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A moral da crítica de Nietzsche à moral, de Paul van Tongeren - Resenha

A proposta filosófica de Nietzsche traz como resultado, para van Tongeren, uma aporia: há uma dificuldade inerente ao ideal de nobreza nietzschiano, a saber: como se pode afirmar e querer intensificar a multiplicidade, em si mesma conflitiva, das interpretações, e buscar, ao mesmo tempo, impor seu domínio interpretativo, a saber, no pensamento de Nietzsche, a hipótese da vontade de poder.

A moral da crítica de Nietzsche à moral TONGEREN, Paul van. A moral da crítica de Nietzsche à moral: estudos sobre Para além de bem e mal. Tradução de Jorge Luiz Viesenteiner. Apresentação de Oswaldo Giacoia Junior. Curitiba: Champagnat, 2012. Allan Davy Santos Sena Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas – SP, Brasil. E-mail: allandavy@hotmail.com Por honestidade devemos afirmar a desonestidade da vida, mas devemos, assim, negar a vida? Não, porque a moral (honestidade) não está acima da vida (FP 1 [28] de Julho-Agosto de 1882). O instigante experimento hermenêutico levado a efeito por Paul van Tongeren em seu trabalho seminal A moral da crítica de Nietzsche à moral tem como pressuposto a noção de que se faz necessário adotar como chave de leitura das obras publicadas por Nietzsche (ou preparadas para publicação) a perspectiva de que o filósofo sempre investiu um grande esforço para apresentar ao seu leitor livros nos quais um jogo de forças, tal qual aquele proposto por sua filosofia como o modo pelo qual a vida se efetiva, é disputado como tarefa fundamental para que uma vivência do pensar seja comunicada e intensificada. Deste modo, van Tongeren procura fazer uma análise de Para além de bem e mal tendo como base uma leitura pautada na perspectiva lançada por Nietzsche acerca da vida, que, de acordo com o intérprete, repousa na concepção de vida como intensificação de um conflito de forças. Sendo assim, deve-se pensar em Para além de bem e mal não como um apanhado de aforismos esparsos, apenas levemente conectados e coletados como uma amostragem de pensamentos sobre temas fortuitos, mas como um projeto consistente no qual se oferece e se realiza uma proposta filosófica, no qual toda uma hierarquia de forças é posta em funcionamento, no qual cada sentença, aforismo, grupo de aforismos e seção, juntamente com o prólogo, executam um movimento de imposição e resistência que está subordinado a uma tarefa primordial. É com o intuito de revelar essa estrutura hierárquica de Para além de bem e mal que van Tongeren propõe certo afastamento dos sentidos mais imediatos que se poderiam apreender do texto, de suas intenções argumentativas mais viscerais e patentes com que o seduzido – e incauto – leitor facilmente se detém com especial empenho e interesse, para, assim, lançando um olhar mais abrangente, que se preocupa particularmente em observar a estrutura e o movimento geral das estratégias argumentativas ali presentes, ser capaz de desvelar o texto em toda a sua profundidade e realidade agonística, na qual reside, de fato, sua proposta filosófica fundamental, que se traduz especialmente por uma vontade de impor uma determinada interpretação de mundo – mundo entendido enquanto multiplicidade de interpretações –, por uma necessidade de afirmar essa multiplicidade e intensificá-la: embora nisso resida, não obstante, a grande aporia dessa proposta filosófica segundo van Tongeren. Com esse objetivo, van Tongeren procura enfatizar como os escritos de Nietzsche apresentam diversas camadas de intenção e intencionalidade, algo que pode ser verificado sobretudo quando se dá ênfase ao modo como Nietzsche zelosamente pensou na estrutura e organização de Para além de bem e mal. A estratégia exegética posta em ação por van Tongeren tem como princípio a tentativa de ler Para além de bem e mal não como um mero livro “aforismático”, mas como um projeto filosófico que tem uma dada intenção, uma tarefa bem definida, e, para alcançar sua meta, busca executar um plano, uma ordem, uma organização (de múltiplas vontades), no interior