SPINELLI, Egle Müller. Estudos cronotópicos em narrativas audiovisuais. Revista Galáxia, São Paulo,
n. 10, p. 31-50, dez. 2005.
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Estudos cronotópicos em
narrativas audiovisuais
Egle Müller Spinelli
Resumo: O presente trabalho pretende aplicar o conceito de cronotopia de Bakhtin à
análise de narrativas audiovisuais. Para tanto, será discutido o conceito de
cronotopo bakhtiniano e sua relação com os estudos de Saussure, com o intuito
de mostrar como os elementos cronotópicos podem estar ligados a contextos que
vão além do enunciado, remetendo a mecanismos da enunciação. No estudo são
analisados filmes que apresentam determinadas características semelhantes às dos
principais tipos de cronotopia estabelecidos por Bakhtin: a da aventura, a do cotidiano e a autobiográfica, respectivamente correspondentes aos filmes Corra Lola,
Corra (Tom Tykwer, 1998), Boca de Ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1962) e
Rashomon (Akira Kurosawa, 1950).
Palavras-chave: cronotopia; enunciação; cinema; Bakhtin
Abstract: Chronotopic studies in audiovisual narratives - This paper proposes to apply
Bakhtin’s concept of chronotopia in an analysis of audiovisual discourse. To this
end, it discusses the Bakhtin’s postulation of the chronotope and its relation with
the studies of Saussure in order to show how chronotopic elements may be
connected to contexts that go beyond simple statements, suggesting mechanisms
of enunciation. The films Run Lola, Run (Tom Tykwer, 1998), Boca de Ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1962) and Rashomon (Akira Kurosawa, 1950) are used
here to illustrate the principal chronotopic types established by Bakhtin, namely,
adventure, everyday life and autobiography.
Key words: chronotope; enunciation; cinema; Bakhtin
O conceito de cronotopo
O conceito de cronotopo desenvolvido por Bakhtin é uma das premissas
básicas para a constituição dessa temática no cinema. Para entender o campo
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de estudo desse autor, é interessante notar que seu pensamento é centralizado na existência de uma organização na sociedade que oferece e dispõe as
condições concretas para a comunicação entre os indivíduos. Isso é possível
devido a um fator social, por força do qual o indivíduo vive em função de
um outro, o que resulta em um fenômeno coletivo relativo a um sentido de
identidade.
Segundo Bakhtin, a sociabilidade das intimidades num ato comunicativo
acontece em um mundo no qual os sujeitos 1 são concretos. No texto literário,
essa ocorrência concreta manifesta-se no enunciado 2 , que apresenta dentro
de si a potencialidade de significar pelo contato com o meio social e, a neutralidade, como elemento da língua. Como ele é resultado de um processo
interindividual, carrega em suas fronteiras o querer-dizer tanto do locutor quanto
do interlocutor, e se apresenta matizado expressivamente como palavra própria
e palavra do outro. O que garante a concretude do enunciado é que este se dá
no acontecimento dialógico entre locutor e interlocutor. O dialogismo 3 , termo
cunhado por Bakhtin nos anos 1930, remete à necessária relação entre qualquer
enunciado e todos os demais enunciados. Por se apresentar como elo da cadeia
ininterrupta da comunicação verbal, o enunciado pode evidenciar a presença da
enunciação no discurso, fator que denuncia outras contextualizações e atualiza
novos significados.
O pensamento de Bakhtin afasta-se da lingüística estrutural, principalmente no que diz respeito à dicotomia Langue (língua) e Parole (fala), estabelecida
por Ferdinand de Saussure 4 em seu Curso de Lingüística Geral. Saussure define
língua como um sistema abstrato que necessita da fala para existir e, conse-
1
O sujeito bakhtiniano se constitui na relação com o outro e apresenta como característica fundamental o fato de ser um sujeito inacabado que precisa do outro, pois no seu discurso carrega
valores de discursos anteriores.
2
O enunciado na literatura corresponde ao texto escrito em que os significados (códigos) são identificados com facilidade pelo leitor. Podem existir elementos no enunciado que denunciam a
enunciação. Por meio do estudo da enunciação é possível articular o discurso com suas condições
de produção, realizando uma análise do texto juntamente com sua inserção em seu contexto. A
análise da estrutura da enunciação fornece subsídios para estabelecer um vínculo entre o discurso
e suas próprias condições sócio-históricas de produção e recepção.
3
O conceito de dialogismo sugere que todo e qualquer texto constitui uma interseção de superfícies
textuais. Os textos são todos tecidos de fórmulas anônimas inscritas na linguagem, variações dessas fórmulas, citações conscientes e inconscientes, combinações e inversões de outros textos.
4
Saussure fundou a ciência da semiologia relacionada ao estudo dos signos, uma ciência que mostraria o que constitui os signos e que leis os regulam.
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qüentemente, a fala como uma combinação de elementos da língua (o uso do
sistema), ou seja, não existe fala sem língua, pois todo significado do ato da fala
tem como base o sistema abstrato representado pela língua. Como descrito por
Stam (1999:30):
As categorias fundamentais da lingüística de Saussure, as quais são fonéticas
(unidades de som) e morfológicas (unidades de sentido), derivam das categorias da lingüística comparativa indo-européia, precisamente aquelas categorias mais apropriadas para uma língua “morta” ou estrangeira. Saussure provém
de uma tradição de reflexão sobre a língua que Bakhtin chama de ‘Objetivismo
Abstrato’, ou seja, uma visão da língua que se esforça em reduzir suas
heterogeneidades constantemente mutantes a um sistema estável de formas
normativas. Saussure enfatiza características fonéticas, léxicas e gramaticais
que se mantêm idênticas e por tanto normativas para todas as verbalizações, e
assim formam o código já elaborado de uma língua. Dentro desse sistema, as
variantes individuais e sociais da fala desempenham um pequeno papel, são
consideradas como aleatórias, desordenadas, demasiadamente heterogêneas e
multidisciplinares para sua compreensão teórica por parte da lingüística, e,
portanto, irrelevantes para a unidade fundamental da língua como sistema.
