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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA RAINER GONÇALVES SOUSA BEZERRA DA SILVA E O CENÁRIO MUSICAL DE SUA ÉPOCA: ENTRE AS TRADIÇÕES DO SAMBA E A INDÚSTRIA CULTURAL (1970 – 2005) Goiânia 2009 RAINER GONÇALVES SOUSA BEZERRA DA SILVA E O CENÁRIO MUSICAL DE SUA ÉPOCA: ENTRE AS TRADIÇÕES DO SAMBA E A INDÚSTRIA CULTURAL (1970 – 2005) Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História, da Faculdade de História, da Universidade Federal de Goiás, como requisito para a obtenção do Título de Mestre em História. Área de concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades. Linha de Pesquisa: Sertão, Regionalidades e Projetos de Integração. ORIENTADOR: Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Júnior Goiânia 2009 RAINER GONÇALVES SOUSA BEZERRA DA SILVA E O CENÁRIO MUSICAL DE SUA ÉPOCA: ENTRE AS TRADIÇÕES DO SAMBA E A INDÚSTRIA CULTURAL (1970 – 2005) Dissertação defendida no Curso de Mestrado em História, da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do grau de mestre, defendida em __________/__________/__________, perante a banca examinadora composta pelos seguintes professores: BANCA EXAMINADORA __________________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Júnior (UFG) (PRESIDENTE) __________________________________________________________________ Profa. Dra. Adriana Fernandes (UFPB) (ARGÜIDORA) __________________________________________________________________ Profa. Dra.Maria Amélia Garcia Alencar (UFG) (ARGÜIDORA) __________________________________________________________________ Prof. Dra. Fabiana de Souza Fredrigo (UFG) (SUPLENTE) Goiânia, _____, de ___________________ de 2009 Para todos aqueles que possuem a ciência de que nada disso seria possível sem a marcante presença que meu pai ainda tem na minha vida. AGRADECIMENTOS À todas as figuras que fizeram desse caminho uma experiência de valor inestimável: Todos os meus familiares e amigos, que mesmo nem sempre compreendendo exatamente a importância desse trabalho, me apoiaram com gestos e palavras mais valorosas que qualquer discussão acadêmica. Camila Ligeiro, uma namorada de paciência e carinho infinitos, que deu grandes contribuições subjetivas e formais à dissertação. Carlos Oiti, um professor de incrível capacidade, que, justamente no último semestre da graduação, renovou a minha relação com a História. Fabiana Fredrigo, que apareceu nos instantes finais desse trabalho com sugestões de uma pertinência fantástica. “Eu sou do pico da colina maldita E se Deus deu asa a cobra, a um punhado de bambas Já mandei a minha nega pro inferno E também viajei no apolo do samba Sou produto do morro Sou malandro rife nesse mundo cão Gatuno que entra na casa de pobre Toma tapa da minha sogra sapatão E depois sai gritando pela rua: – Pega eu que eu sou ladrão! O Chico também não deu sorte Para o bicho feroz tenho a planta maneira Liberdade é um lindo samba de quadra Fruto da minha querida Mangueira Veja bem que o malandro era forte Mas cipó caboclo foi quem lhe amarrou E virou comida de piranha Porque não aprendeu a ser um bom sofredor Ele se diz da pesada Porém é um judas traidor Quis bagunçar o meu coreto Fez a cabeça sozinho, esquecendo do vovô(…) Veja bem que o mané só fez graça E o que fez o pai véio 171 Ele vendeu a bata do vovô Pro tal Zé Fofinho de Ogum Sou federal, já falei com você Crocodilo comigo acaba no pinel Defunto cagüete foi barrado no inferno Como é que ele pode ter vez lá no céu E por isso que vou contar até três Pra tu sair da aba do meu chapéu Aqueles morros que eu exaltei É do Pedro Butina, eu posso provar Joel Silva diz que não tem culpa Se ele não tem onde morar Saudações às favelas é do Sérgio Fernandes Todos do Morro do Galo, que é o meu lugar” (Romildo – Edson Show – Naval) RESUMO Este trabalho tem como objetivo fundamental estabelecer uma leitura sobre a trajetória do sambista Bezerra da Silva a partir do legado artístico por ele deixado. Nesse sentido, promovemos uma revisita às temáticas e questões inseridas na história do samba e pensamos a importância do sambista no contexto de sua época a partir do diálogo com sua obra. Para repensarmos os valores de seu trabalho e a estima de suas contribuições para a música brasileira, recorremos aos conceitos de tradição e Indústria Cultural, aqui entendidos como elementos riquíssimos para a explorarmos os contrastes e a complexidade da sua produção artística. ABSTRACT This work aims to establish a reading about the pathway of Bezerra da Silva from the artistic legacy that he left. Thereby, we promoted one revisit to the themes and questions inserted on the history of samba and we thought about the sambista’s importance in the context of his time from the dialogue with his work. To rethink about the values of his production and the esteem of his contributions to the brazilian music, we appeal to the concepts of tradition and cultural industry, understood here as rich elements for us to explore the contrasts and the complexity of his artistic production. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10 CAPÍTULO I – AS TRADIÇÕES MARCADAS NO SAMBA .................................. 13 1.1 TRADIÇÕES NO SAMBA: A RAÇA E A RESISTÊNCIA ............................... 16 1.2 DA CASA, DA ESCOLA, DO RÁDIO ............................................................... 28 1.3 FORA DAS ESCOLAS, DENTRO DAS RODAS... E MAIS DISCOS.............. 44 CAPÍTULO II – BEZERRA DA SILVA: UM CAMINHO BIOGRÁFICO E MUSICAL ........................................................................................................................ 57 2.1 A CHEGADA ATÉ O MALANDRO .................................................................. 60 2.1.1 “Mas eu sou aquele que chegou do Nordeste para tentar...” ......................... 60 2.1.2 “Com o Bezerra não tem amor, né?” ............................................................ 64 2.1.3 “Eu sou favela” ............................................................................................. 67 2.1.4 Os “compositores de verdade” ...................................................................... 71 2.1.5 No tempo em que Bezerra “não via nada assado” ........................................ 75 2.2 “O POBRE INTELIGENTE” : DISCUSSÃO SOBRE O MALANDRO ............ 79 2.2.1 “Não tenho nada de polêmico” ..................................................................... 89 2.2.2 Bezerra: falando de seu tempo e a sua última malandragem ........................ 93 CAPÍTULO III – TRADIÇÃO E INDÚSTRIA CULTURAL: CONFLITOS E DESAFIOS..................................................................................................................... 100 3.1 TRADIÇÃO: UM PONTO DE PARTIDA .......................................................... 102 3.1.1 Michael de Certeau e a bela morte da cultura popular .................................. 105 3.1.2 Hobsbawn e Bakhtin: o poder da invenção e a ruptura do diálogo............... 108 3.2 INDÚSTRIA CULTURAL: O CONCEITO E SUA PROJEÇÃO....................... 113 3.2.1 Conceituando a Indústria Cultural ................................................................ 113 3.2.2 A indústria no Brasil: projeções e experiências ............................................ 118 3.3 BEZERRA: NOSSO ÚLTIMO INTERLOCUTOR ............................................. 125 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 141 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 145 ANEXOS ......................................................................................................................... 149 ANEXO I ..................................................................................................................... 149 ANEXO II – FOTOS DIVERSAS DE BEZERRA DA SILVA .................................. 150 10 INTRODUÇÃO Nesse trabalho, temos como intenção fundamental revisitar a vida e o legado artístico do sambista Bezerra da Silva por meio de um processo que busca resgatar os referenciais que abarcam as diferentes possibilidades de compreensão sobre nosso objeto. Para tanto, optamos por desmembrar nossa produção em três capítulos que apresentam, respectivamente, um panorama sobre a história do samba, a biografia de Bezerra da Silva em contato com a sua obra, e, por fim, a maneira pela qual o conjunto de sua carreira pode ser analisada e compreendida a partir dos conceitos de tradição e indústria cultural. Sendo assim, inicialmente, procuramos fazer uma visita aos temas, discussões e transformações que se destacaram na história do samba, de maneira a considerá-lo como um gênero musical centenário que extrapola o recorte espaço-temporal da trajetória de Bezerra da Silva. Contudo, a brevidade de nossos comentários foi necessária devido a impossibilidade de abarcar toda narrativa do samba em apenas um capítulo. Assim, fomos levados a realizar algumas escolhas que estabeleceram os critérios para a rápida apreciação desse gênero musical longevo. A seleção se deu em função do estudo das diferentes tensões que giraram em torno do samba, que aparece como símbolo cultural moderno, e também do estudo do desenvolvimento da indústria cultural brasileira. Dessa maneira, procuramos entender os acalorados debates intelectuais que se propuseram a delinear a existência de uma tradição musical nacional através do batuque do samba e buscamos expor o amplo leque de negociações e mudanças que se manifestaram ao longo das décadas no campo musical brasileiro, destacando os fatos e discussões do samba que são próximos à carreira de Bezerra da Silva. A partir daí, desenvolvemos o capítulo intermediário com enfoque na construção da carreira do nosso sambista, primando por ressaltar seus primeiros contatos com a música e também a série de desencontros que passou até alcançar sucesso. Mais que um restrito exercício biográfico, essa parcela do texto tentou retratar a vida de Bezerra por meio do diálogo travado entre as canções que interpretou e as declarações e os relatos oferecidos por ele e pelos que o cercaram. Nesse sentido, foi possível analisarmos de que modo os eventos de sua vida acabaram por ser retratados nos sambas que gravou e observarmos como essas 11 canções puderam trazer à tona a continuidade do debate que pretendia refletir sobre os referenciais que definiam esteticamente e culturalmente os valores assumidos pelo samba. Apesar de fazermos uma ponte entre a história do samba e o caminho percorrido por Bezerra da Silva em sua carreira, primamos por também considerar o contexto em que ele aparece como artista, destacando questões além da sua figura de malandro, morador do morro carioca e intérprete de partido alto. Para isso, analisamos de que maneira ele conseguiu se firmar como cantor, obtendo excelentes vendagens de discos e chamando a atenção da classe artística, dos críticos e jornalistas em plena década de 1980. Dentro deste parâmetros, destacamos como sua notoriedade no cenário musical brasileiro evidencia uma série de símbolos que o apontam como representante de uma manifestação artística legitimada por signos próximos ao samba, especialmente nas primeiras décadas que envolvem a consolidação do gênero musical. Todavia, nosso intuito não se limitou a encerrar a carreira de nosso objeto ao campo de uma tradição a ser revisitada de forma purista. Assim, pela própria evocação dos símbolos tradicionais, discutimos a singularidade da apropriação destes na obra de Bezerra através do estudo de sua relação com o passado do samba que abre espaço para que a reinterpretação da tradição se torne viva, podendo ser observada sob os pontos de vista de diferentes teóricos. Nesse sentido, não nos mantivemos na tentativa de aplicar um conceito de tradição adequado ao modo pelo qual Bezerra da Silva evoca as tradições do samba, mas deixamos que o intérprete se tornasse um terceiro interlocutor que também pudesse fornecer sua perspectiva para a reflexão sobre esta e outra questões que se travam dentro e fora do universo do samba. Paralelamente, nos focamos na extensão da obra de nosso intérprete, buscando entender a notoriedade que alcançou com as canções que estabeleciam uma série de críticas de natureza política, econômica e social. Tendo em vista a aparição, na década de 1960, de diversos conjuntos, músicos e intérpretes que produziam as chamadas “canções de protesto”, analisamos o modo pelo qual Bezerra empreendeu sua distinção deste grupo e como os comentários, denúncias e opiniões que projetou em suas canções tiveram importância para cultivar essa distinção mesmo que abarcassem os mesmos temas. Por fim, nos centramos em mostrar de que maneira, no período em que começa a experimentar o sucesso do público, a obra de Bezerra se coloca como uma manifestação de significativa ruptura para aqueles cujo dilema se baseava na reflexão sobre o papel da cultura 12 nacional e sua situação diante os ditames da indústria cultural. Para tal, relevamos o fato de Bezerra da Silva não reproduzir as antigas oposições que determinavam a compreensão da arte musical brasileira de maneira a se portar como um malandro que observa outros caminhos para a compreensão de sua produção, que se inclina para outras reflexões ocorridas no cenário cultural nacional. Para que a obra de Bezerra da Silva pudesse ser analisada desta maneira, primando pelos diálogos que faz com a história do samba e com as demais manifestações artísticas do Brasil e também para que a vida deste intérprete fosse revisitada, destacando a força do homem que procuramos destacar, empreendemos uma escuta cuidadosa de toda sua discografia e também tivemos acesso a um extenso cabedal de informações sobre nosso objeto. Sendo assim, a discussão explorada nesta dissertação não se restringiu ao simples conhecimento de sua obra e de sua biografia, mas ao uso de documentos teóricos, matérias jornalísticas e letras de canções como material de exaustivo trabalho para a tímida compreensão (pelo entendimento de que muito mais possa ser discutido) sobre os entremeios que perpassam a vida e a produção do artista que aprendemos a admirar. 13 CAPÍTULO I – AS TRADIÇÕES MARCADAS NO SAMBA “Uma coisa é certa: a idéia de preservação do samba tem uma força considerável” Hermano Vianna Os debates a respeito da identidade cultural brasileira sempre tiveram a preocupação em levantar e defender quais tipos de manifestação artística poderia definir a existência de bens culturais próprios. No que tange ao campo musical, o samba acabou ganhando lugar de destaque ao ter seu processo de formulação traçado em uma mesma época em que diversos intelectuais concordavam sobre a originalidade contida nos ritmos musicais que entravam em consonância com a busca por práticas surgidas em meio aos “homens simples” que habitavam os meios urbanos e rurais do território brasileiro. Contudo, a história do samba também está vinculada ao processo de desenvolvimento da indústria cultural brasileira, que dava seus primeiros passos no começo do século XX. E esta relação tem sido tema recorrente nas obras mais recentes que pensam sobre o samba em algum de seus momentos, pois se trata de um movimento de constituição dos próprios ícones tradicionais desse gênero musical. Quem indica esse paralelo é Mareia Quintero-Rivera, que, em sua obra, “A cor e o som da nação – a idéia de mestiçagem na crítica musical do Caribe Hispânico e do Brasil (1928 - 1948)”, que fala sobre o desenvolvimento dos estudos sobre folclore no Caribe e no Brasil. Segundo a autora, só houve a preocupação em selecionar uma cultura que pertencesse ao povo quando o disco e o rádio se puseram à frente dos pensadores da cultura como novidades que levariam a arte a um campo de possibilidades bem distantes da “autenticidade” estabelecida em outros tempos. Isto porque esta maneira ancestral de produzir cultura parecia não mais se adequar, por questões estéticas ou sociais, ao dinamismo industrial que permitia o consumo rápido da arte produzida em outras partes do mundo. No que diz respeito à preocupação citada, Quintero-Rivera esclarece que a idéia de popular não somente passou a se referir, necessariamente, à cultura de pessoas mais simples, como também permitiu a construção de um conceito em que “povo” – que age em prol da criação da ‘cultura popular’ – designa a formação de um “ethos nacional autêntico” (2000, p.100). Seguindo o mesmo debate intelectual da época, Hermano Vianna, em sua obra, 14 “O mistério do samba”, tenta problematizar acerca das questões ligadas à construção de uma identidade nacional sustentada pela definição de uma cultura popular. Para tal, logo no capítulo inicial de seu livro o sociólogo carioca analisa um encontro entre membros da elite intelectual da época e um grupo de sambistas na cidade do Rio de Janeiro – considerada um dos principais locais de desenvolvimento do samba. Para ele, este seria um exemplo vivo a partir do qual poderíamos compreender que o contato entre as elites e as classes subordinadas afasta a idéia de uma cultura pura em que o samba seja simplesmente reconhecido por meio de uma “inegável qualidade” que o tornou brasileiro e portador de um intrigante “mistério”. Para corroborar com a idéia de um misterioso processo sugerido por Vianna, destacam-se, ainda, as obras “Nem do morro, nem da cidade – as transformações do samba e a indústria cultural (1920 – 1945)”, do historiador José Adriano Fenerick e “Samba e mercado de música nos anos 1990”, do musicólogo Felipe da Costa Trotta; ambas recentes e que, de forma direta ou indireta, dão continuidade às primeiras hipóteses já oferecidas. A primeira, publicada no ano de 2005, trata da defesa do samba como bem cultural de natureza moderna que não pode ser admitido pelos pressupostos de ordem folclórica que anteriormente pensavam e restringiam a história do samba. A segunda, por sua vez, faz outro recorte espaço-temporal e descreve a história de um dos mais recentes estilos do samba, o pagode. Oferece, ainda, uma curiosa perspectiva sobre seu surgimento através de sua trajetória, o que leva à certeza de que modernidade e tradição continuam a se opor de maneira a tencionar os debates em torno dos significados e características do samba no final do século XX. O que é possível perceber, mesmo na breve elucidação dessas obras, é a instigante presença de um mesmo elemento em dois recortes distintos da história do samba: a indústria cultural. Evidenciamos, assim, a constatação de que a “tradição do samba” caminha constantemente ao lado de uma instituição responsável pela degeneração da música autêntica, insubordinada às tradições e interessada em ampliar seus interesses, sempre prioritariamente comprometidos com os lucros obtidos da exploração mercadológica dos bens culturais. E é partindo dessa estranha aproximação observada nos mais diferentes contextos que podemos perceber que o samba – pensado como lugar de uma tradição popular e nacional – ao longo do tempo, nos fornece, através de sua antítese, um importante referencial de sentidos referentes à sua complexa verdade estética. Assim, ao longo de outras análises mais 15 apuradas, iremos salientar de que maneira a eficiência lucrativa da indústria “sedenta” por rentáveis atrações (musicais, cinematográficas e televisivas) enfatiza pontos que a tradição do samba deseja ou não deseja ser. Começaremos, então, por destacar o fato de que o samba ganhou reconhecimento como estilo musical ao passo em que surgia uma nova maneira de se relacionar a cultura na sociedade, o que gerou situações de interessante conflito. Desse modo, percebe-se que, tanto nos estudo dos primórdios do samba, como em seus mais recentes desdobramentos estéticoculturais, a relação com uma indústria do entretenimento sedimentou os seus aspectos mais “legítimos” a serem reconhecidos por uma expressiva coletividade pertencente ou marginal à sua prática. Nota-se, ainda, que, nessa mesma relação, o samba negociou mudanças que exprimiam interesses, idéias e projetos envolvendo diferentes maneiras de representá-lo. Assim, ao longo do tempo, os costumes naturalmente arraigados e as invenções intencionadas se integraram em uma relação que permeou as várias verdades do samba e fizeram deste um gênero musical “portador de mistérios”. Estes reconhecidos dentro de uma idéia de que a tradição não pode ser excluída, e nem mesmo colocada de forma imune ou resistente a tantos outros valores que também merecem equivalente reconhecimento. Contudo, antes de estabelecer tais verdades por meio de uma história da cultura voltada para o samba, podemos aqui vislumbrar a coerência desse jogo de múltiplas (o)posições interligadas ao reproduzirmos a letra de Escasseia, um samba gravado por Beth Carvalho, que diz: O santo que faz milagre Também castiga O chão que dá flores Também dá urtiga A mulher que ama Também odeia E tudo que dá em abundância Escasseia. A partir dessa canção podemos fazer um primeiro contato que nos permite reconhecer os campos de possibilidades de argumentos acerca da discussão entre tradição e indústria cultural. Para tal, recorremos, a princípio, ao título do álbum do qual Escasseia faz 16 parte: Na Fonte 1, de 1981, que faz uma clara sugestão à ancestralidade, trazendo uma referência para um passado a ser revisitado. Contudo, a letra da canção traz uma perspectiva distinta, que enxerga uma noção de tempo, transformação e multiplicidade que deve ser vista no mundo e nas coisas. 1.1 TRADIÇÃO NO SAMBA: A RAÇA E A RESISTÊNCIA Antes de se estabelecer como gênero musical, o samba ainda não possuía uma maneira específica de ser realizado e se manifestava através de formas bastante livres e improvisadas, de maneira a não demonstrar uma unidade ou conjunto específico que denotasse uma origem particular. Assim, só veio a ser reconhecido a partir de um processo de formalização, relativamente eficiente, que veio a fixar algumas de suas práticas. Logo, percebe-se que passou pela própria definição de uma expressão sonora sendo reconhecida como música, e, depois, como um gênero musical, perpassando um complexo processo em que os sons são utilizados como elementos produtores de sentidos expostos à interação de grupos sociais – que respondem diversamente àquelas situações que poderiam nos contar sobre a origem do samba. Para ter uma idéia de seu surgimento, recorremos à cidade do Rio de Janeiro, entre os séculos XIX e XX, já que admitimos ter acontecido nela as primeiras situações históricas ligadas ao samba. Dessa maneira, destacamos os trabalhos que tratam sobre os debates, mudanças políticas, urbanas e sociais estabelecidas nesse espaço de tempo e também o fim da escravidão e a transição do regime monárquico para o republicano. Teoricamente, o Brasil se colocava em um novo panorama, abandonando velhas práticas políticas e convertendo os seus súditos em cidadãos que, vistos em conjunto, eram “compostos na sua maioria por descendentes de escravos” (NABUCO, 2000, p.104). Contudo, um novo regime e o fim da escravidão não traziam fim a outros diversos problemas que se apresentavam, abrindo caminho para discussões de problemas que antes eram encobertos pelas posições político-sociais adotadas pelo tão criticado “passado colonial”, que imperava no lugar por meio da exploração dos indivíduos e a geração de riquezas. Sendo assim, a superação desses dois problemas revelou uma urgência em se refletir 1 Beth Carvalho, Na Fonte, RCA Victor, 1981 17 a identidade nacional, que tomava maiores proporções dentro dos debates intelectuais da época. Com isso, apareciam novas discussões em que a superação do atraso deveria contar com a defesa e a valorização de uma nação autônoma, de um país que poderia ter uma identidade própria a partir do momento em que as mudanças sócio-políticas abrissem portas para a reflexão sobre as características de uma nação pronta para a sua própria autonomização. Assim, ao mesmo tempo que observamos a indefinição de elementos estéticos para a formação nacional, vislumbramos o surgimento de um contexto em que debates sobre a nação pululavam nos dizeres de uma elite intelectual preocupada em contornar uma identidade brasileira ao mesmo tempo original e admirada pelo mundo todo. Em linhas gerais, esses intelectuais discutiam a identidade nacional por um olhar que sintetizava duas tendências que circulavam no mundo cultural europeu: por um lado, o interesse por elementos de culturas consideradas ‘primitivas’ e, por outro, a nacionalização da expressão artística. A junção de ambas tentativas foi criando um novo olhar em torno das diversas manifestações culturais que se desenvolviam no interior do território nacional (QUINTERO-RIVERA, 2000, p.23). Nesse sentido, havia uma preocupação em igualar o novo projeto de nação aos percebidos nos países do Velho Mundo. Contudo, a tentativa de se equiparar com as culturas européias definidas acabava gerando um desejo de se negar a própria Europa consolidada como um paradigma a ser copiado. Dessa maneira, procurava-se estabelecer uma nacionalização apoiada em diversos trabalhos interessados em conduzir o desafio de formação de uma cultura original por meio da demonstração de uma série de manifestações originais. De forma sintética, o mais novo intento dos intelectuais do período era direcionar o olhar para sua própria cultura, na expectativa de conseguir alcançar o projeto de criar uma expressão moderna e, ao mesmo tempo, atemporal [por meio] de um processo de naturalização do novo (...). [e], perante a incorporação de elementos da cultura popular no registro de símbolos da nação, o debate sobre a autenticidade das manifestações populares adquiriu uma importância fundamental. (ibidem, p.42). 18 Em um momento análogo ao “de um país que se modernizava, que queria ter um projeto de nacionalidade expresso por um bem cultural moderno” (FENNERICK, 2005, pg.25), o samba pincelava suas primeiras novidades sonoras e o moderno nacional abria caminhos para uma série de negociações que exigiam o confronto de idéias completamente antagônicas sobre que tipo de manifestação cultural melhor representaria a nação. Assim, os ideais acerca desta viviam o embate entre as semelhanças estético-culturais do Velho Mundo e a valorização daquilo que era visto como genuinamente brasileiro, de maneira que mimese e originalidade articulavam diferentes vias defensoras da concretização de um cenário artístico e intelectual autônomo e, ao mesmo tempo, integrado pelo reconhecimento amplo da cultura brasileira. Como o embate antagônico que permeava o projeto não foi resolvido, a ausência de uma hegemonia nos ideais de consolidação da cultura revela, na verdade, uma seqüência de ações e idéias de maior complexidade que acabavam por se tangenciar. Um exemplo dessa indecisão pode ser percebido, inclusive, no próprio processo de reorganização urbana pela qual passou a cidade do Rio de Janeiro, cenário que comportou o surgimento do samba. Dessa maneira, percebe-se que a mesma cidade que progredia e se embelezava de acordo com as inspirações arquitetônicas e urbanísticas européias, acabava por conviver com problemas sociais distantes do progresso das novas construções. Isto porque a cada dia chegavam mais pessoas – na sua maioria, ex-escravos, mestiços e populações rurais – à capital federal em busca de novas oportunidades. Contudo, ao mesmo tempo em que oficializavam o fim da barbárie e escravidão, pertencentes a um passado bem recente de nosso país, criavam um impedimento à realização dos ideais de nação desenvolvidos pelos intelectuais, bloqueando a constituição de um cenário de harmonia civilizatória com a ocupação improvisada de casarões e cortiços espalhados em variados pontos do Rio de Janeiro. Percebe-se, assim, que a chegada desse contingente populacional trouxe uma situação de improviso para uma cidade que, desde meados do século XIX, crescia para todos os lados, com os novos trabalhadores ocupando diversos espaços de um lugar em desenfreada expansão. Conforme explicação do geógrafo Andrelino Campos, Historicamente, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, as favelas, assim como os cortiços, surgiam no cenário urbano carioca para suprir o hiato formado pelo déficit habitacional, abrigando, inicialmente, em sua grande maioria, uma massa de pobres que procuravam habitar próximo aos locais onde era oferecido trabalho, 19 principalmente para aqueles que não detinham qualificação profissional (2005, p.21). Além de ocuparem novos postos de trabalho, os novos habitantes integraram também as discussões do universo dos intelectuais que assistiam as contradições de uma cidade que se embelezava e modernizava às custas de um população que simbolizava a oposição a esse cenário de renovação urbanística. Assim, tanto os casarões antigos quanto aqueles que, segregados, ali moravam, faziam parte de um cenário desprovido dos padrões europeus buscados, de maneira que a percepção dessa população de maioria ex-escrava e negra exigia uma compreensão mais direta, desvinculada dos horrores da senzala. Tal como os intelectuais, eles se tornaram – mesmo que somente no plano do discurso oficial – cidadãos a serem, de alguma forma, reconhecidos, trazendo para si o interesse de se julgar suas práticas culturais. Contudo, por mais que sua aproximação desse a idéia do fim do antagonismo entre escravos e livres, ainda estavam submissos ao julgamento de uma visão de civilidade projetada na presença de uma humanidade hierarquizada em raças, onde o negro ocupava posição inferior. No âmbito da produção musical, essa hierarquização não se mostrava diferente, pois, retomando a obra de Maria Quintero-Rivera, no que diz respeito às críticas musicais da primeira metade do século XX, ela observa a existência de escritos que ressaltavam a decadência do gosto musical por meio da popularização das experiências sonoras influenciadas pelas tradições musicais africanas. Para ela, a partir dessa situação, vê-se que as críticas partiam de uma visão universalista em relação à linguagem musical, associando os sons de origem negra e africana ao “relaxamento dos princípios morais”, “ao álcool e ao submundo” ou o “caráter supostamente anárquico e estrepitoso da tradição africana” (2000, p.129). Voltando à questão da ocupação dos cortiços, a retirada dessas habitações integrava um projeto inspirado na ordenação espacial de grandes cidades européias vistas como exemplo de harmonia, requinte e planejamento. Dessa maneira, surgiram várias justificativas para seu desaparecimento com o intuito de empreender a higienização e a modernização de vários espaços urbanos cariocas. Antes disso, conforme aponta José Murilo de Carvalho, a cidade do Rio de Janeiro era conhecida 20 (...) pelas freqüentes epidemias de febre amarela, varíola, peste bubônica. Era cidade ainda colonial, de ruas desordenadas e estreitas, com precário serviço de esgoto e abastecimento de água. As residências não tinham condições higiênicas. Havia numerosa população no mercado informal, acrescida nos últimos anos do século pela migração de ex-escravos. No verão, a elite local e os diplomatas estrangeiros, para fugir das epidemias, mudavam-se para Petrópolis, cidade de clima mais saudável. (2001, p.73) No entanto, a questão do entrave desenvolvimentista não se resumia aos fatos desses trabalhadores estarem em um local inapropriado ou insalubre, pois a problemática se estendia aos sujeitos pertencentes a esses espaços, que também eram vistos como um prolongamento do atraso a ser superado pela reprodução de moldes eficazmente estabelecidos pela modernidade do Velho Mundo. Nesse sentido, um dos pontos mais combatidos pelos defensores do progresso à moda européia era a inserção, na cidade, das formas pelas quais essa população economicamente subalterna utilizava para se divertir. Esse discurso do atraso ganhou os terrenos da cultura ao criticar aqueles que ficavam pelas ruas tocando violão, fazendo “arruaça” e perturbando a tão essencial “ordem pública”, mesmo naquela cidade que ganhava ares de maior civilidade. Desse modo, observase que a dicotomia entre senhores e escravos, que não se resumia a simples condição econômica, era agora deslocada para outra incompatibilidade proposta no ambiente da república, cuja função seria – ao menos em uma teoria que esteve longe do que fora posto em prática – de manter todos iguais mediante a proteção das leis. No que diz respeito a esse novo contexto, Fenerick salienta que Apareceram novas praças... novos prédios, novas avenidas... um imenso boulevard ‘botou abaixo’ as antigas construções coloniais e rapidamente se transformou na coqueluche da burguesia carioca... foram expulsos todos os habitantes de cortiços e malocas, os freqüentadores de botequins... Perseguia-se o seresteiro e instrumentos populares como o violão e o pandeiro, os ‘pés descalços’ e os ‘sem camisas’, os macumbeiros, os curandeiros populares... Os dois mundos, o da elite civilizada e o da plebe atrasada, pareciam bem separados, mas isso era mais um desejo do que propriamente um fato... As muralhas da cidadania estavam construídas, mas os sons e a música, ao que parece, não respeitam muito essas paredes sócio-políticas (FENERICK, 2005, p.30-31) O autor aponta para a idéia de que esse processo excludente e distintivo aconteceu, mas não determinou uma situação homogênea que poderia, dentro de tal contexto, fazer do samba algum tipo de cultura de resistência ou restrita àqueles que sofriam com os problemas de uma cidade em transformação. Isso porque, a esta altura de sua tese, ainda não 21 trabalha com o momento em que o samba experimenta situações de grande prestígio e reconhecimento nos meios de comunicação da época. Mesmo trazendo posteriormente essa perspectiva de encontro, percebe-se que a conclusão dada por Fenerick não se encaixa nas explicações predominantes do mundo do samba, que visam justificar suas origens e seu valor tomando como partida a questão da exclusão social e econômica. Nesse sentido, para o autor, o samba se materializa por meio de sujeitos inicialmente envolvidos com seu desenvolvimento estético, confirmando a idéia de que estes saem em busca de uma cultura genuína e popular que parte daqueles historicamente “afastados” dos padrões culturais importados. De acordo com esta compreensão, o samba ganha contorno de cultura de resistência vinculada, principalmente, à figura do negro, visto como homem simples, criador de uma cultura autêntica e ligada a perspectivas folclóricas que visam definir uma feição singular à identidade cultural da nação. Assim, seria acompanhado por uma interpretação com bases na motivação histórica favorável à tese de que o samba nasce enquanto parte integrante de uma narrativa de longa duração e através desta a idéia da inserção do negro na sociedade brasileira é levada em consideração como um movimento análogo ao processo de compreensão das influências e características pertencentes ao samba. A partir dessa tese, percebe-se, então, que o samba estaria naturalmente influenciado por um passado histórico longínquo, que abraça o transporte das tradições culturais africanas por meio do tráfico negreiro. Vê-se, ainda, a idéia de perpetuação de uma estratégia mantenedora da identidade de um grupo que sofre expropriações contínuas, passando pela desterritorialização, exploração da mão-de-obra escrava e perseguição das tradições através da violência ou da conversão religiosa. Essa naturalização de uma continuidade histórica simplifica a interpretação do samba como mais uma das estratégias de resistência buscada pelas populações africanas trazidas ao Brasil para o trabalho escravo. Um exemplo que demonstra essa possibilidade interpretativa encontra-se em uma das canções do álbum “Sonho de um sambista” (São Paulo: Eldorado. 1995), gravado pelo cantor e compositor Nelson Sargento. No sugestivo título da canção “Agoniza, mas não morre” 2, temos uma tentativa de explicação de toda trajetória do samba por meio da personificação do gênero. O samba se torna portador de determinadas características físicas e morais que se contrapõem a uma série de situações de 2 Este samba foi anteriormente gravado por Beth Carvalho no LP “De pé no chão”, de 1978 pela gravadora RCA. 22 natureza impositiva e efeito corruptor. Nesse processo de luta entre uma verdade essencial do samba e a intenção de terceiros desvinculados ao gênero musical – mas interessados em apropriá-lo –, este escaparia de sua própria morte ao resistir aos engodos dos que pretendem envolvê-lo. Para esclarecermos melhor o quadro proposto pela letra, transcrevemos seu texto, que diz: Samba Agoniza, mas não morre Alguém sempre te socorre Antes do suspiro derradeiro Samba Negro forte e destemido Foi duramente perseguido Na esquina, no botequim, no terreiro Samba Inocente pé no chão A fidalguia do salão Te abraçou, te envolveu Mudaram Toda sua estrutura Te impuseram outra cultura E você não percebeu Nesta letra podemos perceber como a referência ao negro expropriado se consolida enquanto elemento marcante do universo simbólico do samba. Apesar de este ser apenas um exemplo em favor dessa perspectiva, iremos posteriormente trabalhar com outros sambas, críticas musicais e trabalhos acadêmicos que também tentam reafirmar a temática da resistência. Voltando à canção de Nelson Sargento, ainda podemos avistá-la ao lado do trecho de uma recente entrevista em que o próprio artista explica quais motivações o inspiraram na composição de “Agoniza, mas não morre”. Trazendo uma justificativa de traço bastante contextual, o artista diz: A juventude estava influenciada pelo "yê, yê, yê!". Que seria mais tarde o embrião do rock brasileiro. Mas o Martinho fez o samba “Casa de Bamba”, que acabou dando uma reascendida no samba que estava desgastado. E para combater essa invasão de música estrangeira, apareceu também o baião, com Luiz Gonzaga. Foi uma época em que a música brasileira se projetou muito. Naquela época, as gravadoras preferiam receber fitas do exterior, prensar e vender, ao invés de gravar disco de música brasileira. As novelas também contribuíam para isso. Elas tinham trilha sonora nacional e internacional. A nacional tocava em 20 capítulos e a internacional tocava em 100 capítulos. Mas os sambistas seguiram lutando, Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Sinval Silva, Zé com Fome, Geraldo Pereira. Essa turma que tocava o samba para frente. E os que vieram depois também. Eu, Monarco, Nei Lopes, a turma da Portela. Eu me preocupo porque hoje não existe 23 mais esse time de gente tentando manter o samba. O Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Dudu Nobre, Almir Guineto, Jorge Aragão, são poucos. Dizer que o samba está bem porque o Zeca vende 1 milhão de cópias não é correto. Depois de tanto tempo o samba está sendo tombado (SARGENTO, Nelson. “Nelson Sargento: A história do bom samba”. A Nova democracia n. 41, março de 2008 < http://www.anovademocracia.com.br/index.php/Nelson-Sargento-A-historia-dobom-samba.html > acessado em 14 de julho de 2008). Deixando de lado as outras possíveis considerações que possam ser feitas, assinalamos que o autor demonstra uma ação de resistência contra um cenário que estaria contra a cultura brasileira e, conseqüentemente, contra o samba. Nelson Sargento denuncia a aproximação da indústria cultural com os gêneros musicais estrangeiros em detrimento dos demais e desabafa que a valorização do samba conta com poucos representantes, citando o bom desempenho de Zeca Pagodinho, uma exceção alheia à realidade de outros sambistas contemporâneos 3. A idéia de resistência se coloca aqui como um elemento fundamental para a compreensão da letra do samba e da trajetória de muitos artistas. No entanto, mesmo que considerássemos o depoimento de Nelson como sendo uma fala comprometida na defesa de um mundo ao qual ele faz parte, podemos observar essa mesma idéia de resistência em obras que remetem a períodos históricos anteriores ao surgimento do samba. Ao trabalhar sobre essa mesma questão da tradição do samba, Eduardo Coutinho define o estilo musical como um bem cultural das “comunidades negro-subalternas do Rio de Janeiro que tem o samba como forma de expressão” (COUTINHO, 1999, p.242). Para tanto, o autor se utiliza de uma profunda investigação sobre a trajetória artística e pessoal de Paulinho da Viola para compreender que diversos fatos vividos pelo cantor legitimam uma verdadeira relação com a cultura popular, em detrimento de outras perspectivas que também tentaram interagir e compreender essa mesma cultura. O ponto de vista defendido por Coutinho é o de que a tradição se torna elemento dinâmico pelo qual o passado fornece um determinado acervo histórico-musical capaz de romper com determinadas formas e perspectivas que definem a situação presente da cultura. 3 O musicólogo Felipe da Costa Trotta discorda de tal perspectiva em sua tese de doutoramento “Samba e mercado de música nos anos 1990”. Segundo o pesquisador, a trajetória de Zeca Pagodinho tem uma dinâmica interessante a ser considerada. Sendo primeiramente revelado com surgimento do sub-gênero pagode, no começo da década de 1980, este artista vive um primeiro momento de projeção seguido por uma fase, entre 1988 e 1993, de menor expressão mercadológica. Contudo, acompanhando diversas das transformações empreendidas pelo pagode romântico, Zeca Pagodinho viria a dar tons mais profissionais à sua carreira artística ao mesmo tempo em que permite novas experimentações musicais oferecidas pelo músico e produtor Rildo Hora. A partir de 1995, com a gravação do disco “Samba pra moças”, Zeca Pagodinho volta a experimentar uma nova ascensão que vai além da explosão do pagode romântico e o permite, alguns anos depois, ser considerado como um os referenciais de novos sambistas que surgiram por meio de seu apadrinhamento. 24 Deste modo, ele coloca o samba como um item da cultura popular de classes subalternas que estabelece um tipo de manifestação capaz de representar a reflexão dos que compreendem os problemas e questões de um grupo social específico que ”se encontra ameaçada sob a cultura de massa” (ibid, 2002, p.15, http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2002/Congresso 2002_Anais/2002_NP13COUTINHO.pdf). Quem compartilha de uma perspectiva semelhante à de Coutinho é o antropólogo Muniz Sodré, que no livro “Samba, o dono do corpo” aponta as origens do samba em direção a um comportamento universalmente partilhado pelas culturas musicais do continente africano e trazido para o ambiente colonial americano durante todo período em que o tráfico negreiro se desenvolveu nas várias regiões de exploração mercantil. Para Sodré, esse comportamento universal teria uma origem musicológica na chamada sincopação rítmica, que se manifestaria enquanto bem cultural trazido pelos africanos, sintetizando o pensamento musical de várias culturas desenvolvidas em um mesmo espaço que teriam um relativo tom hegemônico. Contrário a essa hipótese, o musicólogo Luiz Fernando Nascimento de Lima, salienta que Sodré implanta essa perspectiva universalizada da cultura africana ao apontar o aparecimento de manifestações musicais semelhantes na África e em locais marcados pela escravidão africana como os Estados Unidos (jazz/blues) e o Brasil (samba) (2005, p.8) 4. Dessa forma, o samba passaria ter esse peso de continuum de uma mesma cultura que se transporta incólume pela força de um elemento cultural resistente. De fato, essa resistência estaria, para Sodré, presente tanto em nível estético como sociológico, sendo este percebido quando o autor afirma que o samba (e suas síncopes) também indicaria uma continuidade da história das populações negras, que, retiradas de seu local de origem, buscam “uma fala que resiste à sua expropriação cultural... (e) um apelo a uma volta impossível, ao que de essencial se perdeu com a diáspora negra” (SODRE, 1998[1979], p. 59 e 67). 4 A perspectiva de Nascimento vai de encontro com a de Sodré no momento em que o autor estabelece uma crítica interessada em desvendar outros problemas existentes nos elementos musicais utilizados pelo seu interlocutor. Para tanto, ele grifa na definição de síncope de Sodré a ausência de uma reflexão que considere as transformações estruturais e significativas que esse elemento negocia na medida em que interage com diferentes contextos históricos. Dessa forma, o autor acredita que essa vinculação da síncope e, conseqüentemente, do samba com uma cultura “afro-negra” é apenas um dos vários “estratos de significação operativos” ligados ao gênero musical em questão (ibidem, 2005, p.10). 