Filosofia na PUCRS:
40 anos do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia
(1974 – 2014)
Chanceler
Dom Jaime Spengler
Reitor
Joaquim Clotet
Vice-Reitor
Evilázio Teixeira
Conselho Editorial da Série Filosofia
Agemir Bavaresco - (Editor)
Cláudio Gonçalves de Almeida
Draiton Gonzaga de Souza
Eduardo Luft
Ernildo Jacob Stein
Felipe Müller
Nythamar H. F. de Oliveira Junior
Ricardo Timm de Souza
Roberto Hofmeister Pich
Thadeu Weber
Urbano Zilles
Conselho Editorial
Jorge Luis Nicolas Audy | Presidente
Jorge Campos da Costa | Editor-Chefe
Jeronimo Carlos Santos Braga | Diretor
Agemir Bavaresco
Ana Maria Mello
Augusto Buchweitz
Augusto Mussi
Bettina S. dos Santos
Carlos Gerbase
Carlos Graeff Teixeira
Clarice Beatriz da Costa S|hngen
Cláudio Luís C. Frankenberg
Érico João Hammes
Gilberto Keller de Andrade
Lauro Kopper Filho
Série Filosofia – nº 224
Agemir Bavaresco
Jerônimo Milone
André Neiva
Jair Tauchen
(Orgs.)
Filosofia na PUCRS:
40 anos do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia
(1974 – 2014)
Porto Alegre, 2014
© EDIPUCRS, Editora Fi
www.pucrs.br/edipucrs
Diagramação: Lucas Fontella Margoni
Revisão dos autores.
Arte da capa: Tatiane Marks
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
F488 Filosofia na PUCRS : 40 anos do Programa de PósGraduação em Filosofia : 1974 – 2014 [recurso eletrônico]
/ orgs. Agemir Bavaresco ... [et al.]. – Dados eletrônicos. –
Porto Alegre : EDIPUCRS ; Editora Fi, 2014.
405 p. – (Série Filosofia ; 224).
ISBN - 978-85-66923-35-3 (Editora Fi)
ISBN - 978-85-397-0529-0 (EDIPUCRS)
Disponível em: http://www.editorafi.org
http://www.pucrs.br/edipucrs
1. PUCRS – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas –
Programa de Pós-Graduação em Filosofia. I. Bavaresco, Agemir.
II. Série.
CDD-378
Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS
Sumário
Apresentação ............................................................................ 11
Draiton Gonzaga de Souza
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS: 1974 – 2014 ... 14
Agemir Bavaresco
Stroud and Cartesian skepticism ........................................... 45
Claudio de Almeida
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo................ 65
Edison Alencar Casagranda
Neuro José Zambam
Estado, política e evolução social: uma tendência para este
século XXI................................................................................ 89
Leno Francisco Danner
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea ........................................... 111
Kátia M. Etcheverry
Breve comentário sobre o conceito de Cultura em O Mundo
Codificado de Vilém Flusser ................................................... 132
André Brayner de Farias
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias............. 141
Elnora Gondim
Osvaldino Marra Rodrigues
Memória Epistêmica: Preservação e Geração ................... 157
Ricardo Rangel Guimarães
Notas para uma estética do pensamento .......................... 172
Eduardo Luft
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou ......... 193
Norman R. Madarasz
Deliberação Coletiva ............................................................. 232
Felipe de Matos Müller
Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein..... 249
Nythamar de Oliveira
Epistemologia da Religião: Quatro Posições Paradigmáticas ......269
Rogel Esteves de Oliveira
Notas sobre a radicalidade da ética da alteridade frente à
crise de nosso tempo ............................................................ 283
Marcelo L. Pelizzoli
The lifeworld in the context of the Crisis of European Sciences
and Transcendental Philosophy: The political potential of
Husserl’s mature transcendental philosophy............................. 292
Fabrício Pontin
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel ..... 313
Mateus Salvadori
Considerações acerca da causalidade em sistemas autoorganizados............................................................................. 330
Sérgio A. Sardi
O Nervo Exposto: Por uma crítica da razão ardilosa desde
a racionalidade ética .............................................................. 345
Ricardo Timm de Souza
Diferença ontológica e onto-teo-logia................................ 362
Ernildo Stein
O Neocontratualismo de Rawls .......................................... 383
Thadeu Weber
Filosofia na PUCRS: 40 anos do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
(1974 – 2014)
Draiton Gonzaga de Souza
11
Apresentação
Draiton Gonzaga de Souza1
O Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
PUCRS está comemorando, em 2014, quarenta anos de
existência. Trata-se de uma data muito especial também para
mim, pois acompanho, há 25 anos, a história desse
Programa: em 1989, ingressei no mestrado em Filosofia,
defendendo a dissertação em 1993, orientado pelo Prof. Dr.
Urbano Zilles, primeiro Coordenador do PPG. De 1994 a
1998, recomendado por professores do Programa, realizei o
Doutorado em Filosofia na Universidade de Kassel
(Alemanha), sob a orientação do Prof. Dr. Hans-Georg
Flickinger, que lecionava, à época, em ambas Universidades
(PUCRS e Kassel). Desde 1998, faço parte do Corpo
1
Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da PUCRS
12
Apresentação
Docente desse PPG, tendo-o coordenado durante quatro
anos (de 2000 a 2003).
São quatro décadas marcadas por um grande
empenho dos Coordenadores (do primeiro até o atual, Prof.
Dr. Agemir Bavaresco), dos professores, dos estudantes e
dos funcionários. Sem a colaboração de todas essas pessoas,
não se estaria celebrando data tão significativa. Quer-se,
neste momento, festejar tanto o passado desse programa,
como também o presente: ao completar quatro decênios,
situa-se entre os Programas de Pós-Graduação de Excelência
na área de Filosofia, no Brasil, tendo obtido, nas últimas duas
avaliações da CAPES, a nota 6, o que lhe possibilitou a
inclusão no Programa de Excelência CAPES (PROEX).
Trata-se, sem dúvida, de um Programa que revela
excelência nas atividades de ensino, de pesquisa, nos
eventos, nas publicações etc. Por exemplo, no que diz
respeito à produção bibliográfica do Programa, façam-se
apenas duas menções especiais: à Revista Veritas (que, em
2015, completará 60 anos!), classificada como A2 no Qualis
(CAPES) e à Série Filosofia que, de 1993 a 2014, ostenta mais
de 200 títulos.
Além disso, o PPG em Filosofia caracteriza-se tanto pela
intensa inserção nacional – tendo formado um grande
número de mestres e doutores que atuam em Universidades
de todo o Brasil –, como também por ter um caráter
internacional muito destacado. É notório o esforço de
oferecer aos pós-graduandos atividades de nível elevado,
propiciando-lhes o contato com destacados professores,
tanto brasileiros como estrangeiros. Assim, já tivemos um
grande número de intelectuais visitantes do exterior, além de
os docentes e discentes terem recebido incentivo para a
realização de atividades internacionais, como, por exemplo,
o pós-doutorado ou o doutorado sanduíche. Ao longo
desses anos, recebemos a visita de um grande número de
pesquisadores estrangeiros, entre os quais destacaria, à guisa
de exemplo, apenas alguns professores da Alemanha, por eu
Draiton Gonzaga de Souza
13
estar mais vinculado ao intercâmbio com esse país: KarlOtto Apel, Otfried Höffe, Ernst Tugendhat, Walter
Jaeschke, Wolfgang Kersting, Ludger Honnefelder, Rainer
Wiehl e Wolfgang Neuser.
Por fim, quero expressar o meu sincero
agradecimento a todos que contribuíram para que
chegássemos ao atual nível de excelência, tanto aos que
continuam atuando no PPG em Filosofia da PUCRS, como
àqueles que não estão mais conosco, alguns deles já na
eternidade. Muito obrigado!
14
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
40 anos de pós-graduação em
filosofia/PUCRS: 1974 – 2014
Agemir Bavaresco1
Uma relevante tradição dos estudos de Filosofia
iniciou-se em Porto Alegre, no ano de 1940, com a criação
do Curso de Graduação em Filosofia. Este Curso constituise no berço do que seria, posteriormente, a PUCRS e veio a
ser o suporte principal para a organização do Curso de PósGraduação em Filosofia.
O Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
Mestrado, da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul foi criado em 1974, tendo como área de
concentração Antropologia Filosófica, sendo credenciado
pelo Conselho Federal de Educação (CFE) em 08 de maio
de 1978, conforme Parecer no. 1575/78. Constituía, na
Doutor em Filosofia pela Universidade Paris I. Professor do Programa
de Pós-Graduação em FILOSOFIA/PUCRS. Coordenador do PPG
FILOSOFIA/PUCRS; E-mail: abavaresco@pucrs.br - Site:
www.abavaresco.com.br
1
Agemir Bavaresco
15
época, um dos primeiros Programas de Pós-Graduação em
Filosofia no país. Seu objetivo principal era a qualificação
dos professores de Filosofia e áreas afins das universidades
brasileiras. O Curso de Doutorado em Filosofia, criado em
1995, mereceu recomendação da CAPES, por parecer
datado de 27 de maio de 1996 e começou a funcionar no
segundo semestre de 1996.
O Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
PUCRS é um dos mais experientes do Brasil, tendo, ao longo
do tempo, acumulado know how em pesquisa, docência e
inovação filosófica. Consolida-se em padrões internacionais
de qualidade, através das áreas de concentração, linhas e
projetos docentes e discentes de pesquisa em universidades
estrangeiras e nacionais, ampliando essas atividades e tendo
como suporte a estrutura de gestão, a infraestrutura e a
biblioteca da Universidade.
Asseguramos um corpo docente permanente,
colaboradores e visitantes, composto de seniores e jovens,
permitindo a atualização e renovação do quadro de
professores; havendo um justo equilíbrio entre o número de
orientadores e orientandos da pós-graduação; e a inserção de
acadêmicos da graduação no processo de iniciação científica
para a pesquisa. Nosso corpo docente e discente participa
das mais diferentes estruturas de pesquisa, tais como em
Sociedades Científicas nacionais e internacionais, Centros,
Núcleos e Grupos, mantendo intenso intercâmbio com
instituições de ensino superior.
Em termos de produção bibliográfica, o Programa
publica a Revista Veritas, fundada em 1955, com
periodicidade quadrimestral, conceito reconhecido pelo
Qualis/CAPES, sendo indexada nos principais sistemas,
plataformas e bases de dados nacionais e internacionais.
Além da Revista Veritas, o PPG tem mantido, com
regularidade e qualidade, a publicação da Revista Eletrônica
Intuitio, organizada pelos discentes. Edita a Seleção Filosofia,
16
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
disponibilizando livros no formato eletrônico e/ou
impresso, contando, atualmente, com 220 números.
Nesta descrição da trajetória do PPG,
apresentaremos os seguintes itens: Proposta do programa,
corpo docente, corpo discente, produção intelectual e
inserção social. Nossa apresentação situar-se-á no estágio
atual do desenvolvimento do PPG, pressupondo que tudo
isto é resultado da pesquisa, docência e gestão dos
professores, alunos e técnicos administrativos, que
construíram esta história de 40 anos do programa. A todos
o nosso reconhecimento e gratidão.
1 – PROPOSTA DO PROGRAMA
1.2 – Metas Estratégicas
A proposta do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS) tem como metas estratégicas os seguintes
pontos:
a) Consolidar padrões internacionais de pesquisa
através das linhas e projetos docentes e discentes de pesquisa
em universidades estrangeiras e nacionais, ampliando sua
inserção, tendo como suporte a Assessoria Internacional da
PUCRS, a estrutura curricular flexível, a infraestrutura
dinâmica e a biblioteca atualizada com livros impressos e ebooks, Periódicos impressos e eletrônicos, Periódicos do
Portal CAPES e bases de dados mundiais.
b) Assegurar um número sustentável de docentes
permanentes, colaboradores e visitantes, composto de
seniores e jovens, que permite a atualização e renovação do
quadro professoral, garantindo um acompanhamento
personalizado aos acadêmicos, integrando pós-graduação e
graduação na pesquisa.
c) Distribuir as orientações do corpo discente e as
defesas de dissertações e teses com a média de orientandos
Agemir Bavaresco
17
por professor permanente, para qualificar a publicação
discente, equilibrar a disparidade na qualidade das
dissertações e teses e garantir o tempo médio de titulação do
programa.
d) Continuar crescendo na produção intelectual de
livros autorais, coletâneas, capítulos de livros, artigos
conforme os critérios do Qualis, e na produção técnica como
pareceristas de revistas de destaque nacional e internacional,
organização de eventos, participações em bancas etc., para
manter a relevância na publicação filosófica.
e) Proporcionar inserção social e solidariedade
através da formação de pesquisadores e docentes, a
integração e a cooperação com outros programas e centros
de pesquisa para continuar sendo um polo de
desenvolvimento profissional, pesquisa e pós-graduação.
f) Qualificar
estudantes
e
profissionais,
oportunizando o aprofundamento em suas atividades de
ensino, pesquisa e inovação.
g) Formar profissionais num viés interdisciplinar
para atuarem em atividades de consultoria, empresas
públicas e privadas, como centros de bioética, biotecnologia,
estudos ambientais, computação, políticas públicas, ética
empresarial, ciências cognitivas e outras áreas de interface
com a Filosofia Teórica e a Ética Aplicada.
h) Continuar desenvolvendo os mais altos padrões
da pesquisa e do ensino em Filosofia no país, atingindo os
níveis de excelência reconhecidos pelos nossos pares e pela
Comissão de avaliação de Área, não apenas pela qualidade e
regularidade da produção científica de nossos docentes, mas
também pelo teor e excelência de nossos eventos, cursos e
trabalhos discentes.
1.2 - Áreas de Concentração e Linhas de Pesquisa
O PPG em Filosofia da PUCRS foca-se em 2 (duas)
áreas de concentração, as quais desdobram-se em 6 (seis)
18
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
linhas de pesquisa, mantendo coerência, consistência,
abrangência e atualização tanto na pesquisa como em sua
proposta curricular.
Área de Concentração: Ética e Filosofia Política
•
Linha de Pesquisa: Estado e Teorias da Justiça
•
Linha de Pesquisa: Fundamentação da Ética
Área de Concentração: Metafísica e Epistemologia
•
Linha de Pesquisa: Dialética
•
Linha de Pesquisa: Epistemologia Analítica
•
Linha de Pesquisa: Fenomenologia e Hermenêutica
•
Linha de Pesquisa: Filosofia na Idade Média
Os programas de ensino são oferecidos conforme o
interesse das pesquisas em andamento e visam à articulação
entre as necessidades decorrentes das disciplinas, da pesquisa
dos professores e dos projetos de dissertação ou tese dos
alunos. Neste sentido, a ementa de cada disciplina específica
pode testemunhar o quanto o PPG orienta as suas
abordagens às discussões atuais e aos debates
contemporâneos em filosofia. Na mesma ótica, dentro dos
36 créditos máximos previstos para cada semestre, uma
parcela de créditos é oferecida por professores visitantes
e/ou bolsistas do Brasil ou do exterior, em cursos de
docência compartilhada, em inglês ou em francês, o que, de
novo, mostra a orientação de integração e
internacionalização com a comunidade dos congêneres e a
atualização das discussões.
Para a pesquisa qualificada e atualizada, tendo em
vista um denso investimento na aquisição de obras
importantes na área, pode-se afirmar que o acervo de
filosofia na Biblioteca Central da PUCRS está entre os
melhores da América Latina.
Agemir Bavaresco
19
1.3 – Planejamento do Programa
O planejamento do programa, inspirado pelas metas
estratégicas, assume os desafios internacionais da área de
produção do conhecimento, melhorando a formação dos
discentes, com a finalidade da inserção dos egressos,
segundo os parâmetros da área. O PPG segue investindo
densamente no intercâmbio com outras Faculdades de
Filosofia do Brasil e do exterior, o que ocorre, em parte, por
meio do incentivo a estágios pós-doutorais, participação em
eventos com apresentação de trabalhos, minicursos e
estágios discentes, particularmente no doutorado (PDSE),
do Projeto MERCOSUL PUCRS-UDELAR, do Projeto
SCHOLASTICA COLONIALIS, assim como pela
absorção de pesquisadores de pós-doutorado de outras
instituições, bolsistas de pós-doutorado do Programa
Nacional de Pós-doutorado (PNPD) e de estudantes e
pesquisadores através de novos intercâmbios acadêmicos,
como os que foram iniciados com o Phenomenology
Recheardch Center (Southerm Illinois University,
Carbondale, EUA), com o InsCer (Instituto do Cérebro da
PUCRS) e com o Centro Brasileiro de Pesquisas em
Democracia (CBPD) na Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da PUCRS.
Por outro lado, a própria concepção do Programa e
o Planejamento Estratégico da PUCRS postulam que o PPG
e a Universidade devem estar de tal modo inseridos na
comunidade internacional de pesquisas que possam ser
considerados estações para encontros de caráter
internacional no Brasil.
Neste sentido, comunidade e sociedade de pesquisa,
em ambas as áreas de concentração do PPG, em especial nas
rubricas Teorias da Justiça, Epistemologia, Fenomenologia e
Filosofia da Religião, têm tido encontros sequenciais no
âmbito do PPG em filosofia da PUCRS. Isso é confirmado
pelas dezenas de convidados, entre os mais influentes
20
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
pesquisadores da comunidade filosófica de tradição
continental e analítica, que atuam nos eventos promovidos
pelo Programa, mantendo uma média anual de 20
pesquisadores estrangeiros em visita ao PPG.
A meta do PPG em Filosofia da PUCRS continua
sendo a de corresponder aos mais altos padrões da pesquisa
e do ensino de filosofia no país alcançando os níveis de
excelência reconhecidos pelos pares e pela Comissão de
avaliação de Área. Os eventos e cursos, organizados pelo
nosso programa e sediados na PUCRS, caracterizam-se pela
dimensão internacional. A meta de internacionalização
buscada pelo PPG em Filosofia da PUCRS operacionalizase através dos Grupos de Pesquisa em vinculação orgânica
com pesquisadores de outras instituições, em eventos e
cursos presenciais, mas também pela defesa de bancas de
dissertações e teses presenciais ou através de vídeo
conferências.
O PPG leva em consideração as recomendações da
Comissão de Avaliação acerca da produção intelectual, tanto
no que diz respeito aos Periódicos, como aos livros e
capítulos publicados por editores nacionais e internacionais.
Atingimos a média correspondente de produção qualificada,
segundo os critérios de avaliação, para todos os tipos de
produção intelectual exigidos pela Área. O PPG mantém
com periodicidade e qualidade as publicações da Revista
Veritas (impressa e eletrônica) e a Revista Intuitio (eletrônica),
esta criada por iniciativa de mestrandos e doutorandos de
nosso programa.
O número de docentes que participam em
congressos no exterior ou que atuam como pareceristas de
publicações, tais como Periódicos e livros de destaque
internacional, tem sido mantido pelo PPG em Filosofia da
PUCRS que continua, organicamente, comprometido com a
meta de ser considerado referência em qualidade no meio
filosófico brasileiro. Tanto a coordenação do programa
quanto o seu corpo docente têm consciência dos desafios
Agemir Bavaresco
21
que esse processo de qualificação crescente implica para a
pesquisa filosófica e interdisciplinar.
Neste sentido, a tendência que se deseja ver
confirmada é a de buscar, face ao enorme envolvimento
internacional com congêneres dos centros mais destacados
da filosofia, contrapartidas mais sólidas em projetos,
produção intelectual e publicações internacionais. Ao
mesmo tempo, verifica-se a tendência do PPG, na figura dos
seus docentes, de exercer um papel cada vez maior nas
atividades de membros de sociedades internacionais,
conselhos científicos e editoriais em veículos importantes,
bem como na atividade de pareceristas internacionais e
nacionais de veículos de divulgação intelectual,
reconhecidamente, qualificados.
O PPG em Filosofia da PUCRS assumiu uma
estratégia de interdisciplinaridade na pesquisa filosófica.
Neste sentido, nosso foco de pesquisa está se consolidando
na medida em que a PUCRS implementou o modelo de
estruturas de pesquisa no formato de Núcleos, Grupos e
Centros de Pesquisa.
1.4 – Infraestrutura para ensino, pesquisa e extensão
Os alunos do PPG em Filosofia da PUCRS têm
acesso ao laboratório de informática, na Faculdade de
Filosofia e Ciência Humanas, contando com 60
microcomputadores de última geração e 2 (duas)
impressoras preto e branco, e 1 (um) scanner. Desde
novembro de 2008, os discentes têm espaço exclusivo na
nova Biblioteca Irmão José Otão, a ser explorado tanto
como laboratório de informática quanto laboratório de
pesquisa.
22
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
a) Biblioteca
A Biblioteca Central Ir. José Otão localiza-se no
Prédio 16, estrategicamente situado no centro do Campus
Universitário. É aberta ao público para consulta local e de
livre acesso ao acervo. Em 07 de novembro de 2008, foram
inauguradas as novas instalações que ocupam uma área de
21.000 m2. A ampliação ocorreu através da integração de
uma torre de 14 pavimentos à estrutura antiga.
Área de abrangência: Atende aos cursos e/ou pesquisas
da Universidade e da Comunidade, abrangendo as Ciências
Agrárias, Biológicas, da Saúde, Exatas e da Terra, Sociais e
Aplicadas, Humanas, Engenharias e Linguística, Letras e
Artes.
Acervo: Os acervos de livros, teses, dissertações,
periódicos e materiais multimídia estão reunidos e agrupados
em quatro áreas do conhecimento: Humanas, Sociais
Aplicadas, Ciência e Tecnologia e Linguagem e Artes.
O conjunto das coleções que formam o acervo da
Biblioteca Central recebeu considerável acréscimo com a
disponibilização do acesso à avançada fonte de informação
em formato eletrônico. Trata-se da “ebrary Academic
Complete”, uma coleção com mais de 113 mil livros
eletrônicos (e-books), que contempla todas as áreas do
conhecimento e permite download e leitura em tela de
computador ou dispositivos móveis, como tablets e
smartphones.
O acervo da Biblioteca Central conta com 375.652
títulos e 615.603 exemplares de livros impressos e
eletrônicos (e-books), teses e dissertações, folhetos, obras
raras e materiais multimídia, 7.686 títulos e 445.521
fascículos de periódicos, 138 títulos de bases de dados,
resultando num acervo de 1.061.124 itens.
Todas as fontes de pesquisa on-line disponibilizadas
pela Biblioteca podem ser acessadas pela comunidade
Agemir Bavaresco
23
acadêmica, a partir de computadores localizados fora da rede
da Universidade, utilizando o serviço de Acesso Remoto.
Recursos e Serviços: Acesso a bases de dados, tais como
Medline, PsycInfo, Biological Abstracts, Primal Pictures,
INSPEC, ERIC, Lis, JUIS, Journal Citation Reports,
International Pharmaceutical Abstracts, Press Display,
UptoDate, JSTOR: Business I, Business II, Business III, Life
Sciences, Mathematics & Statistics, Brain Navigator e
Embase. Oferece acesso integral ao Portal de Periódicos da
Capes e consulta ao Ebsco Electronic Journals e ao
ProQuest On-line, banco de dados que inclui as bases ABI
Inform Global, Academic Research Library, ProQuest
Computing, ProQuest Biology Journals, ProQuest Medical
Library, Nursing & Allied Health Source, ProQuest
Telecommunications, ProQuest Social Science Journals e
ProQuest Dissertations & Theses. Essas fontes oferecem
acesso a periódicos e bases de dados eletrônicos, em todas
as áreas do conhecimento, com textos referenciais e
integrais.
b) Recursos de informática
A secretaria do Programa dispõe de computadores e
duas impressoras em rede, sendo que uma das impressoras
opera ao mesmo tempo serviço de copiadora, fax, scanner e
correio eletrônico (e-mail) e a outra é utilizada para
impressões coloridas. Cada professor dispõe de
microcomputador e de impressora em seu gabinete. O
Programa possui home-page (www.pucrs.br/pgfilosofia)
com todas as suas informações, como seleção, áreas, linhas,
defesas, eventos, publicações, apoios financeiros.
As salas de aula da Graduação e do PPG em Filosofia
possuem conexão wireless e equipamento audiovisual para
utilização de Power Point e exibição de DVDs para
discussão em sala de aula. Todos os alunos dispõem de
endereço eletrônico e têm acesso ao Laboratório de
24
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
Informática da Faculdade de Filosofia e à Internet para
desenvolver suas pesquisas bibliográficas.
c) Infraestrutura cultural e logística
Há o Museu de Ciência e Tecnologia, teatro,
inúmeros auditórios e salas de conferência, estacionamentos
dentro do campus para alunos, pesquisadores e professores,
quatro livrarias, diversas lojas de conveniência, além de
várias lanchonetes e restaurantes espalhados nas
dependências de nossa Universidade.
O programa tem se caracterizado pela busca de
padrões internacionais para suas atividades de pesquisa. As
linhas e projetos individuais são ativos e envolvem outros
docentes, bem como um bom número de discentes. Essas
atividades, por sua vez, desdobram-se em um variado leque
de eventos e publicações nacionais e internacionais. Há
também um grande número de estágios discentes de
pesquisa em universidades estrangeiras e de professores
visitantes brasileiros e estrangeiros. A estrutura curricular é
flexível e segue as orientações de pesquisa dos docentes. A
infra-estrutura de ensino e, particularmente, a biblioteca
central estão entre as melhores do país.
2 – CORPO DOCENTE
2.1 – Perfil do Corpo Docente
O corpo docente, composto por 12 (doze)
professores permanentes, 2 (dois) colaboradores e 1 (um)
visitante, mistura professores seniores, com experiência e
renome na área, e professores mais jovens, bem titulados, o
que assegura a renovação do quadro. Todos os docentes
permanentes realizaram estágio pós-doutoral e continuam
saindo para pesquisar, ensinar e participar de eventos
internacionais. A carga de orientação é muito bem
Agemir Bavaresco
25
distribuída pelo grupo. Os professores atuam regularmente
na graduação, mantendo bolsas de iniciação científica e
articulando graduandos associados a projetos de pesquisa. O
tamanho da graduação é suficiente para o porte do
programa, segundo os padrões da área. O corpo docente tem
um perfil que leva em conta a titulação, a diversificação na
origem da formação, o aprimoramento e experiência na
pesquisa, docência e inserção nacional e internacional,
criando uma performance de compatibilidade e adequação à
proposta do programa.
2.2 – Atividades de Pesquisa
O corpo docente está organicamente inserido nas
estruturas de Pesquisa da PUCRS que são assim organizadas:
Grupos de Pesquisa, Núcleos de Pesquisa e Centro de
Pesquisa.
a) Grupos de Pesquisa do PPG/FILOSOFIA/PUCRS
Epistemologia Analítica: Claudio Gonçalves de
Almeida; Epistemologia Social: Felipe de Matos Muller;
Ética, Contemporaneidade e Desconstrução - Críticas
Filosóficas da Violência: Ricardo Timm de Souza; Filosofia
na Idade Média: Roberto Hofmeister Pich; Filosofia
Sistemática: Dialética e Filosofia do Direito: Eduardo Luft;
Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Teoria da Justiça e
Cultura Política: Nythamar de Oliveira Jr; Teologia, Filosofia
e Religião: Urbano Zilles; Filosofia e Interdisciplinaridade:
Agemir Bavaresco; Lógicas de Transformação: Críticas da
Democracia: Norman Roland Madarasz.
Esses grupos articulam atividades de pesquisa com
docentes de outras instituições e buscam, sobretudo,
estimular a pesquisa de discentes de Pós-Graduação; é visível
o potencial de qualificação e engajamento que oportunizam
aos seus membros.
26
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
O PPG em Filosofia da PUCRS possui 5 (cinco)
bolsistas pertencentes ao Programa de Nacional de PósDoutorado da CAPES (PNPD) que são nominados como
professores colaboradores, sendo que contribuem,
sobremaneira, em elaboração de projetos, captação de
recursos,
organização
de
eventos,
traduções,
acompanhamento de visitantes estrangeiros, bem como a
criação, manutenção de grupos de pesquisa, em que são
estudados os principais tópicos de filosofia da atualidade,
envolvendo discentes da graduação e pós-graduação,
internos e externos à nossa comunidade acadêmica, nos
debates que ocorrem quinzenalmente.
b) Núcleos de Pesquisa
Os núcleos de pesquisa são os seguintes: Filosofia,
Religião e Ciência, coordenado pelo Prof. Roberto
Hofmeister Pich; Pesquisa em Dialética e Direito,
coordenado pelo Prof. Thadeu Weber; Pesquisa
Interdisciplinar em Teoria da Justiça e Cultura Política,
coordenado pelo Prof. Nythmar de Oliveira.
Os núcleos e grupos de pesquisa vinculados ao PPG
são polos de interdisciplinaridade composto por
pesquisadores e doutores, e seus orientandos de pósgraduação, além de bolsistas de iniciação científica, que
apresentam, normalmente, os resultados de suas pesquisas
em eventos nacionais (nos Encontros de GTs da ANPOF,
Sociedades Científicas etc.) e internacionais através da
publicação de livros e artigos em revistas especializadas e de
convênios e de acordos interinstitucionais.
c) Centro de Pesquisa
O Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia
(CBPD) desenvolve estudos interdisciplinares e
investigações teóricas e aplicadas sobre a democracia, de
Agemir Bavaresco
27
forma a reunir pesquisadores das áreas da Filosofia, das
Ciências Sociais, do Direito, da Economia, da História e de
outras disciplinas afins em interlocução com a Ética e
Filosofia Política, de modo a reexaminar e investigar a
história, o desenvolvimento e a consolidação da democracia
através de suas instituições sociais, econômicas, jurídicas e
políticas, da cultura política e problemas teóricos correlatos.
Os encontros dos Grupos de Pesquisa, dos Núcleos
de Pesquisa, e do Centro de Democracia, a realização das
duas edições das Semanas Acadêmicas anuais e as demais
formas de eventos nacionais e internacionais que têm sede
na PUCRS são promovidos em estreito contato com a
Direção da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e a
Coordenação do Curso de Filosofia. Em função desse
histórico de integração entre docentes e discentes de PósGraduação com a Graduação em Filosofia, o Programa tem
recebido um número crescente de candidatos ao Mestrado e,
respectivamente, ao Doutorado que são egressos da
Faculdade de Filosofia da PUCRS.
2.3 – Projetos de Pesquisa
Dentre todos os projetos de pesquisa desenvolvidos
pelos docentes do PPG Filosofia da PUCRS, destacam-se os
seguintes:
Prof. Dr. Nythamar de Oliveira
• A Fundamentação Filosófica dos Direitos Humanos:
Kant, Rawls, Habermas;
• Justiça, alteridade e reconhecimento em Habermas e
Honneth;
• Mídias sociais e tomadas de decisão: razão e emoção nas
relações sociais;
• Pesquisa interdisciplinar em Teoria da Justiça.
28
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
Prof. Dr. Thadeu Weber
• Autonomia e Dignidade da Pessoa Humana em Kant,
Rawls e Dworkin;
• A crítica de Hegel ao "formalismo" da moral kantiana e a
apropriação de Rawls para a concepção política de justiça.
Prof. Dr. Agemir Bavaresco
• Filosofia e Interdisciplinaridade;
• Filosofia, Direito e Política;
• Redes Sociais, Teoria da Agenda e Opinião Pública;
Prof. Dr. Norman Roland Madarasz
• O conceito de acontecimento e a lógica da transformação;
• Ética e filosofia política francesa contemporânea.
Prof. Dr. Draiton de Souza
• Globalização, democracia e diversidade cultural.
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza
• Ética, temporalidade e desconstrução;
• Filosofia e literatura – Interfaces contemporâneas no
âmbito das teorias críticas da literatura.
Prof. Dr. Urbano Zilles
• Conhecimento e ética;
• Diálogo entre teologia, filosofia e ciências do século XXI.
Prof. Dr. Cláudio Almeida
• Conhecimento e racionalidade epistêmica;
• Epistemologia do raciocínio e paradoxos epistêmicos.
Agemir Bavaresco
29
Prof. Dr. Felipe de Matos Müller
• Conhecimento coletivo;
• Conhecimento coletivo na ciência;
• A epistemologia do testemunho a partir do programa de
Epistemologia comunitarista;
• Confiança intelectual e autoridade epistêmica;
• Epistemologia Social;
• Epistemologia do desacordo: um estudo da visão
justificadora.
Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich
• Epistemologia Analítica.
• A “cognição intuitiva” (Cognitio Intuitiva) no
pensamento de João Duns Scotus e seu desdobramento na
tradição Scotista;
• Contingência, ação e liberdade na obra de João Duns
Scotus (1265/1266) e Francisco de Mayronis (+ ca. 1325).
• Filosofia medieval em Portugal – O Scotismo na
península ibérica;
• Filosofia, religião e ciência;
• Scolastica Colonialis – Jerônimo Valera (1568-1625) e
suas obras sobre lógica;
• Scolastica Colonialis: A recepção e o desenvolvimento da
escolástica barroca na América latina, séculos XVI-XVIII;
• Vontade e ação na filosofia na antiguidade tardia,
patrística e idade média;
• Filosofia na idade média.
Prof. Dr. Ernildo Stein
• Fenomenologia do conhecimento e antropologia
filosófica;
• A virada hermenêutica da filosofia: contornos de um
novo paradigma de racionalidade.
30
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
Prof. Dr. Eduardo Luft
• Ontologia deflacionária e ética objetiva: da crítica à Hegel
à reconstrução do conceito dialético de liberdade;
• Para um novo monismo dialético.
2.4 - Participação em organismos científicos e
atividades de gestão
Os docentes permanentes do PPG em Filosofia da
PUCRS realizaram atividades complementares em
praticamente todos os níveis de atuação: participação em
eventos e bancas fora do PPG, apresentação de trabalhos em
eventos fora do PPG, conferências em outras universidades
e centros de estudo da Filosofia, atividade de pareceristas
para instituições de fomento, periódicos e conselhos
editoriais, bem como cursos oferecidos fora do âmbito do
Programa. Houve uma boa participação em bancas de
doutorado de outros PPGs e em outros Estados do Brasil.
Vários colegas exercem funções de gestão em organismos
científicos e de representação funcional institucional.
2.5 – Ensino da Filosofia e pesquisa: Integração
Graduação e Pós-Graduação
Os professores permanentes do PPG em Filosofia
da PUCRS atuam também na Graduação em Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, ministrando
disciplinas em suas áreas respectivas. Muitos deles tiveram
também monitores em suas disciplinas de Graduação, ou
ainda orientam graduandos através de Bolsas de Iniciação
Científica.
Os eventos contaram com a participação ativa dos
alunos da Graduação em Filosofia, também os encontros
dos Grupos de Trabalho e de Pesquisa sediados na PUCRS
Agemir Bavaresco
31
tiveram expressiva presença de alunos da Graduação em
Filosofia. Igualmente, alunos da Graduação em Filosofia e
de outros cursos da PUCRS compareceram, com obtenção
de certificado, nos diversos eventos oferecidos pelo PPG em
Filosofia. Através desses eventos, os alunos da Graduação
tomam conhecimento das áreas de concentração do PPG e,
não raramente, sentem-se motivados a ingressar no PPG.
Temos, anualmente, duas edições da Semana
Acadêmica da Filosofia, realizadas ao final de cada semestre,
com participação de um grande número de alunos da
graduação e da pós-graduação. A Semana Acadêmica tem
um alto índice de participação dos discentes da PósGraduação.
a) Ensino de Filosofia na Graduação
Os professores do PPG em Filosofia, vinculados
também à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, têm
horas de aula na graduação na forma nas disciplinas
semestrais.
b) Ensino a distância
As disciplinas oferecidas pelo PPG Filosofia mantêm
materiais sempre à disposição no moodle, de acordo com a
demanda.
A PUCRS possui uma plataforma de ensino à
distância, incluindo curso de especialização e de graduação
em Filosofia, bem como em outras áreas relevantes, que
podem
ser
acessados
através
do
website:
http://www.ead.pucrs.br
Tem sido bastante discutida a viabilidade de
trabalhar-se com recursos de educação à distância na
filosofia em nível de pós-graduação, sendo que a própria
graduação em filosofia ainda está em fase de consolidar suas
propostas de ensino à distância. Algumas disciplinas da
32
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
graduação são ofertadas na modalidade semipresencial e
estão disponíveis no sistema moodle gerenciado através de
nosso Setor de Educação à Distância.
c) Rede de Pesquisa de alunos de Iniciação
Científica
O PPG mantém uma rede de pesquisadores de
Iniciação Científica vinculando, organicamente, o jovem
pesquisador aos projetos de pesquisa da graduação à pósgraduação, através de bolsas das seguintes agências de
fomento: PIBIC/CNPq; PROBIC/FAPERGS; BPACHAMADA GERAL; BPA-APOIO TÉCNICO e BPAPRAIAS.
d) Programa Integrado de Ensino Graduação e
Pós-Graduação (G-PG)
Desde 2012, os estudantes dos Cursos de Graduação
da PUCRS podem cursar disciplinas isoladas dos Programas
de Pós-Graduação Stricto-Sensu da Universidade. O
Programa tem por objetivo estimular os alunos a prosseguir
os estudos em níveis avançados, oportunizando o convívio
com a pesquisa. O PPG Filosofia aderiu imediatamente a
este Programa e já tivemos alunos da graduação que
cursaram disciplinas da pós-graduação.
O corpo docente, composto por 12 professores
permanentes e 2 (dois) colaboradores, mistura professores
seniores, com experiência e renome na área, e professores
mais jovens, bem titulados, o que assegura a renovação do
quadro. A carga de orientação é muito bem distribuída pelo
grupo. Todos os professores atuam regularmente na
graduação, havendo bolsas de iniciação científica com
graduandos associados a projetos de pesquisa. O tamanho
da graduação é satisfatório para o porte do programa,
segundo os padrões da área.
Agemir Bavaresco
33
3 – CORPO DISCENTE, TESES E DISSERTAÇÕES
O PPG mantém uma regularidade anual de
formandos, mostrando uma consolidação na pesquisa que
pode ser constatada nos números expressos abaixo:
3.1 – Quantidade de teses e dissertações defendidas
O PPG mantém, normalmente, um conjunto de 90
(noventa) alunos regulares anual, somando-se a estes 15
(quinze) alunos especiais que podem cursar disciplinas do
programa conforme suas escolhas interdisciplinares. A
quantidade de teses e dissertações defendidas, anualmente,
em relação ao corpo docente permanente e à dimensão do
corpo discente é bem equilibrada:
3.2 – Distribuição das orientações em relação aos
docentes do programa
O número médio de orientandos por professor
permanente está conforme o proposto pela área. A
distribuição das orientações das teses e dissertações em
relação aos docentes do programa é bem equilibrada,
observando as áreas de concentração e as respectivas linhas
de pesquisa. Mantém-se a média de 6 (seis) a 8 (oito)
orientandos por docente.
3.3 – Qualidade das teses e dissertações
A publicação discente é expressiva e as orientações
são bem distribuídas entre os docentes. A qualidade de
defesas em nível de dissertações e de teses aprovadas é de
excelência e adequado ao plano de metas de um programa
de excelência. A qualidade das teses e dissertações e da
produção de discentes autores da pós-graduação e da
34
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
graduação na produção científica do programa, aferida por
publicações e outros indicadores pertinentes à área pode ser
confirmada pelos artigos em periódicos, publicações em
anais, coletâneas, e-books e em eventos.
3.4 – Eficiência do programa na formação de mestres e
doutores
O tempo médio de titulação do programa, para o
mestrado, e para o doutorado, está bem abaixo da média da
área. A eficiência do programa na formação de mestres e
doutores bolsistas atende, normalmente, ao prazo
estabelecido pela CAPES, ou seja, 24 meses para o mestrado
e 48 meses para o doutorado.
4 - PRODUÇÃO INTELECTUAL
O corpo docente tem o compromisso de produção
intelectual com qualidade e destaque nacional e
internacional, consideradas relevantes: Bolsa de
produtividade ou projeto de pesquisa, Organização de
evento científico, ou Participação em órgãos de avaliação, ou
Liderança em Grupos de Pesquisa ou Núcleos ou Centros
de Pesquisa, ou Orientação e Participação em Bancas, ou
Participação em comissões julgadoras de concursos
públicos, ou Emissão de pareceres a periódicos qualificados,
ou a agências de fomento, ou Membros de comissões
editoriais e científicas de periódicos qualificados e de
Editoras de referência na área, ou Cursos de curta duração.
Apresentação de comunicações e/ou publicação de resumo
em Anais de evento e/ou palestras em eventos científicos na
comunidade filosófica nacional ou internacional. A
informação das produções bibliográficas, das produções
técnicas e das produções artísticas estão disponíveis,
publicamente, no Currículo Lattes de cada docente.
Agemir Bavaresco
35
Com base nos dados do Currículo Lattes de cada
docente, o programa produziu livros integrais, coletâneas e
capítulos de livro, indexados no roteiro de classificação de
livros de avaliação da CAPES. Além disso, foram publicados
artigos, dos quais a maioria com qualis B2 ou superior.
Assim, a produção do programa está entre as mais
expressivas da área. A distribuição dessa produção entre os
membros do programa é equitativa. A produção técnica dos
membros do programa é igualmente muito elevada, como
pareceristas de revistas de destaque nacional e internacional,
organização de eventos, participações em bancas, etc.
5 - INSERÇÃO SOCIAL
5.1 - Inserção e impacto regional e nacional do
programa
No que se refere à nucleação, o programa desenvolve
atividades de ensino de graduação em outras IES da região e
em outras regiões do país; atividades de ensino de pósgraduação em outras IES da região e em outras regiões do
país; atividades de pesquisa em outras IES da região e em
outras regiões do país.
São indicadores de liderança, característicos de
programas de nível 6 (seis) CAPES/Programa de Excelência
(PROEX), também satisfeitos pelo programa a atração de
alunos de diferentes regiões do país e de outros países; a
proporção de docentes participando em comitês de área; a
proporção de docentes participando de diretorias de
associações científicas nacionais e internacionais.
O PPG tem se consolidado como grande centro
formador de doutores, recebendo regularmente candidatos
das cinco regiões do país, assim como tem atraído recémdoutores e pesquisadores para estágios pós-doutorais de
programas menores, atestando, assim, a sua inserção e
impacto regional e nacional.
36
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
Quanto à solidariedade, podemos constatar os
seguintes indicadores no programa: associação com IES para
promover a criação e/ou consolidação de cursos de pósgraduação, particularmente, através de Programas de
Cooperação (PROCAD), ou seja, trata-se da participação do
programa em projetos conjuntos com grupos de pesquisa
não consolidados.
O PPG em Filosofia da PUCRS tem sido objeto de
notável interesse para a formação em nível de doutorado,
tanto de candidatos do estado quanto de fora do estado,
tanto de ex-alunos do mestrado quanto de alunos que
buscam o PPG a partir da formação em nível de mestrado
realizada (há pouco ou há longo tempo) em outra instituição
e estado. Muitos dos doutorandos do PPG já são docentes
ativos em suas instituições de origem, procurando no PPG
em Filosofia o ideal de uma sólida formação em nível
superior. E muitos daqueles que concluem o doutorado em
filosofia no PPG em Filosofia da PUCRS têm obtido
visibilidade no país, sobretudo, no ingresso como docentes
em instituições de outros estados e regiões, com destaque
para instituições públicas (UFPI, UFMT, UFPB, UFS, por
exemplo). O PPG e os seus doutorandos egressos
contribuem com e consolidam, assim, outros cursos de pósgraduação no Rio Grande do Sul e em outros estados,
incluindo as regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste do
Brasil.
Além disso, o PPG, em especial com a revisão dos
Grupos de Trabalho e de Pesquisa sediados na PUCRS, tem
contribuído de forma relevante para a nucleação de grupos
de pesquisa nas áreas temáticas da Epistemologia, Teorias da
Justiça, Fenomenologia e Hermenêutica. De momento, há
quatro Grupos de Pesquisa e de Trabalho (respectivamente
CNPq e ANPOF) que têm sede no PPG em Filosofia da
PUCRS, estendendo-se relevantemente à liderança da
pesquisa nacional, concentrada em suas áreas: Justiça Política
(coordenador: Nythamar de Oliveira), Epistemologia
Agemir Bavaresco
37
Analítica
(coordenador:
Cláudio
de
Almeida),
Fenomenologia e Hermenêutica (coordenador: Ernildo
Stein) e Filosofia na Idade Média (coordenador: Roberto
Hofmeister Pich).
5.2 Integração e cooperação com outros programas e
centros
a) Atividades conjuntas com outros programas
em nível nacional
O Programa de Pós-Graduação em Filosofia segue
investindo densamente no intercâmbio com outras
Faculdades de Filosofia do Brasil e do exterior, o que ocorre,
em parte, por meio do incentivo a estágios pós-doutorais,
participação em eventos com apresentação de trabalhos,
minicursos e estágios discentes, particularmente no
doutorado (PDSE).
O programa está entre os mais bem sucedidos em
termos de sua integração com comunidades internacionais
da área de filosofia, o que fica claro, não somente pelos
numerosos simpósios, colóquios e congressos internacionais
que ele sedia, mas pela participação de seus membros em
destacadas revistas e publicações internacionais. Os
principais indicadores de internacionalização de um
programa 6 (seis) estão confirmados pelo documento de área
e são plenamente satisfeitos pelo programa tais como: a
proporção de visitantes em programas de IES estrangeiras;
de docentes com pós-doutorados realizados em IES
estrangeiras; de professores visitantes estrangeiros recebidos
pelo programa no triênio; de intercâmbio de alunos com IES
estrangeiras, sobretudo, através de bolsas sanduíche; da
presença de alunos de origem estrangeira; da participação de
docentes em eventos científicos de caráter internacional; do
financiamento internacional para atividades da pósgraduação; da participação em comitês editoriais de
38
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
periódicos de circulação internacional; da participação em
projetos de pesquisa envolvendo programas de pósgraduação e grupos de pesquisa de instituições estrangeiras.
Por exemplo, o Projeto Scholastica Colonialis tem por
finalidade a pesquisa sobre a recepção e o desenvolvimento
da Escolástica Barroca na América Latina, séculos XVIXVIII. O projeto de pesquisa pretende iniciar uma
investigação duradoura e exaustiva do desenvolvimento da
filosofia escolástica barroca na América Latina, durante parte
significativa do período colonial, isto é, séculos XVI-XVIII.
Com o presente projeto, para os domínios demarcados, temse a pretensão de, contínua e exaustivamente, (a) verificar e
catalogar manuscritos e textos impressos antigos, (b)
propiciar investigação e análise dos materiais coletados, (c)
discutir e comentar os materiais de fonte encontrados e (d)
ao menos em parte, digitalizá-los e editá-los para a
comunidade de pesquisa em história da filosofia, sobretudo,
em filosofia medieval, filosofia renascentista e filosofia
moderna.
b) Atividades Internacionais
O Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
PUCRS segue mantendo intenso intercâmbio com
Instituições de Ensino Superior, brasileiras e estrangeiras,
particularmente no que diz respeito a estudos pós-graduados
em filosofia, através de conferências, cursos de professores
visitantes e estágios docentes e discentes em outras
universidades. A maior parte dos doutorandos realizou
estágio de pesquisa em alguma Universidade estrangeira,
com as quais a PUCRS mantém cooperação.
Tradicionalmente continuam sendo realizados eventos do
nosso Programa em cooperação com o Instituto Goethe de
Porto Alegre.
Pertence à concepção do Programa que ele mesmo e
a PUCRS devem estar de tal modo inseridos na comunidade
Agemir Bavaresco
39
nacional e internacional de pesquisa que possam ser
considerados estações para encontros de caráter
interdisciplinar no PPG. Neste sentido, comunidades e
sociedades de pesquisa, nas duas áreas de concentração do
PPG, em especialmente Teorias da Justiça, Epistemologia e
Fenomenologia, têm tido encontros sequenciais no âmbito
do PPG em Filosofia da PUCRS. Ademais, dezenas de
convidados, inclusive, algumas das mais influentes
personalidades nas tradições continental e analítica, atuaram
nos eventos promovidos pelo programa em 2013.
5.3 Visibilidade e transparência do programa em sua
atuação
O PPG tem buscado, de maneira efetiva, a
transparência e a publicidade, através da manutenção e da
atualização sistemática de sua página na Internet
(www.pucrs.br/pgfilosofia) para a divulgação dos seus dados
internos, tais como Corpo Docente com CV (Lattes),
Professores Colaboradores, Editais de Seleção, Publicações,
Teses e Dissertações, Eventos, Regimento, Projetos de
Pesquisa, Intercâmbios e Apoio Financeiro.
No que concerne à visibilidade externa do PPG em
Filosofia da PUCRS para a comunidade externa de Porto
Alegre, os professores permanentes do PPG realizam
palestras em que mostram, para todo o público acadêmico e
externo que tiver interesse, os aspectos motivadores centrais
das suas linhas de pesquisa, ou então exemplificam tais linhas
com pesquisas pontuais e recentes que têm realizado. Dentro
da região, os eventos são bastante influentes, dado que
muitos participantes inscrevem-se nos exames de mestrado
e doutorado, além de estabelecer um primeiro contato com
professores orientadores.
O programa é um dos pólos de formação de
pesquisadores e docentes para o sul do país, e de todo o
Brasil. Além disso, em termos de solidariedade, ele figura
40
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
como programa consolidado com programas de cooperação
nacionais e internacionais. Sua página na internet é,
particularmente, informativa, contendo todas as
informações pertinentes de um programa de excelência.
Os eventos científicos são o testemunho das
atividades desenvolvidas durante os anos, inserindo-se nesse
esforço de dar continuidade a discussão de questões
relevantes da Filosofia em alto nível, procurando integrar
pesquisadores do Brasil e estrangeiros. Os eventos
promovidos pelo Programa são tematicamente variados,
fielmente representativos de nossas linhas de pesquisa e
incluem a participação de um grande número de
profissionais brasileiros e estrangeiros, com excelente
repercussão na comunidade filosófica e grande afluência de
público externo. Eles podem ser vistos neste link:
http://www3.pucrs.br/portal/page/portal/ffchppg/ppgfil
o/ppgfiloAtividades
CONCLUSÃO
A PUCRS possui um “processo de permanente
autoavaliação de desempenho, em busca de seu
aperfeiçoamento institucional e do cumprimento mais
perfeito de seus objetivos.” (Marco Referencial da PUCRS).
O PPG em Filosofia da PUCRS assumiu esse processo
interno permanente de Autoavaliação Institucional dos
Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu/PUCRS, de
todas as práticas e estruturas de pesquisa, ensino e inserção
nacional e internacional, e ao mesmo tempo, externo
(SINAES/Sistema Nacional de Avaliação do Ensino
Superior/Lei n° 10.861/2004 e CAPES), para atender aos
critérios de qualidade e os níveis de reconhecimento
considerados padrão pelos seus pares e pela Comissão de
Avaliação de Área. Desde 2011, a PUCRS implantou a
autoavaliação dos programas de pós-graduação a partir de
um instrumento para discentes e docentes, seguindo as 10
Agemir Bavaresco
41
(dez) categorias de referência do SINAES: 1) Missão e PDI;
2) Ensino, Pesquisa, Extensão; 3) Responsabilidade Social;
4) Comunicação; 5) Políticas de pessoal; 6) Organização e
gestão; 7) Infraestrutura; 8) Planejamento e avaliação; 9)
Atendimento aos discentes; 10) Sustentabilidade financeira.
Os resultados da autoavaliação alcançados pelo PPG
Filosofia tanto por parte dos discentes como docentes é
satisfatório aos níveis de qualidade de um programa CAPES
nota 6.
O PPG em Filosofia da PUCRS continua
comprometido com a meta de qualidade dentro da
comunidade
filosófica
brasileira.
Seguindo
as
recomendações da Comissão de Área e do CTC, estamos
solidificando a qualidade da produção intelectual,
publicando, em periódicos indexados no Qualis, bem como
em capítulos e livros de editoras reconhecidas, tanto em nível
nacional como internacional. Neste sentido, a tendência que
se deseja ver confirmada é a de buscar, face ao enorme
envolvimento internacional com congêneres dos centros
mais destacados da Filosofia, contrapartidas mais sólidas em
projetos,
produções
intelectuais
e
publicações
internacionais. Há uma tendência do PPG, na figura dos seus
docentes, de exercer um papel cada vez maior nas atividades
de membros de sociedades internacionais, conselhos
científicos e editoriais, bem como na atividade de
pareceristas nacionais e internacionais de veículos de
divulgação intelectual, reconhecidamente qualificados. É
relevante citar que uma das metas prioritárias do PPG em
Filosofia da PUCRS sempre será a busca incessante de
aprimoramento e qualificação das teses e dissertações
resultantes das titulações, o que denota grande interesse dos
discentes também na qualidade dos trabalhos.
O PPG em Filosofia da PUCRS assumiu um claro
direcionamento ao fortalecimento das comunidades de
pesquisa na forma de Grupos de Pesquisa, Núcleo de
Pesquisa e Centro de Pesquisa. Neste sentido, os Grupos,
42
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
Núcleos e Centro de Pesquisa sediados na PUCRS foram
revigorados com a implementação da nova estrutura de
pesquisa da PUCRS. Dado que esses grupos articulam
atividades de pesquisas com docentes de outras instituições
e buscam, sobretudo, estimular a pesquisa de discentes de
Pós-Graduação, é visível o potencial de qualificação e
engajamento que oportunizam aos seus membros. Por
semelhante modo, a qualificação discente aprimora-se por
dois novos meios de integração entre os docentes do PPG
em Filosofia e os discentes, a saber, através da Revista Intuitio
(revista eletrônica para discentes de pós-graduação em
Filosofia:
[http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio]
e da Semana Acadêmica do PPG em Filosofia da PUCRS,
realizada no último mês de cada semestre.
Os encontros dos Grupos de Pesquisa, os encontros
dos Núcleos de Pesquisa, a Semana Acadêmica e as demais
formas de eventos que têm sede na PUCRS são promovidos
em estreito contato com a Direção da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas e a Coordenação do Curso de Filosofia.
Em função desse histórico de integração dos docentes e
discentes de Pós-Graduação com a Graduação em Filosofia,
o Programa tem recebido um número grande e crescente de
candidatos ao Mestrado e, respectivamente, ao Doutorado
que são egressos da Faculdade de Filosofia da PUCRS.
O PPG segue mantendo grande cuidado com o
preenchimento dos requisitos da CAPES no que diz respeito
ao tempo de titulação. O Programa aprimorou a integração
entre Graduação e Pós-Graduação, com graduandos
participando das atividades de pesquisa, congressos e outros
eventos significativos no âmbito do PPG.
Há uma boa proporção entre orientandos e
orientadores. O corpo docente é formado por professores
permanentes e colaboradores, com formação condizente
com as áreas de concentração e linhas de pesquisa, com
produção significativa na área. Observou-se, em 2013, uma
Agemir Bavaresco
43
notável dedicação à orientação, que é bem distribuída entre
os docentes.
O exame de seleção faz a divulgação pública do
Edital através da mídia convencional e da internet, seguindo
os seguintes critérios classificatórios: A análise conjunta da
entrevista, do projeto de pesquisa e do Curriculum Lattes.
Há uma distribuição equitativa dos alunos nas atividades
desenvolvidas no curso (disciplinas, elaboração dos projetos
definitivos, redação da dissertação). A qualidade das
dissertações e teses comprova uma evolução dos alunos ao
longo do curso, com tempo médio de titulação de 24 meses
para o mestrado e 48 meses para o doutorado.
Além da acrescida produção intelectual dos docentes
permanentes, houve também uma significativa produção
discente, sobretudo com a implementação do periódico dos
pós-graduandos, Intuitio, incluindo artigos de mestrandos e
doutorandos não apenas do PPG, mas também de outros
centros e do exterior. A produtividade do corpo docente
ultrapassa, com efeito, a média nacional atual na área de
Filosofia.
A infraestrutura física e financeira é muito boa,
contando com secretaria, gabinetes para os professores com
computadores, salas para a defesa de dissertações e uma
excelente biblioteca com ótima estrutura física e um acervo
de Filosofia muito bom, atendendo sobretudo, as duas áreas
de concentração.
O Programa conta com o apoio financeiro de vários
órgãos externos, tais como a CAPES, o CNPq, a FAPERGS,
o DAAD, o Instituto Goethe, o Consulado Alemão, a
Humboldt Stiftung e outras fundações que apoiam os
investimentos e organização de eventos locais, nacionais e
internacionais.
Quanto à produção intelectual, a distribuição de
publicações entre os docentes é muito boa e a produção
técnica do programa é excelente. Um grande número de
docentes do programa apresentou trabalhos em eventos,
44
40 anos de pós-graduação em filosofia/PUCRS
realizou conferências, tomou parte em mesas-redondas e
ministrou cursos de graduação e pós-graduação no exterior.
O número de docentes do PPG que atuou como pareceristas
para revistas de destaque internacional e o envolvimento do
PPG quanto a essa modalidade de atividade em nível
internacional é manifestamente elevado e significativo.
O PPG em Filosofia da PUCRS tem uma ótima
integração com outros centros de pós-graduação,
particularmente com PPGs da Região Sul. Todas as bancas
de mestrado e doutorado contaram com membros externos.
Docentes e discentes de outros programas participam em
atividades acadêmicas realizadas no Programa.
O Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
PUCRS tem se destacado nacional e internacionalmente
como um programa com produção intelectual de qualidade
internacional e com atividades de intercâmbio e de avaliação
que evidenciam a sua competitividade e reconhecimento em
nível internacional.
Claudio de Almeida
45
Stroud and Cartesian skepticism
Claudio de Almeida1
Thirty years ago, Professor Barry Stroud published
his immensely influential book on The significance of
philosophical skepticism ("SPS" henceforth) and reminded the
community that much in the literature aimed at silencing the
challenge posed by Descartes's first "meditation" amounted
Professor of Philosophy at PUCRS, Graduate Program in Philosophy.
Personal website: phi-claudio.org. Claudio de Almeida became a fulltime faculty member at the PUCRS Graduate Program in Philosophy in
1992, upon receiving his PhD in Philosophy at McMaster University
(Canada). Since then, he has been a post-doctoral visitor at Rutgers
University and New York University, and has published in volumes and
journals by top-tier publishers such as Cambridge University Press,
Oxford University Press, Springer, and Wiley-Blackwell. He leads a busy
research group in epistemology, has hosted some of the most influential
authors in his field, and just won't stop speaking about how proud he is
of his supervisees if you give him the chance.
1
46
Stroud and Cartesian skepticism
to little more than ineffective epistemological bravado.2 Very
few authors have influenced our understanding of Cartesian
skepticism as deeply as Professor Stroud has. I'm one of
those who are happy to acknowledge their debt to his
venerable work. And I'm in great company. Anthony
Brueckner (2010a, p. 1) has called Stroud's discussion of
Cartesian skepticism "magisterial". John Greco (2008, p.
113) has described it as the strongest influence on his
understanding of the argument in that first meditation. We'd
be hard-pressed to find an author who disagrees about its
impact. And yet, on close inspection, I think there is room
for dissatisfaction with Stroud's work on that front -- quite a
bit of dissatisfaction, actually. There is, I believe, an
interesting lesson to be learned from a discussion of what
bothers me in Stroud's account of Cartesian skepticism. So,
I will put that perceived flaw under the microscope in what
follows.
In order to provide you with the context for my
criticism, I must ask you to consider what Brueckner (1994),
speaking for so many of us, has called "the canonical form"
of the skeptical argument in that first meditation.3
It is often claimed that, when properly set up, the
Cartesian argument in the first meditation rests on no more
than two epistemic principles -- in addition, of course, to
commonsensical observations about misleading evidence
and to the view that knowledge is no less than justified true
The reminder in SPS was not, however, meant to be an endorsement
of the skeptical voice in Descartes's work. It was just meant to show that
the news of the demise of Cartesian skepticism had been greatly
exaggerated in the literature on the issue.
2
He actually describes it as "the canonical Cartesian skeptical argument".
While I can't fully agree with Brueckner's views on the canonical
argument, the discrepancies in how we set it up are negligible for our
purposes here. I should also note that my understanding of Cartesian
skepticism is greatly indebted to Peter Klein's work on the issue. See
Klein (1995) and (2010).
3
Claudio de Almeida
47
belief: an epistemic closure principle and what Brueckner,
following
Jonathan
Vogel,
has
called
"the
4
underdetermination principle". It has also become de
rigueur to note that some of the so-called "epistemic closure
principles" we find in the literature -- going all the way back
to Gettier's (1963) and Dretske's (1970) formulations -- are
often not, strictly speaking, closure principles. As Jonathan
Kvanvig (2008) has most memorably observed, the language
of "closure" in the literature on Cartesian skepticism is often
downright abusive, for being so clearly misleading, so
obviously inadequate.
Consider the simplest forms of closure principles for
knowledge as they appear in SPS, chapter 1. A simple
knowledge-closure principle is
KC: If S knows that P, and P logically implies Q, then S
knows that Q.5
And the stronger principle of known-implication-closure,
the more appealing of the two, is as follows:
KIC: If S knows that P, and S knows that P implies Q, then
S knows that Q.
These two have been standard fare in the debate
over Cartesian skepticism for the last 45 years or so.
Consider KC first. It certainly looks like a closure principle
we might want to accept: a bona fide closure principle is a
transmission principle, and any KC-assertor would
In correspondence just before he passed away, Brueckner let me know
that his former PhD supervisee Jonathan Vogel was his source for the
label "underdetermination principle".
4
As usual for this kind of philosophical context, I omit the elements that
are obvious -- quantifiers, time indices and the necessity operator -- in
order to keep the schemata as uncluttered as possible.
5
48
Stroud and Cartesian skepticism
ostensibly be claiming that knowledge is transmitted, by
logical implication, from a case of knowledge to some other
belief the content of which is logically implied by the content
of the first belief. But then we get the familiar rant about
objectionable idealization: Because we don't necessarily
believe all the logical consequences of what we know, and
assuming that knowledge is properly qualified belief, we
don't obviously know that Q just because we know that P
and it is a fact that P implies Q. So, we move on to KIC: It
seems reasonable to require that we at least perceive the
implication of Q by P in order to claim that logical
implication extends our knowledge from a belief in the latter
to a belief in the former.
But KIC, itself, does not seem fully realistic: If
knowledge is properly qualified belief, then KIC should
seem false, since we all grant that one may fail to form the
belief that Q even when the antecedent of KIC is true.
Which leads us to obscure principles like the following,
according to which something-in-knowledge is transmitted by
logical implication, whatever it may be exactly:
SIK: If S knows that P, and S knows that P implies Q, then
S is in a position to know that Q.
And it is finally acknowledged in the literature that we have
now bent the concept of closure out of shape. The SIK
principle is not, properly speaking, a closure principle. The
property mentioned in its antecedent is not the property
mentioned in its consequent.
But here comes the familiar move: The SIK principle
is really just a layover on our way to the immensely appealing
destination, a deductive closure principle:
Claudio de Almeida
49
DC: If S knows that P, and knows that P implies Q, and
validly deduces Q from P, then S knows that Q.6
DC is an appealing principle, no doubt, but it comes at a high
price. We have, on present showing, moved away from our
original motivation: the idea that logical implication, on its
own, transmits something of epistemic value other than truth.
I don't mean to belabor a familiar point. I'm trying
to cut to the chase. But I must make sure that we survive the
cut, so to speak. It's a safe bet that, when a principle like KC
is first appealed to in SPS, Stroud is not unaware of its
inadequacy; nor is he suggesting that a charitable reading of
Descartes unavoidably makes use of that obviously false
principle. Inadequate as it may be, the KC principle may still
be useful in a schematic presentation of Cartesian
skepticism. And this is exactly how we've been taught to put
up with such an obvious case of oversimplification. So, lets
look beyond this preliminary point to where the action is.
The interesting point to be made at this juncture is
that anyone trying to give Descartes a fair hearing should
acknowledge his commitment to the weakest principle of
epistemic closure in this conceptual neighborhood: a
justification-closure principle. For one like Descartes, who
welcomes a notion of justification as necessary to a
satisfactory explanation of knowledge, there is this principle
for him to help himself to:
JC: If S is justified in believing that P, and P logically implies
Q, then S is justified in believing that Q.
Here, the only qualification to be made is one having to do
with the language of the principle. In JC, one's being
6 One might reasonably wonder if there must be propositional
knowledge of the implication of Q by P in order for DC to look
satisfactory -- as opposed to merely requiring that Q be validly deduced
from P. I won't pursue the matter here.
50
Stroud and Cartesian skepticism
"justified in believing" amounts to one's "having a
justification" for believing, regardless of whether one actually
believes the relevant implication of the belief in question. JC
is a principle of epistemic entitlement. To many of us, it's the
principle of choice for a discussion of skeptical arguments
and inferential knowledge. And it should also be noted that
JC is not an evidentialist principle. If there is such a thing as
an externalist conception of justification -- as so many,
following Alvin Goldman (1979), have thought there is -externalists are welcome to help themselves to a principle
like JC.
This is where I submit that we are now in a position
to concentrate on my complaint about Stroud's account of
Cartesian skepticism.
With JC in hand, we move on to what I regard as the
strongest case to be made for the argument of the first
meditation. Had Descartes looked at his skeptical argument
from our vantage point, he might have schematically set it
up in the form of the following modus tollens:
1. If S is justified in believing that P (for any P describing an
"external-world" state of affairs), S is justified in believing
that not-SH (the negation of a skeptical hypothesis that is
incompatible with P).
2. But S is not justified in believing that not-SH.
3. Therefore, S is not justified in believing that P.
Premise 1 is an instance of JC (once we have
assumed that P implies not-SH). We know some of us, most
notably those following Dretske (1970), or following Nozick
(1981), have targeted JC as one of the grand illusions in the
history of epistemological thought about inferential
Claudio de Almeida
51
knowledge. 7 That polemic won't matter for present
purposes. All that matters here, in this regard, is that JC
should seem unassailable. That, of course, is the majority
view of JC.
We have also been taught that JC cannot do the
skeptic's work on its own. The skeptic anticipates resistance
to premise 2. Resistance to premise 2 is supposed to be
broken by a clever deployment of the following
"underdetermination principle":
UP: A body of evidence E justifies your belief that P only if
E justifies you in believing the negation of any proposition
that is incompatible with the proposition that P.8
On the basis of UP, the skeptic might argue for premise 2 as
follows:
1a. If your evidence for believing that P is not evidence for
the belief that not-SH (that is, not evidence against a
hypothesis that is incompatible with the proposition that P),
SH is arbitrarily deemed false (or "eliminated", or
disregarded).
Premise 1a is sustained by UP. A moment's
reflection shows that we tacitly apply UP in everyday
judgments about what is good evidence for what. For
instance, I believe that I am in Brazil right now. Obviously,
my being in Brazil (or my being where Brazil is in the actual
world) is incompatible -- in this case, nomically incompatible
-- with my being in Singapore (or with my being where
See de Almeida (2012) for a case against both justification- and
knowledge-closure that is neither Dretskean nor Nozickian. The paper
also offers my view on how closure-failure affects Cartesian skepticism.
7
This is close to Brueckner's formulation of the principle. See Brueckner
(1994) and (2010).
8
52
Stroud and Cartesian skepticism
Singapore is). So, naturally, anything that is regarded as good
evidence for believing that I am in Brazil must be regarded as
good evidence that I am not in Singapore. For instance, my
looking out the window and seeing the Porto Alegre street
where I live would normally be regarded as good evidence
for believing that I am in Brazil.9 But that's just because what
counts as good evidence for believing that I am in Brazil on
this given occasion also counts as good evidence for
believing that I am not in Singapore (if the competing
hypotheses concerning my whereabouts are confined to just
Brazil and Singapore). Like JC, UP seems unassailable.
Given an acceptance of UP, the argument for
premise 2 in the skeptical modus tollens can proceed as follows:
2a. Your evidence for believing that P is not evidence for the
belief that not-SH (because, if you were in an SH scenario,
you would still, but then falsely, believe that P).10
3a. Therefore, SH is arbitrarily deemed false. [from 1a and
2a by modus ponens]
4. But, if SH is arbitrarily deemed false, you’re not justified
in believing that not-SH.
5. So, you’re not justified in believing that not-SH. [from 3
and 4 by modus ponens]
And conclusion 5 just is that premise 2 in the skeptical modus
tollens.
9 The philosopher might, of course, want to describe my evidence in
different, more "cautious" language, possibly involving reference to my
sense data on this given occasion. But we're now interested in how the
non-philosophical folk would ordinarily talk about evidence.
The dialectic employing a dream-hypothesis expects it to be obvious
to you that, if you were only dreaming that P, you would still, but then
falsely, believe that P. See footnote 11 below.
10
Claudio de Almeida
53
We may, of course, want to tweak the language of
the skeptical sub-argument for premise 2 in a number of
ways. But we'll eventually land where the Cartesian skeptic
says we do.11
Stroud brilliantly describes the skeptical conclusion
of the first meditation as follows, in a passage in SPS that
must rank with the most charming, most literary ever written
on the subject.
I have described Descartes's sceptical conclusion as
implying that we are permanently sealed off from a world
we can never reach. We are restricted to the passing show
on the veil of perception, with no possibility of extending
our knowledge to the world beyond. We are confined to
appearances we can never know to match or to deviate
from the imperceptible reality that is forever denied us
(STROUD, 1984, p. 33-34).
This is one of the passages in SPS where Stroud most vividly
describes the skeptical conclusion he thought he saw in the first
Cartesian meditation, and where he also claims that it is the
conclusion he has established, in his own way, on Descartes's behalf. It
is, however, as we shall now see, highly doubtful that Stroud
succeeds in the latter task, the task of establishing, on
Descartes's behalf, the skeptical conclusion that he thought
he saw at the end of the first meditation. Notice, I will not
be questioning whether Stroud aimed at the right target. No,
I have no doubt that he did aim at the right target. What I
will be questioning here is whether, in the most influential
To JC and UP, we only need to add a misleading-evidence hypothesis,
something like the claim that what one experiences in a vivid dream is
qualitatively indistinguishable, to the doxastic agent, from what one
experiences in one's waking moments. A dream-hypothesis is, to my
mind, rightly chosen by Stroud as the hypothesis that best motivates the
Cartesian deployment of UP. But there are the other familiar hypotheses
concerning misleading evidence, such as one's being in "demon worlds",
brain-in-vat worlds, etc.
11
54
Stroud and Cartesian skepticism
piece he ever wrote, chapter 1 in SPS, he did hit the right
target.12
Consider the modus tollens Stroud most clearly puts
under the spotlight in SPS, chapter 1:
1b. If S knows that P, then S knows that not-SH.
2b. But S does not know that not-SH.
3b. Therefore, S does not know that P.
Let us focus on this modus tollens and call it "the
argument from KC". Never mind the fact that Stroud will
eventually question the tenability of premise 1b, which is
based on our principle KC, in this schematic representation
of the Cartesian argument. He will eventually, in that chapter
1, suggest that a version of KIC might be more tenable than
KC. That will not matter to our concerns here. What will
matter is (a) whether Stroud's ostensible case for the
premises in the argument from KC is, indeed, a case for those
very same premises, as opposed to some other, stronger
premises, and (b) whether his case for what he takes to be
the Cartesian premises implies that very same conclusion we
find in the argument from KC. To both (a) and (b), I say
"no".
But, here, I see one last preliminary hurdle. It may
seem that issues (a) and (b) might concern a case of infidelity
to the historical Descartes. Nothing could be farther from
my thoughts! To my mind, Stroud is as faithful to the letter
of the first meditation as anyone can be. If the skeptical
argument that emerges from chapter 1 in SPS is not as
exciting as a Cartesian argument can be -- that is to say, not
as exciting as the Cartesian elements for skepticism would
have allowed the argument in that meditation to have been As evidence of its immense popularity, notice that chapter 1 in SPS is
included in one of the most successful collections for the study of
contemporary epistemology, the Sosa, Kim, Fantl, McGrath (2008)
volume.
12
Claudio de Almeida
55
- Descartes must take some of the blame for it, of course.
But this is cold comfort to Stroud. My contention here is
that, when SPS was published, thirty years ago, one already
could have done quite a bit better than Stroud did on
Descartes's behalf, even after the knowledge-closure issue is
brushed aside. Cartesian skepticism is just not as well-served
by SPS, chapter 1, as it could have been.13
In order to see my objection, I'll expect you to keep
in mind the following simple point about what people should
mean (or understand) when they use the language of
"knowledge claims". If you "make the claim" that P -- that
is, if you assert that P -- and all goes as well as it can go in
the circumstances, then your claim manifests your
knowledge that P. For instance, if I claim that I am in Brazil
right now, and all goes well, then I know I am in Brazil right
now. My claim that P expresses my knowledge that P when
all goes as well as we can possibly imagine. 14 But,
accordingly, if I claim to know that P, and all goes well, then
I know that I know that P. So, if, for instance, I know that I
am in Brazil, then, as most of us will grant, I am in Brazil.
But, further, if I claim that I know I am in Brazil, and all goes
well, then I let you know that I am in Brazil and know it -that is to say, not only am I in Brazil; I have also imparted
the information that my belief that I am in Brazil is a case of
knowledge. You may infer, from what I have claimed, that, if
all has gone well, I am in Brazil, and you most likely will, but
For an introductory discussion implying that chapter 1 in SPS is every
bit as successful as people have, for the last thirty years, thought it is, see
Turri (2014, p. 1-5). He introduces his reader to Stroud's chapter 1 with
the question "The best case for skepticism about the external world?"
and, to my mind, clearly lets his reader believe that Stroud's case for
Cartesian skepticism is, indeed, as good as they come.
13
For an influential source for the view that, if S asserts that P and all
goes well, S knows that P, see Williamson (2000), chapter 11. As I
understand it, the view is independent from the claims of "knowledgefirst epistemology".
14
56
Stroud and Cartesian skepticism
it remains that what I have claimed is much stronger than
what I'd have claimed if all I wanted to impart is the
information that I am in Brazil. What I assert is ostensibly
about my epistemic position with regard to the fact that I am
in Brazil. In both cases, only if I make a true assertion can
you have inferential knowledge that I am in Brazil. But,
obviously, the truth of the weaker assertion -- that I am in
Brazil -- is a necessary, but not sufficient, condition of the
truth of the second, stronger assertion. I could be in Brazil
without knowing it. And, more to the point, I could be in
Brazil and know it, but have no higher-order belief as to
whether I know it. But, when I claim that I know I'm in
Brazil and all goes well, then I do have a true second-order
belief about my first-order belief that I am in Brazil. I know
I have first-order knowledge concerning my whereabouts.
To recap: If I merely claim that I am in Brazil, and all that
can go well regarding my claim does go well, I know that I
am. But, when I claim that I know I am in Brazil, and all goes
well, I know that I know I am. If true, knowledge-claims
impart second-order knowledge.
Maybe the best lesson we have had on the pitfalls of
failing to see the distinction we have just seen can be found
in William Alston's paper on "Level confusions in
epistemology" (Alston, 1980), published a few years before
SPS appeared in print. If we carry Alston's lesson in mind as
we read SPS, we find that Stroud's presentation of the
Cartesian case for skepticism about empirical knowledge is
marred by "level confusions". Such level confusions greatly
weaken the case for skepticism. As a result, it seems fair to
say that his presentation of the Cartesian case for skepticism
is just not the most charitable reading one can make of that
first meditation. Stroud aimed at delivering the most
stunning case one can make for the argument from KC. That
is not, however, what he winds up delivering in SPS, chapter
1. Yes, again, he is faithful to the historical Descartes. But
some of us care less about the historical Descartes than we
Claudio de Almeida
57
do about the strongest possible case that can be made for
Cartesian skepticism. Some of us want to know, first and
foremost, if that problem is still alive under the piles of
epistemology that have been produced to bury it.
In order to substantiate the charge, I will, in what
follows, display a number of passages from that first chapter
in SPS where the level confusions are relatively easy to spot,
now that you have been alerted to the problem.
Notice how an important aspect of Cartesian
skepticism is laced with a level confusion in the following
passage.
[Descartes] realizes that if everything he can ever learn
about what is happening in the world around him comes
to him through the senses, but he cannot tell by means of
the senses whether or not he is dreaming, then all the
sensory experiences he is having are compatible with his
merely dreaming of a world around him while in fact that
world is very different from the way he takes it to be. That
is why he thinks he must find some way to tell that he is not
dreaming. (STROUD, 1984, p. 12, emphasis added.)
According to Stroud, Descartes is trying to find a way to
establish that he is not dreaming. Presumably, that is a necessary
condition for him to establish that his beliefs about his
external-world environment are true. But, notice, if
successful, Descartes would have established that his firstorder belief that he is sitting by the fire is a case of knowledge,
as opposed to a case of false belief caused by misleading
evidence. He would then know that he knows. Wouldn't that
be the upshot of a successful attempt to establish that he
does have the means to "tell that he is not dreaming"? Maybe
he does know that he is sitting by the fire. That is not the
problem we are led to consider on Stroud's account. The
problem we are enjoined to consider here is whether he can
tell that he knows he is. On this picture of the epistemic
situation, Descartes has a clear and interesting problem: the
58
Stroud and Cartesian skepticism
problem of whether he can tell -- the problem of whether he
has the epistemic right to believe -- that he knows. Exciting
as the higher-order issue may be, it's most definitely not the
problem posed by the argument from KC.
Am I making too much of a minor verbal slip? No,
I'm afraid I'm not. We're way beyond verbal slips here!
Consider the following passage:
The Cartesian argument presents a challenge to our
knowledge, and the problem of our knowledge of the
external world is to show how that challenge can be met.
[...] I have described it as that of showing or explaining
how knowledge of the world around us is possible by
means of the senses. (STROUD, 1984, p. 13)
Is "the problem of our knowledge of the external world" that
of showing or explaining how knowledge of an external world
is possible? What challenge is that? Combining the two
previous excerpts (from pages 12 and 13 above), we clearly
have it that the challenge is that of knowing that we know
what we think we know. That, according to Stroud, is what
needs explaining or showing.
But the charge is serious, and I'm not making it rest
on just a couple of excerpts. Our discussion of the next set
of excerpts will reveal how Stroud's understanding of the
argument from KC is crippled by a level confusion.
Here's the heart of the matter: There is a subtle
fallacy being gestated in chapter 1 in SPS. Premise 1b in the
argument from KC has it that a necessary condition of my
knowing that P is my knowing that not-SH. Taking it
literally, knowledge of, say, the fact that I'm in Brazil -knowledge that I would express by claiming that I am in
Brazil -- would require my knowing that every hypothesis
that's incompatible with my being in Brazil does not obtain.
But, of course, the hypotheses that are incompatible with my
belief about my location are infinite in number. Can I even
entertain those infinite hypotheses? Obviously not. So, if it's
Claudio de Almeida
59
fallacious to make an argument rest on the obviously false
KC, it's obviously fallacious to do so. In any case, as we
ostensibly get started with KC and look for a more charitable
reading of Descartes's argument, we look for adjustments to
avoid an obvious fallacy. That's what Stroud is ostensibly
doing. Anyone reasoning from KC must agree with Stroud
when he writes:
If he were dreaming Descartes would not know what he
claims to know. Someone who is dreaming does not
thereby know anything about the world around him even
if the world around him happens to be just the way he
dreams or believes it to be. So his dreaming is
incompatible with his knowing. (STROUD, 1984, p. 2627)
However, in order to avoid the obvious fallacy embodied in
the argument from KC, Stroud tries to provide refuge for
the Cartesian in the thought that maybe we need to eliminate
only those competing hypotheses that we acknowledge in a
given context:
As soon as we see that a certain possibility is incompatible
with our knowing such-and-such, it is suggested we
immediately recognize that it is a possibility that must be
known not to obtain if we are to know the such-and-such
in question. [...] Perhaps, in order to know something, p,
I do not need to know the falsity of all those things that
are incompatible with p, but it can seem that at least I
must know the falsity of all those things that I know to be
incompatible with p. (STROUD, 1984, p. 27-28)
This is the pro-KIC gambit, and we have permissively
decided to stick with it. But the ground gets very slippery
here. Once you follow Stroud along this path, you're bound
to overlook the source of the subtle fallacy at the beginning
of the next-to-last excerpt (from pages 26-27 above): "If he
60
Stroud and Cartesian skepticism
were dreaming Descartes would not know what he claims to
know." Here's the source of the subtle fallacy (or its
outcome): As Stroud sees it, Descartes's problem is that of
justifying a knowledge-claim. As we follow Stroud's account, we
keep our eyes where the spotlight goes, so to speak. And the
spotlight is firmly placed on the argument from KC. But
look at the lesson Stroud fallaciously draws from the
argument from KC: the lesson according to which Descartes
cannot know that his belief that he is sitting by the fire is a
case of knowledge -- the impossibility stemming from the
fact that, in view of how a belief in an external world is
epistemically underdetermined by the available evidence, any
knowledge-claim regarding knowledge of an external world
must remain unjustified.
Now, consider the following passage in SPS, chapter
1, where the subtle fallacy is masked, as it were, by the
emphasis placed on the argument from KC:
Those possibilities were all such that if they obtained I did
not know what I claimed to know, and they had to be known
not to obtain in order for the original knowledge-claim to be
true. [...] If, in order to know something, we must rule out
a possibility which is known to be incompatible with our
knowing it, Descartes is perfectly right to insist that he
must know that he is not dreaming if he is to know that
he is sitting by the fire with a piece of paper in his hand.
(STROUD, 1984, p. 26-30, emphasis added.)
Notice how the appeal to KC masks a fallacy: From the fact
that you must know that you are not dreaming in order to
know that you're sitting by the fire, it most definitely does
not follow that you are entitled to make any knowledgeclaim whatsoever! Recall: If you claim that you know that P,
and all goes well, then your claim manifests your knowledge
that you know that P, not just your knowledge that P. In order
merely to establish that you know that P, we require only that
all go well when you claim that P. But that you know that P
Claudio de Almeida
61
whenever you know that you know that P is something that
is still a small inferential step away (through the assumption
that knowledge is factive). To know that P, you do not need
to deploy the concept of knowledge in your thoughts. To
know that you know, you do.
And, here, I think we have, at last, found conclusive
evidence for a level confusion charge against Stroud's
account of the argument of the first meditation. He takes it
to be Descartes's problem of having a justified belief that he,
Descartes, knows he is sitting by the fire. The Cartesian
inquiry, according to Stroud, can succeed only if Descartes
is justified in believing that his belief that he is sitting by the
fire is a case of knowledge. Can Descartes know that he
knows that he is sitting by the fire (as opposed to only
dreaming that he is so sitting)? Only an affirmative answer
that survives philosophical scrutiny will give us relief from
Cartesian doubt -- according to Stroud. Notice how he
concludes that, in order to find relief from skeptical doubt,
Descartes must be in an epistemic position to rule out a
dream-hypothesis that is incompatible with his knowledgeclaim. He, the doxastic agent, must do the ruling out of
skeptical hypotheses. Naturally, one most clearly does the
ruling out when one successfully determines that one does
know after all, when one establishes to one's satisfaction that
the skeptical hypotheses are false. Once the desired ruling
out takes place, you know that you know. This should be
contrasted with the view that Descartes cannot know that he
is sitting by the fire because his evidence cannot "rule out" the
hypothesis that he is merely dreaming that he is sitting by the
fire -- regardless of whether he ever considered what it takes
to know that he is sitting by the fire on the basis of the
evidence available to him.
The Cartesian argument we started from, the
argument in its "canonical form", does not call for the
justification of any knowledge-claim whatsoever. According
to the hard-as-nails version of the Cartesian argument, the
62
Stroud and Cartesian skepticism
argument from JC, and even according to the clumsy argument from
KC, the problem is not just that you may not be able to know
that you know. The Cartesian problem that still looms large
in contemporary epistemology is the one according to which
you cannot know anything concerning an external world that
you might, in your higher-order thinking, expect to know.
But no higher-order thinking is required from the would-be
knower for her to be hit with Cartesian skepticism. If the
skeptic is right, nobody knows anything whatever about an
"external world" -- regardless of whether the would-be
knower is in the hazardous habit of making knowledgeclaims or not. There is no empirical knowledge, period! You
never even have the chance to mourn the loss of higherorder knowledge. That's the enduring challenge from the
first meditation. Unfortunately, it's hard to bet that the
reader of SPS, chapter 1, will have learned that lesson exactly,
the lesson Stroud certainly meant to give his reader.15
References
ALSTON, William P. Level confusions in epistemology
[1980]. Reprinted. In: idem. Epistemic justification: essays in the
theory of knowledge. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1989,
p. 153-171.
BRUECKNER, Anthony. The structure of the skeptical
argument. Philosophy and Phenomenological Research, v. 54, p.
827-835, 1994.
______. Skepticism and closure. In: DANCY, J.; SOSA, E.;
STEUP, M. (Ed.). A companion to epistemology. 2nd ed. Oxford:
Wiley-Blackwell, 2010. p. 3-12.
15 A version of this paper was prepared for one of the Barry Stroud
sessions, GT Ceticismo, of the 2014 ANPOF conference, in Campos do
Jordão, Brazil. I thank the session organizers, especially Flavio Williges
(UFSM), for the invitation to address Professor Stroud on that occasion.
Claudio de Almeida
63
______. Essays on skepticism. Oxford: Oxford University
Press, 2010a.
DE ALMEIDA, Claudio. Epistemic closure, skepticism and
defeasibility. Synthese, v. 188, n. 2, p. 197-215, 2012. DOI:
10.1007/s11229-011-9923-7.
DRETSKE, Fred. Epistemic operators. The Journal of
Philosophy, v. 67, 1970. Reprinted. In: idem. Perception,
Knowledge and Belief. Cambridge: Cambridge University Press,
2000.
GETTIER, Edmund. Is justified true belief knowledge?
[1963]. Reprinted. In: MOSER, P. K. (Ed.). Empirical
knowledge: readings in contemporary epistemology. Totowa, NJ:
Rowman & Littlefield, 1986, p. 231-233.
GOLDMAN, Alvin. What is justified belief? [1979].
Reprinted. In: MOSER, P. K. (Ed.). Empirical knowledge:
readings in contemporary epistemology. Totowa, NJ: Rowman &
Littlefield, 1986, p. 171-192.
GRECO, John. Skepticism about the external world. In:
GRECO, J. (Ed.). The Oxford handbook of skepticism. Oxford:
Oxford University Press, 2008. p. 108-128.
KLEIN, Peter. Skepticism and closure: why the evil demon
argument fails. Philosophical Topics, v. 23, n. 1, 1995, p. 213236.
______. Skepticism [2010]. In: ZALTA, E. N. (Ed.). The
Stanford encyclopedia of philosophy (Summer 2014 Edition), URL
=
<http://plato.stanford.edu/archives/sum2014/entries/ske
pticism/>.
64
Stroud and Cartesian skepticism
KVANVIG, Jonathan. Closure and alternative possibilities.
In: GRECO, J. (Ed.). The Oxford handbook of skepticism.
Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 456-483.
NOZICK, Robert. Philosophical explanations. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1981.
SOSA, Ernest et al. (Ed.). Epistemology: an anthology. 2. ed.
Oxford: Wiley-Blackwell, 2008.
STROUD, Barry. The significance of philosophical skepticism.
Oxford: Oxford University Press, 1984.
TURRI, John. Epistemology: a guide. Oxford: Wiley-Blackwell,
2014.
WILLIAMSON, Timothy. Knowledge and its limits. Oxford:
Oxford University Press, 2000.
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
65
Direito e ação comunicativa na
teoria política de Habermas: do
poder comunicativo ao poder
administrativo
Edison Alencar Casagranda1
Neuro José Zambam2
. Edison Alencar Casagranda iniciou seus estudos no Programa de PósGraduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul em março de 1996. A defesa da dissertação ocorreu em
1999 sob o título: Os pressupostos de Kant na crítica à metafísica geral,
sendo seu orientador o Prof. Dr. Ernildo Jacob Stein. Atualmente,
Edison Alencar Casagranda é Doutor em Filosofia pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) e atua como Coordenador do Grupo
de Pesquisa – CNPQ – Filosofia e direito, exercendo também as funções
de professor do Curso de Filosofia e de Diretor do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo. E-mail:
eacasa@upf.br.