As idéias de Bakhtin recaem sobre a “translingüística” (Stam, 1999:30), teoria
sobre o papel dos signos na vida e no pensamento humano. A “translingüística”
poderia ser comparada à semiologia de Saussure, mas é diferente no que concerne
às noções de signo e de sistema, criticadas por Bakhtin. Para Saussure, o signo
possui uma instabilidade mediante processos de polissemia e deslocamento,
mas o deslocamento sempre está baseado numa estabilidade inicial 5 . Para
Bakhtin, diferentemente, a estabilidade do signo é uma mistificação, já que a
multiplicidade de significados é a característica constitutiva da língua. Para ele,
um dinamismo social, historicamente gerado, anima o mesmo signo. A estabilidade do signo é uma ficção, já que o fator constitutivo da forma lingüística, e
também do signo, não é em absoluto sua própria identidade como um sinal de
sua variabilidade específica. O signo, deste ponto de vista, é um objeto de luta
relacionado a classes em conflito, grupos e discursos que se esforçam em apropriar-se dele e estabelecê-lo com seus próprios significados, daí o que Bakhtin
5
Pode-se dizer que, no relato do cinema clássico, os filmes de ficção utilizam determinados procedimentos estáveis para esconder suas próprias marcas de enunciação, correspondendo a um discurso que se disfarça em história e insere o espectador na diegese fílmica. No relato em abismo,
por exemplo, existe a utilização de certos procedimentos instáveis que rompem com o universo
ficcional, levando o espectador a um tempo e espaço extra-diegético, em que o filme passa a ser
uma história que carrega as marcas do discurso (Fevry, 2000:90-101).
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chama de “multiacentualidade”, ou seja, a capacidade do signo de extrair tons
sociais variáveis e “valorações” na medida em que se desenvolve dentro de
condições sociais e históricas específicas.
Bakhtin concorda com Saussure quanto ao papel da língua em seu valor
centralizador, imperativo e ditatorial. Mas, diferentemente de Saussure, que
define a língua como antecedente da fala, Bakhtin coloca a fala não apenas
como fruto do sistema, mas como uma entidade que se relaciona com contextos
sociais, dando um sentido mais amplo e autêntico ao código por meio de sua
descentralização. Dessa forma, para que a fala tenha sentido, é preciso também
estar encadeada dentro dos diversos contextos de uma sociedade. Para Bakhtin,
a fala não é permanente, pois depende do uso que se faz dela e do contexto em
que se vive. Assim, nesse processo, o conceito de enunciado bakhtiniano é sustentado por um sistema de códigos representado pela língua que não é absoluto, pois depende de referências externas para se perpetuar.
As teorias estruturalistas estabelecem a fala como código neutro, monológico
e preestabelecido, cujo valor é centrípeto. O enunciado de Bakhtin, que
corresponde ao ato de fala estabelecido por Saussure, rompe com o processo
centralizador de significação devido ao valor centrífugo 6 que o caracteriza. Esse
movimento descentralizador é denominado por Bakhtin “heteroglossia”. Segundo Stam (2003:211-2):
A heteroglossia é um conceito que procura dar conta da competição entre
as linguagens e os discursos operantes no interior tanto do “texto” como
do “contexto”. O papel do texto artístico, na perspectiva bakhtiniana, não
é o de dar representação às “existentes” na vida real, mas encenar os conflitos inerentes à heteroglossia, as coincidências e competições entre linguagens e discursos. As linguagens em heteroglossia, sustenta Bakhtin,
podem justapor-se umas às outras, podem suplementar-se mutuamente, contradizer-se e estarem inter-relacionadas dialogicamente.
A heteroglossia é um dos conceitos definidos por Bakhtin cuja função é
romper com a tendência centrípeta da linguagem. Outro termo ligado a esta
mesma idéia é o que o teórico chama de cronotopo, um dos conceitos básicos
utilizados neste trabalho.
6
Merleau-Ponty (1985) desenvolve a idéia de que é preciso entender que o ser humano não está
apenas diante das coisas ou vice-versa, mas as coisas também o rodeiam. O estar diante e o rodear
pode esclarecer, respectivamente, o que os valores centrípeto e centrífugo representam no desenvolvimento do trabalho.
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Stam (1999:247) lembra ainda que “Bakhtin usa o termo cronotopo para
referir-se à constelação de distintas características temporais e espaciais, de
gêneros específicos, que funcionam para evocar a existência de uma vida-mundo – lifeworld –, independente do texto e de sua representação”. Sugere também que, no romance, o tempo e o espaço estão intrinsecamente conectados, já
que o cronotopo “materializa o tempo no espaço”. Para o autor, o romance era
visto como sistema de representação do homem, de seu mundo e de sua linguagem, no contexto de uma vivência espaço-temporal bem determinada. Irene
Machado (1995:248) explica que:
para dar conta dessa cadeia de situações desenvolvidas no tempo e no espaço,
Bakhtin introduz um complexo conceito em seu sistema teórico, denominado
de cronotopo. Na literatura, como na cultura, o tempo é, geralmente, histórico
e biográfico e o espaço é sempre social. O cronotopo abrange tanto o campo
das relações histórico-biográficas como sociais.
A partir da idéia de cronotopo, Bakhtin mostra como estruturas espaçotemporais concretas na literatura – em especial no romance – limitam as possibilidades narrativas, dando forma à caracterização e modelando uma imagem
discursiva da vida e do mundo. O envolvimento que a teoria do cronotopo apresenta com relação ao mundo da experiência não deve, entretanto, ser confundido com o reflexo realista do mundo empírico na literatura. Estas estruturas
concretas espaço-temporais no romance estão relacionadas com o mundo real
histórico, mas não equiparadas a ele, que, não obstante realista e verdadeiro,
nunca pode ser cronotopicamente idêntico ao mundo real que representa. As
relações espaço-temporais são, antes, avaliações determinadas pela organização
de um ponto de vista e, nesse sentido, dependem da lei do posicionamento que
Bakhtin concebeu como fundamental para reproduzir a figura do homem e de sua
vida na representação da estética. Algumas narrativas ficcionais apresentam certas composições temporais ou espaciais que desencadeiam processos dialógicos,
ou seja, um determinado fragmento da narrativa pode ser recortado como uma
matriz cronotópica do enunciado e remeter a enunciações cronotópicas.
