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CÁTEDRAS PARA O DESENVOLVIMENTO PATRONOS DO BRASIL

Programa IPEA-CAPES. Coordenadores: André Calixtre; Niemeyer Almeida Filho.

C ÁTEDRAS PARA O DESENVOLVIMENTO PATRONOS DO BRASIL André Bojikian Calixtre Niemeyer Almeida Filho (Organizadores) A interpretação do Brasil é uma obsessão. As contradições imanentes do encontro violento do Velho Mundo em crise, em transformação, em desenvolvimento capitalista, com o paraíso do Novo Mundo, alimentaram e ainda alimentam esse sentimento. Cada momento singular da formação do Brasil foi acompanhado de grandes intérpretes, cujas contribuições correspondem a um arcabouço distintivo de obras intelectuais prioritariamente voltadas para o estudo do sentido do país. Esta particularidade é ainda mais evidente a partir da década de 1930. Neste período, a combinação da herança de precursores do pensamento social com a esperança de um encontro definitivo com a modernidade forjou uma geração de pensadores cuja qualidade e profundidade intelectual, até hoje, não foram superadas. As transformações políticas, econômicas e sociais recentes no país ensejam, como um momento singular, a retomada das interpretações clássicas sobre o sentido do Brasil. São transformações a serem dimensionadas que criam um espaço teórico novo de interpretação que, para ser avançado, deve-se permanentemente recorrer aos estudos dos clássicos do pensamento social, observando distintas orientações metodológicas, para buscar novas respostas aos desafios contemporâneos do desenvolvimento nacional. Esse esforço não se esgota neste livro; aqui há, no entanto, homenagens à memória de pensadores do Brasil, críticas a seus pressupostos e retomada de outros, revisão de algumas categorias que ou se tornaram obsoletas ou estão cada vez mais prementes. O desafio é retomar o debate multidisciplinar sobre a formação e o destino da nação, compreendendo as profundas contradições que a marcam, desde o nascimento histórico até as perguntas do presente que teimam em mostrar nossas deficiências para além de nossas conquistas; e teimam em renovar permanentemente a obsessão de interpretar o Brasil. C ÁTEDRAS PARA O DESENVOLVIMENTO PATRONOS DO BRASIL André Bojikian Calixtre Niemeyer Almeida Filho (Organizadores) Governo Federal Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Ministro Marcelo Côrtes Neri Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais – possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiro – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus técnicos. Presidente Sergei Suarez Dillon Soares Diretor de Desenvolvimento Institucional Luiz Cezar Loureiro de Azeredo Diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia Daniel Ricardo de Castro Cerqueira Diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas Cláudio Hamilton Matos dos Santos Diretor de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais Rogério Boueri Miranda Diretora de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação, Regulação e Infraestrutura Fernanda De Negri Diretor de Estudos e Políticas Sociais, Substituto Carlos Henrique Leite Corseuil Diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais Renato Coelho Baumann das Neves Chefe de Gabinete Bernardo Abreu de Medeiros Assessor-chefe de Imprensa e Comunicação João Cláudio Garcia Rodrigues Lima Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria URL: http://www.ipea.gov.br C ÁTEDRAS PARA O DESENVOLVIMENTO PATRONOS DO BRASIL André Bojikian Calixtre Niemeyer Almeida Filho (Organizadores) Rio de Janeiro, 2014 © Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2014 Calixtre, André Bojikian Cátedras para o desenvolvimento : patronos do Brasil / André Bojikian Calixtre, Niemeyer Almeida Filho – Rio de Janeiro: Ipea, 2014. 656 p. : il. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7811-241-7 1. Pensamento Econômico. 2. Desenvolvimento Econômico. 3. Desenvolvimento Social. 4. Brasil. I. Título. II. Almeida Filho, Niemeyer. III. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. CDD 330.09 As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ........................................................................................9 INTRODUÇÃO ..........................................................................................11 CAPÍTULO 1 IGNÁCIO RANGEL: INTÉRPRETE DO BRASIL ................................................21 Carlos Brandão CAPÍTULO 2 A ATUALIDADE DE FLORESTAN FERNANDES EM QUESTÃO: UMA INTERPRETAÇÃO DA TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO E DA MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ....................................41 Ronaldo Herrlein Jr. CAPÍTULO 3 O CONCEITO DE CULTURA EM FURTADO E A