Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
3 O Castro do Tintinolho (Guarda, Portugal). Interpretação dos dados arqueológicos como fortificação do período pós-romano Catarina Tente1 Iñaki Martín Viso2 RESUMO O presente trabalho tem por objectivo abordar a problemática do estudo e da interpretação dos sítios de altura que são ocupados durante os séculos que sucedem à queda do Império Romano. Esta discussão parte da análise de um caso particular, que encerra em si mesmo vários problemas na abordagem e na interpretação que este tipo de sítio tem sido alvo. O Castro do Tintinolho é um povoado de altura de grande dimensão que se encontra dotado de um sistema defensivo construído em pedra seca. Apesar de ser conhecido da bibliografia portuguesa desde o século XIX, o mesmo não foi objecto de um estudo abrangente. Os escassos dados actualmente disponíveis contrariam a cronologia protohistória que tem sido atribuída a este sítio e apontam uma ocupação balizada entre os séculos V a VII, momento que terá assumido uma função estruturadora do território do alto Mondego (Guarda, Portugal). PALAVRAS CHAVE: Castro, Lugar central, Tremisses, Cerâmica estampilhada, Elites locais NOTAS INTRODUTÓRIAS O período pós-romano no Mediterrâneo ocidental foi marcado por profundas transformações na paisagem rural. A falência das antigas villae, o 1 Membro integrado do IAP (Instituto de Arqueologia e Paleociências das Universidades Nova de Lisboa e do Algarve), Professora Auxiliar de Arqueologia do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL. Av. Berna 26C, 1069-061 Lisboa, Portugal. catarina. tente@gmail.com. 2 Membro do grupo de investigação ATAEMHIS (Antigüedad Tardía y Alta Edad Media en Hispania), membro colaborador do IAP, Professor Titular de História Medieval da Universidade de Salamanca, Departamento de História Medieval, Moderna e Contemporânea, C/ Cervantes s/n 38002 Salamanca, España. viso@usal.es aparecimento, pelo menos em algumas regiões, de uma rede de aldeias e de novos espaços eclesiásticos são algumas das mudanças registadas. Não são, porém, as únicas. Efectivamente há dois outros fenómenos que se inserem na temática deste volume: a ocupação dos espaços de altura e o surgimento de novos «lugares centrais», a partir dos quais se exerceria alguma hierarquia sobre o território (BROGIOLO, CHAVARRÍA ARNAU, 2005: 76-77). Apesar das fontes escritas se centrarem sobretudo em outros aspectos, referem, por diversas ocasiões os sítios de altura, que denominam de castella ou castra e sublinham a importância que estes teriam no território peninsular. Na Crónica de Hidácio, por exemplo, é referido que teria sido a partir dos castella tutiora que os habitantes da Gallaecia (ou mais especificamente as elites hispanas) teriam organizado, por volta de 430, uma eficaz resistência ao poder suevo. Este autor menciona ainda um sítio em particular, Coviacense castrum (Valencia de don Juan, província de León) considerando-o como um centro de poder3. Também na obra de João de Bíclaro se podem encontrar referências a estes sítios de altura, mais precisamente quando narra como Leovigildo atacou as ciuitates atque castella da Oróspeda (Serra de Jaén)4. Um dos aspectos interessantes desta descrição reside no facto do autor colocar os centros fortificados de altura no mesmo nível das cidades, focos privilegiados do poder em época romana. Outras menções documentais poderiam ser aqui recordadas mas julgamos que estes dois exemplos ilustram como as escassas fontes escri3 Hyd., 81 e 179. Utilizou-se a edição de BURGESS, 1993. 4 Bicl, IX, 2. Utilizou-se a edição de MOMMSEN, 1894. 58 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO tas existentes para este período, documentam este tipo de sítios e lhes atribuem um papel relevante na organização do território, sobretudo, onde não há importantes cidades. É, por isso, significativo que para o território de Emerita (provavelmente a a principal urbe hispânica à época) não haja evidências textuais destes castella, que estão, efectivamente, ausentes em Vitas Sanctorum Patrum Emeritensium. A ocupação dos sítios de altura tem igualmente sido revelada pelo registo arqueológico. Desde os anos 80 e 90 do século passado, vários estudos permitiram detectar este movimento ascendente denominado de «alcantilamento» (emperchement), que tem vindo a ser relacionado com a reorganização das estruturas sociais e com a crescente importância dos espaços produtivos considerados «marginais» do ponto de vista da lógica produtiva romana (REYNOLDS, 1993; GUTIÉRREZ LLORET, 1996: 308-309; GÓMEZ BECERRA, 1998: 467-471; MARTÍN CIVANTOS, 2007). Todavia, a ocupação dos espaços de altitude comporta realidades diferenciadas que incluem desde pequenos lugares situados a grandes altitudes, possivelmente espaços de cariz rural (JIMÉNEZ PUERTAS, 2002) até lugares dotados de importantes sistemas defensivos que podem, inclusive, estar associados a edif ícios com forte simbologia como são as igrejas (SCHNEIDER, 2005)5. Partindo desta pluralidade de funções e significados o conceito de povoamento «alcantilado» deve ser relativizado. Efectivamente, o ponto fulcral neste fenómeno não é a ocupação em si dos espaços de altura, mas sim os processos sociais, económicos e políticos que explicam, caso a caso, a escolha destes lugares (WICKHAM, 2002). Por outras palavras, nem todas as ocupações têm a mesma amplitude e significado, ainda que aparentemente todas respondam às mudanças provocadas pelo colapso do sistema romano e aos mecanismos de adaptação –resiliência– das sociedades locais. Tais transformações têm múltiplas dimensões, contudo, face ao tema que nos ocupa, interessa destacar três: a desarticulação das elites supra-regionais que tinham como característica o facto de desfrutarem de um património fundiário que se distribuía por toda a bacia do Mediterrâneo; a reorientação das elites locais perante o desaparecimento de um estado poderoso que intervinha na actividade local; e, por último, a ideia expressada por Wickham (2005), de que há uma tendência para que os proprietários das terras cedessem a gestão directa das mesmas aos camponeses, favorecendo assim o incremento da capacidade de acção social autónoma do campesinato. Destes pontos de vista, cremos, que se entende melhor o fenómeno da ocupação dos sítios de altura. Mas que tipo de ocupação se trata? Se cingirmos esta análise ao centro oeste peninsular –grosso modo à área sudeste da meseta do Douro e à Beira interior portuguesa– encontram-se várias referências a sítios que partilham características semelhantes: a existência de dispositivos defensivos ainda que, por vezes, sejam erigidos com recurso a técnicas construtivas pouco elaboradas; a localização topográfica dominante, a partir da qual se controlam os vales ou áreas de passagem; e a presença de materiais arqueológicos significativos, como, por exemplo, a cerâmica estampilhada e as «pizarras» numerais. Num texto conservado numa «pizarra» escrita, de cronologia visigoda chega-se a referir especificamente uma série de castros localizados no vale do Tormes (MARTÍN VISO, 2008b). Não obstante termos hoje a noção da existência e da importância territorial e social que este tipo de sítio encerra, as referências bibliográficas disponíveis remontam fundamentalmente à primeira metade do século XX, uma vez que não têm sido desenvolvidas intervenções arqueológicas de fundo nestes sítios que permitam aprofundar o conhecimento destas realidades. As excepções felizmente existem e nesse sentido deve-se destacar os trabalhos realizados em Cabeza de Navasangil e em El Cristo de San Esteban. Assim, face a esta situação, não é possível termos ideias mais concretas sobre as sequências ocupacionais destes sítios, o tipo de espólio e de estruturas que os compõe ou da sua integração no território6. A falta de conhecimento mais concreto é a responsável pelo facto de muitos destes sítios serem sistematicamente considerados como romanos e/ou proto-históricos. Em alguns casos estas interpretações erróneas levaram, inclusive, a uma certa manipulação dos dados existentes. Certamente que este volume, onde se reúne vários estudos em desenvolvimento (p.e. o de El Castillón) impulsionará investigação nestas temáticas o que, a 5 Para a bacia do Douro, esta pluralidade foi revelada por CHAVARRÍA ARNAU, 2004-2005: 190-191. 