25 Interessante notar que essa perspectiva defendida por Muniz Sodré continua presente quando, quase duas décadas após a primeira edição de sua obra, o antropólogo revisa a primeira versão de “Samba, o dono do Corpo”. Essa constatação se torna importante quando percebemos que a reedição do seu livro é contemporânea ao lançamento da obra “O mistério do samba”, escrito pelo antropólogo Hermano Vianna, que além de companheiro de profissão, também tem sua carreira profissional estabelecida no meio acadêmico carioca. Como Vianna parece não concordar com as respostas oferecidas por Sodré – o que demonstra ao levantar alguns questionamentos inconformados 5 que mais parecem reclamações –, supomos que este tenha, na segunda edição de seu livro, cristalizado sua perspectiva com intenção de responder à nova obra. Dessa maneira, vemos que, em resposta aos reclames de Vianna contra sua visão antagônica, capaz de anular qualquer possibilidade de interação cultural que funcione além dos limites impostos pela ótica simplista de dominação, Sodré prepara a reedição de “Samba, o dono do corpo”, com o intuito de afirmar que sua obra, passadas duas décadas, trata do verdadeiro mistério do samba” (SODRE, 1998 [1979], p.7). Talvez pela discordância e inconformidade perante o livro de Sodré, a revisão da história do samba feita por Vianna parte de uma leitura das obras de Gilberto Freyre e dos demais pensadores que falam sobre o tema da miscigenação e da formação de uma identidade nacional. Nesse sentido, sua obra busca um olhar mais dinâmico sobre o objeto, se eximindo de advogar em defesa da lógica da dominação e muito menos de uma narrativa harmoniosa que exclua os conflitos presentes da nova compreensão. Dessa maneira, se faz importante atentar para a perspectiva de Vianna, já que, sendo um bem cultural moderno, o samba não pode ser visto através de referenciais que exponham sua apreensão a riscos que possam tolher algumas de suas facetas. Assim, a análise que o cerca não deve se dedicar nem à penosa compreensão de todas suas nuances, nem priorizar a existência de uma simples disputa de interesses que supostamente lhe dão origem. Contudo, essa dicotomia de análise existe e não deve ser desconsiderada, principalmente quando reconhecemos no samba a existência de falas – de diferentes intérpretes, 5 Em dado momento de sua obra, Hermano Vianna questiona: “Por que fingir que essa interação entre elite / cultura popular não acontecia? Por que dizer que nossos músicos populares eram simplesmente ou desprezados pela elite brasileira?” (1995, p. 47) 26 compositores, críticos e entusiastas – que, vez ou outra, reproduzem a lógica da dominação, sem ceder o devido lugar às transformações que se articulam em sua história 6. Portanto, entendemos que, apesar da necessidade das várias falas que permeiam o samba coexistirem em sua análise, é preciso, no entanto, relativizar o olhar que enxerga o samba como elemento de uma cultura de resistência, de influência predominantemente africana, pois, a realização desse tipo de “justiça histórica” nos obrigaria a excluir um considerável número de obras – literárias ou musicais. É preciso que entendamos a gama de opções estéticas, temáticas e contextuais do samba para estendermos a compreensão acerca da resistência, que deve ocupar diferentes lugares e implicações em cada momento que for revisitada, já que sua representação não apresenta os mesmos elementos essenciais para um entusiasmado freqüentador da casa de uma “tia” do começo do século XX e um sambista que hoje gasta longas horas compondo o seu próximo CD. Entretanto, o reconhecimento da multiplicidade de óticas que tentam entender o samba nos indica vários caminhos pelos quais podemos traçar nossa perspectiva em relação ao objeto, obrigando-nos a negociar as referências que serão consideradas com maior importância em nosso texto. Como se trata do dispendioso trabalho de se pensar um gênero musical de história centenária, procuramos – em meio a um conjunto diverso de obras – pontuar as referências mais pertinentes em relação à obra de Bezerra da Silva, pensando nela como interlocutora da própria história do samba. Assim, buscaremos trabalhar com momentos e questões inseridos nos diversos álbuns, entrevistas e demais fontes que falaram a respeito daquilo que freqüentemente surgia nas gravações deste sambista. Seguindo esse raciocínio, buscaremos defrontar a obra de nosso artista com a história do gênero musical que representa, de modo a ressaltar os deslocamentos ocorridos em todo seu cancioneiro que possam estar próximos aos temas, práticas e opções musicais encontradas no samba. Para tal, pretendemos empreender uma visitação ao passado e 6 No artigo “Permanências e deslocamentos das matrizes arcaicas africanas no samba carioca” – da historiadora Denise Barata – temos um exemplo desse tipo de problemática quando vemos a autora generalizando a dinâmica criativa dos sambistas, vistos por ela de forma indistinta, ao dizer que suas obras” expressam o que eles são, o que desejam ser e o que querem transmitir às novas gerações”. Logo em seguida, aponta uma missão homogênea a esses sambistas com relação à indústria cultural quando aponta que eles “teimaram (e teimam) transpor a linha que divide não só os espaços, mas sujeitos e culturas” (2002, p. 7). Para justificar tal proposição, alega que os sambistas “que sempre foram desvalorizados” têm uma necessidade nata e maior de discutirem por meio de sua arte a definição de sua própria identidade se comparados, por exemplo, com os artistas ligados à bossa nova. (2002, p. 7). Por fim, depois de falar dos problemas trazidos com a massificação dos bens culturais, aponta que “através da indústria cultural de diversos grupos musicais (...) a tradição é materializada durante a produção e a difusão dos sambas. E o que se transmite é a compreensão de traços arcaicos que são recebidos para serem conservados eternamente.” (2002, p. 10). 27 entendermos de que forma a história do samba se movimenta dentro de uma carreira artística que, mesmo atentando para o gosto musical contemporâneo, ainda faz claras referências aos elementos históricos de sua origem. Para iniciarmos a supracitada revisita, voltaremos ao cenário estabelecido – por vários artistas e estudiosos – como o “berço” das primeiras manifestações sonoras que viriam a dar base ao que mais tarde se designou samba: a Praça Onze. Esta, pela convergência de algumas ruas, possibilitou não só o encontro daqueles que viriam a serem considerados os pioneiros do samba, como mostrou as “falhas” do projeto carioca de segmentação estéticosanitária, ao permitir um relativo intercâmbio entre diferentes origens sociais. Contudo, nossa preocupação não se encontra na delimitação do local de origem do samba que permita a definição de elementos fundamentais do comportamento musical, mas na elucidação da importância da Praça Onze no que diz respeito à função social que teve ao aglutinar vários personagens que nem mesmo reconheciam a criação de um novo gênero musical, diferente dos demais. A partir desse reconhecimento, notamos a presença de um “caldeirão sonoro” que agitava a vida cultural da capital federal desde os fins do século XIX, que seria responsável pelo surgimento de novos espaços de divulgação e da transformação dos lugares, funções e sujeitos envolvidos naquele cenário musical. Isto porque, antes ainda do surgimento do rádio ou do disco como novos espaços de consagração musical, o samba já possuía reconhecimento que o deslocava para além da simples proximidade geográfica de um grande centro urbano. Desta maneira, notamos que o samba não se inseriu nessas mídias e caiu no gosto popular por uma mera coincidência de situação e oportunidade que aliasse o surgimento de novos espaços de divulgação com a vontade de veicular qualquer coisa que atraísse novos consumidores para viabilizar economicamente os dois empreendimentos aventureiros de nossa iniciante indústria de entretenimento musical. Ele já se configurava como uma expressão artística de reconhecimento, que, uma vez veiculada na incipiente mídia musical, seria um atrativo cada vez maior para esses meios. Em vistas de buscarmos compreender a jornada que permitiu ao samba sair do status de uma musica restrita a determinados grupos sociais para se colocar em avançada posição no leque de atrações do entretenimento carioca, voltaremos nossas atenções à Praça Onze. 28 1.2 DA CASA, DA ESCOLA, DO RÁDIO A Praça Onze, que, como já vimos, se consagrou como um dos mais proeminentes palcos do samba carioca, fazia parte da chamada “Pequena África”, um amplo conjunto de bairros do Rio de Janeiro, conhecida pela convergência de diversos dos primeiros sambistas a serem eternizados no mundo do samba. Ao lado dela, também outros espaços se consagraram pela reunião dos artistas que, muito mais pela habilidade criativa que por exercício de uma atividade profissional, se destacaram neste gênero musical. Entre esses locais, podemos citar as famosas “casas das tias”, que agrupavam parte da população de ex-escravos para realizarem festas regadas a muita música e comida, reunindo diversos sujeitos que passariam a compor o dinâmico processo de transformações já assinalado anteriormente. Contudo, a mais famosa e prestigiada entre elas é a casa da Tia Ciata, pois esta acabou se transformando em um espaço-síntese de diferentes experiências vividas em torno da prática do samba, configurando-se como um espaço repleto de ambigüidades que iam contra a eficácia do projeto civilizador que previa a separação das origens sociais. Desta forma, foi uma das responsáveis por operar o vislumbre de uma cultura autônoma apartada dos padrões exigidos pelas perspectivas elitistas, operando também diversas atividades e relações sociais, como nos mostra a historiadora Mônica Pimenta Velloso, que, ao falar do papel das mulheres negras dessa época, define a casa dessa tia como um local de encontros, cura, conversas, criatividade e trabalho: um “verdadeiro microcosmo do universo”, onde se processam as mais variadas atividades e saberes. Entre os freqüentadores da casa estavam Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Caninha e Heitor dos Prazeres. Alguns jornalistas e intelectuais, como João do Rio, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e o assíduo cronista Francisco Guimarães (Vagalume), tornariam conhecido o pedaço (...) atraindo intelectuais e elementos da classe média carioca. Geralmente eram carnavalescos da Zona Sul que iam encomendar fantasias e acabavam ficando para o pagode. Também por essa época, o candomblé e o jogo de búzios começavam a exercer certo fascínio entre a alta sociedade. Através do samba, do Carnaval e da culinária a cultura negra foi ganhando espaços no conjunto da sociedade, fazendo-se aceita. Os códigos culturais começaram a se entrecruzar, mesmo que de forma precária (1990, p. 9 – 10). Avaliando as várias situações descritas acima, observamos, curiosos, que, em meio a tantas ações experimentadas e reproduzidas na casa da Tia Ciata, não temos um momento de dedicação exclusiva – como era de se esperar – à criação e execução de “sambas”. Isto porque a música realizada naquele ambiente não se ligava diretamente a um 29 momento único e direcionado à produção musical específica, mas integrava um vasto conjunto de ações que ali se dinamizavam. Diferentemente do que acontecia nas demais organizações culturais da sociedade carioca da época (como o sarau, por exemplo), não existia compartimentação e especialização cultural nas casas das tias, de modo que as ações eram desenvolvidas para favorecer o intercâmbio e a integração entre os integrantes daqueles ambientes. Nesse sentido, vemos que no próprio âmbito musical – como enfatizam vários pesquisadores – havia, na casa da Tia Ciata, em seus vários compartimentos, a execução de diferentes tipos de música, favorecendo uma hierarquia, da entrada para os fundos da casa, conhecida por segregar esses espaços de acordo com os valores atribuídos a cada produção artística. Desta maneira, notamos, como prova viva da situação marginal experimentada pelos ritmos mais negros e “selvagens”, que estes eram legados para o agora tão simbólico fundo de quintal. Por meio dessa constatação, nos questionamos se haveria, em decorrência da segregação geográfica, uma verdadeira distância entre os ritmos musicais reproduzidos na casa da Tia Ciata e como seria o comportamento daqueles que porventura pudessem circular nos vários ambientes daquele lugar. No entanto, nos questionamos se a casa da Tia Ciata, com toda sua versatilidade, seria realmente um espaço diferenciado, cuja produção musical estaria afastada das reproduções marginais, socialmente desaprovadas e luxuriosas. Questionamos, ainda, a maneira pela qual deveríamos pensar o comportamento dos artistas que puderam circular em ambos os espaços. Essas perguntas não são tão relevantes para o objetivo do trabalho, mas deixam claro a presença de ações que eram empreendidas na casa da Tia Ciata, fazendo desta um local onde o fazer musical se transformava em um verdadeiro evento festivo. Fato que destacamos quando observamos que nas declarações daqueles que lá freqüentavam não há menção a um tipo de música exclusivo ou uma preferência sonora em detrimento das demais. A partir dessa observação, podemos nos afastar da concepção hierárquica e marginal de compreensão do samba, levando-o para dentro de um espaço festivo onde não era enxergado como gênero musical distinto, sendo, por sua vez, reconhecido por todos aqueles que circulavam naquele espaço. Sendo assim, como nos explicita Sandroni, o encontro de figuras diversas e a experiência musical ali vivida eram aspectos de um mesmo fato em que 30 dança, música, bebida, comida e convivência não podem ser concebidos separadamente (SANDRONI, 2001, p.101). Essa forma indefinida de arranjo das práticas artísticas nos traz a idéia de que o samba nada mais era que um fazer musical descompromissado, sendo mais uma forma de celebração explicitamente afastada do arcabouço profissional. Todavia, foi nesse clima de descontração que se criou o primeiro samba, gravado em 1917: “Pelo Telefone”. Considerada a canção fundadora do samba moderno, sua gravação na recém-inaugurada indústria do disco nos mostra que ambos (o samba e a indústria) se identificavam pelo tipo de indefinição que sofriam pelo seu incipiente aparecimento e pela necessidade de aprovação. Para salientarmos essa relação, percebemos que o estilo musical estudado, muitas vezes marginalizado pela elite econômica e intelectual, será pioneiro no uso de um recurso que mais tarde representaria uma verdadeira ameaça para aqueles que defendiam a espontaneidade do fazer musical legítimo. Contudo, as transformações sofridas nesse meio (disco) farão com que o que foi reconhecido como o “primeiro samba” gravado se distancie bastante das posteriores inovações que se aglutinam ao que deveria ser popularmente aceito como elemento estético pertencente ao samba. Esta realidade nos indica como a gravação de “Pelo Telefone” e de outras canções ligadas à primeira geração do samba estavam imbricadas apenas na busca pelo lançamento de produções em um novo espaço de reconhecimento, para serem prestigiados por aqueles que ainda entendiam o samba como uma grande festa. Sendo assim, não nos cabe afirmar que ali não se transformava música em mercadoria e que o interesse dos novos cantores e compositores não era o de retirar suas habilidades do espaço da casa e as levarem para o grande público, em busca de reconhecimento. Para que esse tipo de afirmação tivesse algum nexo, seria necessário o surgimento de novas situações, músicas e personagens no decorrer da história da música desenvolvida no Brasil. Não por acaso, ao fazer estudo sobre esse mesmíssimo evento, o sociólogo Jorge Caldeira, tem o devido cuidado de dizer que a pioneira gravação de “Pelo Telefone” representa uma nova situação para o samba que, até então, se resumia a uma festa cercada de cantos coletivos 7. Segundo ele, a canção “não indicava apenas o aparelho, mas um caminho 7 Esses cantos coletivos fazem referência ao “partido alto” uma forma inicial de se compor o samba. Mesmo havendo algumas imprecisões sobre o nome dado a esse tipo de samba original, existe uma fala consensual entre diversos autores e sambistas. De maneira geral, define-se o partido alto como um canto composto por uma primeira parte da letra que se repete e outra improvisada, onde um sambista cria novos versos em cima do ritmo da música (FENERICK, 2005, p. 160). 31 de comunicação.” (2007, pg. 20). Compartilhando dessa mesma argumentação hesitante – pois não podemos bem ao certo dizer o que vem a ser a busca de um “caminho de comunicação” –, tentaremos, em meio às dificuldades, levantar quais as motivações que impulsionaram essa ação de caráter transformador por um novo diálogo. Após a pioneira gravação, as décadas de 1920 e 1930 são reconhecidamente responsáveis por um número de transformações que – em um curto período de tempo – colocaram o samba em outros patamares (não mais suportados apenas pelo processo de inserção de ex-escravos no Rio de Janeiro). A partir deste dado, temos todo o interesse em investigar algumas das explicações que dão conta dos fatos que contribuíram para que um tipo mais homogêneo de samba estivesse surgindo em lugares que não mais se resumissem às casas das tias espalhadas por toda a capital 8. Nesse sentido, uma das hipóteses que levantamos diz respeito à questão do contato – nem sempre muito amigável – entre o popular e o erudito, já que o Rio de Janeiro se configurava como uma cidade cujo projeto urbanístico assumia a postura de afastamento entre esses dois mundos culturais. Desta maneira, verificamos de que modo os que, porventura, conseguiam contactar esses opostos se colocavam em situação indefinida e, muitas vezes, contraditória, percebendo a perseguição e o reconhecimento como inerentes à prática musical que ora era associada a um conjunto de sinais de barbárie a ser expurgado e ora era aplaudida, pela sua pretensa legitimidade, por integrantes da elite e intelectuais da época. Ou seja, o que hoje é considerado um dos mais significativos gêneros da história de nossa música popular, poderia, à época, ter sido rechaçado por ser mais uma detestável “música de negros”, ou acatado como uma proposta musical legítima que despertava interesses dos que se afastavam dos paradigmas estabelecidos no meio musical. Em relação à primeira situação, podemos perceber o preconceito contra o samba na fala do sambista João da Baiana, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, que relatou que o simples porte de determinado instrumento, no caso o pandeiro, implicava em violenta retaliação das autoridades da época (FENNERICK, 2005, p.34). Em 8 O pesquisador Wander Nunes Frota é um dos que apontam para esse tipo de dificuldade quando investiga o processo de popularização do samba no Rio de Janeiro, que já na década de 1930, não compartilhava a mesma condição privilegiada com qualquer outro tipo de música popular. Para reafirmar essa dificuldade já apontada no texto, ele questiona sobre “como e por que aconteceram todas essas transformações em menos de meio século de história? Sim, porque é muito pouco tempo para que já se tenha tudo tão automaticamente definido, repassado e batido. Os acontecimentos desta fase de nossa história ainda estão frescos na memória, mas é como se fossem tão antigos e tradicionais; algo bem mais importante do que ocorreu há muito mais tempo na própria história do Brasil como um todo” (2003, p. 130). 32 sua fala, o pioneiro sambista abre caminhos para que possamos entender de que maneira o processo civilizatório (já tantas vezes mencionado) incidia diretamente sobre o campo das práticas musicais da época, estabelecendo uma série de vinculações entre determinados instrumentos musicais e alguns segmentos da sociedade. Sendo assim, entendemos que, conforme salientou Michel Bozon, os diversos fazeres musicais constituem “um dos domínios onde as diferenças sociais ordenam-se da maneira mais clássica e marcante, mesmo se os agentes sociais (...) se recusem a admitir que a hierarquia interna da prática é uma hierarquia social” (2000, p. 147). No que tange à marginalização do samba propriamente dito, observamos que existia uma retaliação aos instrumentos utilizados para sua prática, já que a eles não era conferida a respeitabilidade daqueles instrumentos que geralmente eram tocados no conforto da casa e de alguns espaços públicos seletos, o que significava que não se aproximavam de uma formação alinhada às “admiráveis exigências”, por exemplo, necessárias ao aprendizado do piano 9. Aparentemente, o exemplo supracitado poderia demonstrar como as manifestações musicais ligadas ao samba viviam uma completa depreciação por alguns grupos dessa época. Contudo, a imagem de um indivíduo que porta seu instrumento musical, apesar da existente repressão das autoridades, poderia também transformar aqueles encontros animados em símbolos que comprovariam a faceta de “cultura de resistência” mais tarde designada ao samba. Nesse sentido, percebemos no depoimento de Donga (sambista que visitava a casa das tias e foi figura central no processo de patenteamento e gravação de “Pelo Telefone”) a justificativa do interesse pela gravação da seguinte forma: Tudo o que fiz foi consciente. Vocês deveriam perguntar aos outros brasileiros se eles tinham visto um samba gravado... Eu sempre fui objetivo. Não pensava em dinheiro, porque não tinha a menor noção de que a gravação iria dar isto ou aquilo. Fiz o negócio pelo instinto e pelo grupo, porque (...) nos tínhamos que mostrar àquela gente que o samba não era aquilo que eles pensavam (DONGA apud CALDEIRA, 2007, p. 17). 9 Na verdade, essa exclusão de alguns tipos de instrumento musical era bem mais ampla e complicada, pois também viria a ser estender ao surgimento de uma classe artística profissional. Nas primeiras décadas do século XX, se reconhecer como artista em atividades não tão próximas aos padrões da cultura erudita implicava em uma situação bastante embaraçosa para muitas famílias. Dois exemplos considerados clássicos desse tipo de situação podem ser contemplados na trajetória de Noel Rosa e Braguinha. O primeiro que “se deu ao luxo” de abandonar a faculdade de Medicina para viver de música e boemia. E o segundo, que também proveniente de setores médios, receiou quando passaria a receber dinheiro em troca de suas apresentações artísticas quando inicialmente formou o Bando dos Tangarás (FROTA, 2003, p.96). 33 Uma vez que não queremos colocar à prova o que foi dito por Donga, nos resta refletir acerca da intenção (quase heróica) de redimir a imagem que se tinha do samba por meio da gravação de um disco. Todavia, como dito anteriormente, o registro de “Pelo Telefone” acontece em um momento embrionário da indústria do disco, de modo que o uso dessa mídia ainda não tinha forças e autonomia para empreender uma nova idéia (redentora) sobre o samba, não podendo ser utilizada como peça-chave de popularização deste gênero musical. Cabe aqui lembrar que o próprio Donga fala sobre a importância de seu feito em um segundo momento, quando o registro fonográfico já era importante meio difusor que possibilitava a afirmação de um gênero ou artista. Porém, devido aos problemas já levantados, era necessário contar com outros espaços de divulgação capazes de fornecer a tão sonhada consagração até que o disco (e o rádio) pudessem dar seu aval. Conforme salienta Jorge Caldeira, para que o samba saísse da casa das tias e ganhasse as ruas da cidade do Rio de Janeiro, outras situações viriam a contribuir para sua popularização (2007, p.20). Entre elas, está um evento que adquiriu bastante importância e destaque no cenário cultural desde o início do século XX: o carnaval. No entanto, este encontro não pode ser generalizado como uma mera “festa popular” que romanticamente abraça um gênero musical de igual característica, mesmo porque a relação entre eles não se deu de maneira tão direta. Antes de serem artistas do samba, os músicos e/ou compositores atuavam em diversos espaços, como nas salas de espera dos cinemas, nas lojas de instrumentos musicais (na função de “pianeiro”) e nos salões de festa que agitavam o conhecido teatro de revista; mas foi o carnaval o grande responsável pelo reconhecimento deles e pela fixação do samba como gênero musical sinônimo de festa. A princípio, as primeiras manifestações carnavalescas aconteceram por meio de ações desenvolvidas no seio da elite, que organizava a festa em salões e clubes de público bastante seleto, de maneira que a faceta mais popular dessa folia só se deu nas primeiras décadas do século XX. Contudo, essa popularização não significava a presença do povo nesses locais, mas apenas a participação de alguns intérpretes advindos das classes sociais menos abastadas, reproduzindo, ainda, a clara distinção entre os membros da sociedade carioca. Conforme afirma o etnomusicólogo Carlos Sandroni, o tipo de manifestação mais popular do carnaval se organiza, primeiramente, sob a formação dos “cordões” e “ranchos”, 34 reunindo diversos participantes que desfilavam pela cidade entoando as mais conhecidas canções carnavalescas daquele ano e também as composições criadas pelos próprios integrantes do agrupamento. A popularidade desta festa cresce e estabelece novos adeptos, reunidos agora em “blocos”; esse novo nome “ganha importância nos anos 1920, e a imprensa carioca, que sempre promovia os desfiles dos diferentes grupamentos, cria em 1926 o ‘Dia dos Blocos’ no carnaval” (SANDRONI, 2001, p.143). Desta maneira, salientamos mais um fracasso do processo civilizatório imposto aos cariocas, uma vez que este não teve força suficiente para consolidar as distinções sociais e econômicas que impedissem o encontro do samba com o carnaval, removendo os privilégios de uma manifestação vivenciada apenas pelas “pessoas respeitáveis”. Nesse sentido, mais do que abrir um novo campo de prática e ampliação do reconhecimento do samba, a proliferação dos blocos ainda marcou uma nova passagem sobre a história deste gênero musical. Essa nova organização trouxe uma nova forma de (re)conhecimento do samba, o que ficou marcado pela ação criativa do bloco da Estácio, que concebeu uma nova maneira se executar o samba, incorporando novos instrumentos e uma nova levada percurssiva. No que diz respeito a essas transformações, o depoimento de Ismael Silva (um dos sambistas da Estácio), esclarece que “... o samba não dava para agrupamentos carnavalescos andarem nas ruas... Aí a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurundum...” (CABRAL, 1996, p.242). Em uma análise técnica, o músico Carlos Didier estabelece que a guinada estética se deu entre a primeira geração de sambistas e os novos sambistas, que a partir da década de 1920, começam a se ligar aos desfiles carnavalescos. Conforme o autor, os novos sambas ligados aos blocos carnavalescos “diferenciam-se daqueles consagrados por Sinhô, pelo menos por sua pulsação rítmica mais complexa. Enquanto estes guardavam vestígios de antigos maxixes, [a geração posterior optou] pela incorporação de mais uma célula rítmica à marcação” (DIDIER apud SANDRONI, 2001, p. 32). Dessa maneira, o samba viria a se transformar em um ritmo de características próprias e, em pouco tempo, vinculado a um tipo de evento anual. Uma das provas mais latentes desse processo se dá nos primeiros anos da década de 1930, quando agentes do governo municipal e os mais importantes meios de comunicação da época se interessam pelo arranjo da festa carnavalesca, ditando as regras sobre os instrumentos adotados pelas escolas, a organização dos envolvidos no desfile e a temática das 35 letras dos sambas apresentados. Esse interesse demonstra a importância que o samba adquiria, ao menos na capital, como gênero musical de visível popularidade. Nesse sentido, o processo de legalização do samba não deixou de ser uma forma de reconhecimento social da arte das classes subalternas, ainda que essa integração viesse acompanhada de uma mudança estética dessa ‘arte popular’ e de um forte (mas não onipotente e onipresente) controle social por parte do Estado (FENERICK, 2005, p.136) Neste momento, já podemos vislumbrar a história do samba em dois momentos: o da ligação artesanal e coletiva da música produzida na casa das tias e o da apropriação do samba como produção carnavalesca reconhecida. Assim sendo, percebemos que a primeira geração de sambistas consolida sua carreira artística por meio da profissionalização (que garantia oportunidades de emprego) que lhes permite divulgar a habilidade para criar e executar músicas, de maneira que, em um período em que o rádio e o disco não eram os principais meios de divulgação e consumo da música, aristas como Sinhô, Pixinguinha e Donga consolidam uma primeira experiência do processo de individualização do compositor. Por outro lado, nos anos de 1920 e 1930, os artistas experimentam uma nova prática do samba, pois o novo elemento estético que o alia aos carnavais o transforma em gênero singular, diferenciando-o dos demais. Deste modo, a segunda geração de sambistas passa a se envolver com a realização dos carnavais e com a organização das escolas de samba, ampliando o leque de atividades ligadas à essa prática musical. O monopólio significativo e estético da casa das tias agora se afasta relativamente dessa outra safra de artistas que já poderiam ser definidos como “sambistas”, fazendo com que estes experimentassem uma nova situação, explicada da seguinte forma por José Adriano Fenerick: A geração de Ismael Silva, Bide e Marçal era uma geração que cultuava o samba (possivelmente tanto quanto a anterior), entretanto, o queriam preferencialmente para as grandes festas populares (como o carnaval), uma vez que o show business nascente em finais da década de 1920, início da de 1930, lhes fechavam as portas (mas não para seus produtos: seus sambas) (2005, pg.117). O quadro aqui descrito coloca em voga uma situação bastante peculiar em que a tradição coletiva e improvisada do samba ganha um caráter completamente novo. Se antes o samba ainda era considerado um gênero musical indefinido e sua prática envolvia formas 36 coletivamente improvisadas, agora tem-se um gênero musical que passa a se auto-definir por meio de uma sincopa característica e letras produzidas por um sujeito compositor. Essas duas novas transformações vão ganhar força na medida em que dois novos elementos do entretenimento da época ampliam seu campo de atuação: o carnaval e o rádio. A partir daí, percebe-se que o samba se insere no meio musical sobre variadas possibilidades, já que sua composição poderia ser interessante tanto para “a festa”, quanto para “o dial”, mudando suas destinações. Diante dessas possibilidades, nos perguntamos: significaria isto a busca pelo reconhecimento social, vantagem financeira ou outro tipo de benefício? Sem dúvida seria complicado amarrar uma única resposta para a questão apresentada, pois, nesse momento, a divulgação de um novo samba envolvia uma gama de sujeitos que variava de acordo com o fim dado a canção criada. Assim, notamos que para ser veiculado nas mídias do rádio e do disco o samba precisava do aval e interesse dos detentores dos meios de divulgação, além de contar com certa articulação com um compositor que negociasse uma letra ou esboço capaz de chamar atenção do público ouvinte. De maneira completamente diferente, para o carnaval, o samba teria de partir de um filiado à escola de samba que pudesse ganhar a disputa pela canção “imortalizada”na boca e no coração dos apreciadores. Contudo, de acordo com as regras fixadas pelos organizadores do evento, existiam regras que delimitavam o tipo de letra mais apropriada à suas intenções, quase sempre comprometidas com as instituições culturais do próprio Estado. No que diz respeito às vantagens obtidas com a popularização do samba também encontramos uma variação de acordo com os casos, de modo que muitos estudiosos se preocuparam em salientar as desigualdades que marcaram esse processo, falando sobre uma nova fonte de renda para aqueles que tinham capacidade de alimentar artisticamente as novas mídias do entretenimento. No entanto, essa perspectiva nega toda uma dinâmica através da qual a própria noção de propriedade de uma canção existia em bases muito frágeis, pois a venda de sambas indicava a existência de um mercado consumidor de arte popular que funcionava às custas de sujeitos que nem sequer aspiravam algum tipo de prestígio suficientemente capaz de superar a recompensa financeira imediata. Sendo assim, apesar do peso a ser atribuído a essas situações – que serão brevemente retomadas quando falaremos um pouco mais sobre o rádio e a formação de uma classe artística profissional – não podemos atestar que foi por meio do advento das novas 37 mídias e do carnaval que se operou a transformação do samba. O que podemos destacar é que as mudanças têm mais força com o surgimento desses eventos, de modo a ganhar formas musicais mais estáveis que foram apropriadas por toda uma leva de apreciadores e músicos. A partir daí, percebe-se a diminuição de um vasto leque de nomeações híbridas (que povoaram a cena musical urbana do Rio de Janeiro entre o fim do século XIX e o início do século XX) que não mais formavam um labirinto sonoro que vagamente lembrava o que mais tarde se convencionou como sendo samba. Nesse sentido, quando falamos de mudança, salientamos a adequação rítmica trazida pelo pessoal da Estácio na tentativa aleatória de responder a uma expectativa gerada no seio de uma disputa carnvalesca, pois a eficiência da nova levada é fruto de uma competição anterior ao envolvimento do governo na cena cultural do período. Dessa forma, quando o sambista Ismael Silva explica a motivação, conforme diz Carlos Sandroni, para o novo “paradigma”, não podemos vê-lo como uma conseqüência mecânica à popularização do desfile carnavalesco, apesar de admitirmos que o samba não teria o mesmo destino sem a ação de seus interventores. Conforme salientou Fennerick, esses sambistas que surgem ligados às escolas de samba pertencem à outra geração que vai estabelecer uma nova forma de samba. Diante das mudanças ocorridas, nos perguntamos: com qual autoridade poderíamos assegurar que essa outra geração de sambistas não iria provomer as mesmas (ou outras) transformações no samba? Nesse ponto colocamos em posição relativa a falta de autonomia da arte em tempos de indústria cultural, pois negar tal possibilidade, além de excluir qualquer esboço de liberdade criativa, nos levaria a acreditar que os novos artistas já teriam uma visão do samba que só seria apreciada e apresentada como baluarte do patrimônio cultural brasileiro, em seu aspecto mais tradicional, apenas décadas mais tarde. Não por acaso, percebe-se que as transformações empreendidas para que o samba ganhasse diferentes espaços de reconhecimento partiram de grupos e sujeitos ligados historicamente ao samba, de modo que, apesar de a indústria cultural ter sido de grande importância para sua popularização, ela não conseguiu se infiltrar no gênero e cercear as maneiras pelas quais era feito. Sendo assim, é necessário que se coloque em posição relativa o papel desempenhado tanto pelos interesses dos novos agentes da cultura quanto pela autonomia dos artistas, pois entre eles se desenvolveu uma tensão muito mais ampla que uma simples relação de oposição excludente. 38 Isto porque os artistas estavam sujeitos às delimitações impostas pelos agentes e produtores do meio artístico da época, que, por organizarem o evento carnavalesco, terem fama artística consolidada ou conduzirem um programa radiofônico, eram responsáveis pelas escolhas dos sambas que chegariam para a disputa do desfile ou ganhariam fama nas vozes dos cantores do rádio. Contudo, apesar dessas escolhas se configurarem como uma relação de tensão, elas não implicam, necessariamente, na definição estética que finda outros aspectos formais e temáticos no mundo do samba. Desse modo, percebe-se o surgimento de uma nova situação, em que outros elementos passam a ter influência sobre o processo de popularização do samba. Assim, o que se vê não é uma descaracterização involuntária desse gênero musical, mas a ação de vários atores ligados ao mundo do samba – seja pela via do rádio ou do carnaval – em prol da inserção de novos elementos e sujeitos na dinâmica de sua trajetória. Em decorrência dessas ações, nota-se que, a despeito de certas expectativas, a percepção e as críticas acerca dessas transformações se dão de maneira bastante acelerada. Já no ano de 1933, o cronista carnavalesco Vagalume escreve o livro “Na roda do samba”, em que dedica espaço considerável à denúncia destes novos sujeitos e elementos que adentram o mundo do samba. Em sua obra, ele tece sua crítica a partir da perspectiva da existência de uma historicidade cíclica, legítima e natural que torna o “homem rude dos morros cariocas” uma espécie de sujeito universal que tem por direito conduzir e usufruir de todas as possibilidades artísticas e financeiras trazidas pelo novo gênero musical 10. A partir desse exemplo, percebemos a existência de um processo de reinvindicação já nos primeiros anos da década de 1930, e, mesmo que não tenhamos certeza que outros indivíduos partilhavam da opinião de Vagalume, a sua obra já nos indica que o bem cultural “samba” circulava em outros meios, atingindo diversos grupos sociais, compostos por ouvintes, entusiastas, homens do entretenimento e músicos. 10 Tal constatação pode ser feita em um trecho da obra do referido autor citada no livro “A construção do samba”, de Jorge Caldeira. Na instigante citação selecionada por Caldeira, encontramos um relato feito por Vagalume em que o cronista realiza uma narrativa precisa sobre como um samba “nasce” por meio do esforço criativo de um sujeito nascido nos morros e tem sua popularização oral transmitida pelas rodas de samba. Posteriormente, sua qualidade é atestada pelo tempo em que essa mesma canção consegue sobreviver na boca daqueles que apreciam tal criação musical. Em contrapartida, indica a morte de um samba quando o mesmo é expropriado de seu autor que, por conta de suas necessidades materiais, se vê obrigado a vendê-lo para empresas e cantores que não participam ativamente do processo criativo, mas obtém expressiva fama e prestígio com a obtenção do mesmo. Sem indicar outras nuances desse fato, o cronista estabelece uma narrativa cíclica ao simplificar o comportamento, as motivações e conseqüências de todo o ocorrido (VAGALUME apud CALDEIRA, 2007, p. 28). 39 No que diz respeito à popularização alcançada no meio radiofônico, o samba se tornou um verdadeiro fenômeno de vendas e muitos compositores fizeram sucesso vendendo suas canções para artistas de notório reconhecimento nesta mídia. Dessa maneira, vê-se que a circulação feita por meio da venda também colocava em evidência a questão da exclusão racial, pois se via imposta a preferência por artistas que satisfizessem as exigências estéticas dos veículos de comunicação. Isto porque, apesar de a imagem nada significar para ação comunicativa do rádio, vale lembrar que os artistas de sucesso da época eram também rentáveis garotos-propaganda, viabilizando suas carreiras pela popularidade trazida também pelos impressos, pela venda de produtos e pela oferta da aproximação imagética de um artista preferido. Essa popularização do rádio e dos seus artistas, que vinha acompanhada pela ação da compra de sambas e de produtos, aponta para um tipo de relação em que O samba associado aos olhos vedes de Carmen Miranda... ou à elegância do esguio Francisco Alves, poderia muito bem anunciar (e, portanto, se vincular a imagem de) um determinado produto ou empresa. O mesmo não poderia se dizer do samba associado à imagem de, por exemplo, Cartola, um negro favelado, habitante do morro da Mangueira, terra de infindáveis malandros (FENERICK, 2005, p.180). A partir dessas considerações, percebemos que a própria exclusão promovida pela associação do samba com a nascente indústria do entretenimento, que buscava em rostos conhecidos e belos a veiculação deste gênero musical e dos anúncios de produtos diversos, acabou por alcançar outro patamar estético que inferia diretamente nas letras do samba. Nesse contexto, surgia a necessidade de se estabelecer o morro – local de presença marcante do samba devido ao processo de exclusão sócio-econômica carioca e também pelo surgimento de várias escolas de samba – como o lugar imaginado para explicar as origens do samba. Contudo, esse espaço era usualmente compreendido como ponto de origem de uma controversa personagem urbana da época: o malandro, de maneira que carregava em si um estigma conflitante que não poderia surgir caso o samba quisesse ser transformado em símbolo nacional. Mas afinal, quem era o malandro carioca? O habitante dos morros? O sujeito alheio ao trabalho árduo e formal? O sinônimo dado a criminosos violentos? Ou um apreciador de prazeres geralmente associados à bebida, mulheres, dinheiro fácil e o samba? A dificuldade de definição, de fato, acaba trazendo à tona uma discussão em torno de uma música que se tornava extremamente popular e, ao longo dos anos 1930 e 1940, não 40 mais se resumia a um gênero restrito à cena musical carioca. De fato, muitos que participaram ou observaram de perto o processo de popularização (e nacionalização) do samba advogavam contra a visão degradante de que o proeminente sucesso do samba nas rádios fosse produto da criatividade de sujeitos ligados ao crime ou a imoralidade. No entanto, essa preocupação não pode ser vista como sendo uma simples imposição de um novo meio de comunicação. Retomando o depoimento de Donga ao Museu da Imagem e do Som, encontramos a preocupação em se registrar o primeiro samba gravado e, ao mesmo tempo, mostrar as pessoas que o gênero “não era aquilo que pensavam” (DONGA apud CALDEIRA, 2007, p. 17). Percebemos, então, que, ao utilizar essa justificativa, o sambista aciona uma polêmica que não estaria simplesmente resumida a um processo de embelezamento do gênero, mas implicaria necessariamente em redimir um simples estilo musical, trazendo uma outra compreensão a respeito dos sujeitos envolvidos em sua prática. Assim, quando nos reportamos às primeiras décadas do século XX, vemos no malandro um conceito-chave capaz de exprimir uma faceta significativa da imagem negativa construída sobre os habitantes dos morros cariocas e demais populações de ex-escravos e afro-descendentes. Sem embargo, a figura do malandro antecede o processo de popularização do samba sendo uma caracterização viva do cotidiano urbano carioca capaz de indicar os possíveis desdobramentos do improvisado processo de inserção dos ex-escravos naquela mesma sociedade. Conforme observado por Fabiana Lopes Cunha, a figura do malandro salientava os entraves presentes no processo de organização da sociedade brasileira. Como não se adequava às exigências que defendiam a ordenação possível por meio do trabalho e de outros papéis sociais rígidos, o malandro fugia à pretensa funcionalidade de dicotomias que segmentavam mundos e indivíduos entre as obrigações e os direitos, as liberdades e as proibições, os cidadãos e os marginais (2002, p.7). Havia uma complexa incógnita não comportada por tais parâmetros de compreensão, mas que acabava sendo recorrentemente associada a um tipo de compreensão negativa, muitas vezes, justificada pela sua inadequação àquilo que era desejável para a construção de uma sociedade próspera e moderna. Nesse sentido, vê-se que, antes mesmo dessas discussões ganharam terreno no espaço das Ciências Humanas, vários sambistas já criavam canções que exploravam a temática da malandragem sob os mais diferentes olhares. Um dos mais reconhecidos casos que justamente apontam para essa inadequação do malandro à definições unívocas aconteceu 41 na “rixa poética” travada entre os sambistas Wilson Batista e Noel Rosa. O primeiro salientava os aspectos exuberantes que o colocavam como uma figura imponente e capaz de usar de sua ginga e de suas armas para se defender de alguma ameaça ou possível oponente. Em contrapartida, Noel Rosa se opõe a esse estereótipo provocativo e oferece ao malandro a oportunidade de se recuperar buscando no amor e na música as vias que pudessem transformá-lo apenas em um rapaz folgado 11. A partir da década de 1930, o rádio acabou aderindo à criação de sambas que defendessem a malandragem como hábito bem quisto. Essa mudança ocorreu graças ao poder de intervenção do Estado Varguista sobre os órgãos de propaganda, representado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), já que, utilizando de uma estratégia de trocas, o governo – que pretendia firmar-se por meio de símbolos positivos vinculados à unidade e ao trabalho – concedia atraentes cachês aos artistas perfilados a sua demanda institucional (CALDEIRA, 2007, p. 95 – 100). No entanto, podemos ver que o tema da malandragem ainda perdura dentro do samba tendo como grande temática a idéia da “morte eminente” do malandro através de uma redenção obtida por meio do amor e do trabalho. Em diversos momentos da história do samba percebemos essa alusão em canções como Se você jurar (1931) 12, Cadê Tereza (1969) 13 e Não sou mais disso (1996) 14. Esses exemplos nos deixam claro a falência da “higienização estética” que pretendia conformar o samba aos moldes dos anseios de certos grupos políticos e intelectuais da época. Sendo assim, a permanência da temática do malandro nos leva a compreender de outra forma como se dá a construção de uma tradição dentro do samba, em que este personagem representa a própria trajetória do estilo. Sobre esse aspecto, Jorge Caldeira salienta que o samba 11 As duas representações sugeridas são oriundas das canções Lenço no Pescoço, composta em 1933 por Wilson Batista, e Rapaz Folgado, criada naquele mesmo ano por Noel Rosa. Para muitos, devido a alguns indícios, a canção de Noel foi feita como uma espécie de resposta a composição realizadas por Wilson Batista. De fato, em várias outras canções e abordando outros temas, os dois compositores parecem trocar afrontas que encenavam um tipo de inimizade. No entanto, todo esse jogo de provocações e respostas – levando em conta a boa relação de ambos compositores com o meio artístico da época – nos indica a potencialidade do rádio e do disco na divulgação do samba. 