PROBLEMÁTICA DA DEPENDÊNCIA CULTURAL .................................................................83 César Bolaño CAPÍTULO 4 ESTUDOS EM DARCY RIBEIRO: UM CAPÍTULO DO PENSAMENTO CRÍTICO LATINO-AMERICANO E DECOLONIAL .........................................109 Adelia Miglievich-Ribeiro CAPÍTULO 5 SUBDESENVOLVIMENTO, SERGIO BUARQUE DE HOLANDA E O HOMEM CORDIAL – A IMPORTÂNCIA DA ESPECIFICIDADE RADICAL DA FORMAÇÃO HISTÓRICA DO BRASIL E DE SEU SUJEITO .................................................131 André Bojikian Calixtre CAPÍTULO 6 OCTAVIO IANNI E A IDEIA DE BRASIL MODERNO NA ERA DO GLOBALISMO .....................................................................................157 Carlos Antonio Mendes de Carvalho Buenos Ayres CAPÍTULO 7 INSERÇÃO AUTÔNOMA PARA O BRASIL: UMA EXEGESE DO PENSAMENTO CRÍTICO DE RUI MAURO MARINI.......................................187 Niemeyer Almeida Filho CAPÍTULO 8 PENSANDO, PLANEJANDO E EXECUTANDO O DESENVOLVIMENTO: A TRAJETÓRIA DE RÔMULO ALMEIDA ......................................................219 Alexandre de Freitas Barbosa CAPÍTULO 9 MAURÍCIO TRAGTENBERG E A APROPRIAÇÃO HETERODOXA DE MARX: UMA INTRODUÇÃO AO PROBLEMA .........................................................261 Vinícius Soares Solano Elcemir Paço-Cunha Deise Luiza da Silva Ferraz CAPÍTULO 10 (SUB)DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO-ECONÔMICO DO BRASIL: AS TEORIAS MODERNAS E A TESE DE RAYMUNDO FAORO .......................281 Joilson Dias CAPÍTULO 11 ROBERTO SIMONSEN: AS CONTRIBUIÇÕES E A ATUALIDADE DO PENSAMENTO ....................................................................................303 Marcelo Curado CAPÍTULO 12 PAPEL DO ESTADO E DESENVOLVIMENTO NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA OBRA DE ROBERTO CAMPOS..............................................................325 Carlos Eduardo Gasparini CAPÍTULO 13 HUMANISMO E LIBERDADE: AS FACES DO DESENVOLVIMENTO EM ALCEU AMOROSO LIMA .....................................................................349 Maurício Serra CAPÍTULO 14 O DEBATE ATUAL SOBRE A PERTINÊNCIA DA REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL ...............................................................................................395 Lauro Mattei CAPÍTULO 15 O ESPAÇO RURAL NA CONTEMPORANEIDADE .........................................419 Vitoria Regia Fernandes Gehlen CAPÍTULO 16 CICLOS, INSTITUIÇÕES E DUALIDADE ECONÔMICA: RANGEL ...................439 Viviane Freitas Santos Adalmir Marquetti CAPÍTULO 17 IGNÁCIO RANGEL E A CATEGORIA DUALIDADE BÁSICA: UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL ...........................................................465 Maria Mello de Malta CAPÍTULO 18 A QUANTAS ANDA A REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL .......................483 Carlos Águedo Nagel Paiva Claudionir Borges da Silva CAPÍTULO 19 DESIGUALDADE NA AMÉRICA LATINA: ESTUDO SEGUNDO O ENFOQUE DE CELSO FURTADO ................................................................505 Silvia Harumi Toyoshima Francisco Carlos da Cunha Cassuce Luckas Sabioni Lopes CAPÍTULO 20 IMPACTOS REGIONAIS DE UMA REFORMA COMERCIAL NO BRASIL BASEADA NAS CONTRIBUIÇÕES LIBERAIS DE ROBERTO CAMPOS ...........539 Mauricio Vaz Lobo Bittencourt CAPÍTULO 21 ATROFIA DO CRÉDITO E DESENVOLVIMENTO: O PENSAMENTO DE MARIO HENRIQUE SIMONSEN E O SISTEMA FINANCEIRO BRASILEIRO (1930-1964) ........................................................................561 Renato Leite Marcondes CAPÍTULO 22 REFORMA SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO: CONTRIBUIÇÕES DE ANDRÉ REBOUÇAS (1838-1898) À INTERPRETAÇÃO DAS MUDANÇAS ESTRUTURAIS NO BRASIL ............................................589 Humberto Miranda do Nascimento CAPÍTULO 23 REFORMAS SANITÁRIAS E CONTRARREFORMAS MÉDICAS: A NATUREZA DILEMÁTICA DE UM CAMPO EM CONSTRUÇÃO PERMANENTE – UMA LEITURA SOB A ÓTICA DA CONTRIBUIÇÃO DE SÉRGIO AROUCA AOS DILEMAS DA SAÚDE PÚBLICA .........................................................613 Giovanni Gurgel Aciole CAPÍTULO 24 GUERREIRO RAMOS, A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA E O IMAGINÁRIO PÓS-COLONIAL .................................................................633 Fernando de Barros Filgueiras APRESENTAÇÃO O programa Cátedras para o Desenvolvimento, elaborado em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), é ambicioso. Desde 2008, foram dois editais dedicados aos patronos brasileiros. A metodologia é simples: selecionam-se pensadores relevantes do desenvolvimento socioeconômico, sob diversas matrizes teóricas, metodológicas e ideológicas, e transferem-se suas questões, elaboradas no passado, para problemas contemporâneos. O objetivo é reforçar