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A arte encantadora das mulheres kunas

Dentre as excelentes coleções de arte e cultura que se encontrarão na Casa de Cultura da América Latina em Brasília, queremos destacar neste artigo um conjunto de 77 molas, panos bordados pelas mulheres da etnia Kuna, um povo indígena que se concentra ao sul do canal do Panamá, especialmente no Arquipélago de San Blas e, atravessando a fronteira colombiana, no golfo de Urabá. A coleção de molas da CAL foi doada pelo antropólogo colombiano Álvaro Chaves Mendoza (1930-1992), o que nos permite afirmar que cada peça foi escolhida por seu valor etnográfico e não necessariamente pelo nosso sentido estético ocidental. Na língua dulegaya dos Kuna (que se chamam a si mesmos gunas ou dules), mola se aplicaria a qualquer peça de tecido, qualquer matéria que recobre, qualquer roupa, como a frondosidade de uma árvore, as nuvens do céu, a plumagem de um pássaro, a pele ou mesmo, por eufemismo, a menstruação e tudo o que se refira à genitália.

A arte encantadora das mulheres kunas Jaime de Almeida Universidade de Brasília Quem visita o Museu dos Correios na quadra 04, Bloco A do Setor Comercial Sul de Brasília pode aproveitar a oportunidade e visitar a Casa de Cultura da América Latina (CAL), mantida pela Universidade de Brasília, na mesma quadra n. 04, no Edifício Anápolis. Benvindos a este corredor cultural! A CAL foi criada em 1987 para promover e divulgar a arte e a cultura latino-americana, e tornou-se um espaço voltado para a promoção das culturas ibero, latina e africana, em todas as suas vertentes e linguagens. Além da promoção de eventos, é um importante espaço de estudo e de preservação do patrimônio cultural e artístico da UnB. Oficinas de arte, espetáculos teatrais, cursos, palestras, seminários, entre outros, também fazem parte da programação da Casa. Os visitantes aí encontrarão um importante acervo de arte moderna, contemporânea, popular e etnográfica, três galerias de arte e um auditório onde se exibem filmes produzidos, em sua maioria, nos países da América Latina, África e Península Ibérica. Contando com cerca de 1.400 peças entre obras artísticas e etnográficas, o acervo da CAL foi criado por ocasião do I Festival Latino-americano de Arte e Cultura (Flaac) e vem sendo ampliado por doações de instituições e artistas. Dentre as excelentes coleções de arte e cultura que encontrarão na CAL, queremos destacar neste artigo um conjunto de 77 molas, Pronuncia-se môla. panos bordados pelas mulheres da etnia Kuna, um povo indígena que se concentra ao sul do canal do Panamá, especialmente no Arquipélago de San Blas e, atravessando a fronteira colombiana, no golfo de Urabá. A coleção de molas da CAL foi doada pelo antropólogo colombiano Álvaro Chaves Mendoza (1930-1992), o que nos permite afirmar que cada peça foi escolhida por seu valor etnográfico e não necessariamente pelo nosso sentido estético ocidental. Na língua dulegaya dos Kuna (que se chamam a si mesmos gunas ou dules), mola se aplicaria a qualquer peça de tecido, qualquer matéria que recobre, qualquer roupa, como a frondosidade de uma árvore, as nuvens do céu, a plumagem de um pássaro, a pele ou mesmo, por eufemismo, a menstruação e tudo o que se refira à genitália. Perrin, Michel. Tableaux kuna. Les molas, un art d'Amérique. Paris: Arthaud-Flammarion, 1998, p. 11. No mundo globalizado do turismo e do artesanato, o termo designa hoje especificamente as coloridas peças de pano bordado que as mulheres kuna confeccionam para enfeitar a frente e as costas de suas blusas. Muito vaidosas, elas costumam vestir por algum tempo as molas mais sofisticadas, cuja confecção pode lhes tomar até 6 meses, e só depois de usá-las é que as vendem. Embora tipicamente kunas, as molas resultam de uma longuíssima experiência de contato interétnico