sullivan e Paulo Massadas –
responsável pelo sucesso de canções românticas de grande vendagem e também pela
produção de vários discos da apresentadora infantil Xuxa. Ao fazer essas menções, fica claro
que, apesar de incógnitos ao panteão de compositores de sucesso, o time de Bezerra é
reconhecido pela qualidade de seu trabalho e pela maneira que retratam a vida cotidiana.
A partir da citação, vemos como o jornalista distancia a arte concebida por
Bezerra da Silva daquela que fabricava artistas “num piscar de olhos”, integrada aos
mecanismos da indústria fonográfica brasileira da época. Esse distanciamento é também
114 No país do salário mínimo, IstoÉ Senhor, São Paulo, 28 jun. 1989, p. 112
127
retratado pelo próprio Bezerra nas canções que trabalhamos, quando ele demonstra que os
grandes responsáveis pelo seu sucesso são os trabalhadores humildes que não teriam acesso às
oportunidades e aos privilégios reservados a outros compositores portadores de uma inserção
diferenciada no mercado de discos.
Ao explorarmos, mais uma vez, a intertextualidade entre as declarações de
Bezerra e suas músicas gravadas, observamos que ele revela a seguinte situação em “Poeta
Operário” 115:
Poeta, operário e compositor (compositor)/ repórter, cronista de seu dia-a-dia (do
seu dia-a-dia)/ Que canta a tristeza e fala a verdade (fala a verdade)/ compondo
progresso e também poesia (E que poesia!)/ Pinta o sofrimento maior que o salário/
e nem com talento vê compensação (Isso é que é um povo bom)/ Mesmo passando
fome, ao invés da revolta/ faz brotar, no momento, a mais nova canção/ E o poeta é
quem vai levando a cruz/ ganha mais quem nada faz, menos ganha quem produz/
Alegrando a multidão, que se embala em euforia/ vai cantando e no refrão, bom
humor, filosofia/ Só sucesso não constrói, pois só ganha mixaria/ e o grosso que vai
para o bolso do ECAD em bateria (...)/ E na carreira final pra ver a música editada/ o
compositor fica mal, mesmo sendo a mais tocada/ Pois com direito autoral/ não vai
ter vida folgada/ Os cartolas mamam tudo/ e o compositor fica sem nada!
Com esta letra, Bezerra expõe a condição dos compositores que escrevem para
ele, demonstrando que estes não têm privilégios na inserção no mundo artístico, mesmo que
demonstrem talento. Sendo assim, destaca que os habilidosos “cronistas de seu dia-a-dia”
ainda precisam buscar outros ofícios para que garantam sua sobrevivência, o que se justifica
pela falta de critério que atribui aos órgãos de regulamentação do mercado fonográfico. Nesse
sentido, destaca o ECAD que é denunciado como uma instituição fraudulenta por não
conceder ao “poeta operário” as quantias que deveriam premiar a criatividade do compositor.
Além de destacar essa manipulação da indústria fonográfica, Bezerra ressalta a
insatisfação com a intervenção desta em sua obra, que vai contra os interesses dos autores.
Deste modo, percebemos como Bezerra se distancia das vias de consagração da indústria
cultural e prima pela manutenção da tradição peculiar ao gênero musical que representa. Para
ratificar esse posicionamento, destacamos a matéria “Bezerra da Silva, o cantor das vítimas da
sociedade” 116, em que o jornalista Ruy Castro sugere que a arte elaborada pelo intérprete
sofre, além da restrição da indústria fonográfica, uma ressalva de natureza social.
115 Bezerra da Silva, Eu não sou santo, BMG Ariola, 1990
116 Bezerra da Silva, o cantor das vítimas da sociedade, Folha da Tarde, São Paulo, 24 de mai. 1985
128
Para tanto, ele destaca, já nas primeiras linhas de seu texto, que “as FMs não lhe
dão bola, seus discos não tocam nos apartamentos da classe média e ele não se apresenta em
clubes e boates”. Em outra matéria, o jornalista Eduardo Fonseca da Rocha 117 também aponta
essa localização marginal da obra de Bezerra da Silva ao dizer que
Suas músicas nunca abriram novelas, ele nunca foi convidado para o Domingão do
Faustão e sequer ganhou a capa de segundo caderno. Mas as paredes do modesto
apartamento do sambista Bezerra da Silva, no bairro de Botafogo, ostentam meia
dúzia de discos de ouro e um de platina duplo. Nada mal para quem não conta com a
simpatia da mídia. Para Bezerra, é natural. (...) Por não estar pulverizado pelos
meios de comunicação, Bezerra consegue saber onde estão seus consumidores: “São
os moradores das favelas”.
Essa opinião sobre a obra de Bezerra também é ratificada fora dos veículos de
comunicação. Nesse sentido, destacamos a fala do músico e compositor Ronaldo Bôscoli, que
faz a seguinte consideração sobre o sambista: “Bezerra da Silva é o cara que, fora dos
esquemões urbanos e das estratégias mercadológicas, vende muito mais disco que muito
baiano enturmado ou muito cabeludo guitarrento” 118. O elogio ao sucesso comercial de
Bezerra aparece como situação discrepante no meio musical, já que ele praticamente não é
visto nos grandes meios de comunicação.
Contudo, essa idéia sobre a exclusão de Bezerra da mídia é superada com sua
aparição em grandes veículos de comunicação – inclusive no Domingão do Faustão! – de
modo que ele passa a ter mais visibilidade ao longo da carreira. No entanto, neste ponto do
trabalho nos concentramos apenas nas referências ao sambista de outrora, afastado dos
holofotes e da apreciação de algumas classes sociais. Isto porque essa caracterização coloca
Bezerra como um legítimo representante da idéia de uma cultura popular que se assenta nas
classes sociais menos privilegiadas, descrito como uma manifestação artística singular,
portadora de referenciais que o distinguem como tradicional por não estar ligado à lógica da
produção musical de sua época.