12 Francisco Alves, Duplas de Bambas – Francisco Alves e Mário Reis / Jonjoca e Castro Barbosa, Revivendo, 1993. 13 Jorge Benjor, Jorge ben, Philips, 1969. 14 Zeca Pagodinho, Deixa Clarear, Polygram, 1996. 42 foi construído num processo do qual participam todos os elementos importantes da sociedade do período, mas é difícil imaginar que tenha sido uma imposição do alto. Pelo contrário, seu ponto fundamental era a flexibilidade, a ligação complexa que permitia manter com os diversos grupos. Se o caminho é cheio de inda e vindas, é um caminho de trânsito. É universal não porque seus valores estão no alto, mas porque é o único que transita por toda a sociedade (2007, p.95). Contudo, além de declarar a condição transitória do samba para o entendimento desse estilo musical, Caldeira ainda assinala o momento no qual o samba sofre transformações e não pode mais ser visto da mesma forma. Para ele, sua condição de transeunte entre os diversos personagens e concepções “morreu em 1930” com o surgimento do governo Vargas (ibid, ibidem, p. 95), ocasião a partir da qual o samba seria alvo de um processo de controle por parte do Estado, que determinaria os temas, as formas e o conteúdo simbólico a serem veiculados por meio de um estilo musical financeiramente cooptado. Em conseqüência desse processo, o autor aponta o desaparecimento completo da “valorização simbólica dos dominados como portadores de um saber que lhes garantia autenticidade” (ibid, ibidem, p.100). Dessa maneira, a autonomia estética e criativa aleatória seria prejudicada pela intenção de uma agência central capaz de impor seus interesses sobre as práticas culturais vigentes, fixando um modelo fixo sobre o samba que o transforma em símbolo positivo de uma nação próspera (controlada por um governo de natureza autoritária). Vemos, então, que a partir dessa intervenção o gênero musical popular teve capacidade de servir como escape para os problemas e contradições sócio-econômicas da nação em decorrência da criação de uma situação de reconhecimento pela arte (pelo samba ou pelo carnaval) que escondia as demais exclusões que ainda estavam longe de serem sanadas. Sendo assim, o samba passou a ser concebido por um “padrão de autenticidade definido de cima”, onde “os de baixo passam a ser ‘felizes’, por viverem no morro, onde há poesia e onde o céu fica mais perto” e, ao mesmo tempo, “são obrigados a gostar da pátria e do trabalho” (ibid, ibidem, pg. 100). Todavia, essa perspectiva levantada por Caldeira de maneira forçosamente controladora e excludente ganha novos ares de compreensão na proposta levantada por José Adriano Fenerick. Em seu entendimento, este destaca, na própria expansão do rádio e na ampla difusão de gêneros musicais estrangeiros, uma possibilidade de construção de uma identidade nacional fornecida por meio do reconhecimento artístico dos gêneros musicais vindos de fora. Para sustentar sua hipótese, Fenerick exemplifica que 43 a grande expansão da música norte-americana [ a partir da década de 1930] fez com que esta se transformasse em um paradigma para os músicos brasileiros. Imbuídos de um pensamento que queria implantar no Brasil o mesmo processo de desenvolvimento e projeção em escala mundial da música norte-americana, ao mesmo tempo em que pregavam a necessidade do combate à ‘invasão’ yankee, parte dos compositores e músicos brasileiros começam a visualizar uma carreira internacional para o samba. Tal expectativa dos músicos brasileiros, de certo modo, somava-se e se completava aos anseios do projeto varguista de uma música popular nacional (2005, p. 74-75). O que fica evidenciado na fala do autor é a diferença de perspectiva que este tem em relação à maneira pela qual o samba assumiu status de símbolo nacional, passando por uma transformação estética. Desse modo, a divergência de opiniões entre Caldeira e Fenerick nos leva a perceber a existência de um caminho de trânsito percorrido pelo samba, tendo em vista o embate entre a autonomia do campo artístico e os interesses para com a arte. A partir dessa oposição, não se pode sinalizar a mea culpa para um único agente histórico responsável pelas transformações e rumos tomados pelo samba até o fim da década de 1930. O momento e o papel desempenhados pelo Estado, pela classe intelectual, pelos sambistas e pela indústria cultural são constantemente reelaborados a ponto de ser impossível pensar na predominância de um único fator ou na total anulação dos demais agentes para o alcance das transformações percebidas. Para ratificar esse pensamento, tomamos como exemplo um dos sambas mais conhecidos, ainda hoje, dentro e fora do Brasil, que foi interpretado em 1939 (simbolizando a passagem para outra década e para uma nova significação do samba) pelo consagrado cantor Francisco Alves, a famosa Aquarela do Brasil 15. Composta por Ary Barroso, esta canção se transformou em grande marco referencial que não apenas solidificou definitivamente o samba como um símbolo nacional, mas também o tornou uma referência para a compreensão da música popular no Brasil. A partir dela também se verifica a sedimentação da distinção entre o que era considerado “bom” ou “ruim” para o desenvolvimento de uma cultura musical reconhecidamente brasileira 16, pois ela propõe o encontro da música “rude” dos morros com outro gênero musical reconhecido, 15 16 Francisco Alves, O cantor eclético, Odeon, 1969. Partindo de reflexões anteriormente feitas por José Roberto Zan, a socióloga Rita de Cássia Lahoz Morelli aponta que “uma certa hierarquia começa a se delinear na música popular em razão do refinamento instrumental do samba carioca quando de sua transformação política em símbolo nacional [e por conseguinte] (...)foi nesse momento de predomínio absoluto do discurso e da prática nacional-populistas que músicos e homens de imprensa e de rádio começaram a estabelecer critérios de distinção” no julgamento de nosso cenário musical (p.89, 2008). 44 produzindo um espaço de identidade nacional que se liga a uma das maiores criações possíveis para a história de toda a música ocidental 17. Em outros termos, observamos a inserção (sob uma concepção previamente hierárquica) de instrumentos e paradigmas sonoros da complexa música erudita que é temperada pela síncopa do samba. Assim, o requinte orquestrado varia entre o original e o moderno, tendo a ele agregada uma letra que defende elementos de “inegável” brasilidade e também instrumentos “luxuosos” para sua execução. A partir daí, podemos dizer que o samba se transforma em indicador de nossa cultura musical, irrompendo com sucesso os limites da alta cultura – mesmo que a custa de elementos trazidos por agentes externos à sua história – e equacionando boa parte das tensões desenvolvidas ao longo desse procedimento. Contudo, é preciso observar que a definição do estilo musical e sua elevação a uma categoria de símbolo nacional não encerram as interpretações que se desdobram a respeito do samba. Isto porque, se conseguimos, até agora, responder alguns questionamentos levantados sobre esse gênero musical e suas transformações ao longo da década de 1930, precisamos nos atentar ao fato de que muitas outras indagações surgiram após esse período. Em linhas gerais, ainda nos falta abordar o momento em que o samba é apontado como “matriz nacional” para o surgimento da “batida diferente” que consagrou a Bossa Nova; as transformações articulam as escolas de samba como mantenedoras do gênero musical; e o desenrolar da expansão do mercado fonográfico brasileiro a partir da década de 1970, em que o pagode aparece assumindo papéis a favor e contra a preservação das tradições do samba e a expansão da indústria cultural. 1.3 FORA DAS ESCOLAS, DENTRO DAS RODAS... E MAIS DISCOS 17 Nesse momento vemos a importância em destacar a proximidade da interpretação da concepção de arte proposta pelo cronista Vagalume, em 1933, e pelo compositor Ary Barroso, em 1939. Apesar de inicialmente a idéia da aproximação entre os personagens de Vagalume – o “coração amoroso de um homem rude” e sua “musa embrutecida” – e a iniciativa de integrar música erudita e popular de Ary Barroso – ainda mais se levarmos em conta a legitimação dos interesses políticos da época e o uso dos agentes de propagação da indústria cultural – parecerem contraditórias, eles compartilham de ideais bem próximos no que diz respeito ao julgamento da arte. Isto porque o primeiro vê que suas personagens, apesar de rudes e embrutecidas, são capazes de fazer arte para ser apreciada e o segundo, mesmo percebendo que no samba existe a predominância de elementos musicais simples, vê na conjugação destes com a complexidade estética presente na música erudita uma forma de atestar a arte a ser reconhecida no samba. 45 Após adquirir sua própria definição estética e se diferenciar dos demais gêneros musicais que corriam o Rio de Janeiro desde o século XIX, o samba ganha as ondas dos rádios e as ranhuras dos discos. Seu processo de composição permanece nas mãos da população que o mantém vivo, mesmo que a custa de críticas e desconfianças por parte dos que pensavam os projetos civilizatórios e nacionalistas da época, de modo que os sambistas se tornaram parte inicial do processo de produção e circulação das canções, participando ativamente da venda de letras para as grandes vozes do rádio, nas chamadas parcerias 18. Além do reconhecimento obtido pela popularização das letras nas rádios e pelo aumento da venda de discos, os sambistas puderam vislumbrar uma via de prestígio alternativa. Esta veio por meio do desfile carnavalesco, que a partir da década de 1930 instituiu uma banca julgadora para os novos critérios adotados, dentre eles a criação de um samba que deveria nortear a composição das alas e dos carros alegóricos da apresentação. A partir destas transformações, podemos notar o surgimento de novas escolas de samba, o acirramento da competição e a busca pela admiração de novos espectadores, firmando o reconhecimento do espetáculo produzido. Porém, apesar do requinte produzido na festa carnavalesca, o samba continua sendo visto como um tipo de produção musical nascida e produzida nos morros cariocas (berço das escolas de samba), de modo que a idéia da origem “morro acima” encubra uma circularidade que evidencia a pluralidade de berços para esse gênero musical. Nesse sentido, verificamos que a fixação do local de prática do samba passa a legitimar sua originalidade popular, reforçada para diferenciar esteticamente o samba do morro (do carnaval) e o do asfalto (do rádio). Em busca dessa distinção, vemos uma hierarquia musical que liga a sincopação dos instrumentos percussivos ao samba do morro – mais frenético e carnavalesco – e a orquestra sinfônica e a voz de um cantor popular ao samba da cidade – mais suave e bem elaborado. Podemos ver exposta essa situação na fala do historiador Marcos Napolitano, que aponta que: Na medida em que a música popular e, particularmente, o samba tornavam-se o carro chefe da música urbana-comercial no Brasil, fazia-se necessário contrapor uma 18 De fato, estas parcerias eram mais reconhecidas como os casamentos entre uma famosa voz do rádio e um habilidoso compositor de sambas. Nesse processo, podemos destacar o “casamento” que havia Ismael Silva e Francisco Alves documentado na obra de João Máximo e Carlos Didier (1990, p. 210). 46 expressão que delimitasse sua diluição cultural: assim, a Escola de Samba (o espaço da tradição) ganha um outro sentido se comparada com o rádio (a modernidade) (2005, p.53). Percebemos, através da fala de Napolitano que as escolas de samba (como espaços da tradição) funcionavam como ponto de convergência para o contato e a prática com o mundo do samba, como uma fonte essencial de onde todo sujeito deveria buscar referências primordiais para seu exercício ou apreciação, o que corrobora com a idéia da limitação de sua diluição cultural. Em contraposição ao rádio, as escolas de samba eram pensadas como espaços para criação autônoma de sambas, onde se mantinha a tradição através da ação de homens simples e espacialmente setorizados, que se encontravam em um local que, apesar de próximo, não estava contaminado pelos elementos da modernidade oferecida nas ruas. Em decorrência dessa simbólica manutenção da tradição, percebemos que vários sambistas que surgiram ao longo das décadas tiveram seus nomes diretamente vinculados às escolas que pertenciam. Entre eles, um dos mais conhecidos é Cartola, ilustre membro da Estação Primeira de Mangueira, cuja própria trajetória explicita a transição da preservação para a autonomia do fazer musical no samba. Sobre essa mudança, o sambista Monarco, da escola Portela, ressalta que as atividades em torno do desfile carnavalesco, inclusive o processo criativo e as tomadas de decisões, eram definidas, exclusivamente, por meio de escolhas da própria comunidade ligada à escola (MONARCO apud TROTTA, Felipe e CASTRO, João Paulo M., op. cit., p.66). Nessa altura da discussão, notamos, com bastante interesse, que a consolidação do samba por meio do rádio e do carnaval estabelece uma situação de caráter duplo. Se de um lado vemos sua inserção em novos meios de comunicação na tentativa de conquistar o reconhecimento de várias classes sociais; de outro, vislumbramos sua importância como representante de uma cultura tradicional vinculada às populações de baixa renda que preservam e desenvolvem um bem artístico desconectado de outras manifestações estrangeiras. A percepção dessa duplicidade foi de grande importância para aqueles que pensaram a música nacional como fruto de intensas disputas contra a perda de identidade que era sistematicamente ameaçada pelas canções de fora. Elas se expandiram pelo rádio na década de 1940, sendo presença constante no dial tupiniquim e ameaçando seriamente o gosto e o prestígio alcançado pelas "coisas nossas". Desta maneira, conforme afirma José Roberto Zan, nesse período, “jornalistas e radialistas contribuíram para o estabelecimento de critérios 47 de distinção (...) entre a música popular verdadeiramente brasileira e a que apresentava sinais de estrangeirismos” (2001, p.111). A proposição desse campo de rivalidades acabou estabelecendo uma "fase áurea" da música nacional entre as décadas de 1930 e 1940. Contudo, a década seguinte seria marcada por outra criação estética capaz de promover um grande ponto de interrogação em relação a oposição entre o nacional (tradicional e autêntico) e o estrangeiro (modernizante e cosmopolita): a Bossa Nova, que surgiu em nosso cenário musical no final da década de 1950 provocando vários questionamentos sobre a dicotomia citada. A Bossa Nova foi, certamente, uma produção que gerou controvérsias, pois seus defensores vislumbravam um momento de maturidade da música brasileira em diálogo com uma identidade cultural consolidada pelo samba e seus críticos viam apenas a materialização dos temores relativos à descaracterização da cultura brasileira, através de um distanciamento das matrizes culturais nacionais em favor dos ritmos estrangeiros 19. Todavia, tanto as críticas quanto os elogios a respeito dos destinos a serem seguidos pela nossa música partilhavam do samba como sendo o ponto de partida para a construção de uma identidade cultural em consonância com a emergência da Bossa. Percebemos, assim, que o samba assume lugar de um bem cultural visivelmente estabelecido no cenário musical brasileiro, servindo, incontestavelmente, como valor referencial para a criação de uma cultura musical nacional. Dessa forma, às vésperas da década de 1960, temos a praticamente indiscutível “vitória do samba” e a “vitória de um projeto de nacionalização e modernização da sociedade brasileira” (VIANNA, 1995, p.127). A polêmica em relação à Bossa Nova mostrava que o samba havia se tornado em gênero incontestável tanto para a compreensão do trajeto da música brasileira, quanto para o reconhecimento de outras possibilidades estéticas nesse mesmo campo. Tendo em vista esse reconhecimento obtido pelo samba em âmbito nacional no que diz respeito à sua importância referencial para a produção artística brasileira, retomamos a idéia do morro como local de resguardo do samba, onde este, através das ações de seus 19 Essa divergência pode ser vista quando José Ramos Tinhorão e Edu Lobo participaram de um debate realizado pela revista Civilização Brasileira, em 1966. Tinhorão defendia a idéia de que a Bossa Nova não poderia ser um produto autenticamente brasileiro por claramente “assimilar e incorporar à produção musical ritmos, estilos e harmonias de músicas estrangeiras”. Utilizando desse mesmo pressuposto, Edu Lobo ironiza o argumento de seu interlocutor ao afirmar que se esse critério de autenticidade fosse posto em prática, o samba não poderia ser visto como brasileiro mediante suas influências de origem africana. (TINHORAO; LOBO apud NERCOLINI, 2006, p. 127, 128) 48 compositores e das escolas (comunidades), estaria a salvo das manifestações da modernidade. Diante dessa perspectiva, nos questionamos se seria realmente possível “ocultar” o samba dos modernismos e estrangeirismos em prol de uma “cultura genuína” e lançamos olhar sobre os caminhos tomados por esse gênero musical estabelecido nos morros. Em outras palavras, buscamos confirmar a real existência de “uma coincidência ontológica entre realidade e representação, entre a sociedade e as coleções de símbolos que a representam” (CANCLINI, 2006, p.163), dando especial atenção ao mundo das escolas de samba, local onde o samba mantém, supostamente, as suas tradições através dos “mesmos” grupos sociais que historicamente participaram da consolidação de sua prática. Para tanto, recorremos ao livro “Escola de Samba – árvore que esqueceu a raiz”, obra em que Candeia e Isnard destacam, no depoimento de Paulo da Portela, o fato de as escolas de samba possuírem maior popularidade “só a partir da segunda metade da década de 50 [1950]” (1978, p. X). Nesse processo, a fala de Paulo da Portela ressalta ainda que o controle sobre o desfile carnavalesco seria “tomado de assalto” por outros elementos que passariam a se inserir nesse espaço realizando "uma promiscuidade que só fez atrapalhar a beleza da apresentação das escolas de samba" (CANDEIA E ISNARD, 1978, p.X). Dessa maneira, sua denúncia nos indica um processo de popularização das escolas de samba em que o conceito de “popular” perde sua característica de reserva cultural de grupos marginalizados, se estendendo a outras esferas socioeconômicas. Essa popularização claramente criticada faz referência a uma nova situação em que as escolas de samba foram (...) se modificando, deixando de se basear em pequenas iniciativas de grupos restritos com condições materiais limitadas, e se tornando associações institucionalizadas e menos improvisadas (...) levando à assimilação de membros externos àqueles grupos provenientes, principalmente, da classe média (LIMA, 2002, p.92). Percebemos, então, que a entrada de outros grupos no universo das agremiações promove rearticulações discursivas e históricas, fazendo com que tanto a tradição quanto a modernidade convivam interligadas ao samba. Assim, vemos que a popularização do espetáculo carnavalesco ajudou a reforçar a idéia de que as escolas de samba seriam local de prática e preservação do samba, e que a própria exaltação dos membros mais antigos por meio da criação das “velhas guardas” passa a ser vista como uma espécie de tributo ao passado em 49 que as gerações mais novas reconhecem a importância daqueles que estão historicamente contidos no trajeto das escolas 20. Por outro lado, com a ampliação da competição carnavalesca, as escolas deixam de ser espaço de manifestações improvisadas e aderem à dimensão moderna do desfile de carnaval, que começa a se destacar, principalmente a partir da década de 1970, como importante espetáculo turístico para aqueles que, vindos de várias partes do mundo, pretendem conhecer de perto uma “manifestação típica” das terras brasileiras. Além disso, a modernidade invade as agremiações quando o destaque dado ao carnaval extrapola as fronteiras das escolas em outras épocas do ano através da possibilidade de adentrarem a indústria do disco e gravarem sambas-enredos que participariam do desfile a cada ano. Contudo, as mudanças experimentadas pelas escolas de samba acabam por restringir a criatividade dos sambistas, uma vez que apenas o samba-enredo passa a ser valorizado nas quadras das escolas. Esse subgênero, que prima pelo impacto sonoro dos vários instrumentos musicais – sobretudo os percussivos – e pela composição de letras que exploram extensas narrativas centradas em um só tema, passou a ser tão privilegiado que acabou por reconfigurar a “função original” de diversidade do samba, instituindo uma especialização que afastava as múltiplas e descompromissadas formas que marcaram o seu trajeto. A partir do momento em que se travam as novas relações no samba e este se integra aos elementos da indústria cultural, várias reações são sentidas por críticos e sambistas. Alguns destes, como os já citados Candeia e Isnard, reclamam de uma grave perda de identidade do samba, enquanto outros, que vivem essa nova experiência, não se opõem aos novos espaços de prática, de maneira a buscar o exercício de um samba que não necessite de uma canção pensada em relação à disposição ordenada de “sons, cores, objetos construídos, indumentárias, músicas, carros alegóricos e mais” (CHAGAS, 2002, p.18). Essa flexibilidade conquistada, que fugia às exigências do espetáculo favorece o aparecimento de novos lugares de socialização onde “o que está sendo valorizado neste momento é, na verdade, uma vivência, a recuperação de uma atividade de lazer, de um 20 A idéia de velha guarda foi inicialmente disseminada por Almirante. O interesse desse compositor e radialista em definir uma “reconfiguração de um passado musical” permitiu que esse conceito reunisse as várias vertentes responsáveis pela consolidação do samba até as três primeiras décadas do século XX. Com isso, “neste conceito cabiam músicos do primeiro samba (Donga, Pixinguinha), nomes ligados às Escolas de Samba (Ismael Silva), e artistas diretamente relacionados com os primeiros programas musicais do rádio (Noel Rosa, João de Barro, Silvio Caldas)” (NAPOLITANO & WASSERMAN, 2000, p.173). 50 espaço, dos valores que as rodas, as músicas, e os encontros propunham” (TROTTA, 2000, p.67). Sendo assim, abrem brechas para a formação de novos espaços de prática musical, como os “pagodes”, descritos assim por Luiz Fernando Nascimento de Lima: não há cobrança na entrada, não há normas impositivas de comportamento ou vestuário, o espaço é aberto, não há um plano predefinido para o programa musical, aceita-se que músicos novos e inexperientes também apresentem suas composições, os estilos musicais muitas vezes são semi-improvisados, não há uma estrutura comercial estável para a venda de comida e bebida, não há limites temporais fixos e não há regras que excluam a participação de qualquer pessoa(2002, p.97). O que fica claro na descrição de Lima é a maneira pela qual os novos músicos têm o olhar voltado para o passado, resgatando, de maneira muito similar, os primeiros momentos da história do samba, quando este era realizado nas casas das tias. Desse modo, percebemos que a retomada das práticas que haviam perdido espaço dentro das escolas de samba vinha em resposta às perspectivas que temiam uma mudança irreversível nesse fazer musical. Contudo, não podemos admitir que esse resgate negasse as possibilidades de inserção dos novos artistas no cenário musical por meio dos meios de comunicação e da indústria dos discos, já que neles não se reconhecia uma cultura de resistência cujo interesse fosse manter sua arte alheia aos instrumentos e regras difundidos pela indústria cultural da época. Essa retomada da valorização das formas improvisadas se dá por volta do início da década de 1960 e ganha destaque nos debates culturais da época, de maneira que os próprios artistas e críticos musicais – comumente de classe média – tiveram grande preocupação em defendê-la como uma cultura autêntica e afastada das influências trazidas pela “terrível invasão” dos valores estrangeiros. Nesse contexto, citamos o restaurante carioca Zicartola como um importante local onde se buscava o samba enquanto elemento de uma cultura pura e nacional, que promovia o “encontro entre demandas de grupos de sambistas à procura de mercado e grupos intelectuais formadores de opinião sedentos por ‘sorver’ a brasilidade que lhes parecia ameaçada” (TROTTA, 2006, p.70). Entre os artistas ligados ao samba que surgiram nesse local podemos destacar Paulinho da Viola, Zé Keti, Clementina de Jesus, Oscar Bigode, Zé Cruz, Araci Cortes, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Elton Medeiros 21; artistas que tiveram, 21 Nesse momento, faz-se necessário falar sobre o surgimento do Centro Popular de Cultura (CPC), iniciativa tomada por estudantes ligados à UNE que demonstra esse novo panorama reflexivo onde o resgate da cultura popular e o engajamento político se tornavam centrais. Artistas como Geraldo Vandré, Nara Leão, Carlos Lyra, 51 curiosamente, ao longo de suas carreiras, toda sua produção ligada às faixas de consumo musical do samba e da MPB. Conforme afirma o próprio Elton Medeiros, os encontros no Zicartola foram primordiais para o resgate das escolas de samba, contudo, o que se percebe na trajetória desses artistas é que esta não possui ligação imediata com os conjuntos, artistas e compositores que são comumente vinculados ao surgimento do pagode enquanto novo subgênero musical a ser comercializado a partir da década de 1970 (MEDEIROS apud LOPES, 2000, p.101). Para esclarecermos as diferenças entre os sambas produzidos na época, não podemos deixar de citar um outro local de grande importância para o desenvolvimento desse gênero musical: o Cacique de Ramos. Surgido também na década de 1960, se configurou como importante roda de pagode que promovia a inserção de novos artistas que não haviam firmado carreira por intervenção de mediadores que defendiam a questão do engajamento político e a valorização do nacional-popular dentro da música 22. O pagode surge como novo subgênero musical em 1960 e seus sambistas se destacam pelo vínculo aos debates culturais do momento e acabam por se transformarem em ícones responsáveis pela continuidade do samba, integrando o nicho amplo e valorativo da chamada “Música Popular Brasileira”. Tal posição não apenas contribuiu para aumentar o valor estético e o prestígio desses artistas, como também permitiu a construção de um público consumidor que compreendia o fazer musical e a carreira dos sambistas como indicativos da manutenção do “popular” e do “nacional” no mercado fonográfico. Contudo, a compreensão dada aos sambistas e ao público não pode ser vista de maneira rígida, capaz de generalizar as diversas carreiras musicais, que, como bem sabemos, atravessam contextos distintos, com diferentes preocupações estéticas e configurações. Dito isto, percebemos que a distinção feita entre os “sambistas da MPB” (da década de 1960) e os pagodeiros que surgem na década seguinte é feita a partir da idéia de que estes partem de Sérgio Ricardo, Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle se preocupam em buscar redutos de onde poderiam acessar esses artistas considerados populares. O mais reconhecido produto da associação entre essa perspectiva apresentada e a busca desses artistas foi o show “Opinião”, onde “engajados” e “populares” dividiam o mesmo palco. 22 Apesar desta diferença salientada pelo diferente contexto e formas de inserção no mundo artístico que marca essas duas gerações de sambistas, não podemos de salientar que ambos estiveram ativos no mercado de discos. Da década de 1960, temos a expressiva vendagem de Zé Keti com o disco “Máscara Negra” (1967) e a conseqüente retomada de vários compositores em uma valorização tardia de nomes como Cartola e Nelson Cavaquinho. Na década seguinte, aproveitando do surgimento do pagode como subgênero e a expansão do mercado de discos no Brasil, temos o surgimento de vários outros artistas que seguiram toda uma carreira artística ligada ao pagode (VICENTE, 2008, p. 108, 109). 52 outras temáticas, trajetórias e opções estéticas que permitem visualizar um novo momento na história do samba. Assim, apreendemos que A principal diferença entre, de um lado, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Jovelina Pérola Negra, junto com outros artistas que apareceram neste momento e, de outro lado, os cantores de samba que já tinham sucesso anteriormente - como Martinho da Vila, Beth Carvalho, Agepê e Paulinho da Viola era a relação com a indústria, já que estes artistas eram projetados dentro do contexto da MPB e da fabricação de ídolos, enquanto os pagodeiros, seus elementos musicais e simbólicos eram apresentados de maneira mais próxima à de sua veiculação nos pagodes informais ao vivo (LIMA, 2002, p.96). Essa diferenciação indica o estabelecimento de uma nova conjuntura do samba, através da qual os artistas puderam ser reconhecidos pelo percurso de outra trajetória. Contudo, os novos sambistas tinham a preocupação de se aproximarem das formas originais do samba, de modo que buscaram reproduzir temáticas e elementos sonoros que reforçavam o descompromisso que marcou, em um primeiro instante, o reconhecimento das rodas de pagode. Um exemplo dessa situação pode ser vista na fala de Trotta, quando ele destaca que nas gravações das décadas de 1960 e principalmente nos anos 1970, há uma explícita intenção de transpor para o ambiente do estúdio a informalidade das rodas de samba caseiras, que é representada não só no aumento da importância da polirritmia da batucada, mas também através de diálogos descompromissados entre cantores, músicos e a inclusão deliberada de barulhos diversos (...) uma certa "sujeira acústica", que se transforma em sonoridade do próprio arranjo. A informalidade da roda é transposta para o estúdio, conferindo uma aura de autenticidade na gravação (2006, p. 47-48). A reprodução desse ambiente informal que destacamos na fala de Trotta demonstra um visível contraponto a uma época em que as possibilidades estéticas e a incorporação de novos instrumentos e efeitos de produção já poderiam “sofisticar” a gravação sonora em estúdio. No entanto, como dito anteriormente, nem todos os grupos e artistas primavam pela “sujeira acústica” que representava a estética dominante das rodas de pagode e muitos deles permitiram, em suas obras, a intervenção de produtores musicais e a utilização de instrumentos oriundos de outros gêneros musicais, nacionais ou estrangeiros (idem, p.49). 53 Percebemos, então, que o pagode não se impôs como um gênero de identidade já estabelecida e definida, mas se configurou como um estilo aberto às experimentações e que lançou o samba a outras possibilidades criativas que se consolidaram apenas na década de 1990. A partir deste momento, outra geração de artistas surge em meio ao franco fenômeno de expansão comercial da música, que abarcou, entre outros novos gêneros musicais de apelo popular, a música sertaneja e a axé music. Nesse contexto, os novos pagodeiros foram sistematicamente criticados por algumas opções musicais que supostamente descaracterizavam as principais referências ao pagode – que definia sua identidade nos anos 1980 a partir do resgate das tradições estéticas do samba produzido no início do século XX. Contudo, uma análise das novas opções nos revela que, no que tange a esfera da escuta musical, a crítica é inoportuna, ainda mais se seguirmos a opinião de João Paulo M. Castro e Felipe Trotta, que fizeram a comparação entre o pagode dos anos 1980 e 1990, e concluíram que “a matriz estética-histórica de ambos os ‘estilos’ é exatamente a mesma, e que o discurso da ‘tradição’ não tem validade para estabelecer essa distinção estética” (2000, p.74). Todavia, não podemos deixar de lado a opinião lançada pelo sambista e pesquisador Nei Lopes que define os pagodeiros da década de 1990 como frutos de uma apropriação da “indústria internacional do entretenimento” que possibilitou a emergência de um tipo de composição “sem a malícia das síncopes, sem as divisões rítmicas surpreendentes” (2003, p. 111). Dessa maneira, notamos que, a partir da visível disputa quanto a compreensão do termo “pagode”, não podemos mais pensar em “antigos” e “novos” pagodeiros, abarcando as manifestações que surgiram nesse campo nas últimas décadas do século XX. Diante dessa e de outras querelas que surgiram ao longo dos anos dentro do mundo do samba, uma nova distinção se articulou com a criação do samba de raiz. A formação de uma nova faixa classificatória poderia, finalmente, englobar – de forma não muito precisa – todas as referências que estivessem ligadas às primeiras manifestações históricas e artísticas desse gênero musical, abarcando, deste modo, artistas de diferentes gerações sob o mesmo domínio. No entanto, essa nova divisão do samba acabou criando um subgênero que se justificava muito mais através de questões históricas e sociais, que por elementos musicais objetivamente reconhecíveis. E mesmo dentro dessa nova classificação havia ainda os que – apesar do olhar voltado para o passado – não hesitavam em buscar influências musicais fora do mundo do 54 samba. Assim, como tanto a turma “da raiz” como a dos “pagodeiros dos anos 90” buscavam outros recursos para fazerem sua música, algumas incógnitas a respeito da divisão entre eles ficaram no ar. Entre elas, está a levantada por Luiz Carlos, do grupo Raça Negra: ”Eu não entendo o que é samba de raiz. O samba tem vários ritmos, a maneira de jogar com isso é que varia. Quando eles falam que tocam samba de raiz nem eles mesmos sabem que raiz é essa” (Revista de Domingo, JB, 10/09/1995) 23. Através da verificação dessa dificuldade de estabelecer uma distinção do pagode nas duas décadas mencionadas, percebemos que a legitimidade se torna um frágil meio para tentar justificar a diferença. Dessa maneira, recorremos à análise de Luiz Nascimento de Lima, que, ao interpretar essa situação à luz de um novo momento de expansão do mercado musical, acabou por desestabilizar as dicotomias existentes entre o erudito e o popular que definiram, por muito tempo, o campo das artes. Segundo o autor, o momento citado se articulou justamente na década de 1980, quando o interesse em se conceber gêneros musicais de amplo consumo mercadológico quebrou “o caráter exclusivo ou exclusivista da oposição que funcionava antes entre as categorias ‘popular’ e ‘oficial’” (2002, p.99). Ele ainda aponta que a cisão dessa dicotomia também teve como contribuinte as práticas informais e inclusivas que marcaram o início dos primeiros eventos, já que os pagodeiros se afastavam das imposições das escolas de samba para experimentarem de forma aberta a prática do samba. Sendo assim, o autor considera que a heterogeneidade do público do pagode reforça a idéia de que as “condições de vários tipos convergiram para possibilitar o crescimento de um estilo sintético capaz de dar voz aos valores subjacentes que estavam à espera de expressão” (idem, p.100). Lima justifica essa capacidade a uma “competência carnavalesca” sedimentada no conceito oferecido pelo teórico russo Mikhail Bakhtin, que, ao estudar a transição da Idade Média para o Renascimento, percebeu uma maneira de articular, na cultura, uma visão de mundo renovadora que irrompe contra as distinções que marcam os diversos aspectos da vida cotidiana. 23 O “eles” citado por Luiz Carlos pode ser visto como um questionamento muito mais dirigido aos que defendem a distinção entre o “pagode” e a “raiz”, do que necessariamente aos artistas associados a essa última classificação. Um exemplo desse tipo de perspectiva pode ser notada em uma declaração de Bezerra da Silva, que ao ser questionado sobre os novos pagodeiros, respondeu: “O sol nasceu pra todos, todos os colegas são bons. Cada um tratando de si. Eu acredito que o meio está pra todo mundo. Graças a Deus, muitos colegas estão fazendo sucesso. Um sambista carrega a bandeira do samba” (Folha de São Paulo, 8/12/2000, < http://almanaque.folha.uol.com.br/pagodinho1.htm > acessado em 14 de julho de 2008). 55 A tese defendida por Lima nos permite visualizar uma perspectiva estéticohistórica que considera que, por meio do pagode, o samba alcançou uma posição imprecisa no esquema que antes classificava claramente os gêneros percebidos no cenário cultural brasileiro. Desse modo, vemos que as diferentes posições assumidas pelo pagode no mercado musical, na sua própria musicalidade e nos eventos que inicialmente marcaram sua gênese, acabam por sustentar a condição ímpar levantada pelo autor, pois, de fato, a eclosão dos meios de comunicação e a capacidade destes de propagar a arte em outras culturas puderam proporcionar uma quebra em determinados esquemas de classificação. No bojo desse movimento de ruptura, notamos que as distinções trazidas pelo pagode por meio de sua “competência carnavalesca”, acabam por influenciar outros estilos musicais que antes poderiam ser vistos dentro de esferas fechadas em que as formas, os símbolos e o próprio público estariam hermeticamente inseridos e classificados de maneira precisa. Contudo, analisando tudo o que já foi dito, percebemos que ao longo de toda trajetória do samba, existiram outros momentos em que a indefinição esteve manifesta em diferentes pontos e questões. Antes ou depois do pagode, pudemos observar as diferentes declarações e visualizar a complexidade desse jogo composto por símbolos, práticas e referenciais históricos que formularam orientações variadas. Notamos, então, que o processo de compreensão e concepção artística se insere num campo que congrega a perspectiva de cada músico, artista, crítico, fã e pesquisador, que se posicionam e compartilham suas opiniões, reelaborando a significação dos elementos de uma mesma experiência. Em decorrência dessa dinâmica, seria impossível dar conta de todas as vozes que participaram do processo dialógico através do qual tentamos levantar alguns movimentos que puderam nos permitir caminhar pelas obras, declarações e apreensões que marcaram a carreira do sambista Bezerra da Silva. Dessa maneira, a contribuição oferecida por essa parcela do trabalho destaca a reflexão que se sustenta sobre a insistente observância dos passos, dizeres e sons produzidos por esse artista. Nesse sentido, levantamos os rumos tomados pela sua carreira artística e problematizamos sua via de inserção no cenário musical de sua época através de um levantamento das questões que cercaram seu processo de criação musical – o que inclui a análise de alguns de seus sambas – e também a apropriação de sua obra. Buscamos, assim, ver 56 as maneiras pelas quais se travou seu diálogo com as tradições do samba e de que maneira isso foi exposto em sua obra. Por meio de toda essa pesquisa, permitimos nos afastar de um simples elogio à qualidade estética de sua obra, ligada as suas habilidades de gênio musical isolado em idéias próprias, para verificarmos (por meio do mais variados indícios) como Bezerra da Silva respondeu às questões de seu tempo e de sua arte, assinalando, sob uma nova entonação, algumas temáticas e experiências ligadas ao samba. Assim, a aparente reinvenção que buscamos na obra de Bezerra parte para um esforço reflexivo que instaura um olhar que pensa sobre sua obra como uma criação contaminada por elementos que aparecem dentro do gênero musical que representa, na contextualização de questões contemporâneas e também na própria fala do artista. Isto porque o próprio Bezerra, em diversas ocasiões, preocupava-se em justificar suas opções artísticas e assinalar as implicações da sua obra no tempo em que viveu, mostrando-se ciente de seu papel de “embaixador do morro”. Nesse sentido, nossa pretensão fundamental é sinalizar os caminhos tomados pela sua obra, deixando esclarecidos alguns pontos de sua trajetória através da análise de referenciais múltiplos que se interpenetram constantemente. 57 CAPÍTULO II – BEZERRA DA SILVA: UM CAMINHO BIOGRÁFICO E MUSICAL “Ao narrar sobre minha vida cujas personagens são os outros para mim, passo a passo eu me entrelaço em sua estrutura formal de vida” Mikhail Bakhtin No dia 17 de janeiro de 2005, José Bezerra da Silva faleceu após sofrer uma série de complicações decorrentes de um irreversível enfisema pulmonar. O sambista, que não era mais um “José da Silva”, foi bastante ovacionado por compositores dos morros cariocas que tiveram seus sambas gravados por ele. Dessa maneira, Bezerra (como era conhecido), evidenciava sua importância no mundo do samba, onde retomou as formas tradicionais do samba de partido alto e conquistou considerável fatia do mercado fonográfico de sua época. Ele cantava temas que ligavam sua figura à extensa coleção de imagens que o traduziam como um artista de feição popular. O interesse em retratar a expressividade desse artista a partir de sua morte tem inspiração no samba-homenagem “Pensando na morte do Bezerra” 24. Isto porque, na letra desta canção – feita após a morte do cantor – o compositor Lula Queiroga diz que Bezerra da Silva “deixou seu nome na fumaça da História, morreu no dia dezessete do um, pra provar que a vida é um tremendo 171”. Destaca-se, nesses versos, a ironia que corteja a idéia de que o fim da vida do sambista abraça os mesmos números que geralmente enquadram os crimes praticados pelos famosos malandros. Essa relação, que encaixa a morte de Bezerra, a malandragem (tão abordada por ele em suas canções) e o artigo 171 do Código Penal pode ser vista como uma última tentativa de se criar, como muito bem salientou Pierre Bourdieau, uma “lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consciência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final” (1998, p.184). Nesse sentido, procuramos buscar na vida e obra desse artista os fatos que marcaram sua trajetória e o transformaram em um intérprete de sucesso. 24 Este samba aparece nos créditos finais do documentário “O dia em que o bambu quebrou no meio”, dirigido por Pedro Asbeg & Arthur Muhlenberg, onde vários sambistas falam de Bezerra da Silva no mesmo dia em que acontece o seu velório. 