6 Problemas já abordados por ESCALONA, 2006: 189. O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… 59 Figura 3.1. Mapa de integração da Bacia do Alto Mondego. tempo, permitirá o desmontar progressivo destas ideias pré-concebidas. O trabalho que aqui apresentamos tem por objectivo abordar novas perspectivas de análise a esta temática através do caso particular do Castro do Tintinolho. Pretende-se igualmente, deste modo, também destacar o escasso interesse que este período cronológico, em geral, e este fenómeno, em particular, tem gerado na investigação arqueológica portuguesa, que, infelizmente, é ainda mais vincada que no caso espanhol. Esta situação aliada ao facto de os nossos países se encontrarem tradicionalmente de costas voltadas um para o outro, explica, em grande parte, porque se conhecem tantas referências a possíveis castella pós-romanos na área ocidental salmantina e escassas menções na Beira interior portuguesa7, o que não faz qualquer sentido uma vez que a fronteira actual (criada nos séculos XII e XIII) separa artificialmente uma vivência comum para os períodos tardo-antigo e alto-medieval. Espera7 A abundância de eventuais casos no espaço salmantino está, todavia, condicionada pela ausência de intervenções rigorosas e sistemáticas, situação que leva a que alguns autores sejam cautelosos quanto às conclusões que estes dados parciais permitem esboçar. ARIÑO GIL, 2006: 330-333. mos assim com este texto lançar uma semente na colaboração entre investigadores e projectos de investigação de ambos os países. A escolha do caso particular que aqui se analisa não é casual. Trata-se de um exemplo que contém em si alguns dos problemas que se têm vindo a assinalar. Para além disso, é um sítio relativamente bem conhecido na bibliografia arqueológica desde o século XIX e que se encontra classificado desde 1910 como Monumento Nacional. Não obstante a importância que lhe foi atribuída durante mais de 100 anos, não foi alvo de uma intervenção arqueológica sistemática e alargada. 1. O CASO DE ESTUDO: CASTRO DO TINTINOLHO O Castro do Tintinolho é um dos sítios arqueológicos mais marcantes na paisagem do Alto Mondego. Trata-se de um povoado de altura, que se insere no rebordo ocidental do planalto da Guarda, que evidencia um claro destaque paisagístico (Fig. 3.1, 3.2) que lhe permite controlar visualmente grande parte do troço superior daquele do rio Mondego. 60 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO Figura 3.2. Localização geográfica do sítio sobre excerto da Carta Militar de Portugal escala 1:25000, n.º 192. O território do Alto Mondego é um espaço relativamente circunscrito, marcado pela presença do Mondego e pela Serra da Estrela, que é um prolongamento da Cordilheira Central que separa as mesetas do Douro e do Tejo (DAVEAU, RIBEIRO 1978: 263). A região encontra-se limitada a Sul pela presença do rio Zêzere, afluente do Tejo, que nasce igualmente na Serra da Estrela, a Norte e a Este, os limites da bacia estão definidos pela bacia hidrográfica do Douro (Fig. 3.3). Este território é dominado geologicamente pelos granitos e pelos xistos, que se encontram muitas vezes expostos e que tornam os solos ácidos. Esta é uma limitação significativa já que esta característica dos solos não permite uma boa preservação da matéria orgânica. Devido à des- florestação de origem antrópica e a consequente forte erosão a que os solos foram sujeitos durante milénios, os terrenos com melhor aptidão agrícola e mais profundos concentram-se fundamentalmente nas áreas baixas, no sopé dos montes e nos vales. Na montanha, a rocha de base está exposta e os solos são quase inexistentes ou muito pouco espessos. A peculiar degradação e erosão do granito modelou os denominados «castelos de rochas», que são um dos marcos paisagísticos deste território. Face a estas características os vales assumem um papel preponderante na estruturação do povoamento alto-medieval, funcionando como pólos atractores da actividade humana. Actualmente, em termos administrativos, o Castro do Tintinholho encontra-se no vértice das O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… Figura 3.3. Planta do Castro do Tintinolho publicada por João de Almeida (1943). 61 freguesias de Alvendre, Cavadoude e Faia, pertencentes ao actual concelho da Guarda (Fig. 3.4, coordenadas UTM: N44930, E6451). Não obstante situar-se a uma altitude de 920 m, o monte escolhido para localizar este sítio não é o mais elevado do rebordo montanhoso onde se localiza. Todavia, o espaço de implantação escolhido possui excelentes condições naturais de defesa. Nas imediações do castro passa um troço de calçada que faria a ligação entre o rebordo do planalto da Guarda e o vale do Mondego, que atravessa, para daí se dirigir aos montes setentrionais da Serra da Estrela, atravessando a portela natural existente entre as actuais aldeias de Aldeia Viçosa e Rapa. O troço entre o rio Mondego e a meia encosta do cabeço onde se implante o Tintinolho encontra-se ainda bem conservado. Contudo, apesar de ser sistematicamente relacionada com o castro, não é clara a cronologia da mesma, nem se pode afirmar, para já, que seria contemporânea da ocupação daquele povoado fortificado. Tal como já referido o Castro do Tintinolho é conhecido desde o século XIX. A primeira referência pode ser encontrada na Expedição Scientífica à Serra da Estrella em 1881, onde Martins Sarmento publica algumas gravuras do sítio (Fig. 3.5) e escreve que o Tintinolho havia sido alvo de uma escavação efectuada por um engenheiro da cidade da Guarda onde foi recolhida, entre outros objectos, uma moeda de D. João I. Descreve da seguinte forma este sítio: «Tintinolho fica a noroeste e a 7 kilometros da Guarda. Do lado do norte são evidentes os vestigios de tres ordens de muralhas Figura 3.4. Ilustração do Castro do Tintinolho publicada na Expedição Scientifica à Serra da Es trella em 1881 (SARMENTO, 1883: Est. II). 62 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO Figura 3.5. Vista geral, de Sudeste, do povoado. (...), e no planalto vestigios de construções antigas. Todo o sitio é ermo agora; a parte mais elevada, pelo escarpado e fragoso, não é cultivada. (...) Fóra da terceira muralha, a noroeste estende-se uma ampla chapada, que parece artificial, comparada Figura 3.6. Vista geral do povoado, em que é visível o talude da muralha. com a orographia local; em toda ella são vulgares fragmentos de ceramica, telha com rebordo, etc. No fundo da vertente corre o Mondego» (SARMENTO, 1883: 11). João de Almeida dedica-lhe igualmente uma atenção particular quando publica, em 1943, a sua obra Roteiro dos Monumentos de Arquitectura Militar do Concelho da Guarda. Aí descreve um complexo sistema defensivo (em que considera, tal como Martins Sarmento, haver três linhas de muralhas compostas por grandes blocos graníticos assentes a seco), publica uma planta do sistema defensivo (Fig. 3.6) e também alguns esquiços destas muralhas. Refere ainda que existiam no interior do povoado três casas circulares, cobertas com grandes lajes. A propósito da importância deste sítio, escreve que este terá sido um dos locais conquistados por Júlio César, em meados do século I a.C., e que foi reocupado durante o processo de conquista da monarquia astur-leonesa, tendo sido tomado pelo próprio Fernando, o Magno em meados do século XI. Para este mesmo autor por aqui teria pas- O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… sado D. Afonso Henriques, e teria sido seu filho, D. Sancho I, a mandar reconstruir as suas muralhas. Ora não há qualquer sustentação científica para estas afirmações que devem ser vistas como tentativa do autor integrar este local na linha da frente dos nos principais acontecimentos históricos ocorridos entre a Antiguidade e a Reconquista. A referência aos tremisses é feita pela primeira vez por Barral i Altet (1976: 183) que, porém, proporciona informação pouco detalhada sobre os mesmos. É Adriano Vasco Rodrigues que em 1977 os descreve com mais pormenor mencionando que as moedas foram cunhadas em Celo e Caesaragusta nos reinados de Sisebuto (612-621) e de Suintila (621-631) (RODRIGUES, 1977). Apesar das diversas referências a este sítio arqueológico desde 1883, só em 2007 se realizaram aqui escavações arqueológicas. As mesmas foram efectuadas a abrigo do projecto Patrimonium: Estudo e Valorização do Património do Concelho da Guarda, sob a responsabilidade de Vítor Pereira e António Carvalho, ambos ligados à Câmara Municipal da Guarda. O sítio havia sido anteriormente publicado por Vítor Pereira que o considerou como um povoado proto-histórico romanizado (2003) e, infelizmente, foi nessa perspectiva interpretativa que foi elaborado o projecto no qual se enquadraram as diversas sondagens ali realizadas8. A informação que aqui se reproduz e reinterpreta provém dos relatórios disponibilizados pelos arqueólogos que levaram a cabo a intervenção acima referida. Foram assim realizadas duas campanhas de escavação (de Agosto a Outubro de 2007 e de Julho a Setembro de 2008) onde se 8 No projecto de investigação vocacionado para o estudo da Alta Idade Média apresentado ao extinto Instituto Português de Arqueologia em 2006 da autoria da C. Tente e no projecto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal) em 2006 intitulado O Alto Mondego: terra de fronteira entre Cristãos e Muçulmanos (PTDC/HAH/69806/2006), estava prevista a intervenção no Castro do Tintinolho. Todavia, por erro administrativo do Instituto de Gestão do Património Arqueológico e Arquitectónico (instituição que sucedeu ao Instituto Português de Arqueologia a partir de Maio 2007), foram autorizados a esta equipa trabalhos de escavação, contrariando a prioridade científica da signatária que já havia visto as suas pretensões de intervenção no local autorizadas e financiadas. Embora alertada para a situação anómala, a Direcção da instituição de tutela optou por manter a decisão tomada, tendo assim o sítio sido intervencionado como se de um povoado castrejo da II Idade do Ferro se tratasse. 