Desse modo, primamos por alcançar um perfil que é traçado pelo próprio sambista
quando ele descreve seu papel artístico, dizendo “Sou um cantor do povão. Canto o dia-a-dia
117 A voz do morro, IstoÉ Senhor, São Paulo, 28 jun. 1989, p. 112
118 Bezerra da Silva e a língua do morro, O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 de jun. 1985
129
dessa gente, as suas dificuldades. Canto a língua deles e é disso que eles gostam” 119. Vemos
que além de se declarar cantor do povo e para o povo, Bezerra ainda reforça seu contato com
a “gente do morro” por meio do uso de uma linguagem específica que lhes fala diretamente.
Sendo assim, ele incorpora à sua obra um outro elemento que singulariza seu trabalho e que,
ao se repetir em suas canções, acaba por incorporar um novo tipo de saber.
Para realçar a importância desse alicerce na obra do sambista, destacamos uma
matéria da revista IstoÉ, de 1987 120, que, ao falar sobre o espaço ganho por sambistas com a
ascensão do pagode nos anos 1980, enfatiza o sucesso das carreiras de Zeca Pagodinho e
Bezerra da Silva. O texto, assinado por Timóteo Lopes, coloca os dois sambistas no mesmo
patamar, argumentando que ambos retomam “uma ginga matreira que até há pouco se
encontrava soterrada por modernas avalanchas sonoras” 121. Para obter a chancela de um
músico conhecido, a matéria emprega a opinião de Aldir Blanc, que compreende que “eles
retomam uma tradição, a elite volta a incorporar em seu palavreado toda uma gíria corrente
nos botecos e bocas de fumo de qualquer morro”.
Para expressarmos a importância das gírias na obra de Bezerra, destacamos a
necessidade de se incorporar uma contracapa ao disco “Alô malandragem, maloca o
flagrante!” com o registro de um dicionário de “malandrês” 122, composto por mais de trinta
verbetes que explicam várias gírias recorrentes em suas canções. Dentre eles, doze expressões
fazem referência aos delatores do morro e às autoridades policiais presentes nas narrativas de
suas músicas.
O emprego dessa linguagem, que acaba por reafirmar o caráter exclusivo da obra
de Bezerra e da produção de seus compositores, levou um grupo de repórteres do jornal O
Pasquim 123 a entrevistá-lo sobre o uso das gírias em sua obra. O esclarecimento de Bezerra é
dado no seguinte diálogo:
CESAR – Esse é o código do morro, do malandro saber com quem tá falando.
119 Ibidem.
120 Na ginga da malandragem, IstoÉ, São Paulo, 3 de jun. 1987.
121 Ibidem
122 Verificar os anexos
123 Era pra eu ter sido ladrão!, Pasquim, Rio de Janeiro, 29 de mai. 1985, p. 12 - 13
130
BEZERRA – Eles falam a gíria, que é uma cultura popular. Assim como os
intelectuais têm seu código, os malandros têm o deles. Se eu conversar com um
intelectual, ele vai xingar a minha mãe eu vou ficar: “Sim, senhor, sim, senhor”.
CESAR – Mas quando é contrário, quando o intelectual sobe o morro, também se
dá mal.
BEZERRA – É o negócio da senzala. A rapaziada também fez um negócio pra
gente falar e você não saber o que é. É assim: O touro foi afastado/ e o elefante no
lugar ficou/ uma muvuca de esperto demais/ deu mole e logo dançou/ Eu só sei
quando o bicho pega/ o couro come toda hora/ é por isso que vou apertar/ mas
não vou acender agora. Você entendeu o que eu falei?
TODOS – Não.
BEZERRA – Tem uma centena do touro, no jogo do bicho, 281, que era o artigo do
tóxico antigamente. Agora é o artigo 12, que é o grupo do elefante. Então o touro foi
afastado e ficou o elefante. Uma muvuca de uma de esperto, quer dizer, viu a polícia
e foi fumar maconha, dançou. O bicho é a polícia, que arrebenta o cara, o couro
come toda. É por isso que vou apertar, mas não vou acender agora. É isso aí. Não
tou incentivando ninguém a nada.
De maneira bastante aproximada às declarações da entrevista acima, o referido
“negócio da senzala” parece ficar melhor explicado quando Bezerra da Silva revisita essa
questão no documentário “Onde a coruja dorme” e expõe que:
A gíria é uma cultura... negra. A base dela foram os escravos. Eles então quando iam
traçando plano de fuga, né?! Quilombo, aquela coisa... Eles aí falavam aquilo em
gíria. “Tal hora a gente vai dar um pinote, tal hora...”. Que era para eles não
entenderem, entendeu? É justamente hoje o que os intelectuais fazem com a gente.
Eles vão pra escola, aprendem “revertério, láconton, látum, borunbundum, data
venia...”. Aí chega, fala com você o dia todinho, chama você do que quer, e você
não entende nada. E você: “Sim, senhor doutor. Tá bem, doutor. Sim, senhor. Tá, tá,
doutor. Sim, senhor. Sim, senhor”. E não sabe o quê que é. Então o quê que a gente
faz. A gente também pode conversar com o doutor do mesmo jeito e ele fica o dia
todo sentado e não entender nada também! Aí é zero a zero.
A partir da reiteração desse tipo de fala, vemos que Bezerra pretende reforçar a
idéia de uma tradição ancestral que se perpetua em sua obra. Assim, a gíria dos morros se
transforma em simples desdobramento de uma estratégia que teve origem no passado como
reação à escravidão e que, em seu tempo, serve para deslocar os intelectualizados das idéias e
perspectivas que podiam ser percebidas apenas pelos habitantes do morro, de modo a se
colocar como um ícone equivalente a complexidade do conhecimento obtido pelos letrados.
Podemos, através das declarações de Bezerra da Silva aproximar suas idéias das
questões sobre tradição que surgem tanto na obra de Certeau como na de Hobsbawn. Quanto à
sua aproximação do primeiro, vemos que Bezerra incorpora para si as idéias de cultura
131
popular e tradição problematizadas por Certeau ao se mostrar como um cantor do povão – dos
morros e das favelas – que usa uma linguagem específica para falar sobre seu universo
particular. No que tange aos problemas expostos por Hobsbawn, observamos que Bezerra da
Silva, o sambista, na construção de um sentido para as gírias que emprega, inventa uma
argumentação de cunho histórica que se relaciona ao desenvolvimento de um processo de
exclusão que se origina no tempo dos escravos e se prolonga no cotidiano das populações das
favelas.
