Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
Percurso de análise de obras audiovisuais: agenciamentos materiais e semiológicos12
Francisco Beltrame TRENTO3
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (PEPGCOS) da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) / Doutorado.
Resumo
O presente ensaio busca descrever uma metodologia de análise de um produto audiovisual a
partir da percepção dos agenciamentos semiológicos, discursivos e materiais nele
representados, tomando aqui como objeto o seriado Black Mirror. Baseando-se na proposta
ecológica de abordagem e análise de Ivakhiv (2013), este texto busca estabelecer um
diálogo e um modo de pensar a comunicação como produção de afetos a partir da relação
que se dá entre pesquisador e produto fílmico, televisivo ou games, etc. Pretende-se que
essa relação possibilite a emergência de críticas a determinados modos de existência,
dispositivos biopolíticos, de controle e captura das subjetividades. Para tanto,
descreveremos o percurso que parte da análise ecológica de objetos audiovisuais
(IVAKHIV, 2013) e que, em um segundo momento, no desenvolvimento da tese, poderá se
alinhar com a Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour; bem como outros arcabouços teóricos.
Palavras-chave: Ecologia midiática, Teoria dos agenciamentos, dispositivo, Teoria AtorRede, audiovisual
------------------------------------------------------------Enclausurada por altas montanhas escarpadas
Mar aberto e livre, não visível, somente o fiorde sinuoso.
Eu o chamo de mar, mas não é o mar. O mar é aberto e livre. Todo dia eu me banho nessa água salobra e estagnada do
fiorde. E a chamo de mar.
Fim de verão. Inverno escuro chegando.
Um dia claro de verão com a grande escuridão em seguida.
Esposa morta. Esposa nova. Vida nova. Vida morta.
Inverno escuro chegando. Criaturas rastejando, procurando abrigo.
Algo vasto e profundo me cobrirá completamente. Algo em que eu possa nadar. Nadar para longe, longe daqui.
Mãe na água. Mãe em mim.
Ellida em “A Dama do Mar”(Henrik Johan IBSEN, versão adaptada de Susan SONTAG)
I - Introdução
A ubiquidade midiática e computacional presente em grande parte dos ambientes
das sociedades ocidentais contemporâneas fazem emergir determinadas formas de vida e
processos de sociabilidade nesses cenários. Podemos citar o aumento da circulação de
fluxos semiológicos incessantes que partem de mídias distribuídas nos mais distintos
dispositivos (celulares, tablets, objetos senscientes e conectados às redes, etc.).
1
Trabalho apresentado no GP Teorias da Comunicação, XIV Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento
componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Uma versão deste artigo foi apresentada como trabalho final da disciplina “Teorias Críticas da Comunicação”, ministrada
pelo Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado, no PEPGCOS/PUCSP, no primeiro semestre de 2014.
3
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP) na Linha de Pesquisa Cultura e Ambientes Midiáticos. Mestre pelo programa de Pós-Graduação em
Imagem e Som (PPGIS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com projeto desenvolvido com bolsa FAPESP.
Graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (Unesp/Bauru). Email: francisco.trento@gmail.com .
1
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
Representações e críticas utópicas ou distópicas a respeito desse cenário não são novidades
no campo audiovisual. Vários estudos acadêmicos já discutem essa temática via múltiplos
prismas conceituais, sejam as produções sobre o pós-Humanismo, a ubiquidade midiática
ou as convocações biopolíticas (PRADO, 2013) em consonância aos fluxos enunciativos e
da gestão dos afetos pela publicidade. Também discute-se a reemergência na mídia de
discursos homogeneizantes e estriados, que promovem e reiteram bifurcações a ser
superadas (sujeito/objeto; interno/externo, humano/não-humano).
A pesquisa em desenvolvimento busca traçar o estatuto ontológico de alguns dos
modos de existência que emergem com a ubiquidade midiática; bem como possibilidades
de subversão de seus mecanismos de controle através do tracejamento de diagramas que
explicitem relações de força e agenciamentos materiais e semiológicos realizados em
determinado espaço-tempo. Deve-se levar em conta a influência dos objetos midiáticos na
produção das subjetividades contemporâneas. Sua máxima presença é a internet das coisas.
A discussão desse objeto conceitual partirá de uma construção narrativa que deriva da
história representada em um objeto audiovisual, o seriado britânico Black Mirror (Channel
Four, Reino Unido, 2011-)4. Ele tem como temática formas de vida emergentes na
sociedade em rede. O tema que circunda todos os programas é a relação entre indivíduos e
tecnologias midiáticas, e como essas estão cada vez mais interconectadas. Os episódios são
independentes e unitários, mas todos destacam a onipresença das mídias massivas e pósmassivas que excitam nossos sentidos e nos afetam via suas múltiplas telas. No seriado, os
conflitos são causados pelas consequências dessa onipresença, ora diegeticamente situada
no presente, ora em futuros distópicos; segundo a iconografia da série, não distantes.
A proposta é estabelecer um diálogo entre a análise do seriado – não somente em
sua dimensão estética e de sua estrutura narrativa, mas também seu conteúdo, a percepção
do pesquisador, a facticidade dos acontecimentos e as referências teóricas com as quais
busca-se estabelecer um diálogo. Primeiramente, deve-se considerar que alguns setores do
campo da Comunicação no Brasil ainda apresentam ressalvas a projetos mais ensaísticos5.