de uma hierarquia; cada unidade (aforismo) possui o seu lugar, a sua função, em benefício do todo, em prol dessa hierarquia: cada aforismo ocupa a posição necessária para que se leve a cabo o projeto, para que a unidade hierárquica desse projeto – que se propôs como tarefa última a criação de uma nova valoração filosófica – encontre seu florescimento e intensificação. Sendo assim, pode-se concluir que ler Para além de bem e mal tal como o faz Tongeren, ou seja, como uma hierarquia de forças, é entender o estilo de Para além de bem e mal como o antípoda do estilo décadent diagnosticado por Nietzsche, em que é a parte que almeja prevalecer em detrimento do todo. Em seu trabalho, van Tongeren nos instrui a atentar, ao ler Para além de bem e mal, para a posição na qual cada aforismo se encontra no livro, no capítulo, no desenvolvimento do capítulo e com relação ao aforismo anterior e ao posterior; identificar a sentença chave do aforismo, em que posição ela se encontra no interior do mesmo e em que posição ela se encontra no interior do livro; verificar qual o tema, qual o conceito central do aforismo, como ele é abordado, como ele se relaciona com outros textos nos quais também aparece; observar como o aforismo se inicia, quais expressões intercalam o desenvolvimento das argumentações, quais os aforismo centrais, guias, nucleares do livro, em que posição eles se encontram no interior da obra, etc. Para van Tongeren, os fragmentos póstumos de Nietzsche cumprem um papel inestimável, mas sempre arriscado para a correta interpretação dos textos publicados. Embora o leitor não possa simplesmente ignorar os póstumos, é necessário buscar avaliar a intenção por trás da seleção feita por Nietzsche. Deve-se sempre fazer a tentativa de pensar quais motivos e interesses filosóficos podem ter determinado os abandonos, cortes, acréscimos, montagem e reelaborações que deram forma à versão definitiva com que Nietzsche decidiu apresentar seu texto publicamente. É imprescindível, de acordo com van Tongeren, considerar a versão final do texto como munição e estratégia criteriosamente selecionada por Nietzsche para adentrar no campo do discurso filosófico público. Contudo, saber por que o filósofo escolheu a versão definitiva de um texto e quais estratégias filosóficas subjazem a essa escolha é uma questão que o texto definitivo, talvez, por si só, não possa revelar, daí a importância dos póstumos. Não obstante, van Tongeren sempre confere um valor central ao texto publicado, procurando continuamente desvendar por que o filósofo optou por aquela determinada versão em particular, abandonando projetos, argumentos e formas de apresentação submetidas a teste nos póstumos. De tal maneira, van Tongeren tenta esclarecer o que isso revela sobre as intenções mais basilares da proposta filosófica lançada por Nietzsche. Em A moral da crítica de Nietzschee à moral, van Tongeren mostra o grau de controle e clarividência que Nietzsche tinha para com seus próprios escritos, tanto em relação aos livros anteriormente trazidos a público, quanto à economia geral dos aforismos que compõe um determinado livro. Van Tongeren também argumenta que a utilização feita por Nietzsche de certas fórmulas retóricas (“supondo que”, “talvez”, “se”, etc.) e das aspas é extremamente significativa. A fórmula “supondo que”, em especial, revela, segundo o intérprete, o próprio elemento estruturante do texto do filósofo e classifica seu pensamento como perspectivístico, hipotético e provisório. Esse caráter perspectivístico, hipotético e provisório do pensamento de Nietzsche, que determina a escolha criteriosa com que busca comunicar seu pensamento, funciona precisamente como a chave interpretativa pela qual van Tongeren vai procurar apontar qual a moral da crítica feita por Nietzsche à moral em Para além de bem e mal. O que Nietzsche almeja com sua interpretação da moral, defende van Tongeren, é ressaltar a multiplicidade de interpretações necessárias para a intensificação de forças. Sendo assim, para o intérprete, Nietzsche, em última instância, não se coloca ao lado de uma moral em