1
2.
Neuro José Zambam iniciou seus estudos no Programa de Pós
Graduação em Filosofia da PUCRS em março de 2006. A defesa da tese
foi em 2009 sob o título: A Teoria da Justiça de Amartya Sen: liberdade,
justiça e desenvolvimento sustentável. Orientador: Nythamar Hilário
Fernandes de Oliveira Junior. Sendo, Doutor em Filosofia pela PUCRS.
Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade
Meridional - IMED – Mestrado. Professor do Curso de Direito
(graduação e especialização) da Faculdade Meridional – IMED de Passo
Fundo. Membro do Grupo de Trabalho, Ética e cidadania da ANPOF
(Associação Nacional dos Programas de Pós Graduação em Filosofia).
Pesquisador da Faculdade Meridional. Coordenador do Grupo de
66
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
Introdução
Historicamente,
as
instituições
adquiriram
características que acabaram por impossibilitar, seja por
violência física ou ideológica, a formação de consensos
verdadeiros e, consequentemente, a justificação discursiva de
normas. Cabe, por essa razão, desobstruir, ou seja, liberar o
espaço público das consequências de uma comunicação
deformada. Tal liberação não ocorre, entretanto, apenas por
meio de uma moldura discursiva. Para Habermas, por
exemplo, o conceito do político deve ampliar-se para
abranger, ao lado da ação comunicativa, também a ação
estratégica3.
Todavia, a ação comunicativa não pode ser
encontrada em seu estado puro. Na vida social, por exemplo,
a reprodução de uma ação de tipo comunicativo supõe
certos graus de estabilização, a partir dos quais torna-se
possível garantir não somente a continuidade da
comunicação, mas também a eficácia dos resultados. O que
leva a concluir que uma ação de tipo instrumental também
não poderá ser encontrada em seu estado puro. Assim, da
mesma forma que ação comunicativa não pode se
reproduzir, na vida social, sem a estabilidade de uma ação
orientada ao êxito, a ação de tipo instrumental, para ter
sentido, deve pressupor o entendimento mútuo,
“neutralizado em favor de um objetivo de autopreservação e
Pesquisa: Multiculturalismo, minorias, espaço público e sustentabilidade.
E-mail: neurojose@hotmail.com; nzambam@imed.edu.br.
3 . Sobre os diferentes tipos de ação afirma, literalmente, Habermas:
“Ações instrumentais podem ser associadas com interacções sociais.
Ações estratégicas representam, elas mesmas, ações sociais. Falo, em
troca, de ações comunicativas, quando os planos de ação dos atores
envolvidos não se coordenam através de resultados egoístas, mas
mediante atos de entendimento”. (1987a, p.367).
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
67
de reprodução material da sociedade”. (NOBRE, 2008,
p.22).
Diante disso, sobra dizer que a esses dois tipos de
ação (Instrumental e Comunicativa) correspondem
diferentes domínios da vida social. De um lado, o “sistema”,
domínio da vida social em que predomina a ação de tipo
instrumental; de outro o “mundo da vida” 4 que, como
descreve Nobre, corresponde ao domínio da vida social
onde predomina a influência das ações de tipo comunicativo.
(2008, p.22).
No âmbito das sociedades tradicionais, defende
Habermas, sistema e mundo da vida imbricavam-se de
maneira inseparável. Todavia, com a passagem para a
modernidade, essas duas categorias desacoplaram-se e,
semelhantemente ao que aconteceu com as esferas culturais
de valor, adquiriram autonomia e se tornaram independentes
uma da outra. Assim, pensa Nobre (2008, p.22), nas
sociedades modernas, o conflito e o dissenso deixa de estar
restrito as esferas culturais de valor e se estende, de maneira
geral, ao âmbito da relação entre a lógica sistêmica e a lógica
do mundo da vida, entre a lógica instrumental e a lógica
comunicativa. Nesse sentido, dissenso e conflito tornam-se
ingredientes motivadores de embate; nesse caso, de embate
entre diferentes lógicas. Ocorre, entretanto, que tal embate
. Para Habermas (2003a, p.40), o primeiro passo para se reconstruir as
condições da integração social remete ao conceito de mundo da vida,
que, segundo ele, pode ser sinteticamente descrito a partir duas
perspectivas, a saber, a pragmático-formal e a sociológica. Sobre isso, no
entanto, pondera: “A autoridade de instituições detentoras de poder
atinge os que agem no interior de seu mundo vital social. A partir daí,
este não é mais descrito na perspectiva pragmático-formal do
participante, como saber que serve de pano de fundo, uma vez que é
objetivado na perspectiva do sociólogo observador. O mundo da vida,
do qual as instituições são uma parte, manifesta-se com um complexo de
tradições entrelaçadas, de ordens legítimas e de identidades pessoais –
tudo reproduzido pelo agir comunicativo”. (2003a, p.42).
4
68
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
pode, às vezes, levar a “colonização” de um domínio de ação
pelo outro, ou seja, a interferência cada vez maior da
especificidade de uma lógica sobre a outra.
Para Habermas, a “colonização” ocorre, por
exemplo, a partir do momento em que um determinado
domínio de ação passa a sofrer fortes interferências da lógica
instrumental. A “colonização”, desse modo, supõe que o
sentido das ações seja determinado, exclusivamente, pela
dinâmica da lógica instrumental. A consequência imediata,
nesse caso, é a dominação da racionalidade sistêmica, em
contextos onde a racionalidade comunicativa deveria
prevalecer. Na visão de Habermas, a “colonização” do
mundo da vida pelo sistema tem início com o deslocamento
da função integradora, antes viabilizada pela socialização
comunicativa, agora pelos meios sistêmicos do dinheiro e do
poder. (2003a, p.61). Com a subordinação do mundo da vida
aos imperativos sistêmicos, os elementos prático-morais são
eliminados da vida privada e pública e o cotidiano (vida
social) torna-se cada vez mais burocratizado e monetarizado.
Todavia, as estruturas comunicativas mobilizam
recursos a fim de resistir à lógica colonizadora e de garantir
a preservação de espaços próprios do mundo da vida. É bem
verdade que a resistência ocorre de modo informal e que não
é suficiente, do ponto de vista de uma teoria dirigida à
emancipação, para se romper definitivamente com a
dinâmica da colonização sistêmica. Contudo, esses
processos de resistência, viabilizados pelas redes de
comunicação, de ação e de discussão, contribuem, pelo
menos, no sentido de explicitar a parcialidade da razão
instrumental e, consequentemente, para barrar sua
interferência sobre formas de vida estabelecidas.
No entanto, esses movimentos defensivos, apesar de
significativos, não são suficientes para garantir a
emancipação da dominação. Não podem ser movimentos de
mão única e/ou iniciativas em que o mundo da vida apenas
se defende das investidas do sistema. É preciso, diz
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
69
Habermas, garantir a expansão dos domínios sociais, nas
quais o entendimento deve predominar, pois só assim se
poderia alcançar minimamente o objetivo da emancipação
da dominação, a saber, o de reduzir ao extremo a necessidade
de domínio pelo sistema.
A ideia de Habermas é, portanto, modificar a lógica
da “colonização”, fazendo com que os processos
democráticos de decisão, aos quais os imperativos sistêmicos
devem se submeter, sejam amplamente comandados pela
razão comunicativa. Ou melhor, o que Habermas pretende
é viabilizar processos de direcionamento do sistema pelo
mundo da vida, demonstrando de que maneira a lógica
comunicativa pode - sem ameaçar a reprodução material da
sociedade, viabilizada pela lógica instrumental – influenciar
o funcionamento do sistema. Entretanto, como Habermas
fundamenta isso? Ou melhor, como responde às seguintes
questões: de que forma a lógica comunicativa poderá
influenciar no funcionamento do sistema? Ou ainda, como
modificar politicamente as relações entre sistema e mundo
da vida?
A intenção de Habermas é a de demonstrar que a
política precisa ser pensada a partir de uma dupla
perspectiva, a saber, tanto pelo viés do sistema político, onde
predomina uma matriz administrativa, quanto pelo viés do
mundo da vida, onde predominam as ações de tipo
comunicativo. A verdade é que o núcleo administrativo da
política só obterá legitimidade, segundo Habermas, se for
constantemente alimentado pelo núcleo comunicativo. Dito
de outro modo, ao ser influenciado pelo núcleo
comunicativo, o sistema administrativo regenera-se e,
através da aplicação de características próprias, como
conhecimentos e capacidades instrumentais, redireciona
suas ações a fim de efetivar intenções e interesses
determinados comunicativamente.
Nesse sentido, o presente texto tem o propósito de
situar o lugar ocupado pela categoria direito no quadro
70
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
categorial da teoria da ação comunicativa. Para isso, buscase, num primeiro momento, explicitar os problemas
inerentes ao tema da integração social, situando o direito
como uma importante categoria de mediação [1.1] e, num
segundo momento, apoiado no modelo das eclusas, mostrar
não só como Habermas pensa a relação entre poder
comunicativo e poder administrativo, mas também como é
possível transformar poder comunicativo em poder
administrativo, influenciando, com isso, a longa cadeia da
decisão política no Estado democrático de direito [1.2].
O problema da integração social:
a ação comunicativa e o direito
A convivência entre homens, desde a Antiguidade
até a Modernidade, foi, entre outras coisas, possibilitada pela
divisão do trabalho, compreendida como estratégia de
sobrevivência em ambientes inóspitos, pela homogeneidade
de valores nos termos da polis grega, pelo vínculo pessoal de
caráter transcendental e divinatório entre reis e súditos e pelo
nacionalismo implícito no conceito de Estado-nação.
Todavia, como é possível em tempos de hoje, em sociedades
complexas, onde impera a busca pessoal por projetos de vida
boa, estabelecer a solidariedade entre estranhos? Como
resgatar a noção de bem comum, impedindo atitudes
isoladas e orientadas unicamente pelo desejo egoísta de
prosperidade? Ou ainda, repetindo a questão formulada por
Habermas, “como integrar socialmente mundos da vida
diferenciados (...) uma vez que cresce simultaneamente o
risco de dissenso nos domínios da ação comunicativa,
desligada de autoridades sagradas e de fortes instituições.”
(HABERMAS, 2003a, p. 46).
Todavia, recorrer ao conceito de ação comunicativa
para explicar a integração social parece, pelo menos num
primeiro momento, contraproducente, já que aponta
estruturalmente para um processo de discussão, na qual, a
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
71
qualquer momento, atores podem fazer uso de seu poderdizer-não. Ou seja, ao recorrer ao conceito de ação
comunicativa, poder-se-ia, pelo menos aparentemente, em
busca da desintegração social, uma vez que esse conceito
aponta para um processo de discussão em que nada pode
reivindicar validade absoluta. O fato é que o agir
comunicativo, caso não esteja inserido em contextos do
mundo da vida, assume a forma especialmente precária de
um risco de dissenso, sempre presente, que figura embutido
no próprio mecanismo de entendimento. Dessa forma, o
conceito de mundo da vida assume uma função importante
frente ao esforço de explicitar as condições da integração da
social. Afinal, sem a estabilização viabilizada pelos contextos
do mundo da vida, o agir comunicativo continuaria
associado a um alto risco de dissenso e à ideia de integração
social; pela via do uso da linguagem orientada ao
entendimento, tornar-se-ia, como diz Habermas,
inteiramente implausível. Assim, conclui:
A motivação racional para o acordo, que se apóia sobre o
“poder dizer não”, tem certamente a vantagem de uma
estabilização
não-violenta
de
expectativas
de
comportamento. Todavia, o alto risco de dissenso,
alimentado a cada passo através de experiências, portanto
através de contingências repletas de surpresas, tornaria a
integração social através do uso da linguagem orientado
pelo entendimento inteiramente implausível, se o agir
comunicativo não estivesse embutido em contextos do
mundo da vida, os quais fornecem apoio através de um
maciço pano de fundo consensual. (2003a, p.40).
Em resumo, a possibilidade da integração social pela
via da ação comunicativa supõe, então, primeiramente, uma
referência ao conceito de mundo da vida, definido por
Habermas a partir de uma dupla perspectiva de análise, a
pragmático-formal e, ao par desta, a sociológica. Na
dimensão pragmático-formal, segundo Habermas, o mundo
72
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
da vida forma o horizonte para situações de fala e, ao mesmo
tempo, constitui a fonte das interpretações, reproduzindo-se
somente mediante ações de tipo comunicativas. Durante a
prática comunicativa, somos envolvidos pelo mundo da vida
e, consequentemente, pela certeza imediata que orienta
nossa fala e nossa vivência. Assim, nessa dimensão do
mundo da vida, faz-se presente um tipo de saber não
problematizado, interpretado pelos atores como certeza
óbvia e imediata, ou seja, um tipo de saber que não é falível
nem falsificável e que, por isso, não pode representar um
saber em sentido estrito. Afinal, lembra Habermas, “faltalhe o nexo com a possibilidade de vir a ser problematizado,
pois ele só entra em contato com pretensões de validade
criticáveis no instante em que é proferido e, nesse momento
da tematização, ele se decompõe enquanto pano de fundo
do mundo da vida”. (2003a, p.41). Dito de outro modo,
quando tematizado, esse tipo de saber deixa de ser mundo
da vida para entrar em contato com as pretensões de
validade, porém, é através desse processo de
problematização que o mundo da vida, do qual as
instituições são uma parte, se reproduz e forma um
complexo de tradições culturais entrelaçadas, de ordens
legítimas e de identidades pessoais. Insere-se, nesse
momento, a dimensão sociológica do conceito de mundo da
vida, onde a cultura, a sociedade e a personalidade figuram como
três componentes estruturais; sendo a cultura compreendida
como uma importante referência interpretativa, enquanto
acervo de saber, para os atores; a sociedade entendida, de
forma estrita, como o conjunto de ordens legitimas que
viabilizam a criação da solidariedade; e a personalidade,
concebida como o conjunto das competências que permitem
formar, em processos de interação, a identidade pessoal.
Nesse sentido, a solução para o problema da
integração social passa, pelo menos num primeiro momento,
pela ideia de que o mundo da vida deve figurar como
conceito complementar da ação comunicativa, afinal, o
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
73
entendimento mútuo deve supor, num primeiro momento,
uma base enorme de convicções comuns, um conjunto de
certezas imediatas que formam uma totalidade e não se
deixam penetrar a bel-prazer. Assim, como menciona
Habermas, a referência ao conceito de mundo da vida é
importante como primeiro passo reconstrutivo das
condições da integração social, e fundamental para a tarefa
de demonstrar que os processos comunicativos não são
apenas dissenso e conflito.
A verdade é que a introdução do conceito de mundo
da vida como complemento ao de ação comunicativa, apesar
de significar um grande passo, não é suficiente para resolver
o problema da integração social. Isso porque a ideia do
complemento entre esse par de conceitos só faz mostrar que
os processos comunicativos não partem de um grau zero, do
ponto de vista cultural e social. De acordo com Habermas,
tal passo, embora importante, permanece restrito a um plano
ainda muito abstrato, e doravante mais adequado seria que o
problema da integração social considerasse a natureza
histórica do complexo de tradições culturais, das ordens
legítimas e das identidades pessoais. Afinal, seguindo a tese
da evolução social, a passagem de sociedades pré-modernas
para modernas não altera a relação de complementação entre
mundo da vida e ação comunicativa?
A tese de Habermas aponta na direção de que “é certo
que os espaços para o risco do dissenso embutido em
tomadas de posição em termos de sim/não em relação a
pretensões de validade criticáveis crescem no decorrer da
evolução social”. (2003a, p.44). Nesse sentido, parece óbvio
dizer que a relação de complementação entre mundo da vida
e ação comunicativa se modifica em função da passagem de
um modelo de sociedade para outro. Todavia, tudo isso
talvez fique mais claro diante da retomada, por exemplo, do
papel cumprido pelas visões míticas, religiosas e metafísicas
do mundo na organização cultural e institucional das
sociedades pré-modernas. Na compreensão de Habermas,
74
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
tais visões exercem no interior do mundo da vida, uma
espécie de poder totalizador que mantém a cultura, a
personalidade e a sociedade coladas uma na outra, formando um
leque reduzido de formas de vida. Assim, em sociedades prémodernas, o mundo da vida
se apresentava suficiente para garantir a integração social,
porque era possível estabilizar expectativas de
comportamento e criar o complexo cristalizado de
convicções, crenças e tradições por meio da formação de
instituições fortes, regidas por uma autoridade
inquestionável,
que
ritualizava
processos
de
entendimento de forma a limitar a comunicação,
protegendo aquele complexo da instabilidade provocada
pela problematização dos conteúdos. (REPOLÊS, 2003,
p.68).
Em contrapartida, com o enfraquecimento das
imagens metafísicas e religiosas de mundo, as estruturas
gerais do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade)
libertam-se das amarras do poder totalizador, garantindo que
sua reprodução simbólica passe a depender da cooperação
entre atores envolvidos em ações comunicativas. Em outras
palavras, o processo de racionalização do mundo da vida
passa a significar para a cultura, a revisão permanente de
tradições que se tornaram reflexivas; para a sociedade, como a
legitimidade das normas não pode mais apelar para os
costumes, ou melhor, para uma determinada forma de vida
em particular, a ruptura com a visão de mundo pré-moderna
significou o atrelamento da legitimidade das normas a um
conjunto de procedimentos formais, em última instância
discursivos; e, por fim, sobre as estruturas da personalidade,
surge a necessidade de auto regulação de uma identidade
pessoal e abstrata. (REPA, 2008, p.63).
O processo de racionalização significa para Habermas,
pelo menos num primeiro momento, a liberalização cada vez
maior dos potenciais de racionalidade inscritos na ação
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
75
comunicativa. Assim, apesar da ampliação significativa de
espaços de dissenso, a possibilidade de acordos cooperativos
continua presente, ou seja, o risco do dissenso exige dos
atores envolvidos em ações comunicativas um dispêndio
maior na busca cooperativa de acordos. Isso porque, o
processo de racionalização do mundo da vida acaba por
intensificar e sobrecarregar as realizações comunicativas, que
buscam, frente à tensão entre dissenso e consenso, a
construção de um acordo em contextos de natureza diversa
e de formas de vida plurais. Como se isso não bastasse, tal
fenômeno também contribui para uma diferenciação cada
vez maior entre esferas de ação orientadas ao entendimento
e esferas de ação orientadas ao êxito.
Habermas (2003a, p.44), porém, lembra que tanto a
introdução do agir comunicativo em contextos do mundo da
vida quanto à regulamentação do comportamento através de
instituições originárias podem explicar a possibilidade da
integração social em grupos relativamente pequenos e
indiferenciados. Todavia, quanto maior for a complexidade
da sociedade e quanto mais se amplia a perspectiva
inicialmente restringida etnocentricamente, maior será a
pluralização das formas de vida e a individualização de
histórias de vida, o que acaba por inibir a convergência de
convicções que se encontram na base do mundo da vida. Por
isso, afirma Habermas, o problema típico das sociedades
modernas é o de “como estabilizar, na perspectiva dos
próprios atores, a validade de uma ordem social na qual
ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente
distintas de interações estratégicas?” (2003a, p.45).
A questão é que os mecanismos do mundo da vida e
do agir comunicativo estão sobrecarregados. O primeiro,
porque se retrai frente ao constante risco de dissenso, o
segundo, pela tensão entre dissenso e consenso. Nesse
contexto, o direito moderno, em função de suas
características, ganha uma capacidade cada vez maior de
garantir a integração social. Afinal, afirma Habermas, a saída
76
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
para o problema da integração social é a “regulamentação
normativa de interações estratégicas, sobre a qual os próprios
atores se entendem”. (HABERMAS, 2003a, p. 46 – grifo do
autor). Em outras palavras,
o direito moderno pode reunir tanto um aspecto como
outro, tanto o aspecto da facticidade da imposição de
delimitações para a ação estratégica como o aspecto da
validade do reconhecimento intersubjetivo das normas
jurídicas, sem a qual estas não poderiam ter nenhuma
força social integradora. As normas jurídicas propiciam a
disposição para a sua obediência devido a esse duplo
caráter: coerção fática e validade legítima. Ao mesmo
tempo, elas põem à disposição dos seus destinatários o
enfoque tanto da ação estratégica como o da ação
comunicativa. (REPA, 2010, p.145-146).
O direito moderno, como se pode observar na citação
acima, é capaz não apenas de absorver o agir orientado por
interesses e de neutralizá-lo, no sentido de demonstrar que a
validade das normas jurídicas encontra-se no próprio direito
e não mais em garantias metassociais, mas também de
regulamentar, a partir de suas normas, as interações
estratégicas. Cabe ao direito, portanto, a regulamentação
normativa de interações estratégicas. Trata-se de uma tarefa,
cuja justificativa reside na capacidade do direito moderno
reunir tanto o aspecto da facticidade da imposição de
delimitações para a ação estratégica quanto o aspecto da
validade do reconhecimento intersubjetivo das normas
jurídicas. Nesse caso, é em função desse duplo caráter, a
saber, a coerção fática e a validade legítima, que as normas
jurídicas criam as disposições necessárias para sua
obediência, colocando ao alcance dos seus destinatários o
enfoque da ação estratégica e o da ação comunicativa. A
verdade é essas regras apresentam, para aqueles que agem
comunicativamente e para aqueles que agem
estrategicamente, um caráter ambivalente, pois parecem
conciliar pontos de vista inconciliáveis. Observe, diz
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
77
Habermas, que para os atores orientados pelo próprio
sucesso, todos os componentes de uma determinada
situação são fatos e como tais devem ser analisados à luz de
suas próprias preferências. Nesse caso, as normas jurídicas
mostram-se como limites fáticos aos quais os atores se veem
forçados a se adequarem. De outra parte, os atores que agem
orientados pelo entendimento dependem da compreensão
recíproca da situação dada e da negociação dos seus
componentes à luz de pretensões de validade reconhecidas
intersubjetivamente. Nessa perspectiva, as normas jurídicas
precisam desenvolver uma força social integradora, em que
a obrigação de obedecê-las só se torna possível se sustentada
sobre a base de pretensões de validade normativas
reconhecidas intersubjetivamente.
Habermas, nesse ponto, sinaliza na direção de que há
uma clara separação entre as dimensões da facticidade e da
validade. Para ele, as normas modernas não só garantem a
tensão entre facticidade e validade, solucionando o problema
dos dois pontos de vista a princípio excludentes, mas
também asseguram os direitos subjetivos privados. Ou
melhor, as normas modernas garantem, através da coação do
direito objetivo, a criação das condições necessárias para o
exercício das liberdades subjetivas de ação. Nesse contexto,
situa-se a conclusão de Habermas:
Nesta linha, a coação fática e a validade legítima deveriam
assegurar ao tipo procurado de normas a disposição em
segui-las. Normas desse tipo devem apresentar-se com
uma autoridade capaz de revestir a validade com a força
do fático, porém desta vez sob a condição da polarização
que já se estabeleceu entre agir orientado pelo sucesso e
agir orientado pelo entendimento e, deste modo, sob a
condição de uma incompatibilidade percebida entre
facticidade e validade. Partimos do fato de que as
garantias meta-sociais do sagrado caíram, as quais tinham
tornado possível a força de ligação ambivalente de
instituições arcaicas e, assim, uma ligação entre
78
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
facticidade e validade, na própria dimensão da validade.
Encontramos a solução desse enigma no sistema de
direitos que provê as liberdades subjetivas de ação com a
coação do direito objetivo. Do ponto de vista histórico,
os direitos subjetivos privados, que foram talhados para a
busca estratégica de interesses privados e que configuram
espaços legítimos para as liberdades de ação individuais,
constituem o núcleo do direito moderno. (2003a, p.47).
Em síntese, cabe ao direito, no contexto de sociedades
complexas, aliviar o mecanismo do entendimento, próprio
do agir comunicativo e do mundo da vida, da sobrecarga
provocada pelo risco do dissenso e pela tensão entre
dissenso e consenso. A tarefa do direito, de aliviar os
mecanismos do entendimento, associa-se a dois outros
aspectos, a saber, a coerção e a positividade, de um lado, a
aceitabilidade racional e a legitimidade, de outro. Assim, fazse necessário lembrar, primeiramente, que a coerção e a
positividade precisam estar fundadas, sob pena de
produzirem decisões arbitrárias e de gerarem desintegração
social, na aceitabilidade racional, e na legitimidade. Nesse
caso, a coerção garante um nível de aceitação da norma, o da
eficácia. Todavia, ela deve procurar manter uma ligação
constante com o chamado segundo nível da validade,
expresso na ideia de autolegislação, pois os destinatários das
normas também exercem sua autonomia política como
participantes nos processos de produção do direito.
(HABERMAS, 2003a, p.61). Na visão de Habermas,
portanto, a integração da comunidade passa necessariamente
pelo caráter emancipatório do Direito, que supõe formas
específicas de construção e observância das normas de
conduta social. Nessa perspectiva, a comunidade política
integra-se não apenas pelo temor das sanções, mas pelo
reconhecimento de que se trata de normas legítimas,
submetidas a uma racionalidade comunicativa.
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
79
[1.2] Do poder comunicativo ao poder administrativo:
do sitiamento às eclusas
Para Habermas, como se buscou mostrar, a categoria
direito assume uma posição chave frente à exigência da
explicação do fenômeno da integração social. Inicialmente,
Habermas trata a questão da integração social, introduzindo
a categoria direito na perspectiva da teoria da ação
comunicativa. Ocorre que as operações de integração social
do direito não seguem apenas a linha de acordos normativos
construídos sobre os pressupostos de um resgate discursivo
de pretensões de validade. Por isso, acrescenta a tudo isso, a
ideia de que as sociedades modernas também se integram
sistemicamente, através de mercados e do poder empregado
administrativamente. Desse modo, acredita que “dinheiro e
poder administrativo constituem mecanismos de integração
da sociedade, formadores de sistema, que coordenam as
ações de forma objetiva, como que por trás das costas dos
participantes da interação, portanto não necessariamente
através da sua consciência intencional ou comunicativa”.
(HABERMAS, 2003a, p.61).
De acordo com Habermas, o dinheiro e o poder
burocrático seguem o caminho da institucionalização
jurídica e, ancorados nas ordens do mundo da vida,
integram-se à sociedade através do agir comunicativo. Por
essa razão, pode-se concluir que o direito não está apenas
ligado à fonte de integração social que se dá via
entendimento, mas também a essas duas outras fontes
sistêmicas; a saber, o dinheiro e o poder administrativo.
Tem-se, com isso, a abertura do direito às três fontes de
integração social, a saber, a solidariedade, o dinheiro e o
poder administrativo. (HABERMAS, 2003b, p.308; 2002,
p.281). Com a ideia de autolegislação, por exemplo, o direito
passa a extrair sua força integradora de fontes da
80
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
solidariedade5 social. Em outras palavras, ao se abrir para o
agir comunicativo, o direito incorpora em suas estruturas
uma ideia de liberdade que lhe possibilitará afastar-se da
“acusação de ser um invólucro artificial, vindo, assim, a
constituir-se enquanto instituição que efetiva a liberdade”.
(MOREIRA, 1999, p.152). De outro lado, recorda
Habermas, as instituições do direito privado e público
possibilitam o estabelecimento de mercados e a organização
de um poder de Estado, “pois as operações do sistema
administrativo e econômico [...] completam-se em formas do
direito.” (HABERMAS, 2003a, p.62). Nesse caso, tanto o
mercado quanto o poder administrativo se utilizam do
. Para Alessandro Pinzani, a ideia de solidariedade (solidariedade 2)
precisa ser analisada na perspectiva de um conceito sócio-teórico que
não possui um conteúdo normativo imediato. Lembra que, apesar de
Habermas não definir diretamente solidariedade, é possível, a partir de
um esforço de interpretação do texto, elaborar uma definição. Assim
escreve: “Solidariedade 2 é um consenso de um fundo prévio relativo a
valores compartilhados intersubjetivamente pelos quais os atores se
orientam. Ela nasce em um contexto ético de hábitos, lealdades e
confiança recíproca, com base no qual podem ser solucionados os
conflitos que surgem em contextos de interação. Habermas fala em
“estruturas pretensiosas de reconhecimento recíproco, as quais
descobrimos nas condições de vida concreta”. (DD I 107 [FG 103]).
Como força de integração social, a solidariedade 2 é um dos três recursos
a partir dos quais “as sociedades modernas satisfazem suas necessidades
de integração e de regulação”. (DD II 22 [FG 363]). Os outros dois
recursos são – como já vimos – o dinheiro e o poder administrativo [...].
A posição entre mundo da vida e sistema emerge aqui novamente, desta
vez como a oposição entre solidariedade, por um lado, e dinheiro e poder
administrativo, por outro. Das três forças de integração social, a
solidariedade parece ser a mais fraca. Com efeito, por um lado, os dois
sistemas da economia e da administração tendem a colonizar o mundo
da vida pelos meios do dinheiro e do poder administrativo. Por outro, a
crescente complexidade da sociedade e dos processos de racionalização
tornam impossível dispor de um potencial solidário sócio-integrativo
suficiente. Abre-se uma “lacuna de solidariedade” que pode ser
preenchida somente pelo direito. Em reação ao processo de
racionalização característico da modernidade o direito recebe uma dupla
função”. (PINZANI, 2009, p.146).
5
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
81
recurso da positividade para transformar o ilegítimo em
norma jurídica. Dessa forma, o direito moderno, como
procedimento que pressupõe uma validade falível, coloca-se
em permanente vigilância, a fim de exorcizar-se da
colonização exercida pelo sistema, pois sua meta visa, através
da ideia de autodeterminação, assentar-se sobre fontes que
realizam a liberdade. Afinal, escreve Habermas,
É verdade que um direito, ao qual as sociedades modernas
atribuem o peso principal da integração social, é alvo de
pressão profana dos imperativos funcionais da reprodução
social; ao mesmo tempo, porém, ele se encontra sobre
uma certa coerção idealista de legitimá-los. As realizações
sistêmicas da economia e do aparelho do Estado, que se
realizam através do dinheiro e do poder administrativo,
também devem permanecer ligadas, segundo a
autocompreensão constitucional da comunidade jurídica,
ao processo integrador da prática social de
autodeterminação dos cidadãos. (HABERMAS, 2003a,
p.62-63 – grifo do autor).
Na compreensão de Habermas (2003a, p.82), o
direito adquire a função de articulação (charneira) entre
sistema e mundo da vida. Assim, enquanto mediador da
relação entre sistema e mundo da vida, o direito
desempenha, tanto quanto o dinheiro e o poder
administrativo, funções sistêmicas e, por isso, assume
também, como eles, o papel de medium. Todavia, trata-se de
um medium especial, dotado da “capacidade de traduzir em
termos de dinheiro e poder administrativo (ou seja, em
termos instrumentais) os influxos comunicativos”.
(NOBRE, 2008, p.27). Ao desdobrar essa afirmação, Marcos
Nobre lembra que, ao disporem de códigos altamente
especializados e funcionais, o dinheiro e o poder são surdos
à linguagem cotidiana. Nesse sentido, para que ambos
possam ser manejados em um sentido determinado, o direito
precisa traduzir as pretensões comunicativas cotidianas nos
82
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
termos especializados de cada um desses media sistêmicos.
Assim escreve Habermas:
O direito funciona como uma espécie de transformador,
o qual impede, em primeiro lugar, que a rede geral da
comunicação, socialmente integradora, se rompa.
Mensagens normativas só conseguem circular em toda a
amplidão da sociedade através da linguagem do direito;
sem a tradução para o código do direito, que é complexo,
porém aberto tanto ao mundo da vida como ao sistema,
estes não encontrariam eco nos universos de ação
dirigidos por meios. (2003a, p.82).
A metáfora do direito como transformador oferece a
Habermas (2003a, p.112) as condições necessárias para que
possa completar o movimento iniciado em Teoria da ação
comunicativa, a saber, que a relação entre mundo da vida e
sistema é uma via de mão dupla e que, portanto, supõe tanto
pretensões colonizadoras quanto iniciativas emancipatórias.
Nessa perspectiva, o papel transformador do direito está
intimamente associado ao fato de este ter seus pés fincados
tanto no mundo da vida como no sistema, servindo, por isso,
ao poder comunicativo e ao poder administrativo. Dessa
forma, o direito é tanto a voz da administração e do sistema,
quanto a expressão de um processo de formação coletiva da
opinião e da vontade, permitindo-lhe figurar,
respectivamente, como coerção legítima e como expressão
da autocompreensão e da autodeterminação de uma
comunidade de pessoas de direito.
Para Habermas, por ser o direito a instância
mediadora entre sistema e mundo da vida, contribui para
transformar o poder comunicativo em poder administrativo.
Ocorre, contudo, que na base da descrição do direito como
instância mediadora se situa a reflexão de Habermas sobre o
sistema político e suas diferenças internas. Para ele, o sistema
político se diferencia internamente em domínios do poder
comunicativo e do poder administrativo. Dessa forma, a
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
83
questão central da teoria política é, antes de tudo, a de
determinar não somente as fronteiras entre esses dois
diferentes domínios, mas também a relação que estabelecem
entre si. A tese de Habermas é a de que a política não pode
ser entendida unicamente em termos instrumentais e, por
isso, deve ser analisada não somente com instrumentos da
teoria da ação, mas também com as da teoria sistêmica.
Nessa perspectiva, defende que o núcleo administrativo, que
é o cerne instrumental do sistema político, só pode funcionar
de maneira legitima se for constantemente alimentado por
fluxos comunicativos. Assim, é necessário retroceder na
argumentação e mostrar como Habermas concebe o tema da
circulação do poder.
Para resolver o problema da transformação do poder
comunicativo em poder administrativo, Habermas usa,
como se viu acima, a metáfora do direito como
“transformador”. Todavia, para explicar o problema da
circulação do poder, ou melhor, para responder a questão
sobre “como os cidadãos podem influenciar o sistema
político por meio dos processos de formação da opinião e
da vontade coletivas sem, ao mesmo tempo, prejudicar a
dinâmica própria desse sistema”, Habermas (1997, p.87)
desenvolveu dois diferentes modelos: o do sitiamento e o
das eclusas. O primeiro, apresentado e desenvolvido em
Soberania do povo como processo (Volkssouveränität als Verfahren);
o segundo, em Direito e democracia (Faktizität und Geltung).
No primeiro modelo, desenvolvido no quadro
categorial da Teoria da ação comunicativa (Theorie des
kommunikativen Handels), Habermas serve-se da imagem do
sitiamento realizado pelos cidadãos em torno do sistema
político. De acordo com ele, os cidadãos, por meio de
discursos públicos, sitiam a “fortificação política” e, sem
intenção de conquistar o poder administrativo - como ocorre
em uma revolução - tentam interferir nos processos de
decisão e julgamento. Assim, diz Habermas,
84
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
o poder comunicativo é exercido à maneira de um
assédio. Mesmo não tendo intenções de conquista, ele
interfere nas premissas dos processos de juízo e de
decisão do sistema político, a fim de fazer valer seus
imperativos, na linguagem capaz de ser entendida pela
fortaleza sitiada: ele administra o pool de argumentos que
o poder administrativo pode, é verdade, manipular
instrumentalmente, porém não ignorar, uma vez que é
estruturado conforme o direito. (2003c, p.273).
Ao tratar do sitiamento do poder burocrático das
administrações públicas pelo poder comunicativo dos
cidadãos, Habermas pretende, como reconhece em
entrevista concedida a Mikael Carlehedem e René Gabriels
(1997), contrapor-se ao modelo clássico de revolução, no
qual a conquista e a destruição do poder do Estado (ancien
régime) eram condições obrigatórias. Ao analisar esse modelo,
em Soberania do povo como processo, Habermas pretende, através
do uso público da razão, viabilizar a efetivação das liberdades
comunicativas, pois, até então, acreditava, que o poder
comunicativo, forjado no horizonte de uma esfera pública
democrática, bem como a influência das opiniões
concorrentes, só poderiam se tornar efetivas caso atuassem
com a intenção, não de conquistar, mas apenas de
influenciar, por meio de processos de formação da opinião e
da vontade coletivas, o poder administrativo. Só assim,
pensava Habermas, poder-se-ia resolver o problema da
relação entre sistema e mundo da vida, ou melhor, o
problema da relação entre os domínios do poder
administrativo e os do poder comunicativo.
Porém, em Direito e democracia, bem como na
entrevista concedida a Mikael Carlehedem e René Gabriels,
Habermas reconhece que o modelo do sitiamento
é por demais derrotista, principalmente [diz ele] se se
entende a distribuição de poderes de tal maneira que as
instâncias da administração e da justiça que aplicam o
direito devam ter um acesso apenas limitado àquelas
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
85
razões mobilizadas pelas instâncias legisladoras para
justificar amplamente suas decisões”. (1997, p.88 – grifo
dos tradutores).
Para Habermas, o núcleo do sistema político é
formado por complexos institucionais, a saber, a
administração, o judiciário e a formação democrática da
opinião e da vontade. Nesse sentido, pensa que - como se
pode observar na citação acima - o acesso limitado das
instâncias da administração e da justiça às razões mobilizadas
pelas instâncias legisladoras, acaba por gerar um déficit de
legitimidade. Acredita, assim, que a administração e a justiça
- em função de que determinadas matérias não permitem ex
ante regulamentação suficientemente definida pelo legislador
político – exercem uma espécie de atividade legislativa
paralela, o que geraria a necessidade de outras formas de
participação. Assim, essa atividade legislativa paralela, para
ser legítima, deveria garantir, através de outras formas de
participação, a migração de uma dose significativa de
formação democrática da vontade para dentro da própria
administração, assim como o judiciário, que implementa o
direito, deveria se justificar diante de fóruns ampliados de
crítica jurídica. Por essa razão, conclui-se que “o modelo das
eclusas conta com uma democratização mais abrangente que
o modelo do sitiamento”. (HABERMAS, 1997, p.88).
Nessa linha, Habermas, como ele próprio reconhece
em Direito e democracia (2003b, p.86), continua procurando,
apoiado no modelo desenvolvido por Bernhard Peters, uma
resposta à questão relativa à implantação da circulação do
poder regulado pelo Estado de direito. Chega-se, dessa
forma, ao modelo das eclusas que supõe, por sua vez, um
sistema político, constituído a partir do Estado
constitucional, e representado pela imagem de um centro e
de uma periferia. A imagem do centro, no modelo das
eclusas, figura associada ao núcleo do sistema político
formado, como se afirmou acima, pela administração, pelo
86
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
judiciário e pelas instituições de formação democrática da
opinião e da vontade (corporações parlamentares, eleições
políticas, concorrência entre partidos, etc). Por outro lado,
vinculada à imagem da periferia estão as associações e
organizações formadoras de opinião e capazes de gerar
influência pública. Assim, no modelo das eclusas, os influxos
comunicativos têm de acumular volume suficiente para
alcançar o patamar mais alto e, assim, influenciar o centro de
decisão, ou melhor, a longa cadeia da decisão política no
Estado democrático de direito. Nesse sentido, escreve
Nobre:
Os sucessivos obstáculos a serem transpostos são
também filtros específicos das pretensões geradas no
mundo da vida. Esses filtros tanto moldam cada uma das
pretensões nos seus termos específicos como fazem parte
de um processo mais amplo de formação da opinião e da
vontade dos participantes. Esse processo será tanto mais
bem sucedido do ponto de vista dos avanços
emancipatórios quanto mais profunda e abrangente for a
discussão sobre os procedimentos nos termos dos quais
se dá cada discussão e cada embate político em cada um
dos níveis. (2008, p.26).
Ao substituir, em Direito e democracia, o modelo do
sitiamento pelo modelo das eclusas, Habermas acaba por
alterar o caráter da esfera pública. Doravante, porém, a
esfera pública deixa de ser meramente defensiva - como no
modelo sitiamento - e adquire um caráter mais ofensivo,
assumindo um papel mais amplo e mais ativo nos processos
formais mediados institucionalmente. Na lógica das eclusas,
os processos de comunicação e decisão do sistema político
figuram, por meio de uma esfera pública sensível, ancorados
no mundo da vida por uma abertura estrutural porosa, que
permite introduzir no sistema político os conflitos da
periferia. Dessa forma, o sistema político - que se perfila
perante uma periferia ramificada e que já não pode mais ser
Edison Alencar Casagranda e Neuro José Zambam
87
pensado autopoieticamente - passa a se formar de modo
políarquico. Assim,
no interior do núcleo, a "capacidade de ação" varia,
dependendo da "densidade" da complexidade
organizatória. O complexo parlamentar é o que se
encontra mais aberto para a percepção e a tematização
dos problemas sociais [...] Nas margens da administração
forma-se uma espécie de periferia interna, que abrange
instituições variadas, dotadas de tipos diferentes de
direitos de auto-administração ou de funções estatais
delegadas, de controle ou de soberania (universidades,
sistemas de seguros, representações de corporações,
câmaras, associações beneficentes, fundações, etc.).
Tomado em seu conjunto, o núcleo possui uma periferia
exterior, a qual se bifurca, grosso modo, em compradores e
fornecedores. (HABERMAS, 2003b, p.87).
Por fim, cabe recordar que o modelo centro-periferia
reforça o núcleo normativo da política deliberativa e sinaliza
para a necessidade de uma justificação racional e pública das
questões que carecem de argumentação jurídica. Na verdade,
o modelo das eclusas aponta para uma concepção
modificada tanto no direito, que assume a função de um
medium através do qual o poder comunicativo se transforma
em poder administrativo, como na esfera pública, que
doravante assume um caráter mais ofensivo, adquirindo um
papel mais amplo e mais ativo nos processos formais
mediados institucionalmente.
Referências
- HABERMAS, Jürgen. Uma conversa sobre questões da
teoría política: entrevista de Jürgen Habermas a Mikael
Carlehedem e René Gabriels. Novos Estudos do Cebrap. Nº
47, p. 85-102, mar. 1997.
88
Direito e ação comunicativa na teoria política de Habermas:
do poder comunicativo ao poder administrativo
- _____. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São
Paulo: Loyola, 2002.
- _____. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. v. 1.
- ____. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b. v.2
- _____. A soberania do povo como processo (1988). In:
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade
e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003c. v.2,
p.249-278.
- MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas. Belo
Horizonte: Mandamentos/Fortlivros, 1999.
- NOBRE, Marcos. Introdução. In: _____; TERRA,
Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de
Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p.11-35.
- PINZANI, Alessandro. Habermas. Porto Alegre: Artmed,
2009.
- REPA, Luiz. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas:
os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São
Paulo: Singular; Esfera Pública, 2008.
- _____. A teoria reconstrutiva do direito. Notas sobre a
gênese lógica do sistema dos direitos fundamentais em
Habermas. doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 7, n. 2,
p.141-156, out. 2010.
- REPOLÊS, Maria Fernanda Sacedo. Habermas e a
desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
Leno Francisco Danner
89
Estado, política e evolução
social: uma tendência para este
século XXI
Leno Francisco Danner1
Argumento central
Defenderei, neste texto, o argumento de que, desde
a última década do século XX, se está assistindo a uma
reafirmação de um Estado forte, compensatório e
1 Leno Francisco Danner realizou sem mestrado em filosofia, com área
de concentração em ética e filosofia política, na PUC-RS, entre os anos
de 2005-2007. Sob orientação do Prof. Dr. Nythamar Hilário Fernandes
de Oliveira Jr., defendeu dissertação de mestrado intitulada “Democracia
e justiça social: apontamentos a partir da ‘utopia realista’ de John Rawls”.
Realizou seu doutorado em filosofia, também na área de concentração
em ética e filosofia política, na PUC-RS entre os anos de 2008-2011,
defendendo trabalho intitulado “Habermas e a ideia de continuidade
reflexiva do projeto de Estado social: da reformulação do déficit
democrático da social-democracia à contraposição ao neoliberalismo”,
sob a orientação do Prof. Dr. Agemir Bavaresco. Atualmente, é
professor de filosofia e de sociologia na Fundação Universidade Federal
de Rondônia (UNIR). Suas áreas de estudo são teoria crítica e liberalismo
político contemporâneo. Contato: leno_danner@yahoo.com.br
90
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
regulatório, diretivo em relação à evolução social. Nesse
sentido, passa para primeiro plano a política – tanto em
termos de afirmação das instituições políticas quanto no que
se refere à participação cidadã – como o elemento
fundamental para a realização de transformações em todos
os âmbitos da sociedade. Contra tendências conservadoras
na política, redivivas diante da atual crise socioeconômica,
defensoras de políticas de austeridade como forma de resolverse tal crise, e depois de um longo tempo de influência das
posições neoliberais, nós podemos perceber a consolidação
de uma mentalidade coletiva afirmadora desse Estado
diretivo em relação à evolução social, realizador de políticas
de integração social e regulador no que tange à dinâmica
econômica. É uma realidade muito importante para nossas
democracias, pois leva ao reforço de uma cultura pública
defensora de direitos sociais, à afirmação de uma política
que, contraposta ao laissez-faire, assume o papel de centro
diretivo da sociedade, de espaço de reivindicações por justiça
e de exercício efetivo da cidadania, por parte de um número
sempre crescente de indivíduos, grupos e movimentos
sociais os mais diversos. Trata-se, por isso, de uma
perspectiva muito otimista no que diz respeito ao reforço da
democracia política, que coloca o Estado como instituição
básica para a constituição de uma sociedade democrática
contemporânea.
1 - O ocaso do conservadorismo político
Quero partir do argumento de que estamos
assistindo, desde meados da década de 1990, a um
enfraquecimento vertiginoso do conservadorismo políticoeconômico representado pelo modelo neoliberal.
Efetivamente, desde aquele período, é possível percebermos,
na análise da realpolitik de inúmeras democracias ocidentais –
da Europa ocidental, passando pelos Estados Unidos e
chegando às nossas Américas – um reforço da política social
Leno Francisco Danner
91
e a afirmação de um Estado forte, interventor na esfera
econômica e compensatório na esfera social, que centraliza
a condução da evolução social, colocando a política
democrática, contrariamente ao que defendia o
neoliberalismo, como o baluarte da evolução destas mesmas
democracias. Com efeito, dois dos pilares básicos da posição
neoliberal, a recusa da sociedade e de suas instituições
enquanto
estruturas
objetivas
que
determinam
poderosamente tanto a evolução social quanto a atribuição
do status quo, e a afirmação da autorreferencialidade da esfera
econômica, que, devido a uma dinâmica própria, não-política
e não-normativa, não poderia nem sofrer intervenção
política e nem ser enquadrada a partir de argumentos
normativos e de interesses generalizáveis próprios do âmbito
social, foram implodidos pela mudança sociopolítica que
desde aquele período tem dinamizado a autoconstituição de
nossas democracias e a visão política hegemônica em nossas
sociedades.
Primeiramente uma digressão sobre estes dois pilares
da posição neoliberal. Hayek, considerado o pai do
neoliberalismo, partia da ideia de que a evolução social
possui caráter espontâneo, sendo dinamizada por indivíduos
sem qualquer visão messiânica ou filosófica do todo,
preocupados basicamente com a satisfação de suas
necessidades pessoais, que é conseguida em um processo
correlato de oferta dos próprios talentos aos demais e de
aproveitamento dos talentos oferecidos por estes. Para
Hayek, são estas ações isoladas, levadas a efeito por
indivíduos que, como disse, querem apenas satisfazer seu
bem-estar pessoal, que fazem com que esses mesmos
indivíduos instituam, ao longo do tempo, práticas, códigos e
regras que possam orientar as relações entre eles e arbitrar
sobre reivindicações de justiça surgidas a partir daquelas
relações. Note-se bem que a tônica da evolução é
determinada por indivíduos singulares, e não pelas
instituições ou por noções abstratas e genéricas de classe
92
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
social – instituições e classes sociais que poderiam
representar
macrossujeitos
da
evolução
social,
determinadores da dinâmica realizada em uma dada
sociedade e mais além (um argumento básico da teoria social
de um modo geral e da teoria social de esquerda em
particular).
Para Hayek, portanto, a evolução social, isto é, a
consolidação de resultados objetivos no que tange ao status
quo e à formação das instituições em uma dada sociedade,
acontece de modo espontâneo e não-intencional, a partir
daquelas múltiplas ações individuais, feitas com o intuito de
satisfazer os próprios interesses singulares. Ou seja, essa
evolução é espontânea e não-intencional porque não foi
produzida conscientemente, porque não foi conduzida por
alguma instituição ou classe social, porque não foi
centralizada pelas instituições e classes sociais. Ela não foi
pensada e nem planejada; simplesmente aconteceu por meio
desse processo de interrelação produtiva entre indivíduos
singulares, que, conforme travavam relações de troca,
percebiam o que deveria ser seguido e o que deveria ser
condenado em termos dessas mesmas interrelações
produtivas. Três ideias importantes aparecem aqui: a
importância da esfera econômico-produtiva em termos de
evolução social; a recusa de que a sociedade e suas
instituições, correlatamente à ideia de classes sociais (no
sentido a elas dado por Marx), sejam estruturas objetivas ou
macrossujeitos da evolução social; e a recusa da política e do
Estado enquanto médium basilar da evolução social e
enquanto instituição planejadora dessa mesma evolução
social, concomitantemente à afirmação, por parte de Hayek,
de que o mercado é uma ordem espontânea que, pela sua
lógica própria, não-normativa e não-política, assume o papel
de lugar por excelência da evolução social (cf.: HAYEK,
1985a; HAYEK, 1985b; BUTLER, 1987).
Explico brevemente cada uma dessas ideias. A
primeira delas diz respeito ao fato de que esse processo
Leno Francisco Danner
93
evolutivo tem seu cerne na esfera econômica, na produção
da vida material: é por meio da busca pela satisfação das
próprias necessidades no âmbito produtivo que os
indivíduos singulares contribuem para a gestação de práticas,
normas e instituições sociais. Isso demonstra a importância
que o âmbito econômico possui para a definição da dinâmica
social, para a configuração – ainda que indireta, espontânea
– da sociedade: indivíduos singulares produzem sua vida
material e, a partir disso, geram códigos e práticas objetivos,
que tendemos a chamar de sociedade, de instituições, de
cultura, etc. A segunda delas diz respeito à recusa de que a
sociedade e suas instituições sejam estruturas objetivas que,
a partir das lutas entre supostas classes sociais e da
configuração dali adquirida, definam o status quo, o ritmo, a
intensidade e a configuração da evolução social, dos
processos de socialização e de subjetivação. Afirmar a ideia
de que a sociedade e suas instituições são estruturas objetivas
equivale a acreditar que a sociedade tenha um centro (ou
alguns centros diretivos, planejadoras, estruturantes) e
macrossujeitos por sobre as cabeças individuais; equivale
também a pressupor a possibilidade de, politicamente, se
poder planejar os processos evolutivos, que não seriam,
nesta posição, concebidos como espontâneos, e sim como
produzidos politicamente, planejados a partir das
instituições, como que tecnocraticamente. Da mesma forma,
a afirmação de macrossujeitos da evolução social implica em
que sejam anuladas as ações individuais que, como quer
Hayek, são a verdadeira causa – inconsciente, nãointencional e não-planejada – de uma evolução social com
caráter abrangente, definidora das características gerais da
sociedade, de seus códigos e de suas relações. Instituições e
macrossujeitos não existem, a não ser como idealizações. Na
prática, apenas existem indivíduos e as relações que estes
entabulam entre si com vistas ao proveito próprio (cf.:
HAYEK, 1987; BUTLER, 1987).
94
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
Com isso, chegamos à terceira ideia central para a
posição neoliberal, a saber, a recusa da política democrática
e do Estado enquanto elementos diretivos da evolução
social, enquanto instâncias a partir das quais essa mesma
evolução social pode ser racionalizada, discutida, planejada
conscientemente. Hayek nega esse papel diretivo e
planejador da evolução social que tradicionalmente – em
particular nas posições de esquerda – a política democrática
e o Estado têm assumido e mesmo centralizado. As teorias de
índole socialista (e, hodiernamente, sua vertente socialdemocrata) possuem exatamente essa característica de
atribuir centralidade à política democrática e ao Estado
devido ao fato de conceberem a sociedade e suas instituições
enquanto estruturas objetivas, enquanto macroestruturas
que, devido a esse seu caráter, influem direta e decisivamente
nos processos de evolução social e na determinação do status
quo. Além disso, tais instituições não seriam imunes aos
grupos de poder ou classes sociais que, ao estilo de
macrossujeitos, definiriam, a partir de suas lutas por poder e
hegemonia, configurações institucionais, práticas culturais e
dinâmicas sociopolíticas. Assim, nas teorias políticas de
esquerda, a ação política de classe e o planejamento
institucional da evolução social passam para primeiro plano,
permitindo tanto a configuração adequada dos sistemas
sociais, econômicos, políticos e culturais quanto a
racionalização da dinâmica social que, planejada e conduzida
desde as instituições, poderia adquirir um sentido mais
equitativo e inclusivo e menos arbitrário (porque consciente
e fundado em interesses generalizáveis e argumentos
normativos).
Ora, Hayek ataca esse aguilhão da teoria social de
esquerda no momento em que não apenas concebe a
evolução social como espontânea, não-intencional e nãoplanejada, senão também na medida em que, para fazer isso,
estabelece a centralidade do horizonte econômico-produtivo
enquanto o motor dessa mesma evolução social. O mercado,
Leno Francisco Danner
95
enquanto ordem espontânea, é uma esfera não-objetiva, nãoestrutural, na qual o fator básico da diferenciação entre os
indivíduos e, consequentemente, da evolução social é a
meritocracia. Aqui, não é o planejamento institucional
centralizado ou a condução política das atividades dos
indivíduos que garantirão uma evolução social equitativa,
mas a própria espontaneidade do âmbito econômicoprodutivo, isto é, a ampla mobilidade dos indivíduos em
estabelecerem relações de troca uns com os outros, que é
responsável seja pela produção da vida material, seja pela
consolidação do status quo, seja, por fim, pela formação de
códigos, de regras e práticas intersubjetivas. Assim, as
instituições de um modo geral e o Estado em particular são
importantes, na teoria de Hayek, mas o são por apenas dois
motivos básicos: garantir o respeito e o cumprimento dos
contratos e dos pactos, bem como evitar que o âmbito
econômico seja afetado por poderes estruturais e por
reivindicações normativas realizadas por meio de
intervenções políticas. Quanto menos controles e
intervenções políticas, mais espontaneidade. Quanto mais
espontaneidade e liberdade, mais justiça e igualdade, que
passam a ser definidas pela meritocracia do trabalho. Esta,
aliás, torna-se o único critério para a definição do status quo,
o que significa que, conforme já comentado acima,
reivindicações normativas por igualdade material,
distribuição da riqueza e justiça social não passem de uma
miragem utilizada por grupos sociais perdedores, não
podendo legitimar uma política diretiva e um Estado forte
que enquadrem o sistema econômico com base em
interesses generalizáveis. Desse modo, torna-se claro que o
alvo da crítica de Hayek, fundamental para sua posição
política, consiste na centralidade da política democrática e do
Estado de bem-estar social enquanto elementos diretivos,
condutores e planejadores da evolução social, que, a partir
de argumentos normativos e interesses generalizáveis,
enquadram o âmbito econômico com o objetivo de se
96
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
realizar valores de uso. A boa política, conforme defendido
pelo neoliberalismo, é aquela que garante o máximo de
espontaneidade à esfera econômico-produtiva, deixando a
meritocracia definir tanto o status quo quanto os rumos da
evolução social. A má política, por sua vez, é aquela que
assume uma função interventora em relação aos mercados e
compensatória em relação à esfera social, buscando dirigir o
processo evolutivo de maneira centralizada e com base em
supostos interesses generalizáveis, com base na fantasiosa
ideia de justiça social (cf.: HAYEK, 1995; HAYEK, 2006;
BUTLER, 1987; DUBIEL, 1993; HARVEY, 2008).
É este tipo de visão que, no meu entender, está em
franco declínio, nas sociedades democráticas ocidentais,
desde meados da década de 1990. Aliás, esta visão é
rechaçada mesmo em países comunistas atuais, nos quais a
centralização política em um Estado forte torna a evolução
social algo planejado e conduzido institucionalmente, com o
objetivo claro de não apenas impedir maior democratização,
mas também de evitar que capitais de alcance transnacional
detonem a estabilidade daquelas economias nacionais
(comunistas). No que tange às sociedades democráticas
ocidentais, que é o que me interessa neste momento, podese perceber que a hegemonia neoliberal, entre as décadas de
1980 e de 1990 nessas mesmas sociedades, mostrou a
exaustão, para não se falar da própria fragilidade, de um
modelo político que centraliza a dinâmica social na ordem
espontânea do mercado e que recusa um modelo ampliado de
política democrática calcado em argumentos normativos e
em interesses generalizáveis que se utiliza de um Estado
forte, interventor e compensatório, como instituição central
de condução da evolução social. Hoje, os cidadãos querem
segurança social realizada por meio das instituições públicas:
eles afirmam tais instituições porque creem que elas podem,
por meio do controle dos poderes estruturais vigentes
socialmente, da realização de direitos sociais e da oferta de
oportunidades educativas e trabalhistas (para não se falar da
Leno Francisco Danner
97
seguridade social e dos sistemas públicos de saúde), dar-lhes
um mínimo de bem-estar pessoal, bem como um mínimo de
paz e de justiça sociais. Eles não estão mais dispostos a
arriscar conseguir isso por meio da espontaneidade do mercado e
com o enfraquecimento da política. Eles percebem, por fim,
que a desregulação e o enfraquecimento das instituições
públicas é causa direta da crescente pauperização e
desigualdade sociais. Ou seja, eles já não aceitam um
conservadorismo político que, conforme expresso pela
posição neoliberal, coloque todo o peso da integração social
na espontaneidade do mercado. Os cidadãos deste novo
milênio querem planejamento e centralização política,
querem instituições públicas atuantes socialmente, querem
um Estado forte, compensatório e interventor – eles,
contrariamente à política minimalista levada a efeito pelo
neoliberalismo, querem mais política.
Com efeito, este novo milênio iniciou-se com a
avaliação do fracasso teórico-prático do neoliberalismo e
com a convicção, que cada dia ganha mais adeptos entre a
população em geral de nossas sociedades, de que uma
política planejadora precisa, por um lado, controlar e mesmo
dinamizar
a
esfera
econômico-produtiva,
concomitantemente, por outro lado, ao seu trabalho
integrador em termos sociais, alcançado por meio de
políticas sociais calcadas na efetivação dos direitos sociais de
cidadania. A receita teórico-política hegemônica, desde o
início do século XXI, por conseguinte, pode ser sintetizada
na seguinte programática: política forte, controle e fomento
da economia nacional, realização de políticas sociais. E é
uma receita que ganha apoio não somente entre teóricos e
autoridades políticas as mais diversas, na medida em que
estas últimas, inclusive, não podem abstrair da realização de
políticas sociais como condição de legitimidade partidária e
apoio administrativo por parte das camadas de eleitores;
trata-se também de um apoio popular cada vez mais intenso,
exatamente por atribuir, conforme dito acima, um caráter
98
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
integrador e pacificador às instituições públicas de um modo
geral e ao Estado de bem-estar social em particular – uma
cultura democrática, assim, que aponta para o reforço e para
a afirmação das instituições públicas em seu aspecto diretivo
da evolução social. Interessantemente, o sucesso de que
gozam as instituições públicas implica em que o ideário
social-democrata de conciliação entre capital e trabalho por
meio do Estado de bem-estar social ganhe nova atualidade,
em nossas democracias ocidentais, hodiernamente.
2 – A vez de uma política forte
No ideário social-democrata pode-se perceber, de
maneira genérica, três aspectos básicos de sua posição
teórico-prática: (a) a afirmação da sociedade e de suas
instituições enquanto estruturas objetivas que, detonando
processos de socialização e de subjetivação por sobre as
cabeças individuais, definem de maneira preponderante a
dinâmica da evolução social, a atribuição do status quo e muito
do sentido desses processos; (b) a percepção de lutas por
poder, de lutas de classe que definem o sentido e a dinâmica
da estruturação das instituições, na medida em que tais lutas
de classes são, em primeira mão, lutas pela definição das
próprias instituições que coordenam a evolução social e os
processos de socialização e de subjetivação – lutas de classe,
portanto, direcionadas à orientação e à condução da
evolução social; e (c) a configuração do poder econômico e
político a partir dos argumentos normativos e dos interesses
generalizáveis ramificados no social, o que equivale a
subordinar os valores de troca do mercado capitalista aos
valores de uso próprios do mundo da vida, por meio da
afirmação da centralidade e do caráter diretivo da política
democrática e, aqui, particularmente, do Estado de bemestar social. Com isso, a social-democracia dá ensejo a um
modelo de política forte que deve correlata e
concomitantemente
garantir
a
viabilização
do
Leno Francisco Danner
99
desenvolvimento econômico e de uma integração social
equitativa e inclusiva, ou seja, conciliar capital e trabalho por
meios políticos. Aqui reside seja o sentido das atividades
estatais interventoras e fomentadoras em termos de âmbito
econômico, seja a ênfase estatal nos direitos sociais de
cidadania e nas instituições públicas de caráter socializador e
de proteção social (escola, sistema público de saúde,
seguridade social, etc.), que têm por objetivo, no primeiro
caso, impedir uma acumulação monopolística da riqueza e
propiciar condições infraestruturais básicas para o
desenvolvimento capitalista, bem como, no segundo caso,
realizar a proteção social das classes sociais dependentes do
trabalho e a garantia de sua inclusão bem sucedida nos
processos de socialização e de subjetivação. Trata-se, como
se pode perceber, não apenas da afirmação de uma política
forte e diretiva da evolução social, mas também, como
condição e mesmo como consequência disso, da colocação
de enormes expectativas metodológicas, programáticas e
normativas às instituições políticas de um modo geral e ao
Estado de bem-estar social em particular, na medida em que
eles passam a ser o cerne para a estabilização dos problemas
sociais (tensões entre capital e trabalho) e o baluarte para a
condução da evolução social (cf.: HABERMAS, 1991;
HABERMAS, 2000; HABERMAS, 2009; HONNETH &
HARTMANN, 2009; DANNER, 2011; DANNER, 2012;
HICKS, 1999).
A crise do Estado de bem-estar social, em seu viés
fiscal, político e psicossocial (cf.: O’CONNOR, 1977;
ROSANVALLON, 1981; OFFE, 1984; OFFE, 1989;
HABERMAS, 2002; HABERMAS, 2005), e o ataque
neoliberal a ele desfechado mostram o quanto tais
expectativas direcionadas ao campo do político apresentam
contradições, e não apenas sucessos. Entretanto, o fracasso
das políticas neoliberais e mesmo a consolidação de uma
globalização econômica desregulada, sob o predomínio de
capitais transnacionais, desde meados da década de 1990,
100
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
mostram, por seu turno, o quanto a falta de uma política
forte, nacional e internacionalmente, acentua os problemas
da desigualdade social, da pauperização e da desestruturação
das instituições públicas. Isso as populações dos países
democráticos, mormente aquelas camadas sociais com
perspectivas de vida mais instáveis (que, por isso mesmo,
sofrem de maneira mais aguda os problemas de
desenvolvimento econômico e de mercado do trabalho – e
que são, inclusive, mais exploradas em termos de dinâmica
econômica), aprenderam a duras penas. E são essas pessoas
que efetivamente consolidaram uma cultura pública calcada
na afirmação e no reforço das instituições públicas em geral
e do Estado de bem-estar social em particular, pondo como
centro programático dessa mesma política democrática os
direitos sociais de cidadania, políticas sociais e atividades
interventoras que possam garantir tanto o desenvolvimento
econômico, ao qual não se pode abandonar, quanto
principalmente processos de socialização e de subjetivação
efetivos, integrais, que não estejam determinados nem pela
exploração do trabalho por parte do capital e nem pela
dinâmica sempre instável do processo de acumulação
capitalista da riqueza, que ainda é a base, no capitalismo
contemporâneo, para a realização do desenvolvimento
social. Essas populações já não acreditam na retórica dos
políticos e nos prognósticos dos especialistas acadêmicos
sobre as reformas ou as políticas necessárias para a afirmação
do desenvolvimento econômico (leia-se: autovalorização do
capital) e nem creem que a meritocracia seja o único ou
talvez o melhor critério definidor tanto do status quo quanto
da distribuição da riqueza produzida; elas querem garantir
que os direitos sociais sejam oferecidos para além de
quaisquer ideologias partidárias e suas maquinações. Essas
mesmas populações, portanto, percebem a política como
tendo a tarefa de garantir inclusão social efetiva para todos,
protegendo suas vidas das peripécias do mercado capitalista,
que é desmistificado em sua retórica de garantidor de uma
Leno Francisco Danner
101
integração social equitativa abrangente; o mercado é um
lugar de exploração do trabalho com vistas à autovalorização
do capital, possuindo tendências e dinâmicas objetivas que,
não controladas, submetem o trabalho a um processo de
exploração e de deterioração permanente – o mundo do
trabalho não é apenas o mundo da valorização tecnológica e
dos altos salários, senão que, de um modo geral e em
perspectiva estrutural, é o âmbito da pauperização e da
desigualdade sempre crescentes, dos baixos salários e da
deterioração da qualidade de vida das classes trabalhadoras,
da monopolização da esfera econômica por grandes grupos
econômicos e da grande concentração de renda. Nesse
sentido, não há mais nenhum véu dourado ou ideologia que
tenham capacidade de encobrir a verdadeira face da
produção material da vida no capitalismo: o confronto entre
capital e trabalho, isto é, a autovalorização do capital por
meio do trabalho, é, no capitalismo contemporâneo, tão ou
mais aguda quanto o período da acumulação originária.
Isso fica evidente, em primeiro lugar, com a
consolidação da globalização econômica (cf.: CHESNAIS,
1996; BENAYON, 1998; CHOSSUDOVSKI, 1999;
HABERMAS, 2003; HABERMAS, 2006). Hoje, as grandes
empresas transnacionais canalizam sua produção para países
da Ásia ou da América Latina em que a mão-de-obra tem
precária organização sindical ou consciência de classe,
acostumada ao jugo do autoritarismo institucional e a uma
vida de pauperização. Geralmente, pelo menos no caso da
Ásia, são sociedades nas quais o poder político, centralizado
na figura de um ditador ou de um partido burocrático,
impede uma maior liberdade democrática e, com isso,
consolida uma cultura cotidiana de obediência ao
autoritarismo, o que facilita, no caso destas empresas, a
possibilidade de se explorar mão-de-obra humana a belprazer em troca de baixíssimos salários – os mercados de
trabalho da Ásia, aliás, em minha percepção, definirão muito
das configurações globais do mundo do trabalho e dos
102
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
mercados produtivos. Enfim, a globalização econômica
consolidada tornou atual o problema da exploração do
trabalho, na medida em que, naqueles continentes acima
citados, aproveitou-se das condições de pobreza social, de
autoritarismo institucional, de subdesenvolvimento
econômico e de profunda estratificação em termos de status
quo para arrefecer uma realidade de exploração do trabalho
que permite uma lucratividade em contínuo e sem qualquer
problematização abrangente. Pode-se pagar indefinidamente
um dólar por dia a um trabalhador na China ou no Vietnã
sem que essa relação de exploração desumana, literalmente
de escravidão (na medida em que tal valor permite no
máximo uma subsistência mínima), seja problematizada em
sua crueza, nem naquele contexto, nem no horizonte das
sociedades desenvolvidas, no qual a proteção ao trabalhador
e a ação dos movimentos sindicais apresentam mais
efetividade e impacto político (sociedades estas que estão
preocupadas, basicamente, com seu protecionismo interno).
Em segundo lugar, a crise socioeconômica hodierna,
que afeta as economias nacionais ocidentais desde o início
deste século, demonstra o quanto o conflito entre capital e
trabalho é atual para entendermos a dinâmica da vida
sociopolítica contemporânea. Essa crise, além disso, nos
mostra que esse conflito, que por muito tempo permaneceu
latente devido à programática do Estado de bem-estar social,
retorna com força à agenda teórico-política e à dinâmica de
nossas sociedades. Com efeito, atualmente vive-se uma
queda drástica na economia produtiva e uma elevação das
atividades ligadas ao capital especulativo-financeiro, o que
ocasiona novamente endividamento galopante do Estado e
falência da economia real, produtiva, ligada à
industrialização. Com isso, empresas reduzem suas
atividades ou entram em processo de falência, o que
ocasiona o aumento do desemprego estrutural. Ora, neste
caso, também pode ser percebido o fato de que as lutas em
torno à definição do receituário teórico-político hegemônico
Leno Francisco Danner
103
em termos de resolução da referida crise coloca novamente
na ordem do dia a disputa entre a programática socialdemocrata e a noção de políticas de austeridade própria da
posição neoliberal. Neste segundo caso, há a necessidade de
o Estado retirar controles políticos frente à mobilidade dos
capitais, diminuindo, além disso, as políticas sociais
destinadas à promoção do trabalho e à inclusão social. Ainda
como parte do receituário, há de se aceitar essa dinâmica já
consolidada da globalização econômica, que, com a entrada
em cena das formas de trabalho próprias aos contextos
subdesenvolvidos (baixos salários, jornadas laborais
extenuantes, parcos direitos trabalhistas, incipiente
organização sindical), apontam para a necessidade de se
racionalizar o trabalho como forma de se adequar à realidade
econômico-produtiva do século XXI, em que a valorização
do trabalho passa a ser determinada pela dinâmica do
trabalho barato advinda da Ásia e da América Latina,
dinâmica essa aproveitada e reforçada pelas empresas
transnacionais (cf.: ANTUNES, 2005; GORZ, 2005;
KURZ, 2005). No caso da posição social-democrata, uma
política forte, conforme já comentado acima, poderia, se não
retomar uma forma de desenvolvimento econômico
marcada por altos patamares de crescimento (isto é, de
lucro), já impossível em uma realidade de globalização
econômica que prioriza mão-de-obra da Ásia e da América
Latina, pelo menos garantir um mínimo de crescimento
econômico com a proteção e a inclusão das classes
trabalhadoras, a partir do reforço de um Estado forte e de
uma economia nacional endógena e autônoma.
Com isso, o crescimento das mobilizações sociais no
que tange à discussão das medidas para a resolução da atual
crise socioeconômica nos mostra que as populações
ocidentais – e mesmo mais além – estão conscientes de que
a luta entre capital e trabalho, elevada agora ao cenário
internacional (e determinada por este, diga-se de passagem)
por causa da globalização econômica, é atual e, se vencida
104
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
pelas posições conservadoras com sua receita de políticas de
austeridade, pode implicar na aceitação e na consolidação do
desemprego estrutural, da desestruturação das instituições
públicas e na submissão a uma economia globalizada que,
hoje, põe em perigo o mínimo de estabilidade e de direitos
sociais conquistados no Ocidente e, pior, que impede a
instauração de uma forma mais justa e equilibrada de
desenvolvimento econômico e social a ser perseguido em
nível mundial. As políticas de austeridade, propugnadas
pelas posições conservadoras, representam o ocaso da
política democrática, a desestruturação de um modelo de
política e de Estado diretivos em relação à evolução social e,
assim, o solapamento das instituições públicas interventoras
e compensatórias. Por isso, como estou defendendo, a
consolidação paulatina de uma cultura política pública,
afirmada por estas mesmas populações, que centra seu
ideário na defesa e no reforço das instituições públicas, na
ênfase em uma política forte, nos direitos sociais e em um
Estado interventor e compensatório, fazendo da política a
arena e o instrumento por excelência para a resolução dos
problemas sociais e para a condução da evolução social.
Trata-se de uma tendência teórico-política ao lado de outras
tendências (mormente a tendência conservadora calcada na
defesa de políticas de austeridade); mas que poderia representar
uma importante alternativa para iniciativas cidadãs,
movimentos sociais e partidos políticos ligados à tradição da
esquerda teórico-política e, aqui, da política forte enquanto a
base para a condução da evolução social.
Considerações finais: uma auspiciosa perspectiva para
a política democrática
Esta tendência geral que delineei ao longo destas
páginas, de uma afirmação por um número cada vez maior
de pessoas da política democrática e do Estado de bem-estar
social enquanto instituições centrais para o processo de
Leno Francisco Danner
105
evolução social, é importante para pensar-se o rumo da
política democrática contemporânea e, em particular, uma
perspectiva teórico-política para a esquerda, inclusive para
pensar-se uma alternativa à crise socioeconômica
contemporânea, tanto ao nível das democracias quanto em
termos de realidade global. Com efeito, as vozes das ruas são
cada vez mais incisivas no sentido de afirmarem a política
democrática como elemento basilar para a resolução dos
problemas sociais, tanto em termos de controle (mas
também de fomento planejado) da economia quanto no que
diz respeito à realização efetiva de políticas sociais de caráter
integrador e inclusivo, de forma a proteger as classes sociais
dependentes do mercado de trabalho da ameaça de
marginalização, de exploração e de pauperização
permanentes, determinadas pela instabilidade do processo
de acumulação capitalista atual.
Hoje, a globalização econômica imbricou de maneira
profunda dois problemas graves de nossa realidade social, a
saber, a desvalorização do trabalho e a desestruturação das
instituições públicas. No primeiro caso, conforme
desenvolvido acima, a ênfase nos mercados de trabalho da
Ásia e mesmo da América Latina, por parte dos capitais
transnacionais, implica em um severo golpe às organizações
trabalhistas em sua luta pela valorização do trabalho e pela
domesticação social do capitalismo mundial, na medida em
que aqueles capitais enfatizam exatamente um modelo
econômico-político de exploração do trabalho que possui
poucos freios e compensações – o modelo de trabalho
hegemônico, neste início de século XXI, é o dos baixos
salários, jornadas laborais extenuantes e parcos direitos
trabalhistas e que nega, inclusive, a força política e o poder
de barganha das organizações trabalhistas. No segundo caso,
a ênfase naqueles mercados de trabalho correlatamente à
mobilidade internacional dos capitais transnacionais leva à
impossibilidade de se controlar de maneira consistente,
desde as instituições públicas sediadas no Estado-nação, os
106
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
fluxos de capital (fundamentais para a promoção dos direitos
sociais e do pleno emprego), que, ao contrário, acabam
determinando os ajustes políticos desse mesmo Estadonação. Assim, as instituições públicas são submetidas a um
processo de desestruturação avassalador, em suas
capacidades interventoras e compensatórias. Conjugado a
isso, a paulatina prevalência do capital especulativo em
relação ao capital produtivo destrói a possibilidade de
crescimento das economias reais, contribuindo ainda mais
para a consolidação do desemprego estrutural, para a
desestruturação das instituições públicas e para o
crescimento da marginalização e da pauperização das classes
sociais dependentes do mercado de trabalho.
Apostarei minhas fichas, a partir destes diagnósticos,
nos grupos sociais que, na minha compreensão,
contrapõem-se às políticas de austeridade como forma de
resolução da crise socioeconômica atual. Estes, conforme
acredito, já vivenciaram, ao longo das décadas de 1980 e de
1990, tanto a defesa das posições neoliberais quanto seus
impactos sociais, políticos, culturais e econômicos em nossas
sociedades, de modo que, ao perceberem o fracasso do
neoliberalismo, também puderam aprender com aquela
situação. São esses grupos que, hoje, defendem com unhas e
dentes uma política forte, um Estado interventor e
compensatório e direitos sociais de cidadania. Esses grupos
entendem que o conflito entre capital e trabalho, na política
e na economia, não cessa e, no caso da atual crise
socioeconômica, acirrou-se, devido à globalização
econômica. Por isso, para eles, não políticas de austeridade,
conforme querem os conservadores, mas um modelo de
política e de Estado fortes, diretivos em relação à evolução
social, interventores e compensatórios, pode garantir a
resolução desta crise socioeconômica com base na afirmação
e na promoção do trabalho, permitindo a domesticação –
ainda que sempre instável – das economias capitalistas,
primeiramente ao nível de cada nação e, depois, como passo
Leno Francisco Danner
107
necessário, do atual modelo de globalização econômica. A
nova cultura democrática gestada pelos grupos sociais
críticos do neoliberalismo, assim, reafirma e reforça as
instituições políticas e a atividade política enquanto elemento
diretivo da evolução social, como a forma por excelência de
se orientar a esfera econômica com base em argumentos
normativos e interesses generalizáveis. Na medida em que
cresce o número de indivíduos e movimentos sociais que
defendem esse modelo de política forte, interventora e
compensatória, transforma-se a cultura democrática
cotidiana, que passa a substituir a meritocracia e o laissez-faire,
base da programática teórico-política conservadora, pela
política, pelo Estado e pelos direitos sociais de cidadania
como bases da evolução de nossas sociedades e mais além.
Politicamente, já não se pode mais fugir destes três pontos,
que se tornaram fundamentais para a estruturação das
instituições políticas democráticas e, de um modo ainda mais
impressionante, para a hegemonia dos partidos políticos
(inclusive os partidos políticos conservadores): política forte,
Estado de bem-estar social e direitos sociais de cidadania.
Referências bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. “Eliminar o Desemprego no
Capitalismo é Uma Ficção”, Cadernos IHU em Formação, Ano
01, nº. 05, 2005.
BENAYON, Adriano. Globalização versus Desenvolvimento.
Brasília: LGE, 1998.
BUTLER, Eamon. A Contribuição de Hayek às Ideias Políticas e
Econômicas de Nosso Tempo. Tradução de Carlos dos Santos
Abreu. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1987.
CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. Tradução
de Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 1996.
108
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
CHOSSUDOVSKY, Michel. A Globalização da Pobreza:
Impactos das Reformas do FMI e do Banco Mundial.
Tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Moderna,
1999.
DANNER, Leno Francisco. Habermas e a Ideia de Continuidade
Reflexiva do Projeto de Estado Social: da Reformulação do Déficit
Democrático da Social-Democracia à Contraposição ao
Neoliberalismo. Tese de Doutorado em Filosofia. Porto
Alegre: PUC-RS, 2011.
______________________. “Habermas e Giddens sobre a
Crise da Esquerda Ocidental: Considerações em torno à
Crise do Estado de Bem-Estar Social”, Revista Estudos
Filosóficos, nº. 09, p. 98-119, 2012.
DUBIEL, Helmut. Qué es el Neoconservadurismo? Introducción
y Traducción de Agapio Maestre. Barcelona: Editorial
Anthropos, 1993.
GORZ, André. “A Crise e o Êxodo da Sociedade Salarial”,
Cadernos IHU em Formação, Ano 01, nº. 05, 2005.
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade:
Doze Lições. Tradução de Luiz Sérgio Repa e de Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
________________. La Necesidad de Revisión de la Izquierda.
Traducción de Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Editorial
Tecnos, 1991.
________________. Diagnósticos do Tempo: Seis Ensaios.
Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2005.
Leno Francisco Danner
109
________________. La Constelación Posnacional: Ensayos
Políticos. Traducción de Pere Fabra Abat, de Daniel Gamper
Sachse y de Luis Pérez Díaz. Barcelona: Ediciones Paidós,
2000.
________________. Era das Transições. Tradução e
Introdução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003.
________________. O Ocidente Dividido. Tradução de
Luciana Villas Bôas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006.
________________. Ay, Europa! – Pequeños Escritos
Políticos. Traducción de José Luis López de Lizaga, Pedro
Madrigal y Francisco Javier Gil Martín. Madrid: Editorial
Trotta, 2009.
HARVEY, David. O Neoliberalismo: História e Implicações.
Tradução de Adail Sobral e de Maria Stela Gonçalves. São
Paulo: Edições Loyola, 2008.
HAYEK, Friedrich August von. Direito, Legislação e Liberdade:
Uma Nova Formulação dos Princípios Liberais de Justiça e
de Economia Política (Vol. II) – a Miragem da Justiça Social.
Tradução de Henry Maksoud. São Paulo: Visão, 1985a.
___________________________. Direito, Legislação e
Liberdade (Vol. III): a Ordem Política de Um Povo Livre.
Tradução de Henry Maksoud. São Paulo: Visão, 1985b.
___________________________. Arrogância Fatal: os
Erros do Socialismo. Tradução de Ana Maria Capovilla e de
Candido Mendes Prunes. Porto Alegre: Editora Ortiz, 1995.
___________________________. “The Meaning of the
Welfare State”, p. 90-95. In: PIERSON, C.; CASTLES, F.
110
Estado, política e evolução social:
uma tendência para este século XXI
G. (Eds.). The Welfare State Reader. Cambridge: Polity Press,
2006.
___________________________. O Caminho de Servidão.
Tradução de Ana Maria Capovilla, de José Ítalo Steele e de
Liane de Morais Ribeiro. Rio de Janeiro: Instituto Liberal,
1987.
HICKS, Alexander. Social Democracy and Welfare Capitalism: a
Century of Income Security Politics. Ithaca; London: Cornell
University Press, 1999.
KURZ, Robert. “A Globalização deve se adaptar às
Necessidades das Pessoas, e não o Contrário”, Cadernos IHU
em Formação, Ano 01, nº. 05, 2005.
O’CONNOR, James. USA: a Crise do Estado Capitalista.
Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista.
Tradução de Bárbara Freitag. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
___________ . Capitalismo Desorganizado: Transformações
Contemporâneas do Trabalho e da Política. Tradução de
Wanda Caldeira Brandt. São Paulo: Editora Brasiliense,
1989.
ROSANVALLON, Pierre. La Crise de l’Etat-Providence. Paris:
Éditions du Seuil, 1981.
Kátia M. Etcheverry
111
O Problema da Justificação
Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
Kátia M. Etcheverry1 2
1. Introdução
O tema deste artigo é a relação de justificação não
inferencial que permite a formação de uma base epistêmica
para crenças empíricas, satisfazendo as condições
internalistas para a justificação. Teorias fundacionalistas em
Professora Doutora Colaboradora (estágio pós-doutoral
PNPD/CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
katia.etcheverry@acad.pucrs.br.
2 Iniciei minha graduação em Filosofia na PUCRS em 2003, concluindo
o bacharelado, sob a orientação do Prof. Dr. Felipe Müller, com a
monografia intitulada ‘O problema da Justificação Epistêmica: A
proposta confiabilista de Alvin I. Goldman’, em 2006. A sequência de
meus estudos em epistemologia me levou ao Mestrado (2009, ‘O
Fundacionismo Clássico revisitado na Epistemologia Contemporânea’)
e Doutorado (2013, ‘Justificação Fundacional: a explicação neoclássica’),
ambos na PUCRS sob a orientação do Prof. Dr. Cláudio de Almeida.
1
112
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
geral têm grande interesse em explicar como crenças básicas
podem ser epistemicamente justificadas. Enquanto versões
externalistas colocam a ênfase de suas condições para a
justificação no estabelecimento de conexão estável com a
verdade, o fundacionalismo internalista tem como condição
primordial a posse de razões em favor da crença, o que lhe
traz pesado encargo teórico. A conjunção internalismo e não
inferencialidade constitui um dos pontos mais vulneráveis
das propostas fundacionalistas, consequentemente é contra
este aspecto teórico que os críticos têm levantado o maior
número de objeções. Considerando os quadros teóricos de
duas das principais teorias da justificação fundacional
apresentadas na literatura epistemológica contemporânea,
bem como a crítica dirigida a elas, pretendemos identificar o
cerne do problema da concepção internalista de justificação
de crenças básicas, e indicar o que nos parece ser uma linha
argumentativa promissora em favor do fundacionalismo
internalista.
2. A estrutura fundacionalista da justificação
Uma das teses fundacionalistas é a de que as crenças
básicas são não inferencialmente justificadas, de maneira que
nelas o regresso epistêmico pode ser encerrado de modo não
arbitrário (contra o argumento cético de Agripa) 3 e
independente da justificação de outras crenças. Na literatura
O argumento cético de Agripa pretende mostrar que não há como
configurar uma cadeia regressiva de razões com sucesso uma vez que
apenas três alternativas se apresentam: ou (i) a cadeia é linear e encontra
um ponto terminal, de modo arbitrário, em uma suposição; ou (ii) a
cadeia é circular retornando a certa altura à crença inicial; ou (iii) a cadeia
é linear e infinita. Em nenhuma das três situações, alega o cético, temos
uma estrutura adequada para a justificação de crenças. Contudo,
respostas ao trilema têm sido oferecidas tanto pelos que negam (i), os
fundacionalistas; quanto os que negam (ii), os coerentistas; e os que
negam (iii), os infinitistas.
3
Kátia M. Etcheverry
113
não há propriamente consenso ou clareza quanto às
condições e características de uma relação não inferencial,
mas usualmente ela é simplesmente concebida como sendo
a negação de uma relação inferencial. Para nosso interesse
presente será suficiente aceitar a plausibilidade de uma
relação epistêmica que é diferente da relação inferencial,
permitindo que algumas crenças sejam justificadas devido ao
suporte epistêmico fornecido pelas experiências do sujeito,
colocando fim ao regresso das razões. Por sua independência
epistêmica as crenças não inferencialmente justificadas
podem constituir a base justificacional para as demais
crenças da estrutura.
Desse modo, a estrutura fundacionalista é composta
por dois tipos de crenças: as fundacionais (ou básicas), que
são justificadas de modo não inferencial e independente da
justificação de outras crenças; e as não básicas, justificadas
mediante relações inferenciais que as tornam dependentes
epistemicamente de outras crenças e, em última instância,
dependentes da justificação das crenças básicas. Teorias
fundacionalistas se apresentam em duas versões –
internalista e externalista. Uma breve consideração do que
constitui essa divisão servirá para configurar de modo
apropriado o que caracteriza a posição internalista.
Colocando de modo sucinto, enquanto internalistas
admitem como justificadores de uma crença apenas fatores
que são internos à vida mental do sujeito, os defensores do
externalismo entendem que fatores externos podem ser
relevantes para a qualificação epistêmica de crenças. A
oposição entre as duas concepções é expressa também pela
diferente perspectiva a partir das quais as condições para a
justificação são formuladas – na primeira pessoa no
internalismo e na terceira pessoa no externalismo, como o
seguinte trecho exemplifica.
Ao bater o dedo do pé creio sentir uma dor aguda. [...] O
pensamento que é sobre minha dor e a dor que é seu
114
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
objeto são ambos constituintes do estado mental
consciente que chamo de contato direto. Quando tudo se
passa dessa maneira, estamos em um estado que não
precisaria ser mais do que ele é para satisfazer a
curiosidade filosófica. O que mais se poderia querer em
termos de garantia da verdade do que [ter] o produtor da
verdade diante da mente?
[...] A questão é muito diferente, me parece, com relação
a processos formadores de crença que podem ou não ser
confiáveis (ou que podem ou não estar funcionando
propriamente ou “rastreando” fatos). Eu estou não
inferencialmente justificado em crer que sinto dor quando
bato meu dedo do pé? O confiabilista, por exemplo, diz
que sim, à condição de que a minha crença tenha sido
causada por um processo que é confiável de modo não
condicional. A essa altura, o filósofo pode resistir
perguntando a seguinte questão óbvia: Mas minha crença
foi causada na maneira correta? [...] A questão é irresistível
porque ter uma crença causada de certo modo quando
não sabemos se ela foi causada do modo em questão
claramente não é algo que possa nos assegurar a
[obtenção da] verdade. Curiosamente, alguns externalistas
parecem perceber esse fato quando tentam aplicar suas
análises ao nível seguinte. Eles se dão conta de que uma
argumentação com base no histórico [do modo de
formação da crença] não nos leva efetivamente a lugar
nenhum quando se trata de nos dar a segurança que
buscamos. 4
A motivação para teorias externalistas está em
estabelecer estreita conexão entre a justificação e a verdade
da crença, de modo que as condições para a justificação são
concebidas em função de aspectos objetivos. 5 A teoria
FUMERTON (2006, p. 189-190).
Segundo algumas concepções externalistas a justificação depende da
“confiabilidade do processo cognitivo responsável pela formação da
crença” (GOLDMAN, 1979 e 1986), ou do “sucesso da crença em
4
5
Kátia M. Etcheverry
115
confiabilista da justificação proposta por Alvin Goldman 6 é
paradigmática do externalismo. Conforme o confiabilismo,
a justificação da crença é função da confiabilidade de seu
processo formador, ou seja, apenas crenças produzidas por
processos cognitivos confiáveis são justificadas, sendo que a
confiabilidade do processo cognitivo depende da frequência
na qual o processo é bem sucedido em produzir crenças
verdadeiras. Desse modo, a justificação da crença é função
de fatores objetivos, relacionados à verdade da crença e que
não estão dentro da perspectiva cognitiva do sujeito.