63 efectuaram 13 sondagens, num total de 263 m2 intervencionados. Na primeira campanha foram efectuadas as seguintes: – Sondagem 1 (5 × 5 m): localizada numa plataforma a Oeste, no interior do povoado; – Sondagem 2 (2 × 10 m): implantada na plataforma central; – Sondagem 3 (2 × 10 m): abrange a plataforma Sul; – Sondagem 4 (4 × 11 m): situada a Nordeste, junto do que se pensava ser a entrada do povoado, mas que se veio a comprovar ser apenas uma destruição do pano de muralha; – Sondagem 5 (2 × 12 m): implantada na plataforma Oeste virada ao vale do Mondego; – Sondagem 6 (2 × 4 m): localizada na área Sul, junto do pano de muralha; – Sondagem 7 (4 × 7,5 m): corresponde ao alargamento para Sul da sondagem 6. Na segunda campanha foram intervencionadas as restantes: – Sondagem 8 (4 × 4 m): situada junto da sondagem 1; – Sondagem 9 (4 × 6 m): corresponde ao alargamento para Oeste da sondagem 8; – Sondagem 10 (4 × 6 m): corresponde ao alargamento para Oeste da sondagem 9; – Sondagem 11 (4 × 4 m): corresponde ao alargamento para Este da sondagem 10; – Sondagem 12 (4 × 6 m): localizada no centro do povoado, próxima da sondagem 2; – Sondagem 13 (3 × 3 m): implantada próxima das sondagens 5 e 8. Infelizmente não se foi disponibilizada nos relatórios qualquer planta geral da estação arqueológica com a localização das sondagens realizadas, que permitisse entender a correlação espacial das mesmas e destas com os panos de muralha visíveis. As sondagens 4 e 7 permitiram caracterizar as fundações da muralha, tendo-se verificado que, pelo menos nesse troço, a mesma apenas possui um paramento, virado para o lado externo, encostando, pelo lado interno, directamente na rocha de base. Os relatórios não são esclarecedores quanto à largura que esta estrutura apresenta nem referem se a rocha de base foi escavada para encostar a muralha ou se esta aproveitou algum desnível natural. Para além da muralha foram ainda reconhecidas duas estruturas. A «estrutura A» (sondagens 8, 9, 10 e 11) situa-se na plataforma Oeste, virada 64 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO ao vale, e apresenta uma planta rectangular com 8,50 m de comprimento por 4,50 m de largura (Fig. 3.9). Os seus muros, que possuem larguras que oscilam entre 0,98 m e os 0,61 m, foram construídos em pedra seca. A face das pedras que constituía a parte interna da estrutura apresentavam algum afeiçoamento, contrariamente, as pedras que foram dispostas viradas para a parte externa não apresentavam este mesmo cuidado, o que levou os escavadores a considerar que a estrutura estivesse coberta por terra do lado de fora (PEREIRA, CARVALHO, 2009: 39). O seu interior estaria lajeado. Segundo os arqueólogos que escavaram o sítio, esta estrutura «corresponderia a uma estrutura de carácter monumental –alguma torre–, que serviria de vigília e controle do vale do Mondego, sobre o qual teria domínio visual privilegiado?» (PEREIRA, CARVALHO, 2009: 39). Da «estrutura B» apenas se identificou um muro (sondagem 13) constituído por pedra de pequena e média dimensão aparelhada e assente directamente sobre o saibro. Tal como a «estrutura A», este muro estava associado a materiais de construção e a alguma cerâmica brunida e incisa. Não é, contudo, clara a natureza desta correlação estratigráfica, já que, segundo os autores, os materiais não estariam in situ. Em algumas sondagens apareceram fossas, nomeadamente nas sondagens onde se detectou a «estrutura A», mas os relatórios são omissos quanto à extensão e profundidade das mesmas, não avançando com nenhuma interpretação funcional para estas estruturas negativas. Á superf ície os vestígios de artefactos são muito escassos e confinam-se a alguns fragmentos rolados de cerâmica comum e algumas escórias de ferro. É de destacar que na parte superior do povoado, junto ao marco geodésico, se observa uma concentração significativa destas escórias, o que parece indicar um espaço preferencial para a actividade metalúrgica, o que é um forte indicador do carácter excepcional deste sítio à escala do vale do alto Mondego. Apesar deste indício, este espaço não foi alvo de qualquer sondagem. As escavações realizadas em 2007 e 2008 permitiram identificar material arqueológico abundante e variado, mas que provém, na sua maioria, de contextos secundários resultantes de processos pós-deposicionais. Isto é o que se depreende da leitura dos relatórios, escrevendo os seus autores que «excluindo os fragmentos cerâmicos re- colhidos nas fossas, nenhum outro material foi encontrado no seu contexto original» (PEREIRA, CARVALHO, 2008: 36). Todavia, os relatórios não fornecem informação sobre o grau de rolamento dos materiais ou sobre o índice de colagens entre fragmentos cerâmicos que ajudasse a estabelecer o grau de conservação das várias unidades estratigráficas identificadas. Nos relatórios é igualmente mencionado que, na totalidade das duas campanhas se recolheram 7248 fragmentos cerâmicos, sendo 284 fragmentos de bordo, 51 bases, 16 asas e 17 fragmentos de bojo decorados. A cerâmica é, na sua larga maioria, fabricada a torno e cozida em ambientes oxidantes, apresentando uma pasta com abundantes elementos não plásticos. Entre os fragmentos decorados, foram identificados na sondagem 7 quatro fragmentos de cerâmica estampilhada com matriz triangular e circular com cruciforme central (Fig. 3.9); nas sondagens 2 e 3 recolheram-se quatro fragmentos de cerâmica brunida; na sondagem 12 foi reconhecido um fragmento de cerâmica pintada a vermelho; e foram ainda recolhidos diversos fragmentos de cerâmica incisa (sondagens 12 e 13) e dois fragmentos com cordão digitado (sondagem 10). Identificaram-se igualmente fragmentos de cerâmica de armazenagem (tipo dolia) nas sondagens 10, 12 e 13, e um jarro de fabrico manual decorado em toda a superfície exterior com puncionamentos (Fig. 3.8). O mesmo foi encontrado junto ao muro C, localizado na sondagem 9. Este achado é raro, não só porque a peça estava praticamente inteira, mas porque a mesma não se integra facilmente no leque das produções cerâmicas identificadas no Castro do Tintinolho ou em outros sítios altomedievais da região. A sua atribuição cronológica é dif ícil por falta de elementos que datem o contexto de proveniência e por carência de paralelos directos. Contudo, parece tratar-se de uma produção local, estando esta forma (jarro) abundantemente representada em contextos de cronologia visigoda e alto-medieval. Na sondagem 10 foi ainda exumado, um pequeno fragmento de terra sigillata clara D proveniente da limpeza de superf ície do solo, logo, portanto, sem contexto arqueológico preciso. O mesmo, a avaliar pela fotografia disponibilizada no relatório de 2008, encontra-se muito erodido. Para além da olaria, foram identificados dois cossoiros, sendo um deles decorado com impressões circulares, e cinco malhas de jogo (ou tam- O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… 65 Figura 3.8. Vista geral do interior do povoado. Figura 3.9. Planta da estrutura A (sondagens 8, 9, 10 e 11) desenhos dos serviços camarários da Câmara Municipal da Guarda (in: PEREIRA, CARVALHO, 2009). pas?). Em todas as sondagens realizadas foram identificados materiais de construção, nomeadamente cerâmica de cobertura (imbrices e tegulae) e alguns latere. Nas sondagens identificaram-se também vários artefactos em metal e algumas escórias de ferro. Entre os objectos de ferro, destaca-se um botão (sondagem 9), uma argola de bronze (sondagem 12), dois objectos de ferro de função indeterminada e um fusilhão de f íbula em bronze decorado com incisões (sondagem 8). Também se recolheram quatro moedas em bronze: uma na sondagem 2, provavelmente um Ae2 de Graciano e as restantes, cuja o estado de conservação impede a sua leitura (sondagens 10 e 13). Este espólio numismático, apesar de mal conservado, aponta uma cronologia do século IV ou, provavelmente, posterior. Em pedra também se