UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM NARRATIVAS, IMAGENS E SOCIABILIDADES
NATÁLIA RIBEIRO MARTINS
DE PORTUGAL ÀS MINAS DO OURO:
a trajetória do cristão-novo Diogo Nunes Henriques (1670-1729)
JUIZ DE FORA
2015
Ficha catalográfica elaborada através do programa de geração
automática da Biblioteca Universitária da UFJF,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Martins, Natália Ribeiro.
De Portugal às Minas do Ouro: a trajetória do cristão-novo
Diogo Nunes Henriques (1670-1729) / Natália Ribeiro Martins. - 2015.
160 p.
Orientadora: Célia Aparecida Resende Maia Borges
Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade Federal de
Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas. Programa de PósGraduação em História, 2015.
1. Inquisição Portuguesa. 2. Cristão-novo. 3. Trajetória. I.
Borges, Célia Aparecida Resende Maia, orient. II. Título.
NATÁLIA RIBEIRO MARTINS
DE PORTUGAL ÀS MINAS DO OURO:
a trajetória do cristão-novo Diogo Nunes Henriques (1670-1729)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História, linha de
pesquisa
“Narrativas,
imagens
e
Sociabilidades”, da Universidade Federal
de Juiz de Fora, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Célia Aparecida Resende Maia Borges
JUIZ DE FORA
2015
À minha mãezinha, Fatima.
Sempre, a ela: tudo.
Aos meus avós, Mercedes e João (in memoriam).
Pela memória que lhes foi negada.
À minha avó Maria (in memoriam).
Para que eu nunca me esqueça do quão profundas são as nossas raízes.
"Nem tudo que é ouro fulgura,
Nem todo o vagante é vadio;
O velho que é forte perdura,
Raiz funda não sofre o frio”.
J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis
“Acho que não devemos nos enganar. Nós não recriamos o passado aqui. O passado se
foi. Não pode ser recriado jamais. O que fizemos foi reconstruir o passado; ou ao
menos uma versão do passado”.
Michael Crichton, Jurassic Park
AGRADECIMENTOS
São muitas pessoas que preciso agradecer. Tantas, que tenho medo de acabar
sendo tão descuidada quanto normalmente já sou em minha existência, apesar de ser
imprescindível tal registro. Durante esses dois anos e pouco dedicados ao Mestrado,
pude contar com a solidariedade e o carinho de novos e velhos amigos e de novos e
velhos mestres que muito me ensinaram e me inspiraram com suas palavras. Em
primeiro lugar, agradeço àqueles que sem o apoio e confiança durante essa trajetória –
minha e a do meu cristão-novo – não seria possível ter a oportunidade de estar aqui
escrevendo este agradecimento: à Professora e minha orientadora Célia Borges, sou
eternamente grata pela confiança no meu projeto, pelas valiosas lições e indicações, e
pela ajuda sempre generosa e prestativa; e ao Programa de Pós-Graduação da UFJF, por
tamanha receptividade e pelo ambiente que então encontrei: encerro este ciclo sem
dúvida nenhuma do quanto a minha estadia em Juiz de Fora foi um inestimável
aprendizado graças a vocês.
À minha mãe, Fatima, a quem dedico este trabalho. Obrigada por confiar e
apoiar as minhas decisões, mesmo sem muitas vezes concordar com elas. Sei que foi
difícil lidar com a distância física que criamos uma da outra, mas carrego você comigo
em tudo que faço e me esforço sempre em me espelhar em cada exemplo de vida que
me destes – e que continuas a me dar. Ao Rhuan, além de namorado, meu melhor
amigo, cuja presença constante e inspiradora pude dividir todas as agruras deste
trabalho. Agradeço todo o carinho e cumplicidade e, principalmente, por me ensinar que
a maior virtude do amor é a paciência. Lado a lado trilhamos muitos caminhos durante
esses dois anos de Mestrado. Você sabe: te devo tudo!
Aos meus pais “postiços”, Neuza e Toninho: mais do que sogros, um exemplo
de amor e cumplicidade, sou muito grata por terem me acolhido de maneira tão
carinhosa. Ao meu sobrinho Bruno, obrigada por sempre me tentar a ir para o “lado
negro” dos jogos e pelas conversas do dia a dia que limpam nossa mente dos problemas
maiores. As minhas sobrinhas Maria Clara e Maria Carolina, por serem as criaturinhas
mais doces e amorosas desse mundo. À família que encontrei em Juiz de Fora: Phellipe
e Jéssica, Munique e Victor, agradeço todo o carinho e receptividade.
Aos professores do PPGHIS-UFJF: Alexandre Mansur Barata, Carla Almeida,
Cláudia Viscardi e Mônica Ribeiro de Oliveira, que tanto contribuíram para um “salto”
na minha formação acadêmica e me proporcionaram um aprendizado significante que
moldou a minha pesquisa e os meus estudos de forma preciosa. Agradeço ao professor
Alexandre, por ter aceitado fazer parte da banca deste trabalho, por toda a paciência,
pela leitura atenta deste trabalho e pelos conselhos valiosos. Ao professor Ângelo Assis,
agradeço igualmente pelo aceite em compor a banca examinadora, também agradeço
não só pelas discussões que tanto me ajudaram nas diversas reflexões deste trabalho,
mas também pela presença constante em meus estudos e pelas oportunidades de
crescimento que tem me apresentado. Aos professores Eduardo França Paiva, sempre
solícito e atencioso, e Maria de Deus Beites Manso, por todos os conselhos e auxílios
inestimáveis que me prestou em Portugal. Ao professor Yllan de Mattos, pelas
prestimosas sugestões, indagações e por todo o apoio.
Agradeço igualmente as pessoas que tive o prazer de conhecer e conviver, não
só na UFJF, mas também em grandes momentos desse Mestrado e que carregarei para
sempre comigo. Aos amigos Camila Martins, Luiz César de Sá Júnior e Renata
Fernandes, sou eternamente grata pela companhia, conversas, conselhos e discussões.
Que nossas aventuras possam render ainda muitas histórias bonitas! Não posso deixar
de registrar a minha eterna gratidão à turma da Inquisição: Marcus Vinícius Reis,
Juliana Torres e Luiz Fernando Lopes, vocês são aquele presente inesperado que a vida
concede raríssimas vezes na nossa trajetória, a vocês agradeço o companheirismo e as
lições preciosas, sejam acadêmicas ou para a vida.
Minha eterna gratidão à Família Toskogard: não importa o quanto todos nós
sejamos pegos pelas obrigações do dia a dia, meu amor é por vocês eterno. E às minhas
meninas Bárbara Campos, Cláudia Cunha, Lílian Praes, Marcelle Marques, Maria Lucia
Ricoy e Michele Araújo, reencontrar vocês foi um acalento para a minha alma. E, claro,
à minha fiel escudeira canina, Gaia, que divide comigo e com o Rhuan todos os
momentos e nos ensina constantemente o significado do amor incondicional.
Deixo aqui meu reconhecimento aos colegas queridos e grandes amigos da
UFMG. Aos que comigo começaram essa loucura que é “fazer história” na turma
2007/02, e aos que conheci ao longo deste caminho, todos vocês que mesmo distantes
não deixaram de ser presentes e me iluminam apenas pela lembrança dos bons
momentos: Allysson Lima, Ana Gonçalves, Breno Barroso, Bruno Vinícius de Morais,
Carolline Andrade, Douglas de Freitas, Douglas Lima, Elivelto Guimarães, Felipe
Damasceno (in memoriam), Fernanda Nahas, Fernando Garcia, Gabriel Afonso Chagas,
Igor “Nefer” Rocha, Isadora Aires, Lídia Generoso, Leandro Maia, Luísa Marques,
Marcela Chadid, Marcelo Alves, Maria Visconti, Mariana Chamon, Natália Iglésias,
Nilsa Cruz, Poliana Jardim, Raquel Ferreira, Raziel Jaseff, Renata Lopes, Rute Torres,
Thiago Prates, Viviane Alves, Wagner Gomes e Walderez Ramalho. Aos colegas das
iniciativas das Oficinas de Paleografia, UFJF, UFMG e UFOP, agradeço pela honra de
ter dividido o espaço que construíram e pelo esforço dos excelentes trabalhos que
executam. Aos grandes amigos da Modelândia, mesmo que dispersos por esse Brasil (e
alguns pelo mundo): obrigada por tudo, guardo vocês no meu coração!
Ainda, não posso deixar de registrar meus agradecimentos à Maria David Eloy,
descendente indireta de Diogo Nunes Henriques, não só pelos ensinamentos como
também pela oportunidade de troca de experiências e por ter me cedido gentilmente
preciosas informações. Agradeço toda a ajuda e presteza dos funcionários dos arquivos
por onde passei: Arquivo Público Mineiro, Arquivo Público do Estado da Bahia, Casa
Borba Gato, em Sabará, e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal. Por
fim, não poderia deixar de agradecer à Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade
Federal de Juiz de Fora (PROPG-UFJF) cujo auxílio financeiro concedido por 22 meses
durante o Mestrado foi de inestimável ajuda para que eu pudesse me dedicar
exclusivamente a esta pesquisa e finalizá-la com todo o cuidado e dedicação que
merece.
À TODOS, OS MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS.
RESUMO
Este trabalho é centrado na análise da trajetória do cristão-novo português Diogo
Nunes Henriques, homem de negócio que se estabeleceu em Castela e em diferentes
lugares do Império Português, até finalmente se fixar no território minerador. Membro
de uma família com vasta passagem pelos cárceres do Santo Ofício, Henriques
encontrou nos movimentos migratórios um forte aliado para escapar da mira dos
inquisidores. Nas capitanias coloniais do atlântico, Diogo se firma como um promissor
comerciante, assegurado por uma rede de compadrio que envolvia cristãos-velhos,
parentes e outros cristãos-novos também atuantes no comércio.
Contudo, o relativo êxito comercial não apagou a mácula cristã-nova, nem de
Henriques, nem de seus companheiros, todos acusados de judaísmo, sendo então
denunciados e presos pelo Santo Ofício durante a primeira metade do século XVIII. Os
cristãos-novos do Império português estavam inseridos em um contexto paradoxal: de
um lado eram vassalos de uma coroa cada vez mais dependente do comércio
ultramarino, do outro estavam sujeitos às ações coercitivas do Santo Ofício, instituição
cada vez mais empenhada em eliminar a heresia judaica do Império português. Analisar
trajetórias como a de Diogo Nunes Henriques auxilia na busca pelo entendimento da
realidade social vivida pelos cristãos-novos face às políticas de intolerância do Santo
Ofício português e seus desdobramentos.
.
PALAVRAS-CHAVE: Inquisição, cristão-novo, trajetória.
ABSTRACT
This work aims to analyze Diogo Nunes Henriques’s trajectory, a Portuguese
New Christian and businessman who lived in Castile and in different locations of the
Portuguese Empire, until he finally settled in Minas Gerais, a Brazilian colonial
territory. Part of a family whose other members had already been judged by the Holy
Office, Henriques found a strong ally on the migratory movements to escape from the
sight of the Inquisitors. In the colonial Atlantic captaincies, Diogo became a promising
merchant, secured by a social network that involved Old Christians, relatives and other
New Christians who were also traders.
However, the relative commercial success did not erased the New Christian’s
blood stain, nor Henriques’, neither his companions’, who were all accused of
committing the Judaism crime and then denounced and arrested by the Holy Office in
the first half of the eighteenth century. The New Christians in the Portuguese Empire
were inserted in a paradoxal context: on one hand they were vassals of a crown
increasingly dependent on the ultramarine trade; on the other hand they were subjected
to the coercive actions performed by the Holy Office, an institution more and more
dedicated to eliminating the Jewish heresy from the Portuguese Empire. Analyzing
trajectories such as the one of Diogo Nunes Henriques helps in the pursuit for
understanding the social reality experienced by New Christians towards the Portuguese
Holy Office’s intolerance policies and its deployments.
Keywords: Inquisition, New Christian, trajectory.
LISTA DE ABREVIATURAS
ACL – Administração Central
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia
APM – Arquivo Público Mineiro
AVC – Avulsos da Capitania
CC – Casa dos Contos de Ouro Preto
CGSO – Conselho Geral do Santo Ofício
CS – Casa da Suplicação
CU – Conselho Ultramarino
Cx – Caixa
Doc – Documento
Mç - Maço
TSO-IC – Tribunal do Santo Ofício – Inquisição de Coimbra
TSO-IL – Tribunal do Santo Ofício – Inquisição de Lisboa
x.n. – Cristão-novo
TABELAS E GRÁFICOS
TABELAS
TABELA 01 - OCUPAÇÃO E RAMO DE ATUAÇÃO DOS CRISTÃOS-NOVOS............................ 84
TABELA 02 - CRISTÃOS-NOVOS QUE DENUNCIARAM DIOGO NUNES
HENRIQUES AO TRIBUNAL DE LISBOA........................................................................... 118
TABELA 03 - SENTENÇAS FINAIS PUBLICADAS (AUTO-DA-FÉ DE 16/10/1729) .............. 124
TABELA 04 - SENTENÇAS IMPUTADAS AOS DEMAIS CRISTÃOS-NOVOS........................... 128
GRÁFICOS
GRÁFICO 01 - NÚMERO DE DENÚNCIAS CONTRA DIOGO NUNES HENRIQUES
AO LONGO DOS ANOS..................................................................................................... 119
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 14
CAPÍTULO I: DIOGO
NUNES
HENRIQUES: RELIGIÃO
SOBREVIVÊNCIA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS
E
ESTRATÉGIAS
DE
................................................................... 26
I.I. O VIGÁRIO, O COMISSÁRIO E UMA DENÚNCIA QUE VEIO DAS MINAS ......................... 26
I.II. O DESTINO DOS HERESIARCAS .................................................................................. 37
I.III. UMA FAMÍLIA NAS MALHAS DA INQUISIÇÃO ............................................................ 52
CAPÍTULO II: NEGÓCIOS PELOS CAMINHOS ................................................................. 65
II.I. A TRAMA DAS REDES E A CONDIÇÃO MARRANA ........................................................ 65
II.II. UM AMIGO ÀS VOLTAS COM O SANTO OFÍCIO .......................................................... 70
II.III. PELA BAHIA ATÉ AS MINAS ................................................................................... 76
II.IV. AMIZADE, COMPADRIO E NEGÓCIOS ....................................................................... 82
II.V. ALGUNS PONTOS SOBRE OS CONTRATOS RÉGIOS E O DÍZIMO ................................. 93
II.VI. NEGÓCIOS, CONTRATOS E AS TRAMAS DO GOVERNADOR DAS MINAS ................... 97
CAPÍTULO III: A ÚLTIMA PEÇA: O COMPASSO INQUISITORIAL ................................. 104
III.I. EFEITO DOMINÓ ..................................................................................................... 104
III.II. DENÚNCIAS CONTRA DIOGO ................................................................................ 111
III.III. HISTÓRIAS DO CÁRCERE ..................................................................................... 120
III.IV. O FIM DO GRUPO COMERCIAL ............................................................................. 127
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 131
ANEXO I ........................................................................................................................ 135
ANEXO II ....................................................................................................................... 138
ANEXO III ...................................................................................................................... 142
FONTES ......................................................................................................................... 144
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 147
14
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objeto de estudo e personagem principal o homem
de negócio português Diogo Nunes Henriques, cristão-novo – de origem judaica –,
nascido na cidade portuguesa de Freixedas, Bispado de Viseu. Foi um homem moldado
pela sua mobilidade, se estabelecendo em Castela e em diferentes lugares do Império
Português, até se fixar no território de Minas Gerais, e dali seguiu novamente para
Lisboa, sob a escolta do Santo Ofício. A baliza temporal utilizada insere-se entre as três
últimas décadas do século XVII e as três primeiras décadas do século XVIII. O pano de
fundo é importante, pois navega por um espaço de reviravoltas políticas, sociais e
econômicas em Portugal e no ultramar, e que tem nas descobertas auríferas em Minas o
gérmen para as principais transformações do período proposto.
Para perseguir a trajetória de Diogo Nunes Henriques, contamos com vinte e
dois processos inquisitoriais de outros cristãos-novos, categoria social pela qual
ficaram conhecidos durante grande parte da era moderna portuguesa os diversos
indivíduos convertidos ao Cristianismo e seus descendentes, fossem judeus ou
muçulmanos. Para o caso aqui estudado, todos os cristãos-novos possuem uma
ramificação judaica em sua genealogia, ou seja, um antepassado que renunciou à
religião judaica para abraçar a fé católica por meio do batismo.
Predominantemente é na documentação inquisitorial que este trabalho se
debruça, sobretudo nos processos gerados pelo Tribunal de Lisboa, sob tutela do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), em Portugal, disponíveis online, e
também contamos com alguns processos pontuais do Tribunal de Coimbra1. Para dar
suporte a algumas evidências encontradas ao longo desta pesquisa, trabalhamos com
outros gêneros documentais, principalmente notariais e jurídicos, disponibilizados pelo
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Arquivo Público Mineiro (APM) e o arquivo da
Casa do Pilar de Ouro Preto – Coleção Casa dos Contos (CC-OP).
1
A documentação referente à Inquisição de Coimbra também se encontra depositada no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo. Porém, a consulta ao fundo é apenas física, a qual foi possível realizar
durante o Mestrado.
15
Não foi possível dimensionar a vida de Diogo Nunes Henriques apenas pelo seu
único processo inquisitorial2. O grande resgate da sua trajetória se deu graças aos relatos
de terceiros, quer dizer, do que outros cristãos-novos que conviveram com Diogo
descreveram aos inquisidores. É importante evidenciar como a história de Diogo
conecta-se com diversas outras histórias. São peças de um enorme quebra-cabeça que
necessita de montagem. Em um primeiro momento do nosso trabalho conseguimos
localizar vinte e seis processos inquisitoriais que citavam de alguma forma Diogo
Nunes Henriques3. Trata-se de um grande e significativo volume documental para ser
analisado em um espaço muito curto de tempo. Logo, foi necessário realizar uma
triagem que levou em consideração a relevância das informações para a montagem
desse grande puzzle. Consideramos também os processos que pudessem oferecer uma
perspectiva favorável à montagem do cotidiano e do cenário o qual o cristão-novo fez
parte. Por conseguinte, há processos que não citam Henriques de forma primária, mas
fazem sim menção a outros indivíduos que faziam parte do grupo cristão-novo de
Diogo. Vinte e dois processos no total foram utilizados para escrever e contar esta
trajetória. De qualquer forma, o avolumado número de processos é sintomático,
denotando que o resgate dos passos de Diogo não foi algo simples de ser realizado.
Tal como a alegoria do resgate de sua trajetória à montagem de um quebracabeça, a composição de sua história pode ser igualmente comparada ao trabalho de
cozer uma grande colcha de retalhos, tornando fundamental unir seus dispersos
vestígios e justapor um importante rastro pela história colonial setecentista. Pois, afinal,
é tudo isso que define o estudo de trajetória: reconstruir o percurso do objeto de estudo,
mapear suas relações com outros indivíduos e suas ações no decorrer do tempo e no
contexto o qual se inserem, e tal como definiu Pierre Bourdieu, resgatar uma trajetória
significa descrever a vida “como um caminho, uma estrada, uma carreira, com suas
encruzilhadas”4.
2
Arquivo Nacional da Torre do Tombo/Tribunal do Santo Ofício - Inquisição de Lisboa, nº 07487,
processo de Diogo Nunes Henriques, cristão-novo, homem de negócio. O ano do seu nascimento foi
estimado sendo entre 1669-1670.
3
Nesta pesquisa, também atribuímos uma grande importância para o filho de Diogo, Manuel Nunes da
Paz. A razão para tal deve-se a presença constante de Manuel em uma parte importante da vida de seu pai.
Da mesma forma, contabilizamos alguns processos que fazem menção unicamente à Manuel – mesmo
que não à Diogo – nos tempos chave de união entre os mesmos.
4
Pierre Bourdieu. A ilusão biográfica, p. 183. IN: Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas:
Papirus, 1996.
16
A proposta geral da pesquisa aqui apresentada é, parafraseando Jacques Revel,
trabalhar com uma história “ao rés-do-chão”5, com a matização de contornos sociais e
políticos locais, que se vinculam com o grande contexto do Antigo Regime português
na Era Moderna. Ainda, a pesquisa seguiu similarmente à metodologia proposta por
Carlo Ginzburg quando aborda a prosopografia a partir da “história vista de baixo”6,
alvitre para uma análise que preze pelo indivíduo histórico dentro da escrita da história.
Reconstruir os momentos de Diogo Nunes Henriques e a sua história cotidiana foi, antes
de tudo, uma tentativa de gerar não um panorama definitivo, mas sim uma referência –
entre as várias possíveis – a um contexto complexo, afinal:
O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço
permite perceber é uma modulação particular da história global.
Particular e original, pois o que o ponto de vista micro-histórico
oferece à observação não é uma versão atenuada, ou parcial [...] de
realidades macrossociais; é [...] uma versão diferente (REVEL, 1998:
28).
Em sua vida mercantil, Diogo foi inicialmente mais um tratante cristão-novo
atuando pelas praças comerciais do interior português, transitando pelo território até
Castela. Na América portuguesa, consolidou o espaço de um típico homem de negócio,
adquirindo bens, negociando créditos, produtos e escravos, até que alcançasse a esfera
dos contratos régios. Assegurou-se por meio de alianças que teceu com outros
indivíduos, um complexo processo de conexões singulares conhecido como redes
sociais. De acordo com antropólogo Alfred Reginald Radcliffe-Brown7, as redes são
uma forma espacial de descrever e estudar as relações sociais existentes entre os seres
humanos, sendo tais relações tecidas por meio de uma solidariedade de grupo e que gera
a integração entre tais atores. Para o caso aqui estudado, Diogo Nunes Henriques e seu
grupo conectavam-se não apenas entre seus parentes, amigos e conhecidos cristãosnovos, mas também com cristãos-velhos.
O êxito comercial, porém, não foi capaz de se sobrepor à mácula do sangue
judeu: nem de Henriques, nem dos cristãos-novos que faziam parte de seu orbe
mercantil. Em uma sociedade pautada pela diferença da qualidade do sangue e da cor,
este corpo social foi alvo de uma política de segregação, cujo motor principal era
5
Jacques Revel, A História ao Rés do Chão. pp. 7-37. IN: LEVI, Giovanni. Herança Imaterial:
trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
6
Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição, p. 27.
7
Cf. RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e função na sociedade primitiva. 2ª Ed., Petrópolis:
Vozes, 2013.
17
conduzido pelo Tribunal do Santo Ofício. Este, em funcionamento em Portugal e seus
domínios além-mar a partir de 1536, e sob a égide da normatização das almas, com
vistas a homogeneizar a fé e os ritos católicos, reprimiu crenças e comportamentos
desviantes e, mais particularmente, perseguiu os cristãos-novos. Tal corpus social foi
rendido por uma política proselitista agressiva, intolerante e estigmatizante, mas não se
deixaram paralisar frente ao olhar inquisitorial, até que em 1773 puderam respirar pela
primeira vez em quase três séculos, em razão da abolição da distinção entre cristãosvelhos e cristãos-novos, para que então, finalmente, em 1821, o Santo Ofício fechasse
suas portas em definitivo.
À luz dos caminhos teórico-metodológicos já supracitados, torna-se possível
dialogar entre variadas escalas de análise, interessadas pelos pequenos detalhes em
grandes contextos, dando a estas perspectivas menores a complexidade necessária, e o
entendimento das relações cotidianas e os comportamentos individuais, frente às
adversidades de uma sociedade regulada por diversas lógicas em voga em seu tempo. É
quase intuitiva a imagem de um Antigo Regime cuja ação se limitava à família real,
seus funcionários, cortesãos e ao alto Clero, generalizando o comportamento das
camadas sociais mais baixas e suas relações. Afinal, também às margens ocorriam as
mais diversas dinâmicas entre seus pares.
Procedemos assim à indispensável redução da escala analítica, além de eleger
um personagem principal para esta trama. O exame da trajetória de Diogo Nunes
Henriques não permite apenas entender sua história individual, afinal, como já
mencionado, a mesma se conecta com várias outras histórias individuais, trazendo à luz
o funcionamento social, percebendo a atuação dos grupos, a construção das
solidariedades e como produziram seu espaço. Como toda pesquisa, além das perguntas
formuladas pelo projeto inicial, velhas indagações são descartadas e novas são
propostas, nivelando todas a partir do que a documentação pudesse contemplar.
Algumas questões principais são: quem foi Diogo Nunes Henriques? De que modo
construiu seu cabedal? Como atingiu a esfera dos contratos régios? De que forma sua
qualidade interferiu em seus negócios? Com quem se relacionou? Como a Inquisição se
fez presente em sua trajetória?
O trabalho do historiador não contempla apenas a interpretação das fontes a
partir da metodologia escolhida. O ofício também reinvindica considerável espaço para
discussão e construção dos contextos históricos e para a problematização dos conceitos
18
e da própria historiografia. Por seu caráter interdisciplinar, o trabalho aqui apresentado
promove discussões no âmbito da História Moderna, englobando, principalmente, a
historiografia social e econômica brasileira colonial setecentista, além, claro, do Antigo
Regime português e da Inquisição. Atenta a esta discussão tão multifacetada, a revisão
bibliográfica deste trabalho deve atravessar temas distintos.
Os cristãos-novos, enquanto personagens principais desta trama, reivindicam um
espaço considerável nas discussões interessadas no entendimento dos mecanismos de
sociabilidades no período colonial. Assim, esta categoria social ganhou, ao longo do
tempo, novas abordagens, referenciais, fontes e metodologias de análise. Aliás, se
contabilizados, tal gama de trabalhos evidencia que a tópica dos cristãos-novos está
longe de se esgotar. Muito pelo contrário: além de contar com um extenso fundo
documental à espera de exploradores, é um campo que se renova a cada geração de
pesquisadores, ganhando novas interpretações, novos olhares e teorias analíticas. É
importante também pontuar as vias abertas pela internacionalização acadêmica, motor
que possibilita a pesquisa e exploração dos diversos arquivos e bibliotecas dispersos
pelo globo e que guardam verdadeiras jóias documentais – afora o grande intercâmbio
entre os trabalhos produzidos nos diferentes pólos da pós-graduação no mundo.
A pesquisa aqui apresentada, portanto, dialoga com várias teses que abordam a
temática cristã-nova: não só os que tratam sobre as sociabilidades e os desafios da
convivência e resistência perante a instituição inquisitorial, mas também com os
trabalhos que levantam a questão dos cristãos-novos e de suas redes comerciais e seu
protagonismo no trato mercantil transcontinental moderno. Em um primeiro momento, a
produção historiográfica relacionada aos cristãos-novos partiu de uma análise mais
próxima da questão institucional do Santo Ofício. Mais contemporaneamente se
consolidou o interesse pelo estudo de caso de grupos e famílias de conversos, antes
periféricos, agora personagens centrais das tramas, até se desvincular das análises
puramente ligadas à engrenagem inquisitorial, dando autonomia e um sentido mais
amplo aos indivíduos além daqueles meramente condicionados pelos mecanismos de
perseguição. Além, claro, dos estudos que se debruçam na análise da economia-mundo
e a dinâmica comercial da Era Moderna.
19
Pesquisadores como Anita Novinsky8, Sônia Siqueira9, Elias Lipner10 e José
Gonçalves Salvador11 influenciaram os primeiros trabalhos que envolveram a utilização
da documentação inquisitorial, e auxiliaram na busca de respostas sobre o que
significava “viver em colônia”. Este primeiro momento também foi ocupado por um
acirrado debate de viés marxista – incitado, sobretudo, pelos trabalhos de Antônio José
Saraiva12 e endossado por Anita Novinsky – sobre a perseguição de uma elite
portuguesa a uma burguesia ascendente de origem judaica, sob a legitimação de um
Tribunal de Fé. Com o aprofundamento das análises, não só do próprio funcionamento
da engrenagem inquisitorial, como também as lógicas sociais do Antigo Regime, tal
debate perdeu força.
O trabalho de Anita Novinsky intitulado Cristãos-Novos na Bahia é o ponto de
partida para uma nova historiografia da Inquisição no Brasil, inaugurando um novo
olhar e um novo suporte documental, preocupado principalmente em entender o
fenômeno converso. Novinsky concentrou seus estudos na documentação referente à
Segunda Visitação do Santo Ofício as Partes do Brasil, entre 1618 e 1620, elucidando a
questão social na Bahia açucareira e a inserção dos cristãos-novos nesta dinâmica. A
pesquisadora instigou o interesse pelos estudos envolvendo o Santo Ofício português,
com variadas formas e focos de análise, que se renovam a cada geração. Sua dedicação
ao tema e a localização das fontes inquisitoriais concernentes ao Brasil 13 são de extrema
valia enquanto guias de fontes para pesquisa, promovendo um grande auxílio aos
trabalhos dos historiadores.
Sônia Siqueira é outra referência que impulsionou a produção historiográfica
inquisitorial no Brasil. Seu trabalho A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial
pretendeu elucidar a questão das Visitações do Santo Ofício, sobretudo nas capitanias
do nordeste, aquecida pelos engenhos de açúcar, e entender o motor inquisitorial na
8
NOVINSKY, Anita. Cristãos Novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972.
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ed. Ática, 1978.
10
LIPINER, Elias. Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos-novos do Brasil
nos séculos XVI e XII). São Paulo: Brasiliense, 1969.
11
SALVADOR, José Gonçalves. Os Cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro,
1530-1680. São Paulo, Pioneira/EdUSP, 1976; _________________. Cristãos-novos e o Comércio no
Atlântico Meridional. São Paulo: Pioneira, 1978; __________________. Os Magnatas do Tráfico
Negreiro. São Paulo: Pioneira/EdUSP, 1981.
12
SARAIVA, António José. Inquisição e Cristãos-Novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1985.
13
NOVINSKY, Anita. Rol dos Culpados: fontes para a história do Brasil. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura, 1992; _________________. Inquisição: inventário dos bens confiscados a cristãos-novos.
Fontes de pesquisa para a história de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional: Casa
da Moeda, 1976.
9
20
América portuguesa. Sob uma nova luz analítica, os trabalhos na década de 1980
renovaram seus objetos sem perder o foco do contexto: Laura de Mello e Souza se
debruça sobre o crime de feitiçaria e magias na sociedade colonial em O Diabo e a
Terra de Santa Cruz14; a questão da sexualidade e moralidade e os crimes de sodomia
ganharam destaque com Luiz Mott15 e Ronaldo Vainfas16. Este último, posteriormente,
se interessaria também pela presença judaica em Pernambuco, durante a ocupação
holandesa17.
Seguindo a diversidade analítica, recentemente ganharam espaço os trabalhos
focados na realização de estudos de caso, como o de Lina Gorenstein18 sobre os
cristãos-novos no Rio de Janeiro no século XVIII; Adriana Romeiro19 e a sua narrativa
com foco em Pedro de Rates Hanequim e os fenômenos milenaristas no Antigo Regime;
e o do historiador Ângelo Adriano Faria de Assis20 sobre o mercador cristão-novo João
Nunes. Outro ponto que ganhou maior atenção foi a questão da lógica organizacional da
Inquisição e a análise do quadro de funcionários do oficialato inquisitorial, como os
familiares do Santo Ofício em Daniela Calainho21 e a colaboração entre o poder
eclesiástico com o Santo Ofício e outros mecanismos burocráticos em Bruno Feitler22 e
Aldair Carlos Rodrigues23 voltando e aprofundando novamente na temática dos
familiares, mas sob o recorte do território mineiro.
É igualmente importante avançar na discussão historiográfica entre os principais
estudos sobre a economia colonial e do Império Português. Desde os clássicos de Caio
14
SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras,
1986.
15
MOTT, Luiz. Sexo Proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição. Campinas: Papirus,
1983.
16
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral e sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Campus, 1988.
17
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil Holandês. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
18
GORENSTEIN, Lina. Heréticos e Impuros: a Inquisição e os cristãos-novos no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, 1995.
19
ROMEIRO, Adriana. Um visionário na Corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas
Gerais. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, 1996.
20
ASSIS, Ângelo Adriano Faria de Assis. João Nunes: um rabi escatológico na Nova Lusitânia. São
Paulo: Alameda, 2011.
42
CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: familiares da inquisição portuguesa no Brasil
Colonial. Bauru: EDUSC, 2006.
22
FEITLER, Bruno. Nas Malhas da Consciência: igreja e inquisição no Brasil. São Paulo: Alameda:
Phoebus, 2007.
23
RODRIGUES, Aldair Carlos. Limpos de Sangue: Familiares do Santo Ofício, Inquisição e
Sociedade em Minas Gerais. São Paulo: Alameda, 2011.
21
Prado Jr.24, Celso Furtado25 e Ciro Flamarion Cardoso26, às leituras mais recentes de
Fernando Novais27, João Fragoso e Manolo Florentino28. Durante algum tempo. as
discussões giraram sob a perspectiva do mercantilismo enquanto projeto, cujo mote
principal era abordar a então acumulação primitiva de capital. Os textos mais clássicos
buscavam entender o que significar o “viver em colônia” a partir da economia-mundo,
que demonstravam uma administração caótica, ineficiente e burocrática por parte da
Coroa lusitana. Já as análises mais recentes desconstroem diversos entendimentos desta
historiografia clássica, utilizando critérios de eficiência da Era Moderna e discutem a
ideia de sentido da colonização, como Novais responsável por levantar o critério do
exclusivo metropolitano como mecanismo que propiciou a dinamização da economia da
metrópole, e Fragoso e Florentino que pautam a própria condição colonial como o
resultado do projeto expansionista português, que previa a reprodução de uma estrutura
“parasitária”, gerida por uma pequena elite arcaica e buscava suprimir a expansão da
classe burguesa mercante para, desta forma, impedir sua ameaça a ordem do Antigo
Regime e garantir a hegemonia da nobreza.
Já Maria Fernanda Bicalho29 adota um conceito mais abrangente de Império,
cuja carga, para ela, remete à compreensão do conjunto de relações que possibilitaram o
funcionamento do mesmo, em face das dinâmicas ultramarinas. A historiadora entende
que os modelos analíticos das relações entre a colônia e a metrópole não atendiam mais
as especificidades e as complexidades dos territórios, assim como a própria
heterogeneidade das redes comerciais, que passaram a ter um caráter informal,
desvinculado do poder real. O destacamento desta dualidade entre Portugal-Brasil
abriram diversos horizontes, possibilitando a conexão de todo o Império a um eixo mais
global. Como é perceptível, os debates que buscam o entendimento do Império
português e as diversas condições coloniais guardam singular candência, fazendo de tal
terreno historiográfico um local fértil e franqueado às diversas interpretações.
24
JUNIOR, Caio Prado. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Nacional. 1959.
26
CARDOSO. Ciro Flamarion. As concepções acerca do Sistema Econômico Mundial e do Antigo
Sistema Colonial: a preocupação obsessiva com a extração do excedente. IN: LAPA, José Roberto do
Amaral. Modos de Produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes.
27
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo:
Hucitec,
28
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio de janeiro, c.1790-c.1840. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
29
SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Júnia Ferreira. BICALHO, Maria Fernanda (Org.). O
Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009.
25
22
A temática da diáspora judaica portuguesa, a pressão inquisitorial e as
consequências econômicas são amplamente abordadas por pesquisadores portugueses,
brasileiros e americanos. Na coletânea de artigos organizada por Richard L. Kagan e
Philip D. Morgan Atlantic Diasporas: Jews, Conversos and Crypto-Jews in the Age of
Mercantilism, 1500-1800 30 são apresentadas diversas narrativas que exploram a figura
judaica, principalmente do converso ibérico e a relação destes grupos mercadores com
as diversas regiões comerciais do atlântico. O pesquisador A. A. Marques de Almeida
lançou-se em um estudo sobre problemática das associações comerciais lusitanas em
Capitais e Capitalistas no Comércio da Especiaria. O Eixo Lisboa-Antuérpia (15011549). Aproximação a um estudo de Geofinança31. Em um dossiê especial sobre a
questão da diáspora e expansão portuguesa da Revista Oceanos32, escreveram sobre o
tema A. A. Marques de Almeida, em artigo intitulado O Zangão e o Mel: uma metáfora
sobre a diáspora sefardita e a formação das elites financeiras da Europa33, e Maria
José Ferro Tavares com A expulsão dos Judeus de Portugal: a conjuntura da Península.
Antônio Vasconcelos Nogueira também avalia a contribuição dos judeus
portugueses para o capitalismo moderno em The Portuguese Jews and Modern
Capitalism: trading, insurance, banking, business, and Economic Thougth in
Amsterdam from earlier 16th to the first decades of 20th centuries
34
, apresentando
diversos membros de importantes famílias portuguesas de origem judaica que
contribuíram enquanto banqueiros, mercadores, estanqueiros e homens de negócio,
como os Mendes, que dominaram o comércio das especiarias do oriente, os Baruch
Spinoza, uma das famílias mais ricas de Amsterdam, os Nunes da Costa, cujos membros
prestaram serviço ao Rei D. João IV como conselheiros diplomáticos e financeiros.
Chegamos então a uma historiografia que busca colocar em perspectiva as
dinâmicas tecidas dentro dos grupos de cristãos-novos e suas estratégias para
persistirem frente a uma sociedade que não lhes era favorável. O trabalho de Júnia
30
KAGAN, Richard L.; MORGAN, Philip D. Atlantic Diasporas: Jews, Conversos and Crypto-Jews
in the Age of Mercantilism, 1500-1800. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2008.
31
ALMEIDA, A. A. Marques de. Capitais e Capitalistas no Comércio da Especiaria. O Eixo LisboaAntuérpia (1501-1549). Aproximação a um estudo de Geofinança. Lisboa: Cosmos, 1993.
32
Oceanos: os judeus e os descobrimentos portugueses. Diáspora e expansão. Portugal: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, 128p.
33
Também publicado pela Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste.
34
NOGUEIRA, Antônio de Vasconcelos. The Portuguese Jews and Modern Capitalism: trading,
insurance, banking, business, and Economic Thougth in Amsterdam from earlier 16 th to the first
decades of 20th centuries. Acesso <www.egi.ua.pt/XXIIaphes/artigos/Nogueira.pdf>
23
Ferreira Furtado, Homens de Negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas
Minas Setecentistas35, embora não trate essencialmente do cristão-novo como objeto de
estudo, esquadrinha o lugar do converso comerciante para além da economia
mineradora do século XVIII. Intimamente ligado à prática comercial, o cristão-novo é
colocado como um dos protagonistas na rota da interiorização dos interesses
metropolitanos, como também da diversificação da economia colonial, sendo agente
essencial para o abastecimento do território mineiro e dos sertões até a Bahia.
É neste trabalho de Júnia Ferreira Furtado, provavelmente, que podemos
contemplar uma menção mais aprofundada de Diogo Nunes Henriques enquanto agente
mercantil. A análise documental feita pela historiadora, tendo como base principal seu
inventário realizado pelo Santo Ofício36, mapeia o cristão-novo dentro do circulo
comercial mineiro, identificando-o enquanto mercador volante que comercializou gado
de açougue adquirido nos currais da Bahia, revendendo-o em Vila Rica e regiões
próximas37. Contudo, atentando ao recorte espacial de sua pesquisa, a historiadora não
explora muito sobre a vida de Diogo, nem sobre sua vida mercantil em Portugal. Uma
documentação levantada no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB) indicou que
Diogo Nunes Henriques foi proprietário de uma roça média na vila de Cachoeira38,
sendo ele, além de comerciante, também criador de gado vacum em sua propriedade,
vivendo também do comércio de couro, tabaco e mandioca com ajuda do lavrador e seu
procurador Antônio Rodrigues de Campos39, um cristão-novo filho de seu companheiro
comercial em Castela, Francisco Nunes Romano.
Os trabalhos de Júnia Ferreira Furtado são os únicos localizados até então que
resgatam parte da trajetória de Henriques e de alguns companheiros mercantis. É certo
que o nosso trabalho mantém um dialógo em diversas partes com o trabalho da
historiadora. Desta forma, o trabalho aqui apresentado primou por aprofundar a
discussão destas relações parentais e econômicas, além de apresentar um recorte
35
FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de Negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas
Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006.
36
Júnia Ferreira Furtado se dedicou ao cruzamento de dados a partir dos inventários de cristãos-novos
presos no Brasil copilado por Anita Novinsky no trabalho Inquisição: inventário dos bens confiscados
a cristãos-novos. Fontes de pesquisa para a história de Portugal e do Brasil.
37
FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de Negócio, p. 237.
38
APEB/Escrituras do Judiciário, ID 53186: Compra e Venda (1710), Lv. 24, P. 84v. Interessado: José
Cardoso; Parte: Diogo Nunes Henriques.
39
ANTT/TSO-IL, nº 02139, processo de Antônio Rodrigues de Campos.
24
espacial maior pela compreensão das relações econômicas de Diogo Nunes Henriques e
de suas passagens pelas praças de Portugal, Castela e América Portuguesa.
Os resultados desta pesquisa dividem-se da maneira que será exposta a seguir.
Não pretendendo restringir a uma narrativa sequencial, o capítulo primeiro intitulado
Diogo Nunes Henriques: religião e estratégias de sobrevivência no Império
Português introduz nosso personagem principal a partir das denúncias feitas contra o
mesmo na capitania das Minas Gerais, em 1722. É uma narrativa que segue pelo eixo
das relações entre centro e periferia, puxando o fio, em um primeiro momento, para a
análise da engrenagem inquisitorial e sua relação com os cristãos-novos. Por meio da
diligência contra Diogo, redigida em Vila Rica pelos agentes da vigararia local, é
possível demonstrar os mecanismos de ação do Santo Ofício e sua relação com as
estruturas eclesiásticas no território colonial, dando uma pequena dimensão das ligações
entre o oficialato episcopal e sua contribuição para o fortalecimento da presença
inquisitorial na América portuguesa. Da mesma forma, com a necessidade de elucidar as
principais questões que giram em torno dos objetivos inquisitoriais e seus reflexos nas
esferas sociais do Antigo Regime, neste capítulo também se problematiza a escalada da
perseguição judaica em Portugal, que culminou no batismo forçado dos judeus
residentes no território e impulsionou a criação de um legítimo Tribunal de Fé. Com o
palco social e político construído, procura-se então fornecer as primeiras pistas para a
montagem do personagem principal; focaliza sua trajetória e a dinâmica familiar em
Portugal, a constituição de novos agregados, a mobilidade de seus parentes pelo
território, as relações com a religiosidade e as estratégias da sobrevivência familiar.
Atento às propostas metodológicas do ofício do historiador, elucidamos as principais
dificuldades advindas da leitura processual e da atribuição de parentescos. Buscamos
também apresentar a migração como uma estratégia não só para fugir das malhas
inquisitoriais, como é amplamente colocado, mas também como estratégia de
manutenção financeira.
O segundo capítulo Negócios pelos caminhos segue os rastros de Diogo Nunes
Henriques enquanto mercador volante e posteriormente como um distinto homem de
negócio e contratador. Em um primeiro momento, pretende situar os cristãos-novos no
contexto político-econômico do Império português, como se organizaram e as
similitudes desta organização com as diversas esferas sociais do Antigo Regime
português. Passa-se então ao cruzamento da trajetória de Henriques com outras
25
trajetórias individuais. Primeiro, com o médico Francisco Nunes de Miranda, visando
demonstrar como ambos decidiram deixar Portugal, embarcando para o Brasil. Foram
os descendentes do médico Miranda os grandes aliados e parceiros comerciais de
Henriques pelos circuitos entre Bahia e Minas. Dá-se então um panorama geral dos
sertões baianos no momento dos achados auríferos em Minas, no qual se inserem Diogo
e os demais agentes. Buscou-se compreender suas relações e como construíram seu
espaço e as suas atividades no território, até que culminasse na ida de Diogo para as
Minas, que, após um tempo, arrematou o contrato dos dízimos da comarca de Vila Rica.