4
O primeiro episódio “se passa em nosso presente, na “era do Twitter" e olha para uma sociedade moderna, onde a jovem
princesa Susannah é sequestrada. O sequestrador apresenta ao primeiro-ministro um pedido de resgate incomum – que ele
faça sexo com um porco e o ato seja transmitido em cadeia nacional. O pedido é feito por meio de um clipe do YouTube.
Durante o curso do filme, temos de seguir o governo em suas tentativas de impedir que o pedido de resgate obsceno se
espalhe para o público, os jornalistas da TV-estação UKN tentam lutar e não divulgar a público o vídeo. Entretanto, o
público se mantem colado aos seus "espelhos negros", especulando em torno da uma pergunta que é tomada ao longo do
twittofera em velocidade recorde; O primeiro-ministro vai fazer sexo com um porco, a fim de salvar a vida da princesa?”
(SÖDEBERG, 2013, p.15; Tradução nossa com adaptações)
5
Não só o ensaio, mas o próprio desenvolvimento de um texto híbrido entre ensaio, ficção científica e discussão
acadêmica pode ser visto como uma possibilidade que extrapole e critique o antropocentrismo dos modos de existência
contemporâneos, ao, por exemplo, narrar uma história a partir de um ponto de vista não-humano. A respeito disso, Felinto
2
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
De modo a buscar uma abordagem em que, no momento de análise, não trate os conceitos
como “peças” a ser “encaixadas” no desenvolvimento de um texto, mas sim, como
personagens conceituais6 que surgem no desenvolvimento do ato de contar uma história,
nos deparamos com, dentre outras abordagens, o modelo metodológico da ProcessRelational Media Analysis, de Adrian Ivakhiv (2013). Busca-se a apropriação desse método
como guia que permita a descrição de alguns pontos-chave na pesquisa (a representação no
seriado dos agenciamentos materiais e semiológicos na comunicação, seus dispositivos, os
processos de normatização relacionados a um duplo-regime de visibilidades e da linguagem
(enunciação); em um contexto biopolítico que produz determinadas subjetividades. Buscase alertar que a existência desse guia, bem como o posterior diálogo com a Teoria AtorRede de Bruno Latour (2012) e as outras correntes teóricas com as quais a pesquisa se
relacionará um diálogo não são amarras. Elas podem ou não aparecer no desenvolvimento
processual do projeto, dependendo do processo dialógico estabelecido entre pesquisador,
obra a ser analisada, contexto, etc. (Vale lembrar que uma tese de doutorado como objeto
participa de múltiplos agenciamentos coletivos).
II – Um percurso metodológico
Seguindo a apresentação do percurso metodológico a ser utilizado na análise dos
seis episódios do seriado Black Mirror, primeiramente atentaremos a sua dimensão
temática. Em um segundo momento será possível traçar diagramas dos agenciamentos
biopolíticos e comunicacionais a partir da Teoria Ator-Rede e da Assemblage Theory
(DeLANDA, 2006), bem como a discussão com outros referenciais teóricos pertinentes ao
estudo da ontologia orientada aos objetos, levando em conta a ubiquidade midiática como
(2014, p. 13) nos lembra de toda a produção de Vilém Flusser e da obra War in the Age Of Intelligent Machines, de
Manuel de Landa (1991): “Flusser imagina e descreve detalhadamente o estranho octópode que dá nome à obra.
Vampyroteuthis, animal que vive nas fossas abissais e assim se encontra nas antípodas do humano, é usado como
ferramenta alegórico-epistemológica para produzir uma reflexão filosófica sobre temas como a situação existencial do
homem, a memória, a arte e nossos aparatos tecnológicos. Curiosamente, apenas quatro anos após a publicação de
Vampyrothethis Infernalis, o filósofo deleuziano Manuel De Landa irá também produzir uma espécie de ficção teórica em
linhas surpreendentemente próximas da proposta de Flusser. Em seu War in the Age of Intelligent Machines (1991), De
Landa conta a história das tecnologias de guerra (fortemente interligadas, como demonstrou Friedrich Kittler, às
tecnologias midiáticas) a partir do ponto de vista de um robô inteligente (…) Tanto Flusser como De Landa, empreendem,
dessa forma, exercícios epistemológico-imaginativos centrados na desconstrução do olhar antropocêntrico, criando a
ficção de uma distância que talvez possibilite observar os fenômenos (a história, as tecnologias, o mundo) a partir de uma
perspectiva diferente, inovadora e imaginativa. Nessa nova forma de “ficção científica”, o robô de guerra de De Landa e a
lula-vampiro de Flusser constituem modos de colocar nosso conhecimento do mundo entre parêntesis (como na epoché
fenomenológica), dissolvendo o familiar e permitindo a emergência de aspectos “inusitados” dos objetos analisados.”
(FELINTO, 2014, p. 13).