Processos cognitivos confiáveis que têm como dados de
entrada (input) outras crenças justificadas do sujeito são os
responsáveis pela formação de crenças não básicas
justificadas; já os processos confiáveis produtores de crenças
básicas justificadas têm como dados de entrada estados do
sujeito que não são crenças (estados não doxásticos),
tipicamente experiências sensoriais.
Enquanto a conexão com a verdade está no centro
da motivação para teorias externalistas da justificação, a
intuição norteadora de propostas internalistas é a de que a
justificação da crença P para o sujeito S depende das razões
que S possui em favor de P. A defesa de uma concepção não
inferencial de justificação internalista, isto é, de como
algumas de nossas crenças podem ser justificadas com base
em nossos estados experienciais se revela bastante mais
complexa do que sua contraparte externalista. 7 A tentativa
rastrear a verdade” (NOZICK, 1981), ou de a crença “ser o resultado do
funcionamento apropriado”, isto é, de que ao produzir a crença o aparato
cognitivo do sujeito esteja funcionando conforme foi designado para
funcionar (PLANTINGA, 1993).
6 GOLDMAN (1979 e 1986).
7 Esta tarefa heróica tem motivado grande debate. Uma amostra
interessante da defesa do internalismo está em BONJOUR (2003a,
2003b e 2006), FUMERTON (1995, 2001 e 2006), HASAN (2011 e
2013), MCGREW (1995 e 2003), MOSER (1991) e BERGMANN
(2006a e 2006b).
116
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
de tornar mais brando o esforço teórico em oferecer essa
defesa parece ter dado origem a variações entre as propostas
internalistas no que refere o tipo adequado de consciência
do justificador.
A versão de internalismo proposta por Conee e
Feldman, 8 denominada mentalismo, considera como
justificadores apenas itens que são internos à vida mental do
sujeito e relevantes para a verdade da crença. Assim, quando
duas pessoas têm idêntico conteúdo mental elas também têm
idêntica justificação para o mesmo conjunto de proposições,
ainda que uma delas seja habitante de um mundo maligno
onde suas crenças são sistematicamente falsas, ou que ela
seja nada mais do que um cérebro desprovido de corpo e
mantido em um tanque no qual é submetido aos
experimentos de um neurocientista, nos quais são gerados
eventos mentais indistinguíveis daqueles causados por
experiências sensoriais reais em cérebros dotados de corpos.
Já no internalismo dito de acesso, 9 a condição para a
justificação epistêmica das crenças de um sujeito é a de que
ele disponha de razões em favor dessas crenças, razões que
estejam dentro de sua perspectiva cognitiva, às quais ele
pode ter acesso cognitivo mediante reflexão. Esse é um tipo
mais exigente de internalismo na medida em que nele não
basta que os fatores sejam internos ao sujeito para que as
condições internalistas para a justificação sejam satisfeitas, é
preciso também que o sujeito esteja consciente desses
fatores em seu papel contribuidor para a justificação. O
incremento de exigência não parece ser excessivo se
considerarmos que a própria razão de ser do internalismo,
isto é, a característica que o distingue nitidamente do
externalismo, é a posse das razões que fundamentam a
crença, e essa posse requer que as razões sejam acessíveis ao
sujeito da crença. Sendo assim, a exigência de que os
8
9
Cf. FELDMAN e CONEE (2009).
Ver entre outros BONJOUR (2001) e FELDMAN (2003).
Kátia M. Etcheverry
117
justificadores sejam internos à vida mental do sujeito seria
secundária na medida em que ela decorre da exigência de que
os justificadores possam ser acessados cognitivamente pelo
sujeito. Por conseguinte, consideramos que a exigência de
acesso ao justificador configura a exigência primordial e a
marca essencial do internalismo, demarcando com clareza o
contraste com a concepção externalista de justificação. 10
Tendo em vista que, conforme nossa argumentação,
a exigência de posse de razões constitui a condição essencial
internalista, colocar as condições para a justificação
fundacional nesses termos requer: (i) especificar os itens aos
quais o sujeito pode ter acesso cognitivo de modo a
reconhecê-los em seu papel de justificadores; (ii) mostrar
como esse acesso pode ser epistemicamente eficiente e ao
mesmo tempo proporcionar o término do regresso
epistêmico. Na sequência desse texto nos concentraremos
em propostas teóricas do que tem sido referido na literatura
como internalismo forte, nas quais a justificação de crenças
básicas satisfaz a condição de que o sujeito tenha dentro de
sua perspectiva cognitiva os justificadores em seu papel
contribuidor para a qualificação epistêmica da crença.
3. Fundacionalismo internalista contemporâneo
As teorias de Richard Fumerton 11 e Laurence
BonJour 12 são defesas proeminentes do internalismo forte
Sosa (SOSA, 2003, p. 97- 170) distingue entre a versão internalista
“ontológica” na qual o justificador é interno no sentido de integrar a vida
mental do sujeito, e a versão internalista “epistêmica” na qual o
justificador deve estar acessível cognitivamente ao sujeito enquanto
indicador da verdade da proposição objeto de crença. Considerando a
posse de razões como condição característica da justificação internalista,
o internalismo ontológico não se distinguiria do externalismo em suas
condições para a justificação epistêmica.
11 FUMERTON (1995 e 2001).
12 BONJOUR (2003a e 2003b).
10
118
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
no debate sobre justificação fundacional. Suas propostas de
explicação internalista da justificação de crenças básicas
partilham do desafio de mostrar que o sujeito pode dispor
cognitivamente do que justifica sua crença, satisfazendo a
exigência de posse consciente de razões, sem prejuízo da
condição essencial de que a justificação de crenças
fundacionais tenha sua origem em uma confrontação direta
com a verdade que garante sua independência epistêmica,
sendo que essa confrontação decorre da imediaticidade da
relação epistêmica entre o justificador e a crença.13
A classificação de Fumerton como internalista de
acesso contraria as declarações do próprio Fumerton a esse
respeito e requer algum esclarecimento. Apesar de sua
manifesta crítica à exigência de acesso ao justificador, 14
Fumerton coloca claramente em numerosas passagens de
sua obra seu entendimento de que a justificação da crença
tem sua origem na relação de contato cognitivo direto que
coloca “diante da mente do sujeito” tudo o que é preciso
para justificar sua crença. Desse modo parece plausível
entender que Fumerton considera, ainda que implicitamente,
ser insuficiente para fins de justificação internalista a mera
exigência de que os justificadores sejam internos à mente do
sujeito. O trecho citado anteriormente deixa claro que em
sua visão a justificação da crença depende de que o sujeito
tenha dentro de sua perspectiva cognitiva tanto o item que
contribui para a justificação quanto sua relevância para a
justificação, o que é expressamente colocado tanto no
Princípio de Justificação Não Inferencial 15 quanto no
Da perspectiva dos defensores do fundacionalismo internalista forte,
a imediaticidade da relação epistêmica, ao permitir que o próprio fato
relevante para a verdade da crença fundacional faça parte do que
constitui a justificação, não só dá condições para encerrar o regresso
epistêmico como elimina todo espaço para erro, de maneira que a
justificação obtida por meio dela é infalível.
14 Ver FUMERTON (1995, p. 62-66) e FUMERTON (2001, p. 72).
15 Ver FUMERTON (2001, p. 13-14).
13
Kátia M. Etcheverry
119
Princípio de Justificação Inferencial. 16 Por conseguinte,
entendemos razoável assumir que a teoria proposta por
Fumerton integra o internalismo de acesso, uma vez que suas
condições satisfazem a exigência de que o item justificador
da crença e seu papel epistêmico estejam dentro da
perspectiva cognitiva do sujeito.
Críticos do fundacionalismo internalista têm
entendido com certa frequência, equivocadamente a nosso
ver, que a exigência de acesso aos justificadores da crença
requer a ocorrência de um estado reflexivo, portanto de
ordem superior, gerador de regresso vicioso. Essa crítica
perde sua força ao distinguirmos a situação na qual o sujeito
está consciente de estar no estado mental M, que requer a ocorrência
de dois estados mentais ontologicamente distintos, daquela
na qual o sujeito está consciente (de pelo menos parte) do conteúdo de
M, onde é preciso ocorrer nada além de um único estado
mental. Essa última situação configura um estado consciente
de experiência imediata, no qual o sujeito tem dentro de seu
alcance cognitivo aspectos do conteúdo consciente (ainda
que apenas em parte) sem a intervenção de um estado
consciente de ordem superior judicativo sobre o papel
epistêmico da experiência, interrompendo assim de modo
adequado o regresso da justificação. Se o fundacionalista
internalista pode alegar que (i) alguns aspectos do conteúdo
da experiência podem ser conscientes de modo
independente de outro estado mental consciente, e que (ii) é
suficiente que o conteúdo da experiência seja (pelo menos
em parte) acessível ao sujeito para que possa ser relevante
para a justificação da crença, então as condições para uma
relação não inferencial de justificação estão dadas, o
conteúdo fenomênico da experiência consciente do sujeito
constitui o fundamento da crença e nele o regresso da
justificação é interrompido.
16
Ver FUMERTON (2001, p. 5-6).
120
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
4. Relação epistêmica não inferencial - Contato
Cognitivo Direto (acquaintance) e Consciência
de Conteúdo Constitutiva
Conforme a teoria proposta por Richard Fumerton,
a justificação das crenças fundacionais decorre de um
“confronto direto com a realidade” promovido pela relação
de contato cognitivo direto entre a mente do sujeito e “um
objeto, propriedade ou fato”, permitindo que itens
relevantes para a justificação da crença estejam “diante da
mente do sujeito”. Nessas condições, a base da justificação
de crenças fundacionais está na relação de contato direto que
tem como relata (i) o pensamento, cujo conteúdo é a
proposição que tem por objeto o conteúdo fenomênico da
experiência; (ii) a experiência, ou seja, o fato interno ao sujeito
que é o produtor da verdade da crença; e (iii) a relação de
correspondência entre esse fato e a proposição objeto de
crença. A proposição é verdadeira por corresponder ao fato
(a experiência) e a justificação da crença depende
necessariamente da apreensão cognitiva dessa relação de
correspondência por parte do sujeito.
O ponto crucial para a aquisição de justificação está
no relatum (iii). A dificuldade consiste em mostrar que a
relação de contato direto permite ao sujeito dispor do
justificador enquanto tal. Fumerton se limita a afirmar que
essa relação é sui generis e pode promover a confrontação com a
verdade que dá origem à justificação e coloca fim ao regresso
epistêmico, porque essa relação não é uma crença ou outro
estado consciente de conteúdo proposicional. Contudo,
nessas condições não fica claro como a relação de contato
direto pode levar a cabo alguma tarefa epistêmica que
satisfaça os termos internalistas. O âmago do problema está
17
17
Ver FUMERTON (1995, capítulo 3, principalmente).
Kátia M. Etcheverry
121
em esclarecer como a relação de contato direto com a relação
de correspondência entre a proposição objeto de crença e o
fato (a experiência) pode ocorrer de modo cognitivamente
disponível ao sujeito, satisfazendo as condições internalistas
para a justificação sem gerar regressos. Se para isso for
preciso que o sujeito conceba algo como sendo de determinada
maneira parece difícil ver como o movimento regressivo das
razões pode ser encerrado, uma vez que nesse caso não
haveria como dispensar a exigência de justificação adicional.
Na teoria proposta por Laurence BonJour 18 a
consciência de conteúdo constitutiva de um estado mental
proporciona as condições adequadas para que o sujeito
possa, em um único ato cognitivo, apreender tanto o
conteúdo não proposicional do estado de experiência, como
o conteúdo proposicional do estado de crença, e ver a
concordância ou correspondência entre eles. Conforme
BonJour, entre os dois estados se estabeleceria uma relação
de natureza descritiva, onde o conteúdo proposicional da
crença seria constituído por uma descrição do conteúdo não
proposicional da experiência, “ele [o conteúdo da
experiência] pode ser descrito conceitualmente [no conteúdo
proposicional da crença], com graus variados de detalhe e
precisão”, constituindo uma “espécie de razão”.19 Mediante a
relação descritiva o sujeito se colocaria em condições de
apreender cognitivamente aspectos relativos à conformidade
entre o conteúdo não proposicional da experiência e a sua
descrição proposicional, de modo que essa relação não seria
apenas de natureza causal e, por conseguinte,
eminentemente externalista.
Como já referido anteriormente, os termos nos quais
Fumerton formula seu princípio de justificação não
inferencial, bem como as consequências epistêmicas que ele
alega advir da imediaticidade característica da relação de
18
19
BONJOUR (2003a).
Ibid. p. 72.
122
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
contato cognitivo direto, colocam sua teoria lado a lado com
outras teorias que exigem o acesso consciente ao justificador,
como é o caso de BonJour. O papel epistêmico que
Fumerton atribui à relação de contato direto com a relação de
correspondência encontra equivalente na compreensão do ajuste
entre os conteúdos da crença e da experiência que BonJour alega ser
possível graças à consciência de conteúdo constitutiva desses
dois tipos de estados. Muitas críticas foram dirigidas à
maneira como esses teóricos pretendem ter sucesso em
defender a relação não inferencial responsável pela
justificação de crenças básicas. O descontentamento dos
opositores com frequência se coloca na explicação de como
uma relação epistêmica e não meramente causal pode se
estabelecer entre estados de natureza diversa.
5. Críticas e defesas
A teoria de BonJour foi objeto de grande debate na
literatura recente, possivelmente em consequência de seu
maior detalhamento e empenho teórico no sentido de
oferecer uma concepção filosoficamente satisfatória de
justificação fundacional internalista. Alguns pontos de sua
concepção de justificação não inferencial são devem ser
ressaltados a fim de tornar claro o ponto central em
discussão e alvo de objeções.
Primeiramente, parece inequívoco que, ao colocar na
relação descritiva a condição para que o conteúdo não
conceitual se constitua em uma “espécie de razão”, BonJour
considera que essa relação permite ao sujeito ter alguma
indicação da correção da descrição. Seu entendimento é o de
que a fonte última de justificação está na consciência de
conteúdo constitutiva, a qual, por ser inerente ao estado
mental, fornece condições para a imediaticidade da relação
descritiva, de modo que o item que alegadamente funciona
como “espécie de razão” pode se colocar dentro da
Kátia M. Etcheverry
123
perspectiva cognitiva do sujeito, dispensando a ocorrência
de qualquer outro estado judicativo adicional.
Em segundo lugar, os seguintes pressupostos
teóricos devem ser considerados: (i) que alguns de nossos
estados mentais podem ser conscientes por si mesmos de
modo independente de qualquer outro estado mental; (ii)
que a natureza do conteúdo de estados experienciais é, pelo
menos em parte, não proposicional; e, finalmente (iii) que
estados de natureza diversa podem se relacionar
epistemicamente satisfazendo as condições para a
justificação internalista.
Talvez o último pressuposto seja aquele capaz de
gerar maior embaraço, contudo ele é indispensável para a
concepção internalista de justificação fundacional, pois que
os dois primeiros são insuficientes para gerar justificação não
inferencial que satisfaça a exigência de acesso ao justificador.
Nesse sentido a estratégia teórica consiste em (i) alegar que
a consciência de que determinada qualidade está presente no
conteúdo fenomênico só depende de que essa qualidade
esteja efetivamente presente no conteúdo da experiência, e em
(ii) alegar que o conteúdo fenomênico e não proposicional
da experiência tem seu papel epistêmico garantido enquanto
item indispensável para que o sujeito possa avaliar o sucesso
da relação descritiva entre crença e experiência: mesmo
sendo não proposicional, o conteúdo fenomênico (pelo
menos parcialmente) participa da compreensão da
concordância entre o caráter da experiência e a descrição
conceitual, feita no conteúdo proposicional da crença, uma
vez que ele constitui o objeto dessa descrição. Esses dois
aspectos são cruciais para a defesa de uma relação epistêmica
não inferencial que satisfaça a exigência internalista.
Segundo a proposta de BonJour, 20 crenças
fundacionais são justificadas com base no conteúdo da
20 Ver BONJOUR, (2003a, 2003b e 2006), BERGMANN (2006b) e
SOSA (2003).
124
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
experiência ocorrente (ou parte dele) quando o sujeito S: (a)
tem uma experiência de conteúdo fenomênico consciente E;
(b) tem a crença P, cujo conteúdo descreve
(conceitualmente) aspectos da fenomenologia de E; e (c)
compreende o conteúdo descritivo de P (ou seja, S apreende
cognitivamente que o conteúdo da crença se ajusta, ou é uma
descrição acurada (ainda que parcial) do conteúdo
fenomênico da experiência). 21 O toque característico da
concepção internalista, que contempla o pressuposto (iii)
anteriormente referido, é expresso pela condição (c) na qual
S compreende o conteúdo descritivo ao mesmo tempo em
que alcança cognitivamente a correspondência, ou
concordância, entre o conteúdo da crença e o conteúdo da
experiência. 22
A compreensão alegada por BonJour ocorre devido
à apreensão do ajuste dos dois conteúdos, e só é possível
devido à consciência de conteúdo constitutiva dos dois
estados envolvidos, crença e experiência, que permite ao
sujeito selecionar os itens do conteúdo fenomênico que são
epistemicamente relevantes de maneira a poder reconhecer,
de modo imediato, a sua concordância com o elemento
proposicional que lhe corresponde no conteúdo da crença.
Desse modo, ao compreender o sujeito pode apreciar direta e
independentemente se a descrição está correta, sendo que a
justificação da crença deriva desse ato de compreensão, o
qual inclui o conteúdo proposicional da crença mas
independe epistemicamente de qualquer estado judicativo
adicional. 23 BonJour enfatiza o caráter imediato da
apreensão do ajuste entre os dois conteúdos, e o compara ao
Além das condições (a), (b) e (c) BonJour acrescenta a exigência de que
S não tenha razões para crer na probabilidade (epistemicamente
relevante) de ocorrência de erro.
22 Cf. BONJOUR (2003b e 2006).
23 Nesse caso a justificação se deve à “consciência da concordância
descritiva entre o conteúdo da proposição em que creio e o aspecto
relevante do conteúdo da experiência”. (BONJOUR, 2006. p. 744)
21
Kátia M. Etcheverry
125
caso de um modus ponens no qual por insight a priori o sujeito
vê que a conclusão se segue das premissas de modo
independente de outros estados conscientes. 24
Garantir a independência epistêmica das crenças
básicas se torna particularmente difícil na perspectiva
internalista precisamente devido às complicações
envolvendo a satisfação simultânea da exigência de
imediaticidade e da exigência de consciência do acesso ao
justificador. Atender a essas duas exigências é a tarefa que
BonJour atribui à consciência de conteúdo constitutiva no
conjunto consciência constitutiva da experiência + consciência
constitutiva da crença + compreensão da concordância, e que
Fumerton coloca na relação de contato direto que tem por relata o
pensamento, o fato e a relação de correspondência entre eles. Esses dois
elementos teóricos colocam as condições nas quais
alegadamente o sujeito tem razões para crer na verdade da
proposição objeto de crença com base no conteúdo da
experiência, satisfazendo os critérios internalistas. Contudo
esse movimento teórico é dos mais delicados, e tanto por sua
importância quanto por sua fragilidade ele tem sido objeto
de ataque dos críticos.
M. Bergmann 25 faz a voz da crítica colocando o foco
de suas objeções precisamente na exigência de acesso ao
justificador. Ao negar que a compreensão da concordância
entre as qualidades presentes na fenomenologia da
experiência e sua descrição conceitual na proposição objeto
de crença possa permitir ao sujeito ter acesso cognitivo à
relação de justificação, dispensando estados cognitivos
adicionais e interrompendo o regresso, Bergmann coloca o
seguinte dilema à explicação de justificação internalista de
BonJour: o ato de ver a concordância ou (i) ocorre mediante
um ato cognitivo adicional, proporcionando uma consciência
forte do justificador mas geradora de regressos viciosos; ou (ii)
24
25
Cf. BONJOUR (2006, p. 759, n.3).
BERGMANN (2006a e 2006b).
126
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
não requer nenhum ato cognitivo adicional porque o item
relevante não é concebido em termos classificatórios, caso
em que a consciência de conteúdo constitutiva e a
compreensão do conteúdo por ela propiciada se
enquadrariam na categoria de consciência fraca do justificador,
insatisfatória para as condições internalistas. Em conclusão,
não haveria como atender concomitantemente as condições
para a justificação não inferencial (parada no regresso) e as
condições para a justificação internalista.
Sendo assim, nenhuma teoria da justificação que
assuma o internalismo poderia ser fundacionalista
simplesmente porque nenhuma explicação internalista de
relação não inferencial poderia ser satisfatória. Segundo
Bergmann, ao buscar evitar uma cadeia justificacional
infinita e satisfazer as condições fundacionalistas BonJour
não consegue satisfazer as condições internalistas para a
justificação da crença, porque as condições que são
adequadas para a interrupção do regresso não permitem que
o sujeito conceba o item justificador enquanto sua razão para
crer na verdade da proposição objeto da crença. Em outras
palavras, a relação descritiva não proporcionaria ao sujeito
condições para avaliar a correção da descrição pois, para
estar justificado, o sujeito deve compreender o conteúdo
descritivo da crença por meio de um estado cognitivo
diferente e adicional, no qual ele compara o conteúdo
proposicional da crença com o conteúdo fenomênico da
experiência.
A dificuldade apontada por Bergmann decorre de
sua presunção de que a diferença de natureza entre os
respectivos conteúdos conscientes exige um estado
cognitivo adicional para que o sujeito possa ver a
concordância entre eles. Se, como Bergmann supõe, a
justificação internalista requer um estado cognitivo adicional
à compreensão da concordância (e o mesmo se aplicaria para
o contato cognitivo direto com a relação de
correspondência), então a explicação de justificação não
Kátia M. Etcheverry
127
inferencial internalista proposta por fundacionalistas de
inspiração cartesiana como BonJour e Fumerton fica
inviabilizada – se a aquisição de justificação só pode ocorrer
mediante um estado judicativo que tem por objeto a
comparação entre os dois conteúdos, então estamos diante
de uma cadeia inferencial cujo regresso é infinito. Mas, como
expusemos longamente neste ensaio, esse não parece ser o
caso precisamente devido à imediaticidade da relação
epistêmica entre os dois estados conscientes, que permite a
ocorrência da comparação direta dos dois conteúdos dentro
da perspectiva cognitiva do sujeito e sem a mediação de
outro estado consciente.
6. Considerações finais
A justificação não inferencial internalista requer que
o sujeito tenha acesso cognitivo direto à correspondência, ou
concordância, entre os aspectos epistemicamente relevantes
do conteúdo fenomênico da experiência e a descrição que é
feita deles no conteúdo conceitual da crença. A
plausibilidade da alegação de que essa condição pode ser
satisfeita nos termos propostos por BonJour, contra
Bergmann, está no fato de que nossa vida cognitiva é
permeada de experiências que são inéditas, às quais não
dispomos de nada para colocar em comparação. É forçoso
aceitar então que “É preciso haver uma primeira experiência
cognitivamente significativa [...] [à qual] deve ser possível
atribuir algum tipo de descrição, mesmo algo tão vago
quanto ‘esse cheiro desagradável’, de um modo não
comparativo”. 26
Por que afinal enfrentar toda a dificuldade teórica
que se coloca às concepções internalistas e não se contentar
com a menos onerosa explicação externalista? Que
devastadora motivação filosófica pode levar epistemólogos
26
MCGREW (2003, p. 199-200).
128
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
a se colocar em semelhante dificuldade? A resposta a essa
pergunta talvez seja a mais simples que o internalista tem a
dar, e pode ser colocada na forma de uma pergunta: como
pode uma pessoa estar justificada em crer determinada
proposição se ela não possui razões em favor da verdade dessa
proposição? Por outro lado, se, como alegam BonJour e
Fumerton, ela está diretamente consciente do fato relevante
para a verdade de sua crença e da relevância do fato para a
verdade da crença, ambos estão dentro de sua perspectiva
cognitiva enquanto constituintes do mesmo estado mental
consciente. Essa situação não poderia ser melhor do ponto
de vista epistêmico, pois ela é suficiente para assegurar ao
sujeito que sua crença é verdadeira, contrastando com a
situação referida por Fumerton: “[...] ter uma crença causada
de certa maneira, quando não sabemos se ela é causada dessa
maneira ou não, claramente não é algo que possa nos
assegurar a [obtenção da] verdade”. 27
Assim, parece razoável entender que as razões
justificadoras da crença devem estar cognitivamente
disponíveis ao sujeito da crença, e isso só pode ocorrer
quando ele tem acesso aos fundamentos de sua crença
enquanto tais. Indiscutivelmente, a verdade da crença é uma
questão externa ao sujeito, mas as indicações da verdade da
crença só podem ser relevantes quando estão situadas dentro
da perspectiva cognitiva do sujeito. Em outras palavras,
justificação é uma questão atinente à interioridade do sujeito
da crença. Se justificação nada mais for do que a mera
conexão estável com a verdade proporcionada pelo modo de
formação da crença, então estamos na inegável situação de
nunca termos acesso cognitivo ao fato de que essa conexão
ocorre. Como isso pode ser inócuo em nossas vidas
epistêmicas?
27
FUMERTON (2006, p. 190).
Kátia M. Etcheverry
129
7. Referências Bibliográficas
BERGMANN, M. Justification without awareness: a defense of
epistemic externalism. Oxford: Clarendon Press, 2006a. 252
p.
___________. BonJour’s Dilemma. In: Philosophical Studies, v.
131, p. 679-693, 2006b.
BONJOUR, L. The indispensability of
Philosophical Topics, v. 29, p. 47-65, 2001.
Internalism.
___________. A Version of Internalist Foundationalism.
In: BONJOUR, L.; SOSA, E. (eds.). Epistemic Justification:
internalism vs. externalism, foundations vs. virtues. Malden:
Blackwell Publishers, 2003a. p. 3-96.___________. Reply to
Sosa. In: BONJOUR, L.; SOSA, E. (eds.) Epistemic
Justification: internalism vs. externalism, foundations vs.
virtues. Malden: Blackwell Publishers, 2003b. p. 173-200.
___________. Replies In: Philosophical Studies, v. 131, p. 743759, 2006.
FELDMAN, R. Epistemology. N. Jersey: Prentice Hall, 2003.
197 p.
FELDMAN, R.; CONEE, E. Internalism Defended. In:
SOSA, E.; KIM, J.; FANTL, J.; MCGRATH, M. (eds.).
Epistemology: an anthology. Malden: Blackwell Publishing,
2009. p. 407-421. (Reimpressão do “The American
Philosophical Quarterly”, v. 38, p. 1-18, 2001)
FUMERTON, R. Metaepistemology and Skepticism. Lanham:
Rowman & Littlefield Publishers, 1995. 234 p.
130
O Problema da Justificação Fundacional Internalista na
Epistemologia Contemporânea
___________. Classical Foundationalism. In: DEPAUL, M.
(ed.). Resurrecting Old-Fashioned Foundationalism. Oxford:
Rowman & Littlefield Publishers, 2001. p. 3- 20.
___________. Epistemic Internalism, Philosophical
Assurance and the Skeptical Predicament. In: CRISP, T.;
DAVIDSON, M. (eds.). Knowledge and Reality: essays in honor
of Alvin Plantinga. Dordrecth: Springer, 2006, p. 179-192.
___________. Classical Foundationalism. In: DEPAUL, M.
(ed.). Resurrecting Old-Fashioned Foundationalism. Oxford:
Rowman & Littlefield Publishers, 2001. p. 3- 20.
GOLDMAN, A. What is Justified Belief ? In: PAPPAS, G.
(ed.), Justification and Knowledge. Dordrecht: D. Reidel,
1979. p. 1-23.
___________. Epistemology and Cognition. Cambridge:
Harvard University Press, 1986. 437 p.
HASAN, A. Classical Foundationalism and Bergmann’s
Dilemma for Internalism. In: Journal of Philosophical Research,
v. 36, p. 391-410, 2011.
___________. Phenomenal conservatism, classical
foundationalism, and internalist justification. In: Philosophical
Studies, v. 162, n. 2, p. 119-141, 2013.
MCGREW, T. The Foundations of Knowledge. Lanham:
Littlefield Adams Books, 1995. 149 p.
___________. A Defense of Classical Foundationalism. In:
POJMAN, L.P. (ed.). The Theory of Knowledge. Belmont, CA:
Wadsworth/Thomson Learning, 2003. p. 194-206.
MOSER, P. Knowledge and Evidence. N. York: Cambridge
University Press, 1991. 285 p.
Kátia M. Etcheverry
131
NOZICK, R. Philosophical Explanations. Cambridge, MA:
Belknap Press, 1981. 764 p.
PLANTINGA, A. Warrant: the Current Debate. Oxford:
Oxford University Press, 1993. 228 p.
SOSA, E. Beyond Internal Foundations to External Virtues.
In: BONJOUR, L.; SOSA, E. (eds.). Epistemic Justification:
internalism vs. externalism, foundations vs. virtues. Malden:
Blackwell Publishers, 2003, p. 97- 170.
132
Breve comentário sobre o conceito de Cultura em
O Mundo Codificado de Vilém Flusser
Breve comentário sobre o
conceito de Cultura em
O Mundo Codificado de
Vilém Flusser
André Brayner de Farias1
(UCS/PUCRS)
Fazer uma filosofia da cultura não é tarefa das mais
simples, uma vez que vivemos desde sempre culturalmente.
Sou oceanógrafo formado pela FURG em 1999; ingressei no PPG de
Filosofia da PUCRS em agosto de 1999, sob a orientação do Prof. Dr.
Ricardo Timm de Souza; minha dissertação de mestrado, concluída em
2001, tematizou a racionalidade ética na obra Autrement qu’être ou au-delà
de l’essence de Emmanuel Levinas; iniciei o doutorado em março de 2002,
sob a supervisão do Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza; minha tese versou
sobre o tema da subjetividade ética desde a crítica da ontologia na
filosofia de Levinas; realizei durante o doutorado estágio de um ano na
Université de Toulouse Le Mirail, sob a supervisão do Prof. Dr. Pierre
Kerszberg; desde 2010 sou professor da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da PUCRS, além de atuar no PPG de Filosofia da
Universidade de Caxias do Sul, onde trabalho desde agosto de 2003;
atualmente desenvolvo pesquisa sobre o tema da Hospitalidade no PPGFIL da UCS.
1
André Brayner de Farias
133
Falando rigorosamente uma filosofia da cultura deveria ser
tão impossível quanto uma filosofia da existência humana.
Como abordar um fenômeno que nos atravessa desde
sempre? Como agarrar o próprio rabo sem ficar preso? Uma
alternativa possível, e que talvez não prejudique o caráter
impossível de uma filosofia da cultura, é o viés
fenomenológico, que uma vez aplicado, gostaria de saber da
cultura exatamente aquilo que é a coisa mesma da cultura, aquilo
que permanece sendo no próprio movimento em que a
cultura vai acontecendo. Não que a tarefa se torne simples,
mas esse truque de perguntar pela coisa mesma abre o
caminho do pensamento ao reduzi-lo ao seu mínimo e se
livrar de pretensões duvidosas. Esse mínimo, quando entra
em operação, passa a ser o máximo em precisão e rigor.
Parece ser este o caminho de Vilém Flusser. Não que
o autor faça uma filosofia fenomenológica no sentido
rigoroso, mas certamente podemos dizer que ele adota a
estratégia proposta por Husserl de voltar-se às coisas
mesmas. Flusser chama o mundo da cultura de mundo
codificado, e trata de desvendar esse mundo olhando bem de
perto para aquilo de que esse mundo é feito e vendo e
procurando entender como que isto funciona. O livro de
Flusser O mundo codificado é, em geral, uma filosofia do design
e da comunicação, mas é, num sentido surpreendente e
original, uma filosofia da cultura.
O que segue é um breve comentário, que se refere
principalmente a dois capítulos de O mundo codificado, onde
entendemos que o filósofo tcheco-brasileiro consegue
chegar a uma boa síntese do conceito de cultura,
investigando exatamente aquilo que se trata de fazer quando se
trata de fazer cultura, ou aquilo que se trata de fazer quando
se trata de fazer design ou ainda quando se trata de produzir
a comunicação. Quando faz a questão, Flusser descobre o
trabalho do design como “obstáculo para a remoção de
obstáculo”. No fundo a situação na qual existimos, diz
Flusser, é a de criadores de objetos cuja função é a de
134
Breve comentário sobre o conceito de Cultura em
O Mundo Codificado de Vilém Flusser
trapacear a ordem natural das coisas, trapacear a natureza. A
cultura seria o resultado modelável do design que orienta
nossos modos de viver. E é só por uma questão de design que
encontramos o livro de Flusser na prateleira dos livros de
design, pois poderia muito bem figurar entre os livros de
ética e filosofia política, também na prateleira de filosofia da
linguagem, de filosofia da natureza, tudo dependeria do design
que dá forma ao conhecimento, que determina o que deve
constar em cada seção e que permite ou impede que
encontremos o livro de Flusser na estante de ética, de
política, de estética, teoria da cultura, de design ou de teoria
da comunicação. Isso não importa se não tivermos
impedimento para visitar todas as estantes e descobrir que
podemos organiza-la diferentemente.
Flusser começa o capítulo Design – obstáculo para a
remoção de obstáculo? dizendo o seguinte:
Um ‘objeto’ é algo que está no meio, lançado no meio do
caminho (em latin, ob-iectum; em grego, problema). O
mundo, na medida em que estorva, é objetivo, objetal,
problemático. Um objeto de uso é um objeto de que se
necessita e que se utiliza para afastar outros objetos do
caminho. Há nessa definição uma contradição: um
obstáculo que serve para remover obstáculos? Essa
contradição consiste na chamada “dialética interna da
cultura” (se por cultura entendermos a totalidade dos
objetos de uso). Essa dialética pode ser resumida assim:
eu topo com obstáculos em meu caminho (topo com o
mundo objetivo, objetal, problemático), venço alguns
desses obstáculos (transformo-os em objetos de uso, em
cultura), com o objetivo de continuar seguindo, e esses
objetos vencidos mostram-se eles mesmos como
obstáculos. Quanto mais longe vou, mais sou impedido
pelos objetos de uso (mais na forma de carros e de
instrumentos administrativos do que na forma de granizo
e tigres). E na verdade sou duplamente obstruído por eles:
primeiro, porque necessito deles para prosseguir, e,
segundo, porque estão sempre no meio do meu caminho.
André Brayner de Farias
135
Em outras palavras: quanto mais prossigo, mais a cultura
se torna objetiva, objetal e problemática. (FLUSSER,
2007. p. 194)
A cultura, como a totalidade dos objetos de uso, é o espaço
de nossa liberdade e também o seu avesso (obstáculo).
Desde que descobrimos o nosso poder de manipular as
coisas da natureza, o poder de dar forma a algo, ou seja, de
in-formar, estamos acumulando os bens que constituem
materialmente a cultura. Por que percebemos que somos
capazes de manipular as coisas, nos demos o rótulo de seres
culturais. Como seres culturais descobrimos a nossa
liberdade: nossa extraordinária capacidade de criar o mundo
em que decidimos viver. Manipulamos as coisas e os objetos
para que eles facilitem nossa vida, inteligentemente damos
formas às coisas em vista de nossa necessidade de controle
das forças ameaçadoras da natureza. E na exata medida em
que, livres, produzimos esses objetos de uso, a cultura, na
exata medida em que afirmamos a nossa condição de seres
livres, criamos obstáculos para nossa vida livre (dialética
interna da cultura). A cultura é, dessa forma, a nossa
liberdade em ação e o nosso estorvo, nossa cadeia
existencial.
Uma vez que somos capazes de perceber e admitir
essa dialética interna, essa paradoxal liberdade estorvada da
cultura, somos chamados pela nossa responsabilidade. Seria
impossível pensar a liberdade sem a responsabilidade, e viceversa. A que somos chamados nessa responsabilidade,
provocada pela dialética da liberdade estorvada? Exatamente
a criar objetos de uso menos estorvantes, a criar um mundo
cultural com menos obstáculos para o exercício de nossa
liberdade. De outra maneira: nossa responsabilidade cultural
deve nos levar a inventar objetos mais eficazes na sua função
essencial que é permitir a mediação intersubjetiva e dialógica,
permitir a comunicação, o encontro, a sociedade.
136
Breve comentário sobre o conceito de Cultura em
O Mundo Codificado de Vilém Flusser
Aqui se verificam duas tendências: a de dar mais
atenção ao objeto e ser por ele dominado, tendência de
criação irresponsável que podemos chamar entulhamento, quando
os objetos são privilegiados aos sujeitos; e a da criação
responsável, que presta mais atenção ao motivo fundamental
da cultura que é o encontro, tendência que podemos chamar
de liberação, quando a mediação se torna mais eficaz para
permitir a comunicação. No entulhamento, tendência
predominante, os sujeitos estão a serviço dos seus objetos,
na liberação os objetos existem para ressaltar o encontro,
eles servem aos sujeitos para que se comuniquem melhor e
cuidem bem, e de preferência cada vez melhor, de sua
liberdade. A criação irresponsável entulha, a criação
responsável libera.
Vilém Flusser observa que essa tendência para os
objetos se intensificou desde a Renascença. Essa tendência é
inevitável, uma vez que é da natureza humana. Mas ela se
intensifica no Renascimento, pois desde essa época, “os
criadores (Gestalter) são aqueles que projetam formas sobre
os objetos com a finalidade de produzir objetos de uso cada
vez mais úteis” (FLUSSER, 2007. p. 196). Aqui se define o
caminho da ciência moderna e da tecnologia, expressão
máxima da nossa cultura. O que acontece é que os objetos
resistem aos projetos e essa resistência incita os projetistas
(fabricadores dos objetos úteis) a se concentrarem nos
objetos, até que eles cedam às fórmulas e formas dos
projetistas. Um exemplo que Flusser usa em seu livro é o de
Galileu:
Galileu não descreveu a fórmula da queda livre, mas a
inventou: foi experimentando uma fórmula atrás da outra
até que o assunto da queda dos corpos graves se
enquadrasse. Portanto, a geometria teórica (e a mecânica
teórica) é um design ao qual submetemos os fenômenos
para poder tê-los sob controle (FLUSSER, 2007. p. 190)
André Brayner de Farias
137
O objeto é dominado graças a essa concentração da
inteligência para a ordem do utilitário, o que leva ao
problema do afastamento intersubjetivo (diálogo,
comunicação) e da idolatria do objeto: quando a objetalidade
da imagem tem mais valor que a intersubjetividade
(tendência de retorno ao mito).
A resistência do objeto prende a atenção de seus
projetistas (Gestalter) e os incita a penetrar mais e mais
profundamente nos mundos objetivo, objetal e
problemático, para que se tornem cada vez mais
familiares com esse mundo e sejam capazes de manejá-lo.
É isso que viabiliza o projeto técnico e científico, de tal
modo atrativo, que os criadores, ocupados com ele,
esquecem aquele outro progresso, isto é, o progresso em
direção aos outros homens. O progresso científico e
técnico é tão atrativo que qualquer ato criativo ou design
concebido com responsabilidade é visto praticamente
como retrocesso. A situação da cultura está como está
justamente porque o design responsável é entendido
como algo retrógrado. (FLUSSER, 2007. p. 196-197).
Um traço bastante característico de nossa cultura é o fetiche
dos bens tecnocientíficos. A crítica do mundo imagético,
sensível ao mundo da filosofia platônica e sensível ao mundo
dos profetas do judaísmo, acusa a tendência idolátrica da
imagem, que decorre da concentração do olhar sobre o
objeto, o que leva ao isolamento da alteridade humana e a
um certo empobrecimento da comunicação, que passa a ser
função da imagem: no mundo idolátrico dos mitos, mundo
mágico, a comunicação está submetida ao poder da imagem,
e o encontro inter-humano fica comprometido porque o que
mais interessa é a relação com a imagem. A idolatria
prejudica a liberdade e a responsabilidade ao isolar o ser
humano e subordinar a vida ao poder imagético.
Essa tendência idolátrica ganha novo e vigoroso
fôlego com os bens tecnocientíficos. Nossa cultura tem
138
Breve comentário sobre o conceito de Cultura em
O Mundo Codificado de Vilém Flusser
demonstrado exatamente isso quando fetichiza os utensílios
tecnológicos. É a tendência do entulhamento que privilegia
o objeto em detrimento da alteridade. Inútil lembrar que essa
tendência se potencializa pela economia de consumo, cuja
lógica consiste em produzir ao mesmo tempo o desejo e a
frustração do desejo. A cultura tecnocientífica é
idolatrizante, sua tendência é o entulhamento do mundo
com os bens fetichizados e o consequente isolamento da
alteridade.
A emergência do Design no final do século XIX
indica para Flusser um novo momento das formas culturais,
capaz de reaproximar as tendências que começaram a se
separar no Renascimento: a tendência científica e a tendência
valorativa. O esgotamento desse paradigma renascentista e
burguês estaria a indicar uma nova consciência da cultura,
uma espécie de desalienação.
A palavra design entrou nessa brecha como uma espécie
de ponte entre esses dois mundos. E isso foi possível
porque essa palavra exprime a conexão interna entre
técnica e arte. E por isso design significa
aproximadamente aquele lugar em que arte e técnica (e,
consequentemente, pensamentos, valorativo e científico)
caminham juntas, com pesos equivalentes, tornando
possível uma nova forma de cultura. (FLUSSER, 2007. p.
183-184)
Obviamente que tal possibilidade não garante nada. A
tendência quantitativa e entulhadora é visivelmente
predominante. Mas é visível também a emergência do
pensamento
valorativo,
do
design
responsável.
Provavelmente ainda vai demorar para que consigamos
reconhecer não apenas teoricamente a equivalência dos
pesos científico e valorativo nos processos culturais. Tudo
parece depender do design que dará forma ao futuro dessa
era tecnoimagética que Flusser chama de pós-história.
André Brayner de Farias
139
Ainda assim, Vilém Flusser enxerga nesse mundo da
tecnoimagem indícios de uma outra tendência, que poderia
resgatar o valor da intersubjetividade. Essa tendência, visível
no mundo dos criadores da era digital, é provocada pela
possibilidade de separar a ideia de objeto da ideia de matéria,
na direção de uma cultura de bens imateriais. Não que a
imaterialidade da cultura impeça a idolatria, pois sabemos o
quanto programas e softwares são objetos de adoração, mas
ela é transparente: “os objetos de uso imateriais são ídolos
transparentes, e portanto permitem que os outros homens
que estão por trás deles sejam percebidos. Sua face
mediática, intersubjetiva, dialógica, é visível” (FLUSSER,
2007. p. 197). (Flusser parece que profetiza o mundo das
redes sociais, mas não é certo que ele seria muito otimista
com os rumos desse mundo em rede. Não podemos
esquecer que Flusser é um filósofo da dúvida).
Flusser também vê indícios de uma mudança de
tendência no caráter efêmero que tem caracterizado o
mundo da criação na nossa cultura. Ele lembra a segunda lei
da termodinâmica que diz que toda matéria tende a perder
sua forma. Isto se verifica pela descartabilidade cada vez
mais evidente dos objetos bem como de seus projetos.
Estamos começando a nos tornar cada vez mais
conscientes do caráter efêmero de todas as formas (e,
consequentemente, de toda criação). Pois os dejetos
começam a obstruir o nosso caminho tanto quanto os
utilitários. A questão da responsabilidade e da liberdade
(inerente ao ato de criar) surge não apenas quando se
projetam os objetos, mas também quando eles são
jogados fora. Pode ser que essa tomada de consciência da
efemeridade de toda criação (inclusive a criação de
designs imateriais) contribua para que futuramente se crie
de maneira mais responsável, o que resultaria numa
cultura em que os objetos de uso significariam cada vez
menos obstáculos e cada vez mais veículos de
comunicação entre os homens. Uma cultura, em suma,
140
Breve comentário sobre o conceito de Cultura em
O Mundo Codificado de Vilém Flusser
com um pouco mais de liberdade (FLUSSER, 2007. p.
198).
O que parece ficar evidente nas análises de Flusser é que cega
ou conscientemente o mundo codificado da cultura
responde, no fundo, ao apelo de nossa liberdade. Agora,
como caracterizar essa liberdade parece ser uma questão
importante – o que decidiremos fazer da nossa liberdade, o
que pensamos quando pensamos que somos ou queremos
ser livres, quando afirmamos que esse é nosso valor mais
precioso? E aí Flusser diria, para arrematar: tudo isso vai
depender do design que dermos a nossa liberdade, que por
sua vez vai depender de algum meta-design e assim por
diante, de maneira que estamos sempre enredados em uma
malha designativa.
Mas não podemos esquecer o valor que Flusser
confere ao diálogo, à conversação autêntica, a dimensão
propriamente ética e política do encontro. Seria esta a razão
de ser mais fundamental de todo ato de criação. Liberar a
cadeia existencial para fazer fluir o encontro. Uma cultura se
realizaria tanto mais plenamente quanto mais ela fosse capaz
de ressaltar o valor do encontro autêntico, ético e politizado,
mas de uma politização criadora de abertura, movida pela
amizade e não pela consciência do inimigo. É para isto que
aponta a liberdade e, portanto, a cultura. Ou é para isto que
aponta a cultura e, portanto, a liberdade.
16/setembro/2014
Referências bibliográficas
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado – por uma filosofia do design
e da comunicação. Organizado por Rafael Cardoso. Tradução
de Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Elnora Gondim e Osvaldino Marra Rodrigues
141
A filosofia de Rousseau:
unidade e controvérsias.
Elnora Gondim1
Osvaldino Marra Rodrigues2
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem basicamente dois problemas principais:
Ingressei para o doutorado na PUCRS no ano de 2010 com o projeto
que versava sobre o tema John Rawls: Construtivismo político e
justificação coerentista com a orientação do Prof. Dr. Nythamar
Fernandes de Oliveira. Obtive o título de doutora no ano de 2010. Cursei
várias disciplinas ministradas pelos seguintes professores: Claudio de
Almeida, Nythamar de Oliveira, Thadeu Weber e Donald Schuler.
1
2Fui
aluno na PUCRS no ano de 2010 tendo estudado com o Prof. Dr.
Luis Alberto de Boni o tema do Neoplatonismo e subjetividade em
Agostinnho e com o Prof. Dr. Pergentino Stefano Pivatto a
compreenção da Ética da Alteridade, confrontando os conceitos de
alteridade e intersubjetividade, aprofundando o conceito de
subjetividade relacionando-o com o de resposabilidade e estudando os
conceitos pertinentes à filosofia de Emmanuel Levinas. Mestre /
Filosofia/UFPI.
142
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias
1- enfocaremos a polêmica que ocorre entre
alguns comentadores filosóficos sobre a questão da unidade
temática vista na filosofia de Rousseau. Para isso, iremos
destacar, mais precisamente, as obras rousseaunianas
intituladas: “Discurso sobre a Desigualdade” e “Do
Contrato Social”, porque nelas as controvérsias sobre a
questão acima citada se incidem com maior vigor.
2- indicaremos a maneira como constatamos
que o pensamento de Rousseau é internamente progressivo
em conexão com a sua própria teoria. Inicialmente
mostraremos que a questão do homem, do social e do
político é esboçada no “Discurso sobre a Desigualdade” e
desenvolvida no “Do Contrato Social”.
Para tanto, temos como objetivos: 1)mostrar a
polêmica dos comentadores filosóficos sobre a unidade
temática vista na filosofia de Rousseau; 2)afirmar que há uma
unidade básica no pensamento de Rousseau; 3) mostrar de
que maneira Rousseau superou as teorias antropológicas e
sociais da sua época.
I– ROUSSEAU: Do Discurso ao Contrato
Neste trabalho nos propomos a apontar que a
filosofia de Rousseau: 1) é revolucionária em relação a sua
época, porquanto mostra a sociedade “como pode ser, em
clara oposição a que é, o que foi e o que será”3, e atribui uma
“ tarefa ética (...) à política – e esse imperativo ético à qual
ele a subordina - é o seu ato verdadeiramente revolucionário.
E com ele permanece sozinho em seu século”.4; 2) também
sempre manteve, em relação ao seu percurso, uma
continuidade. E como afirma o próprio filósofo genebrino:
“Escrevi sobre diversos assuntos, mas sempre nos mesmos
3
SHKLAR, J. 1969, p. 17 e 183
4
CASSIRER, E. 1999 , p. 65
Elnora Gondim e Osvaldino Marra Rodrigues
143
princípios: sempre a mesma moral, a mesma crença, as
mesmas máximas e, se quiserem as mesmas opiniões.5”.
Assim, a filosofia rousseauniana estabeleceu
uma mudança radical em relação aos sistemas filosóficos
anteriores e contemporâneos a ela. O próprio Rousseau
mostra no “Discurso sobre a Desigualdade” qual foi a sua
grande originalidade em relação aos seus predecessores e
contemporâneos quando ele afirma que todos os filósofos
que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram a
necessidade de voltar ao estudo da natureza, porém o que
eles fizeram foi imprimir no homem selvagem as
características do homem civil.
Rousseau, também, transcende e inova as
teorias filosóficas de sua época quando aponta a necessidade
para o homem de retorno às origens, para, então, daí edificar
o campo político-social em uma estrutura mais sólida,
seguindo um parâmetro racionalista ético, prevalecendo este
sobre o puramente teórico6. Rousseau, dessa maneira, apela
para o sentimento moral como algo demarcador que pode
mudar os rumos da sociedade para algo melhor.
Para desenvolver isso constatamos que o
projeto de filosofia rousseauniano é algo que vai se
desenvolvendo sem cortes nem rupturas durante todo o seu
percurso filosófico. Sendo assim, a partir de tal constatação,
podemos afirmar que entre o “Discurso sobre a
Desigualdade” e o “Do Contrato Social” há uma linha de
continuidade no pensamento rousseauniano7.Tal projeto de
Rousseau pode, plausivelmente, ser considerado como um
sistema.
5
ROUSSEAU, 2005, p 928.
6
CASSIRER, 1992, p. 259.
C’est sans doute à cette union indissoluble de son anthropologie, de sa
politique, de as philosophie de l’éducation(...)que Rousseau se réfère
quand il parle de ses écrits comme du « vrai système du coeur humain».
VINH DE, Nguyen, 1991, p. 255.
7
144
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias
Por exemplo, no “Discurso sobre a
Desigualdade”8 o pensador genebrino mostra a passagem da
liberdade natural à servidão civil. É a partir do
reconhecimento dessa situação que Rousseau inicia o “Do
Contrato Social” 9 . Nesta obra ele estabelece um pacto
legítimo onde através dele os homens que perderam a
liberdade natural ganham a liberdade civil10. No entanto, essa
interpretação que afirma a unidade no pensamento de
Rousseau não é aceita por todos os seus comentadores.
Como exemplo disso, iremos citar três posições sobre esse
tema.
A- Em primeiro lugar, iremos falar sobre a
afirmação que alguns comentadores11 fazem que é a seguinte:
eles dizem que o problema social e político exposto no
“Discurso sobre a Desigualdade” e no “Do Contrato Social”
são inspirados em princípios distintos, com conclusões
distintas, formando diferentes conceitos de sociedade e de
poder. Portanto, segundo esta análise, faz-se necessário
expor tais trabalhos rousseanianos em separado, pois,
segundo eles, se estes livros fossem tratados um como
Em tal texto, Rousseau já aponta o caminho que o levará ao Do
Contrato Social: “Encontrar uma forma de associação que defenda e
proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum,
e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo,
permanecendo assim tão livre quanto antes. Este é o problema
fundamental cuja solução o contrato social oferece” ROUSSEAU, 1978,
p. 360.
8
Uma amostra para a constatação de tal afirmação: “O homem nasce
livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos
demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal
mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta
questão”. ROUSSEAU, 1978, p,30)
9
10
CASSIRER, 1992, p. 31
Para maiores esclarecimentos: HAMPSHER-MONK. A History of
Modern Political Thought, Major Thinkers From Hobbes to Marx.
Oxford: Blackwell, 1995.
11
Elnora Gondim e Osvaldino Marra Rodrigues
145
continuidade do outro, a filosofia de Rousseau ficaria algo
ininteligível.
Continuando a análise sobre tal postura, vimos
que os argumentos usados pelos comentadores que
comungam desta tese são os que se seguem.
-Em um primeiro momento, eles dizem que no
“Do Contrato Social” não é mencionado, em nenhum
instante, algo sobre o estado natural do homem e que nele o
estilo de Rousseau é seco, preciso e geométrico, formando
capítulos curtos, tendo uma ordem lógica rigorosa. Nele não
aparecem nem a bondade natural do homem nem a ideia de
sua corrupção pela sociedade. Esta aparece como boa e os
seus efeitos são benéficos.
-No segundo momento, em contrapartida, eles
afirmam que no “Discurso sobre a Desigualdade” o estilo
rousseauniano é retórico e declamatório. Nele a ideia básica
é a da bondade natural do homem, sendo este corrompido
pela sociedade, a qual aparece como fonte de todos os males.
Ela configura-se, dessa maneira, como a usurpação da
liberdade natural humana, através de leis estabelecidas pelo
homem. Neste caso, conforme eles, para recuperar os bens
supremos tem-se que romper anarquicamente os laços de
uma sociedade opressora e retornar a liberdade primitiva da
natureza selvagem. Logo, para os comentadores que
defendem esse posicionamento, há uma ruptura na filosofia
rousseauniana entre o “Discurso sobre a Desigualdade” e o
“Do Contrato Social”. A diferença é tanta que elas parecem
obras de autores distintos, constituindo uma mudança
radical de pensamento, fazendo acreditar em duas fases
diferentes na filosofia de Rousseau. 12 Com isto, eles
acreditam que a etapa posterior exclui a anterior, porque a
primeira enaltece o homem natural e a segunda, a da
maturidade, prioriza o homem social.
12
FRAIIE, 1986, p. 936.
146
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias
B)-Em segundo lugar, outro posicionamento
que trata da questão da unidade no pensamento de
Rousseau: postura que afirma a existência de duas
tendências concomitantes que dominam o pensamento
rousseauniano no “Discurso sobre a Desigualdade” e no
“Do Contrato Social”: uma que representa a afirmação do
indivíduo e a outra que afirma a abdicação do individual
frente ao coletivo13. Mesmo estes comentadores adeptos de
tal afirmação constatando a existência dessas duas
disposições, eles afirmam que não há nada que indique que
o pensador genebrino escolha uma destas opções, porque
uma não invalida a outra, tendo em vista que ambas são
soluções para o problema da igualdade e da liberdade do
homem.
C) - E por fim, em terceiro lugar, iremos ainda
mostrar uma outra corrente de comentadores, como, por
exemplo, Cassirer 14 , afirmando que no “Discurso sobre a
Desigualdade” Rousseau encontra-se no instante do
amadurecimento de uma concepção fundamental na qual
toda a sua obra restante haverá de reportar-se. Eles dizem
que nesse livro não aparece toda a solução política do
pensamento rousseauniano. Porém, lá já surge um pequeno
esboço que virá a desenvolver-se nas obras rousseaunianas
posteriores e como exemplo disto, eles mostram que na
“Dedicatória” do “Discurso sobre a Desigualdade” já era
encontrado o gérmen do “Do Contrato Social” no momento
em que Rousseau fala, hipoteticamente, de uma organização
política ideal. Eles afirmam que nestes livros citados
Para maiores esclarecimentos: ROSENBLATT, HELENA. Rousseau
and Geneva From the First Discourse to The Social Contract, 1749–
1762. P. 2.
13
Para Cassirer, o Contrato Social não é “uma dissidência daquelas idéias
fundamentais que tinha defendido em seus dois discursos ... Ao
contrário, é a continuação lógica, a realização e o aperfeiçoamento deles”
CASSIRER, 1999, p. 54.
14
Elnora Gondim e Osvaldino Marra Rodrigues
147
anteriormente, o primeiro é uma espécie de resumo do
segundo.
Dessa forma, para os partidários de tal corrente,
não há rupturas e nem tendências diferentes entre estas duas
obras. Para eles, tais cortes e diferenças só existiam no
espírito de alguns críticos que desvirtuavam, por ignorarem
o assunto, a essência das concepções que caracterizavam o
desenvolvimento da filosofia social de Rousseau 15 . Eles
afirmam que tais análises que falam sobre rompimentos
internos na filosofia rousseauniana decorrem do fato de que
o pensador genebrino se propõe um problema diferente e
novo: que é o de combinar o estado social com o estado de
natureza e, algumas pessoas, por não terem familiaridade
com o tema, não o interpreta de uma forma correta.
Essa última posição sobre a filosofia de
Rousseau é a que iremos acatar, porque constatamos que o
problema próprio do “Do Contrato Social” já se encontrava
delineado no “Discurso sobre a Desigualdade”. Em outras
palavras, no “Do Contrato Social” Rousseau pretende
mostrar uma origem do estado social que conserva a
qualidade do estado natural, falando sobre uma forma de
associação que mantém nos indivíduos a igualdade e a
liberdade que eles têm por essência16.
Sendo assim, baseado na posição acima citada,
inferimos que com o reencontro da natureza há a
possibilidade para o homem de resgatar um mundo que há
muito se faz ilegível como, também, saber o que poderia têlo degradado.
15
GROETHUYSEN, 1985, p. 161.
16
BREHIER, 1994, p. 421
148
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tal trabalho nos propusemos a mostrar: 1) a
polêmica dos comentadores filosóficos sobre a unidade
temática vista na filosofia de Rousseau e, ao mesmo tempo,
afirmar que há uma unidade básica no pensamento de
rousseauniano; 2) mostrar de que maneira Rousseau tentou
superar as teorias de sua época.
Começando pelo item segundo, é conveniente
ressaltar que a filosofia rousseauniana se propõe a dissolver
o antagonismo entre a liberdade e a autoridade encontrado
nos grandes sistemas filosóficos do século XVIII. Para tanto,
afirma Rousseau que a natureza humana é algo livre, porém
com direitos e deveres onde, somente concebido dessa
forma, o princípio de liberdade é um imperativo. Em outras
palavras: a liberdade é a “única a tornar o homem
verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do
puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se
prescreveu a si mesmo é liberdade.” 17 Assim sendo, no
homem há uma renúncia dos interesses particulares em
direção ao Bem Comum. No entanto tal fato não aparece
como uma imposição exterior, mas como algo que a sua
própria natureza exige. Quando o homem se dá conta disto,
há a consciência da liberdade. Ela revela a alma do homem,
por esse motivo, ser livre é uma exigência ética fundamental.
Dessa maneira, há uma vindicação para que o homem passe
a viver em um novo modelo social, onde a Vontade
individual submete-se à Vontade Geral. Porém, isso
acontece não como uma imposição arbitrária, mas os
homens aceitando
uma associação livre. Eles,
deliberadamente, resolvem formar outro tipo de sociedade.
Dessa maneira, tudo é público e obedecer ao Estado é
obedecer a si mesmo dentro de uma perspectiva digna,
17
Rousseau, 2003, p. 365.
Elnora Gondim e Osvaldino Marra Rodrigues
149
sendo soberano e seguindo normas não somente aceitas e
sim criadas livremente. Sendo assim, como acredita
Rousseau, é dissolvido algo que as teorias contemporâneas e
precursoras dele não conseguiram, ou seja, o dualismo entre
a autoridade e a liberdade.
No entanto a argumentação acima não é aceita
unanimemente. Ao contrário, o pensamento de Rousseau, às
vezes, é considerado como algo repleto de complexidades e
paradoxos 18 e alguns comentadores retratam a teoria de
Rousseau como totalitária tal como nos explica Malfatti
sobre o comentário de Talmon:
A vontade geral não é a mesma coisa que a vontade de
todos, porque esta pode estar mesclada com interesses
particulares. O interesse comum, ou a vontade geral, pode
estar com uma pessoa ou algumas como mais tarde
Robespierre interpretará na Revolução Francesa dando
origem a uma democracia totalitária ou democracia
Oligárquica [Talmon, 1956]. Independe, por isso, do
número. A vontade geral é síntese, e não soma. Ela dá
origem a uma realidade objetiva, externa e coercitiva em
relação aos indivíduos, grupos ou facções. O grande
perigo, conforme o autor é de que uma vontade particular
consiga fazer crer que a sua vontade seja a geral.19
Em concordância com o acima referido,
Constant afirma:
18“
Rousseau 's thought is too full of complexities and paradoxes, too
extreme and dangerous (in the view of both Right and Left).” MELZER,
Arthur M .The natural goodness of man: on the system of Rousseau's
thought. P.9.
MALFATTI, Selvino Antonio. Natureza do Político nas sociedades
Democráticas, P. 6.
19
Disponível:
http://sites.unifra.br/Portals/1/ARTIGOS/edicao3/Natureza_do_Po
l%C2%A1tico.pdf
150
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias
(,,,) transportando para os tempos modernos um volume
de poder social, de soberania coletiva que pertencia a
outros séculos, este gênio sublime, que era animado pelo
amor mais puro à liberdade, forneceu, todavia,
desastrosos pretextos a mais de um tipo de tirania20.
No entanto, contrário as posturas acima,
Derathé afirma que, na filosofia rousseauniana, o homem
“encontrará, sob a forma da liberdade civil, o equivalente de
sua independência natural” 21 e Pissarra corrobora que “ é
da retidão da vontade geral que decorre a lei que vai garantir
o que é justo com vista ao bem comum.”22 Aceitamos as
teses favoráveis à filosofia de Rousseau e constatamos que a
crítica à teoria rousseauniana não é pertinente pelo fato de
que quando Rousseau retrata a Vontade Geral, ele o faz
acreditando que “o que há em comum à infinidade de
vontades particulares, o que está presente em cada uma
delas, mas transcende a todas, isto é, aquilo que nelas se
orienta para a realização do bem comum” 23 . Portanto, a
Vontade Geral não poderia suprimir as individualidades,
porquanto ela seria uma espécie de algo transcendental.
Quanto ao item primeiro, há comentadores que
afirmam que quando no “Discurso sobre a Desigualdade”
Rousseau é taxativo ao assegurar que o mal não reside na
natureza humana e sim na propriedade privada, o itinerário
dessa obra indica as direções que o tema da desigualdade
tomará nos textos subsequentes a ele, bem como o
desenvolvimento do pensamento rousseauniano levará às
soluções para se obter uma sociedade justa a qual é vista no
“Do Contrato Social”, porquanto o pensamento de
Rousseau, embora pareça ser desconexo
e
20
CONSTANT, 1985, p. 16
21
DERATHÉ, 1979, p. 151.
22
PISSARRA, 2007, p. 71,
23
VITA, 1991, p. 217-218.
Elnora Gondim e Osvaldino Marra Rodrigues
151
autocontraditório, é realmente muito consistente. Na
verdade, não apenas consistente: ele forma um sistema
rigoroso e unificado. E todo esse sistema é construído sobre
um único novo princípio: a doutrina do natural bondade do
homem. Para tanto, Rousseau afirma que sua teoria é um
sistema rigoroso e que para compreender o que é essencial
em sua obra, é necessário compreender o sistema como um
todo.24 Contrariamente à tal postura, Starobinski afirma que
no Do Contrato Social:
O pacto social não acontece na linha de evolução descrita
no segundo Discurso, mas numa dimensão diferente,
puramente normativa e situada fora do tempo histórico
Reinicia-se do começo legítimo, ex nihilo, sem colocar a
questão das condições de realização do ideal político.25
No entanto, contrapondo tal argumentação
Cassirer afirma que não há “uma dissidência daquelas idéias
fundamentais que tinha defendido em seus dois discursos
(...) Ao contrário, é a continuação lógica, a realização e o
aperfeiçoamento deles”26
Mediante o exposto, da forma como mostramos
anteriormente, o “Do Contrato Social” e o “Discurso sobre
a Desigualdade” constituem uma unidade temática onde o
segundo livro é consequência do desenvolvimento e
aprofundamento de ideias encontradas no primeiro.
Rousseau tells us-repeatedly and insistently-that his thought, although
i t appears to be both disjointed and self-contradictory, is really quite
consistent. Indeed , not just consistent: it forms a rigorous, unified
system . And this entire system, he adds, is built upon a single new
principle: the doctrine of the natural goodness of man . Rousseau claims
to be a rigorous systematist and that in order to understand him it is
essential to grasp his system as a whole. MELZER, Arthur M .The
natural goodness of man: on the system of Rousseau's thought. P.13.
24
25
STAROBINSKI, 1982, p. 65.
26
CASSIRER, 1999, p. 54.
152
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias
Tomaremos como hipótese à afirmação de que do “Discurso
sobre a Desigualdade” para o “Do Contrato Social” não há
rupturas de pensamento.
Talvez, o que faz com que se pense o contrário,
é o fato de Rousseau tecer grandes críticas à sociedade. No
entanto, o que ele critica é um tipo específico de sociedade
que é a causa de todos os males vistos na sociedade que se
instaurou, e como o próprio Rousseau afirma:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro
que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto
é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para
acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias
e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que,
arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse
gritado aos seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir
esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os
frutos são de todos e que a terra não pertence a
ninguém!”. Grande é a possibilidade, porém, de que as
coisas já não tivessem chegado ao ponto de não poder
mais permanecer como eram, pois essa ideia de
propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que
só poderiam ter nascido sucessivamente, não se formou
repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer-se
muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes,
transmiti-las e aumentá-las de geração para geração, antes
de chegar a esse último termo do estado de natureza.27
Em outras palavras, não é a sociedade como um
todo que o pensador genebrino critica, mas um tipo de
sociedade que tem como base a propriedade privada.
Portanto, não há incompatibilidade ente o Segundo
Discurso e o Do Contrato Social, porquanto o primeiro
texto tem uma função negativa e o outro uma função
positiva.
27
ROUSSEAU, 2003, p. 164.
Elnora Gondim e Osvaldino Marra Rodrigues
153
Sob outra perspectiva, no Segundo Discurso,
Rousseau analisa as causas da degradação uma sociedade e,
consequência, o aumento da desigualdade:
O Discurso sobre a origem da desigualdade retoma, de
forma mais sistemática, e acrescentando novos
elementos, o tema da história do homem como
movimento de degeneração e enfraquecimento. Neste
processo, são os graus da desigualdade que assinalam os
momentos críticos que acabaram por transformar
completamente a alma humana e por viciar na origem as
suas instituições.28
Por sua vez, no Do Contrato Social, Rousseau
apresenta um novo modelo de sociedade e suas respectivas
melhorias porquanto em um texto ele analisa as causas da
degradação de um tipo de sociedade e no outro ele expõe a
sua proposta à título de modelo de como equacionar e
resolver os conflitos do tipo de sociedade que ele critica.
VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRÉHIER, Émile. Histoire de La Philosophie. France: PUF,
1994.
CASSIRER, Ernst. A Questão Jean-Jacques Rousseau. São
Paulo: UNESP, 1999.
_______________. A Filosofia do Iluminismo. Campinas:
Unicamp, 1992
28
SOUZA, Maria das Graças, 2001, p. 7
154
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias
CONSTANT, B. Da Liberdade dos Antigos Comparada à
dos Modernos. In: Revista de Filosofia Política, N.º 2, 1985,
p. 9-25.
DERATHÉ, R. Le Rationalisme de Jean-Jacques Rousseau.
Paris: PUF, 1948.
___________. Jean-Jacques Rousseau et La Science
Politique de son Temps. 2. ed. Paris: Librairie
Philosophique J. Vrin, 1979.
____________. Jean Jacques Rousseau et La Sciense
Politique de Son Temps. Second édition mise à jour,
Paris: Vrin, 1974.
FRAILE, Guilhermo. Juan Jacobo Rousseau. IN: Historia
de la Filosofía. Madrid: La Editorial Católica S.A., 1986.
FORTES, R. L. S. Rousseau: da Teoria à Prática. São Paulo:
Ática, 1976.
GOLDSCHIMIDT, V. Antropologie et Politique: Les
Principes du Systeme de Rousseau. Paris: Vrin, 1974.
230p.
GROETHUYSEN, Bernhard. Jean-Jacques Rousseau.
México: Fondo de Cultura Econômica, 1985.
HAMPSHER-MONK. A History of Modern Political
Thought: Major Thinkers From Hobbes to Marx.
Oxford: Blackwell, 1995.
HAZARD, Paul. La Penseé Europeense au XVIII Siècle.
Paris: Fayard, 1963.180p.
Elnora Gondim e Osvaldino Marra Rodrigues
155
MALFATTI, SELVINO ANTONIO. Natureza do Político
nas Sociedades Democráticas, P.6. DISPONÍVEL:
HTTP://SITES.UNIFRA.BR/PORTALS/1/ARTIG
OS/EDICAO3/NATUREZA_DO_POL%C2%A1TI
CO.PDF
PISSARRA, M. C. P. Direito e Filosofia: a Noção de Justiça
na História da Filosofia. São Paulo: Atlas, 2007.
ROSENBLATT, Helena. Rousseau and Geneva From the
First Discourse to The Social Contract, 1749–1762.
Cambridge University Press, 1997.
LACROIX, Jean. La Conscience Selon Rousseau. Paris:
Beauchesme, 1980.
LAUNAY, M. Le Vocabulaire Politique de Jean Jacques
Rousseau. Geneve: Libraire Slatkine, 1977.
MACHADO, Lourival Gomes. Homem e Sociedade na
Teoria Política de Jean-Jacques Rousseau. São Paulo:
Editora da U.S.P., 1968.
MELZER, Arthur M .The Natural Goodness of Man: On
The System of Rousseau's Thought. Chicago: The
University of Chicago Press, 1990.
PRADO JR B. O Discurso do Século e a Crítica de
Rousseau. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1976.
ROUSSEAU, J. J. Oeuvres Completes. Paris: Éditions
Gallimard, 2003.
___________. Coleção os Pensadores. 2. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
156
A filosofia de Rousseau: unidade e controvérsias
___________. As Confissões. 2. ed. São Paulo: Atena
Editora, 1959. v.1 e 2.
__________. Carta a Christophe de Beaumont e Outros
Escritos So
bre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
SHKLAR, Judith. Men and Citizen. A Study of Rousseau ́s
Social Theory. Cambridge: University Press, 1969.
SOUZA, Maria das Graças. História e Declínio. In:
Ilustração e História – o Pensamento Sobre a História
no Iluminismo Francês. São Paulo: Discurso Editorial,
2001.
STAROBINSKI, Y J. J. Rousseau La Transparence et
L’obstacle. Paris: Gallimard, 1971.
___________________. Jean-Jacques Rousseau: Lla
Trasparenza e L´ostacolo. Bologna: Il Mulino, 1982.
VINH DE, Nguyen. Le Problème de L’homme Chez JeanJacques Rousseau. Québec: Presses de l’Université du
Québec,1991.
Ricardo Rangel Guimarães
157
Memória Epistêmica:
Preservação e Geração
Ricardo Rangel Guimarães1
Os fundamentos essenciais da epistemologia da
memória, que pretendem fornecer uma explicação e análise
do conceito de memória epistêmica proposicional, estão
concentrados em dois pontos de vista e concepções que
caracterizam os princípios básicos da área, a saber, a assim
denominada Visão Preservativa da Memória (VPM) e a
Mestre e Doutor em Filosofia pela PUCRS, com formação na área de
pesquisa Epistemologia Analítica Contemporânea, tendo escrito uma
Dissertação de Mestrado intitulada “Conhecimento e Justificação na
Epistemologia da Memória” e uma Tese de Doutorado com o título “A
Teoria Epistemológica da Memória e os seus críticos”, ambas orientadas
pelo Prof. Dr. Cláudio Gonçalves de Almeida, tendo também publicado
artigos e apresentado diversos trabalhos na área em eventos promovidos
pela PUCRS.
1
Currículo Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4279450
Z7
158
Memória Epistêmica: Preservação e Geração
Teoria Epistemológica da Memória (TEM). A essência do
preservacionismo endossado pela VPM é a de que na
ausência de qualquer evidência adicional ou apoio
epistêmico, o elemento que epistemiza uma crença memorial
verdadeira, ou seja, a propriedade que potencialmente
tornaria este estado mental doxástico um caso de
conhecimento, precisamente a sua justificação, não pode ser
maior, esta justificação epistêmica memorial, da justificação
que tal crença tinha quando foi formada pela primeira vez
por um sujeito cognoscente S qualquer no passado, em t1.
Uma crença de memória não pode obter justificação apenas
por existir no tempo, entre o momento da sua formação, t1,
até a sua evocação por S no presente, em t2; essa é a idéia
básica do preservacionismo memorial, que pode ser definido
da seguinte forma:
VPM: S sabe (crê justificadamente) que P com base
na memória em t2 somente se: (i) S sabe (crê
justificadamente) que P em um tempo anterior t1, e (ii) S
adquiriu o conhecimento de que P (justificação com respeito
à P) em t1 via uma outra fonte que não a memória.2
Em poucas palavras, a VPM defende que se agora, no
presente, em t2, S tem uma crença baseada na memória, e
esta crença é justificada ou considerada um caso de
PVM: S knows (justifiably believes) that P on the basis of memory at t2 only if:
(i) S knows (justifiably believes) that P at an earlier time t1, and (ii) S acquired the
knowledge that P (justification with respect to P) at t1 via a source other than memory.
SENOR, T. Preserving Preservationism: A Reply to Lackey. In
Philosophy and Phenomenological Research, Vol. LXXIV, 2007, p.
200. Jennifer Lackey (2007) também coloca como cláusula adicional ao
crê justificadamente a prerrogativa da racionalidade (crê
justificadamente/é racional ao crer). No presente contexto, está-se
tomando como sinônimas as noções de crer justificadamente e ser
racional ao crer.
2
Ricardo Rangel Guimarães
159
conhecimento, então isso deve ser assim por causa da
atividade de algum processo epistêmico gerador ou pela
presença de algum evento epistemicamente gerador que
ocorreu no passado, em t1, quando a crença foi formada pela
primeira vez, ou pelo menos em algum tempo anterior ao
tempo presente, da evocação mnemônica, e que seja
derivado de outra fonte cognitiva que não a memória (como
a percepção, o testemunho, raciocínio, intuição racional ou
a introspecção, por exemplo). A função da memória
epistêmica seria, de acordo com esta concepção, a de
preservar no tempo crença, verdade, justificação e
conhecimento, mas não a de gerá-las. A TEM, endossada
por esses princípios básicos da VPM, defende a perspectiva
de que memória proposicional implica conhecimento
proposicional, do fato de S lembrar que P (lembrar o
conteúdo semântico de uma sentença declarativa) segue-se
como condição necessária que S saiba que P. A análise desta
relação do conhecimento proposicional ser conseqüência
lógica ou ser implicado pela memória proposicional é o que
constitui, basicamente, a essência da epistemologia da
memória, que busca investigar e tratar das condições
necessárias e suficientes para considerar casos de memória
proposicional conhecimento proposicional. A TEM afirma
que lembrar-se de algo significa conhecer esse algo, sendo
que esse conhecimento foi previamente adquirido e
preservado. A memória, sob esse viés, é duradoura no tempo
e consiste em uma espécie de conhecimento contínuo. Em
geral, os proponentes da TEM defendem uma análise sobre
a memória proposicional de acordo com a seguinte
definição:
Em t2, S lembra que P se e somente se:
(1) S sabe em t2 que P;
(2) S sabia em t1 que P;
160
Memória Epistêmica: Preservação e Geração
(3) O conhecimento de S em t2 de que P está
adequadamente conectado ao conhecimento de S em
t1 de que P.3
A condição (1) dessa definição é chamada de condição
de conhecimento presente, a condição (2) de condição de
conhecimento passado e a condição (3) de condição de
ligação. A condição (1) exige que para haver a lembrança de
que P é necessário que P ocupe um estado de conhecimento
proposicional. A condição (2), por sua vez, assegura que só
é possível lembrar-se de algo que já se conhecia previamente,
e uma vez que conhecimento envolve verdade (só há
conhecimento do verdadeiro, não há sentido, em
epistemologia, se falar do “conhecimento do falso”, isso
seria um erro categorial e de definição), (1) e (2) garantiriam
que só é possível lembrar aquilo que foi o caso no passado,
a lembrança, nesse sentido, é essencialmente factual.
Finalmente, o propósito da condição (3), a condição de
ligação ou conexão, é o de excluir o reaprendizado da ordem
da lembrança e garantir que o conhecimento pertencente à
memória epistêmica proposicional seja conhecimento retido:
considerando que seja possível para S saber em t2 que P, e
tê-lo sabido anteriormente em t1, e mesmo assim não
conseguir se lembrar em t2 que P, S poderia simplesmente
ter aprendido que P em t1, esquecido P completamente no
intervalo entre t1 e t2, e depois ter reaprendido que P
novamente em t2.
Partindo-se do pressuposto de que conhecimento
implica em verdade, crença e em justificação,
3
At t2 S remembers that P if only if:
(1)S knows at t2 that P.
(2)S knew at t1 that P.
(3)S´s knowing at t2 that P is suitable connected to S´s knowing at t1 that P.
In.: BERNECKER, 2007, p. 141.
Ricardo Rangel Guimarães
161
independentemente de como esta última é construída, se a
mesma é de natureza internalista ou externalista, o que se
constitui em um dos grandes debates da epistemologia
analítica contemporânea, e considerando-se a propriedade
da transitividade da implicação lógica, a condição (1), de
conhecimento presente, requer três condições, a saber:
(1.i) P é verdadeiro em t2;
(1.ii) S crê que P em t2;
(1.iii) S está justificado em crer que P em t2.4
Da mesma forma, a condição de conhecimento passado,
(2), implica nas três condições a seguir:
(2.i) P era verdadeiro em t1;
(2.ii) S cria (acreditava) que P em t1;
(2.iii) S estava justificado ao crer que P em t1.5
As condições (1.i) e (2.i) são chamadas de condições
de verdade, (1.ii) e (2.ii) são condições de crença, e (1.iii) e
(2.iii) são condições de justificação. Se qualquer uma destas
condições não for satisfeita ou não puder ser sustentada e
defendida racionalmente, o proponente da TEM é obrigado
a concluir que S não lembra que P. A tarefa de avaliar uma
explicação epistêmica coerente e consistente para a memória
4
(1.i) P is true at t2.
(1.ii) S believes at t2 that P.
(1.iii) S is justified at t2 in believing that P. In: BERNECKER, 2007, p. 142.
5
(2.i) P was true at t1.
(2.ii) S believed at t1 that P
(2.iii) S was justified at t1 in believing that P. In: BERNECKER, 2007, p.
142.
162
Memória Epistêmica: Preservação e Geração
proposicional é uma questão, ao fim e ao cabo, de
determinar a sustentabilidade racional das condições de
crença e de justificação da definição canônica da TEM. Tal
teoria propõe-se a analisar estas condições sob a égide da
definição da análise tradicional do conhecimento (ATC)
como crença verdadeira justificada, uma vez pressupondose que a lembrança e o conhecimento proposicionais sejam
conceitos analisáveis: se um caso de lembrança for um caso
de conhecimento, então tal lembrança é crença memorial
verdadeira justificada ou conhecimento memorial.
Considerando-se também os casos de tipo Gettier na
epistemologia analítica, podemos ter crenças memoriais
acidentalmente verdadeiras e justificadas que não se
constituiriam propriamente em conhecimento memorial
segundo os princípios da ATC, elas falhariam em tornaremse conhecimento por não progredirem de uma maneira
epistemicamente correta e cogente na definição das
condições necessárias, mas não suficientes, da ATC. O
caráter e as propriedades epistêmicas da lembrança
proposicional são os fatores substanciais perseguidos e
defendidos pela TEM: Se S lembra que P, no sentido de tal
sujeito cognoscente possuir crença não acidentalmente
verdadeira justificada de que P, então S sabe que P, tem
conhecimento memorial de que P.
A posição tradicional dos epistemólogos da memória
é a de serem proponentes da VPM e da TEM, defendendo e
endossando os seus pressupostos básicos: Sven Bernecker e
Jennifer Lackey, contudo, são críticos desta concepção e dos
fundamentos destas teorias, defendendo um ponto de vista
em que lembrança proposicional não vincule conhecimento
proposicional, e que a memória, diferentemente da visão
preservacionista defendida pelos proponentes da TEM,
poderia também gerar propriedades e qualidades epistêmicas
positivas ao longo do tempo como crença verdadeira,
justificação e conhecimento sem a entrada de evidências
adicionais entre t1, o tempo passado, e t2, o tempo presente.
Ricardo Rangel Guimarães
163
Tais autores procuram defender as suas concepções através
da elaboração e análise de uma série de supostos contraexemplos a TEM e a visão epistêmica da memória
proposicional: tais contra-exemplos visam expor e discutir
casos em que S lembraria que P, mas não soube, em t1, que
P, S lembraria que P, mas não sabe, em t2, que P, e também
que S poderia lembrar que P, mas nunca ter sabido que P,
tanto em t1 quanto em t2. Os pontos a serem explorados
tanto por Lackey quanto por Bernecker dizem respeito tanto
as características deste suposto geracionismo memorial, que
poderia ser moderado ou radical, dependendo das
propriedades dos mesmos, podendo estas características
serem ou não compatíveis e consistentes com o
preservacionismo memorial (geração a partir de um
potencial justificacional herdado de P em t1 ou a partir de
nenhum elemento, do “nada”), implicando-se com isso que
poderia haver lembrança ou sem crença verdadeira, e/ou
justificação e/ou conhecimento em t1, mas não em t2, bem
como, no caso específico de Bernecker, no que ele reputa ser
uma análise não epistêmica da memória proposicional, a
elaboração de uma nova e complexa teoria que se
fundamentaria na noção de representação mental e
conteúdos semânticos proposicionais não necessariamente
idênticos quanto ao tipo (type), mas autênticos, em
ocorrências temporais distintas (tokens) a fim de definir e
explicar tal concepção, que basicamente opor-se-ia
conceitualmente a uma análise epistêmica tradicional da
lembrança proposicional.
É importante observar e ressaltar que, na literatura
contemporânea em epistemologia da memória, existem
diferentes versões de geracionismos memoriais, e
dependendo de qual deles se trate, o preservacionismo pode
ou não ser compatível com o mesmo. A problemática toda
gira em torno de uma questão crucial, a saber, a de como a
memória preserva no tempo o status epistêmico positivo de
uma crença original, crença esta adquirida em outro tempo,
164
Memória Epistêmica: Preservação e Geração
no caso um tempo passado. Para alguns preservacionistas
clássicos, como Conee e Feldman (2004, p. 60-61), por
exemplo, a justificação epistêmica de uma crença é uma
questão de como fatores internos e potencialmente
acessíveis são fornecidos ao sujeito cognoscente a fim deste
conferir justificação para tal crença, em um critério
justificacional internalista de acesso cognitivo. O problema
crucial com este tipo de justificação memorial internalista
preservacionista é o esquecimento irreversível no tempo, por
parte do sujeito, dos fatores que justificam uma crença
memorial, como evidências e/ou razões as quais tal sujeito
não é mais capaz de fornecer no tempo presente, o que é
geralmente conhecido na epistemologia como o “problema
da evidência esquecida (perdida)”, bem como se a crença em
questão foi formada e mantida mediante um processo
confiável. De forma a chamar a atenção para este problema,
Timothy Williamson (2007, p. 110-111), por exemplo,
ressalta que muitas de nossas lembranças factuais vêm sem
qualquer
aspecto
fenomenológico
particular
as
acompanhando no processo da rememoração, como
imagens memoriais e/ou sentimentos de familiaridade: não
nos lembramos de como adquirimos a informação obtida no
passado, mas isso pode não ser um critério suficiente para
nos desautorizar, no sentido de não conferir justificação
epistêmica, a utilizar uma evidência ausente como elemento
que justifique uma crença memorial.
Internalistas quanto à justificação memorial parecem
estar presos à concepção de que crenças retidas são
injustificadas a menos que a evidência passada seja também
recordada, ponto este básico em defesa da VPM, tanto que
os proponentes do preservacionismo adotam o princípio da
justificação contínua a fim de buscar sanar a dificuldade da
evidência esquecida ou perdida no tempo: em t2, a crença de
S de que P em t1 é continuamente justificada se S continuar
a crer que P em t2, mesmo ele tendo perdido a sua
justificação e conhecimento originais e não tendo adquirido
Ricardo Rangel Guimarães
165
nova justificação nesse meio tempo, entre t1 e t2
(SHOEMAKER, 1967, p. 271-272)). Para alguns
preservacionistas, a justificação contínua é uma espécie de
justificação básica ou fundacional (PAPPAS, 1980),
enquanto para outros (BURGE, 1993, p. 458-459 e
OWENS, 2000, p. 153) a razão pela qual estaríamos
continuamente justificados em nossas crenças memoriais é
que a faculdade da memória nos intitularia (entitlement) a tanto
na ausência de derrotadores (defeaters), de acordo com a
noção burgeana de justificação prima facie pro tanto, por
exemplo, e também com a concepção de David Owens da
inércia cognitiva a fim de compatibilizar a evidência
esquecida com o internalismo de acesso atual.
De acordo com a concepção geracionista, uma crença
memorial poderia obter mais justificação em t2 do que tinha
em t1 sem a entrada e presença de evidências adicionais entre
t1 e t2, e pode inclusive obter essa justificação em t2 mesmo
não a possuindo em t1, onde a mesma teria sido adquirida
nesse meio tempo, entre t1 e t2. Dentro desta perspectiva de
análise, como a memória poderia, por exemplo, gerar
justificação? Segundo Robert Audi (AUDI, 1995, p. 37) e
John Pollock (POLLOCK, 1974, p. 193), seria justamente a
fenomenologia do lembrar o elemento que geraria
justificação para as crenças de memória, e ambos traçam um
paralelo com a percepção a fim de defender este ponto de
vista para a memória, onde assim como é o aspecto do que
aparece sensivelmente para o sujeito o fator justificador das
suas crenças perceptuais, assim o seria em relação ao que
aparece fenomenologicamente como um estado de
lembrança para as crenças memoriais. A concepção presente
aqui é a de uma justificação memorial prima facie, onde seria
este parecer lembrar que P (e é nesse parecer que se
fundamentaria a fenomenologia da lembrança), na ausência
de derrotadores, sendo P não anulável, o elemento
epistêmico que justificaria a crença de que P. Mesmo
admitindo-se fenomenologias distintas como elementos
166
Memória Epistêmica: Preservação e Geração
geradores de justificação para crenças memoriais e
endossando o ponto de vista que Audi e Pollock chamam a
atenção, de que as propriedades que epistemizariam e
gerariam justificação para tais crenças estariam baseadas e
fundamentadas nesses aspectos fenomenológicos da
lembrança, esta versão de geracionismo memorial
apresentaria alguns problemas, pois na ausência de
condições de anulabilidade, o status epistêmico de uma
crença de memória aumentaria simplesmente em virtude de
a mesma ser lembrada. Toda vez que uma crença memorial
é recuperada na memória ela recebe um impulso epistêmico
extra, mas haveria plausibilidade em se supor que, ceteris
paribus, uma crença de tal natureza que é recuperada com
bastante freqüência gozaria de um estatuto epistemológico
“melhor”, digamos assim, do que uma crença que é
recuperada com pouca freqüência? Não parece haver, pelo
menos à primeira vista, uma correlação clara e direta entre o
estatuto epistêmico de uma crença e o número de vezes em
que ela é evocada, trazida à baila pela memória, naquilo que
Matthew McGrath denominou, por exemplo, de “o
problema do impulso epistêmico” (“epistemic boost
problem”) (MCGRATH, 2007, p. 19-22). De acordo com
esta forma de geracionismo apontada por Audi e Pollock,
segundo Sven Bernecker, e que o mesmo denomina como
uma forma de “geracionismo radical” (BERNECKER and
PRITCHARD, 2011, p. 331), a memória poderia gerar novos
fatores justificacionais mediante novas evidências
disponíveis para um sujeito S que se dariam pelo próprio ato
de lembrar, elemento este que conferiria uma parte da
justificação memorial, a outra parte seria devido a uma
fenomenologia da lembrança, onde S estaria justificado ao
crer que P desde que não houvesse razões e/ou evidências
que anulassem essa justificação (justificação prima facie). Já a
outra espécie de geracionismo memorial referida e assim
interpretada por Bernecker, que o mesmo denomina de
“geracionismo moderado”, e que seria o geracionismo
Ricardo Rangel Guimarães
167
endossado e defendido por Jennifer Lackey (LACKEY,
2005, p. 640-644 e BERNECKER, 2010, p. 96-103),
concordaria parcialmente com o preservacionismo ao
defender uma perspectiva de que o processo memorial, da
lembrança propriamente dita, não geraria novos elementos
justificacionais e/ou evidenciais, a memória não poderia
criar, gerar justificação e conhecimento a partir “do nada”.