O terceiro e último capítulo A última peça: o compasso inquisitorial é uma
montagem descritiva e analítica da última fase da trajetória do cristão-novo, que foi a
própria ação do Santo Ofício e seus desdobramentos. Trata-se de um tópico que deseja
demonstrar, em um primeiro momento, como, com o fim dos contratos nas Minas, o
Santo Ofício passou a prender e perseguir os aliados comerciais de Henriques, até que
finalmente batesse em sua porta. Depois, deseja demonstrar como foram construídas as
narrativas do trabalho à partir das diligências de outros cristãos-novos, para então passar
para a análise única do processo de Diogo Nunes Henriques. Busca-se compreender e
descrever o momento de sua prisão, o que ofereceu com suas confissões, as
considerações e o julgamento dos inquisidores licenciados que tomaram partido de seu
processo. Após receber as penas no auto-da-fé, seu rastro evanesce junto com o de seu
filho, e também dos seus compadres que foram igualmente presos e sentenciados.
As Considerações Finais entram como um último cuidado no intuito de reunir
uma discussão sobre as principais questões que podem ser absorvidas através do estudo
da trajetória de Diogo Nunes Henriques. Com um trabalho edificado entre as conexões
estabelecidas das sociabilidades, da política e do comércio, além de contar com fontes
pouco fluídas, embebidas em condições de produção que sobrepõe a voz do inquisidor
sobre a do réu, o resultado não poderia deixar de ser bastante descritivo. O compasso do
trabalho toma, muitas vezes, caminhos sinuosos, gerando um emaranhado de
informações que ganham forma ao perseguir o contexto da decadência imperial e das
ações inquisitoriais, que competem e se transformam com a riqueza aurífera encontrada
em terras brasílicas e a crescente necessidade de controle do precioso território. Diogo
Nunes Henriques não foi apenas um ator histórico autônomo, mas também testemunha
de importantes reveses. Por isso, buscamos, sobretudo, reconstruir um cotidiano nos
detalhes que puderam ser remontados, a partir de uma reflexão historiográfica.
26
CAPÍTULO I
DIOGO NUNES HENRIQUES: RELIGIÃO E ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA
NO IMPÉRIO PORTUGUÊS.
“Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a
liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com
brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom
saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e,
contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É
esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas”?
Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov
O VIGÁRIO, O COMISSÁRIO E UMA DENÚNCIA QUE VEIO DAS MINAS
Vila Rica, 22 de junho de 1722. O cônego e terceiro Mestre Escola Antônio de
Pina aproximava-se de completar dois anos como vigário da vara na Comarca mineira.
Reinol, natural da cidade de Portimão, Antônio de Pina era sacerdote do Hábito de São
Pedro e entrara para o cabido do Rio de Janeiro como cônego de meia prebenda em
1687, passando a prebenda inteira40 em 1699 (CRUZ, 2009). A partir do ano de 1714,
passou a visitar várias igrejas do Recôncavo Fluminense e das Minas, como cônego
capitular (RODRIGUES, 2012). Fixou sua residência em Vila Rica no ano de 1719,
servindo na ocupação de pároco da Matriz de Nossa Senhora da Conceição41.
Na verdade, começou a paroquiar em 171842, provavelmente em Nossa Senhora
do Serro Frio (RODRIGUES, 2012). Foi promovido à dignidade de Mestre Escola na Sé
do Rio de Janeiro em 1720, e continuou servindo como pároco na vigararia
encomendada da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. Antônio de Pina
40
Prebenda era o rendimento eclesiástico da carreira do canonicato. A meia prebenda é metade do valor
da prebenda inteira. Os cônegos de meia prebenda e prebenda inteira participavam da Mesa Capitular e
tinham direito a voto nas reuniões do Cabido.
41
APM/AVC: Cx.01, Doc. 04. A documentação contém atestados de residência como pároco em Vila
Rica, bem como sua nomeação como vigário da Vara, emitida pelo Bispado do Rio de Janeiro. O exvigário da vara Lucas Ribeiro, em 1723, atesta em correspondência que “o Licenciado Antônio de Pina
residiu sem interpolação alguma a ocupação de pároco na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição
um ano completo, que principiou em 29 de junho do ano de 1719, dia de São Pedro, ao dia 29 do mesmo
mês do ano de 1720 [...] em que no sobredito ano me sucedeu e lhe dei posse, assim de pároco, como
vigário da Vara que de ambas ocupações atualmente está exercendo”.
42
Ibidem. Na mesma carta, o padre Lucas Ribeiro informa que “o dito reverendo Mestre Escola já servia
na mesma ocupação de pároco no ano antecedente de 1718”.
27
construiu sua carreira eclesiástica na contramão das disposições do oficialato episcopal:
ascendeu primeiramente através das prebendas, para depois buscar um posto paroquial e
atuar nas vigararias (RODRIGUES, 2012). E almejava algo mais destacado,
principalmente em território mineiro.
Quando se aproximava o término da provisão do padre Lucas Ribeiro – então
vigário da vara de Vila Rica – Antônio de Pina apresentou ao Bispado do Rio de Janeiro
uma solicitação requerendo a ocupação do cargo que em breve estaria vago. Com a
autorização do bispo D. Frei Francisco de São Jerônimo, o pedido foi aceito e
devidamente acatado pelo padre Lucas, no dia 29 de junho de 1720, e Antônio de Pina
se tornou vigário da vara na Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica do Ouro
Preto, com provisão válida por um ano, e continuou também como pároco na mesma
Matriz, recebendo, inclusive, sua côngrua.
Com a morte do bispo do Rio de Janeiro, em março de 1721, a sede vacante
renovou a provisão do vigário, em dezesseis de abril do mesmo ano. A Mesa Capitular
da Sé determinou que Antônio de Pina servisse “a esta ocupação por todo o tempo da
sede vacante”43 – que só voltaria a ter um bispo em 1725, com a nomeação de D. Frei
Antônio de Guadalupe.
Segundo o Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia de
1707, o vigário da vara era um funcionário da justiça eclesiástica, subordinado à
vigararia geral da diocese, sendo a ele imputada a responsabilidade de representar os
interesses do bispado nas sedes das comarcas eclesiásticas mais distantes44. Apesar de
ser o funcionário da instância mais inferior do oficialato episcopal (BORGES, 2013),
era a maior autoridade eclesiástica dentro das comarcas das dioceses. E dentro de suas
competências, estava a de receber as denúncias de sua comarca, que deveriam remetidas
ao vigário-geral (PIRES apud BORGES, 2013), que, para o caso, se tratava de Gaspar
Gonçalves de Araújo, vigário geral do Rio de Janeiro habilitado no Santo Ofício
(RODRIGUES, 2012: 207).
De acordo com Aldair Carlos Rodrigues (2012), as vigararias da vara faziam
parte de um esforço coordenado para a montagem de uma cadeia de comunicação entre
as regiões mais distantes e periféricas com os centros diocesanos, cujos pontos de
43
44
Ibidem.
Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia, Tit. IX, §399.
28
contato se articulavam entre paróquia – vigararias da vara – e vigararia geral. Pela
forma de dispersão de sua jurisdição no território colonial, o poder episcopal no século
XVIII era de grande serventia ao Santo Ofício, que mesmo com a ausência de um
Tribunal da Fé na América portuguesa, se fez presente não só por meio das Visitações e
pela rede de agentes do oficialato inquisitorial, mas também por meio de uma malha
colaborativa entre o aparato eclesiástico colonial e o Tribunal de Lisboa. Bruno Feitler
(2007) aponta que em um primeiro momento, quando o número de agentes inquisitoriais
na América portuguesa ainda era consideravelmente fraco, o Santo Ofício escolheu se
corresponder com os eclesiásticos seculares locais e com clérigos regulares,
principalmente os jesuítas. Desta forma, gerou-se uma “corrente de transmissão” de
denúncias entre os agentes eclesiásticos e inquisitoriais, sintonizando as duas esferas em
um universo colaborativo que perduraria até o século XIX (RODRIGUES, 2009: 46).
Voltando ao ponto de partida, no dia vinte e dois de junho de 1722, o então
vigário da vara Antônio de Pina foi procurado por um vassalo chamado Leonardo
Barbosa Vieira. Cristão devoto, Leonardo se identificou como sendo um homem
“temente as censuras da Igreja”45 e queria denunciar ao vigário um estranho ocorrido
que não tinha presenciado, mas sim ouvido outra pessoa dizer. Relatou então:
[...] ter ouvido uma palavra mal soante contra a nossa santa fé católica
o que fiz com todo o segredo dizendo que achando-me em uma
ocasião em casa de Manoel dos Santos morador desta vila comigo
também Sebastião Pereira Cardoso e Ignácio Fernandes da Silva
ouvimos dizer a Manoel Barbosa Couto que ele tinha ouvido dizer a
Diogo Nunes Henriques estando em sua casa que é em uma roça deste
campo que cada um poderia, ou podia viver em a Lei que lhe
parecesse, palavras que dizia a Francisco Nunes com o qual estava
falando sobre esta ou aquela lei, o que ele depoente por ser livre da
censura depôs o relatado e prometeu todo o segredo debaixo do
juramento em fé e do que se assina. 46
Leonardo entregou o depoimento escrito em sua própria letra e sinal. Ao que
tudo indica, tratava-se uma suspeita de proposição herética, declaração que indicava
uma concepção equivocada sobre a fé, portanto, pecaminosa (SCHWARTZ, 2009: 38).
Pelo que se sucedeu a posteriori, a análise documental sugere que o vigário da vara
julgou o relato como grave, pois remeteu a denúncia diretamente ao licenciado
Lourenço de Valadares Vieira, empenhadíssimo comissário do Santo Ofício e cônego da
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques: “Denunciação contra Diogo Nunes
Henriques morador nas Minas”.
46
Ibidem.
45
29
Sé do Rio de Janeiro, e não a vigararia geral da diocese, como versava o protocolo. A
resposta do comissário foi rápida. Em certidão emitida no dia dezessete de julho de
1722, Lourenço de Valadares Vieira autorizou a diligência, que seria realizada no
próprio auditório eclesiástico de Vila Rica por Antônio de Pina, juntamente com o
escrivão da vigararia e dois sacerdotes “de boa vida e costumes”47 a serem escolhidos
pelo vigário. No mesmo documento enviou instruções detalhadas sobre como deveria
ser o procedimento e os pontos que deveriam ser esclarecidos na inquirição:
[...] mandará vossa mercê vir perante si a Manoel Barbosa Couto
testemunha referida pelo denunciante [...]. E assim a esta testemunha
como as mais em que se referiu principalmente as que ouvissem as
ditas palavras ao dito denunciado lhes perguntaram vossa mercê na
maneira seguinte:
[1] Primeiramente, se sabe ou conhece ao denunciado Diogo Nunes
Henriques de que terra seja natural, que modo tem de vida, se é casado
ou solteiro, e em que praça mora nessas Minas. = [2] Perguntará mais
se com verdade lhe ouvira a má soante palavra conhecida no termo da
denunciação, e que propósito ou conversação era a em que estavam no
tempo em que disse, [3] ou se quando a disse estava em seu perfeito
juízo, ou pelo contrário, se estava tomado de vinho, ou de alguma
paixão que lhe perturbasse o entendimento, [4] e ultimamente
perguntará vossa mercê se o dito denunciado é temente a Deus
observante da Santa Fé Católica ou se é frequente em proferir
semelhantes palavras e se consta que fora depois de as dizer advertido
e repreendido por algumas pessoas mais católicas. –
I-lo tudo mandará vossa mercê fazer [...], e no primeiro inquirirá
também a adição sobre a Reputação do Sangue do denunciado Diogo
Nunes Henriques.48 49
Além de padre, mestre escola, Visitador, Vigário da matriz e Vigário da vara,
Antônio de Pina ganharia mais uma atribuição: a de Comissário eleito, por designação
do próprio Lourenço de Valadares. Em atenção à hierarquia inquisitorial, tal função não
integrava o quadro oficial do comissariado, tratando-se de um ofício informal, de caráter
extraordinário, e significava que Antônio de Pina assumiria virtualmente a incumbência
que teria um comissário para inquirir as testemunhas. Por regra, o Regimento do Santo
Ofício era claro sobre a função de um comissário:
Farão pessoalmente as diligências, que lhes forem cometidas, e nunca
as poderão cometer a outro. No caso de terem justa causa ou legítimo
impedimento para não as fazerem, darão conta na Mesa, ou para as
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques: “Translado da denunciação”.
Ibidem.
49
Para melhor identificação, as perguntas foram numeradas.
47
48
30
escusar [...] ou para lhes ordenar as cumpram sem embargo das razões
que alegarem.50
Em razão da morosidade implicada pelas distâncias ultramarinas, os inquisidores
criaram mecanismos simplificados para contornar tais impasses. Na prática, Lourenço
de Valadares Vieira se valia de um privilégio concedido pelos inquisidores aos seus
comissários: o de assentir terceiros – que integrassem a malha eclesiástica ou
inquisitorial – a assumir temporariamente seus poderes de inquiridor judiciário, quando
não houvesse funcionários inquisitoriais disponíveis no território onde seria promovida
a averiguação e na impossibilidade do próprio comissário se deslocar até o local
(FEITLER, 2007: 149).
A prerrogativa não era geral a todos os comissários do território colonial, sendo
concedida a partir da realidade local a qual os funcionários inquisitoriais atendiam.
Tratava-se de uma flexibilidade do Santo Ofício, entendida como necessária para os
casos percebidos pela comissão como merecedores de maior atenção (FEITLER, 2007:
150). Desta forma, o comissário local, impedido de tratar pessoalmente da investigação,
poderia confiar a missão a outrem, adiantando os procedimentos de averiguação para
remeter com mais agilidade a possível denúncia para Lisboa.
Para o caso específico de Minas, nas duas primeiras décadas do século XVIII as
informações sobre o funcionamento inquisitorial são parcas. Com a proibição da
instalação das Ordens Regulares e estando ainda sob jurisdição do Bispado do Rio de
Janeiro, o panorama que se tem da dinâmica inquisitorial no território minerador para o
período ainda é tímido, sendo consensual apenas a dependência do comissariado do
Santo Ofício aos agentes das comarcas eclesiásticas e de um pequeno crescimento no
quadro dos Familiares51. Além da possível falta de opções no escopo inquisitorial
mineiro, Lourenço de Valadares Vieira certamente optou por continuar o andamento das
averiguações sob a responsabilidade do mesmo agente da justiça eclesiástica.
É relevante reforçar que ao confiar a responsabilidade da investigação ao vigário
da vara, Lourenço de Valadares incorria em risco de não obter um trabalho satisfatório,
Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal (1640), Liv. I Tít. XI: “Dos
comissários e Escrivães do seu Cargo”, §2.
51
De acordo com Aldair Carlos Rodrigues (2009: 138), em Minas para o período de 1721-25, o número
de Familiares habilitados em Minas era apenas 4. Para o período de 1726-30, subiu para 18. O número é
bastante tímido se comparado no mesmo período para as regiões da Bahia e Rio de Janeiro. Um
crescimento mais significativo é verificado a partir de 1730.
50
31
uma vez que, a priori, Antônio de Pina desconhecia a jurisdição inquisitorial. Era,
portanto, igualmente de sua responsabilidade garantir que a diligência fosse feita com o
maior zelo e ao estilo do Santo Ofício. Por esta razão o comissário preparou
pessoalmente as instruções que deveriam ser seguidas por Antônio de Pina “na forma
referida e com as circunstancias declaradas”52.
E depois de estar feito o Sumário na forma declarada entrará vossa
mercê, saindo o denunciado compreendido a fazer ratificação dos
depoimentos das testemunhas, o qual [deve] sempre ser no mesmo
Sumário, para a qual falará vossa mercê a dois Sacerdotes de boa vida
e costumes, e perante eles com o escrivão do mesmo Sumário
tornaram a mandar vir perante si as mesmas testemunhas. Cada uma
por sua vez em lugar oculto e honesto e em presença dos ditos
Sacerdotes lhes lerá o seu próprio juramento perguntando-lhe se é o
mesmo que juraram ou se tem que acrescentar ou diminuir, e dizendo
a dita testemunha que nada tem que diminuir ou acrescentar no dito
seu juramento, e que só se conforma com o que dito tem mandaram
vossa mercê escrever na forma seguinte e abaixo do termo que tiver o
escrivão feito na entrada da testemunha e sendo-lhe lido o seu
testemunho disse que estava escrito na verdade e nela se afirmava,
ratificava, e tornava a dizer de novo se era necessário de que nele não
tinha que acrescentar, diminuir, mudar ou emendar, nem ao costume
que dizer de novo sob cargo do qual juramento dos Santos Evangelhos
que outra vez lhe foi dado ao que estiveram presentes por honestas, e
religiosas pessoas, que tudo viram e ouviram e prometeram dizer a
verdade no que lhe fosse perguntados sob cargo do juramento dos
Santos Evangelhos que foi dado também aos mesmos Padres
confrontados. E assim feito, assinaram-se os ditos Padres, e vossa
mercê, e testemunha.
Com eles, e continua o escrivão, dizendo, e eu X que o escrevi.
E ida para fora a testemunha, continuará o escrivão escrevendo o que
vossa mercê disser sobre a inquirição que há de fazer aos mesmos
Padres perguntando-lhe se entende que aquela testemunha é de crédito
e verdade ou se o merece pela sua boa vida e procedimento do que
disseram concluirá o escrivão expressando tudo, e no fim declarará
nesta forma. E se assinará os ditos padres com o Reverendo Senhor
Comissário eleito que eu X escrivão escrevi. X o Cônego Antônio de
Pina o Padre X e o Padre X. 53
Não deixa de ser notável a preocupação do comissário fluminense em remeter
informações precisas ao vigário da vara sobre os procedimentos. É evidente que um e
outro tinham interesses em uma investigação bem sucedida. Os ganhos serviriam a
ambos, mas principalmente ao vigário da vara. Lourenço de Valadares apenas concluiria
mais uma inquirição sem transtornos enquanto Antônio de Pina embolsaria mais um
52
53
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques: “Translado da denunciação”.
Ibidem.
32
voto de confiança do oficialato inquisitorial, podendo ser solicitado novamente ao cargo
circunstancial ou ainda utilizar desta confiança como reforço positivo caso viesse a
postular para o cargo fixo de comissário. Dentro da própria hierarquia eclesiástica,
servir ao Santo Ofício era uma forma de prestígio e ascensão aos cargos superiores.
Os procedimentos da investigação foram iniciados no dia vinte e dois de agosto
de 1722, exatos dois meses depois de Leonardo Barbosa Vieira ter procurado o vigário
para denunciar Diogo Nunes Henriques, sendo então novamente chamado para ratificar
sua denúncia. E conforme ordenado, Antônio de Pina chamou para a diligência Manuel
Barbosa Couto, com a dupla intenção de interrogá-lo por ter sido citado por Leonardo
como testemunha ocular do tal crime de proposição e inquiri-lo de acordo com as
perguntas do sumário.
Natural da freguesia de Santiago de Couto, termo de Guimarães, em Portugal,
Manuel Barbosa Couto era casado e residia em Vila Rica, local em que tinha uma
fazenda e uma loja. Para a primeira pergunta, a testemunha alegou ter visitado com
frequência a fazenda de Diogo Nunes Henriques pelo período aproximado de um ano e
meio, o ajudando a administrar seus escravos. Relatou que Diogo Nunes Henriques era:
[...] homem tido havido por cristão-novo a cuja casa costumavam vir
por amizade em que se detinham nele três e quatro meses, David
Mendes, um sobrinho do dito Diogo Nunes Henriques por nome
Domingos Nunes, Domingos Rodrigues Ramires, João da Cruz, David
de Miranda, Francisco Nunes, Duarte Rodrigues, Manoel Nunes da
Paz filho do dito, Manuel Nunes Sanches, que todos na casa sobredita
vinham a suas galhofas como também a casa uns de outros por serem
vizinhos nas roças que tem no dito campo termo desta vila. E disse ele
testemunha serem todos os acima nomeados tidos e havidos por
cristãos-novos e que algum destes tinham já sido penitenciados pelo
Santo Ofício [...]. E como se disse que como estes ajuntamentos,
algumas vezes falaram sobre leis e que estava presente ele testemunha
que o dito Diogo Nunes Henriques dissera que cada um poderia, ou
podia viver e morrer na lei que melhor lhe parecesse, o que disse
como [por modo] de argumento com os mais dos nomeados acima que
presentes se achavam. 54
Sobre a fé, disse que:
[...] o observara enquanto em sua companhia estivera, e não viu rezar,
possuir contas, nem fazer outra ação alguma católica [...], nem haver
54
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques: Sumário a partir do fólio n. 9.
33
costume de ensinarem os negros a doutrina cristã de manhã ou de
noite como se faz em muitas roças e é costume e que alguns dias [...]
fora ouvir missa a sua paróquia porém sem contas de rezar nem ainda
se ia a desobrigar-se da Quaresma, e finalmente que nunca lhe vira
contas de rezar. 55
Indicou ao comissário eleito que “Francisco “o cocho”, alfaiate, poderá
testemunhar o referido, por assistente na casa”56. Para a pergunta sobre o juízo de
Henriques, a testemunha disse que:
[...] em todo o tempo de ano e mais nunca [vira] nele coisa alguma
que parecesse ter perdido o juízo, por não ser homem de vinho [...]
antes sim dado a ler livros, mais continuadamente se lia “Eva e
Ave”.57
O livro mencionado, Eva, e Ave, ou Maria triumphante: Theatro da erudiçam, e
Filosofia Christaã58, de autoria de Antônio de Sousa Macedo, um fidalgo da Casa Real
e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, era constante nas prateleiras dos
livreiros da América portuguesa e também nas bibliotecas familiares em Minas. O livro,
que se divide em dois tomos, trata de reflexões do autor sobre a história de Maria, ou
Imaculada Conceição e as diversas vivências da Virgem: sua concepção, ascendência e
a vida ao lado de Jesus Cristo, sua morte, ressureição e a coroação como Rainha dos
Céus59. É um relato da vida de Cristo, mas pela perspectiva de Maria e de seus
mistérios, de acordo com a Igreja Católica.
Em análise das práticas de leitura em Minas Gerais no século XVIII, Luiz Carlos
Villalta (1999) nos aponta o hábito da leitura inventiva dos textos sagrados, que esteve
intimamente ligada à heresia. De acordo com o mesmo, “a heresia teve, como um de
seus passaportes, a inventividade dos leitores no contato com os textos sagrados”
(VILLALTA, 1999: 319). Baseando-se neste princípio, o próprio Villalta cita o caso de
Diogo Nunes Henriques como um caso de leitor inventivo.
Em Ouro Preto, nos idos de 1722, várias pessoas reuniam-se com
Diogo Henrique para ouvi-lo ler o livro Eva e Ave, de Antônio de
55
Ibidem.
Ibidem.
57
Ibidem.
58
O nome completo da obra é: Eva, e Ave, ou Maria triumphante: Theatro da erudiçam, e Filosofia
Christa. Em que se representão os dous estados do mundo: Cahido em Eva, e Levantado em Ave.
Atualmente disponível em domínio público, digitalizado e distribuído pelo Google Books.
59
Cf. FARIAS, José Jacinto Ferreira de. O encanto amoroso da Verdade. Um contributo para a história
da Mariologia em Portugal. In: Didaskalia, Revista da Faculdade de Teologia da Universidade
Católica de Lisboa. 2007, XXXVII, pp 327-335.
56
34
Souza de Macedo – autor que, como se verificou [...], era um dos mais
presentes nas bibliotecas de Mariana –, e falar sobre as vidas dos
santos, ao que tudo indica, colocando-os em dúvida (VILLALTA,
1999: 332).
A leitura do livro provavelmente levaria Henriques a uma crítica ao próprio
texto e o incentivava à exposição de suas ideias, que fazia então em companhia de
outros cristãos-novos que se reuniam em sua casa onde se punham a discutir sobre leis.
Como Domenico Scandela, o moleiro de Ginzburg, o acesso aos livros produzidos pela
cultura letrada possibilitou ao leitor a adaptação de suas leituras a sua vivência
cotidiana. A origem da proposição feita por Henriques, pode, por um lado, ter sido
impulsionada por sua prática de leitura de diversos textos, e por outro, por sua
“descristianização interior”, interpretação sugerida por Anita Novinsky (apud
VILLALTA, 1999: 111). Contudo, é dessa história apologética esquemática sugerida
por Novinsky – o esvaziamento da religiosidade católica em detrimento da memória e
do sentimento judaico – que devemos nos acautelar. Em ambas as religiões o
distanciamento crítico e o requestionamento das tradições são situações possíveis
(WACHTEL, 2009: 15). Porém, no contexto inquisitorial, tal dessemelhança não está
no esvaziamento religioso, mas sim na questão da categorização social. Um cristãonovo é naturalmente suspeito de heresia, como clarifica Stuart Schwartz:
Se um cristão-novo dissesse uma blasfêmia, muito provavelmente
seria processado pela Inquisição sob a acusação de ser judeu em
segredo, ao passo que um cristão-velho que dissesse a mesma coisa
provavelmente seria simplesmente advertido pela autoridade
episcopal. Não era o delito e sim a origem do réu que determinava
como e quão severamente ele seria punido (SCHWARTZ, 2009: 151).
Para o caso, não há material suficiente para sustentar a relação de Henriques
com uma possível descristianização em detrimento de um judaísmo. Se Diogo Nunes
Henriques judaizou, tal elemento permanece insondável a partir da sua confissão ao
Santo Ofício. Nesse caso, é necessário compreender o campo hipotético das confissões
no que tange a questão da religiosidade do réu. Mas há espaço sim para deduzir que as
atividades críticas e requestionamento são correntes devido ao esvaziamento do
catolicismo ideal pretendido pela Igreja – principalmente após o Concílio de Trento, em
1564 –, situação igualmente observada dentro do expediente crítico do protestantismo.
Volta-se, portanto, para a ideia inicial demonstrada por Luiz Carlos Villalta, sobre o
estímulo às abstrações a partir da leitura inventiva dos livros em circulação.
35
Antes de ratificar seu testemunho, Manuel ainda relatou um estranho episódio
que elucidava aos padres ali presentes a negligência de Henriques no que tangia o
ensino de seus escravos. Disse então que:
[...] se lembrou mais de que as mais das noites Ignácia preta escrava
do denunciado Diogo Nunes Henriques, de nação da costa da Mina
quando ensinava a doutrina cristã a umas mulatinhas suas filhas,
castigava o dito denunciado a dita negra, dando-a ao diabo [...].60
É interessante observar como o Diabo foi elemento medular para justificar e
explicar as mais diversas vivências do indivíduo desta época. Jean Delumeau (2009)
elucida tal comportamento como a necessidade de justificar o mal por meio de uma
figura sobrenatural e entidade causadora de todos os malefícios no cotidiano das
sociedades, então encarnada no Diabo, ou Satã. O medo do Diabo é o medo da
corrupção da alma humana, cuja salvação só poderia ser conduzida através da fé em
Jesus Cristo e, consequentemente, nos preceitos da Igreja Católica. Tal lógica,
identificada por Delumeau como “pedagogia do medo”, se tratava de uma política
cultural ao serviço da cooptação dos fiéis para o catolicismo, ao mesmo tempo que era
uma política mantenedora dos costumes e da ordem vigente.
A segunda testemunha chamada pelo comissário foi Manuel dos Santos Rocha,
oficial de ourives, natural de Barcelos, e morador em Vila Rica. Foi uma inquirição
rápida, Manuel não tinha muitas informações a dar ao comissário eleito, apenas que
tinha ouvido dizer que o Diogo Nunes Henriques era então cristão-novo, indicando que
a fama do converso já era conhecida no local. Ao mesmo tempo indica também que,
apesar de sua fama, nem todos os vassalos reconheciam no cristão-novo algum tipo de
comportamento suspeitoso.
Ao segundo disse que não sabia que ouvisse dizer pessoa alguma
palavra que fosse contra nossa santa Lei, e quanto a Diogo Nunes
Henriques que bem poderia Manuel Barbosa Couto dizer que o dito
Diogo Nunes Henriques proferira que cada hum podia viver na lei que
lhe parecesse, mas que ele testemunha nunca fizera refleção (sic)
nisso.
E do terceiro, quarto e quinto artigo digo, e quinto interrogatórios,
disse ele testemunha que não sabia da vida e costumes do dito Diogo
Nunes Henriques, por não ter dele conhecimento, mais do que ouviu
60
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques: Sumário a partir do fólio n. 9.
36
dizer, que o dito Diogo Nunes Henriques era cristão-novo. E não disse
ao costume nada. 61
A terceira testemunha convocada a prestar seu depoimento foi o alfaiate
Francisco da Costa Castilla, “o cocho” de alcunha, mencionado por Manoel Barbosa
Couto, primeira testemunha. Natural da cidade do Porto e morador em Cachoeira, do
termo de Vila Rica, o alfaiate relatou o seguinte:
Ao segundo disse que não tinha ouvido palavra alguma dissonante a
nossa santa lei e perguntando se conhecia a Diogo Nunes Henriques, e
se lhe tinha ouvido dizer que cada um podia viver e se podia salvar na
lei que quisesse ou lhe parecesse, disse que o não ouvira dizer essa
palavra que muitas vezes ele comera a mesa com o dito Diogo Nunes,
e muitos parentes e amigos do dito se tratavam por tais, mas que
nunca fizera reparo na sua palavra nem lhe parecia que em sua
presença tal dissera.
E perguntado pelos mais capítulos que lhe foram declarados, disse que
algumas vezes viu o ir a missa o dito Diogo Nunes Henriques [...] mas
que nunca lhe vira rosário de contas nas mãos em [decurso] de nove
meses, e onze dias que assistia em sua casa e que o via desobrigado
preceito da quaresma e mandava fazer o mesmo aos seus escravos e
que quando se ajuntavam os parentes e amigos como David de
Miranda, João da Cruz, irmão do dito David de Miranda, Francisco
Nunes de Miranda, Pedro de Miranda e outros mais em casa do dito
Diogo Nunes Henriques, falavam em vidas de santos e danou-se muito
ler o Livro de “Eva e Ave”; e que muitas vezes observara ele
testemunha que o dito Diogo Nunes Henriques quando por cansado,
ou com alguma aflição dava alguns “ais” nomeando a Deus e Senhor,
mas nunca proferindo o nome de Jesus. E não disse do costume nada
[...]. 62
O alfaiate foi então o último a testemunhar. De conteúdo ambíguo, a diligência
se concluiu em sete folhas com quatorze laudas escritas, sendo encerrada no dia dez de
novembro de 1724, mais de dois anos depois de ser iniciada. Antônio de Pina alegou
dificuldades de se deslocar pelas outras vilas para colher os testemunhos. Na última
lauda, dá o seu parecer final:
Não tenho cabal conhecimento das testemunhas que nesta declaração
juram; e só sim me parece falar verdade por cristãos-velhos, por tidos
e havidos por tais, como os padres ratificantes o afirmam por fama e
como o denunciado ser tido e havido por cristão-novo e a sua volta e
moradia seja abrigo de outros de sua fama, e já penitenciados pelo
61
62
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques: Sumário a partir do fólio n. 9.
Ibidem.
37
Santo Ofício e no que dão motivo a presumir-se mal em se juntarem
nesta casa e terem muitos já roças e casas nesta vizinhança e freguesia
da Cachoeira e Santo Antônio do Campo e por terem grandes
negócios e metidos nos contratos reais se fazem suspeitosos. É o que
tenho ouvido e posso informar.63
O vigário encerra então seu período enquanto comissário eleito. O seu parecer
indica que havia deixado de lado o crime de proposição em favor dos vestígios de
judaísmo que surgiram ao longo da diligência. Entendera que a reputação de cristãonovo de Diogo fazia o mesmo pecar em sua oralidade quando lia seus textos e emitia
suas ideias, que pareciam ter grande receptividade entre os cristãos-novos que
frequentavam sua casa, já que nenhuma das testemunhas mencionou alguma advertência
contra Henriques.
Enviou o sumário para o Bispado do Rio de Janeiro e continuou no cargo de
vigário da vara até 1725, quando o D. Frei de Guadalupe assumiu a sede então vacante,
para o qual o designaria novamente para realizar Visitações pelo território minerador,
até voltar finalmente para o Rio de Janeiro, onde exerceu as obrigações relativas ao seu
cargo de terceiro mestre escola, até falecer, em 1742 (RODRIGUES, 2012: 105). Ao
que tudo indica Antônio de Pina nunca se ligou oficialmente ao Tribunal do Santo
Ofício, nem ascendeu a outros postos eclesiásticos64. A sua denúncia foi então remetida
ao Santo Ofício pelo Bispado do Rio de Janeiro, mas o tal Diogo Nunes Henriques e
seus companheiros não foram importunados tão rapidamente quanto talvez quisesse o
vigário.
O DESTINO DOS HERESIARCAS
A imagem delineada por Antônio de Pina em relação a Diogo Nunes Henriques
foi a de um cristão-novo que estava unido a outros de sua nação; alguns já com
passagem anterior pelo Tribunal do Santo Ofício, que, nas palavras do próprio vigário,
“dão motivo a presumir-se mal”. Embora não tenha explicitamente feito tal acusação, é
viável inferir que o vigário suspeitasse fortemente da ocorrência de crimes judaizantes
no seio deste grupo de cristãos-novos, pois a “qualidade” destes indivíduos os
transformava em traidores em potencial, tanto religioso quanto do Estado (FEITLER,
63
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques: Sumário a partir do fólio n. 9.
Não foram encontradas habilitações, além daquelas remetidas à Sé do Rio de Janeiro, relativas as suas
prebendas.
64
38
2007: 72). E pior seria para os reincidentes, como David de Miranda65, mencionado
pelas testemunhas arroladas pelo Vigário. Em tempos vividos por estes sujeitos, ser
cristão-novo significava, antes de tudo, ser protagonista de uma política de
diferenciação social que adquiriu novos contornos à Época Moderna e que surgiu de
mãos dadas com a integração Católica e os Estados nacionais absolutistas (ELIAS,
2006: 112).
Nesse período, rememora-se a Summa Teologica, de São Tomás de Aquino, que
já no século XIII determinou aos judeus a condição de serem uma “perversão da lei
natural”66, danosos a moralidade cristã e predispostos a heresia. Cabe ainda citar as
Ordenações Afonsinas, de 1446, que estimulou as políticas das desigualdades ao
diferenciar socialmente cristãos, mouros e judeus67, afixando rótulos com valores
sociais inferiores aos que não partilhavam do signo católico. A Igreja não se limitava
apenas ao ensinamento do sagrado, orientando também a moral individual e coletiva,
além de articular seus próprios julgamentos éticos, mesclando religião, cultura e
política, que encontrou nos espaços ibéricos o tom ideal para uma convergência.
Principalmente na Espanha, local em que os ânimos flutuaram entre momentos de
tolerância e perseguição, mas que na Era Moderna o projeto vitorioso foi justamente o
que consolidou a fé com a unidade política. Não seria por acaso que a unificação
espanhola seria interpretada como um indicativo de que Deus havia recompensado os
Reis Católicos, e que suas terras deveriam ser então purificadas da heresia e dos infiéis.
Os éditos de expulsão publicados na Espanha, em 1492, e em Portugal, em 1496,
assinalaram o destino do judaísmo na Península Ibérica. Na Espanha, antes conhecida
como a Espanha das três religiões, a Sefard de outrora, berço do grande Maimônides, o
Rambam, cuja comunidade desfrutara de um longo tempo de autonomia e tolerância, foi
atingida pelos ventos de um forte sentimento de inclemência, nos séculos XIV e XV.
Figura emblemática deste processo foi a do arcediago Francisco Diaz Martinez
de Ecija, que insuflou um antissemitismo endêmico pelo território espanhol, a partir de
1390. Movidos pelos discursos intolerantes de Ecija, surgiram los matadores de judíos,
um grupo católico responsável pela destruição de várias aljamas e sinagogas em
Valencia, Sevilha, Barcelona, Girona e Cuenca (VAINFAS; HERMANN, 2005). Foi
65
ANTT/TSO-IL, n.7491-1, processo de David de Miranda, cristão-novo.
Summa Teológica, Tomo I-IX.
67
Ordenações Afonsinas, Livro II, T. 94.
66
39
também na última década do século XIV que ocorreram as conversões em massa dos
judeus espanhóis ao catolicismo, comumente chamados de marranos. Judeus e
cristianizados conviviam no território, relacionando-se pelos matrimônios e negócios.
Vários
conversos
retornaram
ao
judaísmo,
ou
professaram
a
fé
mosaica
clandestinamente, travestidos de cristãos, os chamados criptojudeus. No dia 1º de
novembro de 1478, o papa Sisto IV assinou a bula Exigit sincerae devotionis affectus,
fundando a inquisição no território espanhol (BETHENCOURT, 2000).
Redigida como resposta às petições dos Reis Católicos, essa bula
reproduzia os argumentos régios sobre a difusão das crenças e dos
ritos mosaicos entre os judeus convertidos ao cristianismo em Castela
e Aragão, atribuía o desenvolvimento dessa heresia à tolerância dos
bispos e autorizava os reis a nomear três inquisidores [...] para cada
uma das cidades ou dioceses dos reinos. Esse poder concedido aos
príncipes era um acontecimento inédito (BETHENCOURT, 2000: 17).
Afastando-se do modelo inquisitorial medieval, a Espanha consagrou o Tribunal
do Santo Ofício moderno no qual o papa transferiu sua competência aos reis, mesclando
então a jurisdição eclesiástica e a jurisdição civil e transmitindo a obediência dos
inquisidores ao poder real, construindo diferentes relações de fidelidade das observadas
no medievo. Além disso, os prédios e salas que seriam utilizados pelo Santo Ofício no
território não faziam parte do inventário Católico, e sim da Coroa (BETHENCOURT,
2000: 24).
Como a lei inquisitorial alcançava apenas os batizados, os judeus que
permaneceram no território dos Reis Católicos não podiam ser punidos pelo Santo
Ofício. No dia que consagrava-se a almejada unificação do território espanhol, aos
infiéis acusados de não permitir a conversão sincera dos marranos e perturbar a
conformação da fé católica, restou a expulsão estabelecida pelo decreto de 31 de março
de 1492.
[...] fomos informados que existem em nossos reinos e havia alguns
maus cristãos que judaizavam da Nossa Santa Fé Católica, do qual
tem muita culpa a comunicação dos judeus com os cristãos […]
estamos de acordo em mandar sair todos os judeus de nossos reinos, e
que jamais tornem, nem retornem, nem alguns deles [...]”. 68
68
Edicto de los Reyes Catolicos (31 Marzo 1492) desterrando de sus estados a todos los Judios, Boletin
de la Real Academia de la Historia II (1887): 512-528. Tradução livre. Original: “[...] nos fuimos
informados que hay en nuestros reynos e avía algunos malos cristianos que judaizaban de nuestra Sancta
Fe Católica, de lo cual era mucha culpa de la comunicación de los judíos con los cristianos […]
40
O fluxo migratório, já intensificado pelo advento do Santo Ofício, aumentou
ainda mais com a expulsão. Os Países Baixos, o Oriente e o Norte da África
compunham alguns dos destinos dos sefarditas espanhóis, mas nenhum destes recebeu
tantos desterrados quanto Portugal. Até então indiferente aos acontecimentos na
Espanha, o reino português, apesar das restrições previstas aos mouros e judeus nas
Ordenações Afonsinas, sustentava um ânimo mais tolerável se comparado ao seu
vizinho. Porém, o trânsito intenso dos castelhanos exilados para o reino de D. João II
motivou diversas providências por parte da Coroa, como a imposição de uma taxa per
capita aos que desejassem entrar no reino português, com permanência temporária –
que se transformou em definitiva. Era atrativa para D. João II a ideia de dotar o reino de
indivíduos com capital e com mão de obra mais qualificada. Apesar do lamentável
episódio do sequestro das crianças judias – enviadas para a ilha de São Tomé – e
também da escravização de milhares de judeus, o rei tentou estimular a cristianização
dos conversos por meio de benefícios e privilégios, além de isentar os judeus do serviço
militar (VAINFAS; HERMANN, 2005: 33). E foi com a subida do rei D. Manuel I ao
trono português, em 1495, a causa da grande reviravolta no destino dos hebreus do
território.
A gênese do Santo Ofício em Portugal foi, em suma, diferente do processo
espanhol. Se no vizinho a providência inquisitorial veio atrelada a uma necessidade de
conformidade religiosa no território recém-unificado, em Portugal – cuja unificação
nacional foi celebrada pela Revolução de Avis concluída em 1385 – a ideia de um
Tribunal da Fé levou mais tempo para ser trabalhada, principalmente por ter sido
baseada na perseguição de uma nova categoria social. A Inquisição portuguesa foi o
resultado de um complicado processo aberto em 1496, ano em que D. Manuel I decretou
a lei para expulsão de judeus e muçulmanos residentes em Portugal, sob pena de morte
e confisco de bens, embora não a tenha cumprido em efetivo. Face às críticas de
mentores e cortesãos, o rei protelou estas e outras medidas.
O rei D. Manuel I, o Venturoso, buscou conciliar a presença judaica com as
pressões políticas, sociais e religiosas que sofria de várias frentes, mas, principalmente,
a pressão externa espanhola excruciava a chancelaria real portuguesa para que, a
exemplo do projeto castelhano, o monarca lusitano também se livrasse dos hereges. Era
acordamos de mandar salir a todos los judíos de nuestros reynos, que jamás tornen, ni vuelvan a ellos, ni a
algunos dellos […].”
41
desejo do rei o de dar continuidade ao projeto de política externa iniciado por D. João II,
que prezava pelo entendimento com Castela sem se alinhar com suas posições, e
também pela boa convivência com Roma, mas sem subordinação (MAGALHÃES;
MATTOSO, 1997: 447). Na oportunidade de unificar as coroas ibéricas, D. Manuel I
contraiu matrimônio com a infanta D. Isabel, herdeira dos tronos de Castela e Aragão e
então viúva do príncipe D. Afonso de Portugal, filho de D. João II. Na realidade se viu
em um imbróglio político-matrimonial com a princesa que, por regras contratuais, só
entraria em Portugal quando o território estivesse livre dos hereges.
Sem saída, o Venturoso decreta em 5 de dezembro de 1496 a expulsão dos
judeus do reino até 31 de outubro de 1497, mas logo a revogaria. E no mesmo ano de
1497, foi decretada Lei de Conversão Geral, que autorizava o batismo forçado dos
judeus residentes em território luso, dando origem aos cristãos-novos. A lógica de tal lei
se baseava em uma doutrina teológica medieval que autorizava príncipes cristãos a
converter os adultos contra sua vontade, para o bem das gerações futuras (MARCOCCI;
PAIVA, 2013: 26). Morriam os judeus portugueses e nascia assim um novo corpus
social que, de acordo com Saraiva (1969), era uma categoria particular e
especificamente ibérica. A origem e presença dos cristãos-novos no Império ultramarino
português foi produto de uma trajetória marcada ora pela coexistência, ora pela
segregação, movidas pelas políticas da Coroa lusitana que, em 1536, ao fundar o
Tribunal do Santo Ofício, acabou por romper definitivamente com suas políticas de
convivência.