Nessa alusão à uma realidade única, como podemos observar no capítulo anterior,
vemos que o próprio Bezerra destaca o fato de interpretarem erroneamente suas canções por
não concordarem com as “verdades” que explicita. Dessa maneira, ele se coloca como artista
perseguido pela mídia, que o apresenta como “cantor de bandido”, e injustiçado por não
receber as devidas compensações financeiras das empresas e corporações da indústria
fonográfica. Assim, ele consegue promover sua imagem como a de um artista proveniente de
um nicho social marginalizado e que continua a enfrentar o problema da exclusão apesar de
todas as conquistas conseqüentes à sua condição de artista.
A partir daí, verificamos a sugestão de que o sucesso de Bezerra foi conseguido
por meio de estratégias que se desviam dos esquemas montados pela Indústria Cultural, e
destacamos de que maneira a busca pela “fonte legítima” do samba, o morro, a escolha pelo
partido-alto e as composições de anônimos remontam as antigas formas improvisadas de se
fazer samba ao mesmo tempo em que imprimem autenticidade à obra do sambista. Por meio
dessas análises, podemos fornecer respostas sobre a obra de Bezerra àqueles que pensam por
meio de um jogo de oposições a trajetória da cultura, do samba e do próprio artista.
Nesse sentido, podemos destacar a fala do próprio Bezerra para expormos os
outros caminhos que vão de encontro a aparência exclusivista da tradição e,
consequentemente, da cultura popular. Assim, retomamos o “dicionário de malandrês” para
mostrarmos como o guia de verbetes do morro atesta uma cultura singular que pode ser
demonstrada em sua sabedoria para outros nichos que desconhecem aquele universo de
palavras 124. Isto porque seria ingenuidade pensar que, mesmo direcionada para um público
124 Na matéria “Aí vem o malandro chorão”, escrita pela jornalista Patrícia Paladino, temos um pequeno box
intitulado “Gingando nas palavras” em que essa tensão entre popularização e exclusividade do linguajar de
Bezerra da Silva fica bastante evidente. De início, o texto apresenta o tema das gírias dizendo que “língua de
congo não é pra qualquer um. A começar pela própria definição do que é língua de congo: é a gíria do pessoal do
morro, os “da favela” ”. Logo em sequência, noticia que “algumas expressões já extrapolaram o universo do
morro e estão tomando de assalto as praias cariocas (...)” (JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 8 out. 1988.
Caderno Niterói, p. 7)
132
alvo, a obra do artista não alcançaria outros grupos sociais que consomem os produtos do
mercado fonográfico.
No que diz respeito à circularidade das produções artísticas no mercado, Bezerra
da Silva, em entrevista ao Showlivre.com, atesta que sua arte atravessa barreiras sociais de
forma velada, não sendo explicitamente assumida. De maneira mais sucinta, ele explica que:
Tem pessoas de elite que são meus fãs e que não diz, né... Eles mandam as
empregadas comprar, traz e manda guardar no quarto delas. Na sala não pode ir, é
claro. Quando vem visita eles botam “dimipin, tiquipin,” aquele negócio em inglês
(...) pra visita ouvir aquilo e tal. Quando a visita vai embora, guarda aquilo, e: “Traz
Bezerra, aí!”. Bota lá e o coro come! (DA SILVA, Bezerra da Silva no Urbano –
Arquivo
Radar
Showlivre.com
2003,
Disponível
em:
<http://www.youtube.com/watch?v=5lmwVJWn_Yc> Acesso em: 12 jul. 2009.)
Um outro ponto que destacamos aqui para revelar a idéia de fluidez entre tradição
e indústria cultural é o reconhecimento do samba como gênero musical possuidor de várias
nuances que tramitam entre os dois posicionamentos. Desse modo, destacamos como Bezerra
da Silva, que alcança notoriedade em pleno processo de popularização do pagode (década de
1980), faz questão de se posicionar como cantor de partido-alto, em oposição ao novo estilo
musical, esclarecendo que não era pagodeiro, pois esta nomeação não condizia com o gênero
musical que interpretava. Bezerra dizia que:
Pagode não existe. Pagodeiro é tua avó, é a tua família. Eu brigo e provo que não
sou pagodeiro. Só existe o pagode como rótulo mercadológico para vender disco.
Como música é uma mentira. Isso é uma mentira. Eu provo no Instituto Nacional de
Música, com o curso que fiz. Pagode é reunião de escravo na senzala. Pagode não é
música. É até pejorativo, pra esculachar a gente. Isso não é gênero de nada. Você
pode chegar no Instituto e ver que não tem registrado esse gênero. Por que que
pagode é coisa só de crioulo? O gênero que a gente leva chama-se partido alto. É
samba. Quando eu cheguei aqui em 1945 isso tudo já existia e ninguém chamava de
pagode. Nem sou pioneiro ou “rei do pagode”, porque a rapaziada do morro já faz
isso há muito tempo. (DA SILVA, Bezerra. Olha o Bezerra aí, gente!, O Globo. 15
mai. 1988. Caderno Dois)
Essa fala nos permite, mais uma vez, reconhecer a evocação de uma
ancestralidade inerente à sua prática artística e também perceber que o pagode era visto como
um estilo musical identificável pelo uso de formas específicas de se fazer samba e por abarcar
um claro grupo de artistas. Todavia, retomando as últimas décadas da trajetória do samba
(expostas no capítulo inicial), percebemos como o termo “pagode” sofreu uma ressignificação
133
que veio a descrever um número mais abrangente de artistas que, vistos de forma negativa
pela crítica musical, que surgiram na década de 1990, promovendo maior impacto comercial.
Nesse segundo momento, a declaração de Bezerra da Silva sobre o pagode não
prima pela diferenciação dos estilos e nem ataca a presença de um sub-gênero, mas é
cautelosa, pois ele prefere evitar os mesmos ataques já realizados pelos críticos. Dessa
maneira, em entrevista concedida ao escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva 125, ele faz a
seguinte consideração:
BEZERRA – Não existe esse papo.
MARCELO – Que papo?
BEZERRA – Que fulano é ruim, é bom...
MARCELO – Quem disse isso?