58 Para tanto, nos focamos no trabalho que ele deixou registrado em LP’s, CD’s, vídeos e entrevistas e observamos sua vida como um dado que aparece, repetidas vezes, nas declarações e versos que pontuam sua longa carreira, que vai da década de 1970 e só “acaba” – como já observamos – no dia em que falece. Para começarmos o percurso que pretende resgatar a caminhada de Bezerra, não podemos deixar de mencionar a obra “Bezerra da Silva, produto do morro: a trajetória e obra de um sambista que não é santo”, da antropóloga Letícia Vianna, uma vez que ela consegue capturar informações sobre sua obra que antes eram ofuscadas. Isto porque as diversas matérias que falavam do sambista dividiam espaço com fotos, anúncios publicitários e até mesmo com as próprias resenhas de seus discos, de maneira que não conseguiam retratá-lo de modo completo. Sabemos que Bezerra da Silva compôs poucas das músicas que gravou. Ainda assim, temos em seu trabalho importante suporte para nosso estudo, já que muitas letras parecem ter sido encomendadas, modificadas ou viabilizadas pelo convívio regular do sambista com alguns dos compositores que apareceram durante sua carreira 25. Essa tentativa de se eliminar as diferenças entre a vida e a obra do artista nos mostra uma dupla via que o liga a um determinado “perfil estético, visual e comportamental do indivíduo que canta, que soma à música em si” (TROTTA, 2006, p.17). No caso de Bezerra da Silva, sua figura remetia-se ao arquétipo do malandro, que se tornou, ao longo da história do samba, um personagem corrente nas diversas canções. Tanto as letras das músicas de Bezerra quanto sua imagem convergiam para este estereótipo, fazendo com que muitas pessoas confundissem a autoria de uma canção com sua interpretação, através de frases como ‘a música do Fulano’, quando se sabe que o tal Fulano não compõe. A imagem estética dos produtos canção e disco se baseia na crença e na verossimilhança do artista enquanto personagem-criador desses produtos. (ibidem) 25 No dia 28 de julho de 1991, o jornal “O Globo” trouxe na matéria ”O velho malandro ataca de novo” uma série de pequenos textos que retomam alguns aspectos relevantes da vida e da obra do compositor. No último deles, intitulado “Cantor sobe os morros em busca de novos compositores talentosos”, o autor da matéria destaca essa confusão autoral ao afirmar que Bezerra da Silva “faz questão de citar o nome de seus compositores por que muita gente acha que ele próprio compõe seus sambas” 59 Contudo, para que se entenda como esse perfil foi atribuído à Bezerra, é preciso saber como ele se estabeleceu como artista e de que maneira os fatos essenciais de sua vida foram determinantes para que ele se entendesse como homem e compreendesse sua arte. Dessa maneira, vemos que essa amálgama entre vida e obra, que é uma discussão recorrente em vários campos que estudam determinada manifestação artística, tem um valor específico no conjunto do trabalho de Bezerra da Silva. Reverenciado em diversos momentos como “artista popular”, nosso sambista honrou esse mérito não por uma opção aleatória, mas por que os próprios fatos de sua vida o levaram a querer “representar” o morro. E é justamente essa impressão harmônica sobre sua história e seu trabalho – transmitida por meio de canções, declarações e imagens – que se configura o conjunto portador de um nexo causal encarado como legímito e verdadeiro. O fato Bezerra da Silva falar do que vive ou viveu através de sua própria arte, faz com que ele seja avaliado por outros critérios que o legitimam como artista que carrega uma verdade a ser transmitida, no caso, em forma de canção. Esse mesmo critério avaliativo foi explorado pelo pesquisador Eduardo Coutinho no artigo “Os sentidos da tradição”, em que trabalha com canções e depoimentos de outro conhecido sambista, Paulinho da Viola. Coutinho retoma as experiências afetivas alocadas na infância e na juventude do cantor para, logo em seguida, destacar seus primeiros passos na carreira artística. Ele ainda promove uma série de conexões que destacam a peculiaridade da obra de Paulinho, uma vez que sua vida foi pontuada por memórias sonoras e personagens do samba que lhe permitiram, de maneira única, promover um “desenvolvimento dialético da tradição legada pelas gerações passadas (...) operada a partir de dentro da cultura das classes populares e não como uma ação realizada desde o exterior” (COUTINHO, 2002, p.13). No caso de Bezerra da Silva, a relação entre popular e tradicional também é ponto fértil para discutir as canções que gravou. Todavia, não queremos aqui apontar, por meio de sua vida, a veracidade ou legitimidade dessa “aura tradicional” em sua obra. Nossa intenção é reconhecer os signos, os mecanismos e as falas que nos permitem acessar as referências depositadas no passado e traçar a história de vida do sambista. Em outras palavras, pretendemos observar quais são as tradições que cercam a obra de Bezerra e de que maneira elas são evocadas, de modo a relacionar a história de vida do cantor com a própria história do samba. 60 Existe ainda uma outra vertente sobre a qual queremos nos debruçar para entender a obra de Bezerra, pois não seria possível, apenas pela avaliação de sua história e obra, discutir sua relação de afinidade com o passado e condensar a importância de seu trabalho. A partir do momento em que a obra de nosso sambista não pode ser entendida apenas pela ótica da sua trajetória de vida, outro elemento se coloca sobre nossa mira, nos fazendo enxergar a consolidação de sua carreira artística. Nesse sentido, também temos interesse em explorar a indústria cultural que o permitiu lançar seus sucessos e ficar conhecido nacionalmente como “porta-voz do morro”. Fazemos uma retomada das questões discutidas na primeira parte do trabalho para tentar encontrar as articulações existentes entre o momento em que Bezerra trilha a sua carreira, abrindo espaço para o consumo de sua arte via indústria cultural, e o surgimento de novos campos de compreensão sobre sua obra. Para tanto, não consideramos a indústria cultural como um agente que possibilita a sua transformação em artista, mas como tema que se mostra recorrente nas próprias letras do sambista e que serve de referencial para uma parcela significativa das críticas que buscam compreender o sucesso alcançado por alguém que foi bem mais que apenas um intérprete de sambas. 2.1 A CHEGADA ATÉ O MALANDRO 2.1.1 “Mas eu sou aquele que chegou do Nordeste pra tentar...” Ao contrário do que muitos pensam, Bezerra da Silva não nasceu nos morros do Rio de Janeiro. A malandragem que fazia parte de sua figura foi construída somente quando ele foi viver nas favelas cariocas. Contudo, assumindo sua identidade como artista, ele aponta que sua inclinação para o mundo da música esteve presente desde a mais tenra idade, quando já estaria em contato com seu “dom natural”. Na obra de Vianna, ele cita algumas vezes passagem da sua infância e justifica sua condição de músico dizendo: Gostava de cantar e encher o papo de galinha pra botar na lata e ficar batendo... mas aquilo na minha época era crime (...) Ninguém admitia esse negócio de música, música era coisa de vagabundo. E tinha uma rapaz lá, que tinha uma escola profissional, que tinha uma banda. (...) eu tinha verdadeira adoração por aquilo! Mas eu não podia porque minha família tinha horror a música. (...) Mas tinha um rapaz 61 que estudava na escola, ele tocava trompete e me ensinou, escondido. Foi o primeiro instrumento que toquei na vida. Ele me ensinou a escala e aquilo nunca me saiu da mente. (VIANNA, 1999, p.19) A passagem mencionada se passou na cidade do Recife, quando, ainda com pouca idade e nenhum tipo de apoio familiar, ele teve suas primeiras experiências musicais de forma passageira e bastante incipiente. O gosto pessoal e a teimosia pueril eram um dos dos primeiros indícios de que um amante da música teria que superar outros obstáculos para que viesse a ser um cantor. Apesar de Bezerra ter saído de sua cidade natal no começo da adolescência, seus primeiros discos parecem buscar exatamente esse lugar onde a primeira identidade musical teria sido formada. Assumindo o papel de “rei do côco”, ele grava dois discos em que se dedica aos gêneros musicais nordestinos. Mesmo havendo uma considerável distância temporal entre sua infância e o início de sua carreira como intérprete, ele parece recuperar os referenciais daquela época para legitimar seu repertório. Na canção que recebe o nome de seu novo título, “O rei do côco”, e que aparece nos dois discos dedicados ao gênero regional, Bezerra canta que “a natureza deu a mim esse presente/ está no meu sangue, no meu eu/ no meu coração, na minha mente”. Desse modo, ele mostra como cantar aquele esse tipo de música é sua condição natural, que “não é banca, nem vaidade/ é pura realidade, O rei do côco chegou!”. Todavia, ao mesmo tempo em que estabelece esse contato com suas raízes e atribui naturalidade a essa conexão, Bezerra da Silva também busca uma estratégia de singularização que se mostra muito comum a tantos outros artistas de sua época. Ele tenta, portanto, firmar espaço no mercado fonográfico por meio da evocação de qualidades peculiares; ele tenta se estabelecer a partir de um personagem que possa ser reconhecido, destacando-se dos demais. Enquanto cantor dos côcos do nordeste, a primeira de suas qualidades que se destaca é a capacidade de reproduzir fielmente o jogo de palavras e rimas que marcam as chamadas “obrigações”, que também nomeiam de forma indefinida as canções nordestinas. Um exemplo dessa habilidade pode ser conferido em “A coisa mudou” 26, canção em que Bezerra avisa que vai cantar só para mostrar que um outro cantor (no caso, o repentista) “fica todo atrapalhado/ a língua cai/ o maxilar fica arriado/ Ele fica todo invocado/ apavorado e tremendo/ Porque esta obrigação/ não é brincadeira, não/ E ele não vai dizer/ tudo o que estou 26 Bezerra da Silva, O rei do côco – Vol. 1, Tapecar, 1975. 62 dizendo”.Dessa maneira jocosa, o novo “rei do côco”, mesmo que não tenha criado um novo gênero musical (como Luiz Gonzaga, “o rei do baião”) ou vinculado sua imagem a um determinado instrumento (como Jackson do Pandeiro), se impõe no mercado pelas suas habilidades que não poderiam ser apreciadas em outros cantores 27. Sua condição de nordestino ainda o coloca como portador de um discurso que usa a arte para evocar a idéia de que o “norte” é um lugar que deve ser valorizado, pois “não admito que falem do norte, se ele faz parte do nosso torrão” 28. As noções de orgulho e identidade seguem reafirmadas pelo uso de expressões que indicam um pertencimento àquele local: “No norte biscoito é bolacha/ aipim é macaxeira/ a indivídua abóbora é gerimum (...) Digo sem medo de errar/ No norte aprendi assim...” 29. Bezerra da Silva ainda explora, com o objetivo de singularizar-se, a questão das disputas em que a maledicência e a inveja são denunciadas como depreciadoras da qualidade estética do cantor. Sem ser muito específico, ele canta que Abel foi morto, meu amigo/ Pela bruta inveja de Caim/ Mas eu tenho fé em Deus/ Que a inveja dessa gente/ não pode matar a mim (...) A inveja é a arma do incompetente/ E quem usa esse monstro/ é de fato infeliz/ Sei perfeitamente bem/ que eles não se sentem bem/ em me ver tão bem assim Ao destacarmos estes aspectos que marcam os primeiros trabalhos de Bezerra e compará-los com sua história de vida, percebemos que seu ingresso no mundo dos discos foi marcado pela superação de imensos obstáculos. Isso porque, mesmo reconhecendo que seu contato com a música se deu desde muito jovem, sua fala nos remete à reprimenda dos familiares que eram contra essa aproximação e que o fizeram tentar a vida com outros ofícios. Essa situação fica clara quando o próprio Bezerra (não sabendo esclarecer de fato a data do acontecimento) decide ingressar na Marinha Mercante, assim como fizera Alexandrino Bezerra da Silva, o pai com o qual nunca tivera contato (VIANNA, 1999, p. 19). Nessa época de sua vida, ainda em Recife, ele tenta ingressar na escola de marinheiros, mas descobre que para tal ele necessitaria de sua certidão de nascimento. Uma 27 Essa mesma questão vem expressa na canção “Côco do Trocadilho”, em que o cantor avisa que “Pra cantar comigo/ tens que traçar bem o baralho/ Que é pra não se atrapalhar/ Viu, Zé? E não cair do galho (...)Eu fiz esse trocadilho/ somente pra derrubar a sua fama” (Bezerra da Silva, O rei do côco – Vol. 2, Tapecar, 1976). 28 Verso da canção “Assim, sim” (Bezerra da Silva, O rei do côco – Vol. 2, Tapecar, 1976). 29 Ibid, ibidem. 63 vez que não possuía este documento, seus familiares propuseram que ele fizesse um registro em que constasse a mãe, Hercília Bezerra da Silva, e o padrasto (cujo nome não é citado) como seus progenitores. De forma inesperada, José Bezerra da Silva faz questão de buscar notícias do pai que havia abandonado a família para morar no Rio de Janeiro e consegue, por intermédio de um conhecido da Marinha, mandar uma carta para esta instituição, que lhe dá como resposta o registro de nascimento que consta o nome de seu verdadeiro pai (Ibid, ibidem, p. 19). Bezerra recebe educação e treinamento para permanecer na Marinha, mas, depois de ser assediado sexualmente por um de seus superiores, ele desiste de se submeter à autoridade daquele lugar. Com intuito de expressar sua raiva e insatisfação, o próprio cantor alega, em depoimento, que saiu xingando os membros da Marinha Mercante de “veados” durante uma solenidade oficial. Esse evidente desacato acabou por justificar sua expulsão da instituição e de uma via de inserção no mundo do trabalho. Sua família, que tinha poucos recursos e se preocupava com o futuro do jovem Bezerra, o repreende e desaprova seu comportamento exaltado. Conforme ele mesmo aponta, “ficou aquele negócio que eu era ovelha negra da família, que eu não prestava, que eu era vagabundo (...) então eu vim embora... direto do Recife”(Ibid, ibidem, p. 20). Depois dessa desavença, Bezerra vai para o Rio de Janeiro. Nesta cidade, onde quase não possuia contatos, ele decide procurar por seu pai, com o qual havia estabelecido uma precária identificação no caso do registro de nascimento (Ibid, ibidem, p. 20). Quando chega ao bairro de Jacarepaguá, Bezerra se depara com Ana, a nova esposa de seu pai, e descobre que ele havia constituído nova família. A mulher, que havia compreendido a situação entre os dois, resolveu dar-lhe abrigo. Contudo, seu relacionamento com o pai, em poucos dias, resulta em nova situação conflituosa, pois, segundo Bezerra, este o acusou de ter aparecido para “empatar sua vida”. Diante desta situação, o jovem preferiu sair de casa e “nunca mais quis saber daquele pai” (Ibid, ibidem, p. 20). Ele foi em busca das primeiras oportunidades de emprego na cidade em que era um completo estranho. Com os versos “Pintor, pintor, pintor/ Eu já fui pintor/ Eu também já fui pintor/ agora sou tenor”, que fez em parceria com o sambista Dicró 30, Bezerra conta suas primeiras experiências profissionais no ramo da construção civil, quando realizava a caiação externa de 30 Bezerra da Silva; Dicró; Moreira da Silva, Os 3 malandros in concert, CID, 1995. 64 edifícios em obra 31. De início, ele habitava os tetos erguidos nas construções em que trabalhava, mas conseguiu mudar-se par ao morro do Cantagalo quando se envolveu com uma jovem empregada doméstica dessa comunidade (Ibid, ibidem, p. 21). 2.1.2 “Com o Bezerra não tem amor, né?” Ao entrarmos no mérito das relações amorosas de Bezerra da Silva, percebemos que a infelicidade nesse aspecto tornou-se algo bastante freqüente em sua vida, deslocando-se para suas canções, onde o amor era visto de maneira pessimista. Esse tipo de posicionamento, além de reafirmar um traço de sua vida, também corrobora com a visão partilhada por outros sambistas ao longo da história desse gênero musical. Segundo apontamentos do pesquisador Felipe Trotta, desde as décadas de 1930 e 1940, “salvo raras exceções, o samba romântico alcança sua densidade afetiva através do sofrimento, seja ele explícito ou manifestado apenas pela descrição de uma situação” (2006, p.118). Para salientar brevemente essa questão na obra de Bezerra da Silva, dentre todos os discos gravados, preferimos fazer referência ao álbum “A gíria é a cultura do povo” 32, gravado em 2002, pois, das quatorze faixas que contém, nove são destinadas aos problemas de relacionamento com a figura feminina. Nas canções “Toda noite sonho”, “Madalena” e “Eu senti”, esta retratada de maneira melancólica, através de um lamento por um amor que não pôde se concretizar e da lembrança dos momentos de felicidade que repousam no passado. Todavia, em algumas dessas composições é utilizada a divisão binária das estrofes para alternar o reclame do amor perdido com situações ligadas à prática do samba. Desta maneira, Bezerra sugestiona que, tanto na vida quanto na obra, a felicidade perdida no campo das relações afetivas é alcançada com a música. No mesmo álbum citado existem também canções em que a visão negativa é representada de outra maneira, pois a decepção amorosa deixa de ser melancólica para ser alívio, já que representa o afastamento daquela mulher que não soube dar valor ao amor 31 Em depoimento sobre a morte de Bezerra da Silva, o compositor Genaro da Bahia brinca com esse período da vida do amigo, com quem chegou a gravar alguns discos, dizendo que ele era melhor pintor de parede do que cantor. Para se explicar ele finaliza: “Isso não é ofensa. Nós pintamos muita casa de madame antes de comerçarmos a cantar, e ele sempre deixava as paredes lindas” (Rio dá adeus a Bezerra da Silva, Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jan. 2005). 32 Bezerra da Silva, A gíria é a cultura do povo, Atração, 2004. 65 recebido e, por isso, merece abandono e rejeição do parceiro. Entre elas, destacamos “Já matei os meus desejos” 33, em que Bezerra proclama “Cansei-me dos teus beijos/ já matei os meus desejos/ Agora querendo embora, vai/ Bonitona do papai/ Eu estou sozinho agora/ para mim será vitória/ deixei de ser o sofredor/ (...) Hoje o convencido sou eu/ direi com orgulho/ não quero mais o teu amor ”. Entre as decepções representadas e vividas, uma infidelidade amorosa que é registrada na canção “Vizinha faladeira” 34 pode ser também comprovada como verdadeira para o cantor, pois ela foi revelada em algumas entrevistas que Bezerra cedeu à Letícia Vianna que tratavam sobre o famigerado e cômico “caso do pijama”. No samba, a introdução é acompanhada pelo diálogo, que revela: - Ô cumade, sabe da nova? - O quê que houve? - O Bezerra (...) saiu cedo pra obra e já tem ‘uns e outros’ lá dentro com o pijama que ele nem usou. - Ave Maria! No caso em questão, Bezerra revela para Vianna que pegou o tal “uns e outros” com sua mulher e que este vestia um pijama que o cantor havia comprado pra estrear no fim de semana. Ele acrescenta que os vizinhos que assistiram ao flagra pensaram que haveria uma briga em decorrência da traição, mas Bezerra (demonstrando uma enorme displicência com a situação) apenas acendeu um cigarro e falou para o sujeito que ele poderia levar a mulher embora porque ela não valia nada, mas que deveria deixar o pijama que era dele. Dessa maneira, além de provocar o riso com seu comportamento irônico, Bezerra evoca, como em vários dos seus sambas, os descaminhos que a vida amorosa sempre teria a oferecer 35. Uma das poucas manifestações em que o amor é mostrado de maneira positiva se dá em relação à figura materna. . Em “Segundo Nazareno” 36, Bezerra da Silva confessa que 33 Bezerra da Silva, A gíria é cultura do povo, Atração, 2002. 34 _____________, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982. 35 Na reportagem “A voz do morro”, de 28 de julho de 1989, Bezerra da Silva também justifica sua descrença com relação ao amor por causa do interesse material de muitas mulheres. Fazendo um paralelo de sua vida antes e depois do sucesso como artista, ele analisa: “Antes que eu vendesse disco, as mulheres nem me olhavam. Agora me chamam de lindo. Quem faz isso ou está desgostosa da vida, é cega ou está afim dos 10% (...) Amor é grupo, coisa de otário” (A voz do morro, IstoÉ Senhor, São Paulo, 28 jul. 1989). 36 Bezerra da Silva, Cocada boa, BMG-Ariola, 1993. 66 “Verdadeiro amor/ que se tem na vida/ só existe um/ é o da nossa mãe querida/ Mãe é um grande tesouro/ cheio de sublimação/ É o segundo Nazareno/ na história do perdão/ Uma mãe é sempre mãe/ na alegria e na dor/ Ela ama o seu filho/ seja lá ele o que for”. Essa possibilidade de amor, que se dá de maneira incondicional 37, se coloca em perfeita contraposição a do pai – que o renegou logo antes de nascer – e a das mulheres que o traíram. No que diz respeito a possibilidade de Bezerra explorar a temática romântica, o compositor 1000tinho, em entrevista ao documentário “Onde a coruja dorme” 38, confessa que a “linha do Bezerra é a linha mais difícil. Eu tenho uma porrada de música aí dentro. Música de amor eu gravo com qualquer um. Mas pra gravar com o Bezerra não tem amor, né?”. No mesmo documentário, Bezerra aparece logo em seguida justificando que não pode cantar o amor quando nunca o teve e conclui: “Eu sou realista, canto a realidade.” Bezerra foi casado duas vezes. O primeiro casamento durou vinte e dois anos e terminou porque o sambista enfrentou muitos problemas decorrentes do vício do álcool que o impeliram a se separar. No final da década de 1980, quando já tinha uma carreira artística consolidada, ele decidiu se juntar com Regina, que se separou de um compositor para viver ao seu lado. Foi só ao lado dessa mulher que as decepções amorosas de Bezerra pareceram ter sido superadas, pois a relação com Regina Bezerra da Silva, que durou até sua morte, foi marcada por uma satisfação que, inclusive, ganhou versos na canção “Tantos anos se passaram” 39, gravada quando o casal parecia comemorar uma década de união 40. A música começa assim: Essa é pra minha musa inspiradora, Regina do Bezerra, primeira dama do samba. Mulher da melhor qualidade. É isso aí, malandragem. Se liga! (...) Tantos anos se passaram/ Eu não gostei de ninguém/ Os meus sonhos fracassaram/ Porque não encontrava outro alguém/ Foram tantas as conquistas/ Eu até perdi a lista/ Meu 37 Curiosamente, essa mesma canção aparece como sendo de Bezerra da Silva no LP “A braza do Norte”, de 1967, do cantor e ritmista Jackson do Pandeiro. Contudo, é registrada com o nome de “Verdadeiro Amor” e conta com algumas modificações na letra e no próprio conjunto de arranjos musicais. Na biografia “Jackson do do Pandeiro, o rei do ritmo”, Fernando Moura e Antônio Vicente apontam que essa era uma das poucas canções que faziam o seu biografado ir às lágrimas (2001, p. 253). 38 Onde a coruja dorme, Márcia Derraik e Simplício Neto, Antenna & TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil, 2006. 39 Bezerra da Silva, Provando e comprovando a sua versatilidade, Universal, 1998. 40 Contraditoriamente, na mesma época em que gravou essa canção, em entrevista cedida para Paulo Vieira, da Folha de São Paulo, Bezerra da Silva faz a seguinte declaração: “Criticaram uma música minha, `As favelas que não exaltei, dizendo que era repetitiva. Mas criticam quem canta o amor? É o tema que mais repetem. Eu não canto mentira. (...) Eu te amo? Favela é sufoco, fome, miséria. Não queira saber como é a vida do favelado” (Não sei, não vi, não conheço, Folha de São Paulo, São Paulo, 04 set. 1998.). 67 coração não aceitava ninguém, ninguém, ninguém (...)/ Já voltou, minha querida?/ A razão da minha vida/ Sou feliz, vivo bem/ Agora reina alegria/ em meu coração/ Não sofrerei e nem terei mais nostalgia/ nem desilusão/ Reina alegria em meu lar/ pois o destino assim quis/ Não tenho que reclamar, que reclamar/ sou feliz A presença de Regina na vida de Bezerra parece estabelecer, de alguma forma, a tentativa de profissionalização da carreira do sambista, pois sua presença e apoio são destacados em várias matérias sobre o sambista. Em “Bezerra da Silva lança novo álbum” 41, matéria de 29 de outubro de 1993, assinada pelo jornalista Enor Paiano, Regina aparece como um dos compositores que ajudaram o sambista a finalizar mais um disco. Já em “Poetas do samba”, escrita para o Jornal do Brasil em 16 de agosto de 2001, ela se mostra interferindo na produção de um show ao sugerir a exibição do filme “Onde a coruja dorme” antes do início da apresentação do marido. No ano de 1987, a jornalista Cleusa Maria fala sobre a reunião que Bezerra da Silva faz semanalmente faz com os amigos compositores, salientando sua aproximação com as figuras do samba e o cardápio da festa que era preparado pela mulher do cantor. Além de apoiar seu marido e conduzi-lo em sua vida artística, a matéria do jornalista Ricardo de Souza para O Estado de São Paulo 42 evidencia que a participação de Regina na carreira de Bezerra era muito maior, pois ela também se tornara empresária do marido após este sofres vários golpes devido aos contratos injustos que assinou. Segundo ela mesma confessa, “os empresários roubaram muito dinheiro dele (...) Agora leio tudo e consulto advogados”. A reportagem deixa clara que este controle só não foi tomado anteriormente porque Bezerra apresentava um comportamento machista, mas este se redime e sustenta o argumento da esposa ao confessar que seria preso se atirasse em todo mundo que abusou de sua boa-fé. 2.1.3 “Eu sou favela” Regina foi, definitivamente, muito importante para a carreira de Bezerra, mas é preciso que retomemos ao início de sua vida adulta, quando ele passa a vivenciar as complexas relações sociais que se engendravam no morro e inicia a compreensão sobre este 41 Bezerra da Silva lança novo álbum, O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 out. 1993. 42 Bezerra da Silva volta para enquadrar os manés, O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 ago. 2000. 68 local que será o estandarte de sua produção musical. Bezerra da Silva, mesmo que tenha enfrentado bandidos e presenciado a marginalização que as autoridades policiais dedicavam aos moradores do morro, sempre defendeu este local, mostrando-se profundo conhecedor e porta-voz dos problemas enfrentados na favela. Em “Respeito às favelas” 43, Bezerra da Silva confessa a construção de sua identidade neste lugar específico, ao cantar Eu sou favela/ minha gente eu sou de lá/ Não sinto vergonha/ e nem vejo motivo pra negar/ Tudo o que sei na vida/ aprendi com ela/ Por isso eu tenho respeito tão grande/ por todas favelas/ Só quem mora no morro/ é que pode dizer/ O que é padecer/ e se sentir feliz/ Vivendo e aprendendo/ a regra do bom viver/ Vendo a nossa semente/ ali criar raiz/ Posso falar de cadeira/ favela é meu berço, minha adoração/ Será sempre exaltada/ nos versos que faço na minha canção (...)/ Favela! Sei que você não é tão diferente assim/ Não é esse lugar de gente tão ruim/ Nunca foi ameaça para sociedade cruel/ Um dia você vai mudar/ em resposta dará sua volta por cima/ E esse sistema terá que prestar contas às nossas colinas Apesar de exaltar a favela, o sambista sempre se preocupou em alertar para o conhecimento dos códigos de conduta deste local que se tornam imprescindíveis na hora de abrir caminho para a possível vivência no morro. Na canção “A lei do morro”, Bezerra explica que para ser um “considerado” é preciso aprender que a “lei do morro não é mole não” 44, mas ele não volta seu alerta apenas para aqueles que desconhecem as regras de convivência do lugar, pois também se preocupa em destacar que a marginalização do “povo humilde da colina” é uma questão a ser resolvida. Bezerra encarava o morro não apenas como local de gente humilde, mas também como lugar de nascimento e prática do samba. Em “Aqueles morros” 45, ele buscava dar a mesma origem às diversas favelas do Rio de janeiro destacando que nos primórdios “foi pra lá o elemento homem/ trazendo batuque, barraco e festinha”. Sua perspectiva era a de que a musicalidade do samba acabou subindo ao morro e por ali ficou, o que reforça na canção “Partideiro Indigesto” 46, quando diz que “o morro provou que o partido é maneiro”. Ele ainda 43 Bezerra da Silva, Malandro é malandro e mané é mané, Atração, 2000. 44 _____________, Produto do Morro, RCA Vik, 1983. 45 _____________, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982. 46 Bezerra da Silva, Justiça Social, RCA Victor, 1987. 69 estabelece, em sua obra, vários indícios que fazem tributo ao lugar que, mesmo com as tantas dificuldades passadas, foi o responsável pela sua reintrodução no universo musical. Bezerra construiu sua imagem artística pautado na associação entre samba e morro, reforçando um vínculo que aparece desde as primeiras discussões sobre o tema, ainda na década de 1930. Cronistas como Vagalume (já citado no capítulo anterior) e Orestes Barbosa realçam o time dos que fazem essa associação, que pode ser vista no livro “Samba”, deste jornalista, em que ele afirma categoricamente que toda a emoção causada por esse tipo de música “veio das montanhas da cidade” (BARBOSA apud FENERICK, 2005, p. 229). Para Bezerra, essa relação era clara, pois as próprias canções que interpretava eram, em grande parte, compostas por artistas da Baixada Fluminense, o que fazia dele um porta-voz do morro. Este local não era apenas a morada dos compositores com os quais mantinha vínculo, mas o próprio “Q. G. do samba” 47, como afirma uma canção homônima, que destaca este como sendo o abrigo de um “punhado de bambas” e, por isso seria “o quartel general do samba”. Nesta mesma canção, a possível geografia deste estilo musical se expande para uma região que engloba várias cidades próximas à capital, pois estas também possuem favelas que se assemelham aos morros do Rio de Janeiro, compartilhando as mesmas situações e personagens deste lugar. A noção de continuidade dos morros cariocas e semelhança entre as realidades de cada um deles apontadas por Bezerra 48 também podem ser observadas na fala do historiador Linderval Augusto Monteiro: É comum somente vê-la como um conjunto de casebres não ou mal rebocados, como um dos maiores bolsões de miséria do Brasil (...) [que] entre os anos 1920 e 1980 serviu como um verdadeiro depósito de sobras humanas dentro do processo de despovoamento do campo e das freqüentes medidas de combate à favelização dos morros cariocas (2005, p. 488). Bezerra da Silva viveu por duas décadas no morro do Cantagalo, o que o fez consolidar a relação de proximidade entre os moradores da favela e as situações descritas com freqüência nos álbuns de sua extensa discografia. Contudo, antes de ser o local onde 47 Bezerra da Silva, Contra o verdadeiro canalha, RGE, 1995 48 Na matéria “Bezerra vai onde a coruja dorme”, o jornalista Silvio Essinger registra a seguinte definição de Bezerra da Silva: “Morro, cê tá vendo aqui, é tudo igual. Muda só o nome. A situação é a mesma: pobre, trabalhador, nêgo duro, desempregado, tá tudo aí.” (JORNAL DO BRASIL, 14 fev. 1999 ) 70 reconhece o vínculo apontado, Letícia Vianna nos mostra que o morro foi essencial para reintegração do sambista ao mundo da música, já que lá ele começou a participar dos pagodes e tendinhas, tocando tamborim e gastando parte do seu tempo conhecendo pessoas e ouvindo as canções daquele lugar. A rede de relacionamentos que estabelece nesses espaços de prática do samba acaba, no ano de 1950, pode colocar Bezerra em contato com o compositor Alcides Fernandes, que o convida para exercer a função de instrumentista na Rádio Clube do Brasil. A oportunidade, que ainda não se traduzia em profissionalização artística, permitiu que ele tivesse contato com outros instrumentos musicais, mesmo porque o samba não era mais o ritmo predominante nas ondas de curta, média e longa distância. Na década de 1950, novos ritmos estrangeiros, como os boleros, os ritmos do caribe, a chanson francesa e, mais tarde, o rock, estabeleciam uma ampliação na escuta musical da época, estreitando as oportunidades do samba no período (ZAN, 2001, p. 9 e 10). Em 1954, Bezerra da Silva perde o emprego na construção civil e a oportunidade aprimoramento artístico via rádio. Ele ainda tenta se estabelecer em outros serviços, mas não consegue, passando por uma fase bastante difícil em sua vida em que teve de se submeter a inúmeras privações. Contudo, vamos entrar nesse mérito mais para frente quando trataremos do lado mais penoso e escuro da vida do sambista. Por agora, é importante destacar que sua entrada no meio artístico na “função coadjuvante” de instrumentistas foi determinante na vida de Bezerra, não apenas pela importância que teve como um marco em sua trajetória, mas também pelo fato ter sido essencial na formação da sua identidade como artista. Depois do tempo sombrio mencionado, Bezerra só retorna à cena musical na segunda metade da década de 1960, quando atua como instrumentista, músico de estúdio e compositor, conquistando, rapidamente, a oportunidade de ser escalado para tocar nos discos de sambistas bastante conhecidos, como Clementina de Jesus e Roberto Ribeiro. No ano de 1965 ele compõe a canção “Nunca mais sambo”, que, gravada pela cantora Marlene, vence um concurso do programa de Manoel Barcelos, na Rádio Nacional (VIANNA, 1999, p. 29). Nesse momento, a vida de Bezerra parece tomar um rumo melhor e ele passa a conquistar oportunidades bastante significativas para alguém que, desde a infância, já havia perdido o contato com a esfera musical em duas ocasiões. Seguindo a boa maré, Bezerra lança, em 1969, seu primeiro compacto e já no ano seguinte ele grava o já citado LP Bezerra da Silva, O rei do côco – Volume I. Nessa época, ele 71 decide apostar no nicho da música regional, mas seu disco, devido a problemas ligados à escassez de petróleo no mercado internacional da época, ficou engavetado por cinco anos, sendo apresentado para o grande público apenas em 1975. Ele aproveita o embalo desse lançamento e um ano depois grava Bezerra da Silva, O rei do côco – Volume II. Bezerra continua progredindo na carreira artística, mas ainda exercia, prioritariamente, a função de instrumentista. E é exatamente com essa função que Bezerra, no ano de 1977, trabalhando na orquestra do Canecão na temporada de shows da cantora Elizeth Cardoso, recebe uma atraente oferta de trabalho. João Luzes, responsável pela direção musical do show de Elizeth, o convida para integrar o time de instrumentistas da orquestra da emissora de televisão Rede Globo. Apesar dos primeiros discos gravados e a visível ampliação dos contatos no meio artístico da época, a estabilidade oferecida pelas garantias trabalhistas, até então nunca presentes em sua carreira, acabaram sendo decisivas nessa nova empreitada. 2.1.4 Os “compositores de verdade” Segundo Letícia Vianna, a oportunidade de emprego na orquesta da Rede Globo foi respondida com esforços claros de profissionalização artística, pois agora que Bezerra “vivia de música”, ele se empenhava para aprender os princípios fundamentais da teoria musical a fim de se tornar um profissional devidamente registrado na Ordem dos Músicos do Brasil. Bezerra procura ainda ampliar seus conhecimentos musicais e estuda violão clássico por oito anos, tempo em que domina os instrumentos percussivos comuns às rodas de samba e também experimenta o cavaquinho. Ainda de acordo com Vianna, à época de sua pesquisa Bezerra aprendia piano e freqüentava esporadicamente algumas aulas em um conservatório musical. Essa expressa necessidade de incrementar seus dotes musicais e dominar diversos instrumentos aparece como um dado marcante no reconhecimento que o próprio Bezerra tinha de si como artista. Como evidência de sua versatilidade, destacamos a canção “A necessidade” 49, em que o cantor Genaro anuncia a chegada do pandeiro, do tamborim e do agogô. Bezerra da Silva recebe a cuíca e o seu parceiro fecha pronunciando que ganzá, surdo, 49 Bezerra da Silva e Genaro, Partido Alto Nota 10, CID, 1977. 72 cavaco e viola chegam para deixar o ambiente pronto para se executar um pagode. Cantando samba de partido alto, os dois alternam uma primeira estrofe fixa, onde se repetem os versos: “A necessidade obrigou/ você a me procurar/ Você era orgulhosa/ mas a necessidade acabou com a sua prosa/ Você era, orgulhosa/ mas a necessidade acabou com a sua prosa” 50. Bezerra e Genaro se alternam nas partes faladas que sucedem o refrão, destacando o improviso que caracteriza esse tipo de samba. No primeiro momento em que Bezerra versa sozinho, vai logo avisando que "Artisticamente falando Bezerra da Silva tem muito valor/ Toca surdo, toca tamborim, canta partido alto e é compositor". Esse improviso inaugura também o LP “Partido Alto Nota 10”, o primeiro disco em que Bezerra deixa de lado a música regional para se dedicar exclusivamente à nova fase de sua carreira, marcada por uma aproximação estética definitiva com o samba. Depois de se render a esse gênero, várias das entrevistas que evidenciam a figura de Bezerra da Silva no cenário musical brasileiro apontam para sua versatilidade e inteligência, atestadas como qualidades únicas deste sambista, já que em certa medida sua obra destoava do ambiente improvisado das rodas de samba e sua musicalidade não era atribuída a um talento nato que marcava a vida de tantos outros artistas. Uma vez questionado sobre a qualidade musical dos grupos e cantores de outros gêneros musicais que reverenciavam sua obra, Bezerra disse de maneira bastante clara que “cada um faz o que sabe. Eu não tenho gênero. Sou clave de sol na segunda linha, clave de fá na quarta”. No decorrer da matéria 51 a fala do sambista é ratificada quando atestam que, em seu tempo livre, “Bezerra toca piano e se esmera no estudo de trompete por partitura”. Em outra ocasião, quando o artista explicava seu interesse pela teoria musical e pelo aprendizado de outros instrumentos, ele atribuía seu aprimoramento à maneira de se escapar das dificuldades que enfrentou desde os primeiros anos como trabalhador da construção civil. “O meu negócio com a música desde o começo foi medo da fome (...) Percebi que se continuasse na obra, ia ficar igual os outros; era capaz de virar uma escada, um tijolo, um saco de cimento”, disse ele em entrevista ao crítico musical Tárik de Souza (JORNAL DO BRASIL, 12 jul. 1991, p.04). Contudo, Bezerra não enxergava o melhoramento como artista apenas como meio de sobrevivência, pois, para ele, mesmo as músicas que gravava junto aos compositores da 50 Ibid, ibidem. 51 “Não tenho nada de polêmico”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 ago. 1997. Caderno B. 73 favela necessitavam desse saber. Em depoimento ao já citado documentário “Onde a coruja dorme”, ele destaca que: (...) o compositor aqui do morro, ele é analfabeto da vida. Ele é analfabeto musical e também não tem instrução. Então ele faz uma melodia, uma linha melódica... e depois ele também não sabe o que que é. Eu já tive essa experiência... é muito bonito, cheio de acidentes, sustenidos, bemóis e tal... que eu já tirei melodias e depois toquei no piano lá (...) Com o intuito de melhor transmitir essa relação entre sua astúcia musical e a produção do morro, ele encena um possível diálogo com um dos seus compositores: - Mas tu senta aqui. (Aí começo a tocar nota Sol lá...) - E de quem é essa música aqui? - Isso aí eu não sei não. (E depois ele vai ouvindo e diz...) - Eu acho que eu conheço isso aí. (E digo...) - Não, isso é seu! Por meio desse tipo de conversa percebemos de que maneira Bezerra da Silva utilizava de seus conhecimentos musicais e porque para ele seu aprimoramento era tão válido. Ele funcionava como um intermediador entre o morro e a gravadora, pois, através de sua técnica, podia transformar uma música, que, apesar de bela, possuía ainda uma apresentação rudimentar, em algo que seria definitivamente aprovado para ser uma das faixas de seu álbum. Todavia, ao contrário de práticas comuns ao mundo do samba – em que os grandes intérpretes realizavam o processo de mudança e apropriação das canções, Bezerra sempre se preocupou em reafirmar que seus compositores, apesar de suas limitações, eram os proprietários das criações artísticas que gravava. E é justamente essa preocupação de conceder crédito as pessoas certas que nos apresenta a importância do significado dos compositores para Bezerra. Na canção “O rei da cocada preta” 52, uma das poucas faixas em que ele aparece como autor em parceria com Décio Carvalho, ele retoma a questão da compra de sambas como algo que deveria ser combatido por aqueles que possuem o privilégio de criar uma canção e desabafa: 52 Bezerra da Silva, É esse aí que é o homem, RCA Vik, 1984. 74 Você pode ser a maior fortuna do planeta/ o rei da cocada preta/ o dono do samburá/ Sim, mas não é a mim/ que você vai subornar/ Você não é compositor/ Como é que você quer gravar? (...) Deus não te deu inspiração/ Essa é a grande realidade/ Fazer samba é privilégio/ não se aprende em faculdade/ Você diz que compra tudo/ mas a mim você não corrompe/ Porque talento é um dom/ e não há dinheiro que compre (...) Quem é você seu desonesto?/ Pra dizer a mim que é pagodeiro?/ Você é “comprousitor”, intrujão e trambiqueiro/ A verdade só dói no mentiroso/ e por esse motivo ela não agrada/ Quem está falando sou eu/ partideiro indigesto da pesada. Percebe-se, então, que a possibilidade de obter lucros com a venda de sambas é, para Bezerra, uma questão rodeada por tensões 53. Em 1984, numa entrevista para Giovanni Faria do jornal “O Globo”, ele diz que a venda de sambas era prática bastante comum, mas que naquele momento parecia experimentar uma visível mudança. Ele ressalta que “tem muito branco aí que subia a favela para roubar samba de preto. Hoje, estes são mais espertos e já não são mais enganados” 54. O sambista ainda destaca sua crença na existência de barreiras que impediam o acesso dos compositores desconhecidos à indústria dos discos. Em outra entrevista, concedida ao jornalista Ruy Castro 55, Bezerra reforça seu argumento de que os compositores do morro são excluídos e se coloca como porta-voz deles. Nesse sentido, ele aponta a existência de artistas do morro que, mesmo tendo o talento necessário para compor sambas, chegavam nas gravadoras “(...) passavam na porta e não entravam. Ou então eram roubados pelos cantores”. Contudo, ele se põe como defensor dessa gente e proclama: “mas isso agora acabou porque eu subo ao morro, conheço todo mundo e tomo conta”. Mais uma vez, agora em 1988, essa temática é colocada em evidência por Bezerra. Na canção “Pobre compositor”, do disco “Violência gera violência” 56 ele coloca em evidência a fala de um sofrido compositor que pede ajuda aos “cantores brasileiros” para que gravem suas canções, já que ele não tinha essa oportunidade. Ele destaca que, sem nenhuma alternativa, a personagem faz uma última oferta aos senhores “comprousitores” musicais, 53 Bezerra da Silva denuncia como o controle sob a arrecadação dos direitos autorais não emprega uma política condizente ao enorme sucesso que a canção “Malandragem dá um tempo” atingiu com a regravação feita pelo grupo Barão Vermelho. Enquanto a banda de rock foi prestigiada com a venda de milhares de discos,“Adelzonilton só recebe uns R$ 3,00 mensais de direitos autorais”. (Poetas do samba, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 ago. 2001.) 54 Bezerra da Silva: o mestre da malandragem, O Globo, Rio de Janeiro, 17 out. 1984. 55 Cuidado, Moreira, o Bezerra não é mole. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 mai. 1985. 56 Bezerra da Silva, Violência gera violência, BMG Ariola, 1988. 75 dizendo que “vende barato” sua bela canção. Para mostrar a outra vertente dessa situação, a que mais se aproxima de sua obra, Bezerra grava a canção “Compositores de Verdade” 57, em que demonstra a importância dos compositores em sua carreira. O samba, que foi criado a partir dos títulos das músicas que interpretou, termina em um agradecimento a todos os “compositores de verdade” que garantem a “razão do seu sucesso”. 