O batismo forçado imputado pelo rei não significou uma conversão de fato,
tratando-se de um episódio de caráter mais simulado do que efetivo. Até os derradeiros
momentos da bula papal que instituiu a Inquisição, poucas foram as medidas de
catequização e instrução na fé católica para os cristãos-novos. Foram igualmente fracas
as políticas de vigilância para averiguação da conversão sincera, abrindo desta forma a
possibilidade do culto e ensinamento dos preceitos judaicos no limitado espaço
doméstico, dando uma sobrevida ao judaísmo em Portugal (MARCOCCI; PAIVA,
2013: 50). Tal panorama:
De acordo com a interpretação clássica de Cecil Roth, retomada por
I.S. Révah e Yosef Hayim Yerushalmi, criou-se uma situação
peculiar, que contribuiu decisivamente para a permanência de uma
lembrança da antiga crença e para a futura evolução de uma
42
sensibilidade variável e aberta, religiosidade marrana já definida
“judaísmo em potência” (MARCOCCI; PAIVA, 2013: 49).
Os cristãos-novos usufruíram de alguma proteção legal até a fundação do Santo
Ofício, no sentido de coibir a inquirição sobre fé e conduta religiosa. Embora
dispusessem deste resguardo que os desobrigavam a prestar explicações sobre o seu
mundo privado, no mundo público verificou-se o contrário: Portugal, pouco a pouco
desmontou todo o legado externo judaico do reino, transformando sinagogas e escolas
em igrejas e edifícios públicos, além da proibição de impressão de textos em hebraico.
O choque real da conversão só pôde ser sentido pelos cristãos-novos com o
endurecimento da ação persecutória que precedeu a fundação do Tribunal e o início de
suas atividades.
Sob a égide da normatização das almas e com vistas a homogeneizar a fé e os
ritos católicos, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal foi instaurado por
meio da bula Cum ad nihil magis, autorizada pelo papa Paulo III em 23 de maio de
1536, criminalizando o judaísmo dos cristãos-novos, o islamismo, luteranismo, as
proposições e os sortilégios (BETHENCOURT, 2000: 25). A bula foi solenemente
publicada no dia 22 de outubro do mesmo ano, em uma missa realizada na Sé de Évora
e em presença do rei D. João III. Com a leitura do documento oficial, também foi
publicado o primeiro Édito de graça, que dava aos hereges o prazo de trinta dias para se
apresentarem por vontade própria e confessarem seus crimes (MARCOCCI; PAIVA,
2013: 23). Joaquim Romero Magalhães sintetizou bem o objetivo primário que
impulsionou a criação do Tribunal:
A Inquisição permitia, no quadro da Contra Reforma que se
desenhava, controlar a verdadeira crença dos recém-conversos e
impedir a continuação de formas escondidas de culto e crenças
judaicos. Reduzia-se toda a população a uma mesma fé
(MAGALHÃES; MATOSO, 1997: 453).
Apesar do esforço empreendido por D. João III na implantação do Tribunal da
Fé, é necessário compreender que as relações entre a Coroa portuguesa e Roma, embora
cordiais, não eram alinhadas como as de Castela. A monarquia lusitana, desde a
Revolução de Avis, prezava por sua autonomia política e pela suprema representação do
rei, protetor da ordem e da paz. As esferas intelectuais portuguesas sofriam forte
influência dos escritos de Erasmo de Roterdã e suas críticas ao papado e à corrupção
43
que soprava de Roma, e que encontravam ecos no âmago lusitano, bem representadas,
por exemplo, nas dramaturgias de Gil Vicente.
Contudo, as dissonâncias foram sentidas na balança após uma série de fatores
que convergiam a favor da Igreja. A sombra da heresia judaica, aumentada pelas
medidas régias favoráveis – ou imparciais – aos cristãos-novos e consequentemente o
destaque cada vez mais notável do grupo nos negócios ultramarinos – que atraíram,
inclusive, as alianças matrimoniais com fidalgos cristãos-velhos –, resultou no
crescimento dos movimentos messiânicos em Portugal, a partir da década de 1520, com
forte adesão da nobreza, e consequentemente o endurecimento do Clero no apoio às
políticas de combate as heresias e conformação da religião católica (MAGALHÃES;
MATTOSO, 1997: 453).
Desde o início do seu funcionamento, o Santo Ofício português focalizou o
combate ao judaísmo imputado aos cristãos-novos. Apesar da questão religiosa, a
estratégia inquisitorial foi motivo de constante preocupação do rei concernente à
economia portuguesa por serem de origem judaica os principais financiadores das
atividades ultramarinas de comércio e expansão – ações que dependiam em grande
maioria da iniciativa privada. Tal cenário foi o motivo principal para buscar políticas
que pretendiam oferecer um resguardo mínimo da integridade destes sujeitos – pauta
também utilizada posteriormente pelo Padre Antônio Vieira. Durante os séculos XV e
XVI, o reino português não possuía armada, exército ou estaleiros capazes de responder
às demandas da indústria naval, e era de conhecimento da Coroa que a empresa dos
descobrimentos dependia do envolvimento voluntário de seus vassalos. Para exemplo da
dependência à ação de alguns banqueiros cristãos-novos, é interessante destacar o caso
de Diogo Mendes, que financiava o comércio de especiarias69 e outras mercadorias que
suportavam o império na Ásia.
É imprescindível enfatizar que o signo católico estava intimamente ligado às
sociabilidades no Antigo Regime português. Além do elemento religioso, os cristãosnovos ainda arcavam com o estigma da impureza do sangue judeu, mácula estabelecida
69
O empreendimento chamado Consórcio da Pimenta consistia em um grupo de mercadores encabeçados
por Mendes e liderou uma expressiva rede de comércio internacional associada às especiarias e que
abrangia grandes praças comerciais europeias, sobretudo na Antuérpia, Londres e Veneza. Cf.
ANDRADE, António Manuel. Os senhores do desterro de Portugal: Judeus portugueses em Veneza e
Ferrara em meados do séc. XVI. Universidade de Aveiro, 2006.
44
pelas lógicas de distinção social, responsáveis por retroalimentar as tensões nas relações
das duas esferas. Em vigor no período, os estatutos de limpeza de sangue são o
resultado de um processo gradual que buscou forjar categorias sociais tendo por base
questões religiosas (OLIVAL, 2004: 152). Além dos escritos da Summa Teológica e das
Ordenações Afonsinas, já citadas anteriormente, o Estatuto de Toledo originado em
Castela (1449), foi provavelmente o principal modelo seguido pelas instituições
portuguesas. Essas políticas de diferenciações movimentavam a composição da
sociedade lusitana (OLIVAL, 2004: 158) e foram elementos estruturados, por serem
reproduzidos através da prática, e estruturantes, pois foram a base social e de suas
instituições. Esses símbolos favoreceram a reprodução da ordem social dominante e
ajudaram a legitimar a violência direta e simbólica dos instrumentos inquisitoriais.
A Inquisição agiu como fiscalizadora da vida social, institucionalizando a
perseguição aos mouriscos, sodomitas, luteranos, solicitantes e, principalmente, aos
cristãos-novos, através de seus tribunais em Coimbra, Évora, Lisboa e também em Goa.
Mas visava horizontes maiores do que a pura perseguição e punição. Tratava-se também
de um projeto disciplinador do Império ultramarino, intensificado pelos ventos da
Reforma protestante, que procurou então vigiar e conformar a religião, a cultura e a
sociedade e estender seus tentáculos por todo o território de domínio português.
A Inquisição não demorou a expandir-se pelo vasto império
ultramarino português que, em meados de Quinhentos, abraçava
praças, cidades e territórios litorais nos continentes de África, Ásia e
América. Num espaço onde a conversão transformava os nativos em
novos súbditos da Coroa, a extrema variedade das culturas e religiões
representou um mundo novo para o Santo Ofício, que reprimiu
crenças e costumes julgados gentílicos e idólatras, não abandonando a
sua guerra sem confins contra os cristãos-novos. Pelo contrário, o
combate aberto ao enraizamento dos fugitivos de origem judaica, que
ampliaram o raio da diáspora sefardita pelas regiões do império, foi o
principal objetivo que estimulou a difusão inicial da Inquisição para
além dos limites da Europa (MARCOCCI; PAIVA, 2013: 105).
Os teólogos da Corte elaboraram uma ortodoxia que pretendia formar uma
identidade social cristã e vigiar a vida cultural do Império, tomando Roma e as decisões
trentinas como os principais norteadores deste projeto. A censura literária movida pelo
Index Librorum Prohibitorum passou a ser um aliado dessa normatização, reforçada
pelo rei D. Henrique – irmão de D. João III e antes cardeal – que declarou o seguinte:
45
“neste reyno entram por diversas partes muitos livros de autores hereges e outros
suspeitosos e danados ao povo christão de que sucedem grandes inconvenientes e
danos em prejuízo da nossa fee catholica”70. O Santo Ofício agia, portanto, como
“órgão regulador”, revisando e aprovando textos e livros destinados à circulação pelo
reino. Ainda fiscalizava livrarias e bibliotecas em busca de impressos que fossem
considerados impróprios para os olhares dos vassalos.
A natureza institucional do Santo Ofício estava alicerçada em três pilares
principais: um tribunal monárquico, um tribunal religioso e um tribunal de justiça
criminal, sendo tais bases normativas produzidas pela mesma, sem interferências
exógenas (FERNANDES, 2011: 49). Dotado de organização lógica, elaborada à
semelhança e em conformidade à sociedade política e jurídica portuguesa, o Santo
Ofício também possuía total legitimação, tal como instrumento religioso, e também
autônomo frente ao poder real. Ao mesclar crime e heresia, não só delegou a si o
ensinamento do sagrado, mas também ajudou a definir os padrões morais a serem
seguidos, através da vigília comportamental, em nome de uma verdade oficial. A
eficácia dessa organização garantiu a manutenção de sua hegemonia.
Os Regimentos da Inquisição tinham como principal objetivo combater a heresia
enquanto crime, tendo, portanto, embasamento jurídico, ganhando “razão de justiça”
para a defesa da fé cristã através da misericórdia (FERNANDES, 2011: 60). Ou ainda,
como reconhece Luiz Mott (1992), era um tribunal que “julgava com justiça e punia
com misericórdia”. O primeiro Regimento da Inquisição portuguesa foi promulgado em
1552, sob a orientação do ainda cardeal D. Henrique e objetivava principalmente a
reconciliação dos réus, sendo a condenação uma última opção, estabelecendo a
confissão como o melhor caminho para o desfecho positivo do processo.
O Regimento passou por reformulações, cobrindo alguns pontos de sombra,
alterando, detalhando ou emendando tópicas variadas71. Foi publicada em 1613 a
primeira grande alteração regimental, que reafirmava a importância da reconciliação em
detrimento das punições mais severas, além de demonstrar uma preocupação com a
qualidade das provas e denúncias que eram recebidas, indicando um cuidado maior no
que envolvia a justiça criminal. Já em 1640, um novo e volumoso Regimento foi
publicado em meio a Restauração, seguindo a tendência de seu antecessor no sentido de
70
71
BUJAND A, J. M. de (1995), p. 557 apud MARCOCCI; PAIVA (2013), p. 91.
Não é abordado o Regimento de 1774 por não fazer parte do recorte original deste trabalho.
46
avolumar o caráter jurídico do Santo Ofício. Em três volumes bem organizados, este
Regimento contemplava as regras das visitações inquisitoriais e apresentava uma
melhor tipificação das heresias, discriminando as penas cabíveis a cada crime, e
demonstrando uma vontade por parte do Tribunal da Fé de demarcar de uma maneira
mais definitiva suas incumbências. Apenas cristãos batizados seriam de sua alçada.
Considerando essa melhor tipificação criminal, é também no Regimento de 1640 que
fica mais bem caracterizado o judaísmo enquanto heresia.
Ao longo de seu funcionamento, o Santo Ofício não deixou dúvidas sobre quais
eram seus réus preferenciais. Os cristãos-novos encabeçavam as listas de condenação, e
as ações inquisitoriais se fechavam cada vez mais sobre este grupo social. Mas houve
aqueles que tentaram confrontar a instituição e postularam os primórdios da ideia de
liberdade religiosa, como nos demonstra Yllan de Mattos:
Defensores dos cristãos-novos ou da liberdade religiosa, os críticos
pertinazes dos seus métodos foram tão múltiplos como os réus do
Tribunal. As contendas desabrocharam com veemência fora da
península Ibérica entre os protestantes: os Países Baixos, a Inglaterra e
França. As vozes de Villa Real, Charles Dellon, Cavaleiro de Oliveira,
Ribeiro Sanches, e D. Luís da Cunha eclodiram de lá. Das mesmas
bandas também se ouviam as vozes de Locke, Montesquieu e
Voltaire72. De Portugal, as obras de Gaspar de Miranda, Antônio
Vieira, Pedro Lupina Freire, Antônio Serrão de Castro e etc.
consolidaram o pensamento crítico à Inquisição (MATTOS, 2013:
16).
Os sucessivos choques entre a Inquisição e o rei da Restauração Portuguesa, D.
João IV e o padre Antônio Vieira, jesuíta, embaixador e conselheiro do mesmo ilustram
bem o contexto. Com a restauração da dinastia lusa com os Bragança, instalou-se certo
mal-estar entre Coroa e o Tribunal da Fé, que, enquanto instituição, manteve-se neutra à
nova dinastia: não se mostraram a favor de Castela, mas também não abraçaram o rei
português, ainda não reconhecido pela Santa Sé romana. Em 1657, o embaixador real
Francisco de Souza Coutinho chegou a classificar o Santo Ofício como uma “fortaleza
de Castela”73. Instaurou-se uma clara disputa entre poderes institucionais, em que, de
um lado, tem-se uma autoridade coroada após uma crise sucessória e um rei visto como
72
73
Op. Cit. BETHENCOURT, 2000, pp. 366-368 apud MATTOS, 2013, p. 16.
Op. Cit. MARCOCCI; PAIVA, 2013, p.182
47
um usurpador, não reconhecido pela Santa Sé – sem legitimidade de jure e herdade74 –
e de outro um poder jurisdicional sob tutela da Igreja Católica e o signo do Omnis
potestas a Deo75, considerado um poder anterior aos próprios reis.
Em 1641, o arcebispo de Braga D. Sebastião de Matos Noronha, outrora
ministro da Inquisição, foi responsabilizado por encabeçar uma conjura para matar D.
João IV, sugerindo uma resistência da Inquisição à nova dinastia, sendo também preso o
inquisidor-geral D. Francisco de Castro, acusado de estar envolvido na conspiração.
Temendo o fim do Tribunal, os inquisidores de Lisboa se reuniram com o rei para
discutir o destino do arcebispo de Braga e também do inquisidor-geral. Castro, de
dentro da fortaleza de Belém, escreveu inúmeras cartas ao rei tentando se justificar. Em
1643 foi libertado, e passou a se mostrar como um verdadeiro vassalo do rei por
tamanha compaixão em tê-lo solto. Após o episódio, as relações se amenizaram e
tornaram-se cordiais, mas ao longo de seu reino, D. João IV tentou limitar algumas
ações de poder do Santo Ofício. Algumas serão demonstradas a seguir.
Com a Restauração, Portugal se encontrava em posição delicada no cenário
europeu, almejando assim acordos estratégicos que garantissem não só o futuro político
do Império, mas também seu futuro econômico. O rei então incumbiu o padre Antônio
Vieira da missão diplomática para selar, em 1641, acordos comerciais com a França,
Inglaterra, Suécia e Países Baixos, que não apenas possuíam fortes praças mercantes,
como também tinham os judeus como principais agentes. Era necessário dar condições a
estes mercadores para circular pelo Império português e para isso, D. João IV e Antônio
Vieira buscaram driblar o Santo Ofício.
Em fevereiro de 1649, com o propósito de melhorar as receitas comerciais na
América Portuguesa, D. João IV decretou a isenção de pena de confisco a todos os
cristãos-novos que aplicassem capitais na Companhia Geral de Comércio do Brasil. A
proposta da isenção fora apresentada pelo padre Antônio Vieira ao rei, em 1643. A
reação do Santo Ofício foi colérica, recorrendo inclusive ao papa, que emitiu em maio
de 1650 o Pro munere sollicitudinis, carta que anulava o alvará. O que se seguiu foi
uma sucessão de quedas de braço envolvendo os poderes institucionais.
74
O primeiro rei português de jure e herdade (herda poderes de maneira reconhecida e sem nenhum
constrangimento legal que cerceasse sua legitimidade) pós-Restauração foi D. João V, neto de D. João IV,
que assumiu o trono em 01 de janeiro de 1707.
75
“Todo poder vem de Deus”. Tradução livre.
48
O rei cedeu à pressão, mas ordenou aos juízes do Fisco que poderiam confiscar
os bens dos cristãos-novos excluindo “os que tiverem metidos na Companhia Geral do
Brasil”76. O Santo Ofício respondeu instaurando processos contra pessoas próximas ao
rei: Duarte da Silva, contratador cristão-novo acusado de judaizar; Manuel Fernandes de
Vila Real, agente da Coroa em Paris, também acusado de judaizar; Rodrigo da Câmara,
o conde de Vila França, importante apoiador dos Bragança na Restauração, foi acusado
de sodomia, entre outros mais. A solução encontrada pelo rei foi ousada: em 1655,
outorgou-se o alvará que decretava a subordinação do Fisco ao Conselho da Fazenda e
não mais ao Santo Ofício. E foi devidamente cumprido. O clima de tensão só foi
dissipado com a morte do rei, em 1656. Sua esposa, a regente D. Luísa de Gusmão, não
suportou a pressão interna e acabou revogando o alvará de 1655, voltando o Fisco à
tutela do Santo Ofício. Com a posse de Afonso VI, o Santo Ofício voltou a figurar sem
maiores interferências.
Embora o que diferencie a inquisição medieval e moderna seja a figura de um
poder estatal atuante dentro da instituição, são questionáveis as ações do Santo Ofício
no que tange às hierarquias de poder. Contudo, é necessário lembrar que se trata de um
contexto de retomada do trono português por meio da Guerra de Restauração, a qual
selou o fim da união dinástica entre Castela e Portugal, portanto, de transformações
políticas. É notável que durante o período da união a instituição do Santo Ofício tenha
tido uma maior liberdade para movimentar-se. Houve, portanto, um choque entre as
pretensões do rei português – principalmente pela política de aproximação dos cristãosnovos – e a tentativa de limitar a esfera de ação do Tribunal da Fé.
As principais punições, de acordo com o Regimento de 1640, eram as seguintes:
excomunhão maior, privação de ofícios, de relaxamento ao braço secular – pena capital
– confisco de bens e outras multas desde o dia em que cometeu o delito. Além destas, há
outras menos graves como a abjuração, degredo, açoite, reclusão, cárcere, hábito
penitencial – uso do sambenito –, condenação pecuniária e penitências espirituais, que
eram recebidas por todos os condenados, exceto aqueles que seriam relaxados. As penas
também poderiam sofrer comutação, entendido como um caráter misericordioso da
instituição, pois o objetivo não era a morte do pecador e sim que o mesmo abraçasse de
forma sincera a Lei de Jesus, arrependendo-se de seus crimes, ou melhor, pecados, se
76
ANTT/CGSO, Lv.39, fl.147v e 148.
49
tornando um bom cristão. Mesmo a pena capital era vista como um ato de amor, pois
não se mata pela simples punição do corpo. Mata-se porque através da morte há a
salvação que não foi alcançada pelo Tribunal da Fé. Assim como os castigos rigorosos
por espancamento e açoite eram vistos como remédios do corpo para a alma, pois o
sofrimento do corpo limparia os pecados da alma (FURTADO; RESENDE, 2013: 230).
Era o corpo físico que muitas vezes necessitava receber o “remédio” da salvação.
O alargamento do Santo Oficio pelos territórios ultramarinos se deu de maneira
organizada ainda nos Seiscentos. No ultramar, o território de Goa recebeu um Tribunal,
instalado em 1560, algo que não aconteceria nos demais territórios em posse dos
lusitanos. Nestes, sem a presença física do Tribunal, a instituição intercalou entre
castigo e misericórdia em seus processos, promovendo visitas inquisitoriais e
reconciliações privadas, servindo-se ora de comissários, ora de informadores, por meio
da colaboração ativa de bispos, padres e missionários, conseguindo difundir sua
presença e autoridade em três continentes. Mas também se adaptou aos diferentes
contextos em que esteve presente, fornecendo respostas flexíveis de acordo com esse
contexto, que apesar de variados, possuíam em sua essência o toque de seu criador de
Lisboa, que visava combater a heresia, apostasia e qualquer tipo de costume devasso ou
desviante.
No contexto da América portuguesa, apesar dos processos inquisitoriais
instaurados contra vassalos residentes no território, o primeiro contato do aparelho
inquisitorial com a colônia aconteceu em 1591, momento em que Portugal, devido à
crise sucessória gerada pela morte de D. Sebastião na batalha de Alcacér-Quibir,
encontrava-se sob a jurisdição espanhola do rei Felipe. A missão foi confiada a Heitor
Furtado de Mendonça, o primeiro visitador, incumbido de proceder a inquéritos no
território americano, em paralelo com a visita das ilhas dos Açores e da Madeira
executadas por Jerónimo Teixeira Cabral.
A primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil teria início em 28 de
julho de 1591. Após realizados os juramentos e fixados o Edital da Fé
e Monitório da Inquisição nas portas das igrejas para que se tornassem
públicos, concedeu o visitador, à cidade e uma légua ao seu redor,
prazo de trinta dias para as confissões espontâneas – o período da
graça –, em que o confitente recebia salvaguardas por confessar de
vontade própria, a exemplo do não-sequestro de seus bens, da isenção
de castigos físicos, etc. Tinham assim início as histórias contadas
através das denúncias e confissões ouvidas pelo visitador: os que não
50
se dispusessem a colaborar, seriam excomungados pela desobediência
ao bom funcionamento do Tribunal e às ordens do representante
inquisitorial. [...] Na verdade a Visitação ao Brasil não possui
qualquer razão especial, incluindo-se antes, no vasto programa
expansionista executado pelo Santo Ofício na última década dos
quinhentos. Após consolidar-se no Reino [...], a Inquisição estenderia
seu braço ao ultramar, visitando não só o Brasil, mas também Angola
e as ilhas da costa africana, os Açores e a Madeira (ASSIS, 2008: 16).
Uma segunda visitação seria promovida pela Coroa ibérica unificada, entre 1618
e 1621, confiada dessa vez ao licenciado Marcos Teixeira. Essa Visitação se limitou
apenas ao território baiano e foi motivada pelo alto número de denúncias sobre
judaizantes, sendo muitos cristãos-novos presos e enviados para Lisboa. Enquanto a
Primeira Visitação não envolveu nenhum objetivo específico, essa segunda foi nutrida
por uma desconfiança da dinastia Habsburgo de que os cristãos-novos portugueses
estariam planejando com judeus de Amsterdam uma pretensa invasão flamenga ao
território brasileiro (VAINFAS, 2002: 11). De fato a Bahia sofreria uma tentativa de
invasão pelos holandeses, em 1624. Mas esta só foi consolidada em Pernambuco em
1630, o que atraiu diversos cristãos-novos para a região, que atuariam na economia
açucareira.
No final do século XVII, houve um significativo aumento no volume repressivo
do Santo Ofício pelo ultramar. O Tribunal de Goa, já notável pela sua fama repressiva,
não só a manteve como também a intensificou e se tornou conhecido na Europa graças
ao livro de Charles Dellon77 chamado La Relation. Para a América portuguesa ainda se
discutia a possibilidade da criação de um tribunal. O rei D. Pedro II (1683-1706) era
favorável à sua instalação e para isso designou D. frei José de Lencastre para
desenvolver o projeto. Era necessário enviar um visitador à América Portuguesa para
averiguar as condições para a fundação do tribunal. O eleito para a empreitada foi o
inquisidor de Coimbra João Duarte Ribeiro, mas este nunca pisou no Brasil, adiando o
quanto pode sua viagem até que o projeto fosse abandonado justamente pela falta de
voluntários para realizar a travessia atlântica. Em contrapartida, estruturou-se no Brasil
uma rede de colaboradores e informantes que foram os olhos do Tribunal da Fé de
Lisboa no território.
77
Charles Dellon (1650-1710) foi um médico e escritor francês. Teve uma breve passagem em alguns territórios
portugueses como Goa e Brasil, onde teve problemas com a Inquisição. Foi médico do Vice-Rei da Índia Portuguesa
D. Luís de Mendonça Furtado e Albuquerque, o Conde de Lavradio. A primeira edição do livro La Relation foi
publicada em 1687 com edições traduzidas para o alemão, francês, holandês e inglês.
51
A Coroa portuguesa, desde as descobertas e colonização do ultramar, dependeu
cada vez mais das receitas geradas nesses territórios. A descoberta das jazidas auríferas
na América Portuguesa veio em tempo: devastada pela Guerra de Reconquista, a
economia lusitana sofreu uma forte recessão, juntamente com a perda dos territórios do
Oriente. A recessão gerou uma incapacidade de manutenção da frota militar marítima,
que, consequentemente, deixou o Império incapaz de zelar por suas possessões
ultramarinas. Cresce, portanto, a necessidade da Coroa pela normatização social e
manutenção da ordem nas regiões consideradas estratégicas – como foi no caso das
Minas – cada vez mais populosas graças à forte onda migratória para a região, movida
pela oportunidade de prosperidade e enriquecimento. As riquezas do subsolo atraíam os
mais diversos indivíduos, inclusive cristãos-novos, que encabeçaram o topo da lista de
detidos e julgados no Tribunal de Lisboa, envolvidos nas atividades mineradoras
mercantis, como o comércio de escravos e o abastecimento da região.
Enquanto a administração da Capitania das Minas encarregava-se de combater
repressivamente os quilombolas e a rebeldia escrava, e o clero secular de conduzir e
orientar a conduta moral e espiritual dos indivíduos, o Tribunal do Santo Ofício em
Lisboa demonstrava eficiência em estender seu poder pelo território. Mesmo sem a
implantação de um Tribunal na colônia, com a rede de funcionários inquisitoriais e a
colaboração do poder eclesiástico, o Santo Ofício garantiu sua representação pelos
rincões da América Portuguesa, e também em Minas. Tratava-se de um projeto
disciplinador e moralizante para os vassalos da colônia, e que conservava no seu âmago
o medo da heresia judaica, e que do seu combate dependia a paz e o bem-estar geral do
Reino (FEITLER, 2003: 104).
O exercício do poder visava à consecução de uma homogeneidade religiosa e
através da assimilação da heresia a um crime. De acordo com António Manuel
Hespanha (1994) esse processo “é sempre produto de uma prática social de
discriminação e de marginalização”, que representa o mal encarnado nos elementos
exógenos da cristandade e que deveria ser combatido e, portanto, necessitava de
legitimação. Aqui percebe-se como esse crime possui um viés heterogêneo, mesclado a
ideia de pecado, estando ambos, portanto, conectados a uma questão jurídica. Não se
trata apenas da fé; julgar e punir o crime de heresia era também em nome do bem social
comum. O poder simbólico detido pela instituição inquisitorial foi disseminado através
52
das práticas sociais, pelo discurso religioso e, principalmente, pelo medo das
consequências que o comportamento desviante proporcionava.
E aos cristãos-novos foi imputada uma condição social fechada por todos os
lados. Se foram judaizantes ou não, seus nomes e estatutos sociais recheavam as
devassas eclesiásticas, recebendo algum tipo de punição. Na América portuguesa
encontraram maneiras de amenizar suas origens, moldando-se às especificidades do
lugar que em que se estabeleciam e da sua sociedade. Encontraram maneiras de
sobreviver frente à estigmatização, não se deixando paralisar pelos efeitos de uma
política que cada vez mais conseguia penetrar no território com sua rede de influências.
UMA FAMÍLIA NAS MALHAS DA INQUISIÇÃO
As fontes inquisitoriais representam um conjunto informacional primário
importante, sendo sua matéria diligente tão moldável que permite diversas leituras
capazes de nortear temáticas variadas. Em razão, por exemplo, das sessões de
genealogia realizadas durante o inquérito inquisitorial, é possível fazer recortes e
encontrar famílias tais como elas se apresentavam no momento em que o sujeito estava
recluso sob a custódia do Tribunal. No decurso da análise familiar de Diogo Nunes
Henriques, verificou-se a existência de outros parentes que também foram presos ou se
apresentaram ao Santo Ofício, em diferentes épocas. Este mapeamento também permite
que novas perspectivas e novas composições sejam adicionadas ao arranjo genealógico,
possibilitando assim a reconstrução de algumas gerações.
Antes de dar o devido prosseguimento na demonstração dos resultados
analíticos, algumas observações devem ser realizadas em relação ao uso e interpretação
das fontes inquisitoriais. Como ponderou Carlo Ginzburg (1989), o historiador e o
inquisidor possuem um objetivo comum: a busca pelo íntimo, pelo familiar e pelo modo
de vida do réu. Embora os meios e os fins deste objetivo sejam claramente distintos,
cabe ao historiador realizar uma análise cuidadosa dos processos inquisitoriais,
contemplando com a devida atenção o entendimento de seus códigos.
[...] nesses textos, as personagens em conflito não se
encontravam em igualdade de circunstâncias [...]. Essa
desigualdade, em termos de poder (real ou simbólico), explica
porque é que a pressão exercida sobre os réus pelos inquisidores
para lhes arrancar a verdade que eles procuravam era quase
53
sempre bem sucedida. Estes julgamentos tornavam-se assim,
não só repetitivos, mas também monódicos (para utilizar um
termo tão ao gosto de Bakhtin) na medida em que as respostas
dos réus não eram mais do que o eco das perguntas dos
inquisidores (GINZBURG, 1989: 208).
De acordo com as leis do “Reto Ministério do Santo Ofício”, não era revelado ao
réu de onde havia partido a acusação, nem do que era acusado. Independentemente do
local que partia, fosse do cristão-velho – que era instruído pela própria Igreja sobre
como identificar um herege – ou do cristão-novo, parente ou conhecido, a denúncia
geralmente envolvia a inculpação de alguma prática judaizante. As motivações para a
delação envolviam um equilíbrio delicado entre as partes. E não demorava muito para o
réu se pôr a admitir suas culpas, a delatar cúmplices e outros “heréticos” e, claro, a
demonstrar arrependimento.
O desequilíbrio de forças que existiu durante as diligências inquisitoriais indica
uma arbitrariedade do discurso processual, que, para Ginzburg – inspirado pela
antropologia embebida nos estudos de Clifford Geertz (1978) – pode ser explicada pela
ideia da não neutralidade textual, ou seja, há sempre uma tendenciosidade no texto,
independente do seu gênero. É o que o historiador italiano apresenta no estudo de caso
do moleiro Domenico Scandella, dito Menocchio, cuja figura não pôde ser resgatada em
sua completa amplitude mediante a análise de seus processos, pois no texto inquisitorial
a percepção tendia a revelar um herege, tal como buscava o Santo Ofício (GINZBURG,
1987). Não obstante, esta observação não deve anular a importância das fontes
inquisitoriais para o ofício do historiador, sobretudo para a História Social. É possível
descortinar diversos aspectos das relações sociais, a dinâmica e o percurso dos
indivíduos, sua mobilidade e sociabilidades construídas até o momento da sua prisão ou
apresentação.
Voltemos então ao nosso personagem: Diogo Nunes Henriques e a sua família.
Muitos anos antes da prisão de Diogo Nunes Henriques, o seu pai, Manuel Fernandes,
“o Faim” de alcunha78, no dia 23 de maio de 1669, com a idade 45 anos, se apresentou
ao Tribunal do Santo Ofício em Coimbra. Perante o inquisidor Pedro de Ataíde de
Castro, que havia tomado posse no ano anterior dos cargos de deputado e inquisidor de
78
ANTT/TSO-IC, n.4608, processo de Manuel Fernandes, “parte” de cristão-novo.
54
Coimbra79, Manuel alegou ser “parte” de cristão-novo, curtidor de profissão e casado
com Brites Rodrigues – também “parte” cristã-nova – que o acompanhou à Inquisição.
É incerto o motivo que teria levado o casal a se apresentar, sendo o mais provável que
suspeitassem de que teriam sido denunciados por um terceiro. Para uma absolvição mais
rápida, a melhor via era a apresentação voluntária.
De acordo com o Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de
Portugal 80, de 1640, havia três formas para dispor uma averiguação processual: a) por
meio da apresentação, de caráter voluntário, em que o indivíduo confessava suas culpas
à Mesa do Santo Ofício, devendo demonstrar sincero arrependimento; b) pelo tempo de
graça, prazo dado pelos inquisidores às pessoas, durante suas visitas a comarcas e
concelhos do reino para que qualquer um culpado de crimes de heresia ou apostasia se
apresentasse para confessar suas culpas a fim de ser absolvido; c) através da denúncia81,
onde as testemunhas se dirigiam aos inquisidores ou autoridade eclesiástica local, sendo
essas testemunhas sujeitas à averiguação do seu crédito e nunca podendo proceder, a
não ser excepcionalmente, com o depoimento só de uma pessoa.
Os éditos também foram poderosos instrumentos para as atividades
inquisitoriais. Por meio desses documentos, o Tribunal tornava público suas decisões
que abrangiam não os tempos de graça, ordens de denunciação, mas também proibia,
repreendia ou autorizava práticas e comportamentos, alertava sobre os crimes e outras
ações consideradas pecaminosas pela alçada inquisitorial. A Inquisição comportava três
éditos: a) o édito da graça, que era a publicação de uma ordem de delação, antecedida
pela pregação de um sermão; b) o édito da fé, que definia e caracterizava os crimes
heréticos combatidos pelo Tribunal e, inclusive, considerava desviante aquele que
protegesse os hereges, ou seja, aquele que sabia identificar práticas heréticas mas não as
denunciava, sendo igualmente submetido às censuras eclesiásticas; c) e os éditos
particulares, ou gerais, que comunicavam decisões extraordinárias do Tribunal que
afetavam a vida cotidiana da população, como a proibição de livros, a notificação de
79
“Inquisição de Coimbra: catálogo de todos seus Inquisidores desde sua renovação até o presente, com o
ano, e dia, que tomaram posse”, nº 43 – Pedro de Ataíde de Castro. IN: Colleciao dos documentos,
estatutos, e memórias da Academia Real da História Portuguesa. Biblioteca Nacional Austríaca, Ed. P.
da Sylva, Lisboa, 1723.
80
Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal (1640), Livro II, Tít. II “Dos
apresentados, assim no tempo de graça, como fora dele, e da ordem, que se deve guardar em se
despacho”.
81
Ibid, Livro II, Tit. III “De como hão de tomar as denunciações”.
55
criminosos procurados pela Inquisição ou de excomunhão (BETHENCOURT, 2000:
148).
O discurso inquisitorial se mostrava empenhado em “convidar” a população a
denunciar qualquer comportamento tido como herético – cujas características eram
fixadas em monitórios –, e que resultou em uma grande adesão, principalmente das
camadas populares da sociedade portuguesa. A política de segregação, que gerava a
degradação social da classe cristã-nova, era deliberada por tratados e sermões que se
traduziram na proibição de exercerem cargos oficiais e ofícios de artes liberais, de
ingressarem em ordens militares, carreiras eclesiásticas e nas universidades, além de ser
tolhido o casamento com nobres ou cristãos-velhos (SCHWARTZ, 2008: 158). Porém,
apesar da pesada campanha hostil instigada pela Inquisição, tais proibições eram
ignoradas em demasiada frequência. Havia um número expressivo de cristãos-novos
que estudavam algum tipo de arte liberal na Universidade de Coimbra, ou que contraiam
casamento, ou mantinham algum tipo de relação com cristãos-velhos, situação que, para
Stuart Schwartz (2008), significava que havia uma ligação bastante íntima dos
conversos com a sociedade lusitana e que não seria quebrantada com a naturalidade que
almejavam os inquisidores.
As notícias sobre a “fama pública” dos cristãos-novos eram correntes pelas vilas,
tanto antes quanto depois de inquiridos pelo Santo Ofício, uma vez que tudo o que era
público e notório tinha forte peso na sociedade do Antigo Regime. Trata-se de uma
concepção válida para todas as camadas sociais e é fundamental para se entender a
dinâmica da sociedade portuguesa da época, desde a questão da jurisprudência, a
questão da honra, a questão social e o status (OLIVAL, 2011). A fama pública, por
exemplo, poderia arruinar um pedido de símbolo de distinção – como o hábito da
Ordem de Cristo – quando a Mesa de Consciência e Ordens, no arrolo das testemunhas
para atestar a nobreza e pureza do requerente, recebia um testemunho que dava conta de
alguma fama pública negativa. Era uma composição bastante heterogênea,
veementemente regulada pelos contrastes e pela hierarquia da diferença entre a velha
nobreza tradicional de espada e a nova nobreza que adquire títulos, que alimenta e
auxilia na manutenção dos estatutos de limpeza de sangue em Portugal. Tais estatutos
eram utilizados para medir a “pureza” do sangue de um indivíduo por meio de uma
averiguação de sua genealogia, e eram tidos como sangue “infecto” qualquer
ascendência ou ligação com gente de cor, judeu e mourisco. Os exames de genealogia
56
eram solicitados tanto para ascender cargos importantes e obter símbolos de distinção,
quanto nos processos inquisitoriais, auxiliando os inquisidores na situação do indivíduo
e sua ascendência.
Para o mesmo inquisidor, Manuel declarou sua genealogia em 17 de junho de
1669. Informou então ser filho de um casal de “meio” cristãos-novos, Fernão Nunes,
curtidor, e Catarina Guterres, então defuntos. A atribuição de partes e frações às
máculas sanguíneas dos cristãos-novos eram delegadas pelo próprio Santo Ofício,
porém, a diluição não significa um sangue mais “limpo”, pois o sangue infecto do judeu
nunca poderia ser purificado, independentemente do tipo de casamento contraído – se
com cristão-velho ou algum nobre. Mas sim o sangue da descendência de um casamento
misto seria manchado, pois o filho fruto do mesmo nunca poderia ser conhecido pela
qualidade de cristão-velho, mas sim como “parte” de cristão-novo e outras frações,
como “um quarto” ou “meio” cristão-novo, dependendo apenas do crivo dos
inquisidores.
Manuel informou também que era natural da vila de Almeida, localizada na
Beira Interior, mas que residia em Freixedas, concelho de Pinhel, com sua esposa Brites
e seus filhos: a mais velha Isabel Nunes, Catarina Rodrigues, Maria, Brites, Ana,
Antônio e o pequeno Diogo Nunes Henriques, de três meses de idade, todos naturais da
mesma cidade onde ainda residiam. O pai de Diogo não foi um homem de posses, nem
de grandes cabedais. Exercia um ofício manual humilde, tirando o sustento da
curtidura82, mas dificilmente se dedicava exclusivamente a ela, tampouco poderia
prover sua família apenas do curtume em uma cidade com baixa visibilidade comercial,
sendo preciso buscar outras localidades. Apesar de nunca ter viajado para fora do reino,
Manuel relatou ter transitado pelas cidades de Lisboa, Braga e Porto, nas vilas da Torre
de Moncorvo, Torre de Dona Chama, Pinhel, Freixo de Numão, Freixo de Espada à
Cinta, Trancoso e Marialva83.
Não se trata de uma coincidência que tais cidades fizessem parte de um
movimentado circuito comercial. Algumas abrigavam grandes feiras, como a feira de
Trancoso – imortalizada graças à personagem Mofina Mendes, do Auto de Mofina
Mendes, de Gil Vicente –, e a de São Miguel dos Bois, em Braga, e abrigavam também
82
A curtidura, ou curtimento, refere-se aqui ao trabalho do curtume de couro e outros tipos de pele
animal.
83
ANTT/TSO-IC, n.4608, processo de Manuel Fernandes, ff. 3- 8v.
57
portos secos, como o de Freixo de Espada à Cinta (MAGALHÃES; MATTOSO, 1997:
287). E por estas localidades, Faim esteve em companhia de outros cristãos-novos,
como o curtidor José Veloso, os tratantes João Marcelo, Antônio Nunes e José Cardoso,
o tendeiro e seu parente Domingos Álvares. É muito provável que Manuel tivesse
percorrido esses locais para negociar suas manufaturas e, talvez outros produtos,
ganhando o perfil de um comboieiro, isto é, exercer a função de escoar mercadorias de
um ponto a outro para entrega a outro agente ou venda (MAGALHÃES; MATTOSO,
1997: 286).
O seu filho mais novo, Diogo Nunes Henriques, foi batizado na capela de São
Martinho das Freixedas, sendo seus padrinhos Manuel Rodrigues, de alcunha o hereje
(sic) e a mulher do mesmo84. O ano de nascimento de Diogo é incerto e envolve certa
contenda de informações. Foi dito no depoimento de Manuel, em junho de 1669, que a
idade do filho era de apenas três meses, mas Diogo em sua confissão, em novembro de
1728, alega ter 62 anos idade, três anos a mais do que deveria ter segundo seu pai. Sem
o registro de batismo de Diogo85 é impossível computar a data correta de seu
nascimento. No entanto, para o cruzamento dos dados, optou-se por utilizar a
informação dada pelo próprio Diogo, considerando o ano de 1666 como o de
nascimento do cristão-novo.
Diogo relatou ao Santo Ofício que havia sido no íntimo do seu lar que tivera os
seus primeiros contatos com o judaísmo, aos dezessete anos de idade. Seguindo o
protocolo da vontade dos inquisidores, Diogo disse que a irmã mais velha Isabel foi
quem teria então transmitido os ensinamentos sobre a fé e os costumes mosaicos, e o
instruindo a rejeitar a lei de Cristo para salvar sua alma, e que deveria fazer os jejuns do
Dia Grande86 e do Capitão87, além de guardar os sábados de trabalho como se fossem
dias santos e cumprir as cerimônias. Também relatou que, certa feita, ainda por volta
dos seus dezessete anos de idade e vivendo em Freixedas na casa de sua mãe – já viúva
de Manuel Fernandes na ocasião –, “a dita sua irmã [Isabel] o persuadiu a ele
confitente que com ela fizesse o jejum do Capitão, que com gosto o fizeram ambos
ANTT/TSO-IC, n.4608, processo de Manuel Fernandes: “Genealogias”. O nome da mulher de Manuel
Rodrigues não é informado.
85
O registo de batismo de Diogo Nunes Henriques não foi localizado nos registros da paróquia de
Freixedas.
86
O Jejum do Dia Grande refere-se ao jejum do Yom Kippur, o Dia do Perdão.
87
O Jejum do Capitão provavelmente se tratava do Jejum de Gedalia ou Tzom Gedalia e era feito um dia
após o ano-novo judaico, que acontece comumente no mês de setembro.
84
58
estando desde a véspera do dito dia [...] sem comer, nem beber [...]”88 e, passado o
jejum, se reuniu com sua mãe e com seus irmãos para fazer o Jejum do Dia Grande, no
mês de setembro.
Tais orientações seguiriam a tendência híbrida, fortemente diluída e fragmentada
do judaísmo original que os cristãos-novos difundiram entre si. A política perseguidora
impetrada pelo Santo Ofício aos cristãos-novos, desejando o expurgo completo da
religião judaica do meio católico, teve um resultado antagônico ao esperado durante seu
funcionamento. Ao informar seus fiéis sobre como identificar um judaizante, a Igreja
retroalimentou a visão do que um judeu era e o que fazia. O cristão-novo podia ter se
espelhado nesse discurso e passado a praticá-lo, porque era o que lhe dava as
características de um judeu diante daquela sociedade.
Ao escutar dos religiosos o que faziam os judeus, aprendiam e
repetiam esses costumes. Ironia do destino, a própria Igreja que
perseguia os considerados hereges, ensinava-os como deviam se
comportar... Se dizia Saraiva (1994), com muito exagero, que a
Inquisição foi uma fábrica de judeus, também o foi a Igreja, pois
educava os que queriam judaizar dando-lhes as indicações do que era
ser judeu (ASSIS, 2011: 32).