detrimento de outra(s), nem mesmo da moral dos senhores: a nobreza que o filósofo elege como alvo não é a nobreza no sentido aristocrático da genealogia, mas aquela que toma como tarefa para si a intensificação do conflito entre as diversas morais. A proposta filosófica de Nietzsche, por conseguinte, traz como resultado, para van Tongeren, uma aporia: há uma dificuldade inerente ao ideal de nobreza nietzschiano, a saber: como se pode afirmar e querer intensificar a multiplicidade, em si mesma conflitiva, das interpretações, e buscar, ao mesmo tempo, impor seu domínio interpretativo, a saber, no pensamento de Nietzsche, a hipótese da vontade de poder. Talvez seja possível nos aventurarmos em uma arriscada – e muito provavelmente vã – tentativa de contornar o aspecto paradoxal da crítica de Nietzsche à moral apontada no trabalho de van Tongeren. Podemos nos apoiar especialmente no fragmento póstumo 1 [28] de Julho-Agosto de 1882, que escolhemos como epígrafe da presente resenha, no qual Nietzsche afirma: “Por honestidade devemos afirmar a desonestidade da vida, mas devemos, assim, negar a vida? Não, porque a moral (honestidade) não está acima da vida” (FP 1 [28] de Julho-Agosto de 1882). Dessa maneira, tomando como base essa declaração de Nietzsche, talvez possamos considerar honestidade, probidade e nobreza como máscaras em prol da vida, e, portanto – uma vez que a vida se traduz por um querer sempre mais a si mesma, por um querer se superar cada vez mais, por um querer expandir e crescer –, elas são máscaras em prol da elevação da vida. É possível, pois, que a moral de Nietzsche, que a interpretação que ele de fato almeja impor mediante sua proposta filosófica, deva ser considerada, sim, como uma tomada de partido, qual seja, o partido da afirmação, intensificação, superação e elevação da vida. O resto seria – máscara. Em A moral da crítica de Nietzsche à moral, van Tongeren procurou enfatizar a questão da multiplicidade das interpretações, visando mostrar, assim, que Nietzsche coloca a própria valoração nobre em questão. Todavia, o filósofo não estaria, deste modo, se furtando ao combate, colocando-se de fora do caráter agonístico da vida, da efetividade? Posicionando-se sempre como mero espectador que se compraz com o espetáculo e o incita, mas jamais como ator? Ele não deveria – por dever – tentar impor sua própria interpretação, tomar partido (da vida), ou seja, tal é a nossa hipótese, defender como alvo uma cultura mais elevada e um tipo de homem mais elevado. Intensificar o conflito das várias morais não é, em última instância, meramente um meio para um fim? Intensificar o conflito por intensificar? Ou intensificar o conflito porque é por meio dele que a vida se supera? Deste modo, talvez seja possível sugerir que o fim último da filosofia de Nietzsche seria, na verdade, a elevação, a superação, o crescimento de vida. Quem sabe se a intensificação do conflito das várias morais não seja somente um meio (entre outros tantos ainda possíveis) para esse fim. Arriscamo-nos a dizer que Paul van Tongeren talvez tenha acabado se perdendo no jogo cético de Nietzsche, na brincadeira do infante heraclitiano aventada em Para além de bem e mal. É possível que ele não tenha atentado para o fato de que pode haver um uso instrumental, estratégico, provisório (como uma última e mais horrenda máscara que oculta a derradeira intenção da filosofia de Nietzsche) nessas tomadas de posições céticas, nesta proposital maneira de desorientar – estrategicamente – seu leitor. Ora, se há aí algo de estratégico, há, quiçá, algo que se queira impor, algo que se queira conquistar mediante tal estratégia. Esse algo não poderia ser uma proposta filosófica que almeja – seriamente – criar as condições e as bases necessárias para o cultivo de uma cultura mais elevada, o que quer dizer, em última e mais fundamental instância, o cultivo de um tipo mais elevado de homem? O alvo da filosofia nietzschiana não seria, ainda e sempre, a intensificação da vida e – por conseguinte – dos valores que a exaltam, ou seja, eminentemente, dos valores nobres. Que a vida décadent