e atualizar uma cultura de sempre reler os clássicos, como ponto de partida para as questões atuais que desaiam o desenvolvimento pleno da sociedade brasileira e da região latino-americana. Nesta etapa nacional do projeto, dezenas de pesquisadores de todo o Brasil mobilizaram-se para retomar e aprofundar o conhecimento sobre alguns dos cinquenta intelectuais selecionados no edital. Durante quatro anos de pesquisa, milhares de páginas foram produzidas, na forma de relatórios, além da divulgação e da discussão destes patronos nas salas de aula, promovidas como atividades dos bolsistas. O que o Ipea disponibiliza para a sociedade brasileira é uma seleção desse trabalho, buscando apresentar ao leitor tanto um peril biográico do pensamento social quanto um debate sobre a atualidade dos desaios para o desenvolvimento nacional. É uma peça fundamental de leitura aos estudantes e aos colegas professores, para alimentar a discussão sobre os rumos a seguir e ampliar a capacidade de análise, comumente restrita a disciplinas e abordagens que deveriam se relacionar de forma mais matricial e conjugada. Pela escala do projeto, ele seria inexequível sem a colaboração de diversos servidores do Ipea, que exerceram papel fundamental na coordenação, na organização e no encaminhamento das pesquisas necessárias ao andamento da obra, que é um produto institucional. Reconhecem-se os esforços de Laureana Alves, MárcioWohlers de Almeida, Maria Isabel Pojo e Marcos Antonio Macedo Cintra que, além de organizadores, foram imprescindíveis na elaboração deste livro. O Ipea agradece ainda ao conjunto de pesquisadores que contribuíram para este projeto, dedicandose com excelência a este belo trabalho de revisão, divulgação e atualização dos clássicos. Por im, um agradecimento especial à Capes, sem a qual este projeto não teria existido, por acreditar na qualidade da iniciativa e na relevância que este tipo de pesquisa possui para o avanço do pensamento sobre o Brasil. A todos, uma excelente leitura. Sergei Suarez Dillon Soares Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) INTRODUÇÃO A interpretação do Brasil como nação, como economia periférica, vem inspirando gerações de intelectuais: é uma obsessão. As contradições imanentes do encontro violento do Velho Mundo em crise, em transformação, em desenvolvimento capitalista, com o paraíso do Novo Mundo primitivo, em aberto, alimentaram e ainda alimentam esse sentimento. Talvez por esse encontro ter produzido as bases ocultas do renascimento da razão e do Ocidente, guardando as luzes da liberdade e da igualdade para o exclusivo da metrópole (o centro do capitalismo) e as sombras da escravidão e da exclusão para o espaço subordinado da colônia (as periferias) – ou pelas elites imitarem incessantemente essas luzes do Centro, sem perceber que elas são parte da sua história, seus limites, e sem perceber que o potencial da nação foi (e ainda é) muito maior do que simplesmente uma feitoria de coisas e de homens. Enim, esse esforço de compreender o Brasil está marcado pela tentativa de separar o tempo nacional do inseparável tempo do mundo, portanto, uma obsessão que alimenta a tradição desde os primeiros pensadores de interpretar as origens, o destino e o sentido da nação. Cada momento singular do seu processo histórico de constituição foi acompanhado de grandes intérpretes, cujas contribuições correspondem a um arcabouço distintivo de obras intelectuais prioritariamente voltadas para o estudo do sentido do país. Esta particularidade é ainda mais evidente a partir da década de 1930. Nesse período, a combinação da herança de precursores do pensamento social com a esperança de um encontro deinitivo com a modernidade forjou uma geração de pensadores com qualidade e profundidade intelectual até hoje não superadas. As recentes transformações políticas, econômicas e sociais ensejam, como um momento singular, a retomada das interpretações clássicas sobre o sentido do Brasil. São transformações a serem dimensionadas e que criarão um espaço teórico novo de interpretação. Percebendo isso, o Ipea, com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), formulou e realizou um programa de discussão do pensamento social brasileiro a partir de um conjunto de “patronos”, isto é, a partir de um conjunto de autores já falecidos e cujas obras ganharam o consenso de ser denominadas “clássicas”, pelas suas contribuições deinitivas, embora parciais. O formato proposto de Cátedras para o desenvolvimento – patronos do Brasil elegeu, então, por edital, um pesquisador candidato para cada um dos patronos, exigindo um programa de estudo sobre um tema contemporâneo do Brasil, à luz da biograia e da contribuição desses mesmos patronos ao desenvolvimento brasileiro. 