BEZERRA – O sol nasceu para todos, todos os colegas são bons. Cada um tratando
de si. Eu acredito que o meio está para todo mundo. Graças a Deus, muitos colegas
estão fazendo sucesso. Um sambista carrega bandeira do samba.
(...)
BEZERRA – O sucesso depende muito de cada um, cada um tem seu gênero. Se o
samba está bem, de modo geral, está todo mundo bem, compadre.
(...)
BEZERRA – Gravo a realidade do povo faminto e marginalizado. Cada um entende
de um jeito. O importante é vender. Artista bom é aquele que vende, segundo o
mercado(...)
Mesmo negando as diferenças e aceitando o sucesso comercial como indicativo de
qualidade, percebemos que a aparição do pagode tem consequências maiores sobre a obra de
Bezerra da Silva, pois esta passa a ser reconhecida como“samba do mais puro samba” 126,
“pagode do morro” 127,”samba partideiro e de raiz” 128, “turma do samba bom” 129 e “samba que
vem com raiz” 130. Essas manifestações acabam por reforçar a perspectiva de que Bezerra
ingressa uma cultura tradicional, apartada de outras interferências que deturpam sua origem
125 Malandro por malandro, Folha de São Paulo, São Paulo, 08 dez. 2000
126 Novo CD de Bezerra da Silva é samba do mais puro samba, Folha da Tarde, São Paulo, 21 ago. 1997
127 Bezerra da Silva mostra que é ponta firme ao vivo, Folha de São Paulo, São Paulo, 15 mai. 2000
128 Malandro por malandro, Folha de São Paulo, São Paulo, 08 dez. 2000
129 Malandragem está exata, Folha de São Paulo, São Paulo, 12 dez. 2000
130 Samba que vem com raiz, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 ago. 2003, Caderno B
134
popular. Assim, o intérprete se coloca como mantenedor da tradição e opositor dos esquemas
da indústria cultura, configurando como uma novidade que só se reconhece assim por ir
contra as práticas que determinam a carreira artística da grande maioria dos músicos,
intérpretes e cantores.
Contudo, a nomeação de Bezerra como artista que recupera o passado pode
encobrir uma outra faceta sua, que é a de perceber as potencialidades oferecidas pelo mercado
do entretenimento. Isto porque ele extrapolou o limite de suas canções para expor suas
opiniões, deixando-nos uma extensa gama de documentos que alcançam um significativo
número de manifestações em meios de comunicação. Além disso, ele se destaca como
produto artístico inovador ao dialogar com demandas estéticas e culturais que acabam por
singularizá-lo, sendo elogiado em resenhas e reportagens que o tem como tema.
Como exemplo disto, recuperamos o diálogo proposto entre Renato Ortiz e Rita
de Cássia Lahoz Morelli em que o primeiro delineia o amadurecimento da indústria do
entretenimento e a preferência por gêneros internacionais que se desencadeia entre as décadas
de 1970 e 1980. No contexto levantado por Ortiz vemos que Bezerra da Silva aparece como
uma novidade se o considerarmos capaz de superar a tendência controladora do mercado e de
inserir temas sociais e políticos em suas canções por meio de denúncias e críticas veementes.
A novidade se concebe também no fato de Bezerra alcançar boas vendagens no
mercado fonográfico mesmo que não tenha sido acompanhado pelos agentes da indústria
cultural que costumam promover a carreira de artistas de sucesso. Desse modo, ele abre
espaço para um panorama histórico sobre o sucesso do protesto e da exposição da
marginalidade no meio musical, obtendo reconhecimento pelo seu caminho alternativo. Nesse
sentido, destacamos uma resenha não assinada de 1987 131, defensora de que “o protesto de
Bezerra da Silva ocupa um espaço que já foi dos compositores do CPC e dos festivais. Faz
política popular sem intermediação intelectual, nem ideologia de limites definidos”.
A comparação pode ser entendida se lembrarmos que Bezerra também teve
problemas com a censura após o lançamento do disco “Justiça Social”, pois os órgãos de
controle oficial proibiram a execução pública das faixas “São Murungar” e “A Semente”.
Assim, percebemos como o sambista passa a ser visto, por muitos críticos e apreciadores,
como um sambista que também adere ao nicho das chamadas “canções de protesto”.Mais uma
vez discordante, ele refuta esse tipo de apropriação, dizendo: “Não chamo minha música de
131 Protesto e humor no “sambandido”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 abr. 1988
135
protesto. Se tudo o que acontece é verdade, não pode ser protesto. É uma carta de
esclarecimentos” 132.
Por meio das declarações de Bezerra, percebemos como ele tenta se esquivar das
demais rotulações que ele poderia vir a ter no meio musical. Contudo, não podemos deixar de
lado a importância de sua obra para a estética do cenário musical brasileiro entre as décadas
de 1960 e 1970, já que seu ritmo acaba por promover uma vinculação com outros gêneros
musicais contemporâneos ao seu partido-alto, como o BRock da década de 1980 e o rap na
década de 1990. No que diz respeito ao encontro de Bezerra e o público roqueiro, destacamos
a fala do escritor e jornalista Arthur Dapieve que comenta que “até roqueiro gosta do sambista
Bezerra da Silva. Afinal, ao contrário do que rosnam os sectários, o ritmos não são
incompatíveis (...)” 133.
Para o crítico musical Tárik de Souza, essa possibilidade de aproximação aparece
manifestada por neologismos e terminologias híbirdas que viriam indicar a quebra de limites
entre o samba e o rock. Em 1991, ele chama as canções de Bezerra de “sambandido
hardcore” 134; no ano seguinte, resenhando o disco “Presidente caô caô”, ele sintetiza a obra se
referindo ao seu “enredo heavy metal” 135. O uso dessas explicações aparece depois que a
banda brasileira de rock RPM, em 1988, convida Bezerra da Silva para uma participação no
álbum “Quatro coiotes” 136 com a gravação da faixa “O teu futuro espelha essa grandeza”.
De acordo com o antropólogo Hermano Vianna, a ascensão do rock no Brasil
indicava uma clara referência ao prestígio dos gêneros internacionais que dominavam as
rádios do país em detrimento da música brasileira, que perdia cada vez mais seu espaço.