Entretanto, é importante salientar novamente que a confissão de Henriques sobre
as práticas judaicas que alegou ter experimentado merece o benefício da dúvida, pelos
motivos já levantados por Carlo Ginzburg. Se há uma intencionalidade prévia por parte
da Inquisição na construção de um herege, logo este será construído, pois o discurso
institucional se sobrepunha ao discurso do réu. Se o Santo Ofício trabalhava com um
expediente que funcionava a partir da presunção da culpabilidade do acusado – unida à
ideia do cristão-novo como judaizante em potencial – logo não havia muito o que
aplicar em um testemunho contrário a esta carga. Apesar das investidas de Henriques
em se provar inocente do crime de judaísmo – que será explicitado com maior minúcia
no capítulo terceiro – rapidamente o mesmo desistiu e logo se pôs a confessar suas
culpas. Porém, o suporte não oferece empiria suficiente para atestar que Henriques, e
sua família, judaizaram.
Os nomes de seus irmãos também são conhecidos: 1) Isabel Nunes, casada com
José Cardoso, tratante; 2) Catarina Rodrigues, solteira e depois casada com António
Rodrigues Carregado, curtidor; 3) Maria Nunes, então solteira e depois casada com
88
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques, cit. confissão.
59
António Rodrigues Garcia; 4) Brites Rodrigues, solteira, e assim morreria,
provavelmente se dedicando aos cuidados de sua mãe; 5) António Nunes, curtidor,
casado com Maria da Silva e depois com Catarina de Leão; e 6) Ana Mendes, solteira.
Diogo alega que “não sabe em que partes [os irmãos] se ausentaram depois de
casados”89, ainda que não fosse preciso o cristão-novo nos dar essa pista. O espaço de
dispersão de boa parte de sua família se deu para as regiões da Beira Interior, para as
fronteiras de Castela e para a América portuguesa. O interior português atraia
justamente pelo seu afastamento dos grandes centros. Os concelhos de zonas rurais do
interior, mais diminutos, ainda mostravam desconhecimento das memórias judaicas
(TAVARES, 1982).
A formação de um novo agregado familiar no caso português se apresenta como
pauta complexa, graças à diversidade de seus padrões. Estudos como de Robert
Rowland (1997) e Ana Silvia Volpi Scott (1999) buscam estabelecer uma abordagem
demográfica para a análise dos sistemas familiares modernos portugueses e de suas
colônias. Estes se orientam pela matriz metropolitana, dividindo-a em dois sistemas
distintos, delimitados geograficamente em norte e sul (SCOTT, 1999: 39). Não é nosso
objetivo aqui nos concentrarmos em algum tipo de análise do sistema familiar de Diogo
Nunes Henriques, pois nos faltam dados comparativos e quantitativos. Contudo, ao
aplicarmos a metodologia da reconstrução familiar é possível analisar a produção do
espaço do grupo, tal como indica Henri Lefebvre (2000); a prática espacial é produzida
lentamente através da consolidação e dominação, ao passo que vai sendo decifrada pelo
grupo, por meio de representações, sejam elas religiosas, sociais ou genealógicas.
Compreender como foram estruturados os campos de sociabilidades, as relações de
produção e das atividades produtivas, nos auxilia a perceber a construção destes espaços
sociais.
A endogamia é a primeira estratégia que deve ser analisada enquanto elemento
construtor de relações sociais e de produção. A confiança e a afetividade fortalecem e
unem os laços entre as famílias, em semelhança ao que se observa nos grupos
nobiliárquicos, constituem-se em uma forma muito eficaz de ampliação do patrimônio,
bem como o aumento considerável de poder econômico (MATEUS, 2003: 121). É
necessário sinalizar que tal prática foi largamente utilizada pelos cristãos-novos, mas
89
Ibidem.
60
não em absoluto. É corrente a associação imediata dos conversos à prática endogâmica,
mas é necessário sempre frisar que a união entre cristãos-novos e cristãos-velhos,
embora desencorajada nos estratos sociais mais elevados, era também frequente e
possuía suas vantagens, como a “diluição” da mácula judaica pelas gerações e até maior
visibilidade social. A endogamia, se não analisada em seus indícios, genealogicamente
ou quando mencionados pelo próprio cristão-novo em seu depoimento, pode incorrer
em generalização, ainda se considerada apenas pela questão onomástica. E então
esbarramos em outra problemática corrente: a antroponímica dos conversos.
Tradicionalmente em Portugal, a transmissão dos sobrenomes, ou apelidos, era –
e ainda é – feita de geração em geração, sem alterações. Nossa reconstrução familiar
revela que tal critério não era então levado a cabo, já que em uma geração podemos
observar a repetição de nomes e a inserção de sobrenomes sem nenhuma referência
geracional anterior. O que chamamos a atenção aqui é para o erro implicado na
atribuição de parentescos por simples similaridade ou suposição dos sobrenomes. Elias
Lipiner (1998: 53) sublinha essa questão para o que chamou de antroponímia da
sobrevivência, que se dava pela ocultação ou pela mudança sucessiva dos sobrenomes.
A esta tópica deve-se acrescentar a problemática encontrada por Marcelo Bogaciovas
(2011) em relação aos seus estudos sobre a família Barros, de São Paulo. Indicada como
cristã-nova por Américo de Moura90 e reafirmada como tal por José Gonçalves
Salvador91, a família Barros, integrante da elite paulista, foi vista como detentora de
vários privilégios incomuns às famílias conversas. Por meio de um estudo aprofundado,
Bogaciovas concluiu que os estudos de Moura incorreram em um erro quando
identificou nos processos relativos à Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do
Brasil, em 1591, um “Antônio Pedroso, meio cristão-novo, filho de Jerônimo de
Barros”, como sendo o mesmo Antônio Pedroso de Barros que migraria para São Paulo,
tratando-se de um caso de homonímia. O erro foi sistematicamente reproduzido por
diversos pesquisadores, como José Gonçalves Salvador.
90
Cf. MOURA, Américo de. Os povoadores do campo de Piratininga. São Paulo, 1952. Separata da
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. 47 apud BOGACIOVAS, Marcelo.
Uma família paulista quatrocentona de origem cristã-nova: os Pedrosos e Vazes de Barros. IN Anais do
Simpósio Internacional de Estudos Inquisitoriais. Salvador, agosto de 2011.
91
SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos nas capitanias do Sul (séculos XVI e XVII). IN
Revista de história, nº 51, pp. 49-86 apud BOGACIOVAS, Marcelo. Uma família paulista quatrocentona
de origem cristã-nova: os Pedrosos e Vazes de Barros. IN Anais do Simpósio Internacional de Estudos
Inquisitoriais. Salvador, agosto de 2011.
61
A reconstrução familiar92 escorou-se primeiramente na análise de duas gerações
(pai e filho). A informação dada por Manuel Fernandes possui maior riqueza em
conteúdo, estruturando a genealogia93, enquanto a de Diogo Nunes Henriques atualiza e
preenche diversos espaços, graças aos sessenta anos que distanciam os dois processos.
O mesmo, no entanto, não pôde ser verificado no caso do filho de Diogo, Manuel Nunes
da Paz. Este pouco acrescenta, mas por um motivo justo, afinal, Manuel conviveu
minimamente com os avós e tios. Processos relativos a outras gerações foram utilizados,
como os de Ana da Silva94 e Maria Nunes95, filhas do irmão de Diogo, Antônio Nunes,
e um neto deste, também chamado Antônio96, acrescentando outras informações. Tal
como se observa enquanto regra nas sociabilidades dos cristãos-novos, a família de
Henriques foi essencialmente voltada para os ofícios mecânicos e ao comércio, com
característica mobilidade por diversos espaços.
Manuel e Brites criaram sete filhos: dois homens e cinco mulheres. Além de
Diogo, seu outro filho homem, Antônio Nunes, foi curtidor, como o pai, mais tarde
sendo identificado como tratante e homem de negócio. Casou-se duas vezes, sendo a
primeira esposa Maria da Silva, de quem teve cinco filhos, e a segunda esposa Catarina
de Leão. Dos registros analisados, apenas o de Manuel Nunes da Paz menciona Catarina
de Leão como esposa de Antônio Nunes. Os processos de suas filhas Ana da Silva e
Maria Nunes não fazem menção alguma sobre o segundo casamento, mesmo que ambas
residissem em Freixedas, local em que Catarina e Antônio viviam:
E que por parte de seu pai teve um tio, irmão inteiro do seu pai,
chamado Antônio Nunes, x.n., homem de negócios, é já defunto, e foi
casado com Catarina de Leão, também x.n., de quem teve duas filhas
xx.nn., chamadas Ana Nunes, que é já defunta e foi casada não sabe o
nome do marido nem se teve filhos, e Maria Nunes, também defunta,
e foi casada não sabe o nome do marido nem se teve filhos e só que as
ditas suas primas são naturais do lugar de Freixedas e foram
moradoras no lugar de Lumbrales, onde casaram e faleceram.97
Ver “Anexo I: Genealogia de Diogo Nunes Henriques”.
É imprescindível citar o trabalho de Maria David Eloy, descendente direta de Antônio Nunes Faim
(irmão de Diogo Nunes Henriques), cujo trabalho prosopográfico auxiliou na montagem inicial da
genealogia. Sussurros da Memória - Genealogia da Família Estrela. IN: Revista Raízes e Memória, nº
24, 2008, Lisboa.
94
ANTT/TSO-IC, n. 6134, processo de Ana da Silva, cristã-nova.
95
ANTT/TSO-IC, n. 7202, processo de Maria Nunes, cristã-nova
96
ANTT/TSO-IC, n. 5570, processo de Antônio Nunes, cristão-novo.
97
ANTT/TSO-IL, n. 9542, processo de Manuel Nunes da Paz: Genealogia declarada em 30/10/1727.
92
93
62
Por volta do ano de 1690, tendo Diogo à época entre 24 e 25 anos, é celebrado o
seu casamento com a cristã-nova Brites Henriques. O cristão-novo encontrou-se, no Rio
de Onor, região fronteiriça entre Portugal e Castela, com um grupo de amigos
conversos, incluindo o irmão de Brites, Manuel Henriques da Paz, o qual indica ser seu
parente e cunhado.
Disse mais que haverá trinta e sete para trinta e oito anos na vila, digo,
junto ao Rio de Onor, que divide o Reino de Castela deste de Portugal,
e na mesma margem do dito Rio se achou com Francisco Henriques,
x.n., curtidor, não sabe que estado tinha, filho de António Henriques,
curtidor, não sabe o nome da mãe, e outro irmão deste chamado
Manoel Henriques, x.n., curtidor casado com Gracia Gomes, são
parentes dele confitente, na vila de Almeida, e com Francisco Nunes
Romano, x.n., curtidor, então solteiro segundo lhe parece, não sabe o
nome do pai e a mãe se chamava Branca Henriques, natural e morador
da vila de Almeida, e é parente dele confitente e com Manuel
Henriques da Paz, x.n., tratante, e é parente, e cunhado dele confitente,
filho de Catarina da Paz, não sabe nome do pai, não sabe que fossem
pegos, nem apresentados, e estando todos cinco a saber ele confitente,
com o dito Francisco Henriques, Manoel Henriques, Francisco Nunes
Romano, Manoel Henriques da Paz, por ocasião de irem tratar o
casamento com Brites Henriques com quem ele confitente depois
casou [...]. 98
Casados, Diogo Nunes Henriques e Brites Henriques fixaram residência na
cidade castelhana de Lumbrales99, situada em uma região fronteiriça com Portugal. O
cristão-novo buscava novos e rendáveis negócios que pudessem ampliar seu patrimônio.
Com a ajuda de seu irmão Antônio Nunes, já metido pelas praças comerciais de Castela,
opta por Lumbrales, um entreposto mercante que conectava a Beira Interior e o alto rio
Douro com Salamanca por via terrestre, ligando Vila Nova de Foz-Côa, e as cidades de
Castela Ciudad Rodrigo, Fuenteguinaldo e Hinojosa de Duero. Por este circuito foram
encontrados alguns cristãos-novos que se comunicaram com Diogo e Brites durante a
estadia do casal em Castela.
Em Lumbrales nascem seus filhos Manuel Nunes da Paz e Helena Nunes. É
dedutível apenas o ano de nascimento de Manuel: 1692, mesmo ano em que Brites vai a
óbito, por complicações advindas da parturição. Diogo não se casou novamente e seus
filhos foram criados pela sua irmã, Ana Mendes. À época na ocupação de tratante, que
demandava extrema mobilidade, o cristão-novo enviou seus filhos e sua irmã de volta
98
ANTT/TSO-IL, n.7487, processo de Diogo Nunes Henriques, cit. confissão.
No processo de Manuel Nunes da Paz a cidade é escrita “Lombardes”, porém a grafia atual correta é
Lumbrales.
99
63
para Freixedas, sua cidade natal. Lá ainda residia seu irmão, Antônio Nunes, agora
homem de negócio – e que se correspondia comercialmente com Diogo –, e sua segunda
esposa, a cristã-nova Catarina de Leão. Desassistir mulher e filhos era uma prática
comum dos homens portugueses da época. Estes se ausentavam não só devido à
ocupação profissional que poderia exigir um perfil itinerante, mas também sob a
alegação de buscarem novas chances de enriquecimento em terras distantes e, para o
caso, deixavam sua família sob o cuidado de outros parentes. Muitos não retornavam,
enquanto outros constituíam novos núcleos familiares – as vezes em uniões não
sacramentadas – nas terras em que se consolidavam (PEREIRA, 2009: 4).
No ano de 1697, Diogo Nunes Henriques embarcou para a América portuguesa,
aportando na cidade de Salvador. Os motivos para a mudança do cristão-novo gravitam
no campo da probabilidade, visto que, tanto a sua condição social, quanto o próprio
contexto português, são capazes de explicar suas motivações. Há um elevado fluxo
migratório verificado a partir de finais do século XVII e início do século XVIII,
ocasionado não só pela procura de novas fontes de proventos, como também estimulado
pela carência cerealífera e pelo recrutamento militar100. Ainda a notícia do achamento
de ouro em terras brasílicas confluiu para o abarrotamento dos navios na cidade do
Porto e Lisboa em direção às terras do outro lado do Atlântico.
Do lado social, pesava a instituição inquisitorial. A análise de alguns processos
inquisitoriais de cristãos-novos que se domiciliavam em cidades que faziam parte do
circuito comercial de Diogo Nunes Henriques indica uma intensa onda de prisões de
mercadores, tratantes e parentes de estanqueiros, que eram procurados, sobretudo, pela
Inquisição de Coimbra e Córdoba. O tecelão de sedas e mercador castelhano Francisco
Lopes Capitão101, que mantinha laços comerciais com o irmão de Henriques, foi preso
pela Inquisição de Coimbra em 1698 na vila de Chacim. Nessa rede também foram
presos Manuel Henriques de Leão102, parente de Catarina, segunda esposa de Antônio, e
David Brandão103, correspondente dos estanqueiros de Porto.
100
Com a participação portuguesa na Guerra de Sucessão espanhola, no início do século XVIII, a Coroa
realizou o recrutamento militar de seus vassalos Cf. Ana Luíza de Castro Pereira, Unidos pelo sangue,
separados pela lei. p.70
101
ANTT/TSO-IC, n. 8818, processo de Maria Ferreira, cristã-nova; ANTT/TSO-IC, n. 9708, processo de
Francisco Lopes Capitão, cristão-novo. O último se encontra inacessível para consulta física devido ao
avançado estado de desgaste do suporte.
102
ANTT/TSO-IC, n. 9481, processo de Manuel Henriques de Leão, cristão-novo.
103
ANTT/TSO-IC, n. 7567, processo de David Brandão, cristão-novo.
64
Embora houvesse uma convergência de fatores para que Henriques deixasse
Portugal, não deixava de ser convidativa a ideia de tirar proveito das oportunidades
mercantis em outras praças do Império português, como tantos já haviam feito. Ainda
havia a vantagem de se distanciar ainda mais dos olhos do Santo Ofício. Diogo saiu de
Freixedas para a cidade do Porto e de lá rumou para a América portuguesa. Junto com
ele, muitos outros também embarcavam pelos diversos motivos já apresentados, como o
amigo cristão-novo Francisco Nunes de Miranda, médico formado em Coimbra. A
história de Francisco é bem diferente do amigo, pois buscava conscientemente se afastar
das garras inquisitoriais. Independentemente de suas trajetórias até 1697, autônomas
dentro do próprio âmbito individual, ambos convergiam e se encontravam em seus
interesses comuns, que, naquele momento, era o de permanecerem íntegros frente à
Inquisição.
65
CAPÍTULO II
NEGÓCIOS PELOS CAMINHOS
“Vosso espírito voga em pleno oceano, onde vossos galeões de altivas
velas – como burgueses ricos e senhores das ondas, ou qual visita
aparatosa distendida no mar – olham por cima da multidão de
humildes traficantes que os saúdam, modestos, inclinando-se, quando
perpassam com tecidas asas”.
William Shakespeare, O Mercador de Veneza (Salarino)
A TRAMA DAS REDES E A CONDIÇÃO MARRANA
Charles R. Boxer (2002) coloca como característica principal da história
humana, antes do advento da empresa dos descobrimentos, a dispersão e o isolamento
das mais diversas comunidades do globo. Sob a luz de um olhar eurocêntrico, as
dinâmicas das sociedades situadas à margem do Pacífico, assim como as ameríndias e
africanas, eram, em sua completude, desconhecidas pelos europeus-ocidentais104. A
expansão marítima, encabeçada pelos exploradores portugueses e conquistadores
espanhóis, foi o grande motor que promoveu uma importante reconfiguração de tais
características, unindo, para melhor ou pior, os diversos ramos sociais dispersos pelos
longínquos territórios. No caso português, teve como resposta não só o lançamento de
Lisboa enquanto poderoso epicentro de um vasto comércio à longa distância como
também a impulsão e o alargamento de uma modalidade mercante capaz de conectar
diversos agentes em escala global.
A empresa lusitana dos descobrimentos abriu uma janela importante de
enriquecimento para uma burguesia desejosa pela ascensão social. Uma classe mercantil
composta em sua larga maioria por descendentes da nação hebraica, antes judeus,
depois cristãos-novos, categoria marcada pelo signo da impureza e da heresia. A
mobilidade, associada aos diversos interesses comerciais, era uma aptidão em que se
104
Ainda, de acordo com Charles Boxer, é importante frisar que haviam diversos blocos comerciais
formados por italianos e judeus que já estabeleciam algum contato com sociedades asiáticas e norteafricanas, contudo, possuíam um conhecimento fragmentado acerca de suas dinâmicas sociais. Cf.
Charles Boxer, O Império Colonial Português, p. 25.
66
inseriam muito bem os cristãos-novos. Se o deslocamento foi uma peculiaridade da
modernidade, pode-se dizer, então, que os cristãos-novos souberam se aproveitar de tal
dinâmica e que, ainda, aperfeiçoaram-na. Nathan Wachtel (2009) não deixa de sublinhar
a importância da mobilidade característica dos conversos portugueses para as
transformações
econômicas
do
reino
português,
além
de
promoverem
o
desenvolvimento de novas formas de negociação. Por reunirem dinâmicas comerciais
coletivas e auto-organizadas, os cristãos-novos formaram alianças entre si e teceram
importantes redes baseadas, sobretudo, na solidariedade. Conectaram-se assim entre os
espaços considerados periféricos ao poder central. Ainda, concentraram em suas mãos
diversos contratos comerciais, o trato de escravos e o escoamento de diversos produtos.
O negócio, ou melhor, as diversas formas de negociação no Antigo Regime
consistiram em um conjunto de práticas políticas e socioculturais responsáveis por ligar
as diversas estruturas sociais da época moderna. As formas tomadas pela governança e
pela administração metropolitana portuguesa sobre as colônias é um bom exemplo
destas dinâmicas pois a partir de sua análise é possível perceber a atuação das redes que
conseguiram reproduzir e interiorizar o poder central, a partir de estratégias capazes de
agrupar e dinamizar o conjunto imperial. E são vários os autores que contribuíram para
o entendimento deste panorama. Jack P. Greene (1994) propôs a noção de autoridade
negociada, que rompe com a tradição de autoridade monárquica absolutista de outrora,
dando uma maior inteligibilidade a administração régia e as relações de poder entre as
diversas categorias políticas e sociais que se relacionavam na esfera metropolitana e
colonial. O Estado português moderno não dispunha de recursos administrativos e
econômicos para zelar pela posse e garantir a plena governabilidade dos territórios
periféricos. Logo, tais recursos foram negociados entre as elites locais e o poder central,
algo que, de acordo com Roberta Stumpf (2014), colocou em cheque, a longo prazo, o
respeito pelas exigências morais e legais, já que o favoritismo e a venalidade
comprometiam o rigor das nomeações para os ofícios temporários e intermédios,
aliciando diversos vassalos por meio das moedas simbólicas correntes nas sociedades de
Antigo Regime: o prestígio e a mercê.
Havia, portanto, uma autonomia relativa dessas elites locais enquanto detentoras
de um poder periférico, legitimado pelo centro. As funções reais possuíam uma natureza
privada e pautada pelo afeto, que proporcionava um sentimento de intimidade entre rei e
67
vassalo, dificultando as definições dos cargos e ofícios que eram delegados pela Coroa,
e ao mesmo tempo tornavam:
[...] a obrigatoriedade da concessão de mercês aos mais amigos, na
forma de obtenção de favores ou cargos na Corte, eram situações
sociais quotidianas e corporificavam a natureza das estruturas sociais
sendo vistas como a norma (HESPANHA; XAVIER, 1998: 321).
Uma “norma” que transfigurou o equilíbrio entre centro e periferia, se
convertendo em expedientes de reprodução do poder que, de acordo com Júnia Ferreira
Furtado, “se originava na pessoa do governante, em escalas cada vez mais diminutas,
hierarquizando as pessoas e confinando-as em relações de favor e dependência”105.
Nesta mesma linha, António Manuel Hespanha (1994) abre destaque para as práticas
administrativas da Coroa lusitana e os condicionantes que impossibilitaram a prática de
um poder inteiramente centralizado e burocrático, como a carestia de recursos humanos
e financeiros, além do próprio fator territorial do Império, muito amplo e disperso. Estes
elementos, portanto, foram peças-chave para diferenciar entre o plano do direito
estabelecido do que foi praticado em vias de fato, possibilitando que as instituições
locais conquistassem uma relativa e importante autonomia em relação ao poder central
(HESPANHA, 1994: 14).
Esta autoridade periférica na América portuguesa e nos outros territórios
ultramarinos foi amplamente composta por reinóis, mas também por vassalos nativos,
que se utilizavam de diversas estratégias para negociarem seus interesses e subsistirem
frente às diversidades sociais locais. Se os poderes eram negociados em um contexto
macro, que marcava as sociabilidades e as relações nas camadas hierárquicas superiores,
havia também tal situação entre as camadas intermediárias e mais abaixo, formando
uma sociedade que retroalimenta a cooptação de seus vassalos em busca de privilégios e
distinções, e que se definiam de acordo com a legitimidade das influências que estavam
em jogo e como as mesmas se sustentavam. Erving Goffman (1985) nos ajuda a
esclarecer esta questão que envolve conhecer ou analisar o sujeito no seu próprio
contexto, o que denominou como “definição da situação”. Cada indivíduo atribui a si o
melhor sentido para a suas ações, orientando seu modus operandi a partir das
circunstâncias em que está inserido. Mas, acima de tudo, Goffman sublinha que estas
definições individuais são norteadas pelas relações de poder entre os mesmos, e também
105
Op. Cit. Júnia Ferreira Furtado, Homens de Negócio, p.47.
68
pela legitimidade de cada um dentro da hierarquia de poder, buscando, com isso, o
entendimento entre os pares e diminuindo o conflito.
Ainda, de acordo com Antônio Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier esse
exercício de poderes, dentro das sociedades de Antigo Regime, foi moldado pelas
diversas teias políticas e econômicas que atuavam por todos os referenciais a partir do
poder central e foram assentados por meio de critérios de amizade, família e compadrio.
Hespanha e Xavier definem tal jogo de trocas como redes clientelares, que nada mais
são do que alianças entre diversos indivíduos com interesses em comum, em um
duradouro sistema de oferta de bens econômicos em troca de bens simbólicos, que
culminou em uma intensa política de privilégios, além de originar diversos grupos
hierárquicos interligados por uma cadeia de servidão, dependência e gratidão
(HESPANHA; XAVIER, 1998).
Embora a própria palavra carregue uma definição intuitiva, o conceito de rede
assume uma noção importante dentro da tradição das ciências sociais, que são as
chamadas redes sociais – social network – e remete às conexões, relações e interações
entre os diversos atores sociais. Georg Simmel (1983) e Norbert Elias (2012) podem ser
considerados os principais pioneiros deste conceito, partindo de duas linhas analíticas: a
“sociação” de Simmel, que designa a forma a qual os sujeitos se relacionam entre si, e
dos estudos de Elias o qual estabelece contatos do indivíduo na sociedade a qual se
insere, e suas diversas interações, o que chamou de interdependência.
O conceito das redes sociais ganhou matrizes analíticas mais nítidas através dos
estudos de John A. Barnes (2003) e Radcliffe-Brown (2013), que passaram a distinguir
a ideia de redes enquanto uma orientação que caracterizaria a estrutura social por
elementos variados, e que buscava envolver os atores e seus vínculos. As redes são,
portanto, cadeias de relacionamentos, construídas a partir das ações individuais que se
conectam graças aos diversos tipos de laços, que podem compartilhar diferentes fins e
estratégias. Estas eram formadas porque havia uma ambição coletiva de alcançar
determinados propósitos, e cada indivíduo detinha um recurso o qual toda a rede
dependia, formando, desta maneira, um emaranhado de conexões propícias e
simbiônticas (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010: 23).
A constituição das chamadas redes de comércio, que atuaram em diversas praças
portuguesas e dos territórios do ultramar, tiveram como principais protagonistas os
69
cristãos-novos. A. A. Marques de Almeida (1997) vai afirmar que o jogo das trocas
comerciais no âmbito internacional estava nas mãos desta categoria social, uma vez que
parentes e amigos formavam uma cadeia de correspondência poderosa pelas diversas
praças mercantis, angariando o sucesso destas conexões. O comércio enquanto espaço
cosmopolita convergia enquanto ponto favorável entre os cristãos-novos, pois unia
características essenciais, como a diáspora e a fuga, confluindo-se então à mobilidade e
a capacidade de dispersão.
Por outro lado, os entraves decorrentes das perseguições político-econômicoreligiosas impetradas pelo Santo Ofício infligiram um caminho conflituoso pautado pelo
medo, mas que não foi capaz de paralisar tal categoria, a qual com grande habilidade se
manteve comercialmente forte e com qualidades necessárias que propiciavam a
barganha com diversos agentes. A atuação dos cristãos-novos no comércio ultramarino
foi tão contundente que, ao longo do tempo, se tornaria comum associar a alcunha de
mercador ou homem de negócio a qualquer indivíduo desta categoria social (BOXER,
2002: 314); mas não foram pelas letras de câmbio ou pelas cartas comerciais que estes
personagens ficariam conhecidos, e sim pelo rol dos culpados do Santo Ofício
português. A perseguição inquisitorial impactou diretamente a composição destas
comunidades mercantes.
Para os cristãos-novos, negociar era sobreviver, nas diversas formas que a
sobrevivência poderia assumir para estes indivíduos. Aqui poderiam fugir dos olhos dos
agentes inquisitoriais, mas acolá se aliavam não apenas entre si, mas também com
cristãos-velhos, girando o grande e fundamental motor creditício moderno e
movimentando os circuitos comerciais. O enriquecimento e a habilidade de negociar
não resultavam na conquista dos signos da distinção social do Antigo Regime, o que
não nega à estrutura social das colônias uma plasticidade capaz de oferecer certa
mobilidade, ainda que excludente. Se foram em significativa parte alijados do direito
aos cargos honrosos pelo sangue infecto, o investimento financeiro e a defesa de seus
interesses lhes possibilitavam ocupar posições importantes dentro de suas redes de
influência, o que, dentro de uma sociedade essencialmente agrária, já significava
alguma melhoria.
70
UM AMIGO ÀS VOLTAS COM O SANTO OFÍCIO
Por volta dos 45 anos de idade no ano de 1697, o doutor Francisco Nunes de
Miranda atravessou às pressas o Atlântico, chegando então à Salvador. Branco, de
estatura média, cabelo negro um pouco grisalho encaracolado106, Francisco era um
velho conhecido de Diogo Nunes Henriques e teria a oportunidade de dividir a mesma
cidade do ultramar com o seu amigo depois de se retirar de maneira precipitada para a
América portuguesa, deixando mulher e filhos na Metrópole. Alegando ser “trêsquartos” de cristão-novo e natural da vila portuguesa de Almeida, Francisco era
formado nas artes médicas e filosofia pela Universidade de Coimbra, com uma
passagem discreta pelas escolas de Salamanca. Com os estudos na área de saúde
também veio o conhecimento em latim, idioma necessário para compreender os textos
canônicos e dogmáticos da profissão médica, um saber que lhe rendeu, inclusive, uma
remuneração extra com a docência das letras latinas durante a sua estadia universitária
em Coimbra107.
Dedicar-se à medicina no período vivido por Francisco era trilhar um caminho
até então muito rudimentar. Os obstáculos passavam pela formação acadêmica arcaica
que as escolas lusitanas ofereciam, ainda muito imersas na escolástica, contrária à
experimentação – e que só teriam o currículo modificado a partir da influência dos
estrangeirados108 como António Nunes Ribeiro Sanches e Luís António Verney e o
próprio Marquês de Pombal, que promoveu importantes reformas curriculares na
Universidade de Coimbra durante seu governo – (VILLALTA, 1999: 53), até na própria
106
ANTT/TSO-IL, n.01292, Processo de Francisco Nunes de Miranda. Translado da denunciação de
Félix Nunes de Miranda, mercador, à Inquisição de Llerena, realizada em 02/05/1697: “El Dr. Francisco
Núñez de Miranda, médico tendrá […] buena estatura, pelo crespo negro y algo cano blanco de cara”.
Tradução livre.
107
ANTT/TSO-IL, n. 01292, Processo de Francisco Nunes de Miranda. Em genealogia declarada em
24/11/1700.
108
De acordo com Júnia Ferreira Furtado, o atributo “estrangeirado” se refere aos homens ilustrados, com
conhecimento amplo diverso e que se estruturaram em torno do rei D. João V auxiliando na difusão das
Luzes no país. No entanto, o termo é controverso do ponto de vista historiográfico, uma vez que foi
“conferido com caráter negativo, para acentuar o afrancesamento de suas ideias, a irreligiosidade de seus
princípios, ou ainda a falta de conexão com o reino [português], pois muitos passavam longas estadas ou
viviam por quase toda a vida no exterior”. Ainda, “a recusa do conceito e estrangeirado se deve [...] ao
reconhecimento [...] de que o termo traz em si a ideia de que a cultura portuguesa, entre a Restauração e o
início do reinado de D. José I (1750), esteve mergulhada nas trevas, o que não é verdade”. Em virtude
destas críticas, Júnia prefere utilizar o conceito de “emboabas ilustrados”. Opto aqui pelo termo
“estrangeirado” por sua difusão popular, levando em consideração as ressalvas apresentadas acima. Cf.
Júnia Ferreira Furtado. Oráculos da Geografia Iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste
Bourgüignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2012, pp.116-117.
71
função prática da profissão, que concorria com a sabedoria popular e com a definição
dos ofícios liberais e mecânicos, sentenciando o prestigio e desprestígio das diversas
áreas de atuação. Ser médico era ser um homem letrado, que buscava o conhecimento
científico por meio da leitura e da reflexão e não pela observação dos enfermos, ao
contrário, por exemplo, do cirurgião, uma categoria pertencente ao estrato das artes
mecânicas, indigno, baixo e humilde (FIGUEIREDO, 2002: 69).
Afora tais contratempos, era o grupo cristão-novo que encabeçava as atuações
pela área da saúde lusitana – que comportava, além dos médicos, ocupações
qualificadas como físicos, cirurgiões e boticários. Uma estimativa aproximada realizada
por Iria Gonçalves (1988) indica que, no século XV, pelo menos sessenta e cinco por
cento dos diplomados nas artes médicas em Portugal eram de origem judaica, indicando
a grande inclinação deste corpo social para essas atividades109. Tal cenário não nos furta
em vislumbrar um horizonte de atritos iminentes entre estes profissionais com o Santo
Ofício. E Francisco Nunes de Miranda não escapou em fazer parte deste rol: em 1700
era procurado pelo Tribunal do Santo Ofício de Llerena, da Espanha, por assuntos que
migraram da ordem secular para a ordem inquisitorial, e, por consequência, também
passou a ser perseguido pelo Santo Ofício de Lisboa, após a ordem de prisão emitida
pelo tribunal castelhano. Os motivos lhe pareceram suficientes para providenciar uma
fuga quase às pressas para a colônia brasílica. Como consequência, todo o processo de
evasão do médico e estabelecimento na cidade de Salvador serviu para cruzar a sua
trajetória definitivamente com a de seu amigo Diogo Nunes Henriques.
O primeiro contato registrado entre o Francisco e Diogo data do ano de 1683110,
em uma vila do termo de Castelo Rodrigo chamada Vilar Torpim. Com trinta e três anos
de idade nessa época, o doutor Francisco residia na dita cidade com a sua esposa Isabel
Bernal e filhos – um deles, Manuel Nunes Bernal111, viria a ser um proeminente capitão
de mar e guerra no Rio de Janeiro. Francisco continuava perambulando pelos distritos
da Beira Interior visitando toda a sorte de vilas e cidades, como Pinhel e Trancoso,
praticando a medicina e curando os enfermos, como fez questão de ressaltar nas
confissões feitas perante os inquisidores.
109
Cf. GONÇALVES, Iria. Físicos e Cirurgiões Quatrocentistas. IN: Imagens do Mundo Medieval.
Lisboa: Livros Horizonte, 1988, pp. 9-52.
110
ANTT/TSO-IL, n.07487, processo de Diogo Nunes Henriques: confissão em 15/12/1728.
111
ANTT/TSO-IL, n.11329, processo de Manuel Nunes Bernal, cristão-novo, capitão de navio.
72
Em tal época o ofício médico não possuía rendimentos conspícuos, mas sabendo
aproveitar das situações, o exercício laboral poderia gerar receitas mais generosas. Com
um estilo itinerante, Francisco tinha gosto por viajar por muitas léguas e tirava proveito
da escassez de médicos diplomados nos pequenos vilarejos, se estabelecendo por algum
tempo nestas localidades enquanto a clientela poderia valer-se da presença do doutor
para curar as enfermidades que acometessem os moradores do lugar. Quando a oferta
diminuía ou quando era procurado para oferecer seus serviços em outra comunidade, o
doutor seguia para a próxima vila, sempre em pequenas ou rápidas dilações.
Diogo não foi diferente e seguia igualmente a tendência nômade. Conforme
mencionado anteriormente, em 1683, aos dezessete anos de idade, deu os seus primeiros
passos pelo comércio ambulante, ao acompanhar seu cunhado José Cardoso (casado
com sua irmã mais velha, Isabel) pelo circuito de secos e molhados da Beira Interior até
Castela, passando por cidades como Pinhel, Trancoso e Rio de Onor, Cantalapidra,
Annojosa e Ciudad Rodrigo. Vilar Torpim era uma destas paradas e lá esbarrou com
Francisco Nunes de Miranda, talvez por alguma doença que tivesse acometido Diogo na
ocasião, sendo tratado pelo médico. E logo selaram uma amizade, inclusive, foi por
Diogo que Francisco procurou em Lumbrales após a sua tensa experiência em Castela
para depois partir para a Bahia. Tem-se por hipótese que se não embarcaram juntos para
a América Portuguesa, o fizeram em datas muito próximas. Algum tempo depois do
embarque, a Inquisição castelhana de Llerena emitiu uma carta para a Inquisição
portuguesa: Francisco Nunes de Miranda era réu procurado por crimes de judaísmo e
deveria ser preso; dava ainda notícias de que de o cristão-novo atravessou o mar e teria
se estabelecido em Salvador, território lusitano, portanto, de jurisdição do Santo Ofício
de Lisboa.
O caso do doutor em Castela ocorreu em dezembro do ano de 1696, na cidade de
Plasencia, que sediou por algum tempo o Santo Ofício de Llerena. Um irmão de
Francisco chamado Simão Nunes foi preso junto com os seus sobrinhos Félix Nunes,
Francisco de Miranda e António de Miranda112. O médico alegou que se dirigiu de
San Felices de los Gallegos, onde praticava medicina no momento – mas com
residência fixa em Sobradillo, local em que nasceu sua filha Ana de Miranda113 –, até os
112
ANTT/TSO-IL, n.05002, Processo de Antônio de Miranda.
ANTT/TSO-IL, n.2424-1, Processo de Ana de Miranda, sentenciada ao degredo para a ilha de Cabo
Verde, por seis anos.
113
73
cárceres reais de Plasencia para averiguar a razão da prisão de seus familiares e realizar
uma tentativa de interceder pelos mesmos. Francisco acabou sendo preso, dividindo a
cela com os seus três sobrinhos – Simão foi mantido em uma cela separada – e declarou
ainda que seus familiares haviam sido aprisionados por acusação de furtarem objetos de
uma igreja de Placencia e ele fora igualmente preso por ser considerado cúmplice dos
mesmos. Simão era considerado mentor do crime, principalmente por incorrer contra ele
uma acusação de assassinato em Portugal (SANTOS, 2005: 152).
O estopim que deu origem aos desdobramentos que se seguiram após a prisão
pela justiça secular – e a transferência do caso para os assuntos do Santo Ofício –
começou com uma carta de Simão para o irmão Francisco. O conteúdo da mesma,
porém, é incerto, pois existem dois testemunhos divergentes. O sobrinho Francisco de
Miranda alegou em um depoimento que Simão Nunes enviou tal carta para comunicar
que havia escrito ao Tribunal de Llerena “dizendo o que tinha que dizer”114 e instruindo
os quatro presos sobre o que deveriam expor caso viessem a prestar algum depoimento
à justiça inquisitorial. Além disso, mencionou que o tio médico era sim judaizante e que
teria feito diversos jejuns durante o cárcere.
Já Francisco disse que o irmão escreveu para recomendar que se fizessem três
jejuns “sem as brancas”, em sinal votivo, para que a sua sentença, que já estava sendo
tramitada, fosse favorável à sua liberdade. Desconhecendo o que o Simão quis dizer,
Francisco logo perguntou para seus sobrinhos do que se tratava afinal jejuar “sem as
brancas”. Eles lhe responderam que era fazer o jejum “sem ter camisa”115, isto é, sem
usar roupas limpas (SANTOS, 2005:175), e os quatro teriam então cumprido o pedido
de Simão Nunes.
A historiadora Suzana Maria de Souza Santos (2005) atenta para a perspectiva
de que a família Nunes Miranda possa ter forçado uma guinada do caso para o escopo
inquisitorial, como uma maneira de aliviar as penas que teriam que enfrentar na justiça
secular:
Temendo a aplicação de penas severas pela justiça comum de
Placencia – como o enforcamento ao qual Simão foi condenado, ou o
degredo para galés e presídios de Castela –, mobilizaram-se a fim de
promover a revogação das sentenças com uma confissão de judaísmo.
114
ANTT/TSO-IL, n.01292, Processo de Francisco Nunes de Miranda. Translado da denunciação
“Francisco de Miranda contra Francisco Nunes de Miranda, médico”.
115
ANTT/TSO-IL, n. 01292, Processo de Francisco Nunes de Miranda. Confissão feita em 11/11/1700.
74
Acreditavam que, ao serem reconhecidos como judaizantes, o Santo
Ofício suspenderia o processo na justiça comum – secular – e os
transferiria ao fórum inquisitorial (SANTOS, 2005: 152).
Não é possível chegar a um consenso sobre qual relato é o mais plausível – ou se
os dois estavam mentindo para atraírem a atenção dos inquisidores. O desfecho, na
verdade, independe de tais constatações, pois é certo que o interesse da Inquisição de
Llerena pela família havia crescido, fosse por terem recebido alguma carta
comprometedora de Simão Nunes, fosse por Francisco e os sobrinhos terem jejuado no
cárcere. Simão e Félix Nunes foram os primeiros a serem interrogados para assuntos da
Inquisição, e esta não teria chance de interrogar os outros, pois o doutor Francisco
conseguira escapar dos cárceres de Plasencia, assim como os seus sobrinhos Francisco e
Antônio de Miranda. O médico declarou que um alcaide “sucedeu de abrir-se a porta
da dita cadeia, e fugirem os presos”116, indicando uma certa cumplicidade dos presos
com o mundo exterior, fator que facilitou a fuga (SANTOS, 2005: 153).
A primeira parada do médico após a fuga da prisão foi em Sobradillo para
comunicar à esposa que precisava de se ausentar. De lá, seguiu para Lumbrales, cidade
onde residia Diogo Nunes Henriques naquele momento. Ali Francisco se refugiou por
quase dez dias até dar prosseguimento em sua viagem para o Brasil 117 – provavelmente
seguindo a rota do rio Douro até a cidade do Porto, onde embarcou em um navio com
destino à Salvador. Como mencionado anteriormente, não se descarta a possibilidade de
Diogo Nunes Henriques ter acompanhado Francisco na empreitada. Ou talvez Diogo já
estivesse a premeditar a sua mudança para as terras brasílicas, e assim convenceu o
amigo a acompanha-lo, alegando talvez que, nem a justiça secular castelhana e nem o
tribunal de Llerena poderiam procura-lo por aquelas terras.
Certo é que, independente do fato de ter Henriques ou não sugerido a Francisco,
ou mesmo indiretamente o ter inspirado a fazer de seu futuro, o Tribunal de Lisboa
alcançou o médico cristão-novo em Salvador, sendo preso em novembro de 1700. Não
só à pedido dos inquisidores castelhanos, mas também porque havia um registro de
apresentação incompleto de Francisco na Inquisição de Coimbra na época em que era
116
ANTT/TSO-IL, n. 01292, Processo de Francisco Nunes de Miranda. Confissão feita em 11/11/1700.
ANTT/TSO-IL, n. 01292, Processo de Francisco Nunes de Miranda; Translado da denunciação
“Francisco de Miranda contra Francisco Nunes de Miranda, médico”, 2ª audiência realizada em
19/06/1698: “Dice que habiendo hecho fuga de la cárcel real de la ciudad de Plasencia como declaro en
la audiencia del día 11 del corriente en la compañía de su tío Francisco Núñez de Miranda, médico, y de
otras personas fue con este su tío a la villa de Sobradillo y de allí pasaron a la villa de Lumbrales, en
donde estuvieran por espacio de ocho y diez días”.
117
75
estudante do curso de medicina, pois apesar de ter se apresentado, não obteve licença
para se retirar do Reino. Claro, foi questionado pelos inquisidores lisboetas por isso. Em
resposta disse que nunca fora procurado novamente pelo tribunal de Coimbra, mas que
“se a caso fosse procurado [...] lhe fizessem aviso por que [...] viria com pontualidade
obedecer ao que se lhe ordenasse por parte do Santo Ofício, estando sempre pronto
todas as vezes que o quisessem ouvir para fazer a sua confissão”. 118
Enquanto confessava suas culpas e colocava os inquisidores lisboetas a parte do
ocorrido em Plasencia, Francisco Nunes de Miranda alegou em sua defesa que “se
ausentara por causa do crime que se lhe imputara de furto, e não por desobediência a
Inquisição de Llerena, sem embargo que pelo dito tribunal não tinha sido notificado”.
E de fato não havia sido. Havia ido sim por vontade própria até Plasencia para
interceder pelos seus familiares presos, e acabou preso por ser considerado cúmplice do
crime de furto e, na oportunidade de evasão, ainda estava detido pela justiça comum e
não pela inquisitorial. E na Inquisição de Lisboa, respondeu pelo crime de judaísmo e
nunca chegou a responder pela suspeita de cúmplice do suposto furto.