12 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Este livro foi organizado em capítulos extraídos dos relatórios inais do programa Cátedras para o Desenvolvimento – editais I e II. Foram mais de dois anos de trabalho, milhares de páginas de relatórios, que aqui se concentram em textos-sínteses de uma seleta de contribuições feitas a partir de pareceres ad hoc e da escolha dos organizadores. Por ser inovador nos seus objetivos e abrangência, o programa Cátedras para o Desenvolvimento apresenta diversidade no foco das pesquisas e nos seus resultados. Parte dos trabalhos procura apontar os aspectos mais relevantes e atuais dos seus patronos, enquanto outra investigou as consequências empíricas das proposições dos mesmos, em geral de reconhecida contribuição intelectual e política. Além disso, os capítulos não seguiram padronização rígida, sendo alguns deles comparativamente mais extensos, pela dimensão dos seus relatórios de base. Não obstante, os capítulos apresentam contribuições relevantes ao tema do desenvolvimento e proposições de políticas inovadoras, atingindo um dos objetivos mais importantes de criação do programa: aprofundar o debate sobre o desenvolvimento em suas múltiplas modalidades teóricas. Ademais, todos os capítulos cumpriram a função de recuperar a contribuição de pensadores do desenvolvimento brasileiro que, embora clássicos pela repercussão de suas colaborações, estavam de alguma forma relegados pela cultura acadêmica econômica recente de privilégio à macroeconomia convencional e aos modelos de crescimento, enim de destacar a matematização da economia. A estrutura do livro apresenta os capítulos que conferem ênfase maior ao pensamento dos patronos. O primeiro deles, de Carlos Brandão, ressalta a contribuição de Ignácio Rangel (1914-1994), destacando-o como um dos maiores intérpretes da natureza e das especiicidades do capitalismo brasileiro. A proposta é apresentar uma visão panorâmica, sistematizando algumas das inúmeras contribuições do grande cientista social brasileiro. O segundo capítulo, de Ronaldo Herrlein Jr., trata de Florestan Fernandes. Nele, o foco está em apreender a atualidade do pensamento do patrono sobre a sociedade brasileira, como uma interpretação acerca do caráter e das possibilidades da mudança social em curso no Brasil. Este é o capítulo mais longo do livro, organizado em quatro seções. Começa enunciando uma hipótese sobre as transformações do Estado brasileiro, tratando de qualiicar o próprio enunciado, e, em seguida, ocupa-se dos indícios que levaram à formulação dessa hipótese. São feitos comentários sobre políticas públicas nacionais no período 1995-2010, bem como sobre as características de certas instituições estatais brasileiras. A partir desses elementos, alcança-se a interpretação da mudança social que orientou a pesquisa, fundada no pensamento de Florestan Fernandes. A conclusão do capítulo apresenta os desdobramentos Introdução 13 dessa mudança e os desaios do desenvolvimento, ainda com apoio nas ideias do patrono, mas propondo simultaneamente uma perspectiva diferente para fomentar a transformação social no Brasil. O terceiro capítulo, de César Bolaño, retoma um dos temas mais profundos da análise de Celso Furtado, a interpretação histórica-estrutural sobre o conceito de cultura, aplicada aos processos de difusão desigual do capitalismo entre centro e periferia. O debate é retomado no seu ponto principal: como a transformação dos estilos de vida provocada no centro das economias industriais é traduzida em modernização dos padrões de consumo na periferia, ou seja, no avanço da aparência de modernidade sem a estrutura social moderna. Esse fenômeno produz uma cultura do subdesenvolvimento que se manifesta historicamente como dependente das hegemonias, do poder econômico e cultural de organização que o centro possui sobre ele mesmo e sobre a periferia e cuja ruptura demanda uma abordagem tão radical que, como nas palavras de Furtado, seria “negar o passado”. No quarto capítulo, Adelia Miglievich-Ribeiro percorre a obra de Darcy Ribeiro em busca da unidade que este grande patrono apresentou na interpretação do brasileiro como uma condição ímpar, formada da mestiçagem, do encontro afetivo, a um só tempo pacíico e violento, e do sentimento de não pertença a nenhuma nacionalidade preestabelecida. O homem que é ninguém, por não ser negro, índio ou branco, é a raiz do homem brasileiro. Nesse sentido de compreensão, a autora resume os principais argumentos de três grandes obras de Ribeiro: O processo civilizatório (1968), As Américas e a civilização (1969) e O povo brasileiro (1995). O objetivo desse resgate é criar uma ponte com a discussão atual sobre a descolonização do pensamento, ou seja, interpretar a origem