e teriam tomado a forma que conhecemos em meados do século XIX. Em setembro deste ano serão comemorados os 500 anos do descobrimento do oceano Pacífico por Vasco Núñez de Balboa e nós, ao apreciar a coleção de molas da CAL, poderemos pensar que elas contêm alguma lembrança inconsciente dos primeiros contatos feitos pelos kunas com aqueles aventureiros. A princesa Anayanci, cujo nome significa Chave da Felicidade, amou e foi amada por Balboa e talvez por isto os kunas ensinaram a ele o caminho para o grande mar do sul. Os espanhóis admiravam a beleza das roupas das mulheres kunas. O dominicano Bartolomé de las Casas denunciou uma tragédia:, ao ver que havia muitos kunas vestidos de mulher, inclusive um tio de Anayanci, Balboa os prendeu e atiçou contra eles os seus cães de caça que os estraçalharam. (Ainda hoje, alguns homens kunas, os omeguit ou wigunduguid, se vestem como mulheres e produzem belas molas). Transitando entre o Pacífico e o Caribe, os kunas mantinham contatos, nem sempre pacíficos, com outros povos indígenas e com outros aventureiros europeus em guerra contra os espanhóis. Certamente se integraram de alguma forma à dinâmica das trocas internacionais alimentada pela feira anual de Portobelo, que se realizava mais ou menos regularmente entre 1606 e 1738 e concentrava o comércio entre as minas do Peru e a Europa. Consta que, no século XVIII, os kuna assimilaram técnicas de pintura de uma colônia de huguenotes (protestantes franceses). Justamente quando, em consequência da descoberta do ouro na Califórnia em 1848, foi construída a ferrovia do Panamá que encurtava a viagem de milhares de aventureiros de todo o mundo, as molas começaram a ganhar o seu formato e função. Nessa época, os kunas começaram a colonizar as pequenas ilhas do arquipélago de San Blas, fugindo aos minúsculos insetos que infestam o seu território em terra firme; os homens continuam a trabalhar durante o dia nesse ambiente hostil enquanto as crianças e mulheres vivem com mais conforto nas ilhas varridas pela brisa. Tecidos, tesouras, linhas, agulhas e, logo máquinas de costura eram comprados pelas mulheres kunas. Pressionadas pelos missionários e autoridades brancas a vestir-se com mais recato, elas transferiram para suas roupas as tradicionais pinturas corporais. O salto decisivo ocorreu meio século depois, quando elas trabalhavam como lavadeiras para os operários das obras do canal do Panamá. Vendo o grande interesse que eles manifestavam por suas roupas, começaram a produzir para venda a parte mais vistosa delas, que vieram a ser as molas. Cada mola tem de dois a sete camadas justapostas de tecido de cores diferentes. O tema principal do desenho é cortado com tesoura no primeiro pano e os demais motivos, temas ou elementos são buscados nas outras camadas de tecido. As mais bonitas – e caras – são cuidadosamente costuradas à mão. Graças às informações que recebem de jovens kunas que circulavam pelos ambientes dos brancos, as mulheres tomaram conhecimento de formas modernas de associação e formaram cooperativas para se situar melhor no mercado do artesanato e consolidar sua liderança econômica na família e na comunidade. Cada comunidade ocupa uma ilha e, como elas são pequenas, resultam superpovoadas e as condições de higiene são muito precárias. Na verdade, a cultura kuna ainda não abandonou as características dos séculos anteriores; basta dizer que em sua mitologia a Terra é a mãe e o Mar é a avó. Os seus recursos agrícolas e pecuários da terra firme não são suficientes e as molas, produzidas pelas mulheres e lançadas no mercado internacional do artesanato, são cada vez mais importantes.  