2.1.5 No tempo em que Bezerra “não via nada assado” Depois de fazermos referência ao seu surgimento como artista e entendermos como Bezerra alcança posição importante dentro do mercado musical de seu tempo, é preciso que voltemos ao período obscuro de sua vida em que ele enfrenta grandes dificuldades ao ver suas oportunidades profissionais tolhidas, tanto no ramo da construção civil quanto nas ondas das rádios. Este tempo de penúria se passa entre os anos de 1954 e 1961, quando Bezerra viveu como mendigo, morando nas ruas do Rio de Janeiro e passando por inúmeras privações que definiriam os piores anos de sua vida. Neste tempo, ele enfrenta humilhações e desafios próprios aos marginalizados e sente seu cotidiano como uma evidência da ruína a que chegara. No momento em que não reconhece nenhuma forma de reverter a situação de miséria atingida, Bezerra decide atentar contra a própria vida. Segundo contou para Letícia Vianna, ele arranjou um copo de veneno e foi para o meio da mata bebê-lo, mas, no exato momento em que iria tomar a substância fatal, ele diz que uma força misteriosa arrancou o copo de sua mão, impedindo que ele obtivesse o êxito do suicídio. Após essa intervenção, outras mais aconteceram, como o surgimento da ajuda de uma senhora de nome Paula que, vez ou outra, lhe dava algo para comer e lavava suas roupas. Foi ela que, após um desabafo de Bezerra sobre sua condição, entregou-lhe certa importância em dinheiro e lhe deu o endereço de um terreiro de umbanda localizado em Rocha Miranda (VIANNA, 1999, p. 27). Ao chegar ao local indicado, Bezerra recebeu de Dona Iracema a revelação sobre os fatos que acabaram por levá-lo a situação de miséria e desilusão. De acordo com a médium, que ainda contou vários episódios de sua vida, ele teria sido vítima de dois despachos realizados por mulheres que ele havia abandonado ou ofendido. Reconhecendo a 57 Bezerra da Silva, Alô malandragem, maloca o flagrante, RCA Vik, 1986. 76 explicação fornecida pela guia espiritual, Bezerra recebeu também a revelação da maneira pela qual poderia superar a condição em que se encontrava. Dona Iracema, ao invés de fazer alguma intervenção espiritual ou realizar algum tipo de encomenda aos orixás – usualmente praticados em terreiros umbandistas – disse ao pobre que este deveria “vestir de branco”, “desenvolver o espírito” e “fazer caridade” (Ibid, ibidem, p. 27). Além disso, para realizar as transformações em sua vida era necessário que Bezerra se voltasse para o desenvolvimento de suas habilidades musicais. Com suas palavras e o conhecimento fornecido pelas instâncias sobrenaturais, a guia espiritual devolveu a razão de viver a José Bezerra da Silva, que encontrava a solução para seus problemas em uma profissão que sempre estivera próxima de suas escolhas pessoais. Quando já no meio artístico, Bezerra não pôde esquecer desse período de sua vida e também buscou gravar sambas que cantavam sobre as situações vividas nos terreiros de umbanda. A importância dessa religião em sua vida pode ser percebida, por exemplo, na matéria “A ira do homem de boa vontade”, quando a jornalista Cleusa Maria ressalta como, ao longo de uma semana, o comportamento de Bezerra era orientado pelos santos católicos e orixás, comportando-se com raiva, justiça, serenidade ou vaidade. Para demonstrar seu argumento, ela relata que no dia da entrevista, realizada em uma sexta-feira, o cantor “(...) recebe seu exu Bezerra do Galo. E fica difícil de aturar” 58. A importância da umbanda em sua vida e também da orientação recebida por orixás, pais, mães, vovós e vovôs dos terreiros aparece em várias letras que se remetem à valorização do conhecimento e do senso de justiça trazidos por eles. Na canção “Meu pai é general de umbanda” 59, Bezerra explica que sua fé permite que ele seja sempre atendido por seus líderes espirituais chamados “rapaziada de Aruanda”. Em seus versos, o sambista confessa ter “(...) fé na consciência/ e sempre andei correto/ Por isso sou bem protegido por Vovó Catarina e Pai Anacleto/ Eles são meus protetores/ e garantem minha paz/ O que eu quero mais?/ O que quero mais?/ Nada!/ O que eu quero mais?/ O que eu quero mais?”. Contudo, seus relatos sobre a religião que o salvou não se encontram apenas em canções em que homenageia as figuras da umbanda, pois ele também faz questão de denunciar comicamente a ação daqueles que tentam tirar proveito indevido da liderança 58 Jornal do Brasil, São Paulo, 17 jun. 1987. 59 Bezerra da Silva, Justiça Social, RCA Victor, 1987. 77 espiritual. Nesse sentido, temos o samba sobre o “pai véio” 60 que, apressado e interesseiro, pede, em troca de seus préstimos, “oito quilo de feijão/ dez galinha gorda e bem pelada/ dez quilo de arroz e macarrão/ e dez latas de doce de marmelada/ dez garrafas de vinho do bonzão(...)”. Bezerra ainda vai mais longe na denúncia e canta que o pai de santo promete terras e gados em troca de dinheiro e que “se meu fio não tiver dinheiro vivo/ pode ser cheque verde ou cheque ouro”. Em outro caso de corrupção no terreiro, o suposto pai de santo “Zé Fofinho de Ogum” 61, em troca de muito dinheiro, diz à mulher do delegado que ele a traía. Contudo, quando o delegado aparece em seu encalço, Bezerra ressalta que “pelo santo ele não foi avisado/ De repente pintou a caçapa/ Era o Zé frente a frente com o delegado/ O doutor muito invocado/ gritou:’O coro vai comer!’/ ‘Tira a roupa do malandro’/ ‘e bate até o cavalo correr’”. Nesse exemplo, a sorte de Zé Fofinho, que devia ser protegido pelos búzios e ter o corpo fechado pela tatuagem de São Jorge nas costas, não lhe adiantou de nada, e Bezerra brinca com sua incapacidade de ser um guia abençoado, já que não pôde, simplesmente, prever o infortúnio que apontava para si mesmo. Apesar de cantar sobre o interesse material do suposto pai de santo, Bezerra dispunha de uma relação bem diferente no que tange à orientação espiritual recebida nos terreiros. A religião que o trouxe de volta para o mundo da música lhe dotava de sabedoria, proteção e segurança para encarar os desafios e ele não enfrentava relação de exploração com seus orientadores. O agradecimento contido em suas canções, desdobrava, portanto, de uma relação espiritual em que valores materiais não eram fins máximos da prática religiosa dos terreiros 62. Bezerra revelava ainda o lado sincrético desta prática religiosa, pois também fazia menção a alguns santos católicos que intervinham em favor dos homens. Em “Alô, São Pedro” 63, o guardião das portas do céu é chamado para observar de perto as condições de 60 “Pai véio 171”, Bezerra da Silva, Produto do Morro, RCA Vik, 1983. 61 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985. 62 Vale destacar que na grande maioria das canções que falam sobre o ambiente dos terreiros de umbanda, Bezerra da Silva sempre fez questão de iniciar tais músicas com um solo de tambores que aparecem à frente dos outros instrumentos e continuam no restante da gravação. Dessa forma, anuncia não só a presença de um novo tipo de tema a ser explorado na canção, bem como apresenta nesses lugares uma musicalidade diferente. Na canção “Vovó d’Angola” temos um claro exemplo de como os instrumentos percussivos têm uma função importante na condução dos rituais que marcam a própria umbanda (Bezerra da Silva, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982.). 63 Bezerra da Silva, Partideiro da Pesada, BMG Ariola, 1991. 78 miséria nas quais viviam os brasileiros, obrigados a “roubar de noite (...) pra comer de dia”. Todavia, assim como cantava a corrupção dentro dos terreiros, Bezerra não podia, dentro de outra faceta religiosa, deixar de denunciar a ausência de princípios morais de alguns padres e pastores que aparecem em sua obra. Na canção “Pastor Trambiqueiro” 64, ele destaca a figura de um pastor que abandonou a macumba por não conseguir vantagens financeiras no terreiro. Com uma letra que traça a dicotomia entre as duas crenças, Bezerra alerta: “Cuidado com ele/ de terno e gravata/ bancando o decente/ É o diabo vivo em figura de gente”. O sambista ainda se preocupa em mostrar que a estratégia do trambiqueiro seria “falar mal da macumba/ dizendo que a ela também pertenceu” e desmascara o personagem afirmando que este “(...) resolveu ser crente para roubar os irmãozinhos/ Não é fé que ele tem/ É simplesmente a febre do ouro/ Custa caro a palavra de Deus/ O pastor chega pobre/ e arruma tesouro”. Além da cobiça material, Bezerra canta ainda a atividade criminosa praticada por alguns líderes espirituais, demonstrando que, apesar de sua espiritualidade, não perdera seu senso de justiça. No disco “É esse aí que é o homem” 65, a faixa “Foi o doutor delegado que disse” fala das lamúrias de uma autoridade policial que não pode prender um “filho de bacana” e, por isso, decide “sair na captura desse tal de Satanás”. Atestando as dificuldades de seu ofício, o tal delegado confessa que “o meu livro de ocorrência/ a cada dia está aumentando/ Eu também prendi um pastor com a Bíblia na mão/ em um supermercado roubando”. Como a temática da desconfiança voltada, principalmente, para os líderes de igrejas neopentecostais se tornou bastante recorrente na obra de Bezerra, a edição de dezembro de 1995 da Revista Bizz fez uma sabatina com o sambista, em que além de outros assuntos relacionados à sua carreira, o questionava sobre sua opinião a respeito da Igreja Universal do Reino de Deus. Em resposta, Bezerra retoma aquilo que já havia levantado em suas canções e afirma: “Olha, eu sou formado na universidade da vida, ou seja, sou difícil de ser enganado. Para mim é tudo bandido! Aliás, todo lugar onde entra grana não é boa coisa.” 66 Todavia, uma das canções mais ousadas que gravou, “Canudo de Ouro”, diz respeito a um padre que anunciava a venda de entorpecentes na missa, rogando em latim uma 64 Ibid, ibidem. 65 Bezerra da Silva, RCA Vik, 1984. 66 Revista Bizz, São Paulo, dez. 1995, p. 63. 79 cômica e estranha mensagem que “fazia milagre” para aqueles que sabiam da ação ilícita do vigário. Na canção, Bezerra conta que após ser denunciado por “um dedo de seta”, o padre foi “grampeado” pelos Federais, que o pegaram “vendendo bagulho na casa de Deus”. Mas este contou com o auxílio de um advogado “que o direito penal muito entende/ fez uma petição clamando ao juiz:/ ‘Doutor, perdoa que ele não sabe o que vende.”” Apesar da recorrente temática religiosa em sua obra, percebemos que Bezerra não pretendia ir de encontro a nenhum tipo de crença, pois buscava apenas desmascarar injustiças ligadas aos líderes das comunidades religiosas – quaisquer que fossem – quando estes usavam de suas posições privilegiadas para obter vantagens para si. No que tange à sua relação com a umbanda, vemos a importância desta para a formação da imagem de Bezerra como um sambista que canta as situações vividas nas favelas e nos morros que se confundem com sua própria história de vida. Nesse sentido, explicaremos mais adiante como essa religião influenciou Bezerra a dedicar para si e para sua carreira a exploração de um importante personagem: o malandro cantor de sambas. 2.2 “O POBRE INTELIGENTE”: DISCUSSÃO SOBRE O MALANDRO A associação entre o samba e a figura do malandro não é nada recente, pois desde as primeiras gravações deste gênero, no início do século XX, é possível perceber a referência a este notório personagem do morro. Segundo Jorge Caldeira, no primeiro momento em que o malandro aparece no samba, este assume o deslocamento fleumático em meio a ameaças permanentes de exclusão, o que lhe permitia identificar-se com todos e nenhum. Quando visto da ótica da aristocracia dominante, aparece como um narrador que possui o caráter de autenticidade do povo, cujo ponto positivo é a expressão da vida feliz dos dominados; carrega, por outro lado, uma condenação, quando deixa de ser autêntico ou se revolta. Do outro ponto de vista, o dos dominados, o narrador malandro aparece como a encarnação de alguém que ascendeu, levando uma vida de folga e prazeres (2007, p. 85- 86). A partir do exposto, Caldeira também enxerga, tendo como referência específica a idéia de que o malandro aparece na época em que começa a vigorar a relação entre patrões e empregados no Brasil pós-escravidão, uma outra função para esse personagem que, 80 assumindo conotação ambígüa, dialoga com os dois lados. O jornalista e sociólogo ainda explica que para os patrões, o prazeroso discurso do narrador malandro vai ajudar a manter a idéia de que o trabalhador assalariado no Brasil seria pobre porém feliz. Para os trabalhadores, o narrador malandro servia como ponto de identificação na denúncia de um trabalho que não promove gozo, apenas explora e maltrata (2007, p. 86-87). No entanto, quando observamos, já no final do século XX, a aparição de Bezerra da Silva como um cantor de samba ligado ao mundo da malandragem, percebemos que os significados atribuídos a esse personagem já não são mais os mesmos apontados por Caldeira. A modificação pode ser sentida na tentativa de alguns jornalistas em relacionar a figura de Bezerra como continuidade da de Moreira da Silva, um outro artista que também cantou sambas e encarnou a figura do malandro que circulava no espaço urbano carioca. Nesse sentido, temos a reportagem do jornalista Ruy Castro, em 1985 67, em que ele tenta colocar Bezerra da Silva em um nicho estético que pertenceu anteriormente à Moreira da Silva. Para tanto, ele apresenta, logo no título e subtítulo da matéria, a novidade do novo malandro em relação a seu antecessor: “Cuidado, Moreira, o Bezerra não é mole – Com um novo disco, o sambista Bezerra da Silva é o maior rival do velho malandro Moreira da Silva”. No ano seguinte, o mesmo jornal, a Folha de São Paulo, teve a idéia de colocar os dois artistas lado a lado em uma reportagem que ganhou o título de “O encontro dos reis da malandragem” 68. Nessa ocasião, quando perguntados sobre como entendem o tipo de samba que cantam, Bezerra da Silva faz o seguinte esclarecimento: Eu cheguei a conclusão que o meu gênero de música não tem nada a ver com o do Moreira da Silva. O samba de breque que o Moreira canta, até hoje no Brasil é somente ele que canta. Já tentaram fazer um Moreira por aí, mas não conseguiram. Eu canto a realidade cotidiana que acontece no morro e na favela, e o Moreira fez o personagem de um bom malandro. Você vê que na música do Moreira o malandro só ganha. Ele não vai dar mole, que ele não é otário. (Moreira ri). Já no meu é diferente. Tem hora que o malandro quebra a cara também. Então, muitas pessoas confundem e dizem: “você é o sucessor do Moreira da Silva”. Mas quem sou eu prá 67 Folha de São Paulo, São Paulo, 24 mai. 1985. 68 Folha de São Paulo, São Paulo, 08 jun. 1986. 81 ser sucessor de Moreira da Silva? Não que eu não tenha valor, mas se eu não sei fazer o que ele faz, como é que eu vou ser sucessor dele? Em 1987, outra matéria jornalística da Folha de São Paulo - “Bezerra da Silva reinveste no mito da malandragem” 69 – se propõe a compreender melhor a interpretação narrativa e musical que Bezerra fazia de si. Com um texto que explicava as origens territoriais do malandro, a idéia que transmitia era a de que o “estereótipo do malandro da Lapa, do Estácio ou de Vila Isabel” foi o primeiro que se fixou nas letras consagradas pelo samba. Contudo, na mesma reportagem, temos a seguinte distinção: a imagem clássica do malandro, um indivíduo escroque que sobrevive à sombra da lei com trabalhos nunca bem definidos, amante da noite e da música de bar (...) está anos-luz do maior protótipo da malandragem no samba atual – o pernambucano Bezerra da Silva, 60. Ao contrário do malandro tradicional, Bezerra da Silva sempre trabalhou, defende a honestidade, a lei de Deus e é radicalmente contra as drogas – apesar de cantá-las sempre em seus discos. Ou será que a malandragem de Bezerra da Silva é fazer crer que não é malandro – o que é sem sê-lo tradicionalmente? Para tentarmos responder ao questionamento levantado e discutirmos sobre o sentido da malandragem em Bezerra da Silva, recorremos, mais uma vez, aos vestígios deixados pelas letras das canções desse sambista. Sendo assim, percebemos que, mesmo que explicasse o significado do malandro, Bezerra não pretendia negar completamente os significados anteriores atribuídos a este personagem que marca o próprio universo de compreensão do samba. Podemos perceber isso na canção “Amigo do sereno” 70, em que temos o clamor de um malandro que avisa à sua amada Leonor que seu relacionamento não seria mais possível, pois sou boêmio/ e vivo pelas madrugadas/ De pileque e cervejadas/ violões e trovador/ Ainda tem dia que nem apareço em casa/ Eu não tenho hora marcada/ nem momento pra chegar/ Sou partideiro e vivo na remandiola/ Sou amigo do sereno/ e pra chegar não tenho hora/ Gosto de andar bem arrumado/ Minha roupa bem lavada,/ engomada e bem passada/ Eu não gosto da comida requentada/ Quero encontrar casa limpa/ e toda louça lavada/ Eu também não gosto de mulher esculachada. 69 Folha de São Paulo, São Paulo, 22 mai. 1987. 70 Bezerra da Silva, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982. 82 Notamos que este estereótipo lançado por Bezerra se aproxima bastante daquele amante dos prazeres que aparece nas canções de Moreira da Silva e que foi inicialmente definido por Noel Rosa como sendo o mítico “rapaz folgado” 71. No entanto, ao contrário desta figura, que aparece ligada a situações específicas, como à bebida e à boemia, o malandro de Bezerra aparece deslocado para o morro, seu pretenso lugar de origem, e revela outras qualidades e características que são colocadas em evidência. Desta maneira, destacamos a faixa-título “Malandro Rife” 72, do álbum de 1985, que nos providencia uma explicação sobre quem seria o malandro do nosso sambista. Em um primeiro momento a canção valoriza a capacidade afetiva deste personagem, evidenciando como ele é capaz de firmar boas relações com seus próximos. Para tal, ela destaca que “o malandro de primeira/ sempre foi considerado/ Em qualquer bocada que ele chega/ ele é muito bem chegado”. Contudo, o malandro é colocado como uma figura que nem sempre alcança seus objetivos, mas que, honrado “quando tá caído não reclama/ Sofre calado e não chora/ Não bota culpa em ninguém/e nem joga conversa fora”. Por esses versos fica evidente que Bezerra suprime a idéia daquele personagem sempre interessado em suas ambições pessoais. Ao contrário, ele reforça o argumento de que o malandro seja liderança do morro preocupada em zelar de seus próximos e evitar que ameacem a tranqüilidade do lugar. Essas e outras características desse novo malandro podem ser observadas no restante da canção: Quando o bom malandro é rife,/ comanda bonito a sua transação/ Não faz covardia com os trabalhadores/ e aqueles mais pobres ele dá leite e pão/ Quando pinta um safado no seu morro/ Assaltando operário botando pra frente/ Ele mesmo arrepia o tremendo canalha/ e depois enterra como indigente/ Ele é decente! Percebemos, então, que a letra de Bezerra promove uma ressignificação da imagem do malandro, pois este, apesar de continuar vivendo de expedientes não muitos claros no “comando de sua transação”, não mais se opõe aos trabalhadores que vivem ao seu redor, mas os protege contra criminosos que querem tirar o que possuem. Entre o trabalhador e o 71Como já citado no capítulo anterior, Noel Rosa, com a canção “Rapaz folgado”, retirava o peso da bandidagem do malandro para dar-lhe um ar de personagem maleável, sem maldades. 72 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985. 83 bandido, o malandro de Bezerra defende o primeiro e usa de violência contra o criminoso que tenta tirar daqueles que ganham a vida de maneira honesta. Outro expediente que marca a figura denotada por Bezerra é sua distinção tanto no agir quanto no falar, pois ele se comporta de maneira única que atesta sua condição. Na canção “Papo de malandro” 73, uma estranha introdução anuncia que “Siri esperto arranca pelanca/ e não cai no puçá/ Ele come a isca por fora/ e de barriga cheia se manda pro mar”. Mas Bezerra logo esclarece que “isso é papo de malandro/ otário não pode entrar/ Porque tem língua cumprida/ e bate nos dentes se o bicho pegar/ É fácil enrolar em fieira,/ difícil é fazer o fio rodar/ Com a malandragem não tem brincadeira/ quem corta madeira tem que carregar”. Dessa maneira, compreendemos que as gírias seriam a forma de expressão inerente aos malandros, que sabem com quem dialogar e não se deixam enganar pelos “otários” que podem falar muito mais do que devem. Uma vez que Bezerra se coloca na mesma condição de malandragem, ele toma para si o mesmo tipo de distinção e, mais adiante, na mesma canção, ele canta: “a malandragem e a vivacidade sempre possui/ já comi muita fruta/ mas o caroço nunca engoli/ É por isso que eu estou sempre no conceito da rapaziada/”. Através de seu discurso, ele evidencia possuir estratégias de sobrevivência de um malandro e demonstra pertencer ao grupo que se comunica por meio de uma linguagem específica, entendida apenas entre eles. Em “Campo minado” 74, a mesma questão se apresenta no enredo de uma narrativa que se inicia pelo alerta de que “tem muita gente/ odiando a gente/ seja mais decente/ senão, de repente, você dança/ E se não falar/ a linguagem certa/ tem homem de alerta/ mesmo não ventando a roseira balança”. A partir desse trecho é possível perceber que Bezerra também estabelece a atenção como elemento indispensável ao verdadeiro malandro. Sendo assim, o samba ainda lista uma série de conselhos: “vai devagar na cerveja/ e no particular vai só se for chamado/ não entre na porta da frente/ que evidentemente é lugar reservado/ Preste atenção no que fala/ porque o ambiente exige cuidado/ Haja com muita cautela,/ pisando de leve, que o campo é minado”. A preocupação do malandro é explicada pela questão da perseguição das autoridades policiais que tentam encontrá-lo por meio de ações que exporiam suas atividades nem sempre lícitas – questão bastante recorrente nas letras de samba. Como exemplo, temos 73 Bezerra da Silva, Malandro é malandro e mané é mané, Atração, 2000. 74 Ibid, ibidem. 84 as canção “Pelo Telefone”, que dentre os mitos que circundam sua composição, tem a explicação de seus primeiros versos atribuída a uma resolução que proibia a jogatina na cidade do Rio de Janeiro (CALDEIRA, 2007, p.13-14). Uma outra perseguição é descrita no samba “Maloca o flagrante” 75, em que a chegada dos policiais ao morro é anunciada como um momento de tensão para os malandros, que devem fugir para não serem presos. O que não consegue fugir das autoridades já tem destino certo, pois “vai ser grampeado/ e depois terá que explicar tudo certo ao doutor delegado”. Com o intuito de aconselhar a malandragem, Bezerra diz: “não vai dar pra dividida/ Esconde a muamba e sai batido/ Quando o malandro é de verdade/ na briga não gosta de sair ferido”. Mas Bezerra também canta a perda do malandro, quando este é capturado pelos policiais. Contudo, ele não deixa de dar seus conselhos e avisa o que fazer quando for pego na música “Prepara o pinote” 76. Confiando na firmeza de caráter do malandro capturado, a letra reitera que “quando é veneno/ não entrega o ouro na hora do pau/ Aceita o cacete de boca fechada/ tudo isso em defesa da sua moral/ É aí que a gente vê/ quem é malandro e quem não é/ É aí que a gente vê/ quem é firmeza e quem não é/ Porque o sangue puro é cadeado blindado/ Ele não cagueta e nem banca o mané”. A resistência à violência praticada pelos policiais se mostra como uma forma de atestar o compromisso com seus convivas e o conseqüente descrédito para com as leis que as autoridades representam. Sendo assim, o prestígio entre outros malandros se apresenta como uma moeda de troca de maior valor, por isso a letra cantada por Bezerra ainda fala que (...) malandro não conta história/ porque se garante quando é detido/ Ele morre debaixo do pau, amizade/ E não cagueta os amigos/ E também quando sai de cana/ a moçada faz festa para lhe receber/ Ainda ganha tudo que tem direito/ como recompensa do seu merecer Como já destacamos, é possível percebermos, por meio de suas músicas, de que maneira Bezerra da Silva se integra ao universo dos morros e como ele adquire sua “patente” de malandro. No caso da situação descrita nos últimos exemplos, em que ele canta o problema da vigilância e da represália impostas pelas autoridades policiais, notamos que esta também 75 Bezerra da Silva, Alô malandragem, maloca o flagrante, RCA Vik, 1986. 76 Bezerra da Silva, Cocada da boa, BMG-Ariola, 1993. 85 faz parte da biografia de Bezerra e que ele a denuncia em várias de suas entrevistas. Como exemplo, citamos a reportagem de Maurício Stycer 77 em que este questiona sobre as vezes em que Bezerra da Silva foi levado para a delegacia. O sambista, remontando os fatos de maneira bastante cômica, explica: Fui campeão de averiguações. Naquela época, a polícia queria ver a carteira profissional assinada. Mas eu trabalhava por conta própria (...) Teve uma vez que entrei em cana duas vezes num só dia. Outra vez me prenderam para completar a cota. O cara falou: `Sei que você não deve nada, mas o delegado não vai gostar se a gente chegar com o carro vazio`. Outra vez, eles pararam o camburão em frente ao botequim e foram tomar um café. Quando voltaram, eu já tinha sentado lá atrás, sem ninguém mandar. (...) Mas, nesse dia, eles não me levaram, não. Quando eles me soltavam, eu perguntava: ‘Vocês vão passar lá, amanhã? Então estou esperando vocês, lá’. Além de falar do malandro e dar dicas de sua identificação com este personagem através do relato de suas próprias experiências, Bezerra também atribui a perseguição dos policiais a uma outra figura bastante conhecida do morro, o “mané” ou “cagüete”, que, por não ter os requisitos da malandragem, se alinha ao poder oficial. Sendo assim, o “mané” é aquele que vai contra os malandros por não possuir as mesmas habilidades de vigiar as autoridades e ponderar seu comportamento diante delas através de máscaras, artifícios e improvisos. Em geral, sua chegada ou presença é um indicativo que desestabiliza códigos e práticas do ambiente dominado pela malandragem. Um exemplo da presença desta outra personagem pode ser visto na canção – já citada – “Prepara o pinote”, em que Bezerra estabelece o comportamento do malandro, que resiste às pressões policiais, e dá dicas do tratamento que o mané deveria receber por sua delação. Já em “Venenosas serpentes” 78 – na qual faz alusão evidente aos cagüetes –, o sambista substitui o elogio aos malandros para se focar apenas nas punições merecidas por aqueles que os traem. Nesse sentido, Bezerra reforça que o delator da malandragem, também conhecido pela alcunha de “língua de tamanduá/ tem que levar sapeca iá iá/ tem que apanhar pra deixar de vacilar/ Levar rajada no pé/ tem que ser esculachado/ vestir roupa de mulher/ pra largar de ser safado/ E aprender a não bater com a língua nos dentes/ Fofoqueiro e caguete/ são venenosas serpentes”. 77 Bezerra, O Estado de São Paulo, São Paulo, 26 jul. 1987. 78 Bezerra da Silva, Cocada da boa, BMG-Ariola, 1993. 86 Ainda outras canções retratam a ambigüidade existente entre o “malandro” e o “mané”, essas figuras de evidência do morro. Entre elas, destacamos “Na hora da dura” 79, que nos permite identificar a figura do malandro e do “otário” justamente no momento decisivo em que são repreendidos e ameaçados pelos policiais. Segundo Bezerra, aquele que cede à intimidação “abre o cadeado/ e dá de bandeja/ os irmãozinhos pro delegado (...) abre o bico e sai caguetando/ Eis a diferença, mané/ do otário pro malandro/ Eis a diferença/ do otário pro malandro”. A partir da distinção estabelecida, notamos que o malandro de Bezerra não é aquele que usa de todos os artifícios possíveis para resguardar benefício próprio, mas aquele cuja proteção e consideração aos “irmãos” está acima do individualismo, em perfeito contraste à deformidade moral do “mané”. Desta maneira, percebemos que a preocupação de Bezerra ao mostrar a figura do malandro não é apenas elogiar a personagem que também encarna, mas demonstrar para a população que termos como “malandro” e “malandragem” se encontram incompreendidos, já que nada têm a ver com crime ou violência. De acordo com Bezerra da Silva 80, o tom depreciativo associado ao malandro não passa de “um jeito da elite chamar o pobre inteligente”. Apesar de entender que a maioria da população encara de maneira negativa os habitantes do morro e das favelas, ele reforça que a figura que acreditam ser do malandro não se aplica a eles, pois o “Malandro Moderno” 81 só “usa bons ternos/ não liga para o azar/ Dólar na Suíça, mansão beira-mar/ Seu nome é corrupção/ Pra quê trabalhar?”. Verificamos, portanto, através dessa canção (e de outras mais) e dos depoimentos fornecidos por Bezerra da Silva, que a associação entre malandragem e corrupção incorpora uma lógica inovadora que admite uma cisão sobre quem seria o malandro a partir da fala daquele que tenta rodeá-lo de significados. Nesse sentido, vemos que Bezerra tenta distinguir o malandro dos morros – que ovaciona em suas canções – daquele que tem predicados condenados pela população, mas que, pelo “colarinho branco”, circula entre ela sem ser denunciado. Na obra do sambista, o malandro aparece como sujeito proveniente das classes marginalizadas e, dessa maneira, não tem como passar ileso às desventuras da vida. Para Bezerra, a condição de malandro como estratégia de sobrevivência nada tem a ver com aversão ao trabalho ou adoração ao prazer, 79 Bezerra da Silva, Justiça Social, RCA Victor, 1987. 80 A voz do morro, Isto É – Senhor, São Paulo, 28 jun. 1989. 81 Bezerra da Silva, Contra o verdadeiro canalha, RGE, 1995. 87 mas se estabelece como necessidade inerente à sua existência. Assim, não admite a negação da jornada de trabalho, pois esta não é uma opção, mas um imperativo em sua vida difícil. Essa condição fica evidente no já mencionado documentário “Onde a coruja dorme”, que, dividido e orientado por alguns temas que povoam a obra de Bezerra da Silva, concentra-se em mostrar o expediente de alguns dos compositores que tem seus trabalhos gravados pelo sambista. Em certa medida, o argumento construído em torno dos participantes sugere o trabalho como imposição quase que irrefutável a todos eles, mesmo que sejam os responsáveis por retratar e definir a nova vertente do malandro 82. O próprio Bezerra, que também não pôde se dar ao luxo de fugir do trabalho, em concordância com a fala dos demais personagens do vídeo, alega que “o malandro é pessoa inteligente (...) a palavra malandro quer dizer inteligência” 83. Desse modo, para Bezerra, a astúcia inerente ao malandro não quer dizer aversão ao mundo do trabalho ou a busca por caminhos violentos, mas apenas a condição de inteligência que este possui para driblar os percalços da vida. Assim, este se difere daqueles que se entregam indiscriminadamente aos caminhos alternativos da criminalidade e da violência, pois de maneira sinuosa busca um tipo de sobrevivência que passa longe das demonstrações de poder de bandidos que impõe a si uma posição privilegiada que os coloca acima de qualquer outro. E é esta pretensa superioridade que é retratada e reprimida na obra do sambista, pois este outro inimigo do malandro – o bandido – é despido de seus artifícios para que sua imagem de homem comum venha à tona por trás da máscara intimidadora que carrega. Em uma das mais sucedidas canções de Bezerra, “Bicho feroz” 84, ele zomba da figura do bandido que, sem sua arma, não é tão audaz quanto aparenta. Ao tratar dessa situação, ele canta: “Você com revolver na mão/ é um bicho feroz, feroz/ Sem ele anda rebolando/ até muda de voz/ Isso aqui cá pra nós?”. 82 O reconhecimento desse novo malandro também pode ser destacado especialmente em uma das canções da “Ópera do Malandro”, musical todo realizado com canções de Chico Buarque, no ano de 1979. Na letra de “Homenagem ao malandro”, a tal homenagem se torna praticamente póstuma, pois, discursando em primeira pessoa, conta “aquela tal malandragem/ não existe mais./ (...) /O malandro pra valer, não espalha/ aposentou a navalha/ tem mulher e filho tralha e tal/ Dizem as más línguas/ que ele até trabalha/ Mora lá longe, chacolha/ no trem da Central ” 83 Onde a coruja dorme, Márcia Derraik e Simplício Neto, Antenna & TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil, 2006. 84 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985. 88 Bezerra ainda continua sua narrativa falando sobre o desconhecido passado do bandido, que teria convivido na presença de outros que, tendo mais poder e liderança, o humilham, acorvando-o e afeminando-o. Bezerra expõe sua condição de subalterno, dizendo que ““lavava a roupa da malandragem/ e dormia no canto da cama”, de maneira a deixar evidente que um sujeito que finge ter poder sobre os comuns, na verdade se acorvada diante dos seus por não possuir a superioridade que clama ter. A imagem do “revólver na mão”, exposta desde o início do samba, evidencia o exercício do poder, mas também os limites deste quando o bandido perde acesso ao instrumento que assegura precariamente sua condição marginal dominador. Contudo, assim como tenta rebaixar os bandidos à condição de covardes, ele também estende sua postura para os poderosos da polícia e da Justiça, já que, em sua opinião, estes não tem discernimento capaz de promover a diferença entre os que merecem ser punidos como criminosos e os que apenas habitam o morro. Sendo assim, em “Meu bom juiz” 85, ele suplica para que o juiz “não bata este martelo/ nem dê a sentença/ Antes de ouvir/ o que o meu samba diz/ pois esse homem não é tão ruim/ quanto o senhor pensa”. Ele continua dizendo que a redenção do condenado só é possível sob a perspectiva do morro, pois lá “ele é rei, coroado pela gente”. Através desse ponto de vista, o réu não é bandido, pois oferece alento e proteção aos membros de sua comunidade, onde é coroado. Nesse sentido, a despeito do que decidido pelo juiz, Bezerra continua seu samba afirmando que “quando alguém se inclina com vontade/ em prol da comunidade/ jamais será marginal”. Percebemos, então, que a fala do sambista assume o papel do advogado que sai em defesa do réu por meio de argumentos criados fora dos limites e exigências dos códigos e leis vigentes. Todavia, o descrédito que Bezerra tem para com as leis e as autoridades não significa que ele não tenha admiradores entre eles. Em uma de suas entrevistas 86, ao ser questionado sobre uma situação curiosa com algum fã, ele relatou: Outro dia me contrataram para um show em Ribeirão Preto. Cheguei lá, me prenderam no hotel e de noite me levaram para uma mansão. Fui obrigado a entrar pela cozinha e ficar escondido. A festa rolou na casa e na hora de cantar parabéns, um juiz de Direito veio me buscar e me apresentou ao aniversariante, um advogado 85 Bezerra da Silva, Alô malandragem, maloca o flagrante, RCA Vik, 1986. 86 Bezerra da Silva chega à Zona Sul carioca, O Estado de São Paulo, 15 jul. 1996. 89 muito famoso que é meu fã número um. Eu era o presente de aniversário dele. Fiz um show e foi ótimo, para juízes, promotores e tal. O advogado me apalpava e perguntava se era eu mesmo. Minha mulher, que estava lá, ficou até com ciúme. Esse advogado me contou que conseguiu a absolvição de um cliente com uma frase de uma música minha: ‘O cheiro da coisa jamais é flagrante’. Porém, apesar de situações como estas, o desentendimento com as autoridades é bastante explorado em sua obra e nas dos demais sambistas que também fazem a incursão no mundo da malandragem. Isto porque a vida nada regrada do malandro provoca desconfiança nos policiais, que são responsáveis por separar os indivíduos que cumprem as leis daqueles que a ignoram. No samba “Senhor Delegado” 87, do paulista Germano Mathias, essa questão é retratada quando um malandro se faz passar por um “rapaz honesto” que insiste em buscar comicamente várias desculpas esfarrapadas para sua falta de documentos, para os trajes bem acabados e para seu andar macio. 2.2.1 “Não tenho nada de polêmico” Nas canções de Bezerra da Silva, por sua vez, essa relação de conflito ganha contornos mais incisivos e apresenta alternativas que possam resolvê-la. A perseguição policial se mostra ligada ao preconceito contra os moradores do morro e das favelas, o que é salientado no samba “Vítimas da Sociedade” 88, em que Bezerra avisa: “se vocês estão a fim de prender o ladrão/ podem voltar pelo mesmo caminho/ O ladrão está escondido lá embaixo/ atrás da gravata e do colarinho”. Este verso, que é repetido diversas vezes ao longo da letra, se intercala com outros que tentam refletir sobre a incoerência entre ser pobre e ganhar dinheiro com atividades ilícitas. Sendo assim, explora de que maneira os miseráveis da favela seriam os responsáveis pelo crime, já que estes não desfrutam dos rendimentos da contravenção. Na condição de intérprete, Bezerra canta essa mesma temática de acordo com a nuance destacada por cada um de seus compositores. Desse modo, nos versos de “Preconceito de cor” 89 a perseguição policial é explicada não apenas pela condição de habitante do morro, mas também pela questão racial, já que o estigma de marginalização se estende em seu 87 Germano Mathias, O sambista diferente, Polydor, 1957. 88 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985. 89 Bezerra da Silva, Preconceito de cor, RCA Victor, 1987. 90 demérito à categoria de “preto” ou “crioulo”. A canção esclarece mais um desentendimento com as autoridades, dizendo: Eu assino embaixo doutor, por minha rapaziada/ Somos crioulos do morro, mas ninguém roubou nada/ Isso é preconceito de cor, vou provar ao senhor/ Por que é que o doutor não prende aquele careta?/ Que só faz mutreta e só anda de terno/ Porém o seu nome não vai pro caderno/ Ele anda na rua de pomba rolô/ A lei só é implacável para nós favelados e protege o golpista/ Ele tinha de ser o primeiro da lista/ Se liga nessa, doutor! Contudo, na visão de Bezerra da Silva, o termo crioulo não se limita à distinção racial, pois pode também se referir a uma condição social. Assim, ele explica que “crioulo não é só epiderme, não. Crioulo é ser pobre” 90, opinião que ratifica em outra reportagem, quando explica sobre quem é o crioulo descrito nas canções que gravou. Em “Bezerra da Silva, a malandragem bem-sucedida” 91, ele explica quem é o crioulo dos seus sambas, desviando-o da questão racial. Para tanto, ele destaca que o compositor, quando menciona esse personagem da favela, “não está falando de cor de pele. Está se referindo àquele que morou (ou mora) no morro, que pode ser branco ou preto. Sendo pobre, vira crioulo do mesmo jeito”. Na canção “Não é conselho” 92, temos reforçada essa opinião ligada à condição de marginalização quando, logo na introdução, uma outra voz anuncia: “Olha aí, rapaziada! Isso não é preconceito, hein?! Pois todo branco pobre também é preto, falou?”. Os versos que a precedem fazem a diferença entre as situações dos “brancos”, tidos como os que usufruem de uma condição sócio-econômica melhor, e dos “pretos”, que são vítimas da perseguição policial e vivenciam uma condição de miséria. No que diz respeito à questão racial no samba, Luiz Fernando Nascimento Lima aponta que este “supõe sua associação com valores simbólicos do ‘negro’ ou do ‘ser africano’ (...) ou de uma ligação com a África, com culturas africanas com traços culturais originados na África ou que remetem à África” (2005, p.6), o que também podemos perceber manifestado em alguns momentos da discografia de Bezerra. Nesse sentido, “Cipó Caboclo” 93 nos dá a discrição de um escravo que “trabalhava o dia inteiro na fazenda do senhor/ apanha 90 O fenômeno que está fora das FMs, Afinal, São Paulo, 6 ago. 1985. 91 Bezerra da Silva, a malandragem bem-sucedida, Folha da Tarde, São Paulo, 27 mai. 1986. 92 Bezerra da Silva, Presidente Caô Caô, BMG Ariola, 1992. 93 Bezerra da Silva, Bezerra da Silva e um punhado de bambas, RCA Vik, 1982. 91 sem motivo na chibata do feitor/ cada gemido que dava/ desfazia no tambor”. Para enfatizar a temática levantada, a canção ainda é marcada pela presença da musicalidade do instrumento percussivo, mas não pressupõe que o samba seja compreendido como algo “vindo da África” ou “criado somente por negros” 94. Quando questionado sobre a questão do preconceito, Bezerra da Silva fez questão de renegar esse tipo de posicionamento ao afirmar que “isso é uma mentira, uma discriminação boba. Tudo depende da veia poética (...). Essa história de que branco não faz samba é mentira. E também tem crioulo que não faz samba. Artista nasce em qualquer lugar” 95. Nesse momento, percebemos que ao mesmo tempo em que Bezerra estimula a divisão entre “brancos” e “crioulos”, valorizando a perspectiva sobre este, ele impõe limites que não admitem uma única compreensão sobre esses personagens, principalmente no que diz respeito à sua relação no mundo da arte. A maneira como Bezerra desenvolve esta temática (não se preocupando em fixar fronteiras e fazendo algumas declarações polêmicas) pode ser percebida no samba “O preto e o branco”, de Zezinho do Valle, Carlinhos Russo e J.Laureano, que só pelo título nos passa idéia de que a questão racial será retomada. Contudo, apesar de no decorrer da canção a impressão ainda se sustentar em versos como “tem preto, compadre, que pára num branco/Tem branco que pára num preto também (...) por isso que o preto se amarra num branco/E o branco se amarra num preto também”, ela logo se desvanece quando o verso “tem gente que aperta, tem outro que cheira” nos explica o que seria o tal “preto” e “branco”. Nesse sentido, percebemos que Bezerra da Silva, ao usar essas palavras nos reorienta em direção às gírias que recheiam sua obra, remetendo-nos à temática do uso das drogas, que foi bastante explorada em seus versos e lhe rendeu várias polêmicas. Entre elas, o fato de Bezerra ser sempre questionado em entrevistas sobre sua relação com o mundo dos entorpecentes e a presença destes em seu cotidiano, o que poderia levar muitos fãs a acreditarem que ele fosse o autor das canções que gravou ao longo de sua carreira. 94 Na perspectiva de Letícia Vianna, que também trabalha com esta mesma canção em sua obra, o negro aparece como intermédio capaz de invocar o tema da escravidão. As punições físicas, o uso de tambores e o jogar capoeira aparecem juntos em uma canção que aglomera a busca de uma tradição, a relação da mesma com uma condição racial e a aproximação deste dois com um gênero musical específico (p. 93-94, 1999). 95 Bezerra, Estado de São Paulo, São Paulo, 26 jul. 1987 92 Em entrevista para a Folha de São Paulo 96, Paulo Vieira questionou Bezerra sobre sua opção em gravar “Garrafada do Norte”, tida como uma canção que pretende defender o uso da maconha. O sambista, esgueirando-se da pergunta com a malandragem que lhe era peculiar, evita que o jornalista arranque qualquer declaração mais polêmica e retruca dizendo que sua relação com um tema se limita simplesmente a “saber se o compositor escreveu direitinho”. Dois anos depois, em entrevista para O Estado de São Paulo, Bezerra foi mais específico e relatou alguns dos embaraços causados pela presença da temática das drogas em seus discos. Ele primeiro fala sobre “Malandragem dá um tempo” (quem sabe, o samba mais conhecido de sua carreira), dizendo que “Uma vez me perguntaram se eu não estava incentivando a juventude a fumar maconha, mas essa letra, se você ler com atenção, vai perceber que a música diz para não usar (...) O trecho ‘Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora’ é um aviso para não fumar”. Além dela, ele destaca ainda “Overdose de Cocada” 97, que também lhe rendeu alguns incômodos, incluindo a visita de um procurador de Justiça em sua casa para lhe tomar depoimento sobre a canção gravada. Todavia, percebemos em outras entrevistas com a mesma temática, que Bezerra da Silva utiliza de vários argumentos para que sua imagem não se confunda com o conteúdo de sua obra. Sendo assim, fica evidente que, diferentemente daqueles que se resguardam por temer que construam uma imagem negativa sobre eles, a isenção de Bezerra se assemelha a uma outra forma de reafirmar o malandro que aparece retratado em sua obra, o sujeito que é comedido nas palavras e não se expõe a situações desvantajosas. Esta postura que assume perante os meios de comunicação possivelmente foi a responsável pelo taxativo comentário exposto em uma matéria não assinada de 1987 98, que aconselha o público, entre tantos desvios de declarações bombásticas, a não esperar coerência da parte de Bezerra. Dessa maneira, fica evidente que o autor anônimo tem dificuldades de compreender que Bezerra não pretende sustentar uma relação harmônica entre o que interpreta, o que é apreendido pelo público e o que é pretendido pelo autor. No ano de 1987, quando o disco Justiça Social era divulgado, vários jornalistas fizeram questão de destacar a faixa “São Murungar”, que foi vetada pelos resquícios da 96 “Não sei, não vi não conheço”, Folha de São Paulo, São Paulo, 04 set. 1998. 97 Bezerra da Silva volta para enquadrar os manés, O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 ago. 2000. 98 Bezerra da Silva reinveste no mito da malandragem, Folha de São Paulo, São Paulo, 22 de mai. 1987. 