6
“Na enunciação filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas faz-se o movimento pensando-o, por intermédio de um
personagem conceitual. Assim, os personagens conceituais são verdadeiros agentes da enunciação. Quem é Eu? é sempre
uma terceira pessoa.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 87)
3
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
produtora e produzida por distintos modos de existência. A descrição e a análise dos
episódios do seriado Black Mirror seguirá a análise ecológica e das materialidades da mídia
e de produtos audiovisuais proposta por Ivakhiv (2013). O autor, defende em seu livro
Ecologies of The Moving Image, no capítulo Doing Process-Relational Media Analysis um
roteiro de trabalho que siga o filme (ou qualquer produto audiovisual) em três ciclos de
vida, três ecologias: material, social e perceptiva (IVAKHIV, 2013, Kindle Loc. 7378). A
análise passa por três fases: a primeiridade, ou seja, o confrontamento sensorial direto com
a “imagem, som e espetáculo” (IVAKHIV, 2013, Kindle Loc. 7384); a secundidade, que
nessa perspectiva é a compreensão da estrutura narrativa do seriado, e também a
terceiridade, que é a exorreferencialidade (ibid.), ou seja, as relações do objeto com outros
produtos ou situações comunicacionais.
Na primeira frase da descrição, da primeiridade, do encontro e da percepção que se
dá entre o pesquisador e o seriado, devem ser descritas algumas observações. Deve-se
atentar para o mundo geomórfico do seriado, ou seja, a descrição de “como o filme
apresenta a objetividade do mundo e das coisas” (IVAKHIV, 2013, Kindle Loc. 7386), e
também “como é a natureza não-humana mostrada” no produto audiovisual, de modo a
possibilitar com que o observador possa “compará-la à natureza que conhece” (ibid., Kindle
Loc. 7392). O método descritivo, ao mesmo tempo, deve focar nos relacionamentos e nos
acontecimentos comunicacionais, ou seja, explicitar “como é mostrado o relacionamento
entre pessoas e entidades não-humanas, e como este é diferenciado entre distintos grupos
sociais” (IVAKHIV, 2013, Kindle Loc. 7392); o que, para o projeto proposto, diz respeito
aos dispositivos comunicacionais que produzem convocações biopolíticas (PRADO, 2013)
de distintas maneiras congruentes às relações de poder assimétricas. A descrição do objeto
audiovisual segue respondendo “como o filme descrever os modos de estar vivo (aliveness),
bem como as interações sensoriais – ver, sentir, ouvir, etc., entre os diferentes tipos de
coisas” (IVAKHIV, 2013, Kindle Loc. 7392-7397). Busca-se abordar “como são mostradas
as diferenças entre as formas de vida no filme” (ibid. Kindle Loc. 7397), a agência animal,
não-humana e selvagem, bem como “quais tipos de tensões surgem das fronteiras entre
humanos e as outras formas de agência? Como essas tensões são mediadas com o passar da
narrativa?” (ibid. Kindle Loc. 7397). Essa abordagem descritiva se relaciona com a Teoria
Ator-Rede de Latour (2012), bem como à Ontologia Orientada aos Objetos, precisando
como formas de vida como são mostradas nos produtos audiovisuais. Permite que
desenvolva-se um diálogo entre pesquisador, obra e teoria que explicite as materialidades
4
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
da comunicação, a não separabilidade entre sujeitos e objetos/dispositivos midiáticos, os
agenciamentos e trocas entre os corpos e a mídia. Este método busca mostrar a dimensão do
Antropomorfismo e da máquina antropológica na obra, partindo da observação, percepção e
relato dos atores humanos ou que parecem humanos do seriado (ibid., Kindle Loc. 7403).
Busca-se mostrar na obra como se deu a “agência humana e como sua subjetividade é
expressa” (ibid.), as diferenças culturais entre grupos, as relações de poder e os
agenciamentos políticos, atentando para a percepção de quais grupos sociais são mostrados
como ativos ou passivos e com a potência de pregar uma mudança social (IVAKHIV, 2013,
Kindle Loc. 7408). Ivakhiv (2013) ressalta a análise da representação de gênero, classe,
etnicidade, sexualidade, e em especial “o que é representado como natural ou não-natural”
(ibid., Kindle Loc. 7415), ou seja, padrões de normatividade.
Ivakhiv (2013) traz como a secundidade de seu método a compreensão dos signos e
das estruturas narrativas do objeto audiovisual, no caso de Black Mirror, um seriado que
não possui episódios independentes; estes são ligados apenas por uma contiguidade
temática das relações homem/mídia/tecnologia/objetos. É preciso, portanto, também ater-se
à estrutura discursiva, mostrando como se dá a construção dos dualismos básicos (bem/mal)
do programa, atentando para uma discussão que explicite uma pluralidade ontológica, dos
modos de perceber, conceber e avaliar esses conceitos a partir de determinadas posições,
grupos sociais ou indivíduos inscritos em distintos modos de existência.
A última fase da descrição é aquela que mostra a dimensão exorreferencial da trama,
as referências sócio-históricas, códigos ou discursos intertextuais (não deixando o trabalho
preso a um único objeto empírico, mas enredado ao ecossistema audiovisual ao qual
pertence, observando e comparando “as referências sócio-históricas em relação a outras
obras audiovisuais (IVAKHIV, 2013, Kindle Loc. 7433). Considera-se também a relação
entre o mundo do filme e o mundo “real”, ou seja, em que contexto sócio-político se deu a
“materialidade da distribuição do filme” (ibid., Kindle Loc. 7444). Esse processo, apesar de
descritivo, permite com que seja feita a listagem dos entes em relação no seriado,
permeados por uma ubiquidade midiática, e permitirá outras camadas de análise via outros
pontos de vista, como a Teoria Ator-Rede e a Assemblage Theory (DeLANDA, 2006).