Mesmo pouco numerosos, os kunas têm demonstrado ao longo de sua história de contato uma notável capacidade de manter a sua identidade. Em 1870, o governo colombiano reconheceu sua autonomia territorial na chamada Comarca Dulenega. Mas, com a independência do Panamá em 1903, esse território foi dividido entre os dois países e a autonomia kuna se perdeu. Boa parte deles recusou-se por anos a obedecer às autoridades panamenhas. O novo país logo mostrou uma atitude muito agressiva contra os povos índios, tratando de atraí-los rapidamente à civilização ocidental, tratando de coibir ritos e cerimônias tradicionais e de impor as roupas, a educação e os costumes ocidentais. Pior, grandes extensões do território kuna foram ocupados apor companhias bananeiras e mineradoras. Após a inauguração do canal do Panamá, uma lei de 1915 oficializou a "civilização" forçosa dos indígenas. Nas cidades, muitas mulheres perderam suas molas, argolas nasais, brincos e outros ornamentos de ouro. Uma delas fugiu e se refugiou junto aos dirigentes do seu povo; dois policiais foram mortos e uma das aldeias kunas foi incendiada. A tensão explodiu no carnaval de 1925 quando, assessorados por Richard Oglesby Marsk, um engenheiro norte-americano, os representantes de 45 aldeias kunas proclamaram a independência da República de Tule e definiram suas fronteiras, bandeira, etc. Aproveitando o clima de carnaval, guerreiros kunas disfarçados identificaram onde se concentravam os policiais panamenhos em cada comunidade. Logo passaram ao ataque de surpresa, matando com requintes de crueldade cerca de trinta deles. O engenheiro Richard Oglesby Marsk convenceu as autoridades norte-americanas do Canal a intervir para evitar um massacre dos kunas. John Glover Smith (ministro plenipotenciário dos Estados Unidos no Panamá), os secretários de governo e de relações exteriores do Panamá e 13 sailas (chefes) kunas se reuniram a 4/03/1925 e o resultado foi um acordo de paz que assegurava aos índios a integridade do seu território e o respeito aos seus costumes em troca da deposição das armas e da obediência às leis panamenhas. Assim ficou estabelecida a Comarca Kuna de San Blas, hoje Comarca Guna Yala, à qual se somaram mais tarde as comarcas Madugandí e Wargandí. V. este importante depoimento: Aiban Wagua. Así lo vi y así me lo contaron: datos de la Revolución Guna de 1925, versión del Sagladummad Inakeliginya y de gunas que vivieron la revolución de 1925. Panamá: [s.n.], 2007. Por sua vez, os kunas que vivem em dois municípios da região de Urabá na Colômbia estão reduzidos a uma situação dramática, em meio à violência de diferentes grupos armados que disputam o controle da terra, do contrabando e do tráfico de drogas. Maurizio Alí, “Los kuna de Urabá. Conflicto, desplazamiento y desarrollo” in Revista Javeriana vol. 756, n. 145, 2009, p. 32-39. Os kunas da Comarca Guna Ayala são regidos por uma assembleia, composta exclusivamente por homens, que tem os poderes consultivo, legislativo e executivo e evita ao máximo as interferências externas. As crianças aprendem cantando e dançando a sua língua e cultura. Para a maioria da população, o contato com o exterior se faz quase exclusivamente pelas visitas regulares de barcos com turistas à procura de molas e de boas fotos e barcos panamenhos ou colombianos com mercadorias para venda. No entanto, alguns grupos de kunas têm autorização para atuar junto às instituições brancas como universidades, ONGs, agências governamentais, etc. Mulheres kunas especializadas no negócio das molas circulam pelos canais internacionais do comércio de artesanato. Assim, tal como no passado, os kunas mantêm o controle sobre o processo inevitável de contato cultural, selecionando aquilo que, reelaborado internamente pela comunidade, torna-se útil para sua inserção no mercado globalizado. Concluindo, tratemos de sugerir algumas pistas para a apreciação estética das molas kunas. Perrin, Michel. “Los caminos de la creación en el arte de las molas cunas” in Boletín Museo del Oro n. 46. Bogotá, 