93 Censura. A polêmica girava em torno do título da canção, já que utilizava uma gíria para se referir à maconha (murungar) 99 e também porque a letra que Bezerra canta chorosamente pergunta sobre “quem botou maisena no meu pó”, reclama e ameaça “misturou minha `rapa`/ hoje eu não vou cafungar/(...) juro por São Murungar/ esse canalha não perde por esperar”, fazendo clara alusão ao consumo da cocaína e da maconha, respectivamente. Na época, em entrevista à revista IstoÉ 100, Bezerra reclamou do alarde levantado em torno da canção, ressaltando a injustiça das associações, pois, para ele, haviam outras polêmicas acontecendo no meio artístico que também deveriam ser observadas e tratadas com rigor. Injuriado ele dispara: “O Caetano pode beijar o Gil na boca na frente da minha filha de 5 anos, mas eu não posso contar que existe maconha e cocaína”. Todavia, se num primeiro momento Bezerra assume a temática da sua canção, ele logo desvia do assunto e sugere que a referência da letra “Pode ser pó de café, pó de cimento. O duplo sentido está na cabeça de quem ouve, dos homens que põem o carimbo.” 101 2.2.2 Bezerra: falando de seu tempo e a sua última malandragem Contudo, a fama de Bezerra da Silva, que foi bastante coroada por elogios e enaltecida pela irreverência de sua malandragem, também teve seus momentos de deboche. Vários jornalistas, ao notarem a temática recorrente em sua obra, questionavam se ele era cantor de bandidos, argumento reforçado pelos vários shows que Bezerra realizava nas penitenciárias. A relação entre Bezerra e a bandidagem acabou transformando seu samba em uma espécie de gênero exclusivo, definido como “sambandido” ou questão, Bezerra diz 102: “Para mim foi uma grande vantagem. Os bandidos, que nunca têm direito a nada, ganharam um cantor. Hoje, todos eles gostam de mim”. Ao lidar com todos os estigmas que povoam sua obra e se estendem a sua figura, Bezerra não esconde a impertinência que o caracteriza e aproveita os comentários e polêmicas que levantam sobre ele para revidar em forma de canção. Sendo assim, grava “Partideiro sem 99Ibid, ibidem. 100 Na ginga da malandragem, IstoÉ, São Paulo, 3 de jun. 1987. 101 A ira do homem de boa vontade, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 de jun. 1987. 102 “Não tem nada de polêmico”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de ago.1997. 94 nó na garganta” 103, cujos versos remetem à apreensão da crítica e do público em relação a sua obra, dizendo: “Vejam bem, mas eu sou eu/ partideiro indigesto e sem nó na garganta/ e defensor do samba verdadeiro/ que nasce no morro, fonte de inspiração/ Mas eu sou assim/ sem papa na língua, meu bom camarada/ Não sou caô-caô, nem conversa fiada/ e também detesto caguetação/ Sei que na minha ausência/ os invejosos demais não sentem pena, nem dó/ Eles dizem até que eu fumo maconha e ando com a venta entupida de pó/ O que vem debaixo não me atinge/ o meu sucesso incomoda muita gente/ está provado que este monstro inveja/ ele é mesmo a arma do incompetente/ Dizem que eu sou malandro, cantor de bandido e até revoltado/ Somente porque canto a realidade/ de um povo faminto e marginalizado/ Na verdade eu sou um cronista/ que transmite o dia-a-dia do meu povo sofredor/ Dizem que eu gravo música de baixo nível/ porque falo a verdade que ninguém falou” Essa canção representa bem uma outra faceta bastante peculiar da obra de Bezerra, que é mesclar a evidência de personagens autônomos ou figuras típicas do morro com o simples exercício de “dizer a verdade”. Desse modo, o samba de Bezerra da Silva, cercado pelas alegorias do morro, do malandro e da tradição do samba mistura essas temáticas às denúncias de um sambista que desconhece os nichos tradicionais da música usados para pensar e discutir as questões sociais e os problemas de natureza política. Esse aspecto da obra do nosso sambista aparece também em matérias como a do “Caderno B” do Jornal do Brasil (30 de abril de 1988) 104, que trouxe a resenha não assinada de algumas canções do disco “Violência gera violência” e aproveitou o espaço do impresso para rapidamente pensar sobre o significado da obra de Bezerra naquele instante. Para tanto, destacou justamente as denúncias e críticas que o sambista condensa em formato de música e concluiu dizendo que “o protesto de Bezerra da Silva ocupa um espaço que já foi dos compositores do CPC e dos festivais. Faz política popular sem intermediação intelectual, nem ideologia de limites definidos”. Percebemos, pela declaração, que não podemos equiparar as canções de Bezerra às músicas de protesto como se tratassem dos mesmos temas em épocas diferentes. Isto porque Bezerra realiza suas denúncias sem nenhuma intermediação intelectual ou ideológica, mesmo que, entre as décadas de 1960 e 1970, já existissem nichos musicais preocupados em problematizar as questões de cunho social, político e econômico do país. Notamos, nesse 103 Bezerra da Silva, Presidente Caô Caô, BMG Ariola, 1992. 104 Protesto e humor no “sambandido”, Jornal do Brasil, Rio Janeiro, 30 abr. de 1988. 95 momento, que além da crítica às autoridades e às leis, Bezerra também preocupa-se em destacar alguns episódios específicos que fogem da temática dos morros, o que leva seu interlocutor a perceber a “cadeia de esclarecimento” que suas críticas percorrem. Através deste processo, ele destaca outras polêmicas que tomavam conta dos noticiários e também volta sua atenção para ações do Poder Público, vistas sempre com incerteza e desconfiança. Seguindo esta outra abordagem, destacamos a canção “Da pesada” 105, de 1985, em que Bezerra, além de apontar as dores e contratempos porque todos passam, aproveita o espaço artístico para falar da inflação que pesava sobre o país. Além disso, ele usa a gíria que nomeia o samba para se referir à frustração política vivida no ano anterior, quando da derrota do movimento das Diretas. Nesse sentido, ele canta: “Da pesada é pneu de trator,/ beber vinho em Parati/ É ser pedreiro na Barra/ e morar em Japeri/ É suportar vinte um anos/ uma Ditadura Militar/ É querer escolher seu presidente/ e não ter o direito de votar”. Bezerra gravava praticamente um álbum por ano, de modo que continuava a empreender suas críticas, promovendo um diálogo com as situações de impacto do cenário político-econômico brasileiro. Com este intuito, ele destaca as ações do governo José Sarney (1985-1990) na compilação de músicas do disco “Alô malandragem, maloca o flagrante”, de 1986. Em “Rasteira do presidente”, Bezerra combina a situação de miséria do trabalhador – obrigado a sobreviver com salário mínimo, inflação e impostos – a um (quem sabe) inesperado elogio à política de regulamentação dos preços empreendida na época, como se a solução proposta fosse uma “rasteira” que poderia resolver os problemas 106. Outras questões que abordavam esta preocupação com a política e a economia do país foram discutidas em vários de seus álbuns, mas damos especial destaque para “Meu samba é duro na queda”, de 1996, cuja faixa “Seja o que Deus quiser” trata sobre a reforma agrária. Nesta época, os sem-terra estavam em evidência em decorrência do massacre de Eldorado dos Carajás, que dominava os noticiários do Brasil e do mundo. Bezerra se apropria desta temática em seu samba ao recorrer à providência divina para que o problema fosse resolvido. Para tanto, ele canta: 105 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985. 106 Vale destacar que o título da canção e o conteúdo da letra apresentam uma certa disparidade de sentidos se observadas isoladamente. Usualmente, o termo “rasteira” é empregado para definir situações em que alguém engana um terceiro por meio de uma artimanha inesperada. Assim, retomando a constante crítica das canções gravadas por Bezerra, o título poderia indiciar a denúncia contra algum ato de corrupção do presidente. Contudo, na letra, a rasteira do presidente é colocada como uma ação em favor do povo, que, segundo a canção, sofre com os baixos salários e as imposições tributárias. 96 Seja o que Deus quiser/ pro bem do nosso país/ Cada um fala o que quer/ mas ninguém cumpre o que diz/ É só plantar que dá/ nesse nosso torrão/ Tem solo para todo mundo nessa imensidão/ E eles matam o sem-terra/ por um pedacinho de chão/ Será.../ que só tem lei no Brasil pra punir meu povão, será? Na mesma época, em meio a uma crise econômica internacional que deu os primeiros golpes no Plano Real, Bezerra critica o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso em duas faixas de seus álbuns “Bezerra da Silva – Provando e comprovando a sua versatilidade” (1997) e “Eu tô de pé” (1998). No primeiro, a canção “Coisa bendita” faz um chamado aos “trabalhadores no meu Brasil” para criticar um “cara cheio de ‘h’, que faz clara referência ao presidente e suas declarações sobre o poder de compra do salário mínimo da época. Bezerra ironiza a situação, falando que o governante diz que com esse salário/ ele curte adoidado/ bebe whisky importado/ e faz compra pra mais de mês/ Tira onda lá no Palace Hotel de Copacabana/ e bacalhau é comida de pobre, acreditem vocês/ No seu cardápio é faisão dourado/ com vinho francês e dá uma de artista/ Essa, nem brasileiro acredita (nem eu)/ Essa nem brasileiro acredita (esse cara...)/ (...) Ele diz que tem casa de praia em Ubatuba e Guarujá/ Altos e baixos no Morumbi e mansão no Juá/ Seu salário no bolso parece milagre, ele se multiplica/ E a Feira do Boi, lá de Araçatuba, é ele que agita/ Com cento e vinte reais ele manda e desmanda/ não anda de trem, nem usa marmita/ Essa, nem brasileiro acredita (nem eu)/ Essa nem brasileira acredita (esse cara...) No outro álbum, em que destaca os efeitos da mesma crise econômica, as críticas se mostram ainda mais contundentes ao governante. Um exemplo disso é o samba “Presidente cara-de-pau” em que Bezerra utiliza o cômico efeito sonoro de uma galinha cacarejando e dispara: “Quando a galinha criar dente/ e o sol nascer quadrado/ Vamos ter um presidente/ no seu lugar adequado”. A evocação desse futuro impossível surge no início de uma narrativa que ainda cobra as benesses do Plano Real, que, com quatro anos de existência, parecia não ter modificado substancialmente a situação dos assalariados do país. Ao colocar o presidente como responsável por essa situação, Bezerra prossegue cantando: Foi assim.../ Foi assim que ele disse/ quem não lembra?/ O real vai ser valorizado/ no Brasil, meu doce amado/ O inocente acreditou/ eu que sou cobra criada/ não fui no caô-caô/ não fui no caô-caô/ O inocente acreditou/ eu que sou cabeça feita/ não fui no caô-caô/ Todas as vezes que tem eleição/ no meu Brasil doente/ ele contam a mesma história/ porém em sentido diferente/ E meu povo com fome/ na beira da praia, num banco sentado/ Na esperança do mar pegar fogo/ pra ver se come peixe assado/ E na cara-de-pau, ele diz/ que as coisas vão melhorar/ mas na tremenda 97 miséria, meu povo está/ E esse plano de ‘H’/ engrupiu de novo o povão/ No dia primeiro de abril/ vai acabar a inflação Para Vianna, a presença destas denúncias e a abordagem de temas que tiveram bastante repercussão na mídia fazem com que a obra de Bezerra da Silva tenha um valor próprio, pois, ao mesmo tempo em que resguarda as tradições do samba e da malandragem, também se coloca como forma de resistência ao processo de alienação de muitos artistas que não assumem nenhuma postura crítica. Não por acaso, a autora conclui em seu trabalho etnográfico que Bezerra era “um artista notável que atesta a possibilidade de uma contramão para a fortíssima tendência na cultura de massa de desvalorização da velhice, banalização e despolitização das formas artísticas” (1999, p.156). Todavia, a conclusão da antropóloga está longe de encerrar a importância desse sambista que agregou elementos de sua vida na obra que construiu e divulgou a partir da ótica de vários personagens a quem deu voz. Sendo assim, acreditamos que Bezerra ultrapassa a definição de crítico, marginal, tradicional, bem humorado, malandro, favelado e sambista, pois sua singularidade se atestava justamente nas suas ambigüidades e na sua capacidade de suscitar polêmicas, que o acompanharam até sua morte, em 2005. Em 2002, uma das contradições mais relevantes de Bezerra da Silva veio à tona em entrevista concedida ao jornalista Silvio Essinger, do Jornal do Brasil. Na reportagem, a questão de maior relevância não se pautava na apresentação do novo trabalho do sambista (“A gíria é cultura do povo”) ou na recuperação de sua carreira, que já estava bastante consolidada. A polêmica girava em torno da perplexidade de Ulisses, filho de Bezerra, que, ao chegar dos Estados Unidos viu que “o pai, conhecido no mundo do samba como Bezerra da Silva, o partideiro da pesada, tinha começado a freqüentar a Igreja Universal do Reino de Deus, do Bispo Macedo”. Uma vez que a repercussão da notícia não era surpresa apenas na esfera familiar, o texto realiza a seguinte projeção crítica: Muito menos deverão entender os fãs do sambista, afinal seu trabalho não deixa dúvidas do que pensava sobre a religião em geral (...) ele canta sobre o pastor que fora flagrado com a Bíblia, num supermercado, roubando. Depois, na capa do disco Eu não sou santo, Bezerra aparecia crucificado, em frente à favela, com as mãos cheias de armas. Mais tarde, gravou Cuidado com o bicho (de Luizinho Nenen Chama), que contava a história do bispo que escondia maconha nas sagradas escrituras. 98 Em meio as especulações levantadas pela notícia bombástica, Bezerra esclarece ao JB que as canções de cunho religioso não passavam de mera estratégia comercial e que a responsabilidade pela mensagem transmitida não era dele, mas dos compositores. A partir daí, o jornalista tenta relacionar os problemas financeiros do cantor com a opção pela conversão religiosa e destaca, entre as falas da matéria, a do pastor da igreja e de sua mulher que comemoram a mudança de Bezerra como se a nova religião pudesse acalmar seu temperamento crítico e desconfiado. Todavia, a entrevista com Bezerra parece mostrar que seria impossível lhe retirar sua desconfiança e seu olhar atento de malandro, já que estes predicados não poderiam ser radicalmente abandonados por ele. O cantor confessa a Silvio Essinger que não entendia o porquê do dízimo cobrado pela igreja e questionava “‘Se Jesus não precisava de roupa, ia precisar de dinheiro? ’”. Contudo, ele ressalta a explicação do pastor que lhe disse que “não é o dízimo de Jesus, mas o dízimo que Jesus mandou dar para a Igreja”, mas ainda não dava indícios de que estivesse aderindo à prática, pois afirmou não ter condições financeiras suficientes para realizá-la. Desse modo, ao fim da reportagem, talvez aliviando a expectativa dos fãs que pudessem temer alguma mudança radical no repertório que o consagrou, Bezerra da Silva garante não renegar as polêmicas que cantou. O jornalista, numa última tentativa de abordar a questão da conversão religiosa, destaca outros personagens do meio artístico, como o cantor Rodolfo (ex-vocalista da banda Raimundos) e o violinista Baden Powell, que deixaram para trás os versos e as canções que os haviam consagrado por não retratarem sua nova personalidade. Entretanto, mostra que as contradições e incertezas que marcaram a vida e a obra de Bezerra ainda estavam claramente preservadas no novo disco. Ao tentarmos entender a obra de Bezerra e a maneira pela qual sua biografia se confunde nas letras das canções que gravou, voltamos o olhar para essa etapa de sua vida sob um posicionamento bastante otimista. Isto porque acreditamos que, independente da postura ou religião que adotasse, Bezerra nunca perderia a peculiaridade de seu discernimento e da sua crítica e não deixaria que lhe impusessem algum tipo de comportamento rígido ou taxativo. Sendo assim, nos questionamos sobre qual seria o significado da conversão religiosa que acontece após toda uma vida e carreira cercadas por temáticas marginais que abrangem favelas, manés, delegados, cagüetes, políticos, mulheres ingratas e clérigos desonestos. 99 Para respondermos a mais uma indagação, evocamos nosso instrumento de trabalho: a música. Contudo, dessa vez, preferimos explicar as novas opções de Bezerra a partir de uma canção que sintetiza a última polêmica que antecedeu sua morte. Para tanto, seguimos a veia bem humorada do sambista e primamos pelo inesperado que acompanha sua obra ao destacarmos uma produção do álbum “Carnavelhas”, da banda de rock “Velhas Virgens”. A sexta faixa do disco de 2004 (que mistura instrumentos do rock com o ritmo debochado das marchinhas de carnaval) começa com a saudação “Alô Bezerra!”, que o performático vocalista Paulão usa para fazer menção ao sambista e contar a história de um malandro que, depois de velho, decide se converter e levar uma vida sob as regras da Igreja. Essa canção, que poderia ser encarada como uma provocação aos últimos anos da vida de Bezerra, cabe aqui para nós como uma brincadeira que pode perfeitamente encerrar nossa apresentação sobre nosso sambista. Desse modo, recorremos, com a irreverência que aprendemos a admirar ao verso dos roqueiros: “Isso pra mim é aposentadoria de malandro, isso pra mim é aposentadoria de malandro...”. 107 107 Velhas Virgens, Carnavelhas, MNF, 2004. 100 CAPÍTULO III – TRADIÇÃO E INDÚSTRIA CULTURAL: CONFLITOS E DESAFIOS Nesta parte final do trabalho, pretendemos promover um último diálogo entre os temas tratados nos capítulos anteriores. Nesse sentido, buscamos destacar os elementos do samba e da carreira de Bezerra da Silva em um debate teórico que prima por duas vertentes: a que discute a idéia de tradição como eixo valorativo da cultura popular e das manifestações ligadas ao samba; e a que destaca o surgimento da indústria cultural no Brasil. Desta maneira, pretendemos descobrir como Bezerra, sendo um artista do morro que resgata a tradição do samba, se insere na indústria cultural brasileira e como esta influencia no significado de sua obra entre as décadas de 1970 e 1990. Contudo, para darmos início ao debate, é preciso destacarmos também a própria voz de Bezerra da Silva, que, nos depoimentos e nas letras de suas canções, também nos fala sobre sua obra e nos fornece pistas para tentarmos desvendar de que modo suas manifestações artísticas se encaixam em nossa reflexão teórica. Uma vez que não é possível sabermos ao certo a maneira pela qual Bezerra pensava a tradição e a indústria cultural, podemos, através do resgate de sua obra, ter uma idéia de seus referenciais se pensarmos nele como artista que refletiu sobre a cultura nos instantes em que a vivenciava. A pertinência em pensar em Bezerra da Silva em meio aos dois conceitos levantados (tradição e indústria cultural) se dá pela observação da carreira do artista, quando percebemos que sua visibilidade no cenário musical se dá por meio da interpretação de sambas – gênero musical de longa data – em uma época em que várias novidades musicais surgiam no Brasil, ampliando as possibilidades estéticas trabalhadas. Além disso, a importância desse estudo também se dá pela curiosidade de percebermos que, em plena década de 1980, a imagem de um sambista malandro conseguia chamar a atenção do grande público e também dos críticos. Isto porque, no período mencionado, a indústria fonográfica brasileira colocava em evidência uma gama de novidades que prestigiava os jovens artistas que viriam a definir um momento singular do rock brasileiro. Pensando nesse contraste, destacamos que por muito tempo acreditávamos que tradição e indústria cultural configuravam pólos distintos quando se pretendia pensar sobre alguma manifestação artística. Desta maneira, víamos esta como incentivadora dos interesses comerciais (lançamento de novidades mercadológicas e divulgação em massa de artistas que renderiam lucro certo) e aquela como uma mantenedora de manifestações de longa data, 101 geradas no seio das camadas populares, que visava preservar um conjunto de referenciais estéticos. Para nós, essas manifestações seriam estanques e não proveriam modos de interpenetração. Todavia, a carreira de Bezerra da Silva nos fez pensar diferente, pois seu surgimento como intérprete de samba lhe proporcionou aparecer em diversas mídias, ter sucesso junto ao público jovem e vender milhares de discos. Sendo assim, refletimos sobre uma nova compreensão a respeito das relações existentes entre os elementos que aqui exploramos. Por meio das opções de sua obra vemos como as tradições evocadas não conseguem resumir a dimensão dos vários significados de sua obra e seus próprios questionamentos nos permitem observar como ele reclamava sobre o poder de intervenção dos órgãos que representavam a indústria cultural, que davam preferência para os grandes nomes e impunham barreiras para os artistas desconhecidos. Se por um lado Bezerra era atraente na figura do malandro que cantava partido alto e morava no morro, sua imagem e suas canções surgiam como uma novidade, uma atração ainda não observada no crescente mercado musical que se avolumava no Brasil desde a década de 1970. Apesar de encarnar uma personagem de longa data, o arsenal de composições alheias que interpretava aparecia como um conjunto de temas que, até então, não havia sido retratado de maneira tão contundente por um sambista. Desta maneira, Bezerra da Silva surgia como constante novidade ao abordar as situações do morro e fazer crítica social, questões que eram assumidas também nas capas de seus discos, em suas declarações aos jornais e também nas letras que interpretava. Aparentemente, a obra de Bezerra parece assumir uma antiga demanda, que é a realização de uma arte popular conjugada às questões políticas e sociais. No entanto, sua obra se mostra provocadora e atraente, pois as críticas aparecem em um outro nicho musical, diferente daqueles já consagrados pela denúncia que promoviam. Dessa maneira, Bezerra consegue se tornar um cantor popular que canta sobre problemas populares, de modo que representa uma inovação na esfera musical do período em que aparece. Sendo assim, o destacamos como personagem que driblava os conceitos estanques de tradição e indústria cultural, representando novidades para ambos os eixos e permitindo que estes pudessem se interpenetrar. A partir daí, estudaremos como as relações entre esses elementos influenciaram na compreensão (nossa e de Bezerra) sobre o sambista que retratamos. 102 3.1 A TRADIÇÃO: UM PONTO DE PARTIDA Na contemplação de alguns estilos musicais, é fácil perceber a manutenção de algumas características que lhes são próprias. Isto porque são reconhecíveis por suas constantes e se sustentam por meio da nuance de suas particularidades. Desta maneira, a busca por padrões envolvendo o uso de determinados instrumentos, a específica afinação dos mesmos, o tempo da melodia e o tema das canções são importantes itens que circunscrevem uma manifestação a um conjunto de características singulares. Essa seria a forma pela qual se articula a nossa relação com a música, pois existiria a proposta de um tipo de vivência capaz de definir, através da sistematização das experiências sonoras, uma maneira de se “organizar os sons”. No entanto, estudos no campo da musicologia revelam que a maneira pela qual se dá essa observação transcorre de outras relações e experiências, que já vêm sendo observadas por uma considerável gama de pesquisadores. Para eles, a proposta é tentar contrapor a maneira pela qual uma determinada cultura classifica os “gêneros musicais” com as diferentes formas pelas quais ela mesma julga as distinções e destinações dos vários sons produzidos por seus integrantes – músicos profissionais, sacerdotes, chefes de família e meros partícipes de eventos que não se julgam como agentes do fazer musical. A simples proposta desse tipo de pesquisa já reflete a múltipla capacidade interpretativa que se pode extrair das mais variadas práticas musicais e revela, ainda, a impossibilidade de vê-las de maneira autônoma, como se fossem parte integrante de um referencial próprio advindo de uma mera combinação de sons. Percebe-se, portanto, que existe uma capacidade comunicativa inerente à música, que faz dela um importante item de compreensão da cultura. Contudo, questiona-se como uma seqüência de sons que, por si, não dizem nada, tem a habilidade de transmitir algum tipo de conhecimento? Segundo a filósofa Susanne K. Langer, se a música tem qualquer significação, é semântica, não sintomática. Seu ‘significado’ é evidentemente não o de um estimulo para provocar emoções, não o de um sinal para anunciá-las; se tem um conteúdo emocional, ela o ‘tem’ no sentido que a linguagem ‘tem’ seu conteúdo conceitual – simbolicamente. Não é comumente derivada de afetos nem tencionada para eles; mas cabe dizer, com certas reservas, que é a respeito deles (2004, p. 217). 103 Para referendar a citação acima e atestar a falta de autonomia que se reconhece no fazer musical, podemos, ainda, utilizar as palavras do musicólogo Philip Tagg: (...) é absurdo tratar a música como um sistema de combinações de sons autoreferente porque as mudanças em estilos musicais são historicamente encontradas em conjunção com (acompanhando, precedendo, seguindo) mudanças na sociedade e na cultura da qual a música faz parte (TAGG apud TROTTA, 2006, p. 25). Uma vez que concordamos com as perspectivas lançadas pelos dois estudiosos citados, concluímos que a música traz consigo todo um conjunto estético preciso ao mesmo tempo em que carrega uma história sobre como e onde se dão as origens, mudanças e compreensões de um gênero ou prática musical. Assim, acreditamos que todo fazer musical esteja imbuído de uma carga histórica que relaciona os símbolos ou questões de uma época aos sons nela produzidos. A partir desta conclusão, temos o interesse particular em retomar pontualmente a trajetória musical de nosso objeto de pesquisa. Para tanto, precisamos verificar os caminhos percorridos pelo samba até o momento em que Bezerra da Silva surge como artista e também buscar um conceito historicamente ligado à cultura musical brasileira que nos indique um caminho viável para estudar e entender a prática musical de nosso sambista. Nesse sentido, entre tantos outros conceitos que podem servir como meio de compreensão do nosso objeto, observa-se que uma revisão sobre o conceito de tradição pode se revelar em uma interessante contribuição. Isto porque é possível notar que a música não empreende um campo de significados autônomos, mas busca na compreensão de seu passado a base de sustentação capaz de definir sua importância no interior de uma cultura. Dessa forma, a tradição se põe como um modo de organizar o passado – utilizado em diversos momentos da cultura brasileira – e funciona como importante eixo constituinte das formas de compreender os estilos musicais que a ela se ligam, como o samba. O estudo da inserção da tradição em nossa cultura será realizado mais adiante, quando poderemos relacioná-la às questões referentes ao samba. Por agora, tendo em vista a gama de dados e questões destacadas sobre o samba e Bezerra da Silva, levantamos um debate sobre o que vem a ser tradição, compreendendo que, em essência, esta se constitui em um elemento elevado acima do tempo e da discórdia, pois empreende uma resistência ao fluxo das mudanças ao mesmo tempo em que exclui todo e qualquer artefato estranho à sua 104 própria natureza. Assim, entende-se que, no momento em que busca uma determinada permanência, ela se coloca para fora do tempo histórico. Contudo, o fato de “permanecer fora da história” não significa que a tradição deva ser excluída como resposta ao seu tempo, já que o aspecto tradicional não pode ser colocado como um dado natural a todas as manifestações artísticas existentes. Assim, deve-se considerar seriamente as maneiras pelas quais a tradição é evocada, visto que os gestos e hábitos adotados em um processo de consolidação do tradicional envolvem um olhar direcionado a certos grupos, idéias e situações passadas que constroem uma lógica própria de sentidos. E também porque as questões presentes que convocam uma ligação com o passado são de fundamental importância para a relação interpretativa que concebe uma tradição. Percebe-se, a partir dessas considerações, as aproximações existentes entre a busca pela tradição e o estudo da História, já que ambas envolvem um processo de escolhas obtido pela fala de um ou mais interlocutores interessados em resolver alguns problemas que surgem no campo imediato da cultura e das idéias. Ao admitir tal justaposição entre o tradicional e o histórico, percebe-se ainda que a busca pela tradição não se dá pela acolhida fria e objetiva de dados que se ligam organicamente às manifestações artísticas e aos grupos sociais, mas se configura em um processo de escolha gerado no seio de falas que não se repetem integralmente. No caso do trabalho aqui apresentado é de grande valia limitar um conceito de tradição que se aproxime do samba e da obra de Bezerra da Silva. Para tal, não é necessário trabalhar uma extensa historicidade do conceito de tradição, mas buscar o universo de idéias que o relacionam com o samba e a obra de Bezerra da Silva. Para tal, pretende-se buscar estudos sobre tradição que se relacionem com aquilo que podemos observar na obra de Bezerra da Silva e do samba, tendo em vista que estes são evocados como vozes fundamentais que nos permitam pensar sobre esse conceito de maneira inteirada e pertinente a esses dois elementos que se movimentar historicamente. Estudos recentes, como os de Hobsbawm, Certeau e Canclini, apontam a tradição como um objeto carente de novas abordagens e suas pesquisas atestam a urgência em se configurar um novo olhar sobre os juízos e características do termo e em avaliar suas implicações práticas. Na verdade, a preocupação de se desconstruir esse conceito chega ao ponto sustentar um tipo de inconformismo que o rebaixa à condição de “idéia empobrecedora”. Isso porque arrisca-se assumir um tipo de perspectiva condenatória que 105 considera, por exemplo, que os estudos folclóricos próximos a esse conceito-chave são dotados de um valor eminentemente negativo. Despreende-se desse pensamento que as manifestações tradicionais estariam colocadas no espaço das falsas práticas culturais – manipuladas por grupos sociais detentores ou interessados em certo tipo de poder – ou no degredo crítico da construção incapaz de prestigiar os outros elementos de uma cultura, que, por alguma razão, são deixados para trás. Desta maneira, o pensamento sobre a tradição se torna uma árdua tarefa que caminha entre duas penosas perspectivas: a que se liga à idéia de que a tradição se configura em uma mentira a ser desvendada, e a que a assume como ação arrebatadora suficientemente viva para eliminar todo e qualquer movimento contrário a ela. Seguindo os debatedores que irão aqui falar a respeito do tradicional, apontamos uma relação bem mais complicada, situada no enfrentamento entre estas duas posturas que podem muito bem, entre a rivalidade de suas perspectivas, criar um radicalismo que nenhum tipo de ajuda oferece para a concepção de outras considerações. 3.1.1 Michael de Certeau e a bela morte da cultura popular Um dos grandes nomes que já levantaram o debate sobre tradição, imprimindo um tom bastante crítico a ela, foi o pensador e historiador Michael de Certeau. Em seu artigo “A beleza do morto”, pretendeu traçar uma linha de raciocínio que partia da idéia de que o tradicional se constituiu ao longo de uma rede de relações, interesses e concepções advindos por meio de uma demanda específica. Com vistas para a preocupação de determinados grupos sociais em delimitar que tipo de capital simbólico deveria velar os valores culturais representativos das camadas populares, Certeau traça a origem desse ideário, utilizando a análise de uma situação estabelecida no contexto da burguesia liberal francesa do século XVIII. Ao partir deste recorte específico, o pensador enfatiza algumas peculiaridades do período. Uma delas diz respeito às intensas transformações vinculadas ao desenvolvimento das sociedades industriais, já que a vida nas cidades e o individualismo dessa nova e intensa realidade atestariam as justificativas presentes nos relatos e documentos que discorrem positivamente sobre a condição do homem ligado à natureza. Segundo o próprio autor, ocorre uma nova tendência ao “retorno a uma pureza original dos campos, símbolo das virtudes 106 preservadas desde os tempos mais antigos”, o que representa, provavelmente, “uma espécie de entusiasmo pelo “popular” interessado em demarcar as permanências detectáveis de um tempo cingido por várias rupturas. (CERTEAU, 2005, p.58). Outra perspectiva trabalhada, mais tarde, pelo intelectual francês, intrigado pelo universalismo de um projeto que pensa um grupo social tão extenso e indefinido como “povo”, é calcada na preocupação de se pensar a respeito da natureza das tradições escolhidas para se definir o popular. Para tanto, Michael de Certeau trabalha com o sentido político dos sujeitos envolvidos com projeto de concepção do popular. Partindo para as discussões já no século XIX, Certeau se utiliza do trabalho do colecionador francês, Charles Nisard, que atuou como secretário de uma comissão censora da chamada literatura de “colportage”, já que esta possui uma aparente circularidade entre as classes populares francesas e também porque, segundo a fala de algumas autoridades da época, seus escritores costumavam disseminar um tipo de entretenimento favorável à construção de uma sociedade dividida entre a exploração dos ricos e a penúria dos mais pobres. Por meio da análise do trabalho desenvolvido por Nisard, Certeau conclui, de forma bastante crítica, que a “idealização do ‘popular’ é um tanto mais fácil quando se efetua sobre a forma do monólogo” (ibidem, p.59). Ainda segundo Nisard, o trabalho de seleção e censura do sujeito histórico único seria a expressão maior de um processo de definição de um popular desprovido de capacidade crítica, pois seus componentes são “pessoas facilmente influenciáveis, como os operários e os homens do campo” (ibidem, p.62). Desta maneira, a imagem do que vem a ser popular se torna desprovida de autonomia intelectual, subjugando uma massa como incapaz de participar plenamente das promessas libertárias que deveria lhes conceder o direito natural de definir livremente quais temas, questões e perspectivas deveriam integrar sua produção literária ou quaisquer outra de suas manifestações. Nesta análise oferecida por Certeau, o mesmo povo que inicialmente é elogiado pelo seu vínculo ao natural, recebe, paralelamente, uma crítica em tons ameaçadores quando a natureza é reinterpretada como o oposto da civilização, aproximando-se da selvageria contrária à ordem. Assim, da escolha pelo monólogo à censura e ao exemplo de Charles Nisard, o pensador mapeia o conjunto de idéias que perpetuaram o popular no âmbito de uma tradição restritiva. 107 Vê-se que a cultura popular é transformada a ponto de suas contradições serem equacionadas no lugar onde o poder de revolta do camponês (e dos operários) seja eficientemente impugnado de seu escopo. Por fim, a bela morte da cultura popular (ou seja, a fixação de uma tradição) atestada por Certeau, reforça traços onde “o popular está associado ao natural, ao verdadeiro, ao ingênuo, ao espontâneo, à infância.” (p.63) O mesmo tipo de impressão que atenta para a exclusão do tradicional vinculado ao popular pode ser vista na obra Culturas Híbridas de Néstor García Canclini. Uma vez que concorda significativamente com a perspectiva de Michael de Certeau, ele afirma que “a comemoração tradicionalista assenta-se freqüentemente sobre o desconhecimento do passado” (2006, p.168), e, partindo para as visões constitutivas de uma cultura erudita e outra popular, se preocupa, ainda, em desarraigar noções rígidas sobre esses dois campos da cultura. Para tal, ele demonstra a interpenetração existente entre eles, fazendo com que as tentativas de setorização da arte caiam em total descrédito em sua perspectiva. Ampliando a hipótese do artigo de Certeau, Garcia Canclini sugere, ainda, que a tutela do Estado liberal sobre o tradicional se mostra perceptível em diferentes contextos históricos contemporâneos. Segundo ele, a ação preservacionista dos institutos de arte e cultura se coloca como um fruto da ação presente de projetos nacionalistas configurados em diferentes partes do mundo. Em certa medida, possuiu maior pujança no continente americano, local onde a elaboração do moderno ainda convivia com um debate muito inicial sobre a questão das identidades. Não sendo apenas fruto de uma medida contensora de elites urbanizadas, também apresentam a contradição de territórios nacionais onde o espaço e a língua comuns não bastam para definir as especificidades de um povo sentido e imaginado. Talvez por isso, seria de vital importância especular sobre a tensão vivida em um mundo de transformações, um mundo que se reconfigura em intervalos de tempo cada vez mais ágeis do que a própria capacidade de reflexão sobre os mesmos. Em diversas manifestações artísticas dos séculos XIX e XX vislumbra-se esse desconforto trazido pelas constantes inovações, fazendo com que o tradicional venha como uma demanda por permanências que ofereça sustentação frente às novas experiências. Conforme aponta especificamente o próprio autor: (...) o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradições contemporâneas. Nessa época em que duvidamos dos benefícios da modernidade, multiplicaram-se as tentações de retornar a algum passado que imaginamos mais tolerável. Frente à impotência para enfrentar as desordens sociais, 108 o empobrecimento econômico e os desafios tecnológicos, frente à dificuldade para entendê-los, a evocação de tempos remotos reinstala na vida contemporânea arcaísmos que a modernidade havia substituído (ibdem, p.166) Assim, se a incorporação do tradicional acarreta no desconhecimento do passado, a percepção do moderno como um incontido elogio às mudanças também pode vir a ser outra forma de desconhecimento que encobre questões fundamentais que refletem a própria modernidade em suas mais diferentes vertentes. Conforme salientado por Canclini, as incertezas de seu tempo seriam peça constitutiva tanto da tradição como da modernidade (ibdem, pg. 18). 3.1.2 Hobsbawn e Bakhtin: o poder da invenção e a ruptura do diálogo Ainda no que diz respeito à tradição, é preciso privilegiar, também, a perspectiva traçada pelo historiador britânico Eric Hobsbawn, segundo a qual é possível realizar uma clara distinção entre as tradições legitimadas – em um fluxo impensado de ações que se desenvolvem com o passar de uma longa duração de tempo – e as que se fixam pelas ações decorrentes da intervenção de grupos focados em um interesse específico. Para Hobsbawn, elas seriam classificadas com os conceitos de “costumes” e “tradições inventadas”, respectivamente. O que o autor entende por tradições legitimadas recebeu, em sua classificação, o nome de costume pelo fato de que este “não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim” (1997, p.10). Isto quer dizer que sua manifestação se fundamenta na compreensão de um passado naturalmente compartilhado, cuja invocação tanto pode reivindicar algum tipo de permanência ou mudança. Para Hobsbawn, o costume seria tão orgânico quanto a vida e, por conseqüência, tão sujeito a mudanças e grande propulsor de experiências múltiplas que reafirmassem a sujeição do homem ao tempo. Desta forma, o costume recebe um reconhecimento que o coloca sobre uma perspectiva positiva diante da qual sua legitimidade não pode ser desacreditada como fruto de algum tipo de ação manipuladora, mas enaltecida, já que suas origens remetem a um tempo impreciso, imemorial. Já no que diz respeito às tradições inventadas, o autor entende que sua ação recorre ao passado com o claro objetivo de suplantar o tempo, proporcionando uma relação com o passado completamente diferente. Isto porque elas trazem consigo um “conjunto de 109 práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas(...) que visam inculcar certos valores e normas de comportamento por meio da repetição(...) o que implica em uma continuidade em relação ao passado” (ibidem, p. 9) e seu objetivo maior consiste em instituir-se enquanto referência ao presente por meio de um repertório particular sobre o passado. Assim, Hobsbawn entende que o conceito de tradição inventada se origina de escolhas deliberadas em que outros interesses prévios possam ser levantados por meio de minuciosa investigação. Com o intuito de fornecer uma sustentação histórica à sua classificação, o autor destaca que uma quantidade considerável dessas tradições inventadas podem ser percebidas durante as revoluções que assumiram a tarefa de derrubar os costumes e instituições do Antigo Regime. Em favor dessa argumentação, o historiador aponta ainda que ao colocar-se conscientemente contra a tradição e a favor da inovações radicais, a ideologia liberal da transformação social, no século passado [século XIX], deixou de fornecer os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradições inventadas (ibidem, p.16) Para encerrar o seu entendimento sobre as duas categorias trabalhadas, Hobsbawn revela seu posicionamento mediante cada uma das experiências culturais por ele elaboradas. Nesse sentido, no momento em que revela que “a força e a adaptabilidade das tradições genuínas não devem ser confundidas com a invenção das tradições” (ibidem, p. 16), o historiador britânico ainda fornece uma espécie de alerta para os pesquisadores ligados à investigação da cultura, para que eles não se deixem cair no engodo das criações que partem de “muitas instituições políticas, movimentos ideológicos e grupos (...) sem antecessores” (ibidem, pg. 15), fazendo uma clara referência ao apartamento existente entre os conceitos por ele estruturados no que diz respeito à sua relação – sincera ou destorcida – com o passado. Todavia, é necessário apontar as limitações dessa divisão levantada por Hobsbawn, uma vez que a descoberta das invenções tradicionalistas exige um esforço operacional que se limita aos rigores metodológicos do pesquisador interessado pela genealogia de certas práticas culturais. O intuito não é desacreditar, de maneira alguma, esse tipo de pesquisa, mas apontar a necessidade de se observar a idéia de obliqüidade presente nesse tipo de busca criteriosa e de se perceber a movimentação dos costumes e das tradições presentes em diferentes sociedades. Isto porque, lançados ao campo das práticas culturais e ao 110 conseqüente desenvolvimento de suas ações históricas, costumes e tradições são reinventados a ponto de não conseguirem mais firmar uma explícita separação na fala dos sujeitos que dispõem de tais elementos em sua própria cultura. No que diz respeito às tradições inventadas, mesmo pensando na capacidade de grupos ou agentes sociais detentores de privilégios e suficientemente fortes para inculcar determinadas visões de mundo na sociedade, observa-se que não existem bases seguras que possam afirmar que elas derivam, necessariamente, de ações premeditadas que visam legitimar interesses ao longo dos contextos históricos que se modificam. Se o projeto conservador de uma tradição nega ou reinterpreta o som das diferentes vozes presentes no passado de uma cultura, não poderia escapar dessa mesma possibilidade de transformação. Para comprovar a viabilidade desta perspectiva, pode-se fazer, aqui, uma breve referência ao trabalho do pensador russo Mikhail Bakhtin, que lançou esse mesmo problema em sua obra antes mesmo das teorias que pensam o estado da cultura contemporânea. Bakhtin é também citado na obra de Hobsbawn pela proximidade de sua obra no se refere a este tema. O livro “A invenção das tradições”, sendo uma coletânea de artigos inaugurada pela chancela teórica do organizador, é composto por um conjunto de textos que revelam instigantes perspectivas. Em toda coleção de textos que exemplificam o problema da invenção, o conjunto dos temas trabalhados demonstra a recorrência de um quadro mais geral em que cada objeto analisado advém da presença fundamental de uma classe detentora de poderes capaz de viabilizar uma nova tradição inventada. Assim, mesmo quando tal operação sob o passado não se origina de grupos dotados de algum poder, a influência deles aparece enquanto dispositivo essencial para a sua perpetuação. Desta forma, existe uma chance de reavaliar o poderio das tradições inventadas em relação aos grupos a serem por elas atingidos. Não se pode afirmar que todo e qualquer tipo de tradição tenha como intuito frisar um ideal de segregação sócio-econômica legitimado por meio de festividades, vestimentas ou feriados institucionalizados pelos que detêm ou procuram conservar o poder. Existe a possibilidade de a própria comunhão interna de um grupo justificar a busca de seus partícipes por novas e diferentes formas de reafirmação identitária. A hipótese mais presente na obra de Hobsbawn, como já levantado, se refere ao poder das classes mais abastadas em ditar as tradições a serem recepcionadas pelas demais camadas da população. Contudo, é possível obter outra análise, para fora da lógica da 111 dominação, ao levar em consideração as distinções culturais elaboradas enquanto um prolongamento das diferenças que se articulam nos domínios políticos e econômicos de uma sociedade. Para tanto, deve-se considerar que a força advinda de pressupostos externos à cultura podem ser instrumentalizados a ponto de criar uma tradição que possa também ser contemplada por aqueles que normalmente a estabelecem. Entretanto, segundo a obra de Bakhtin, esse tipo de situação considerada não se dá tão facilmente, pois a força de uma tradição repetitiva e legitimadora de um status quo, ao se dirigir para o âmbito público, abre outros lugares de compreensão para as “invencionices dos poderosos”. Isto porque o autor admite a existência conjunto de práticas culturais no interior de classes dominantes que vêm a reafirmar a sua situação de poder. Para chegar a esse posicionamento, principalmente no que se refere às práticas culturais, Bahktin partiu da obra do renascentista francês François Rabelais – Gargântua e Pantagruel –, construindo, inicialmente, uma averiguação crítica sobre os elementos desta narrativa, para só então estabelecer uma nova categoria de análise. Para tanto, o pensador russo refletiu sobre as descrições, alegorias e situações descritas e chegou à concepção de mundo carnavalizado. O conceito de “carnavalização” por ele elaborado superou a classificação encerrada por Rabelais e se fixou no pensamento da cultura, principalmente no que se refere a pressupostos de cisão entre mundos que se diferem não apenas por seus papéis sociais e econômicos, mas também pela elaboração de práticas culturais que reafirmam essa separação. Para corroborar com os ideais acerca do conceito elaborado, Bakhtin ressalta o contexto da Idade Média, quando vislumbra nas festas oficiais um conjunto de valores que (...) apenas contribuíram para consagrar, sancionar o regime em vigor, para fortificálo. O elo com o tempo tornava-se puramente formal, as sucessões e crises ficavam totalmente relegadas ao passado. Na prática a festa oficial olhava apenas para trás, para o passado que servia para consagrar a ordem social presente (...) tendia a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes (...) [representava] o triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória (BAKHTIN, 2002, p.8). Por meio desta visão defendida pelo pensador russo, pode-se fazer uma nítida ligação com a obra de Hobsbawn e com as questões por ele levantadas no que concerne à reflexão sobre as tradições inventadas e também às críticas feitas a outros teóricos. No 112 entanto, a obra de Bakhtin vai além da proposta básica contida no pensamento de ambos, porque enxerga nas ações do mundo oficial, controlado por seus vigentes, um primeiro passo a ser estabelecido para se compreender a totalidade de uma sociedade que não se encerra na fala daqueles que detêm algum tipo de supremacia. Para o russo, há uma viva contrapartida que se elabora no seio das camadas que são submetidas a essa perspectiva de tempo e história, de forma que elas demonstram sua autonomia em responder às concepções oferecidas pelas classes dominantes. Contudo, as possibilidades de resposta dos menos favorecidos, segundo o autor, não se encerram em um antagonismo raso que pressupõe, invariavelmente, que a autonomia vinda “de baixo para cima” se limite a dizer não a todo e qualquer valor que vier dos dominantes. Na verdade, Bakhtin atenta para existência de um diálogo entre essas camadas que implica numa ação de grande profundidade, sobre a qual a instituição de um processo de comunicação entre elas exige um olhar mais atento àquilo que é dito na partilha de uma mesma cultura. Nesse sentido, quando se leva em consideração as particularidades do objeto analisado pelo autor – a cultura popular medieval e renascentista – pode-se observar a presença desse elemento dialógico apontado na fala oriunda das camadas populares, que, segundo Bakhtin, “destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades” (ibidem, p.43). Dessa forma, percebe-se que a tradição legitimadora de uma visão unívoca se torna insustentável no âmbito de uma cultura popular que, por meio de diferentes manifestações, aponta de que maneira ela mesma se relaciona com a “cultura oficial”, fornecendo uma resposta que, no mínimo, foge da pretensa e mera reprodução. O autor russo, “responde”, assim, às tradições inventadas, colocando a perspectiva de um diálogo existente entre os variados campos da cultura postos em separado. Ao contrário de Hobsbawn, que enxerga no costume – e não na tradição inventada – uma relação mais intensa com a vida, Bakhtin insere ambos no mesmo tecido de idéias que permeiam a construção de um diálogo em que invenções, imagens carnavalizadas, costumes e distinções têm o mesmo poder de “interrogar, escutar, responder [e] concordar” (BAKHTIN apud. SCHNAIDERMAN, 1996, p.1388). Ele aponta, portanto, para o fato de que as diferenças entre esses elementos se anulam em favor de uma visão em que não haja preocupações prévias em apontar a legitimidade dos atos culturais, mas que vislumbre as trajetórias que tornam o diálogo como um todo passível de uma análise compreensiva. 