Ao invés disso, a única forma de a memória funcionar como
uma fonte geradora de justificação e de conhecimento seria
através da remoção de derrotadores e, dessa forma,
desencadeando um potencial de justificação que já estaria
presente no momento em que a crença foi inicialmente
entretida, quando da sua formação em t1, no passado. Todos
os elementos requeridos e necessários para uma crença de
memória adquirir justificação já devem estar presentes
quando a crença foi formada e codificada pela primeira vez:
se a crença original já não tinha elementos potencialmente
justificatórios em t1, a memória não poderia transformar a
mesma em uma crença justificada, ela geraria justificação
apenas pelos fatores que poderiam ser anteriormente
solapados/anulados pela evidência derrotadora, é o que essa
forma de geracionismo, em última instância, defenderia.
Tal discussão sobre essas formas de geracionismo
também pode ser encontrada, por exemplo, em Kourken
Michaelian (MICHAELIAN, “Generative Memory”, 2011),
e a interpretação deste difere um pouco de como Lackey e
Bernecker tratam a questão. Michaelian é um entusiasta
também da visão de que a memória geraria crença e
propriedades epistêmicas como justificação e conhecimento,
e essa sua concepção está fundamentada no que ele
denomina de “nova teoria causal da memória construtiva”
(MICHAELIAN, 2011, p. 335), que seria uma
reinterpretação da posição clássica da teoria causal da
memória endossada, por exemplo, por Martin & Deutscher
(MARTIN & DEUTSCHER, 1966), onde nessa nova teoria
causal a memória teria um aspecto reconstrutivo do passado
168
Memória Epistêmica: Preservação e Geração
baseado em complexos e intrincados resultados da
psicologia cognitiva e da neurociência. Uma especulação
mais acurada acerca desta teoria, contudo, envolveria
elementos de metafísica da memória e de outros aspectos
filosóficos que nos desviariam consideravelmente do ponto
em questão e que não serão discutidos aqui, haja vista o foco
presente ser essencialmente epistemológico, sendo essa uma
discussão particularmente relevante no presente contexto
investigativo (apenas a título de curiosidade, estes aspectos
reconstrutivos da memória relacionar-se-iam mais com as
memórias episódicas ou experienciais do que com a memória
semântica ou proposicional, o foco de investigação do
presente trabalho).
Basicamente e de forma bastante resumida, para
Michaelian a geração de novos conteúdos mnemônicos
através de crenças memoriais poderia dar-se de duas
maneiras, a saber, pela atuação de outras fontes cognitivas
nesse processo gerador (como a percepção e o testemunho,
por exemplo), ou pela recuperação e evocação, no tempo, de
conteúdos armazenados pela memória (para este autor,
geração doxástica, por exemplo, poderia dar-se tanto através
do primeiro modo como pelo segundo). Desse modo, duas
formas de geração de conteúdo mnemônico se dariam: ou o
conteúdo não foi fornecido em t1, no passado, na entrada
(input), e o mesmo é incorporado como traço de memória
antes da recuperação/evocação deste conteúdo pelo agente
cognitivo, ou tal conteúdo é incorporado pela memória
resultante desse processo rememorativo de recuperação
mnemônica. Da mesma forma que trata desse conteúdo
doxástico de crenças memoriais, para Michaelian também
haveria a geração de justificação, que na sua perspectiva seria
totalmente incompatível com o preservacionismo, sendo
este geracionismo um geracionismo que se aproximaria da
versão radical, ao contrário do que uma interpretação mais
caridosa, como as espécies de geracionismo moderado que
Lackey e Bernecker, por exemplo, defenderiam dentro das
Ricardo Rangel Guimarães
169
suas próprias concepções. Na crítica de Michaelian a
Bernecker, por exemplo, o conteúdo gerado pela memória
em t2, na saída (output), não precisa ser o mesmo de t1, na
entrada (input), o que seria incompatível com os termos da
sua nova teoria causal da memória reconstrutiva, pois apenas
certos tipos limitados de reconstrução e transformação de
conteúdo e justificação memoriais seriam compatíveis com
a lembrança, onde haveria uma proibição explícita de
geração adicional destas propriedades, que estariam
presentes na saída, em t2, mas não estavam na entrada, em
t1. Também sob a ótica de uma análise externalistaconfiabilista da justificação, para Michaelian, a memória
geraria justificação sob a égide de uma forma de
geracionismo radical por que seria o próprio processo
mnemônico, um processo confiável na formação de crenças
memoriais e que produziria, segundo uma probabilidade
objetiva, mais crenças verdadeiras do que falsas no sistema
doxástico do agente cognitivo, o causador desta geração de
justificação memorial, a via geracional não seria através da
crença e dos seus conteúdos mnemônicos nesse caso, o
próprio processo seria um processo gerador de justificação
independente das crenças do agente.
Referências Bibliográficas
AUDI, Robert. Memorial Justification. Philosophical
Topics, 23, 1995, p. 31-45.
BERNECKER, Sven and PRITCHARD, Duncan. The
Routledge Companion to Epistemology. Edited by Sven
Bernecker and Duncan Pritchard, Routledge, Taylor &
Francis Group, London and New York., 2011.
BERNECKER, Sven. Memory: A Philosophical Study.
Oxford: Oxford University Press, 2010.
170
Memória Epistêmica: Preservação e Geração
__________________. Remembering without Knowing.
The Australasian Journal of Philosophy, v. 85, 2007, p.
137-165.
BURGE, Tyler. Content Preservation. The Philosophical
Review, 102, n. 4, 1993, p. 457-488.
CONEE, Earl. and FELDMAN, Richard. Evidentialism:
Essays in Epistemology. Oxford: Clarendon, 2004.
LACKEY, Jennifer. Memory as an Epistemically Generative
Source. Philosophy and Phenomenological Research,
2005, 70 (3), p. 636-658.
________________. Why Memory Really is an
Epistemically Generative Source: A Reply to Senor.
Philosophy and Phenomenological Research, 74 (1),
2007, p. 209-219.
MARTIN, C.B., and DEUTSCHER, M. Remembering. The
Philosophical Review 75:, 1966, p.161-196.
McGRATH,
Matthew.
Memory
and
Conservatism. Synthese, 157, 2007, p. 1-24.
Epistemic
MICHAELIAN,
Kourken.
Generative
Memory.
Philosophical Psychology, v. 24, Num. 3, 2011, p. 323342.
OWENS, David. Reason without Freedom: The
Problem of Epistemic Normativity. New York and
London: Routledge, 2000.
Ricardo Rangel Guimarães
171
PAPPAS, George. Lost Justification. Midwest Studies in
Philosophy, 5, 1980, p. 127–34.
POLLOCK, John L. Knowledge and Justification.
Princeton, NJ: Princeton University Press, 1974.
SENOR, Thomas D. Preserving Preservationism: A Reply
to Lackey. Philosophy and Phenomenological Research,
74 (1), 2007, p. 199-208.
SHOEMAKER, Sydney. Memory. In: P. Edwards (ed.), The
Encyclopedia of Philosophy. New York: Macmillan, vol.
5, 1967, p. 265–74.
WILLIAMSON, Timothy. On Being Justified in One’s
Head, In: M. Timmons, J. Greco, and A.R. Mele (eds.),
Rationality and the Good: Critical Essays on the Ethics
and Epistemology of Robert Audi. Oxford: Oxford
University Press, 2007, p. 106–22.
Notas para uma estética do pensamento
172
Notas para uma estética do
pensamento 1
Eduardo Luft 2
1. A intuição para estas notas veio durante um vôo
cruzando o Atlântico, em meio à leitura da conferência
“Iteration, Reiteration, Repetition: a Speculative Analysis of
the Meaningless Sign”, de Quentin Meillassoux 3 . Dei-me
conta de que tenho me aproximado de uma teoria do
pensamento pelo lado inverso do seguido por Meillassoux,
quer dizer, explorando o espaço lógico evolutivo - que será
Agradeço a Sérgio A. Sardi pelos extensos comentários a uma versão
inicial deste artigo.
1
Eduardo Luft atua no Pós-Graduação de Filosofia da PUCRS desde
2000, tendo sido coordenador do programa de julho de 2004 a julho de
2005. Sob sua orientação foram concluídas, até agora, quinze
dissertações de Mestrado e dez teses de Doutorado. É autor de cinco
livros, entre eles “Sobre a coerência do mundo” (Civilização Brasileira,
2005) e “Ideia e Movimento”, em coautoria com Carlos Cirne-Lima
(Civilização Brasileira, 2012). Em 2012, como bolsista da Erasmus
Mundus, atuou como professor visitante na Universidade de Bonn,
Alemanha. O seu projeto de pesquisa desenvolve uma abordagem
contemporânea em filosofia sistemática, integrando falibilismo
generalizado e ontologia de redes.
2
3
Meillassoux, 2012.
Eduardo Luft
173
exposto em detalhes logo a abaixo - não a partir de seu
segundo, mas de seu primeiro quadrante. Não parto,
portanto, de uma teoria do pensamento manifesto em sua
máxima determinação, em que predomina o conceito
propriamente dito (ou o pensamento expresso em redes
conceituais determinadas), mas de uma teoria do
pensamento vertido em sua faceta menos determinada, onde
predomina a intuição (ou o pensamento expresso em
metáforas 4 , e mais fundo em imagens quase puras do
pensamento). Quero esboçar uma teoria da intuição intelectual,
uma teoria do modo como o pensamento se expressa nas
proximidades da Configuração de Górgias, embora
obviamente não uma teoria da intuição intelectual como
saber absoluto5.
2. A busca por uma estética do pensamento anterior
a qualquer teoria do belo, embora não sem conseqüências
para uma tal teoria, foi inaugurada por Kant, ao desenvolver
sua compreensão da aisthesis em sua “estética
transcendental”. Mas em Kant não se trata propriamente de
“Não há espaço puramente lógico que possa ser liberado de todos os
mitos e metáforas, na medida em que mesmo o conceito de ‘espaço
lógico’ serve obviamente como uma metáfora para delinear a ‘esfera
ilimitada’ da racionalidade, dando-nos uma imagem na qual podemos nos
reconhecer” (Gabriel, 2012, p.105).
4
Cf. Schelling: “Há, portanto, um conhecimento imediato do absoluto
(...), e este é o primeiro conhecimento especulativo, o princípio e o
fundamento da possibilidade de toda filosofia. Denominamos este
conhecimento: intuição intelectual” (FD, v.2, p.112). Na contraposição
a esta defesa, por parte de Schelling, da intuição intelectual como acesso
direto ao absoluto, sigo simplesmente a posição de Hegel: o que se
costuma chamar de “intuição intelectual”, neste primeiro sentido - quer
dizer, quando nos referimos a nosso acesso direto a dados não empíricos,
em um uso que está em consonância com o emprego do termo “intuição
sensível” quando se fala de nosso acesso direto a objetos empíricos -, é
simplesmente o resultado de um ato prévio ato de conceitualização,
explicitamente reconhecido ou não. Aprofundarei este tema logo em
seguida. Para o conceito de intuição intelectual em Schelling, cf. tb.
Puente (1997, p.29ss).
5
174
Notas para uma estética do pensamento
uma estética do pensamento, se lembrarmos que a Crítica da
Razão Pura estabelece um contraste estrito entre a faculdade
passiva ou receptiva (intuitiva) da sensibilidade e a faculdade
ativa ou espontânea (discursiva) do pensamento
(desdobrado como entendimento e razão). Kant leva este
contraste a tais extremos que podemos mesmo perguntar até
que ponto pode-se ter, na filosofia transcendental, qualquer
teoria da intuição, como a intuição pode ser ainda
minimamente resgata do nada a que foi lançada por este ato
de contraposição absoluta, como ela pode ser ainda trazida
ao conceito. “Na estética transcendental primeiro isolaremos
a sensibilidade, afastando tudo o que o entendimento pensa
através de seus conceitos, para que não reste nada além da
intuição empírica”6.
3. Mas o que de fato resta? Segundo Kant, de um
lado restariam as formas puras do espaço e do tempo que
garantiriam a “certeza apodítica” em geometria e aritmética;
de outro, a matéria da sensibilidade, destituída de qualquer
determinação conceitual, quer dizer, a pura indeterminação
da coisa-em-si. Quanto ao primeiro traço residual da intuição
resultante daquela contraposição absoluta, poderíamos
insistir, contrariamente a Kant, que as supostas “formas
puras da intuição” são apenas modos do discurso ou
configurações do pensamento que não possuem qualquer
“unicidade absoluta” ou “certeza apodítica” que pudesse
livrá-las da mediação do conceito, o que torna-se explícito
com a diversidade (potencialmente infinita?) das geometrias
e das conceituações possíveis do tempo ou do espaço-tempo
disponíveis no pensamento contemporâneo. As tentativas
de reconstruir a intuição como um tipo de conhecimento
imediato que, justamente por isso, garantiria certeza
apodítica, seja na forma da imediatidade da intuição sensível
(empirismo e transcendentalismo dogmáticos) ou da
intuição intelectual (racionalismo ou intelectualismo
6
Kant, KrV, B36.
Eduardo Luft
175
dogmático) parecem condenadas ao fracasso, pois toda
tentativa de conceber a intuição como externa e anterior à
potência mediadora do conceito na verdade a pressupõe (o
que se deixa derivar, como logo veremos, da tese da
“indelimitação do conceitual”).
4. O segundo traço residual é muito mais
interessante. O fato de que sobra da intuição apenas o
paradoxo de um não-conceito ou de um “objeto
indeterminado” - “o objeto indeterminado de uma intuição
empírica chama-se fenômeno”7 - diz tudo sobre o viés para o
Uno que pervade a filosofia transcendental. Kant não apenas
partiu daquele contraste absoluto entre intuição e
pensamento, mas chegou mesmo a definir este último como
o ato de “unir representações em uma consciência” 8 , ao
mesmo tempo em que concebia tal unidade sob a forma
determinante do juízo. À indeterminação paradoxal da
intuição “deixada por si mesma” contrapõe-se a
determinação plena do pensamento. Se acrescentarmos a
isso o fato de que, para Kant, o pensamento em seus atos de
síntese é por princípio pensamento sistemático, um discurso
que se orienta pela ideia de totalização determinada ou pela
ideia de completude, veremos logo que tudo depende na
filosofia transcendental - enquanto concebida como
disciplina crítica, capaz de explicitar os limites do
pensamento - daquele contraste absoluto inicial. De fato,
não apenas tudo o que cai sob o pensamento se determina
na forma da estrutura lógica do juízo, mas todo ato de julgar
orienta-se pela ideia da determinação completa 9 . Tudo
depende assim, em Kant, quando o que está em jogo é
garantir a criticidade da filosofia transcendental, do fato de
que a ideia de uma totalidade completa só possa ser pensada
e jamais realizada ou conhecida, quer dizer, tudo depende
7
Kant, KrV, B34.
8
Kant, Prol, §22.
9
Kant, KrV, B604.
176
Notas para uma estética do pensamento
daquele contraste absoluto efetuado ao início que impede
que a espontaneidade do pensamento se libere da
receptividade da intuição. Desvinculada da força
determinante do conceito, a intuição seria lançada ao “vazio
de determinação” da pura matéria da sensibilidade tal como
os fenômenos seriam lançados no puro vazio sem a presença
ordenadora das ideias no platonismo. Por seu turno, liberado
da restrição originária do que há de indeterminado na
intuição sensível, o conceito transmudar-se-ia no sistema da
razão pura completo e acabado, quer dizer, retornaríamos ao
dogma de uma metafísica pré-crítica. Mas a pergunta
primordial resta não respondida: o que garante este próprio
vínculo, qual é o fio que conecta ou poderia conectar a
indeterminação da intuição à determinação do conceito?
5. Este é o contexto teórico em que emerge a obra
de Hegel, sobretudo sua Lógica, de cuja crítica imanente
resulta a teoria do espaço lógico evolutivo que esboçarei logo
abaixo, dando início à nossa busca por uma estética do
pensamento. Na Lógica de Hegel o paradoxo a que me referi
na nota anterior é elevado à sua forma extrema. Deste
paradoxo deriva a estrutura ambígua desta obra que pode ser
compreendida ao mesmo tempo como uma metalógica que
radicaliza a criticidade inerente à filosofia transcendental e
como uma hiperlógica que visa consumar aquele ideal de
completude.
6. Lembremos que o ato “fundador” da Lógica de
Hegel é a demolição do fundamento, quer dizer, o seu ponto
de partida é a recusa de qualquer postulado aceito
previamente à atividade de autocrítica do pensamento. A
Lógica principia não por um ato de determinação, mas por
um ato de liberação de determinação, por um “deixar estar
aí” do puramente indeterminado do ser que, justamente por
isso, pode ser considerado como “esta pura, vazia
Eduardo Luft
177
intuição” 10 . Esta obra “não deve pressupor nada” 11 , nem
mesmo as leis do discurso judicativo (diríamos hoje, discurso
proposicional), que na verdade serão instauradas ou
dialeticamente reconstruídas no interior do próprio processo
dialético.
7. A manobra hegeliana garantirá a ampliação e
radicalização do empreendimento crítico herdado,
sobretudo, de Descartes e de Kant. A proposta de realização
de uma metacrítica à Crítica da Razão Pura de Kant associa-se
ao que denominei em outro contexto12 de crítica hegeliana
do mito do quadro referencial em Lógica. A filosofia
transcendental ancorava-se no dogma da pressuposição
irrefletida das estruturas formais da Lógica clássica. A
liberação deste dogma permite, por um lado, o
aprofundamento da atividade crítica e, por outro, a
ampliação da esfera do sentido para âmbitos antes
insuspeitos. Na busca crítico-reflexiva pelo princípio
universal de inteligibilidade, a Lógica de Hegel - construída,
como todas as principais obras do autor, ao revés - encontra
o sentido para muito além do discurso proposicional. Os
termos com que Hegel inicia sua Lógica, 'ser', 'nada', 'devir',
meros conceitos desvinculados de qualquer articulação
proposicional, indicam o caminho. Embora toda
determinação de sentido suponha relação e, estritamente
falando, todo sentido só possa se dar em redes ou
configurações semânticas e não em figuras de sentido
isoladas - o que Hegel pretende demonstrar já nos primeiros
passos da Lógica -, isto não implica a exigência de que a
articulação dos conceitos ocorra na forma da proposição.
Daqui resulta a primeira ideia central que perseguirei neste
ensaio, qual seja, a de que é o momento de deixar emergir
modos inauditos de manifestação de sentido para muito
10
WL, 5, p.82.
11
WL, 5, p.69.
12
E. Luft, 2011.
178
Notas para uma estética do pensamento
aquém ou além da estrutura proposicional.
8. Mas há dois déficits na abordagem hegeliana. Em
primeiro lugar, Hegel nunca explicou como aquele ato de
“liberação de determinação” com que inicia a Lógica pode ser
ainda um ato de pensar, ele não apresentou nenhuma teoria
de como a indeterminação é sequer pensável. Como
veremos depois, minha tese é de que a indeterminação é
mesmo impensável ou ininteligível, mas ainda assim é
pensável um além da determinação como subdeterminação.
9. Em segundo lugar, o viés para o Uno não apenas
é inteiramente preservado mas, de certo modo, aprofundado
na Lógica hegeliana, enquanto o movimento dialético do
Conceito é ancorado no que tenho denominado de
teleologia do incondicionado. Se a Doutrina do Ser e a
Doutrina da Essência podem ser consideradas como o
centro da metalógica hegeliana enquanto radicalização da
crítica, quer dizer, como momentos privilegiados na
dissolução da metafísica clássica (crítica da teoria do ser, da
teoria da substância e do essencialismo clássicos), a Doutrina
do Conceito busca efetivar o ideal kantiano da determinação
completa do pensamento em um sistema da razão pura.
Todas as categorias ou determinações de pensamento
prévias devem ser reexpressas ao final da Lógica como figuras
ou momentos na configuração semântica do conceito (na
dialética do universal, particular e singular), para em seguida
o conceito ser desdobrado em redes conceituais expressas
em juízos (ou, diríamos, proposições) e, por fim, os juízos
serem reexpressos em redes de juízos ou silogismos
(diríamos hoje, inferências). Desse modo, a obra que se
iniciou na forma extrema do vazio de determinação do ser
encontrará seu desfecho - quando a estrutura silogística for
desdobrada como estrutura objetiva e, por fim, absoluta - na
determinação completa da ideia absoluta. A Ciência da Lógica
finaliza desfazendo-se no paradoxo: a dialética, assim
Eduardo Luft
179
consumada, se dissolve13 e a metalógica se esvai nas malhas
da hiperlógica.
10. A saída para tal impasse pode ser vislumbrada
pela radicalização do segundo movimento de ampliação da
esfera de sentido realizado pelo próprio Hegel, sob a tese
redenominada por McDowell como a hipótese da
“indelimitação do conceitual”14. Descobrimos a verdadeira
amplitude da esfera de sentido quando nos damos conta do
caráter conceitual dos dois modos de intuição mapeados pela
tradição, a intuição sensível e a intuição intelectual. Hegel
desvelará o caráter conceitual (ou discursivo) da primeira ao
início da Fenomenologia do Espírito, ao tratar da certeza sensível,
e tornará explícito o traço conceitual da segunda, como
vimos, logo ao início de sua Lógica, ao permitir-se equiparar
o ser com a “vazia intuição”15. Isso possibilita a superação
dos impasses intransponíveis inerentes a qualquer
concepção dualista da relação entre intuição e conceito. Pelo
contrário, devemos defender a ideia de que intuição e
conceito não se distinguem por princípio, mas apenas por
gradação, sendo aquela apenas a face menos determinada do
pensamento, e este, a sua face mais determinada.
11. Sabemos, todavia, que Hegel não legou qualquer
teoria da intuição propriamente dita. Se sua filosofia
expandiu os limites do pensamento para muito aquém da
forma da proposição, ela literalmente parou nas bordas do
intuitivo, como o matungo que trava na beira do abismo. Ao
se aproximar da intuição, Hegel o fazia sempre apenas de
modo negativo: a intuição era captada apenas em seu
processo de dissolução: desfalecimento da singularidade da
intuição sensível na universalidade do conceito
(Fenomenologia), e do ser como intuição pura nas malhas do
Conceito (Lógica). É preciso ir além, e expandir a esfera do
13
Luft, 2001.
14
McDowell, 1996.
15
WL, 5,
180
Notas para uma estética do pensamento
sentido para o âmbito em que a face mais determinada do
pensamento deixa de predominar e a intuição saia à tona.
12. Para livrar a dialética de sua situação paradoxal é
preciso negar a teleologia do incondicionado, quer dizer, a
tese hegeliana de que o fim do processo dialético e os
momentos que conduzem a ele são predeterminados por
uma configuração específica do pensamento, no caso, pelo
próprio Conceito. Aceita-se a exigência mínima de coerência
que inere à filosofia hegeliana bem como a toda filosofia que
se queira dialética16 (“Só coerente permanece determinado”),
mas há múltiplos, potencialmente infinitos modos de
manifestar a coerência. Esta crítica de terceiro nível - quer
dizer, esta curiosa crítica à crítica hegeliana à crítica kantiana
- equivale, literalmente, a “soltar as amarras” da esfera de
sentido, o que traz três conseqüências drásticas: a) a teoria
hegeliana do espaço lógico puro - cerne do idealismo
objetivo ancorado no dualismo entre idealidade (Lógica) e
realidade (Filosofia do Real) - se desfaz na teoria dialética do
espaço lógico evolutivo (idealismo evolutivo); b) a teoria
hegeliana do saber absoluto converte-se em um falibilismo
generalizado; c) e a ontologia inflacionária do Conceito
transmuda-se na ontologia deflacionária da Ideia da
Coerência.
13. Quero me ater aqui apenas às conseqüências
desta deflação da dialética hegeliana para a teoria do
pensamento. “Livrar as amarras” da esfera de sentido
significa permitir a livre exploração, pelo pensamento, do
vasto campo aberto pela teoria do espaço lógico evolutivo,
movendo-se entre todos os modos possíveis de
manifestação do sentido, quer dizer, entre todos os modos
coerentes de expressão. Coerência é a unidade de uma
multiplicidade ou a multiplicidade em unidade. Atualizando
a terminologia platônica, podemos afirmar que a ideia da
coerência consiste na dialética do Uno e do Múltiplo.
16
Cirne-Lima, 2006.
Eduardo Luft
181
Associemos ao Uno as notas de identidade, invariância e
determinação, e ao Múltiplo as notas de diferença, variação e
subdeterminação. A coerência pode se dar de múltiplos,
potencialmente infinitos modos: ela se manifesta no mais
determinado (na vizinhança da Configuração de
Parmênides) bem como no menos determinado dos
pensamentos (nos arredores da Configuração de Górgias). O
envolvimento de todos os pensamentos (e de todos os seres)
possíveis na Ideia da Coerência é o espaço lógico evolutivo17.
14. Contrariando o viés para o Uno legado por nossa
tradição de pensamento, precisamos poder ver a coerência
manifestando-se também no minimamente determinado.
15. Precisamos aprender a ver de modo diferente a
coerência, principalmente vê-la à luz do segundo sentido em
que o conceito de intuição passa agora a ser utilizado. Este
momento receptivo do pensamento pode ser compreendido
de dois modos. Podemos concebê-lo como a forma cristalizada
do conceito, como quando dizemos que nosso pensamento
“está pronto”, “está aí diante de nós” e pode ser
“reproduzido” ou “passado adiante”. É nesse sentido que
falamos de “intuição sensível” ou “experiência” ou
“observação” no empirismo ingênuo, quando na verdade
não estamos a tratar da intuição em sua dimensão mais
própria, mas do conceito na sua forma naturalizada 18 , o
conceito tornado “interpretação natural”, nas palavras de
Feyerabend19 - atuamos no mundo sob a orientação de uma
rede conceitual determinada, embora assumida de modo
implícito ou acrítico; também nesse sentido dizemos que
17 Para uma visão mais detalhada do espaço lógico evolutivo, cuja
imagem será exposta logo a seguir, cf. E. Luft (2011) e E. Luft,
“Ontologia deflacionária e ética objetiva” (E.Luft/C. Cirne-Lima, 2012,
p. 307ss).
Nesse sentido, toda intuição é intuição intelectual, conceitualmente
configurada.
18
19
Feyerabend, 2007, p.89ss.
182
Notas para uma estética do pensamento
“intuímos”, por exemplo, as noções matemáticas básicas no
racionalismo (ou intelectualismo) ingênuo - a mediação
conceitual prévia que permite a tematização destas noções
está oculta, mas igualmente presente. E é nesse sentido que
a intuição intelectual é compreendida por Hegel - no que
para ele seria, aliás, a sua manifestação mais própria ou
verdadeira - quando a considera como o ponto de chegada do
processo de autodeterminação do pensamento na Lógica,
identificando-a com o pensamento maximamente
determinado que é a própria Ideia20.
16. Nada contra este uso específico do termo
'intuição'. Mas a intuição pode ser compreendida também de
outra forma, que agora quero enfatizar: a receptividade
emerge no pensamento quando este deixa de simplesmente
iterar uma configuração de pensamento já dada - como
quando dizemos que a proposição molecular “Sócrates é
mortal ou Sócrates não é mortal” é uma verdade necessária
iterando as configurações primeiras ou “leis” da lógica
bivalente. Quando deixamos de meramente iterar, quando
“soltamos as amarras” do pensamento, inaugura-se uma
atitude receptiva, e o pensamento, longe de antecipar as
conceituações vindouras, abre-se a possibilidades não
antecipáveis de sentido.
17. Intuição e conceito não devem ser entendidos
como opostos excludentes associados a faculdades diversas,
como sensibilidade e discurso, tampouco como tipos
diversos de pensamento ou discurso, ancorados em
princípios independentes. Intuição e conceito são apenas
gradações diferentes de manifestação do sentido em atos de
pensamento (ou apenas diferentes modos de como a
“Enquanto compreende-se por intuição não apenas o sensível, mas a
totalidade objetiva, então trata-se de uma (intuição) intelectual, quer dizer,
ela tem por objeto não o ser-aí em sua existência externa, mas aquilo que
nele é a realidade imutável e a verdade - a realidade enquanto é
determinada em conceitos e por meio de conceitos, quer dizer, a ideia”
(WL, V. 6, p.287).
20
Eduardo Luft
183
inteligibilidade do mundo se expressa no discurso).
18. Dizia, ao início destas notas, que tenho me
aproximado a uma teoria do pensamento percorrendo a via
que desemboca na Configuração de Górgias, quer dizer,
naquela manifestação da coerência em que o sentido se dá
no máximo predomínio do Múltiplo - e de suas notas
características, a diferença, a variação e a subdeterminação - sobre
o Uno. Precisamos ver a coerência em sua manifestação nas
bordas da Configuração de Górgias mas, antes, gostaria de
acompanhar seu desdobramento ainda em formas menos
extremas do predomínio do Múltiplo, nos arredores da
Configuração de Leibniz ou, mais precisamente, na transição
do terceiro para o quarto quadrante do espaço lógico
evolutivo.
Agora convido o leitor a fazer o seguinte
experimento de pensamento, tendo presente a imagem do
espaço lógico evolutivo que segue abaixo: imagine-se
acompanhando o movimento que segue do mais
determinado ao menos determinado dos pensamentos,
partindo da Configuração de Parmênides e seguindo em
direção à Configuração de Górgias. O momento em que a
subdeterminação passa a preponderar sobre a determinação
nos atos de pensamento, o momento em que o conceito (em
sua face determinada) recolhe-se e a intuição passa a
predominar dá-se na passagem pela Configuração de
Leibniz. A linha limítrofe é traspassada quando emergem
aquelas configurações de pensamento que realizam o
predomínio do Múltiplo como primeiro grau de potencialidade,
quer dizer, o pensamento não é mais meramente iterativo e
deixa emergir, sob a restrição de alguma configuração
primeira pressuposta, outras possibilidades de sentido,
deixadas livres, embora demarcadas e previamente definidas
como possibilidades pela configuração primeira, do mesmo
modo como os movimentos futuros do cavalo no tabuleiro
já estão predefinidos como possibilidades pelas regras do
jogo de xadrez. Quer dizer, as figuras e configurações
184
Notas para uma estética do pensamento
semânticas que emergem a cada momento sob o pressuposto
daquela configuração primeira ou padrão configuracional de
fundo estão por ela ou por ele subdeterminadas.
Imagem: “espaço lógico evolutivo”
Para compreender a imagem: Cada ponto no
tracejado da circunferência corresponde a uma configuração
possível do pensamento (as linhas dentro da circunferência
servem apenas para demarcar os quadrantes, que vêm
numerados do 1°. ao 4°.). Já por isso, a figura é
evidentemente
uma simplificação,
pois existem
potencialmente infinitos pensamentos possíveis, e o número
de pontos que formam a circunferência aqui representada é
finito. A seta à direita da circunferência, a apontar para baixo,
indica que as configurações situadas nos quadrantes 3 e 4,
mais próximas, portanto, da Configuração de Leibniz, são
mais coerentes (+C) com o dinamismo característico da
ontologia relacional deflacionária ou ontologia de redes. Em
nossa exploração do espaço lógico evolutivo, estamos
seguindo o caminho que vai da Configuração de Parmênides
à Configuração de Górgias, cruzando pela Configuração de
Leibniz, a linha limítrofe “em que o conceito recolhe-se e a
intuição passa a predominar”, quer dizer, o momento em que
emerge o predomínio do Múltiplo em seu primeiro grau de
potencialidade. Dado o isomorfismo lógico entre
pensamento e ser, toda esta teoria das possibilidades de
pensamento pode ser rebatida em uma teoria das
possibilidades de existência (a lógica pode ser rebatida em
uma ontologia, e vice-versa).
Eduardo Luft
185
19. Continuemos nossa jornada em direção à
Configuração de Górgias. A manifestação do segundo grau de
potencialidade é a marca de transição do quarto para o primeiro
quadrante: agora os eventos de sentido que emergem sob o
pressuposto da configuração de todas as configurações
primeiras ou configuração primeiríssima, da própria Ideia da
Coerência, estão nela e por ela apenas envolvidos, quer dizer,
eles não estão sequer predefinidos como possibilidades sob
a restrição originária da exigência de coerência. A Ideia da
Coerência apenas circunda ou envolve as possibilidades,
como a mãe que, tentando evitar que seus filhos pequenos
acabem de vez com a casa inteira, circunda com sofás a sala
e restringe o campo de ação, não predefinindo que tipo de
brincadeiras serão realizadas dentro deste espaço, mas
claramente delimitando o campo de jogo possível.
20. Aqui, na proximidade da Configuração de
Górgias, a intuição mostra toda a sua força. Receptividade
expressa, em sentido mais profundo, esta abertura do
186
Notas para uma estética do pensamento
pensamento para possibilidades não predefinidas, mas
apenas envolvidas pela exigência de coerência. Sabemos que
figuras de sentido não emergem sozinhas, isoladas de outras
figuras, pois dada a restrição originária da coerência, toda
determinação supõe relação. Sabemos também que os laços
de condicionamento entre figuras diversas não podem se
perder no infinito, e só estabilizam como momentos de
configurações de sentido ou configurações semânticas. Mas
não se diz nada, nas cercanias da Configuração de Górgias,
sobre que configurações semânticas emergirão neste ou
naquele ato de pensamento.
21. Para tornar este estudo especulativo mais
palpável para o leitor familiarizado com o pensamento
matemático, podemos buscar uma formalização aproximada
da dialética do Uno e do Múltiplo utilizando conceitos da
teoria das redes. Assim, poderíamos formalizar as redes
semânticas que emergem no segundo quadrante do espaço
lógico evolutivo (na vizinhança da Configuração de
Parmênides) como redes regulares e as redes que emergem
no primeiro quadrante (na vizinhança da Configuração de
Górgias) como redes randômicas. Eu digo “formalização
aproximada” porque redes randômicas não ascendem de
fato do quarto ao primeiro quadrante, mas encontram sua
barreira bem antes, porque operam sob o pressuposto de
possibilidades predefinidas, o que indica o caráter insondável
do primeiro quadrante quando estão em jogo tentativas de
formalização do pensamento (cf. nota de rodapé 22).
22. Ao revés, para tornar este estudo palatável ao
leitor com inclinações poéticas, a contraposição entre as
configurações semânticas que emergem próximas à
Configuração de Parmênides e aquelas que emergem na
vizinhança da Configuração de Górgias poderia ser captada
pela diferença entre os seguintes pensamentos:
187
Eduardo Luft
a) p v ¬p
b)
“o sentido escorre
pelos fiordes,
as cores despencam
pelos cantos do mundo
e toda a criação se refaz
no instante”21.
23. O que diferencia o pensamento lógico do
pensamento poético? Graus de determinação, e o modo
como, em diferentes graus, o conceito predomina sobre a
intuição, ou vice-versa. O primeiro pensamento exposto na
nota anterior é uma proposição molecular que expressa uma
verdade necessária sob o pressuposto das configurações
primeiras ou “leis” da lógica bivalente22, destacando-se por
seu caráter iterativo e por seu fechamento. O segundo é um
poema, marcado por sua abertura a potencialmente infinitas
21
Do autor.
22 Embora esta não uma seja verdade necessária (uma tautologia) no caso
da lógica trivalente de Łukasiewicz (cf. Mortari, 2001, p.374). O
movimento que estamos percorrendo, do mais determinado ao menos
determinado dos pensamentos, pode ser exemplificado, também, pela
transição da lógica bivalente à lógica trivalente de Łukasiewicz, e desta à
lógica difusa (Zadeh): quanto mais se amplia o espaço de possibilidades
(o número de valores de verdade atribuíveis às proposições), menos
determinado o pensamento expresso sob as restrições das configurações
primeiras dos respectivos sistemas formais; no extremo, não apenas se
amplia o número de possibilidades definidas (primeiro grau de
subdeterminação), mas passa-se a incorporar possibilidades não
predefinidas (segundo grau de potencialidade) no sistema lógico. De fato,
a lógica difusa absorve a tal ponto a subdeterminação do sentido que, em
seu compromisso com a vaguidade, corre o sério risco de transcender
os limites do que usualmente entendemos por um sistema formal de
lógica, apresentando-se como “um desafio radical à concepção
tradicional do âmbito e objetivos da lógica formal” (cf. S. Haack, 2002,
p.225).
188
Notas para uma estética do pensamento
possibilidades de interpretação. O primeiro namora com o
conceito, o segundo com a intuição, mas nenhum dos dois é
puro conceito ou pura intuição, pois todas as formas
possíveis de pensamento contêm o Uno e o Múltiplo como
seus polos complementares.
24. Embora podendo explorar todo o vasto campo
do espaço lógico evolutivo, o pensamento é mais coerente
com o próprio dinamismo introduzido pela presença
pervasiva de contingência na ontologia relacional
deflacionária (ou ontologia de redes) quando se manifesta
nos arredores da Configuração de Leibniz, daquela
configuração que reúne “a maior variedade sob a maior
ordem possível”23 (daí a seta a apontar para baixo, à direita
da imagem do espaço lógico evolutivo). Quer dizer, o
pensamento tende a manifestar-se de modo mais coerente
não no extremo predomínio da intuição, nem no extremo
predomínio do conceito, mas no meio adequado entre os
extremos; ele tende a aproximar-se da Configuração de
Leibniz . A presença pervasiva de redes sem escala 24 no
ambiente que nos circunda é explicada por esta assimetria
característica do espaço lógico evolutivo, traço que o
diferencia explicitamente das teorias do espaço lógico
legadas pela tradição de filosofia analítica (p.ex., por
Wittgenstein25).
25. Quero concluir minhas notas retornando ao
início: dizia haver percebido, durante aquele vôo cruzando o
Atlântico, que me aproximava a uma teoria do pensamento
percorrendo a via que conduz à Configuração de Górgias.
Desse modo, à primeira vista, o meu percurso me afastava
inteiramente do caminho percorrido por Meillassoux em seu
ensaio, que explorava o espaço lógico evolutivo próximo à
Configuração de Parmênides. Todavia, quanto mais nos
23
Leibniz, 1898, §58.
24
Barabási, 2002.
25
Wittgenstein, 1997; cf. tb. E. Luft, 2011.
Eduardo Luft
189
afastávamos percorrendo estas diversas vias, mais nos
aproximávamos, pois o pensamento minimamente
determinado, o pensamento em que se manifesta o
predomínio máximo do Múltiplo sobre o Uno é justamente
aquele pensamento que não contém mais nada de
determinado a não ser a iteração da própria exigência de
coerência. Assim percebemos como, em sua máxima
divergência, os opostos terminam por convergir26. Ao final,
a Configuração de Górgias reverte na Configuração de
Parmênides, e vice-versa.
26. Esta é uma explicação possível para a oscilação
contínua presente no pensamento de Meillassoux entre a
defesa de uma teoria da contingência radical, desdobrada nas
proximidades da Configuração de Górgias, e uma teoria das
estruturas formais quase puras do pensamento e do ser,
próxima à Configuração de Parmênides. Meillassoux parece
não ter consciência de como estas duas configurações se
fundem e revertem uma na outra, transitando pela
Configuração de Cusanus.
27. Aproximando-me à Configuração de Górgias, eu
estarei cada vez mais próximo, por fim, pelo fenômeno da
reversão, da Configuração de Parmênides, e então poderei,
em outro momento, explicitar as minhas divergências27 com
o projeto de Meillassoux de constituir uma teoria das formas
quase puras do pensamento por meio da teoria de conjuntos.
28. Junto à Configuração de Cusanus, o matemático
e o poeta dão as mãos.
26
Cf. Nicolau de Cusa (2002).
Uma estratégia mais frutífera para investigar a Configuração de
Parmênides deveria passar pelo diálogo não com a teoria dos conjuntos,
como o faz Meillassoux, mas com a teoria dos grafos. Para uma bela
proposta de desenvolver uma metafísica dos grafos, embora certamente
não livre do viés para o Uno que tenho denunciado nestas notas, cf.
Dipert, 1997.
27
190
Notas para uma estética do pensamento
Referências bibliográficas
Barabási, A.-L. Linked. The New Science of Networks.
Cambridge: Perseus, 2002.
Cirne-Lima, C. Depois de Hegel. Uma reconstrução crítica do
sistema neoplatônico. Caxias do Sul: Educs, 2006.
Cusa, Nicolau de. A Douta Ignorância. Trad. Reinholdo
Aloysio Ullmann. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.
Dipert, R. R. The Mathematical Structure of the World:
The World as Graph. The Journal of Philosophy, 1997,
94(7), 329–358.
Feyerabend, P. Contra o método. Trad. C. A. Mortari. São
Paulo: UNESP, 2007.
Gabriel, M. “O ser mitológico da reflexão - Um ensaio
sobre Hegel, Schelling e a contingência da
necessidade”. In: Gabriel, M./Žižek, S. Mitologia,
loucura e riso. A subjetividade no idealismo alemão. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, pp. 29-165.
Haack, Susan. Filosofia Das Lógicas. Trad. Cezar A.
Mortari / Luiz Henrique de A. Dutra. São Paulo:
UNESP, 2002.
Hegel, G. W. F. Wissenschaft der Logik [WL]. In: Werke
in 20 Bänden. 2. ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, v. 5,6.
Kant, I. Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik
[Prol]. 7. ed. Hamburg: Meiner, 1993.
____ . Kritik der reinen Vernunft [KrV]. 3. ed. Hamburg:
Meiner, 1990.
Eduardo Luft
191
Leibniz, G. W. The Monadology and Other Philosophical
Writings. Trad. de R. Latta. 1898. Acessado em 23 de
Maio
de
2012:
http:
//archive.org/
stream/monadologyotherp00gott#page/n5/mode/
2up
Luft, E. As Sementes da Dúvida. Investigação Crítica dos
Fundamentos da Filosofia Hegeliana. São Paulo:
Mandarim, 2001.
____. A Lógica como metalógica. In: Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos, 2011, 8(15), p. 16–42.
(Reimpressão: Luft, E./Cirne-Lima, C. Ideia e
Movimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2012, p. 199ss).
Luft, E./Cirne-Lima, C. Ideia e Movimento. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
McDowell, J. H. Mind and World. Cambridge: Harvard
University Press, 1996.
Meillassoux, Q. Iteration, Reiteration, Repetition: A
Speculative Analysis of the Meaningless Sign. Berlin: Freie
Universitat Berlin, 2012.
Mortari, C. A. Introdução à lógica. São Paulo: UNESP,
2001.
Puente, Fernando Rey. As Concepções Antropológicas de
Schelling. São Paulo: Loyola, 1997.
Schelling, F. W. J. Fernere Darstellungen Aus Dem
System Der Philosophie [FD]. In: Ausgewählte
Schriften in 6 Bänden, 2nd ed., 77–167. Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1995, v.2, p. 77-167.
192
Notas para uma estética do pensamento
Wittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus. In: J.
Schulte (Ed.). Werkausgabe in 8 Bänden. 11. ed.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, v.1.
Norman R. Madarasz
193
Uma genealogia não tão
distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema
filosófico de Alain Badiou
Norman R. Madarasz
PPGFilosofia (Desde 2012)
A filosofia de Alain Badiou é conhecida por ter proposto
uma reconfiguração da ontologia, em função da tese
segundo a qual a ontologia é a matemática. O seu primeiro
resultado é a refutação da tese e das categorias da ontologia
heideggeriana. Contudo, esta refutação é proporcionada não
apenas por uma epistemologia “logicista” da matemática,
nem tampouco pela orientação intuicionista em que o
princípio do terceiro-excluído perca sua abrangência
universal. A “epistemologia” de Badiou é realista, ainda mais,
platônica. Por crescer principalmente dentro da tradição
francesa, a tese de Badiou deve ser entendida conforme uma
genealogia distinta da lógica matemática. Esta genealogia
desce da escola parisiense da filosofia da matemática e da
194
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
ciência, a partir de Jean Cavaillès e a filosofia da ciência póshusserliana por um lado, e da epistemologia dita histórica, de
George Canguilhem e o estruturalismo, por outro. Embora
a genealogia das teses sobre matemática e a lógica no sistema
de Alain Badiou é distinta a partir da perspective da filosofia
analítica, ela existe em continuidade da pesquisa inovador
feito na França nos 1940-1960s.
Esta visão pode parecer atípica no que diz respeito a
uma tradição filosófica taxada de uma distância tomada para
com as ciências exatas. Na comunidade de pesquisa
filosófica, temos todos a responsabilidade de nos desviarmos
dos dogmas vigentes. É mister que o crescimento da
aplicabilidade técnica da lógica contribuiu em grande parte
para criar o mundo pós-industrial em que vivemos. Por isso,
a filosofia não pode se manter longe das ciências, mesmo
quando privilegiando modelos provenientes das artes para
analisar o pensamento. A matematização dos saberes
permite que os nossos conhecimentos ultrapassem o que
nossos sentidos conseguem captar até o infinito, dos dois
lados do espectro das proporções e dos múltiplos anais pelos
quais o contínuo é estruturado.
No entanto, a relação entre matemática e lógica não
é estável ou particularmente harmoniosa. Augustus
DeMorgan usou a imagem inesquecível da matemática e da
lógica, ocupando, respectivamente, os dois olhos do rosto
das ciências exatas, numa relação em que nenhuma deixava
de furar o olho da outra (Grattan-Guinness, 2000:3). A
relação entre matemática e lógica significa tanto potência
quanto força redutiva no que diz respeito à condição
humana. Nem mesmo na imagem que criamos do cosmos
conseguimos escapar da dúvida de saber se a quantificação
realizada pela lógica capta do melhor modo suas verdades
profundas, ou se a matemática inventa, ou se apenas
descobre sua prodigalidade infinita. A pergunta sobre essa
relação está longe de ser um mero assunto técnico.
Norman R. Madarasz
195
Decerto, a configuração elaborada da relação entre
lógica e matemática está no ponto de surgimento das grandes
escolas de filosofia de nosso tempo. Poderia ter dito
“modelo”, mas teria dado uma antecedência à lógica na
elaboração de uma configuração que possa encaixar tanto a
matemática quanto a lógica. Os passos são minados também
por serem a lógica e a matemática tão atuantes sobre o que
consideramos nossos estados conscientes. O modo pelo qual
se configura essa relação motiva as filosofias não só de
Wittgenstein, Husserl e Quine, mas também de Heidegger e
Deleuze. O logicismo estabeleceu os primeiros passos da
filosofia analítica; o intuicionismo aprimorou a pesquisa
husserliana e fenomenológica; a geometria não euclidiana
projetou o pensamento deleuziano numa obstinação com
diagramas; e a neurofilosofia parece derivar de um realismo
próprio à área de autômato celular.
A configuração da relação entre matemática e lógica
é tanto central à possibilidade da filosofia quanto a sua
expulsão da planície principal das indagações formalistas,
como se poderia argumentar que era o projeto de Heidegger,
mesmo ao perceber seu uso espontâneo, nem sempre
dialético (ou seja, hegeliano), da categoria de negação.
Mesmo o que aqueles filósofos alérgicos a essa questão
supõem sobre a relação entre matemática e lógica acaba
tendo um efeito na maneira em que o pensamento se
organiza, ainda que o efeito seja latente.
A confrontação entre lógica e matemática se tornou
novamente o foco de uma análise inusitada na filosofia –
desta vez, no sistema de Alain Badiou. Sua leitura mostra que
a maneira em que situamos essa relação determina nossa
concepção maior da filosofia, da ciência teórica e das ciências
empíricas tout court. Por mais que possa existir uma relação
“natural” entre lógica e matemática, isto é, entre seus
“objetos” e modos de invenção e descobrimento, ela está
comumente submetida às lutas políticas e institucionais para
organizar como entendê-la e como tirar proveito dela.
196
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
No centro do debate se encontra nosso
entendimento da ontologia, a ciência do ser enquanto ser.
Para restabelecer a coerência dessa ciência antiga, Badiou
argumenta que devemos entender a matemática como
ciência do ser enquanto ser, e afirma que a matemática não
se submete aos ditados da linguagem dos seres humanos. A
matemática não é uma linguagem, mesmo que a lógica
estruture os possíveis modos em que a linguagem organiza
mundos. Examinaremos 11 transformações fundamentais
na articulação desta tese, cujo correlato é que a lógica se
torna a ciência da existência de mundos, isto é, a ciência do
aparecer. Na perspectiva de Badiou, contudo, os
designadores “lógica matemática” e “epistemologia” perdem
a rigidez. Surge, então, a indagação sobre se é legítimo, isto
é, por uma perspectiva filosófica, usar e aplicar essas noções
fora do seu campo inicial, fora da “própria” matemática e da
“própria” lógica. Não obstante a dúvida, só poderá ser
filosófica a indagação sobre a relação entre ontologia e
lógica.
TRANSFORMAÇÃO 1
ELEMENTO DE CONJUNTO
Ao contrário das teses dominantes na lógica
matemática, o elemento não é uma unidade monádica, mas
sim transversal. Em outras palavras, por mais que um
elemento não seja um conjunto, não deixa de ser um
múltiplo. Um subconjunto é um conjunto de outros
conjuntos ou do conjunto vazio. Porém, tal como a instância
do vazio, ou seja, o conjunto vazio, um elemento é um
múltiplo de um múltiplo, antes de ser contado “por” ou
“como” unidade (EE, pp. 32-33). De acordo com Badiou,
“não concederemos que semelhante múltiplo seja o Uno, ou
até compostos de Unos/Uns. Será portanto,
inevitavelmente, múltiplo de nada” (CT, p. 32). Assim, o
elemento aceita a terminologia de von Neumann: um
Norman R. Madarasz
197
elemento é vazio (porém, não o conjunto vazio). O múltiplo
se dá de duas formas (respeitando o princípio do terceiro
excluído): de forma consistente ou inconsistente (EE,
Meditação 1). A noção de inconsistente não supõe uma
originalidade do operador da negação, pois o múltiplo está
definido como vazio, múltiplo de nada. Badiou defende
concretamente que o efeito de criar conjuntos usando os
parênteses {} inicia a “conta-por-um” (EE, p. 32). Quando
se reagrupam os múltiplos, passamos ao domínio de uma
representação em que o princípio de identidade é necessário
pela coerência da teoria. Eis a diferença entre a ontologia,
como a-histórica e imanente aos discursos constitutivos da
filosofia, e a teoria dos conjuntos, como uma nova produção
de verdades no âmbito do discurso científico. A tese de
Badiou situa, de forma não dessemelhante à postulação de
Newton da Costa e Bueno sobre lógicas não reflexivas, um
sistema matemático em que a propriedade de não idêntico a
si não leva à contradição fundamental, especificamente no
sentido em que as lógicas não reflexivas “levantam questões
filosóficas complexas sobre a possibilidade de quantificar
objetos sem pressupor sua identidade” (Costa & Bueno,
2012). Não há nada “misterioso” na afirmação de um
múltiplo irredutível à unidade, como alegam Nirenberg e
Nirenberg (2011), mas apenas uma atribuição: ao elemento,
a propriedade de ser uma multiplicidade integralmente, e ao
acontecimento, a propriedade de ser não idêntico a si.
Resultado: O múltiplo, não a unidade, apresenta a noção de
elemento do universo conjuntístico.
TRANSFORMAÇÃO 2
UNIVERSO
‘Uma das maiores dúvidas sobre a filosofia de Badiou é
entender por que o conceito de Ser deve se fundamentar
numa ontologia cujas regras dedutivas seguem uma lógica
clássica. Na medida em que o projeto de Badiou é uma
198
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
análise da mudança radical no domínio do ser, uma lógica
clássica parece determinar as circunstâncias da sua
ocorrência. Porém, os princípios do universo conjuntístico
no sistema, ou na ontologia de Badiou, são relativamente não
ortodoxos. O significado de “elemento” é a primeira
transformação, mas também é o caráter indiscernível do
universo, no que diz respeito a sua abertura ou seu
fechamento. Seu fundamento é verificado pela possibilidade
de construir um conjunto genérico. Badiou levanta este
conceito do método de forcing, de Paul Cohen, num
desdobramento literal no contexto da ontologia, a partir da
independência da Hipótese do Contínuo no que se refere aos
axiomas da teoria dos conjuntos. Um conjunto genérico não
tem propriedades distinguíveis que podem ser vistas no
tempo presente, isto é, por dentro da situação ontológica.
Porém, pelo forçamento, o genérico aceita propriedades
nominais que são, no máximo, subconjuntos ou partes, cuja
possibilidade depende das condições em que, e pelas quais,
a ontológica se infere. A lógica é dedutiva, sim, embora
integre operações à margem dessa lógica, tal como o
silogismo hipotético.
Gödel mostrou que a Hipótese do Contínuo era
verdadeira até o menor infinito. Pelo método do forcing e pela
construção do conjunto genérico comprova-se que a
Hipótese do Contínuo não é falsa. Esses teoremas,
juntamente com o paradoxo de Cantor (de que a Classe
universal é simultaneamente menor e maior do que o
conjunto das suas partes), levam a uma conclusão mais
abrangente: o absolutamente Outro não é. Badiou eliminará
a tese de Cantor, segundo a qual o universo seria fechado
por um absoluto.
Resultado: O universo dos conjuntos é clássico, mas
indecidível quanto ao seu tamanho e limite.
Norman R. Madarasz
199
TRANSFORMAÇÃO 3
ONTOLOGIA
Os campos de intervenção filosófica não são
estáveis. Por isso, é legítimo arriscar a caracterização desses
campos como intrincados e extensos a uma teoria do sujeito.
É trivial que a teoria cartesiana do sujeito determina as
condições de articulação de sua metafísica, tal como as
determinam em Wittgenstein. Toda ontologia (inclusive a
metafísica) reconhece uma barra separatória entre esferas do
ser, mesmo que nem todas reconheçam uma diferença
radical de natureza e forma entre essas esferas. O termo
“ontologia” designa a ciência do ser enquanto ser, um
domínio plano, sem forma nem temporalidade. É um
domínio da inscrição e da consistência. “A universalidade
real é matemática, e é a lógica que é o seu servente, ao passo
que toda localização, portanto toda eficácia lógica efetiva,
supõe a doação prévia, ou inteligível, ‘daquilo’ que é
localizado (uma multiplicidade). De forma que é a
matemática que pensa a generalidade do ‘há’, e a lógica que
pensa os registros possíveis do particular, a saber, a
localização do múltiplo” (CM, p. 32). Ademais, a tese de
Badiou sobre ontologia não é uma tese histórica. Em vez
disso, defende uma continuidade entre as categorias da
ontologia antiga para com os axiomas da teoria dos
conjuntos. Badiou salienta que se trata não de um discurso
científico, mas de um domínio estruturante e independente
do discurso enquanto tal. Pela integração imanente do seu
referencial, o domínio do ser é independente da história.
Resultado: A tese ontológica de Badiou organiza um
universo mais abrangente que o da filosofia analítica, porque
inclui os descobrimentos fundamentais de Heidegger sobre
ontologia fundamental a ponto de secularizá-los.
200
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
TRANSFORMAÇÃO 4
LINGUAGEM
A ontologia de Badiou é platonista (MP2, p. 35), o
que implica que a matemática não seja concebida como
linguagem. A matemática não depende para existir, ou seja,
para ser, da existência das mentes humanas. Ela é atribuída
com uma existência real de um logos autônomo de qualquer
lógica de invenção. A consequência de rejeitar a virada
linguística deveria influir sobre o formalismo, ou reorientar
o formalismo para uma ontologia. Dessa forma, o
formalismo deve atribuir à relação entre a mente humana e
a matemática uma “intuição”, afirmada matematicamente
por Gödel, tal como por Cantor (CT, p. 98). Conquanto não
seja uma tese radical em princípio, ao defender que a
matemática não é uma linguagem, supõe uma dimensão
especulativa da qual muitos matemáticos preferem se afastar.
Se o simbolismo e a grafia da matemática, seja na teoria dos
conjuntos ou na topologia, se reduzem a uma linguagem ou
não, afirmar a beleza à qual a matemática tem acesso é como
defender uma tese platônica sobre a essência do universo. A
beleza é a que a matemática, tal como a física, inscreve
literalmente, e essa beleza é algo que a intuição
especificamente matemática atualizaria da mesma forma,
pela univocidade do real, pois a verdade é sempre a mesma
para todos. Em outras palavras, a verdade não decorre de
uma negociação, ou de um contexto argumentativo. Pela
estrutura da regra de inferência dedutiva (EE, Meditação 24),
a universalidade da verdade de uma conclusão é
independente daquilo que realizar a inferência. Por isso,
Badiou enfatizará que “a relação entre a matemática e a
lógica não é mais aquela do particular ao universal, mas da
univocidade do real (singularidade de uma universalidade, ou
de uma verdade) e da equivocidade do possível (abstração
das formas de ser-aí)” (CM, p. 33). A verdade não é única
nem absoluta, apenas a mesma para todos no âmbito singular
Norman R. Madarasz
201
da dedução. A pluralidade é da ordem contextual dos
mundos de ser-aí, não da verdade, pois até o conceito de
conjunto genérico está desprovido de linguagem, mas não de
verdade.
A conjectura de Badiou diverge de maneira
expressiva da concepção ontológica da lógica, encontrada,
por exemplo, na tese de Oswaldo Chateaubriand. A posição
de Chateaubriand é a de que a lógica tem uma ontologia, isto
é, a lógica não tem como referência a gramática, mas formula
diretamente as “leis da verdade”. Segundo Chateaubriand,
“supondo o tipo de categorização da realidade que Frege
usou, e que ainda subjaz à prática lógica padrão, a Lógica
trata de objetos, propriedades (conceitos) de objetos,
relações entre objetos, propriedades de propriedades de
objetos, relações entre propriedades de objetos e objetos etc.
Isto é, tem-se uma hierarquia de níveis começando com
objetos (nível 0), continuando com propriedades e relações
desses objetos (nível 1) e assim por diante indefinidamente”
(Chateaubriand, 2006:253).
Portanto, o que Frege conseguiu mostrar é a conexão
entre as leis da lógica e as verdades lógicas. Além disso,
comprova que a “gramática não é uma fonte de verdade
lógica – porque ela não é uma fonte de verdade” (Ibid., p.
254). De maneira semelhante a Badiou, Chateaubriand
defende a tese segundo a qual a lógica não está determinada
pela linguagem. Afasta-se, desse modo, de um logicismo, em
que a matemática é reduzida à lógica. Igualmente crítica da
redução feita por Quine da lógica à linguagem, ou à
gramática, Chateaubriand defende, a partir de Frege, que
“Lógica
é
Filosofia
estudada
e
desenvolvida
matematicamente” (Ibid., p. 257). Mesmo assim,
Chateaubriand incluiu no âmbito da Lógica apenas a ciência
e a epistemologia, tratadas de modo metafísico, mas sem
incluir uma posição de sujeito ou de subjetivação na equação.
Nas suas declarações mais categóricas, Badiou
elimina tanto a epistemologia quanto a “lógica matemática”
202
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
como discurso autônomo. Ele apresenta a epistemologia
como sutura da filosofia, com a condição científica de
produção de verdades, que, conforme a teoria filosófica
sobre as “condições” da filosofia, não são filosóficas. Por
outro lado, Badiou está longe de ser o único a excluir a
“lógica matemática”: Wittgenstein já a acusava, porém por
razões pouco compreensíveis, de deformar o pensamento
dos filósofos (Wittgenstein, 2011:48, IV). O que
Wittgenstein entende pela lógica matemática corresponde
apenas parcialmente ao que Badiou denomina ontologia, na
medida em que o referente da ontologia em Badiou é o
referente da lógica matemática, a saber, o projeto do
fundamento das matemáticas desenvolvido por Russell por
meio da teoria dos conjuntos. Embora Wittgenstein
considere que a lógica matemática forneça um esquema
transcendental a priori da experiência (Mendonça, 1991),
Badiou salienta dois aspetos não ortodoxos no que diz
respeito à lógica matemática, isto é, que a ontologia trata
apenas da produção de verdades na qual a verdade é nova, e
que a ontologia não tem uma relação com o aparecer. Outra
maneira de afirmar que a ontologia não integra o
transcendental do aparecer, ou que o transcendental é
irredutível à ontologia.
A noção de existência será submetida a dois regimes
irredutíveis, que não são fundamentalmente contrários aos
níveis fregeanos, mesmo que sejam, em princípio, limitados
a dois, salvo a própria existência do acontecimento. Isto é,
uma existência em subtração e uma aporia em relação a
como situá-la. O acontecimento não é pensável dentro da
ontologia. Na teoria dos conjuntos (ou seja, na ontologia), o
Axioma do Fundamento comprova a existência de apenas
um conjunto, em que uma parte representa uma
singularidade composta da propriedade C, em que C não
pode ser ao mesmo tempo um elemento e uma parte de um
conjunto maior A. Uma leitura deste axioma permite inferir
Norman R. Madarasz
203
que, se C for um subconjunto de A, não pode ter um
elemento de B elemento de A.
Em outras palavras, o Axioma do Fundamento define um
elemento não idêntico a si. O não idêntico a si é nada mais
que a definição do acontecimento em Badiou. Portanto, o
acontecimento não é da ordem da matemática (da ontologia);
a filosofia não se reduz à ontologia; e a ontologia não se
reduz à lógica, pois os objetos da matemática têm um
cardinalidade superior aos da lógica – mesmo ao admitir que
a lógica tem objetos em comum com a matemática.
Dessa perspectiva, a tese segundo a qual a lógica teria
uma ontologia e que as leis da lógica são as leis da verdade é
consequente a estender o teorema de completude de Gödel,
de 1929, ao seu resultado sobre a Hipótese do Contínuo, em
que a hipótese é verdadeira até o “menor” infinito que é
maior que o da série dos números naturais. Ou seja, aplicar
o cálculo proposicional de primeira ordem aos conjuntos
construtíveis pressupõe a delimitação do contínuo ao menor
infinito. O argumento de Gödel é reforçado pela integração
do teorema Skolem-Lowenstein, segundo o qual qualquer
sistema com um número infinito de modelos tem também
um modelo de cardinalidade contável. Mas a tese de Badiou
se justifica pelo teorema sobre a independência da Hipótese
do Contínuo e a proliferação plausível de conjuntos não
construtíveis pelo método do forçamento (EE, Meditação
36). Deve-se admitir, então, que não existe identidade entre
os dois usos de “ontologia”, de Chateaubriand e Badiou,
mesmo ao se considerar – como faz Chateaubriand – que a
natureza da metalinguagem de Frege não é uma gramática.
Toda a diferença se encontra na noção de “lei”: o conjunto
genérico, tal como Badiou o considera, não é protocolado
pela força legisladora da lógica, mas pela prodigalidade
extralegal do ser enquanto ser.
204
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
Resultado: A matemática não é gramática nem linguagem,
mas também não é subsumida à lógica.
TRANSFORMAÇÃO 5
AXIOMA DA ESCOLHA
Descartados os paradoxos de Cantor e de Russell
(pelo Axioma da Separação), o Axioma do Fundamento
indica uma exterioridade virtual do universo conjuntístico,
mesmo que formulado apenas pelo limite que uma aporia,
ou um múltiplo inconsistente, apresenta para a ontologia.
Dessa forma, o fundamento é a condição necessária para
permitir que um uso mais intensivo seja feito do Axioma da
Escolha, especificamente no que diz respeito à determinação
aleatória que ele proporciona na composição de um novo
conjunto.
Além de ser uma ferramenta de uso comum na
matemática, o Axioma de Escolha é implicado pela Hipótese
do Continuo, isto é a prescrição do conjunto genérico. O
Axioma da Escolha envolve a construção de um conjunto
não vazio bem-ordenado a partir da “escolha” de um
representante de cada elemento de um conjunto não vazio
inicial. Na versão simplificada usada por Badiou:
existe uma função f tal que, se é o conjunto dado, e
se pertence a , então f ( ) pertence a . [EE, 248-9].
A transformação que Badiou opera sobre esse
axioma procede mediante uma leitura literal de suas
implicações. Um aspecto importante desse axioma é que sua
aplicação é coerente, mesmo que o axioma não possa ser
demonstrado. De fato, Paul Cohen mostrou que tanto o
Axioma da Escolha quanto a Hipótese do Contínuo são
independentes referente aos axiomas de Zermelo-Fraenkel.
Na leitura de Badiou, diferentemente da que fizeram
Fraenkel e Bar-Hillel, que consideram o axioma como tendo
Norman R. Madarasz
205
um “caráter puramente existencial”, o axioma é qualificado
de “ilegal” e “anônimo”. Ilegal, no sentido que não há como
legitimar sua validade por meio de uma demonstração.
Anônimo, no sentido de estar frente a um conjunto cujos
objetos não são completamente discerníveis.
Badiou aposta sobre o caráter excepcional do axioma
por situar um ponto subjetivo cuja funcionalidade é a de
marcar a participação em derivar outras verdades, isto é,
teoremas conforme os axiomas da teoria dos conjuntos, ou
não. Tal como no universo conjuntístico, a escolha é apenas
“subjetiva” quando não segue no processo da derivação de
outros teoremas. Trata-se de um ponto de subjetividade no
que diz respeito à arbitrariedade do ato criativo pelo qual os
elementos específicos do subconjunto estão escolhidos. Por
isso, Badiou ressaltará a “hipótese que [...] o Axioma da
Escolha formaliza na ontologia os predicados da
intervenção” (EE, 251). Por intervenção, temos que
entender decisão latente para distribuir uma verdade numa
superfície infinita, conforme a verificação do valor
verdadeiro do acontecimento. Não se trata da denominação
de um acontecimento, ou seja, o verdadeiro ato subjetivo na
ontologia. Ao invés, implique a comprovação da necessidade
para se manter fiel às condições inicias e aos axiomas sobre
os quais a teoria é dependente para que o subconjuntosujeito novo possa se realizar como conjunto-genérico. Em
termos heurísticos, o Axioma de Escolha encapsula o ato
pelo qual se analisa a relação entre aquilo que decorre do
acontecimento e a criação de uma nova perspectiva subjetiva
sobre as potencialidades do ser-no-mundo.
O que a potência “intervencionista” do axioma de
escolha não representa de maneira alguma no sistema de
Badiou, como alegam Nirenberg e Nirenberg (2011:596), é a
“liberdade”. A intervenção força a convergência do ponto
arbitrário com a necessidade derivativa da ontologia. De
acordo com Badiou, “o axioma da escolha é um axioma que
trata do infinito, porque não há problema para o Axioma da
206
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
Escolha no finito. Na realidade, a forma do axioma trata com
o infinito. Isso consiste em dizer que, dado um múltiplo
infinito de uma multiplicidade infinita ou finita, poder-se-ia
encontrar ou capturar um múltiplo composto por um
elemento de cada uma destas multiplicidades. Portanto,
pode-se decidir ou não [escolher o elemento no novo
conjunto]” (Badiou & Tho:2007). Nesta definição do
axioma, evidencia-se a diversidade do múltiplo, ou seja, sua
infinitude. Porém, a consequência de aceitar o Axioma da
Escolha é atribuir ao universo a seguinte estrutura
fundamental: que sua “lógica” seja clássica.
Nessa perspectiva sobre a relação entre Um/Uno e
múltiplo, enxergue uma decisão filosófica, a saber, a
organização da relação entre Um e múltiplo pressupõe um
espaço sem sujeito, se e somente se o sujeito for identificado
como indivíduo incorporado ou como coletividade formada.
Se este sujeito for cartesiano em sua estrutura, isto é, se ela
for o que “self” denota nos princípios e nas teses
constitutivas da filosofia analítica, ele é consciente. Ora, C.
S. Peirce argumenta que o sujeito não é cartesiano, porque
um elemento estrutural da representação do sujeito com o
mundo está ausente em Descartes. Esse elemento
fundamental é a dimensão do “intérprete” na sua semiologia.
Ora, o intérprete é uma posição subjetiva formal, sem
conteúdo, e sem consciência. Esta tese não defende uma
redução, haja vista que o indivíduo com identidade singular
acaba com a determinação formal dessa estrutura, operando
assim uma redução. A posição de Badiou já participa da
tradição estruturalista, em que o “sujeito individual” é
submetido a uma crítica radical das condições históricas,
psicológicas, semânticas e políticas nas quais foi constituído
conceitualmente. O foco do “sujeito”, então, aceita uma
expressão formal, retraída de pretensões a priori de livre
escolha e de consciência plena de si. Ou seja, o caráter da
figura do sujeito ilegal e anônimo em Badiou participa
Norman R. Madarasz
207
também da multiplicidade genérica, cuja criação é o resultado
do Axioma da Escolha e da técnica de forçamento.
Ao contrário, o conceito de “pensamento” em Frege
não é anticartesiano, mas permite entender que à dimensão
puramente objetiva, pela qual o espaço lógico é constituído,
falta uma forma que explicite a formação e a seleção de
múltiplos consistentes. (Até Leibniz postulou que a mônada
simples, sem exterioridade, tem uma dimensão apetitiva
mínima.) Frege intensifica o dualismo cartesiano pela
redução analógica entre da matemática à semântica. Desta
forma, a genealogia do formalismo de Badiou se coloca em
paralelo à linha indo de Frege a Russell e de Wittgenstein a
Carnap. A dele é composta por Cantor, Cavaillès, Lautman
e o estruturalismo. Ora, o estruturalismo realizou as
primeiras teses formais pós-cartesianas em dois momentos:
primeiro como formalização epistemológica das ciências
humanas, e segundo pela determinação de um corte
epistemológico abrindo numa perspectiva pós-humanista.
Nas primeiras intuições, em Lévi-Strauss (1964), Foucault
(1966), Althusser (1966), a tese de processos sem sujeito foi
alvo de especulação. Badiou argumenta a partir de uma
perspectiva pós-cartesiana segundo a qual o sujeito é um
conjunto com cardinalidade expansiva, mas sem corpo
biológico. No que diz respeito à lógica, no argumento sobre
a multiplicidade de mundos possíveis em que sujeitos são
incorporados e podem se tornar objetos, a posição formal
do sujeito se identifica pelo conceito intuicionista de grau de
aparecimento, mas já não mais se limitando a uma figura
intervencionista do sujeito da verdade. O sujeito se pluraliza
conforma às condições de possibilidades que se definem,
também formalmente, pela álgebra de Heyting, em que se
articula o sentido de um “transcendental imanente a um
mundo” (LM, Livros I e II; MP2, p. 150-151).
Resultado: No sistema de Badiou, a filosofia não é reduzida
à ontologia, pois a filosofia organiza a relação entre a
ontologia e sua discernibilidade por meio de uma teoria do
208
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
sujeito pós-cartesiano, referenciada a uma ordem do
discurso produtor de multiplicidades, correlato do Axioma
da Escolha.
TRANSFORMAÇÃO 6
CANTOR
O nome próprio “Georg Cantor” denomina o início
da tese segundo a qual a ontologia é a matemática. No que
diz respeito à conjuntura da filosofia francesa nos anos 1980,
Badiou tem razão em considerar que se trata do grande
esquecido na narrativa nietzschiana e heideggeriana sobre a
finitude radical do Dasein e a morte de Deus. Dessa forma,
Cantor ocupa não apenas uma posição fundamental no que
se refere à crítica “ontoteológica” sobre o Absoluto, mas
desarma o vínculo teológico entre o Uno e o infinito. O
transfinito participa de secularizar tanto a filosofia quanto a
ontologia, isto é, a matemática.
Ao inserir Cantor na trama da ontologia
heideggeriana, Badiou terá um efeito sobre a narrativa do
desenvolvimento da lógica moderna. Neste sentido, não é
um cavaleiro solitário. Existia na França, nos anos 1960, uma
verdadeira retomada do logicismo que acompanhou o
estruturalismo, cujo objetivo era fornecer não a
metalinguagem da matemática, mas sim uma linguagem de
dimensão sistêmica. Nesta dimensão, os modelos e as
relações entre composições sociais se mostraram
independentes da consciência e da vontade da figura do
“homem”.
Costuma-se estabelecer a genealogia da lógica
moderna, e cada vez mais da fenomenologia, com o trabalho
de Gottlob Frege. Esta linhagem se tornou a história
vernácula da filosofia, tal qual apresentada pela filosofia
analítica. Nessa medida, não está desprovida de fundamento.
Frege iniciou de maneira mais avançada a tradução da
aritmética numa linguagem simbólica, a Begrifftschrift, por
Norman R. Madarasz
209
um lado. Por outro lado, estabeleceu os argumentos
fundamentais de uma nova teoria da referência e do sentido,
vinculada ao valor de verdade de uma proposição. Frege
ainda estabelece de maneira definitiva a tese do
“contextualismo”, em que palavras (ou “termos”) adquirem
seu significado no contexto de uma proposição. Nesse
sentido, ao pensarmos, antes de Kripke, numa definição
autônoma e específica dos substantivos (exceção deve ser
feita aqui dos termos que Aristóteles chamava “singulares”,
ou que chamamos “nomes próprios”), estaríamos numa
epistemologia “pré-fregeana”. Além disso, Frege será o
primeiro grande matemático a iniciar a série de números
naturais com o zero, operando, assim, após a adoção dos
chifres árabes, a convergência entre a aritmética grega e
árabe.
Badiou reconhece a importância de Frege. No período de
seus trabalhos iniciais sobre a “lógica matemática”, ele
aborda com relutância a maneira em que o zero era definido
na heurística. Trabalhando na linha de reflexão
epistemológica de Louis Althusser, aberta na França por
Alexandre Koyré, um dos objetivos da reflexão filosófica
sobre lógica matemática era firmar uma teoria de modelos
que romperia tanto com o empirismo quanto com o
platonismo. Aí entra o ponto determinante na sequência do
formalismo francês, isto é, o papel do grupo de
pesquisadores trabalhando em torno do psicanalista Jacques
Lacan e a publicação do periódico Cahiers pour l’analyse,
pois a tese da referência do símbolo do zero é vinculada à
categoria psicocognitiva da falta (MMPZ, p. 151-173). Para
Badiou, considerar a ausência apenas como falta revela a
dinâmica de uma lógica da dominação, mesmo que seja a do
capital, para esmagar a força de transformação radical, criada
de certa forma pela própria dominação. Por meio das
categorias lacanianas, a geração “estruturalista” de
epistemólogos franceses levantou a suspeição sobre a
participação da lógica em manter um status quo cognitivo
210
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
em que a ciência exerce um papel de manutenção da boa
ordem da racionalidade.
Portanto, o zero significa menos o que falta, que
afirma o modo “por-vir” (recursivamente engendrado, tal
como nos números naturais) da “não existência”. Aí
encontramos a diferença entre o pensamento de Georg
Cantor e o de Frege. Cantor introduz um novo “objeto
matemático”, o Mannigfaltigkeit, embutido num “paraíso”
sem corpo, alma, finito ou infinito. Em vez de reduzir a
matemática ao artifício da linguagem – para qualquer sentido
de “símbolo” que quisermos dar –, Cantor descobriu um
objeto irredutível ao número, ou seja, à “conta”. Para
Badiou, Cantor efetua o que a filosofia apenas imaginou
quando pondera sobre qualias (fenomenologia),
“subsistência” (Meinong) ou o invisível. De uma perspectiva
filosófica, Cantor realizou o projeto filosófico de uma
ontologia não representacional, e apontou a possibilidade de
articular uma ontologia do múltiplo sem Um/Uno.
Resultado: No sistema de Badiou, a genealogia da lógica é
parcialmente divergente daquela proposta pela filosofia
analítica.
TRANSFORMAÇÃO 7
INTUICIONISMO
A doutrina iniciada por L.E.J. Brouwer constituiu
mais uma revolução na matemática. Suas duas contribuições
mais importantes para a filosofia e a lógica são a
demonstração de um sistema que funciona apesar da
ausência do princípio do terceiro excluído e a teoria de que
a origem dos objetos da matemática é a mente humana.
Badiou reconhecerá a coerência do intuicionismo não para a
ontologia, mas para a fenomenologia, isto é, para a ciência
do ente enquanto ente, para a ciência da existência, que,
naturalmente, deve acompanhar a ontologia, se for a sua
ambição aumentar e aperfeiçoar o sistema. Até a matemática
Norman R. Madarasz
211
precisa de corpo. O reconhecimento não passa sem imporlhe uma restrição fundamental: o intuicionismo será
destituído do âmbito da matemática. A tese afirmada por
Badiou é a seguinte: ao contrário da teoria dos conjuntos, o
intuicionismo, especialmente a álgebra de Heyting, legifere o
domínio do aparecer. O aparecer é definido nos termos mais
triviais: o sistema é do múltiplo, mas a dimensão da
existência trata das aparições dos múltiplos em mundos, ou
em localizações específicas, numa pluralidade de possíveis
modos de ser-aí. A álgebra de Heyting é alocada com um
papel regulador e recebe o nome próprio de
“transcendental” T. O conceito T regula o campo de
incorporação num mundo m a partir de uma base formalista:
o que Badiou denomina a “Grande Lógica” (LM, Livros II e
IV). O conceito T governa uma relação de ordem, definida
em terminologia conjuntística, que determina os graus
possíveis do aparecer. A relação de ordem é transitiva,
reflexiva e assimétrica, e os quatro teoremas de base
determinam o contexto intensivo de aparecimento de corpos
e objetos (LM, p. 618; MP2, p. 150-151).
Portanto, o conceito de transcendental é o divisor de
águas no sistema de Badiou, sendo que T regula como se
fosse um limite interno das possibilidades do aparecer, pois
é um subconjunto de um mundo. Desta forma, é irredutível
à ontologia. De acordo com Badiou, “esta estrutura é,
portanto, tão fundamental em filosofia quanto aquela dos
conjuntos. De fato, ela tem o mesmo papel para a lógica do
aparecer quanto à axiomática dos conjuntos para a ontologia
das multiplicidades” (MP2, p. 150, nota 8). Talvez essa
distribuição de domínios não corresponda à visão de
Brouwer no que se refere à potência fundadora do
intuicionismo, mas não muda nada no que diz respeito ao
que ele defendia literalmente. Brouwer desqualificava o
realismo, Badiou atribui ao intuicionismo o domínio que
dele foi reivindicado.
212
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
Numa perspectiva filosófica, a coerência do sistema
logo tem um efeito sobre a teoria da verdade. Até o advento
do intuicionismo, o formalismo filosófico não considerava
os meios-termos entre verdade e falsidade como
pertencentes ao domínio do inteligível. O intuicionismo fará
com que uma opinião ou uma ficção participe de forma mais
estrita da razão, de modo que o vínculo da verdade com o
absoluto passa a ser a extensão de apenas uma teoria de
verdade possível, não de todas. Os modelos de prova e
demonstração do intuicionismo terão um impacto grande,
na segunda metade do século XX, sobre o crescente discurso
axiológico da ética, em que análises de casos envolvem a
necessidade de flexibilizar uma lógica que já é essencialmente
indutiva.
Assim, decorrendo dessa relativização da categoria da
verdade, no que se refere a sua função como valor de
verdade, o intuicionismo vai ainda mais longe ao abraçar um
nominalismo radical sobre os objetos matemáticos. Estes
objetos não existem de modo independente da mente do
sujeito intuicionista, sendo que o intuicionismo implica o
contrário da estratégia fundacionalista da teoria dos
conjuntos, cuja “ontologia”, para citar esta palavra no seu
uso na filosofia analítica, é realista.
Haja vista a centralidade ontológica alocada por
Badiou ao conceito de sujeito, comentadores de sua obra
(Fraser, 2006; Badiou & Tho, 2007) defendem que a
ontologia deveria ser intuicionista em vez de platonista. Ora,
em 1948, Brouwer apresenta o conceito de “sujeito criador”,
a posição filosófica segundo a qual a origem da matemática
é a mente, e implica também que a matemática não é uma
linguagem, pois a linguagem pressuporia a matemática, e não
o inverso. Na visão de Brouwer, é fundamental que a
matemática seja uma pura intuição do tempo (interior). A
interioridade desse sujeito submete a verificação de uma
proposição à experiência, único caso em que pode ser
determinada como falsa. Assim, poder-se-ia defender que
Norman R. Madarasz
213
Brouwer atribuísse um espaço excessivamente importante à
filosofia sobre a matemática.
Apesar do seu platonismo, Badiou não rompe nem
desqualifica Brouwer. Mais uma vez, Badiou executa o que
segue necessariamente de uma decisão ontológica, mas
reconhece que a decisão em si não atesta necessidade, a não
ser a existência de algo necessário na ordem do ser, enquanto
ser que força a inscrição do surgimento do radicalmente
novo nela. Ademais, existe uma recusa constante em Badiou
em reduzir a filosofia à matemática e, por conseguinte, a
matemática à filosofia. A tese de Badiou mantém separadas
as duas áreas.
Levando-se em consideração o agrupamento
consequente feito por Badiou das lógicas não clássicas na
ordem fenomenal das verdades incorporadas, poder-se-ia
perguntar: será que esta solução é satisfatória? Longe de ser
um ato arbitrário, Badiou demonstra a tese segundo a qual
as lógicas expressam pelo menos o domínio do aparecer. Já
uma associação da fenomenologia com o aparecimento será
uma simples repetição do platonismo mais banal. O
interessante no gesto de Badiou não é isso, pois ele visa à
fundamentação do aparecer, não do aparecimento. Mesmo
assim, um problema mais grave surge, e tem a ver com o
conceito de verdade. Será que o conceito de verdade é o
mesmo entre a ontologia e a fenomenologia? Quando
começamos a indagar de maneira mais rigorosa a questão,
reaparecem alguns velhos fantasmas. Não seria o caso de
Badiou estar meramente relocando o conflito entre realismo
(ou platonismo) e “construtivismos” (intuicionismo ou
antirrealismo)? Como Michael Dummet questiona: se uma
pessoa aceita que uma boa demonstração (de um teorema,
por exemplo) é aquela cujos critérios de verificação existem
independentemente dos nossos, será que deve aceitar a
“imagem platonista da matemática”? Para ele, a resposta é
não: “[A pessoa] pode bem aceitar a objetividade da
demonstração matemática sem dever acreditar também na
214
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
objetividade da verdade matemática” (Dummett, 1959:87).
Assim, voltamos à convicção de Chateaubriand: existem
plausivelmente “leis lógicas”, e uma discussão filosófica
interna à lógica pode, pela tradição, se remeter a uma
ontologia. Porém, Badiou se inscreve também na tradição
romântica alemã, em que se separa o ser do existir. Desta
perspectiva, o conteúdo da proposta de Heidegger cumpre
as condições de assertabilidade necessárias para entender a
imagem, a “intuição”, pela qual encontramos os objetos
matemáticos.
Resultado: O intuicionismo fornece ao formalismo um
pensamento centrado no sujeito criador, já constituído.
Portanto, o intuicionismo se situa numa fenomenologia
existencial das verdades, e não na ontologia stricto sensu.
TRANSFORMAÇÃO 8
NÚMERO
A base dos conjuntos serve para que Badiou se situe
aquém da aplicação da aritmética na imensa versatilidade
contábil e computacional que conhecemos e, no caso, para
servir a outros fins além de incorporar o Capital. “Quem
pode duvidar de que o número reine e que o imperativo é
‘Conte’?” (Badiou, 1998b). Portanto, o desafio de definir o
número está envolvido num ato de separá-lo de suas
aplicações contáveis. Demonstra também o compromisso
realista de Badiou com o ser do número com dimensão
independente dele. Mas a afiliação com Cantor em vez de
com Frege é esclarecida pela limitação da fórmula geral
avançada por este último: “o número que pertence ao
conceito F”.
No que diz respeito às necessidades da decisão
ontológica que Badiou realiza, o “conceito” de Frege deixa
de abordar a mais ambiciosa consequência da nova
fundamentação operada sobre os números, que é a de que
não devem se passar pela pressuposição de outros números.
Norman R. Madarasz
215
Afirmar a solidez do modo cantoriano para definir um
número significa estabelecer (i) um novo objeto matemático
que não se reduz necessariamente à unidade, nem
consequentemente à totalidade; (ii) um novo pensamento da
“intuição” para pensar o real do número. Em outras
palavras, essa combinação apresentada por Cantor livra a
filosofia da necessária afiliação com a virada linguística, que
decorre das pesquisas de Frege. Porém, Frege merece não
ser despedido brutalmente, pois a definição que fornece de
“identidade” – “que a identidade é a relação existente entre
objetos, denotados por termos singulares” – sugere que
encontramos dentro a forma do contexto proposicional,
entidades sem identidade. De acordo com Kim (2013), tais
objetos podem ser justamente números cardinais. Não
obstante esse gesto de caridade com Frege e a tradição que
iniciou, na esteira da filosofia pós-fenomenológica, o
conjunto, tal como Cantor o concebeu, corresponde a uma
coisa não idêntica a si que escapa também da unidade.
Na abordagem da numeração que Badiou realiza
existe uma operação fundamental que os filósofos pareciam
negligenciar, pelo menos no âmbito da filosofia francesa
contemporânea. Trata-se do conflito, por assim dizer, entre
os nominalismos. O estruturalismo francês extirpou e
integrou o conceito heideggeriano de Ereignis, de
“acontecimento-apropriador”,
como
condição
de
possibilidade para que a categoria de identidade pudesse se
formar. Para realizar essa retração da identidade, sem
pressupô-la, havia necessidade de pensar por meio de outra
categoria mais fundamental. Mesmo que as ambições por
trás da realização de Heidegger implicassem uma
reestruturação da teologia, a noção de acontecimento abriu
caminho para encerrar a ontoteologia por meio de um
nominalismo de uma abrangência inusitada para além da
substância. A ontologia fundamental de Heidegger acarretou
num realismo restrito, porque se recusou a pressupor as
216
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
categorias da metafísica. Porém, Heidegger não levou a
mesma reflexão ao número.
A crítica do número, e especificamente do número
inteiro, justamente desencadeia uma ontologização do
contínuo, na medida em que o número inteiro demonstra
uma força para reduzir o infinito à unidade. Portanto, a
crítica da unidade, do “Um/Uno”, tem um efeito de vê-la
como uma redução nominalista da cardinalidade à
ordinalidade, e o conjunto como uma composição de
unidades nominativas das multiplicidades. Ao mesmo
tempo, o conceito da entidade “número” não pode ser
reduzido aos números naturais. Todo o esforço de Badiou,
referente à ontologia e às discussões sobre a matemática,
como uma das ciências enquanto condição da filosofia, é
mostrar o que denomina a própria multiplicidade neste
conceito. “O Número é uma forma do ser-múltiplo. [...] É
um gesto no ser. Antes de qualquer objetividade, antes de
qualquer apresentação ligada e na eternidade desligada do
seu ser, o Número abre-se ao pensamento enquanto recorte
formal na estabilidade máxima do múltiplo. É cifrado pelo
emparelhamento desta estabilidade, com o resultado o mais
das vezes impredicável do gesto” (Badiou, 1998b:146-147).
O macrocorpo dos Números é uma imagem, talvez a melhor
possível, do universo. A definição deste macrocorpo é (a, X),
em que X é uma parte do ordinal x, ou ainda X é um
subconjunto de a.
Resultado: O universo é povoado de números, cuja essência
comum é a multiplicidade.
TRANSFORMAÇÃO 9
SINGULARIDADE
Entre O Ser e o Acontecimento (EE) e Logiques des mondes
(LM), a categoria de acontecimento sofrerá uma
transformação expressiva, veiculada pelo conceito de
singularidade. Em O Ser e o Acontecimento, o evento
Norman R. Madarasz
217
apresenta o conceito não idêntico a si como “fundamento”
do gesto de pensar, que efetua um corte na multiplicidade
infinita do universo como intervenção subjetiva sobre a
matéria. Já vimos como Badiou articula essa exterioridade
por meio do paradoxo “isolado” da impossibilidade que um
elemento de um conjunto faça referência a ele-mesmo como
objeto que lhe pertence. Apenas um subconjunto ou um
conjunto pode se enumerar numa autorreferência entre seus
subconjuntos.