e o destino de um povo colonizado, mediante um tempo histórico que transcenda a expansão do capitalismo mercantil e de uma narrativa que compreenda as causas do processo civilizatório desde dentro da sociedade pós-colonial, e não como um processo essencialmente exógeno. No quinto capítulo, André Bojikian Calixtre propõe uma investigação sobre a obra de Sérgio Buarque de Holanda, reforçando a ideia de que, na formação da identidade brasileira – vista sob a ótica de um sujeito especíico, organizado por laços de afetividade e formado pelo subdesenvolvimento –, construiu-se uma civilização particularíssima. Na busca por interpretar este homem brasileiro, está o conceito de “homem cordial” como a centralidade da proposta intelectual de Buarque de Holanda. Muitos acreditavam estar condenado pelo advento da República e do projeto de industrialização, no entanto, a leitura do patrono para as questões atuais do Brasil leva a crer que essa modernização urbana-industrial não foi capaz de extirpar as raízes cordiais em que se constituiu a sociedade nacional; pelo contrário, reproduziu dinamicamente o “homem cordial” como centro da sociabilidade contemporânea. Esse fenômeno torna-se evidente nas últimas décadas 14 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil e provoca inquietações sobre o sentido do Brasil, como também sobre os limites e as possibilidades do desenvolvimento nacional. No sexto capítulo, Carlos Antonio Mendes de Carvalho Buenos Ayres discute as categorias fundamentais de Octavio Ianni quando este pensou sobre o fenômeno da globalização do capital, ou, como nas próprias palavras do patrono, quando o capital inalmente se tornou onipresente. A relação entre o nacional e o global no mundo globalizado é profundamente distinta de como era quando o capitalismo avançava em sua forma nacional, em busca de espaços de acumulação aonde ainda não havia chegado. Esse fenômeno traz uma relexão imediata para os limites e possibilidades da ação do Estado brasileiro, cuja formação esteve marcada pelo período expansivo do capital e, hoje, encontra novos desaios no globalismo. As estratégias dos Estados ditos “emergentes”, como o Brasil, defrontam-se com uma conjuntura inédita no capitalismo, na qual as nações industrializadas e desenvolvidas enfrentam crises internas de expansão da acumulação, enquanto outras nações emergem como horizontes novos para o capital. Ao mesmo tempo, a dependência desses países que buscam superar o subdesenvolvimento é ainda mais profunda que no período anterior, pois tanto o controle quanto a dinâmica do capitalismo são determinados globalmente, para além dos sistemas políticos nacionais. O sétimo capítulo é de Niemeyer Almeida Filho. Nele procura-se recuperar a contribuição da Teoria Marxista da Dependência, centrada nas proposições do patrono Ruy Mauro Marini, para quem o capitalismo latino-americano – e, portanto, o brasileiro – apresenta especiicidade, pela sua natureza deformada, se comparada à dos países avançados. A deformação está ligada à existência de superexploração do trabalho, que se reproduz historicamente por conta da função que cumpre a periferia latino-americana na divisão internacional do trabalho. Além da sistematização das proposições da Teoria Marxista da Dependência, o capítulo sustenta a tese de que o baixo dinamismo relativo da economia no Brasil é um fenômeno estrutural, relacionado justo à natureza e aos respectivos dilemas do padrão de desenvolvimento capitalista dependente brasileiro. Sustenta-se que esse padrão foi abalado por mudanças estruturais do desenvolvimento capitalista global desde os anos 1970, e mais agudamente nos anos 1980, mas não alterou essencialmente a forma de inserção da economia, tampouco seu padrão de acumulação. O oitavo capítulo trata de um patrono do desenvolvimento cuja obra não está escrita num grande livro de interpretação do Brasil, mas sim na prática e na participação decisiva que desempenhou nas instituições nascentes do período nacional-desenvolvimentista. Alexandre de Freitas Barbosa discorre sobre a vida, as memórias e a obra prática de Rômulo Almeida, de forma a apresentar este patrono ao leitor, misturando a análise biográica com uma relexão sobre esse momento crucial da formação do Estado brasileiro. Nesse espírito, cumpre um papel Introdução 15 importante no resgate da história de Rômulo Almeida, que atuou fortemente no desenho econômico do segundo governo Vargas e nas instituições regionais para o desenvolvimento do Nordeste, trazendo as últimas questões elaboradas ao im de sua vida para a discussão dos desaios contemporâneos do desenvolvimento brasileiro. O nono capítulo do livro contém a discussão de Vinícius Soares Solano, Elcemir Paço-Cunha e Deise Luiza da Silva