Nesse processos buscamos a possibilidade de uma liberdade ensaística na construção
narrativa da tese, que emerge da relação entre seriado, mundo, percepção do pesquisador e
o referencial teórico que poderá dialogar com a discussão desenvolvida na tese.
5
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
Em outras palavras, essa metodologia parte de um objeto empírico (o seriado Black
Mirror) e sua análise, para discutir de distintos pontos de um objeto conceitual (a
construção e a emergência de distintas formas de vida, modos de existência e subjetividades
em meio às mídias ubíquas). Esse objeto conceitual é transpassado por distintos
questionamentos, como a não-separabilidade do sujeito/objeto/mídia, bem como da relação
mídia/agenciamentos biopolíticos. Com a descrição do objeto em mão, explicitando as
representações das relações entre sujeitos, mídias e suas materialidades, há a abertura para
outras frentes de análise, como a partir da Teoria Ator-Rede (LATOUR, 2012) e sua
específica abordagem dos modos de sociabilidade.
O antropólogo Bruno Latour propõe um percurso metodológico em que a “tarefa de
definir e organizar o social deveria ser deixada para os atores eles mesmos, não pelo
analista” (LATOUR, 2012), “traçando as conexões e as controvérsias ao invés de tentar
decidir como resolver essas controvérsias” (ibid., p.23). É preciso deixar que o objeto fale
por si próprio, observando nas redes a presença dos objetos que atuam como
intermediários, ou seja, aqueles “cujo papel é justamente o de criar uma ligação entre
[natureza e sociedade]” (ibid., p. 79), que, entretanto, “nada fazem além de transportar,
veicular, deslocar a potência dos dois únicos seres reais, natureza e sociedade”. Em
contrapartida, mediadores são objetos que nas redes “transformam, traduzem, distorcem e
modificam o significado ou os elementos que eles supostamente carregam” (LATOUR,
2012). Para a análise, não devemos
presumir que os atores possuam uma linguagem enquanto os analistas
dispõem de uma metalinguagem na qual a primeira está “inserida”.
Conforme já dissemos, concede-se aos analistas unicamente uma
infralinguagem cujo papel consiste apenas em ajudá-los a ficar atentos à
metalinguagem plenamente desenvolvida dos atores, um relato racional
daquilo que estão falando. (LATOUR, 2012, p. 79)
Dessa forma, os objetos e os seres viventes não-humanos, para Latour, são dotados
de agência, actantes em uma rede, produzem diferença e, no caso analisado em específico,
fazem parte de um jogo de poder e de saber sob os quais o sujeito é constituído discursiva e
esteticamente. Entretanto, a
(...) ANT [Actor-Network Therory] não é (...) a criação de uma absurda
“simetria entre humanos e não humanos”. Obter simetria, para nós,
significa não impor a priori uma assimetria espúria entre ação humana
intencional e mundo material de relações causais. Existem divisões que
6
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
não podemos ultrapassar, superar, reduzir dialeticamente. Elas precisam,
isto sim, ser ignoradas e abandonadas a seus próprios recursos, como um
castelo outrora formidável e hoje em ruínas. (LATOUR, 2012, p. 114)
Na análise de nossa narrativa audiovisual, pode-se levar em conta os objetos que
atuam como dispositivos (AGAMBEN, 2009) de subjetivação da sociedade em rede
representada no seriado Black Mirror. A partir da visão interrelacional dos actantes, do
panorama que emerge dessa cartografia, pode-se relacionar e discutir os dispositivos que
atuam como atores-rede com poder de agenciamento da subjetividade contemporânea,
dentre outros tantos elementos que a produzem. Um ator-rede é rastreado quando,
no curso de um estudo, se toma a decisão de substituir atores de qualquer
tamanho por sítios e locais e conectá-los, em vez de inseri-los no micro e
no macro. As duas partes são essenciais, daí o hífen. A primeira parte (o
ator) revela o minguado espaço em que todos os grandiosos ingredientes
do mundo começam a ser incubados; a segunda (a rede) explica por quais
veículos, traços, trilhas e tipos de informação o mundo é colocado dentro
de suas estreitas paredes. (LATOUR, 2012, p. 260)
Deste modo, o tracejar dos agentes e actantes facilitará a visualização das relações
de poder e dos coletivos que produzem afetos no ambiente demonstrado do seriado, que
representa uma sociedade marcada pelos estímulos da ubiquidade midiática.
.