Além das acusações feitas pelos sobrinhos Félix Nunes e Francisco de Miranda
na Inquisição de Llerena, contra Francisco constavam apenas mais dois relatos de
culpas de judaísmo: de sua tia Isabel Nunes, dado em 1669, e de uma parenta por via
materna Ana de Ávila, de 1667, ambos feitos à Inquisição de Coimbra. Diante das
poucas acusações contra o médico, o mesmo foi liberado três meses depois, sentenciado
apenas às penitências espirituais, abjuração em forma e pagamento de custas. Não teve
os bens confiscados. É provável que o Santo Ofício de Lisboa não tenha atuado com
severidade contra o médico não só pelas poucas acusações, mas também na firmeza das
respostas às perguntas do Tribunal em relação as suas andanças e seu contato com
outros cristãos-novos. Em suma, havia pouco material a ser trabalhado pelos
inquisidores, assim como o próprio Francisco pouco contribuiu para tal.
Não
denunciara Diogo em sua confissão, nem mencionou nada que fosse relativo à sua vida
no Brasil. O envolvimento de ambos só ficaria atestado pelo relato de Diogo e de alguns
filhos de Francisco presos posteriormente, quando o médico já havia falecido.
Liberado para seguir para onde quisesse, o médico se colocou novamente em
rota para a América portuguesa. Sua esposa e seis dos seus oito filhos – Pedro, Antônio,
118
ANTT/TSO-IL, n. 01292, Processo de Francisco Nunes de Miranda. Confissão feita em 11/11/1700.
76
Maria, Francisco, José, Manuel e Ana – seguiriam mais tarde para Salvador119, onde
outros membros de sua família já residiam. Sobre os outros dois filhos, sabe-se que: o
mais velho, João, com então dezessete anos, estudava em Coimbra, e Antônio, com
quinze anos na época, morava em Sintra com o seu padrinho Pedro Machado de Brito.
Ambos permaneceram em Portugal. 120
Francisco Nunes de Miranda continuaria atuando como médico pelo Recôncavo,
enquanto Diogo Nunes Henriques seguiu pelo caminho do comércio. Voltariam a se
encontrar outras muitas vezes, pois frequentavam um a casa do outro, assim como seus
filhos trilhariam o mesmo caminho, se juntando a Diogo pelas vias comerciais e tendo
em sua figura a representação de um legítimo mentor e grande homem de negócio. Uma
vez como residente definitivo na Bahia, Francisco adquiriu algumas terras e curtumes
de um clérigo local, que administrou com ajuda de seu sobrinho Antônio de Miranda
(SANTOS, 2005: 165). E assim como ele, outros cristãos-novos buscariam a Bahia
como lar, impulsionados pela fuga, que, como pode ser notado neste caso específico,
servia apenas para adiar a fatídica prisão – para Francisco, foi adiada por quase três
anos. Um lar que não se provou tão seguro, o que não deixou de significar uma
oportunidade de recomeço, vários recomeços, para as suas vidas.
PELA BAHIA ATÉ AS MINAS
Como já foi dito, em meados de 1697, Diogo Nunes Henriques chegou ao Brasil.
Aportou na cidade de Salvador, na Bahia, em um contexto de efervescência geral: por
volta do ano de 1695, havia notícias concretas de que se acharam os primeiros filões de
ouro na região do rio das Velhas, nas minas de São Paulo (RUSSEL-WOOD, 1990:
260). Nada mais providencial para uma economia imperial fortemente abatida121 e nada
119
ANTT/TSO-IL, n. 11329, Processo de Manuel Nunes Bernal. Confissão feita em 06/03/1727.
ANTT/TSO-IL, n. 01292, Processo de Francisco Nunes de Miranda. Genealogia declarada em
24/11/1700.
121
A Guerra da Restauração (1640-1668) e os conflitos com os holandeses em Pernambuco, Maranhão,
Sergipe e São Tomé são capítulos complementares da derrocada portuguesa. Apesar dos desfechos
positivos, com o reconhecimento oficial pela Espanha da legitimidade monárquica dos Bragança e do
Estado-nação lusitano e a eliminação da presença holandesa nos territórios antes ocupados, a crise
econômica que se arrastou durante esses conflitos lacrara o empobrecimento lusitano. O desequilíbrio
financeiro era tão notável que, segundo Adriana Romeiro, não deixou de ser percebido pelo cônsul inglês
em Lisboa Thomas Maynard, em 1671, quando o mesmo observou que “todo o açúcar chegado este ano,
acrescido de todos os outros artigos que este reino tem para exportar, não dá para pagar a metade das
mercadorias por ele importadas, pelo que todo o dinheiro do reino se escoará para fora dentro de poucos
anos”. Cf. Maria de Fátima Gouveia, Poder político e administração na formação do complexo
120
77
tão mais atrativo para seus vassalos, fosse pela ideia de enriquecimento imediato que o
precioso metal amarelo incutia na população, ou por aqueles que viam ali um leque de
oportunidades periféricas provenientes da corrida pela riqueza. Henriques se enquadrava
no segundo grupo. Não se interessava, a priori, pelo enriquecimento via garimpo, nem
dispunha de recursos que o levassem a esse tipo de investimento.
O rush do ouro iniciara-se com histeria por todos os lados. Gentes de toda a
parte se puseram a trilhar o caminho que levava as Minas, ávidos pela chance de viver
uma oportuna fase de grande opulência. Os portugueses que para ai migraram eram
originários, em sua maioria, do norte de Portugal, principalmente da região minhota,
Trás-os-Montes, Porto, Douro e as Beiras (MAXWELL, 1978: 114), um fluxo tão
intenso formado, principalmente, por:
[...] judeus e cristãos-novos, bandos imensos de ciganos, atiraram-se
para as terras ultramarinas, buscando a fortuna e redenção na largueza
dos sertões infindos, onde, dificilmente chegariam as importunações
do Santo Ofício. Do Minho, de Trás-os-Montes, das Beiras, desciam
caudais humanos que disputavam lugares nas naus, que, formando
grandes comboios, partiam para o Brasil. Fidalgos, militares,
negociantes, artífices, trabalhadores do campo, vendiam tudo quanto
possuíam e largavam-se cegos de ambição pelo ouro do Brasil (LIMA
JÚNIOR, 1978: 35).
O governador da Repartição Sul122 Artur de Sá e Meneses estimou que, no ano
de 1697, a região mineradora contava com um contingente populacional de “mais de
quatro mil pessoas”123. Logo, Meneses defendeu o projeto de abertura e incentivo à
migração para o local124 por considerar tal iniciativa uma maneira segura de manter o
garimpo estável e o negócio das Minas em funcionamento, além de aumentar a
arrecadação do quinto (ROMEIRO, 2008: 52). Porém, tanto o desejo do governador
quanto o vislumbre da grande opulência mineira seriam rapidamente frustrados, sendo
Atlântico. p. 290; Charles Boxer, Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola: 1602-1686, p. 399 apud
Adriana Romeiro, Paulistas e Emboabas no coração das Minas, p. 35.
122
A Repartição Sul compreendia as capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e a região das Minas Gerais.
123
AHU-Rio de Janeiro, cx. 06, doc. 630: Carta de Artur de Sá e Meneses ao rei D. Pedro II, Rio de
Janeiro, 12 de junho de 1697 apud Adriana Romeiro, Paulistas e Emboabas no Coração das Minas, p.
52.
124
De acordo com A. J. Russell-Wood, apesar do otimismo inicial das descobertas do ouro, havia
diversos temores por parte da Coroa em endossar qualquer tipo de política de fronteiras abertas às Minas:
desde a vulnerabilidade do território frente a uma possível ameaça e invasão estrangeira, até as questões
econômicas, como a extensão e durabilidade do processo do garimpo e a continência dessas minas, além
da especulação do mercado de compra e venda desses metais e a balança de oferta e procura – que deveria
ser rigorosamente balizada pela Coroa. Cf. Russel-Wood, Brasil Colonial: el ciclo del oro, c.1690-1750,
p. 261.
78
que a tal cobiça pelo enriquecimento logo se transformaria em um “falso fausto”,
conforme pontuado por Laura de Mello e Souza (1982).
Ainda em 1697, relatos de que a população nas Minas sofria com a fome se
tornaram cada vez mais manifesta. A crise de abastecimento alimentar atingiu limites
extremos entre os anos de 1697 e 1699 e de 1700 e 1701, levando ao abandono de
diversas vilas como Ribeirão do Carmo e da Serra do Ouro Preto (SOUZA, 1982: 25).
A fome e a desnutrição varreram a região. O jesuíta André João Antonil em
Cultura e Opulência do Brasil, descreveu a situação como “sendo a terra que dá ouro
esterilíssima de tudo que se há mister para a vida humana, e não menos estéril a maior
parte dos caminhos das minas, não se pode crer o que padecerão ao princípio os
mineiros por falta de mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga de
milho na mão, sem terem outro sustento”125. Em 1698, Sá e Menezes escreveu para o
rei justificando a baixa arrecadação do quinto naquele ano, dizendo que “sem dúvida
que rendera muito grande quantia, se os mineiros tiveram minerado este ano, o que não
lhes foi possível pela grande fome”. 126
Se a crise para uns é sinônimo de grande atribulação e sofrimento, para outros é
uma situação que pode ser financeiramente aproveitada. Os preços dos mantimentos na
região mineradora, descritos por Antonil como “extraordinariamente altos”127 nesse
período de escassez, evidenciavam uma absurda inflação, gerada pela imensa procura e
pouquíssima oferta, deixando o mercado à mercê de uma valia abusiva. Charles Boxer
sinaliza alguns montantes praticados: uma galinha magra chegou a custar doze oitavas
de ouro, um gato ou cachorrinho vendidos por trinta e duas oitavas e o alqueire de milho
por vinte oitavas (BOXER, 2000: 71).
A fome nas Minas descortinava a falta de planejamento para a região, tanto para
o seu povoamento, quanto pela sua importância estratégica para a Coroa. Seu rápido e
desordenado crescimento indicava que o local não estava pronto para suportar um
projeto de fronteiras livres e com grande contingente, como desejava o governador Sá e
Meneses, e que precisava de um remédio rápido e eficiente para garantir o
abastecimento de produtos de primeira necessidade para os vassalos que ali residiam,
125
Antonil, Cultura e Opulência do Brasil, livro 3, cap. 7.
Diogo de Vasconcellos, História Antiga de Minas Gerais, p.85 apud Laura de Mello e Souza,
Desclassificados do Ouro, p.25.
127
Antonil, Cultura e Opulência do Brasil, livro 3, cap. 7.
126
79
além de ser primordial garantir o aprovisionamento interno se quisessem manter o
garimpo em andamento. Apesar das diversas sugestões e dos projetos que surgiram para
a questão do abastecimento das Minas128, nenhum parecia mais adequado para o
momento do que a utilização dos Caminhos dos Sertões e dos Currais da Bahia ou
Estrada Real do Sertão (GOULART, 2009), uma estrada que corria paralela à margem
direita do rio São Francisco, ligando a capitania da Bahia até as Minas. Foi um
emaranhado de caminhos:
[...] que vinham de todas as direções do interior da capitania da Bahia
convergiam para o rio São Francisco, onde se juntavam numa fazenda
chamada de Arraial de Mathias Cardoso, de onde o caminho para as
minas de ouro seguia a margem do rio durante umas cento e sessenta
milhas, até a junção com o rio das Velhas. Os arraiais mineiros que se
enfileiravam ao longo do rio das Velhas, depressa estavam
interligados por uma rede de trilhas e passagens [...] (BOXER, 2000:
65).
A capitania da Bahia mantivera um elevado percentual de terras destinadas ao
pastoreio e a uma agricultura de subsistência importante, além de caminhos bem
equipados, com trechos navegáveis até o rio das Velhas, em Sabará. Foram questões
que favoreceram o território baiano a se consolidar durante algum tempo como o
principal centro abastecedor das Minas (MORAES, 2007: 68). Além da possibilidade de
prover carne e farinha de mandioca, ainda pelo porto de Salvador chegavam
carregamentos de escravos, cereais, frutas e legumes (SOUSA, 2012: 36).
A intensa atividade de povoamento e ocupação do interior do Recôncavo durante
todo o século XVII foram fundamentais para traçar as estradas do sertão. Em resposta a
uma consulta realizada pelo Conselho Ultramarino em 1698129, ao sair da circunferência
territorial de Salvador era possível seguir três caminhos para os sertões: a Estrada da
Costa, que, como alude o nome, seguia pela costa marítima para o sertão mais ao norte,
o Caminho da Mata ou do Sertão do Meio, e o caminho pela “Água Fria” da Cachoeira;
os dois últimos compreendendo o centro-sul. Os três caminhos cortavam o rio São
128
Em 1698, o governador Artur de Sá e Meneses anunciara ao rei o desejo de abrir um caminho novo
que ligasse as Minas à capitania do Rio de Janeiro, na tentativa de dinamizar a conexão da região
mineradora às facilidades que provinham do Rio de Janeiro. Desta forma, as articulações para a
construção do Caminho Novo foram daí iniciadas, ficando sob a responsabilidade de Garcia Rodrigues
Paes. Cf. Adriana Romeiro, Paulistas e Emboabas no coração das Minas, p. 53.
129
Consulta do Conselho Ultramarino sobre o estado das missões do sertão da Bahia e informando
acerca dos remédios apresentados para evitar os danos provenientes da falta de párocos e missionários.
Lisboa, 18 de dezembro de 1698. E assinada pelo Conde de Arcos, Miguel Nunes de Mesquita e
Francisco Pereira da Silva. Anais da Biblioteca Nacional, n. 31, pp.21-25, 1909.
80
Francisco, que estava distante “quase 100 léguas”130 de Salvador. Todos esses
caminhos estavam em sua maioria:
[...] povoados de moradores brancos, os quais situaram suas fazendas
e casas em todas as partes daqueles desertos, em que acharam águas,
campos e terras capazes de criaram os seus gados e cultivarem as suas
plantas [...] que vivem de 2 em 2 e de 3 em 3 léguas pelo modo acima
dito.131
Por oferecer um trajeto mais ameno, o Caminho do Sertão era o preferido não só
para o escoamento de mercadorias, mas também para os descaminhos do ouro. A região
das Minas, isolada geograficamente, carecia dos produtos comercializados nas zonas
portuárias e proximidades e exigia a atuação de comboieiros e mercadores volantes
nessas localidades. Mesmo com a série de regulamentações e fiscalizações nas Minas132,
o negociante detinha o monopólio dos produtos e poderia regular por si as ofertas e as
barganhas do mercado.
Aproveitando-se de tal janela lucrativa, muitos mercadores optavam por se
aventurar pelos caminhos da pecuária, empreendimento comercial de retorno imediato
que demandava um estilo itinerante para a movimentação das boiadas. Estas poderiam
ser movimentadas do sertão baiano às Minas em até seis semanas, tempo considerado
rápido se comparado à circulação das boiadas do sertão pernambucano – que poderia
levar até dois anos para atingir a Repartição Sul (BOXER, 2000: 68). Completando o
retrato do mercadejo bovino, Ângelo Carrara enfatiza que:
A pecuária, apesar de ser uma indústria mais pobre do que a do
açúcar, possuía uma feição caracteristicamente local, formadora de
gente livre, e com capitais próprios. Por isso, a produção e o
rendimento da pecuária ficariam incorporados definitivamente ao país
(CARRARA, 2007: 18).
130
Consulta do Conselho Ultramarino sobre o estado das missões do sertão da Bahia e informando
acerca dos remédios apresentados para evitar os danos provenientes da falta de párocos e missionários.
Lisboa, 18 de dezembro de 1698. E assinada pelo Conde de Arcos, Miguel Nunes de Mesquita e
Francisco Pereira da Silva. Anais da Biblioteca Nacional, n. 31, pp.21-25, 1909.
131
Ibidem.
132
O contrabando foi o principal motivo para uma série de medidas regulatórias implantadas ao longo
desse tempo, e que tinham o propósito de constranger o escoamento ilícito do metal amarelo e proibir o
comércio que não fosse de gado e cavalar. Porém, tais regulamentações nunca foram prontamente
acatadas pelos viandantes, que abriam caminhos periféricos às alfandegas reais ou ainda conseguiam
estabelecer acordos com os funcionários da ordenança, responsáveis por coibir o escoamento dos
produtos. Diante disso, as medidas não duraram muito tempo.
81
Esse gado de criação, conhecido como curraleiro pé-duro133, raça originária da
região alentejana e trazida pelos portugueses nos primórdios da colonização do
território, é uma espécie animal com grande sucesso adaptativo nas condições do
cerrado, fator que lhe atribuiu uma grande rusticidade, além do baixo custo de produção
e grande capacidade de movimentação; foi esta a raça bovina que ocupou os currais da
época (ROMEIRO, 2008: 139). A empresa açucareira baiana utilizava em larga escala
esse gado como força motriz de seus engenhos, mas a disputa das terras litorâneas –
férteis e ideais para os canaviais – acabou por irradiar diversas áreas de criação do
animal para o interior do território, seguindo a linha do rio São Francisco, que ficaria
conhecido então como o “rio dos currais” (MORAES, 2007: 66). O alvará do Conselho
Ultramarino de 1701 selaria o fim da pecuária extensiva próximas à região litorânea ao
estabelecer que “tivesse efeito não somente das dez léguas do Recôncavo, mas em toda
a parte onde chegasse a maré”134 não houvesse ali terras destinadas para esse efeito.
Tal medida empurrou ainda mais a ocupação do interior sertanejo, definindo assim sua
importância regional.
Era praxe que nas mesmas roças baianas que se destinavam à pecuária também
fossem lavradas mandioca e, principalmente, tabaco, em um sistema de uso de terra
peculiar e eficaz, como analisa a historiadora Maria Yedda Linhares. O gado ajudava a
estrumar o solo no período de pousio135, tornando a terra fértil para o cultivo de tais
produtos, importantes tanto para o consumo interno como para a exportação
(LINHARES, 1996). Além disso, o couro de origem bovina era largamente utilizado
para embalar os rolos de tabaco que saiam então para a exportação pelo porto de
Salvador, tornando as duas atividades simbiônticas (SOUSA, 2012: 37).
O perfil do comércio de gado vacum e cavalar soava perfeito para alguém como
Diogo Nunes Henriques. Quando chegou à Bahia entre os anos de 1697 e 1698, o
cristão-novo ouviu dizer que um mercador chamado Simão Álvares dos Santos havia
colocado em praça quatorze escravos e oitenta cabeças de gado, vacas de parir e alguns
133
Cf. SALLES, Patricy Andrade [et. all]. Estado atual da conservação da raça bovina curraleiro péduro na região nordeste brasileira. Campina Grande: INSA/MTCI, 2013.
134
Alvará régio suscitando a observância da lei de 15 de fevereiro de 1688 obrigando os habitantes da
Capitania da Bahia à plantação da mandioca, de 27 de fevereiro de 1701. Anais da Biblioteca
Nacional, n.31, pp. 90-91, 1909.
135
O período agrícola conhecido como pousio se refere ao tempo em que a terra é deixada sem
semeadura, com o objetivo de repousar o solo após diversas lavras, para que possa receber a devida
fertilização e se tornar novamente produtivo.
82
carros pela quantia de sete mil cruzados e cento e vinte mil réis 136. Interessado, o
cristão-novo ofereceu ao mercador um acordo com a quantia de quatrocentos mil réis
como entrada pelos produtos à venda, e o restante da dívida lhe quitaria totalmente em
cinco anos, conforme assinado em procuração. E assim fecharam negócio.
Diogo logo se instalou em uma roça na vila baiana de Cachoeira 137, identificada
como sítio do Subaé138, distante aproximadamente dezoito léguas de Salvador, e se pôs
a multiplicar o seu gado. No comércio local baiano, cada cabeça de gado podia valer
entre três e cinco oitavas de ouro e um único animal possuía diversas serventias, sem
contar o fornecimento alimentar (BOXER, 2000: 68). Além da carne, o couro era item
importante para “encourar” os rolos de tabaco, conforme mencionado anteriormente.
Além disso, os bois do tipo “carro” – também chamados “cavalar” – eram usados como
força motriz, seja no arado ou no transporte, cruciais para as lavras de mandioca e cana
de açúcar. Nessa sua nova etapa comercial, Diogo não esteve sozinho. Logo contaria
com parcerias e sociedades importantes para seguir com seus negócios, envolvendo toda
a sorte de gente. Desta forma, o cristão-novo colaborou para a formação de um
poderoso grupo comercial que atuaria no eixo Bahia, Minas e Rio de Janeiro.
AMIZADE, COMPADRIO E NEGÓCIOS
É importante frisar que as sessões sociais de Diogo Nunes Henriques são, em
suma, muito extensas, como serão demonstradas a seguir. Além de suas múltiplas
relações, as mesmas se encontram em movimento constante. Isto se deve não só porque
um único agente era capaz de se mobilizar por diversas regiões, mas também pela ação
do próprio Santo Ofício, que forçava estes personagens a trabalharem em um
136
Anita Novinsky, Inventários dos Bens Confiscados, pp. 89-92.
De acordo com a historiadora Avanete Pereira Sousa, a região da vila da Cachoeira foi um valoroso
centro econômico da Bahia, que comportava um importante porto fluvial e centro beneficiador e
exportador do fumo. Além disso, era um dinâmico entreposto comercial, que afluía a partir dali os
caminhos e estradas para o sertão baiano e outras capitanias. Stuart Schwartz contabilizou pelo menos
quatro armazéns, em funcionamento por volta do ano de 1697, onde se guardavam os rolos de fumo que
seriam exportados via porto de Salvador. Cf. Avante Pereira Sousa, A Bahia no século XVIII, pp. 36-37.
138
Subaé (também grafado como “Subahe”) é o nome do rio que desagua na Baía de Todos os Santos e
abastecia diversas regiões do Recôncavo como Cachoeira e Santo Amaro, sendo utilizado, sobretudo,
como força motriz e irrigação dos engenhos de açúcar que se instalavam em sua margem. Em 1757, foi
relatado que algumas regiões próximas ao rio haviam se tornado infrutíferas, pois “como os seus
habitadores viviam de plantarem mandioca em terras arrendadas vendo-se perseguidos das formigas,
que decepam e absolutamente destroem a tal lavoura, se foram mudando para outra freguesia [...].
Chamam-se os lugares que se desertam Irará, Tatta e Piraunas.” Cf. Relação da Freguesia de Nossa
Senhora da Purificação de Santo Amaro do Recôncavo da Bahia, pelo Vigário José Nogueira da Silva
(1757), em Anais da Biblioteca Nacional, n.31, pp. 201-202, 1909.
137
83
movimento
extra.
Perseguir
estes
cristãos-novos
pelo
rastro
documental,
inevitavelmente, gerou mais nomes para serem arrolados e investigados, tal como
advertiu João Fragoso (2002). Entretanto, é um procedimento necessário para não só
trabalhar no resgate dessas relações sociais, mas também significa abrir uma porta para
o entendimento desta sociedade (FRAGOSO, 2002: 62).
Outra dificuldade foi quanto a caracterização das ocupações e os ramos de
atuação dos indivíduos deste grupo. A partir do vocabulário social das ocupações para
esse período, caracteriza-los a partir das atividades que exerciam exigiu entender a
fluidez a qual estavam sujeitos. A historiografia comumente aborda essas clivagens do
setor mercantil com bases fechadas, levando em consideração a dimensão das
transações comerciais que eram realizadas – o atacadista de “grosso trato” e o varejista
“a retalho” –, a mobilidade do comerciante – fixos ou volantes – e sua estância –
eventual ou permanente (CHAVES, 1999: 49). Porém, devido a gama de possibilidades
de atuação, são segmentos de difícil percepção, causando grande oscilação dentro das
definições formais e gerando outras então informais (FURTADO, 2006: 271). A tabela
a seguir demonstra essa variabilidade entre as características comerciais e as
classificações declaradas no grupo aqui analisado.
84
TABELA 01 – Ocupação e ramo de atuação dos cristãos-novos
Nome completo
Ocupação (declarada ao
Santo Ofício)
Diogo Nunes Henriques
Homem de negócio
Manuel Nunes da Paz
Homem de negócio
José da Costa
Homem de negócio
Diogo de Ávila Henriques
Homem de negócio e
tratante
David de Miranda
Tratante
Domingos Nunes
Tratante
Jerônimo Rodrigues
Tratante
Pedro Nunes de Miranda
Tratante e lavrador140
Antônio Rodrigues de
Campos
Gaspar Henriques
Lavrador de mandioca
Antônio de Miranda
Curtidor
Manuel Nunes Bernal
Capitão de navio
Mineiro
Ramo de atuação (de
acordo com o
inventário)139
Pecuária; compra e venda
de escravos e outros
gêneros; crédito; contratos
Compra e venda de gênero
de fazendas
Capitão
de
navio;
traficante de escravos
Compra e venda de
escravos e outros gêneros;
crédito
Compra e venda de
tecidos;
comércio
de
alfaiataria
Comboieiro de escravos,
aguardente,
e
outros
gêneros
Comboieiro de escravos e
outros gêneros
Lavrador
de
milho;
comboieiro de escravos
Lavrador de mandioca,
milho e tabaco; procurador
Comboieiro de escravos;
compra e venda de
escravos e outros gêneros.
Proprietário de curtume;
(produção de couro e sola)
Capitão de navio; Capitão
de Mar e Guerra
Fonte: ANTT-TSO/IL
A partir da tabela, é interessante notar a corrente falta de correspondência entre
como os agentes se designaram perante o Santo Ofício e a seção em que exerciam seu
ofício. Um mesmo ramo de atuação poderia ser denominada de diversas formas,
principalmente dentro da qualificação do tratante. No vocabulário Raphael Bluteau, o
139
Os inventários utilizados são aqueles declarados ao Santo Ofício na ocasião da prisão destes
indivíduos e que, portanto, constam no processo dos mesmos.
140
Pedro Nunes de Miranda tem duas passagens pelo Tribunal de Lisboa: uma em 1714 e outra em 1731.
Na primeira, declarou-se tratante e, na segunda, lavrador.
85
tratante é caracterizado enquanto o indivíduo “que trata em alguma mercancia, ou coisa
semelhante”141. Em suma, os chamados tratantes atuavam como comerciantes volantes,
responsáveis por escoar mercadorias de diversos gêneros de um ponto a outro. Eram
contratados por outros agentes para realizarem não só esse tipo de serviço, mas também
para cobrar e acertar dívidas em locais afastados do contratante. Júnia Ferreira Furtado
clarifica que os chamados tratantes eram comumente homens brancos livres e de poucas
posses, devido ao estilo itinerante necessário para as atividades. Ainda, foi uma
ocupação que se apresentava como tipicamente cristã-nova142. Por costume, quando o
tratante recebia as mercadorias para fazer o seu transporte, se tornava devedor delas e,
ao vende-las, abatia-se então o valor do seu pagamento (FURTADO, 2006: 264). Um
tratante poderia ser perfeitamente designado enquanto comboieiro, ou seja, alguém
responsável por conduzir mercadorias em grandes quantidades entre diversos locais. O
tipo mais comum de comboieiro foi o de negros, que conduzia numerosos lotes de
escravos dos portos até outras regiões do interior do território. Os comboieiros não se
limitavam ao transporte de apenas um tipo de mercadoria, podendo abarcar diversos
gêneros em uma única viagem (FURTADO, 2006: 266).
Ainda em análise da tabela, os ofícios tidos como mecânicos – ou manuais – e os
liberais são mais inteligíveis em sua correspondência com o ramo de atuação. Os
lavradores de fazendas e curtidores ocupavam funções particulares e comumente
possuíam um pequeno número de escravos para auxilia-los nas tarefas. Essas ocupações
poderiam ser exclusivas, pois os produtos originários destes ofícios possuíam
equivalentes de troca e venda fixos dentro do comércio interno, mas não era incomum o
envolvimento ocasional em outras ramificações para obter-se um complemento da
renda. Já os capitães de navio, um ofício tido como liberal, trabalhavam mediante
contratos com outros comerciantes para escoarem as mercadorias por via marítima.
Habitualmente dedicavam-se ao tráfico negreiro pelas regiões da Costa da Mina, nos
portos de Luanda e Benguela.
O termo homem de negócio, também de acordo com o dicionário Raphael
Bluteau, equivalia-se ao significado de “negociante” e “mercador”: “aquele que trata de
Raphael Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino – vol. 8. Verbete “tratante”.
Esta conclusão é feita dentro do trabalho de Júnia Ferreira Furtado, a partir da análise de onze tratantes
contratados para carregar mercadorias para as Minas, no período estudado pela historiadora. Todos eram
cristãos-novos e foram presos pela Inquisição. Dentre os onze tratantes pesquisados por Júnia Ferreira
Furtado, alguns fazem parte desta presente pesquisa. Cf. Júnia Ferreira Furtado, Homens de Negócio. p.
264.
141
142
86
negócios próprios, ou alheios”143. De modo geral, o homem de negócio era caraterizado
como um comerciante de grosso trato que controlava certas rotas mercantis de produtos
fixos. Além disso, contratava pequenos comerciantes volantes e tratantes para
realizarem o escoamento de suas mercadorias ou atuarem como procuradores. Também
movimentava as linhas de crédito locais, ou seja, adiantavam quantias a outrem
mediante uma porcentagem de juros. Em outras linhas, os grandes negociantes e
mercadores de grosso trato dos setecentos taxavam a si próprios enquanto homens de
negócio. Dois motivos são detectados para tal comportamento. Em primeiro lugar, a
falta de uma diferenciação legal entre as clivagens comerciais propiciou esse ambiente
de indefinições – situação modificada por Pombal, em 1770, quando foi sistematizada a
designação do homem de negócio. Em segundo lugar, é inegável a existência de uma
hierarquia dentro deste corpo mercantil, que se construía e se modificava entre os
mesmos. Ser um homem de negócio significava ocupar o topo desse corpo, e denotava
uma ascensão na sociedade local em que esse agente atuava (FURTADO, 2006: 239).
O objetivo com a apresentação desde pano de fundo é ajudar a compreender
melhor as alianças entre esses personagens. Partindo, primeiramente, das suas
ocupações e o entendimento das mesmas dentro deste corpo mercantil, buscaremos
então esclarecer como foi processado esse emaranhado parental e de compadrio, os
laços que os aproximaram e as afinidades entre as suas ramificações profissionais.
Seguindo o fio das atividades de Diogo Nunes Henriques, quando o mesmo instalou-se
no sítio do Subaé, região de Cachoeira, na Bahia, ainda contava com pouca ou quase
nenhuma ajuda para iniciar a sua empreitada. Ao longo do tempo, diversos cristãosnovos reinóis passariam para a Bahia, oportunidade que o velho Henriques teve em se
lançar em diversas parcerias para seguir com o seu negócio.
O jovem Antônio Rodrigues de Campos144 foi um destes importantes
parceiros. Acompanhado de sua esposa Leonor Henriques, Antônio desembarcou na
Bahia por volta do ano de 1707. Era filho do homem de negócio português Francisco
Nunes Romano, grande compadre do velho Henriques e, portanto, já conhecido pelo
mesmo. O casal passou a residir com Diogo no sítio de Subaé, sob condições
contratuais para arrendamento de uma parte das terras da propriedade. Nessa nova
residência, Antônio adquiriu alguns escravos e cultivou mandioca, milho e alguns
143
144
Raphael Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino – vol. 5. Verbete “negociante”.
ANTT-TSO/IL n.02139, Processo de António Rodrigues de Campos.
87
legumes, e, principalmente, tabaco145. A produção da Nicotiana – nome científico da
planta nicotina – assim como a pecuária, caiu no gosto dos pequenos agricultores graças
ao seu retorno imediato e baixo custo de produção. 146
Com parte da sua produção, Antônio quitava o arrendamento das terras de
Diogo, lastro que era aproveitado pelo velho Henriques de diversas formas. Assim, além
das suas boiadas, Diogo mandava comercializar os gêneros agrícolas produzidos por
Antônio. Ainda, o tabaco era considerado uma moeda valiosa em diversas praças da
Costa da Mina para o tráfico de escravos, janela que logo foi bem aproveitada por
Henriques com a parceria de Antônio: este buscou negociar no porto de Salvador o
tabaco de Subaé em troca de negros africanos, que seriam revendidos por Diogo no
sertão e região das Minas, praça com demanda garantida devido à efervescência aurífera
e a crescente necessidade de mão-de-obra destinada à mineração. Desta forma, Antônio
passou a ser o intermediário de Henriques, enquanto seu procurador comercial.
Assumindo uma grande parceria com Antônio Rodrigues de Campos em sua
roça, Diogo dispôs de mais tempo para comandar pessoalmente seu comboio de
produtos pelo sertão147. Entre os anos de 1709 e 1720, o velho Diogo subiu e desceu por
diversas vezes o caminho do sertão até as Minas, levando suas boiadas, mandioca,
tabaco, escravos e outros artigos que adquiria em Cachoeira e em Salvador. Contou com
o esforço de velhos amigos, e também fez amizade e contatos com homens de força
militar e que estivessem interpostos nos negócios da região, como quando passou a
frequentar a fazenda de Santo Onofre, às margens do rio São Francisco, de propriedade
dos herdeiros do Coronel das Ordenanças Antônio Vieira de Lima, militar de grande
cabedal, conhecido por sua fidelidade ao Governador-geral D. João de Lencastre e
oposição aos paulistas148. Diogo também forneceu escravos ao tenente Jerônimo
145
Ibidem. Inventário declarado ao Santo Ofício em 12/11/1729.
O historiador Jean Baptiste Nardi caracteriza o contexto o qual o pequeno agricultor Antônio
Rodrigues de Campos estava inserido quando optou pelo cultivo do tabaco e outros gêneros na roça de
Henriques, pois o tabaco era cultivado por “lavradores livres, brancos, casados, com média de quatro
escravos, sendo a terra arrendada e parte da produção de fumo e de gêneros alimentícios cultivados
destinada para pagar o seu proprietário”. Cf. Jean Baptiste Nardi, O fumo brasileiro no período colonial.
p. 57.
147
Além disso, com o levante emboaba na capitania das Minas, ocorrido em 1708-9, e finalmente
dissipado e com os potentados relativamente enfraquecidos, a travessia das caravanas mercantes pelo
sertão poderia ser realizada sem grandes transtornos.
148
ANTT-TSO/IL n.07489-1, Processo de David de Miranda, Confissão em 06/12/1728.
146
88
Soares149 e negociou gado com Sebastião Barbosa Prado, capitão da infantaria da
capitania da Bahia e importante autoridade dos sertões das Minas e Bahia.
Um cunhado de Diogo Nunes Henriques também optou por traçar um novo
caminho para si na Bahia. Casado com sua irmã mais velha Isabel, José Cardoso, o
tratante que outrora fora mentor de Diogo pelos caminhos comerciais em Portugal,
aportou na colônia ultramarina em tempo desconhecido e assumiu o comércio de azeite
de peixe – conhecido também como óleo de baleia –, item fundamental para o
abastecimento das lamparinas que forneciam iluminação pública e privada. Com o
falecimento de Isabel, José casou-se com a cristã-velha Maria Freire, natural da região
portuguesa do Escalhão. O casal passou a residir na praia de Salvador, em companhia de
Antônio Cardoso, filho do primeiro casamento de José, também comerciante de óleo
de baleia. Outro filho de José Cardoso e Isabel Nunes também havia se mudado para a
América portuguesa: o tratante Jerônimo Rodrigues150, com sua mulher Guiomar da
Rosa e três filhos. Por ser comboieiro de escravos, o estilo itinerante da profissão de
Jerônimo não permitia longas estadias em sua casa na Bahia. Diogo Nunes Henriques
chamara Jerônimo diversas vezes até a sua fazenda para contratar os seus serviços
volantes e fazer carregações, além de adiantar créditos ao mesmo.
Fora destas tramas familiares, os Miranda, ou melhor, os descendentes diretos do
médico Francisco Nunes de Miranda, foram, sem dúvida, os maiores coligados de
Henriques na América portuguesa. Para curtir o couro de seu rebanho, Diogo contou
com o auxílio do cristão-novo Antônio de Miranda151, sobrinho do médico Francisco
Nunes de Miranda – que estivera no episódio em Plasencia e fugira do cárcere. Na
Bahia, Antônio se tornou responsável por um curtume na região do Recôncavo e
também se tornou consignatário de Diogo152. Assim como seu tio Francisco, Antônio
manteve uma relação muito próxima a Henriques antes de encontrá-lo na Bahia. Pelo
comércio entre Portugal e Castela, Antônio serviu como intermediário escoando cargas
149
ANTT-CS: Feitos Findos (diversos), mç. 11, nº 64: Carta de Francisco Pinto Henriques para Diogo
Nunes Henriques.
150
ANTT-TSO/IL, n.10003, Processo de Jerônimo Rodrigues.
151
ANTT-TSO/IL n.05002, Processo de Antônio de Miranda.
152
Anita Novinsky, Inventários de bens confiscados a cristãos-novos, p. 50.
89
de açúcar dos portos portugueses em direção a Salamanca, e ambos dividiram estadias
em diversas estalagens pelos caminhos que levavam até o reino espanhol. 153
Antônio de Miranda se especializou na confecção de sola, além de comprar e
vender tecidos em Salvador. Tal ofício rendia lucros mais imediatos, graças a uma vasta
clientela do Recôncavo, permitindo que o cristão-novo tivesse um capital de giro mais
dinâmico do que Diogo, pelo menos neste primeiro momento. Diogo Nunes Henriques
foi responsável por escoar alguma parte dos carregamentos de panos de linho para as
Minas além de também comercializar escravos que comprava de Antônio para
igualmente revender nas Minas (SANTOS, 2005: 161). A sociedade formada entre os
dois cristãos-novos foi duramente abalada com a prisão de Antônio pelo Santo Ofício,
em 1709. E foi preso para não mais retornar, pois faleceria no cárcere inquisitorial de
Lisboa, em abril de 1713. No inventário declarado aos inquisidores, consta que Antônio
mantinha uma grande afinidade financeira com Diogo, com créditos e dívidas entre os
dois, envolvendo couro, solas e escravos. 154
Pedro Nunes de Miranda155, um dos filhos do doutor Francisco, e David de
Miranda156, primo de Pedro, filho de Ana de Miranda – irmã de Francisco –, cresceram
sob os olhos atentos do velho Henriques. Os dois tinham em Diogo um mentor
formidável para os negócios e aprenderam com ele a importância das boas relações no
mundo mercante; atesta isso a visita que Henriques fez a um importante mercador,
Francisco de Albuquerque, acompanhado pelos dois meninos quando este chegou à
Bahia para que então não perdessem a oportunidade de “dar-lhe os parabéns de ter
chegado aquele dia”157. O cristão-novo Francisco de Albuquerque era irmão do
poderoso homem de negócio Manuel de Albuquerque e Aguilar158 – que se lançaria,
mais tarde, no contrabando de diamantes. O ensino e aprendizado dos negócios na
América portuguesa foi algo bastante doméstico, sendo realizado, prioritariamente, nas
casas comerciais as quais pertenciam os jovens aspirantes (FURTADO, 2006: 114).
Em Salvador, Pedro se especializou na lavoura de milho, produto que ele mesmo
passou a negociar, além de vender escravos ocasionalmente (SANTOS, 2005: 161). Já
153
ANTT-TSO/IL n.05002, Processo de Antônio de Miranda. “Culpas de judaísmo que há nesta
Inquisição de Coimbra contra Antônio de Miranda”.
154
Anita Novinsky, Inventários de bens confiscados a cristãos-novos, p. 52.
155
ANTT-TSO/IL n.09001, Processo de Pedro Nunes de Miranda.
156
ANTT-TSO/IL n.07489, Processo de David de Miranda.
157
ANTT-TSO/IL n.09001, Processo de Pedro Nunes de Miranda. Confissão realizada em 14/05/1732.
158
ANTT-TSO/IL n.14407, Processo de Manuel de Albuquerque e Aguilar.
90
David se dedicou ao comércio dos tecidos, alfaiataria e confecção de roupas,
contratando para o seu serviço “várias mulheres costureiras e por casa de alfaiates
muita roupa e vestidos que lhe havia mandado fazer”159 cujas peças eram revendidas,
sobretudo, nas Minas. A parceria entre Pedro e David não foi interrompida pela reclusão
no cárcere inquisitorial: foram detidos juntos, em 1714, e liberados igualmente, no autoda-fé de fevereiro de 1716. E juntos também retornaram para o Brasil, porém, embora
tivessem aportado novamente em Salvador, estavam determinados a explorarem novas
praças comerciais. Ambos seguiram para a capitania do Rio de Janeiro, mas
continuaram o percurso mercantil até as Minas e não perderam o contato com o grupo
em questão.
Até então, Henriques atuava enquanto um comerciante de grosso trato, se
envolvendo em diversas operações mercantis e, principalmente, contratando e
financiando atividades de terceiros. Todavia, o horizonte de negociação de um homem
de negócio não abarcava apenas o envolvimento com estes agentes menores, mas
também com outros homens de negócio. Nessa rede de relações era importante
estabelecer comunicações capazes de conectar espaços mais amplos e que tornasse
possível o aprimoramento das diversas praças de comércio e o desenvolvimento das
ofertas do mercado. O homem de negócio Diogo de Ávila Henriques160
161
fazia parte
de um grande circuito de importação de negros de Angola, graças ao seu acesso a letras
de créditos recambiadas do Porto e de Lisboa para a Bahia (FURTADO, 2013: 197).
Durante um bom tempo, Diogo de Ávila fora o grande fornecedor de escravos ao filho
de Diogo Nunes Henriques, Manuel Nunes da Paz162, que passou a negociar na Bahia
em nome de seu pai.
Em um sistema de contrato e arrendamento de navios, Diogo de Ávila Henriques
requisitava os serviços de alguns capitães para que realizassem o intercâmbio entre as
praças marítimas africanas com a América portuguesa. O cristão-novo José da Costa163
159
Anita Novinsky, Inventários de bens confiscados a cristãos-novos, p. 78.
ANTT-TSO/IL n.02121, Processo de Diogo de Ávila Henriques.
161
Ainda, Diogo de Ávila Henriques também comprou solas na mão de Antônio de Miranda, enviando-as
para a cidade de Porto, onde eram então comercializadas pelo seu pai, o rendeiro Jorge Henriques
Moreno. Cf. Júnia Ferreira Furtado, Trajetórias carto-geográficas de uma família de cristãos-novos, p.
197.
162
ANTT-TSO/IL n.09542, Processo de Manuel Nunes da Paz.
163
De acordo com o Trans-Atlantic Slave Trade Database, José da Costa foi registrado como capitão da
embarcação “São Pedro”, que saiu da Bahia para, pelo menos, duas viagens, em 1718 e 1719. Cada uma
dessas viagens foi responsável por trazer mais de quatrocentos cativos para a Bahia. Viagens consultadas:
nº 51732 e nº 51747.
160
91
foi cooptado para tais serviços. Casado com Ana de Miranda, filha do doutor Francisco,
José comandava galeras – um tipo de embarcação longa – com destino à baía africana
de Benim, conhecida também como Costa dos Escravos, em um porto denominado
pelos portugueses como Ajudá164, um dos grandes entrepostos destinados ao tráfico de
escravos. Lá o capitão negociava com reinóis ali residentes que intermediavam o
comércio negreiro. Além do ouro, outras moedas eram aceitas para realizar o pagamento
pelos escravos, como tecidos e, principalmente, o tabaco brasileiro de terceira
qualidade, conhecido também por soca. Bastante apreciado pela nobreza da África
Ocidental e com baixo custo de produção, era um tabaco acessível em termos de
fabrico, pois era embalsamado com uma camada de melado de cana de açúcar e envolto
em couro. Esse processo não só evitava o ressecamento da erva, como também tornava
seu aroma bastante agradável (STABEN, 2008: 48).