113 Para que isso seja possível, Bakhtin se vale das bases de pensamento de outra categoria por ele estabelecida: o dialogismo. Através desse conceito, o pensador propõe que a visão infinita do indivíduo se constrói por meio de um fluxo de perspectivas em que se percebe o embate entre o indivíduo e aquilo que está a sua volta. Desta forma, o conhecimento do sujeito é impensável fora do conhecimento de seu discurso e a sua diversidade, em contato com suas manifestações, pode elucidá-lo de uma maneira relativa e inacabada. É no interior desta proposta que admitimos uma nova visão sobre como as tradições inventadas movimentam-se na fala de diferentes sujeitos. Isto porque Bakhtin parte para uma visão de que as idéias sobre o mundo se consolidam no fluxo realizado entre o “eu” e o “nós”, e o “eu” e os “outros”, descartando a proposição de um sujeito moldado pelas concepções exteriores à sua identidade ou a compreensão de um indivíduo pensante ensimesmado em idéias originais. A partir da concepção bakhtiniana, começamos a estabelecer uma melhor ordenação sobre os diferentes lugares que a perspectiva de um sujeito se aloca e encontramos uma via sinuosa pela qual podemos compreender como o conceito de tradição é entendido, de início, no interior do samba que pretendemos avaliar e, posteriormente, em nas questões percebidas através da obra de Bezerra da Silva. Contudo, para empreendermos essa nova compreensão acerca da idéia de tradição, precisamos ser cautelosos. Deste modo, não podemos partir de uma discussão conceitual autônoma sobre este conceito e simplesmente aplicá-lo arbitrariamente ao nosso objeto de estudo, fazendo com que se coloque acima de certas especificidades do objeto de pesquisa. Devemos, antes, considerar que, ao falarmos do samba e do “nosso” sambista, estamos discutindo sobre elementos reconhecidos no interior do cenário musical, marcado por intensas transformações que remetem aos primeiros passos e ao amadurecimento de uma Indústria Cultural no Brasil, a ser debatida na etapa seguinte deste capítulo final. 3.2 INDÚSTRIA CULTURAL: O CONCEITO E SUA PROJEÇÃO 3.2.1 Conceituando a Indústria Cultural 114 Apesar do conceito de tradição ser de fundamental importância para nortear as nossa compreensão sobre o samba e a obra de Bezerra da Silva, é preciso, ainda, considerar o momento em que este artista surge e produz no cenário musical brasileiro. Para tal, contaremos com outro conceito: o de indústria cultural, e iniciaremos uma breve reflexão sobre o que vem a ser essa indústria e como podemos percebê-la no contexto abordado. Dessa maneira, a discussão sobre o que vem a ser esse conceito é eficaz para compreensão da situação da arte no tempo em que sua comercialização e divulgação promovem mudanças significativas no seu comportamento e também para destacar a forma como ela se articulou no período em que o samba e Bezerra da Silva, posteriormente, surgem como partes integradas a esse mesmo referencial teórico-contextual. Para iniciar o entendimento sobre este outro conceito necessário, não se pode deixar de lado o texto “A indústria cultural”, do teórico alemão Theodor W. Adorno, no qual ele singulariza a compreensão do conceito uma vez que promove sua radical distinção daquilo que era compreendido como “cultura de massa”. Tal diferenciação demonstra a possibilidade de se pensar sobre como a presença de uma indústria cultural implica na reflexão sistematizada de mudanças que serão percebidas em várias instâncias, que partem do estado da obra de arte e vão até o comportamento dos indivíduos diante dela. Adorno aponta, ainda, para o poder transformador da indústria cultural ao salientar que esta realiza um papel de integrar a arte inferior à superior, que, segundo seu ponto de vista, estão historicamente separadas entre si. Contudo, qual seria o julgamento aplicado a esse processo de integração das artes que encurtaria as distâncias entre elas? Para o teórico, a junção ocorreria por meio de uma nova orientação pela qual as obras de arte seriam transformadas em mercadorias na medida em que o lucro se tornaria um pressuposto fundamental para sua produção. Nesse processo, a sempre tão difícil autonomia do campo artístico passaria a ser completamente inexistente no momento em que fosse “abolida pela indústria cultural” (1977, p.288). A partir de então, a liberdade – tão necessária para o reconhecimento e realização de uma obra artística – passaria a se configurar dentro de um novo sistema, onde a repetição se transformaria em um dado que extirparia a faceta transgressora da obra. Além disso, o lucro as colocaria na condição de mercadoria e o público, sabotado pela ilusão de singularidade e novidade, se tornaria alvo e não mais responsável direto pela avaliação do que a arte estaria prestes a dizer do (e para) o mundo. 115 Dessa forma, ainda segundo Adorno, a própria indústria cultural tomaria para si o papel de elaborar os valores a serem divulgados pela arte que controla e tornaria mais amplo o leque de manifestações que mantêm viva a sua aura de novidade, quase imperceptível para aqueles que já não têm capacidade de elaborar uma percepção contrária ao que foi instituído. Nesse sentido, Adorno expõe estratégias que permitem à indústria cultural “fazer referência à ordem, simplesmente, sem sua determinação concreta e apelar à difusão das normas sem que estas sejam obrigadas a se justificar concretamente ou diante da consciência”(1977, p.293). Porém, se existisse ciência de tudo o que é imposto e houvesse manifestações a esse respeito, haveria alguma possibilidade concreta de quebrar essa ordem? Segundo o filósofo frankfurtiano, a resposta seria não. Isto porque essa mudança se tornaria impossível, já que o aprimoramento da própria indústria instala uma falsa realidade e esta, ao longo de sua permanência, cria um “círculo da manipulação e da necessidade retroativa (...) [onde] a necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já é recalcada pelo controle da consciência individual” (1985, p.114). Dessa maneira, mesmo aqueles que pensam estar em uma posição autônoma e consciente sobre uma infinidade de bens culturais de menor qualidade estética, nada mais fazem do que integrar essa situação inverídica. Assim, vê-se que a idéia de singularidade está previamente mascarada por mecanismos a cada dia melhor planejados pelas agências e corporações que se preocupam em trabalhar todo o campo de possibilidades que garanta o sustentáculo da indústria cultural. Resolvido o questionamento, salienta-se que o teórico acredita, ainda, que a distinção feita entre os bens culturais indica o grau de desenvolvimento e sistematização da cultura e se torna arma útil para se cálculo sobre o lucro. Desse modo, as diferentes qualidades de produção artística – canções, filmes, romances – se tornam referenciais para a quantificação exata de todo o consumo. De acordo com essa perspectiva, o autor conclui que As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo (1985, p. 116). 116 Adorno evidencia que a conseqüência direita dessa capacidade de se organizar o consumo da arte influenciou tanto no acesso às obras quanto na própria natureza da obra artística, ao promover uma ressignificação da arte a ponto de anular as tensões que davam sentido às manifestações cuja função era provocar em seu observador um tipo de reflexão capaz de romper com as estruturas estabelecidas no mundo. Dessa forma, a capacidade de contraste com o real, anteriormente perceptível nas manifestações artísticas, se anula na formação de outra percepção em que a arte – submetida ao predomínio dos efeitos e dos detalhes técnicos – promove agora “a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento do mundo que se descobre” nela (1985, p. 118). Seguindo esse raciocínio, a indústria cultural se transforma, finalmente, em um “idioma” capaz de superar “a distinção própria do conservadorismo cultural entre o estilo autêntico e o estilo artificial” (1985, p.121). Assim sendo, e tendo o conhecimento de sua atuação nos mais variados tipos de manifestação artística, destaca-se o interesse particular em se observar de que maneira essa indústria cultural promoverá transformações no campo musical. Nesse sentido, preocupa-se em deslocar sua compreensão para as preocupações específicas que pensam sobre o processo criativo das peças musicais, fazendo-se necessário observar o processo que se dá desde a produção das musicas expostas pela indústria cultural até os desdobramentos que dela decorrem. No que diz respeito ao meio musical, o exercício de reflexão e observância dos detalhes que fazem dos sons uma obra inexiste no momento em que o próprio indivíduo se torna incapaz viabilizar um experiência única com a música que lhe é apresentada, pois é marcado pela impossibilidade de romper com os parâmetros impostos pela indústria. Adorno acredita esse comportamento se cristaliza a medida que a música, permeada de padrões de repetição, molda as expectativas dos ouvintes de maneira que eles se tornam incapazes de responder positivamente às propostas alheias às produções de padrão industrial. Nesse ponto, a perspectiva frankfurtiana justifica que a inapetência do ouvinte se elabora por meio de um processo de regressão da escuta musical e da condução desse indivíduo a um tipo de comportamento fetichista com relação às peças musicais que lhes são apresentadas. O primeiro passo que se institui nessa direção busca dar fim à “preponderância da pessoa sobre a ação coletiva na música [que] proclama a relevância da liberdade subjetiva” por meio de um processo de sintetização capaz de transformar em verdade um outro processo 117 de experiência para com a música, onde a dimensão do êxtase se aloja na incessante busca por um padrão musical completamente distinto daquele que tempos antes poderia ser observado (ADORNO, 1975, p.175). Desta maneira, as normas próprias à música são embaralhadas em uma nova feição de modo que os momentos simples e complexos são utilizados de maneira a fornecer um tipo de prazer não mais obtido por meio da cuidadosa compreensão orgânica que se constrói ao longo de toda uma peça. Assim, a capacidade de comunicação é totalmente deixada de lado em função de um prazer transmitido pela música. Este se dá através de uma falsa tensão em que repetitivos esquemas de organização sonora se alternam de maneira a chamar a atenção do ouvinte por meio de algo que parece impressioná-lo por ser realizado de maneira original. Portanto, por mais que exista um processo criativo por trás de uma peça musical, ele só é reconhecido quando se mostra capaz de encantar um ouvinte que não consegue explicitar as leituras que demonstram objetivamente as origens de seu deleite. Logo, nas vezes em que esse espectador consegue denotar, para si, o significado de uma música, ele busca sua argumentação fora da própria linguagem musical e se vale, inclusive, da opinião de críticos e dos meios de comunicação para traduzir uma arte que ele mesmo não consegue compreender. A relação fetichista se torna tangível nesse exato momento de completo desvínculo entre a música e o sujeito, já que não se mostra como uma manifestação proveniente de um estado psicológico particular, mas como uma nova regra cujos ‘valores’ sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, [constituindo] uma evidência (...) do caráter fetichista da mercadoria como aquilo que é auto-fabricado [e], por sua vez, na qualidade de valor de troca se aliena tanto do produtor como do consumidor, ou seja, do ‘homem’ (ADORNO, 1975, p. 180). Contudo, para que “ouvintes e consumidores em geral [exijam] (...) exatamente aquilo que lhes é imposto incessantemente” por meio de um sistema que torna aprazível as canções pelo fato de serem “produtos normalizados e irremediavelmente semelhantes entre si exceto por certas particularidades surpreendentes”, é necessário que a indústria cultural disponha de condições técnicas e materiais para suportar a gama de tarefas que submetem coletividades inteiras a um mesmo padrão de comportamento (ADORNO, 1975, p.180). 118 Dessa forma, supõe-se que exista um processo de ordenação minuciosa do que passa a ser culturalmente absorvido que exige a existência de uma estrutura bem maior e mais complexa que só pode ser desvendada pela cuidadosa análise do que é exposto pelos meios de comunicação. Assim, existe a premissa de uma instalação da própria indústria cultural para que assim possamos falar sobre o que ela oferece. 3.2.2 A Indústria no Brasil: projeções e experiências Por meio dessa suposição, avançamos em uma nova etapa de reflexão acerca da indústria cultural, utilizando a historicidade que ela adquire nos diversos contextos em que aparece. Por conseguinte, faz-se necessário discutir de que maneira sua instalação se deu no Brasil e em que etapa se apresentava na época em que Bezerra da Silva surge como artista. Contudo, apesar da conceituação oferecida pelos frankfurtianos ser uma valiosa e importante referencia, não se pode pensar que a natureza sistemática da indústria deva ser estendida à historicidade particular que se refere ao reconhecimento de uma “indústria cultural brasileira”. Logo, dedicamos algumas linhas para falar sobre como e quando essa indústria se instalou no Brasil e sobre qual feição o cenário cultural brasileiro assume quando abre suas portas para ela. Em seu estudo sobre esse assunto, o sociólogo Renato Ortiz organizou uma trajetória que visava equiparar a instalação da indústria cultural ao processo de consolidação de mais um setor da economia capitalista do país. Nesse sentido, ele chegou à conclusão de que com o crescente desenvolvimento da sociedade industrial se consolidam e se expandem as empresas, que passam a gerir as suas atividades a partir de uma estratégia de cálculo que busca maximizar os ganhos a serem atingidos (...) [Da mesma maneira], a indústria cultural nas sociedades de massa seria o prolongamento das técnicas utilizadas pela indústria fabril, o que quer dizer que ela seria regida pelas mesmas normas e objetivos: a venda de produtos. (ORTIZ, 1988, p.55) Segundo Ortiz, os verbos “desenvolver”, “consolidar”, “expandir” e “gerir” só se tornam comuns ao cenário sócio-econômico de um país se as iniciativas de indivíduos e organizações estiverem consoantes às exigências para a formação de uma economia moderna. 119 O autor aponta que a intenção de modernizar as relações econômicas brasileiras recai não apenas sobre o setor industrial mais amplo, mas também sobre a própria indústria cultural, evidenciando um claro descompasso na efetuação desse projeto. Para ele, o distanciamento entre a idéia e prática tem “peso importante no encaminhamento da discussão da cultura entre nós e, conseqüentemente, na avaliação da amplitude e da influência da própria cultura popular de massa” (ORTIZ, 1988, p.30). Para desenvolver esse pensamento, Ortiz utiliza um amplo recorte espaçotemporal de três décadas – de 1940 a 1970 – para estabelecer uma narrativa marcada pela sucessão de fatos históricos que pretensamente demonstrariam o desencadeamento de uma sincronia entre o ideal de modernização capitalista-liberal e a concretização desse projeto com a diversificação do mercado e das atividades industriais. Só depois de percorrer esse caminho, finalmente trilhado na década de 1970, a indústria cultural brasileira alcançaria os patamares exigidos pela escola de Frankfurt para sua aplicabilidade desse conceito em nossa cultura. No entanto, nessa trilha que vai da incipiência à consolidação, seria simples visualizar o desenvolvimento da indústria tal qual foi preconizado pelos primeiros pesquisadores desse fenômeno? O próprio Ortiz parece se deparar com o peso desse questionamento, mas opta por defender a idéia de que a lógica mecanicista presente na indústria cultural se estende para sua própria consolidação. Sendo assim, ele conclui: Não estou com isso sugerindo que a história da cultura na periferia deva repetir o destino que teve nos países centrais (inclusive porque essa história é distinta na Europa), mas apontar para o fato de que determinadas mudanças estruturais levam necessariamente a certos fenômenos que me parecem ser internacionais. A constituição de uma sociedade de consumo nos Estados Unidos dos anos [19]30 tem traços semelhantes às mudanças que se consolidam no Brasil anos depois (1988, p. 144). Ortiz se vale de diversos episódios e dados para demonstrar os traços específicos que singularizam a sistematização da indústria cultural no Brasil. Entre outros pontos, pode-se destacar como o sociólogo trata distintamente os papéis assumidos pelo Estado em relação à possibilidade de expansão dos meios de comunicação no país e às noções de integração que percorreram o Estado Novo (1937-1945), o período democrático-populista (1945-1964) e a ditadura militar (1964-1985). Além disso, não se restringe ao campo de explicações político-econômicas, recorrendo também à fala de vários partícipes desse processo histórico, como os investidores 120 envolvidos no campo das artes, da comunicação e do entretenimento; os diretores artísticos de grandes corporações e a movimentação estética dos artistas que surgem dentro desse amplo contexto. Entretanto, é instigante notar que o parâmetro comparativo utilizado por Ortiz se volta para o processo de instalação da indústria cultural nos Estados Unidos, o que apenas reforça a idéia de uma aplicação rígida dos primeiros escritos que pensaram a essa indústria à luz do contexto freqüentemente utilizado por Adorno. Desta maneira, o rigor utilizado é melhor percebido quando recorremos às análises que se voltam para o momento de consolidação da indústria cultural durante a década de 1970. Sua visível capacidade para atingir o mercado consumidor se destacou nesse período, que passou a enquadrar as bases conceituais dos pensadores de Frankfurt, não abrindo outras possibilidades de relativização da indústria cultural brasileira nas décadas seguintes. Um dos pontos que expressaram essa limitação foi a profissionalização dos artistas em prol da orientação mercadológica feita pela indústria cultural, incorporando estratégias e articulações que possibilitassem o enquadramento do ator, músico ou escritor às normas de reconhecimento ditadas previamente por essa mesma indústria. Uma vez que esta pôde estabelecer e controlar as instâncias de consagração artística e dispôs da própria variabilidade atingida pela classe artística, houve a possibilidade de selecionar os que seriam aplaudidos por sua performance. Por conseguinte, tornou-se inviável o reconhecimento da arte conquistado por outras vias contrárias às vigentes, já que “a lógica mercadológica despolitiza a discussão, pois se aceita o consumo como categoria última para se medir a relevância dos produtos culturais”. Assim, se normatizou um tipo de segregação que afastou arte e política, admitindo apenas que os integrantes da classe artística “enquanto cidadãos, como o resto da população, (poderiam) participar das manifestações políticas; enquanto profissionais, (deveriam) se contentar com as atividades que exercem nas indústrias de cultura ou nas agências governamentais” (ORTIZ, 1998, p.164) No Brasil, a situação acima foi possível com a sincronia experimentada entre a montagem do Regime Militar e a expansão do mercado de bens culturais. Dessa forma, durante esse período o controle das manifestações artísticas permitiu, “após uma explosão de utopia política, na qual a esquerda possuía a hegemonia do movimento cultural, [a instalação de] um clima de conformismo e passividade” e a ampliação dos meios de comunicação. 121 Através deste controle, realizou-se uma transformação acerca do conceito de cultura popular que “se identificava ao que era mais consumido, podendo-se inclusive estabelecer uma hierarquia de popularidade entre os diversos produtos ofertados no mercado” (ORTIZ, 1998, p.164). Percebemos, então, que a obra de Ortiz encerra um círculo de discussões que aponta e justifica diversos momentos que contribuíram para a definição da indústria cultural brasileira. Contudo, verificamos que o cenário por ele exposto não é capaz de abrir brechas para interpretações que relativizem ou adaptem o desenvolvimento de nossa indústria cultural a partir da década de 1980. Isto porque sua discussão sobre o nacional-popular se encerra com o processo de consolidação da indústria cultural, que disponibiliza uma imagem ilusória a respeito da liberdade criativa dos artistas, críticos e demais partícipes da cultura. Partindo do contexto transitório entre o fim do Regime Militar e a redemocratização do país, Ortiz conclui: o que os intelectuais do nacional-popular não perceberam é que eles são presas de um discurso que se aplicava a uma outra conjuntura da história brasileira, e são, portanto, incapazes de entender que a ausência da contradição os impede inclusive de tomar criticamente consciência da sociedade moderna em que vivem (ORTIZ, 1988, p. 181). Em oposição a esta perspectiva e pensando com maior especificidade a respeito da questão musical no Brasil, a socióloga Rita de Cássia Lahoz Morelli afirma – com base nas pesquisas de Eduardo Vicente – que “no campo da música popular brasileira não houve exatamente uma transição do nacional-popular para o ‘mercado de consumo’ nos anos de 1970, uma vez que elementos ligados ao nacional-popular continuaram importantes no período” (2008, p.88). Para ela, durante esse período, os parâmetros que qualificavam o fazer musical continuavam a ter importância tanto para o público quanto para a própria indústria, pois ainda faziam referência ao “nível” de integração do artista às questões políticas e à preocupação em se prestigiar os referenciais estéticos de caráter nacional e popular 108. Morelli ainda salienta 108 Ao falarmos de um determinado “nível” de integração, levamos em consideração o fato de que essa distinção carrega um traço de interpretação bastante subjetiva em que o público e a crítica exercem papel crucial. Assim, podemos avaliar que o exercício de interpretação das letras, a preferência por certos instrumentos musicais, a forma de se vestir e as declarações feitas nos meios de comunicação compõem a viabilidade desse tipo de observação. 122 que os mesmos artistas que faziam sucesso pela via do engajamento político na década de 1970 mantinham sua posição de prestígio mesmo diante das retaliações impostas pela ditadura militar. Além disso, vários outros artistas que surgiram nesse cenário artístico admitiam e celebravam a influência exercida por esses personagens engajados em suas obras (2008, p.89, 91). Através da reflexão levantada por Morelli, chegamos a conclusão de que a consolidação de uma indústria cultural massificada só se dá a partir da década de 1980, com o surgimento de uma nova leva de bandas e artistas vinculados ao movimento do chamado BRock 109, pois o referencial estético por ele lançado veio a confirmar o processo de afirmação dos estilos musicais estrangeiros no mercado musical brasileiro, demonstrando claras influências advindas do rock’n’roll britânico e inglês. Todavia, o surgimento e o alcance desse movimento diferem bastante da vigência do internacional-popular conceitualizado por Ortiz, uma vez que toma rumo diverso da hipótese por ele lançada. A oposição é bem clara quando percebemos que vários artistas do BRock não se subordinaram ao mercado e/ou aos modelos produzidos e disseminados por este e mesmo assim conseguiram legitimar sua produção. Diante de tais perspectivas, Morelli destaca a consolidação da indústria cultural brasileira no campo da música para outro momento, diferente daquele salientado pelo processo substitutivo de Ortiz, que, segundo a socióloga, não dá conta de uma série de questões que se apresentaram em nossa cultura musical após a década de 1970. O pensamento da socióloga se apóia sobre a maneira pela qual as bandas de rock brasileiro se colocaram frente ao regime que se encerrava, de maneira autônoma e provocativa. Essa autonomia é evidente diante das várias canções da época que abordam os problemas do país de forma direta, de maneira a ganhar expressiva popularidade diante dos acontecimentos políticos que marcaram o restabelecimento do regime democrático no Brasil, 109 O BRock equivale às bandas de rock surgidas na década de 1980 que ganharam reconhecimento do público aparecendo em vários meios de comunicação e tendo uma expressiva vendagem de discos. Entre outros grupos, podemos citar os Paralamas do Sucesso, Titãs, IRA!, RPM, Ultraje a Rigor, Legião Urbana e Barão Vermelho. Vale lembrar que o aparecimento de bandas de rock no Brasil é bem anterior a essa época, mas o momento ganha singularidade pelo grande sucesso comercial alcançado por essas bandas e pelo próprio período de transformações de ordem social, política e econômica. 123 como as “Diretas Já”, as disputas eleitorais de 1989 e o impeachment do presidente Collor 110 (MORELLI, 2008, p. 91) A partir desse contexto, é possível apreender a existência de um continuum entre a MPB 111 de duas décadas atrás e a novidade do Brock, ambas tematizando criticamente as questões de ordem política. A relação entre essas duas manifestações também se mostra próxima – quebrando a simples passagem do nacional-popular para o internacional-popular – quando recordamos que a MPB ainda “embalou efetivamente todas as campanhas pela redemocratização do Brasil nos anos de 1980, e o fez até mesmo de modo indireto, graças à rápida e aparentemente espontânea adaptação de sentido” de suas canções (ibid, ibidem, p. 92). De posse dessas informações, fica evidente que esses dois gêneros musicais tiveram uma importância aproximada que se aliavam a um contexto, colocando-se como referenciais de diálogo para vários artistas 112. Ao demonstrar os demais entrelaçamentos possíveis entre MPB e BRock, Morelli ainda destaca que esses movimentos musicais utilizam das mesmas vias para pensarem a nação. E isto fica evidente pelo fato de a proximidade temática vir acompanhada de uma mesma origem sócio-econômica: “classes médias urbanas, de escolarização bem sucedida”. Para a socióloga, tal aspecto favorece a perpetuação de uma tradição política onde as manifestações de protesto são feitas pelas massas e não das próprias massas (MORELLI, 2008, p.91) Contudo, ela mesma encerra sua argumentação indicando que a problemática da repetição é superada na década de 1990, quando a expectativa de uma nação moderna se transforma no exercício de seu reconhecimento. A partir deste momento, a indústria cultural assume sua característica monopolizadora, embalada pelo surgimento de novas maneiras de 110 Para se ter uma amostragem sobre o conteúdo de alguma dessas letras, recomendamos a leitura do capítulo “Lugar Nenhum”, da obra “O mistério do Samba”, onde Hermano Vianna dedica algumas poucas páginas para refletir sobre o processo de inserção do rock brasileiro oitentista. 111 A MPB entra aqui não como um gênero musical estritamente calcado em critérios de orientação estéticomusical. Em sua trajetória extensa e diversa, o gênero MPB abarcou possibilidades criativas múltiplas de maneira que se torna difícil estabelecer uma definição para o termo. Com isso, preferimos admitir a MPB como gênero que, a partir da década de 1960, aparece como um desdobramento dos debates que tentavam pensar sobre o reconhecimento da música popular do Brasil (BAIA, 2007, p.6). 112 É importante deixar claro que esse tipo de compreensão não se mostrava unânime para muitos daqueles que também presenciaram o surgimento do BRock na década de 1980. Hermano Vianna destaca algumas declarações de articulistas, autoridades religiosas e artistas que desqualificavam a ascensão deste movimento acusando-o de desviar a atenção da juventude brasileira para nossa própria cultura e dos problemas vigentes no país; ou interpretando o mesmo como um novo entrave ao consumo de formas autênticas e prova maior de que a sobreposição dos valores culturais estrangeiros. (1995, p.134 - 135) 124 produção, consumo e divulgação da música, que escapam ao controle dos grandes veículos. Contudo, esse processo de descentralização não barra nem enfraquece a entrada de gêneros musicais estrangeiros, de modo que o cenário musical brasileiro toma formas bem mais diversificadas. Como representação da pluralidade que se instala, temos o exemplo do rap e do funk, que aparecem como dois gêneros incumbidos de materializar as novas propostas para o mercado fonográfico brasileiro, conseguindo, finalmente, romper com o conservadorismo que o BRock ainda trazia como herança da MPB construída ainda década de 1960. Eles surgem como “expressões próprias das camadas sociais tradicionalmente subalternas” presentes nas periferias de nosso país e de todo mundo. Através desses exemplos que bem extraem a essência dos anos 90, Morelli compreende a época como o exato momento em que ocorre nitidamente a “quebra do pacto social nacional”, pois seus articuladores “dão as costas a tradição, como se não compartilhassem experiência social alguma com os demais segmentos sociais e musicais do país” (MORELLI, 2008, p.95). Todavia, não se trata necessariamente de uma oposição consciente aos movimentos anteriores, mas da realização de um tipo distinto de ruptura – como a que o movimento tropicalista fez ao buscar uma síntese original entre o cancioneiro nacional e estrangeiro. Dessa maneira, rap e funk surgem a partir de um circuito de produção e consumo distinto, que não se presta a realizar uma reflexão acerca da nossa quase transcendente alegoria da “linha evolutiva” 113 para injetarem sentido ao seu fazer artístico. Essa despreocupação demonstra que outros rumos são tomados para estabelecer um julgamento estético-musical no Brasil, refletindo uma nova conjuntura histórica, em que antigas dicotomias, como nacional x estrangeiro, comercial x popular e mercado x legitimidade, não mais dominam o processo de compreensão dos novos artistas e consumidores da arte. Para encerrar esta argumentação, Morelli analisa: 113 O conceito de linha evolutiva a que nos remetemos faz referência ao termo empregado por Caetano Veloso durante uma entrevista à revista Civilização Brasileira, em 1966. Nessa ocasião, ele pretendia levar à tona a compreensão de um processo dialético em que o campo musical brasileiro deveria buscar suas inovações promovendo um amplo diálogo com as manifestações musicais nacionais posteriores, mas sem abrir mão da intenção de oferecer possibilidades modernas, inovadoras. Contudo, isso não significava a exclusão de influências estrangeiras, consideradas como um artifício igualmente válido para que o novo viesse a surgir. 125 os novos tempos que chegaram atrasados no Brasil nos anos de 1990 não substituíram os critérios da nacionalidade e do engajamento por outros critérios quaisquer que continuassem unificando e hierarquizando o campo da música popular: assim como ocorreu no próprio mercado contemporâneo de música popular, em que a unificação deu lugar a uma segmentação radical, não mais orquestrada pela indústria fonográfica nem por nenhuma outra agência, esse campo se fragmenta, se descentraliza, se des-hierarquiza, e, numa palavra, deixa de ser campo, ao mesmo tempo em que deixamos de ser uma nação que se concebe como culturalmente homogênea (2008, p.96). Uma vez percorridos os caminhos que nos levam a entender o desenvolvimento da indústria cultural em nosso país, fizemos uma reflexão acerca de um quadro mais específico da música brasileira e elaboramos o campo de discussões sobre o qual ambientamos a trajetória do samba e a obra de Bezerra da Silva. Como este artista desenvolveu sua produção artística entre as décadas de 1970 e 2000, temos um vasto campo de referenciais para pensarmos a sua obra, ao mesmo tempo em que refletimos sobre a expansão e fragmentação do mercado ocorrida durante o recorte espaço-temporal de sua carreira, avaliando de que maneira esses momentos ganham vida em suas composições e em outras manifestações de naturezas diversas. Além disso, também temos o interesse em refletir como um artista que surge em meio a um gênero musical fortemente marcado pelo signo da tradição opera a produção de sentidos no interior de sua obra. Para tal, buscamos delinear os diversos contextos em que este conceito de tradição se desenrola no longo caminho que assinala o desenvolvimento do samba enquanto gênero musical. Desta forma, tentamos viabilizar o campo de intersecções que demarcam o que é tradicional ao samba em encontro com a obra desse artista que desenvolve uma carreira em um contexto marcado por diversas transformações, tanto no campo artísticocomercial quanto no campo concernente às questões políticas, sociais e econômicas do Brasil. Diante destas considerações e de uma nova realidade de fragmentação do nosso quadro da musica contemporânea, não queremos dizer que a produção de sentido sobre as obras perca sua validade. Contudo, admitimos a vigência de um leque maior de elementos que fogem da antiga lógica binária de simplificação dos olhares interessados em interpretar as práticas culturais. Dessa maneira, passamos a direcionar nossos olhares para uma breve trajetória do samba, podendo, finalmente, problematizar sobre os possíveis significados oferecidos pelas canções de nosso objeto. 3.3 BEZERRA: NOSSO ÚLTIMO INTERLOCUTOR 126 Ao verificarmos os vários modos pelos quais o campo teórico compreende o sentido de tradição, vemos que é possível analisar a carreira de Bezerra da Silva a partir do enquadramento de alguns elementos que a representam em sua obra. A partir do momento em que a tradição ganha forte sentido aliada à cultura popular, Bezerra se coloca como um representante exemplar de sua força, pois além de ser morador da favela, ele canta para os moradores desta, vistos como os “populares” em sentido cultural e econômico. Nesse sentido, constatamos que o morro serve de cenário para que Bezerra demonstre as situações interpretadas em seu vasto repertório, mesmo porque (como o próprio sambista salienta) os compositores com os quais trabalhou habitam e retratam a favela em suas canções, impregnando nelas os sentidos do universo que as rodeia. Dessa maneira, incorporam o signo da tradição em meio a sua produção, perpetuando as idéias que permeiam o fazer musical do samba. Em consonância com essa perspectiva, destacamos a matéria de Maurício Kubrusly para a revista IstoÉ de 1989 114, em que o jornalista destaca os temas principais retratados nos discos de Bezerra, dizendo que estes sambas trazem assinaturas que as paradas de sucesso desconhecem. Nada de Michaels Sullivans nem de Paulos Massadas. Bezerra entoa obras de Adivinhão da Chatuba e 1000tinho, Barbeirinho do Jacaré e Baianinho Em Cima da Hora, Embratel do Pandeiro e Trambique, Zé Dedão e Jacaré e Popular P. Muitos desses cronistas do Brasil-salário mínimo estão com Bezerra há vários anos – nas capas dos LPs, o mais comum é a foto do Bezerra rodeado por esse time que ele garimpou. A partir de sua fala, vemos a importância dos colaboradores anônimos de Bezerra para o sucesso de sua obra. Isto porque, antes de apontar a equipe de compositores ligados ao intérprete, ele destaca a famosa dupla de compositores – Michael Sullivan e Paulo Massadas – responsável pelo sucesso de canções românticas de grande vendagem e também pela produção de vários discos da apresentadora infantil Xuxa. Ao fazer essas menções, fica claro que, apesar de incógnitos ao panteão de compositores de sucesso, o time de Bezerra é reconhecido pela qualidade de seu trabalho e pela maneira que retratam a vida cotidiana. A partir da citação, vemos como o jornalista distancia a arte concebida por Bezerra da Silva daquela que fabricava artistas “num piscar de olhos”, integrada aos mecanismos da indústria fonográfica brasileira da época. Esse distanciamento é também 114 No país do salário mínimo, IstoÉ Senhor, São Paulo, 28 jun. 1989, p. 112 127 retratado pelo próprio Bezerra nas canções que trabalhamos, quando ele demonstra que os grandes responsáveis pelo seu sucesso são os trabalhadores humildes que não teriam acesso às oportunidades e aos privilégios reservados a outros compositores portadores de uma inserção diferenciada no mercado de discos. Ao explorarmos, mais uma vez, a intertextualidade entre as declarações de Bezerra e suas músicas gravadas, observamos que ele revela a seguinte situação em “Poeta Operário” 115: Poeta, operário e compositor (compositor)/ repórter, cronista de seu dia-a-dia (do seu dia-a-dia)/ Que canta a tristeza e fala a verdade (fala a verdade)/ compondo progresso e também poesia (E que poesia!)/ Pinta o sofrimento maior que o salário/ e nem com talento vê compensação (Isso é que é um povo bom)/ Mesmo passando fome, ao invés da revolta/ faz brotar, no momento, a mais nova canção/ E o poeta é quem vai levando a cruz/ ganha mais quem nada faz, menos ganha quem produz/ Alegrando a multidão, que se embala em euforia/ vai cantando e no refrão, bom humor, filosofia/ Só sucesso não constrói, pois só ganha mixaria/ e o grosso que vai para o bolso do ECAD em bateria (...)/ E na carreira final pra ver a música editada/ o compositor fica mal, mesmo sendo a mais tocada/ Pois com direito autoral/ não vai ter vida folgada/ Os cartolas mamam tudo/ e o compositor fica sem nada! Com esta letra, Bezerra expõe a condição dos compositores que escrevem para ele, demonstrando que estes não têm privilégios na inserção no mundo artístico, mesmo que demonstrem talento. Sendo assim, destaca que os habilidosos “cronistas de seu dia-a-dia” ainda precisam buscar outros ofícios para que garantam sua sobrevivência, o que se justifica pela falta de critério que atribui aos órgãos de regulamentação do mercado fonográfico. Nesse sentido, destaca o ECAD que é denunciado como uma instituição fraudulenta por não conceder ao “poeta operário” as quantias que deveriam premiar a criatividade do compositor. Além de destacar essa manipulação da indústria fonográfica, Bezerra ressalta a insatisfação com a intervenção desta em sua obra, que vai contra os interesses dos autores. Deste modo, percebemos como Bezerra se distancia das vias de consagração da indústria cultural e prima pela manutenção da tradição peculiar ao gênero musical que representa. Para ratificar esse posicionamento, destacamos a matéria “Bezerra da Silva, o cantor das vítimas da sociedade” 116, em que o jornalista Ruy Castro sugere que a arte elaborada pelo intérprete sofre, além da restrição da indústria fonográfica, uma ressalva de natureza social. 