A categoria cronotópica, mesmo não se referindo diretamente ao cinema,
parece ajustada a ele como um meio no qual indicadores espaciais e temporais
estão fundidos em uma totalidade concreta cuidadosamente planificada. Stam
(2003:229) acrescenta que a descrição bakhtiniana do romance como:
o lugar em que o tempo torna-se espesso, encorpa-se, transforma-se em algo
artisticamente visível, e no qual o espaço torna-se impregnado dos movimentos do tempo, da trama e da história, reagindo a eles, parece em alguns aspectos mais adequada ao cinema do que à própria literatura, uma vez que a
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literatura se desenvolve no interior de um espaço léxico, virtual, ao passo que
o cronotopo cinematográfico é absolutamente literal, desenvolvendo-se concretamente sobre uma tela com dimensões específicas e desdobrando-se em
um tempo literal (geralmente, 24 fotogramas por segundo), bastante distinto do
espaço-tempo fictício que os filmes individuais possam construir.
A discussão sobre o espaço e o tempo no cinema, e principalmente a aplicação do conceito de cronotopo às narrativas audiovisuais, é um assunto ainda
pouco explorado, exceção feita ao livro de Vivian Sobchack, Lounge Time: PostWar Crises and the Chronotope of Film Noir (1998), no qual a autora estende a
análise cronotópica ao filme noir como um espaço/tempo cinemático unido
cronotopicamente às crises de valores do pós-guerra.
De acordo com o conceito de cronotopo, a experimentação de uma manifestação artística é sobredeterminada por um espaço e por um tempo que podem mudar a todo instante, por constituírem elementos variáveis correspondentes
a significados infinitos e inacabados que dialogam entre si. A consciência do
tempo presente, que Bakhtin descobriu tanto em Rabelais como em Goethe e
Dostoievski, é fundamental para se entender a historicidade do tempo e do
mundo. Haynes (1993:165) diz que, para Bakhtin, “as análises correntes se
desenvolvem em um espaço restrito e num curto período de tempo, ou seja,
agrupam presente, passado e futuro numa mesma temporalidade e localidade”. No estudo do romance, Bakhtin percebeu que a imagem da pessoa muda
necessariamente com o tempo: o homem nunca coincide consigo mesmo, ele
é um ser inacabado, em estado de devir. Também existe uma noção especial
de futuro que deixa de ser uma forma vazia, rarefeita, para ser potencialidade.
O futuro não é análogo ao presente, mas adquire um sentido concreto quando o
presente e o passado se enriquecem em recorrência da energia de um futuro em
devir. Assim, a antecipação do futuro por meio de atitudes triviais como desejos, esperanças e medos resulta em visões de uma natureza inacabada sem um
sentido definido. Dessa forma, a possibilidade do reconhecimento de significações, por meio de processos conscientes e atividades criativas pelo ser humano,
não pode ser desvinculada de suas próprias características singulares e de sua
relação com um outro ser social, o que resulta em uma nova visão do mundo.
Os cronotopos no cinema
A organização temporal e espacial da narrativa audiovisual permite que
uma mesma história possa ser contada de diferentes maneiras. Normalmente,
para que o espectador tenha um entendimento mais preciso e imediato do fato
narrado, os realizadores costumam respeitar a cronologia dos eventos da histó-
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ria e constroem um espaço tridimensional na tela plana, parecido com a percepção da realidade do espectador. Por outro lado, existem filmes que rompem
com esta convenção e criam alguns procedimentos que, em vez de facilitar a
compreensão da obra cinematográfica pela utilização de códigos familiares ao
espectador, requerem a sua participação para que os fatos sejam reconectados
em um contexto muito mais amplo, que, às vezes, extrapola o universo ficcional
do filme, implicando um trabalho pessoal de cada espectador. Nesse último
sentido, existem filmes que têm a particularidade de apresentar diferentes desfechos de uma mesma história inicial: a história parte de um acontecimento
comum e se desmembra em fatos distintos. Esses filmes apresentam um conjunto de propriedades que englobam um modelo semelhante, representado por uma
estrutura multilinear no decorrer da narrativa.
Na história do cinema, existem vários exemplos de filmes que apresentam
essa disposição. Para a realização deste estudo foram selecionados três: o japonês Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, ganhador do Leão de Ouro do Festival de Veneza de 1951 e do Oscar de melhor Filme Estrangeiro no mesmo ano,
constantemente citado por teóricos como a representação de diferentes pontos de vista de um mesmo evento contado por diversos personagens; o filme
alemão Corra Lola, Corra, de Tom Tykwer, ganhador do Leão de Ouro do Festival de Veneza de 1998, que apresenta três desfechos de uma mesma história
inicial; e o filme brasileiro Boca de Ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos, que também apresenta três variações de um mesmo fato, contado pelo
mesmo personagem.
Numa primeira análise desses três filmes, algumas semelhanças foram encontradas entre os três principais tipos de cronotopos estabelecidos por Bakhtin:
a) Cronotopo da Aventura: o momento inicial e final do romance apresenta um tempo condensado e um espaço indeterminado, em contraposição
com o meio desses dois momentos, em que o tempo é expandido e o
espaço determinado.
b) Cronotopo do Cotidiano: encontrada em romances que apresentam momentos excepcionais da vida de determinado personagem, durante profundas transformações, com um tempo concatenado em termos de causa e
efeito e um espaço que ganha hegemonia a partir de um valor hierárquico.
c) Cronotopo Biográfico/Autobiográfico: combina um presente de um
narrador que conta fatos de sua vida com um passado ordenado por
determinados lugares vividos. Temos um equilíbrio entre o tempo e o
espaço vividos pela personagem (Bakhtin, 1998:213-62).
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Cronotopo da aventura
No filme Corra Lola, Corra, a história começa colocando os personagens
em uma determinada situação inicial e, posteriormente, desmembra esse prólogo de três maneiras diferentes, uma depois da outra, sempre voltando ao mesmo
ponto de partida. Baseando-nos nos estudos de Bakhtin sobre o romance grego,
desenvolvido durante os séculos 2 a 5 d.C., que criou um tipo de representação
cronotópica responsável por um gênero, o romance de aventuras 7 desse filme
pode ser situado como um “cronotopo de aventura”.
No filme, a personagem principal Lola mantém contato com seu namorado
Manni apenas no início e no final de cada versão, constatando-se um hiato
temporal permeado pelos diversos espaços percorridos por Lola. O tempo de
aventuras tem sempre um significado decisivo e fatal e é dessa forma que o
tempo se processa no decorrer das três versões: constitui-se de concomitâncias
e contratempos fortuitos, governados pela força do acaso. No tempo da aventura, o homem é totalmente passível e imutável frente aos desafios e transformações que vivencia. E é isso que ocorre com Lola, a personagem que tem suas
ações reduzidas a um momento obrigatório no espaço – a busca de dinheiro
para salvar a vida do namorado –, e esse seu movimento no espaço fornece as
principais unidades de medida desse espaço e desse tempo, isto é, do seu
cronotopo. O destino conduz o jogo e Lola, além de estar envolvida nesse jogo,
retira dele, devido a todos os reveses do destino e do acaso, uma absoluta identidade consigo mesma. Essa singular identidade é o centro organizador da imagem do homem do romance grego, constituído de aventuras que retratam as
provações do herói e da heroína, sobretudo de sua fidelidade recíproca.