A análise à luz da Teoria Ator-Rede de Bruno Latour será feita em conjunção com a
consideração teórica da Ontologia Plana de Manuel de Landa (2006). A organização dos
diagramas de relações entre dispositivos midiáticos – objetos reais, que transmitem e afetam
os sujeitos através da esfera do campo sensível – e os outros entes, considerará a noção de
irredutibilidade dos sistemas relacionais defendida por DeLanda, que “concebe o mundo
como feito de inúmeras assemblages [montagens] irredutíveis às suas mínimas partes e
nunca dissolvidas como estruturas totalitárias orgânicas” (HARMAN, 2008, p. 367). Essa
abordagem não essencialista, permite a observação da agência dos meios (através de seus
fluxos semióticos e discursos/enunciados que trazem convocações biopolíticas), e leva em
conta a construção histórica-social desses dispositivos midiáticos, já que “o mundo é
recheado de entidades de inúmeros tamanhos que só podem ser compreendidas através do
processo genético pelas quais surgiram e foram engendradas, não pela sua essência”
(HARMAN, 2008, p. 370). Deste modo, no processo de análise, consideraremos os
dispositivos midiáticos a partir de uma estrutura ontológica que considera o objeto como
dotado de sua propriedade material e também expressiva (de afetamento). Deve-se discutir
de que maneira essa estrutura faz parte de uma rede de agenciamentos de territorialização e
7
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
desterritorialização, de busca de estabilização e homeostase ou heterogeneidade; seja ela
discursiva, no que tange a normatização de saberes e de regimes de verdade a serem
seguidos para viver. Nas palavras de DeLanda (2006, p. 12), “uma dimensão do eixo define
as regras variáveis que os componentes podem jogar, sejam expressivos ou materiais”,
enquanto a outra “define processos variáveis em que esses componentes se envolvem para
estabelecer a identidade de uma assemblage [montagem] aumentando seu grau de
homogeneidade
interior
e
reforçando
suas
fronteiras,
ou
desterritorializando-a”
(DeLANDA, 2006, p. 12).
Sendo uma tese um processo, atentaremos para a pertinência da inclusão de novas
abordagens teórico-metodológicas que possam auxiliar na construção do texto; como por
exemplo a Ontologia Orientada a Objeto (OOO) (HARMAN, 2013) do Realismo
Especulativo e da Onto-Cartografia de Bryant (2014), bem como abordagens sobre
biopolítica.
III – Agenciamentos Biopolíticos
Não entrando em uma descrição mais explícita da narrativa do seriado Black Mirror,
objeto em questão, nota-se em todos episódios a representação da produção de um desejo de
controle nos personagens; desejo relacionado à ilusão de domínio dos indivíduos sobre os
outros, seja via dispositivos sinópticos (todos se vigiam, registram e julgam os atos que não
se encaixam nas normatividades vigentes). Há também, entretanto, um retorno a um
subjetivismo, interpretação de que o homem possui, através das ferramentas midiáticas e
técnicas, o poder de se especializar e domar a natureza, outros entes e objetos. Este desejo,
criticado a esmo no seriado dado o pessimismo e a impossibilidade das linhas de fuga
traçadas na narrativa não serem recapturadas por movimentos estratificantes, rescentraliza o
indivíduo como centro do universo, ilusão esta que deve ser combatida através de debates
na área da Comunicação ou a partir de objetos comunicacionais. Nessas análises é preciso
que seja explicitado que o humano é fruto de agenciamentos, ainda que seja também um
ator/agente nessa rede de relações materiais e sensíveis.
O desejo de controle mostrado no seriado analisado incita discursos de bifurcação
não agem apenas como forças sociológicas, mas na produção e distribuição de uma doutrina
na ordem do sensível/semiótico/discursivo. Estabelecem divisões entre humano/nãohumano, sujeito/objeto, natureza/cultura. Tentativas como essas não são novas e
8
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
relacionadas apenas a embates sobre a influência de algumas tecnologias e da sociedade de
controle na contemporaneidade. Atuam na distinção entre aquilo que é digno de ser humano
ou não, dos dispositivos que buscam o antropocentrismo, que pregam a superioridade
ontológica dos homens sobre os animais e “coisas”, e da partição hierarquizada entre os
próprios humanos através de estratégias biopolíticas que emergiram juntamente com novos
modos de governamentabilidade do neoliberalismo (Cf. FOUCAULT, 2008), já salientados
por Michel Foucault em 1977, no primeiro volume de História da Sexualidade:
A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora,
cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista
da vida. Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das disciplinas
diversas — escolas, colégios, casernas, ateliês; aparecimento, também, no terreno
das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade,
longevidade, saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas
diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das
populações. Abre-se, assim, a era de um "bio-poder".(FOUCAULT, 1977, p. 131)
Esse conjunto de práticas discursivas, materiais e arquitetônicas de organização da
vida têm como exemplo extremo os indivíduos que nos campos de concentração entravam
em um estágio em que não respondiam a estímulos como comida e água, mas em um
regime de fluxo de vida “à espera da morte”. Em O que Resta de Auschwitz, o filósofo
Giorgio Agamben traz como máxima do controle biopolítico a representação desses campos
da Alemanha Nazista, dedicando-se, a partir da obra de Primo Levi a respeito, a tratar da
impossibilidade do testemunho daqueles que viviam em um regime que extrapolava tanto o
controle sobre a vida quanto a morte humana. Nos campos, aqueles denominados
Musselmann (cf. Agamben, 2008) não eram considerados humanos, vivos ou mortos, não
conseguiam produzir força para permanecer vivos ou tampouco morrer. As estratégias
biopolíticas (de controle sobre a vida) e tanatopolítica (de controle sobre a morte) se uniram
na máquina nazista dos campos de concentração (AGAMBEN, 2008).