Carregada sua galera de escravos angolanos, José da Costa retornava ao porto de
Salvador e ali entregava o acordado pelo contrato com Diogo de Ávila Henriques, e
este, então, se punha a fazer negócio, contando com o auxílio de seu primo, o mineiro
Gaspar Henriques165. Os interessados em comprar os escravos de Diogo de Ávila,
muitas vezes, realizavam a transação com Gaspar, que assumia também a função de
procurador do seu primo. Tanto Diogo quanto Gaspar contratavam comboieiros e
tratantes para distribuir a carregação de escravos – e outros gêneros – de acordo com os
acordos firmados com os comerciantes de outras regiões. Os cristãos-novos Domingos
Nunes166, Pedro Nunes de Miranda e Jerônimo Rodrigues eram os principais
convencionados, e ainda os irmãos Diogo, João e Sebastião Nunes, conhecidos como
“os irmãos Nunes”167, também ofereciam suas ocupações volantes para escoar as
mercadorias.
A construção da teia comercial de Henriques buscava cobrir diversos pontos da
cadeia econômica, desde a fase produtiva até o transporte de seus produtos. Decerto a
formação de tais conexões gerava importes mais competitivos, além de fortalecer os
Conhecido também pelo nome internacional de “Whydah”. Optou-se aqui por utilizar o nome
português.
165
ANTT-TSO/IL n.06486, Processo de Gaspar Henriques.
166
ANTT-TSO/IL n.01779, Processo de Domingos Nunes.
167
Os irmãos Nunes foram extensamente estudados por Júnia Ferreira Furtado, cuja pesquisa pode ser
conferida na sua publicação Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D Anville na construção da cartografia do Brasil e no artigo Trajetórias cartogeográficas de uma família de cristãos-novos dos sertões das Gerais aos Cárceres da Inquisição: o
caso dos Irmãos Nunes.
164
92
contatos e garantir o próprio mercado. Diogo subsidiava uma lucrativa produção de
tabaco em suas terras, além de comercializar gado e carne de açougue, escravos e outros
gêneros. Além disso, Henriques também adiantava créditos a uma gama de pessoas,
mediante juros previamente acordados168. Acima de tudo, com o passar do tempo Diogo
Nunes Henriques se tornara cada vez mais bem relacionado dentro desta cadeia, e
naturalmente, passa a almejar novas perspectivas.
É igualmente certo o tato mercantil de Henriques, que conhecia as
potencialidades de atuar no mercado das Minas. Certamente ouvira dizer que os
isolados sertões mineiros, além as possibilidades de mineração, também abrigavam
gentes de toda a sorte, interessadas em amealhar riquezas e prosperar. Decerto soube de
alguns tratantes cristãos-novos169 que residiam no distrito das Minas próximo à Vila
Rica chamado Cachoeira do Campo, em um local conhecido como Curralinho, e que
seus negócios prosperavam (FURTADO, 2013: 201). Diogo, na companhia de seu filho
Manuel Nunes da Paz, passou a residir no sítio do Curralinho, por volta de 1716. Em
sua nova residência movimentava suas boiadas do sertão, e importava outras mais
próximas, para vender aos açougues de Vila Rica.
Nas viagens pelo sertão, Diogo estreitou ainda mais seus laços com outro
comerciante de gado: o mencionado Sebastião Barbosa Prado, homem influente e com
cabedais suficientes para fazer frente aos potentados de Manuel Nunes Viana e
Francisco do Amaral Coutinho, que controlavam a passagem do rio das Velhas, do São
Francisco e do Paraopeba (ANTEZANA, 2006: 138). Ainda, em 1713, Sebastião foi
nomeado tesoureiro da Fazenda Real, dos bens confiscados aos presos pelo Santo Ofício
e dos defuntos e ausentes, em Vila Rica e seu termo (ANTEZANA, 2006: 105). Mais
tarde, a união de ambos seria selada com a entrada de Diogo Nunes Henriques nas
esferas dos contratos régios, ocasião que finalmente dava ao velho Henriques o estatuto
privilegiado de verdadeiro homem de negócio. Em 1721, Diogo Nunes Henriques
arrematou o contrato dos dízimos de Vila Rica.
168
Anita Novinsky, Inventários de bens confiscados a cristãos-novos, p. 90.
Os cristãos-novos aos quais nos referimos são os irmãos Nunes: Diogo, João e Sebastião, que residiam
nos Campos de Itaubira (atual cidade de Itabirito), provavelmente desde o início da década de 1710. Cf.
Júnia Ferreira Furtado, Trajetórias carto-geográficas de uma família de cristãos-novos. p. 201.
169
93
ALGUNS PONTOS SOBRE OS CONTRATOS RÉGIOS E O DÍZIMO
A esfera dos contratos régios, de acordo com João Fragoso, foi “um dos
principais ramos de negócios em uma economia de Antigo Regime e, portanto, como
setor onde se localizariam os grandes homens de negócio” (FRAGOSO, 2000: 5). O
sistema de contratos consistia em uma atividade administrativa que permitia a Coroa
uma espécie de terceirização temporária dos serviços de arrecadação colonial. O termo
“contrato”, de acordo com o glossário do Códice Costa Matoso, significa que se trata de
uma “convenção feita entre a Coroa e particular ou companhia para a administração e
arrecadação de renda real, sendo feito através de leilão”170.
Mauro Albuquerque Madeira define “contratação” como uma prática
estabelecida entre um particular e o direito real, desempenhando o contratado um
serviço público que previa a cobrança de diversas receitas do Estado e efetuando
despesas, mediante certa renda e condições (MADEIRA, 1993: 99). Tais rendas e
condições estavam fixadas em um edital público que regia os contratos, e que deveriam
ser celebrados mediante um leilão, igualmente público, e que seguia as designações do
Conselho Ultramarino. O arrematante com o maior lance era então designado à
responsabilidade de arrecadar os direitos régios, se tornando “sócio temporário” do rei
(ARAUJO, 2002: 56). Em tese, o valor total deveria ser quitado ao término da vigência
do contrato, sendo pago integralmente ou em parcelas anuais, conforme negociação
entre as partes. Porém nem todos os contratadores honraram suas dívidas com o erário
real, sendo bastante comum a permanência destas dívidas por gerações, ou de pedidos
ao Rei para que procedesse com o perdão das dívidas.
A vigência dos contratos, a priori, era trienal, ou seja, por três anos o contratador
ficaria responsável por conduzir as atividades de cobrança, podendo este tempo ser
prorrogado ou suspenso antes do término, dependendo então das determinações do
Conselho Ultramarino ou da Fazenda Real. Ao arrematar um contrato – ou mais
contratos, pois um particular poderia alcançar o remate de mais de um – o contratador
angariava certos privilégios, pois tal atividade era equiparável ao de um servidor régio,
gozando de proteção cível e criminal de um funcionário da Fazenda – já que a mesma
era subordinada a tal –, tendo como seu juiz privativo o Provedor da Fazenda Real
(ARAUJO, 2002: 72).
170
CÓDICE Costa Matoso, vol. 2, p. 88.
94
Os contratos praticados pela Coroa portuguesa podem ser divididos em duas
categorias: a primeira contando com atividades de monopólio de exploração, chamado
de estanco, de produtos como o da extração dos diamantes, a pesca de atum, obtenção
do coral e marfim, óleo de baleia, pau-brasil, tabaco, da pimenta malagueta e outras
especiarias; e a segunda com a arrecadação de impostos reais, como das alfândegas e
dos tributos das entradas, das passagens e dos dízimos (ELLIS, 1982: 102). Havia
diversas serventias e conveniências para a Coroa portuguesa ao optar por essa
modalidade de cobrança de tributos, que, de acordo com Ângelo Carrara:
Para a Real Fazenda, a vantagem consistia na garantia de pagamento
pelo contratador, que assumia a responsabilidade pelo valor total
arrematado, além das despesas referentes à administração. Para muitos
negociantes, por sua vez, a participação nesses contratos representou
uma oportunidade de expansão de seus negócios (CARRARA, 2009:
33).
Essa vantagem permitia a Coroa realizar um planejamento mais palpável do
orçamento fazendário do Reino. Além disso, ao transferir o ônus da cobrança aos
terceiros, retira-se ai a burocracia de reservar um corpo administrativo e executivo para
o serviço (OLIVEIRA, 2009: 28). Os arrematantes muitas vezes se valiam de um
conhecimento territorial prévio, ou possuíam certa predisposição para explorar as
localidades que precisavam percorrer para arrecadar, auxiliando ainda na interiorização
do poder metropolitano pela colônia, uma prerrogativa considerável se comparados à
classe do funcionalismo régio.
Já explicitadas as condições, funcionamento e vantagens dos Contratos, é
relevante aqui abordar apenas o dízimo, que, literalmente, refere-se à décima parte de
um todo171. Foi um tributo religioso, tradicional nos Estados católicos, e é definido,
como o próprio adjetivo faz alusão, à décima parte de “todos os bens móveis licitamente
adquiridos, devida a Deus e a seus Ministros por instituição divina e constituição
humana”172, ou seja, 1/10 da produção total do vassalo – agricultura e criação de
víveres para consumo – pertencia a Fazenda Real (MADEIRA, 1993: 138).
171
De acordo com o Vocabulário Raphael Bluteau, dízimo se trata da "décima parte que se paga as
igrejas, párocos delas e pessoas eclesiásticas para sua côngrua e sustentação [...] os fiéis sustentem aos
tais ministros coma décima parte dos frutos que colhem, ou fazenda de bens de raiz [...]”. Vocabulário
Português & Latino, vol. 3.
172
Mauro de A. Madeira, Letrados, Fidalgos e Contratadores, p. 138.
95
A origem do dízimo em Portugal remonta ao século XV, quando foram
implementadas as novas formas para o Regime do Padroado, que determinava a
organização da Igreja Católica e acordava as formas de financiamento das atividades
religiosas no reino português. Em 1456, foi outorgada pelo papa Calixto III à Ordem de
Cristo a autoridade eclesiástica sobre todas as terras sob domínio português. Ou seja, ao
rei de Portugal, enquanto Grão-Mestre da Ordem de Cristo, coube a responsabilidade de
proteger e preservar a jurisdição episcopal do ultramar, além de ter recebido como
doação o encargo da arrecadação dos dízimos, receita que deveria ser então aplicada em
prol da proposta evangelizadora da Igreja – o que incluía o seu sustento nos territórios
coloniais. Sobre as novas nuances do Padroado, Eduardo Hoornaert esclarece que:
[...] não se trata de uma usurpação dos monarcas portugueses de
atribuições religiosas da Igreja, mas de uma forma típica de
compromisso entre a Igreja de Roma e o governo de Portugal. Unindo
os direitos políticos da realeza os títulos de grão mestre das ordens
religiosas, os monarcas portugueses passaram a exercer ao mesmo
tempo o governo civil e religioso, principalmente nas colônias e
domínios de Portugal (HOORNAERT, 1979: 160).
Contudo, caso houvesse sobejo dos valores arrecadados do dízimo, os mesmos
poderiam ser destinados às despesas gerais do Estado. Sobre esse ponto, Caio Boschi
ressalta que a transferência do dízimo ao Clero não ocorreu da forma prevista pelo
regime do Padroado e sim ao contrário: o repasse do tributo quase em sua totalidade foi
destinado ao Estado, sendo pouquíssimo destinado à Igreja, embora continuasse sendo
propagandeado enquanto tributo religioso, o que diminuía a resistência do seu
pagamento (BOSCHI, 1987: 44). O dízimo se tornou, ao longo dos séculos XVI e XVII,
um dos pilares fiscais básicos da Coroa no Brasil, e só perdeu tal importância com o
advento da extração aurífera nas Minas e o pagamento do quinto, a partir do século
XVIII (CARRARA; SANTIRO, 2013: 170).
Na América portuguesa, a cobrança do tributo passou por diversas fases. Em um
primeiro momento, correspondiam essencialmente à décima parte da produção dos
gêneros agrícolas destinados à exportação – açúcar e tabaco – e seu cálculo obedecia a
produção total do território brasileiro. A partir de 1628, o cálculo foi separado por
capitania. Com a expansão das áreas destinadas ao pastoreio – principalmente gado –
aos poucos o balanço também passou a incidir sobre os víveres. Na região das Minas,
toda a produção agrícola e pastoril era voltada para o abastecimento interno, que cresceu
96
ao passo que se intensificava a mineração no século XVIII, gerando uma boa
arrecadação do tributo (CARRARA; SANTIRO, 2013: 194).
Ainda nas Minas, a coleta do dízimo recebeu alguns tratamentos especiais. Seu
cálculo foi separado e arrematado por comarca, além da obrigatoriedade de ser quitado à
Real Fazenda na moeda circulante da capitania, que era o ouro em pó 173. Portanto, a
arrecadação nas Minas era feita da forma seguinte: cada comarca possuía um escopo
administrativo responsável por contabilizar a produção total anual das propriedades da
mesma; após a contabilização, procedia-se então ao balanço do valor a ser cobrado
pelos contratadores e estes partiam para o recolhimento da parcela referente ao dízimo,
que era coletado em mercadorias. Era responsabilidade do contratador efetuar a venda
dos produtos para repassa-los à Real Fazenda em ouro em pó. De qualquer maneira, não
era vantajoso nem seguro para o contratador receber diretamente em ouro, pois havia
sempre o perigo de furto ou perda pelo manuseio constante.
Como a produção está condicionada aos fatores climáticos e de uso do solo, a
arrecadação do dízimo precisava lidar com as incertezas da colheita e das estações. O
ano com uma safra ruim significava prejuízo iminente para o contratador, que precisava
honrar com o valor total acordado no edital, e não com o valor correspondente a taxa de
produção. O dízimo passou por flutuações tanto do valor taxado pelos editais quanto
pelo valor oferecido para o seu remate. A Real Fazenda poderia assumir a
responsabilidade da coleta caso não houvesse lance para os editais ou quando o valor
oferecido era demasiadamente inferior ao esperado (CARRARA; SANTIRO, 2013:
171).
Contudo, por se tratar de um tributo tão alto, foram poucos os casos de ausência
de propostas. Os contratos, de maneira geral, foram mecanismos eficientes de controle
por parte da metrópole sobre as colônias, além de ser igualmente capazes de cooptar,
isto é, admitir os vassalos interessados em fazer parte deste círculo de negócios e no
enriquecimento advindo de tais oportunidades e também pela distinção advinda da
posição de contratador. O historiador Luiz Antônio Silva Araújo, à luz da importância
da esfera dos contratos, menciona o Mapa dos Contratos Reais do Conselho
173
Apenas a partir do ano de 1730, por ordem do rei D. João V, é que a Capitania de Minas adotou a
moeda de cobre como moeda circulante em seu território. Cf. “Carta Régia enviando moeda de cobre para
correr no governo das Minas” IN: Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 17, p.335, 1912.
97
Ultramarino, documento cuja introdução já elucida a preocupação do erário régio com a
questão:
São os contratos do Ultramar um dos principais socorros, de que se
mantem e sustentam as Conquistas de Portugal, ficando sempre muita
parte livre com que se pode enriquecer o Erário Régio, que poderá ser
ainda maior, quando for menor a despesa, que naquelas partes se faz,
por ocasião de extraordinárias urgências.174
Voltando à reflexão do historiador João Fragoso, citada anteriormente, por se
tratar de um dos principais ramos dos negócios na economia de Antigo Regime, havia
um círculo de interesses e favores entre os contratadores e a Coroa. Os contratos eram a
ponte mais comum para a inserção em um jogo de trocas para maiores ganhos, sejam
financeiros ou em cabedais. É nesse contexto que Diogo Nunes Henriques se integrou,
fazendo valer seus interesses pessoais, de seus sócios e de sua família, à frente dos
interesses da administração e da Coroa.
NEGÓCIOS, CONTRATOS E AS TRAMAS DO GOVERNADOR DAS MINAS
Diogo Nunes Henriques chegou à Vila Rica no ano de 1716, acompanhado de
seu filho Manuel Nunes da Paz. Tornou-se proprietário de uma roça próxima à
Passagem de Mariana, chamada Curralinho e ali continuou a negociar gado. Aliás, é
esta parte da trajetória de Henriques que mais tem notoriedade na historiografia sobre as
Minas para a época. Adriana Romeiro cita rapidamente Diogo como um comerciante
que comprava “gado no sertão por intermédio de seus agentes, para revende-lo nos
açougues de Vila Rica”.
175
Já Júnia Ferreira Furtado menciona que Diogo foi um
comerciante que se dedicava exclusivamente ao comércio bovino, dizendo então que
“não era um comerciante volante típico pois, muitas vezes, comprava gado no sertão
[...] para revender nos açougues de Vila Rica”. 176
A colcha de retalhos que torna legível a história de Henriques justifica o
desconhecimento acerca das suas conquistas. Ao que se pode observar até então é que o
cristão-novo chega às Minas já com um cabedal considerável e com uma considerável
rede de influências. E é por uma dessas pontes que Henriques foi cooptado a adentrar no
negócio dos contratos. Foi Sebastião Barbosa Prado, este então cooptado pelo então
174
Mapa dos Contratos Reais do Conselho Ultramarino apud Luiz Antônio Silva Araújo, Negociantes
portugueses: as redes nas arrematações de direitos e tributos régios. p. 155.
175
Op. Cit. Adriana Romeiro, Paulistas e Emboabas no coração das Minas, p. 139.
176
Júnia Ferreira Furtado, Homens de Negócio, p. 267.
98
governador Dom Lourenço de Almeida177, que fez a proposta ao Diogo Nunes
Henriques para que este oferecesse um valor para o próximo triênio dos dízimos. Ciente
da oportunidade de selar a própria carreira comercial com o reconhecimento dos
contratos, Diogo aceitou tal jogo. Não havia impedimento formal para que um cristãonovo não pudesse participar do leilão dos contratos. Aliás, muitos cristãos-novos ao
longo da história moderna portuguesa se especializaram nas esferas dos contratos, como
a família dos Morgadouros, dos Pestanas e dos Chaves (MATTOS, 2013: 174). O
primeiro contrato firmado na América portuguesa teve à frente o cristão-novo Fernão de
Noronha, para a extração do pau-brasil. Ademais, Diogo jamais seria cooptado se não
fosse um grande comerciante, com interesse no investimento e com possibilidade de
arrecadar o capital necessário para a empreitada. Júnia Ferreira Furtado pontua que
foram estes grandes homens de negócio os “invocados a [...] arrematar os diferentes
contratos para a exploração dos produtos coloniais”178.
Quando cooptado, Henriques preferiu não lançar o valor apenas por
investimentos unicamente próprios, embora confiasse no consórcio subsidiado por
Barbosa Prado. Para tanto, contou com uma parceria firmada com seus amigos e
fiadores cristãos-novos, nomeadamente com David Mendes da Silva, David de Miranda,
seu sobrinho Domingos Nunes, Jerônimo Rodrigues, seu filho Manuel Nunes da Paz e
Pedro Nunes de Miranda. Unindo-se em sociedade, os possíveis riscos e falências
poderiam ser minimizados, embora a esfera dos contratos fosse comumente considerada
como um negócio seguro. E assim o foi: em junho de 1722, os contratos dos dízimos
foram arrematados para as três comarcas das Minas: Silvestre Marques, para a comarca
do Rio das Mortes arrematou por 3 arrobas e 10 libras; Sebastião Barbosa Prado179,
para a comarca do Rio das Velhas, arrematou por 7 arrobas e 16 libras; e Diogo Nunes
Henriques, para a Comarca de Vila Rica, arrematou por 12 arrobas e 21 libras180. Com
valores considerados vultosos até então, o governador das Minas, Dom Lourenço de
Almeida, não deixou de fazer registro do grande feito sob sua administração ao El-Rey,
elogiando o empenho de seus vassalos:
177
Governador da Capitania de Minas Gerais entre 1721 e 1732, substituindo Dom Pedro de Almeida, o
Conde de Assumar.
178
Júnia Ferreira Furtado, Homens de Negócio, p. 35.
179
Sebastião Barbosa Prado também arrematou, juntamente com os dízimos, o contrato dos Caminhos
dos Currais e da Bahia, cujo valor foi de 25 arrobas.
180
AHU-Minas Gerais: cx. 5, doc. 69, carta enviada a 23 de agosto de 1724.
99
[...] vendo os dízimos da Comarca do Ouro Preto e os da Comarca do
Sabará em preço mui diminuto pela grande união que os lançadores
tinha feito entre si e os queriam arrematar em por menos de três
arrobas da arrematação passada, os arrematou com os seus sócios por
mais de trinta libras de ouro da última arrematação [...] tendo feito a
Vossa Majestade tão grande serviço que não só lhe tem aumentado a
sua Real Fazenda se não a tem pagado toda com a maior pontualidade.
181
Não obstante, Dom Lourenço tinha gosto por enaltecer seus feitos como
governador ao conselho do rei. Por meio das inúmeras cartas que remetia a Vossa
Majestade, o governador utilizava-se de um expediente repleto de malabarismos
retóricos para afamar a sua própria figura, engrandecendo a si através das palavras, na
qualidade de um vassalo dedicado às causas da Coroa, valendo-se, desta forma, de um
jogo de construção pessoal enquanto fator primordial para a sua carreira e posição
pública. De origem abastada, condizente com a mais alta nobreza de espada portuguesa,
além de detentor de uma “posição invejável na Corte” – segundo Evaldo Cabral de
Melo – o irmão do patriarca de Lisboa Dom Tomás de Almeida e cunhado do braço
direito do rei Diogo Mendonça Corte-Real, Dom Lourenço de Almeida edificou uma
poderosa ferramenta de interesses por meio de uma rede de influências com alcances
extraordinários. Tão influente que o dedicado vassalo não se furtou da oportunidade de
desconsiderar as ordens reais e participar ativamente da vida mercante da Capitania182,
embora nunca tivesse sido punido pelos diversos crimes de lesa-majestade nos quais
poderia ter sido enquadrado – mérito da sua boa retórica, já que rebatia muito bem as
acusações às quais fora confrontado, e também dos seus laços familiares com pessoas
muito próximas ao rei de Portugal. Nesta linha, Adriana Romeiro salienta que a
participação ativa dos governadores nos negócios das Minas, sobretudo os contratos,
não era desconhecida (ROMEIRO, 2008: 132). Ainda, sobre tais desvios durante o
governo de Dom Lourenço, deve-se pontuar que:
Ao longo dos onze anos do governo de Dom Lourenço, o Conselho
Ultramarino recebeu um sem-número de denúncias saídas das Minas,
a maior parte delas versando sobre a intromissão ilícita do governador
nos negócios coloniais e as vexações que dela resultavam
(ROMEIRO, 1999: 326).
181
RAPM. Seção Colonial: transcrição do Códice 23 - Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas
do governador ao Rei, p. 204.
182
Uma Ordem Real de 1718 proibia vice-reis, governadores, capitães-generais, oficiais de justiça e
ministros de participarem de qualquer tipo de atividade comercial na região em que estivessem exercendo
sua respectiva função, alegando que “este cuidado não os embarace, nem impeça a pôr toda a sua atenção
e desvelo no cumprimento de suas obrigações.” APM: Seção Colonial, códice 02, fl. 63v-64 apud
Adriana Romeiro, As confissões de um falsário. p. 326.
100
O empenho de Dom Lourenço em se aliar aos poderosos mercadores locais fazia
parte da sua estratégia em manter seus próprios negócios através de uma rede clientelar
capaz de defender seus interesses pessoais, sem se furtar em atender as demandas d’ElRey. Se aumentassem os valores dos tributos régios durante o seu mandato, o benefício
seria de todos os envolvidos: a) da Coroa, pelas receitas auferidas; b) do governador,
que, além dos ganhos materiais, adquiria também prestígio e confiança frente ao rei; c) e
do vassalo cooptado, que aumentava o seu cabedal. Ao mesmo tempo, é notável que
Dom Lourenço, familiar do Santo Ofício habilitado em 1696183, tenha permitido que um
cristão-novo com pública fama de judaizar184 arrematasse os dízimos de Vila Rica. Isto
porque Dom Lourenço foi um familiar do Santo Ofício bastante atuante. Assim como
nutria o gosto por registrar seus feitos ao rei, também tinha a mesma conduta em relação
à sua atuação no escopo inquisitorial, reportando-se diretamente à Lourenço de
Valadares Vieira, fazendo constar que tinha “grande gosto de o servir [ao Santo Ofício]
e grande honra, tenho ajudado nestas Minas a muitos familiares para fazerem várias
prisões de réus”185. Ao que tudo indica, no caso de Diogo Nunes Henriques, o
governador deliberadamente decidira realizar vistas grossas ao fato de haver um cristãonovo afamado de judaísmo entre os arrematantes. Os motivos para isso vão desde a sua
cooptação enquanto contratador, realizada por Sebastião Barbosa Prado, que detinha
uma avolumada confiança de Dom Lourenço, ao valor do arremate – o mais alto entre
as três comarcas – e também por não se tratar de um panorama definitivo, uma vez que,
findado o prazo do contrato também cancelam-se as relações com o contratador. E
principalmente: foi por alguns agentes ligados a Henriques que Dom Lourenço
conseguia escoar os diamantes que retirava do Serro Frio para negociá-los nos países do
norte, como por Manuel de Albuquerque e Aguilar, já mencionado anteriormente, sócio
do fiel vassalo do governador, Inácio de Souza Ferreira – e mentor da fábrica de moedas
falsas de Paraopeba, que seria desmantelada por Diogo Cotrim de Souza, em 1731 – e
também com o criado de D. Lourenço, Francisco Xavier Soares (ROMEIRO, 1999:
134).
De acordo com Aldair Carlos Rodrigues, “Dom Lourenço veio para as Minas já habilitado, sendo que
seu processo teve desfecho favorável em 1696”. Aldair Carlos Rodrigues, Inquisição e Sociedade. p.212.
184
Como demonstrado no capítulo primeiro, era de conhecimento do Vigário da vara de Vila Rica,
Antônio de Pina, de que Diogo era um judaizante em potencial, assim como também era conhecimento do
comissário Lourenço de Valadares Vieira.
185
ANTT-TSO/IL: processo 00821 apud Aldair Carlos Rodrigues, Inquisição e Sociedade. p.212.
183
101
Foi durante a fase dos contratos que o grupo cristão-novo de Henriques passou a
estabelecer relações mais duradouras com os vassalos metidos com a mineração e com o
escoamento de produtos pelo Caminho Novo até a praça comercial do Rio de Janeiro,
que incluía o contrabando de ouro e, posteriormente, de diamantes. De acordo com o
relato impresso do médico cristão-novo Jacob de Castro Sarmento, intitulado Matéria
Médica: physico-histórico-mecânica, Reyno Mineral, publicado na Inglaterra em 1735,
teria sido por volta do ano de 1726 que as pedras brancas garimpadas no leito dos rios
do Arraial do Tejuco foram identificadas como diamantes, embora a descoberta oficial
tenha sido comunicada por Dom Lourenço à Coroa apenas em 1729. O governador fora
praticamente obrigado a relatar as descobertas, já que o murmurinho e a notoriedade das
pedras tinham atingido a mesma histeria observada quando noticiaram a descoberta do
ouro, em 1695, impulsionando uma nova leva de imigrantes a aportarem nas Minas
(FURTADO, 2007: 307). Enquanto isso, um eixo comercial lucrativo dos diamantes
passou a ser explorado concomitantemente com os descaminhos do ouro em um circuito
entre Minas e o Rio de Janeiro, com destino a Lisboa, Londres, até chegar às mãos dos
ricos comerciantes judeus de Amsterdam (ROMEIRO, 1999: 323).
Algumas lavras de ouro do Paraopeba estavam sob o comando do cristão-novo
Manuel Nunes Sanches186, que contava com 21 escravos para o serviço da extração
aurífera, que fazia em sociedade com André da Silva Viana. Igualmente o cristão-novo
Francisco Ferreira Isidoro187, residente na região do Carmo das Minas, local em que
tinha uma roça e um plantel de 25 escravos, a maioria voltado para o garimpo, e embora
negociasse com Henriques e com o seu filho Manuel Nunes da Paz diversos secos e
molhados, Francisco ficou lhe devendo 450 oitavas de ouro dos dízimos reais, o qual
nunca quitou188. Ainda, Francisco contava com a ajuda de um caixeiro, o cristão-novo
José Nunes189, morador no Arraial do Tejuco, que intermediava a compra e venda de
panos, vidro e escravos no porto do Rio de Janeiro, além de ser próximo aos
garimpeiros dos diamantes do Tejuco. Já Pedro Nunes de Miranda passou a residir na
comarca do Rio das Mortes, servindo como intermediário em diversas transações que
envolviam Manuel Nunes da Paz, e também ao irmão de Pedro, Manuel Nunes
186
ANTT-TSO/IL, n. 11824, processo de Manuel Nunes Sanches.
ANTT-TSO/IL, n. 11965, processo de Francisco Ferreira Isidoro.
188
Anita Novinsky, Inventários de bens confiscados a cristãos-novos, p. 113.
189
ANTT-TSO/IL, n. 00430, processo de José Nunes.
187
102
Bernal190, capitão de um navio que saía do porto do Rio de Janeiro em direção da Costa
da Mina e Lisboa. Manuel Nunes Bernal enviava os diamantes de Manuel de
Albuquerque e Aguilar para Lisboa, com a ajuda do criado do governador, Francisco
Xavier Soares.
No término do triênio, em 1726, Diogo não conseguiu dar continuidade à sua
carreira dos contratos pelos seguintes motivos: l) a saída de Sebastião Barbosa Prado da
esfera dos contratos, uma vez que, em 1724, o mesmo foi nomeado Provedor do
Registro da Passagem de Boa Vista do caminho dos Currais da Bahia. Além disso,
Diogo Nunes Henriques deixara um saldo devedor considerável de seus contratos, o
qual jamais conseguiu quitar. Com tal solvência em sua conta corrente, Barbosa Prado
deixaria de se aliar novamente a Henriques para os negócios, buscando outros parceiros
comerciais; 2) um desentendimento entre Jerônimo Rodrigues com os irmãos Pedro
Nunes de Miranda e Manuel Nunes Bernal produziu um rompimento no grupo
comercial191.
Jerônimo protocolou uma reclamação no Fisco de Vila Rica, na qual alegou que
os irmãos Pedro e Manuel teriam se apropriado de uns créditos que lhe pertenciam por
direito. Para testemunharem a seu favor, Jerônimo chamou Diogo Nunes Henriques e
seu filho, Manuel Nunes da Paz, e sobrinhos, Domingos e Antônio Nunes. Logo os
irmãos foram convocados ao Fisco para prestarem explicações e tiveram alguns bens
confiscados. O episódio, claro, desagradou profundamente a Pedro e Manuel, que
passaram a se declarar inimigos de Jerônimo e dos que haviam testemunhado contra
eles. Com tamanho abalo em seus laços, o grupo se partiu. Mais tarde, Pedro tivera
outros desentendimentos graves com um cristão-novo chamado João de Morais,
cunhado de Gaspar Henriques. Este entregara ao ouvidor da Comarca do Rio das Mortes
alguns créditos que pertenciam a Gaspar Henriques, após a prisão deste pelo Santo
Ofício, em 1726. Os créditos, de acordo com Pedro, teriam sido transferidos para sua
posse pelo próprio Gaspar, informação, porém, que não conseguiu comprovar. 192
As diversas contendas comerciais entre os agentes começaram a se acirrar ao
passo que a Inquisição dava início a emissão de mandados de prisão para vários deles.
Em 1726, pouco tempo depois de findados os contratos, a Inquisição foi alcançando
190
ANTT-TSO/IL, n. 11329, processo de Manuel Nunes Bernal.
ANTT-TSO/IL n.09001, Processo de Pedro Nunes de Miranda.
192
Anita Novinsky, Inventários dos bens confiscados, p. 121.
191
103
estes agentes. Nas suas confissões, denunciavam uns aos outros, alguns de maneira
agressiva, ressaltando a inimizade que passou a predominar entre os mesmos. A rede de
Henriques, outrora muito bem costurada, amarrada e próspera, lentamente se dispersou.
Muitos fogem, outros buscaram apresentar-se ao bispo do Rio de Janeiro, ou até mesmo
aos inquisidores de Lisboa, como forma de abrandarem suas penas. Diogo permaneceu
em Vila Rica, contando com a ajuda de poucos, como David de Miranda e seu sobrinho
Domingos Nunes. O declínio sistemático era uma questão de tempo. Vários outros
cristãos-novos, como os irmãos Diogo, João e Sebastião Nunes, temendo serem
descobertos e presos, voltaram para Portugal, e lá organizaram uma fuga bem sucedida
para Londres. Ao saírem das Minas, deixaram para trás suas propriedades e seus
lucrativos negócios (FURTADO, 2013: 204).
É inegável a ascensão deste grupo em sua sociedade local. Em comum esforço,
produziram o seu próprio espaço de mercantilização, propiciado, sobretudo, pelas
diversas portas abertas na região aurífera das Minas e o seu crescimento urbano.
Sobretudo, Diogo Nunes Henriques trilhara o caminho de um verdadeiro homem de
negócio. Porém, essa ascensão abarcava um expediente de tensões. A hierarquia
comercial nunca deixou de interiorizar e normatizar os símbolos de prestígio do Antigo
Regime português, impulsionando, portanto, o acesso aos símbolos de distinção. Aos
cristãos-velhos, homens de negócio, foi extremamente interessante obter e acumular tais
símbolos de prestígio – como a Ordem de Cristo – pois, desta maneira, eram
notabilizados de acordo com os códigos de reconhecimento do Reino, além de atestar a
pureza de sangue. Aos cristãos-novos, impossibilitados do acesso a esses emblemas,
restava gravitar entre a consagração comercial e o desprestígio do sangue infecto.
Sangue este, além do reconhecimento público e notório como cristãos-novos, que os
levariam ao fatídico momento de encarar os inquisidores.
104
CAPÍTULO III
A ÚLTIMA PEÇA: O COMPASSO INQUISITORIAL
"Ai dos que promulgam leis iníquas, os que elaboram rescritos de
opressão para desapossarem os fracos do seu direito e privar da sua
justiça os pobres do meu povo, para despojar as viúvas e saquear os
órfãos. Pois bem, que fareis no dia da visitação, quando a ruína vier de
longe? A quem correreis em busca de socorro [...]”?
Isaías 10, 1-4
EFEITO DOMINÓ
Desfrutando de um enriquecimento comercial e perfeitamente adaptado às
condições da colônia, Diogo Nunes Henriques e seus companheiros souberam jogar
conforme as regras do jogo. Se aliaram a importantes comerciantes cristãos-velhos e
estavam diretamente ligados à circulação dos produtos pelas praças principais: Bahia –
Minas e posteriormente ensaiaram alguma influência no Rio de Janeiro. Porém, no ramo
dos negócios nem tudo pode ser calmo, ou se manter plácido. O comércio enquanto
espaço de sociabilidades significa que também abarca uma gama de conflitos, invejas e
calotes. Como demonstrado no Capítulo I, Henriques e sua trupe não pareciam esconder
tão bem a faceta cristã-nova, deixando transparecer, se não pelas cerimônias judaicas,
pelo desinteresse em relação à manutenção dos costumes gerais. Outrossim, souberam
administrar por tempo razoável seus cabedais e a importância estratégica de cada um
dentro da rede mercantil que formavam.
Contudo, a partir de 1726, a aparente prosperidade que tais atores gozavam
começou a ser importunada pelo Santo Ofício. Em novembro do mesmo ano, os primos
Gaspar Henriques193 e Diogo de Ávila Henriques194 foram alcançados pelo Tribunal de
Lisboa, na cidade de Salvador. Gaspar, mineiro de profissão, era natural da vila
portuguesa de Travaço e residente na Bahia, casado com a cristã-nova Ana Gomes, irmã
de David de Miranda. O homem de negócio Diogo de Ávila Henriques era natural da
193
194
ANTT-TSO/IL, n.06486, Processo de Gaspar Henriques.
ANTT-TSO/IL, n. 02121, Processo de Diogo de Ávila Henriques.
105
vila de Azevo, em Portugal, solteiro, e atendia pela alcunha de “Jangada”. Apesar de se
declarar como mineiro, um ramo igualmente lucrativo explorado por Gaspar Henriques
foi o tráfico de mão de obra escrava para diversas praças da América portuguesa, que
contava com o intermédio de seu primo, Diogo de Ávila Henriques. A delação de
ambos fornecera muitos nomes ao Tribunal: Diogo de Ávila, Jerônimo Rodrigues,
David de Miranda, Manuel Nunes Bernal e Manuel Nunes da Paz – filho de Diogo
Nunes Henriques.
Porém, é certo que os inquisidores também se interessaram pelo voluptuoso
inventário dos primos Gaspar e Diogo, além dos agentes envolvidos na extensa troca de
créditos que ambos confessaram ter ligações. Diogo de Ávila Henriques, um rico
comerciante e traficante de negros de Luanda, alegou ser proprietário de diversos itens
confeccionados com pau brasil, espelhos, prataria, móveis de confecção especial com
pregaria dourada e acabamento de brim, além de escravos e letras recambiadas do Porto
e Lisboa relativas à venda de solas que importava para negociar escravos na Costa da
Mina195. Já Gaspar Henriques, declarou ao inquisidor João Alvares Soares ser dono de
diversos leitos confeccionados com pau brasil e móveis de madeira de jacarandá,
cortinados de damasco e carmesim, extensa prataria, joias e botões de ouro e diamantes,
letras de crédito para compra e venda de escravos na Bahia, Minas e Rio de Janeiro. 196
Lina Gorenstein, corroborando a análise de Fernando Novais, chama a atenção
para a falência atingida pelo Estado português nesta altura dos setecentos, sendo esta a
principal motivação para o aumento das prisões e o confisco de bens de cristãos-novos
abastados da colônia do ultramar, sobretudo daqueles com ligações mais estreitas com o
distrito minerador (GORENSTEIN, 1994: 103). Ainda, de acordo com Fernando
Novais:
É nesse quadro, como já anteriormente notara Antônio José Saraiva,
que se pode entender a inserção institucional e o volume de ação do
Santo Ofício; agindo sobre a “gente da nação”, categoria que se
confundia quase com a de “homens de negócio”, a Inquisição
funcionava como um meio de preservação da ordem social [...]. Os
efeitos economicamente negativos não se explicitarão apenas com o
cálculo da descapitalização provocada pela fuga dos perseguidos; há
que pensar no “impacto negativo dessa jurisprudência (a dos
sequestros) sobre a segurança das transações de comércio com os
195
196
Anita Novinsky, Inventários de bens confiscados a cristãos-novos, p. 79.
Ibidem, p. 121.
106
cristãos-novos”, pois “uma vez sequestrados preventivamente os bens,
estavam eles praticamente perdidos”197 (NOVAIS, 1979: 210).
A prisão dos primos foi sentida pelo grupo cristão-novo aqui analisado. Pedro
Nunes de Miranda relatou que se reunira diversas vezes com outros indivíduos “por
ocasião de falarem na prisão de Gaspar Henriques [...] e de outras mais pessoas que
tinham sido presas por ordem do Santo Ofício”198. Nesse mesmo tempo, Domingos
Nunes revelou a Manuel Nunes Bernal a sua preocupação pelas “várias prisões [feitas]
pelo Santo Ofício e que receava que também a ele o prendessem”199. É inegável que,
para estes indivíduos, a prisão de entes próximos fosse sentida de forma preocupante,
por questões pessoais – já que poderiam não sair incólumes, sendo os próximos a terem
os nomes cravados nos Cadernos do Promotor do Tribunal de Lisboa – ou por questões
financeiras – declinado um agente da rede comercial, o confisco dos bens e a função
social dentro desta rede poderiam não ser recuperados tão rapidamente. Tal impacto nos
elos que compunham a rede destes cristãos-novos assumira um perigoso efeito dominó,
e a partir de Gaspar e Diogo de Ávila Henriques o Tribunal de Lisboa passou a emitir
diversas ordens de prisão. Segundo Carla da Costa Vieira, uma vez denunciado, o
indivíduo passava a estar sob os olhos das autoridades inquisitoriais, tornando mais
avultadas as suas chances de ser procurado pelo Santo Ofício (VIEIRA, 2012: 128).
Naquele momento, portanto, tanto a região das Minas quanto a Bahia já não
apresentavam segurança para que o grupo cristão-novo de Henriques continuasse com
as suas atividades. Mudar o nome e o local de morada eram procedimentos que
dificultavam a ação dos Comissários do Santo Ofício, porém, na maioria das vezes,
apenas adiavam o encontro com a Inquisição. Ainda assim, as tentativas de evasão, isto
é, de fugir dos locais os quais os denunciados se sentiam mais vulneráveis, não
deixaram de fazer parte do conjunto de estratégias que o grupo dispunha naquele
momento para adiar ou afastar a sombra e a perseguição inquisitorial. No entanto, bater
em retirada não significava o abandono imediato da região e seguir para locais tão
longínquos, mas sinalizava a mudança para outra casa – na mesma região – ou para as
vilas mais próximas (VIEIRA, 2012: 133).
197
Cf. Sonia Siqueira, A Inquisição Portuguesa e os Confiscos, pp. 330-331, 337-338. IN: Separata da
Rev. de História, São Paulo, n. 82, pp. 330-338, 1970.
198
ANTT-TSO/IL, n.09001, Processo de Pedro Nunes de Miranda. Confissão realizada em 05/06/1732.
199
ANTT-TSO/IL, n.11329, Processo de Manuel Nunes Bernal. Confissão realizada em 06/03/1727.
107
Foi o caso de Manuel Nunes da Paz, filho de Diogo, que passou a se sentir mais
exposto às vistas inquisitoriais do que o seu pai, já que tratou de negócios diretamente
tanto com Gaspar quanto com Diogo de Ávila Henriques. Manuel travou uma
verdadeira peregrinação até o Rio de Janeiro com a sua esposa, Maria Nunes, onde se
refugiaram por algum tempo na casa de Manuel Nunes Bernal, um dos filhos do médico
Francisco Nunes de Miranda. Para o anfitrião, Manuel Nunes da Paz disse que “vinha
das Minas não mais que a apresentar-se no Santo Ofício e também a dita sua
mulher”200 ao Comissário Lourenço de Valadares Vieira e confessar suas culpas, algo
que, no entanto, nunca ocorreu. É provável que o casal tenha sido surpreendido com a
decisão de Bernal em vender a sua propriedade no Rio de Janeiro para se retirar das
terras brasílicas.
Diante de tais iterações, o filho de Henriques embarcou com a sua esposa do Rio
de Janeiro para Lisboa, e na capital lusitana se domiciliaram durante alguns meses. Em
seguida, Manuel e Maria201 optaram por se apresentar nas Casas Primeiras das
Audiências do Tribunal, em outubro de 1727. O processo de Manuel foi curto e o
mesmo respondeu em liberdade, sob o juramento de não se ausentar sem comunicar à
Mesa. Em março de 1728, o Tribunal registrou as vistas ao auto, que então havia sido
concluído, mas o seu auto-da-fé foi realizado apenas em 1729, junto com o de seu pai.
Em função da prisão do velho Diogo, Manuel foi mantido por mais algum tempo à
disposição do Santo Ofício e chegou a realizar mais uma confissão após a decisão de
1728.
Outro cristão-novo do grupo que se apresentou por vontade própria ao Santo
Ofício de Lisboa foi Jerônimo Rodrigues, sobrinho de Diogo Nunes Henriques. Entre
1728 e 1729, o Jerônimo embarcou para Lisboa com o intuito de se apresentar para
confessar os crimes de judaísmo que incorriam contra si. Em julho de 1729, requisitou
uma audiência com o inquisidor Felipe Maciel e, assim como Manuel, respondeu em
liberdade sob a condição de não se retirar de Lisboa sem comunicar ao Tribunal. Em
outubro do mesmo ano, a sentença final de Jerônimo correu em público no mesmo auto-
200
Ibidem.