Nas três versões do filme Corra Lola, Corra, como no romance de aventuras, ocorrem seqüências de episódios organizadas cronotopicamente pela lógica do acaso, em que tudo acontece de repente. Cada momento reveste-se, porém,
de uma profunda tensão, parecendo ser sempre decisivo e fatal. A aventura é o
cronotopo, por excelência, do acaso. O acaso espalha pelo caminho dos heróis
não só perigos, mas também tentações de todas as espécies, colocando-os nas
situações mais delicadas possíveis. No filme, o equilíbrio inicial, rompido pelo
acaso – a moto de Lola é roubada e ela não consegue chegar a tempo para
buscar seu namorado, o que resulta na perda de sua bolsa e de seu dinheiro –,
restabelece-se no fim. Na história do romance de aventuras existe a idéia da
7
Trata-se de um gênero que surgiu na Antigüidade, percorreu a época medieval e renascentista,
conheceu vários desdobramentos durante o século 19 e continuou a ser experimentado sob as
mais variadas formas no século 20. Por isso, na teoria de Bakhtin, a aventura é não só um grande
cronotopo, como também apresenta um caráter especial: é um cronotopo desenvolvido por meio
de um processo dialógico, signo maior de toda a sua evolução (Machado, 1995:256).
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provação como organizadora da composição. O herói, aqui, diverso daquele
que encontramos em todos os gêneros clássicos da literatura é um indivíduo
particular, que não se sente parte do todo social. É um homem solitário, perdido em um mundo estrangeiro, sem ter uma missão. A privacidade e o isolamento são traços essenciais de sua imagem, os quais estão ligados obrigatoriamente
às particularidades do cronotopo de aventuras. E são essas algumas das características que constroem os personagens principais do filme, Lola e Manni, pois
muitas de suas atitudes vão completamente contra os valores sociais, familiares
e morais, como se vivessem num mundo que não lhes pertencesse.
A narrativa do filme Corra Lola, Corra também se apodera do cronotopo do
universo dos jogos para construir uma realidade que permite vários desenlaces
de uma mesma história. A estética dos videogames está fortemente presente na
composição visual e sonora e na própria estruturação do discurso narrativo.
Logo de início, o personagem que representa o policial na história explica diretamente ao espectador que um jogo de 90 minutos está prestes a começar.
Visualmente, Lola parece um herói de videogame, com suas tatuagens e
cabelos vermelhos, o mesmo figurino durante todo o filme e com certo poder de
comando da história narrada. No decorrer de cada versão, Lola não pára de
correr rumo ao seu objetivo final e passa praticamente pelos mesmos espaços.
Nessas repetidas jornadas, a câmera assume perspectivas diferentes, o que dá
uma sensação de amplitude a um espaço inicialmente reduzido por um único
ponto de vista. Isso se deve às diferentes angulações e posicionamentos que a
câmera realiza ao filmar Lola nos espaços comuns às três versões, uma ferramenta comum existente nos videogames. O espaço restrito que Lola percorre
parece ter uma semelhança com o espaço dos jogos. A cada “novo jogo” novas
chances são dadas ao personagem de se aventurar por caminhos ainda não explorados, mas limitados segundo o conteúdo existente. Um dos espaços mais percorridos por Lola são as ruas de Berlim. Para quem conhece Berlim, é possível perceber
que a personagem realiza um trajeto que não corresponde a nenhuma rota
encontrável na cidade. As tomadas das ruas foram feitas em locações separadas
que, depois de unidas, deram a impressão de uma trajetória contínua.
Todas essas locações se repetem em cada versão, mas com sutis diferenças
nas ações de Lola ou da própria composição da imagem ou do som que a acompanham. Praticamente, todos os espaços que compõem a narrativa são acompanhados por uma frenética batida techno composta pelo próprio diretor. A música
é tão presente em quase todas as cenas do filme que dá a impressão de estarmos
diante de um longo videoclipe.
No espaço do jogo, o número de tentativas rumo à realização do objetivo
final também é ilimitado. Mesmo que um personagem morra, existe a possibilidade de se recomeçar o jogo e se realizar uma performance melhor do que a
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anterior. Assim, Lola morre na primeira versão, o namorado Manni morre na
segunda e os dois vencem o jogo na terceira. Como um personagem de
videogame, Lola parece deter o poder de comando dos acontecimentos. Quando percebe que o desfecho da história não foi feliz ou resultou na sua morte ou
na do namorado, inicia-se outra história em que os erros cometidos e as vivências
passadas servem como parâmetro para sua realização futura.
O filme apresenta três versões distintas que fazem uma alusão ao jogar três
vezes o mesmo jogo. A cada nova partida a personagem-jogadora Lola enfrenta
obstáculos e adquire experiências para seguir adiante e atingir o seu objetivo.
Qualquer incidente, como um tropeço, uma colisão ou um desencontro, pode
alterar o futuro de todos os personagens que cruzam o caminho de Lola. Essa
parece ser a idéia central do filme: a mudança de um detalhe mínimo pode ser
responsável por uma alteração em todo o destino da história. Cada versão se
diferencia por acasos diferentes que conduzem às mudanças de conduta de
Lola e demonstram como pequenas coincidências ou grandes tragédias podem
influenciar [n]o futuro de cada um.
Cronotopo do cotidiano
No filme Boca de Ouro existem três histórias que são contadas pela mesma
personagem Guigui, uma depois da outra. Os atores principais, os mesmos nas
três histórias, representam personagens com características e atitudes diferentes
em cada uma das versões. Esse filme pode ter correspondência com o que Bakhtin
denomina “cronotopo do cotidiano”: os três personagens que atuam nas três
versões contadas (Boca de Ouro/ Leleco/ Celeste) apresentam diferentes atitudes. Em cada história ocorre a transformação de um personagem em outro: tendo características distintas, elas são unidas e desunidas por suas crises e
regenerações e a própria modificação das atitudes de cada um torna o enredo
essencialmente humano.