e os valores décadents estejam entre as condições necessárias para que a própria vida se efetive, já é uma indicação, na verdade, de que eles não possuem um valor em si, uma necessidade em si, mas apenas como condições para algo, a saber, para a contínua auto-superação da vida. É sempre a elevação da vida que está em questão na filosofia de Nietzsche. A intensificação do combate, do conflito, dos antagonismos, da guerra é só um meio, uma estratégia e não necessariamente um fim em si mesmo, como Nietzsche possivelmente parece nos indicar no aforismo 273 de Para além de bem e mal ao afirmar que “mesmo a guerra é uma comédia e oculta do mesmo modo que todo meio oculta um fim”. Observar, estimular, favorecer, financiar, fomentar o combate é combater? É possível combater pelo combate? Quem sabe sim, contudo, se esse é o objetivo maior de Nietzsche em Para além de bem e mal, talvez seja porque o combate é o modo pelo qual se dá o efetivar-se da vida mesma. No fundamento, a filosofia de Nietzsche combate em prol da vida, e, somente em seguida, como um meio, em prol do combate. O valor do conflito não reside nele mesmo, mas no fato dele ser um meio pelo qual a vida pode se superar. O que se busca, então, pela intensificação do conflito é a intensificação da vida mesma. E quanto a moral de Nietzsche? Esse posicionamento em favor da vida constitui uma moral? Se morais são interpretações de um determinado tipo de vida, e se ver a vida como vontade de poder, vontade de crescimento e superação é ainda somente mais uma interpretação, então, querer, afirmar, almejar a elevação da vida – mediante a promoção da intensificação do combate das interpretações – é, ainda, verdadeiramente, obedecer a um imperativo moral. A moral de Nietzsche (seu engajamento, seu compromisso) pode não ser a moral da nobreza aristocrática que foi contraposta à moral do rebanho em Para a genealogia da moral, mas tampouco, tal é a nossa hipótese, é uma moral que pode ser descrita meramente como imperativo para a promoção da intensificação do combate das múltiplas morais em si e por si. A moral de Nietzsche é a moral da afirmação da vida, da vida enquanto superação de forças, portanto, essa moral deve ser descrita como imperativo para a criação de condições necessárias para o surgimento de uma vida sempre mais elevada, tal é, segundo a proposta interpretativa que aqui sugerimos, o seu alvo, seu autêntico fim, a grande tarefa que sua filosofia se propõe. A intensificação do combate constitui apenas um meio (ao lado de outros tantos possíveis) para o alcance desse fim. Sendo assim, caso tenhamos alguma razão em afirmar que, sim, Nietzsche se posiciona, toma partido, compromete-se com uma dada interpretação, embora reconhecendo que ela seja só mais uma entre tantas outras possíveis, então, a aporia que Tongeren vê na filosofia de Nietzsche, que, como ele mesmo afirma, tanta irritação nos traz, talvez se desfaça. Nietzsche combate por algo além da própria intensificação do combate, ele busca impor uma interpretação, ele toma partido, ele atua, ele joga, ele não age somente como mero espectador, ele também sai ao campo de batalha: furtar-se ao conflito é ter a pretensão de se colocar em uma perspectiva exterior à própria vida. Toda essa divagação, canhestra, excursiva e auto-indugente, não almeja se apresentar como qualquer espécie de refutação ao trabalho paradigmático de van Tongeren, mas é resultado direto de seu caráter provocativo e da força pungente com que, ele mesmo, também incita seu leitor ao conflito. A moral da crítica de Nietzsche à moral é, sem qualquer sombra de dúvida, um trabalho basilar e fundamental para a Nietzsche-Forschung, sua publicação no Brasil pela editora Champagnat, com a esmerada tradução de Jorge Luiz Viesenteiner, juntamente com uma imprescindível apresentação de Oswaldo Giacoia Júnior, certamente revela-se uma contribuição de enorme valor para o enriquecimento da pesquisa sobre Nietzsche no Brasil, sinal claro do fortalecimento da filosofia em nosso país, como bem aponta Antonio Edmilson Paschoal em seu belo texto presente na orelha do livro.