Nesse sentido, o rock era visto como bem cultural moderno que, vindo do estrangeiro, fazia
oposição ao samba, visto há muito como símbolo de tradição e nacionalismo. Em meio a esse
contexto, podemos entender o porquê do grupo RPM ter tido o cuidado de gravar, antes da
execução da música, uma espécie de depoimento que explicava a idéia de convidar Bezerra da
Silva para a participação especial. Segundo o depoimento do vocalista Paulo Ricardo:
132 Novo CD de Bezerra da Silva é samba do mais puro samba, Folha da Tarde, São Paulo, 21 ago. 1997
133 O sambista redentor, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02 jul. 1990, Caderno B, p. 6
134 Bezerra, partideiro da pesada, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 jul. 1991, Caderno B, p.4
135 Bombardeio de protestos num disco áspero, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 out. 1992
136 RPM, Quatro coiotes, CBS, 1988
136
Ela [a canção] passa por vários gêneros e, de repente, não se fecha em nenhum
deles, né?! Mas... tem um lado de samba, né?! Mais explícito em uma das partes que
me levou a pensar nessa coisa, né?! Como... quais seriam os pontos de contato
mesmo entre o rock e o samba? E você vê que o ponto principal é no lado marginal,
no lado rebelde, no lado inquieto, no lado de representar, sabe, uma espécie de grito,
né... de uma determinada classe. No rock sejam os jovens, né?! Assim...
generalizando e no samba toda uma coisa negra... ambas de fundo social nítido. E o
Bezerra é um cara que é super rock’n’roll. Apesar de ser um cara de samba, ele diz
umas coisas. Sabe... tipo... “puseram maisena no meu pó”e “plantaram uma semente
no meu quintal, cresceu um tremendo matagal”, “chegou a patame e levou todo
mundo pra averiguação”, que coloca muito bem o dia-a-dia do brasileiro... Sabe? A
convivência do brasileiro com todo esse lado de páginas policiais. E o Bezerra,
aceitando, também mostrou pra gente que não tem o menor preconceito, como se
acredita. Como ele confirmou, e realmente acontece, do pessoal de samba contra o
pessoal de rock. Ele tem uma riqueza no coloquial dele que é uma coisa quase que
antropológica. Do ponto de vista que representa toda uma cultura, né?!... Que é
fascinante e super original. (...) Uma coisa de malandro, uma interpretação sempre...
Sabe, não é uma coisa propriamente musical, de um intérprete de belas canções, mas
uma identidade muito do malandro, dessa coisa. É o tipo de crítica que a gente tá
mais interessado hoje... a maneira de se fazer a crítica, com humor, com um
determinado senso de conseguir sobreviver... Que é bem típico do brasileiro, mais
do que aquela coisa óbvia da canção de protesto tradicional.
O reconhecimento dessa identificação acaba por demonstrar que Bezerra da Silva
se aproxima do BRock tanto pela mesma época em que ganham espaço, tanto pelas críticas
que ambos promovem. Ao longo de sua carreira, a aproximação com bandas de rock se tornou
cada vez mais recorrente para Bezerra, a ponto a ser registrado em algumas reportagens. Em
uma extensa matéria no Caderno B do Jornal do Brasil, o jornalista Silvio Essinger abriu um
pequeno box que recupera essa aproximação com o texto “O sambista que o rock
reverencia” 137. Rapidamente, o jornalista destaca que, além do RPM, outras bandas como
Barão Vermelho, Planet Hemp, Virgulóides e O Rappa também gravaram com Bezerra da
Silva ou realizaram covers de suas canções.
Na mesma matéria, Guto Goffi, baterista do Barão Vermelho, diz que Bezerra
tinha “(...) uma atitude rock’n’ roll” e ainda revela acreditar que o público da banda “curte
esse elemento transgressor que o Bezerra tem”. Por sua vez, Marcelo D2, então vocalista da
banda Planet Hemp, elogia as canções de Bezerra da Silva como uma escola que o ensinou a
“falar sem papas na língua”. No que diz respeito ao sucesso do sambista, Falcão, vocalista da
banda O Rappa, elogia o fato de Bezerra da Silva conseguir “um monte de discos de ouro
falando o que queria falar”. Por meio dessas declarações, percebemos como Bezerra é bem
acolhido pelos roqueiros brasileiros, que conseguem se mirar nele e enxergar em sua obra
elementos que coincidem com a música que produzem.
137 O sambista que o rock reverencia, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 ago. 1997.
137
Essa possibilidade também é admitida por Bezerra da Silva quando ele faz a seguinte
equiparação: “O que eles escrevem também é a realidade deles. Não vem com essa de meu
amor nem de beijei tua boca. Eles dizem a mesma coisa que eu digo, só que com outra
linguagem (...)” 138. Contudo, no ano seguinte, talvez se mostrando insatisfeito com sua
projeção artística, certa vez, quando perguntado se as parcerias com os roqueiros ajudam na
sua projeção artística, disse que “Talvez a eles. A mim nada. É como o cara dizer que vai dar
uma força para a Portela, para o Império. Quem vai pegar força é ele. Mas não vou dizer isso,
quando o D2 e o Barão Vermelho me chamam, eu vou na amizade.” 139
Desentendimentos a parte, fica claro que, na discussão levantada sobre indústria
cultural brasileira, vemos Bezerra sendo reverenciado como artista que interrompe a tradição
existente no afastamento daqueles que denunciam e aqueles que vivem as mazelas do
cotidiano. Sendo assim, sua obra e seu sucesso comercial se colocam diante de um novo bem
cultural que promove debates sinceros sobre os problemas sofridos pelos brasileiros do morro
por meio da voz de um igual que canta as questões próprias da sua origem social. Dessa
maneira, Bezerra não encontra problemas em cantar para e pelas massas, e acaba por se
colocar como um artista que integra a imagem de um artista popular, à prática de um gênero
musical reconhecidamente nacional e à exposição dos problemas históricos do país 140.
Por meio desta expressão, Bezerra da Silva, além de se portar como cantor que
rompe com as formas naturais de protesto e do próprio samba, é também visto como uma
personagem da música brasileira cuja referência é bastante relevante para a geração de artistas
que surge, a partir de 1990, com a popularização do rap brasileiro. Isto porque os jovens que
ingressam esse tipo de manifestação artística vêem no sambista uma maneira direta e clara de
falar sobre os problemas da sociedade e protestar contra as crises políticas e econômicas do
país.