O romance do cotidiano não se desenvolve, a rigor, num tempo biográfico.
Ele representa apenas momentos excepcionais da vida humana, completamente
fora do comum, bastante efêmeros em comparação com o todo da existência.
São estas situações, entretanto, que determinam tanto a imagem definitiva do
próprio homem como o desenrolar de toda sua vida subseqüente. Suas peripécias não são, porém, determinadas pelo acaso, mas devidas a ele próprio e ao seu
caráter. Diferente do romance de aventuras, que utiliza como núcleo básico o
acaso, no cronotopo do cotidiano é a metamorfose que sugere uma poderosa
imagem do destino do homem e de sua conquista da identidade. A metamorfose
orienta a vida humana pela ótica do indivíduo em seus hábitos, costumes e vida
interior, focalizando os momentos de crise e revelando a natureza humana em
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sua intimidade. No filme Boca de Ouro, conforme a personagem Guigui conta
os diferentes pontos de vista sobre um assassinato cometido pelo personagem
Boca de Ouro, é mostrada toda a transformação e evolução interna referente a
sua vida e conduta. A idéia de metamorfose marca o destino de Guigui em seus
momentos essenciais de crise.
Não é só a intimidade da vida privada a base desse cronotopo. Bakhtin
considera que a definição da vida privada guarda uma relação com a vida pública em romances de costumes, de tipo policial. Irene Machado (1995:265)
enfatiza, a propósito, que para Bakhtin “o crime é aquele momento da vida
privada em que ela se torna, por assim dizer, pública a contragosto”. É assim
que o filme Boca de Ouro, mais uma vez, realiza esse cronotopo. Além de as
três versões de Guigui abordarem a questão de um assassinato, o final do filme
mostra o enterro do personagem Boca de Ouro, em que milhares de pessoas se
aglomeram para acompanhar o seu caixão, além da cobertura da imprensa, que
relata publicamente fatos relacionados à vida do personagem.
O filme também apresenta um tempo relativo ao romance do cotidiano,
decomposto em segmentos temporais independentes que se ordenam mecanicamente numa série. Além do tempo da vida cotidiana, em que o espaço se
torna concreto e satura-se de um tempo mais substancial, existe o tempo da
vida pública, no qual o espaço é preenchido pelo sentido real da vida e entra
numa relação essencial com o herói e com o seu destino. Esse cronotopo é tão
saturado que, nele, elementos como o encontro, a separação, o conflito e outros adquirem um sentido cronotópico novo e muito mais concreto.
O filme Boca de Ouro apresenta um cronotopo referente ao projeto ideológico e estético do diretor Nelson Pereira dos Santos, representado pelas influências do neo-realismo italiano e por algumas premissas relacionadas ao cinema
novo, movimento no qual o diretor também estava inserido. Esses dois movimentos são percebidos de maneira sutil, pois o filme não era um projeto pessoal
de Nelson Pereira dos Santos. A adaptação da peça de Nelson Rodrigues foi
idealizada e produzida por Jece Valadão, que também fez o papel do próprio
Boca de Ouro. Desde o início do projeto, Jece Valadão deixou bem claro que
tinha a intenção de realizar um filme comercial, mais clássico na decupagem, e
Nelson se prestou a fazer o que o produtor queria. O estilo autoral do diretor,
porém, não deixa de ser visível na concepção da obra em sua totalidade, resultando numa mistura bem dosada de Nelson Pereira dos Santos com Jece Valadão
e Nelson Rodrigues.
Sem abrir mão de suas prerrogativas de diretor, de suas idéias e de sua
própria leitura do texto, Nelson Pereira dos Santos respeita as convenções
estilísticas colocadas pelo produtor Jece Valadão, mas preserva rastros de uma
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linguagem cinematográfica que exprime a realidade brasileira na cronotopia do
momento. É visível, no filme, a mescla dos recursos estilísticos do neo-realismo
e do cinema novo com um cinema mais tradicional.
Em seus filmes anteriores, Nelson Pereira dos Santos já havia mostrado sua
opção por um cinema autoral, influenciado pelo neo-realismo, feito na rua com
pessoas comuns, realizado com poucos recursos técnicos e financeiros, apresentado com uma mise-en-scène solta e sem artificialismos, mais apta a representar uma classe social desfavorecida. Em Boca de Ouro, alguns recursos
neo-realistas estão implícitos dentro da construção do discurso clássico que
predomina no filme. A maioria das cenas se passa em locações internas, espaços que permitem uma composição mais simétrica do quadro, por meio do controle mais preciso sobre a incidência da luz, dos movimentos e posicionamentos
de câmera com relação ao cenário e à atuação dos atores.
A esses ambientes fechados, contrapõem-se outros que encontramos em cenas mais realistas, em que os personagens estão inseridos em um espaço social
real – na rua, no boteco, no ônibus –, e em que atuam pessoas comuns que
praticamente desempenham o seu próprio papel. Nas cenas de rua, toda a preocupação relativa à composição das cenas internas deixa de existir, como a utilização de luzes laterais que contrastam superfícies claras e escuras, a construção
do cenário enfocando a profundidade de campo pela utilização de molduras (portas, janelas e divisórias), a marcação do posicionamento e o olhar dos atores.
No decorrer do filme, insinua-se um contraste entre a vida privada e a pública, representação da própria dicotomia entre uma estética mais intimista e
controlada do cinema clássico com um cinema novo e neo-realista que buscam,
por meio da improvisação e de poucos recursos, inserir a sociedade no universo
ficcional da trama e estabelecer uma linguagem mais adequada à situação social
do país. As cenas de rua são filmadas como em um documentário, sem figurantes. Uma câmera escondida flagra os personagens em meio a uma cena real.
As cenas interiores revelam uma enorme preocupação estética, a execução
de um minucioso trabalho de disposição dos elementos no plano (mise-en-cadre).
O entrosamento entre o posicionamento dos personagens no cenário e a câmera
é nítido, principalmente por existir uma constante movimentação entre eles, o
que implica uma apurada marcação de atores e uma forte interação entre a
equipe técnica e artística.
É interessante notar que o diretor, mesmo nas cenas internas, tende a explorar planos em que tanto os atores como câmeras se movimentam o tempo
todo, o que implica certa dinâmica das cenas. Sempre existe um personagem
saindo ou entrando no quadro e uma câmera que acompanha as ações. Nelson
Pereira dos Santos opta em trabalhar mais com planos de conjunto, mesmo quan-
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do utiliza o mecanismo de campo/contracampo para estruturar os diálogos. Os
primeiros planos são pouco utilizados, mas aparecem em cenas de embate entre os personagens.