Nessas linhas, são várias as correntes filosóficas que pregam o surgimento da figura
do homem como constructo. Para Foucault (2007), o humano é um produto discursivo
dependente de condições de produção históricas descontínuas. Pode-se tomar como
exemplo um ideal de homem do fim do Século XX e início do Século XXI que, em uma
rede de dispositivos, deve gerir a sua própria vida como empresa; adequado aos dispositivos
do neoliberalismo. A construção do homem como conceito, passa, para o filósofo francês,
primeiramente pela apropriação dos indivíduos como objetos a serem investigados pelas
disciplinas (biologia, medicina, psiquiatria) nos últimos três séculos. Posteriormente isso
9
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
acontece pelo atravessamento direto dos dispositivos de poder disciplinar (prisão, escola,
hospital e todas as suas regras) na construção da subjetividade desses sujeitos e indivíduos
cerceados. Um dispositivo, por sua vez é
(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são
os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT, 1979, p. 244)
Agamben (2009, p. 40) tem outro conceito de dispositivo, ainda que dialogue com a
obra de Michel Foucault e dialogue muito com a filosofia heideggeriana. Para o filósofo
italiano, os dispositivos não se resumem às instituições facilmente traçáveis e enumeráveis
e seus conjuntos de regras, enunciados e práticas salientados por Foucault; mas também
objetos, que atuam em redes que subjetivam e dessubjetivam os indivíduos. Agamben
propõe uma ontologia em que há seres viventes e dispositivos – o produto da relação entre
um dispositivo e um ser vivente é um sujeito. Entretanto, se para Foucault, o homem como
um conceito é produto dessas disciplinas e dos dispositivos que buscam dualizar
razão/desrazão; normal/anormal, hétero/homossexual, esse homem também está próximo de
seu fim. Bruno Latour (1994), por sua vez, atenta para a construção da ideia de um “sujeito
moderno” como aquele que pensa que se contrapõe às sociedades ditas “primitivas”. Nesse
contexto, é válida qualquer análise que observe a mídia como dispositivo que age
diretamente na construção das subjetividades, ainda que ela mesma concorra com outros
múltiplos elementos semiológicos e materiais.
III – Conclusão
Analisar um objeto audiovisual possibilita a emergência de discussões políticas. Ao
falar do seriado Black Mirror, vimos a construção de um traço comum a seus personagens,
que busca uma dualização ontológica entre humanos e “o resto”, uma separação abismal
que reforça um essencialismo de uma suposta natureza humana dominadora e conquistadora
de todas as forças materiais e espirituais. Pensar e pelo menos admitir uma pluralidade
ontológica, dos distintos modos de existir, da não normatividade do sujeito
homem/macho/europeu não é impossível. Entretanto, para combater a disseminação dos
preconceitos deve-se atentar para um sistema duplo que envolve as materialidades e as
10
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
discursividades, a construção das redes pelas quais se divulgam os enunciados. Em uma
época e contexto nos quais a mídia é ubíqua (está nos smartphones, tablets, em dispositivos
ligados ao corpo, como o Google Glass) há a emergência de uma série de questionamentos
sobre controle e privacidade, mas também a possibilidade de uma divulgação mais
ramificada de enunciados. Entretanto, não há espaço para deslumbres: as novas mídias não
substituem as anteriores (enunciados assustadores sobre os “rolêzinhos” rondam o jornal
das sete da noite na televisão e são replicados e apoiados nas mídias sociais). Elas
tampouco farão emergir a partir de geração espontânea de discursos progressistas. Para
traçar e combater os discursos de bifurcação e tentativas de hierarquização de
subjetividades é preciso atentar para a materialidade das comunicações e as redes de poder
(relações entre interesses políticos daqueles que controlam as mídias de massa ou não, das
estruturas físicas e dos discursos). Busca-se, em qualquer análise, uma estratégia de
cartografia que trace as relações de poder, os objetos e a transmissão semiológica dos
enunciados que pregam a superioridade de alguns modos de ser: antropocêntricos,
heteronormativos, de superioridade de classe, etc. Do mesmo modo, devem ser traçados os
agentes e enunciados que atuem como linhas de fuga no combate às bifurcações que
fizeram emergir a figura do humano, m específico, de um tipo de humano que parece ser o
único a ser chancelado e autorizado a existir.
As materialidades como regime em que corpos estão se agenciando e afetando; da
qual temos apenas algumas impressões a partir dos traços de seus acontecimentos, não estão
em completo isolamento com o campo do dizível. A performatividade da linguagem atua
em conjunto com o campo do visível; e ambos procuram intervir no campo das relações de
força, e de fato atuam nas modificações dos corpos dos indivíduos – seja através da própria
modificação corporal ou de modos de comportar, gestualizar e agir. Como ressalta Aidar
Prado (1996, p. 31) ao retomar a teoria dos speech acts de John Searle, “o ato performativo
é justamente aquele em que falar é realizar uma ação. Toda comunicação linguística
envolve atos linguísticos”, ou seja, o próprio falar de determinados verbos, por exemplo, já
constitui uma ação – quando digo que prometo algo, o ato de prometer já se constitui como
uma ação nele mesmo. Trazendo a questão da performatividade para os enunciados
disparados pelos mais distintos dispositivos midiáticos, podemos destacar, atualmente, dado
o caráter biopolítico das formas de vida da sociedade ocidental medicalizada, os enunciados
que partem das múltiplas mídias, principalmente do campo da publicidade biomédica ou da
moda, atuam nos modos como esses indivíduos passam a poder viver. Um exemplo entre tal
11
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
relação performativa entre o campo enunciativo da mídia e as materialidades dos corpos, e a
dupla influência/agência entre ambos foi dado por Manuel DeLanda (2006):
Existem, entretanto, casos importantes nos quais as classificações e os
modelos específicos usados pelos cientistas sociais afetam as entidades
que estão sendo estudadas. Classificações médicas ou políticas; o uso de
categorias como “refugiada do sexo feminino” ou “criança hiperativa”,
por exemplo, podem interagir com as pessoas que estão sendo
classificadas se elas se tornam cientes do fato de que estão sendo
classificadas. No primeiro caso, uma mulher fugindo das terríveis
condições de seu país pode se tornar ciente do critério de classificação
utilizado para definir “refugiada do sexo feminino” pelo país para o qual
quer emigrar; e mudar seu comportamento para se encaixar nesse critério.