No que diz respeito ao surgimento do rap e do movimento hip-hop no contexto da
música nacional, a consolidação destes gêneros – assim como do samba de Bezerra em
tempos anteriores – representa um amadurecimento da indústria cultural brasileira.
138 “Não tenho nada de polêmico”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 ago. 1997
139 “Não sei, não vi, não conheço”, Folha de São Paulo, São Paulo, 04 set. 1998
140 Essa possibilidade de rompimento pode ser traçada em uma crítica musical de 1991, quando o jornalista
Mauro Ferreira descreve as letras do disco “Partideiro da Pesada” como sendo “crônicas sarcásticas do cotidiano
das favelas e morros, escritas por gente que convive de fato com a miséria e a violência e não por quem protesta
contra toda a opressão social como mero espectador (caso de nove entre dez roqueiros)” (A malandragem repete
a gíria, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 jul. 1991).
138
Perspectiva esta que vai de encontro ao que pensa Ortiz quando imagina que a expansão do
gosto pelo internacional seria a projeção mais plausível ao cenário musical do país. Ao
contrário do que imaginava, a existência dos gêneros musicais estrangeiros foi extremamente
importante para que os artistas brasileiros buscassem novos elementos para incorporarem em
suas produções. Desse modo, destacamos a experiência do próprio Bezerra da Silva, que
experimentou essa fusão ao “mandar” um rap na versão reagge de “Candidato Caô Caô” 141
realizada no álbum inaugural da banda O Rappa.
A partir do momento em que existe a promoção do encontro entre as vertentes
nacionais e estrangeiras da música, buscamos várias considerações que apontam para o fato
do sucesso de Bezerra da Silva e entre elas encontramos o reconhecimento dos rappers, que
assim como o sambista, pretendem também realizar a crônica dos lugares e personagens
marginalizados, dando-lhes voz. Assim, temos valorizadas novamente as temáticas há muito
apontadas por Bezerra e percebemos os entremeios de sua obra com a dos novos grupos em
ascenção. Nesse sentido, destacamos, em comparação muito breve, um dos mais conhecidos
raps nacionais, Diário de um detento, do grupo Racionais MC’s, que revela em sua narrativa
a exploração de um lugar tantas vezes mencionado nas canções de Bezerra – a prisão – ,
fazendo com que o grupo consiga, assim como o sambista, alcançar significativa venda de
discos 142.
O crítico musical Tárik de Souza, além de promover a aproximação de Bezerra
como o rock nacional, relata, num segundo momento 143, a importância do sambista também
para o rap. Extrapolando o cenário musical brasileiro, ele chega a acreditar que, talvez por
uma curiosa coincidência que valoriza a riqueza de seu próprio trabalho (no caso, analisar
álbuns musicais), “Bezerra antecipava-se ao gangsta rap americano, disseminado a partir dos
[anos de] [19]80 suas loas à vida turbulenta e marginal (...)”.
Comparação semelhante é realizada no já tão comentado documentário “Onde a
coruja dorme”, quando Marcelo D2 diz que Bezerra da Silva
141 O Rappa, O Rappa, Warner Music, 1994
142 Falando sobre um encontro com os Racionais MC’s, Bezerra da Silva disse que tirou fotos, conversou com
os integrantes do grupo e chegou à impressão de que eles lhe tomavam como “um pai do gênero”. (“Não sei, não
vi, não conheço”, Folha de São Paulo, São Paulo, 04 set. 1998)
143 Choro por um malandro, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 jan. 2005
139
“é o que James Brown foi para o rappers americanos (...) Acho que aqui no Brasil
ele é um dos músicos mais respeitados dentro da cena hip hop (...) Acho que se você
for citar de dez rappers... de dez rappers os dez rappers vão falar [que] Bezerra da
Silva é o músico brasileiro que influenciou ele.”
Através dessas falas podemos reconhecer o valor da obra de Bezerra para o
cenário musical e intelectual brasileiro, já que, ao mesmo tempo em que é colocado como
representante de uma cultura popular-tradicional, ele não se restringe ao seu segmento social
de origem. A ambigüidade do artista está em promover o samba de partido-alto – que fala
sobre os morros, sob a voz de um malandro conhecedor de um complicado universo de gírias
– ao mesmo tempo em que discute o papel exercido pela Indústria Cultural, alegando como
justo o ganho material sob o fazer artístico. Por meio do impasse que resolve, verificamos que
Bezerra se aproxima de outros artistas que se influenciam pelas opções sonoras trazidas pelos
gêneros musicais estrangeiros.
No jogo destes elementos, ele chega a se enquadrar como o signo de uma cultura
tradicional que se mostra ainda persistente, mas derruba esse entendimento sobre seu
personagem ao inventar justificativas históricas para o uso de gírias e para a preocupação
constante com o morro e com as demais populações marginalizadas. Desse modo, ao invés de
incorporar para si uma noção de “cultura de resistência” ou nacionalismo exacerbado, Bezerra
da Silva oferece espaço para tratar de temas atuais e refletir sobre os ditames da indústria
cultural.
Para ele, o sucesso comercial e o bem-estar financeiro não implicavam na
necessária exclusão dos temas e signos tradicionais que evocava e que também garantiam o
reconhecimento da crítica e do público. A seu ver, a capacidade de alcançar o sucesso estava
diretamente ligada à utilização de uma arte que se punha verdadeira por simplesmente se
aproximar da vida – sua ou dos compositores. Além disso, Bezerra acreditava que a sua
formação musical ampla e privilegiada também tinha sido indispensável para sua entrada no
mercado fonográfico na condição de artista.
No que diz respeito à maneira pela qual encarou a fama, percebemos que, apesar
das várias reclamações de exclusão no meio musical, Bezerra não se portou como ícone de
uma cultura fechada ou marginal. Ele aceitava expor sua imagem e obra em vários meios de
comunicação, transformando cada uma dessas oportunidades em esclarecimentos e promoção
de sua arte para o maior número de pessoas. Por meio dessas atitudes, vemos que, mesmo
acreditando na força das dicotomias sociais, o sambista abriu espaço para dialogar com
140
repórteres, cineastas, músicos, autoridades, críticos e fãs que também integravam a
compreensão de sua obra. Para tanto, Bezerra se mostrava sempre interado sobre o que
acontecia ao redor de sua arte, de maneira que seus depoimentos e suas canções sempre
mantiveram um caráter relevante de atualidade.