Ferraz sobre a obra crítica de Maurício Tragtenberg. Especialmente em seus escritos sobre a teoria das organizações, Tragtenberg fez contribuições decisivas para uma teoria da administração que objetive emancipar o homem, um feito único na literatura de sua época, que estava centrada em desenvolver exatamente o contrário: eficientemente aprisionar o homem. Tragtenberg sempre foi um libertário, um humanista que articulou, de forma livre e (segundo muitos) heterodoxa, pensadores de grande calibre e iguais diferenças, como Hegel, Weber e Marx. O capítulo centra-se na obra Burocracia e ideologia para apresentar ao leitor as principais proposições e desaios encampados por um autor, cujas categorias de análise continuam contemporâneas para os desaios do Estado e da sociedade brasileiros atuais. No décimo capítulo, de Joilson Dias, as teorias que estabelecem o papel fundamental exercido pelas instituições no crescimento e desenvolvimento dos países são apresentadas e comparadas à tese de instituições vigentes na história do Brasil por Raymundo Faoro. A tese de “estamento burocrático” do patrono é interpretada, assim como as teorias das instituições que preconizam a indissolubilidade entre os poderes de facto e de jure, que formam as instituições que comandam a economia, e também a distribuição do resultado econômico entre os cidadãos. A principal conclusão que o capítulo oferece aos leitores é de que a teoria do “estamento burocrático”, prevalente na história da economia brasileira, explica a instabilidade dos poderes institucionais na medida em que a distribuição dos ganhos econômicos beneicia, na maior parte do tempo, o estamento burocrático. Em síntese, o autor busca na teoria de Raymundo Faoro revelar os principais elementos que restringem o crescimento e desenvolvimento econômico histórico do Brasil. No 11o capítulo, de Marcelo Curado, busca-se recuperar as contribuições de Roberto Simonsen para o debate econômico brasileiro, com ênfase em seu papel pioneiro na apresentação de alguns dos pilares centrais do projeto desenvolvimentista. Pela sua importância na história do pensamento econômico brasileiro, atenção especial é dedicada ao resgate das discussões promovidas com Eugênio Gudin no episódio conhecido como a “controvérsia do planejamento”, ocorrida entre os anos de 1944 e 1945. O capítulo argumenta que essas discussões, especialmente a preocupação com o papel da estrutura produtiva, o padrão de especialização comercial e a função do Estado, persistem como temas essenciais na agenda atual de debate sobre o desenvolvimento do país. 16 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil No 12o capítulo, Carlos Eduardo Gasparini defende a tese de que Roberto Campos, não obstante a aparente mudança de rumo ideológico nos anos mais recentes de sua vida, manteve coerência de argumentação, que está exatamente na iliação ao que se poderia chamar de projeto mais amplo, contido no ideal iluminista: usar a razão e o conhecimento humano para “moldar” a sociedade – ideal este base do planejamento (governamental ou não). Na caracterização “iluminista” sugerida por Roberto Campos, tanto o Estado como o mercado devem ser visualizados como instrumentos para a realização social. E a mudança de atitude de Campos em relação a ambos espelha o fato de que a experiência humana, na sua interpretação, teria evoluído na constatação de que o mecanismo de mercado é um instrumento mais eicaz para gerar prosperidade, bem-estar e liberdade do que o intervencionismo estatal sobre a economia. Na instigante exploração biográica de Maurício Serra sobre Alceu Amoroso Lima, no 13o capítulo, encontra-se uma tentativa de trazer para o leitor o conhecimento deste importante patrono que foi capaz de transitar entre a esquerda socialista utópica e a direita católica em uma só trajetória de vida, sendo um dos responsáveis pela criação da Democracia Cristã, força política de grande relevância na América Latina do século XX. Nesse capítulo, é abordada a conversão de Amoroso Lima do ateísmo para o cristianismo, analisando intensamente as contradições da elite intelectual do início do século XX e as desilusões sofridas pelo patrono tanto na fase “diletante” quanto na “católica”, esta última que o afastou da direita autoritária e o fez antecipar criticamente o Golpe Militar de 1964. O centro do capítulo é mostrar ao leitor a defesa e a obsessão de Amoroso Lima em construir um argumento puramente humanista para o desenvolvimento socioeconômico. A questão agrária é o tema do 14o capítulo, de Lauro Mattei. Constitui-se na contribuição seminal do pensamento de Caio Pardo Júnior para o debate sobre o desenvolvimento nacional, especiicamente a reforma agrária, entendida como uma ruptura do passado essencial