Nas cenas na casa de Boca de Ouro existe uma composição visual extremamente apurada com relação à construção de espaços em profundidade de
campo. Do escritório de Boca existe a passagem para diversos ambientes: uma
escada que leva ao andar de baixo, portas e divisórias para outros cômodos e
janelas que emolduram contextos externos. Os objetos que compõem o cenário também contribuem para o estabelecimento de vários planos em profundidade, principalmente na utilização de portas, janelas e espelhos, que ampliam
o espaço delimitado pelo enquadramento e pela indicação constante dos espaços em off.
O filme termina com vários primeiros planos que mostram o rosto do povo
acompanhando o enterro do bicheiro. De um universo totalmente ficcional, a
narrativa evolui para uma ruptura e assume um tom documental. A forte iluminação do sol incide sobre esses rostos desconhecidos, que representam a curiosidade
de comprovar a morte do bicheiro, ao mesmo tempo em que refletem a dor de
uma minoria do subúrbio carioca, ao perder o seu mais ilustre representante.
Todos esses recursos atestam uma dualidade entre um cinema comercial, em
que o espectador apenas acompanha o desenrolar da trama, e um cinema que
tende a surtir uma conscientização social referente à cronotopia de uma época,
que não deixa de ter profundas ligações com a própria atualidade.
O filme Boca de Ouro é assim outro exemplo de como uma mesma história pode ser contada de maneiras distintas, um processo que novamente abre
ligações para diferentes contextos, pela possibilidade de conexões variadas
estabelecidas pelas infinitas enunciações cronotópicas emanadas do enunciado fílmico.
Cronotopo biográfico/autobiográfico
Finalmente, o filme Rashomon, de Kurosawa, apresenta uma narrativa em
que há quatro pontos de vista diferentes de uma mesma história, ou seja, quatro
personagens diferentes que contam a sua versão de um mesmo crime. Cada
versão é narrada por um personagem que esteve presente no momento do crime, ou seja, eles contam um fato que aconteceu no passado, em um momento
autobiográfico. A estrutura desse filme pode ser relacionada, desta vez, com um
terceiro tipo de cronotopo estabelecido por Bakhtin, o cronotopo biográfico ou
autobiográfico. Nesse tipo de cronotopo estão presentes a revelação pública
(no caso do filme alguns personagens reportam suas versões perante um tribunal) e o esclarecimento de acontecimentos ocorridos na vida das pessoas. Neste
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cronotopo realiza-se a exposição e a recapitulação da vida do cidadão diante de
uma avaliação público-civil 8. Para Bakhtin (1998:254), “a exteriorização global
do homem se realizava em uma coletividade humana orgânica, no meio do povo.
Viver exteriormente é viver para os outros, para a coletividade, para o povo”.
Nessa perspectiva, o filme Rashomon é um exemplo de estruturação narrativa que mostra diversos caminhos para uma mesma história. Em vez de construir o melhor ponto de vista de cada plano para o espectador, por meio de
princípios relativos à encenação, cenografia, profundidade de campo, iluminação e aos movimentos de câmera, o filme situa o espectador em diversos
pontos de vista do mesmo fato. O final do filme nos deixa perplexos e incita a
curiosidade de querer saber qual seria a verdadeira versão para os acontecimentos decorridos na tela. Existe uma inquietação por uma necessidade de
encontrar a melhor solução para determinado evento. Esse desconforto é ocasionado por se tratar, mais uma vez, de um filme que não segue os padrões
clássicos, pois posiciona o espectador dentro de vários tempos e espaços na
narrativa, deixando-o livre para escolher a sua própria verdade. Nesse universo labiríntico, diversas camadas temporais e espaciais são formadas, o que elimina a idéia de unidade e reforça a possibilidade de confrontação entre as
diferentes versões possíveis.
A história de Rashomon é construída em torno de um assassinato. A narrativa apresenta tempos e espaços distintos, que podem ser assim dispostos: primeiro os do portão de Rashomon, em que um padre, um lenhador e um plebeu
conversam a respeito das quatro versões existentes sobre o assassinato – a do
bandido Tajomaru, a da mulher do homem assassinado, a do próprio morto que
fala por intermédio de uma médium e a do lenhador. O padre e o lenhador
acabaram de ser testemunhas desse assassinato e estão no portão esperando a
chuva passar. O plebeu chega também para se abrigar da chuva e aí se inicia o
discorrer de uma cronotopia que faz referência a outras, relacionadas com lugares e tempos do passado. Esse processo estabelece uma estrutura que, a todo
[o] momento, nos faz saltar de uma ação a outra: as ocorridas no portão, que
aqui é considerado como a narrativa primeira do filme, para os acontecimentos
passados que ocorrem em três tempos/espaços diferentes: os acontecimentos
relativos ao assassinato do homem na floresta, que aconteceu três dias antes; os
eventos que contam a captura do bandido Tajomaru, situados dois dias antes; e
os depoimentos no pátio do tribunal, que ocorreram momentos antes de todos
chegarem ao portão.
8
As formas biográficas e autobiográficas, desenvolvidas em um longo período, em épocas da remota Antigüidade, centralizam a figura do cidadão, do homem público (Machado, op. cit., p. 266).
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Em Rashomon, o tribunal é o espaço de revelação do privado, o que
corresponde à praça pública grega – a ágora – não a praça pública das pessoas
simples, da feira ou das tavernas, mas a praça como espaço do Estado, de todos
os seus órgãos, instituições e cidadãos. Esse é o espaço criador do homem biográfico. Bakhtin considera esse um cronotopo extraordinário, em que todas as
instâncias superiores, desde o Estado até a verdade, eram representadas concretamente e estavam visivelmente presentes. E nesse cronotopo concreto, que
parece englobar tudo, realiza-se a exposição e a recapitulação de toda a vida
do cidadão, efetua-se a sua avaliação público-civil. A biografia é, portanto, o
cronotopo do homem público, do cidadão. É assim que os personagens em
Rashomon testemunham o assassinato ocorrido: cada um deles expõe sua vida
privada perante um tribunal. Dessa forma, essa narrativa se enquadra de maneira plena na definição de cronotopia autobiográfica de Bakhtin.