Sabe-se que Maria Nunes, esposa de Manuel Nunes da Paz, também se apresentou ao Tribunal de
Lisboa, provavelmente no mesmo tempo que seu marido, uma vez que a confissão da cristã-nova foi
incluída no libelo acusatório de Diogo Nunes Henriques. Contudo, seu processo não foi localizado no
Fundo do Tribunal do Santo Ofício, inviabilizando uma análise similar à realizada no processo de Manuel
Nunes da Paz.
201
108
da-fé de Manuel e Diogo, e o mesmo continuou confessando suas supostas culpas até
dezembro.
A confissão inquisitorial, como pontua Sônia Siqueira, se trata de relatar heresias
e erros relativos à fé, passando, portanto, pela doutrina. Se difere da confissão
sacramental, àquela realizada perante um presbítero para a remissão dos pecados
(SIQUEIRA, 1978: 204). Confessar no foro inquisitorial era o momento em que o réu
deveria mostrar o seu arrependimento e a sua vontade de colaborar com o propósito do
Santo Ofício, não só declarando as heresias cometidas, mas também delatando
indivíduos que estavam apartados da fé católica. Cabiam aos inquisidores avaliar se o
réu era merecedor de confiança ou “crédito” – como foi referido na documentação. Caso
não satisfizesse os inquisidores, os mesmos admoestavam o acusado, isto é, faziam uma
advertência, em nome da benevolência da Santa Sé, para que cuidasse de sua
consciência pois havia mais o que dizer à mesa.
A admoestação sinalizava que os inquisidores tinham conhecimento de algo que
não havia sido revelado pelo réu em sua confissão. Na ocasião da prisão ou
apresentação dos hereges, era praxe que fosse reunido ao processo do réu todas as
denúncias que houvessem contra ele nas inquisições ibéricas. Desta forma, os
inquisidores tinham alguma ciência do que deveriam escutar do réu em suas
declarações. Além disso, os Comissários responsáveis pelas prisões, muitas vezes,
deixavam a Mesa a par do que deveriam escutar do réu.
Além de uma confissão convincente – aquela que repercutia como verdadeira
aos inquisidores – o réu também poderia conquistar a benevolência de seus julgadores
ao se apresentar voluntariamente perante o Tribunal. A iniciativa de procurar o Santo
Ofício por vontade própria era uma oportunidade para o réu angariar uma absolvição
mais rápida, já que rompia com a latente consciência de culpa e sinalizava o
arrependimento sincero pelos comportamentos heréticos. Foi um mecanismo previsto
pelo Regimento do Santo Ofício de 1640, o qual pontuava que:
Toda pessoa de qualquer qualidade, estado e condição, que seja, que
tendo cometido culpas de heresia formal contra nossa Santa Fé
Católica, e reconhecendo seus erros, se apresentar, e os confessar
voluntariamente, assim no tempo de graça, como fora dele, será
109
tratada benignamente, para que mais se anime a procurar o remédio de
sua alma [...]. 202
A apresentação e confissão voluntária das heresias supostamente cometidas
aumentavam a expectativa de um desfecho mais brando nas punições do Santo Ofício.
O próprio réu considerava a iniciativa como um artifício potencialmente eficaz, capaz
de resguardar o mesmo de uma diligência muito alongada, como ocorria no caso das
prisões. Além disso, havia a possibilidade do réu responder ao Santo Ofício em
liberdade, firmando apenas o compromisso de não se retirar do local onde era julgado
enquanto o processo era tramitado. Ao se apresentar, o indivíduo demonstrava aos
inquisidores a lisura do arrependimento e aptidão para receber a misericórdia e o perdão
da Santa Fé Católica.
Assim, alguns cristãos-novos utilizavam a apresentação voluntária a seu favor,
mas outros optavam por se manter a uma distância segura de qualquer aparato
inquisitorial. Foi o caso de Manuel Nunes Bernal, mencionado anteriormente, que
abandonou o Rio de Janeiro quase às pressas enquanto hospedava Manuel Nunes da Paz
e esposa em sua residência. Uma série de razões parecem ter levado Bernal a arquitetar
sua fuga abrupta. Após a prisão de sua irmã, Ana de Miranda203, pelo Santo Ofício em
novembro de 1726, sua fama de cristão-novo tornou-se ainda mais notória, situação que
pode ter tornado a sua presença mais evidente, atraindo a atenção da vizinhança. Ainda,
foi denunciado por agressão física contra um cristão-velho na praça fluminense204,
golpeando-o com um pau. Rapidamente, Bernal retirou-se das terras brasílicas, sendo
alcançado pelo Santo Ofício em Setúbal, região ao sul de Lisboa, em março de 1727.
A sentença de Manuel Nunes Bernal foi lida no auto-da-fé de julho de 1727,
sendo condenado ao cárcere e hábito perpétuo. Porém, em 1728, conseguiu uma
liberação do Tribunal para se retirar de Portugal, retornando então ao Rio de Janeiro,
onde deu segmento aos seus negócios. À posteriori, Bernal solicitou ao Conselho
Ultramarino o cargo de capitão de Mar e Guerra205, e foi bem sucedido. Ainda se
reportaria mais vezes ao Santo Ofício pela ocasião de alguns de seus irmãos serem
novamente presos por relapsia no crime de judaísmo. Manuel Nunes Bernal se
apresentou ao Comissário do Santo Ofício na Bahia João Calmon para confessar
202
Regimento do Santo Ofício de 1640. Livro II, Título II, §1.
ANTT-TSO/IL, n.02424, Processo de Ana de Miranda.
204
ANTT-TSO/IL, n.11329, Processo de Manuel Nunes Bernal. “Denunciação” feita por Francisco de
Morais Silva, tenente de infantaria, ao inquisidor João Paes do Amaral, em Lisboa, 15/03/1727.
205
AHU-ACL, CU - 005, Cx.47, D.4152: Requerimento de Manuel Nunes Bernar, 10/12/1733.
203
110
algumas culpas de judaísmo que alegou não ter se lembrado quando preso em 1727.
Contudo, a manobra consistia em evitar outros problemas com o Tribunal. Em tal altura,
Bernal mantinha um poderoso cabedal em terras brasílicas, e temia uma nova ação do
Santo Ofício contra si.
Outros cristãos-novos optavam por se unir em partida para fora do Império
português. Os irmãos Diogo, João e Sebastião Nunes, vizinhos de Diogo Nunes
Henriques nas Minas, resolveram deixar a região do Curralinho e rumaram de volta para
Portugal, por volta de 1724 (FURTADO, 2013: 204). Quando desembarcaram em
Lisboa, os irmãos Nunes buscaram estabelecer contato constante com outros cristãosnovos de posses, na tentativa de, unidos, organizarem uma fuga do reino. A partir de
1726, passaram a se reunir frequentemente com Maria Ayres de Pina, viúva do cristãonovo e médico Manuel Mendes Monforte – que também havia fugido das Minas, onde
tinha diversos negócios – e com os cristãos-novos Diogo Fernandes Cardoso e Miguel
Nunes para, juntos, tramarem sua mudança para Londres. Com sucesso, em 1727, todos
passaram a residir na capital inglesa e ali frequentar a comunidade de judeus
portugueses exilados, que também abrigava cristãos-novos importantes como os
médicos Diogo Nunes Ribeiro e Antônio Ribeiro Sanches (FURTADO, 2013: 205).
Em junho de 1728, o homem de negócio José da Costa206 foi alcançado pelo
Santo Ofício. Filho do italiano André Vareda e da cristã-nova Brites Porcira, José da
Costa era natural de Lisboa, mas foi a Bahia que escolheu como lar e onde fez sua
fortuna por meio do tráfico de escravos de Angola. Com suas letras de câmbio e
carregamentos de fumo, sola e panos, José movimentou diversas levas de escravos e
negociou com os contratadores de negros para as Minas207. Sua esposa, Ana de
Miranda, havia sido presa em novembro de 1726 também em Salvador, mas o Santo
Ofício demoraria um pouco mais para alcançar o cristão-novo. O casal só se
reencontraria em outubro de 1729, quando o auto-da-fé de José foi realizado.
Finalmente, no dia vinte e quatro de novembro de 1728, os Comissários do
Santo Ofício alcançavam Diogo Nunes Henriques, juntamente com David de Miranda.
Acuados e com suas finanças arruinadas, os dois cristãos-novos foram alguns dos
remanescentes da caça inquisitorial impetrada contra o grupo. Mais tarde, Domingos
206
207
ANTT-TSO/IL n.10002, Processo de José da Costa.
Anita Novinsky. Inventários de bens confiscados a cristãos-novos, pp. 154-157.
111
Nunes seria preso em novembro de 1730, e também Pedro Nunes de Miranda, em
dezembro de 1731.
O tratante David de Miranda208, natural da vila portuguesa de Almeida, era filho
de Ana de Miranda, cristã-nova irmã do curtidor Francisco Rodrigues. David já
conhecia os cárceres do Tribunal do Santo Ofício, pois esteve preso com o seu primo,
Pedro Nunes de Miranda, em 1714 e o seu primeiro auto-da-fé aconteceu em fevereiro
de 1716. Liberados pela Inquisição, David e Pedro retornaram para a América
portuguesa, e se estabeleceram nas Minas. Com residência na região do Carmo, David
vendia roupas e escravos que recebia de Gaspar Henriques, seu cunhado, com a ajuda de
seu caixeiro, Antônio de Almeida209. E em 1728, era novamente preso, desta vez em
companhia de Diogo Nunes Henriques, e responderia por não ter feito a confissão
completa no seu primeiro aprisionamento.
Diogo Nunes Henriques tinha sessenta e dois anos de idade quando o
Comissário do Santo Ofício bateu a sua porta. É provável que o cristão-novo já
aguardasse a indigesta visita, uma vez que, seguindo o efeito dominó, Diogo poderia
presumir que os olhos do Tribunal se voltariam para ele em algum momento. Ainda,
com a falta de informações sobre o seu filho e nora desde a ocasião que haviam deixado
o Rio de Janeiro e se estabelecido em Lisboa, o velho Diogo subsistiu em uma situação
cada vez mais isolada nas Minas, contando apenas com David de Miranda. Foi
conduzido ao Rio de Janeiro, e de lá seguiu para Lisboa210, na companhia de David. No
Tribunal da capital lusitana, Henriques responderia pelos crimes de judaísmo e
apostasia.
DENÚNCIAS CONTRA DIOGO
A maioria das denúncias coletadas sobre Diogo Nunes Henriques seguia o
mesmo padrão de identificação de tempo, local, dados e genealogia, e o tipo de crença
na lei de Moisés realizado entre réu e denunciado. A maioria destas denúncias apresenta
208
ANTT-TSO/IL n.07489-1, Processo de David de Miranda.
Antônio de Almeida, cujo nome completo é Antônio de Sá de Almeida, foi identificado como tratante
e caixeiro atuante pela região do Serro do Frio, filho do mercador Manuel Henriques de Leão. Foi preso
em 1734. Cf. ANTT-TSO/IL n.08025, processo de Antônio de Sá de Almeida.
210
O Auto de Entrega de Diogo Nunes Henriques não foi suplementado, portanto, não há como precisar a
data da chegada do cristão-novo aos Estaus de Lisboa, bem como o comissário, meirinho e alcaide
responsáveis pela prisão do mesmo.
209
112
um caráter lacônico, e elas detêm-se tão-somente a relacionar nomes de outros
judaizantes. Também há denúncias contra o filho de Henriques, Manuel Nunes da Paz,
que revelam rápidos registros sobre o velho Diogo. Foi a partir destes fragmentos do
cotidiano que se tornou possível montar o quebra-cabeça da trajetória de Diogo Nunes
Henriques, e também apresentam outras pequenas trajetórias dos indivíduos que
construíram e fizeram parte do mesmo espaço de Henriques.
O itinerário foi o grande contributo desta documentação, que permitiu entrever a
mobilidade espacial de Diogo e com quais pessoas se relacionou no decurso de sua
trajetória, como observa-se na confissão de Jerônimo Rodrigues, realizada em julho de
1729:
[...] haverá sete ou oito anos no sítio que chamam Subaé distante
dezessete léguas da cidade da Bahia e na fazenda do seu tio Diogo
Nunes Henriques, x.n., mercador, viúvo não sabe de quem, natural da
vila de Pinhel, e morador no dito sítio de Subaé, e agora nas Minas
Gerais, no sítio que chama dos Curralinhos na passagem de José
Lopes, vizinho a Vila Rica, e ouviu que foi preso pelo Santo Ofício, se
achou com o mesmo e estando ambos sós entre práticas que tiveram se
declaram por crentes e observantes da Lei de Moisés para salvação de
suas almas e por observância da dita lei disseram que faziam as ditas
cerimonias e se ficaram tratando por crentes e observantes da dita lei
de Moisés por tempo de dez ou doze dias. 211
Pelo tempo estipulado no testemunho de Jerônimo, foi possível balizar a
possibilidade de Diogo Nunes Henriques não ter colocado à venda o sítio de Subaé na
época que se mudou para Vila Rica, corroborando ainda mais os indícios de que
manteve seu curral de gado vacum na Bahia, local de onde mandava importar os víveres
para vender nos açougues das Minas. A hipótese levantada é que Henriques deixou a
propriedade de Subaé sob a responsabilidade de sua irmã, Ana Mendes, também
residente em Subaé, como manifestou Antônio Rodrigues de Campos em sua confissão
realizada em maio de 1730:
[...] haverá 22 para 23 anos nos Campos da Cachoeira no Sítio de
Subaé e fazenda de Diogo Nunes Henriques, homem de negócio, [...]
morador no dito sítio de Subaé, não sabe de que fosse preso nem
apresentado, se achou com ele e com uma irmã do mesmo chamada
Ana Mendes, x.n., solteira, natural do lugar das Freixedas, e moradora
no sítio do Subaé, não sabe que fosse presa nem apresentada, e
estando todos três, entre práticas se declararam por crentes e
211
ANTT-TSO/IL n. 10003, Processo de Jerônimo Rodrigues, confissão realizada em 01/07/1929.
113
observantes da lei de Moisés para salvação de suas almas e não
falaram em cerimônias nem passaram mais. 212
Por volta de 1716, Diogo acertou seu itinerário em direção às Minas, como já foi
assinalado antes, estabelecendo-se na região conhecida como Curralinho, uma região do
termo de Vila Rica conhecida também como Campos da Cachoeira, perto de uma
passagem chamada José Lopes. Nesta época, o local recebeu diversos cristãos-novos em
busca de uma residência segura. Um deles foi o tratante Diogo Nunes, um dos irmãos
Nunes – apresentados no capítulo anterior –, que foi vizinho de Diogo Nunes Henriques
na região, e nos dá pistas de quando o mesmo chegou ali na sua confissão, realizada em
setembro de 1729:
[...] haverá treze anos no Sitio do Curralinho distante seis léguas da
vila do Ouro Preto das Minas Gerais e casa de Diogo Nunes
Henriques x.n., tratante, viúvo não sabe de quem [...] e morador no
dito Sítio do Curralinho, preso nesta Inquisição, e com um filho do
mesmo e da dita sua mulher, chamado Manuel Nunes da Paz, x.n.,
tratante, casado [...] e morador no dito Sítio, apresentado no Santo
Ofício, com Francisco Fernandes Camacho, x.n., tratante [...], com
Diogo Fernandes Cardoso, x.n., tratante, [...] morador na vila do
Ribeirão (do Carmo), preso no Santo Ofício, e com Francisco Ferreira
Isidoro, x.n., solteiro, mineiro, [...] morador na vila do Ribeirão do
Carmo das Minas, preso neste Santo Ofício, e estando todos os seis
[...] entre práticas se declararam por crentes e observantes da Lei de
Moisés, para salvação de suas almas e por sua observância dissera que
faziam as ditas cerimônias e alguns jejuns que podiam pelo discurso
(sic) do ano e não passaram mais. 213
O cristão-novo Gaspar Fernandes Pereira corrobora a chegada de Henriques na
região na época indicada por Diogo Nunes, como fez constar em sua confissão,
realizada em novembro de 1726:
[...] haverá oito anos pouco mais ou menos nos Campos da Cachoeira
das Minas Gerais, distrito do Rio de Janeiro, em casa de Diogo Nunes
Henriques, x.n., homem de negócio, solteiro ou viúvo, [...] natural lhe
parece da vila de Pinhel, e morador no dito sítio das Minas Gerais, não
sabe que fosse preso ou apresentado, se achou com ele e estando
ambos sós entre práticas se declararam por crentes e observantes da
Lei de Moisés, para salvação de suas almas e por observância da dita
lei dissera que guardavam os sábados de trabalho e não passaram
mais. 214
212
ANTT-TSO/IL n. 02139, Processo de Antônio Rodrigues de Campos, confissão realizada em
31/05/1730.
213
ANTT-TSO/IL, n.07488, Processo de Diogo Nunes, confissão realizada em 07/09/1929.
214
ANTT-TSO/IL, n.08777, Processo de Gaspar Fernandes Pereira, confissão realizada em 27/11/1926.
114
A análise destes processos também auxilia na compreensão das dinâmicas das
viagens entre as vilas e cidades, bem como a traçar as companhias em diversos trajetos.
Como demonstrou José da Costa, em sua confissão feita em 1728:
[...] haverá o mesmo tempo de quinze anos que indo ele confitente da
cidade da Bahia, para as Minas Gerais, em companhia de Diogo
Nunes Henriques, x.n., homem de negócio, [...] morador de uns
campos junto da Cachoeira da Bahia, e hoje o é nas Minas, não sabe
que fosse preso nem apresentado, e estando ambos sós entre práticas
que tiveram se declararam e deram conta como criam e viviam na lei
de Moisés para a salvação de suas almas, e não falaram em
cerimonias, nem passaram mais. 215
Manuel Nunes da Paz também realizou diversas jornadas pelo caminho do sertão, não
só trabalhando para o seu pai, Diogo, mas também assumindo negociações
independentes, como com o mineiro Francisco Ferreira Isidoro:
[...] haverá dezoito anos no sertão da Bahia e caminho das Minas
dezoito dias de jornada dos Campos da Cachoeira se achou fazendo
jornada em companhia de Manuel Nunes da Paz, x.n., tratante [...],
filho de Diogo Nunes Henriques [...], morador nos Campos das
Cachoeiras das Minas Gerais, termo da vila de Ouro Preto, não sabe
que fosse preso, ou apresentado, e estando ambos sós entre práticas
que tiveram se declaram e deram conta como criam e viviam na Lei de
Moisés, com intento de nela se salvarem e suposto que logo se
ausentaram um do outro, tornando haverá sete ou oito anos a tratar nos
campos das Minas Gerais, se ficaram conhecendo por crentes e
observantes da Lei de Moisés até o tempo da sua prisão. 216
E Pedro Nunes de Miranda também deu o seu contributo para vislumbrar as travessias
pelo sertão do rio São Francisco, no caminho entre Bahia e Minas:
[...] haverá vinte anos pouco mais ou menos, indo ele confitente para
as Minas em companhia de seus primos Francisco Nunes de Miranda
e David de Miranda [...], e estando descansando no rio de São
Francisco se ajuntaram com Diogo Nunes Henriques, Antônio Nunes,
Francisco Rodrigues Pereira [...] e com o seu parente Luiz Nunes de
Miranda, [...], e com José da Costa [...].217
Além dos locais e itinerários, também é possível extrair interações sociais,
encontros, reuniões e afinidades entre estes indivíduos. Alguns dos trechos já
apresentados demonstram essas ações, devendo acrescentar um importante relato de
Manuel Nunes Bernal, que expressa a preocupação que Diogo Nunes Henriques teve
com as ações do Santo Ofício contra o seu filho, Manuel Nunes da Paz:
215
ANTT-TSO/IL, n.10002, Processo de José da Costa, confissão realizada em 08/06/1728.
ANTT-TSO/IL, n.11965, Processo de Francisco Ferreira Isidoro, confissão realizada em 30/09/1727.
217
ANTT-TSO/IL, n.09001, Processo de Pedro Nunes de Miranda, confissão realizada em 14/05/1732.
216
115
[...] haverá três anos, pouco mais ou menos, na dita cidade do Rio de
Janeiro, casa dele confitente se achou com Manuel Nunes da Paz [...] e
este lhe declarou que Diogo Nunes Henriques, pai do mesmo, se
receava muito que o prendessem pelo Santo Ofício, e ainda que a isto
não deu muito crédito ele confitente pela pouca capacidade que tem o
dito Manuel Nunes da Paz [...].218
Domingos Nunes também fez uma rápida citação ao seu tio Diogo Nunes
Henriques, porém, o contexto de produção do processo de Domingos foi diferente dos
demais. O cristão-novo, na contramão dos outros compadres presos, não admitiu seus
erros perante a mesa e desassociou qualquer relação mosaica com o seu tio, relatando
não ter realizado nenhum tipo de cerimônia, dizendo que ele “vaga e geralmente ouvia
dizer nas Minas que seu tio direito Diogo Nunes Henriques [...] era observante da Lei
de Moisés [...] mas com ele nunca se declarou”219.
O relato mais completo sobre Diogo Nunes Henriques foi o realizado por Pedro
Nunes de Miranda em uma confissão em maio de 1732220. O cristão-novo, filho do
médico Francisco Nunes de Miranda, ao ser preso pela segunda vez, em 1731, ofereceu
ricos retalhos de um cotidiano que envolvia negócios, família, amizades e prejuízos.
Mais uma vez, faz-se necessário reiterar as condições de produção das fontes
inquisitoriais, cujo empenho foi evidenciar em seu discurso o interesse dos inquisidores
– por interrogarem o réu a partir da presunção da culpa – e também dos notários – que
fixam na escrita o seu parecer particular –, passando assim por crivos variados. Mas tal
não retira dessas fontes a sua importância para a reconstrução das sociabilidades
históricas. Afinal, o réu também faz parte da construção do seu processo e sua voz
também está presente, ainda que diminuta.
A voz de Pedro Nunes de Miranda estava embebida em uma forte pressão
psicológica intensificada pela relapsia, a qual poderia incorrer nas penas da lei. Por isso,
tentou convencer os inquisidores que, na verdade, não havia feito uma confissão
completa em 1714, e por tal motivo havia sido novamente preso. Igualmente era uma
voz interessada em oferecer uma denúncia consistente, detalhista e célere. Se houve
algo que a Inquisição ensinou a Pedro, daquela vez em 1714 quando esteve preso, é que
não poderia haver ingenuidade perante os inquisidores, nem extravagâncias. Deveria
apresentar, sobretudo, algo crível, como explicita Carla da Costa Vieira:
218
ANTT-TSO/IL, n.11329, Processo de Manuel Nunes Bernal, confissão realizada em 11/08/1727.
ANTT-TSO/IL, n.01779, Processo de Domingos Nunes, confissão realizada em 12/10/1730.
220
ANTT-TSO/IL, n.09001, Processo de Pedro Nunes de Miranda, confissão realizada em 14/05/1732.
219
116
Na confissão, tal como na defesa, não há lugar para a extravagância.
Ou, pelo menos, não deve haver. Desta forma, o discurso da
Inquisição é construído sobre o discurso do réu que, por sua vez,
alicerça-se em elementos híbridos de realidade e possibilidade, de
verdade e verossimilhança (VIEIRA, 2012: 06).
Foi dessa forma que a confissão de Pedro tomou uma rica conformação. Quando
comunicou aos inquisidores que diversos cristãos-novos se reuniam na casa de seu pai,
em Salvador, para realizar as ditas cerimônias judaicas, como a Páscoa e o Dia Grande,
o jovem Pedro não deu provas de um judaísmo indelével. Mas sim, demonstrou união e
compadrio entre os cristãos-novos da localidade onde residiam e as relações
estabelecidas entre os mesmos:
Disse mais que [...] na dita cidade da Bahia e casa do pai dele
confitente se achou [...] ele confitente, seus pais, Francisco Nunes,
Maria de Miranda, Ana de Miranda, David de Miranda, João da Cruz
de Miranda, Francisco Nunes de Miranda, Diogo Nunes Henriques,
Manuel Nunes da Paz, José Rodrigues, Dona Paula e Guiomar da
Rosa fizeram todos juntos o mesmo jejum do dia grande [...]. 221
Se o sentimento religioso não pode ser mensurado devido ao discurso
corrompido em prol da verdade que o Santo Ofício queria alcançar, outros aspectos
podem corroborar diversas condições, atividades e relacionamentos entre os atores.
Destarte, Pedro descortina uma gama de convívios e intrigas que envolviam Diogo
Nunes Henriques e seu filho, Manuel Nunes da Paz, dando um tom rotineiro do que
poderiam ser as relações cotidianas entre esses cristãos-novos. Certa feita, por exemplo,
o filho do doutor Francisco relata um imbróglio envolvendo o velho Diogo com seu
cunhado, José Cardoso – casado com a irmã de Diogo, Isabel Nunes, já falecida em tal
época –, na Bahia:
[...] estando mal na dita ocasião o sobredito Diogo Nunes Henriques,
com seu cunhado José Cardoso, ele confitente e seu pai Francisco
Nunes de Miranda e os ditos seus primos Francisco Nunes de Miranda
e David de Miranda foram no mesmo dia com o dito Diogo Nunes
Henriques e seu filho o dito Manuel Nunes da Paz a casa do dito José
Cardoso para os fazerem amigos [...]. 222
A razão que levou Diogo e o cunhado José a se desentenderem permanece
indefinida. O que importa ser destacado nestes recortes cotidianos são as associações
dos indivíduos e as relações de grupo, bem como as flexibilidades possíveis dentro
destas relações e suas interdependências, pois, tal como preconizou Norbert Elias
221
222
Ibidem.
Ibidem.
117
(2012), o social nada mais é que um conjunto de ações. Cabe ao grupo social processar
constantemente essas ações em relações, que são montadas, desmontadas, destruídas e,
se possível, remontadas. Tais ações fazem parte de uma ordem social que, diferente da
ordem natural, consiste em um controle comportamental que torna exequível a vida
comunitária. Houve, portanto, uma preocupação do grupo cristão-novo de Henriques
pela manutenção de uma ordem social, no grupo familiar e no grupo como um todo.
Naquele instante, reconstruir a relação entre Diogo e José era algo importante para o
grupo, fosse para o seu equilíbrio, coesão, ou até por motivos comerciais.
Do mesmo modo, se esta ordem social preza por administrar a vida em comum
de um grupo, ela depende intimamente não só da vinculação entre seus indivíduos, mas
também de seus desejos e comportamentos individuais. E quanto maior a interação entre
estes atores, maior a interdependência entre os mesmos. Porém, tal interdependência
pode estreitar de sobremaneira as relações, que acabam por gerar tensões e situações
delicadas, podendo resultar no rompimento destas relações. Assim, Pedro Nunes de
Miranda também relatou um caso grave de ruptura dentro do grupo:
[...] e ao costume disse que com Jeronimo Rodrigues, Diogo Nunes
Henriques, e seu filho Manuel Nunes da Paz, e com seus dois
sobrinhos, Antônio Nunes e Domingos Nunes, e com João Lopes e
David Mendes, se não trata haverá quatro anos e são inimigos em
razão do dito Jeronimo Rodrigues dar contra ele confitente uma
denunciação no Fisco e outra contra seu irmão Manuel Nunes Bernal
dizendo que ambos tinham ficado com bens pertencentes ao dito
Jeronimo Rodrigues, sobre o que com a vida demanda a qual ajudam
contra ele confitente todas as mais pessoas proximamente nomeadas,
mas que sem embargo disto tem dito a verdade [...]. 223
Como visto no capítulo anterior, existem diversos indícios que associam o nome
dos irmãos Pedro Nunes de Miranda e Manuel Nunes Bernal a alguns negócios de
origem escusa e calotes financeiros. Principalmente, o nome de Bernal aparece
envolvido nos descaminhos dos diamantes do Serro do Frio, em Minas Gerais, em uma
rede que se estendia até ao governador D. Lourenço de Almeida224. Seguindo uma linha
próxima, o irmão Pedro contradisse algumas declarações do cristão-novo Gaspar
Henriques quando alegou que o mesmo, antes de ser preso, havia deixado alguns
créditos em seu nome, os quais foram então entregues ao ouvidor da Comarca do Rio
223
ANTT-TSO/IL, n.09001, Processo de Pedro Nunes de Miranda, confissão realizada em 14/05/1732.
Sobre os descaminhos dos diamantes, conferir: Adriana Romeiro, Confissões de um falsário: as
relações perigosas de um governador nas Minas. IN: Anais do XX Simpósio Nacional de História,
Florianópolis, junho 1999, pp. 331-337.
224
118
das Mortes pelos cristãos-novos João de Moraes, Manuel Furtado Oróbio e José
Rodrigues. Considerado traído pelo trio, Pedro alegou que “mandou dar em todos três
muita pancada”. 225
Em razão dos intricados relatos de Pedro, a Inquisição de Lisboa voltou a
importunar alguns dos irmãos Miranda. A extensa família do patriarca doutor Francisco,
na altura já havia sido esmiuçada em exaustão pelas sessões das Mesas do Santo Ofício,
alguns mais de uma vez. Grande exemplo foi o de Manuel Nunes Bernal, conforme
referido, quando tentou evitar com as armas que dispunha uma nova intervenção
inquisitorial e logo tratou de evitar maiores pressões, procurando o Comissário João
Calmon, na Bahia. E, principalmente, a segunda confissão de Pedro, no seu ímpeto de
obter êxito frente aos inquisidores, havia trazido novos pontos para serem explorados,
como a denúncia de pessoas próximas, companheiros de grandes cabedais e do
recolhimento das supostas celebrações religiosas para o íntimo do lar dos Miranda e
para o lar dos Henriques.
Ao longo desta pesquisa, foram reunidos os relatos de quatorze indivíduos que
denunciaram Diogo Nunes Henriques ao Santo Ofício, como demonstra a tabela abaixo.
TABELA 02 - Cristãos-novos que denunciaram Diogo Nunes Henriques ao Tribunal de
Lisboa
Confitentes
Data da Confissão
Gaspar Fernandes Pereira
27/11/1726
Francisca Henriques
04/02/1728
José da Costa
08/06/1728
Maria Nunes
29/11/1728
David de Miranda
07/01/1729
Manuel Nunes da Paz
23/01/1729
Jeronimo Rodrigues
01/07/1729
Manuel Nunes Sanches
07/09/1729
Diogo Nunes
07/09/1729
João de Matos Henriques
13/11/1729
José Rodrigues Cardoso
06/03/1730
Antônio Rodrigues de Campos
31/05/1730
Domingos Nunes
12/10/1730
Pedro Nunes de Miranda
14/05/1732
Fonte: ANTT-TSO/IL
225
ANTT-TSO/IL, n.09001, Processo de Pedro Nunes de Miranda, confissão realizada em 05/06/1932.
119
É interessante tomar nota de alguns pontos pertinentes apoiados pela tabela. A
informação que merece atenção é justamente a baliza do fluxo de denúncias contra
Diogo Nunes Henriques, demonstrado no gráfico a seguir:
GR Á F I CO 0 1 - N ÚM E RO D E D E NÚNCI AS C ONT RA
D I O GO N UNE S H ENR IQUES A O L ON GO D OS A NOS
7
6
5
4
3
2
1
0
Denúncias/Ano
1725
1726
1727
1728
1729
1730
1731
1732
0
1
0
3
6
3
0
1
24/11/1728 - Prisão de Diogo Nunes Henriques
16/10/1729 - Auto-da-fé de Diogo Nunes Henriques
Fonte: ANTT-TSO/IL
Até a prisão de Diogo Nunes Henriques, além da diligência realizada em 1722
pelo vigário da Vara Antônio de Pina, em Vila Rica, apenas os três cristãos-novos
haviam relatado à mesa do Tribunal de Lisboa algum tipo de encontro judaizante com o
mesmo: a denúncia de Gaspar Fernandes Pereira, em 1726, e as de Francisca Henriques
e José da Costa, em 1728. Existiam, portanto, poucos testemunhos no momento da
prisão, algo que para a Inquisição – que baseava a sua força, sobretudo, nos
instrumentos da confissão – podia não ser suficiente para sustentar a prisão e a
condenação de Diogo Nunes Henriques, tornando-se necessário deste modo reunir
provas mais evidentes de judaísmo contra o réu. Ao longo do cativeiro do cristão-novo
até o seu auto-da-fé, foram colhidos nos Estaus mais seis relatos. Esse fluxo podia ser
explicado tanto pelo ponto de vista inquisitorial, quanto pela ótica dos prisioneiros.
Não foi incomum por parte da Inquisição arrastar processos durante meses ou
anos com o propósito de recolher mais acusações contra os réus. Foi o que Nathan
Wachtel indicou, por exemplo, no caso do cristão-novo Francisco Botello, preso pela
inquisição mexicana por causa de tão-somente uma denúncia de judaísmo, tendo o
120
cárcere postergado por cinco longos meses para que os inquisidores então conseguissem
mais acusações (WACHTEL, 2009: 184). Com Diogo Nunes Henriques parece não ter
sido diferente. Veremos que o cristão-novo foi mantido por quase quatro meses
confinado em sua pequena cela, sem pedir audiência e sem que os inquisidores o
chamassem. Enquanto isso, outros cristãos-novos eram trazidos presos da América
portuguesa para os Estaus de Lisboa e Diogo ganhava novas denúncias. Houve também
uma tendência por parte desses cristãos-novos em centrar suas confissões não só nos
indivíduos falecidos, mas também nos indivíduos que eram do seu conhecimento terem
sido presos pelo Santo Ofício ou que se apresentaram. O motivo é simples: a passagem
pelo Santo Ofício era uma garantia decisiva de que seu nome já havia sido relacionado
pelos inquisidores; pois, além de corroborar o que desde então já era de conhecimento
dos agentes da Inquisição, esta situação mantinha uma aparência de colaboração com o
Santo Ofício.
Parece evidente a existência de uma retroalimentação deste sistema de confissão.
Manuel Nunes da Paz e Jerônimo Rodrigues, por exemplo, só denunciaram Diogo
Nunes Henriques porque souberam que o mesmo havia sido preso. Na época em que
ambos pediram audiência ao inquisidor João Paes do Amaral, a mesa inquisitorial já
havia realizado as vistas dos processos, com desfecho favorável para os dois. Foi uma
confissão extra que realizaram, alegando que se lembravam de mais eventos, pois
sabiam que seriam arrolados nos testemunhos de Diogo, mais cedo ou mais tarde.
Então, para evitar delongas, logo disseram que também judaizaram com o velho
Henriques, assim como Henriques também confessara que judaizara com ambos,
tornando as confissões complementares.
HISTÓRIAS DO CÁRCERE
Na Casa Primeira de Audiências da Inquisição de Lisboa e perante o inquisidor
Teotónio da Fonseca Souto Maior, Diogo realizou sua primeira confissão no dia 15 de
dezembro de 1728. Seguiu a mesma estratégia que a maioria dos cristãos-novos faziam
quando presos ou quando se apresentavam: davam os nomes de defuntos, ou que já
haviam tido alguma passagem pelo Santo Ofício. O réu fez uma confissão linear,
começando por quem supostamente o havia apresentado a lei de Moisés, no caso, sua
irmã Isabel Nunes, há 44 anos daquele dia – e mencionado no primeiro capítulo. Logo
121
em seguida, denunciou os conhecidos mais antigos, da época em que residiu em
Freixedas e Castela. Eram pessoas que, certamente, já eram falecidas. Essa primeira
confissão de Diogo foi a mais extensa realizada por ele, entregando quarenta e três
nomes ao inquisidor. Além dos falecidos, deu apenas nomes de pessoas que já haviam
sido encarceradas, ou que também estavam presas no mesmo tempo que ele. Denunciou
seu grande amigo, o médico Francisco Nunes de Miranda e esposa, Isabel Bernal,
ambos já falecidos, e os filhos do casal: Pedro, Manuel e Maria, todos também com
passagem prévia pelo Santo Ofício. Desfiou também o nome da sua única irmã viva,
Ana Mendes, que morava então em Londres, fora do alcance inquisitorial. Deu os
nomes dos cristãos-novos os quais teve contato em sua estadia na Bahia e, depois, nas
Minas. Não satisfeito com a confissão de Diogo, o inquisidor o admoestou pela primeira
vez.
A sua genealogia foi a próxima a ser declarada, no dia sete de janeiro de 1729.
Pouco tempo depois, no dia dezoito do mesmo mês, foi chamado pelo inquisidor Souto
Maior para realizar uma nova audiência. Deu apenas os nomes dos tratantes Gregório da
Silva e o filho, David Mendes da Silva. Sem mais o que declarar, foi então inquirido
sobre a sua crença e respondeu perguntas de praxe do Santo Ofício que visavam
identificar como praticou os ritos mosaicos, em qual entidade divina cria, as orações que
fazia e se havia comunicado com mais pessoas além daquelas que já havia declarado. A
esta última pergunta, respondeu que “lhe parece que com mais algumas pessoas das
que tem dito [...] mas que não é possível ocorrem-lhe (sic), por mais exatos os anos que
para isso faz”226. Foi o suficiente para ser admoestado pela segunda vez pelo inquisidor,
que o advertiu para examinar com mais cuidado a sua consciência, pois havia mais o
que dizer.
Confinado por quase quatro meses em sua cela, finalmente Diogo foi novamente
chamado pelo mesmo inquisidor, no dia nove de maio de 1729, para que tivesse a
oportunidade de fazer uma nova e completa confissão. Novamente deu apenas mais dois
nomes – dos tratantes João Lopes Alves e Francisco Ferreira – e alegou que nada mais
era lembrado. O inquisidor então realizou a sessão in specie, algo semelhante a uma
acareação que consistia em confrontar o réu com perguntas baseadas nas declarações de
outras testemunhas – sem que o nome das mesmas fosse citado – com o propósito de
226
ANTT-TSO/IL, n.07487, Processo de Diogo Nunes Henriques. Confissão realizada em 18/01/1729.
122
forçar uma confissão. A primeira pergunta foi em relação à frase que foi apontado como
autor, em 1722, quando disse que cada um poderia “viver, e morrer na lei que melhor
lhe parecesse”227. Diogo Nunes Henriques respondeu ao inquisidor que nunca dissera
tal frase e que “nem tal lhe passara pela imaginação dizer”228. As demais perguntas
buscavam assinalar no tempo as pessoas as quais o réu supostamente se comunicou na
lei de Moisés. Para todas, Diogo alegou não ter lembrança. O inquisidor o admoestou
pela terceira vez, a última antes da confecção e publicação do libelo criminal acusatório,
ou libelo de justiça, em que o promotor apresentaria as acusações contra o réu.
Não demorou muito para o próprio Diogo, pela primeira vez desde que havia
sido preso, pedir uma audiência, no dia dezesseis de maio de 1729. Deu apenas um
nome, o do homem de negócio Antônio Machado, que assistia em Salvador com “um
homem a quem tratava por parente, chamado Duarte Rodrigues, mercador de sola”229.
No dia seguinte, o libelo de justiça foi publicado. O inquisidor Teotónio da Fonseca
Souto Maior foi categórico ao demonstrar sua insatisfação com os rumos do processo,
quando declarou que a confissão do cristão-novo tinha sido, até então:
[...] muito diminuta, simulada e fingida; porque não declara todas as
pessoas com quem se comunicou na lei de Moisés, e sabe andarem
apartadas da fé, nem todas as cerimonias que fez por sua observância,
não se presumindo nele réu esquecimento algum, mas antes que o fez
com muito dolo, e malícia, por não estar arrependido de suas culpas e
querer permanecer nos seus erros obstinado e cego. 230
Diogo Nunes Henriques foi qualificado então como réu diminuto, aquele que, de acordo
com Elias Lipiner:
[...] existindo outra prova no Santo Ofício sobre certos fatos heréticos
de que devia presumivelmente ter conhecimento, por força do
parentesco ou de cumplicidade, não revelou, durante a confissão feita,
tais fatos aos inquisidores. Estes, pois, presumindo que a omissão era
maliciosa e tinha por finalidade encobrir cúmplices, não aceitavam as
confissões consideradas incompletas e condenavam os diminutos à
morte (LIPINER, 1977: 62).
Nas provas de justiça, o Santo Ofício fez constar seis testemunhas: 1) do cristãovelho Manuel Barbosa Couto, acusação encerrada na diligência feita pelo vigário da
227
ANTT-TSO/IL, n.07487, Processo de Diogo Nunes Henriques. Mais confissão e in specie, em
09/05/1729.
228
Ibidem.
229
ANTT-TSO/IL, n.07487, Processo de Diogo Nunes Henriques. Confissão realizada em 16/05/1729.
230
ANTT-TSO/IL, n.07487, Processo de Diogo Nunes Henriques. Libelo de acusação (sem data).
123
Vara Antônio de Pina, em Vila Rica231; 2) Gaspar Fernandes Pereira232, cristão-novo,
homem de negócio; 3) Francisca Henriques233, cristã-nova, casada com o mercador Luiz
Henriques e filha do administrador do tabaco Henriques Lopes de Mesquita; 4) Manuel
Nunes da Paz, seu filho; 5) Maria Nunes, sua nora; 6) José da Costa 234, cristão-novo,
homem de negócio e capitão de navio. Tomando conhecimento do libelo, Diogo se
comprometeu a realizar uma confissão completa, rejeitando as contraditas –
testemunhas de defesa –, pois não as tinha, e o procurador que tinha direito, caso
quisesse se defender das acusações apresentadas. Havia todo um expediente intimidador
por parte do Tribunal, que contava com o desespero do réu em relação à pena capital
para conseguir uma confissão mais completa.
No dia dezessete de junho de 1729, Diogo Nunes Henriques foi chamado para
realizar a sua quinta confissão. Nesta, deu os nomes de Antônio de Almeida, caixeiro de
David de Miranda, e dos homens de negócio e irmãos Luiz e Miguel Nunes – que
alegou serem parentes seus. Disse ainda que:
[...] com algumas pessoas mais é certo que se teve declarado na crença
da lei de Moisés, porque no decurso de quarenta e cinco anos que
viveu na dita lei, sendo algumas das comunicações antigas e de tempo
tão dilatado, lhe não é possível ocorrerem-lhe os nomes das pessoas,
ainda que para as declarar faz toda a diligencia e protesta que em todo
o tempo que a memória lhe vierem declara-lhe neste Santo Ofício; e
que isto era o que tinha que dizer. 235
A partir de sua última declaração, é dedutível concluir que o velho Henriques
pareceu ter oferecido aos inquisidores tudo o que podia. Com sessenta e três anos de
idade, o tom do cristão-novo era de resignação e o seu destino estava nas mãos dos
inquisidores. Apesar de ter dado, ao todo, cinquenta e um nomes ao Tribunal, não havia
dado grandes contributos no sentido que os inquisidores gostariam, nem confessara
aquilo que mais procuravam: sua suposta proposição herética de 1722. De qualquer
maneira, Diogo havia dado novos nomes ao Santo Ofício, sinalizando a sua disposição
para colaborar. No dia vinte de junho, nas vistas do processo, os inquisidores
231
O conteúdo da denúncia está explicitado no primeiro capítulo deste trabalho.
ANTT-TSO/IL, n.08777, Processo de Gaspar Fernandes Pereira, confissão realizada em 27/11/1726.
233
ANTT-TSO/IL, n.10156, Processo de Francisca Henriques, confissão realizada em 04/02/1728.
234
ANTT-TSO/IL, n.10002, Processo de José da Costa, confissão realizada em 08/06/1728.
235
ANTT-TSO/IL, n.07487, Processo de Diogo Nunes Henriques, confissão realizada em 17/06/1729.