identificaram diversos artefactos: alguns elementos de mó, um pequeno núcleo de sílex (sondagem 10), um denticulado em quartzito (sondagem 13) e seixos, provavelmente afiadores (sondagens 10 e 12). Em relação aos elementos de moagem, a informação disponível nos relatórios é escassa quanto ao grau de conservação e ao tipo dos mesmos, informação que seria fundamental neste tipo de contexto. Foram ainda identificados 12 fragmentos de vidro nas sondagens 3 e 12. Face aos dados disponíveis apenas podemos começar a delinear um horizonte cronológico para a ocupação do Castro do Tintinolho. Os únicos elementos identificados durante as escavações de 2007 e 2008 passíveis de atribuição cro- nológica mais aproximada são as moedas9. Ainda assim os exemplares recolhidos são moedas cunhadas no século IV, que poderão ter estado em circulação ainda nos séculos V a VII, pois é muito comum serem encontradas destas moedas em contextos arqueológicos do período suevo-visigodo (MAROT, 2000-01), e, inclusive, em contextos emirais, tal como ocorre em El Tolmo de Minateda (DOMÉNECH BELDA, GUTIÉRREZ LLORET, 2006). A estas moedas devem-se acrescentam-se ainda os tremisses, que datam da pri9 No âmbito do projecto O Alto Mondego: terra de fronteira entre Cristãos e Muçulmanos (PTDC/HAH/69806/ 2006), foi solicitada aos responsáveis da escavação amostras de carvões que pudessem ser estudadas antracologicamente e que servissem como amostras passíveis de datação pelo radiocarbono. Em 2009 foi disponibilizada uma amostra proveniente da unidade [5] da sondagem 3 e que corresponde a uma depressão na rocha preenchida por «camada de terras de coloração cinzenta escura, granulosa, com concentração de pedras de pequena dimensão», sendo que «estas depressões [...] não possuem uma forma regular e não julgamos tratarem-se resultantes da acção humana» (PEREIRA, CARVALHO, 2008: 29-30). Não se tratava aparentemente de um contexto de proveniência seguro, e a análise dos carvões veio a demonstrar isso mesmo, estando referido no relatório da análise antracológica que «o contexto utilitário –fonte de energia (lareiras, fornos), ou matéria prima (construção de estruturas, artefactos, ...)– não é vislumbrável nesta abordagem e terá que ser equacionado num âmbito mais alargado, quer através do alagamento da investigação quer da contextualização tafonómica relativa dos conjuntos lenhosos analisados» (QUEIROZ, 2009: 5). Por estes motivos, não se procedeu a nenhuma datação de radiocarbono sobre esta amostra específica. 66 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO meira metade do século VII (reinados de Sisebuto e Suintila), mas cuja proveniência exacta é desconhecida. É ainda de considerar o fragmento de Terra sigillata clara D que aponta igualmente para uma cronologia dos séculos IV/V10 e os quatro fragmentos de cerâmica estampilhada, que os arqueólogos responsáveis pela intervenção consideraram como sendo datáveis da II Idade do Ferro (Fig. 3.9). Contudo, se compararmos estas cerâmicas com as peças também estampilhadas datadas entre os séculos V e VII que têm vindo a ser conhecidas em vários sítios do vale espanhol do Douro (LARRÉN et al., 2003), particularmente nas províncias de Salamanca (CERRILLO, 1976) e de Segóvia (JUAN TOVAR, BLANCO GARCÍA, 1997), é muito provável que o seu contexto cronológico seja efectivamente o mesmo que o dos tremisses do Tintonolho. É ainda de destacar que as cerâmicas estampilhadas provenientes de contextos seguros datados da Idade do Ferro na cidade de Viseu (ALMEIDA et alii, 2007: fig. 12) são formalmente diferentes dos identificados no Castro do Tintinolho. É provável que a cerâmica estampilhada dos séculos V a VII correspondessem às melhores cerâmicas que então eram produzidas nestes contextos, constituindo-se como um bem de prestígio. A sua presença é uma constante em certos sítios de altura, tal como em El Cortinal de San Juan (Salvatierra de Tormes, província de Salamanca) (CERRILLO, 1976; ARIÑO, 2011) ou em Cabeza de Navasangil (LARRÉN et alii, 2003: 283-284)11, onde se destacam peças com decoração estampilhada de grande qualidade. Efectivamente a sua presença é muito escassa noutro tipo de sítios arqueológicos. A recente tese de doutoramento de Sarah Dahi Elena (2010) parece reflectir isto mesmo12. Esta autora analisa o espólio cerâmico proveniente de vários sítios localizados nos vales e planaltos da província de Salamanca que não se encontravam dotados de qualquer sistema defensivo (provavelmente locais que se relacionam com ocupações camponesas) e verifica que este tipo de cerâmicas é escasso ou mesmo inexistente. Contrariamente, observou a sua presença mais signifi10 Este fragmento poderá eventualmente remontar ao século III, contudo, o seu mau estado de conservação não possibilita muito mais considerações cronológicas. 11 Veja-se igualmente o trabalho de Jesús Caballero neste mesmo volume. 12 Queremos agradecer a Sarah Dahi ter-nos dado acesso à sua tese de doutoramento que está ainda inédita. cativa nos sítios de altura. Ora esta constatação conjugada com o facto de se tratar de bens de prestígio sugere que era preferencialmente nos sítios de altura que as aristocracias se instalavam (DAHI ELENA, 2010; ARIÑO, 2011)13. O Castro do Tintinolho efectivamente reúne esses dois pressupostos: é um sítio de altura e foram identificadas estas cerâmicas estampilhadas. Para além da abundante cerâmica comum que não apresenta decoração que ali foi recolhida14, foi reconhecido igualmente um fragmento de cerâmica pintada a vermelho. Esta encontra paralelos na região do alto Mondego, nomeadamente na cerâmica pintada a vermelho identificada nos níveis datados dos séculos IV/V do Monte Aljão (TENTE, 2010: 78-80) e nos níveis tardo-antigos de Algodres (PINTO, 2008). No que se refere aos materiais de construção comummente considerados romanos (tegulae e latere) é de salientar que é conhecida a sua utilização ou reutilização em contextos de cronologias romana tardia e sueva-visigoda15. Quanto ao do sistema defensivo, as escavações não permitiram igualmente obter dados claros para a cronologia da sua fundação. É sobejamente conhecida em toda a Península Ibérica a fundação ou a reocupação de espaços de altura entre os séculos V a VII. Em muitos casos, estas «novas» fortificações utilizam materiais romanos di13 Esta situação é também observável na área de Segóvia onde este tipo de cerâmicas se concentra fundamentalmente em espaços urbanos e sítios de altura (JUAN TOVAR e BLANCO GARCÍA, 1997). 14 Fragmentos que são de dif ícil integração cronológica por provirem, na maioria, de contexto incertos ou mal interpretados ou por estarem muito fragmentados. O facto de não dispormos de contextos seguros na região inviabiliza as comparações. Todavia é fundamental que o estudo da cerâmica comum, que não foi realizado de forma sistemática, seja efectuado pois este é determinante para a continuação da investigação sobre este sítio. Efectivamente a informação sobre este tipo de espólio é importante para que se comece a definir quais as formas maioritárias, se identifiquem eventuais centros produtivos de cariz local ou redes de troca de nível regional. 15 Para além dos materiais cerâmicos que temos vindo a referenciar é de assinalar a presença de um denticulado em quartzito e do núcleo em sílex (peça, aliás, sem paralelo em contexto seguro da Idade do Ferro de Portugal) que sugerem ter havido uma pequena ocupação pré-histórica inespecífica, a qual se encontrará provavelmente desmantelada e erodida, uma vez que não se identificaram contextos claramente atribuíveis a fase tão recuada e os artefactos pré-históricos que ali foram recolhidos são em número escassíssimo. O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… Figura 3.10. Jarro de manufactura manual decorado com puncionamentos identificado na sonda gem 9 (fotografias cedidas por Vítor Pereira). versos tais como lápides funerárias16 ou elementos arquitectónicos, tema aliás tratado neste volume. Tal, aparentemente, não ocorre na muralha do Castro do Tintinolho, todavia, não é inverosímil considerar que este sistema defensivo construído em pedra seca (Fig. 3.10) pudesse ter sido erigido entre os séculos V a VI, uma vez que os únicos dados cronológicos disponíveis e acima abordados apontam precisamente para esta mesma cronologia. Resumindo, os dados actualmente disponíveis para este sítio apontam para uma ocupação que se baliza entre o fim do século IV e o século VIII. Entre os materiais arqueológicos recolhidos não se identificam peças cerâmicas semelhantes às identificadas em contextos arqueológicos datados com segurança dos séculos IX e X na região (TENTE, 2010; TENTE, CARVALHO, s.d). As severas perturbações pós-deposicionais documentadas (trabalhos agrícolas e extracção de pedra), bem como a abordagem científica de que foi alvo, serão os responsáveis pela escassa informação por agora disponível, que não permite tecer grandes considerações sobre as estruturas e o espólio deste povoado. O Castro do Tintinolho assume-se assim como um sítio de altura, que ocupa um espaço com condições naturais de defesa, a que se acresce a construção de pelo menos um recinto em pedra grosseiramente aparelhada que, em alguns troços, ainda conserva vários metros de altu16 Tal sucede, por exemplo, em El Cristo de San Esteban (Muelas del Pan, provincia de. Zamora). DOMÍNGUEZ BOLAÑOS, NUÑO GONZÁLEZ, 2001. 