O filme remete a enunciações cronotópicas relativas a outros contextos
que extrapolam o mero enunciado. Rashomon foi um filme no qual Kurosawa
aplicou suas idéias em torno da estética do cinema mudo. Desde a implantação
da fala no cinema, nos anos 1930, o diretor diz que havia se esquecido da
beleza particular presente no cinema das origens, principalmente na utilização
dessa arte para expressar as mais obscuras complexidades e os estranhos subterfúgios presentes nos seres humanos. E Rashomon é um filme que demonstra
essa necessidade do diretor de retornar aos filmes de vanguarda francesa dos
anos 1920, à estética expressionista dos filmes alemães e ao construtivismo russo de Eisenstein e Pudovkin, aos trabalhos de diretores como Alberto Cavalcanti,
Germaine Dulac, Abel Gance e Jean Epstein, utilizando todo esse referencial
para representar, por meio da imagem e do som, os estranhos impulsos do coração humano. Recorrendo a épocas passadas, a contextos históricos que foram
importantes para a formulação de uma arte cinematográfica que, ora tinha a
necessidade de produzir histórias de maneira realista, ora de maneira ilusionista, Rashomon representa, tanto pela escolha da temática quanto pela própria
representação imagética e sonora do filme, um notável trabalho criativo, que
demonstra a junção dessas duas vertentes opostas.
O cinema das origens tem a particularidade de mostrar referências de uma
arte iniciante, na qual as influências de manifestações artísticas anteriores, como
a literatura e o teatro, estavam fortemente presentes. Assim, a imobilidade da
câmera frente às ações representadas pode ser considerada uma matriz que remete a uma estética desse cinema: um teatro filmado, em que os personagens
entram e saem do quadro, utilizando todo o espaço que o plano geral permitia,
pois nessa época ainda não sabiam utilizar o potencial do próprio cinema como
contador de história, no que se refere à decupagem dos planos. Não que
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Rashomon seja constituído por grandes planos-seqüências em que o espectador
é obrigado a acompanhar o desenvolvimento das ações do começo ao fim, mas,
em muitas cenas, os personagens aparecem ou somem pelo fundo ou pela frente
do plano, utilizando todo o espaço para a realização da cena dramática, sinal
da profunda preocupação do diretor com uma montagem interna ao plano, principalmente pela elaborada utilização do recurso da profundidade de campo,
que permite a visualização das ações de personagens localizados em diferentes
espaços do mesmo enquadramento. Isso pode ser notado pela insistente entrada
e saída de elementos e de personagens pelos seis limites que constituem o quadro (laterais esquerda e direita, bordas superior e inferior, para “frente” e para
“trás” do enquadramento), pelos recortes que são dados a eles e pelos olhares e
gestos dos personagens direcionados para fora do quadro, que implicam uma
parte mais ampla do quadro, induzida pelo espectador.
Outro fator cronotópico presente é justamente essa enorme preocupação
estética de Kurosawa com os mínimos detalhes de composição do quadro: ele
mesmo afirma que o uso de superfícies claras em contraposição com escuras
resultava em um efeito que aumentava o impacto dramático dos acontecimentos e enfatizava os estranhos impulsos do coração humano. Essa técnica utilizada para modelar formas em que as partes mais claras emergem das áreas mais
escuras, produzindo, na superfície plana, a ilusão de um relevo escultural, foi
inicialmente desenvolvida pelos pintores renascentistas nos séculos 15 e 16.
Esse processo, denominado de chiaroscuro, passou a ser parte integrante das composições pictóricas e, mais tarde, o cinema expressionista alemão o utilizou com
a finalidade de produzir singulares efeitos expressivos, pois seus principais representantes sempre se preocuparam com os modos de articular a luz e a sombra,
elementos indispensáveis para configurar a representação da realidade.
A esse respeito, convém apontar que Rashomon aborda toda uma temática
vinculada ao drama expressionista alemão. Desse ponto de vista, resulta compreensível que a oposição entre realidade e ilusão constitua o motivo central a
partir do qual se instauram diferentes cronotopias em cada episódio do filme.
Os expressionistas, em vez de tentar imitar a realidade, voltaram-se para o seu
interior com a finalidade de mostrar que esse espaço imaginário constituía suas
fontes de inspiração. Suas reações para com o mundo externo eram de horror e
repulsa, mas longe de adotarem o pessimismo do realismo e do naturalismo,
esses cineastas buscavam em si mesmos a possibilidade de um renascimento
espiritual. Em nome dessa busca, entregaram-se à difícil tarefa de traduzir as
vibrações mais intensas da alma, utilizando uma estética capaz de buscar os
indícios da liberdade, vista sempre como estado de tensão, como algo compri-
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mido entre dois estados antitéticos, que ora se completam, ora se anulam. Devido a essa constante tensão, acreditavam que a agonia é uma forma de êxtase e
o êxtase uma forma de agonia. Assim, o drama expressionista desenvolveu-se
como reação ao naturalismo. Para esses artistas, ao substituir a exterioridade
pela interioridade, é possível manifestar as ânsias e contradizer uma conduta de
vida artificial e falsa. O expressionismo, em oposição ao mundo vigente, nasceu como resultado do desejo de expressar as “verdadeiras verdades”.
Os filmes expressionistas fazem parte da cultura cinematográfica de
Kurosawa e certa influência de algumas características dessa estética pode ser
notada em seus filmes. Não que ele utilize o contraste agressivo entre o claro
e o escuro, por exemplo, o isolamento de algum elemento do quadro pela
incidência de uma ofuscante brancura em contraposição a um fundo negro e
sombrio, efeito muito presente nos filmes expressionistas. Sabia, entretanto,
da existência dessa técnica e, a seu modo, incorporou-a em alguns momentos
para aumentar o impacto dramático no que diz respeito à representação das
próprias contradições inerentes ao comportamento de determinados personagens em Rashomon.