Nesse caso, seria difícil de se manter um compromisso ontológico ao
referente do termo “refugiado do sexo feminino”, já que o uso ele
mesmo do termo cria seus próprios referentes. Por outro lado, aceitar
que os referentes de termos gerais sejam alvos em movimento não
enfraquece o realismo social: de maneira a explicar o caso da refugiada,
uma pessoa teria que evocar – além de seu conhecimento do sentido do
termo “refugiada do sexo feminino”, a existência objetiva de todo um
conjunto de organizações (cortes, agências de imigração, aeroportos,
portos, centros de detenção), normas institucionais e objetos (leis, decisões
de tribunais, passaportes) e práticas institucionais (confinamento,
monitoramento, interrogações), formando o contexto no qual as interações
entre categorias e seus referentes acontecem. Em outras palavras, o
problema que uma ontologia social e realista levanta aqui não se dá
porque os sentidos dos termos gerais [categóricos] moldam a percepção
que cientistas sociais têm de seus referentes, criando um círculo vicioso,
mas apenas em alguns casos especiais e no contexto de instituições e
práticas que não são redutíveis aos sentidos. (DeLANDA, 2006, p. 01-02)
(Tradução nossa; grifo nosso)7
No exemplo acima, o modo de viver de um indivíduo foi profundamente afetado por
um ato de performatividade da linguagem. Partindo de outro prisma, podemos dizer que
corpos são construídos por determinadas máquinas corporais ou incorporais. Bryant (2014),
vale-se, em sua machine-oriented-ontology (MOO) (do termo máquina, em detrimento do
7
There are, however, important cases in which the very models and classifications social scientists use affect the behavior
of the entities being studied. Political or medical classifications using categories like 'female refugee' or 'hyperactive child',
for example, may interact with the people being classified if they become aware of the fact that they are being so
classified. In the first case, a woman fleeing terrible conditions in her home country may become aware of the criteria to
classify 'female refugees' used by the country to which she wants to emigrate, and change her behavior to fit that criteria.
In this case, an ontological commitment to the referent of the term 'female refugee' would be hard to maintain, since the
very use of the term may be creating its own referents. On the other hand, accepting that the referents of some general
terms may in fact be moving targets does not undermine social realism: to explain the case of the female refugee one has
to invoke, in addition to her awareness of the meaning of the term 'female refugee', the objective existence of a whole set
of institutional organizations (courts, immigration agencies, airports and seaports, detention centres), institutional norms
and objects (laws, binding court decisions, passports) and institutional practices (confining, monitoring, interrogating),
forming the context in which the interactions between categories and their referents take place. In other words, the
problem for a realist social ontology arises here not because the meanings of all general terms shape the very perception
that social scientists have of their referents, creating a vicious circle, but only in some special cases and in the context of
institutions and practices that are not reducible to meanings. (DeLANDA, 2006, p. 01-02)
12
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
termo “objeto” por questões conceituais, mas também por estar carregado da tendência a
relacionarmos um objeto a um sujeito ao qual se relaciona). Em uma ontologia anárquica,
falar de máquinas permite com que especulemos sobre quais fluxos atuam como input, em
uma rede de relações corporais ou incorporais entre múltiplas máquinas. Bryant (2014),
mostra como os agenciamentos corporais (relações físicas, biológicas e termodinâmicas do
domínio dos corpos) atuam em paralelo aos agenciamentos incorporais (enunciados,
normas, leis, etc.) Nesse último campo, localizamos os enunciados das mídias. O conceito
de dispositivo, paralelamente, ainda que em outro prisma conceitual e referencial, remete a
um conjunto de enunciabilidades e visibilidades que agenciam os corpos através de técnicas
biopolíticas. Como o exemplo acima, em que a comunicação, a linguagem em sua
performatividade, atua no regime dos indivíduos, Bryant mostra a dupla existência dos
agenciamentos das máquinas corporais e incorporais, das quais os indivíduos são nodos
sujeito a normatizações, apontando também a existência de pontos de resistência:
As máquinas incorporais não carregam simplesmente operações que
formam pessoas e relações sociais entre pessoas de maneiras particulares,
assim reproduzindo diferenciação social; eles também têm uma função
regulatória. As pessoas nunca são perfeitamente ou rigidamente formadas
por máquinas incorporais que lutam para formar seus corpos, mentes,
afetos e relações umas com as outras. Isso é verdadeiro até nas
composições sociais mais rígidas e estriadas como os totalitarismos.
Sempre existem pequenos atos de resistência, desobediência e inovação.