232
124
declararam que o cristão-novo havia dado muitos nomes os quais “não estava
indiciado, satisfazendo a mais essencial prova de justiça que contra ele havia”236.
Na presença do rei D. João V, no dia dezesseis de outubro de 1729, na igreja do
Convento de São Domingos foi celebrado um grande auto-da-fé público. Nele foram
lidas e publicadas as sentenças de cinco cristãos-novos integrantes do grupo comercial
das Minas:
TABELA 03 – Sentenças finais publicadas (Auto-da-fé de 16/10/1729)
Nome
Detenção
Crime
David de Miranda
Preso
Confissão
incompleta
Diogo Nunes Henriques
Preso
Judaísmo
Jerônimo Rodrigues
Apresentação Judaísmo
José da Costa
Preso
Manuel Nunes da Paz
Apresentação Judaísmo
Judaísmo
Sentença final
Cárcere e hábito penitencial
perpétuo sem remissão, instrução
na fé católica, penitências
espirituais e o pagamento de
custas
Abjurar em forma, ao cárcere e
habito
penitencial
perpétuo,
confisco de bens, instrução na fé
católica e penitências espirituais
Abjurar em forma, cárcere ao
arbítrio
dos
inquisidores,
penitencias espirituais e instrução
na fé católica
Abjurar em forma, cárcere e
hábito penitencial perpétuo e
penitências espirituais
Abjurar em forma, cárcere ao
arbítrio dos inquisidores e
instruções na fé católica
Fonte: ANTT-TSO/IL
Não deixa de ser notável a avaliação arbitrária levada a cabo pela Mesa
inquisitorial. Não é possível avaliar os pesos e medidas utilizados no expediente dos
inquisidores no momento em que votavam e decidiam o acórdão, pois, todos os réus
ofereceram aquilo que a inquisição mais procurava em cada um deles: a confissão. Uma
vez que todos eram culpados pelos crimes imputados pelo Santo Ofício, era uma
questão de tempo para que logo se pusessem a confessar.
Os cristãos-novos que optaram pela apresentação voluntária, Jerônimo
Rodrigues e Manuel Nunes da Paz, receberam as sentenças mais brandas entre os cinco
236
ANTT-TSO/IL, n.07487, Processo de Diogo Nunes Henriques, vistas do processo.
125
condenados. Ambos receberam: abjuração em forma237; cárcere, que significava
permanecer na cidade onde foi julgado – no caso, Lisboa – por tempo determinado pela
mesa inquisitorial sendo proibido sair sem a autorização expressa do Santo Ofício; uso
do hábito penitencial ao arbítrio, ou seja, uso do sambenito por três a nove meses – o
tempo também é determinado pela mesa – e; instrução na fé católica, que consistia na
participação de um catecismo para corrigir os desvios dogmáticos da religião. Jerônimo
ainda foi condenado às penitências espirituais, que imputava ao réu a obrigação de
comungar, confessar e assistir missa, também por tempo determinado pelos
inquisidores. 238
David de Miranda foi julgado por ter apresentado confissão diminuta, ou seja,
incompleta, quando preso em 1714, o mesmo que ocorreria com Pedro Nunes de
Miranda. De acordo com os inquisidores, ao realizar uma confissão incompleta, David
encobriu pessoas “que sabia andarem apartadas de nossa Santa Fé Católica e terem
crença na lei de Moisés, e não se presumir o esquecimento, antes que maliciosamente
não denunciara delas por as favorecer em seus erros”239. Por isso, não abjurou em
forma, pois o havia feito no auto-da-fé de 1716. Recebeu as penas de cárcere; hábito
penitencial sem remissão, isto é, o uso do sambenito por cinco anos; instrução na fé
católica; penitências espirituais e; pagamento das custas, ou seja, realizar pagamento ao
Tribunal pelo novo processo aberto contra ele.
O processo de José da Costa foi mais conteudístico, afinal, em contagem
arrolada pelos inquisidores, havia sido denunciado por pelo menos vinte cristãos-novos
presos tanto pelo Tribunal de Lisboa quanto de Coimbra. Apesar de ter colaborado em
suas confissões e admitindo todos os seus erros, foi condenado a abjurar em forma;
cárcere; hábito penitencial perpétuo, isto é, até três anos de uso do sambenito,
dependendo este tempo unicamente da decisão da mesa inquisitorial, e; penitências
espirituais.
Diogo Nunes Henriques recebeu as penas mais severas entre os cinco cristãosnovos citados na tabela: abjurar em forma, cárcere, hábito penitencial perpétuo, instrução na
237
Abjurar em forma refere-se ao ato de retratar-se publicamente os erros e heresias e renegar a crença de
outras leis que não seja a Católica. Cf. Elias Lipiner, Santa Inquisição: terror e linguagem. Rio de
Janeiro: Documentário, 1977. p.14
238
Todas as categorizações das penas e sentenças proferidas pelo Santo Ofício foram retiradas da obra de
Elias Lipiner, Santa Inquisição: terror e linguagem.
239
ANTT-TSO/IL, n.07489-1, Processo de David de Miranda, acórdão dos inquisidores.
126
fé católica, penitências espirituais e, finalmente o confisco dos seus bens. Esta última foi
responsável por deixar os cristãos-novos condenados ao confisco em situação de
pobreza extrema. Apesar das discussões que buscam entender e balizar os interesses
econômicos da Inquisição nos inventários dos cristãos-novos, faz-se necessário lembrar
que a inventariação não era realizada em todos os processos e, ainda, a Inquisição não
prendia apenas os indivíduos abastados, sendo a maioria dos encarcerados de baixa
renda. Além disso, muitos cristãos-novos mercadores subtraídos de suas posses não
conseguiam honrar negócios e dívidas deixadas nos locais em que foram presos, sendo
alijados de tais praças comerciais. Antes sim, o ato do confisco foi um grande entrave
ao desenvolvimento comercial ultramarino, e fica evidente que, independentemente do
propósito inquisitorial, tornava o indivíduo confiscado, na maior das vezes, incapaz de
retornar ao circuito comercial.
No auto-da-fé, todos os condenados usavam o sambenito, uma peça de vestuário
tipo hábito – o hábito penitencial, vestuário da infâmia –, cujas cores e letras
diferenciavam o tipo de crime cometido (BETHENCOURT, 1992: 155). O protocolo
determinava a realização de um sermão para depois dar prosseguimento à leitura das
sentenças, obedecendo à seguinte ordenação: primeiro eram lidas as penas mais brandas
e por último as mais severas. Todos os condenados ouviam a sentença ajoelhados, ante
a autoridade eclesiástica presente (WIZNITZER, 1966: 100). Nas condenações capitais,
chamadas de relaxamento à justiça secular, os condenados eram conduzidos até o
queimadeiro em uma espécie de procissão. Lá, caso os mesmos se arrependessem de
suas heresias, poderiam optar por serem garroteados antes de terem o corpo posto em
chamas, se não, eram queimados vivos. É importante assinalar que a responsabilidade
da execução da pena capital era da justiça civil, portanto, do Estado, e não do Santo
Ofício ou da Igreja. O auto-da-fé era uma cerimônia pública – eram limitadas suas
realizações privadas – e, de acordo com Luiz Nazário, foram:
[...] verdadeiras festas de congraçamento entre o povo, a Igreja e o
Estado, os hereges eram obrigados a desfilar como feras domadas,
dóceis à execração pública, reconciliados com o todo social ou
cremados vivos por sua cegueira (NAZARIO, 2005: 34).
Para o historiador, o auto-da-fé foi um espetáculo que contava com a
participação massiva da população; esta retroalimentava tais festividades graças à sua
identificação com os propósitos do Santo Ofício. Era um momento em que o povo se
percebia como diferente em relação aos hereges, fragmentando a sociedade em dois
127
segmentos: os espectadores, tidos como bons católicos, e os hereges, que seriam a
personificação do erro e do mal. A adesão da população não foi apenas benéfica do
ponto de vista exemplar, no que tange a demonstração das punições das heresias, como
também era essencial para a própria manutenção do poder inquisitorial.
No dia vinte e sete de outubro, Diogo concluiu o catecismo o qual foi
condenado, devendo nele tomar novas instruções na fé católica. No mesmo dia, David
também havia concluído o seu. Ambos foram advertidos pelos inquisidores da Casa do
Despacho do Tribunal a nunca mais voltar a cometer os crimes pelos quais haviam sido
presos, sob pena de serem severamente castigados. Não é conhecido o tempo que Diogo
permaneceu em Lisboa, cumprindo seu cárcere. Não recebeu licença para se retirar do
reino e também não pediu. O cristão-novo João de Matos Henriques relatou, no fim de
1729, que Diogo Nunes Henriques havia sido reconciliado e estava em Lisboa, assim
como o casal Manuel Nunes da Paz e Maria Nunes 240. Foi a última informação
computada de Henriques depois do seu auto-da-fé. É possível, no entanto, que Diogo
Nunes Henriques tenha seguido por um destino diferente da bancarrota causada pelo
confisco. Seu filho, Manuel, não teve os bens confiscados, pois quiçá foi pedida pelo
tribunal a rolagem de seu inventário. É possível que o mesmo tenha auxiliado o pai a se
reerguer, ou então financiar a fuga do mesmo para fora do reino, quando passado o
período do cárcere.
O FIM DO GRUPO COMERCIAL
Apesar de não terem compartilhado o mesmo auto-da-fé, o destino de seus
outros compadres de Diogo Nunes Henriques foi similar. A maioria deles receberam
penas mais severas, enfrentaram diligência mais alongadas e todos incorreram no
confisco dos bens, como demonstra o quadro a seguir:
240
ANTT-TSO/IL, n.03752, Processo de João de Matos Henriques, confissão realizada em 13/11/1929.
128
TABELA 04 – Sentenças imputadas aos demais cristãos-novos
Nome
Antônio Rodrigues de Campos
Prisão
03/11/1729
Auto-da-fé
17/06/1731
Diogo de Ávila Henriques
22/11/1726
17/06/1731
Domingos Nunes
12/10/1730
06/07/1732
Gaspar Henriques
22/11/1726
25/07/1728
Manuel Nunes Bernal
05/03/1727
24/07/1727
Pedro Nunes de Miranda
10/12/1731
06/07/1732
Sentença final
Abjurar em forma, cárcere e
hábito penitencial perpétuo,
instrução na fé católica,
penitências espirituais, confisco
de bens.
Abjurar em forma, cárcere e
hábito penitencial perpétuo sem
remissão, degredo de 5 anos
para as galés, instrução na fé
católica
e
penitências
espirituais, confisco de bens
Excomunhão maior, relaxado à
justiça secular, confisco de bens
Abjurar em forma, cárcere e
hábito penitencial perpétuo,
penitências espirituais, confisco
de bens
Abjurar em forma, cárcere e
hábito penitencial perpétuo,
penitências espirituais, confisco
de bens
Cárcere e hábito penitencial
perpétuo, penas e penitências
espirituais, confisco de bens
Fonte: ANTT-TSO/IL
Todos foram encarcerados pelo Santo Ofício, não havendo nenhum caso de
apresentação voluntária. O lavrador Antônio Rodrigues de Campos, preso em Irará, na
Bahia, ficou aprisionado por quase três anos nos Estaus de Lisboa, uma vez que
contestou o libelo de justiça apresentado pelo promotor da Inquisição. Após muito
resistir, Antônio acabou cedendo e passou a admitir e confessar suas heresias. Mas o
período em que foi “persistente e obstinado” em seus erros lhe rendeu duras sentenças.
O caso dos primos Gaspar e Diogo de Ávila Henriques também teve um
desfecho severo, sobretudo para Diogo. Até a detenção, constava no Tribunal de Lisboa
pelo menos trinta e duas denúncias contra Gaspar Henriques, que desde o momento da
sua prisão, colaborou com o Santo Ofício, confessando suas culpas heréticas. Já o
processo de Diogo se estendeu por quase cinco anos, devido ao grande volume de
denúncias que o réu recebeu: cinquenta e uma, até 1729. Saiu dos Estaus de Lisboa, em
129
1731, para cumprir a pena de degredo nas galés241 por cinco anos, a qual foi cumprida
na chamada “cadeia da galé”. Lá, submetido aos trabalhos forçados e pouca higiene, o
cristão-novo foi acometido por diversas moléstias, recebendo a visita dos médicos do
Santo Ofício para ser tratado na prisão. Em abril de 1735, Diogo requisitou uma licença
mediante pagamento de fiança para que pudesse se casar com Leonor Mendes
Henriques, indeferida pela Mesa. Um mês antes de findar os cinco anos de degredo,
acometido por várias doenças, o cristão-novo fez um pedido de perdão do restante da
pena e obteve a misericórdia dos inquisidores, sendo então liberado.
Pedro Nunes de Miranda, conforme mencionado, teve sua segunda prisão
decretada, sendo levado novamente aos Estaus em dezembro de 1731. Porém, não foi
por relapsia que foi novamente inquirido, e sim por confissão incompleta, como David
de Miranda. Foi condenado ao cárcere e hábito penitencial perpétuo, penas e penitências
espirituais, além do confisco de bens, uma pena muito mais severa daquela recebida por
David de Miranda. O irmão de Pedro, Manuel Nunes Bernal, igualmente já
mencionado, também incorreu em penas severas, embora seu caso tenha sido resolvido
de forma rápida em relação aos demais: em quatro meses após sua prisão, ocorreu o seu
auto-da-fé.
O único caso de pena capital aplicada dentro do grupo analisado foi contra
Domingos Nunes, sobrinho de Diogo Nunes Henriques. Preso no dia 12 de outubro de
1730, foi denunciado por vinte e nove cristãos-novos, de acordo com a contabilização
do Santo Ofício242, mas esse número pode ser muito maior. No cárcere, foi denunciado
pelo alcaide por realizar pelo menos seis jejuns caracterizados como judaicos.
Domingos se mostrou contraditório em suas audiências, evidenciando que não sabia o
que dizer aos inquisidores. É possível que não tenha sido instruído por seu pai ou por
outros cristãos-novos sobre como se portar perante o Tribunal, pois, do grupo, foi o
único que apresentou um estilo diferente de confissão, ora afirmando a crença judaica,
241
Entre os séculos XV e XVI, receber tal condenação significava ser enviado para uma embarcação
conhecida como galé – movida a remos e utilizada para a navegação em curtas distâncias pelo Mar
Mediterrâneo – para realizar trabalhos forçados, sendo o mais comum empregar a força física do
degredado para movimentação dos remos e, assim, a embarcação. Com o desaparecimento da galé, em
meados do século XVII, ser condenado ao degredo nas galés ganhou um novo significado. Passou a
corresponder à realização de trabalhos forçados em diferentes prisões localizadas junto ao rio Tejo, como
a “cadeia da galé” – na margem direita, cidade de Lisboa – e a feitoria da Telha – na margem esquerda –,
voltadas para a construção e manutenção naval. Cf. Paulo Drumond Braga, Os Forçados das Galés, p.
191.
242
ANTT-TSO/IL, n.01779, Processo de Domingos Nunes, “culpas que há nesta Inquisição contra
Domingos Nunes”.
130
ora revogando o que tinha dito anteriormente. Na publicação do seu libelo de justiça,
contestou seu conteúdo, porém, não apresentou contraditas. O Santo Ofício alegou
empenho na admoestação, mas o réu continuou em sua “simulação e contumácia”,
sendo “falso, simulado, confitente diminuto e impenitente”243. Condenado a
excomunhão maior, confisco de todos os bens e pena capital, Domingos Nunes ainda
tentou dar mais nomes em novas audiências, mesmo depois da decisão dos inquisidores.
Em vão, pois foi entregue à justiça secular para ser relaxado em carne, tendo sido
garroteado antes de ser queimado na fogueira, no dia seis de julho de 1732.
O que se pode perceber, sobretudo, é que, uma vez preso, contra o Santo Ofício
não havia escapatória. Todos respondiam por um crime automaticamente imputado e
sem horizontes de defesa, por questões de qualidade de sangue e social. Era uma
questão de tempo para que o réu se pusesse a confessar seus supostos crimes heréticos e
assim contribuir para que a engrenagem inquisitorial continuasse a rodar. Lacônicas ou
ricas em detalhes, a confissão foi o grande propósito e o grande motor dos inquisidores,
possibilitando que novas prisões fossem feitas, novos confiscos e novas demonstrações
de força, ordem e conformação pudessem ser realizadas. Se esses cristãos-novos
judaizaram ou não, dimensionar sua religiosidade através da documentação prova-se um
caminho tortuoso para qualquer tipo de afirmação, ao passo que a produção destes
documentos buscava apenas a culpa, nunca a inocência. No fim, todos assumiam os
erros: os que judaizavam de fato, pois era uma maneira de fazer persistir a consciência
judaica, e os que não judaizavam, pois abreviavam seus processos e poderiam incorrer
em penas mais brandas. A confissão, no fim, era apenas mais uma maneira de se
defender dos inquisidores.
243
Ibidem. “Acórdão dos inquisidores”.
131
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reunir os diversos fios da trajetória de um personagem, esta foi a proposta
principal deste trabalho, que se encerra certo de que não formulou respostas definitivas,
mas sim, ofereceu uma possibilidade de análise dentre tantas possíveis. Cumpre agora
resgatar brevemente os movimentos de Diogo Nunes Henriques, um personagem único,
que viveu sua condição dentro das possibilidades que encontrou para persistir. Nascido
no seio de uma família cristã-nova, na vila portuguesa de Freixedas, deu início as suas
atividades comerciais pelo interior de Portugal, servindo como comboieiro entre os
portos lusitanos até cidades castelhanas. Residiu algum tempo na cidade fronteiriça de
Lumbrales, em Castela, e lá serviu como intermediário para diversos negócios entre
portugueses e espanhóis. Ainda, foi em Lumbrales que residiu com a sua mulher, Brites
Henriques, e onde nasceram seus filhos, Manuel Nunes da Paz, que seguiu o caminho
comercial como o pai, e Helena Nunes, falecida precocemente em um naufrágio na
costa brasileira, na companhia de seu marido, Manuel Mendes.
Por volta do ano de 1697, Diogo Nunes Henriques resolveu deixar Castela e
Portugal para buscar oportunidades comerciais mais promissoras. Da cidade do Porto
foi para Salvador, na Bahia, e ali adquiriu um sítio na região de Subaé, perto de
Cachoeira, e algumas cabeças de gado vacum, adentrando na rendável esfera da
pecuária, que gerava lucros mais imediatos. Logo, outros conhecidos cristãos-novos
também voltaram os seus olhos para as terras brasílicas e suas oportunidades e,
sobretudo, apreciavam a ideia de se distanciarem dos olhos do Santo Ofício ao
adentrarem nos vastos sertões da Colônia. Diogo se associou à vários destes agentes,
fosse para a intermediação de seus negócios, adiantamento de crédito ou mesmo para a
troca de produtos para a sua comercialização. Assim construía-se uma cadeia de
relacionamentos conhecida como rede social, na qual consiste na criação de vínculos
simbiônticos entre esses atores, que, individualmente, detinham algum recurso essencial
para os demais, produzindo tais relações e associações. Esses comerciantes estendiam
suas redes de negócio e garantiam o contato com uma vasta gama de agentes comercias
de tipos variados, garantindo suas trocas por preços justos e o seu mercado.
132
Almejando novos horizontes, Diogo Nunes Henriques deixou Subaé e a Bahia
por volta do ano de 1716, se estabelecendo em uma região afastada do centro urbano de
Vila Rica conhecida como Curralinho, nas Minas. Dali continuou a importar o gado do
sertão para revender nos açougues da região mineradora, além de adiantar créditos a
uma gama de comerciantes da região, mediante juros previamente acordados. Ali se
relacionou com cristãos-velhos de grandes cabedais, capitães da infantaria e outros
agentes que participavam ativamente do alto escalão administrativo das Minas Gerais,
sendo cooptado pelos mesmos para adentrar na esfera dos contratos. Em 1722, o cristãonovo arrematou o triênio dos dízimos de Vila Rica.
O fim do triênio dos contratos também trouxe maus ventos para Diogo Nunes
Henriques e o seu grupo comercial. A partir de 1726, o Tribunal de Lisboa passou a
procurar diversos cristãos-novos entre as regiões da Bahia e Minas Gerais por culpas de
judaísmo. A partir das diversas prisões realizadas, cada agente deste grupo decidiu
como reagiria frente a ameaça inquisitorial. Alguns rumaram para Lisboa, a fim de se
apresentarem e diminuírem as chances de serem penalizados de forma severa. Outros
investiram na mudança de vila ou fuga do Reino português. Mas a maioria persistiu na
rotina, mesmo que, cada vez mais, quedavam-se acuados e com diversos elos rompidos
na rede o qual estavam integrados, impossibilitados, muitas vezes, de seguirem com os
seus negócios na forma costumeira. No dia vinte e quatro de novembro de 1728, os
comissários do Santo Ofício alcançaram Diogo Nunes Henriques em sua casa no
Curralinho. Com sessenta e dois anos de idade, o velho Henriques foi levado para
Lisboa, onde responderia perante os inquisidores pelo crime de judaísmo, e permaneceu
confinado em sua pequena cela nos Estaus por quase onze meses.
Em sua primeira confissão, Diogo entregou quarenta e três nomes ao inquisidor
Teotônio da Fonseca Souto Maior. Como a maioria dos nomes arrolados por Diogo
eram de pessoas ou já falecidas ou que já haviam passado pela mesa inquisitorial, a
confissão foi considerada insuficiente e o réu foi admoestado diversas vezes para que
entregasse outros nomes e confessasse seus erros. Percebendo que suas confissões
nunca satisfariam os inquisidores, Diogo foi direto e alegou que nunca conseguiria dar o
nome de todas as pessoas as quais se comunicou nos quarenta e cinco anos que seguiu
professando a suposta lei mosaica. Com o corpo já mortificado pela idade e pela
angústia da prisão, o velho Henriques deixava seu destino, ainda mais, nas mãos da
Inquisição e pedia perdão por todos os seus erros, mesmo os que não lhe era possível vir
133
à memória. Com penas severas, Diogo celebrou seu auto-da-fé em outubro de 1729, ao
lado de seu filho, Manuel Nunes da Paz, e de outros compadres de seu grupo comercial.
Todos, cumpriram cárcere em Lisboa. Mais tarde, outros compadres foram presos e
julgados. Teve seu sobrinho, Domingos Nunes, relaxado à justiça secular.
Arruinados, é certo apenas que o grupo permaneceu em Lisboa por tempo
considerável. É difícil deduzir que fizeram de suas vidas após a passagem pelo Santo
Ofício. Se conseguiram a licença para retornar à América portuguesa e seguiram com os
seus negócios, ou se buscaram refúgio fora do Reino, como em Londres – onde a irmã
de Diogo, Ana Mendes, havia se estabelecido pouco tempo antes do irmão ser preso –, é
uma dúvida que permanece em aberto. O rastro de Henriques se perde, mas não antes
sem legar um rastro precioso que permitiu a reconstrução de sua trajetória pelos
caminhos do comércio atlântico e também do sistema de contratos do período. Mas,
sobretudo, é pelo caminhar de Diogo Nunes Henriques entre o Reino e a Colônia que
tornou-se possível resgatar e perceber uma centelha da adaptabilidade e capacidade do
mesmo para absorver as diversas realidades das quais fez parte. Principalmente,
demonstra como o “viver na Colônia” poderia assumir nuances tão diversas em relação
a ordem estabelecida pelo Reino.
Apesar de sempre em movimento, esses cristãos-novos apresentam um pouco da
esfera das sociabilidades nas negociações ultramarinas e os seus desdobramentos. Por
meio da vivência destes atores foi possível descortinar um momento importante da
expansão da região das Minas Gerais, que, no início do século XVIII passou a ser
cobiçada pelos mais diversos indivíduos do Império português, fascinados pela ideia de
enriquecer por meio do garimpo do ouro e diamantes ali descobertos. Dentro desta
conjuntura, esses atores históricos e suas redes comerciais participaram ativamente na
construção de um importante mercado interno que escoava dos portos e das regiões
produtoras os artigos necessários para garantir o abastecimento de gêneros e também de
escravos no interior do território – fator que selou a dependência da região mineradora
do setor mercantil. Juntamente com esse processo de formação do mercado interno,
também foram testemunhas da estruturação da administração portuguesa na região,
desde o controle do levante emboaba em 1708-09, às políticas limitantes do comércio –
resposta para os constantes descaminhos do metal amarelo e outras pedras preciosas –,
até a elevação da região mineradora à condição de capitania das Minas Gerais, em 1720.
134
O sistema de contratos fez parte desse grande arcabouço administrativo
português, sendo responsável por levar comerciantes locais a atingir grandes cabedais
de força econômica. Diogo Nunes Henriques, homem de negócio, mercador de grosso
trato, reuniu em si as características de um contratador dos setecentos e assim aceitou
fazer parte deste seleto grupo. Embora Henriques e os seus compadres tenham
alcançado algum destaque e prestígio econômico dentro daquela sociedade local, para o
Santo Ofício tal influência não anulava o sangue judeu e suas predisposições à heresia.
A indistinção social praticada na Colônia incomodou profundamente os inquisidores,
que promoveram visitações esporádicas e o fortalecimento dos agentes inquisitoriais e
suas redes de informação pelo território. Desta forma, o Santo Ofício garantiu que estes
cristãos-novos, mesmo imbricados na elite local destes territórios, pudessem ser presos
para responder por qualquer acusação de heresia que lhes fossem imputadas. Afinal, o
Tribunal foi a instituição responsável por manter e guardar os princípios mais
importantes
daquela
sociedade,
tendo
como
grande
responsabilidade
punir
exemplarmente todos aqueles que ousassem ferir os ideais católicos, os padrões
estabelecidos e o costume.
Havia alguma saída para que Diogo Nunes Henriques e o seu grupo comercial
não sucumbissem frente ao poder institucional da Inquisição? Sim. Como muitos outros
cristãos-novos que nunca foram alcançados pelos tentáculos inquisitoriais, essas saídas
existiam e poderiam ter sido exploradas por estes cristãos-novos. Porém, deve-se
sempre ter em mente que as ações históricas também são fruto das escolhas individuais.
Diogo Nunes Henriques e seus compadres escolheram construir a sua vida no Reino e
em suas Colônias, cientes da existência de uma instituição que, a qualquer momento,
poderia lhes arruinar todas as conquistas. A prisão não deve resumir a trajetória destes
indivíduos em algum tipo de fracasso. Foi a autonomia destes sujeitos históricos que
movimentou os processos políticos, sociais e econômicos do Antigo Regime português
e refletiu diretamente no próprio ultramar. Persistiram, se tornaram importantes agentes
comerciais, assimilados a uma sociedade local que tinha gosto por afirmar, dia após dia,
sua singularidade frente à metrópole ao rejeitar os setores mais tradicionais,
descortinando assim as múltiplas relações que compunham e mobilizavam a sociedade
portuguesa e colonial.
135
ANEXO I
GENEALOGIA DE DIOGO NUNES HENRIQUES244
1. Manuel Fernandes, filho de Fernão Nunes e Catarina Guterres e natural da vila
de Almeida. Casou com Brites Rodrigues dada como natural de Almeida, filha de
Diogo Fernandes e Isabel Mendes. Deste matrimônio houveram sete filhos, todos
naturais de Freixedas:
2. Isabel Nunes casada com José Cardoso, cristão-novo, tratante, tiveram três
filhos, todos naturais do Escalhão, que são:
3. Manuel Cardoso, vaqueiro, morador nas Alagoas do Piauí, solteiro.
3. Beatriz Cardosa, solteira, viúva de Antonio Nunes.
3. Guiomar Cardosa, casada com Antonio Nunes;
3. Antônio Cardoso, tratante, morador na cidade da Bahia, casado com
Joana da Cruz
3. Francisco Cardoso, tratante, morador em Freixo de Numão, casado.
3. Jerônimo Rodrigues (TSO-IL/10003), tratante, casado com Guiomar
da Rosa, residentes em Salvador, tiveram três filhos:
4. José Rodrigues Cardoso (TSO-IL/0009);
4. Gabriel;
4. Bernarda;
2. Catarina Rodrigues que casou com António Rodrigues Carregado,
curtidor, sem filhos.
2. Maria Nunes que casou com António Rodrigues Garcia, de quem teve:
3. António Rodrigues Garcia (TSO-IL/6292).
3. Domingos Nunes (TSO-IL/1657), homem de negócio, morador nas
Minas Gerais, relaxado pela Inquisição em 1732.
3. Manuel Rodrigues ausentou-se para o reino de Castela.
3. Maria Nunes;
3. Ana Roodrigues;
3. Beatriz Rodrigues;
2. Brites Nunes, faleceu solteira e sem filhos;
2. António Nunes, homem de negócio, casado primeiro com Ana da Silva,
natural da vila de Melo, filha de António Fernandes e Maria da Silva, e casado
segundo com Catarina de Leão*. Do primeiro matrimônio, teve:
3. Brites;
244
Foram utilizadas as sessões de Genealogia dos seguintes processos: Manuel Fernandes (TSO-IL/4608),
Diogo Nunes Henriques (TSO-IL/7487), Manuel Nunes da Paz (TSO-IL/9542), Maria Nunes (TSOIC/7202) e Ana da Silva (TSO-IC/6134).
136
3. Manuel Nunes, casado com Teresa Nunes;
4. Rosa;
4. Antônia;
4. Antônio;
4. Manuel;
4. Miguel;
3. Maria Nunes (TSO-IC/7202) casada com Felix Nunes, de quem teve:
4 José Nunes (TSO-IL/10360)
4. Manuel Nunes (TSO-IC/9252)
4. Daniel Nunes casou com Guiomar Henriques, de quem teve:
5. Francisco;
5. António.
4. David Nunes;
4. Beatriz da Silva casada Gaspar Nunes Henriques, de quem
teve:
5. Gaspar;
5. José;
5. Rosa;
5. Joana.
4. Leonor.
3. Ana da Silva (TSO-IC/6134), casada com Micael Nunes (TSOIC/8889) de quem teve:
4. Manuel da Silva/Nunes casado com Justa Maria.
3. Diogo Nunes casado com Violante da Paz, natural da Muxagata, filha
de Rafael da Paz, de quem teve:
4. António Nunes (TSO-IC/5570), tratante;
4. Rafael, falecido de menor idade;
4. Leonor, falecida de menor idade.
3. Francisco Nunes, ausentou-se menor de idade.
*2. Antônio Nunes casado segundo com Catarina de Leão, tiveram duas filhas:
3. Ana Nunes, casada não sabe com quem;
3. Maria Nunes, casada não sabe com quem;
137
2. Ana Mendes, solteira, ausente em Londres;
2. Diogo Nunes Henriques (TSO-IL/7487), homem de negócio e morador em
Vila Rica do Ouro Preto, casado com Brites Henriques, natural da vila
Almeida, filha de Catarina da Paz, de quem teve:
3. Manuel Nunes da Paz, (TSO-IL/9542) natural da vila de Lumbrales,
Reino de Castela, homem de negócio e morador em Curralinho, nas
Minas do Ouro. Casou com Maria Nunes, e descendência desconhecida;
3. Helena Nunes, natural da vila de Lumbrales, Reino de Castela. Casada
com Manuel Mendes, tratante de profissão, moradores na Cidade da
Bahia. Helena faleceu no mar sem herdeiros.
138
ANEXO II
GENEALOGIA DE FRANCISCO NUNES DE MIRANDA245
VIA PATERNA
1. Francisco de Almeida, cristão-novo, casado com cristã-nova desconhecida,
moradores em Almeida. Deste matrimônio houveram quatro filhos, todos naturais de
Almeida:
2. Francisco de Almeida, curtidor, casado com Ana Rodrigues, cristã-nova,
moradores em Almeida. Tiveram os filhos a seguir:
3. Manuel de Almeida;
3. Ana Rordrigues;
3. Maria de Almeida, viúva de Manuel Fernandes. Tiveram três filhas
moradoras em Almeida:
4. Maria;
4. Grácia;
4. Desconhecida;
3. Leonor Gomes, viuva de Manuel Rodrigues, cristão-novo, e lhe
ficaram três filhos que assistem em Almeida:
4. Maria, casada com Manuel Nunes Henriques (primo, filho de
Diogo Nunes, abaixo);
4. Isabel;
4. Francisco;
3. Catarina da Paz, viúva de Manuel Lopes Sargedas, cristão-novo,
que lhe ficaram dois filhos que assistem na Guarda:
4. João;
4. Manuel;
3. Isabel Nunes casada com Antônio Nunes, primo.
2. Maria Nunes, casada com Antônio Henriques. Tiveram os filhos a seguir,
todos casados e vivem em Castela:
3. Manuel;
3. Francisco;
3. Maria;
245
Foram utilizadas as sessões de Genealogia dos seguintes processos: Francisco Nunes de Miranda
(TSO-IL/01292), Pedro Nunes de Miranda (TSO-IL/9001), David de Miranda (TSO-IL/07489), Ana de
Miranda (TSO-IL/02424) e Félix Nunes de Miranda (TSO-IL/2293-1).
139
2. Diogo Nunes, curtidor, casado com Branca Henriques. Tiveram os filhos a
seguir:
3. Francisco, vive em Castela, casado não sabe com quem;
3. Manuel Nunes Henriques, casado com Maria (prima, filha de
Leonor Gomes, acima);
3. Jorge, vive em Castela,
3. Antônio;
3. Maria;
3. Leonor;
2. Domingos Fernandes, casado com Isabel Nunes (irmã de Guiomar Nunes,
que foi casada com Antônio Nunes, abaixo), sem filhos.
2. Antonio Nunes, ¼ de cristão-novo, curtidor, casado com Guiomar Nunes, ½
cristã-nova (irmã de Isabel Nunes, acima), dada como natural de Almeida. Deste
matrimônio houveram cinco filhos, todos naturais de Almeida e moradores em
Guindo, Reino e Castela:
3. Domingos de Almeida, casado com Guiomar de Miranda, não lhe
ficaram filhos, falecidos em Castela.
3. Manuel Nunes de Almeida, feitor da Alfândega de Almeida, casado
com Leonor Rodrigues. Tiveram dois filhos, moradores em Guindo e
Castela, a saber:
4. Félix Nunes de Miranda (TSO-IL/2293-1), homem de
negócio, casado com Grácia Rodrigues, moradores na Bahia,
4. Miguel Rodrigues, solteiro, morador na Bahia;
3. Antônio Nunes, tratante de panos e serafinas, casado com Isabel
Nunes, moradores em Andalucía, em terras do Duque de Sessa, tiveram
um filho:
4. Francisco;
3. Simão Nunes de Miranda, mercador, casado com Ana de Miranda,
ambos defuntos. Deixaram dois filhos que assistem em Ledesma, Reino
de Castela, sob a tutela de um tio chamado Manuel de Miranda,
estanqueiro do tabaco:
4. Francisco Mendes de Miranda (TSO-IL/06962) morador no
Rio de Janeiro, tratante, casado com Violante Rodrigues de
Miranda;
4. Ana;
3. Ana de Miranda, viúva de Francisco Rodrigues, cristão-velho,
curtidor, moradores na cidade da Bahia, e deste matrimônio ficaram seis
filhos:
140
4. David de Miranda (TSO-IL/07489), tratante, morador na
Bahia
4. Antônio de Miranda (TSO-IL/05002), curtidor, casado com
Catarina da Paz, moradores em Sobradillo, Reino de Castela e
passaram para a Bahia.
4. Guiomar Nunes, casada com Francisco Henriques, curtidor,
moradores em Alameda, Reino de Castela;
4. Francisco Rodrigues de Miranda, tratante, assistia em Cidade
Rodrigo e depois em Figueiras, casado não sabe com quem;
4. João da Cruz (TSO-IL/09089), curtidor, morador na Bahia,
onde passou para Angola;
4. Ana de Miranda, casada com José Fernandes, tratante,
moradores na Bahia onde passaram para Vila Nova de Foz-Côa, e
tem dois filhos:
5. João;
5. Estefânia;
4. Violante Rodrigues, moradora na Bahia;
3. Francisco Nunes de Miranda (TSO-IL/01292), médico, casado com
Isabel Bernal, cujo matrimônio tem oito filhos:
4. Pedro Nunes de Miranda (TSO-IL/9001), lavrador, morador
no Rio de Janeiro.
4. Manuel Nunes Bernal (TSO-IL/11329), capitão de navio,
morador no Rio de Janeiro;
4. Antônio Nunes;
4. Francisco;
4. João Nunes, médico, casado com Rosa Maria, não sabe a
qualidade de sangue, morador em Lisboa.
4. José;
4. Ana de Miranda (TSO-IL/02424), casada com José da Costa
(TSO-IL/10002), homem de negócio, moradores na Bahia.
4. Maria de Miranda;
VIA MATERNA
1. Fernão Nunes, casado não sabe com quem, ambos da vila de Almeida. Do
matrimônio tiveram quatro filhos, a saber:
2. Manuel Nunes, casado não sabe com quem. Tem três filhos:
3. Francisco;
3. Domingos;
3. Manuel;
141
2. Catarina de Miranda, casada com um fulano de Carvalho, da vila de
Linhares. Sem filhos.
2. Isabel Nunes, casada com Domingos Fernandes (irmão de Antonio Nunes,
abaixo). Sem filhos.
2. Guiomar Nunes, ½ cristã-nova casada com Antonio Nunes, ¼ de cristãonovo, curtidor. Deste matrimônio houveram cinco filhos, todos naturais de
Almeida e moradores em Guindo, Reino e Castela.
142
ANEXO III
GENEALOGIA DE GASPAR HENRIQUES246
VIA PATERNA
1. Diogo de Ávila, não sabe de onde é natural, casado com Maria Henriques, natural
de Azevo. Tiveram quatro filhos, todos naturais de Azevo, a saber:
2. Jorge Henriques Moreno, rendeiro, casado primeiro com Ana Mendes, de
quem teve os filhos:
3. Diogo de Ávila Henriques (TSO-IL/02121), o “Jangada” de alcunha,
tratante e homem de negócio;
3. Bernarda Henriques;
2. Álvaro Henriques, mineiro, solteiro, faleceu na Ilha de São Miguel;
2. Brites Henriques, casada com João Rodrigues Ferro, rendeiro e tratante,
moradores em Azevo, e tiveram cinco filhos:
3. Bernardo Rodrigues Ferro (TSO-IL/09661), assiste nas Minas;
3. Diogo;
3. Maria;
3. Leonor;
3. Grácia;
2. Francisco Vaz de Ávila, homem de negócio, casado com Branca Henriques,
ela natural de Travassos, termo de Armamar, tiveram nove filhos, a saber:
3. Gaspar Henriques (TSO-IL/06486), mineiro, casado com Ana
Gomes, filha de Luiz Mendes de Morais, moradores na cidade da Bahia,
tem um filho:
4. Francisco;
3. Diogo de Ávila (TSO-IL/07484), homem de negócio, casado com
Branca Rodrigues, moradores na cidade da Bahia;
3. Jorge;
3. José;
3. Luiz;
3. Joao;
3. Maria;
3. Brites;
3. Branca;
246
Foram utilizadas as sessões de Genealogia dos seguintes processos: Gaspar Henriques (TSOIL/06486) e Diogo de Ávila Henriques (TSO-IL/02121).
143
VIA MATERNA
1. José Morais Montesinho, casado com Brites Mendes, naturais de Travassos, termo
de Armamar. Tiveram quatro filhos, a saber:
2. Simão, morreu solteiro;
2. Leonor Mendes, casada com Jorge Henriques Dias, rendeiro e homem de
negócio, moradores em Lisboa, no Santo Antônio da Mouraria. Tem uma filha:
3. Lúcia;
2. Ana Maria, viúva de Gaspar Nunes Lopes, tratante, moradora em Longa,
bispado de Lamego, cujo matrimonio tivera:
3. Maria;
3. Ana;
3. Branca;
3. Leonor, casada com Antônio da Fonseca de Magalhães, já defunto.
2. Branca Henriques, casada com Francisco Vaz de Ávila, ela natural de
Travassos, termo de Armamar, tiveram nove filhos.
144
FONTES
MANUSCRITAS
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (ANTT: LISBOA, PORTUGAL)
TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DE LISBOA (TSO-IL)
Nº 02424, processo de Ana de Miranda.
Nº 05002, processo de Antônio de Miranda.
Nº 02139, processo de António Rodrigues de Campos.
Nº 07491-1, processo de David de Miranda.
Nº 02121, processo de Diogo de Ávila Henriques.
Nº 07487, processo de Diogo Nunes Henriques.
Nº 01779, processo de Domingos Nunes.
Nº 01292, processo de Francisco Nunes de Miranda.
Nº 06486, processo de Gaspar Henriques.
Nº 10003, processo de Jerónimo Rodrigues.
Nº 10002, processo de José da Costa.
Nº 10004, processo de José da Cruz Henriques.
Nº 11329, processo de Manuel Nunes Bernal.
Nº 09542, processo de Manuel Nunes da Paz.
Nº 09001, processo de Pedro Nunes de Miranda.
TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DE COIMBRA (TSO-IC)
Nº 06134, processo de Ana da Silva.
Nº 05570, processo de Antônio Nunes.
Nº 07567, processo de David Brandão.
Nº 04608, processo de Manuel Fernandes “o Faim”.
Nº 09481, processo de Manuel Henriques de Leão.
Nº 08818, processo de Maria Ferreira.
Nº 07202, processo de Maria Nunes.
CASA DA SUPLICAÇÃO (CS)
Feitos Findos, Documentação diversa (Diversos), mç.11, nº64: Carta de Francisco Pinto
Henriques para Diogo Nunes Henriques
145
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU: LISBOA, PORTUGAL)
AHU-ACL-N-MG – nº 316: Parecer do Conselho Ultramarino sobre os contratadores
dos Dízimos das Minas Gerais, Diogo Nunes Henriques, Sebastião Barbosa Prado,
Silvério Marques da Cunha. (26/05/1723)
AHU-ACL-CU-nº 005, Cx.47, D.4152: Requerimento de Manuel Nunes Bernar,
(10/12/1733).
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA (APEB: SALVADOR, BRASIL)
ID 53186: Escrituras do Judiciário, Compra e Venda (1710), Lv. 24, P. 84v.
Interessado: José Cardoso; Parte: Diogo Nunes Henriques.
ID 71107: Escrituras do Judiciário, Débito e Obrigação (1702), Lv. 18, P. 110, Cartório
A. Interessado: Diogo Nunes Henriques; Parte: Bartolomeu Pereira de Castro.
ARQUIVO DA CASA DOS CONTOS (CC: OURO PRETO, BRASIL)
Nº 1676 - Microfilme 096, itens 0579 a 0580: Conta Corrente do Contratador de
Dízimos Diogo Nunes Henriques (1721-1726).
IMPRESSAS
Anais da Biblioteca Nacional. Nº 31, 1909.
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas, e minas;
com varias noticias curiosas do modo de fazer o assucar; plantar e beneficiar o
tabaco; tirar ouro das minas, e descubrir as da prata; e dos grandes emolumentos,
que esta conquista da America Meridional dá ao Reyno de Portugal com estes, e
outros gêneros, e contratos reaes. Lisboa: Na Officina Real Deslandesiana, 1711.
Disponível
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<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co
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Nacional: Casa da Moeda, 1976.
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Códice Costa Matoso: coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das
minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral
das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. 2
Volumes. Edições coordenadas por Luciano Raposo de Almeida e Maria Verônica
Campos. Belo Horizonte: Ed. Fundação João Pinheiro; Centro de Estudos Históricos e
Culturais, Coleção Mineiriana, 1999.
Revista do Arquivo Público Mineiro. Vol. 17, 1912.
Revista do Arquivo Público Mineiro. Seção Colonial: transcrição do Códice 23 Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao Rei
147
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