Nesse sentido, Bezerra foi largamente elogiado, pois retratava questões de ordem
social, política e econômica na condição de um igual que também viveu aquele corolário de
situações. O artista rompia com antigos dilemas e demonstrava que não era preciso ser letrado
para retratar temas políticos e entender sobre os problemas da população para conduzir uma
expressão artística. Por esta postura, não por acaso, foi ovacionado por outros artistas de
outras gerações que reconheceram seu empenho e se manifestaram em acordo com a
identidade de sua obra.
Para terminar, ressaltamos que Bezerra da Silva, como um meio de se pensar os
conceitos da cultura, expôs que a existência de vários pensamentos e realidades em uma
mesma sociedade não pode impedir que haja o reconhecimento de um diálogo intenso que não
se encerra na simples oposição de forças, nem em prol de uma tradição genuína ou de
deturpações dos meios que conduzem a divulgação da arte contemporânea. Nesse sentido,
verificamos que Bezerra traz consigo inúmeras possibilidades interpretativas que carrega na
sua vida e obra, de modo a atestar a pertinência da canção que vaidosamente cantou sobre si:
“É esse aí que é o homem”!
141
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da tentativa de analisarmos a obra de Bezerra da Silva nos deparamos e
flertamos com várias formas de tratar, estudar e entender nosso objeto. Sendo assim, ao
percorrermos o caminho da busca pela compreensão dos significados que giram em torno da
obra do sambista, nos vimos perante uma série de possibilidades acadêmicas que nos
mostrava as diferentes maneiras pela qual nosso estudo poderia ser empreendido.
Retomando a sensação do primeiro encontro com a obra do artista, lembramos
que fomos tomados pela instigante impressão de que Bezerra da Silva despertava elementos
corriqueiramente ligados a toda uma tradição do samba. Dessa maneira, nos focamos naquela
figura que se vestia e se portava como malandro, amealhando um vasto número de canções
que caracterizavam as situações relacionadas a esse típico personagem do morro. Com a
impressão de que ele cantava sobre si mesmo, foi rápida a decisão de estudá-lo a partir de
suas músicas, pois não restava dúvida que a capacidade interpretativa de sua obra estava
acompanhada pela autoria do que era cantado.
Assim que tivemos maior contato com sua carreira, descobrimos, com bastante
espanto e surpresa, que Bezerra da Silva não era o autor de suas canções, mas um intérprete
das letras de um “time de compositores” dos morros. Esse primeiro desnudamento fez com
que vislumbrássemos outras possibilidades no estudo de sua obra, pois pensávamos que um
malandro estaria sempre encoberto por máscaras que escondiam sua real faceta, de modo que
não poderíamos enquadrá-lo em uma única definição. Paralelamente, ainda nos
questionávamos sobre o incrível sucesso obtido pelo sambista em plena década de 1980,
quando o rock brasileiro e outros gêneros musicais surgiam como novidades aparentemente
distantes das experiências do já reconhecido samba-símbolo-nacional.
Justamente nesse ponto em que tantos contrastes aparecem é que optamos por
estudar a indústria cultural e a tradição como conceitos norteadores do sentido de uma
discussão sobre o samba no mercado fonográfico moderno e verificamos como se dá a vida e
a obra de um sambista marcado por esta mesma tensão. Para tanto, tivemos a preocupação de
delimitar um debate que pudesse apresentar o parecer de relevantes pensadores sobre os
sentidos de tradição e indústria cultural.
No que tange à tradição, verificamos que a maior parte dos debates se concentrava
em duras críticas que, geralmente, denunciavam o aspecto empobrecedor do emprego deste
142
conceito. Assim, vimos que a tradição enquanto conceito aparecia em vários contextos com
intenção de perpetuar uma maneira de se enxergar o passado ou transgredir as compreensões
variadas sobre os objetos inseridos na História. A partir dessa constatação, pudemos expandir
nossa compreensão sobre tradição e confrontá-la com outros conceitos que também trabalham
as impressões do passado, como o “costume” e a “tradição inventada”, trazidos por Eric
Hobsbawm.
Desta forma, acabamos por perceber que inventadas ou desenvolvidas
naturalmente, as tradições não podem ser seccionadas entre o que pretende ser verdadeiro e o
que é falso. E, deslocando este conhecimento para a análise da obra de Bezerra da Silva,
percebemos a aplicação desta idéia ao notarmos que ao mesmo tempo em que ele reinterpreta
a figura do malandro, mostrando que a antiga idéia de aversão ao ócio não se aplica ao
personagem que canta em seus sambas, ele coloca que alguns elementos de seus sambas,
como a gíria, são frutos de um hábito ancestral supostamente advindo dos tempos de
escravidão.
Ao entendermos a relação que se traça tanto na obra de Bezerra como na própria
trajetória do samba, vimos que os dados tradicionais não poderiam se isolar sob uma única
explicação, de modo que nos empenhamos a investigar como esse gênero musical pôde
assumir diferentes formas com o passar das décadas do século XX. Assim, tratamos de
observar de que maneira ocorre a transição entre o samba excluído da cena musical brasileira
e aquele que se torna produto cultural moderno, configurando como valoroso nicho da
formação da identidade cultural do país, dominando, por muito tempo, o espaço dos maiores
canais de entretenimento tupiniquins.
Diante desta análise, pudemos destacar outros posicionamentos adotados pelo
samba, de maneira a delinear um eficiente leque de questões que dialogam com a obra de
Bezerra da Silva, permitindo-nos ver quais signos tradicionais do estilo estiveram em contato
com a produção do artista. Além deste contraponto, nosso interesse também se pautou na
observação da ligação do samba ao desenvolvimento da indústria cultural brasileira e também
na discussão de como este gênero musical serviu como intermediador de várias questões
relacionadas aos destinos da cultura nacional.