Em Logiques des mondes, o acontecimento já vem
designando quatro tipos de surgimento de subjetividades, ou
seja, quatro tipos gerais de mundos em relação ao conceito
de base, o transcendental T. A singularidade age aqui na
forma de um conceito de surgimento. Ela organiza,
portanto, a terceira tese sobre o Universal em Badiou,
segundo a qual “todo universal se origina de um evento, e o
evento é intransitivo às particularidades da situação” (OTU,
tese 3). A singularidade vem denominar mais
especificamente a gama segundo a qual a transformação
surgirá na forma de um mundo. Ela varia entre singularidade
“fraca”, em que um ponto de inexistência se torna existente,
mas apenas numa intensidade mínima para se destacar, e, ao
contrário, uma singularidade forte, que designa o evento
quando se manifesta como grau máximo de transformação
da inexistência em existência. No caso da singularidade forte,
trata-se do evento.
Resultado: A singularidade refere-se a um escopo de
condições de aparecimento de entidades existenciais.
TRANSFORMAÇÃO 10
TEORIA DAS CATEGORIAS
Em [1989] Badiou podia muito bem afirmar que a
orientação geral da sua filosofia era a do sistema, mas, apenas
com a tese sobre a ontologia e sua imanência às quatro
condições, estava longe de realizar essa promessa. O
218
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
momento da verdade do sistema virá de maneira provisória
em [1998] e completa em [2006]. Os termos e as conjecturas
de Badiou dizem respeito à ontologia, e receberam a
aprovação do filósofo das matemáticas, Jean-Toussaint
Desanti [1990]. Mas Desanti levantará a questão: e que tal as
teorias rivais sobre a fundamentação da matemática,
especialmente a teoria das categorias?
Se a teoria das categorias virá a ser uma teoria dos
fundamentos da matemática, é uma questão que ainda não
chegou a um consenso, principalmente porque as definições
de base pressupõem a existência de conjuntos. A teoria das
categorias é teoria geral da estrutura e da relação entre
grupos. Marquis afirma (2010) que a “definição mesma de
uma categoria não é sem importância filosófica, pois uma das
objeções à teoria das categorias como um fundacional é a
afirmação que, como categorias são definidas como
conjuntos, a teoria das categorias não pode fornecer uma
fundamentação esclarecida pela matemática”. A teoria das
categorias se distingue da dos conjuntos a partir do princípio
inicial de o que seriam suas definições. Como indicam
historiadores da teoria, a noção de categoria surgiu para
definir o conceito de “transformações naturais”, isto é,
surgiu para entender melhor a noção de relação entre
estruturas. A teoria dos conjuntos se focaliza mais na questão
de saber o que é uma estrutura e o que são os “objetos”
matemáticos. A teoria das categorias visa entender como
funcionam as estruturas matemáticas. Por meio desta
apresentação, o “problema” de Badiou já está parcialmente
resolvido: nem tem uma pretensão geral na teoria das
categorias de ocupar o espaço dos conjuntos, nem sugere
que aquele espaço continua sendo visto como necessário ao
entendimento, ou ainda menos à operação, da matemática.
A diferença fundamental entre conjuntos e
categorias é o modo em que um “objeto” é definido. Na
teoria dos conjuntos, um elemento x que pertence a um
conjunto y estabelece um princípio unitário sem definir o
Norman R. Madarasz
219
conteúdo específico de um elemento como tendo
minimamente a propriedade de fazer parte de tal conjunto.
Desta forma, um conjunto sempre tem uma identidade
intrínseca em função do elemento que lhe pertence, ou o
conjunto é vazio. Já vimos que na ontologia de Badiou a
estrutura do conjunto-múltiplo tem um significado
específico para um processo de subjetivação, fundamentado
pelo Axioma da Escolha, mediante a deslocação da figura do
Um/Uno. A teoria dos conjuntos passa especificamente a
fundamentar uma teoria da produção de verdades
compossíveis no espaço imanente das quatro condições, no
que diz respeito a como verdades que respondam a um
acontecimento fazem parte da definição de uma nova
subjetividade, cuja chance para reverter a normalidade em
algo que busca o ideal necessita, para manter a sua
fundamentação, de uma figura da multiplicidade
radicalmente nova.
A lógica categorial examinará a natureza dos espaços
em que a figura de novas subjetividades pode se articular. A
relação entre lógica e matemática, então, é complexa, não
obstante, a resposta fornecida por Badiou respeita a
distribuição escrupulosa de definições e localizações. Existe
uma separação irredutível, mas uma codependência, entre o
domínio da ontologia e a fenomeno[lógica]. A relação entre
lógica e matemática segue a transformação de seus
componentes ao passo de ser, ela mesma, transformada.
Visto a atenção metodológica para atrelar a dimensão escrita
da álgebra com a exposição visual da geometria, e visto a
abrangência fundacional da teoria dos topoi de A.
Grothendieck, Badiou é levado a postular que a teoria das
categorias exerce um efeito retroativo sobre o intuicionismo,
isto é, ela o fundamenta. Nesta medida, o intuicionismo é
afastado da matemática, na medida em que executa a tese
segundo a qual as verdades são sempre em mundos
objetivos, pois a teoria gradativa da verdade sempre se
determina a partir de um confronto com instâncias empíricas
220
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
de avaliação. Em outras palavras, o intuicionismo é sempre
uma lógica fenomenal, o que o interesse de H. Weyl para a
fenomenologia apenas confirma.
O que é necessário perceber na distribuição dos
domínios que Badiou desenvolve é que o surgimento do
sujeito e a produção da verdade pertencem à ontologia,
enquanto as regras que legiferam sobre os objetos, corpos e
mundos pertencem à fenomenologia. O conceito de
categoria é nada antes da organização, isto é, sua
“composição” de pontos-objetos e as flechas (ou
morfismos) determinam as suas propriedades. Uma
composição se expressa como diagrama e como equação
algébrica.
Desta forma, resumidamente, uma categoria:
apresenta-se em exterioridade até formar “composições”
e “diagramas” maiores;
vem definir a noção de functor e transformação natural;
define a identidade dos objetos numa composição sem
pressupor a noção;
presta-se a uma representação;
em composições mais complexas responde a lógicas não
clássicas;
define abstratamente a noção de grupo e de espaço
topológico, mas numa projeção em que o empírico não é
barrado por definição;
permite, além de respeitar a transversalidade, a identidade
e a comutatividade, demonstrar sua “dualidade”, isto é,
manifesta fenômenos de dinâmica não irreversível.
Norman R. Madarasz
221
A teoria das categorias fornece as principais demonstrações
desenvolvidas na “Grande Lógica”, em Lógicas dos
Mundos, em que as noções de mundo, objeto e relação entre
objetos são apresentadas com novas definições. O que
interessa a Badiou especialmente na Grande Lógica é
articular uma fenomenologia “calculada”, em que o aparecer,
como resultado de atos intencionais, é entendido como
inscrito nas induções lógicas que operam “sem sujeito”. Ao
contrário da ontologia, que examina as decisões de
pensamento de um porte muito geral, a lógica rastreia as
“consecuções” de quatro tipos de transformação,
formalizando-as e exemplificando-as.
Resultado: As lógicas ditas não clássicas articulam a criação
de mundos específicos à fenomenologia das verdades.
TRANSFORMAÇÃO 11
O CONJUNTO GENÉRICO
O conjunto genérico resulta de uma derivação
técnica tão complicada que seu uso fora deste âmbito levanta
suspeição entre lógicos cuja formação, em princípio,
considera a lógica como o âmbito da clareza. Porém, proibir
o uso de um conceito da lógica em outros contextos, ou
alegar que esse conceito lógico é demasiado complexo para
ser entendido apenas por recursos heurísticos, indicará uma
falha considerável no compromisso da lógica, que é o de
buscar na maior simplicidade expositora o que podem
parecer os enigmas de certo universo. No seu mais
complexo, então, o conceito de conjunto genérico é
articulado por Paul Cohen numa indagação sobre a Hipótese
do Contínuo. Gödel demonstrou que a hipótese era
decidível, pois era demonstrável, no que diz respeito ao
menor número transfinito maior que a série de números
naturais. A questão que sobrava era saber se não existiam
outros números maiores desse infinito e menores do infinito
dos reais. Cohen conseguiu provar que a questão é
222
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
indecidível, e que a Hipótese do Contínuo é independente
dos axiomas da teoria do conjunto. A maneira com que
provou foi pela articulação de um conjunto genérico,
decorrendo da articulação do método de forçagem (forcing).
Por qualquer modelo de base e por qualquer conjunto P de
condições de forçagem em M, um conjunto genérico G
existe.
Este conjunto apresenta características de interesse
para qualquer especulação quanto à indeterminação de uma
entidade anônima físico-cognitiva. Em primeiro lugar, g é
um conjunto cujo conteúdo não é concebível a partir do
momento presente, mas que deve responder a critérios
estritos se a afirmação quanto a sua existência puder ser
racionalmente aceitável. Este raciocínio demonstra
semelhanças com o Axioma da Escolha. Para uma
proposição A na linguagem de forçagem, se todas as
condições podem ser estendidas até uma condição que C’,
então uma condição C no conjunto genérico G força A,
sendo que A é verdadeiro no modelo de G recursivamente
(Jech, 2008:693). Uma primeira observação é a seguinte: o
critério da verificabilidade de A é assegurado, mesmo que
existam apenas em G traços indecidíveis que poderiam vir a
ser compostos e organizados, tal como a própria Hipótese
do Contínuo. Isto leva à segunda observação: apesar de
atestar um caráter não real, o todo não vale em G, isto é,
certas proposições nos conjuntos de G poderiam ser
provadas como excluídas de G. Para formalizar em termos
gerais: cada conjunto parcialmente ordenado P pode ser
considerado o conjunto das condições de forçamento, e
quando G subconjunto de P é um conjunto genérico, então
o modelo M[G] representa a versão ZF da teoria dos
conjuntos (aquela que está sendo usada neste artigo) “com
C”, isto é, com reconhecimento do Axioma da Escolha.
No mínimo, a aplicação do método de forçamento e
a inclusão da noção de conjunto genérico significam que não
é o caso de que tudo possa valer na criação de circunstâncias
Norman R. Madarasz
223
bem-ordenadas, nas quais a proliferação de infinitos de
tamanhos múltiplos possa, teoricamente, ser imaginada.
Badiou não busca aplicar Cohen para fazer bonitinho ou
impressionar. E se G for uma expressão abstrata de
liberdade, então não é nada mais eufórica nesse sentido que
o imperativo categórico.
Contra as divagações do pós-modernismo, Badiou
necessitou de um conceito de disciplina e exclusão de
possibilidades. Na ótica da ontologia imanente às práticas
discursivas, são genéricos apenas aqueles conjuntos que
verificam a perpetuação autocriadora de um processo de
produção de verdades, o que é a marca de uma subjetividade
revolucionária em qualquer contexto que desejamos
representar. É curioso que, na aplicação do conceito de
novidade à área da técnica e da informática, não cansam de
comemorar a potência da matemática e da lógica, mas,
quando surge uma tentativa para salientar sua dimensão
revolucionária para uma filosofia política, nem como
filosofia seus detratores querem admiti-la (Nirenberg e
Nirenberg, 2011).
Principalmente por essa razão, num gesto de
precaução, Badiou avança um sentido duplo em que o
forçamento se interpreta na ontologia. Um sentido positivo:
o forçamento prevê, estruturalmente, a restrição da
dimensão genérica e expansiva da verdade subjetivada em
criação. Mas o sentido negativo nitidamente reconhece uma
maior tentação, no que diz respeito às condições empíricas e
históricas de novas formações subjetivas: decretar o fim do
processo, eliminar o jogo ardiloso pelo qual a nova
subjetividade é encaminhada a sua realização na história.
Por isso, o conjunto apenas é, e sua verdade é altamente
especulativa, pois nada está decidido antes de ser levado pela
correnteza da luta histórica.
Resultado: A constelação de operadores matemáticos
introduzidos por Paul Cohen acaba coincidindo com os
224
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
projetos filosóficos de transformação radical dos estados de
situação em que a verdade se torna ora a função do sentido,
ora o contrário da criação.
INFERÊNCIA: A POTÊNCIA REVOLUCIONÁRIA
DO
SUJEITO
GENÉRICO
É
INSCRITA
MATEMATICAMENTE, EM VARIAÇÕES QUE
PODEM SER VERIFICADAS POR MEIO DE
FENOMENOLÓGICAS.
Badiou orquestrou, por meio da tese que identifica ontologia
e matemática, uma reconstrução do materialismo por meio
da crítica imanente da categoria de “objetividade”, numa
desobjetivação para emancipar as formas múltiplas de uma
nova teoria do sujeito. O que decorre dessa posição são duas
vantagens específicas para a filosofia: (i) o afastamento da
ideia da ciência para com uma naturalização cujo modelo
deixa a dimensão interpretativa ocultada; e (ii) a configuração
da relação entre ciência e ontologia, em que o potencial da
filosofia se mostra truncado ao não incluir também a arte, a
política e o amor. O custo dessa rearticulação, em que a
filosofia rende-se mediante a independência das práticas
discursivas que são suas condições compossíveis de
existência, é a eliminação das designações “filosofia da
ciência” e “epistemologia”.
Desta forma, o projeto de Badiou representa a
prolongação do estruturalismo, retomando o projeto
fundacional dos anos 1960 antes do acontecimento de maiojunho de 1968. Seu projeto recapitula também as linhas
diversas do pós-estruturalismo, cujas finalidades são a
negociação entre a dualidade imprescindível das posições e
dos conceitos fundamentais da filosofia ocidental e a
convergência rumo à transcendência desta arquitetura.
Porém, é uma negociação sem concessão, pois o objetivo
principal é impedir que se instale a reversibilidade pregada
do infinito afastado da unicidade e da multiplicidade
Norman R. Madarasz
225
suspensa à redução à unidade. Neste sentido, não há como
continuar com conceitos de liberdade, que fingem ser
possível ignorar as estruturas e precondições da existência.
Não que estas sejam deterministas em natureza, uma
afirmação tão forte não é necessária. É suficiente salientar
apenas que, nas condições atuais de racionalidade social, a
liberdade é tão restrita que deixa a impressão de ser
indesejada. Não se pode olvidar que, da filosofia de Badiou,
poder-se-ia inferir que, de modo geral, o caminho da
pesquisa científica à frente se atualiza cada vez mais pelo
aprofundamento do que se deve entender como um
subjetivismo materialista, cuja fundamentação depende de
uma relação de submissão da lógica à matemática, e não o
contrário.
Seja como for, a revolução científica não é da ordem
da ontologia, mas de uma prática discursiva condicionante
da filosofia. Além de ser independente da filosofia, a ciência
é um discurso irredutível ao da arte, da política e do amor.
Se ela se relaciona estruturalmente com os outros discursos,
numa relação de compossibilidade, e se torna uma condição
pelo surgimento histórico da filosofia, não é pelo discurso
ou pelas verdades produzidas em si, mas pela constituição
diacrônica, em comum com as outras condições, de um local
subjetivo distinto, heterogêneo, mas isomorfo. A
matemática fundamenta o argumento sobre a estrutura deste
conjunto comum, o G autorreferencial; a lógica fundamenta
as variabilidades às quais as formas subjetivas são submetidas
quando encontram seus mundos. Uma relação sem
dependência, porém, sem separação. Em outros contextos,
Badiou diria que se trata de uma relação de amor.
BIBLIOGRAFIA
Antti Veilahti. Alain Badiou's Mistake --- Two Postulates of
Dialectic Materialism. Math arXiv:1301.1203v22013, 2013.
226
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
Aristóteles. Metafísica. Trad. G. Reale. São Paulo: Loyola,
2002
Badiou, Alain. Marque et manque: à propos du zéro.
[MMPZ] Cahiers pour l’analyse, n. 10, Inverno, pp. 151-173,
1969.
_______. Le Concept de modèle. [CM] Paris: Fayard
Ouvertures, 1969/2007.
_______. L’Être et l’événement. [EE] Paris: Éditions du
Seuil, 1988. [Trad. Brasileira: O ser e o evento.]
_______. Manifeste pour la philosophie. [MP] Paris:
Éditions du Seuil, 1989. [Trad. Brasileira: Manifesto pela
filosofia.]
_______. L’Entretien de Bruxelles. Les Temps modernes, n.
526, mai 1990.
_______. Conditions. [C] Paris: Éditions du Seuil, 1992.
_______. L’éthique. Essai sur la conscience du mal. [E]
Paris: Hatier, 1993. [Trad. Brasileira: Ética. Ensaio sobre a
consciência do mal.]
_______. Para uma nova teoria do sujeito. [PNTS] Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
_______. Abrégé de métapolitique. [AM] Paris: Éditions du
Seuil, 1998a. [Trad. Brasileira: Compêndio de metapolítica.]
_______. Court traité d’ontologie transitoire. [CT] Paris:
Éditions du Seuil, 1998b. [Trad. Brasileira: Breve tratado de
ontologia transitória.]
Norman R. Madarasz
227
_______. Conferências de Alain Badiou no Brasil. [CB] Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
_______. Le Siècle. [S] Paris : Éditions du Seuil, 2005. [Trad.
Brasileira: O século. Trad. Carlos Felício de Silveira. São
Paulo: Editora Ideias e Letras, 2007.]
_______. Logiques des mondes. L’Etre et l’événement 2.
[LM] Paris: Éditions du Seuil, 2006a.
_______. Mathematics and Philosophy. In: S. Duffy (ed.).
Virtual Mathematics. The Logic of Difference. Manchester,
UK: Clinamen Press, pp. 12-29, 2006b.
_______. Oito Teses sobre o Universal. [OTU] In: Revista
Ethica. Cadernos acadêmicos. Trad. N. Madarasz. vol. 15
(2), pp. 41-50, 2008.
_______. Second Manifeste pour la philosophie. [MP2]
Paris: Fayard/Ouvertures, 2009.
_______. Le Fini et l’infini. Paris: Bayard, 2010.
_______. L’Aventure de la philosophie
contemporaine. Paris: Ed. De la Fabrique, 2012.
française
_______. 2011. Wittgenstein’s Antiphilosophy. Translated and
with an introduction by B. Bosteels. New York: Verso.
_______. 2013. “Sistema de Sistema”, In: Veritas, vol. 58,
no. 2. Maio-agosto 2013, pp. 218-225. (Trad. V. Nicola
Labrea).
_______. 2014. Mathematics of the Transcendental. Edited,
translated and with an introduction by A. J. Bartlett and A.
Ling. New York: Bloomsbury.
228
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
_______; Tho, Tzuchien. New Horizons in Mathematics as
a Philosophical Condition. Parrhesia. Translated with an
introduction by Tzuchien Tho, n. 3, pp. 1-11, 2007.
Benaceraff, P.; Putnam, H. (ed.). Philosophy of
Mathematics: Selected Readings. Londres: Cambridge
University Press, 1983.
Cantor, G. Fondements d’une théorie générale des
ensembles. (trad. colletive). Cahiers pour l’analyse, 10, pp.
35-52, 1969.
Cantor, G. Gesammelte Abhandlungen, Berlim: SpringerVerlag, 1932.
Chateaubriand, Oswaldo. Lógica e Ontologia. In: Bonaccini,
J. A. et al. (org.). Metafísica, história e problemas. Atas do I
Colóquio Internacional de Metafísica. Natal: UFRN, 2006.
pp. 247-261.
Cohen, P. Set theory and the continuum hypothesis. Nova
York: Benjamin, 1966.
Costa, Newton C. A. da. Conhecimento científico. São
Paulo: Discurso Editorial, 1999.
Desanti, J.-T. Quelques remarques à propôs de l’ontologie
intrinsèque d’Alain Badiou. Les Temps modernes, n. 526,
pp. 61-71, mai 1990.
Dummett, M. Wittgenstein’s Philosophy of Mathematics.
Philosophical Review, n. LXVIII, 1959.
Duffy, S. (ed.). Virtual Mathematics. The Logic of
Difference. Manchester, UK: Clinamen Press, 2006.
Norman R. Madarasz
229
Fraser, Z. The Law of the Subject: Alain Badiou, Luitzen
Brouwer and the Kripkean Analyses of Forcing and the
Heyting Calculus. Cosmos and History: The Journal of
Natural and Social Philosophy, vol. 2, n. 1-2, 2006.
Gödel, K. The consistency of the axiom of choice and the
generalized continuum hypothesis. Proceedings of the
National Academy of Sciences (U.S.A.), 24, pp. 556–557,
1938.
Grattan-Guinness, I. The Search for Mathematical Roots
(1870-1940). Logics, Set Theories and Foundation of
Mathematics from Cantor to through Russell and Gödel.
Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000.
Jech, T. What is Forcing? Notices of the AMS, vol. 55, n. 6,
pp. 692-693, Junho-Julho 2008.
Jurdant, Baudoin (org.). Impostures cientifiques : les
malentendus de l’affaire Sokal. Paris: Éd. La
Découverte/Alliage, 1998.
Kim, J. What are Numbers? Synthese, n. 190, pp. 1099-1112,
2013.
Livingston, P. The Politics of Logic. Londres: Routledge,
2011.
Madarasz, N. On Alain Badiou’s Treatment of a Transitory
Ontology. In: Gabriel Riera (ed.). Badiou: Philosophy and its
Conditions. Albany, NY: State University of New York
Press, 2005.
Madarasz, N. O Múltiplo sem Um. Uma apresentação do sistema de
Alain Badiou. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2011.
230
Uma genealogia não tão distinta: a “lógica matemática”
vista a partir do sistema filosófico de Alain Badiou
Marquis, Jean-Pierre. Category Theory. In: Edward N.
The
Stanford
Encyclopedia
of
Zalta (ed.).
Philosophy (Edição
Primavera
2011). <http://plato.stanford.edu/archives/spr2011/entrie
s/category-theory/>.
Mendonça, W. Wittgenstein e os números. O que nos faz
pensar, n. 4, abril, pp. 7-36, 1991.
McLarty, Colin. “The uses and abuses of the history of topos
theory”, British Journal for the Philosophy of Science, 41
(1990) 351–75.
________. “The Last Mathematician from Hilbert’s
Gottingen: Saunders ¨ Mac Lane as Philosopher of
Mathematics”, in British Journal of Philosophy of Science. 58(1),
1997, pp. 77-112.
________. Book review: Alain Badiou, Mathematics of the
Transcendental, A. J. Bartlett and Alex Ling (trs.),
Bloomsbury,
2014,
in Notre
Dame
Philosophical
Reviews. 09.31.2014. < http://ndpr.nd.edu/news/50591mathematics-of-the-transcendental/> (Acessado: 7 de
outubro de 2014.)
Costa, Newton A. C.; Bueno, Otávio. Lógicas não reflexivas.
Cosmos e Contexto, n. 7, 2012.
Nirenberg, Ricardo L.; Nirenberg, David. Badiou’s
Numbers: A Critique of Mathematics as Ontology. In:
Critical Inquiry 37 (Verão 2011), pp. 583-614, 2011.
Platão. Parmênides. Trad. Maura Iglesias. São Paulo: Editora
Loyola, 2003.
Norman R. Madarasz
231
Priest, G. An Introduction to Non-classical Logics. Londres:
Cambridge University Press, 2001.
Salanskis, J.-M. Philosophie des mathématiques. Paris: J.
Vrin, 2008.
Silva, Jairo José da Silva. Filosofias da matemática. São
Paulo: Editora UNESP, 2007.
Van Heijenoort, J. (ed.). From Frege to Gödel. Cambridge,
Mass.: Harvard, 1967.
Wittgenstein, L. Remarques sur les fondements de la
mathématique. Trad. de l’allemand (Royaume-Uni)
par Marie-Anne Lescourret. Édition de Gertrude Elizabeth
Margaret Anscombe, Rush Rhees et Georg Henrik von
Wright. Paris : Gallimard/Tel, 2011.
Deliberação Coletiva
232
Deliberação Coletiva
Felipe de Matos Müller
PUCRS/Brasil
matos.muller@pucrs.br
1. Introdução
Existe uma ampla variedade de considerações
epistemológicas no debate contemporâneo sobre a
democracia. Meu ponto de partida serão os processos
democráticos deliberativos, baseado em um diálogo
cooperativo. Afinal, o diálogo cooperativo, dentro do
cenário democrático, visaria a promover uma base
epistemológica para os processos de tomada de decisão
democráticos. O meu propósito neste artigo é mostrar que
deliberação coletiva pode ter valor epistêmico instrumental.
Idealmente, a democracia requer que todos os
cidadãos participem na tomada de decisões governamentais,
direta ou indiretamente. David Stlund (2008) comenta que
“[n]a vida real, o valor da democracia dificilmente pode ser
separado do valor da livre discussão pública (...). Isso não
quer dizer que a discussão ou a votação sempre foram
inspiradoras, mas a democracia é pensada para ser
inseparável do debate político público.” É fato que muitas
Felipe de Matos Müller
233
instituições, tanto públicas quanto privadas, recorrem a
processos deliberativos coletivos para tomarem suas
decisões. Deliberação coletiva parece ser algo desejável
dentro do cenário democrático. Mas por que tais instituições
recorrem a ela? Uma resposta comum é que a deliberação
coletiva é prima facie mais eficiente que deliberação individual.
2. Deliberação coletiva: vantagens
De acordo com Cass Sunstein (2011), se deliberação
coletiva é prima facie mais eficiente que deliberação individual,
então isso se deve a algumas razões. Primeira, “os grupos são
equivalentes aos seus melhores membros”; segunda, “grupos
podem agregar mais informações que qualquer membro
individualmente”; terceira, “os grupos deliberativos podem
fazer melhor que a maioria de seus membros
individualmente sem deliberação”, e quarta, “a prática
articulada de divulgar e considerar informações em um
grupo funciona como um filtro” eficiente.
A primeira razão trata da qualificação intelectual dos
membros do grupo, a segunda razão trata da quantidade de
informações que podem ser consideradas, a terceira e a
quarta, tratam da qualificação do processo coletivo.
A primeira razão pode ser compreendida da seguinte
forma: a conclusão de um processo deliberativo coletivo, no
caso de um grupo, p. ex., equivaleria à conclusão do processo
deliberativo de pelo menos um dos mais qualificados
membros do grupo. A autoridade intelectual do grupo,
portanto, seria proporcional à autoridade intelectual dos seus
membros mais qualificados. Mas, e os membros do grupo
menos qualificados não influenciariam a conclusão do
grupo? Se a resposta for “não”, então, neste caso, a eficácia
do processo deliberativo coletivo é semelhante à eficácia de
um processo deliberativo individual. A autoridade intelectual
individual é projetada no grupo. Em outras palavras, a
autoridade intelectual coletiva nada mais é do que um reflexo
234
Deliberação Coletiva
da autoridade intelectual individual. Por outro lado, se a
resposta for “sim, os membros do grupo menos qualificados
influenciam a conclusão do grupo”, então Sunstein precisa
responder como os membros intelectualmente menos
qualificados não diminuem ou anulam a autoridade
intelectual dos outros. Ele oferece duas razões, a saber, (a)
os membros mais qualificados, que sabem que fizeram a
escolha correta, podem persuadir os membros menos
qualificados deste fato; e (b) os membros intelectualmente
mais qualificados, dentro do processo deliberativo, podem
ser fonte de conhecimento para aqueles membros que se
encontram na ignorância e, até mesmo, ser capazes de
corrigir inferências defeituosas ou posições ingênuas
(concebidas sem exame crítico). No entanto, essas
considerações ganham força apenas no caso de haver
membros intelectualmente qualificados para tratar a questão
em pauta. Se os melhores membros do grupo tendem ao
equivoco, ao erro e à ignorância, e se a posição do grupo
reflete a posição dos seus melhores membros, então a
posição do grupo tenderá ao equivoco, ao erro e à
ignorância. Mas neste caso, o processo deliberativo coletivo
em nada parece ser melhor que os processos deliberativos
individuais. Portanto, o que parece qualificar
substantivamente o processo deliberativo coletivo é a
presença de membros com alguma autoridade intelectual 1
sobre o assunto em pauta.
A segunda razão pode ser compreendida da seguinte
forma: processos deliberativos coletivos podem agregar mais
informações, proporcionando uma maior quantidade de
conhecimento, que qualquer processo deliberativo
Richard Foley (2001) distingue dois tipos de autoridade intelectual: (1)
Autoridade Fundamental: concede-se autoridade fundamental a alguém
quando a sua opinião é deferida pelo simples fato de ser a sua opinião,
sem qualquer razão adicional; e (2) Autoridade Derivada: concede-se
autoridade derivada a alguém quando a sua opinião é deferida, em virtude
da aceitação das razões que foram oferecidas em favor dela.
1
Felipe de Matos Müller
235
individual reuniria. Considere um grupo com três membros
(S1, S2 e S3), em que apenas dois deles possuem
conhecimento relevante para a pauta em questão. Suponha
que um deles (S1) sabe que “os desabrigados estão recebendo
o auxílio devido” e outro (S2) sabe que “se os desabrigados
estão recebendo o auxílio/benefício devido, então os
recursos do governo para os desabrigados já estão
disponíveis” (se P, então Q). Se ambos (S1e S2) divulgarem o
que sabem e todos os três membros considerarem e
inferirem (validamente) que “os recursos do governo para os
desabrigados já estão disponíveis” (Q), a partir do
conhecimento divulgado, então todos os três membros (S1,
S2 e S3) podem adquirir o conhecimento de que “Q” (“os
recursos do governo para os desabrigados já estão
disponíveis”). Considere que um deles (S3) não possuía
qualquer conhecimento relevante para a questão, mas por
meio do processo de divulgação lhe foi possibilitado adquirir
um item de conhecimento que nenhum dos membros
anteriormente possuía. Agora, o grupo (ou cada um dos seus
membros) pode saber que Q, conhecimento que nenhum
membro individualmente possuía antes do processo de
divulgação. Talvez não fosse possível saber que “Q” senão
fosse por meio de um processo deliberativo coletivo.
Grupos podem ter alguma vantagem sobre indivíduos, do
ponto de vista deliberativo. Grupos podem ser instrumentos
privilegiados para aquisição de conhecimento sobre alguns
assuntos.
A terceira razão pode ser compreendida da seguinte
forma: o empreendimento deliberativo coletivo amplia os
benefícios da regra da maioria. Mas qual é o benefício em
questão? Além de a opinião assumida ser do interesse da
maioria dos envolvidos, ela pode ser verdadeira e relevante.
Note que a interação comunicativa coordenada entre os
membros de um grupo em vista de um bem comum pode
maximizar não só o que é mais interessante para os
envolvidos, mas, sobretudo, a relevância e probabilidade da
236
Deliberação Coletiva
verdade da opinião. Todavia, se a interação entre os
membros do grupo tiver várias motivações, não visando a
um bem comum, então o benefício em questão será
improvável.
A quarta razão pode ser compreendida da seguinte
forma: um processo eficiente de divulgação e consideração
de informações em um grupo funciona como um filtro, que
permite evitar a aquisição de informações falsas e
irrelevantes, e permite adquirir informações verdadeiras e
relevantes. Mas como funcionaria tal filtro? Ele poderia
funcionar a partir de três referenciais: (a) autoridade
intelectual, (b) coerência, e (c) experiências anteriores. No
primeiro caso, aquele que goza de autoridade intelectual
entre os membros do grupo pode fazer o escrutínio das
opiniões que estão dentro do seu universo de domínio. No
segundo caso, opiniões que diminuam o grau de coerência
do argumento devem ser evitadas. No terceiro caso, opiniões
que neguem a experiência dos membros sobre o assunto
devem ser afastadas. As várias instituições utilizam uma
combinação entre estes três referenciais.
3. Deliberação coletiva: má influência
Entretanto, ainda que a interação intelectual e
discursiva entre os cidadãos favoreça idealmente os
processos deliberativos coletivos, isso na prática nem
sempre ocorre. Então, quais são as causas das falhas nos
processos deliberativos coletivos?
Cass Sunstein (2011) aponta várias fontes de falhas
nos processos deliberativos coletivos. Eu gostaria de abordar
apenas uma delas, o silêncio, que pode ser motivado ou (a)
por influências informacionais, ou (b) por pressões sociais.
Felipe de Matos Müller
237
3.1. Silêncio motivado por influências informacionais
Sunstein aponta que “a exposição às opiniões dos
outros pode levar as pessoas a silenciar-se”. Alguns fatores
podem motivar esse tipo de atitude.
Quando a maioria dos membros do grupo mantém
uma opinião diferente, pessoas tendem a silenciarem-se. O
aparente (talvez real) desacordo inicial pode servir de razão
para as pessoas não divulgarem as suas opiniões. As pessoas
tendem a ser afetadas pelo número de pessoas que mantém
uma opinião, independente se elas têm algum mérito
intelectual sobre a questão. As pessoas tendem a querer não
ser as únicas dissidentes. A grande maioria vai impor mais
pressão social do que um pequeno número. “As pressões da
maioria podem ser poderosas até mesmo sobre questões
factuais que algumas pessoas sabem a resposta correta. (...) a
verdade desempenha um papel menor que o da maioria. A
maioria é influente mesmo quando está errada.”
(SUNSTEIN, 2011, p. 319.). Assim, se a maioria dos
membros do grupo além de ter a mesma opinião,
compartilham muitos pressupostos sobre a questão, então
há razões para acreditar que a sua opinião é verdadeira; e isso
pode superar a razão que um membro do grupo mantém em
privado para acreditar que ela é falsa.
Quando há no grupo pessoas com autoridade
reconhecida no assunto, pessoas tendem a silenciarem-se. Se
o grupo contém pessoas que são reconhecidas como
autoridades, então os demais membros do grupo tendem a
deferir a elas a sua posição.
3.2.
Silêncio motivado por pressões sociais
Quando há temor por algum tipo de censura, pessoas
tendem a silenciarem-se. Seu silêncio pode não derivar da
crença de que eles estão errados, mas do risco de sanções
sociais de vários tipos (p. ex.: exclusão do grupo;
Deliberação Coletiva
238
desaprovação e desrespeito por desafiar a posição
dominante). “As pessoas com menos status (analfabetos,
indígenas, mulheres, afrodescendentes) no grupo falam
menos e têm menor influência que os seus pares com maior
status. A consequência pode ser a perda de informação
relevante” (SUNSTEN, 2011, p. 318.). Os envolvidos no
processo deliberativo podem contribuir proporcionalmente
aos benefícios e custos individuais, e não proporcionalmente
ao conhecimento que possuem. Quando as declarações dos
outros, durante a interação comunicativa sugere que a
informação que ainda é privada pode ser desinteressante,
irrelevante ou falsa, o custo/benefício de divulgar tal
informação pesa. Neste caso, o membro do grupo tem
razões para acreditar que a divulgação não vai gerar
benefícios pessoais ou coletivos. Não basta que os
participantes sejam sinceros e tenham igual direito de
comunicação. O silêncio danoso pode acontecer.
3.3.
Silêncio versus Diversidade
Todavia, ainda cabe a pergunta. Por que o silêncio
pode ser uma fonte de falha nos processos deliberativos
coletivos? Porque o silêncio pode impedir a manifestação da
diversidade. Para que um processo deliberativo possa ter um
desempenho excelente, ele deve ter um começo excelente.
Um elemento fundamental que deve constar no ponto de
partida de um processo deliberativo coletivo é a diversidade
de opiniões e perspectivas.
De acordo com Robert E. Goodin (2006), a
triangulação, isto é, a consulta a outras fontes, é uma
estratégia para diminuir posições viciadas e/ou tendenciosas.
Podemos aprender muito com o relato de vários
observadores competentes, independentes e imparciais. A
triangulação é um mecanismo que requer uma diversidade de
observadores com perspectivas e influências diferentes. Faz-
Felipe de Matos Müller
239
se necessário, no entanto, que todos os observadores
compartilhem as mesmas normas epistêmicas fundamentais.
Em qualquer caso, o processo deliberativo coletivo
deve ser dinâmico, isto é deve permitir a alteração de
posições no decorrer do processo. Para tanto, o processo
não pode ser fechado, com alternativas já estabelecidas, mas
com alternativas iniciais, que poderão ser descartadas ou
complementadas durante o processo.
Para Richard Bradley (2006), a diversidade de
opinião gera ao mesmo tempo problemas e oportunidades.
A diversidade de torna mais difícil chegar ao consenso em
questões importantes, por outro lado, permite aos indivíduos
aperfeiçoar suas opiniões. Um desafio que costuma aparecer
neste cenário é o conflito entre a racionalidade individual e a
coletiva. As diferenças de opinião (ou desacordo) podem
impedir um grupo de tomar uma decisão. Diante de duas
posições com igual peso parece ser racional suspender o
juízo. As diferenças podem derivar do acesso a diferentes
informações ou ao exercício diferente de capacidades de
julgamento.
Embora, em tese a democracia favoreça a
diversidade, para James Bohman (2006), na prática, isso não
se mostra tão fácil, sobretudo em como fazê-lo. Boas
práticas deliberativas, no cenário democrático institucional,
são aquelas que promovem não somente um conjunto de
razões, mas também a disponibilidade de diferentes
perspectivas, beneficiando todos os deliberadores, inclusive
os menos eficazes.
É preciso considerar que a diversidade social e
cultural que observamos se manifesta coletiva e
individualmente nas manifestações cotidianas das crenças e
desejos das pessoas. As opiniões mantidas pelos indivíduos
e pelos mais variados grupos são alavancadas pelos
processos educacionais que visam a promover a inserção na
sociedade.
Deliberação Coletiva
240
4.
Deliberação coletiva e pacto intelectual
Em um cenário democrático, no qual não há uma
paridade presumida (quanto a certas habilidades intelectuais
e a ser bem informado sobre a questão em pauta) entre os
cidadãos, o processo deliberativo pode iniciar visando à
configuração do problema decisório e posteriormente visar
à tomada de decisão acerca das alternativas estabelecidas.
Deliberar conjuntamente sobre como configurar o problema
poderá ser um meio eficaz para eliminar aparentes
desacordos, se os participantes do processo divulgarem
claramente o quanto puderem os seus pressupostos e pontos
de vista. A consideração atenta e cuidadosa dos
comprometimentos de cada um pode não somente revelar
as divergências, mas também as convergências, promovendo
o consenso acerca de alguns pressupostos.
4.1.
Boa influência
Se o silêncio pode ser uma fonte de falha nos
processos deliberativos coletivos por impedir a manifestação
da diversidade intelectual, então a divulgação das opiniões,
conhecimentos e perspectivas dos membros do grupo seria
uma estratégia prioritária para garantir a diversidade
intelectual. Cada membro deveria, então, contribuir com o
grupo em proporção ao seu patrimônio intelectual. Nem
sempre haveria paridade entre os membros do grupo. Alguns
poderiam ser mais inteligentes e outros mais informados.
Outros ainda poderiam ser mais cuidadosos ao considerarem
a possível relação entre as posições em questão. Em todo
caso, a diversidade de condições deve ser vista como um
indicador da saúde intelectual do grupo. Tudo o que é exigido de
cada um é corresponder proporcionalmente ao seu
patrimônio intelectual (capacidades e informações). A
promoção do conhecimento comum poderia ajudar os
grupos a resolverem problemas gerados pela diversidade.
Felipe de Matos Müller
241
Para tanto, as informações relevantes deveriam ser
disponibilizadas e acessadas apropriadamente pelos
membros do grupo.
Os processos deliberativos seriam alimentados por
divergências, mas o seu valor intelectual dependeria de como
os participantes responderiam aos outros em situação de
desacordo (Cf. PETER, 2012.). Neste caso, a conjugação das
relações de pertença e responsabilidade recíprocas e o
reconhecimento da identidade e da unidade do corpo social
deveriam ser suficientes para motivar uma atitude de
cooperação e comprometimento dos integrantes com o
processo, dissolvendo aparentes divergências e identificando
perspectivas variadas.
Não se pode ignorar, também, os vários fatores
intelectuais que originam falhas nos processos deliberativos
de grupos (Cf. SUNSTEIN, 2011.), p. ex. a amplificação de
erros cognitivos. É sabido que indivíduos nem sempre
processam bem a informação. Por isso não bastaria que o
grupo tivesse um padrão de racionalidade aceitável. É
necessário que os membros do grupo tenham
individualmente um desempenho suficientemente aceitável.
O processo deliberativo demandará que haja algum tipo de
interação entre os indivíduos. Por isso poderá haver algum
tipo de deferência em relação a outro membro do grupo. A
confiança seria um pressuposto para a concessão de
autoridade intelectual nestes casos. Qualquer membro do
grupo teria permissão para confiar nas declarações dos
outros, a menos que tivesse alguma razão para pensar que as
declarações não fossem proporcionais a competência
intelectual de quem as declara.
4.2. Grupos deliberativos
Grupos deliberativos seriam entidades coletivas
capazes de agir conjuntamente orientadas por um sistema
racional em vista da obtenção da meta epistêmica. Para
242
Deliberação Coletiva
tanto, seria requerido que as deliberações e decisões do
grupo devem ser o resultado da agência coletiva entre os
membros do grupo. Nessa perspectiva, um grupo
deliberativo deveria ter uma arquitetura cognitiva social
capaz de tomar decisões.
Grupos deliberativos são instrumentos privilegiados
para aquisição de novas informações e para o entendimento
de novas situações. Talvez não fosse possível explicar ou
entender algo se não fosse por meio destas estruturas sociais.
Grupos podem ter alguma vantagem intelectual e
deliberativa relevante sobre indivíduos isolados. Novas
estruturas sociais podem melhorar as possibilidades dos
indivíduos, eliminando vícios intelectuais. O esforço para
levar adiante um processo deliberativo pode requerer o
desenvolvimento de novas estruturas sociais. Um modo de
gerar e configurar novas estruturas sociais pode ser por meio
do estabelecimento de pactos entre indivíduos.
4.3. Pacto intelectual
A ideia de deliberação de grupo parece implicar as
noções de compromisso e cooperação. Considerando a
necessidade de um processo deliberativo coletivo, a noção
de pacto intelectual pode explicar como grupos deliberariam
racionalmente dentro de um cenário de ampla diversidade.
O estabelecimento de um pacto seria vantajoso em virtude
de, ao mesmo tempo, ser suficiente para constituir um
sujeito plural e postular a perspectiva pessoal. Pactuar
intelectualmente com alguém significa estar disposto a
aceitar a diversidade do outro. Um pacto intelectual seria
estabelecido por meio de um acordo entre dois ou mais
indivíduos, gerando não somente vínculo e obrigações, mas
também uma identidade coletiva (MÜLLER, 2012, p.127.).
Não basta que o grupo tenha e siga princípios e regras, é
necessário que tais princípios e regras sejam assumidos –
internalizados - individualmente pelos membros.
Felipe de Matos Müller
243
Dessa perspectiva, tudo o que deve ser considerado
para realizar o processo deliberativo coletivo deve ser
determinado a partir do estabelecimento do pacto
intelectual. O processo deliberativo com seus padrões e
regras, bem como as razões consideradas relevantes e a meta
a ser buscada, não pode ser estabelecido antes do pacto
intelectual. Qualquer deliberação ou decisão formada ou
mantida fora da vigência do pacto não será configurada
como deliberação ou decisão do grupo. Para que o processo
deliberativo coletivo tenha um alto valor instrumental, não
se deseja que haja qualquer base racional para a dúvida, quer
seja sobre a posição em questão, quer seja sobre a
confiabilidade do processo deliberativo, quer seja ainda
sobre a credibilidade de algum membro do grupo.
Considere que pactos podem ser estabelecidos em
função de determinados tipos de metas. Por exemplo, se o
pacto é em função de um vínculo conjugal, então se tem um
pacto nupcial; se o pacto é em função do aproveitamento
racional e eficiente de recursos materiais, então se tem um
pacto econômico; se o pacto é em função da aquisição e
retenção de crenças verdadeiras, então se tem um pacto
intelectual, etc. Um pacto intelectual geraria deveres
mediante um ato voluntário.
Com base nisso, um processo deliberativo coletivo,
baseado em um pacto intelectual, requereria que: (a) os
membros do grupo aceitassem conjuntamente uma
determinada decisão por causa e com base em um processo
deliberativo coletivo; (b) os membros do grupo tivessem
conhecimento comum de que (a); (c) a relevância das razões
dos membros do grupo fossem determinada no pacto
intelectual vigente; (d) o processo deliberativo coletivo
maximizasse a meta coletiva, dada a diversidade de opiniões,
conhecimentos e interesses; (e) os membros do grupo não
deveriam ter qualquer razão que invalidasse a decisão do
grupo ou o processo deliberativo.
244
Deliberação Coletiva
4.4. O papel da confiança no processo deliberativo
A confiança despenha um papel fundamental na
deliberação de grupo. Se deliberação coletiva é prima facie
mais eficiente que deliberação individual, é porque não só
grupos podem agregar mais informações que qualquer
membro individualmente, mas, sobretudo, porque a prática
articulada de divulgar e considerar informações em um
grupo, requerida para deliberação coletiva, funciona como
um filtro epistêmico mais eficiente. Esse tipo de interação
intelectual entre os membros do grupo requer confiança. Se
deliberação coletiva funciona como um filtro epistêmico
mais eficiente, é porque ela maximiza a verdade sobre a
falsidade em um amplo sistema de crenças.
No entanto, para que o processo deliberativo
coletivo seja bem sucedido do ponto de vista epistêmico, os
membros do grupo devem cooperar intelectualmente. Por
conseguinte, a confiança intelectual desenvolve um papel
central na aquisição, agregação e distribuição do
conhecimento factual (Cf. FAULKNER, 2011).
Em um ambiente intelectualmente diversificado,
nem sempre haverá paridade epistêmica entre os membros
do grupo, afinal, pessoas podem ter vícios e/ou virtudes
epistêmicas. Consequentemente, deverá haver algum tipo de
deferência em relação a outro(s) membro(s) do grupo. Essa
deferência ou concessão de autoridade intelectual requer
confiança.
Do ponto de vista do grupo como um todo, cada
membro do grupo deveria figurar como fonte de informação
e conhecimento, mas do ponto de vista dos membros do
grupo, cada membro deveria figurar como bom informante.
De acordo com Eduard Craig, o bom informante é aquele
que desejamos encontrar, por que teria a informação
(verdadeira e relevante) procurada e seria hábil em
comunicá-la (CRAIG, 1990, p. 85).
Felipe de Matos Müller
245
Entre as características do bom informante, descritas
por Craig, gostaria de assinalar três. O bom informante é
competente, cooperativo e acessível. Ele é competente porque crê na
informação verdadeira e é digno de confiança intelectual
sobre o assunto em questão. Ele é cooperativo, porque não
reage apenas à pergunta, mas a responde com a finalidade
presumida do que foi perguntado, dando assim ao inquiridor
informações úteis (CRAIG, 1990, p. 136.). Ele é acessível,
porque mantém canais de comunicação sempre abertos entre o
informante e o inquiridor, a tal ponto que a comunicação
seja realizada sem requerer mais que as crenças e capacidade
presentes do inquiridor (CRAIG, 1990, p. 85).
4.5. Meta coletiva: epistêmica e prática
Se do ponto de vista do grupo como um todo, cada
membro do grupo deveria figurar como fonte de informação
e conhecimento, a prática articulada de divulgar e considerar
informações entre os membros do grupo, requerida para
deliberação coletiva, funcionaria como uma espécie de coleta
de informações. Todavia, argumenta-se que coletar
informações não é uma exigência epistemológica, mas
prática. Por conseguinte, coletar informações não seria um
objetivo epistêmico. Por outro lado, argumenta-se também
que coletar informações, mesmo sendo uma exigência
prática, seria um meio para maximizar a meta epistêmica. E
questões acerca da maximização da meta epistêmica estão
dentro do interesse epistemológico. Mesmo ao considerar a
deliberação coletiva do ponto de vista epistemológico não se
pode ignorar que questões práticas estão associadas.
Todavia, ainda que questões práticas desempenhem algum
papel no processo deliberativo, elas não parecem remover
necessariamente o desempenho dos membros do grupo da
esfera epistemológica.
Contudo, questões epistêmicas e práticas poderiam
coexistir? Sem dúvida que poderá haver conflitos ao tentar
Deliberação Coletiva
246
promover várias metas ao mesmo tempo. Visar à meta
epistêmica, em um dado momento, pode ser incompatível
com a promoção de outras metas não epistêmicas (ex.
econômicas, políticas, morais, prudenciais, etc.) naquele
mesmo momento. É importante recordar que em um
cenário democrático de participação política, o objetivo
último de um processo deliberativo é prático. Nesse caso,
maximizar a meta epistêmica seria um meio de maximizar
outras metas práticas. Afinal, a deliberação visa a analisar e
calcular as formas e os meios pelos quais o fim desejado
pode ser alcançado. E, decisões e ações motivadas por
crenças falsas têm um risco elevado, mas decisões e ações
motivadas por crenças verdadeiras têm seu risco diminuído
(GOLDMAN, 2001, p. 347). Por conseguinte, a aquisição e
retenção de conhecimento e informação verdadeira é um
recurso instrumentalmente valioso. Assim, embora se possa
estabelecer uma escala de valores e eliminar o conflito entre
metas por meio de considerações práticas, isso não parece
eliminar necessariamente as questões epistemológicas.
5. Considerações finais
O meu propósito neste artigo foi mostrar que
deliberação coletiva pode ter valor um epistêmico
instrumental. Recapitulando os pressupostos e a discussão
desenvolvida, observou-se que a deliberação coletiva parece
ser algo desejável dentro do cenário democrático em virtude
de ser prima facie mais eficiente que a deliberação individual.
Embora os grupos agreguem mais informações que qualquer
membro individualmente e funcionem como filtros
eficientes de informação, na prática falhas ocorrem nos
processos deliberativos. Entre as várias causas de falhas,
abordem uma delas, o silêncio, que pode ser motivado por
influências informacionais e por pressões sociais. Uma das
grandes consequências do silêncio dos participantes é a
redução da diversidade intelectual. Afinal, a diversidade de
Felipe de Matos Müller
247
opiniões e perspectivas é pelo menos um ponto ótimo de
partida para os processos deliberativos coletivos em cenários
democráticos.
Como alternativa, explorei a possibilidade de um
pacto intelectual configurar um grupo deliberativo em
função de ampliar o valor epistêmico instrumental em um
cenário democrático de ampla diversidade intelectual. Um
processo deliberativo coletivo, baseado em um pacto
intelectual, requereria, além da aceitação conjunta, que a
decisão do grupo fosse de conhecimento comum entre os
seus membros, que o processo deliberativo vigente fosse não
somente a causa e a base da posição da decisão do grupo,
mas também maximizador da meta epistêmica, e, por fim,
que a decisão do grupo não fosse estabelecida caso algum
membro do grupo oferecesse aos demais uma razão
anuladora à decisão a ser estabelecida.
6. Referências bibliográficas
BOHMAN, J. 2006. Deliberative Democracy and the
Epistemic Benefits of Diversity. Episteme 3.3, 2006, p.175191.
BRADLEY, R. Taking Advantage of Difference in Opinion.
Episteme 3.3, 2006, p. 141-155.
FAULKNER, P. Knowledge on Trust. Oxford: Oxford UP,
2011.
FOLEY, R. Intellectual Trust in Oneself and Others. Cambridge:
Cambridge UP, 2001.
GOLDMAN, A. I. ‘Social Routes to Belief and Knowledge’.
The Monist 84, 200, p. 346-367.
248
Deliberação Coletiva
GOODIN, R. E. The Benefits of Multiple Biased
Observers. Episteme 3.3, 2006, p. 166-174.
MÜLLER, F. M. ‘Conhecimento de Grupo’. In MÜLLER,
F. M; RODRIGUES, T, V. (Orgs.). Epistemologia Social:
Dimensão Social do Conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2012, p. 118-136. Acessado em junho de 2012
(http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85397-0176-6.pdf)
PETER. F. The procedural epistemic value of deliberation.
Synthese, 2012, p. 1-14. Acessado em junho de 2012.
(http://dx.doi.org/10.1007/s11229-012-0119-6)
STLUND, David. Introduction: Epistemic Approaches to
Democracy. Episteme 5.1, 2008, p. 1-4.
SUNSTEIN, C. R. ‘Deliberating Groups versus Prediction
Markets (or Hayek's Challenge to Habermas)’. In
GOLDMAN, A. I.; WHITCOMB, D. (Ed.). Social
Epistemology: Essential Readings. Oxford: Oxford UP, 2011, p.
314-337.
Nythamar de Oliveira
249
Significado e Skepsis nas
Investigações de Ludwig
Wittgenstein
Nythamar de Oliveira1
PUCRS / CNPq
Foi professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina (199499), e tornou-se professor do PPG-Filosofia da PUCRS em março de
1999. Tem sido Pesquisador do CNPq desde 1995, bolsista da Humboldt
(2004-05, 2012) e atuado como consultor ad hoc do CNPq, CAPES e
FAPERGS. Foi Coordenador do PPG-Filosofia e membro do Comitê
de Ética em Pesquisa da PUCRS, e membro do Comitê Assessor da Área
Filosofia junto à Capes (2004-06). Fundou em 1999, juntamente com os
Professores Ernildo Stein e Ricardo Timm, a Sociedade Brasileira de
Fenomenologia, e criou com outros colegas o GT Teorias da Justiça na
Anpof, em 2000. Organizou 10 eventos internacionais, criou o Centro
Brasileiro de Pesquisas em Democracia, em 2009, e coordena o Grupo
de Pesquisa em Neurofilosofia, junto ao Instituto do Cérebro. Orientou
23 dissertações de mestrado e 17 teses de doutorado (concluídas e
publicamente defendidas). Autor de 3 livros, co-organizou 6 volumes e
tem mais de 40 artigos publicados em periódicos nacionais e
internacionais, em ética, filosofia política, fenomenologia e idealismo
alemão.
1
250 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
"Skeptizismus ist nicht unwiderleglich, sondern offenbar
unsinnig, wenn er bezweifeln will, wo nicht gefragt
werden kann". (T 6.51)2
"O ceticismo não é irrefutável, mas manifestamente um
contra-senso (unsinnig), se pretende duvidar onde não se
pode perguntar." (T 6.51)
"Ist es aber eine genügende Antwort auf die Skepsis der
Idealisten oder die Versicherungen der Realisten: 'Es gibt
physikalische Gegenstände' Unsinn ist? Für sie es doch
nicht Unsinn". (UG 37)
"Mas seria uma resposta adequada à skepsis dos idealistas
ou às seguranças dos realistas dizer que "há objetos
físicos" é um contra-senso (Unsinn)?Afinal, para eles não
é contra-senso." (UG 37)
1. Neste ensaio gostaria de oferecer algumas
reflexões acerca da teoria do significado no primeiro e no
segundo Wittgenstein, mostrando como o conceito de jogos
de linguagem no segundo pode ser interpretado como uma
forma de ceticismo quanto ao ato de seguir uma regra. Tal
leitura foi inspirada pelas interpretações que Saul Kripke,
Peter Winch e Jürgen Habermas têm realizado, com intentos
bem diferenciados.Neste ensaio, ater-me-ei sobretudo ao
problema do ceticismo pela interpretação do primeiro, de
Estou utilizando as seguintes breviaturas das obras de Ludwig
Wittgenstein citadas: PU = Philosphische Untersuchungen; T = Tractatus
Logico-Philosophicus; UG = Über Gewißheit; PG = Philosophische Grammatik;
PB = Philosophische Bemerkungen. Além destes na Werkausgabe em 8
volumes (Frankfurt: Suhrkamp, 1985), foram consultadas traduções da
PU (em português, José Carlos Bruni, Os Pensadores; em inglês, D.F. Pears
e B.F. McGuinness; em francês, Pierre Klossowski), do T (Luiz Henrique
Lopes dos Santos, G.E.M. Anscombe, Pierre Klossowski) e do UG
(G.E.M. Anscombe e G.H. von Wright, Jacques Fauve).
2
Nythamar de Oliveira
251
forma a responder a uma suposta leitura sociológica como
tem sido comumente associada aos outros dois autores.
Antes de mais nada, consideremos um problema de
terminologia: "contra-senso", seguindo Luiz Henrique
Lopes dos Santos (cf. Tractatus 4.003, 6.51), traduz em
português o substantivo Unsinn (em inglês nonsense) e sua
forma adjetivada unsinnig (non-sensic), equiparando-o a
Widersinn. A concepção de Bedeutung (significado,
significação) em Wittgenstein deve ser, assim, contrastada
com a de Frege, por um lado, e a de Husserl, por outro. 3
Segundo Frege, as duas expressões "1+1+1+1" e
"(1+1)+(1+1)" têm o mesmo significado (dieselbe Bedeutung),
portanto a mesma referência, mas sentidos diferentes
(verschiedenen Sinn) (T 6.231). O autor do Tractatus se propõe
a mostrar que "a identidade de duas expressões não se pode
asserir" (6.2322), sendo portanto impossível dizer o que
pode ser apenas mostrado. "O que pode ser mostrado não
pode ser dito" (Was gezeigt werden kann, kann nicht gesagt werden,
4.1212), visto que "a proposição mostra seu sentido" (Der Satz
zeigt seinen Sinn, 4.022). Husserl também se opôs à solução
fregiana da referência enquanto significado, através das
funções de valores de verdade que constituem o sentido de
proposições. Assim, duas proposições providas de sentidos
diferentes como "a estrela da tarde é um planeta" e "a estrela
da manhã é um planeta" atribuem a mesma propriedade ao
mesmo objeto. Enquanto Frege identifica Gegenstand e
Bedeutung ao expressar o valor de verdade do conceito como
referência, Husserl associa conceitos (Begriffe) a objetos
(Gegenstände) na relação lógica a fatos (Beziehungen) que
constituem objeto do pensamento (Gedanke). Em suma, o
que Frege denomina Sinn e Bedeutung corresponde,
respectivamente, a Bedeutung e Gegenstand em Husserl. O
contra-senso (Widersinn) não é, estritamente falando,
3 Cf. Gottlob FREGE, Begriffeschrift (trad. Os Pensadores); Edmund
HUSSERL, Logische Untersuchungen.
252 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
desprovido de sentido (sinnlos), ao contrário do não-senso
(Unsinn) que não possui nenhum uso lingüístico. Bedeutung e
Sinn se equivalem, portanto, na medida em que realizam uma
performance de sentido, uma significação (Bedeutungserfüllung).
Se para o cético a proposição "há objetos físicos" não é
contra-senso (Unsinn), é porque a linguagem ordinária da
vida comum nos ensina a distinguir o que faz sentido, "ein
sinnvolle Satz", um pensamento possível, um objeto que possa
ser pensado, de um contra-senso (Widersinn) ou daquilo que
não faz sentido (Unsinn, sinnlos). Por exemplo, o conceito de
uma filosofia cristã é, para Heidegger e para muitos, um
"quadrado redondo", um Widersinn, enquanto uma
construção do tipo "verde canta foi" é simplesmente sinnlos,
desprovida de sentido. 4 O enunciado "há objetos físicos"
exprime uma proposição com sentido (ein sinnvolle Satz),
portanto, a possibilidade lógica de um pensamento. Até aqui
o autor do Tractatus não entraria em conflito com o autor das
Investigações. No mesmo aforismo supracitado sobre o
ceticismo, o autor do Tractatus afirma que "só pode existir
dúvida onde exista uma pergunta; uma pergunta, só onde
exista uma resposta; e esta, só onde algo possa ser dito".(T
6.51) Do mesmo modo, para o autor das Investigações, o passo
seguinte de asserir que realmente 'há objetos físicos', como
dizer que 'W' significa W, não pode ser dito sem já não ter
sido mostrado. Significar é mostrar, na medida em que "o
que uma palavra significa, uma proposição não pode
dizer"("Was ein Wort bedeutet, kann ein Satz nicht sagen", PG I
Anhang 3). Mas por que o próprio Wittgenstein rejeitaria,
mais tarde, a chamada concepção ostensiva da linguagem?
Esta questão implicaria muitas outras, incluindo o problema
da metafísica e da ética nestes escritos, mas limitar-me-ei aqui
ao problema do significado. O ponto de partida deste artigo
4 Cf. M. HEIDEGGER, Einführung in der Metaphysik. Mesmo cometendo
o parricídio, Heidegger não deixa de venerar o mestre, servindo-se de
fórmulas de autoria do pai da fenomenologia.
Nythamar de Oliveira
253
reduz-se à simples constatação de que, tanto no Tractatus
quanto nas Investigações, Wittgenstein procura distanciar-se de
uma teoria referencial do significado, em particular, do
logicismo de Frege e Russell no "primeiro" e da semiologia
ostensiva no "segundo" Wittgenstein.+ Com efeito, a
oposição entre o atomismo lingüístico no Tractatus e o
suposto "ceticismo de regras" (rule-skepticism) nas Investigações
Filosóficas constitui a problemática central de um inacabado
debate sobre a teoria do significado em Wittgenstein. Este
debate será aqui reexaminado a partir do artigo seminal de
Saul Kripke sobre "Regras e Linguagem Privada em
Wittgenstein"5 e das subseqüentes críticas empreendidas por
Colin McGinn e G.P.Baker & P.M.S. Hacker.6 Não se trata
de reavaliar a controversa recepção de Wittgenstein entre
filósofos analíticos de língua inglesa, nem mesmo de resgatar
uma teoria wittgensteiniana do significado através dos seus
escritos de ambas as fases (antes e depois do seu retorno a
Cambridge em 1929). Proponho-me tão-somente
reexaminar a concepção wittgensteiniana do significado
como uso (Bedeutung als Gebrauch), na passagem da chamada
"teoria figurativa da proposição" no Tractatus a uma "teoria
de jogos de linguagem" nas Investigações. É nesta passagem
que procurarei localizar a atitude de Wittgenstein em relação
à skepsis da "suspensão de juízo" (epochê) quanto à
determinação e formulação das regras que asseguram o
Uma primeira versão do artigo de Kripke foi publicada na obra
Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein, org. I. BLOCK (Oxford:
Blackwell, 1981). Todas as referências neste ensaio remetem à versão
definitiva: Saul A. KRIPKE, Wittgenstein on Rules and Private Language: An
Elementary Exposition (Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
1982), doravante abreviado RPL.
5
Colin McGinn, Wittgenstein on Meaning: An Interpretation and Evaluation,
Aristotelian Society Series, Vol. 1, Oxford: Blackwell, 1984 (abrev. WM);
G.P. Baker e P.M.S. Hacker, Scepticism, Rules and Language, Oxford:
Blackwell, 1984 (abrev. SRL).
6
254 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
significado e a compreensão daquilo que está em jogo num
dado contexto lingüístico.7
2. Nas suas Investigações Filosóficas, Wittgenstein
explora entre outros problemas, os conceitos de significado
e compreensão ("Den Begriff der Bedeutung, des
Verstehens" Prefácio ix). O problema da "linguagem
privada" constitui igualmente um dos mais importantes
temas lingüísticos analisados pelo "segundo" Wittgenstein
nas Investigações (PU ' 243 ss). Entre as passagens mais
intrigantes que tratam dos conceitos de significado e
compreensão em conexão com o argumento da "linguagem
privada" estão as duas situações no ' 293 (a minha dor/o meu
besouro; a dor/o besouro de outrem). Apesar de nenhum
destes conceitos ser explicitamente articulado neste
parágrafo, ambos são supostos para "saber o que a palavra
'dor' significa" ou o que é designado por "besouro" (Käffer).
Segundo Kripke, o verdadeiro argumento da linguagem
privada se encontra nas seções que precedem o ' 243 --e não
nas que o sucedem, como reza a tradição-- em particular do
' 143 ao ' 242, onde é discutido o chamado "paradoxo
cético". As seções seguintes seriam apenas uma aplicação do
argumento ao caso especial das sensações. A conclusão do
argumento da linguagem privada encontra-se assim
enunciada no ' 202:
"Eis porque "seguir a regra" é uma prática. E acreditar
seguir a regra não é seguir a regra. E daí não podermos
seguir a regra 'privadamente'; porque, senão, acreditar
seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra".
Sobre a concepção grega de skepsis e epochê, cf. David SEDLEY, "The
Motivation of Greek Skepticism" in Myles BURNYEAT (org.), The
Skeptical Tradition, Berkeley: University of California Press, 1983, cap. 2,
p. 9-29.
7
Nythamar de Oliveira
255
Segundo Kripke, a problemática que permeia essas seções é
essencialmente cética. O "paradoxo cético" do ' 201
constitui, para Kripke, o "problema central" das Investigações:
"Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar
um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar
em conformidade com a regra. A resposta era: cada modo
de agir deve estar em conformidade com a regra, pode
também contradizê-la. Disto resultaria não haver aqui
nem conformidade nem contradições".
Segundo Kripke, Wittgenstein nos propõe uma "solução
cética" à la Hume para este problema cético. Ora, Baker e
Hacker criticam o artigo de Kripke precisamente por
caricaturar a posição humiana tanto quanto a
wittgensteiniana --afinal, nem Hume nem Wittgenstein
teriam assumido um posicionamento que merecesse esta
denominação. Servindo-se do Nachlaß para refutar de modo
assaz convincente a interpretação de Kripke, Baker e Hacker
omitem todavia a questão da autocrítica wittgensteiniana em
relação ao Tractatus. Procurarei sumariamente explorar esta
transição, antes de retornar à teoria do significado no
Tractatus e concluir com sua articulação com a skepsis
filosófica do "segundo" Wittgenstein. Ao contrário do
atomismo lógico do Tractatus, a linguagem ordinária das
Investigações problematiza a própria oposição entre "simples"
e "compostos" (' 47), mostrando como as semelhanças
surgem e desaparecem nas diferentes combinações possíveis
e imagináveis na comparação de diferentes jogos.(' 66) A fim
de "salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma
atividade (Tätigkeit) ou de uma forma de vida (Lebensform)"('
23), Wittgenstein propõe-se a mostrar, na primeira parte das
Investigações, a complexidade e a variedade dos jogos de
linguagem. Por Sprachspiel Wittgenstein compreende "o
conjunto da linguagem e das atividades com as quais está
interligada".(' 7) Ao invés de limitar a "significação" ao que é
256 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
significado na denominação de objetos, o significado é agora
articulado em termos do seu uso e da prática de seguir regras:
"A questão 'o que é realmente uma palavra?' é análoga a
'o que é uma peça de xadrez?'" (' 108)
"Mas como é estabelecida a ligação entre o nome e o
denominado? A questão é a mesma que: como um
homem aprende o significado dos nomes de sensações?
Por exemplo, da palavra 'dor'." (' 244)
Jogos de linguagem implicam, portanto, um contexto prático
onde o significado é determinado pelo uso de signos. A fim
de compreendermos a concepção de significado no
"segundo" Wittgenstein, partiremos da sua crítica a três
concepções errôneas que tendem a identificar a significação
com um processo mental, com uma interpretação particular
e com a formulação de razões pelas quais seguimos uma
regra. Como veremos, é precisamente neste terceiro ponto
que Kripke rompe com a leitura que McGinn e Baker &
Hacker nos oferecem das Investigações.
3. Tese 1: O significado não é um processo mental.
"Não pense, pelo menos uma vez, na compreensão como
'processo mental'/'anímico' --Pois este é o modo de falar que
o confunde. Mas pergunte-se: em que espécie de caso, sob
que espécies de circunstâncias dizemos, pois, 'agora sei
continuar'? Quero dizer, quando a fórmula me veio ao
espírito. No sentido em que há processos (também
processos anímicos) característicos da compreensão, a
compreensão não é um processo anímico. (A diminuição e
o aumento de uma sensação de dor, a audição de uma
melodia, de uma frase: processos anímicos)".(' 154)
"O ter-em-mente [Das Meinen] não é nenhum processo que
acompanha essa palavra. Pois nenhum processo poderia ter as
conseqüências do ter-em-mente". (p. 218/211)
Nythamar de Oliveira
257
Tanto Kripke como McGinn consideram esta primeira tese
negativa como a mais convincente e a mais evidente de todas
as três. As Investigações começam, afinal, com uma crítica à
gramática agostiniana do vellent ostendere precisamente porque
tal concepção mentalista do significado confunde o "que é
significado" com acompanhamentos experienciais que
podem ocorrer ou não na constituição do significado. Assim,
o desenho de um cubo pode me vir ao espírito quando ouço
a palavra "cubo" mas não tem de ocorrer (' 139). E
Wittgenstein conclui,
"E o essencial, pois, é ver que, ao ouvir a palavra, o
mesmo pode pairar em nosso espírito e que sua aplicação,
no entanto, pode ser outra. E tem, então, a mesma
significação em ambas as vezes? Creio que o negaríamos".
(' 140)
Obviamente, Wittgenstein rejeita a metafísica da
Innerlichkeit (o "homem interior" em Santo Agostinho) tanto
na sua versão consciente (o significado como um processo
mental) quanto na sua versão inconsciente (o significado
como um estado do sistema nervoso). 8 Assim, quando
observo cuidadosamente caracteres de um alfabeto
desconhecido ou quando leio em voz alta sem prestar
atenção ao que está escrito (como uma "máquina de leitura"),
em nenhuma destas situações compreendo o que leio,
embora meus processos mentais pareçam contradizê-lo.
Significado e compreensão não podem ser assimilados a
experiências, como por exemplo, a dor, a depressão, a
excitação.(' 59) Experiências, sensações e a imaginação
podem acompanhar ou não a constituição do significado -mas não podem ser ditas constitutivas da significação.
Cf. Jacques BOUVERESSE, Le mythe de l'intériorité: Expérience,
signification et langage privé chez Wittgenstein. Paris: Minuit, 1976.
8
258 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
4. Tese 2: O significado não é uma interpretação particular.
"Como pode uma regra ensinar-me o que fazer neste
momento? Seja o que for que faça, deverá estar em
conformidade com a regra por meio de uma interpretação
qualquer. --Não, não deveria ser deste modo, mas sim deste:
cada interpretação, juntamente com o interpretado, paira no
ar; ela não pode servir de apoio a este. As interpretações não
determinam sozinhas a significação". (' 198)
Segundo Kripke, este parágrafo pertence ao
contexto do que Wittgenstein denomina "nosso paradoxo",
a saber, que "uma regra não poderia determinar um modo
de agir, pois cada modo de agir deveria estar em
conformidade com a regra".(' 201) Ao contrário do uso
ostensivo da linguagem associado ao "olhar interno"
agostiniano que revela o que permanece "escondido" em
camadas profundas de significação, Wittgenstein solapa toda
eficiência essencial (praesentia) de significados que subjazem
aos cursos de ações. A alusão ao "corpo de significação"
(Bedeutungskörper) no ' 559 corrobora a autocrítica do
"segundo" Wittgenstein com relação ao Tractatus. Se a
interpretação fosse entendida como "a substituição de uma
expressão da regra por outra"(' 201), então poderíamos ter
assimilado a ação de "ler" uma escrita desconhecida à sua
mera transliteração em caracteres conhecidos (por exemplo,
do hebraico em letras latinas). Assim, dependendo da
equivalência fonética adotada, poderíamos emitir os sons
correspondentes a um sistema de escritura desconhecida
sem compreendermos o sentido de tal escritura. O que é
questionado aqui é precisamente que uma transliteração seja
suficiente para a constituição de significado.
De fato, Wittgenstein não estaria preocupado, neste
exemplo, com a compreensão do que está sendo lido, mas
com o fenômeno de seguir regras que permitam a produção
de significado na leitura de uma escritura que não seja
imediatamente reconhecida. Assim, se alguém pronunciasse
ou cantasse "hineh mah tov u-mah nayim", seria insuficiente
Nythamar de Oliveira
259
traduzir tal expressão do hebraico para o português "como é
bom e agradável", como se tal tradução ou interpretação
bastasse para explicar a constituição de seu significado.
Afinal, "traduzir de uma língua para outra", seria mais um
jogo de linguagem, como "comandar e agir segundo
comandos, relatar um acontecimento, inventar uma história,
cantar uma cantiga, fazer, uma anedota, pedir, agradecer,
maldizer, saudar, orar".(' 23) Sem dúvida, esta também seria
a razão pela qual pessoas bilíngües podem naturalmente
mudar de uma língua para outra sem recorrer a traduções na
sua mente. Na verdade, tanto a tradução como a
interpretação já pressupõem a produção de significado.
Assim, Wittgenstein enfatiza que a tradução e a interpretação
sempre implicam o ato de pensar, formando uma hipótese
acerca da melhor maneira de traduzir um signo de tal forma
a ser compreendido (p. 213). O significado é constituído de
um modo prático tal que não pressupõe nenhuma teoria,
mas apenas requer prática e envolvimento em jogos de
linguagem. A constituição de significado deve ser
compreendida como uma expressão de regras que
tacitamente seguimos ao participarmos de certos jogos de
linguagem. Todavia, a necessidade implicada no ato de seguir
uma regra (isto é, que uma regra determina uma linha de
ação) não é uma premissa lógica mas algo a ser
paradoxalmente encontrado no final, uma vez consumada a
ação que produz significado.
5. Tese 3: Seguir uma regra não se fundamenta em razões.
"Seja como for que você o ensine a continuar a faixa
decorativa, como pode ele saber como fazê-lo por si próprio?
--Ora, como eu sei? --Se isto significa: 'tenho razões?', então
a resposta é: logo não terei mais razões. E agirei então sem
razões". (' 211)
Não há nenhuma razão fundamental pela qual
alguém segue uma regra ao usar certas palavras para exprimir
um pensamento, comunicar-se com alguém, dizer um
260 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
palavrão ou pedir um favor. Por exemplo, por que será que
dizemos "obrigado" ao agradecer alguém por ter-nos feito
um favor ou simplesmente cumprido com o seu dever? Por
que chamamos a cor vermelha de "vermelho"? Segundo
Wittgenstein, "quando sigo uma regra não escolho. Sigo a
regra cegamente".(' 219) Para Kripke, é aqui que devemos
situar o contexto imediato do "paradoxo cético"
wittgensteiniano, a saber, que nenhum fato pode constituir
um significado em detrimento de um outro significado. O
que é paradoxal acerca disto reside na força da regra que
alguém tacitamente obedece ao constituir tal significado.
Assim, quando solicitado para calcular '68 + 57' o cético
pode muito bem responder '5' e não '125' de modo a
questionar o significado do signo '+' (sinal de adição). Ele
poderia argumentar, por exemplo, que o signo '+' denota
uma função quais, de acordo com a qual obtemos a adição
convencional 'x+y' se e somente se 'x' e 'y' forem menores
do que '57', caso contrário obteremos a constante '5'.9 Por
isso, '68 + 57 = 5'. Como Kripke observa, o que está sendo
questionado pelo cético é o que tinha sido constituído como
significado pelo hábito:
"A questão não é que se eu quis dizer adição com '+', eu
responderei '125', mas que se quiser concordar com meu
significado no passado de '+', eu devo responder '125'. ...A
relação do significado e da intenção com a ação futura é
normativa, e não descritiva".10
A argumentação de Kripke está baseada no que
Wittgenstein denominaria "gramática do compreender" (das
Verstehen, cf. '' 180 ss.). Por exemplo, como perguntaríamos
a um estudante se ele compreendeu a série de números
naturais 0,1,2,3,4,5,... (cf. ' 145) segundo um ordenamento
do tipo '+ 1'. Se ao ser requisitado para continuar a série '+2'
9
N.B.: Em inglês "quus" contrasta com "plus" ("mais").
10
. KRIPKE, op. cit., p. 124.
Nythamar de Oliveira
261
depois de 1.000, o aluno escreve 1.000, 1.004, 1.006, 1.008,
1.012, ..., no lugar dos esperados 1.002, 1.004, 1.006, 1.008,
..., isso mostra como assumimos mais do que devíamos
quanto ao significado de signos que usamos tão
freqüentemente. Isto nos traz à tese positiva do "segundo"
Wittgenstein sobre significado e seguir regras:
"Pois dizemos que não há nenhuma dúvida de que
compreendemos esta palavra, mas, por outro lado, que
sua significação reside no seu emprego. Não há dúvida de
que agora quero jogar xadrez; mas o jogo de xadrez é este
jogo devido a todas as suas regras (e assim por diante).
...Onde é feita a ligação entre o sentido das palavras
'joguemos uma partida de xadrez!' e todas as regras do
jogo? Ora, nas instruções do jogo, na lição de xadrez, na
prática diária do jogo [in der täglichen Praxis des Spielens]". ('
197)
Imediatamente após, Wittgenstein levanta a questão
de relacionar a "expressão da regra" (der Ausdruck der Regel) a
ações (Handlungen), por exemplo, o modo particular como
alguém reage a um certo signo. Wittgenstein não está
primariamente preocupado com conexões causais mas com
o "uso regular" (ständige Gebrauch) de sinais, seu uso comum
ou costume (Gepflogenheit). Assim, ele procede para
problematizar o conceito de "regramento" como costume
em função de uma prática privada:
"O que chamamos 'seguir uma regra' é algo que apenas
uma pessoa pudesse fazer apenas uma vez na vida? --E isto
é, naturalmente, uma anotação sobre a gramática da
expressão 'seguir a regra'... Compreender uma frase
significa compreender uma linguagem. Compreender
uma linguagem significa dominar uma técnica". (' 199)
Para Kripke, a conclusão de Wittgenstein acerca da
impossibilidade de obedecer uma regra privadamente
significa que o argumento da linguagem privada deve ser
262 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
encontrado nas seções que precedem o ' 243 --onde é
explicitamente discutido o uso privativo da linguagem.
McGinn acusa Kripke de forçar tal leitura do texto de
Wittgenstein, impondo-lhe significações que não constam na
superfície, em particular quanto à solução cética ao paradoxo
do ' 201. Acima de tudo, escreve McGinn, o ' 202 não pode
constituir o argumento conclusivo empregado por
Wittgenstein contra a possibilidade de linguagem privada.
McGinn não descarta a importância de uma interpretação
comunitária mas critica Kripke por reduzir a problemática
das Investigações ao uso comunitário da linguagem.
À guisa de conclusão, creio que McGinn, assim
como o fizeram Baker e Hacker, oferece boas razões para
suspeitarmos o que Kripke denomina "a nova forma de
ceticismo" supostamente inventada por Wittgenstein, o
chamado "ceticismo de regra" (rule skepticism). Afinal, tornase difícil separar tal versão de ceticismo de um ceticismo
metodológico humiano, conforme o rapprochement elaborado
pelo próprio Kripke. O maior mérito do artigo de Kripke,
além de dissipar a suspeita de behaviorismo nas Investigações,
consiste em haver articulado o problema da significação com
o ato de seguir regras num mesmo nível lingüístico que
solapa a metafísica do sujeito transcendental do Tractatus.11
Teríamos de passar aqui a um exame mais cuidadoso do
argumento da linguagem privada e dos problemas do
solipsismo e da oposição entre Darstellung e Vorstellung, tais
como figuram no Tractatus e em que proporção são
resolvidos nas Investigações. Se realmente existe algo como
uma "ruptura epistemológica" entre o "primeiro
Wittgenstein" e o "segundo", ou de forma mais precisa, entre
a teoria do significado no Tractatus e sua reformulação crítica
nas Investigações, esta "mudança de paradigma" é assinalada
pelo próprio autor na sua crescente insatisfação face a teorias
Cf. T 5.632: "O sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do
mundo".
11
Nythamar de Oliveira
263
referenciais logicistas, em voga desde as publicações de
Frege e Russell. Sem incorrer numa reconstituição genética
do desenvolvimento de tais concepções, assinale-se apenas
que o abandono do atomismo lógico não traduz,
necessariamente, uma ruptura com uma teoria do significado
no "segundo Wittgenstein". Embora rompendo com uma
concepção figurativa da linguagem, a concepção do
significado como uso, nas Investigações, pode implicar por um
lado uma correlação entre lógica e ontologia e, por outro
lado, uma atitude cética de ordem prático-regulativa. Creio,
portanto, que já no Tractatus encontra-se antecipada a
concepção tardia do significado como uso, embutida na
crítica que Wittgenstein empreende a Frege e a Russell.
6. Numa das suas ilustrações mais conhecidas (PU
Parte II, xi, p. 194/189), Wittgenstein reproduz a figura da
"cabeça PC", o pato-coelho (duckrabbit) de Jastrow, para
ilustrar sua concepção de descrição (Beschreibung). O contexto
imediato é obviamente o da gramática do verbo "ver". Mas
no contexto maior, da investigação filosófica sobre a
significação, trata-se de mostrar como "ver"--assim como
"saber" e "crer"-- não poderia fundamentar a descrição na
constitituição do significado e de sua compreensão --em
particular na relação entre sujeito cognoscente e o chamado
"mundo exterior." Afirmar que sei 'p' no sentido de que vejo
'p' não seria mais evidente, apesar de aparentarmos 'saber' e
'ver' e opormos 'saber' e 'crer', ao nosso senso comum do
que afirmar que sei 'p' no sentido de que creio 'p'. Trata-se
do paradoxo de Moore, que Wittgenstein assim o enuncia:
"A expressão 'creio que isto está assim' [ich glaube, es verhalt
ist so/ I believe that this is the case] é empregada de modo
semelhante à afirmação 'isto está assim'; e contudo a
suposição de que creio que isto está assim não é empregada
do mesmo modo que a suposição de que isto está
assim".(p.190/185)
264 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
Afinal, como afirma no mesmo capítulo, "podemos
desconfiar dos próprios sentidos mas não da própria
crença". Chegamos assim ao contexto da discussão sobre a
prova do mundo exterior, que Wittgenstein questiona nas
Investigações e nas anotações Sobre a Certeza. Comecemos pela
figura de Jastrow. O que tem de interessante, à primeira vista,
é que "pode-se vê-la como cabeça de lebre ou como cabeça
de pato", dependendo da experiência visual (Seherlebnis)
daquele que a percebe. A discussão imediata gira em torno
da experiência de "notar um aspecto" (das Bemerken eines
Aspekts). Wittgenstein observa que a mesma figura pode
suscitar diferentes interpretações, dependendo de como a
vemos em diferentes contextos: "podemos também ver a
ilustração ora como uma, ora como outra coisa. --Portanto,
nós a interpretamos e a vemos como a interpretamos".(193/188)
O que nos aparece como "algo", nossa primeira palavra de
identificação intuitiva, na percepção imediata de uma lebre,
um coelho, um pato, ou uma coisa engraçada, este parente
mais próximo da descrição, antes mesmo de descrevê-lo
como jogo de linguagem ou algum tipo de brincadeira. "O
que é isso?" ou "o que você vê aí?" parece exigir, num
contexto de vivências cotidianas, uma descrição do que
percebemos. Antes mesmo de identificá-lo como "uma
figura L", a possibilidade de responder "uma cabeça de
lebre" ou "uma cabeça de coelho", mais do que um problema
de tradução (Hasen/rabbit/hare), implica uma pré-imersão no
mundo de significações, inclusive as socialmente
constitutivas.
Sem incorrermos num reducionismo mentalista (por
exemplo, "vi um coelho porque tive um coelhinho quando
criança"), devemos ainda admitir que o que vemos depende
de nosso "horizonte de expectativas". Wittgenstein parece
ter em vista não tanto uma "descrição indireta" posterior à
interpretação quanto uma descrição do que é visto
imediatamente, uma experiência espontânea da visão.
Todavia, se alguém retrucasse: "O que é que eu devo ver aí?",
Nythamar de Oliveira
265
serei obrigado a explicar as regras do jogo e falar das duas
possibilidades: "cabeça de lebre" e/ou "cabeça de pato".
Poderei até mesmo propor que uma terceira possibilidade,
"a cabeça L-P", seria a partir de então incorporada ao nosso
imaginário cotidiano, e assim por diante. Devemos também
distinguir entre a "visão permanente" de um aspecto e a
"revelação" de um aspecto. Percebo as mudanças de
aspectos:
"Mas o que é diferente: minha impressão? Meu ponto de
vista?--Posso dizê-lo? Descrevo a mudança como uma
percepção, exatamente como se o objeto tivesse se
alterado diante dos meus olhos". (193/190)
Suponha que duas figuras me sejam mostradas, uma
com a cabeça L-P cercada de cabeças de pato, outra cercada
de cabeças de lebre. Como poderíamos, antes de mais nada,
diferenciar estas duas situações imaginárias?
"Imagine a cabeça L-P escondida sob um emaranhado de
traços. Primeiro, noto-a na figura, aliás, simplesmente
como cabeça de lebre. Depois, olho a mesma figura e
noto as mesmas linhas, mas como pato, e nisto não
preciso ainda saber que ambas as vezes tratava-se da
mesma linha. Se, mais tarde, vejo o aspecto mudar, -posso dizer que aí o aspecto L e o aspecto P são vistos de
modo inteiramente diferente do que quando os
reconhecera no emaranhado de traços? Não". (199/193)
Devemos, finalmente, concluir que seria equívoco dizer que
o que vemos é o que cremos ver. O contexto parece exigir
que apenas vejamos o que nos aparece, sem nenhuma
conexão com o problema de crer ou saber --mesmo se
alguém exclamasse "eu já sabia que era a figura L-P" ou "eu
já conhecia este jogo!" Não se trata, em última análise, de
uma diferenciação de estados mentais entre sujeitos que
questionam a exterioridade do mundo e suas representações,
mas para além do solipsismo metafísico de toda
266 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
subjetividade trata-se de suspender todo e qualquer juízo
sobre a interioridade do sujeito. Isso é corroborado com a
analogia entre o significado do que falamos e representamos
e a apresentação prática do que vivemos-- por exemplo, a
apresentação (Darstellung) do que é visto (198/192).
Finalizando com a questão do ceticismo no
"segundo" Wittgenstein, encontramos em UG exemplos que
ilustram a mesma gramática da apresentação, tais como
"Todo corpo é extenso" ou "a água ferve a 100 oC", que não
dizem nada no sentido de constituir uma asserção descritiva
de um estado de coisas (Sachverhalt) mas ajudam-nos a notar
(bemerken) algo. Também aqui o contexto é o da prova do
mundo exterior, como atestam as notas tomadas por
Norman Malcolm, quando da estadia de Wittgenstein na sua
casa no estado de Nova York em 1949.12 O ensaio de G.E.
Moore sobre a prova do mundo exterior, considerado por
Wittgenstein o seu melhor artigo, inspira toda a
argumentação sobre a Certeza: "Se tu sabes que aqui está uma
mão, nós te concedemos todo o resto"(Wenn du weißt, daß hier
eine Hand ist, so geben wir dir alles Übrige zu).13 Se para Kant a
prova do mundo exterior não tem sido alcançada pela
filosofia (KrV B xxxix) e permanece um artigo de fé, para
Moore nós podemos ao contrário saber/conhecer um
número de proposições que não podemos provar, partindo
de premissas verdadeiras, que são tacitamente evidenciadas
pela constatação daquilo que todo mundo sabe ou
Norman MALCOLM, Ludwig Wittgenstein: A Memoir. Oxford: Oxford
University Press, 1984.
12
Wittgenstein está obviamente questionando o ponto de partida de
Moore, "Here is one hand, and here is another". Cf. G.E. MOORE,
"Proof of the External World" in Proceedings of the British Academy
1939; cf. "Defence of Common Sense" in Contemporary British
Philosophy, 2nd Series, 1925 (org. J.H. MUIRHEAD) Ambos
publicados nos Philosophical Papers de Moore (Londres, 1959), traduzidos
para o português por Pablo Ruben Mariconda, in Os Pensadores, São
Paulo: Nova Cultural, 1989.
13
Nythamar de Oliveira
267
reconhece, como senso comum. Contudo, como observou
Jaakko Hintikka, "Moore não está provando tanto a
existência do mundo exterior quanto mostrando que
possuímos de fato um conceito impecável de existência
aplicável a mãos, cadeiras, casas e outros 'objetos exteriores'
triviais".14 A passagem, portanto, de "eis uma mão" a "mãos
existem" não pode ser logicamente formalizada --seria
impossível inferir '(Ex)P(x)' de 'P(a)'. Assim, quando
Wittgenstein associa a matemática a jogos de linguagem
consistindo de axiomas, teoremas, provas, operações, regras
de inferência, etc., é o mesmo problema de seguir uma regra
que nos impede de dissociar realidade e linguagem.15 Contra
a lógica da subjetividade metafísica, contra idealistas,
solipsistas e realistas (PU ' 402), Wittgenstein opera uma
verdadeira suspensão da representatividade pela
apresentação das formas de vida que permitem ao cético
manter o significado da existência de objetos físicos sem
contra-senso.