A marca registrada das obras expressionistas é uma impressão de intensidade e energia concentrada. No teatro, gestos fortemente enfáticos, como uma
nítida ênfase na dicção e gesticulação para transcender a mera naturalidade,
tornaram-se um componente visual do estilo de atuação expressionista. O ator
expressionista era estimulado a expor a emoção de forma exagerada, usando o
enredo não como descrição de uma emoção que ele devesse “reproduzir”, mas
como estímulo para a busca, dentro de seus próprios recursos emocionais, de
alguma reserva de sentimento que se articulasse em gestos performáticos poderosos, ultrapassando o texto. Seu estilo de posturas e gestos exagerados logo
deu origem a um repertório estilizado de sinais enfáticos que substituiu os movimentos normais. Havia certa lentidão nos movimentos do ator e até mesmo
uma hesitação entre as deixas, de forma a que o espectador se sentisse colocado numa posição de expectativa, impulsionando imaginariamente seu próprio
corpo, para preencher o adiamento de um determinado gesto. A equação compulsiva do corpo e da alma, e o uso de gestos angulares mantidos por um longo
tempo, que parecem envolver cada fibra do corpo, são procedimentos amplificadores que se tornaram especificamente “expressionistas”, uma vez que mexem com os próprios limites de tolerância do espectador. Na preparação dos
atores Machiko Kyo (mulher), Toshiro Mifune (bandido) e Masayuki Mori (marido), nas cenas da floresta, Kurosawa os instruiu no sentido de imitarem o comportamento dos animais, baseados nos filmes de aventura que tinham como
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temática o universo da selva, filmes que o diretor tinha assistido durante a préprodução de Rashomon. Suas indicações são mais evidentes nas performances
que ocorrem na última parte do filme, a qual contém apenas uma linha de diálogo durante a cena da luta. Assim, os atores eram induzidos a construir os
perfis de seus personagens por meio de gestos emanados do interior de suas
almas, em que a racionalidade se mistura com a selvagem irracionalidade e
toda a ação passa a tomar forma por ela mesma por meio do próprio instinto
animal que aflora de cada ator.
Se comparado a uma técnica teatral alemã desenvolvida no início do século passado, denominada Kammerspiel (teatro de câmera), o filme Rashomon pode
ser visto como obra intimista. O Kammerspiel tinha a preocupação de criar no
palco maior intimidade com o público, trabalhando suas representações em
espaços reduzidos, cenários simplificados, utilizando poucos atores para mostrar apenas o essencial de cada cena e, principalmente, a introspecção psicológica dos personagens. Essa técnica foi amplamente utilizada pelo cinema
expressionista alemão, denominado, então, Kammerspielfilm. Lulu Pick, um dos
criadores dessa tendência, a desenvolvia, já em 1921, no filme Destroços, uma
obra psicológica por excelência, contendo um número limitado de personagens
que se movem num ambiente cotidiano. Para isso, começaram a utilizar a chamada “câmera desvencilhada”, presa a carrinhos ou ao próprio corpo do
cameraman, permitindo a realização de tomadas sob os ângulos mais complicados. No filme de Kurosawa, é mostrado o cenário do portão de Rashonom e do
tribunal, além de cenas externas na floresta. A maioria dos planos nessas locações é restrita a um local preciso, para que se tenha maior controle da iluminação e fotografia e a atuação de poucos personagens, resultando numa estética
muito semelhante ao Kammerspielfilm.
A concepção do espaço e do tempo do teatro Nô também se refere a um
cronotopo que parece sintetizar todo o pensamento de Kurosawa com relação à
constituição do espaço e do tempo no filme Rashomon.
Com relação ao espaço, o teatro Nô apresenta uma liberdade ilimitada,
fazendo com que, em um único passo, o impossível aconteça: percorrer uma
enorme distância ou mesmo centenas ou milhares de milhas com um único passo. Kurosawa parece trabalhar com uma noção de espaço parecida com o Nô,
pois em apenas três locações bem delimitadas (tribunal, floresta e portão), o
espaço parece, cada vez que a narrativa avança, tomar proporções muito mais
amplas. Isso se deve ao seu cuidado com relação aos elementos dispostos em
diferentes tipos de enquadramento, ao cenário, à iluminação e à profundidade
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de campo, que evocam a todo o momento um espaço que vai além do mostrado
na tela e acaba se ampliando cada vez que uma versão diferente é contada, pois
mais informações são dadas dentro de um espaço que parece ser o mesmo, mas
que diferentes ângulos e posicionamentos da câmera e a própria movimentação
dos atores e de seus olhares acabam por remeter o espectador a um espaço
labiríntico e infinito.
Na concepção do tempo no teatro Nô parece existir um desdém pelo tempo cronológico, o tempo do relógio, e uma valorização do tempo psicológico,
que tem relação com os momentos de vivência intensa. Essa visão temporal
pode até ter influenciado a estruturação de Rashomon, mas não se pode esquecer que Kurosawa sempre esteve atento às diferentes formas e utilizações espaciais e temporais no tratamento da expressão cinematográfica, principalmente
no que concerne à estruturação de uma narrativa fílmica que remete à memória
ou ao passado de certos personagens, representando processos mentais e instituindo uma temporalidade subjetiva e relativa. Dessa forma, Rashomon é um
filme considerado desbravador em termos da utilização do flashback, pois não
adota esse recurso como elemento de causalidade, como uma maneira convencional de explicar fatos ocorridos no passado de determinado personagem ou de dar informações que ajudem o espectador a compreender a fábula.
Ao contrário, Kurosawa emprega essa ferramenta para mostrar diferentes
pontos de vista de um mesmo fato, o que obscurece o rumo do que seria uma
verdade única; sua intenção é abrir caminho a outras possibilidades ocultas
no tempo vivido de cada personagem e fornecer a visão que cada um deles
possa ter a respeito de suas próprias experiências vitais. O tempo e o espaço
assim concebidos anulam suas discrepâncias e esse ajuste traz como conseqüência a abolição das fronteiras entre sonho e realidade, uma lacuna que
deixa a sensação de que a vida é algo que ocorre fora do tempo e do espaço
em que vivemos.
A conexão dos tipos de cronotopo desenvolvidos por Bakhtin com os três
filmes analisados permite definir, de maneira geral, como é possível uma aplicação desses conceitos em obras audiovisuais. Nestas análises, optou-se por
utilizar o conceito de cronotopo de Bakhtin num sentido mais delimitado, referente à formulação de uma enunciação cronotópica relacionada com o enunciado fílmico, da instituição de recortes significantes nos filmes estudados. Dessa
maneira, a partir da seleção de algumas articulações temporais e espaciais presentes nos filmes, foi possível chegar a significados cronotópicos fora do próprio enunciado fílmico.
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EGLE MÜLLER SPINELLI é mestre pelo Departamento de Multimeios/Unicamp e doutora em Comunicação e Estética do Audiovisual pela ECA/USP.
egle00@uol.com.br
Artigo recebido em 18 de abril
e aprovado em 20 de junho de 2005