Nesse sentido, relevamos o sucesso de Bezerra da Silva em função da notoriedade
alcançada pelos símbolos tradicionais brasileiros ao mesmo tempo em que reconhecemos sua
força junto a outros nichos musicais pela incorporação de um vigoroso conjunto de críticas
143
sociais, políticas e econômicas e também pelo realce sobre a malandragem e a vida no morro.
Ao cantar sobre repressão policial, corrupção política, miséria, falcatruas religiosas e
consumo de drogas, percebemos que Bezerra acabou tendo a sua obra aproximada à proposta
de outros artistas que tentavam inserir esse mesmo universo de temas em suas canções.
Quando tratamos de indústria cultural, tomamos como ponto de partida o
desenvolvimento do binômio arte e engajamento da década de 1960 e a lógica vigente da
época – e quebrada por Bezerra – em que o desenvolvimento da indústria cultural implicava
na despolitização no campo da cultura. Nesse contexto, pudemos entender a figura de Bezerra
como um artista capaz de ir contra a lógica do mercado, rompendo com a necessidade de
amparo midiático e focado em denunciar, a seu modo, as mazelas da sociedade que se
aproximavam da sua própria história de vida.
Por meio dessas reflexões, foi possível equacionarmos a figura de Bezerra da
Silva, em resolução ao antigo dilema do nacional-popular, como um sujeito ligado às classes
populares, praticante de um tipo de música reconhecidamente “brasileira” que utilizava para
colocar em discussão problemas de grande relevância política. No entanto, não pudemos
simplificar a vida de nosso objeto à simples vitória da “cultura popular nacional” sobre as
antigas polêmicas a ameaçavam, pois Bezerra, mesmo sendo contundente em suas críticas aos
órgãos que comandavam o mercado fonográfico nacional, enfatizava que o sucesso comercial
era válido e decorrente da certeza da qualidade pessoal do artista.
Em nosso estudo, nos deparamos com a felicidade do artista que fazia questão de
salientar sua qualidade pela venda dos muitos discos, mas também vimos a decepção do
intérprete que julgava não receber as devidas compensações financeiras pelo seu triunfo.
Desta maneira, trabalhamos com as contradições de um certo Bezerra da Silva que ao mesmo
tempo em que proclamava sua independência das garras da indústria cultural, mostrava-se
aberto a conceder entrevistas para jornais, apresentar-se em programas televisivos e
protagonizar documentários que pudessem o colocar em evidência e dar o devido destaque
para sua carreira e obra.
Por meio dessas brechas que encontramos em meio a sua obra e a maneira pela
qual ela se confunde com sua vida e pela análise dos vários contrastes que percebemos em
suas falas, procuramos salientar que Bezerra se mostrou aberto ao diálogo com outras
manifestações musicais contemporâneas à sua carreira. Sendo assim, salientamos as parcerias
que fez com os integrantes do BRock e também a grande importância que teve para artistas
144
que trouxeram rap e o hip-hop para o Brasil, configurando como referência pessoal e artística
para vários músicos de uma nova geração.
Como exemplo para aqueles que começavam a integrar o campo artístico
brasileiro, salientamos como Bezerra da Silva era capaz de entender as transformações da
música nacional não como uma invasão estrangeira, mas como um caminho natural que
levava adiante a música como linguagem universal. E por esta visão tão despreendida, nos
fascinamos ao perceber que Bezerra, no reconhecimento e contato com as novas gerações, se
colocava cada vez mais como um sucesso a ser prestigiado por outros públicos que acabavam
por consumir sua arte.
Após percorrermos, através de inúmeros documentos e canções, as peripécias e
contradições do artista que nos extasiou desde o primeiro contato, pudemos levantar várias
questões sobre a importância de sua vida e obra e refletir sobre a importância destas para o
cenário musical brasileiro. Desta maneira, descobrimos que as teimosias e habilidades de um
exímio instrumentista que interpretava canções alheias poderiam flertar com a teoria
acadêmica, possibilitando um vasto campo de interpretações a cerca das manifestações e
debates culturais.
Nesse sentido, integramos o universo do samba e o confrontamos com a produção
de nosso objeto para descobrirmos de que maneira ambos se adequaram às diferentes
interpretações que se transcorreram em suas trajetórias. Com este intuito, descobrimos, nas
várias letras, falas e ritmos operados por Bezerra, que nosso objeto de estudo, assumindo a
postura do malandro, lançou sua existência estética, política e pessoal de diversas maneiras,
“provando e comprovando...” – como traz o título de um de seus discos – “... a sua
versatilidade”.
145
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149
ANEXOS
ANEXO I
Parte contra-capa do disco “Alô malandragem, maloca o flagrante” contendo o “Dicionário Bezerra da
Silva de Malandrez”.
150
ANEXO II – FOTOS DIVERSAS DE BEZERRA DA SILVA
Bezerra da Silva e Moreira da Silva posando juntos para matéria para o Jornal do Brasil (junho de 1986).
Bezerra da Silva posando na frente da Igreja Universal do Reino de Deus, em março de 2002.
A cela, as algemas e o disco: Bezerra da Silva e os limites entre a vida e os discos gravados.
151
Bezerra da Silva tendo a favela como paisagem de fundo.
Em seu apartamento no bairro carioca do Botafogo. Ao fundo, as capas de alguns de seus vários discos.
De terno e faixa presidencial durante as fotos para a divulgação do disco “Presidente caô caô”.
152
Bezerra empunhando uma guitarra, instrumento que remete aos vários roqueiros que o prestigiaram.
Participando de “chat” nos primeiros anos da internet no Brasil, em fevereiro de 1999.
Bezerra da Silva durante as gravações do documentário “Onde a coruja dorme”.
153
Bezerra da Silva (centro) fotografado junto aos vários compositores que gravou no encarte do disco “Alô
malandragem, maloca o flagrante”.
Bezerra da Silva encenando o registro de sua “ficha criminal” para mais um de seus discos.
154
Mais uma capa de disco: o descompromisso da mesa de bar junto ao amigo e cantor Genaro.
O ambiente boêmio mais uma vez explorado para as fotos de uma matéria, em julho de 1985.
Uma de suas últimas aparições, em dezembro de 2003.