14 J. HINTIKKA, Logic, Language-Games and Information. Oxford:
Claredon Press, 1973. p. 72.
Cf. L. WITTGENSTEIN, Remarks on the Foundations of Mathematics,
trad. G.E.M. Anscombe. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1991, III.27:
"even if the proved mathematical proposition seems to point to a reality
(Realität) outside itself, still it is only the expression (Ausdruck) of
acceptance of a new measure (of reality)".
15
268 Significado e Skepsis nas Investigações de Ludwig Wittgenstein
Referências Bibliográficas
BAKER, G.P. & P.M.S. HACKER, Scepticism, Rules and
Language. Oxford: Blackwell, 1984.
BOUVERESSE, Jacques. Le mythe de l'intériorité: Expérience,
signification et langage privé chez Wittgenstein. Paris: Minuit, 1976.
HINTIKKA, Jaakko. Logic, Language-Games and Information.
Oxford: Claredon Press, 1973.
KRIPKE, Saul A. Wittgenstein on Rules and Private Language: An
Elementary Exposition. Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 1982.
McGINN, Colin. Wittgenstein on Meaning: An Interpretation and
Evaluation. Aristotelian Society Series, Vol. 1. Oxford:
Blackwell, 1984.
MALCOLM, Norman. Ludwig Wittgenstein: A Memoir.
Oxford: Oxford University Press, 1984.
MOORE, G.E. "Proof of the External World," in
Philosophical Papers. Trad. Pablo Ruben Mariconda, in Os
Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
SEDLEY, David. "The Motivation of Greek Skepticism," in
Myles BURNYEAT (org.), The Skeptical Tradition. Berkeley:
University of California Press, 1983.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Werkausgabe. 8 volumes.
Frankfurt: Suhrkamp, 1985.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Remarks on the Foundations of
Mathematics. Trad. G.E.M.
Anscombe. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1991.
Rogel Esteves de Oliveira
269
Epistemologia da Religião:
Quatro Posições Paradigmáticas
Rogel Esteves de Oliveira1
Quando perguntamos pela racionalidade, razoabilidade
ou justificação das “crenças religiosas” em geral ou, de modo
particular, da crença na existência de Deus, por exemplo,
estamos entrando no cerne da investigação da Epistemologia
da Religião (ER). Como um ramo da Epistemologia
Analítica geral, a ER está interessada pela questão de se,
quando e em que medida as crenças religiosas são justificadas
(ou racionais) para um sujeito qualquer S. Para ser mais exato,
o tipo de justificação que sobretudo interessa à
Epistemologia Analítica e, por conseguinte, à ER é a
1 Pós-doutorando (PNPD-Capes) no PPG em Filosofia da PUCRS
desde janeiro de 2014. Fez o doutorado em Filosofia na PUCRS, tendo
ingressado neste PPG no ano de 2006 e defendido tese no início de 2010,
sob orientação do prof. Dr. Cláudio Gonçalves de Almeida. Sua tese, na
área de Epistemologia Analítica, teve como título “Metaconhecimento e
ceticismo de segunda ordem”, tendo aprovação com louvor. Atualmente,
dirige um grupo de estudo na área de Epistemologia da Religião aqui na
PUCRS.
270
Epistemologia da Religião
justificação epistêmica.2 Essa justificação, em contraste com as
noções moral e pragmática de justificação, tem uma “relação
essencial e interna com o alvo cognitivo da verdade”, ou seja,
ela deve ser de algum modo “conducente à verdade”.3 Uma
crença religiosa justificada epistemicamente, portanto, deve ter
alguma propriedade (a ser esclarecida) que conduza a ou
indique a (provável) verdade da proposição crida. Será que
pelo menos algumas crenças religiosas têm esta propriedade,
sendo justificadas epistemicamente? Em especial, a crença
na existência de Deus pode ser assim justificada, para um
sujeito S? 4
Antes de responder essa questão principal, é
necessário que se esclareça melhor qual é essa propriedade
que dá a justificação que procuramos. Podemos, a princípio,
tomar a resposta agora clássica que o Iluminismo deu à
questão sobre o que torna a crença religiosa – assim como
qualquer outra crença – justificada epistemicamente,
apresentando a seguinte tese “evidencialista” (T). Vamos
aplicá-la especificamente para a crença na existência de Deus,
embora pudéssemos aplicá-la para qualquer outra crença
religiosa:
Entretanto, alguns epistemólogos analíticos, recentemente, estão
defendendo a insuficiência do “puramente epistêmico” para dar conta da
noção de conhecimento. Cf. STANLEY (2005) para uma defesa desta
tese.
2
3
BONJOUR, 1985, p. 8.
4 Neste trabalho, vamos nos ater à justificação da crença na existência de
Deus por dois motivos: (i) para facilitar a discussão; e (ii) porque esta
crença tem tido papel primordial na religião ocidental. Para fins de
clareza, a “crença na existência de Deus” ou, simplesmente, a “crença em
Deus” é a crença (de algum sujeito S) que Deus existe. O significado de
“Deus” aqui é a noção tradicional judaico-cristã, embora isto não afete
em nada esta apresentação introdutória.
Rogel Esteves de Oliveira
271
(T) A crença na existência de Deus é justificada
epistemicamente somente se há evidência suficiente para a
existência de Deus. 5
Esta tese evidencialista parece bastante plausível –
ainda que o termo “suficiente” seja vago - e, de fato, tem
sido muito influente.6 Ela requer do sujeito S que ele tenha
uma crença proporcional à sua evidência. 7 Se a evidência é
ambígua, insuficiente ou mesmo contrária, a atitude
doxástica de S deveria ser outra que não a crença (plena),
talvez a suspensão do juízo ou até a descrença em relação à
existência de Deus, isto é, a crença na sua negação. Foi
justamente pensando nisto que a famosa declaração de W. K.
Clifford foi feita: “É errado sempre, em qualquer lugar e para
qualquer um, crer em qualquer coisa baseado em evidência
insuficiente”.8
O que conta, porém, como “evidência” para a crença
na existência de Deus? Ora, a existência de Deus não é
“evidente aos sentidos”, nem tampouco é “auto-evidente” –
ou seja, “óbvia uma vez que você pensa sobre ela”9 -, e nem
tampouco é evidente “introspectivamente”, da maneira
como um estado mental (p. ex., a dor) é evidente para o
sujeito que o tem. Deste modo, para o Evidencialismo
clássico que estamos (provisoriamente) assumindo, a crença
na existência de Deus não pode ser “propriamente básica”,
necessitando, portanto, da evidência de argumentos para sua
Adaptado de CLARK, 2004. Ver tb a excelente exposição de
PLANTINGA (2000, p. 67ss) sobre o “Evidencialismo Clássico” do
Iluminismo, inaugurado por J. Locke.
5
6
Cf. PLANTINGA, op. cit., p. 67ss.
7 Cf. FORREST, 2014. Este autor trabalha com graus de crença. Logo
mais iremos esclarecer o que pode ser contado como “evidência”.
Apud FORREST, op. cit. A frase de Clifford foi originalmente publicada
em 1879.
8
FORREST, op. cit. A noção de auto-evidência é problemática, como o
prof. Cláudio de Almeida várias vezes tem chamado a atenção, em suas
aulas na PUCRS. Isto não afeta, porém, a discussão subsequente.
9
272
Epistemologia da Religião
justificação. 10 Assim, a tese (T) é melhor expressa deste
modo:
(T*) A crença na existência de Deus é justificada
epistemicamente somente se há evidência suficiente (i.e., bons
argumentos) para a existência de Deus.11
Ora, a partir desta tese evidencialista (T*), aplicada às
crenças religiosas em geral ou à crença na existência de Deus
em particular, é possível gerar (pelo menos) quatro respostas
que têm sido “paradigmáticas” em ER, todas respondendo à
nossa questão principal: Há crenças religiosas justificadas
epistemicamente? Em especial: A crença na existência de Deus é
justificada epistemicamente ou não? Nem todas as quatro
respostas assumem uma atitude favorável à tese
evidencialista, como veremos. Abaixo, apresentaremos de
modo bastante esquemático e sucinto (dada a limitação de
espaço) as quatro posições, não pretendendo de modo algum
uma exposição completa dos argumentos e/ou autores.
1.
A Crítica Evidencialista à Crença Religiosa
Uma primeira posição na ER responde de modo
contundente e crítico à nossa questão principal. Ela
Cf. PLANTINGA, 2000, p. 70, 82ss. Uma crença “propriamente
básica” dispensa a evidência de argumentos porque ela é justificada
“diretamente” por algo que não é outra proposição crida. Para o
Evidencialismo/Fundacionismo Clássico, influente até hoje
especialmente na ER, apenas crenças formadas por percepção sensorial,
intuição racional e introspecção são “propriamente básicas”. Plantinga é
um crítico notório desta posição (ibid.; idem, 1983).
10
11 Um argumento, dedutivo ou indutivo, é “bom” quando, além de válido
(no caso de dedução) ou forte (no caso de indução), suas premissas são
tais que todos os envolvidos no debate as reconhecem como verdadeiras
(cf. SWINBURNE, 2004, p. 6,7).
Rogel Esteves de Oliveira
273
acrescenta mais uma premissa, ao lado da tese evidencialista,
para então inferir uma conclusão negativa:12
(1) A crença na existência de Deus é justificada
epistemicamente somente se há evidência suficiente (i.e., bons
argumentos) para a existência de Deus.
(2) Não há evidência suficiente (bons argumentos) para a
existência de Deus.
(C) Logo, a crença na existência de Deus não é justificada
epistemicamente.
A conclusão pretende valer para qualquer sujeito S e
equivale a dizer que a crença na existência de Deus é irracional
epistemicamente. A premissa (2) é resultado de uma
avaliação negativa, por parte dos críticos evidencialistas, dos
argumentos comumente apresentados em defesa da
existência de Deus, somada ao argumento do problema do
mal, que é o principal argumento usado contra a existência
de Deus.13
Diante disto – defendem tais críticos -, a atitude
doxástica correta, em relação à existência de Deus, seria a
suspensão do juízo (agnosticismo) ou até a crença na
proposição oposta, a não-existência de Deus (ateísmo),
dependendo das evidências disponíveis a S. Esta é a posição
“paradigmática” de alguém como B. Russell. É bastante
conhecida a história (verídica): indagado sobre o que diria se
após morrer se encontrasse com Deus e fosse questionado
do porquê não ter sido um crente, Russell respondeu: “Eu
diria:
‘Evidência
insuficiente,
Deus!
Evidência
insuficiente!’”.14 A. Flew, autor de The Presumption of Atheism,
também foi representante emblemático desta posição:
12 Adaptamos (com modificações) aqui, bem como nas duas seções
seguintes, o esquema geral de CLARK (op. cit.).
13
Cf. SWINBURNE, op. cit., p. 9 e 236ss.
14
Apud PLANTINGA, 1983, p. 17,18.
274
Epistemologia da Religião
Se é para ser estabelecido que há um Deus, então nós
temos de ter bons fundamentos [grounds] para crer que é
de fato assim. Até ou a menos que tais fundamentos sejam
produzidos, nós não temos literalmente nenhuma razão
para crer; e nesta situação a única postura razoável deve
ser ou o ateísmo negativo ou o agnosticismo.15
A crítica evidencialista à crença religiosa, portanto, é
a posição característica dos agnósticos e ateus, constituindo
uma importante posição dentro da ER. Certamente, porém,
é uma posição que pode ser contestada, como veremos agora.
2.
O Evidencialismo Teísta
O Evidencialismo Teísta, também conhecido como
“Teologia Natural”, aceita a tese evidencialista (T*), expressa
na premissa (1) do argumento acima, mas contesta a
premissa (2) dos críticos evidencialistas. O evidencialista
teísta defende a conclusão que a crença na existência de Deus
é racional/justificada epistemicamente, substituindo, no
argumento acima, a segunda premissa:
(1) A crença na existência de Deus é justificada
epistemicamente somente se há evidência suficiente
(i.e., bons argumentos) para a existência de Deus.
(2*) Há evidência suficiente (bons argumentos) para
a existência de Deus.
(C*) Logo, a crença na existência de Deus é justificada
epistemicamente.
FLEW, 1976, p. 22. Sobre a mudança surpreendente (e controversa)
de sua posição, ver FLEW e VARGHESE, 2007. Já há versão brasileira
deste livro pela Ediouro.
15
Rogel Esteves de Oliveira
275
De modo geral, a posição da Teologia Natural é
muito comum entre filósofos de orientação católica, 16
embora o grande expoente atual dela, R. Swinburne, não o
seja. 17 Para tais teístas, como já dito, a exigência
evidencialista (T*), expressa na premissa (1), não está errada.
J. Greco, por exemplo, conhecido epistemólogo católico
contemporâneo, ao falar sobre “conhecimento teísta” (i.e.,
sobre Deus), afirma expressamente que “a teologia natural
[i.e., o uso de argumentos e provas racionais] é necessária
para alcançar conhecimento no que diz respeito às próprias
crenças teístas”. 18 Mais adiante, fazendo a ligação entre
conhecimento e justificação – que ele caracteriza como
“responsabilidade epistêmica” -, ele diz:
Poderia ser argumentado que a teologia natural é
requerida [required] para alcançar responsabilidade
epistêmica no que diz respeito às próprias crenças teístas,
e é por esta razão que a teologia natural é requerida para
o conhecimento. Ou, para colocar de um outro modo,
nós poderíamos argumentar que a teologia natural é
necessária para tornar as coisas direitas [to make things right]
do ponto de vista de S.19
Mas há bons argumentos em favor do teísmo? Em
outras palavras, a premissa (2*) acima é defensável? A obra
agora clássica de Swinburne, The existence of God – para nos
limitarmos a somente um autor paradigmático – procura
responder que sim. 20 Embora admita que argumentos
Cf. ZAGZEBESKI, 1993, p. 3. Zagzebski observa, porém, que o
Evidencialismo propriamente dito não é parte da doutrina Católica,
embora “alguns filósofos Católicos sejam evidencialistas” (ibid., p. 4).
16
Segundo a WIKIPEDIA (2014), Swinburne é membro da Igreja
Ortodoxa Oriental.
17
18
GRECO, 1993, p. 169; itálico dele.
19
Ibid., p. 178.
20
SWINBURNE, op. cit.
276
Epistemologia da Religião
dedutivos não sejam “bons” por terem premissas contestadas,
Swinburne faz uma grande defesa indutiva (probabilística) e
cumulativa da existência de Deus; ele usa para isto o
conhecido teorema de Bayes, e parte de premissas aceitas por
todos. Sua conclusão, após analisar várias provas pró e
contra a existência da Deus – cosmológica, de design, moral,
etc. -, é que, embora o argumento do mal possa diminuir a
probabilidade (indutiva) da existência de Deus, as várias
provas a favor aumentam a probabilidade da existência de
Deus a tal ponto que, juntas, tornam mais – para não dizer
“muito mais” - provável que Deus exista do que não exista.21
A crença na existência de Deus, portanto, é justificada
epistemicamente porque de fato há um bom argumento
(cumulativo) para a existência de Deus.
O Evidencialismo Teísta, porém, não é a única
resposta disponível ao teísta que quer defender a
racionalidade/justificação epistêmica da crença na existência
de Deus. É o que veremos agora.
3.
A Epistemologia Reformada
A Epistemologia Reformada leva esse nome porque
seus principais autores – A. Plantinga, N. Wolterstorff, G.
Mavrodes, entre outros - têm uma orientação
Calvinista/Reformada.22 Em essência, o que distingue esta
posição da anterior é a defesa de que a crença em Deus (além
de outras crenças religiosas) pode ser epistemicamente
justificada de modo não-inferencial, sem o uso de qualquer
argumento.23 Para usar a expressão de Plantinga, a crença na
21
Ibid., p. 13, 341-2, e nota 3.
Cf. ZAGZEBSKI, op. cit., p. 1. W. Alston também conta entre seus
líderes, embora tenha sido episcopal e não apreciasse muito aquele nome
(cf. WIKIPEDIA, 2014).
22
Cf. BERGMANN, 2009, p. 697. Para Bergmann, esse é o ponto
essencial, e não o fato de o Evidencialismo Teísta exigir evidências e a
23
Rogel Esteves de Oliveira
277
existência de Deus pode ser “propriamente básica”.24 Com
isto, a primeira premissa dos argumentos acima,
(1) A crença na existência de Deus é justificada
epistemicamente somente se há evidência suficiente (i.e., bons
argumentos) para a existência de Deus,
ou seja, a tese evidencialista (T*), é criticada e negada
– embora seja controversa a atitude real em relação à tese
(T).25 Argumentos para a existência de Deus podem ser úteis
para outros fins – observa Plantinga -, mas não são necessários
e talvez nem mesmo suficientes para a justificação
epistêmica:
[N]a minha visão, os cristãos podem muito propriamente
oferecer quaisquer argumentos para a verdade da crença
cristã que eles pensam serem apropriados. Eu duvido que
esses argumentos sejam suficientes para avalizar [warrant]
a firmeza da crença envolvida na fé (como
tradicionalmente compreendida), mas não se segue que
eles não tenham qualquer utilidade. (...). Minha afirmação
principal aqui é somente que tais argumentos não são
necessários para a crença cristã justificada, racional ou
avalizada. 26
De que modo, entretanto, a crença na existência de
Deus pode ser propriamente básica? Para sermos bastante
sucintos, Plantinga defende uma analogia com a percepção
sensorial e outras faculdades que produzem crenças básicas
(i.e., não inferenciais). Ele apresenta um modelo segundo o
qual existe um senso inato da divindade no ser humano – o
Epistemologia Reformada negar isto. A experiência religiosa pode contar
como “evidência” não-inferencial (ibid., p. 698).
24
PLANTINGA, 2000, p. 177ss.
25
Veja a penúltima nota.
26
PLANTINGA, 2001, p. 217; itálicos do autor.
278
Epistemologia da Religião
sensus divinitatis -, além da atuação do “testemunho interno do
Espírito Santo” no indivíduo. Se o modelo for verdadeiro,
então tanto o sensus divinitatis quanto o testemunho interno
do Espírito Santo produzem crenças “propriamente básicas”
sobre Deus, ou seja, crenças teístas justificadas nãoinferencialmente. 27 Neste caso, porém, a justificação
epistêmica da crença em Deus está condicionada à verdade do
modelo teísta apresentado. Plantinga não vê, porém,
nenhum problema em se manter tal condicional.
Outra importante abordagem de justificação nãoinferencial da crença teísta, envolvendo a experiência religiosa
ou percepção de Deus, é oferecida por W. Alston. 28 Não
teremos espaço aqui, entretanto, para expô-la. De qualquer
modo, fica claro o contraste entre essa abordagem da
Epistemologia Reformada e o Evidencialismo Teísta visto
anteriormente, ainda que ambos, no fim das contas, queiram
afirmar a racionalidade/justificação epistêmica da crença em
Deus.
4.
O Fideísmo
Há uma quarta resposta paradigmática à nossa
questão principal, acerca de se a crença na existência de Deus
é justificada epistemicamente ou não – a oferecida pelo
Fideísmo. O Fideísmo não é de modo algum ‘popular’ entre
os filósofos (mesmo teístas!), por causa de sua associação
com uma atitude anti-filosófica e, ás vezes, contrária à razão,
no que concerne à crença em Deus.29 É bastante citada, neste
27 PLANTINGA, 2000, p. 167ss, 241ss. Plantinga fala não só de
justificação, mas também de “aval epistêmico” (warrant). Obviamente,
não podemos aqui desenvolver a exposição do modelo de Plantinga.
Note, porém, que o sensus divinitatis não é, necessariamente, uma forma
de “percepção” de Deus. A analogia é mais sutil (ibid., p. 180ss).
28
ALSTON, 1992.
29
Cf. AMESBURY, 2012.
Rogel Esteves de Oliveira
279
contexto, a pergunta retórica de Tertuliano: “O que de fato
tem Atenas a ver com Jerusalém?”.30 Poderíamos, entretanto,
interpretar o Fideísmo não segundo sua forma mais extrema
– contrária à razão -, mas segundo uma posição de acordo
com a qual a justificação/racionalidade da crença em Deus é
outra que não (puramente) a justificação epistêmica,
exclusivamente direcionada à obtenção de verdade e
conhecimento. Boas candidatas neste sentido seriam a
justificação moral, prudencial ou pragmática. É assim que
poderíamos compreender (grandes!) pensadores geralmente
associados com o fideísmo, como Pascal31 - que orienta a
“aposta” na existência de Deus – e James32, que defende a
crença em Deus como uma “opção genuína”.
Segundo esta interpretação, um fideísta pode
concordar plenamente com as premissas (1) e (2) do
argumento dos críticos evidencialistas à crença religiosa e,
portanto, também com sua conclusão, a saber,
(C) Logo, a crença na existência de Deus não é
justificada epistemicamente.
Para o fideísta, esta conclusão não precisa ser
compreendida como algo que nos leve necessariamente à
suspensão de juízo, por exemplo; afinal, há outras
justificações disponíveis ao sujeito que o “autorizam”
(moralmente, prudencialmente, etc.) a crer em Deus. Em
outras palavras, a justificação epistêmica – que exige evidências
adequadas – não dá conta sozinha da racionalidade da crença
religiosa.
Apud AMESBURY, op. cit. Tertuliano, porém, jamais teria dito
“Creio porque é absurdo”, como amiúde atribuem a ele (ibid.).
30
31
PASCAL, 1979.
JAMES, 1956. Entretanto, AMESBURY (op. cit.) não concorda
plenamente com esta interpretação em relação a James. Para ele, James
ainda trabalha com uma justificação epistêmica para a crença em Deus,
mesmo que a evidência não seja suficiente. Outros autores geralmente
associados com o Fideísmo são Kierkegaard e Wittgenstein (cf.
AMESBURY, op. cit.).
32
280
Epistemologia da Religião
CONCLUSÃO
Como vimos, há quatro respostas que são
paradigmáticas à questão colocada pela Epistemologia da
Religião – “A crença religiosa/crença em Deus é justificada
epistemicamente?”. Das quatro, três assumem sem problema
a tese evidencialista segundo a qual a justificação epistêmica da
crença religiosa exige bons argumentos. Das quatro, duas
defendem a justificação/racionalidade epistêmica da crença em
Deus, enquanto as outras duas – uma agnóstica/ateia e outra
teísta - abraçam a conclusão de que a crença em Deus não é
justificada epistemicamente. Finalmente, das quatro, apenas
uma tem uma atitude contrária à crença religiosa.
Diante deste sucinto quadro do interessante campo
da Epistemologia da Religião, o leitor é convidado agora a se
aprofundar em cada uma das respostas oferecidas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALSTON, William. Perceiving God. Ithaca: Cornell Univ.
Press, 1992.
AMESBURY, Richard. "Fideism". In: ZALTA, Edward N.
(Ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. (Winter 2012
Edition).
Disponível
em:
<http://plato.stanford.edu/archives/win2012/entries/fide
ism/>. Acessado em: 15 Set. 2014.
BERGMANN, Michael. “Religious belief, epistemology of
– recent developments”. In: DANCY, Jonathan; SOSA,
Ernest; e STEUP, Mathias. (Ed.). A companion to epistemology.
Oxford: Blackwell, 2009. p. 697-699.
BONJOUR, Laurence. The structure of empirical knowledge.
Cambridge (MA): Harvard Univ. Press, 1985.
Rogel Esteves de Oliveira
281
CLARK, Kelly James. “Religious epistemology”. In: Internet
Encyclopedia of Philosophy. 2004. Disponível em:
<http://www.iep.utm.edu/relig-ep/>.
Acessado
em:
25/8/2014.
FLEW, Anthony. The presumption of atheism. London:
Pemberton, 1976.
FLEW, Anthony e VARGHESE, Roy Abraham. There is a
god: how the world’s most notorious atheist changed his
mind. New York: HarperCollins, 2007.
FORREST, Peter. “The epistemology of religion”. In:
ZALTA, Edward N. (Ed.). The Stanford Encyclopedia of
Philosophy.
(Spring
2014).
Disponível
em:
<http://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/relig
ion-epistemology/>. Acessado em: 25 Ago. 2014.
GRECO, John. “Is Natural Theology necessary for theistic
knowledge?”. In: ZAGZEBSKI, Linda. (Ed.). Rational faith:
Catholic responses to Reformed Epistemology. Notre Dame:
Univ. of Notre Dame Press, 1993. p. 168-198.
JAMES, William. “The Will to Believe”. In: --------. The Will
to Believe and Other Essays in Popular Philosophy. New York:
Dover, 1956. (Originalmente publicado em 1897).
PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural,
1979. (Col. Os Pensadores).
PLANTINGA, Alvin. “Rationality and public evidence: a
reply to Richard Swinburne”. Religious Studies, 37 (2001), p.
215-222.
282
Epistemologia da Religião
--------. “Reason and belief in God”. In: PLANTINGA,
Alvin e WOLTERSTORFF, Nicholas (Ed.). Faith and
rationality: reason and belief in God. Notre Dame: Univ. of
Notre Dame Press, 1983. p. 16-93.
--------. Warranted Christian Belief. Oxford: Oxford Univ. Press,
2000.
STANLEY, Jason. Knowledge and practical interests. Oxford:
Oxford Univ. Press, 2005.
SWINBURNE, Richard. The existence of God. 2.ed. Oxford:
Oxford Univ. Press, 2004.
WIKIPEDIA contributors. “Richard Swinburne”. In:
Wikipedia, the Free Encyclopedia.
26
August
2014.
Disponível
em:
<http://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Richard_Swi
nburne&oldid=622831539>. Acessado em: 12 Set. 2014.
--------. “William Alston”. In: Wikipedia, the Free Encyclopedia.
31
August
2014.
Disponível
em:
<http://en.wikipedia.org/w/index.php?title=William_Alst
on&oldid=623606322>. Acessado em: 15 Set. 2014.
ZAGZEBSKI, Linda. “Introduction”. In: --------. (Ed.).
Rational faith: Catholic responses to Reformed Epistemology.
Notre Dame: Univ. of Notre Dame Press, 1993. p. 1-13.
Marcelo L. Pelizzoli
283
Notas sobre a radicalidade da
ética da alteridade frente à crise
de nosso tempo1
Marcelo L. Pelizzoli2
Urge entender um pouco mais sobre nosso tempo,
não apenas os acontecimentos que vemos nos jornais, mas
buscar a compreensão histórica de nosso momento atual,
Trata-se aqui de algumas reflexões livres no tocante à Alteridade, numa
aproximação crítica à crise ética de nosso tempo. Devo muito desta
discussão e da minha formação filosófica aos grandes professores do
Mestrado e do Doutorado da PUCRS, tais como Pergentino Pivatto,
Ricardo Timm de Souza, Ernildo Stein, Hans Flickinger, Jaime Paviani,
Urbano Zilles, Draiton de Souza, entre outros. Cursei nada menos do
que 34 créditos no Mestrado e 45 no doutorado da PUCRS, e em torno
de 5 disciplinas com Prof. Pivatto, 4 com prof. Stein, 3 com prof.
Flickinger, 2 com prof. Timm. Foram oito anos na instituição, em que
também dei aulas e fiz uma Especialização em Ciência Política.
Igualmente, dos meus 16 livros publicados, três o foram pela
EDIPUCRS: A relação ao outro em Husserl e Levinas (1994); Levinas: a
reconstrução da subjetividade (2002); O Eu e a diferença: Husserl e Heidegger
(2002).
1
Mestre, Doutor e pós-doutor pela PUCRS. Prof. da UFPE. Coord. do
Espaço de Diálogo e Reparação da UFPE. www.curadores.com.br
2
284
Notas sobre a radicalidade da ética da
alteridade frente à crise de nosso tempo
nos seus constitutivos profundos. Para isto, para ir ao que
está latente, oculto, mas vigente, a filosofia é um
instrumental importante, quando consegue ser uma filosofia
prática. Entender um pouco mais de nós mesmos, tarefa
primeira, requer entender melhor nossos “paradigmas” –
culturais, sociais, religiosos, filosóficos - e suas
transformações. Onde estamos mergulhados? Por onde
flutuam nossos desejos e intenções? O que significa ética
hoje? Que tipo de relações temos estabelecido com o mundo
que desemboca no que se chama de crise ética?
Torna-se repetitivo dizer que estamos vivendo uma
crise, e no sentido profundo, complexa, multidimensional,
interligada a vários fatores e mudanças, muitas delas
imperceptíveis. Mas crisis não significa apenas negatividade,
catástrofe; em meio aos sofrimentos que acompanhamos e
vivemos, dá-se uma ruptura com padrões ou paradigmas
gerais de compreensão de mundo e de comportamento, bem
como de valores.
É a conhecida Mudança de Paradigma, de padrão
geral, de visão sobre as relações humanas que estamos
focando. Não é apenas um ou vários modos novos de olhar
as coisas, mas alteração naquilo mesmo de onde partimos
para compor nossas teorias e visões particulares das coisas,
da natureza, dos conflitos, da vida em sua alteridade. Uma
mudança de paradigma diz respeito à alteração da própria
inteligibilidade que guia nosso ver e agir no mundo.
Se há crise e mudança, e de paradigma(s) que nos
orientaram por muito tempo, alguns desses ligam-se à
famosa crise da metafísica. Metafísica foi o modo inaugurador de
pensar do ocidente, que se confunde com a filosofia, que por
sua vez serviu de base para a Ciência. Mas o desenrolar do
tempo e o próprio desenrolar da filosofia e da ciência
levaram à crise da metafísica. Num pensar metafísico
teríamos, em geral, noções seguras de Realidade, Verdade,
Bem, com concepções de Ser e existir baseados na correção
da razão humana. Ou seja, poderíamos ver e expressar o que
Marcelo L. Pelizzoli
285
é o real, o verdadeiro. A filosofia nasce como busca da
verdade, e como tentativa da razão humana de dizer o que é
a alteridade, chamado de “real”, o que são as coisas. A ciência
diz o que as coisas são como objeto, e assim tenta
transformá-las. A palavra ontologia (sinônimo de metafísica) é
importante aqui: ontos (ser), logos (sentido, palavra); nosso
pensar é extremamente ontológico, metafísico. Temos a
obsessão vinda de herança grega em dizer o que é (ser), de
aclarar e expulsar o desconhecido. A metafísica faz isto, indo
além das aparências e do mundo físico que vemos, indo às
ideias, ao que está por trás das coisas, ao ser dos entes (coisas
existentes), à essência, à Ideia. Por exemplo: Luis Inácio é
um ente (pessoa particular); mas ao mesmo tempo, para a
ontologia, interessa que ele corresponde ao ser, no caso,
humano. Assim se crê e interpreta racionalmente o contexto
da filosofia, pretensamente. Contudo, de algum modo, “não
existe ser humano”, no sentido genérico. Existimos, sim, no
particular, mesmo em comunidades.
Nossa tradição sempre falou em moral e ética,
porém, em geral não soube lidar bem com a alteridade diversidade, multiplicidade, diferença, o realmente outro que
há no outro. Inclusive, acentuam-se os discursos morais em
vários momentos de crise. Hoje, como nunca, se fala em
moral, há um grande e ramificado discurso com base moral,
apesar das transformações e críticas que a moral tradicional
vem sofrendo, o descrédito, a pulverização dos valores etc.
Mas a moral, no plural, como postulados e pressupostos de
comportamento, de visão de mundo, de ação, de códigos e
regras e costumes instituídos, está em quase todos os
discursos, instituições, lugares e até em meio àquilo que fere
a própria moral3.
Exemplo concreto: quando uma empresa poluidora incorpora normas
ecológicas paliativas; quando uma propaganda de cigarro apresenta a
saúde e o esporte do fumante; quando os fariseus da política falam em
defesa do social mas buscam apenas conservar; quando se fala muito e
não se faz nada etc.
3
286
Notas sobre a radicalidade da ética da
alteridade frente à crise de nosso tempo
Não obstante, para nosso caso aqui, uma coisa é a
moral, que julga os outros conforme um padrão determinado,
que impõem códigos e comportamentos, e outra coisa é a
ética. A moral pode ser altamente defensiva, me colocar no
lugar do bom, do que é correto e, portanto, aceito pelos
padrões estabelecidos pelo nível social ou até religioso. A
moral, por vezes, entra como apoio da aparência do cidadão,
uma capa protetora pela qual ele não é desafiado e também
pouco desafia seus iguais. A moral, eminentemente, visa
manter a segurança e estabilidade pessoal-social do que dela
está imbuído. Em geral une-se ao seguimento rígido da lei,
na sua dureza, não aceitando os desvios e fraquezas do outro.
Portanto, muitas vezes há uma dificuldade do moralista de
lidar com a alteridade, tanto quanto o perverso e aquele que
“pratica maldades”. Mata-se em nome da moral, em vários
sentidos, impondo um olhar único, um viés particular apenas,
um costume conservador que não contempla a juventude de
outros valores. A criatividade e as possibilidades humanas
são transgressoras, e as autênticas transgressões éticas são as
que muitas vezes sacrificam o próprio interesse em prol dos
outros. Na moral pode haver sacrifício, mas na maioria dos
casos é o retorno enriquecido a si que é visado, a autodefesa,
como na neurose, no remoer e alimentar-se da culpa, como
no esconder-se atrás dos próprios defeitos ou virtudes.
A ética pode ser moral, imoral e até amoral. Ela não
visa um comportamento geral ou até particular e o
seguimento de regras e ações preestabelecidas como morais.
A ética diz do desafio das relações, que estão assentadas na
alteridade, na diferença, na imponderabilidade, no tempo
precioso que flui sempre. A ética vem de ethos, podendo ser
acentuado seu caráter de convivência em um lugar, no
mundo de relações, com outros, mas não tanto a fixação nos
costumes e na vigência do meu lugar (nacionalidade etc), mas
o lugar ou não-lugar humano - que depende da diferença e do
acolher e ser acolhido por outrem, viver o desafio dos outros.
Marcelo L. Pelizzoli
287
Numa visão da ética (da alteridade, podemos falar
então de ética da alteridade), cada momento é precioso, é o
momento da vida, o pequeno-grande momento; o instante é
o lugar da ética, ou seja, o Tempo, não antes o Espaço
controlado - a ética de um lugar, de uma nação ou
comunidade, de uma religião determinada e que se fecha em
si. A ética pode ser vivida inclusive como estando além do
tempo (pensando no sentido comum do tempo) e do espaço.
O Tempo, não o cronológico, é o que rege a vida humana
mais profundamente, pois ele é sinônimo de alteridade, e de
relação ao Outro; portanto, lidar com o tempo, com tempo,
é entrar no tempo do outro, e igualmente ter tempo para o
outro (e para o outro de si mesmo). O cuidado de si, aqui, se
confunde com o cuidado de outrem; a cada instante é isto
que está em jogo em primeiro lugar. Em instantes acontecem
grandes mudanças, fatos únicos, irrepetíveis, com os quais
temos que lidar, assumir ou remediar ou aproveitar.
A ética da alteridade não é um ramo da moral, ou uma
nova ética, ou um novo modo de agir universal e mesmo
uma visão de mundo determinada a seguir. Antes de mais,
ela assume a impermanência e a desconstrução que ocorre no
tempo (inter)humano, a precariedade das nossas concepções,
as fixações de nossas identidades, nacionalidades; o lado
volátil das nossas posses, a auto-prisão em que nos metemos.
A ética da alteridade aceita passar pela negatividade, pela
negação do Mesmo – mantido pelo Poder, pela acumulação
do Dinheiro, pela mera aparência, pelo egoísmo, pela própria
filosofia e moral desengajadas, para então assumir as
rupturas, as crises, mudanças necessárias, o Tempo e o
Outro. Evoca o resgate do Outro antes do Mesmo, mas sem
diabolizar o Mesmo, pois estamos igualmente nele. É por
isso que aproximo ética da alteridade da prática da não-violência,
bem como a luta pela libertação dos oprimidos; de igual modo
a compaixão budista e o amor (ágape e caritas) cristão; e ainda
as filosofias do diálogo e tudo aquilo que promove a alteridade
288
Notas sobre a radicalidade da ética da
alteridade frente à crise de nosso tempo
de outrem. Ética como o desafio (inter)humano, e o humano
como humus.
Por isto, particularmente, penso que a ética da
alteridade tem em primeiro plano o acolhimento de outrem,
na figura em especial dos que morrem por falta de condições
as mais variadas: saúde, grandes desvios de verba, dívidas
externas do III Mundo, questões econômicas e políticas,
desamor e desrespeito à fragilidade de outrem e à dignidade
mínima da vida humana.
A ética da alteridade denuncia a hipocrisia; não exige,
portanto, santos ou mártires, mas joga o sujeito contra suas
próprias contradições, no momento em que leva uma vida
anti-ética, moral até, mas descompromissada de outrem e do
sofrimento alheio. A ética da alteridade serviria também de
remédio, mesmo que amargo, pois não visa apenas
consolação; remédio porque possibilita casar o autointeresse
com o interesse alheio, abrindo mão por vezes do próprio
interesse. Este é também um realista e prático ensinamento
de Dalai Lama, um egoísmo altruísta, pois é o único egoísmo
que “dá certo”, e beneficia o outro ao mesmo tempo que o
ego. Mas ética não é contabilidade, e acima de tudo, ser
humano é correr riscos, são sempre riscos daquilo que me
ultrapassa; do contrário, posso ficar preso no medo e na
involução do ego para si mesmo, remoendo suas ameaças,
desgostos, fracassos, centrado sempre no autointeresse e
autocura.
O farisaísmo atual fala em moral, leis e ordem o tempo
todo, bem como em salvação das almas, ou dos corpos belos;
e não hesita em pregar mais violência contra a violência,
“matar bandidos”, pena de morte, castrar estupradores,
punir profissionais do sexo, eleger homens truculentos; por
outro lado, apoia a prostituição assassina da liberalização
geral do Mercado, Capital especulativo, grandes fortunas,
lucros em cima da morte alheia.
A ética da alteridade tem uma questão delicada a ser
debatida, é a sua relação com a tradição, sempre muito
Marcelo L. Pelizzoli
289
imbuída de valores morais. Ela não pode se furtar a
reconhecer que a velocidade das mudanças da sociedade
industrial e tecnológica atual deixa os indivíduos sem raízes,
sem chão, sem valores e modos de vida – os quais não
podem ser simplesmente descartados. A perda dos lastros de
tradição e história hoje é um problema grande, em termos de
perda de consciência política, cidadania, desenvolvimento
sustentável, mitos e narrativas que sustentam o imaginário e
o futuro das comunidades humanas. A linha entre mudança
e permanência é muito delicada, e impõem buscar e
desenvolver a sabedoria, pois cada momento é momento de
decisão, de desconstrução e reconstrução, mas também de
manutenção de valores em meio às tempestades. Eis de novo
aqui a “porta estreita”, ou o “caminho do meio” a ser
elaborado, mas isso só pode ser feito verdadeiramente em
comunhão.
A moral em geral não contempla trazer para fora as
armadilhas e podres emocionais que habitam o sujeito, mas
reprimi-los em geral, ou tornar moral ou mesmo extra-moral
àquilo que legisla em favor do próprio interesse, da
autodefesa, não alterando os valores encalacrados e
defensivos do sujeito. A ética aceita o incômodo de passar
pelo emocional, pelo sujeito do pathos, patológico, pela crise,
em prol de levar esta à crítica. Da crise à crítica, é a maneira
mais frutífera talvez de lidar com a instabilidade da vida
humana, aceitando as dores emocionais sem estagnar-se e
sem parar a busca inter-humana. Em geral, esta encontra o
outro na sua diferença e fragilidade, responde por...,
responsabilidade, pathos como paciência por, paixão que
atravessa o narcisismo, portanto, compaixão4.
Por fim, veja-se que falar em alteridade e ética evoca os
temas mais relevantes existencialmente para a vida humana
Para aprofundar estes temas é indispensável ler meu texto “O sujeito:
paixão e pathos”. In: SOUZA, R. Timm (org.). Éticas em diálogo. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2003, (p. 337-364)
4
Notas sobre a radicalidade da ética da
alteridade frente à crise de nosso tempo
290
e para o conhecimento: o tempo, a moral, o outro, o social,
o amor, o corpo, as crises, enfim, as relações e o nosso
destino no mundo.
Pax et bonum
Bibliografia
PELIZZOLI, Marcelo. A relação com o outro em Husserl e
Levinas. Porto Alegre: Edipucrs, 1994.
_____________. A emergência
Petrópolis: Vozes, 1999.
do
paradigma
ecológico.
_____________. Levinas: a reconstrução da subjetividade. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2002.
_____________. O eu e a diferença: Husserl e Heidegger. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2002.
_____________. Homo ecologicus. Caxias do Sul: EDUCS,
2011.
_____________ Ética e meio ambiente para uma sociedade
sustentável. Petrópolis: Vozes, 2013.
_____________ Saúde integral – dietas preventivas e curativas.
Recife: EDUFPE, 2013.
_____________(Org.) Cultura de paz – educação do novo tempo.
Recife: EDUFPE, 2008.
_____________(Org.) Cultura de paz – a alteridade em jogo.
Recife: EDUFPE, 2009.
_____________(Org.) Cultura de paz – restauração e direitos.
Recife: EDUFPE, 2010.
Marcelo L. Pelizzoli
_____________(Org.). Bioética
Petrópolis: Vozes, 2007.
291
como
novo
paradigma.
_____________(Org.). Caminhos da saúde – a integração
mente-corpo, Petrópolis: Vozes, 2010.
_____________(Org.) Saúde em novo paradigma. Recife:
EDUFPE, 2011.
_____________(Org.) Diálogo, mediação e justiça restaurativa.
Recife: EDUFPE, 2012.
_____________(Org.) Novas visões em saúde. Recife:
EDUFPE/Libertas, 2013.
_______________.“O sujeito: paixão e pathos”. In:
SOUZA, R. Timm (org.). Éticas em diálogo. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003, (p. 337-364)
292
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
The lifeworld in the context of
the Crisis of European Sciences
and Transcendental Philosophy:
The political potential of
Husserl’s mature transcendental
philosophy
Fabrício Pontin1
The text of the Crisis is a passionate, sometimes
nearly fanatic, defense of the relevance of “philosophical
reason” for the development of human spirit. In the context
of texts by Husserl, which are usually somewhat obtuse and
written with the sort of clinical detail one would expect from
1 PhD (Philosohy), Southern Illinois University/2013. Researcher
(CAPES/PNPD) at the Brazilian Centre for Research in Democracy
(PUCRS). Graduated (2005) in Ciências Juridicas e Sociais at PUCRS,
Master (2007) in Philosophy, AOS Ethics and Political Philosophy at
PUCRS. Is currently a member of the “Social Media and DecisionMaking Processes: Reason and Emotion in Social Relations”,
coordinated by the The Brain Institute (InsCer), Brazilian Center for Research
in Democracy, Bioethics Institute (PUCRS) and the “Research Group in
Neurosciences and Philosophy” (PUCRS).
Fabrício Pontin
293
a surgical report, rather than, say, an essay on timeconsciousness, the Crisis appears as an abnormality: it reads
almost like a manifesto for the spirit of humanities, a spirit
that Husserl sees as alive within the phenomenological
tradition.
Husserl begins by pointing, and rightfully so, at the
intimate relation between modern philosophy and the
attempt to clarify the place of man in nature. A quick passage
through the sixth paragraph of the Crisis gives us a better
picture of this movement: at first, Husserl seems to be
attempting to state a superior position of the European
model of rationality, in which philosophical insight, as
introduced in Greek philosophy and continued throughout
two thousand years of tradition, would manifest a universal
telos. As a man of his age, and along the same lines Weber
had drawn in his famous couple of essays on vocation,
Husserl insists that the spiritual struggle at the heart of
European humanities could be in fact be understood in a
cosmopolitan sense. When we attempt to look at the core of
what makes us human, of what genuinely constitutes our
becoming human, we describe the problem of humanity as
a problem of meaning: to pose the question about what
makes us become human, then, is to ask for the meaning of
man, and to operate in such a way is to struggle within the
parameters of Greek humanism.
But this seemingly complete adhesion to the
universal character of humanism is quickly put in perspective
by Husserl. Though modern societies tend to become
rationalized, this is a historical process which requires a
“socially and generatively united civilization”2. Now, if such
historical process is indeed universal remains to be seen.
Surely, securing the necessity of this process by the simple
2 Edmund Husserl. The Crisis of European Sciences and Transcendental
Phenomenology: An Introduction to Phenomenological Philosophy.
(Evanston:Nortwestern University Press, 1970), 15
294
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
claim of superiority of the European standards of reason
and objectivity is not enough, and I do not think it is absurd
to suggest that Husserl has the European imperial
pretensions in mind when he points at the naivety in the
claims of universality in the rationalism of the 18th Century.
In that sense, Husserl is not a typical byproduct of
the Westphalian illusion with the necessity of the empire of
rights. And yet, he seems to retain a genuine sense of
rationalism which is reaffirmed within the parameters of an
apodictic, phenomenological, methodology.
From an epistemological standpoint, it seems to me
that Husserl is attempting to overcome the problem of the
gap between consciousness and world in Kant’s philosophy.
In my view, this is the necessary interpretation of the
paragraph 32 3 of the Crisis, where Husserl recasts the
problem of objective knowledge and self-consciousness.
Husserl understands that humanity in Kant is about resisting
sensitive input and reasoning about the sensitive input that is
affecting us. No one is obliged to kill, to lie or to let a friend
drown in a river. We can decide otherwise, and that's
precisely why when we are free we are no longer part of a
nature marked by a vulgar display of sensitivities. Rather, we
are part of a world of understanding marked by the
conscious option towards morality. That is why in the
concluding remarks of the groundworks Kant writes that “The
speculative use of reason with respect to nature (natur) leads to
the absolute necessity of some supreme cause of the world
(welt)” 4 . This beautiful passage introduces a remarkable
distinction between nature and world, where the cause of a
world is the comprehension of the causes of the categorical
imperative: our condition as free.
3
Ibid, 118
Immanuel Kant, “Groundwork of the metaphysics of morals” in
Practical Philosophy Ed. Mary J. Gregor (1797; repr., Cambridge:
Cambridge University Press, 2009), 107
4
Fabrício Pontin
295
Our intelligence, our reason, allow us to think
beyond nature and into a world of understanding, the idea
of Freedom (as a transcendent concept) guides us into this
world, and our free practices (this is what Kant defines as
negative freedom 5) are the modes of making sense of this
ideal concept. Kant knows that speculative reason cannot
give you the full content of transcendental freedom6 , but he
also stresses that this ideal gives you the guidelines through
which you can think through your autonomy a way into
moral practices and development of the self.
As Husserl dwells in the distinction between “life of
the plane” and the “life of depth”, he seems to be following
a Kantian analysis of the progression between allowing
oneself to be unreflectively affected by external input, and
actually reflecting upon external objects, questioning their
conditions and premises, and planning ahead towards their
possible uses. In Husserl, this reflective exercise opens up a
qualified domain of experiences, in the same way that the
use of speculative reason as a tool for understanding
motivations would open the ground for moral action in Kant.
I am not sure if Husserl was actually influenced by
Kant’s text on cosmopolitan history, but his mode of
understanding the historical development of reason outside
the bounds of an isolate subject allows us to draw an
interesting line of comparison, one that I hope will help us
understand what is at stake in the notion of a lifeworld, and
also how we can actually defend a Husserlian perspective on
reason.
Now, this is not to say that Husserl fully adopts the
Kantian insight in reason. Had he done so, he would not
have developed a different perspective on transcendental
philosophy. But it is worth asking why the Crisis first seems
to recognize the Kantian insight of a historical and public
5
Ibid, 94
6
Ibid, 106-7
296
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
development of reason, only to almost immediately follow
such recognition with a heavy critique of the Kantian model
of analysis as somewhat naïve and objectivistic.
If we follow the Kantian “safe way” into science, it
seems inevitable that we will subscribe to a model of
objective, context independent, truth, which is, on its turn,
based on a model of subjectivity that is equally stable and
static. It is important to stress that this is not to say that
individuals do not constitute their values historically, nor is
it to say that a singular individual will reach the ultimate
truthful form for all sorts of possible assertions about the
world. The point for Kant is that consciousness has a
transcendental form; a simple, irreducible, mode of
operation that, if used, will clarify the materiality of the
external nature that is now conceived in terms of a world.
This dualist division between nature and world is central to
Husserl: as we have seen, for Kant the solution is to develop
a transcendental notion of freedom based on a normative
conception of personhood, one based on an autonomic
regulation of the Ego. This means that given the
understanding of the necessary laws that guide reason and
understanding, the consequential clarification of the
structure of the world will follow. It seems to me that this is
the place where Husserl points at an objectivistic reduction
of the problem of consciousness and world.
Still, the critique against objective science and
positive reduction of the problem of knowledge and
sciences is not aimed at Kant alone; it is aimed at the whole
of the modern tradition. Husserl tries to overcome this
objectivistic account by developing his own concept of
transcendental
philosophy,
and
connecting
this
transcendental philosophy, as Kant had before him, to a
notion of worldliness. But unlike Kant, who stressed that
reason grounds the possibility for objective statements about
the world, Husserl points that the safeway developed by
Kant is only possible within a determined world of
Fabrício Pontin
297
experiences and references, and the structure of a shared
social world of experiences is taken for granted in Kant.
In that sense, objective sciences operate within a
determined life frame, a setting in which predications made
in a “scientific” style become possible. But the scientific
form of enquiry is but one way of asking questions about
the structure of reality, and it presupposes a long term
habituation to this mode of asking questions. This process
of habituation is understood by Husserl as the instauration
of norms, and it presupposes a lifeworld in which individuals
progressively constitute habits.
Husserl proceeds in the Crisis towards a clarification
of different stages leading to his transcendental conception
of the lifeworld. I would like to divide these stages as it
follows:
- Habitual, pre-scientific, institution of tradition,
grammar and standards
-
Reflective action upon experiences regarding
tradition grammar and standards, leading to a
further complexification of the descriptions of
reality and the development of a “scientific”
attitude towards the habitual world
-
The realization that the lifeworld grounds claims of
universality of any sort
-
The consequential universal character of the
lifeworld, and the need to adopt it as the a priori for
a transcendental phenomenology.
In that sense, the lifeworld becomes thematized
transcendentally as it becomes an a priori, but Husserl makes
a step by step analysis of modes in which a lifeworld appears
before its a priori structure is clear. But the steps of
thematization in which Husserl proceed do not indicate a
chronological construction of denser conception of
298
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
worldliness, and this is particularly relevant as we contrast
Husserl’s analysis of the possibility of social reality, with
Weber’s account of the construction of social reality. Weber
provides us with a historical account regarding the
emergence of social institutions, social norms and consensus,
stating, along with it, the roots of social conflict in the
different historical constructions of social realities, which is
to say, different forms of asserting how personhood is
constituted.
Husserl does not ignore this ontic level of
constitution, and outside the context of the Crisis, this
seems to be described in terms of a construction of a
familiar “homeworld” in conflict with a strange “alienworld”.
But I do not want to dwell on these topics now, as I am
restricting my analysis to the strategy undertaken in the Crisis.
At this point, then, it should suffice to say that Husserl
recognizes the ontic constitution of preferences, as they
relate to social norms and consensus, in terms of habituation
and heritage. This level of “prescientific life” is the first
point of analysis in Husserl, and is also the most “naïve”
appearance of the lifeworld, as reality becomes equal to
those first-hand subjective experiences and affections that
we go through and do not reflect upon outside the
parameters of these very same experiences.
Allow me to break this down a bit: what I mean when
I state that our reflections about heritage, on a prescientific
level, are bound to the parameters of mere appearances, is
that we might take our heritage as a dogmatic reference point
to all our assertions about the world. We comprehend reality
in terms of the immediate surroundings in which we are
inserted, and we do not really reflect upon then. We do not
question how our heritage has come to be the case, we take it
as an ultima ratio. In that sense, we do not actually reflect
upon our heritage, we only reproduce it as an objective reality.
Further, this reproduction of a subjective experience
as objective reality is complexified in terms of discursive
Fabrício Pontin
299
practices. It is interesting to note that the description of the
emergence of the scientific meaning-complex in this stage,
in Husserl, is almost identical to the description of the
scientific meaning-complex in Weber. Both indicate that a
scientific point of view reproduces subjective experiences of
a group, but under an ordered set of rules that will guide
procedures that are now labeled “scientific”. For Weber,
however, such is the structure of any scientific endeavor. For
Husserl, this is an objectivistic, context based, notion of
science trying to pass itself as the model for understanding
reality.
Still, such level of analysis is more complex than a
mere reproduction of a heritage. It attempts to reduce some
elements of heritage into an organized system of references
which is further established as a model of any analysis that
could be labeled “scientific”. In that sense, the stock of
meaning-complexes that ground a heritage is ‘purified’ into
a scientific meaning-complex. The problem with this mode
of proceeding is that it super-imposes a model of analysis
of the lifeworld, one way of understanding and
appropriating meaning, as the norm for all sorts of analysis.
As far as Husserl is concerned, however, the only
thing such claims of scientific objectivity accomplish is that
they point at the lifeworld as grounding. This is to say that
claims of scientific objectivity are always operating on a
topological context; they always refer to a lifeworld of
experiences and relations. But while our form of operation
is only re-affirming the materiality of our experiences, rather
than questioning the conditions in which they appear, we
remain with a naïve claim of objectivity: the rationale behind
such claims is, at its best, an ontic reflection upon already
constituted experiences, and, at its worse, a dogmatic world
view that attempts to super-impose its own vulgarity upon
other views.
Husserl thus criticizes, in general terms, the ontic
view of the lifeworld for its focus on the propositional
300
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
elements of constitution. The problem of such account is
that, by focusing on the linguistic reproduction of the
lifeworld, an ontic attitude ends up on the level of
description of previously established patterns. Surely, we
cannot simply let go of these constituted patterns, as
elements of the lifeworld are pre-given to us, but we can
further question the modes in which these elements were
constituted in our consciousness, and further re-constitute
former perceptions, and even reconsider the so-called
“objective” view of positive sciences, for example.
I want to further suggest that Husserl is indeed
providing us with a phenomenological reduction regarding
the lifeworld, and he does so by describing different attitudes
towards the constitution of reality, proceeding until an
ultimately irreducible structure of worldliness is found, and
pointing at the methodological failure in the adoption of a
scientific standard that does not question its own mode of
appearance, its own ontic limitation. Finally, we are able to
point at two attitudes regarding the constitution of the
lifeworld: on the one hand, we have what is called a
“straightforward” attitude, in which the mode of givenness
of the lifeworld is taken for granted. The crisis of modern
sciences is interpreted in Husserl from this standpoint: we
cannot make sense of personhood because the way in which
personhood is understood in positive sciences is taken as a
normative guideline to all possible understandings of
personhood.
On the other hand, we see that Husserl proceeds to
offer a way out of the crisis. Here, the universal character of
the lifeworld becomes central to overcoming the limitations
of an ontic analysis: a reflective attitude will then get back to
the fundamental structure of the lifeworld, and the problem
of the structure, or the conditions without which we cannot
label an object x as “x”, becomes an ontological problem. In
this sense, if we want to stress the distinction between an
ontic and a structural level of analysis in Husserl, we would
Fabrício Pontin
301
have to point that what is meant by structure still retains an
essentialist perspective: objects are given in a way that points
at a persistent structure which suggests a form of
understanding those objects, and this interaction between a
constituting subject and a constituted object also points at a
deterioration of a rigid distinction between subject and
object on an ontological/structural level.
I recognize this last point is somewhat obtuse, and
even controversial. But all I mean by a deterioration of the
distinction between object and subject is that if we look at
the way in which we reflect upon the materials that are given
to us, we are put in immediate relation to these objects. Thus,
objects are given to subjects who in their turn associate
meaning to then. Such movement of constitution
presupposes a reflective attitude, taken in a lifeworld. This
suggests that even as we point at the somewhat naïve
distinction between a rigid “external” and “internal” level
(and I think we had already pointed at this as we analyzed
time-consciousness), we have a persistent structure which
informs the constitution of objects decisively. This
persistent structure is the irreducible transcendental aspect
of the lifeworld, and it is to this structure that genuine claims
of meaningful, and ultimately reasonable, constitution of
reality must refer to.
It is therefore not sufficient to focus on “particular,
factually given appearances”7, stressing the correlation and
adequation of things to the intellect and further pointing at
a strict object-subject distinction. Rather, the defense of a
topological analysis of reality, with basis on the apriori of the
lifeworld, asks us to move away from the particulars,
reducing these contingent, ontic, appearances of objects in
everyday life to their universal characteristics.
7 Edmund Husserl. The Crisis of European Sciences and Transcendental
Phenomenology: An Introduction to Phenomenological Philosophy.
(Evanston:Nortwestern University Press, 1970), 271
302
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
This allows Husserl, in a sense, to be more radical
than Kant regarding sense and meaning constitution. For
Kant, knowledge found a limit outside predication: we could
not have knowledge of those things we cannot really
describe. Husserl seems to invert this by pointing at a preconstitution of sense in space, and the constitution of
subjectivity in this space.
Now I think I have enough elements to return to a
question we approached in our last topic: how is a reasonable
account of preferences possible within a phenomenological
and transcendental perspective?
At this stage in Husserl’s phenomenology it seems to
me that an account of reason would have to integrate both
the perspective of an analysis of the timely constitution of
the transcendental ego, which can be interpreted as a
phenomenology of consciousness (at least as far as the
Phenomenology of the Consciousness of Internal Time is
concerned) or an associative, genetic, phenomenology (as far
as the Analysis Concerning Passive and Active Synthesis is
concerned), and the transcendental, topological, account of
the lifeworld in the Crisis. Truthfully, it would be possible to
claim that each of these phases in the Husserlian effort to
clarify what a phenomenological perspective is would offer
us a different take on reason and constitution, and I think
that to a certain extent I have offered some insights as to
how these processes would look under a static and semantic
strategy (as undertaken in the Logical Investigations), under
a proto-genetic and psychological interpretation (as in the
Phenomenology of the Consciousness of Internal Time)
and in a genetic, associative, account (in the Analysis, and, to
some extent, in the Crisis). As we reach the point of maturity
in Husserl’s phenomenology, however, we are able to see
how a generative account of reason integrates these different
stages in a topological account of reason.
In my view, the best way to clarify this topological
account of reason is to recast a persistent theme in Husserl’s
Fabrício Pontin
303
phenomenology after the 1920s, which is the problem of
normativity and optimality. Such an analysis, connected with
an interpretation of the question of the lifeworld (another
persistent issue in Husserl’s phenomenology after the 1920s)
is immensely rich in terms of references, particularly if we
go outside the works published during Husserl’s life and
dwell into his archival material. However, my objective here
is not to provide a detailed analysis of such material. This is
not, after all, a dissertation about the ramifications of the
idea of the lifeworld in Husserl and the details leading to the
development of the concept. I am only interested in the
question of the lifeworld, and the thematization of the
lifeworld, insofar it might offer us a more sophisticated view
of the process of choice and decision, and how these
processes are thematized temporally and in reference to a
topological ground.
This is why I must stress the relevance of normality
and abnormality in a transcendentally constituted lifeworld
before I can proceed. As I have anticipated, my strategy here
is to undertake an analysis of normality and abnormality by
placing them in the context of an analysis of the lifeworld.
Until now, however, my interpretation of the lifeworld has
been restricted to the development of the concept within the
Crisis, and the difficulty that arises from this choice is that
the question of normality only appears tangentially in the
Crisis, in the second appendix labeled “Idealization and the
Science of Reality”. Norms, at this point, are interpreted by
Husserl as a genuine truth, derived from pure-evidence. This
is notion of self-evident propositions is of interest to me as
it relies deeply on a temporal description of the process of
acquisition of elements that further inform judgments.
The second appendix to the Crisis, in fact, seems to
point at a dense constitution of norms. This means that
individuals are reflecting upon “passively accumulated
304
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
experiential residues”8, and proceeding into a consideration
of whatever grounds these experiential residues, that is, the
ultimate reference point of experiences. But, if we refer to
the abovementioned stages of constitution of the lifeworld,
are we at a dense constitution of a naïve scientific attitude
which is thematizing ontic appearances and affections in a
mere predicative reproduction of previously constituted
patterns or are we at a level in which the predicative patterns
that are supposed to ground “scientific” discourse on an
ontic level are questioned from the standpoint of a genuine
phenomenological reduction?
It seems to me that Husserl points at both attitudes,
but attributes the adjective “genuine” to the reflections that
do not take a determined experiential and shared lifeworld
for granted as the structure of the lifeworld. Furthermore,
this reflection also recasts the distinction between formal
and transcendental logic, but now in the context of an
analysis of the lifeworld: a formal analysis will take one
determined set of experiences, in one determined position
within a lifeworld, as a norm. Thus, one generalizes a familiar
conceptualization, dependent on a set of meaning
complexes and historical contingencies, as a norm. Inversely,
a transcendental analysis of the lifeworld will take this previous
set of experiences as a reference point and further reduce it
to the point where we will remain only with a set of
irreducible characteristics of a given experience – it’s genuine,
essential, characteristics: a pure idea.
But in the Crisis we will not find an express
consideration of the distinction between normal and
optimal constitution. Surely, Husserl hints at this distinction
when the issue of the reconstitution and reconsideration of
preferences is taken, and how the relevant aspects of a stock
of characteristics can motivate us to review how we identify
objects and differentiate between values. Still, these
8
Ibid, 303
Fabrício Pontin
305
reflections are aiming at a clarification of the general
transcendental structure of the lifeworld. Husserl would
break down his topological consideration of the lifeworld
into different contexts of signification elsewhere, and these
distinctions, which ultimately lead to the opposition of
homeworld and alienworld and the phenomenological
consideration of a level of familiarity and alienness in
epistemic and social interaction, are important in my attempt
to offer a phenomenological contribution to the current
discussions on choice and preference.
I do not think it is controversial to point that the
Crisis has as a main concern an elucidation of how we
constitute our own identity, and how we are able to really
interpret and state the reality of objects in the world
(understood, then, outside the parameters of a naïve
naturalism, as a lifeworld). But one should be forgiven for
wondering what is the place of intersubjective relations in
the formation of the lifeworld.
If we take Husserl seriously, transcendental
subjectivity, or “an ego functioning constitutively” is only
possible when intersubjectivity is presupposed9. In the Crisis,
this topic is only hinted at, and is developed within the same
cosmopolitan attitude that marks the rest of the text: genuine
intersubjectivity points at a universally shared structure of
the lifeworld which allows us to point at genuine form of
establishing meaning-complex relations. Now, the temporal
character of this process of establishment, associated with
the multiplicity of reference points, forces Husserl’s hand to
some extent. After all, it would be simple to reproduce a
naturalist attitude wherein the historical development of
reason would necessarily lead to the clarification of an
absolute structure of the lifeworld.
The question of a “universal sociality” arises here as
the comprehension of the totality of individuals that share a
9
Ibid, 172
306
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
transcendental lifeworld. This transcendental lifeworld,
however, is not perceived and experienced by these
individuals equally. The constitution of norms, which is, as
we have seen, dependent on intersubjectively shared notions,
is also dependent on the territory within these norms are
constituted. This suggests that the social constitution of the
lifeworld requires, within Husserl, a generative
phenomenology, which is to say: it presupposes that we are
not limiting our analysis to the singular individual and her
particular set of constituting elements (her first person
perspective)10.
Some insights for future developments: elements for a
social comprehension of the lifeworld
The question of the constitution of the normal and
the optimal, in Husserl, plays a similar role to the one we
attributed to the notion of type in Weber. The normal refers
to a process of habituation: in time, individuals incorporate
elements of their surroundings, and the set of experiences
they have in these surroundings, to their consciousness. Such
processes create familiar appearances and relations of
expectancies and disappointments. Allow me to give a banal
example here in the form etiquette norms: if one grows up
in a scenario where if one sneezes, one immediately
apologizes for it, this creates a norm. This norm, then,
orients comportment in every point in which one sneezes.
In that case, if one fails to apologize after one sneezes, other
actors who share the same heritage will react with
disappointment.
Now, though this example is banal, it points at
certain characteristics of the constitution of normality. First
of all, this stresses that we will only be able to understand
Anthony Steinbock. Home and Beyond: Generative Phenomenology after
Husserl (Evanston: Northwestern University Press, 1995) , 127
10
Fabrício Pontin
307
something as a norm as it is inserted in time. I already
anticipated this while bringing to modalities of timeconsciousness (expectancy and disappointment) in my
description of normality. It is because of this timely
constitution of the normal that I am able to establish a
concordance in the continuity of appearances, leading to my
qualification of a certain experience as “normal”11.
As these normal experiences are repeated in time,
they acquire a certain density, and we might them qualify our
normal experiences as “optimal”. An “optimal” here does
not imply a rupture in the former experiences of the
“normal”, at least not yet. It seems to me that an optimal
level of constitution is at first possible in terms of an
experiential peak for a certain normal, say , in terms of
etiquette, participating in a tea-ceremony in Japan might
institute an optimum in terms of table manners, this
optimum does not necessarily introduce a rupture, or a
discordance, with my previous set of experiences regarding
table manners, but it does introduce a standard against which
all other experiences of the same type will be compared.
But a rupture in this experience, a discordance with
the way the object normally appears, that is an abnormality,
can re-constitute the object. The abnormal here will have its
own continuity, its own presence in the experience of the
object. A discordance will then constitute, an optimum, a
new norm. This emerges out of the experience of the
everyday world, of the lived-world. Of course, this is
fundamental to our understanding of home and alien worlds;
the normal and the abnormal only apply in a system of
specific species, in a determined ecosystem, if you wish.
The interesting point here is that a discordance is a
break within a former order of normally instituted
constitution. If in the example of the tea-ceremony we have
a confirmation of previous established norms of table11
Ibid, 132
308
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
manners, but on a higher level of technical and aesthetical
proficiency, in this case we would have a completely different
dimension of what table-manners mean to begin with - in
this case, the abnormal institutes a new level of signification,
and points at a different mode of constituting social reality.
In fact, abnormal forms of constitution reflect a
multiplicity in the way in which we constitute social reality.
This multiplicity, in Husserl, is expressed in the distinction
between a familiar homeworld and a strange alienworld.
Now, the familiar and the strange are generated, in
Husserl, according to habituation and experience. In this, I
am dangerously close to simply repeating the distinction
between primary and secondary socialization in Weber.
A homeworld would operate in a very similar form
to the primary socialization in Weber, as it is the immediate,
familiar, surroundings in which individuals appropriate and
institute norms in accordance to a shared heritage, a shared
socialization, a shared set of meaning-complexes. Husserl,
however, stresses the importance of presentational and
passively synthetized information in the constitution of this
“home”. In that sense, the formation of a homeworld is
dependent both on conscious activity of a self towards the
constitution of meaning-like relations to objects that
surround oneself, as well as non-conscious affection of that
self by previously intersubjectively constructed and
instituted relations, and contingent and territorial
circumstances. In that sense, the order of an oikonomia is
established historically within a space of similitude, and
within this space individuals will also develop more and less
dense experiences that will be further qualified as “normal”
or “optimal”.
Now, an alienworld takes the place of secondary
socialization: an alien form of worldliness is one that
disrupts the pacified set of experiences that we had
previously constituted at home. At this stage, we have a
reconsideration of the fundamentals of a familiarly
Fabrício Pontin
309
constituted norm, now in relation to the emergence of a
discordance, of a realization that something can be
constituted in a different form. These processes of cultural
shock insert an element of disorder into a previously wellordered constitution of an object. Such disorder is, above all,
temporal: we cannot grasp where the disordered element
“fits” within our former experiences regarding a type – and
this brings the realization that the temporal constitution of
norms is not shared universally.
Now, is this to say that the transcendental aspect of
the lifeworld is in jeopardy? After all, how can we attest to
the structure of the lifeworld if the historical
conceptualizations of objects differ so radically?
It seems to me that Husserl would indicate that to
ask this question would miss the point of the transcendental
analysis of the lifeworld, something that Schutz might have
misunderstood in his own analysis, as he, perhaps for lack of
access, or for a general misunderstanding of the scope of
the analysis of the lifeworld, does not comprehend how the
transcendental character of the lifeworld refers to the cogenerativity of home and alien. This is to say that the
generation of normal and abnormal types is always being
constituted within an universally shared lifeworld which
shapes the possibilities for the constitution of society. Hence
the distinction between an analysis of the constitution of social
reality, as in Weber, and an analysis of the possibility of social
reality, which is what we have in Husserl.
Schutz was perhaps the first person able to identify
in Weber a great affinity with the main problems in Husserl’s
phenomenology. Weber and Husserl shared a general
assumption that the objective world, without individuals to
experience it, is meaningless, and that the structure of
“empirical reality” or “objective reality” is constituted in
history. But I want to stress how Husserl was able to move
further than Weber in this issue, particularly in the question
of historicity and the division of formal and transcendental
310
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
approaches to knowledge. This division is important to the
understanding of the field and scope of social investigation,
as well as to the epistemic consequences of taking a
transcendental perspective to political and social issues.
The most frustrating aspect with dealing with social
approaches within phenomenology is the somewhat abstract
tendency that such approaches will adopt when resorting to
transcendental subjectivity and the transcendental aspect of
the lifeworld. I want to conclude this short essay by
proposing something different: I want to stress that the
transcendental aspect of the lifeworld and intersubjectivity,
as stressed so well by both Anthony Steinbock and Dan
Zahavi suggest that in time, our social interactions will move
us away from our initial topological position in a given
lifeworld, disturbing what was previously organized as
“normal” and “abnormal.
Such topological understanding of the lifeworld
allows us to understand how we conceive of preferences,
and also increases the scope of the stock of presentations to
which any future meaning-like conceptualization will
ultimately refer to. Now, this is the point in which conflict
between different sorts of conception of “normal” conduct
will become more radical, as they are going to refer to
fundamentally differently constituted stocks of knowledge,
that is, each “home” will constitute the conflicting form of
normal constitution as “alien”. Once again, the social
interaction here seems to point at the necessity of
implementing a grammar for social relations which will
increase the scope of familiarity, but the formation of such
grammar is going to be effective within a context where the
reference point of discussion has been affected by this
irreversible encounter with an alien perspective. In that
sense, the formation of a more or less totalitarian State which
will regulate future mutual encounters is directly related to
the history of previous interactions with different
perspectives. A cosmopolitan position, in this context, is
Fabrício Pontin
311
only possible within a perspective that will give the historical
conditions to such possibility.
Then, if we want to claim that the historical
movement leading us to the current discourse on human
rights is indeed irresistible, we will have to find ways to
inform and communicate the necessity of such approach
within communities that may have reason to be suspicious
of our suggestions. This is not to say that we should drop
our historically constituted preferences about the good, but
to put them in perspective, including how the pathway
leading to the prevalence of a discourse on human rights in
developed democracies has often and consistently been
implemented on the basis of the exploration of
underdeveloped countries..
In this sense, the process leading to the legitimacy of
modern democracies and the universal claim of Human
Rights, which I also believe is a claim that finds full support
within the context of the Husserlian later philosophy and its
obsession with the relevance of European humanism, can
only be implemented on an broader level in terms of an
exchange of historicities, of a mutual awareness of the
processes leading to current mainstream conceptions of
goods in different States and communities, and to the
anarchic constitution of these processes of individualization
in their origin – and in this, the potential of phenomenology
as a form of modern political thought is yet to be recognized,
and realized, as it should.
312
The lifeworld in the context of the Crisis of
European Sciences and Transcendental Philosophy
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Husserl, Edmund. Logical Investigations, Vol I. New York:
Routledge, 2001
____. On the Phenomenology of the Consciousness of Internal Time
(1893-1917). Boston: Kluwer Academic Publishers,
1991
____. Analyses Concerning Passive and Active Synthesis. Boston:
Kluwer Academic Publishers, 2001.
____. The Crisis of European Sciences and Transcendental
Phenomenology. Evanston: Northwestern University
Press, 1970.
Kant, Immanuel. Practical Philosophy. New York: Cambridge
University Press, 2009.
Schutz, Alfred. The Phenomenology of the Social World. Evanston:
Northwestern University Press, 1967.
____.Life Forms and Meaning Structure. Boston: Routledge &
Kegan Paul, 1982.
____. Choice and the Social Sciences. In EMBREE,
Lester. Collected Papers V. Phenomenology and the social
Sciences. Boston: Springer, 2011.
Steinbock, Anthony J. Home and Beyond. Evanston:
Northewestern University Press, 1995.
313
Mateus Salvadori
Responsabilidade e Direito de
Emergência em Hegel
Mateus Salvadori1
Introdução
O direito de propósito, de intenção e de emergência
são investigados por Hegel na obra Princípios da Filosofia do
Direito, especificamente na segunda parte intitulada
Moralidade Subjetiva e são direitos centrais para entender a
crítica que Hegel desenvolveu acerca do formalismo
kantiano. Na moralidade hegeliana, o indivíduo somente é
julgado em relação a sua autodeterminação, pois esse é o
momento da subjetividade. Por meio do direito do
Entre os anos de 2008 a 2014 estudei na PUCRS. De 2008 a 2010
realizei o mestrado sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Luft. A
dissertação intitulou-se Do idealismo transcendental ao idealismo absoluto.
Entre os anos de 2010 a 2014, fiz o doutorado sob a orientação do Prof.
Dr. Thadeu Weber. A tese intitulou-se Hegel e o formalismo da moral
kantiana: para além da justiça forma. Tanto no mestrado como no doutorado
fui bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior. Atualmente, sou Professor de Filosofia na Universidade de
Caxias do Sul (UCS). Endereço eletrônico: mateusche@yahoo.com.br.
1
314
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel
propósito, o agente é responsabilizado pelo saber e pelo
querer. Essa é a responsabilidade subjetiva. Porém, isso é
insuficiente. As consequências não previstas, segundo o
direito da intenção, são da responsabilidade do agente, mas,
no nível da moralidade, essa responsabilização é apenas
subjetiva.
A responsabilidade objetiva somente ocorre na
eticidade, através das instituições sociais. Hegel avança em
relação a Kant, neste aspecto, com a eticidade. O conceito
do direito normativo em Hegel tem como princípio
fundamental a liberdade enquanto conquista da história. É
esse o princípio que se efetiva no direito abstrato, na
moralidade e na eticidade. A moralidade não pode contrariar
o princípio pressuposto, a saber, o princípio da liberdade.
Desta maneira, a moralidade não se deve prender na
lei, mas ao princípio que orienta toda a estrutura das
instituições sociais. É em nome desse princípio que se pode
transgredir a lei e não em nome do direito abstrato. Recorrese ao princípio para não aplicar a lei. Exceções às regras, em
algumas circunstâncias, são justificadas. Para Kant, em
relação ao direito de equidade e de necessidade, a questão
não é a justiça, mas o direito em sentido estrito. Hegel, neste
aspecto, mostra que isso é insuficiente e ressalta que se pode
sim justificar uma ação contra a lei.
No direito de moralidade precisa-se assegurar um
direito fundamental: o direito de emergência. Esse direito
pode ferir a formalidade jurídica e legalmente constituída.
Senão, não se garante o princípio da liberdade e nem se
verifica em que medida a moralidade avança em relação ao
direito abstrato. O direito de emergência, tratado na
moralidade hegeliana, é um avanço em relação à moralidade
kantiana. Há certos direitos, como, por exemplo, o direito à
vida, que são fundamentais. Se, para assegurar esse direito, o
agente tiver que abrir exceções, elas são justificadas.
Mateus Salvadori
315
1. Responsabilidade: direito de propósito e direito da
intenção
Hegel investiga o direito do saber e o direito do
querer, ou seja, o direito daquilo que tem origem em mim.
Reconhece-se na ação somente aquilo que teve origem no
meu propósito, na minha intenção. Segundo Hegel,
o ponto de vista moral é o da vontade no momento em
que deixa de ser infinita em si para o ser para si [...]. É este
regresso da vontade a si bem como a sua identidade que
existe para si em face da existência em si imediata e das
determinações específicas que neste nível se desenvolvem
que definem a pessoa como sujeito2.
Assim, “a subjetividade constitui agora a
determinação específica do conceito” 3 . A subjetividade
constitui a existência do conceito. No nível do direito
abstrato não se está fazendo uma fundamentação subjetiva
da vontade livre. Isso só é feito na moralidade. Enquanto o
direito abstrato trata de pessoas, a moralidade trata de
sujeitos. A figura do direito moral (da moralidade) é o direito
da vontade subjetiva. Esse é o direito inviolável que o sujeito
tem, a saber, o direito de autodeterminação.
Neste sentido, Hegel trata do direito também a partir
da subjetividade, ou seja, o direito de reconhecer somente
aquilo que tem origem na vontade do sujeito. Como posso
responsabilizar alguém por uma ação na qual ele não se
reconhece? A violação desse direito desqualifica a
responsabilidade do sujeito agente. A moralidade trata das
condições da responsabilidade subjetiva.
Rph, § 105. As abreviações das obras citadas neste capítulo são as
seguintes: Princípios da Filosofia do Direito (Rechtsphilosophie - Rph), A
Metafísica dos Costumes (MS). As obras citadas serão as traduções indicadas
nas referências.
2
3
Rph, § 106.
316
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel
Portanto, o querer e o saber são condições subjetivas
da vontade livre. “A subjetividade não só é formal mas ainda,
como delimitação indefinida da vontade, é o elemento
formal por excelência da vontade”4. A subjetividade tem o
seu lado formal enquanto autodeterminação da vontade.
Isso não depende de conteúdo. Hegel concorda com o fato
de Kant ter feita uma fundamentação a partir do “dever pelo
dever”, mas essa fundamentação é insuficiente. Por isso, a
crítica de Hegel visa uma complementaridade em relação a
Kant.
Porém, não é possível reduzir a subjetividade em seu
aspecto formal. A subjetividade não se determina a uma
vontade pura enquanto autodeterminação da vontade. Neste
aspecto, verifica-se um distanciamento gradual de Hegel em
relação a Kant. Hegel diz: “Porque nesta primeira aparição
no plano da vontade individual este formalismo ainda não se
afirma como idêntico ao conceito de vontade, o ponto de
vista moral é um ponto de vista relativo, o do dever ou da
exigência”5.
No nível da vontade subjetiva, ainda não se realiza o
conceito da vontade. O ponto de vista da vontade livre, ao
nível do conceito, é uma vontade efetivada. O nível da
vontade subjetiva não representa ainda a realização do dever
ser. O conceito não se esgota ao nível da vontade subjetiva,
ao nível do formal. Com isso, Hegel está preparando sua
crítica a Kant, que fica no nível da vontade subjetiva e, desta
forma, no plano da formalidade. Por isso, é necessário passar
do nível da vontade subjetiva ao nível do desdobramento
objetivo, senão se permanece no aspecto formal.
Hegel afirma: “Para mim é o conteúdo determinado
como meu de modo que, na sua identidade, contém a minha
subjetividade para mim, não apenas como meu fim
intrínseco, mas também depois de receber a extrínseca
4
Rph, § 108.
5
Rph, § 108.
Mateus Salvadori
317
objetividade” 6 . A objetividade exterior não diz respeito à
eticidade, mas diz respeito ao reconhecimento da vontade
livre como princípio universal. Todo nível da moralidade
trata da fundamentação subjetiva da vontade livre. Hegel
destaca que, nesse nível, não há a eliminação da subjetividade
imediata. Em suas palavras,
não desviando a minha subjetividade da realização do
meu fim [...] com isso suprimo, para objetivá-lo, o que
nele há de imediato, e assim faço que ela seja a minha
subjetividade individual. Ora, a subjetividade que assim
me é idêntica é a vontade de outrem [...]. O terreno para
a existência da vontade é agora a subjetividade, e a
vontade alheia é a estranha realidade que apresento à
realização do meu fim. A realização do meu fim tem pois
em si esta identidade da minha vontade e da vontade dos
outros, possui uma relação positiva com vontade alheia7.
O subjetivo imediato foi mediatizado e está
conservado em outro nível. Percebe-se que em Hegel há um
reconhecimento da liberdade como princípio universal e há
uma teoria da intersubjetividade reconhecida subjetivamente
(a minha vontade imediata está reconhecida, superada e
guardada em um nível superior, pois no reconhecimento da
vontade dos outros eus afirmo a minha subjetividade). Não é
possível falar do direito de posse e do direito de propriedade
não reconhecendo o direito da vontade livre.
Kant permanece no nível da moralidade. No
imperativo categórico não há mediação; o imperativo é uma
fórmula a partir da qual se podem julgar conteúdos. Para
Kant, a razão, mediante a lei moral, deve determinar
imediatamente a vontade. A referência de Kant é sempre a
partir do eu, da subjetividade (posso eu querer que a minha
máxima se torne uma lei universal?). Isso não depende do
6
Rph, § 110a.
7
Rph, § 112.
318
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel
reconhecimento dos outros. Não há reconhecimento, mas
uma autodeterminação da vontade enquanto vontade pura.
A vontade subjetiva está presente na ação.
Algumas perguntas centrais nesse debate - entre a
subjetividade e a objetividade - são as seguintes: qual é o
alcance objetivo da responsabilidade? Somente se é
responsável por aquilo que foi premeditado (saber e querer)?
Se uma ação é sabida como minha, qual é o nível de
responsabilidade que eu tenho por algo que eu não sabia e
que é decorrência necessária da minha ação? O agente pode
ser responsabilizado pelas consequências não previstas de
sua ação?
Os três elementos que constituem a fundamentação
subjetiva da vontade livre são os seguintes: “a) de que eu sou
consciente de serem minhas quando passarem a ser
exteriores; b) a relação essencial a um conceito como
obrigatório; c) a ligação com a vontade de outrem” 8. Essas
três condições estão na filosofia kantiana e, neste ponto,
Hegel concorda com Kant. Um juízo moral precisa
considerar esses três elementos. A partir dessas três
condições para a ação é necessário investigar o propósito e a
intenção e em que medida um complementa o outro.
Hegel diz que “tem, por isso, a vontade o direito de
só reconhecer como ação sua aquilo que ela se representou
e de, portanto, só se considerar responsável por aquilo que
sabe pertencer às condições em que atuou, por aquilo que
estava nos seus propósitos”9, ou seja, um ato só pode ser
imputado na medida em que ele se enquadra no direito do
saber. Portanto, Édipo não pode ser acusado de parricida
por haver matado o seu pai sem sabê-lo; pode-se sim ser
acusado de assassino. O importante aqui é o direito de saber.
Como responsabilizar Édipo por um ato que ele não sabia?
8
Rph, § 113.
9
Rph, § 117.
Mateus Salvadori
319
Transportada para a existência exterior, a ação que se
desenvolve em todos os seus aspectos segundo as suas
relações com a necessidade exterior tem resultados
diversos. Tais resultados, como produtos de que a ação é
a alma, são seus, pertencem à ação, mas esta, ao mesmo
tempo, como fim projetado na extrinsecidade, fica
entregue às forças exteriores que lhe acrescentam algo de
muito diferente daquilo que ela é para si e a desenvolvem
em resultados longínquos e estranhos. Também aqui a
vontade possui o direito de só perfilhar os primeiros
resultados, pois só esses estavam nos seus propósitos10.
A ação, ao exteriorizar-se, tem várias consequências
e isso é próprio da ação. Contudo, do ponto de vista da
responsabilidade subjetiva, o sujeito só pode ser
responsabilizado por aquilo que ele sabia e queria. E a
responsabilidade das consequências não previstas, o sujeito
pode ser responsável por isso? Do ponto de vista do direito
do propósito, não, pois somente se é responsável pelo saber
e pelo querer. Contudo, isso é insuficiente. Assim, Hegel
mostra os passos das instâncias mediadoras decorrentes da
responsabilização. O problema das consequências somente
será resolvido no nível da eticidade.
Ao tratar das consequências não previstas, é
necessário distinguir as consequências necessárias das
consequências contingentes. O problema disso é que “é
difícil distinguir o que constitui resultado necessário e
resultado contingente pois, no domínio do finito, a
necessidade intrínseca tem na existência a forma da
necessidade extrínseca”11. Porém, apesar da dificuldade de
realizar essa distinção, ela é necessária. É fato que de uma
ação podem se seguir consequências não previstas.
O exemplo citado por Hegel do incendiário que
colocou fogo na casa do vizinho e queimou um quarteirão
10
Rph, § 118.
11
Rph, § 118.
320
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel
inteiro 12 é um exemplo de consequência necessária e não
contingente. Portanto, o agente deve sim ser
responsabilizado pelo ato cometido. Quem quer a parte quer
o todo. Ao agir, o homem se entrega a exterioridade, não
sendo, as consequências de seus atos, uma questão de boa
ou má sorte. Claro que a ação coincide com a realização do
propósito.
Se o interno aparece como externo, o que é o
contingente e o que é o necessário? Afinal, o que são
consequências próprias imanentes que indicam a natureza da
própria ação e consequências que se apresentam de forma
contingente de uma ação? A responsabilização diz respeito
ao contingente, ao necessário ou a ambos? As consequências
necessárias entram na responsabilização, pois são próprias
da ação. Portanto, o sujeito deveria saber.
Há consequências que não sou obrigado a saber; mas
há outras consequências que sou obrigado a saber, pois são
inerentes a ação enquanto tal. “Ao atribuir uma ação
intencional a um agente, não atribuímos a totalidade do ato
com todas as suas [...] consequências, nem atribuímos
somente o ato individual envolvido no Vorsatz, mas alguma
característica essencial, ‘universal’ [...]”13.
O direito do propósito é totalmente insuficiente para
uma análise da responsabilidade. Quem é o responsável pelas
consequências não previstas? “O direito liberal, tomando
como ponto de partida o sujeito, registra uma oposição entre
a vontade subjetiva, na forma de projeto, e as decorrências
objetivas, no que diz respeito à responsabilidade”14. Por isso,
“o direito liberal é incapaz de estabelecer um critério para o
agir, que vá além do seu próprio conteúdo implícito”15.
12
Cf. Phd, § 132.
13
INWOOD, 1997, p. 44.
14
WEBER, 1993, p. 88.
15
WEBER, 1993, p. 89.
Mateus Salvadori
321
Citando um exemplo de Kant sobre dois náufragos
e apenas um pedaço de madeira que só suporta um deles,
Weber questiona: quem deve morrer e qual é o critério da
escolha do sobrevivente? “O direito abstrato e a moralidade
são incapazes de apresentar um critério para tais questões.
Só ao nível da eticidade, na medida em que se deve
considerar o contexto mais amplo, isso é possível”16.
Na moralidade, Hegel, seguindo a tradição kantiana
acerca da autonomia da vontade, ressalta que se é
responsável apenas por aquilo que se sabe e por aquilo que
se quer. Portanto, aquilo que foge do nosso querer, ou seja,
as consequências não previstas pelo ato tomado não são de
responsabilidade do sujeito agente. Assim, a moralidade trata
apenas da responsabilidade subjetiva. O agente somente é
responsabilizado pelo seu propósito.
A responsabilidade se restringe, porém, ao propósito, isto
é, ao que podia ser previsto. É isso que faz o direito
moderno. Alguém é responsável por aquilo que podia
prever no seu agir e, em vista disso, pode ser julgado. Em
outras palavras: para que alguém possa ser
responsabilizado, deve haver uma identificação entre o
propósito e o resultado objetivo do ato cometido17.
Porém, através do direito da intenção, que não
representa a individualidade (propósito), mas visa à
universalidade, destaca-se que o sujeito é sim responsável
pela consequência não prevista de seu ato. A intenção,
considerada um propósito universalizado, responsabiliza o
agente pela consequência não prevista e não apenas pela
prevista, ou seja, pelo todo e não só pela parte, pois “[...] a
vontade do singular é o universal”18. Não é o singular que
importa, mas o universal da ação. Assim, o sujeito é
16
WEBER, 1993, p. 89.
17
WEBER, 1993, p. 86.
18
Rph, §119.
322
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel
responsável pelas consequências não previstas. Todavia, na
moralidade, não existem instituições capazes de mediar a
responsabilidade. Isso só é possível na eticidade. Na
moralidade, os efeitos de uma ação permanecem no âmbito
da
responsabilidade
subjetiva,
não
havendo
responsabilização objetiva dos atos praticados. A eticidade
resolve essa insuficiência.