67 Figura 3.11. Fragmentos de cerâmica estampilhada identificados nas escavações (in: PEREIRA, CARVALHO, 2008). Figura 3.7. Pano Nordeste da muralha. ra. A muralha protegeria uma grande área, todavia a sua organização interna é por agora desconhecida (Fig. 3.11)17. Dentro do recinto os arqueólogos responsáveis pelas escavações identificaram uma estrutura quadrangular (Fig. 3.7) que interpretaram como podendo ser uma torre. A ser assim esta deveria pertencer ao sistema «defensivo» e de vigia do sítio, dotando-o de maior visibilidade de fora para dentro e de dentro para fora. O sítio marca a paisagem como nenhum outro sítio o faz no vale do Mondego, sendo esta implantação, vis17 A área efectiva do povoado não é conhecida por não existir qualquer levantamento topográfico do sítio. Os cálculos que se podem fazer com base num ortofotomapa indicam que o povoado apresenta uma forma trapezoidal em que o lado maior mede c. 980 m, o lado menor c. 400 m, sendo a largura de c. 440 m. 68 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO tosa e impositiva, um forte indicador do poder que deste sítio emanava sobre o território que então dominaria. 2. A REGIÃO DO ALTO MONDEGO E OS VESTÍGIOS DA SUA OCUPAÇÃO EM PERÍODO PÓSROMANO O povoamento desta região nos séculos imediatamente posteriores à queda do Império Romano no Ocidente é muito mal conhecida. Tal deve-se apenas em parte à falta de investigação. Efectivamente, as escavações arqueológicas levadas a cabo nos sítios tardo-romanos tem vindo a mostrar que o século IV marca o fim do modelo de povoamento romano, sendo muito raros os casos em que há dados relativos a ocupações posteriores aquela centúria. Tal ocorre no sítio do Monte Aljão, situado no concelho de Gouveia, onde se documentou o abandono no final do século IV do que terá sido uma villa romana (TENTE, 2007 e 2010). Situação semelhante foi identificada em S. Gens, situado no concelho de Celorico da Beira, onde foi escavado um edif ício de carácter rural, cuja funcionalidade ainda não está bem esclarecida. Este terá sido fundado no século I d.C. e é abandonado igualmente no século IV (CARVALHO, 2009; TENTE, 2009a). Também nas escavações do sítio romano da Póvoa do Mileu (Guarda) levadas a cabo por Vítor Pereira não se identificaram materiais ou estruturas posteriores ao século III. Portanto, a informação de que dispomos para a desarticulação das estruturas de povoamento romano na região é ainda escassa e de amplitude cronológica limitada. Para os séculos que sucederam à queda do Império Romano possuímos igualmente escassos dados. A ausência de cidades (a cidade mais próxima é Viseu), que continuavam a ser o eixo privilegiado do poder político central pós-romano, dificultava a implementação de um modelo de controlo directo sobre estes territórios afastados dos centros de poder. Em consequência, nem os bispos18 nem muito menos personagens como os comites ou os duces parecem ter sido agentes 18 É provável pudesse estar integradas na sede episcopal de Veseo, que dista do Castro do Tintinolho cerca de 70 km. Todavia a eficácia do controlo dessa estrutura sobre o vale do ato Mondego não parece ser efectiva uma vez que ainda não se reconheceram locais que pudessem corresponder a uma das paróquias desta diocese. activos nesta zona. Possuímos todavia alguns dados que permitem começar-se a definir uma primeira imagem do que teria sido este território durante o período que nos ocupa. Conhecemos a inscrição funerária da Igreja de Santa Maria de Açores, datada de 666 (BARROCA, 1992)19, que terá sido encontrada durante as obras de construção da igreja matriz de Açores. Nesta aldeia têm vindo a ser identificados vários vestígios20 que indiciam uma importante ocupação romana, consentâneos talvez de uma villa ou de um vicus, bem como várias sepulturas escavadas na rocha e fragmentos de cerâmicas de construção e comum de cronologia tardo-romano e alto-medieval. Infelizmente os níveis arqueológicos de onde provêm estes vestígios encontram-se debaixo da actual aldeia e não foram ainda alvo de qualquer intervenção pelo que, por agora, é impossível perceber se há uma continuidade ocupacional e qual o papel desempenhado por este local durante o século VII, momento em que se manda erigir o epitáfio de Suinthiliuba. Na actual freguesia de Vale de Azares (Celorico da Beira) conhecem-se igualmente vários vestígios arquitectónicos romanos, um silhar decorado com círculos gomados, actualmente integrado na parede da capela de Fonte Arcada (TENTE, 2007: 60-61), bem como dois sarcófagos, sepulturas escavadas na rocha e uma inscrição dedicada a uma divindade local21. A falta de trabalhos de investigação arqueológica e o crescimento dos núcleos populacionais desta freguesia condiciona igualmente quaisquer interpretações sobre a dimensão e a função deste local durante a Tardo-Antiguidade e a Alta Idade Média. Mais a jusante do Mondego conhecem-se outros vestígios que podem ser contemporâneos do Tintinolho. Num local denominado de Freixial/Safail (Vila Nova de Tázem, Gouveia) identificaram-se diversas sepulturas escavadas na rocha, vários fragmentos de cerâmica de construção e cerâmica comum (TENTE, 2007: 19 Trata-se de um epitáfio a Suinthiliuba que faleceu a Nonas de Novembro da Era de 704 (5 de Novembro de 666): + REQVIEVIT. FAMVLA | XPI. IN PACE. SVINTHI | LIVBA. SVB DIE. NON. | NOVENBRES . ERA. | DCCIIII (BARROCA, 1992: 514). 20 Recentemente foi identificada uma ara dedicada a Júpiter (ainda inédita), que estaria num terreno anexo à igreja matriz, onde se encontra inserida a epígrafe datada de 666. Informação pessoal de António Marque, que agradecemos. 21 Ara consagrada a Ama Aracelene (FERREIRA, OSÓRIO, PERESTELO, 2004). O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… 56-57). Daqui provém uma pátera de bronze que diferentes autores atribuem ao século VI (RUSSEL CORTEZ, 1950: 52) ou ao século IX (SOUSA, 1948: 132). A sua leitura também não é consensual, mas quer Martins Sarmento, quer Hübner (Apud RUSSEL CORTEZ, 1950: 61), relacionamna com um bispo de nome Argimirus. A ser assim, este espaço teria tido importância suficiente para estar associado à presença de um indivíduo com um alto cargo na estrutura eclesiástica à Igreja, que, muito provavelmente terá vivido entre os séculos VI ou VII, uma vez que a hipótese da pátera poder datar do século IX não é consentânea com os dados que actualmente conhecemos para os séculos IX e X na região (TENTE, 2010). Efectivamente, apesar de serem escassas as evidências arqueológicas relativas aos séculos IV a VII, as que dispomos actualmente reflectem fundamentalmente a presença de elites nesta região, só assim que pode compreender a pátera do Freixial/Safail e a inscrição funerária dos Açores. As estes indicadores acresce igualmente o aparecimento de duas moedas de ouro de cronologia visigoda na área da actual cidade da Guarda (que dista 4 km em linha recta do Tintinolho), de uma outra em Ademoura, aldeia também situada no actual concelho da Guarda e os dois tremisses provenientes do próprio Castro do Tintinolho (RODRIGUES, 1977; FARIA, 1985 e 1988. Estes dados evidenciam que no eixo do vale, entre a actual barragem do Caldeirão e a aldeia de Açores, se encontraria uma elite de âmbito local22 capaz de possuir moeda e de mandar esculpir inscrições funerárias. É esta elite que teria certamente no Castro do Tintinolho o seu símbolo mais marcante e a forma de facilmente se fazer representar naquele território 3. INTERPRETAÇÃO E LEITURA DOS DADOS Os estudos recentemente realizados sobre o Noroeste peninsular (DÍAZ, 1998; LÓPEZ QUIROGA, 2004) têm vindo a revelar a importância que as estruturas do poder local assumem após o colapso do sistema político romano, definindo-se de novas formas de articulação do poder. Nesta 22 A sua presença encontra-se datada pelo menos do século VII (centúria em que se enquadram quer a inscrição, quer os tremisses) mas não é inverosímil que se possam ter ali instalado no século V ou VI. 69 conjuntura, não se pode ver o reino suevo como uma recriação da estrutura política centralizada e com capacidade de se fazer representar em âmbito local. As intenções