à superação do subdesenvolvimento. A questão da terra emergiu de tempos em tempos na sociedade brasileira, sem uma solução que superasse a herança colonial da monocultura, da grande propriedade e do trabalho escravo. Mattei deine politicamente três ciclos de lutas pela terra, que seguiram sem uma resposta do Estado à sociedade brasileira: as lutas abolicionistas e o retrocesso da Lei de Terras (1850); o tenentismo dos anos 1920 e 1930 e a crítica ao latifúndio, cuja resposta dos governos varguistas foi insuiciente para alterar estas estruturas fundiárias; as ligas camponesas das décadas de 1950 e 1960 e seu ressurgimento nos anos 1980 pelo Movimento dos Sem-Terra (MST), cujo processo de lutas misturou-se a uma transformação do processo produtivo no campo e trouxe consigo novos desaios à luta pela terra. Nesse último ciclo, o autor discute as principais teses sobre a pertinência ou não da reforma agrária no Brasil Introdução 17 contemporâneo, sempre defendendo sua vital importância para o desenvolvimento, assim como é na perspectiva do patrono. No 15o capítulo, Vitoria Regia Fernandes Gehlen aprofunda o debate sobre as transformações que as novas tecnologias e a nova forma de organização do campo geraram no espaço rural na contemporaneidade e analisa essas mudanças à luz da contribuição de Manuel Correia de Andrade. Seguindo as teses do patrono, que foi um grande estudioso da questão agrária nordestina, Gehlen desenvolve essas transformações rurais aplicando as categorias de Andrade para o caso especíico do espaço rural pernambucano. A categoria central da análise é a relação entre a acumulação de capital, em escala global, e a organização do espaço rural em sociedades periféricas – em essência, o resgate da crítica do patrono ao processo de modernização do campo brasileiro, cujos impactos desfavorecem, em especial, a agricultura familiar e obrigam políticas públicas especíicas. No 16o capítulo, Viviane Freitas Santos e Adalmir Marquetti retomam a discussão sobre Ignácio Rangel, agora com foco em suas categorias teóricas centradas na especificidade da dinâmica econômica no subdesenvolvimento brasileiro. As inluências teóricas para a interpretação de Rangel, em que Santos e Marquetti se apoiam, é a combinação entre a teoria marxista e os ciclos de Kondratief. Essas inluências, no pensamento de Rangel, estão imbricadas à categoria analítica do dualismo, cerne do pensamento desenvolvido na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em que a formação econômica da periferia dar-se-ia, no tempo histórico, como uma dupla e assimétrica difusão do modo urbano-industrial irradiado do centro, e nunca como processo de simples transferência tecnológica e produtiva. Essa “dualidade básica”, segundo os autores, permitiu ao patrono, quando combinados a Marx e a Kondratief, uma interpretação de longo prazo da dinâmica econômica, social e institucional do Brasil, cujas principais elaborações são apresentadas ao longo do capítulo. Maria Mello de Malta, no 17o capítulo, também focaliza Ignácio Rangel. Retratando-o como um pensador do Brasil, a autora destaca a sua originalidade no trato das questões brasileiras e mostra ainda que essa característica era deliberada, pois Rangel considerava que a complexidade do Brasil exigia teoria própria, que descrevesse seus movimentos tão particulares e, ao mesmo tempo, tão conectados às inquietações da ordem externa. No 18o capítulo, o patrono Florestan Fernandes é retomado por Carlos Águedo Nagel Paiva e Claudionir Borges da Silva para problematizar o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro contemporâneo. Para reletir sobre o padrão de desenvolvimento brasileiro o “trilema” proposto por Florestan Fernandes na obra A revolução burguesa no Brasil é retomado: em meados da década de 1970, o Brasil estava diante de uma encruzilhada capaz de conduzi-lo tanto ao 18 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil subcapitalismo, quanto ao capitalismo avançado ou ao socialismo. Passadas três décadas da propositura de Florestan, o “trilema” não se resolveu, e o esgotamento do padrão excludente de crescimento associado ao “milagre” ganhou novos contornos quando a crise dos anos 1980 culminou na profunda rearticulação do projeto político e econômico burguês nacional – uma rearticulação que culminou no Plano Real e que associa o controle da inlação e a valorização ictícia do capital nacional e internacional com a sobrevalorização estrutural da moeda nacional e com a depressão relativa das taxas de crescimento e emprego internos. O 19o capítulo é de Silvia Harumi Toyoshima, bolsista do programa Cátedras para o Desenvolvimento, em cooperação com Francisco Carlos da Cunha Cassuce e Luckas Sabioni Lopes. Nele estão discutidos