As máquinas incorporais são máquinas que tanto lutam para formar corpos
de modos que eles mesmos possam apagar esses desvios; e máquinas que
respondem a instâncias desses desvios de modo a assegurar que a
composição social continue funcionando de acordo com sua organização e
diferenciação. (BRYANT, 2014, p. 99; Tradução nossa)8
Dado um contexto em que múltiplos dispositivos biopolíticos agenciam as
subjetividades contemporâneas e seus também múltiplos modos de existência, trabalhos
ensaísticos que relatem a pluralidade dos agenciamentos produtores dos nossos desejos e
dos modos de agir de nossos corpos são válidos. O roteiro dado por Ivakhiv (2013), bem
como as possibilidades de traçeamento de diagramas a partir da Teoria Ator-Rede e da
Assemblage Theory, dentre outros, permite a construção de um texto, a partir da análise de
8
The incorporeal machines do not simply carry out operations that form people and social relations between people in
particular ways, thereby reproducing social differentiation; they also have a regulatory function. Persons are never
perfectly or rigidly formed by the incorporeal machines that strive to form their bodies, minds, affects, and relations to one
another. This is true even in the most rigid and striated social assemblages such as totalitarianisms. There are always little
acts of resistance, disobedience, deviance, and novelty. The incorporeal machines are both machines that strive to form
bodies in ways that would erase these deviations, and machines that respond to instances of these deviations so as to
ensure that the social assemblage continues to function according to its organization and differentiation. (BRYANT, 2014,
p. 99)
13
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
um objeto audiovisual, que explicite os agenciamentos midiáticos dos quais fazemos parte e
alguns rarefeitos traços desses modos de existência que dali emergem e podem ser
colocados em contrapontos com referenciais teóricos que descrevam outros modos de
existência. Não se trata de uma posição apocalíptica em relação às tecnologias e mídias,
mas uma visão dialógica entre os modos em que corpos se encontram com o mundo (ou
como o mundo me percebe) e aquilo que pode ser compreendido dos outros. Como ressalta
Ivakhiv (2013), entretanto, esta análise nunca estará descolada da primeira percepção do
pesquisador à obra analisada; e provavelmente nem deveria estar. Isso porque, além de
transmissão de informações de uma fonte a um receptor, adotamos a visão de que
comunicação é formada a partir do disparar de afetos via objetos corporais ou incorporais.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. São Paulo:
Boitempo, 2008.
BRYANT, L.R. The Democracy of Objects, Open Humanities Press 2011.
BRYANT, L. R. Onto-Cartography: An Ontology of Machines and Media. Edinburgh:
Edinburgh University Press, 2014.
DeLANDA, M. A New Philosophy of Society: Assemblage Theory and Social
Complexity. New York: Continuum Books, 2006.
DELEUZE, G. “O que é o dispositivo?”. In: DELEUZE, G. O Mistério de Ariana. Lisboa:
Passagens, 1996.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é a Filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
ESPOSITO, R. Bios: Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.
FELINTO, E. “Zona Cinzenta: Imaginação e Epistemologia Fabulatória em Vilém Flusser”.
In: Anais do XXIII Encontro Anual da Compós. Belém: Compós, 2014.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1977.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
14
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica: Curso dado no Collège de France. Martins
Fontes: São Paulo, 2008.
HARMAN, G. "DeLanda’s ontology: assemblage and realism." Continental Philosophy
Review 41.3 (2008): 367-383.
HARMAN, G. Bells and Whistles: More Speculative Realism. Washington: Zero Books,
2013.
IVAKHIV, A. J. Ecologies of the Moving Image: Cinema, Affect, Nature. Waterloo:
Wilfrid Laurier University Press, 2013. [Versão em Epub. convertido para Kindle;
marcações de citação da versão Kindle. As citações na versão Epub original são das
localizações 999.0 a 1052.0].
IVAKHIV, A. J. On Matters of Concern: Ontological Politics, Ecology, and the
Anthropo(s)cene. UC Davis Environments and Societies: Davis, EUA, 2014. Disponível
em
<
http://environmentsandsocieties.ucdavis.edu/files/2014/04/On-Matters-ofConcern.pdf> Acesso: 22/04/2014.
LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro, Editora 34. 1994.
LATOUR, B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador:
Edufba, 2012.
LATOUR, B. An Inquiry into Modes of Existence. Londres: Harvard University Press,
2013.
PRADO, J.L.A. Brecha na Comunicação: Habermas, o Outro, Lacan. São Paulo:
Hacker, 1996.
PRADO, J.L.A. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São Paulo:
EDUC (Editora da PUC/SP), 2013.
SANTAELLA, L, et al. "Desvelando a Internet das Coisas." Revista GEMInIS 1.2 Ano 4
(2013):
19-32.
Disponível
em
<www.revistageminis.ufscar.br/index.php/geminis/article/view/141>. Acesso: 30/01/2014.
SÖDERBERG, B. "The dark reflection: A look at how the media is depicted in the
short film Black Mirror-The National Anthem and how this could affect society."
Linnaeus
University:
2013.Disponível
em
<http://www.divaportal.org/smash/get/diva2:650853/FULLTEXT01.pdf>. Acesso: 12/04/2014.
SONTAG, Susan. A dama do mar. Versão de IBSEN, H. A Dama do Mar (s/d). São
Paulo: N-1 Edições, 2013.
15