de hegemonia política de Réquila e de Requiário foram limitadas e restritas em termos territoriais a outras áreas peninsulares como foi o caso de Emerita. Só depois de derrotados pelos visigodos na batalha de Órbigo (456), é que os suevos se centraram no controlo do território Noroeste. Apesar de em termos gerais o domínio suevo (que se estendeu até 585) ser mal conhecido, os dados disponibilizados pela documentação escrita indiciam que se tratava de uma estrutura política cujo eixo de controlo estava definido pelo triângulo definido por Braccara, Tude e Porto, locais onde se manifestava efectivamente o seu poder (DÍAZ, 2011). Fora destas áreas urbanas, existia uma ampla rede de entidades locais, que aparecem descritas no documento denominado de Parochiale Sueuum. Este consiste numa lista dos bispados do reino, subdivididos em parochiae e pagi, que complementava o texto do concílio de Lugo (569). Por esta mesma altura os reis suevos convertidos ao catolicismo em meados do século VI, acordaram com a Igreja da Gallaecia a utilização das estruturas eclesiásticas como meios de enquadramento político e fiscal das populações submetidas ao seu poder. A existência deste documento permite supor que o poder real não tinha efectivamente capacidade de sustentar uma estrutura administrativa e fiscal unificada, pelo que necessitou das estruturas eclesiásticas para poder exercer o seu poder. Do ponto de vista político no Parochiale Sueuum estão assim representadas as principais unidades locais, vistas da óptica da estrutura eclesiástica (DÍAZ, 1998). Paralelamente, os dados documentais disponíveis para a área de fronteira do reino suevo dão a conhecer a existência de lideranças políticas de âmbito local, que se identificam pela referência a indivíduos denominados de seniores loci ou pela menção a novas identidades identificadas com um nome étnico (p.e. os sappos), que actuariam, entre finais do século V e o segundo terço do VI23, à margem do domínio suevo. Estas elites locais e a sua acção autónoma estão igualmente documentadas através da cunhagem de moedas, que imitam os exemplares imperiais e que ostentam a legenda latina munita ou legendas similares. Es23 Bicl. VII, 5. Veja-se CASTELLANOS, 2008. 70 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO tas são produzidas em determinados centros situados na fronteira do reino (MARTÍN VISO, 2008b: 244-245 e 2011: 222-227). O aparente paradoxo do reino suevo é que sobrevive precisamente porque aceita a autonomia das unidades políticas de âmbito local. A conquista do reino por parte de Leovigildo não implicou uma grande transformação destas realidades políticas. Efectivamente muitas das unidades políticas mencionadas no Parochiale Sueuum foram, em finais do século VI e no primeiro terço do século VII, sedes de ceca, geralmente de expressão limitada. Tal fenómeno parece significar que os reis de Toledo utilizaram igualmente estas unidades políticas de carácter local para se implementarem nos espaços mais periféricos do reino, sem que, todavia, tivessem que criar outras estruturas administrativas. Converteram-nas, assim, em pontes de ligação entre a autoridade central e os poderes locais (DÍAZ, 2004). Com efeito, a presença efectiva do poder visigodo neste sector da bacia do Douro manifestouse de forma intermediada, ou seja, através da mediação das aristocracias locais, cujos horizontes se reduziam a pequenas unidades territoriais e a um património fundiário limitado (CASTELLANOS, 2008; MARTÍN VISO, 2008b). Esta situação deveria ser generalizada nos territórios centro ocidentais da Península Ibérica. A comprovar isso mesmo está o facto de nenhuma das «pizarras» visigodas mencionarem nem cidades, nem personagens como bispos ou detentores de cargos de administrativos sob a tutela do poder central visigodo (MARTÍN VISO, 2008c: 228). A articulação do poder nestas zonas estaria reduzida à iniciativa das elites locais, as quais, exerceriam o seu poder em territórios relativamente limitados. Os recentes estudos que S. Castellanos e I. Martín Viso têm levado a cabo apontam para a importância que os sítios de altura teriam na estruturação do poder local e na relação desse poder com o poder central (CASTELLANOS, MARTÍN VISO, 2005; CASTELLANOS, 2008; MARTÍN VISO, 2008a e 2008b). A moeda de ouro que aparece em alguns destes locais, tal como já assinalado por um de nós (MARTÍN VISO, 2008a), não circularia. Pelo contrário, era antes um instrumento de poder criado para o sistema fiscal. O sistema da fiscalidade não é bem conhecido, mas os dados disponíveis dão a perceber que o mesmo dependeria da capacidade de cobrança dos potentes locais e da relação que estabeleciam com o poder central. Torna-se claro que a posse das moedas de ouro não estava ao alcance da maioria da população e é por isso provável que as elites locais entesourassem as moedas de ouro, podendo um tremis representar em ambientes territoriais como o do alto Mondego um verdadeiro tesouro24. Em um artigo recente, um de nós reviu a informação relativa aos tremisses encontrados no Nordeste da Lusitânia. Nessa ocasião relacionou as moedas com a presença de eventuais potentes, cujo poder assentaria na capacidade de cobrança fiscal. A propósito do Castro do Tintinolho refere-se que os «datos permiten plantear una ocupación específicamente post-romana, que tendría como eje un sitio de altura fortificado con un hábitat asociado (representado por algunos vestigios de construcciones en piedra seca y muchos fragmentos de cerámica de construcción común y escorias), sin que se pueda certificar la presencia de elementos geoestratégicos vinculados al poder central suevo o visigodo» (MARTÍN VISO, 2008a: 188). Regressando passado uns anos a este mesmo sítio e tendo por cenário os dados arqueológicos mais recentes estamos convictos que efectivamente existem alguns «fortes indícios» (ZANINI, 2007) que permitem relacionar este espaço com a presença de elites25. O primeiro é a presença dos tremisses, estes indiciam estar-se perante um espaço dominado por um grupo social que, apesar de possuir um âmbito territorial relativamente circunscrito, em determinados momentos teve a capacidade de se vincular ao poder estatal visigodo. Esta relação assentaria possivelmente no papel se desempenhariam na organização tributária de escala regional e terá permitido a este grupo entesourar objectos de grande prestígio social. Outro indício é a existência da muralha, que provavelmente terá sido erigida em período pósromano. A capacidade de mobilizar população suficiente para construir uma muralha como a do Tintinolho reflecte igualmente a presença de um 24 A sublinhar esta hipótese está o facto de em muitos casos estas moedas não apresentam muitos sinais de terem circulado. Não foi possível localizar o actual paradeiro das moedas provenientes do Castro do Tintinolho, mas observou-se a moeda de Ademoura, actualmente propriedade da Fundação José Carlos Godinho Ferreira de Almeida, tendose verificado que a mesma não apresenta marcas significativas de uso. Agradece-se ao Dr. Manuel Luís, director da Fundação, o acesso à moeda. 25 Uma situação que também parece ocorrer em áreas como a Narbonensis (CONSTANT, 2008) e na área sudlevantina (MENASANCH DE TOBERUELA, 2003: 253-254). O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… grupo social dominante. As muralhas mais do que responder a alguma instabilidade militar, representavam a necessidades desta elite criar um espaço que representasse o seu poder.26. O facto de a implantação do povoado ser extraordinariamente destacada na paisagem abona também para esta interpretação. Esta escolha foi norteada por dois objectivos: ser visto desde o território que controlaria e, simultaneamente ter um acesso facilitado às áreas mais fértil do vale do Mondego. É interessante verificar que esta região onde não parece ter tido uma ocupação romana pujante (não se conhecem grandes villae ou cidades27) venha a assumir um protagonismo e um papel central dentro da lógica de organização territorial do período pós-romano. Esta situação é também detectada em regiões vizinhas a partir dos séculos IV e V (ARIÑO et alii, 2002; BLANCO GONZÁLEZ, 2009; BLANCO GONZÁLEZ et alii, 2009). Este tipo de território é agora o foco de interesse de aristocracias cujos horizontes políticos já não reside nas débeis cidades da região (com excepção provavelmente da Egitania e de Vissaium). Com efeito, é neste contexto que deve ser compreendido o Castro do Tintinolho. Trata-se de um local onde se instalaram elites locais e onde não é evidente a acção directa do poder central suevo e visigodo28. Efectivamente, não é claro que possa corresponder a uma das parrochiae da diocese de Veseo, uma vez que a escassa 26 Nas campanhas de Leovigildo constituem um unicum durante mais de 200 anos e não é evidente que tivesse afectado esta região em concreto. Com efeito não há nenhum dado que indicie que este ou outro sítio de altura similar pudesse ter sido criado ou consolidado para responder a uma violência política continuada. Pelo contrário, normalmente são locais em que a ocupação é mais ou menos prolongada e onde não há, normalmente, evidências da presença de populações militarizadas. 