115 Bezerra da Silva, Eu não sou santo, BMG Ariola, 1990 116 Bezerra da Silva, o cantor das vítimas da sociedade, Folha da Tarde, São Paulo, 24 de mai. 1985 128 Para tanto, ele destaca, já nas primeiras linhas de seu texto, que “as FMs não lhe dão bola, seus discos não tocam nos apartamentos da classe média e ele não se apresenta em clubes e boates”. Em outra matéria, o jornalista Eduardo Fonseca da Rocha 117 também aponta essa localização marginal da obra de Bezerra da Silva ao dizer que Suas músicas nunca abriram novelas, ele nunca foi convidado para o Domingão do Faustão e sequer ganhou a capa de segundo caderno. Mas as paredes do modesto apartamento do sambista Bezerra da Silva, no bairro de Botafogo, ostentam meia dúzia de discos de ouro e um de platina duplo. Nada mal para quem não conta com a simpatia da mídia. Para Bezerra, é natural. (...) Por não estar pulverizado pelos meios de comunicação, Bezerra consegue saber onde estão seus consumidores: “São os moradores das favelas”. Essa opinião sobre a obra de Bezerra também é ratificada fora dos veículos de comunicação. Nesse sentido, destacamos a fala do músico e compositor Ronaldo Bôscoli, que faz a seguinte consideração sobre o sambista: “Bezerra da Silva é o cara que, fora dos esquemões urbanos e das estratégias mercadológicas, vende muito mais disco que muito baiano enturmado ou muito cabeludo guitarrento” 118. O elogio ao sucesso comercial de Bezerra aparece como situação discrepante no meio musical, já que ele praticamente não é visto nos grandes meios de comunicação. Contudo, essa idéia sobre a exclusão de Bezerra da mídia é superada com sua aparição em grandes veículos de comunicação – inclusive no Domingão do Faustão! – de modo que ele passa a ter mais visibilidade ao longo da carreira. No entanto, neste ponto do trabalho nos concentramos apenas nas referências ao sambista de outrora, afastado dos holofotes e da apreciação de algumas classes sociais. Isto porque essa caracterização coloca Bezerra como um legítimo representante da idéia de uma cultura popular que se assenta nas classes sociais menos privilegiadas, descrito como uma manifestação artística singular, portadora de referenciais que o distinguem como tradicional por não estar ligado à lógica da produção musical de sua época. Desse modo, primamos por alcançar um perfil que é traçado pelo próprio sambista quando ele descreve seu papel artístico, dizendo “Sou um cantor do povão. Canto o dia-a-dia 117 A voz do morro, IstoÉ Senhor, São Paulo, 28 jun. 1989, p. 112 118 Bezerra da Silva e a língua do morro, O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 de jun. 1985 129 dessa gente, as suas dificuldades. Canto a língua deles e é disso que eles gostam” 119. Vemos que além de se declarar cantor do povo e para o povo, Bezerra ainda reforça seu contato com a “gente do morro” por meio do uso de uma linguagem específica que lhes fala diretamente. Sendo assim, ele incorpora à sua obra um outro elemento que singulariza seu trabalho e que, ao se repetir em suas canções, acaba por incorporar um novo tipo de saber. Para realçar a importância desse alicerce na obra do sambista, destacamos uma matéria da revista IstoÉ, de 1987 120, que, ao falar sobre o espaço ganho por sambistas com a ascensão do pagode nos anos 1980, enfatiza o sucesso das carreiras de Zeca Pagodinho e Bezerra da Silva. O texto, assinado por Timóteo Lopes, coloca os dois sambistas no mesmo patamar, argumentando que ambos retomam “uma ginga matreira que até há pouco se encontrava soterrada por modernas avalanchas sonoras” 121. Para obter a chancela de um músico conhecido, a matéria emprega a opinião de Aldir Blanc, que compreende que “eles retomam uma tradição, a elite volta a incorporar em seu palavreado toda uma gíria corrente nos botecos e bocas de fumo de qualquer morro”. Para expressarmos a importância das gírias na obra de Bezerra, destacamos a necessidade de se incorporar uma contracapa ao disco “Alô malandragem, maloca o flagrante!” com o registro de um dicionário de “malandrês” 122, composto por mais de trinta verbetes que explicam várias gírias recorrentes em suas canções. Dentre eles, doze expressões fazem referência aos delatores do morro e às autoridades policiais presentes nas narrativas de suas músicas. O emprego dessa linguagem, que acaba por reafirmar o caráter exclusivo da obra de Bezerra e da produção de seus compositores, levou um grupo de repórteres do jornal O Pasquim 123 a entrevistá-lo sobre o uso das gírias em sua obra. O esclarecimento de Bezerra é dado no seguinte diálogo: CESAR – Esse é o código do morro, do malandro saber com quem tá falando. 119 Ibidem. 120 Na ginga da malandragem, IstoÉ, São Paulo, 3 de jun. 1987. 121 Ibidem 122 Verificar os anexos 123 Era pra eu ter sido ladrão!, Pasquim, Rio de Janeiro, 29 de mai. 1985, p. 12 - 13 130 BEZERRA – Eles falam a gíria, que é uma cultura popular. Assim como os intelectuais têm seu código, os malandros têm o deles. Se eu conversar com um intelectual, ele vai xingar a minha mãe eu vou ficar: “Sim, senhor, sim, senhor”. CESAR – Mas quando é contrário, quando o intelectual sobe o morro, também se dá mal. BEZERRA – É o negócio da senzala. A rapaziada também fez um negócio pra gente falar e você não saber o que é. É assim: O touro foi afastado/ e o elefante no lugar ficou/ uma muvuca de esperto demais/ deu mole e logo dançou/ Eu só sei quando o bicho pega/ o couro come toda hora/ é por isso que vou apertar/ mas não vou acender agora. Você entendeu o que eu falei? TODOS – Não. BEZERRA – Tem uma centena do touro, no jogo do bicho, 281, que era o artigo do tóxico antigamente. Agora é o artigo 12, que é o grupo do elefante. Então o touro foi afastado e ficou o elefante. Uma muvuca de uma de esperto, quer dizer, viu a polícia e foi fumar maconha, dançou. O bicho é a polícia, que arrebenta o cara, o couro come toda. É por isso que vou apertar, mas não vou acender agora. É isso aí. Não tou incentivando ninguém a nada. De maneira bastante aproximada às declarações da entrevista acima, o referido “negócio da senzala” parece ficar melhor explicado quando Bezerra da Silva revisita essa questão no documentário “Onde a coruja dorme” e expõe que: A gíria é uma cultura... negra. A base dela foram os escravos. Eles então quando iam traçando plano de fuga, né?! Quilombo, aquela coisa... Eles aí falavam aquilo em gíria. “Tal hora a gente vai dar um pinote, tal hora...”. Que era para eles não entenderem, entendeu? É justamente hoje o que os intelectuais fazem com a gente. Eles vão pra escola, aprendem “revertério, láconton, látum, borunbundum, data venia...”. Aí chega, fala com você o dia todinho, chama você do que quer, e você não entende nada. E você: “Sim, senhor doutor. Tá bem, doutor. Sim, senhor. Tá, tá, doutor. Sim, senhor. Sim, senhor”. E não sabe o quê que é. Então o quê que a gente faz. A gente também pode conversar com o doutor do mesmo jeito e ele fica o dia todo sentado e não entender nada também! Aí é zero a zero. A partir da reiteração desse tipo de fala, vemos que Bezerra pretende reforçar a idéia de uma tradição ancestral que se perpetua em sua obra. Assim, a gíria dos morros se transforma em simples desdobramento de uma estratégia que teve origem no passado como reação à escravidão e que, em seu tempo, serve para deslocar os intelectualizados das idéias e perspectivas que podiam ser percebidas apenas pelos habitantes do morro, de modo a se colocar como um ícone equivalente a complexidade do conhecimento obtido pelos letrados. Podemos, através das declarações de Bezerra da Silva aproximar suas idéias das questões sobre tradição que surgem tanto na obra de Certeau como na de Hobsbawn. Quanto à sua aproximação do primeiro, vemos que Bezerra incorpora para si as idéias de cultura 131 popular e tradição problematizadas por Certeau ao se mostrar como um cantor do povão – dos morros e das favelas – que usa uma linguagem específica para falar sobre seu universo particular. No que tange aos problemas expostos por Hobsbawn, observamos que Bezerra da Silva, o sambista, na construção de um sentido para as gírias que emprega, inventa uma argumentação de cunho histórica que se relaciona ao desenvolvimento de um processo de exclusão que se origina no tempo dos escravos e se prolonga no cotidiano das populações das favelas. Nessa alusão à uma realidade única, como podemos observar no capítulo anterior, vemos que o próprio Bezerra destaca o fato de interpretarem erroneamente suas canções por não concordarem com as “verdades” que explicita. Dessa maneira, ele se coloca como artista perseguido pela mídia, que o apresenta como “cantor de bandido”, e injustiçado por não receber as devidas compensações financeiras das empresas e corporações da indústria fonográfica. Assim, ele consegue promover sua imagem como a de um artista proveniente de um nicho social marginalizado e que continua a enfrentar o problema da exclusão apesar de todas as conquistas conseqüentes à sua condição de artista. A partir daí, verificamos a sugestão de que o sucesso de Bezerra foi conseguido por meio de estratégias que se desviam dos esquemas montados pela Indústria Cultural, e destacamos de que maneira a busca pela “fonte legítima” do samba, o morro, a escolha pelo partido-alto e as composições de anônimos remontam as antigas formas improvisadas de se fazer samba ao mesmo tempo em que imprimem autenticidade à obra do sambista. Por meio dessas análises, podemos fornecer respostas sobre a obra de Bezerra àqueles que pensam por meio de um jogo de oposições a trajetória da cultura, do samba e do próprio artista. Nesse sentido, podemos destacar a fala do próprio Bezerra para expormos os outros caminhos que vão de encontro a aparência exclusivista da tradição e, consequentemente, da cultura popular. Assim, retomamos o “dicionário de malandrês” para mostrarmos como o guia de verbetes do morro atesta uma cultura singular que pode ser demonstrada em sua sabedoria para outros nichos que desconhecem aquele universo de palavras 124. Isto porque seria ingenuidade pensar que, mesmo direcionada para um público 124 Na matéria “Aí vem o malandro chorão”, escrita pela jornalista Patrícia Paladino, temos um pequeno box intitulado “Gingando nas palavras” em que essa tensão entre popularização e exclusividade do linguajar de Bezerra da Silva fica bastante evidente. De início, o texto apresenta o tema das gírias dizendo que “língua de congo não é pra qualquer um. A começar pela própria definição do que é língua de congo: é a gíria do pessoal do morro, os “da favela” ”. Logo em sequência, noticia que “algumas expressões já extrapolaram o universo do morro e estão tomando de assalto as praias cariocas (...)” (JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 8 out. 1988. Caderno Niterói, p. 7) 132 alvo, a obra do artista não alcançaria outros grupos sociais que consomem os produtos do mercado fonográfico. No que diz respeito à circularidade das produções artísticas no mercado, Bezerra da Silva, em entrevista ao Showlivre.com, atesta que sua arte atravessa barreiras sociais de forma velada, não sendo explicitamente assumida. De maneira mais sucinta, ele explica que: Tem pessoas de elite que são meus fãs e que não diz, né... Eles mandam as empregadas comprar, traz e manda guardar no quarto delas. Na sala não pode ir, é claro. Quando vem visita eles botam “dimipin, tiquipin,” aquele negócio em inglês (...) pra visita ouvir aquilo e tal. Quando a visita vai embora, guarda aquilo, e: “Traz Bezerra, aí!”. Bota lá e o coro come! (DA SILVA, Bezerra da Silva no Urbano – Arquivo Radar Showlivre.com 2003, Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=5lmwVJWn_Yc> Acesso em: 12 jul. 2009.) Um outro ponto que destacamos aqui para revelar a idéia de fluidez entre tradição e indústria cultural é o reconhecimento do samba como gênero musical possuidor de várias nuances que tramitam entre os dois posicionamentos. Desse modo, destacamos como Bezerra da Silva, que alcança notoriedade em pleno processo de popularização do pagode (década de 1980), faz questão de se posicionar como cantor de partido-alto, em oposição ao novo estilo musical, esclarecendo que não era pagodeiro, pois esta nomeação não condizia com o gênero musical que interpretava. Bezerra dizia que: Pagode não existe. Pagodeiro é tua avó, é a tua família. Eu brigo e provo que não sou pagodeiro. Só existe o pagode como rótulo mercadológico para vender disco. Como música é uma mentira. Isso é uma mentira. Eu provo no Instituto Nacional de Música, com o curso que fiz. Pagode é reunião de escravo na senzala. Pagode não é música. É até pejorativo, pra esculachar a gente. Isso não é gênero de nada. Você pode chegar no Instituto e ver que não tem registrado esse gênero. Por que que pagode é coisa só de crioulo? O gênero que a gente leva chama-se partido alto. É samba. Quando eu cheguei aqui em 1945 isso tudo já existia e ninguém chamava de pagode. Nem sou pioneiro ou “rei do pagode”, porque a rapaziada do morro já faz isso há muito tempo. (DA SILVA, Bezerra. Olha o Bezerra aí, gente!, O Globo. 15 mai. 1988. Caderno Dois) Essa fala nos permite, mais uma vez, reconhecer a evocação de uma ancestralidade inerente à sua prática artística e também perceber que o pagode era visto como um estilo musical identificável pelo uso de formas específicas de se fazer samba e por abarcar um claro grupo de artistas. Todavia, retomando as últimas décadas da trajetória do samba (expostas no capítulo inicial), percebemos como o termo “pagode” sofreu uma ressignificação 133 que veio a descrever um número mais abrangente de artistas que, vistos de forma negativa pela crítica musical, que surgiram na década de 1990, promovendo maior impacto comercial. Nesse segundo momento, a declaração de Bezerra da Silva sobre o pagode não prima pela diferenciação dos estilos e nem ataca a presença de um sub-gênero, mas é cautelosa, pois ele prefere evitar os mesmos ataques já realizados pelos críticos. Dessa maneira, em entrevista concedida ao escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva 125, ele faz a seguinte consideração: BEZERRA – Não existe esse papo. MARCELO – Que papo? BEZERRA – Que fulano é ruim, é bom... MARCELO – Quem disse isso? BEZERRA – O sol nasceu para todos, todos os colegas são bons. Cada um tratando de si. Eu acredito que o meio está para todo mundo. Graças a Deus, muitos colegas estão fazendo sucesso. Um sambista carrega bandeira do samba. (...) BEZERRA – O sucesso depende muito de cada um, cada um tem seu gênero. Se o samba está bem, de modo geral, está todo mundo bem, compadre. (...) BEZERRA – Gravo a realidade do povo faminto e marginalizado. Cada um entende de um jeito. O importante é vender. Artista bom é aquele que vende, segundo o mercado(...) Mesmo negando as diferenças e aceitando o sucesso comercial como indicativo de qualidade, percebemos que a aparição do pagode tem consequências maiores sobre a obra de Bezerra da Silva, pois esta passa a ser reconhecida como“samba do mais puro samba” 126, “pagode do morro” 127,”samba partideiro e de raiz” 128, “turma do samba bom” 129 e “samba que vem com raiz” 130. Essas manifestações acabam por reforçar a perspectiva de que Bezerra ingressa uma cultura tradicional, apartada de outras interferências que deturpam sua origem 125 Malandro por malandro, Folha de São Paulo, São Paulo, 08 dez. 2000 126 Novo CD de Bezerra da Silva é samba do mais puro samba, Folha da Tarde, São Paulo, 21 ago. 1997 127 Bezerra da Silva mostra que é ponta firme ao vivo, Folha de São Paulo, São Paulo, 15 mai. 2000 128 Malandro por malandro, Folha de São Paulo, São Paulo, 08 dez. 2000 129 Malandragem está exata, Folha de São Paulo, São Paulo, 12 dez. 2000 130 Samba que vem com raiz, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 ago. 2003, Caderno B 134 popular. Assim, o intérprete se coloca como mantenedor da tradição e opositor dos esquemas da indústria cultura, configurando como uma novidade que só se reconhece assim por ir contra as práticas que determinam a carreira artística da grande maioria dos músicos, intérpretes e cantores. Contudo, a nomeação de Bezerra como artista que recupera o passado pode encobrir uma outra faceta sua, que é a de perceber as potencialidades oferecidas pelo mercado do entretenimento. Isto porque ele extrapolou o limite de suas canções para expor suas opiniões, deixando-nos uma extensa gama de documentos que alcançam um significativo número de manifestações em meios de comunicação. Além disso, ele se destaca como produto artístico inovador ao dialogar com demandas estéticas e culturais que acabam por singularizá-lo, sendo elogiado em resenhas e reportagens que o tem como tema. Como exemplo disto, recuperamos o diálogo proposto entre Renato Ortiz e Rita de Cássia Lahoz Morelli em que o primeiro delineia o amadurecimento da indústria do entretenimento e a preferência por gêneros internacionais que se desencadeia entre as décadas de 1970 e 1980. No contexto levantado por Ortiz vemos que Bezerra da Silva aparece como uma novidade se o considerarmos capaz de superar a tendência controladora do mercado e de inserir temas sociais e políticos em suas canções por meio de denúncias e críticas veementes. A novidade se concebe também no fato de Bezerra alcançar boas vendagens no mercado fonográfico mesmo que não tenha sido acompanhado pelos agentes da indústria cultural que costumam promover a carreira de artistas de sucesso. Desse modo, ele abre espaço para um panorama histórico sobre o sucesso do protesto e da exposição da marginalidade no meio musical, obtendo reconhecimento pelo seu caminho alternativo. Nesse sentido, destacamos uma resenha não assinada de 1987 131, defensora de que “o protesto de Bezerra da Silva ocupa um espaço que já foi dos compositores do CPC e dos festivais. Faz política popular sem intermediação intelectual, nem ideologia de limites definidos”. A comparação pode ser entendida se lembrarmos que Bezerra também teve problemas com a censura após o lançamento do disco “Justiça Social”, pois os órgãos de controle oficial proibiram a execução pública das faixas “São Murungar” e “A Semente”. Assim, percebemos como o sambista passa a ser visto, por muitos críticos e apreciadores, como um sambista que também adere ao nicho das chamadas “canções de protesto”.Mais uma vez discordante, ele refuta esse tipo de apropriação, dizendo: “Não chamo minha música de 131 Protesto e humor no “sambandido”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 abr. 1988 135 protesto. Se tudo o que acontece é verdade, não pode ser protesto. É uma carta de esclarecimentos” 132. Por meio das declarações de Bezerra, percebemos como ele tenta se esquivar das demais rotulações que ele poderia vir a ter no meio musical. Contudo, não podemos deixar de lado a importância de sua obra para a estética do cenário musical brasileiro entre as décadas de 1960 e 1970, já que seu ritmo acaba por promover uma vinculação com outros gêneros musicais contemporâneos ao seu partido-alto, como o BRock da década de 1980 e o rap na década de 1990. No que diz respeito ao encontro de Bezerra e o público roqueiro, destacamos a fala do escritor e jornalista Arthur Dapieve que comenta que “até roqueiro gosta do sambista Bezerra da Silva. Afinal, ao contrário do que rosnam os sectários, o ritmos não são incompatíveis (...)” 133. Para o crítico musical Tárik de Souza, essa possibilidade de aproximação aparece manifestada por neologismos e terminologias híbirdas que viriam indicar a quebra de limites entre o samba e o rock. Em 1991, ele chama as canções de Bezerra de “sambandido hardcore” 134; no ano seguinte, resenhando o disco “Presidente caô caô”, ele sintetiza a obra se referindo ao seu “enredo heavy metal” 135. O uso dessas explicações aparece depois que a banda brasileira de rock RPM, em 1988, convida Bezerra da Silva para uma participação no álbum “Quatro coiotes” 136 com a gravação da faixa “O teu futuro espelha essa grandeza”. De acordo com o antropólogo Hermano Vianna, a ascensão do rock no Brasil indicava uma clara referência ao prestígio dos gêneros internacionais que dominavam as rádios do país em detrimento da música brasileira, que perdia cada vez mais seu espaço. Nesse sentido, o rock era visto como bem cultural moderno que, vindo do estrangeiro, fazia oposição ao samba, visto há muito como símbolo de tradição e nacionalismo. Em meio a esse contexto, podemos entender o porquê do grupo RPM ter tido o cuidado de gravar, antes da execução da música, uma espécie de depoimento que explicava a idéia de convidar Bezerra da Silva para a participação especial. Segundo o depoimento do vocalista Paulo Ricardo: 132 Novo CD de Bezerra da Silva é samba do mais puro samba, Folha da Tarde, São Paulo, 21 ago. 1997 133 O sambista redentor, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02 jul. 1990, Caderno B, p. 6 134 Bezerra, partideiro da pesada, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 jul. 1991, Caderno B, p.4 135 Bombardeio de protestos num disco áspero, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 out. 1992 136 RPM, Quatro coiotes, CBS, 1988 136 Ela [a canção] passa por vários gêneros e, de repente, não se fecha em nenhum deles, né?! Mas... tem um lado de samba, né?! Mais explícito em uma das partes que me levou a pensar nessa coisa, né?! Como... quais seriam os pontos de contato mesmo entre o rock e o samba? E você vê que o ponto principal é no lado marginal, no lado rebelde, no lado inquieto, no lado de representar, sabe, uma espécie de grito, né... de uma determinada classe. No rock sejam os jovens, né?! Assim... generalizando e no samba toda uma coisa negra... ambas de fundo social nítido. E o Bezerra é um cara que é super rock’n’roll. Apesar de ser um cara de samba, ele diz umas coisas. Sabe... tipo... “puseram maisena no meu pó”e “plantaram uma semente no meu quintal, cresceu um tremendo matagal”, “chegou a patame e levou todo mundo pra averiguação”, que coloca muito bem o dia-a-dia do brasileiro... Sabe? A convivência do brasileiro com todo esse lado de páginas policiais. E o Bezerra, aceitando, também mostrou pra gente que não tem o menor preconceito, como se acredita. Como ele confirmou, e realmente acontece, do pessoal de samba contra o pessoal de rock. Ele tem uma riqueza no coloquial dele que é uma coisa quase que antropológica. Do ponto de vista que representa toda uma cultura, né?!... Que é fascinante e super original. (...) Uma coisa de malandro, uma interpretação sempre... Sabe, não é uma coisa propriamente musical, de um intérprete de belas canções, mas uma identidade muito do malandro, dessa coisa. É o tipo de crítica que a gente tá mais interessado hoje... a maneira de se fazer a crítica, com humor, com um determinado senso de conseguir sobreviver... Que é bem típico do brasileiro, mais do que aquela coisa óbvia da canção de protesto tradicional. O reconhecimento dessa identificação acaba por demonstrar que Bezerra da Silva se aproxima do BRock tanto pela mesma época em que ganham espaço, tanto pelas críticas que ambos promovem. Ao longo de sua carreira, a aproximação com bandas de rock se tornou cada vez mais recorrente para Bezerra, a ponto a ser registrado em algumas reportagens. Em uma extensa matéria no Caderno B do Jornal do Brasil, o jornalista Silvio Essinger abriu um pequeno box que recupera essa aproximação com o texto “O sambista que o rock reverencia” 137. Rapidamente, o jornalista destaca que, além do RPM, outras bandas como Barão Vermelho, Planet Hemp, Virgulóides e O Rappa também gravaram com Bezerra da Silva ou realizaram covers de suas canções. Na mesma matéria, Guto Goffi, baterista do Barão Vermelho, diz que Bezerra tinha “(...) uma atitude rock’n’ roll” e ainda revela acreditar que o público da banda “curte esse elemento transgressor que o Bezerra tem”. Por sua vez, Marcelo D2, então vocalista da banda Planet Hemp, elogia as canções de Bezerra da Silva como uma escola que o ensinou a “falar sem papas na língua”. No que diz respeito ao sucesso do sambista, Falcão, vocalista da banda O Rappa, elogia o fato de Bezerra da Silva conseguir “um monte de discos de ouro falando o que queria falar”. Por meio dessas declarações, percebemos como Bezerra é bem acolhido pelos roqueiros brasileiros, que conseguem se mirar nele e enxergar em sua obra elementos que coincidem com a música que produzem. 137 O sambista que o rock reverencia, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 ago. 1997. 137 Essa possibilidade também é admitida por Bezerra da Silva quando ele faz a seguinte equiparação: “O que eles escrevem também é a realidade deles. Não vem com essa de meu amor nem de beijei tua boca. Eles dizem a mesma coisa que eu digo, só que com outra linguagem (...)” 138. Contudo, no ano seguinte, talvez se mostrando insatisfeito com sua projeção artística, certa vez, quando perguntado se as parcerias com os roqueiros ajudam na sua projeção artística, disse que “Talvez a eles. A mim nada. É como o cara dizer que vai dar uma força para a Portela, para o Império. Quem vai pegar força é ele. Mas não vou dizer isso, quando o D2 e o Barão Vermelho me chamam, eu vou na amizade.” 139 Desentendimentos a parte, fica claro que, na discussão levantada sobre indústria cultural brasileira, vemos Bezerra sendo reverenciado como artista que interrompe a tradição existente no afastamento daqueles que denunciam e aqueles que vivem as mazelas do cotidiano. Sendo assim, sua obra e seu sucesso comercial se colocam diante de um novo bem cultural que promove debates sinceros sobre os problemas sofridos pelos brasileiros do morro por meio da voz de um igual que canta as questões próprias da sua origem social. Dessa maneira, Bezerra não encontra problemas em cantar para e pelas massas, e acaba por se colocar como um artista que integra a imagem de um artista popular, à prática de um gênero musical reconhecidamente nacional e à exposição dos problemas históricos do país 140. Por meio desta expressão, Bezerra da Silva, além de se portar como cantor que rompe com as formas naturais de protesto e do próprio samba, é também visto como uma personagem da música brasileira cuja referência é bastante relevante para a geração de artistas que surge, a partir de 1990, com a popularização do rap brasileiro. Isto porque os jovens que ingressam esse tipo de manifestação artística vêem no sambista uma maneira direta e clara de falar sobre os problemas da sociedade e protestar contra as crises políticas e econômicas do país. No que diz respeito ao surgimento do rap e do movimento hip-hop no contexto da música nacional, a consolidação destes gêneros – assim como do samba de Bezerra em tempos anteriores – representa um amadurecimento da indústria cultural brasileira. 138 “Não tenho nada de polêmico”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 ago. 1997 139 “Não sei, não vi, não conheço”, Folha de São Paulo, São Paulo, 04 set. 1998 140 Essa possibilidade de rompimento pode ser traçada em uma crítica musical de 1991, quando o jornalista Mauro Ferreira descreve as letras do disco “Partideiro da Pesada” como sendo “crônicas sarcásticas do cotidiano das favelas e morros, escritas por gente que convive de fato com a miséria e a violência e não por quem protesta contra toda a opressão social como mero espectador (caso de nove entre dez roqueiros)” (A malandragem repete a gíria, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 jul. 1991). 138 Perspectiva esta que vai de encontro ao que pensa Ortiz quando imagina que a expansão do gosto pelo internacional seria a projeção mais plausível ao cenário musical do país. Ao contrário do que imaginava, a existência dos gêneros musicais estrangeiros foi extremamente importante para que os artistas brasileiros buscassem novos elementos para incorporarem em suas produções. Desse modo, destacamos a experiência do próprio Bezerra da Silva, que experimentou essa fusão ao “mandar” um rap na versão reagge de “Candidato Caô Caô” 141 realizada no álbum inaugural da banda O Rappa. A partir do momento em que existe a promoção do encontro entre as vertentes nacionais e estrangeiras da música, buscamos várias considerações que apontam para o fato do sucesso de Bezerra da Silva e entre elas encontramos o reconhecimento dos rappers, que assim como o sambista, pretendem também realizar a crônica dos lugares e personagens marginalizados, dando-lhes voz. Assim, temos valorizadas novamente as temáticas há muito apontadas por Bezerra e percebemos os entremeios de sua obra com a dos novos grupos em ascenção. Nesse sentido, destacamos, em comparação muito breve, um dos mais conhecidos raps nacionais, Diário de um detento, do grupo Racionais MC’s, que revela em sua narrativa a exploração de um lugar tantas vezes mencionado nas canções de Bezerra – a prisão – , fazendo com que o grupo consiga, assim como o sambista, alcançar significativa venda de discos 142. O crítico musical Tárik de Souza, além de promover a aproximação de Bezerra como o rock nacional, relata, num segundo momento 143, a importância do sambista também para o rap. Extrapolando o cenário musical brasileiro, ele chega a acreditar que, talvez por uma curiosa coincidência que valoriza a riqueza de seu próprio trabalho (no caso, analisar álbuns musicais), “Bezerra antecipava-se ao gangsta rap americano, disseminado a partir dos [anos de] [19]80 suas loas à vida turbulenta e marginal (...)”. Comparação semelhante é realizada no já tão comentado documentário “Onde a coruja dorme”, quando Marcelo D2 diz que Bezerra da Silva 141 O Rappa, O Rappa, Warner Music, 1994 142 Falando sobre um encontro com os Racionais MC’s, Bezerra da Silva disse que tirou fotos, conversou com os integrantes do grupo e chegou à impressão de que eles lhe tomavam como “um pai do gênero”. (“Não sei, não vi, não conheço”, Folha de São Paulo, São Paulo, 04 set. 1998) 143 Choro por um malandro, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 jan. 2005 139 “é o que James Brown foi para o rappers americanos (...) Acho que aqui no Brasil ele é um dos músicos mais respeitados dentro da cena hip hop (...) Acho que se você for citar de dez rappers... de dez rappers os dez rappers vão falar [que] Bezerra da Silva é o músico brasileiro que influenciou ele.” Através dessas falas podemos reconhecer o valor da obra de Bezerra para o cenário musical e intelectual brasileiro, já que, ao mesmo tempo em que é colocado como representante de uma cultura popular-tradicional, ele não se restringe ao seu segmento social de origem. A ambigüidade do artista está em promover o samba de partido-alto – que fala sobre os morros, sob a voz de um malandro conhecedor de um complicado universo de gírias – ao mesmo tempo em que discute o papel exercido pela Indústria Cultural, alegando como justo o ganho material sob o fazer artístico. Por meio do impasse que resolve, verificamos que Bezerra se aproxima de outros artistas que se influenciam pelas opções sonoras trazidas pelos gêneros musicais estrangeiros. No jogo destes elementos, ele chega a se enquadrar como o signo de uma cultura tradicional que se mostra ainda persistente, mas derruba esse entendimento sobre seu personagem ao inventar justificativas históricas para o uso de gírias e para a preocupação constante com o morro e com as demais populações marginalizadas. Desse modo, ao invés de incorporar para si uma noção de “cultura de resistência” ou nacionalismo exacerbado, Bezerra da Silva oferece espaço para tratar de temas atuais e refletir sobre os ditames da indústria cultural. Para ele, o sucesso comercial e o bem-estar financeiro não implicavam na necessária exclusão dos temas e signos tradicionais que evocava e que também garantiam o reconhecimento da crítica e do público. A seu ver, a capacidade de alcançar o sucesso estava diretamente ligada à utilização de uma arte que se punha verdadeira por simplesmente se aproximar da vida – sua ou dos compositores. Além disso, Bezerra acreditava que a sua formação musical ampla e privilegiada também tinha sido indispensável para sua entrada no mercado fonográfico na condição de artista. No que diz respeito à maneira pela qual encarou a fama, percebemos que, apesar das várias reclamações de exclusão no meio musical, Bezerra não se portou como ícone de uma cultura fechada ou marginal. Ele aceitava expor sua imagem e obra em vários meios de comunicação, transformando cada uma dessas oportunidades em esclarecimentos e promoção de sua arte para o maior número de pessoas. Por meio dessas atitudes, vemos que, mesmo acreditando na força das dicotomias sociais, o sambista abriu espaço para dialogar com 140 repórteres, cineastas, músicos, autoridades, críticos e fãs que também integravam a compreensão de sua obra. Para tanto, Bezerra se mostrava sempre interado sobre o que acontecia ao redor de sua arte, de maneira que seus depoimentos e suas canções sempre mantiveram um caráter relevante de atualidade. Nesse sentido, Bezerra foi largamente elogiado, pois retratava questões de ordem social, política e econômica na condição de um igual que também viveu aquele corolário de situações. O artista rompia com antigos dilemas e demonstrava que não era preciso ser letrado para retratar temas políticos e entender sobre os problemas da população para conduzir uma expressão artística. Por esta postura, não por acaso, foi ovacionado por outros artistas de outras gerações que reconheceram seu empenho e se manifestaram em acordo com a identidade de sua obra. Para terminar, ressaltamos que Bezerra da Silva, como um meio de se pensar os conceitos da cultura, expôs que a existência de vários pensamentos e realidades em uma mesma sociedade não pode impedir que haja o reconhecimento de um diálogo intenso que não se encerra na simples oposição de forças, nem em prol de uma tradição genuína ou de deturpações dos meios que conduzem a divulgação da arte contemporânea. Nesse sentido, verificamos que Bezerra traz consigo inúmeras possibilidades interpretativas que carrega na sua vida e obra, de modo a atestar a pertinência da canção que vaidosamente cantou sobre si: “É esse aí que é o homem”! 141 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante da tentativa de analisarmos a obra de Bezerra da Silva nos deparamos e flertamos com várias formas de tratar, estudar e entender nosso objeto. Sendo assim, ao percorrermos o caminho da busca pela compreensão dos significados que giram em torno da obra do sambista, nos vimos perante uma série de possibilidades acadêmicas que nos mostrava as diferentes maneiras pela qual nosso estudo poderia ser empreendido. Retomando a sensação do primeiro encontro com a obra do artista, lembramos que fomos tomados pela instigante impressão de que Bezerra da Silva despertava elementos corriqueiramente ligados a toda uma tradição do samba. Dessa maneira, nos focamos naquela figura que se vestia e se portava como malandro, amealhando um vasto número de canções que caracterizavam as situações relacionadas a esse típico personagem do morro. Com a impressão de que ele cantava sobre si mesmo, foi rápida a decisão de estudá-lo a partir de suas músicas, pois não restava dúvida que a capacidade interpretativa de sua obra estava acompanhada pela autoria do que era cantado. Assim que tivemos maior contato com sua carreira, descobrimos, com bastante espanto e surpresa, que Bezerra da Silva não era o autor de suas canções, mas um intérprete das letras de um “time de compositores” dos morros. Esse primeiro desnudamento fez com que vislumbrássemos outras possibilidades no estudo de sua obra, pois pensávamos que um malandro estaria sempre encoberto por máscaras que escondiam sua real faceta, de modo que não poderíamos enquadrá-lo em uma única definição. Paralelamente, ainda nos questionávamos sobre o incrível sucesso obtido pelo sambista em plena década de 1980, quando o rock brasileiro e outros gêneros musicais surgiam como novidades aparentemente distantes das experiências do já reconhecido samba-símbolo-nacional. Justamente nesse ponto em que tantos contrastes aparecem é que optamos por estudar a indústria cultural e a tradição como conceitos norteadores do sentido de uma discussão sobre o samba no mercado fonográfico moderno e verificamos como se dá a vida e a obra de um sambista marcado por esta mesma tensão. Para tanto, tivemos a preocupação de delimitar um debate que pudesse apresentar o parecer de relevantes pensadores sobre os sentidos de tradição e indústria cultural. No que tange à tradição, verificamos que a maior parte dos debates se concentrava em duras críticas que, geralmente, denunciavam o aspecto empobrecedor do emprego deste 142 conceito. Assim, vimos que a tradição enquanto conceito aparecia em vários contextos com intenção de perpetuar uma maneira de se enxergar o passado ou transgredir as compreensões variadas sobre os objetos inseridos na História. A partir dessa constatação, pudemos expandir nossa compreensão sobre tradição e confrontá-la com outros conceitos que também trabalham as impressões do passado, como o “costume” e a “tradição inventada”, trazidos por Eric Hobsbawm. Desta forma, acabamos por perceber que inventadas ou desenvolvidas naturalmente, as tradições não podem ser seccionadas entre o que pretende ser verdadeiro e o que é falso. E, deslocando este conhecimento para a análise da obra de Bezerra da Silva, percebemos a aplicação desta idéia ao notarmos que ao mesmo tempo em que ele reinterpreta a figura do malandro, mostrando que a antiga idéia de aversão ao ócio não se aplica ao personagem que canta em seus sambas, ele coloca que alguns elementos de seus sambas, como a gíria, são frutos de um hábito ancestral supostamente advindo dos tempos de escravidão. Ao entendermos a relação que se traça tanto na obra de Bezerra como na própria trajetória do samba, vimos que os dados tradicionais não poderiam se isolar sob uma única explicação, de modo que nos empenhamos a investigar como esse gênero musical pôde assumir diferentes formas com o passar das décadas do século XX. Assim, tratamos de observar de que maneira ocorre a transição entre o samba excluído da cena musical brasileira e aquele que se torna produto cultural moderno, configurando como valoroso nicho da formação da identidade cultural do país, dominando, por muito tempo, o espaço dos maiores canais de entretenimento tupiniquins. Diante desta análise, pudemos destacar outros posicionamentos adotados pelo samba, de maneira a delinear um eficiente leque de questões que dialogam com a obra de Bezerra da Silva, permitindo-nos ver quais signos tradicionais do estilo estiveram em contato com a produção do artista. Além deste contraponto, nosso interesse também se pautou na observação da ligação do samba ao desenvolvimento da indústria cultural brasileira e também na discussão de como este gênero musical serviu como intermediador de várias questões relacionadas aos destinos da cultura nacional. Nesse sentido, relevamos o sucesso de Bezerra da Silva em função da notoriedade alcançada pelos símbolos tradicionais brasileiros ao mesmo tempo em que reconhecemos sua força junto a outros nichos musicais pela incorporação de um vigoroso conjunto de críticas 143 sociais, políticas e econômicas e também pelo realce sobre a malandragem e a vida no morro. Ao cantar sobre repressão policial, corrupção política, miséria, falcatruas religiosas e consumo de drogas, percebemos que Bezerra acabou tendo a sua obra aproximada à proposta de outros artistas que tentavam inserir esse mesmo universo de temas em suas canções. Quando tratamos de indústria cultural, tomamos como ponto de partida o desenvolvimento do binômio arte e engajamento da década de 1960 e a lógica vigente da época – e quebrada por Bezerra – em que o desenvolvimento da indústria cultural implicava na despolitização no campo da cultura. Nesse contexto, pudemos entender a figura de Bezerra como um artista capaz de ir contra a lógica do mercado, rompendo com a necessidade de amparo midiático e focado em denunciar, a seu modo, as mazelas da sociedade que se aproximavam da sua própria história de vida. Por meio dessas reflexões, foi possível equacionarmos a figura de Bezerra da Silva, em resolução ao antigo dilema do nacional-popular, como um sujeito ligado às classes populares, praticante de um tipo de música reconhecidamente “brasileira” que utilizava para colocar em discussão problemas de grande relevância política. No entanto, não pudemos simplificar a vida de nosso objeto à simples vitória da “cultura popular nacional” sobre as antigas polêmicas a ameaçavam, pois Bezerra, mesmo sendo contundente em suas críticas aos órgãos que comandavam o mercado fonográfico nacional, enfatizava que o sucesso comercial era válido e decorrente da certeza da qualidade pessoal do artista. Em nosso estudo, nos deparamos com a felicidade do artista que fazia questão de salientar sua qualidade pela venda dos muitos discos, mas também vimos a decepção do intérprete que julgava não receber as devidas compensações financeiras pelo seu triunfo. Desta maneira, trabalhamos com as contradições de um certo Bezerra da Silva que ao mesmo tempo em que proclamava sua independência das garras da indústria cultural, mostrava-se aberto a conceder entrevistas para jornais, apresentar-se em programas televisivos e protagonizar documentários que pudessem o colocar em evidência e dar o devido destaque para sua carreira e obra. Por meio dessas brechas que encontramos em meio a sua obra e a maneira pela qual ela se confunde com sua vida e pela análise dos vários contrastes que percebemos em suas falas, procuramos salientar que Bezerra se mostrou aberto ao diálogo com outras manifestações musicais contemporâneas à sua carreira. Sendo assim, salientamos as parcerias que fez com os integrantes do BRock e também a grande importância que teve para artistas 144 que trouxeram rap e o hip-hop para o Brasil, configurando como referência pessoal e artística para vários músicos de uma nova geração. Como exemplo para aqueles que começavam a integrar o campo artístico brasileiro, salientamos como Bezerra da Silva era capaz de entender as transformações da música nacional não como uma invasão estrangeira, mas como um caminho natural que levava adiante a música como linguagem universal. E por esta visão tão despreendida, nos fascinamos ao perceber que Bezerra, no reconhecimento e contato com as novas gerações, se colocava cada vez mais como um sucesso a ser prestigiado por outros públicos que acabavam por consumir sua arte. Após percorrermos, através de inúmeros documentos e canções, as peripécias e contradições do artista que nos extasiou desde o primeiro contato, pudemos levantar várias questões sobre a importância de sua vida e obra e refletir sobre a importância destas para o cenário musical brasileiro. Desta maneira, descobrimos que as teimosias e habilidades de um exímio instrumentista que interpretava canções alheias poderiam flertar com a teoria acadêmica, possibilitando um vasto campo de interpretações a cerca das manifestações e debates culturais. Nesse sentido, integramos o universo do samba e o confrontamos com a produção de nosso objeto para descobrirmos de que maneira ambos se adequaram às diferentes interpretações que se transcorreram em suas trajetórias. Com este intuito, descobrimos, nas várias letras, falas e ritmos operados por Bezerra, que nosso objeto de estudo, assumindo a postura do malandro, lançou sua existência estética, política e pessoal de diversas maneiras, “provando e comprovando...” – como traz o título de um de seus discos – “... a sua versatilidade”. 145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel. (Org.) Comunicação e indústria cultural – leituras de análise dos meios de comunicação na sociedade contemporânea e das manifestações da opinião pública, propaganda e cultura de massa nessa sociedade. 3a. ed. São Paulo : Editora Nacional, 1977. 406 p. pp. 287-295. ______. O Fetichismo na Música e a Regressão da audição. In: BENJAMIN, W. Textos escolhidos. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1982. p. 173-199. ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. A indústria cultural - o esclarecimento como mistificação das massas. In: ___. Dialética do esclarecimento fragmentos filosóficos. Trad. 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Participando de “chat” nos primeiros anos da internet no Brasil, em fevereiro de 1999. Bezerra da Silva durante as gravações do documentário “Onde a coruja dorme”. 153 Bezerra da Silva (centro) fotografado junto aos vários compositores que gravou no encarte do disco “Alô malandragem, maloca o flagrante”. Bezerra da Silva encenando o registro de sua “ficha criminal” para mais um de seus discos. 154 Mais uma capa de disco: o descompromisso da mesa de bar junto ao amigo e cantor Genaro. O ambiente boêmio mais uma vez explorado para as fotos de uma matéria, em julho de 1985. Uma de suas últimas aparições, em dezembro de 2003.