Hegel ataca os critérios puramente formais e ressalta
a necessidade de esclarecer o conteúdo; a partir do conteúdo
se estabelecem os deveres particulares. Kant fica preso no
formalismo a priori do plano subjetivista e não alcança a
objetividade das instituições sociais na esfera da eticidade. O
direito abstrato mostrou-se deficitário por não ultrapassar a
determinação entre duas vontades. “Pelo direito abstrato,
não é possível impedir a possibilidade de alguém impor a sua
vontade sobre a do outro, reprimindo-a. Daí a injustiça”19.
Há uma multiplicidade de eventos possíveis a partir
da realização de um ato. “Agir é essencialmente aceitar riscos
em face de uma realidade externa que não se encontra
totalmente sob o nosso próprio domínio ou conhecimento
prévio”20. Falta na teoria de Kant a mediação. Através da
mediação é que surgem os princípios objetivos.
Sem mediação social é possível apenas
responsabilizar o sujeito pelos seus atos de maneira
subjetiva. “Dado que o fato da razão de Kant consiste na
pressuposição de princípios e dados que os princípios, sem
mediação, são subjetivos, o que se consegue estabelecer, com
base no imperativo categórico, são conteúdos normativos
subjetivos” 21 . Permanecer preso ao subjetivismo significa
permanecer preso a uma concepção de justiça e de direito
vazia e indeterminada. A concepção acerca do justo e do
jurídico somente supera o formalismo por meio da eticidade.
19
WEBER, 1993, p. 75.
20
INWOOD, 1997, p. 45.
21
RAUBER, 1999, p. 44.
Mateus Salvadori
323
2. Direito de emergência
Um caso específico na moralidade é o direito de
emergência (ou estado de necessidade). Ele é introduzido
por Hegel na parte final da moralidade. Esse é o direito à
vida e é considerado um direito fundamental. Pode-se usar
de todos os meios possíveis para assegurar esse direito,
abrindo exceções se for necessário.
Isso mostra a insuficiência do formalismo jurídico
kantiano e a superação realizada por Hegel ao defender esse
direito. Para Hegel, esse direito não é apenas uma mera
concessão. Conforme Weber, “[...] as situações de
emergência são exceções e não invalidam a lei, mas indicam
que ela não é absoluta. Que não se deve roubar, continua
valendo, porém, há situações em que isso pode ser
relativizado”22. Nas palavras de Hegel,
a particularidade dos interesses da vontade natural,
condensada na sua simples totalidade, é o ser pessoal
como vida. Possui esta, no período supremo e no conflito
com a propriedade jurídica de outrem, um direito que
pode fazer valer (não como concessão graciosa mas como
direito) na medida em que há, de um lado, uma violação
infinita do ser e portanto uma ausência total de direito e,
de outro, apenas a violação limitada da liberdade. É assim
que são ao mesmo tempo reconhecidos o direito como
tal e a capacidade jurídica de quem é lesado na sua
propriedade. É o direito daquela violação, do direito da
miséria que provém o benefício da imunidade que o
devedor recebe sobre a sua fortuna, isto é, sobre a
propriedade do credor; não se lhe tiram os instrumentos
de trabalho nem os meios de cultivo considerados
22
2013, p. 101-2.
324
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel
necessários, tendo em conta a sua situação social, para a
sua manutenção23.
Portanto, a vida tem um direito de emergência. “Se
alguém, para conservar a sua vida, tiver que usufruir de um
alimento de outro, isto é obviamente um dano, mas não
pode ser considerado como um roubo qualquer. Quer dizer,
é um roubo justificado” 24 . É óbvio que há uma lesão à
propriedade de um homem quando se rouba dele, mas seria
injusto considerar essa ação como um roubo ordinário. O
necessário, segundo Hegel, é viver o agora. O futuro está
entregue a contingência. O direito de emergência é imediato.
Ao tratar do direito de emergência há a discussão de
Hegel com a filosofia kantiana sobre o problema das
exceções acerca do imperativo categórico. O formalismo
kantiano não aceita exceções. Pela forma da lei, não há
exceções, porque senão se admitiria vantagens pessoais,
subjetivas e empíricas. As exceções ferem a validade
apriorística do imperativo categórico e da lei moral.
O formalismo kantiano, portanto, é reconhecido
pela impossibilidade de admitir exceções. O conceito de
contradição em Kant significa justamente abrir exceções a seu
favor. Já Hegel considera que contradição refere-se apenas às
ações que se contrapõem a um conteúdo histórico
determinado. Contradição meramente formal, segundo Hegel,
não existe.
O direito de emergência é uma das mais duras críticas
ao formalismo, pois o mesmo é exatamente o direito de abrir
uma exceção em caso de extremo perigo e de necessidade.
Kant, na obra A Metafísica dos Costumes, faz uma
fundamentação moral do direito, mas quando trata do direito
de necessidade, ele acaba não resolvendo esse problema
23
Rph, § 127.
24
WEBER, 1993, p. 91.
Mateus Salvadori
325
devido a sua não efetivação. Kant afirma: “O direito estrito
[...] não está combinado com nada ético”25.
Para Hegel, o Estado não pode deixar de reconhecer
o direito de emergência (direito de necessidade), pois esse
direito não é uma concessão, mas um direito. Quando há,
por um lado, o direito à vida e, por outro lado, o direito à
propriedade, o direito de emergência se sobrepõe ao direito
de propriedade. Assim, o direito à vida justifica qualquer
lesão a outro direito que se opõe a ele. Percebe-se, nessa
discussão, que há uma estrutura hierárquica entre direitos,
pois é inevitável a geração de conflitos entre direitos. A vida
tem um direito ante o direito abstrato. Dessa forma, a
moralidade enfatiza um direito não reconhecido pelo direito
abstrato. Isso denota a insuficiência do direito abstrato.
Hegel está preocupado com a discussão em torno do
conceito de justiça e não apenas com o conceito de
legalidade. Kant tratou do conceito do direito estrito. Hegel, na
moralidade, não trata do direito estrito. Kant, para resolver o
direito de equidade e de necessidade, se reporta ao direito
estrito e não ao direito amplo. No direito de necessidade (ius
necessitatis) há uma “coerção sem um direito” (Zwang ohne
Recht)26. Há uma exigência, mas não há um direito. “Supõese que este pretenso direito seja uma autorização a tirar a vida
de outrem que nada faz para causar-me dano, quando corro
o risco de perder minha própria vida”27.
Para Hegel, é justificada uma ação injusta
(desrespeito ao direito de propriedade) no direito de
emergência. Com isso, ele supera o formalismo kantiano. “A
miséria revela a finitude e, portanto, a contingência do direito
assim como do bem-estar. Noutros termos: a existência de
25
MS, 2008, p. 78.
26
MS, 2008, p. 80.
27
MS, 2008, p. 81.
326
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel
uma pessoa particular e o domínio da vontade particular sem
a universalidade do direito não são necessários”28.
Neste sentido, Hegel supera o formalismo jurídico
kantiano. Kant apela, em última instância, para o direito estrito
ao discutir sobre os direitos “duvidosos”. O direito de
emergência mostra a contingência e a insuficiência do direito
estrito (positivo formal). A fundamentação moral se impõe
para resolver uma insuficiência do direito estrito formal. O
direito no sentido estrito, segundo Kant, se caracteriza pela
autorização para coagir. Já o direito no sentido lato, a
autorização para coagir não pode ser determinada por uma
lei. Para Kant, os direitos de equidade e de necessidade são
supostos. Para Hegel, são direitos certos e não supostos.
Para Kant, esses dois direitos são concessões. Para Hegel,
não são concessões, mas direitos. Para Hegel, o direito de
emergência não é culpável e nem punível. Para Kant, ele é
culpável, mas não punível.
Kant faz uma dicotomia entre a culpa e a pena.
Hegel, porém, resolve essa dicotomia introduzindo a
categoria do justo na moralidade. Kant também introduz
essas categorias, mas não resolve o problema da necessidade
e da equidade no ponto de vista do direito no sentido amplo. Para
Hegel, quem dá o conteúdo para o direito de emergência é a
necessidade. Destarte, não há um conteúdo prévio dado.
Quem dá o conteúdo à lei ou a interpretação da lei é o
conteúdo histórico determinado pelas circunstâncias. O
conceito de justiça não está atrelado à legalidade ou à
ilegalidade. Assim, pode-se agir contra a lei e ser justo.
Assim como a Moralität atribui responsabilidade somente
por intenção, pela vontade ou por aquilo que é querido
ou pretendido, também situa o bem e o mal somente, ou
principalmente, na vontade e nas intenções. Kant, por
exemplo, argumentou que a boa vontade é o único bem
irrestrito. Hegel, pelo contrário, localiza-os na conduta
28
Rph, § 128.
Mateus Salvadori
327
manifesta, em parte porque é somente pela expressão
exterior que a vontade adquire um determinado caráter, e
em parte porque qualquer crime ou atrocidade poderia ser
justificado por uma boa intenção ou uma boa razão ou
fundamento29.
Segundo Hegel, não é possível que haja conflito
entre o direito e a moral. “O direito pode não fazer jus à
consciência moral de seus cidadãos, ou ser defeituoso [...].
Mas esses defeitos são percebidos, não pela consciência
moral individual, mas por um exame da racionalidade
inerente no próprio direito”30.
Há certos direitos (formais e abstratos), no Estado
Moderno, que são inalienáveis (unveräusserlich) e
imprescritíveis (unverjährbar) 31 , como o direito de não ser
escravizado ou de adquirir propriedade. Outras pessoas não
podem violar esses direitos. “Mas como o direito abstrato é
apenas a mais inferior das três fases de Recht, os direitos
abstratos não estão imunes à interferência das esferas
superiores, Moralität e Sittlichkeit” 32 . Na vida ética, só há
direitos se há deveres e vice-versa. Diante disso, é impossível
justificar a escravidão.
Considerações finais
A moralidade kantiana não passa de um “formalismo
vazio” e o imperativo categórico é uma “pura
indeterminação”. É assim que Hegel classifica a ética
universalista kantiana, na obra Princípios da Filosofia do Direito,
especialmente no §135. Não adianta criar procedimentos
formais para guiar a ação do homem, mas deve-se apontar
29
INWOOD, 1997, p. 225.
30
INWOOD, 1997, p. 105.
31
Cf. Rph, § 66.
32
INWOOD, 1997, p. 106.
328
Responsabilidade e Direito de Emergência em Hegel
quais são os princípios conteudísticos para, a partir deles,
extrair e estabelecer os deveres particulares. Sem isso, ações
injustas e imorais poderiam ser justificadas.
O direito abstrato não se preocupa com os fins que
orientam o sujeito. Na moralidade, isso é central. Hegel
ressalta que Kant não foi além da moralidade subjetiva e
apresenta, através da eticidade, o desdobramento objetivo da
vontade livre, ou seja, a concretização da vontade livre
dentro das instituições sociais. Kant não fez uma teoria da
eticidade (uma teoria das instituições sociais). Na
moralidade, Hegel faz suas críticas mais duras ao que ele
chama de vazio formalismo. Isso é feito através do direito de
intenção, do direito de propósito e, principalmente, do
direito de emergência.
Kant realizou apenas uma fundamentação subjetiva
da vontade livre. A moralidade representa a intenção interior
dos agentes e não a vontade exterior e suas consequências.
Somente se responsabiliza o agente pelo saber e pelo querer.
A pessoa como sujeito é expressa como direito da
moralidade. No direito abstrato há a pessoa do direito. Na
moralidade há o direito da moralidade, o direito do
propósito, o direito da intenção e o direito de emergência.
Nesse nível, os direitos não poderão contrapor-se aos
direitos do direito abstrato. Aquilo que é legal não poderá ser
contradito com o direito da moralidade. O direito não se
preocupa com as intenções ou com o propósito. Cabe
ressaltar que nos dias atuais esses níveis estão presentes na
discussão do direito.
Referências bibliográficas
HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Trad. Álvaro Cabral.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
Mateus Salvadori
329
KANT, I. A metafísica dos costumes. Trad. De Edson Bini. São
Paulo: EDIPRO, 2008.
RAUBER, J. O problema da universalização em ética. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1999.
WEBER, Thadeu. Direito e justiça em Kant, Revista de
Estudos Constitucionais, Hemenêutica e Teoria do Direito
(RECHTD), 5(1): 38-47 janeiro-junho 2013.
______. Hegel: Liberdade, Estado e História. Petrópolis:
Vozes, 1993.
330
Considerações acerca da causalidade em
sistemas auto-organizados
Considerações acerca da
causalidade em
sistemas auto-organizados1
Sérgio A. Sardi2
I. Autocausação, emergência e auto-organização
Os processos auto-organizativos se caracterizam
pela emergência endógena de organização, ou, em outras
palavras, de um “estado global de configuração interna”3, em
Publicado originalmente em: CIRNE-LIMA, Carlos R. V.; HELFER,
Inácio; ROHDEN, Luiz. (Org.). Dialética e natureza. Caxias do Sul, RS:
Educs, 2008, v. 1, p. 159-170.
1
Professor no Departamento de Filosofia da PUCRS DESDE 1996.
Doutor em Filosofia pela Unicamp/SP. Mestrado em Filosofia pela
PUCRS, na área de Filosofia Antiga. Organizador e coordenador de
Cursos de Especialização em Filosofia na FFCH/PUCRS. Coordenador
e ministrante de cursos de Extensão em Filosofia desde o final da década
de 90. Idealizador da Olimpíada de Filosofia do Rio Grande do Sul e da
Olimpíada de Filosofia com Crianças, na FFCH/PUCRS. Atividades de
pesquisa em Metodologia de Ensino de Filosofia e em Filosofia com
Crianças.
2
3
VARELA, F. Conocer. Barcelona: Gedisa, 1988, p. 60.
Sérgio A. Sardi
331
função das interações de elementos distintos, não
interdependentes, ou minimamente correlacionados entre si,
a partir da delimitação de um contorno e de um entorno.
Nesse caso, a emergência caracteriza a irredutibilidade das
propriedades globais do sistema às dos elementos que o
constituem. Há, aqui, um processo fundamentalmente
distinto daquele em que o incremento ou, simplesmente, a
diferenciação na organização sistêmica se efetiva a partir de
um agente externo ou de um elemento privilegiado do
próprio sistema. Segundo Varela, o “trânsito das regras
locais a uma coerência global é o coração do que, nos anos
cibernéticos, se denominava auto-organização. Hoje, se
prefere falar em propriedades emergentes ou globais,
dinâmicas de rede, redes não lineares, sistemas complexos
ou, ainda, de sinergia”. 4 Deriva de tal paradigma uma
epistemologia que assinala os limites de previsibilidade
inerentes a uma estrutura não linear de causação: “A
emergência assinala precisamente a irrupção de uma nova
ordem, cujas características só podem ser induzidas uma vez
que a nova ordem já está constituída”.5
Destacamos, nesse processo:
a) um “corte externo”, que demarcaria a distinção
contorno-entorno dos elementos em jogo, e um “corte
interno”, a emergência de uma configuração global6;
Varela esclarece que “não há uma teoria formal unificada das
propriedades emergentes” (op. cit., p. 61).
4
5 MATURANA, H. La realidad: ¿Objectiva o construída? Vol. I.
Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana, 1996, p.
XIV.
Esse duplo corte é definido por M. Debrun como: 1) a delimitação de
um “cordão entre elementos realmente distintos”; 2) a delimitação das
“condições das condições de partida”, o corte em relação ao passado,
enquanto perda de “memória” (Auto-organização: estudos
interdisciplinares. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1996, p. 13-14).
6
332
Considerações acerca da causalidade em
sistemas auto-organizados
b) uma historicidade, onde propriedades não
redutíveis às dos elementos que compõem o sistema
resultam de uma dinâmica autorreferente, o que delimita, ao
menos provisoriamente, o sentido de “auto”, relativamente
à organização, esta compreendida enquanto “conjunto de
relações de condicionalidade”7.
Consideramos, portanto:
1) Que o “corte interno”, de caráter diacrônico, que
caracteriza o momento de emergência no processo autoorganizador, é dependente do próprio jogo de correlações
globais internas, em que flutuações de atratores (que
corresponderiam a um período de “aprendizagem” do
sistema), acabam por dar lugar a um atrator definitivo. A
emergência indicaria, simultaneamente, a resultante de um
processo auto-organizador (ao reduzir a si o conjunto de
forças que vão sendo geradas) e o começo da auto-organização,
sendo esta considerada como momento de um processo autoorganizador, em sua história de inter-relações endógenas.
Nesse caso, o sistema é resultante e começo de si mesmo.
Identifica-se, assim, uma circularidade que delimita a
dinâmica de autocausação do sistema.
Surge, com isso, a necessidade de recondução do
conceito de causalidade a esse processo, o que poderia ser
expresso em termos de uma causalidade complexa e
retroativa, em oposição a uma causalidade linear. Sob outra
perspectiva, observamos aqui uma autocausação, em
oposição a uma heterocausação.8 Resta, porém, em aberto o
problema de saber como a autocausalidade do processo
7
DEBRUN, op. cit., p. 131.
O conceito de autocausação poderia ser também aplicado à estrutura
da causalidade da deriva natural, em Humberto Maturana e Francisco
Varela (A árvore do conhecimento: As bases biológicas da compreensão
humana. SP: Palas Athenas, 2001, p. 121-132).
8
Sérgio A. Sardi
333
auto-organizador estaria associada à produção de
emergência efetiva, i. é, a passagem a uma diferenciação
endógena da configuração global do sistema. Verifica-se,
além disso, o problema da determinação das relações entre
auto e heterocausação no contexto de uma rede causal. Ora,
o conceito de causa é, em si, um constructo racional,
dependente da articulação de outros conceitos, ou de
categorias, como identidade, diferença, unidade, dentre
outras, o que remete a um problema mais abrangente, que
deve ser equacionado no contexto de uma investigação
ontoepistemológica.
2) Uma tal investigação deveria conduzir a uma
necessária revisão terminológica.9 Nesse caso, seria preciso
inquirir acerca das bases metalógicas, assim como da
pertinência e do sentido de uma ontologia e de uma
epistemologia associada aos processos auto-organizadores, o
que deveria incidir, ainda, sobre o sentido a conferir à
lógica.10 Além disso, na medida em que um novo paradigma
está em jogo, seria preciso uma mudança de perspectiva
acerca do estatuto do conhecimento científico, problema
que recai, em última instância, em considerações éticas,
como observa, dentre outros, Fritjof Capra 11 , e conduz a
9 Werner HEISENBERG irá observar que, “no processo de expansão
do conhecimento científico, ocorre em paralelo uma expansão
correspondente da terminologia que a linguagem ostenta” (Física e
Filosofia. Brasília: Ed. da UnB, 1999, p. 238). A linguagem científica
deverá romper a flutuação de significados da linguagem comum,
pautando-se pela ausência de ambigüidades e pela objetividade de um
domínio lingüístico que delimite, precisamente, o seu domínio de
aplicação, bem como as correlações internas entre os conceitos
utilizados. Isso conduz à necessidade de formulação de “verdades
primitivas”, ou “conceitos primitivos”, e modos lógicos, os quais
deverão recorrer a uma intuição primária ou à formulação de um
princípio construído.
Sobre este último ponto, veja-se: VARELA, F. Conocer. Barcelona:
Gedisa, 1988, p. 53.
10
11
CAPRA, F. The web of life. New York: Anchor Books, 1996.
334
Considerações acerca da causalidade em
sistemas auto-organizados
uma abordagem hermenêutica que põe em questão a
diferenciação corrente entre “ciências humanas” e “ciências
exatas”.12
3) É preciso considerar, porém, a existência de um
limite metodológico e conceitual, que conduziria a qualificar
de “emergente” aquilo que, ao menos hipoteticamente,
poderia ser analiticamente explicitado a partir das
propriedades dos elementos e regras de operação. Essa
hipótese pode ser reforçada, dentre outros motivos, pela
necessidade de reduzir, em nível simbólico, por razões
metodológicas e para fins operacionais de previsibilidade, a
complexidade da rede de inter-relações presentes em um
processo auto-organizador. Isso se faz ainda mais visível, por
exemplo, na Ecologia, assim como no campo das Ciências
Cognitivas, na complexa estrutura de conexões presentes na
cognição de uma ação.13
Ora, nesse trabalho de si sobre si de um processo
auto-organizador, como demonstrar que aquilo que é
percebido, desde a perspectiva de um observador externo,
como “propriedade emergente” ou “global”, não seja,
portanto, o desdobrar-se de um princípio já prefigurado,
embora implícito, e que a complexidade final não seja apenas
a manifestação dessa mesma potencialidade? 14 De fato,
12 SANTOS, B. de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições
Afrontamento, 2001.
13
VARELA, F. Conocer. Barcelona: Gedisa, 1988, p. 53.
O próprio recorte contorno-entorno não demarcaria um grau de
complexidade (ou informação) mínima, a partir de onde a “emergência”
de uma maior complexidade poderia, ao menos hipoteticamente, ser o
seu “desdobramento” linear? Observe-se, a título de ilustração, como, a
partir de um número relativamente reduzido de regras e elementos, um
jogo, como o xadrez, pode se tornar extremamente complexo; e como
as diferenciações entre tática e estratégia (que denotam a sua dinâmica
interna), ou entre jogo aberto, semi-aberto e fechado (que denotam as
correlações entre estrutura e dinâmica), ou, ainda, o discernimento de
diferentes estilos de jogo, não são aparentemente previsíveis
exclusivamente a partir dos elementos e regras iniciais, e podem ser
14
Sérgio A. Sardi
335
compreender a emergência de organização no processo tem
sido considerado um dos principais problemas das teorias de
auto-organização.
4) No entanto, a consideração de que a
perspectivação de um observador externo ao sistema incide
sobre as próprias condições da observação, bem como da
inseparabilidade entre ação e cognição em um processo
auto-organizador15, apontam para um limite cognitivo, e não
apenas metodológico ou conceitual, e questiona a assunção
de que a cognição consiste na representação de um mundo
externo e independente de nossas capacidades perceptuais e
cognitivas. Com relação a um limite cognitivo, é preciso
considerar, ainda, a não-previsibilidade resultante, a longo
prazo, da sensibilidade de um sistema às mínimas variações
das suas condições iniciais, onde surge a necessidade de uma
interface entre auto-organização e Matemática e/ou Física
definidos, de certo modo, como propriedades “emergentes”. Mas, os
avanços da informática colocam sob suspeita essa pretensão, na medida
em que, em última instância, os programas se fundam em uma estrutura
de cálculo analítico. Se esse é o caso, não deveríamos falar, portanto, em
“processos determinísticos de auto-organização”? Ora, que
determinismo e complexidade não sejam incompatíveis, isso nos
demonstra, por exemplo, a Matemática do Caos.
No âmbito das Ciências Cognitivas, destacamos a posição de Varela
(The embodied mind: cognitive science and human experience. Cambridge,
Massachussets: MIT Press, 1991), que propõe o termo “enação” (enactive)
para uma abordagem que assume tal perspectivação a partir da correlação
entre cognição e ação, i. é, uma “cognição situada” (situated cognition),
compreendida enquanto interligação entre o organismo e o meio. Tal
concepção já está presente em El árbol del conocimiento, produção conjunta
de Varela e Maturana, e remete ao aforismo-chave: “Todo conhecer é
um fazer, e todo fazer é um conhecer”. Nesse caso, a perspectivação
decorre da correlação entre cognição e ação. No entanto, o problema de
como a perspectivação de um observador externo ao sistema incide
sobre as condições da observação é mais abrangente, e já se encontra
presente em Bergson (La pensée et le mouvant. Paris: Quadrigue/PUF,
1993, cap. VI) e na relatividade de Einsten, dentre outros, embora no
âmbito de distintas estruturas conceituais.
15
336
Considerações acerca da causalidade em
sistemas auto-organizados
do Caos. No entanto, além de uma investigação
interdisciplinar, isso nos conduz, uma vez mais, a uma
revisão ontoepistemológica do problema16.
5) A relação entre a emergência e a dimensão “auto”
do sistema remete a uma “autocausação que excede a si
mesma”, pois sua circularidade não se reduz a uma estrutura
de repetição. O exceder indica, aqui, uma diferenciação não
prefigurada. Porém, essa formulação, o “exceder de si da
autocausação”, não nos conduz ao paradoxo, ao menos
aparente, de que o sistema deverá diferir de si, sendo o
mesmo e, simultaneamente, outro de si mesmo? Uma
resolução que situaria essa diferenciação no âmbito
diacrônico do processo auto-organizador não parece
resolver o problema, na medida em que essa historicidade
mantém um “corte”, na qual a diferença surge como
novidade.
6) Por fim, se um processo auto-organizador pode
ser considerado como subprocesso de outro processo autoorganizador, e assim sucessivamente, não seria necessário
pressupor como auto-organizador o processo de todos os
processos auto-organizadores? Seguindo esta direção,
deveríamos nos perguntar como compreender a emergência,
ou, em sintonia com a estrutura conceitual acima proposta,
a autocausação excedente, relativamente ao processo autoorganizador de todos os processos auto-organizadores.
Dentre as diversas considerações que esse problema
possa suscitar, destaca-se que o processo auto-organizador
de todos os processos auto-organizadores deverá exceder e,
com isso, “criar” a si mesmo (ao retroagir sobre si mesmo);
por outro lado, o “caminho descendente” conduz à hipótese
de que a auto-organização local pode ser compreendida
Na medida em que se faz necessário equacionar, dentre outros, o
problema das relações entre sistematicidade e verdade, e entre conhecimento e
linguagem, o que desenvolvemos em outro contexto (SARDI, Sérgio A. O
silêncio e o sentido. In: Filosofia Unisinos, São Leopoldo, RS, v. 1, no 1, p.
55-69, jan/abr 2005).
16
Sérgio A. Sardi
337
como uma propriedade “emergente” do sistema global. Mas,
não estaria aqui latente um sentido outro ao conceito de
emergência? 17 Seguindo esse percurso, seria necessário
considerar o problema das relações entre emergência e
irrepetibilidade, na medida em que o caráter emergente é
afirmado em função da não-redutibilidade de cada processo
auto-organizador local em relação aos demais, embora
considerados em suas inter-relações sincrônico-diacrônicas.
II. Autè kínesis e auto-organização
Um retorno a Platão não consiste apenas em um
regresso ao que deveria estar no começo histórico da
racionalidade ocidental. A leitura de sua obra requer um
diálogo continuamente renovado, o que não se resolve
apenas na exegese do escrito, mas em uma possível interação
com o mesmo. Nesse caso, deveríamos considerar o sentido
que o texto traz à nossa circunstância, a partir das relações
com a linguagem a que nos conduz. O discurso
interpretativo não deixa de consistir, portanto, em uma
espécie de metadiscurso, pois requer uma contínua
construção de sentido, uma direção que insinua ao pensar.
Desde tal posição hermenêutica, considerar-se-á a
formulação platônica, operada na dialética do uno e do
múltiplo, do conceito de autè kínesis, o automovimento,
estabelecendo relações com alguns dos conceitos e
problemas elencados na primeira seção deste estudo.
O tratamento do problema da imortalidade, ou não,
da alma (psyché) decorre, no Fédon, no contexto do próprio
desenvolvimento da assim denominada Teoria das Idéias,
mas permanece em aberto. Falta a Platão, nesse diálogo, uma
Essa variante do significado de emergência, exposta supra, pode ser
equiparada ao conceito de subdeterminação (LUFT, E. Sobre a coerência do
mundo. RJ: Civilização Brasileira, 2005).
17
Considerações acerca da causalidade em
sistemas auto-organizados
338
definição da alma (psyché) que comportasse, em si, o princípio
da imortalidade. Isso nos conduz ao Fedro:
“O princípio da demonstração é o seguinte: toda alma é
imortal, pois aquilo que move a si mesmo (autè kínesis) é
imortal, enquanto o que move a outro e é movido por
outro, ao ter um fim de seu movimento tem também um
fim de sua vida. Portanto, só o que move a si mesmo,
enquanto não se perde de si mesmo, jamais cessa de se
mover, e, além disso, é fonte e princípio de movimento para tudo
o mais que se move [...] Assim, pois, é princípio de movimento
aquilo que move a si mesmo, e isto não pode nem perecer,
nem vir a ser [...] Uma vez posto de manifesto a
imortalidade do que move a si mesmo, ninguém terá reparo em
dizer que isso consiste na essência da alma e sua própria
noção. Todo corpo, com efeito, que recebe de fora seu
movimento é inanimado, enquanto aquele o que o tem dentro
e o recebe de si mesmo é animado, porque esta é a natureza da
alma. E, se isto é assim, se o que move a si mesmo não é
outra coisa que a alma, necessariamente será a alma
ingênita e imortal”.18
Em As Leis, lê-se: “Assim, pois, uma destas duas espécies
será o movimento que pode mover a outra coisa sem ser jamais capaz de
mover a si mesmo, e como outra espécie distinta de movimento,
teremos aquele que sempre pode mover a si mesmo e pode sempre
mover outra coisa, seja por composição, seja por divisão, por
crescimento ou decrescimento, por geração ou corrupção”.19
Tanto no Fedro, como em As Leis, a autè kínesis não
indica apenas aquilo que é “causa de si mesmo”, mas
também “causa de outro”, em uma integração entre
autocausação e heterocausação, pois, a um tempo, “move a
si mesmo” e é “fonte e princípio de movimento para tudo o
mais que se move”, ou, em outra formulação, “pode mover
a si mesmo e pode sempre mover outra coisa”.
18
Fedro, 245c-e; g. m.
19
As Leis, 894c; g. m.
Sérgio A. Sardi
339
A autè kínesis, como é expresso no Fedro, está em
“repouso dinâmico”, pois “não pode vir a ser”, ao mesmo
tempo em que “não cessa de se mover”. Essa característica
fica mais clara no Sofista, quando, no contexto da dialética
dos gêneros supremos (mégista gêne), a relação entre
movimento e repouso será definida, em 256b5, como
automovimento estacionário (autè kínesis stáseos). A autè kínesis
stáseos do Sofista poderia expressar, embora em termos que
não pertencem mais ao universo da dialética das Idéias, em
Platão, a “primeira síntese” na trajetória da dialética
descendente (em observação à imagem da linha, na República,
VI). Nesse caso, o automovimento seria integrado ao sistema
das Idéias e diria respeito, ontológica e epistemologicamente,
a uma estrutura de causação Ideal, ou formal, que
corresponde ao trânsito à “segunda navegação”.20
Observamos, anteriormente, que o automovimento
sugere, no Sofista, um síntese descendente em relação aos
gêneros supremos. Os cinco gêneros expostos nesse diálogo
(o ser, o movimento, o repouso, o idêntico e o distinto),
embora se tratem de contextos argumentativos distintos, vão
estar relacionados aos cinco gêneros do Filebo (o limite, o
ilimitado, a mescla entre esses, a causa da mescla e aquele
que tem o papel de separá-las)21. Tais relações, no entanto,
resultam aproximativas, relativamente às quais é possível
formular a seguinte hipótese interpretativa: o limite, no Filebo,
tem o papel de conferir unidade à multiplicidade ilimitada, e
se relaciona ao idêntico, no Sofista; a diferença, ao gênero que
tem o papel de separar as mesclas; o movimento, ao ilimitado.
Porém, a relação entre a mescla e a causa da mescla (Filebo), na
medida em que essa última remonta a uma causa universal
(pánton aitíou; 30e1), ou intelecção (noûs; 30d), e o ser e o
repouso (Sofista), não parecem tão diretas como as anteriores.
20
Cfe. Fédon, 99d ss.
Esse quinto gênero é apenas assinalado em 23d, não participando, ao
menos diretamente, da estrutura da argumentação precedente.
21
Considerações acerca da causalidade em
sistemas auto-organizados
340
Há de se advertir, porém, que os gêneros supremos do Sofista
se referem à estrutura ideal de intercomunicação das Formas,
e os gêneros do Filebo à ordenação da physis, o que exige uma
estrutura conceitual que possa estabelecer a medida dos
intermediários entre o uno e a multiplicidade
indeterminada.22
É nesse contexto que, no Filebo, é estabelecida a
relação entre a causa e a “alma do mundo”:
“Todos esses componentes que acabamos de falar, não
recebem de nós o nome de corpo, quando os vemos
reunidos em um todo? [...] Aplica isto, pois, ao que nós
chamamos mundo: será igualmente um corpo, visto que
está formado pelos mesmos componentes [...] Não
afirmamos que nosso corpo tem uma alma? [...] De onde
a haveria tomado, querido Protarco, se o corpo do universo
não estivesse animado e não possuísse os mesmos dons que
o nosso, mais belo ainda, sob todos os pontos de vista?
[...] Não iremos, portanto, crer que destes quatro gêneros,
o limite, o ilimitado, a mescla e a causa, que se soma a eles
como quarto gênero, seja esta última a que pode aportar
a alma a nossos corpos [...] Se, pois, isso é impossível,
faremos melhor seguindo a outra opinião, e declarando
que há no Todo, segundo dissemos a esse respeito, muito
de ilimitado, o suficiente de limite e, coroando isso, uma
causa que está muito longe de ser algo qualquer e que,
regulando os anos, as estações e os meses, tem pleno
direito a ser chamada sabedoria (sophía) e inteligência
(noûs) [...] jamais poderá haver sabedoria (sophía) e
entendimento (noûs) sem alma (psyché) [...] A inteligência
(noûs) é o gênero que se qualificou como causa universal (pánton
aitíou; 30e1)”.23
A “causa universal”, princípio de vida e
inteligibilidade, princípio de animação do universo, não
22
Cfe. Filebo, 17a-18c.
23
Filebo, 29d-30d; g. m.
Sérgio A. Sardi
341
poderá requerer outra causa.24 Infere-se, aqui, que a “causa
universal”, sendo uma alma (psyché), deverá ser, também,
“causa de si”, assim como de outro. Isso é reforçado, na
medida em que o Filebo é posterior ao Fedro e ao Sofista.
No Banquete, 208b, lê-se:
“É desse modo que tudo o que é mortal se conserva, e
não pelo fato de ser absolutamente o mesmo, como o que
é divino, mas pelo fato de deixar o que parte e envelhece
em um outro ser novo, tal qual ele mesmo era. É por esse
modo, ó Sócrates, que o mortal participa da imortalidade,
como em tudo o mais”. Em 207d: “A natureza mortal
procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal.
E ela só pode ser assim, através da geração, porque
sempre deixa um ser novo em lugar do velho; pois é nisso
que se diz que cada espécie animal vive e é a mesma –
assim como de criança o homem se diz o mesmo até se
tornar velho; este, na verdade, apesar de jamais ter em si
as mesmas coisas, diz-se todavia que é o mesmo, embora
sempre se renovando e perdendo alguma coisa, nos
cabelos, nas carnes, nos ossos, no sangue e em todo o
corpo”.
A permanência do que difere de si, ou seja, o modo como
o mesmo, no plano da physis, é reposto no outro, conduz, no
Banquete, a uma relação de causação que congrega identidade e
diferença, integrando autocausação e heterocausação. Tal
conexão remete às relações. estabelecidas no Fedro. entre autè
kínesis e psyché.
Isso levanta o problema das relações entre a “causa universal”, no
Filebo, com o disposto na República, VI, ou mesmo no Filebo, acerca do
Bem (tò ágathon). Porém, há de se considerar, nesse caso, que o princípio,
em Platão, é dito de muitos modos: O Uno, no Parmênides, o Belo, no
Banquete e no Hípias Maior, o “quinto elemento”, na Carta VII, o Ser, no
Sofista.
24
342
Considerações acerca da causalidade em
sistemas auto-organizados
O significado de autó, referido ao automovimento
(autè kínesis), expressou-se, em Platão, no contexto da
dialética do Uno e do múltiplo, no âmbito de um sistema do
Idealismo Objetivo, como momento limite no trânsito das
Idéias ao plano da physis, e do uno ao múltiplo. O significado
de autó, referido aos processos auto-organizadores,
expressou, de forma análoga, embora inversa, a passagem do
múltiplo à unidade, suscitando o problema de saber se o que
denominamos Universo não poderia, também, ser
compreendido em termos auto-organizativos. Infere-se,
daqui, que esse cotejamento conduz, não a uma mera
oposição teórica, ou à necessidade de um posicionamento
unilateral, mas à tarefa de articulação metodológica da
estrutura ascendente e descendente do problema das relações
entre autocausação e emergência, em que pese uma possível
revisão terminológica derivada dessa estratégia de
investigação.
Ademais, a heterocausação, em Platão, surgiu como
derivada da autè kínesis e, desse modo, integrada à mesma.
No âmbito das teorias de auto-organização parece restar, ao
que consta, um hiato nas relações entre hetero e
autocausação. Em ambos os casos parece haver, no entanto,
uma precedência lógica, epistemológica e ontológica da
autocausação sobre a heterocausação, a partir de onde seria
necessário investigar as conseqüências metodológicas,
inclusive no que tange às ciências.
O significado de automovimento, no contexto da
ontoepistemologia platônica, referiu-se a um ato em si
subsistente, do qual deriva uma história. Diversamente, os
processos auto-organizadores remetem a uma produção
imanente de história, o que pressupõe, ainda, uma memória
endógena do processo e, nesse sentido, um aprendizado. Isso
nos remete, porém, ao problema do surgimento da
diferença, compreendida enquanto novidade, no decorrer
deste processo.
Sérgio A. Sardi
343
O automovimento da alma esteve relacionado, por
sua vez, a uma causa universal que é causa de si, assim como
de outro. A observação, no item 6 da primeira seção deste
estudo, acerca da pressuposição de um processo autoorganizador de todos os processos auto-organizadores,
seguiu um caminho análogo de argumentação. Porém, cabe
indagar até que ponto e em que sentido o estabelecimento
de níveis de autocausação não deveria conduzir a uma
polissemia de significados desse conceito.
Por fim, cumpre ainda perguntar sobre o sentido a
conferir a uma “ontologia” e a uma “epistemologia”
associadas às teorias de auto-organização.
Referências
ARISTÓTELES. Metaphysics. Oxford: Clarendon Press,
1924.
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant. Paris:
Quadrigue/PUF, 1993.
BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria general de los sistemas.
México: FCE, 1976.
DEBRUN, Michel (Org.). Auto-organização: estudos
interdisciplinares. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1996.
CAPRA, Fritjof. The web of life. New York: Anchor Books,
1996.
HEISENBERG, Werner. Física e Filosofia. Brasília: Ed. da
UnB, 1999.
LUFT, Eduardo. Sobre a coerência do mundo. RJ: Civilização
Brasileira, 2005.
344
Considerações acerca da causalidade em
sistemas auto-organizados
MATURANA, Humberto. La realidad: ¿objectiva o
construida? 2 vol. Barcelona: Anthropos; México:
Universidad Iberoamericana, 1996.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do
conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. SP:
Palas Athenas, 2001.
PLATON. Oeuvres complètes. Paris: Les Belles Lettres, 19491952.
PLATONE. Tutti gli scritti. A cura di Giovanni Reale. Milano:
Rusconi, 1997.
PIAGET, Jean. Estruturalismo. SP: Difusão Européia do
Livro, 1970.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências.
Porto: Edições Afrontamento, 2001.
SARDI, Sérgio A. O silêncio e o sentido. Filosofia Unisinos,
São Leopoldo, RS, v. 1, no 1, p. 55-69, jan/abr 2005.
VARELA, Francisco. Conocer. Barcelona: Gedisa, 1988.
VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH,
Eleanor. The embodied mind: cognitive science and human
experience. Cambridge, Massachussets: MIT Press, 1991.
Ricardo Timm de Souza
345
O Nervo Exposto
Por uma crítica da razão ardilosa desde
a racionalidade ética1
Texto modificado em relação àquele originalmente publicado em
versão impressa (Anais / d’ÁVILA, Fábio (Org.) Direito penal e política
criminal no terceiro milênio – perspectivas e tendências, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2009) e eletrônica (GAUER, R. M. C. (Org.), Criminologia e
sistemas jurídicos-penais contemporâneos II, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010).
Para que a quantidade de citações seja a mínima possível, e dado o caráter
eminentemente sintético desse escrito, refira-se que as bases teóricoargumentativas do presente texto, às quais não faremos referência direta
alguma, se encontram principalmente em nossos livros Totalidade &
Desagregação. Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas; Existência em
Decisão - uma introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig; Sujeito, Ética e
História - Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental; Sentido e
Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas; Metamorfose
e extinção – sobre Kafka e a patologia do tempo; Ainda além do medo – filosofia e
antropologia do preconceito; Sobre a construção do sentido – o pensar e o agir entre a
vida e a filosofia; Responsabilidade Social – uma introdução à Ética Política para o
Brasil do século XXI; Ética como fundamento – uma introdução à ética
contemporânea; As fontes do humanismo latino – A condição humana no pensamento
filosófico contemporâneo; Razões plurais – itinerários da racionalidade ética no século
XX; Sentidos do Infinito - A categoria de “Infinito” nas origens da racionalidade
ocidental, dos pré-socráticos a Hegel; Em torno à Diferença – aventuras da Alteridade
na complexidade da cultura contemporânea; Justiça em seus termos – dignidade
humana, dignidade do mundo; Kafka, a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal;
Levinas e a ancestralidade do mal – por uma crítica da violência biopolítica, bem
como em nossos capítulos e artigos “Rosenzweig entre a História e o
Tempo – sentido crítico de Hegel e o Estado; “A vida opaca – meditações
1
O Nervo Exposto
346
Ricardo Timm de Souza2
Em memória dos Profs. O. P. Colombo e E. A. Rabuske,
que me ensinaram, no PG-Filosofia da PUCRS,
a questionar radicalmente todos e quaisquer
discursos condescendentes com a injustiça.
Para o amigo Salo de Carvalho.
sobre a singularidade fracassada”; “Por uma estética antropológica desde
a ética da alteridade: do ‘estado de exceção’ da violência sem memória ao
‘estado de exceção’ da excepcionalidade do concreto”; “Fenomenologia
e metafenomenologia: substituição e sentido – sobre o tema da
‘substituição’ no pensamento ético de Levinas”; “O corpo do tempo –
um exercício fenomenológico”; “O pensamento de Levinas e a filosofia
política: um estudo histórico-filosófico”, além de vários artigos e textos
isolados inéditos. Para referências completas, cf. Referências
Bibliográficas, ao fim do texto.
2 Estudante indisciplinar da UFRGS, procurei a PUCRS porque na
UFRGS já estava cursando um excesso de "codicreds" e não me
permitiam ingressar em um novo curso (tinha o hábito de realizar vários
cursos simultaneamente). Na PUCRS, acabei na Filosofia, por achar que
me daria gratificação de escrita sem o stress da atividade performática
que desenvolvia até então. Seguiram-se graduação e mestrado; fui realizar
o doutorado em Freiburg, na Alemanha, e, ao voltar, fui trabalhar,
primeiro como Professor Visitante e depois como Adjunto, em uma
Universidade Federal. Alguns anos depois, fui convidado a retornar à
PUCRS, agora como docente. Assim, retornei em 1998 e aqui
permaneço, procurando cultivar no pouco que posso as inúmeras mentes
brilhantes que passaram e passam por minha vida, ainda algo
indisciplinar, de Professor e pesquisador.
Ricardo Timm de Souza
347
I - Introdução
Toda filosofia constitui-se também, e de certa forma
essencialmente, em crítica da razão, ou seja, em cuidadoso
processamento crítico da(s) racionalidade(s) vigentes em
uma determinada época, desde a percepção qualificada e
situada em um determinado locus cultural específico que, não
obstante, resgata arqueológica e genealogicamente o passado
e abre efetivas possibilidades compreensivas-propositivas ao
futuro. E, em um tempo de absoluta urgência como o nosso,
devastado por retóricas hipócritas, um tempo em crise ou
em uma crise feita tempo, absolutamente urgente é a
retomada incisiva do cerne crítico da própria idéia de crítica.
Retomada que não pode ser – e assumimos a dimensão
estritamente filosófica da interpretação do que nos “dá o que
pensar”, ou seja, o real correlato de nossa mobilização
intelectual – senão crítica da(s) racionalidade(s) efetivamente
vigentes. Os tempos que correm exigem incisivamente uma
crítica da Razão, ou seja, uma crítica de suas razões – dos
tempos – e dos argumentos que as legitimam. Essa é, por
excelência, a tarefa filosófica do presente, sem a qual a
tautologia ocupa indecorosamente todos os escaninhos do
real – situação à qual nenhum intelectual digno da tarefa que
toma para si pode se curvar.
Há, pois, que proceder a uma renovada crítica da
razão. Inúmeras são as possibilidades que se abrem a partir
de um tal intento; a nossa possibilidade, aqui evidentemente
esboçada apenas in nuce e desde nossa posição singular e
estilo de leitura do que se dá ao levantamento daquilo que se
tem oferecido ao nosso discernimento ao longo dos últimos
vinte anos, sintetiza-se da seguinte maneira: penetramos
inicialmente nas razões da razão vulgar; entendemos a
necessidade e artimanhas de uma razão ardilosa que a
sustente e, por fim provisório, vimos propor uma crítica da
amálgama composta por estes dois modelos a partir da
racionalidade ética – temporal – que se dirige ao núcleo da
O Nervo Exposto
348
própria idéia de razão, ou seja, a partir da racionalidade calibrada
pelo Outro da razão.
II – Por uma compreensão da razão vulgar
Nessa prisão ao ar livre em que o mundo está se transformando, já
nem importa mais o que depende do quê, pois tudo se tornou uno.
Todos os fenômenos enrijecem-se em insígnias da dominação absoluta
do que existe. Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa
consciência, mas somente propaganda a favor do mundo, mediante a
sua duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser
acreditada, mas que pede o silêncio.
T. ADORNO3
A razão vulgar é, literalmente, a razão indiferente de
cada dia, na qual todas as violências se combinam com a
anestesia advinda da massa obtusa de acontecimentos que se
precipitam, dando à homogeneização violenta do real a
aparência de variedade infinita dos significantes, aparência
que não é senão jogo infindo de espelhos que se refletem
mutuamente, mas que não são senão imagens
autoreplicantes – pois a alternativa verdadeira é
sobremaneira rara, e não se encontra incólume no espaço
inóspito da totalização, da Totalidade fática. É a expressão
medíocre de um viver por inércia, um semi-viver kafkiano, o
pretenso “habitar” um mundo sem realmente percebê-lo.
Pela razão vulgar, transforma-se insignificâncias em
relevância, e se retira da relevância seu significado, sua
singularidade, inofensibilizando-a. Suporta-se o in-suportável. O
mundo segue por esta via principal; e, mesmo no mundo
intelectual da análise, alternativas são, em princípio,
desconhecidas ou descartadas; as cores superabundantes, os
sons onipresentes, que ofuscam olhos e ouvidos, nada fazem
senão reafirmar a vulgaridade homogênea do indiferenciado,
3
Prismas- crítica cultural e sociedade, p. 14
Ricardo Timm de Souza
349
ou seja, do indiferente. As máquinas, em seu ressoar
automatizado, bem azeitado, mimetizam cérebros
igualmente automatizados percorridos por sangue suficiente
apenas para mantê-los pulsando num arremedo de vida,
cérebros que não conseguem perceber senão a esfera parda,
acrítica, da qual constituem o centro geométrico – pois a
razão vulgar aposta na geometria para se manter no
epicentro do status quo e do pretenso futuro fechado –
espelhado – que é capaz de conceber. As acelerações e
desacelerações, as vertigens das promessas, seguem-se umas
às outras como um comboio infinito de peças confundíveis
e intercambiáveis entre si, nos trilhos estritos de um círculo
fechado. É a razão idiota em sentido etimológico; incapaz ao
menos de criar um mundo paralelo para nele se refugiar de
seus pavores, preenche o mundo no qual se dá pela
obliteração de tudo o que poderia conduzir à hesitação, à
diferença, à multiplicidade das origens e dos destinos,
fechando-se em si. É a razão pequeno-burguesa por
excelência; tem pudores de pensar além de seu lugar, pois
aprendeu muito cedo que pensar é perigoso. Mas é cheia de
razões, embora seu objetivo único seja transformar
qualidades em quantidades, pois estas últimas são previsíveis
e calculáveis. Sua indigência quase a desculpa de sua cegueira;
sua mediocridade é autocompreendida como sua maior
virtude. Cuida de não se expor ao tempo, pois tem, ainda que
não intelectualmente, a posse da caricatura da temporalidade;
o mundo é uma grande oportunidade a ser aproveitada, mas
nada de excessivo deve exorbitar o proveito – prefere delegar
a outras razões o pensamento, enquanto pensa apenas a si
mesma, sem pensar. Ouve qualquer coisa como se fosse um
argumento terminal, desde que não afete seus instintos
descerebrados; qualquer coluna de jornal ou opinião de bar
tem todo valor do mundo, se o mundo nada vale. Incapaz
de sensibilidade e diferenciação, embrutece o sensível e
diferenciado com a força bruta; correrá a apoiar o que não
entende, ainda que soe estranho assim proceder, pois o que
350
O Nervo Exposto
não entende é forte e catalisa sua mediocridade: “a
heroificação do indivíduo mediano faz parte do culto do
barato” 4 . Razão servil, a razão vulgar é o campo de
concentração do pensamento, onde são agrupados os
estímulos incapazes de sobreviver à dinâmica feroz da
dialética dos interesses; seu único argumento é não ter
argumento nenhum e disso se orgulhar. Será racista, se a
maioria o for; apoiará o populismo punitivo, pois penderá
sempre à obviedade; correrá a linchar alguém, se essa for a
vontade da massa; clamará por pena de morte, pois em
nenhuma hipótese pretende compreender o que está para
além do mais raso dos discursos que se adereça com o lustro
de argumentos capciosos que não resistiriam a um grão de
crítica, se ela ainda existisse no campo das possibilidades da
vulgaridade. Pois a razão vulgar é a expressão do humano
feito massa, de-generado, qual lava indiferenciada, que se
amolda sem excessiva dificuldade ao formato daquilo que a
possa conter e suportar e que logo se empedra em sua
própria intransparência.
A razão vulgar é a razão hoje hegemônica; a legião
dos indiferentes constitui a espessura da indiferença que a
tudo amortece, exceto a proliferação de si mesma, ao estilo
de certos fungos, que sufocam o que não são eles e se afogam
finalmente em sua tumidez indiferenciada, sem início nem
fim, em um espasmo abortado de vida. Na direção deste
micro-universo pardacento são carreadas paixões igualmente
abortadas, todo tipo de ressentimento e covardia, todo tipo
de medo e preconceito. A combinação indigesta de todos
estes elementos – a racionalidade obtusa que é expressão da
razão opaca – constitui o imaginário social geral no qual
todos estamos, de algum modo, mergulhados, e cujos reais
componentes cumpre elucidar.
Há, pois, em nome do discernimento mais
elementar, de estabelecer uma crítica filosófica da razão
4
ADORNO, T. – HORKHEIMER, M., Dialética do Esclarecimento, p. 146.
Ricardo Timm de Souza
351
vulgar. Todavia, tal não é possível por si só; necessário se faz
examinar aquilo que se evidencia patente já a um primeiro
exame: não existe razão vulgar sem uma razão mais
sofisticada, porém menos facilmente perceptível, que a
sustente, pelo mero fato de que a coesão extremamente
precária da razão vulgar, sua volatilidade que flutua nos
níveis mais rasos de qualquer coisa que se assemelhe à mera
idéia de consciência, não seria possível – pois se dispersaria
em sua fragmentação privada – sem algum tipo de alicerce
mais sólido, sem alguma estrutura de legitimação do obtuso
que somente pode se prestar a este serviço se, por sua vez,
nada tiver de obtusa; a este contraponto especulativo, esta outra
razão não-obtusa, inteligente, sutil, perspicaz na persecução
de seus interesses, denominamos no presente contexto – e
sem prejuízo à consagrada expressão “razão instrumental”,
porém ampliando-a – razão ardilosa. Há, pois, que
compreendê-la.
III – Por uma compreensão da razão ardilosa
Enquanto o espírito crítico permanecer em si mesmo em
uma contemplação auto-suficiente, não será capaz de
enfrentar a reificação absoluta, que pressupõe o progresso
do espírito como um de seus elementos, e que hoje se
prepara para absorvê-lo inteiramente.
T. ADORNO5
A razão ardilosa cerca-se a priori de cuidados e
credibilidades; procura, antes de mais nada, não chocar, pois
qualquer choque é perigoso. Imbuída da difícil tarefa de
sustentar a violência e vulgaridade do mundo, essa massa
volátil e espasmódica, ao estilo de um exoesqueleto
altamente cerebral, é e tem de se mostrar inteligente; o meiotom intelectual é seu registro, pois não pode mostrar a que
5
Prismas- crítica cultural e sociedade, p. 26.
352
O Nervo Exposto
veio, mas apenas o que transparece em sua retórica de
intenções. Sua violência é adocicada; justifica o injustificável,
legitima o ilegitimável a partir da seiva argumentativa que
destila desde a profundidade de seus interesses estratégicos;
ao organizar os meios disponíveis com relação à meta de
atingir determinados fins, exerce de modo extremamente
organizado a violência instrumental, pois enuncia o álibi
perfeito para dispensar a moral em nome da técnica6. A razão
ardilosa, contraponto exato da razão vulgar e,
simultaneamente, sua outra face, sabe exatamente em que
consiste e a que veio; mas sua subsistência depende de sua
simultânea habilidade em escamotear tanto suas razões reais
quanto suas reais finalidades, ou seja, em escamotear a
realidade, aquilo que dá o que pensar: a quantificação
violenta do mundo e a anulação do tempo, ou seja, a redução
do outro ao mesmo. Dá conta do que lhe perguntam, mas
apenas disso; oferece conforto a quem navega nos mares
tempestuosos da existência; demarca desde sempre seu
âmbito de validade, destilando algo que se costuma
interpretar como modéstia e prudência e que a torna tão
atrativa para espíritos inteligentemente medianos; estranha
as coisas nuas, pois re-projeta no mundo, de modo altamente
elaborado e formalizado, o que dele recebe: as tensões e
“O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os
meios são submetidos a critérios instrumentais e racionais e, assim,
dissociados da avaliação moral dos fins… todas as burocracias são boas
nesse tipo de operação dissociativa. Pode-se mesmo dizer que dele
provém a essência da estrutura e do processo burocráticos e, com ela, o
segredo desse tremendo crescimento potencial mobilizador e
coordenador da racionalidade e eficiência de ação, alcançados pela
civilização moderna graças ao desenvolvimento da administração
burocrática. A dissociação é, de modo geral, resultado de dois processos
paralelos, ambos centrais ao modelo burocrático de ação. O primeiro é
a meticulosa divisão funcional do trabalho (enquanto adicional à – e em
suas conseqüências distinta da – linear graduação do poder e
subordinação); e o segundo é a substituição da responsabilidade moral
pela técnica”. BAUMAN, Z., Modernidade e holocausto, p. 122.
6
Ricardo Timm de Souza
353
forças brutas do existir e do pensar sem limites. Seduz pela
aparente razoabilidade e equilíbrio de seus sábios enunciados
– e essa é sua primeira e maior habilidade, a da hipocrisia –
em um mundo no qual a própria idéia de razoabilidade e
equilíbrio é indecente. Dá a aparência de ser destilada por
um cérebro sem corpo, como se o pensar viesse antes do
existir, ou seja, como se alguém pudesse pensar ou enunciar
algo sem cérebro – utiliza-se, porém, de tais argúcias e
manipulação de fragilidades, que qualquer choque, absurdo
ou contradição são tolerados, porque previamente,
sutilmente, inteligentemente, descarnados.
A razão ardilosa apresenta todas as razões possíveis
para que a vulgaridade da razão vulgar permaneça
opacamente em seu preciso lugar; seu arsenal de ferramentas
destinadas a esterilizar o novo é enorme, pois disso depende
seu sucesso. Jogo de poder, finge-se de oferta de conciliação;
estratégia de violência, mimetiza-se de sutileza intelectual;
recurso de cooptação, estende seus tentáculos a cada
escaninho do ainda-não, para que nada de novo sobreviva.
Finge mortificar-se com os horrores do mundo, quando
significa a possibilidade mais profunda de morte da
reatividade criativa a esses horrores.
Este é o modelo de razão hegemônico nas altas
esferas do pensamento bem-comportado. Sua violência e
efetividade esterilizante é inversamente proporcional à sua
apreensibilidade por um espírito imaturo ou pouco curtido
pelo real. Segue seu compasso de morte, que toma, a cada
momento, a aparência – embora modesta – de vida do
espírito.
Interregno - quando a razão vulgar encontra a razão
ardilosa: o conluio da indecência num exemplo de
Kafka
“O senhor se comporta pior que uma criança. O que quer, afinal? Quer
acabar logo com seu longo e maldito processo discutindo conosco,
guardas, sobre identidade e ordem de detenção? Somos funcionários
O Nervo Exposto
354
subalternos que mal conhecem um documento de identidade e que não
têm outra coisa a ver com seu caso a não ser vigiá-lo dez horas por dia,
sendo pagos para isso. É tudo o que somos, mas a despeito disso somos
capazes de perceber que as altas autoridades a cujo serviço estamos,
antes de determinarem uma detenção como esta, se informam com muita
precisão sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido. Aqui não há
erro. Nossas autoridades, até onde as conheço, e só conheço seus níveis
mais baixos, não buscam a culpa na população, mas, conforme consta
na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar – a nós, guardas.
Esta é a lei. Onde haveria erros?”
Franz KAFKA, O processo, p. 12.
IV - Por uma crítica da razão imoral a partir da crítica
da idéia de razão: da razão instrumental à racionalidade
ética
O que nós recusamos não é sem valor nem sem importância. É por
causa disso que a recusa é necessária. Há uma razão que nós não
aceitamos mais, há uma aparência de sabedoria que nos causa horror,
há uma oferta de acordo e de conciliação que nós não entendemos. Uma
ruptura se produziu. Fomos lançados a esta franqueza que não mais
tolera a cumplicidade.
Maurice BLANCHOT7
Proclamando a identidade da dominação e da razão, as doutrinas sem
compaixão são mais misericordiosas do que as doutrinas dos lacaios
morais da burguesia.
ADORNO, T. – HORKHEIMER, M. 8
Compreender que a tentativa desesperada de
transformar a temporalidade numa abstração é a maior de
Em ‘Le Refus’ (“Le 14 juillet” n. 2, Paris, outubro de 1958, cit. por
Herbert MARCUSE, A ideologia da sociedade industrial, p. 234).
7
8
Dialética do Esclarecimento, p.112.
355
Ricardo Timm de Souza
todas as quimeras – como diria Rosenzweig, “ninguém
nunca assinou um tratado de paz antes de travada a guerra”
– é a possibilidade primeira de evasão do alcance paralisante da
poderosa Medusa imoral em que se constitui a combinação
maciça entre razão vulgar e razão ardilosa que consuma o
“estado de exceção em que vivemos”. É por isso que o
tempo – o fogo que consome, rápida ou lentamente, o
estatuído do mundo – é o ponto de fuga de qualquer
“aparência de sabedoria que nos causa horror, ...oferta de
acordo e de conciliação que nós não entendemos ». A
temporalidade do pensamento opõe-se ao mundo paralelo
no qual o tempo não tem lugar; toda crítica da razão, hoje,
necessita iniciar por uma crítica da própria idéia de razão a
partir da racionalidade precária que não dá a si mesma um
nome, mas que perdura naquilo que sustenta a vida: a
esperança para além do presente, a superação daquilo pelo
que toda a vida, em todas as suas formas – ainda as irracionais
– anseia inelutavelmente: a superação da injustiça. O que somos,
na última das análises e na última das vontades, senão a
ansiedade por justiça, a loucura pela justiça, como diria Derrida,
que transforma nossa existência em algo mais que uma
fórmula, e supera, por sua pertinácia e tensa perduração,
qualquer oferta de conciliação que se detenha antes que este
momento seja atingido, ou, o que dá no mesmo, que não
suporta nenhum tipo de insinuação de que este momento já
houvesse sido atingido, ou seja, qualquer oferta da Medusa
racional, filha paralisante do incestuoso coito entre a razão
vulgar e a razão ardilosa?
***
O Nervo Exposto
356
Só há uma expressão para a verdade: o pensamento
que nega a injustiça.
ADORNO, T. – HORKHEIMER, M.9
Assim, a crítica da idéia de razão nada tem de
irracional; é simplesmente o fruto eticamente racional do
choque que a Alteridade significa. O desentranhamento que o
estranhamento do mundo significa ao pensamento leva à
estranha combinação de categorias que permite a louca
ousadia que a “louca obsessão” pela justiça – que a
indomesticável repugnância pela injustiça – exige e propõe:
a combinação inusitada de categorias morais, advindas da
sensibilidade ética, com categorias intelectuais, advindas da
penetração estritamente racional na carapaça do óbvio e do
desnudamento dos verdadeiros alicerces que sustentam o
moralmente insustentável. Essa é, então, a expressão para a
verdade além da mera idéia de verdade: “o pensamento que
nega a injustiça”, o que significa a árdua passagem da razão
vulgar-ardilosa – da razão instrumental – à racionalidade ética.
9
Dialética do Esclarecimento, p. 204.
Ricardo Timm de Souza
357
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor. Palavras e sinais – modelos críticos II,
Petrópolis: Vozes, 1995.
______, Minima moralia, São Paulo: Ática, 1993.
______, Notas de Literatura I, São Paulo: Duas Cidades; Ed.
34, 2003.
______, Ästhetische Theorie, Frankfurt a.M., Suhrkamp.
______, Prismas, São Paulo, São Paulo: Ática, 1998.
ADORNO, Theodor – HORKHEIMER, Max. Dialética do
Esclarecimento, Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações, São Paulo: Boitempo
Editorial, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas, São Paulo: Brasiliense,
1985.
CARVALHO, Salo de. “A ferida narcísica do direito penal
(primeiras observações sobre as (dis)funções do controle
penal na sociedade contemporânea)”, in: GAUER, Ruth M.
C. (Org.), A qualidade do tempo: para além das aparências históricas,
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 179-211.
DERRIDA, J. Adeus a Emmanuel Levinas, São Paulo: Editora
Perspectiva, 2004.
______, Da hospitalidade, São Paulo: Escuta, 2003.
______, Força da Lei, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
358
O Nervo Exposto
KAFKA, Franz. O processo, São Paulo: Brasiliense, 1988.
LEVINAS, Emmanuel. Totalité et Infini: Den Haag: Martinus
Nijhoff, 1961.
______, Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, Den Haag:
Martinus Nijhoff, 1974.
______, Entre Nós - Ensaios sobre a Alteridade, Petrópolis:
Vozes, 1997.
______, Humanismo do outro homem, Petrópolis: Vozes, 1995.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial, Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.
MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz – atualidade e política, São
Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.
MAYER, Hans. In den Ruinen des Jahrhunderts, Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1997.
MOSES, Stéphane. L’ange de l’histoire. Rosenzweig, Benjamin,
Scholem, Paris: Editions du Seuil, 1992.
NESTROVSKI, Arthur – SELIGMANN-SILVA, Márcio
(Orgs.), Catástrofe e Representação, São Paulo: Escuta, 2000.
ROSENZWEIG, Franz, Zweistromland - Kleinere Schriften zu
Glauben und Denken (Gesammelte Schriften III),
Dordrecht/Boston/Lancaster, 1984.
_____, Der Stern der Erlösung, Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1996.
SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade & Desagregação – sobre
as fronteiras do pensamento e suas alternativas, Porto Alegre,
EDIPUCRS, 1996.
Ricardo Timm de Souza
359
______, O tempo e a Máquina do Tempo – estudos de filosofia e pósmodernidade, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
______, Sujeito, ética e história – Levinas, o traumatismo infinito e
a crítica da filosofia ocidental, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
______, Existência em Decisão - uma introdução ao pensamento de
Franz Rosenzweig, São Paulo: Perspectiva, 1999.
______, Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de
E. Levinas, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
______, Metamorfose e Extinção – sobre Kafka e a patologia do
tempo, Caxias do Sul: EDUCS, 2000.
______, Ainda além do medo – filosofia e antropologia do preconceito,
Porto Alegre: DaCasa-Palmarinca, 2002.
______, Sobre a construção do sentido – o pensar e o agir entre a vida
e a filosofia, São Paulo: Perspectiva, 2003.
______, Responsabilidade Social – uma introdução à Ética Política
para o Brasil do século XXI, Porto Alegre: Evangraf, 2003.
______, Razões plurais – itinerários da racionalidade ética no século
XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig, Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2004.
______, Fontes do humanismo latino - A condição humana no
pensamento filosófico moderno e contemporâneo, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
______, Ética como fundamento – uma introdução à ética
contemporânea, São Leopoldo, Editora Nova Harmonia, 2004.
______, Sentidos do Infinito - A categoria de “Infinito” nas origens
da racionalidade ocidental, dos pré-socráticos a Hegel, Caxias do Sul:
EDUCS, 2005.
360
O Nervo Exposto
______, Em torno à Diferença – aventuras da alteridade na
complexidade da cultura contemporânea, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
______, Justiça em seus termos – dignidade humana, dignidade do
mundo, Porto Alegre: no prelo.
______, Kafka, a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal, São
Paulo: Perspectiva, 2011.
______, Adorno e Kafka – paradoxos do singular, Passo Fundo:
IFIBE, 2012.
______, Levinas e a ancestralidade do mal – por uma crítica da
violência biopolítica, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.
______, “Rosenzweig entre a História e o Tempo – sentido
crítico de Hegel e o Estado”, in: ROSENZWEIG, Franz. Hegel
e o Estado, São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 21-39.
______, “A vida opaca – meditações sobre a singularidade
fracassada”, in: OLIVEIRA, N. F. – SOUZA, D. G. (Orgs.),
Hermenêutica e filosofia primeira, Ijuí: Editora da UNIJUÍ, 2006,
p. 461-469.
______, “Por uma estética antropológica desde a ética da
alteridade: do ‘estado de exceção’ da violência sem memória
ao ‘estado de exceção’ da excepcionalidade do concreto”, in:
VERITAS – Revista de Filosofia, v. 51, n. 2, junho 2006, p.
129-139.
______,
“Fenomenologia
e
metafenomenologia:
substituição e sentido – sobre o tema da ‘substituição’ no
pensamento ético de Levinas”, in: SOUZA, Ricardo. Timm
de. – OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. (Orgs.)
Fenomenologia hoje – existência, ser e sentido no alvorecer do século
XXI, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
Ricardo Timm de Souza
361
______, “O corpo do tempo – um exercício
fenomenológico”, in: SOUZA, Ricardo. Timm de. –
OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. (Orgs.), Fenomenologia
Hoje II – significado e linguagem, Porto Alegre: EDIPUCRS,
2002.
______, “O pensamento de Levinas e a filosofia política: um
estudo histórico-filosófico”, in: SOUZA, Ricardo Timm de.
– OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. (Orgs.)
Fenomenologia hoje III – bioética, biotecnologia, biopolítica, Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2008.
SOUZA, Ricardo Timm de. – FABRI, Marcelo. – FARIAS,
André Brayner de. (Orgs.) Alteridade e Ética, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2008.
SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico. Uma introdução ao
pensamento de Emmanuel Levinas, Porto Alegre – Petrópolis,
E.S.T.-Vozes, 1983.
TIBURI, Márcia. Filosofia cinza – a melancolia e o corpo nas dobras
da escrita, Porto Alegre: Escritos Editora, 2004.
TIBURI, Márcia – KEIL, Ivete (Orgs.), O corpo torturado,
Porto Alegre: Escritos Editora, 2004.
362
Diferença ontológica e onto-teo-logia
Diferença ontológica e
onto-teo-logia
Ernildo Stein
Foi através de problemas da filosofia transcendental,
e das dúvidas levantadas por ela, que se abriu um caminho
para se pensar a Filosofia como totalidade, na busca da
totalidade. É estranha a tendência que há na Filosofia de ter
que reconhecer a busca de uma totalidade, nunca
encontrada. É por isso que Aristóteles denomina a Filosofia
de episteme zetoumene, que é a ciência procurada, porque
devemos tender para ela, sem que ela, no entanto, nunca se
complete.
Por ser a Filosofia uma ciência em que se busca a
totalidade, ela começa a ser desenvolvida na nossa
experiência, de maneira parcial, de modo unilateral, na
medida em que temos que escolher um ente determinado
para expressar essa totalidade. No momento em que, com a
filosofia moderna, percebemos as tentativas de pôr limites à
metafísica, começamos a perguntar sobre esses limites, os
Ernildo Stein
363
quais eliminam a ideia de totalidade e se referem à velha
tradição da metafísica como algo que não é intocável. O
conceito de metafísica que se desenvolve nas proximidades
de Kant, vai nos indicar o que é uma nova metafísica. Esta é
a velha metafísica, embora não trate mais dos problemas
metafísicos da objetividade. No lugar destes, são postos os
problemas da possibilidade do conhecimento metafísico.
Portanto, não se trata mais de um conhecimento metafísico,
mas de uma metafísica do conhecimento. Com a introdução
da subjetividade no lugar da substância, como Hegel nos diz,
no prefácio da Fenomenologia do espírito, “entronizamos a
subjetividade no altar abandonado da substância”.
Na filosofia moderna se deu uma inversão, que
chamamos de copernicana, com a qual não mais se busca a
solução dos problemas metafísicos, mas se pergunta pelos
problemas da solução. Kant quer demonstrar por meio da
Crítica da razão pura que é possível um conhecimento de iure,
que não é apenas um conhecimento contingente, transitório.
Aí se faz uma divisão: o de facto no fundo é a questão do
conhecimento natural e o de iure é o conhecimento
transcendental. Para avançar, irei usar uma frase de Wilhelm
Szilasi: “Para a Filosofia, a experiência especulativa foi desde
sempre o tema propriamente dito, e apesar disto não foi
realizável até Kant, nem mesmo na Filosofia, uma clara
separação entre experiência natural e experiência
especulativa. A razão, para essa não realizabilidade, foi
descoberta por Heidegger na diferença ontológica”. Szilasi
tem uma especial sensibilidade para esta questão
fundamental de Kant: o problema da distinção entre a
linguagem natural, a experiência natural e a experiência
especulativa. Ele atribui a Heidegger a solução dessa divisão
que foi introduzida por Kant através da distinção entre
fenômeno e coisa em si, problema este não resolvido. Tal
problema continua sendo a questão insolvida do
esquematismo da razão: a relação entre o ente singular e a
sua universalidade.
364
Diferença ontológica e onto-teo-logia
Esse tema que é tão decisivo na filosofia do século
XX, e na filosofia ocidental como tal, que podemos dizer
que, se esse processo, intitulado aqui “diferença ontológica e
ontoteologia”, não tivesse acontecido, estaríamos muitos
passos atrás na Filosofia. Tal questão surge dos dois
caminhos abertos na Metafísica de Aristóteles. De um lado,
temos a ciência procurada (episteme zetoumene), que trata do
ser e dos entes e, de outro lado, temos a ciência do theón, do
pensamento de pensamento, do motor imóvel. Com a
diferença ontológica, Heidegger escolheu o segundo
caminho da Metafísica de Aristóteles: o pensamento do ser
que se dá de múltiplos modos e assim se volta contra a
ontologia de caráter platônico, a qual, seguida pela tradição,
levou à entificação do ser, ao seu encobrimento. Em Ser e
tempo, e em um texto escrito logo após, Os começos metafísicos
da lógica, levanta-se essa questão, de maneira inaugural, até
chegar ao problema da diferença ontológica.
Caso essa introdução não tivesse sido feita,
dependeríamos ainda de um dualismo na Filosofia e não
teríamos percebido a ontoteologia como o caminho do
esquecimento do ser. Em outras palavras, estaríamos ainda
em uma espécie de expectativa de solução do todo da
Filosofia através do sistema. Há uma frase de Heidegger,
dessa época, que mostra isso: “A determinação histórica sem
o elemento sistemático é morta e a determinação sistemática
sem o elemento histórico é vazia”. Para ele, estamos sempre
nesse jogo onde impera uma distinção que leva a esse
dualismo do elemento histórico e do elemento sistemático.
Minha intenção é introduzir algo que, ainda que
reconheça a distinção, a diferença, introduza uma unidade.
Esse é também o segredo da diferença ontológica. Esta, que
se apresenta como uma expressão de Heidegger, visa a
identificação de um processo que se desenvolveu em cada
época da Filosofia, mas sempre como uma espécie de
equívoco. O filósofo chama isso de encobrimento. Em
Hegel, o lógos grego se desenvolve através dos autores na
Ernildo Stein
365
história da filosofia até o lógos hegeliano do saber absoluto,
no qual é dada a solução definitiva da Filosofia pela
identidade da identidade, com a não identidade, como saber
absoluto. Em Heidegger se dá o processo contrário. Para ele,
houve uma primeira manifestação, um primeiro despertar,
um primeiro brilho nos filósofos gregos pré-socráticos,
quando falavam, por exemplo, de alétheia ou de phýsis. Este
primeiro brilho foi sendo encoberto, sobretudo pela
presença da idéa em Platão e da substância em Aristóteles. O
encobrimento progressivo continuou até o saber absoluto
em Hegel, o qual, apesar de aparentemente ter introduzido a
dialética pela diferença constante (tese, antítese e síntese), é
o filósofo da identidade. Assim, o saber absoluto passa a ser
a identidade da identidade com a não identidade.
Hegel é o filósofo da identidade e Heidegger, pela
maneira como ele introduziu o problema da diferença
ontológica, é o filósofo da diferença. Entretanto, dizer que
este é o filósofo da diferença significa dizer que ele não
apenas pensa a diferença, a impossibilidade de identificação
entre histórico e sistemático, mas examina os motivos que
possibilitam tal aproximação. Em Hegel, o histórico e o
sistemático se encontram no saber absoluto, e a história da
filosofia é o movimento que desenvolve o sistema que chega
a se fechar no saber absoluto. Esse movimento hegeliano em
direção deste saber, para Heidegger, levou ao total
encobrimento da questão do ser. Este dirá, portanto, que a
aproximação entre sistema e história é uma aproximação que
procuramos alcançar, mas que nunca alcançaremos. Assim,
em Hegel se dá o saber absoluto, da infinitude, e em
Heidegger se dá a dimensão existencial, da finitude.
Esses dois elementos são centrais para pensarmos,
em primeiro lugar, como é possível ter surgido, ao mesmo
tempo, a partir do pensamento de Kant, um Hegel e um
Heidegger. Essa é uma questão fascinante se observamos
como das teses do filósofo, que se propôs superar o sono
dogmático da metafísica, pondo um limite para ela, puderam
366
Diferença ontológica e onto-teo-logia
resultar as ideias de dois filósofos que desenvolveram
movimentos opostos. Não vamos desenvolver mais
profundamente a questão da identidade em Hegel. Essa
questão da identidade e da diferença, uma questão que nos
segura na Filosofia, tem a ver com o problema de como,
desde os gregos, se colocava a questão do saber último da
Filosofia.
Como pensar a diferença ontológica e a
ontoteologia? Como pensar a diferença ontológica e a ontologia
teológica? Talvez pudéssemos achar outros nomes para esses
problemas filosóficos. A palavra “ontologia” não existia até
o século XVII. Foi um filósofo cartesiano, chamado
Clauberg, que inventou esse termo. Todo o tratamento em
torno da questão do “ser” era feito, até o século XVII,
através de outros nomes, como filosofia primeira, metafísica
ou Teologia. Acontece que essa questão é a questão central
da Filosofia e talvez por causa dela, e por perguntarmos com
ela pela totalidade, movamo-nos e teimemos na Filosofia,
embora Heidegger diga que não é preciso ser filósofo para
perguntar pela totalidade.
Ao longo da história, perguntamos pela maneira
como a totalidade pode ser denominada. Poderíamos
investigar a motivação dessa busca e, assim, veríamos, em
primeiro lugar, que tal motivação desde os pré-socráticos até
Aristóteles, surgia simplesmente do desejo de encontrar um
objeto que represente a totalidade: o ápeiron, a água, o nous,
etc. Em Aristóteles, surgiu um problema pessoal sério. Na
medida em que ele se afastava de Platão e introduzia o
conhecimento filosófico como uma obra humana, paralelo
ao conhecimento das ciências, ele ao mesmo tempo se
perguntava pela função do conhecimento filosófico para o
conhecimento científico. Daí se originou a questão do
natural (conhecimento científico) e do ontológico, que
depois será chamado transcendental.
Aristóteles, ao tratar, por meio da física, da
astronomia e de outros campos do conhecimento, de
Ernildo Stein
367
questões como o movimento e o tempo, não podia se ater
puramente à dimensão transitória e contingente destes, os
quais mostravam o nascimento e a corrupção dos entes. O
filósofo está à procura de um elemento que garanta para o
conhecimento uma dimensão universal e generalizadora, isto
é, uma explicação para certos conceitos, como movimento e
tempo, que estão intimamente ligados ao conceito de
natureza, de phýsis. Em outros termos, ele busca uma
explicação para o cosmos como um todo.
Desse modo, Aristóteles desenvolve duas teorias em
duas direções, que ainda hoje são objeto de divisão dos
filósofos. Alguns adotam a sua tese do motor imóvel, a qual
representa a solução ontoteológica, talvez de caráter
palatônico; enquanto outros seguem o segundo caminho, da
filosofia primeira (proté philosophía), da epistéme zetouméne, da
ciência que se guia pela pergunta pelo ser dos entes e pelo
ente enquanto ente. Essas duas direções levam à filosofia do
ponto de vista histórico e à filosofia do ponto de vista
sistemático. O primeiro caminho conduz à metafísica como
ontoteologia. O outro conduz à ontologia, à fenomenologia,
como veremos, através de Heidegger.
Ao introduzir aquilo que garantiria a universalidade
e a generalidade da ciência e, portanto, sua necessidade,
Aristóteles utilizou o princípio grego da causa final como
início do movimento, que significa também uma espécie de
início de uma identidade final. Ao introduzir o motor imóvel,
ou aquilo que ele chamou no livro nono e no livro doze da
Metafísica de pensamento de pensamento, théon, divino,
sublime, para situá-lo como elemento de atração que leva aos
entes e nos conduz à busca da perfeição, ele quis explicar,
com isso, todo o movimento do cosmos. Portanto, em
Aristóteles, o surgimento dos entes não se dá pela
causalidade eficiente, como no cristianismo, mas pela causa
final.
Ao introduzir o théon, ele deu ao elemento da
universalidade e da generalidade das ciências, uma explicação
368
Diferença ontológica e onto-teo-logia
objetiva. Ainda que o pensamento de pensamento seja de
caráter “especulativo”, Aristóteles objetificou esse elemento
“especulativo” para explicar a origem do tempo e do
movimento, o que marca até hoje a filosofia ocidental. Não
haveria ontoteologia sem Aristóteles; não se faria, em Santo
Tomás, todo o movimento entre Filosofia e Teologia, numa
relação de submissão; nem surgiria Hegel, se Aristóteles não
tivesse posto essa questão. Assim, essa resposta que
Aristóteles deu para encontrar a ideia de universalidade, de
generalidade do campo natural das ciências, é uma resposta
especulativa objetivada, mas como o especulativo não pode
ser entificado, surge a ontoteologia.
Aristóteles percebeu essa objetificação, com a qual
ele estava em busca do significado e do sentido, mas, como
na época não se conhecia semântica, ele trocou o significado
pelo objeto. Deus ficou no lugar do que deveria ser o
elemento básico de universalidade e generalidade: o
significado. Heidegger coloca, no início de Ser e tempo, a
pergunta pelo ser tirada do Sofista de Platão, embora ela
também tenha sido feita por Aristóteles. “Há muito tempo
sabemos e temos familiaridade com o que significa a
expressão ente, entretanto, nós que pensávamos
compreender o que é o ser, agora estamos em aporia”. A
pergunta pelo ser do ente, e pelo ser enquanto ser, é tomada
por Aristóteles como objeto da ciência procurada, da epistéme
zetouméne. Essa é a segunda vertente aristotélica, mas, apesar
de ela trazer essa interrogação pelo ser, ela possui um viés
filosófico que introduziria a ideia de totalidade objetificada.
Enquanto identificamos ser com Deus terminamos
objetificando-o. Todavia, se mantivermos aberta a linha de
pergunta, como Aristóteles fez através da sua ciência
inacabada, teremos um segundo caminho, ou seja, aquele
caminho da diferença ontológica.
Em vez de resolver a questão pela ontoteologia que
entifica o ser, podemos manter a questão do ser em aberto,
à procura, na finitude. Sabemos que a marca ocidental da
Ernildo Stein
369
tradição cristã veio do fato de a ontoteologia ter levado à
superposição entre ser e Deus. Superpor ser e Deus significa
objetivar a questão do ser. Os filósofos objetificaram a
questão do ser de vários modos: Platão com a idéa,
Aristóteles com a substância, a Idade Média com o ipsum esse,
Kant com o eu penso, Hegel com o lógos do saber absoluto.
Houve diversas épocas em que essa questão da objetificação
variava, mas sempre reaparecia como a única possibilidade
de se manter o pensamento da totalidade. A escolha da
segunda via levou Heidegger à fenomenologia, a uma ciência
aberta, finita, sempre à procura, à ontologia da finitude.
O outro movimento de Aristóteles, da questão do ser
e do ser do ente, introduziu o processo da diferença, mas
esse processo da diferença foi constantemente encoberto, na
medida em que o ser era explicado através do ente, de um
ente superior, do ente supremo; através da subjetividade que
aparece a partir de Descartes, de Kant e, sobretudo, de
Hegel, o qual entroniza a subjetividade no altar da
substância. Em outros termos, o pensar da diferença foi
encoberto e o pensar da identidade foi afirmado. São estes
os dois movimentos, o de Hegel e o de Heidegger. Em
Heidegger houve o movimento da diferença e em Hegel
houve o movimento da identidade. Quando Heidegger diz
que a determinação histórica, sem o elemento sistemático, é
morta e a determinação sistemática sem o elemento histórico
é vazia, talvez se lembrasse de Kant, do jogo entre
fenômenos e ideias: a ideia sem o fenômeno é vazia e o
fenômeno sem a ideia é cego.
Falando do sistema e do elemento histórico,
Heidegger acrescentaria que: “O histórico e o sistemático
não podem ser fechados em uma unidade”. Como podemos
pensar ambos numa unidade sem cair em uma identidade
hegeliana? Para evitar essa unidade se exige que se introduza
um terceiro nível de ente, um terceiro nível de distinção que
Aristóteles não fez e que Heidegger pensou, pela primeira
vez. Nesse nível, que é o ser-aí (Dasein), é possível manter a
370
Diferença ontológica e onto-teo-logia
identidade e a diferença na diferença. Ele é o ente como lugar
onde, de certo modo, o ser faz sua manifestação. O
tratamento desse terceiro nível é que vai permitir a futura
possibilidade de se falar em diferença ontológica, e não mais,
portanto, em identidade ontológica.
Nós tratamos aqui da palavra ontologia que é,
naturalmente, altamente suspeita. Ela é uma palavra que foi
inventada no século XVII, mas nós falamos dela nos
remetendo a elementos da época grega, os quais muitas vezes
não têm nenhuma relação direta com a tradição grega. Nós
identificamos ontologia com metafísica. Foi somente
Christian Wolff que fez a distinção essencial utilizando estes
termos, fundando uma distinção: uma metafísica geral e três
metafísicas especiais (metafísica do mundo, metafísica do
homem e metafísica de Deus); esta influenciou Kant.
Há, portanto, uma questão fundamental que não
identificamos, e que deve ser novamente tematizada,
evitando-se o uso indistinto de ontologia, de metafísica.
Todavia, se quisermos chegar ao núcleo, que é o nosso
problema e que Heidegger explicitou mais claramente que
qualquer outro filósofo, vamos perceber que há outro tipo
de operação em jogo, quando falamos em uma subjetividade
sustentada por um lógos que suprime as diferenças numa
identidade, em direção do saber absoluto. A subjetividade,
portanto, carrega em si esta ideia de busca de identidade
desde que Kant produziu o dualismo. Na medida em que
sujeito [transcendental] e objeto se distinguem
essencialmente, em Kant, surge a dialética hegeliana para
suprimir essa diferença.
A identidade entre sujeito e objeto, mesmo que o
objeto carregue em si a ideia de subjetividade, de lógos, é no
fundo um vício que Hegel repete como Aristóteles. Ernst
Tugendhat fala sobre isso, no final de seu livro Autoconsciência
e autodeterminação, em um capítulo intitulado Liquidação com
Hegel. Tugendhat diz que Hegel confundiu o significado dos
conceitos com o objeto e assim pôde construir seu sistema
Ernildo Stein
371
filosófico porque cada conceito era um objeto, como se os
conceitos fossem tijolos numa construção. É por isso que a
ideia de subjetividade em Hegel, por mais próxima que
pereça estar da ideia de significado, distorceu o conceito de
significado. Somente desse modo pôde produzir uma
filosofia absoluta, porque o fator absoluto da identidade, da
identidade com a não identidade, não é mais sujeito, mas
sujeito e objeto numa totalidade.
Como se desenvolveu, então, a filosofia da diferença,
a diferença ontológica? Mediante a transformação da ideia
de subjetividade em ser-aí, ainda que Heidegger não
reconheça. Heidegger preencheu uma lacuna, ao pôr o ser-aí
como o lugar no qual se introduz uma diferença, que é a
diferença entre ser e ente. Essa terceira instância havia sido
suprimida pela tendência invencível da objetificação, que
usava, para explicar a diferença entre ser e ente e para
determinar, então, todas as instâncias da cultura de uma
época, um ente superior aos outros entes.
Com a obra Ser e tempo, Heidegger introduziu a
instância em que a diferença é sustentada através da analítica
existencial. Esta, por um lado, é a analítica do ser humano
como ser finito, e, por outro, com ela Heidegger faz uma
distinção entre dois lógoi, e não mais um lógos, isto é, o lógos do
enunciado, da lógica, que leva ao saber absoluto em Hegel, que
é o lógos apofântico, e o lógos hermenêutico. Este lógos é como o
“enquanto” que acompanha qualquer enunciado e que, mais
tarde, será chamado de “pré-compreensão”. Ao fazer a
distinção entre esses dois lógoi e mostrar que há uma
diferença fundamental entre o lógos do enunciado e o lógos
hermenêutico, da pré-compreensão, do ser-no-mundo, o lógos
prático, Heidegger garantiu a diferença ontológica, a qual se
desdobra naturalmente em muitas dimensões.
O filósofo introduziu, portanto, dois lógoi, mas o
importante aí não é isto. Outros também fizeram a distinção
entre ser e ente. O importante é ele ter introduzido um
elemento de distinção entre “experiência natural e
372
Diferença ontológica e onto-teo-logia
experiência especulativa”, como disse Szilasi. Ele introduziu
a diferença ontológica de um modo inteiramente novo, de
tal maneira que com isso produziu, nos seus livros antes de
Ser e tempo e logo depois de Ser e tempo, uma nova divisão da
metafísica ocidental. Kant certamente o influenciou nessa
tarefa de pôr limites à metafísica, mas, diferente de Kant, ele
fez isso falando em ontologia fundamental. Esta é aquele
lado da metafísica que poderíamos chamar de metafísica da
metafísica. Porque se a metafísica é objetificação, entificação,
busca de identidade; enquanto a metafísica da metafísica é
justamente o acontecer da diferença. Nesse sentido,
Heidegger chamará esta metafísica de ontologia
fundamental, que será desenvolvida, primeiro, como
analítica existencial. Estamos sempre envolvidos com a
analítica existencial, porque mesmo a segunda seção de Ser e
tempo, que trata do Dasein e da temporalidade, não é mais do
que a revisão da analítica existencial sob o ângulo da
temporalidade.