27 Vissaium (Viseu) dista cerca de 70 km e a Egitania está a mais de 100 km. Na cidade da Guarda foram identificados vestígios arqueológicos no Mileu que tem vindo a ser relacionados com uma possível capital de civitas dos Laciensis Transcudani (CARVALHO, 2009). Faz-se contudo a ressalva de que a investigação para o período romano encontra-se também muito pouco desenvolvida e por isso estas afirmações tem apenas como sustentáculo os conhecimentos actuais. 28 Faz algum sentido, neste contexto, perguntar se em outras regiões, onde se tem vindo a identificar exemplos deste tipo de ocupações que foram vinculadas com o poder visigodo, poderia ter havido um fenómeno semelhante, isto é, que tenham desempenhado igualmente um papel de conexão entre a autoridade central e os poderes locais. Um possível exemplo para comparação é o castro de Puig Rom, em Roses (Girona). PALOL, 2004. 71 evidência empírica de que dispomos não revela uma conexão directa com essa cidade, nem sequer os tremisses correspondem a esta ceca. O fenómeno dos novos centros de poder situados em sítios de altura não é um fenómeno particular a esta região, pelo contrário, parece ser o padrão mais frequente na bacia do Douro. Aqui a resposta ao desmantelamento do sistema político romano foi o aparecimento de várias unidades políticas locais desconectadas entre si, que vêm desenhar um novo sistema baseado na fragmentação territorial, onde os sítios de altura, ou pelo menos parte deles, se convertem nos protagonistas de uma estrutura menos centralizada e mais heterogénea (ESCALONA, 2006)29. Os suevos e os visigodos exerceram uma hegemonia política frouxa, que assentou fundamentalmente na aceitação da autonomia das aristocracias locais como contrapartida do reconhecimento da autoridade máxima do rei. Esta manifestava-se sobretudo através da cobrança pontual de impostos. Em consequência, o poder central representava-se nas áreas mais longínquas do seu poder directo através da mediação dos potentes, que, deste modo, participavam na rede política (o que, como vimos, explica a possessão dos tremisses) à escala do reino. Mas como exerceriam estes potentes o seu poder no território que controlariam? E como o haviam obtido? É provável que tenham existido vários mecanismos de ascensão social, alguns já conhecidos, outros ainda por deslindar. Centremo-nos novamente no caso do Castro do Tintinolho. Aqui não é expectável que se tivesse recorrido às soluções usadas nesta época pela Igreja, uma vez que não é conhecida a presença de edif ícios religiosos nem no castro nem nas suas imediações. Os parcos dados actualmente disponíveis também não habilitam a considerar que este local estivesse associado a uma grande propriedade agrária, que pudesse agregar vários trabalhadores e criar excedentes significativos face à restante comunidade. Efectivamente, para já, não se conhecem quaisquer estruturas relacionadas com a actividade de transformação ou de armazenamento de bens agrícolas30 dentro do povoa29 Trata-se de uma situação muito semelhante à detectada por SCHNEIDER, 2007 na Gallia Narbonensis. 30 Neste ponto há que referir que as escavações realizadas no Castro do Tintinolho são muito limitadas em termos de área intervencionada o que deixa em aberto a possibilidade de poder vir a aparecer estruturas deste tipo. 72 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO do. Não é inverosímil, contudo, que o mecanismo possa ter passado pela detenção e controlo da transformação do ferro, uma vez que na zona mais alta do povoado se observam uma concentração elevadíssima de escórias deste metal. Esta hipótese terá de ser confirmada no futuro com o desenvolvimento de trabalhos arqueológicos dirigidos especificamente àquela área do povoado. Uma coisa parece ser certa, estas elites detinham um prestígio sociopolítico e em virtude desse prestígio conseguiam obter trabalho da restante comunidade (só assim se explica a capacidade de erigir as muralhas) e, talvez, alguns tributos em géneros. Este grupo socialmente diferenciado representaria a comunidade e, para além disso, seriam os mediadores entre estas e as instituições mais englobantes como a Igreja e o poder real, com quem negoceiam. O Tintinolho era a representação no território destas elites31 e, em última análise, da própria comunidade. O Castro do Tintinolho, tal como referido, terá sido abandonado no século VII, ou mais tardar no século VIII, o que supõe uma alteração no modelo de ocupação e de representação destas elites. Esta transformação respondeu, sem dúvida, a novos processos sociopolíticos que afectaram toda a região, configurando, nos séculos que mediaram o século VIII e o repovoamento, estes territórios como uma área «sem Estado» (TENTE, 2009b; MARTÍN VISO, 2009). Mas esta é já uma outra história. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA J. de, 1943, Roteiro dos Monumentos de Arquitectura Militar do Concelho da Guarda, Separata de O Instituto 102, Coimbra. ALMEIDA S., SOBRAL DE CARVALHO P., PERPETUO J., FIGUEIRA N., COSTA A., 2007, Estruturas e contextos da Idade do Ferro em Viseu, Al-madan II série 15, pp. 53-59. ARIÑO GIL E., 2006, Modelos de poblamiento rural en la provincia de Salamanca (España) entre la Antigüedad y la Edad Media, Zephyrus LIX, pp. 317-337. ARIÑO GIL E., 2011, El yacimiento de El Cortinal de San Juan (Salvatierra de Tormes) y su contexto arqueológico, en P. C. Díaz e I. Mar31 Um panorama similar foi recentemente traçado para a área astur-cantábrica GUTIÉRREZ GONZÁLEZ, 2010. tín Viso (eds.), Entre el impuesto y la renta: problemas de la fiscalidad tarodantigua y altomedieval, Bari, pp. 251-270. ARIÑO GIL E., RIERA I MORA S., RODRÍGUEZ HERNÁNDEZ J, 2002, De Roma al Medievo. Estructuras de hábitat y evolución del paisaje vegetal en el territorio de Salamanca, Zephyrus LV, pp. 283-309. BARRAL I ALTET X., 1976, La circulation des monnaies suéves et visigotiques. Contribution à l’histoire économique du royaume visigot, Munich. BARROCA M. J., 1992, A inscrição de Sta. Maria de Açores (666). Nova leitura, Revista da Faculdade de Letras. História 2.ª série IX, pp. 507-516. BLANCO GONZÁLEZ A., 2009, Tendencias del uso del suelo en el Valle Amblés (Ávila, España). De la Edad del Hierro al Medievo, Zephyrus LXIII, pp. 155-183. BLANCO GONZÁLEZ A., LÓPEZ SÁEZ J.A., LÓPEZ MERINO L., 2009, Ocupación y uso del territorio en el sector centromeridional de la cuenca del Duero entre la Antigüedad y la Alta Edad Media (siglos I-XI d.C), Archivo Español de Arqueología 82, pp. 275-300. BROGIOLO G. P., CHAVARRÍA ARNAU A., 2005, Aristocrazie e campagne nell’Occidente da Costantino a Carlo Magno, Firenze. BURGESS R. W. (ed.), 1993, The Chronicle of Hydatius and the Consularia Constantinopolitana. Two contemporary accounts of the final years of the Roman Empire, Oxford. CARVALHO P., 2009, Há 2000 anos em Celorico da Beira. Entre as encostas da Estrela e o vale do Mondego ao tempo dos Romanos, Celorico através da Historia, pp. 31-49, Celorico da Beira. CASTELLANOS S., 2008, La construcción del poder político visigodo y los horizontes locales: canales de participación y de hostilidad, en S. Castellanos e I. Martín Viso (eds.), De Roma a los bárbaros. Poder central y horizontes locales en la cuenca del Duero, pp. 145-170, León. CASTELLANOS S., MARTÍN VISO I., 2005, The local articulation of central power in the north of the Iberian Peninsula (500-1000), Early Medieval Europe, 13:1, pp. 1-42. CERRILLO E, 1976, Cerámicas estampilladas de Salvatierra de Tormes (Salamanca). Contribución al estudio de las cerámicas tardorromanas del Valle del Duero, Zephyrus XXVI-XXVII, pp. 455-471. O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… CHAVARRÍA ARNAU A., 2004-05, Romanos y visigodos en el valle del Duero (siglos V-VIII), Lancia 6, pp. 187-204. CONSTANT A., 2008, Fouilles récentes au castrum Vulturaria/Ultréra (Argelès-sur-Mer, Pyrénées-Orientales), en R. Martí (ed.), Fars de l’islam. Antigues alimares d’al-Andalus, pp. 39-55, Barcelona. DAHÍ ELENA S., 2010, Contextos cerámicos de la Antigüedad Tardía y la Alta Edad Media (siglos IV-VIII d.C.) en los asentamientos rurales de la Lusitania septentrional (provincia de Salamanca), Tese de doutoramento apresentada à Universidade de Salamanca doctoral, policopiada, Salamanca. DAVEAU S., RIBEIRO O., 1978, L’ Occupation