2000, p. 6-20. Dualismo: na linguagem dos xamãs kunas, todos os seres e acontecimentos – humanos, animais, plantas, objetos e suas respectivas partes, mesmo quando invisíveis – têm o seu duplo ou essência oculta, a purba. Cada mola tem duas faces, dianteira e traseira, que expressam complementaridade, mas não necessariamente uma identidade. Elas podem parecer muito semelhantes, mas sempre apresentarão sutis variações de tamanho, de forma, de cor e nunca serão idênticas. Paralelismo: Michel Perrin sugere comparar o dualismo com variações das molas e das cerâmicas com certas formas estilísticas da literatura oral kuna. As estrofes dos discursos e cantos rituais vão se repetindo com pequenas alterações de vocábulos, sons e sentidos, num longo jogo entre o mesmo e o diferente, aliando o encantamento do ritmo ao prazer da variação: As mulheres-demônios puseram um vestido azul e se alinham, ali, para dançar na aldeia dos espíritos. Os seus vestidos ficam azul arrat, Os senhores da aldeia dos espíritos se alinham, ali, para a dança. Seus vestidos ficam cor de rosa ismaitet, Os senhores da aldeia dos espíritos se alinham, ali, para a dança. As mulheres-demônios puseram suas roupas vermelhas como o pássaro ikkwi E se alinham, ali, para dançar na aldeia dos espíritos... As mulheres-demônios de saias amarelas se alinham para a dança. Ali seus vestidos ficam poderosos, na aldeia dos espíritos... Inversão: muitas molas têm um fundo escuro com motivo claro e, do outro lado, fundo claro com motivo escuro, como uma face diurna e outra face noturna. Os kunas costumam chamar certos animais e plantas com nomes diferentes de dia ou de noite. Simetria, metamorfose e poder: num conjunto de 2.000 molas, Michel Perrin encontrou 40% claramente simétricas, expressão do dualismo da mente kuna. Por outro lado, qualquer coisa pode transformar-se numa outra: Os animais de pele listrada se transformam em demônios, em nia, Se transformam em demônios, E, lá, longe, os demônios se transformam. Se transformam en cervos koenaka, Os demônios estão ali, ao pé das árvores, Vestidos de negro, com os chifres entrelaçados, e gritam: mé, mé. E daí em diante os cervos wasena se convertem em demônios, se transformam em demônios, Os demônios se transformam.... (...) Os nia mariposas são os senhores deste lugar, Os nia senhores deste lugar se mostram muito semelhantes às mariposas... Os nia se convertem em seres de todo tipo... Tal como as transformações evocadas pelos discursos míticos, as molas parecem ter sido concebidas para serem lidas em vários níveis de entendimento. Dois pássaros vistos de perfil podem designar uma entidade mítica vista de frente. As formas simétricas das molas com suas variações parecem um eco estético das linguagens míticas dos xamãs kunas, recheadas de símbolos, metáforas e polissemias. Além da duplicação de um motivo, as molas apresentam frequentemente motivos divididos por um eixo simétrico – geralmente seres sobrenaturais, espíritos maléficos e demônios. É como se a simetria servisse para dotar essas entidades de uma potência hierática, ou como se fosse mais fácil conceber assim os seres fantásticos. Por outro lado, essa configuração costuma ser acompanhada de detalhes assimétricos, especialmente em matéria de cores. Embora muito provavelmente inspiradas na lógica xamanística da cultura kuna manipulada pelos homens, parece que as molas – produto exclusivo das mulheres – não têm nenhuma função mágica, nenhum esoterismo, nada mais que uma estética kuna aplicada à beleza das roupas femininas (os homens se vestem muito simplesmente) e às demandas do mercado consumidor externo ao seu mundo. Encerrando aqui esta breve incursão no imaginário mágico dos índios kunas, convidamos nossos leitores a pesquisar na filatelia panamenha e colombiana a presença das molas e de seus motivos estéticos.