Terminamos, assim, ocupando-nos com o Dasein,
através das duas seções publicadas de Ser e tempo. Mas essa
ontologia fundamental também introduz uma distinção
entre ciência natural e experiência especulativa. A
experiência natural, para Heidegger, também faz parte da
questão da identidade, mas ela não é mais aquilo que é
tornado especulativo por ser incluído na identidade. Isso
significa dizer, que a diferença permite também identidade,
mas esta não é mais produzida pelo sujeito no saber
absoluto. Ela não é a identidade do modelo “A = A”, como
ocorre na lógica e de certo modo na subjetividade hegeliana,
o igual por exemplo, mas é a identidade do mesmo, da
mesmidade. Aqui o ser é o mesmo. Por essa razão,
Heidegger escreve muitas vezes o “Mesmo” com “m”
maiúsculo. Ele criou no terceiro nível, um lugar em que o
Dasein, ao mesmo tempo em que compreende o ser,
compreende a si mesmo. O Dasein é o ser que tem que ser
Ernildo Stein
373
(Zusein), ou seja, que sabe que é e que não pode escapar de
ter que se assumir enquanto é.
Ao mesmo tempo em que se compreende a si
mesmo, enquanto ser, ele compreende o ser, e na medida em
que compreende o ser, compreende a si mesmo. Essa
diferença, leva a uma espécie de identidade não linear, que é
a identidade do círculo hermenêutico. Esta, na qual fazemos
constantemente a diferença entre ente e ser, entre o ser-aí
que compreende e o ser que é compreendido, entre o ser que
sustenta o ser-aí e o ser-aí que é o lugar em que o ser se
manifesta, aparece, acontece.
Na fenomenologia, descrevemos o dar-se do ser
como compreensão, como algo que se dá em nós mesmos,
como acontecimento. Heidegger irá desenvolver isso de
infinitos modos nos seus textos. Esse acontecer é a marca da
fenomenologia e o Dasein é o lugar do acontecer, por isso ele
é um acontecer hermenêutico. Assim, toda a tradição vem
da fenomenologia hermenêutica ligada ao Dasein, tendo
como aspecto fundamental esse acontecer. Desse modo, o
lógos hermenêutico não é o lógos do enunciado, a partir do qual eu
digo, apodicticamente, “é isso”, “é aquilo”; mas é o lógos do
contexto no qual o enunciado acontece e,
consequentemente, o sentido.
Heidegger diz no começo de Ser e tempo, quando cita
Platão, que quando perguntamos pelo ser terminamos em
aporia. Pensávamos saber, mas não sabemos. É por isso que
ele põe a questão: Será que não conviria nós repensarmos
essa questão do ser? Pergunto pelo sentido do ser, e este será
buscado no horizonte do tempo, no horizonte da
compreensão do ser. O que temos que perceber, e Heidegger
sabia disso também, é que o sentido não existe. Buscamos o
sentido, mas nós não o encontramos. Durante muito tempo
a filosofia que interpretava Heidegger dizia: ele fracassou
porque não encontrou o sentido do ser. Justamente buscar o
sentido do ser é desenvolver a Filosofia num outro universo
de análise, que não é mais o universo da objetividade –
374
Diferença ontológica e onto-teo-logia
greco-medieval–, nem da subjetividade moderna, mas
desenvolver a questão do ser no horizonte da finitude, no
horizonte da temporalidade. Aí o conceito de ser vai se
colocar como um conceito com o qual operamos como entes
finitos. Como Heidegger diz: “Tão finitos somos nós que
necessitamos do conceito de ser para pensar”. Temos aqui
novamente a questão dos dois caminhos de Aristóteles.
Encontram o sentido do ser os que seguem o primeiro
caminho de Aristóteles, a ontoteologia; mas quem investiga
o ente, o ser do ente, trilhando o segundo caminho, aquele
da epistéme zetouméne, permanece em aporia, aberto, sem
resposta definitiva pelo sentido, não chega ao absoluto,
permanece na finitude.
A partir desse conceito surge a diferença ontológica,
e a nossa pergunta é: é a diferença ontológica que tem como
resultado o ser humano? Ou é o ser humano que tem como
resultado a diferença ontológica? Questões que o filósofo se
põe no segundo volume “Nietzsche”. Como responder a
essa questão das questões? Não conseguimos decidir isso,
porque aí está o movimento da circularidade. Não
conseguimos decidir se a diferença ontológica é produzida
pela circularidade, pelo ser-aí, ou se o ser-aí é resultado da
diferença ontológica. É claro que isso, no nível da
circularidade, é perfeitamente pensável.
Retomando a questão entre experiência natural e
experiência especulativa, ou experiência natural e experiência
transcendental, no sentido mais amplo, poderíamos dizer, de
uma maneira simples, que Hegel desenvolveu a Filosofia
num movimento especulativo transcendental e Heidegger
desenvolveu a Filosofia num movimento especulativo
hermenêutico. Se existe uma dobra na linguagem, a linguagem
dos enunciados assertórios, os enunciados práticos e se a
linguagem carrega e sustenta a linguagem de caráter
assertório, reconhecemos uma dupla estrutura da linguagem,
a linguagem lógico-apofântica e a linguagem no nível
hermenêutico.
Ernildo Stein
375
Poderíamos dizer que essa dupla estrutura já existe
em Hegel, porque ele diz que nós, comuns mortais, sempre
trabalhamos com a linguagem ordinária, mas por trás da
linguagem do homem comum, do entendimento comum,
existe o movimento do lógos e ali se dá o movimento
especulativo, dialético-especulativo. Heidegger diria que
também nós usamos sempre uma linguagem, mas a
linguagem natural da qual ele fala não é perpassada por um
elemento do lógos ou um elemento de certo modo divino, em
que Deus é, por fim, a síntese suprema. Em Heidegger, a
linguagem não é chamada linguagem ingênua, a linguagem
que deve ser perpassada por um ser efetivamente existente,
que seria Deus. Para Heidegger, a mesma linguagem, a
linguagem humana tem duas dimensões, um aspecto lógico
e um aspecto hermenêutico. Essas duas dimensões é que
fazem com que ela seja linguagem natural e, ao mesmo
tempo, linguagem especulativa, de caráter transcendental.
Nós certamente realizamos talvez a operação mais
importante do ser humano, quando fazemos uma frase com
sentido, uma frase enunciativa que pronuncia algo sobre
algo.
Certamente é disso que nós precisamos, só que não
percebemos que ao operarmos com isso precisamos uma
espécie de base, um elemento que sustenta isso, que é um
pré-compreendermos a nós mesmos no mundo e essa précompreensão é condição de possibilidade de todo o
enunciado. No entanto, esse fundamento da linguagem
enunciativa é um fundamento que se dá na própria condição
humana, no próprio ser-aí, enquanto na tradição da filosofia
absoluta, da ontoteologia, essa linguagem se dá em direção
de uma síntese absoluta. Assim, Hegel encontra um
fundamento absoluto e Heidegger diz que a linguagem
enunciativa se fundamenta em um fundamento sem fundo,
a hermenêutica. É uma espécie de lugar que é apenas
sustentado pela finitude do Dasein e lá não existe
fundamento. É com isso que definitivamente se supera a
376
Diferença ontológica e onto-teo-logia
ideia do fundamento inconcussum e do eu ou do sujeito,
herdeiros do primeiro caminho de Aristóteles, a
ontoteologia de origem platônica.
Como passagem, gostaria de levantar outro
problema. Poderíamos pensar que se Heidegger inaugura a
ontologia fundamental, e para isso faz a analítica existencial,
introduzindo a diferença ontológica, para que ainda discutir
as questões da ontologia? Porque esse é o trabalho filosófico.
No mesmo livro há uma parte essencial que ele dedica às
meta-ontologias. Elas são as ontologias regionais, que se dão
nas ciências humanas em geral e que são observações sobre
antropologia, psicologia, direito, educação. Não reduzimos a
Filosofia à ontologia fundamental. Também há um elemento
especulativo e um elemento transcendental específico nos
campos da ciência em geral que podemos tratar
especificamente. Não há negação das ontologias regionais.
No momento em que falamos em ontoteologia
temos uma palavra, provavelmente criada por Heidegger.
Nunca a vi sendo usada antes. O conteúdo dessa palavra foi
criado para a velha metafísica e não para a nova metafísica,
não na discussão do pensamento metafísico depois da
revolução copernicana, não na metafísica do conhecimento,
mas no conhecimento metafísico. No entanto, temos que
flagrar também em toda metafísica do conhecimento, até
mesmo de Kant, floresce uma ontoteologia enraizada no
resto de metafísica.
Todo o conhecimento metafísico é ontoteológico. E
na medida em que ele é ontoteológico, a pergunta é: como
Deus entrou na Filosofia? Ele entrou na Filosofia pela porta
dos fundos, porque ela propriamente não poderia tratar de
Deus. Para Aristóteles, “é estranho que Deus que tem o
direito de fazer Filosofia (metafísica), não faça Filosofia,
porque ele é pensamento de pensamento. E, no entanto, o
ser humano que por condição não poderia fazer Filosofia,
faz Filosofia”. Quem fala aqui é o Aristóteles do primeiro
caminho onde se postula o motor imóvel, o théon que é
Ernildo Stein
377
pensamento de pensamento, perfeito, e, assim, tudo move
pela atração. Aqui temos a metafísica ontoteológica. Aliás, o
ser humano só poderia fazer Filosofia se seguisse o segundo
caminho de Aristóteles, a pergunta pelo ser e ser dos entes.
Então teríamos a filosofia primeira, a epistéme zetouméne, a
ciência procurada, a filosofia da finitude.
No momento em que Deus entra na Filosofia e se
torna o princípio organizador dela, a Filosofia (como
metafísica) se torna o destino do pensamento ocidental,
como destino onto-teo-lógico. Essa questão do destino
onto-teo-lógico, na metafísica ocidental, é o que levará ao
encobrimento do sentido do ser por diversas entificações. O
ser é então idéa, substância, ipsum esse, cogito, eu penso, saber
absoluto: os princípios epocais. A analítica existencial
investiga o ser, no segundo caminho de Aristóteles, a ciência
procurada, em que a resposta à questão do ser permanece na
diferença ontológica. Heidegger deixa sem resposta esta
questão: apenas pergunta se o homem surge da diferença
ontológica ou se essa surge do homem. Mas a analítica
existencial parte do Dasein, do ser-no-mundo, para perguntar
pelo sentido do ser, pela diferença ontológica. Desde o
começo, Ser e tempo visa a crítica do caminho ontoteológico
da metafísica, o primeiro caminho. Quando Heidegger fala
em esquecimento do ser (do ente), em superação da
metafísica, ele sugere que nós nos adentremos na metafísica.
As aproximações que desenvolvemos em torno da
diferença ontológica foram acompanhadas pela temática da
ontoteologia. Não precisamos fazer grande esforço de
articulação, para concluir que os diversos aspectos
apresentados tomam uma forma combinada que passa a
apontar na direção da tarefa principal que Heidegger se
propõe durante os anos 20 do século passado, na preparação
de uma obra sistemática que desse um perfil amplo para
compreendermos a temática da destruição das ontologias
tradicionais e da superação da metafísica. A ontoteologia não
é simplesmente o resultado de uma atitude apenas crítica
378
Diferença ontológica e onto-teo-logia
diante da metafísica. Ela representa a escolha de um modo
de problematizar aquilo que se tornara para Heidegger uma
marca da tradição filosófica ocidental, que tinha suas raízes
no universo grego, sobretudo em Platão e Aristóteles. É por
isso que podemos dizer que os dois caminhos de Aristóteles
além de apresentarem dois contextos da experiência
aristotélica da pergunta pela resolução do problema de um
lugar último de fundamentação, resultam das análises que
resultaram de sua Física, mas principalmente da Metafísica.
Não resta dúvida que o filósofo não podia
desenvolver um caminho de argumentação crítica à
ontoteologia se não falasse de um lugar que lhe trouxesse
razões suficientes para servir de pressuposto. Tal ponto de
apoio foi a escolha do segundo caminho de Aristóteles, de
sua filosofia primeira, da pergunta pelo ser do ente e pelo
ente enquanto ente. Todas as análises de Aristóteles que
Heidegger desenvolveu podem ser situadas no horizonte de
sua opção pela ciência procurada (epistéme zetouméne). O
desenvolvimento de sua interrogação certamente teve como
objeto principal interpretações fenomenológicas de certas
obras centrais de Aristóteles.
Chama-nos nossa atenção que o filósofo termine
acrescentando ao seu central tema da hermenêutica da
facticidade, o caminho da destruição. Com essa expressão,
seu pensamento abre diversas direções possíveis de serem
escolhidas e que efetivamente foram exploradas por
Heidegger. Quando o filósofo procura uma luz na destruição
das ontologias tradicionais a partir do conceito de tempo,
adia para a terceira seção de Ser e tempo o desenvolvimento
de uma temática que o levará para uma espécie de impasse.
O filósofo irá explorar essa aporia para realizar um
movimento fundamental para a sua obra, mas que de alguma
maneira era previsível que devesse acontecer.
A questão do esquecimento do ser, a história do
encobrimento do ser atribuída à metafísica ocidental, aponta
em duas direções. De um lado, para a ontoteologia
Ernildo Stein
379
representada pelo primeiro caminho de Aristóteles e que
conduzira à tradição ocidental a um desenvolvimento
encobridor da questão do ser, pode ser vista como uma
passagem inevitável, no caminho da fundamentação, que
terminaria sendo encobrimento pela pressa que autores
centrais da tradição ocidental tinham de resolver a questão,
seguindo a primeira via de Aristóteles por um princípio
último. Este terminaria sendo proposto como a solução de
um problema que, no entanto, levaria para outro problema
de proporções semelhantes e desenvolvimento paralelo. A
ontoteologia terminaria por coroar a ontologia, mas deixaria
sem resposta a pergunta pelo ser que se deparava justamente
no segundo caminho de Aristóteles, que Heidegger trilhava.
Quando olhamos para a proposta de Ser e tempo, de
levantar a questão do sentido do ser, podemos observar que
o caminho que levaria a ela encontraria, em seu
desenvolvimento, realizado através da analítica existencial
um impasse que o filósofo deveria adivinhar inevitável. A
terceira seção de Ser e tempo traz em seu bojo, como Tempo e
ser, uma espécie de atitude de violência do filósofo que já
deveria ter aprendido pelo segundo caminho de Aristóteles
que escolhera e que leva a uma ciência procurada, aberta,
sem resultado definitivo, para longe de uma fundamentação.
Podemos assim observar o filósofo numa espécie de
perplexidade, descobrindo, mediante aquela seção em que
prometera uma alternativa para a questão da busca do
sentido do ser, que ele também, como filósofo da metafísica
do segundo caminho, passaria pela tentação da ontoteologia,
ou ao menos enfrentasse o problema que iria representar o
tempo como horizonte do sentido do ser. O filósofo iria
enfrentar a dificuldade fundamental de se manter no
horizonte do tempo e não apelar para a eternidade na forma
do pensamento de pensamento do motor imóvel de
Aristóteles.
Podemos imaginar-nos o perguntador desafiado a
não responder e a continuar fazendo perguntas, o que no
380
Diferença ontológica e onto-teo-logia
fundo significa manter-se no nível fenomenológico que
escolhera, no começo da obra Ser e tempo. Heidegger, no
entanto, converte a sua proposta, de destruição das
ontologias, na necessidade de uma superação da metafísica.
Heidegger I e Heidegger II terminam se encontrando e o
filósofo escolherá a tarefa de realizar uma investigação da
história do esquecimento do ser pela metafísica
(ontoteológica). O caminho da destruição não levará
necessariamente ao caminho da superação da metafísica, mas
esta se torna uma escolha inevitável para quem irá realizar na
desleitura dos clássicos da metafísica ocidental, não apenas
uma obra negativa, mas a procura do não dito naquilo que a
tradição dizia, do não lido em todas as leituras da metafísica
ocidental.
Se pensarmos numa integração das observações
realizadas até agora, percebemos que as decisões tomadas
por Heidegger desde a sua hermenêutica da facticidade só
podiam conduzir a tudo isso que descrevemos, através das
aporias que apareceram na terceira seção de Ser e tempo e das
decisões que o filósofo tomou enveredando pela escolha da
viravolta (Kehre). Conformado com a incompletude de Ser e
tempo, pois todo movimento da finitude é incompleto, o
filósofo mostra claramente a escolha da segunda via de
Aristóteles, permanecendo ele também a caminho de uma
ciência sempre procurada. É por essa razão que todo o
pensamento
da
diferença
ontológica
conduz
necessariamente à fenomenologia para uma história do
pensamento do ser. Toda a metafísica ocidental que seguiu a
via que conduziu à ontoteologia foi em busca de uma
plenitude que só podia ser encontrada num ente
determinado que irá aparecer nos diversos princípios
epocais, com o qual acontece justamente o encobrimento do
ser.
É por isso que é fundamental não ver na
ontoteologia uma espécie de instrumento com o qual o
filósofo quer liquidar com a metafísica. Ele apenas dirá que
Ernildo Stein
381
seguindo esse tipo de tendência à plenitude se entrará na
história do encobrimento do ser por um ente determinado.
Quando então o filósofo fala em superação da metafísica
isso não representa a eliminação da metafísica, mas a busca
daquilo que o filósofo chama de metafísica da metafísica, isto
é, aquilo que sempre irá permanecer de questão fundamental
da Filosofia, a metafísica como caminho aberto, a metafísica
não como coroamento do pensamento como uma resposta
definitiva, mas justamente como sustentação de uma
abertura. Quando Heidegger coloca ao lado dos dois níveis,
ser do ente e ser enquanto ser, o ser-aí, o Dasein, ele encontra
nesse terceiro nível, o da analítica existencial, aquele tipo de
pensamento que é próprio da fenomenologia, enquanto
hermenêutica da facticidade e que nada opõe à metafísica
como tal. Por isso, o filósofo afirmará: “A superação da
metafísica não é o fim da metafísica”.
Ao formular, no projeto de Ser e tempo, a segunda
parte sobre a destruição da ontologia a partir do conceito de
tempo da tradição da metafísica, tempo que necessariamente
irá terminar na eternidade do pensamento de pensamento, o
filósofo, ao mesmo tempo em que se protegia contra
qualquer solução no absoluto, abria um processo de
interrogação que o levaria a iniciar a história do
esquecimento do ser que significava a superação da
metafísica. Ainda que os termos “destruição” e “superação”
caminhem numa mesma direção, podemos considerá-los
caminhos paralelos, formas de problematizar a questão
central da metafísica sem coincidirem numa resposta. Na
destruição temos uma tarefa que Heidegger descreve em
1955 como: “Destruição significa não aniquilar, mas
desconstruir, desalojar e pôr de lado – isto é, não permanecer
nos enunciados apenas históricos sobre a história da
filosofia”. Esse é o tipo de propriedade que temos que
descobrir em todo o processo de desleitura da metafísica
ocidental que o filósofo realiza não simplesmente como uma
interpretação historial da história da filosofia, mas como um
382
Diferença ontológica e onto-teo-logia
acontecer da própria interrogação humana na Filosofia, no
nível daquilo que ele irá descrever de historial. Não é apenas
o conjunto de filósofos que irá produzir a história da filosofia
ocidental, mas essa história irá levar esses filósofos ao
acontecer da história do ser que quando é trabalhada em
profundidade, deslida ou desconstruída, será sempre uma
espécie de memória do esquecimento do ser.
Referências
ARISTÓTELES; Metafísica, volume II – Edições Loyola, São
Paulo, 2002
HEIDEGGER, M.; Metaphysische Anfangsgründe der Logik –
Ed. Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1978
(G.A.26).
PUNTEL, L. B.; Analogie und Geschichtlichkeit - Ed. Herder –
Freiburg, Basel, Wieu - 1969
RAHNER, K.; Geist in Welt – Ed. Kösel-Verlag - München –
1957
STEIN, E.; Às voltas com a Metafísica e a Fenomenologia – Ed.
Unijuí – Ijuí, 2014
STEIN, E.; Pensar é pensar a diferença; 2ª edição - Ed. Unijuí –
Ijuí, 2006
383
Thadeu Weber
O Neocontratualismo de Rawls
Thadeu Weber1
Introdução
A ideia de contrato social dominou os grandes
tratados de teorias do Estado e de justiça ao longo da
filosofia política moderna. Hobbes, Locke, Rousseau e Kant
são os melhores exemplos disso. Hegel já é uma exceção.
Com Rawls, no final do século XX, a ideia volta com toda
força.
O intuito é apontar alguns aspectos que possam
indicar a ideia de um novo contrato social na teoria da justiça
como equidade. Em que sentido há uma retomada dos
Passei a fazer parte do corpo docente efetivo do Programa em 1992,
quando da conclusão do doutorado. Mas, com a falta de doutores, já na
década de 80 ministrava eventuais disciplinas, na condição de mestre.
Quando diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (1997 a
2004), pleiteei junto à Reitoria a contratação de vários professores para
o Programa, o que certamente resultou num significativo salto
qualitativo. Nestes mais de 20 anos sempre exerci a docência, a pesquisa
e a orientação na área de ética e filosofia política, com ênfase em autores
como Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hegel e Rawls e seus
interlocutores. Entre mestres e doutores tenho mais de 50 orientações
concluídas.
1
384
O Neocontratualismo de Rawls
autores clássicos do pensamento moderno a propósito de tal
assunto?
O texto parte da colocação do problema central da
filosofia política rawlsiana e aponta as condições dentro das
quais se dá um procedimento justo. É dada uma ênfase à
necessidade de um acordo em torno dos elementos
constitucionais essenciais que compõem a concepção
política de justiça. Merece destaque o direito ao “mínimo
social”, pressuposto do primeiro princípio de justiça e aqui
denominado “mínimo existencial”. É digno de nota o
avanço do autor estadunidense no referente à ideia dos bens
primários como complementares ao mínimo existencial e
como necessários para o exercício pleno da cidadania.
Defende-se a tese da prioridade do justo sobre o bem e não
a sua “congruência”, com destaque ao caráter político dos
bens primários, isto é, a sua capacidade de justificação
pública. A construção de princípios de justiça pautados num
procedimento justo, isto é, equitativo, é uma das
peculiaridades do neocontratualismo.
1. O Neocontratualismo
O
que,
propriamente,
caracteriza
o
neocontratualismo de Rawls? No início de sua obra Uma
teoria da Justiça ele já dá uma primeira pista de seu projeto
político: “O que eu tentei fazer é generalizar e elevar a uma
ordem mais alta de abstração a teoria tradicional do contrato
social representada por Locke, Rousseau e Kant”. 2 Em que
consiste propriamente esse contratualismo moderno, no
qual Rawls diz se apoiar? O que é transferido e o que não é
transferível num contrato social? Qual é a diferença entre o
contratualismo moderno (Locke, Rousseau, Kant) e o
TJ p. VIII. Abreviações das obras de Rawls utilizadas: TJ – A Theory
of Justice; PL – Political Liberalism; JF – Justice as Fairness: a
restatement; HFM – História da Filosofia Moral.
2
Thadeu Weber
385
chamado neocontratualismo de Rawls? Qual é o avanço de
teoria da justiça do autor americano?
Na discussão desses temas é oportuno partir do
problema geral de Rawls: Considerando o pluralismo
razoável, qual é a concepção de justiça mais apta para
orientar as principais instituições sociais, políticas e
econômicas? Ou, nos termos do autor, “como é possível
existir, ao longo do tempo, uma sociedade justa e estável de
cidadãos livres e iguais, mas que permanecem
profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas
e morais razoáveis?”. 3 Em O Liberalismo Político, o autor
pergunta: considerando a sociedade como “um sistema
equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais, [...]
como devem ser determinados os termos equitativos de
cooperação?”. 4 Depois de oferecer várias alternativas de
resposta indica sua tese central: Os termos da cooperação
são resultado de um “acordo entre cidadãos livres e iguais”.5
Mas esse acordo deve dar-se em “condições apropriadas”.
Entre elas há que se salientar que as partes devem situar-se
equitativamente como livres e iguais; “vantagens de
barganha” não podem ser permitidas; deve-se “abstrair as
contingências do mundo social”; as partes precisam estar
“simetricamente situadas”.6 É dentro dessas condições que
se constroem os princípios de justiça, ou seja, elabora-se uma
concepção política de justiça. Eles não são, portanto,
originários de uma ordem independente de valores. Trata-se,
obviamente, de uma situação hipotética que o autor chama
de “artifício da razão” ou “exercício mental”.
No neocontratualismo de Rawls não existe um
conjunto de leis da natureza que sirvam de fundamento para
as partes na posição original. Os princípios que orientarão a
3
PL p. 47
4
PL p. 22
5
PL p. 23
6
PL p. 23. Sobre o véu da ignorância, ver TJ, p. 146; PL, p. 22; JF, p. 85.
386
O Neocontratualismo de Rawls
Constituição de um Estado são “resultado de um
procedimento de construção (estrutura)”,7 numa situação de
“equilíbrio reflexivo”. 8 No contratualismo moderno
(Hobbes, Locke, Rousseau) não há uma distinção entre o
justo e o bem, nem uma prioridade do primeiro sobre o
segundo. O contrato refere-se tanto ao justo quanto ao bem.
Logo, são as leis civis que definem o bem e o mal; são elas
as regras do justo e do injusto9. Em Hobbes, o pacto tem
como base as leis naturais, no sentido de darem o conteúdo
às leis positivas. No caso do “silêncio das leis”, é a elas que
se deve recorrer10. Para Locke, a propriedade é um direito
natural, mas não inato. Efetiva-se pelo trabalho. O contrato
social não pode violá-lo. Com relação às leis da natureza,
defende a tese segundo a qual todos se tornam seus
executores. 11 Quer com isso mostrar que não se pode
transferir maior poder do que se tem.
Por outro lado, o contrato social de Rawls diz
respeito somente ao justo e não ao bem. Envolve valores
políticos e não valores éticos. Considerando a necessidade
de um acordo, abstrai de qualquer conteúdo que possa
informar as partes na posição original. Requer um
procedimento em condições equitativas, tendo em vista um
resultado justo. A propriedade privada, por exemplo, é um
direito acordado e não natural. “Em suas deliberações
racionais as partes não se veem obrigadas a aplicar nenhum
princípio de direito e justiça determinado previamente, nem
se consideram limitadas por ele”.12 O importante é que seja
um procedimento pautado na equidade. Dessa forma, cabe
7
PL p. 93
8
Cf. JF p. 29
9
Cf. HOBBES, T. Leviatã, p. 161.
10
Cf. Ibid., p. 143.
11
Cf. LOCKE, J. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, p. 37.
12
PL p. 73
Thadeu Weber
387
aos cidadãos “especificar os termos equitativos da
cooperação social”. 13 Além do mais, o procedimento
envolve princípios e não regras. A justiça procedimental pura
somente refere-se à posição original e à construção dos
princípios, e não aos outros estágios da aplicação dos
mesmos. Nestes, sobretudo no legislativo, o que atingimos é
uma justiça procedimental imperfeita. O véu da ignorância
desaparece gradualmente. Temos que admitir a justiça dos
princípios e isso é assegurado por um procedimento de bases
equitativas (o que é justo). Afirma Rawls “o resultado da
posição original produz, a nosso ver, os princípios de justiça
apropriados para cidadãos livres e iguais”.14 Por quê? Porque
são “pessoas razoáveis, em condições razoáveis, ou
equitativas”, que “selecionariam certos princípios de
justiça”.15 O justo é resultado de um procedimento. Essa é a
base da concepção de autonomia em Rawls.
Também em Kant o imperativo categórico é um
procedimento; é um princípio de justificação de normas de
ação. Trata-se de uma fórmula e se aplica a tudo na vida. Em
Rawls, os princípios de justiça não são fórmulas, mas
princípios que enunciam conteúdos e se aplicam à estrutura
básica da sociedade. Nem o imperativo categórico nem a
posição original são construídos. Ambos são simplesmente
estipulados. O que Kant e Rawls têm em comum são os
procedimentos de construção – o imperativo categórico e a
posição original. 16 E o que é construído? Em ambos, é o
“conteúdo da doutrina”.17 Pelo procedimento do imperativo
categórico construímos normas de ação (função
autolegisladora da razão). Concretizamos a lei moral como
“ideia da razão”. Pela posição original, construímos os
13
Ibidem.
14
PL p. 72
15
PL p. 95
16
Cf. FORST, R. Contextos da Justiça, p. 226.
17
HFM, p. 275
388
O Neocontratualismo de Rawls
princípios da justiça. Estes têm em comum com o
imperativo categórico o fato de valerem para todas as
pessoas como livres e iguais. “Aplicam-se a nós quaisquer
que sejam os nossos objetivos particulares”. 18 Nessa
construção dos princípios, temos que admitir que o resultado
é justo. Os princípios são justos, as regras podem não ser,
pois são resultado do critério da maioria, que é aplicado no
estágio legislativo. Ora, se do critério da maioria podem
resultar regras injustas é compreensível que se justifique
algum tipo de direito de resistência: Rawls o faz pela defesa
da desobediência civil e pela objeção de consciência. 19 É
digno de nota que Rawls defende uma “teoria constitucional
da desobediência civil”. Portanto, embora contrária à lei, a
desobediência civil não é um ato inconstitucional.
A referência ao construtivismo político é clara. É o
conteúdo de uma concepção política de justiça que é
construído, isto é, os princípios de justiça, que devem
orientar nossas principais instituições. Quem dá a base a esse
procedimento é a concepção política de pessoa e de
sociedade. Esta base não é construída. A concepção de
pessoa como racional e razoável se espelha no exercício
efetivo da capacidade de argumentação. “A capacidade de ter
senso de justiça [qualidade moral da pessoa] se revela na
argumentação dos cidadãos na vida política de uma
sociedade bem ordenada”. 20 Também em Kant o
procedimento do imperativo categórico tem uma base: a
concepção de pessoas livres e iguais como razoáveis e
racionais. Essas faculdades de racionalidade e razoabilidade
estão “espelhadas” na condução do procedimento do
imperativo categórico.21
18
TJ, p. 253
19
Cf. TJ p. 363 e 368
20
PL p. 104
21
Cf. HFM p. 276
Thadeu Weber
389
No que se refere ao procedimento proposto por
Rawls, vale lembrar que ele distingue autonomia racional e
autonomia plena. A autonomia racional “se expressa no
exercício da capacidade de formular, revisar e procurar
concretizar uma concepção do bem e de deliberar de acordo
com ela”.22 A autonomia plena é política e não ética e referese aos cidadãos na sociedade bem ordenada. Eles aceitam os
princípios de justiça e agem em concordância com eles;
“reconhecem tais princípios como aqueles que seriam
adotados na posição original”.23 Mas vale a pergunta: de que
tipo de autonomia o autor está falando? Para construir
princípios ou para selecioná-los? No Liberalismo Político Rawls
diz que a posição original “produz” [yields] princípios.24 Em
Justiça como Equidade: uma reformulação, o autor fala em
“procedimento de seleção”; diz que os princípios de justiça
“são selecionados de uma lista dada”. 25 Encontram-se na
nossa tradição de filosofia política. Ora, essa reformulação
minimiza a função do véu da ignorância. Se há uma seleção
é porque se admite um conjunto de princípios já dados,
testados e consagrados pela história. E se elaborássemos
uma lista de direitos e liberdades fundamentais, sem o véu
da ignorância, esta lista não seria a mesma, ou não seria
muito semelhante a que foi apresentada por Rawls? Não
escolheríamos direitos e liberdades constantes das
Constituições dos sistemas democráticos mais bem
sucedidos? Isso mostra que o conteúdo dos princípios de
justiça é, de alguma forma, influenciado pelo
desenvolvimento histórico e as escolhas feitas pelas partes
não tem como “ignorar” isso.
22
PL p. 72
PL p. 77. Sobre o assunto ver WEBER, T. Ética e Filosofia do Direito,
capítulo IV.
23
24
PL p. 72
25
JF p. 83
390
O Neocontratualismo de Rawls
2. Uma concepção política de justiça.
A grande contribuição e avanço de Rawls referemse ao objetivo central de sua teoria: construir uma concepção
política de justiça.26 Essa restrição ao político foi a alternativa
encontrada para viabilizar um acordo em torno de princípios
que deveriam orientar nossas principais instituições políticas,
econômicas e sociais. Independentemente das convicções
religiosas, éticas e filosóficas, esses princípios podem ser
compartilhados pelos cidadãos. Que ela seja política significa
que diz respeito somente à “estrutura básica” da sociedade e
não à vida como um todo. Isso também permite sua autosustentabilidade, isto é, sua independência face às doutrinas
éticas abrangentes, embora possa ser endossada por elas. O
próprio senso de justiça e a concepção do bem são a base da
sustentabilidade. Afirma Rawls: “Nenhuma doutrina
abrangente é apropriada como concepção política para um
regime constitucional”. 27 Elas envolvem determinadas
concepções de bem, dificilmente justificável publicamente.
Somente as ideias do bem, enquanto ideias políticas, são
admitidas.
É fundamental perceber que essa concepção
política de justiça é moral, mas não ética. “A teoria da justiça
como equidade se restringe ao político (sob a forma de
estrutura básica), que é apenas uma parte do campo da
moral”.28 Significa dizer que os princípios são constituídos
por valores políticos e não por valores éticos. A diferença é
que os primeiros são passíveis de justificação e deliberação
públicas, os segundos não, pois são de ordem pessoal. Os
primeiros referem-se às instituições políticas, sociais e
econômicas, o que Rawls chama de estrutura básica da
Esse é o objetivo central perseguido em todo O Liberalismo Político. Ver
esta delimitação no primeiro capítulo.
26
27
PL p. 135
28
JF p. 15
Thadeu Weber
391
sociedade. Para isso é necessário e suficiente um acordo
sobre os elementos constitucionais essenciais. Esse é o
objetivo fundamental da posição original: chegar a um
acordo prático sobre esses elementos, quais sejam: a) “os
princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do
Estado e do processo político: as prerrogativas do legislativo,
do executivo e do judiciário; o alcance da regra da maioria;
b) os direitos e liberdades básicas e iguais de cidadania que
as maiorias legislativas devem respeitar”. 29 Somente esses
elementos entram no contrato social rawlsiano. É o
consenso sobreposto, atingido no equilíbrio reflexivo. É um
acordo de princípios e não de regras. Estas ficam para o
legislativo. Temas controversos não entram na agenda
política, pois não são elementos constitucionais essenciais.
Ex.: a propriedade privada dos meios de produção; direito
de herança.30 O direito de propriedade, no entanto, constitui
direito fundamental e deve compor a lista dos direitos do
primeiro princípio de justiça. O acordo é facilitado quando
se refere somente ao direito de propriedade, sem incluir o
direito de herança e de propriedade dos meios de produção.
A análise dos dois princípios de justiça enunciados
pelo autor, sobretudo nas suas reformulações em O
Liberalismo Político, reporta às questões de intenso debate para
as democracias contemporâneas. O primeiro princípio, que
diz respeito ao igual direito de todas as pessoas “a um projeto
inteiramente satisfatório [a fully adequate scheme] de direitos e
liberdades básicas” 31 pressupõe, segundo o autor, um
“princípio lexicamente anterior”, qual seja “que prescreva a
satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, ao menos
à medida que a satisfação dessas necessidades seja necessária
para que os cidadãos entendam e tenham condições de
PL p. 227. Sobre os elementos constitucionais essenciais, ver, também,
JF p. 28.
29
30
Cf. PL p. 298
31
PL p. 5
392
O Neocontratualismo de Rawls
exercer de forma fecunda esses direitos e liberdades”. 32 A
satisfação das necessidades básicas é condição para a
efetivação dos direitos e liberdades fundamentais. É o que
hoje se chama de “mínimo existencial”, como conteúdo da
dignidade humana, fundamento da Constituição. 33 Ao
referir-se às “necessidades mínimas dos cidadãos” (saúde,
moradia, alimentação) para uma vida digna, Rawls chama
atenção para um “mínimo social” como elemento
constitucional essencial, isto é, “aquelas questões
fundamentais em torno das quais, dado o fato do pluralismo,
é mais urgente conseguir um acordo político”. 34 Uma
concepção política de justiça deve incluir este mínimo social
na formulação de seus princípios, como garantia da proteção
e promoção dos direitos fundamentais e de seu fundamento,
a dignidade humana. Ainda em O Liberalismo Político, o autor
explicita o conteúdo desse mínimo existencial como o
“mínimo essencial”35 e escreve: “abaixo de um certo nível de
bem-estar material e social, e de treinamento e educação, as
pessoas simplesmente não podem participar da sociedade
como cidadãos e muito menos como cidadãos iguais”.36 Ora,
esse mínimo precisa estar assegurado por qualquer Estado
Democrático de Direito.
No entanto, ao referir-se aos cidadãos e ao
exercício pleno da cidadania, Rawls amplia a noção de
“mínimo essencial” com a ideia dos “bens primários”
(primary goods). Chega a eles ao explicitar o segundo
princípio de justiça e lança a pergunta: quem são os menos
favorecidos? O autor introduz a idéia dos bens primários
para mostrar que o exercício pleno da cidadania impõe
32
PL p. 7
Sobre o mínimo existencial em Rawls, ver WEBER, T. Ética e Filosofia
do Direito, capítulo VI – Para além do mínimo existencial em Rawls.
33
34
JF p. 46
35
PL p. 183
36
PL p. 166
Thadeu Weber
393
exigências que ultrapassam a mera satisfação das condições
materiais básicas dos cidadãos. Os menos favorecidos são
aqueles que não tem os bens básicos assegurados. Para Forst,
o princípio da diferença, devidamente contextualizado,
requer que a “distribuição de bens sociais deve ser justificada
frente aos menos favorecidos”.37 Esse princípio da diferença
é, certamente, o grande diferencial da teoria da justiça
rawlsiana com relação ao utilitarismo. Uma sociedade justa
permite e convive com as diferenças e até mesmo com a
concessão de vantagens para alguns, desde que isso melhore
a vida dos menos favorecidos. Não se trata de um maior bem
para o maior número de pessoas.
Fica clara a vinculação da ideia dos bens primários
com a concepção política de pessoa e de justiça. A definição
de uma lista de bens primários necessários decorre desta
concepção.
Dizer que o exercício pleno da cidadania inclui os
bens primários indica claramente a necessidade, mas ao
mesmo tempo a insuficiência do mínimo existencial. Mas
quais são os bens primários exigidos? São coisas necessárias
“como condições sociais e meios polivalentes para
possibilitar às pessoas realizar suas concepções específicas
do bem e desenvolver e exercer suas duas capacidades
morais”. 38 São condições necessárias para a realização da
concepção normativa de pessoa. Indica o que é necessário
para que os cidadãos tenham uma vida digna. Na lista
apresentada pelo autor aparecem os direitos e liberdades
fundamentais, a liberdade de movimento e de livre escolha
de ocupação, bases sociais do autorrespeito, etc.39 Chama a
atenção que a lista dos bens básicos incorpora os direitos
fundamentais enunciados por ocasião da explicitação do
37
FORST, R. Contextos da Justiça, p. 178
38
PL p. 307
39
Cf. PL p. 181
394
O Neocontratualismo de Rawls
primeiro princípio de justiça. Isso indica que também eles
são bens (políticos).
É fundamental considerar que o mínimo existencial
precisa estar assegurado nos princípios de justiça, embora
esteja pressuposto nas formulações do primeiro princípio do
autor estadunidense. Sua explicitação em O Liberalismo
Político dá conta de sua importância na concepção política de
justiça. É, dessa forma, elemento constitucional essencial. A
preocupação é o ser humano em suas condições de vida
minimamente digna.
Os bens primários, no entanto, colocam exigências
que vão além disso. Referem-se ao que os cidadãos precisam,
não apenas como seres humanos, mas como “membros
plenamente cooperativos da sociedade” 40 . O que está em
jogo é a concepção política de justiça. É a realização da
pessoa como cidadã. São dois níveis de necessidades a serem
satisfeitas: as da pessoa como um ser humano e as da pessoa
como cidadã – mínimo existencial e bens primários.
O mínimo existencial é condição necessária, mas
não suficiente, para o exercício pleno da cidadania. Os
menos favorecidos não são somente os que não têm
garantido o mínimo existencial, mas também os que não têm
realizados os bens primários. Rawls amplia o conteúdo do
mínimo existencial para além das condições materiais
básicas. Com os bens primários, a ênfase recai sobre “as
necessidades das pessoas em sua condição de cidadãs”.41 A
realização dessas necessidades deve ser “publicamente aceita
como benéfica e, por isso, considerada uma realização que
promove as condições da cidadania para os propósitos da
justiça política”.42
40 Sobre o papel dos bens primários no exercício da cidadania, ver
WEBER, T. Ética e Filosofia do Direito, p. 213.
41
PL p. 179
42
PL p. 179
Thadeu Weber
395
É importante salientar que essa concepção política
de justiça é liberal. “Isso significa que ela protege os direitos
fundamentais conhecidos e lhes atribui uma prioridade
especial. Também inclui medidas para assegurar que todos
os cidadãos tenham meios materiais suficientes para fazer
uso efetivo desses direitos fundamentais”.43 Cabe destacar:
a) A proteção dos direitos e liberdades fundamentais; b) a
prioridade desses direitos e oportunidades sobre o segundo
princípio – a justiça distributiva; c) garantias da efetivação do
mínimo existencial ou “mínimo social”, isto é, das condições
básicas para a realização dos direitos fundamentais. Estes
direitos são invioláveis e inegociáveis, não porque são
naturais ou retiram seu conteúdo das leis naturais, mas
porque objeto de um acordo (consenso) na posição original.
São direitos com os quais pessoas livres e iguais
concordariam. São direitos compartilháveis e de justificação
pública. É isso que lhes dá legitimidade. Este é o princípio
da autonomia política. O direito de propriedade pode ser
citado como exemplo. Trata-se de um direito inviolável.
Deve-se salientar, no entanto, que concepções mais
abrangentes e controvertidas desse direito devem ser
evitadas, isto é, não entram na agenda política. A
propriedade privada dos meios de produção é o exemplo
citado. Eles são de propriedade social.
A propósito do primeiro princípio de justiça, uma
questão fundamental se impõe: como a lista de direitos e
liberdades é elaborada? Por que esses direitos e não outros?
Não sendo direitos naturais, onde buscá-los? Nas
reformulações de sua teoria, Rawls dá uma atenção especial
a estas questões.
Essa lista é formulada de duas maneiras: “Uma é
histórica: examinamos vários regimes democráticos e
reunimos uma lista de direitos e liberdades que pareçam
básicos e seguramente protegidos naquelas que,
43
PL p. 157 e cf. PL p. 223
396
O Neocontratualismo de Rawls
historicamente, parecem ser os regimes mais bem
sucedidos”. 44 Esse tipo de informação, diz o autor
americano, “não está disponível para as partes na posição
original. Está disponível para nós – para você e para mim
que estamos elaborando a justiça como equidade – e, por
isso, esse conhecimento histórico pode influenciar o
conteúdo dos princípios de justiça que permitimos às partes
como alternativas”.45 Esta é a lição apreendida da crítica ao
formalismo da moral kantiana feita por Hegel. As conquistas
da história influenciam a construção do conteúdo dos
princípios de justiça, enquanto concepção política. Se o
conteúdo dos princípios que “permitimos às partes” pode
ser influenciado pelo conhecimento histórico, é porque não
é qualquer princípio que pode ser publicamente justificado.
Isso restringe o número de alternativas. As conquistas da
história não são ignoradas. Elas não são afetadas pelo véu da
ignorância. Significa dizer que nem toda lista dos direitos e
liberdades fundamentais é construída. Boa parte dela é
selecionada ou retirada das constituições democráticas mais
bem sucedidas. Boa parte, porque não se quer cair num
determinismo histórico e sim permitir que novas opções
(direitos) possam ser acrescentados e o são efetivamente. O
procedimento é hipotético e a-histórico, mas o conteúdo dos
princípios não o é. A elaboração dos direitos e liberdades que
compõe o primeiro princípio é influenciada pelas conquistas
da história.
A segunda maneira de elaborarmos a lista de
direitos é analítica: pergunta-se pelas liberdades necessárias
para o desenvolvimento e pleno exercício das faculdades
morais (o senso de justiça e a concepção do bem). A resposta
a esta questão nos reporta àqueles direitos e liberdades
enumerados naquela lista. Ou seja, o direito de propriedade,
a liberdade de expressão, de participação política etc., são
44
JF p. 45
45
PL p. 293
Thadeu Weber
397
condições de possibilidade do desenvolvimento das
faculdades morais. Não se desenvolve, por exemplo, o senso
de justiça sem liberdade de expressão e o direito de
participação política.
Não se pode esquecer que há um critério
fundamental de validação desta lista. Os direitos e liberdades
fundamentais, que constituem o primeiro princípio da
concepção política de justiça, são passíveis de justificação
pública e, como tais, invioláveis. É o fato de serem
publicamente justificáveis que lhes concede “legitimidade
política”. Os valores éticos (concepções do bem) não se
submetem a essa justificação. Por isso a concepção de justiça
é política (moral), e não ética. Isso significa também que não
se pode apelar a doutrinas éticas abrangentes para justificar
os elementos constitucionais essenciais que constituem a
concepção política de justiça. Esta é, pois, o próprio
conteúdo da “razão pública”.46 Por isso que a suprema corte
é um exemplo de razão pública por excelência. Ela é a
guardiã dos “elementos constitucionais essenciais”.
3. Prioridade do justo sobre o bem
complementaridade entre o justo e o bem?
ou
Um dos temas centrais da obra de Rawls diz
respeito à relação entre o justo e o bem. Há uma
“congruência entre os dois ou o primeiro tem prioridade
sobre o segundo? Em Teoria, a ideia da congruência é
predominante; em O Liberalismo Político, no entanto, a tese da
prioridade é amplamente defendida e indica o pensamento
maduro do autor. A sociedade democrática convive com
distintas concepções do bem, que por vezes são
incompatíveis. Um acordo entre elas é praticamente
impossível. A restrição aos valores políticos para possibilitar
46
Cf. PL p. 223. Sobre uma lista de valores políticos, ver PL, p. 139
398
O Neocontratualismo de Rawls
o consenso foi a solução encontrada. A consequência disso
foi a fixação da prioridade do justo sobre o bem.
As concepções do bem, enquanto tais, não entram
na agenda política, uma vez que são, em geral, altamente
controversos. No entanto, podem endossar os princípios de
justiça acordados pelas partes. “O liberalismo político
apresenta uma concepção política de justiça para as
principais instituições da vida política e social, não para a
vida como um todo”. 47 Mas que ideias do bem são
admissíveis? A resposta é categórica: as que são
compartilháveis pelos cidadãos livres e iguais e não
pressupõem qualquer doutrina abrangente. 48 As ideias do
bem admitidas são, ou devem ser, pois, ideias políticas. Este
é o critério aplicável a qualquer concepção do bem que tenha
a pretensão de validade política e pública.
No Liberalismo Político o autor fala em
complementaridade entre o justo e o bem, tendo em vista
que “uma concepção política deve basear-se em várias ideias
do bem”.49 São estas que dão estabilidade aos princípios de
justiça, mas deve-se insistir: elas são ideias do bem que
devem ser ideias políticas. Isso significa que o político é
muito mais restritivo do que as ideias do bem. Muitas destas
não são políticas, uma vez que não justificáveis
publicamente, mas fazem parte de uma sociedade
democrática. Este é o sentido da prioridade do justo: “as
ideias admissíveis do bem devem respeitar os limites da
concepção política de justiça”.50 A solução de conflitos de
direitos e liberdades deve atender a um princípio básico: A
prioridade da liberdade significa “que uma liberdade básica
47
PL p. 175
48
Cf. PL p. 176
49
PL p. 175
50
PL p. 176
Thadeu Weber
399
só pode ser limitada ou negada em benefício de outra ou de
outras liberdades fundamentais”.51
É fundamental perceber que sem as garantias dos
princípios políticos de justiça, as diferentes ideias do bem
não têm como se realizar. Nesse sentido a pessoa do direito
é uma espécie de “capa protetora” da pessoa ética. A
efetivação dos valores éticos dos cidadãos deve contar com
as garantias dos princípios constitucionais (do Estado) e, é
claro, na medida em que não violam estes princípios do
justo. Não é possível realizar todas as concepções do bem.
É preciso ter um critério e este é o justo, isto é, o
publicamente justificável. Diz Rawls: “as ideias do bem
podem ser livremente introduzidas, quando necessárias, para
complementar a concepção política de justiça, desde que
sejam ideias políticas, isto é, desde que façam parte de uma
concepção política razoável de justiça para um regime
constitucional”.52 Esta é uma resposta do autor às críticas
comunitaristas que o acusam de estar o liberalismo fundado
numa determinada concepção do bem ou de vida boa.
Uma questão, então, se impõe: Quais são as ideias
do bem admitidas pelos princípios de justiça e que satisfazem
o critério referido, qual seja, o de serem compartilháveis por
cidadãos livres e iguais e não terem como pressuposto
nenhuma doutrina abrangente? Merecem destaque o bem
como racionalidade e os bens primários. O primeiro referese ao “projeto racional de vida” dos membros de uma
sociedade democrática. Os segundos dizem respeito às
necessidades dos cidadãos para o exercício pleno da
cidadania, isto é, para se realizarem como livres e iguais e
como membros cooperativos da sociedade. Os bens
primários são meios para a realização desses projetos de vida.
Rawls fala em “necessidades das pessoas em sua condição de
51
JF p. 111
52
PL p. 194
400
O Neocontratualismo de Rawls
cidadãs”. 53 Essas necessidades referem-se ao que deve ser
“publicamente reconhecido” pelo “entendimento político”
como benéfico para todos. Não são, pois, quaisquer
necessidades que obtém o reconhecimento público. Na lista
dos bens primários enumerados, além dos direitos e
liberdades fundamentais, podemos encontrar “as liberdades
de movimento e livre escolha de ocupação”; “os poderes e
prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade”;
“renda e riqueza”; “as bases sociais do autorrespeito” 54 .
Esses bens complementam a ideia do justo e não se opõem
a ela. São de reconhecimento e justificação pública e, dessa
forma, são ideias políticas. Somente são excluídas aquelas
ideias do bem que se mostrarem incompatíveis com os
princípios de justiça. Significa dizer que são excluídos da
agenda política os valores éticos controversos.
É importante enfatizar que com a ideia dos bens
primários Rawls avança em relação às garantias do mínimo
existencial como condição de realização dos direitos
fundamentais. Este mínimo pode atender as condições
básicas de uma vida signa, mas não garante as exigências do
exercício pleno da cidadania. Seu neocontratualismo inova
com os elementos constitucionais essenciais ignorados pelos
contratualistas modernos. Até o tempo para o lazer é um
bem primário lembrado. A realização das pessoas como
livres e iguais impõe exigências que vão além da satisfação
das necessidades básicas, entendidas como um “mínimo
social”. A explicitação sobre os bens primários foi a resposta
de Rawls aos comunitaristas sobre a alegação de que a justiça
como equidade estaria baseada em uma determinada
concepção do bem (pessoa e direitos fundamentais).
O debate com A. Sen a propósito das variações das
pessoas com respeito às capacidades para a realização dos
53
PL p. 179
54
PL p. 181
Thadeu Weber
401
bens primários é sugestiva. 55 Dadas as grandes variações
nessas capacidades, está em discussão o “mesmo índice de
bens primários” para a satisfação das necessidades dos
cidadãos. Rawls não nega essas variações, mas destaca
apenas a necessidade delas em um “grau mínimo” para
possibilitar a participação dos cidadãos na condição de
“membros” plenamente cooperativos da sociedade. 56 A
realização dos bens primários está diretamente ligada a essas
capacidades. As variações abaixo desse “mínimo essencial”,
como nos casos de doença grave, requerem ações especiais
do Estado, mais precisamente, exigem soluções do poder
legislativo. O objetivo é recuperar essas pessoas para o
exercício pleno da cidadania. O ponto de partida do autor
estadunidense, portanto, envolve uma concepção de pessoa
detentora de um mínimo de condições para esse exercício.
Considerações finais
Onde está propriamente o avanço de Rawls?
Primeiro, na ideia de justiça procedimental. O justo
é resultado de um procedimento e este é justo por colocar as
partes em condições equitativas. A ideia de justiça
procedimental pura traz em si a ideia de autonomia. Se é
difícil um acordo sobre princípios de justiça, que se assegure,
pelo menos, um procedimento justo para sua construção ou
seleção. Pessoas situadas equitativa e simetricamente,
submetidas a um véu da ignorância, construirão ou
selecionarão princípios justos. Esse é o primeiro caminho
para que também um sistema público de regras seja
instituído.
Segundo, a ideia de um mínimo social enquanto
constituído por um conjunto de necessidades básicas como
condição para o exercício dos direitos e liberdades
55
Cf. SEN, A. A ideia da justiça, capítulo 2.
56
PL p. 183
402
O Neocontratualismo de Rawls
fundamentais. Não há somente uma ênfase em direitos
fundamentais individuais, mas também sociais, tais como a
saúde e a habitação. O avanço está, sobretudo, em mostrar a
insuficiência desse mínimo para o exercício pleno da
cidadania, indicando sua ampliação com a ideia dos bens
primários.
Terceiro, a prioridade do justo sobre o bem. Um
acordo em torno de princípios de justiça precisa estabelecer
prioridades e fixar restrições. Foi o que Rawls fez com o
justo em relação às diferentes concepções do bem. As ideias
do bem não são, no entanto, excluídas. Na medida em que
são ideias políticas, fazem parte de uma concepção política e
pública de justiça. A exigência é a de que sejam
compartilhadas pelos cidadãos livres e iguais, isto é, que
sejam de justificação pública. Outras tantas ideias do bem
não entram na agenda política, pois são de foro pessoal ou
de determinadas comunidades éticas.
Quarto, a ideia de um construtivismo político. O
que é construído são os princípios políticos de justiça e não
normas de justificação moral, tal como em Kant. Não há
nenhum conceito de justiça dado previamente do qual os
princípios pudessem ser deduzidos. Isso consagra
definitivamente o princípio da autonomia política, já
expressamente formulado por Rousseau e Kant.
Onde estão as dificuldades?
Primeiro, nas limitações requeridas pelo véu da
ignorância. Até que ponto é possível e necessária essa
restrição ao conhecimento? Partir do “mundo da vida” não
torna muito mais realistas e exequíveis os princípios de
justiça. Sem véu da ignorância, os princípios escolhidos não
seriam os mesmos? Qual é a legitimidade de acordos feitos
em situação hipotética? Rawls diria que se trata apenas de um
“artifício da razão”, com vistas a um acordo político. Mas
uma argumentação com vistas a este acordo não se deveria
efetuar a partir de um determinado contexto? Por outro
lado, é possível chegar a um acordo político sobre princípios
Thadeu Weber
403
de justiça sem que interesses particulares sejam
temporariamente ignorados? Ou seja, não é necessário
afastar-se de um determinado contexto?
Segundo, até que ponto não têm razão os
comunitaristas quando afirmam haver uma determinada
concepção de bem implícita no conceito de pessoa e de
direitos e liberdades fundamentais apresentadas por Rawls?
A posição do autor no referente às concepções do bem
como ideias políticas (o bem como racionalidade e os bens
básicos) responde apenas parcialmente a questão. A
concepção normativa de pessoa parece pressupor mais do
que uma concepção de conteúdo político.
Terceiro, a diferença entre ética e moral nem
sempre é clara. Quando o autor fala em doutrinas morais
abrangentes parece estar se referindo normalmente às
doutrinas éticas abrangentes, pois são estas que não podem
servir de base para os princípios de justiça. O autor diz
claramente que a concepção política de justiça é uma
“concepção moral”, portanto não ética.
Quarto, a distinção entre ética (valores pessoais,
concepções do bem) e moral (normas de validade universal)
resolve o problema da fundamentação moral do político? Ou
há, efetivamente, uma base ética na teoria política rawlsiana?
Quinto, a adoção do critério da justificação pública
é suficiente para a legitimação de valores políticos? Não se
pode correr o risco de também justificar formas totalitárias
de poder ou ignorar determinadas identidades éticas, tais
como certas minorias já sempre excluídas da vida política?
Sexto, o problema dos incentivos. Se o princípio da
diferença prevê que os mais habilitados só podem receber
privilégios se isto redundar em benefício dos menos
favorecidos, não poderia disto resultar certo comodismo?
Por que trabalhar mais para receber salário melhor se com
isso devo pagar mais impostos? Para Rawls é justo que
incentivos concedidos devam melhorar a vida dos menos
favorecidos. Mas haverá, com isso, uma efetiva valorização
404
O Neocontratualismo de Rawls
do esforço dos mais talentosos? O mérito não precisa ser
reconhecido e recompensado?
Referências
FORST, Rainer. Contextos da Justiça. São Paulo: Boitempo,
2010.
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1980
(coleção Os Pensadores)
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São
Paulo: Abril Cultural, 1980 (coleção Os Pensadores).
RAWLS, John. História da Filosofia Moral. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
______. Justice as Fairness: a restatement. Cambridge:
Harvard University Press, 2001
______. Justiça como Equidade: uma reformulação. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
______. Political Liberalism. New York: Columbia University
Press, 2005.
______. O Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2000.
______. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University
Press, 1997
______. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
SEN, Amartya. A Ideia da Justiça. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
Thadeu Weber
405
WEBER, Thadeu. Ética e Filosofia do Direito: Autonomia
e dignidade da pessoa humana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
Série
Filosofia
TÍTULO
AUTOR
FÉ E RAZÃO NO PENSAMENTO MEDIEVAL
*
*
O ARGUMENTO ONTOLÓGIO DE SANTO ANSELMO
O ATEÍSMO ANTROPOLÓGICO DE LUDWIG FEUERBACH
O CONCEITO DE LIBERDADE NO LEVIATÃ DE HOBBES
ESCRITA E LINGUAGEM EM PLATÃO
SOBRE A CONTRADIÇÃO
*
*
*
O SAGRADO EM RUDOLF OTTO
SOBRE A FUNDAMENTAÇÃO
*
*
EPISTEMOLOGIA E LIBERALISMO
*
*
O RACIONAL E O MÍSTICO EM WITTGENSTEIN*
O MÉTODO FENOMENOLÓGICO DE HUSSERL*
CONHECIMENTO E LIBERDADE*
A TEORIA DA HISTÓRIA EM ORTEGA Y GASSET*
ÉTICA DO DISCURSO*
A TEORIA DA AUTO-ORGANIZAÇÃO*
AMOR X CONHECIMENTO*
FILOSOFIA DA LINGUAGEM E RELIGIÃO*
BIBLIOGRAFIA SOBRE FILOSOFIA MEDIEVAL
A LINGUAGEM MUDA E O PENSAMENTO FALANTE
*
*
A RELAÇÃO AO OUTRO EM HUSSERL E LEVINAS
TEORIA DO CONHECIMENTO
*
DIÁLOGO E DIALÉTICA EM PLATÃO
*
LÓGICA E LINGUAGEM NA IDADE MÉDIA
PROBLEMÁTICA DO CULTURALISMO
*
*
*
ANO
Nº
EDIÇÃO
MÍDIA
URBANO ZILLES
1996
1
2º
IMPRESSO
SERGIO R. STREFLING
1997
2
1º
IMPRESSO
DRAITON GONZAGA DE SOUZA
1994
3
2º
IMPRESSO
SERGIO WOLLMAN
1994
4
1º
IMPRESSO
JAYME PAVIANI
1993
5
1º
IMPRESSO
CARLOS CIRNE-LIMA
1996
6
2º
IMPRESSO
BRUNO ODÉLIO BIRCK
1993
7
1º
IMPRESSO
MANFREDO ARAUJO DE OLIVEIRA
1997
8
1º
IMPRESSO
JULIO CESAR PEREIRA
1993
9
1º
IMPRESSO
LUIS ALBERTO DE BONI
1994
10
1º
IMPRESSO
URBANO ZILLES
2001
11
3º
IMPRESSO
JAIME ZITKOSKI
1994
12
1º
IMPRESSO
ALBERTO OLIVA
1999
13
1º
IMPRESSO
SERGIO CALDAS
1994
14
1º
IMPRESSO
JOVINO PIZZI
1994
15
1º
IMPRESSO
HANS-GEORG FLICKINGER
1994
16
1º
IMPRESSO
JOSÉ A. F. MEISTER
1994
17
1º
IMPRESSO
EDVINO RABUSKE
1994
18
1º
IMPRESSO
ÚRSULA ROSA DA SILVA
1994
19
1º
IMPRESSO
MARCELO LUIZ PELIZZOLI
1994
20
1º
IMPRESSO
URBANO ZILLES
2006
21
5º
IMPRESSO
SERGIO A. SARDI
1995
22
1º
IMPRESSO
LUIS ALBERTO DE BONI
1995
23
1º
IMPRESSO
ANTÔNIO PAIM
1995
24
1º
IMPRESSO
1995
25
1º
IMPRESSO
1995
26
1º
IMPRESSO
EDUARDO LUFT
PARA UMA CRÍTICA INTERNA AO SISTEMA DE HEGEL
CRÍTICA DA RAZÃO E MÍMESIS NO PENSAMENTO DE T.W. ADOR- MARCIA TIBURI
NO
DOM DADEUS GRINGS
O HOMEM DIANTE DO UNIVERSO
*
*
*
A INFINITUDE DO MUNDO
*
INDIVIDUALISMO E VERDADE EM DESCARTES
CIÊNCIA E MUDANÇA CONCEITUAL
*
GABRIEL MARCEL E O EXISTENCIALISMO
*
*
1995
27
1º
IMPRESSO
WOLFGANG NEUSER
1995
28
1º
IMPRESSO
EDUARDO ELY MENDES RIBEIRO
1995
29
1º
IMPRESSO
LUIZ CARLOS BOMBASSARO
1995
30
1º
IMPRESSO
URBANO ZILLES
1995
31
1º
IMPRESSO
Série Filosofia
TÍTULO
AUTOR
*
FUNDAMENTALISMO
O REINO E O SACERDÓCIO
*
POPPER: AS AVENTURAS DA RACIONALIDADE
EPICURO: O FILÓSOFO DA ALEGRIA
EDUCAÇÃO E RACIONALIDADE
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL
*
*
*
IDADE MÉDIA: ÉTICA E POLÍTICA
*
*
INDAGAÇÃO SOBRE A IMORTALIDADE DA ALMA EM PLATÃO
APROXIMAÇÕES SOBRE HERMENÊUTICA 1º REIMPRESSÃO
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
O CONHECIMENTO ABSTRATIVO EM DUNS SCOTO
*
*
ANO
Nº
EDIÇÃO
MÍDIA
LUIS ALBERTO DE BONI
1996
32
1º
IMPRESSO
JOSÉ ANTÔNIO DE CAMARGO R.
1995
33
1º
IMPRESSO
JULIO CESAR PEREIRA
1995
34
1º
IMPRESSO
REINHOLDO ALOYSIO ULLMANN
2010
35
4º
IMPRESSO
NADJA HERRMANN
1996
36
1º
IMPRESSO
GERALDO MARIO ROHDE
LUIS ALBERTO DE BONI
2005
1996
37
38
2º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
MARGARIDA NICHELE PAULO
1996
39
1º
IMPRESSO
ERNILDO STEIN
2010
40
2º
IMPRESSO
URBANO ZILLES
CESAR RIBAS CEZAR
2013
1996
41
42
4º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
JOSÉ NEDEL
1996
43
1º
IMPRESSO
JAYME PAVIANI
2003
44
2º
IMPRESSO
REINHOLDO ALOYSIO ULLMANN
1996
45
1º
IMPRESSO
INGRID FINGER
1996
46
1º
IMPRESSO
MARIO J. FREIBERGER
1996
47
1º
IMPRESSO
CARLOS CIRNE-LIMA
1997
48
2º
IMPRESSO
LUCIANO MARQUES DE JESUS
1997
49
1º
IMPRESSO
*
RICARDO TIMM DE SOUZA
1997
50
1º
IMPRESSO
MANFREDO ARAUJO DE OLIVEIRA
1997
51
1º
IMPRESSO
*
LUIZ VICENTE VIEIRA
1997
52
1º
IMPRESSO
PAULO RICARDO MARTINES
1997
53
1º
IMPRESSO
*
LUIZ ROHDEN
1997
54
1º
IMPRESSO
ALBERTO OLIVA
1997
55
1º
IMPRESSO
*
LUIS ALBERTO DE BONI
1997
56
1º
IMPRESSO
ERNILDO STEIN
1997
57
1º
IMPRESSO
JOSÉ ANTÔNIO DE CAMARGO R.
1997
58
1º
IMPRESSO
ANTONIO R. DOS SANTOS
1997
59
1º
IMPRESSO
ERNILDO STEIN
1997
60
1º
IMPRESSO
URBANO ZILLES
1997
61
1º
IMPRESSO
AVELINO DA ROSA OLIVEIRA
1997
62
1º
IMPRESSO
SONIA MARIA MACIEL
1997
63
1º
IMPRESSO
FERNANDO PIO DE ALMEIDA FLECK
1997
64
1º
IMPRESSO
EPISTEMOLOGIA DA ECONOMIA
GABRIEL ZANOTTI
1997
65
1º
IMPRESSO
MARCELO FABRI
1997
66
1º
IMPRESSO
O MUNDO DOS FATOS E A ESTRUTURA DA LINGUAGEM
*
MARCONI OLIVEIRA DA SILVA
1997
67
1º
IMPRESSO
MARCO TULIO CICERO
1998
68
1º
IMPRESSO
*
CLEIDE CRISTINA ROHDEN
1998
69
1º
IMPRESSO
1998
70
1º
IMPRESSO
1998
71
1º
IMPRESSO
MAQUIAVEL
*
ESTÉTICA MÍNIMA
*
O ESTOICISMO ROMANO
*
METÁFORA E SIGNIFICAÇÃO
*
AÇÃO E TEMPO NA BHAGAVAD-GITA
DIALÉTICA PARA PRINCIPIANTES
*
*
*
A QUESTÃO DE DEUS NA FILOSOFIA DE DESCARTES
TOTALIDADE E DESAGRAGAÇÃO
TÓPICOS SOBRE DIALÉTICA
*
A DEMOCRACIA EM ROUSSEAU
O “ARGUMENTO ÚNICO” NO PROSLOGION
O PODER DA LINGUAGEM
CIÊNCIA E IDEOLOGIA
*
*
GUILHERME DE OCKHAM
A CAMINHO DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PÓS-METAFÍSICA
O REINO DE DEUS E O REINO DOS HOMENS
REPENSANDO A FILOSOFIA
ANAMNESE
*
*
*
O PROBLEMA DO CONHECIMENTO DE DEUS
MARX E A LIBERDADE
CORPO INVISÍVEL
*
*
*
O PROBLEMA DOS FUTUROS CONTINGENTES
*
*
DESENCANTANDO A ONTOLOGIA*
CATÃO, O VELHO OU DIÁLOGO SOBRE A VELHICE
*
*
A CAMUFLAGEM DO SAGRADO E O MUNDO MODERNO
A DINÂMICA DO TRABALHO ABSTRATO NA SOCIEDADE MODER- MARCOS KAMMER
NA
MARIA CRISTINA POLLI FELIPPI
O ESPÍRITO COMO HERANÇA
*
*
Série Filosofia
TÍTULO
AUTOR
RUSSERL ON THE FOUDATIONS OF LOGIC
O HOMEM E A FILOSOFIA
*
*
ÉTICA, DIREITO E JUSTIÇA
DO LIBERALISMO AO NEOLIBERALISMO
FORMAS DO DIZER
*
*
OS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DE SÃO TOMÁS DE AQUIMO
ÉTICA E GENÉTICA
*
*
A ESCRAVIDÃO EM ARISTÓTELES
*
*
ANO
Nº
EDIÇÃO
MÍDIA
CLAUDIO DE ALMEIDA
1998
72
1º
IMPRESSO
JOSÉ MAURÍCIO DE CARVALHO
JOSÉ NEDEL
2007
2000
73
74
2º
2º
IMPRESSO
IMPRESSO
FRANCISCO URIBAM XAVIER DE HOL
2004
75
3º
IMPRESSO
JAYME PAVIANI
1998
76
1º
IMPRESSO
DOM ODILAO MOURA
1998
77
1º
IMPRESSO
LUIS ALBERTO DE BONI
1998
78
1º
IMPRESSO
NEDILSO BRUGNERA
1998
79
1º
IMPRESSO
IDALGO JOSE SANGALLI
1998
80
1º
IMPRESSO
2012
81
3º
IMPRESSO
1998
82
1º
IMPRESSO
1998
83
1º
IMPRESSO
MARIA DE LOURDES BORGES
1998
84
1º
IMPRESSO
JOSÉ MAURÍCIO DE CARVALHO
1999
85
1º
IMPRESSO
JAMIL IBRAHIM ISKANDAR
1999
86
1º
IMPRESSO
THADEU WEBER
2009
87
2º
IMPRESSO
LÉIA SCHACHER ABRAMOVICH
1999
88
1º
IMPRESSO
O FIM ÚLTIMO DO HOMEM
FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS: PRIMEIROS MESTRES DA FILOSO- MIGUEL SPINELLI
FIA E DA CIÊNCIA GREGA
RICARDO TIMM DE SOUZA
O TEMPO E A MÁQUINA DO TEMPO
*
PAULO FREIRE: ENTRE O GREGO E O SEMITA
HISTÓRIA E METAFÍSICA EM HEGEL
FILOSOFIA DA CULTURA
AVICENA
BENEDITO ELISEU LEITE CINTRA
*
*
*
*
*
ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA: Hegel e o Formalismo Kantiano
LUDWIG WITTGENSTEIN
*
BENTO SILVA SANTOS O.S.B.
A IMORTALIDADE DA ALMA NO FÉDON DE PLATÃO
A DOUTRINA DOS ATRIBUTOS DIVINOS NO GUIA DOS PERPLEXOS TADEU MAZZOLA VERZA
MARCOS ROBERTO NUNES
SANTO AGOSTINHO
*
*
SUJEITO, ÉTICA E HISTÓRIA: LEVINAS, O TRAUMATISMO INFINI- RICARDO TIMM DE SOUZA
TO
NADJA HERRMANN
VALIDADE EM EDUCAÇÃO
*
*
ALBERTO OLIVA
CIÊNCIA E SOCIEDADE
A EMERGÊNCIA DO INDIVIDUALISMO MODERNO NO PENSA- PAULO CÉSAR NODARI
MENTO
A METAFÍSICA NO TRACTATUS DE PRIMO PRINCIPIO DE DUNS RODRIGO GUERIZOLI
ESCOTO
LUIS CARLOS TOMAZELLI
ENTRE O ESTADO LIBERAL E A DEMOCRACIA DIRETA
*
*
*
*
IMPRESSO
IMPRESSO
1999
92
1º
IMPRESSO
1999
93
1º
IMPRESSO
1999
94
1º
IMPRESSO
1999
95
1º
IMPRESSO
1999
96
1º
IMPRESSO
1999
97
1º
IMPRESSO
98
1º
IMPRESSO
1999
99
1º
IMPRESSO
*
NYTHAMAR FERNANDES DE OLIVEIRA
1999
100
1º
IMPRESSO
JORGE ANTONIO TORRES MACHADO
1999
101
1º
IMPRESSO
*
MARIO A. L. GUERREIRO
1999
102
1º
IMPRESSO
RICARDO NAVIA
1999
103
1º
IMPRESSO
JAIME JOSÉ RAUBER
1999
104
1º
IMPRESSO
ABRAHÃO COSTA ANDRADE
ÂNGELO VITÓRIO CENCI
2000
2000
105
106
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
JAN GERARD JOSEPH TER REEGEN
2000
107
1º
IMPRESSO
*
*
VERDADE, RACIONALIDADE E RELATIVISMO EM H. PUTNAM
O PROBLEMA DA UNIVERSALIZAÇÃO EM ÉTICA
RICOEUR E A FORMAÇÃO DO SUJEITO
*
O LIVRO DAS CAUSAS*
TEMAS SOBRE KANT
A TEORIA ÉTICO-POLITICA DE JOHN RAWLS
ROUSSEAU E RAWLS
*
IMPRESSO
1º
1º
1999
CETICISMO OU SENSO COMUM?
FILOSOFIA MEDIEVAL
1º
ALEXANDRE COSTA
*
THÁNATOS: DA POSSIBILIDADE DE UM CONCEITO DE MORTE
FILOSOFIA E PSICANÁLISE
89
90
91
ANTONIO M. R. TEIXEIRA
O TOPOS ÉTICO DA PSICANÁLISE
TRACTATUS ETHICO-POLITICUS
1999
1999
1999
*
*
*
JOSÉ NEDEL
2000
108
1º
IMPRESSO
NEIVA AFONSO OLIVEIRA
LUIS ALBERTO DE BONI
2000
2005
109
110
1º
2º
IMPRESSO
IMPRESSO
Série Filosofia
TÍTULO
ANO
Nº
EDIÇÃO
MÍDIA
REINHOLDO ALOYSIO ULLMANN
2000
111
1º
IMPRESSO
LUIS ALBERTO DE BONI
2000
112
1º
IMPRESSO
ENTRE SÓCRATES E CRISTO
ALVARO LUIZ MONTENEGRO VALLS
2000
113
1º
IMPRESSO
ERNILDO STEIN
2000
114
1º
IMPRESSO
ÉTICA E COMPREENSÃO DO OUTRO
OS SENTIDOS INTERNOS EM IBN SINA (AVICENA)
RICARDO BINS DI NAPOLI
2000
115
1º
IMPRESSO
MIGUEL ATTIE FILHO
LUIZ ROHDEN
2000
2000
116
117
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
ARNO DAL RI JUNIOR
ALOISIO RUEDELL
RICARDO TIMM DE SOUZA
2000
2000
2000
118
119
120
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
DENIS COITINHO SILVEIRA
1998
121
1º
IMPRESSO
MARCOS JOSÉ MÜLLER
2001
122
1º
IMPRESSO
MARIANA PALOZZI SÉRVULO DA CUN
2001
123
1º
IMPRESSO
JOSÉ ZACARIAS DE SOUZA
2001
124
1º
IMPRESSO
PEDRO LEITE JUNIOR
2001
125
1º
IMPRESSO
ROSALVO SCHÜTZ
JOSÉ MAURÍCIO DE CARVALHO
DION DAVI MACEDO
RICARDO TIMM DE SOUZA
2001
2001
2001
2001
126
127
128
129
1º
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
JOSÉ CAMARGO RODRIGUES E SOUZA
ALESSANDRO GHISALBERTI
JAYME PAVIANI
2001
2001
2001
130
131
132
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
ERNST TUGENDHAT
REINHOLDO ALOYSIO ULLMANN
CUSTODIO LUIS SILVA DE ALMEIDA
2002
2002
2002
133
134
135
1º
2º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
MARCELO LUIZ PELIZZOLI
DELAMAR DUTRA VOLPATO
2002
2002
136
137
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
LUIZ HEBECHE
MARCOS ROBERTO NUNES COSTA
2002
2002
138
139
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
CONSTANÇA MARCONDES CESAR
GOTTLOB FREGE
2002
2002
140
141
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
SONIA MARIA MACIEL
DRAITON GONZAGA DE SOUZA
2002
2002
142
143
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
MARIO A. L. GUERREIRO
MIGUEL SPINELLI
SERGIO R. STREFLING
RAFAEL RUIZ
2002
2002
2002
2002
144
145
146
147
1º
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
REINHOLDO ALOYSIO ULLMANN
NYTHAMAR FERNANDES DE OLIVEIRA
MARCELO LUIZ PELIZZOLI
2002
2002
2002
148
149
150
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
WOLFDIETRICH SCHMIED-KOWARZIK
ERNILDO STEIN
2002
2011
151
152
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
HANS-GEORG FLICKINGER
2003
153
1º
IMPRESSO
A UNIVERSIDADE MEDIEVAL
AUTOR
*
A CIÊNCIA E A ORGANIZAÇÃO DOS SABERES NA IDADE MÉDIA
*
DIFERENÇA E METAFÍSICA*
*
*
*
HERMENÊUTICA FILOSÓFICA
GLOBALIZAÇÃO E HUMANISMO LATINO
DA REPRESENTAÇÃO AO SENTIDO
SENTIDO E ALTERIDADE
*
*
MERLEAU-PONTY: ACERCA DA EXPRESSÃO*
O MOVIMENTO DA ALMA*
OS SENTIDOS DA JUSTIÇA EM ARISTÓTELES
AGOSTINHO: BUSCADOR INQUIETO DA VERDADE
*
*
O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS
RELIGIÃO E CAPITALISMO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA E TRADIÇÕES CULTURAIS
DO ELOGIO À VERDADE
*
FENOMENOLOGIA HOJE
O PENSAMENTO SOCIAL DE SANTO ANTÔNIO
AS RAÍZES MEDIEVAIS DO PENSAMENTO MODERNO
*
FILOSOFIA E MÉTODO EM PLATÃO
DIÁLOGO EM LETÍCIA
PLOTINO: UM ESTUDO DAS ENÉADAS
*
HERMENÊUTICA E DIALÉTICA
LEVINAS: A RECONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE
KANT E HABERMAS: A REFORMULAÇÃO DISCURSIVA DA MORAL
KANTIANA
O MUNDO DA CONSCIÊNCIA
O PROBLEMA DO MAL NA POLÊMICA DA ANTIMANIQUÉIA DE
AGOSTINHO
A HERMENÊUTICA FRANCESA: PAUL RICOEUR
*
*
INVESTIGAÇÕES LÓGICAS
ÉTICA E FELICIDADE: UM ESTUDO DO FILEBO DE PLATÃO
GLOBALIZAÇÃO E JUSTIÇA - GLOBALISIERUNG UND GERECHTIGKEIT
LIBERDADE OU IGUALDADE
HELENIZAÇÃO E RECRIAÇÃO DE SENTIDOS
IGREJA E PODER
FRANCISCO DE VITORIA E OS DIREITOS DOS ÍNDIOS AMERICANOS
A DOUTA IGNORÂNCIA - NICOLAU DE CUSA
FENOMENOLOGIA HOJE II: SIGNIFICADO E LINGUAGEM
O EU E A DIFERENÇA: HUSSERL E HEIDEGGER
PRÁXIS E RESPONSABILIDADE
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER
EM NOME DA LIBERDADE
*
Série Filosofia
TÍTULO
AUTOR
ENSINAR - DEIXAR APRENDER
*
O QUE É JUSTIÇA?
JUSTIÇA E POLÍTICA
A METAFÍSICA DO CONCEITO
SOBRE A RESPONSABILIDADE
*
ÉTICAS EM DIÁLOGO
LA PRESENCIA DE LA FILOSOFÍA EN LA UNIVERSIDAD
*
DE ABELARDO A LUTERO
UNIVERSALISMO E DIREITOS HUMANOS
A ÉTICA DA ALTERIDADE EM EMMANUEL LEVINAS
LINGUAGEM E SIGNIFICADO: O PROJETO FILOSÓFICO DE D. DAVIDSON
ÉTICA E GENÉTICA II
LEITURAS DE PLATÃO
OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O ESPAÇO AUTÔNOMO DO “POLÍTICO”
SER-NO-MUNDO E CONSCIÊNCIA-DE-SI
RAZÕES PLURAIS
PROBLEMAS E TEORIAS DA ÉTICA CONTEMPORÂNEA
A RECEPÇÃO DO PENSAMENTO GRECO-ROMANO ÁRABE E JUDAICO
A ÉTICA MEDIEVAL FACE AOS DESAFIOS DA CONTEMPORANEIDADE
JOAQUIM DE FIORI: TRINDADE E NOVA ERA
FILOSOFIA E SOCIEDADE PÓS-MODERNA
CRER E COMPREENDER
DIREITO E ETICIDADE
OS DIREITOS SOCIAIS BÁSICOS
ENTRE KANT E HEGEL
CIORAN: A FILOSOFIA EM CHAMAS
MUNDO VIVIDO
OS MERCADORES, O TEMPLO E A FILOSOFIA: MARX E A RELIGIOSIDADE
ÉTICA, CRISE E PERSPECTIVAS
FILOSOFIA E LITERATURA
CRÍTICA E TEORIAS DA CRISE
PROPRIEDADE E DEMOCRACIA LIBERAL
GLOBALIZAÇÃO E JUSTIÇA II
FIDES RATIO AUCTORITAS: O ESFORÇO DIALÉTICO NO MONOLOGION
LIBERDADE E LIBERALISMO
CRÍTICA DA RELIGIÃO E SISTEMA EM KANT
DO JUÍZO TELEOLÓGICO COMO PROPEDÊUTICA À TEOLOGIA
MORAL EM KANT
A FRAGILIDADE DA RAZÃO: 1ª REIMPRESSÃO
RACIONAL OU SOCIAL?
ÉTICA E ESTÉTICA: A RELAÇÃO QUASE ESQUECIDA
*
*
ANO
Nº
EDIÇÃO
MÍDIA
JAYME PAVIANI
OTFRIED HÖFFE
2003
2003
154
155
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
DRAITON GONZAGA DE SOUZA
ALFREDO DE OLIVEIRA MORAES
ZELJKO LOPARIC
RICARDO TIMM DE SOUZA
2003
2003
2003
2003
156
157
158
159
1º
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
VICENTE DURÁN CASAS
LUIS ALBERTO DE BONI
2003
2003
160
161
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
WOLFGANG KERSTING
NÉLIO VIEIRA DE MELO
MARIA CRISTINA DE TÁVORA SPARA
2003
2003
2003
162
163
164
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
BERNARDO ERDTMANN
LUC BRISSON
LUIZ VICENTE VIEIRA
2003
2003
2004
165
166
167
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
LÍVIO OSVALDO ARENHART
RICARDO TIMM DE SOUZA
JOSÉ MAURÍCIO DE CARVALHO
ROBERTO HOFMEISTER PICH
2004
2004
2004
2004
168
169
170
171
1º
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
LUIS ALBERTO DE BONI
2004
172
1º
IMPRESSO
NOELI DUTRA ROSSATTO
SÁVIO CARLOS DASEN SCOPINHO
URBANO ZILLES
WALTER JAESCHKE
MARIA CLARA DIAS
JOÃOSINHO BECKENKAMP
ROSÁRIO ROSSANO PECORARO
ERNILDO STEIN
MAURO CASTELO BRANCO DE MOURA
2004
2004
2004
2004
2004
2004
2004
2004
2004
173
174
175
176
177
178
179
180
181
1º
1º
1º
1º
1º
1º
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
PERGENTINO S. PIVATTO
RICARDO TIMM DE SOUZA
BENTO ITAMAR BORGES
NEIVA AFONSO OLIVEIRA
DRAITON GONZAGA DE SOUZA
MANOEL LUÍS CARDOSO VASCONCELL
2004
2004
2004
2004
2005
2005
182
183
184
185
186
187
1º
1º
1º
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
WOLFGANG KERSTING
JAIR ANTÔNIO KRASSUSKI
CARLOS ADRIANO FERRAZ
2005
2005
2005
188
189
190
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
EVILÁZIO FRANCISCO BORGES TEIX
ALBERTO OLIVA
2013
2005
191
192
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
REINHOLDO ALOYSIO ULLMANN
2007
194
2º
IMPRESSO
2006
2006
195
196
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
NADJA HERRMANN
AMOR E SEXO NA GRÉCIA ANTIGA
OS INDÍCIOS DE DEUS NO HOMEM
JORGE ANTONIO TORRES MACHADO
ÉTICA E ÉTICAS APLICADAS A RECONFIGURAÇÃO DO ÂMBITO JOVINO PIZZI
MORAL
2005
193
1º
IMPRESSO
Série Filosofia
TÍTULO
ANO
Nº
EDIÇÃO
MÍDIA
GREGORIO PIAIA
ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIR
CATHERINE AUDARD
MARCELO FABRI
AUTOR
2006
2006
2006
2007
197
198
199
200
1º
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
JOSÉ N. HECK
JOSÉ FRANCISCO MEIRINHOS
2007
2008
201
202
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
RICARDO TIMM DE SOUZA
2008
203
1º
IMPRESSO
RICARDO TIMM DE SOUZA
2008
204
1º
IMPRESSO
ROBERTO HOFMEISTER PICH
DRAITON GONZAGA DE SOUZA
DOUGLAS MOGGACH
AGEMIR BAVARESCO
ADILSON FELICIO FEILER
LUIS FERNANDO MUNARETTI DA ROSA
TIEGÜE VIEIRA RODRIGUES
SHIRLENE MARQUES VELASCO
WALTER VALDEVINO OLIVEIRA SILVA
2008
2009
2010
2011
2011
2011
2012
2012
2012
205
206
207
208
209
210
211
212
213
1º
1º
1º
1º
1º
1º
1º
1º
1º
IMPRESSO
IMPRESSO
IMPRESSO
E-BOOK
E-BOOK
E-BOOK
E-BOOK
E-BOOK
E-BOOK
FELIPE DE MATOS MÜLLER
2012
214
1º
E-BOOK
RICARDO TIMM DE SOUZA
2012
215
1º
CHISTIAN GERHART IBER
2012
216
1º
IMPRESSO/EBOOK
E-BOOK
KONRAD CHRISTOPH, AGEMIR BAVARESCO E
PAULO ROBERTO KONZEN
JULIANO SANTOS DO CARMO E ROBINSON DOS
SANTOS
FRANCISCO JOZIVAN GUEDES DE LIMA
MÁRCIO EGÍDIO SCHÄFER
2012
217
1º
E-BOOK
2012
218
1º
E-BOOK
2013
2013
219
220
1º
1º
E-BOOK
E-BOOK
PEDRO GILBERTO DA SILVA LEITE JUNIOR E LUCAS DUARTE SILVA
UMA INTRODUÇÃO AO CONTEXTUALISMO NA EPISTEMOLOGIA TIEGUE VIEIRA RODRIGUE
CONTEMPORÂNEA
A FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DO ESTADO SOCIOAMBIENTAL
ORCI PAULINO BRETANHA TEIXEIRA
Homenagem aos 40 anos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia AGEMIR BAVARESCO et al.
da PUCRS, 1974 - 2014
2014
221
1º
E-BOOK
2013
222
1º
E-BOOK
2014
2014
223
224
1º
1
E-BOOK
E-BOOK
ENTRE HISTÓRIA E IMAGINÁRIO
EXPOSIÇÃO SOBRE A SUBSTÂNCIA DO ORBE
CIDADANIA E DEMOCRACIA DELIBERATIVA
FENOMENOLOGIA E CULTURA: HUSSERL, LEVINAS E A MOTIVAÇÃO ÉTICA DO PENSAR
DA RAZÃO PRÁTICA AO KANT TARDIO
*
ESTUDOS DE FILOSOFIA MEDIEVAL: autores e temas portugueses
FENOMENOLOGIA HOJE III: BIOÉTICA, BIOTECNOLOGIA, BIOPOLÍTICA
ALTERIDADE E ÉTICA: obra comemorativa dos 100 anos de nascimento de E. Levinas
AGOSTINHO: CONHECIMENTO, LINGUAGEM E ÉTICA
JUSTIÇA GLOBAL E DEMOCRACIA: homenagem a John Rawls
HEGELIANISMO, REPUBLICANISMO E MODERNIDADE
PROJETOS DE FILOSOFIA
NIETZSCHE: SUJEITO MORAL E CULTURA CRISTÃ
O PARADOXO DA ANÁLISE: UMA ABORDAGEM EPISTEMOLÓGICA
PROJETOS DE FILOSOFIA II
CONSTITUCIONALISMO E MÉTODO DIALÉTICO
DEMOCRACIA E INDIVIDUALISMO: A IGUALDADE COMO PRINCÍPIO ORGANIZADOR
EPISTEMOLOGIA SOCIAL: DIMENSÃO SOCIAL DO CONHECIMENTO
LEVINAS E A ANCESTRALIDADE DO MAL: POR UMA CRÍTICA DA
VIOLÊNCIA BIOPOLÍTICA
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA:
ORIENTAÇÃO SOBRE SEUS MÉTODOS
SUJEITO E LIBERDADE. INVESTIGAÇÕES A PARTIR DO IDEALISMO
ALEMÃO
ÉTICA, LINGUAGEM E ANTROPOLOGIA: PERSPECTIVAS MODERNAS E CONTEMPORÂNEAS
PROJETOS DE FILOSOFIA III
O CONCEITO DE TRABALHO NA FILOSOFIA DE HEGEL E ALGUNS
ASPECTOS DE SUA RECEPÇÃO EM MARX
SANTO AGOSTINHO: REFLEXÕES E ESTUDOS
* LIVROS ESGOTAS