Humaine de la Serra da Estrela, Separata de Études Géographiques, Bordeaux. DÍAZ P. C., 1998, El Parrochiale Suevum: organización eclesiástica, poder político y poblamiento en la Gallaecia tardoantigua, en J. Alvar (ed.), Homenaje al profesor José María Blázquez, vol. VI, pp. 35-47, Madrid. DÍAZ P. C., 2004, Acuñación monetaria y organización administrativa en la Gallaecia tardoantigua, Zephyrus LVII, pp. 367-375. DÍAZ P. C., 2011, El reino suevo (411-585), Madrid. DOMÉNECH BELDA C., GUTIÉRREZ LLORET S., 2006, Viejas y nuevas monedas en la ciudad emiral de Madinat Iyyuh (El Tolmo de Minateda, Hellín, Albacete), Al-Qantara XXVII-2, pp. 337-374. DOMÍNGUEZ BOLAÑOS A., NUÑO GONZÁLEZ J., 2001, Aspectos militares del castro del Cristo de San Esteban, en Muelas del Pan (Zamora). Un asentamiento en la frontera suevovisigoda, en I. C. Fernandes (coord.), Mil anos de fortificações na Península Ibérica e no Magreb (500-1500), pp. 105-120, Lisboa. DUARTE M. C. L., ALVES J. M. S., 1989, A Vegetação Natural de Casal de Rei - Parque Nacional da Serra da Estrela, Lisboa. ESCALONA J., 2006, Patrones de fragmentación territorial: el fin del mundo romano en la Meseta del Duero, en U. Espinosa Ruiz y S. Castellanos (eds.), Comunidades locales y dinámicas de poder en el norte de la península ibérica durante la Antigüedad Tardía, pp. 165-199, Logroño. FARIA A. M., 1985, Subsídios para um inventário dos achados monetários no distrito da Guarda, Separata de Bibliotecas Arquivos e Museus, 73 Instituto Português do Património Cultural, Lisboa. FERREIRA M. C., OSÓRIO M., PERESTELO M. S., 2004, Ara votiva a Amma de Vale de Azares, Ficheiro epigráfico 77, n.º 347, Coimbra. GÓMEZ BECERRA A., 1998, El poblamiento altomedieval en la costa de Granada, Granada. GUTIÉRREZ GONZÁLEZ J. A., 2010, Poderes locales y cultura material en el área astur-cántabra (ss. VI-VII), en P. Sénac (ed.), Histoire et archéologie des sociétés de la vallée de l’Ebre (VIIe-XIe siècles), pp. 183-206, Toulouse. GUTIÉRREZ LLORET S., 1995, La experiencia arqueológica en el debate sobre las transformaciones del poblamiento altomedieval en el SE de al-Andalus: el caso de Alicante, Murcia y Albacete, en E. Boldrini e R. Francovich (eds.), Acculturazione e mutamenti: Prospettive nell’archeologia medievale del Mediterraneo, pp. 165-189, Firenze. GUTIÉRREZ LLORET S., 1996, La Cora de Tudmīr de la Antigüedad Tardía al mundo islámico. Poblamiento y cultura material, Madrid. JIMÉNEZ PUERTAS M., 2002, El poblamiento del territorio de Loja en la Edad Media, Granada. JUAN TOVAR L. C., BLANCO GARCÍA J. F., 1997, Cerámica común tardorromana, imitación de sigillata, en la Provincia de Segovia, Archivo Español de Arqueologia 70, pp. 171-219. LARRÉN IZQUIERDO H., 1989, Notas sobre cerámica medieval en la Provincia de Zamora, en J. A. Gutiérrez González y R. Bohigas Roldán (eds.), La cerámica medieval en el Norte y Noroeste de la Península Ibérica. Aproximación a su estudio, pp. 261-280, León. LARRÉN IZQUIERDO H., VILLANUEVA ZUBIZARRETA O., CABELLERO J., DOMÍNGUEZ BOLAÑOS A., MISIEGO TEJEDA J.C., MARCOS, G.J., BLANCO GARCÍA J.F., SANZ F.J., MARTÍN M.A., NUÑO GONZÁLEZ J., 2003, Ensayo de sistematización de la cerámica tardoantigua en la cuenca del Duero, en L. Caballero, P. Mateos Cruz y M. Retuerce Velasco (eds.), Cerámicas tardorromanas y altomedievales en la península ibérica. Ruptura y continuidad, pp. 273-306, Madrid. LÓPEZ QUIROGA J., 2004, El final de la Antigüedad en la Gallaecia. La transformación de las estructuras de poblamiento entre Miño y Duero (siglos V al X), La Coruña. MAROT T., 2000-01, La península ibérica en los siglos V-VI: consideraciones sobre provisión, 74 CATARINA TENTE  IÑAKI MARTÍN VISO circulación y usos monetarios, Pyrenae 31-32, pp. 133-160. MARTÍN CIVANTOS J. M.ª, 2007, Poblamiento y territorio medieval en el Zenete (Granada), Granada. MARTÍN VISO I., 2008a, Tremisses y potentes en el Nordeste de Lusitania (siglos VI-VII), Melanges de la Casa Velázquez 38-1, pp. 175-200. MARTÍN VISO I., 2008b, La ordenación del territorio rural y la tributación en el suroeste de la meseta del Duero, siglos VI-VII, en S. Castellanos e I. Martín Viso (eds.), De Roma a los bárbaros. Poder central y horizontes locales en la cuenca del Duero, pp. 227-261, León. MARTÍN VISO I., 2008c, Propriété fonciére et articulation socio-politique au Nord-Est de la Lusitanie (VIe-VIIe siècles), en M. Rouche e B. Dumezil (eds.), Le Bréviaire d’Alaric. Aux origines du Code civil, pp. 213-239, París. MARTÍN VISO I., 2009, Espacios sin Estado. Los territorios occidentales entre el Duero y el Sistema Central (siglos VIII-IX), en I. Martín Viso (ed.), ¿Tiempos oscuros? Territorio y sociedad en el centro de la Península Ibérica (siglos VII-X), pp. 107-135, Madrid. MARTÍN VISO I., 2011, Circuits of power in a fragmented space: gold coinage in the Meseta del Duero (sixth-seventh centuries), en J. Escalona y A. Reynolds (eds.), Scale and scale change in the early middle ages. Exploring landscape, local society and the worls beyond, pp. 215-252, Turnhout. MENASANCH DE TOBERUELA M., 2003, Secuencias de cambio social en una región mediterránea. Análisis arqueológico de la depresión de Vera (Almeria) entre los siglos V y XI, Oxford. MOMMSEN T. (ed.), 1895, Chronica Minora II, MGH AA, XI pp. 211-220. PALOL P. de, 2004, El «castrum» de Puig de les Muralles de Puig Rom (Roses, Alt Empordà), Gerona. PEREIRA V., 2003, O povoamento no I milénio a.C. na bacia hidrográfica do Alto Mondego (Guarda), Encuentro de jóvenes investigadores sobre Bronce Final y Hierro en la Península Ibérica, pp. 336-353, Salamanca. PEREIRA V., CARVALHO A. M., 2008, Intervenção Arqueológica no Castro do Tintinolho. Relatório da 1.ª campanha, policopiado. PEREIRA V., CARVALHO A. M., 2009, Intervenção Arqueológica no Castro do Tintinolho, Relatório da 2.ª campanha, policopiado, Guarda. PINTO M., 2008, Intervenção arqueológica no âmbito da empreitada de melhoramentos no Centro Histórico de Algodres (Fornos de Algodres, Guarda), ERA, Arqueologia, policopiado, Lisboa. SARMENTO F. M., 1883, Expedição scientifica à Serra da Estrella em 1881. Secção de Archeolgia. Relatório, Lisboa. REYNOLDS A., 1993, Settlement and pottery in Vinalopó valley (Alicante, Spain). A.D. 400-700, Oxford. RODRIGUES A. V., 1977, Monografia Artística da Guarda, Anadia. RUSSEL CORTEZ F., 1950, Objectos de Liturgia Visigótica encontrados em Portugal. Séculos V a VII, Separata de O Instituto 114, Coimbra. SCHNEIDER L., 2005, Dynamiques spatiales et transformations de l’habitat en Languedoc méditerranéen durant le haut moyen âge (VI-IX s.), en G. P. Brogiolo, A. Chavarria Arnau e M. Valenti (eds.), Dopo la fine delle ville: le campagne dal VI al IX secolo, pp. 287-312, Mantova. SCHNEIDER L., 2007, Cités, campagnes et centres locaux en Gaule narbonnaise aux premiérs siécles du Moyen Âge (Ve-IXe s.): une nouvelle géographie, de nouveux liens, en P. Sénac (ed.), Villes et campagnes de la Tarraconaise et d’al-Andalus (VIe-XIe siècle): la transition, pp. 13-40, Toulouse. TENTE C., 2007, A ocupação alto-medieval da Encosta Noroeste da Serra da Estrela, Lisboa. TENTE C., 2009a, Dos Bárbaros ao Reino de Portugal. O território de Celorico da Beira nos séculos V a XII, Celorico através da Historia, pp. 44-61, Celorico da Beira. TENTE C., 2009b, Viver em autarcia. O Alto Mondego entre os séculos V e XI, en I. Martín Viso (ed.), ¿Tiempos oscuros? Territorio y sociedad en el centro de la península ibérica (siglos VII-X), pp. 137-157, Madrid. TENTE C., 2010, Arqueologia Medieval Cristã no Alto Mondego. Ocupação e exploração do território nos séculos V a XI, Dissertação de Doutoramento apresentada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, policopiado. TENTE C., CARVALHO A. F., s.d, Pottery manufacture and absolute chronology in the high Mondego basin (centre of Portugal) during the Early Middle Ages», IX Cogresso Internazionale Association Internationale por l’ Étude de Céramique Médiévale Méditerrannéenes (no prelo). O CASTRO DO TINTINOLHO GUARDA, PORTUGAL. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ARQUEOLÓGICOS… SOUSA J. M. C., 1948, Relação das Inscrições dos Séculos VIII a XIII existentes em Portugal, Ethnos III, pp. 13-133. WICKHAM C., 2002, Asentamientos rurales en el Mediterráneo occidental en la Alta Edad Media, en S. Trillo San José (ed.), Asentamientos rurales y territorio en el Mediterráneo, pp. 11-29, Granada. 75 WICKHAM C., 2005, Framing the early middle ages. Europe and the Mediterranean, 400-800, Oxford. ZANINI E., 2007, Archeologia dello status sociale nell’Italia bizantina: tracce, segni e modelli interpretativi, en G. P. Brogiolo y A. Chavarria Arnau (eds.), Archeologia e società tra tardo antico e alto medioevo, pp. 23-46, Mantova.