os temas da desigualdade, da pobreza e do crescimento, a partir do pensamento de Celso Furtado. É feito destaque ao livro Formação econômica da América latina, no qual Furtado analisa o desenvolvimento dos países da América Latina, ressaltando suas semelhanças e diferenças, segundo o contexto histórico geral e particular de cada país, enfatizando suas formas de inserção na divisão internacional do trabalho. A partir do esquema teórico proposto, fazem-se análise e comparação do comportamento de variáveis econômicas e sociais dos países da região, nas décadas de 1950 e 2000, com base nos determinantes históricos que conformaram suas estruturas econômicas e sociais. Como conclusão, o capítulo mostra que a inserção internacional da economia brasileira não apresenta mudanças importantes no período considerado. No vigésimo capítulo, Mauricio Vaz Lobo Bittencourt investiga os impactos econômicos regionais na pobreza e na distribuição de renda provocados por uma redução nas tarifas de importação, com base nas ideias de Roberto Campos. Devido à importância econômica e política de Campos para a formação econômica do Brasil, sustenta-se que suas ideias liberais para o desenvolvimento possam ser avaliadas empiricamente por meio de um modelo de equilíbrio geral computável (CGE) aplicado para o Brasil. Assim, busca-se veriicar se a adoção de políticas de liberalização comercial inspiradas nos ideais de Roberto Campos podem trazer ganhos de bem-estar para os pobres e uma melhor distribuição de renda regional. O 21o capítulo trata das contribuições fundamentais de Mario Henrique Simonsen para o desenvolvimento do sistema inanceiro nacional entre 1930 e 1964, de autoria de Renato Leite Marcondes. O desenvolvimento embrionário do sistema de crédito antes da década de 1930 e a crise de 1929 levaram o governo federal a uma série de intervenções inanceiras importantes, o que regulamentou o mercado e aumentou a participação pública no setor. A manutenção dessa legislação associada ao crescimento da inlação restringiu, nas formulações clássicas do patrono, a retomada do crédito na economia, como ocorria no período anterior à grande depressão. O capítulo avalia o diagnóstico de atroia inanceira de Simonsen, por meio do Introdução 19 estudo especíico do crédito hipotecário e das Caixas Econômicas Federais, já que os bancos foram mais estudados pela literatura, principalmente o Banco do Brasil (BB) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Acompanha, também, as mudanças institucionais e suas consequências para o funcionamento do mercado inanceiro, especialmente de dívida interna e hipotecas, e destaca as Caixas como um agente importante do mercado imobiliário urbano nessa época, mediante o crédito hipotecário. Antes das reformas monetárias e inanceiras do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) o crescimento inflacionário dificultou o desenvolvimento dos instrumentos de crédito a prazos mais longos, como de títulos públicos e privados (hipotecas e debêntures). Ao inal, o capítulo avalia as restrições ao desenvolvimento desses mercados especíicos. O 22o capítulo, de autoria de Humberto Miranda do Nascimento, trata a interpretação das raízes do subdesenvolvimento nacional por meio das contribuições de um dos expoentes do pensamento social brasileiro no im do século XIX, o engenheiro André Rebouças. A originalidade do pensamento deste intérprete está no propósito central do seu programa de reformas, centrado na reforma agrária, segundo a qual somente cessando o monopólio da terra estaria completo o processo da abolição do trabalho escravo e consolidada a passagem para o trabalho livre. O capítulo busca discutir este propósito, mostrando como Rebouças, muito cedo, defendeu uma perspectiva de emancipação social e um conjunto de reformas socioeconômicas que levassem à construção da nação. Considera-se que suas contribuições guardam enorme atualidade na crítica a um sistema de dominação econômico-territorial, cuja dinâmica revela o caráter permanente de reprodução das desigualdades sociais e espaciais no Brasil. O pensamento de Sérgio Arouca sobre os fundamentos do sistema público de saúde é retomado pela argumentação de Giovanni Gurgel Aciole no 23o capítulo. Este estudo aprofunda-se nos conceitos e nos interesses que originaram e sustentam as práticas pública e privada na saúde, a primeira centrada na prevenção e na coletividade e a segunda, na cura e na individualidade. O conlito desses polos de organização da saúde, no Brasil, desaguou em dois grandes sistemas concorrentes, o Sistema Único de Saúde (SUS), centrado na universalidade e no regime público, e o Sistema Suplementar, individual e regido pelo mercado. A proposta de Arouca, que buscava a síntese entre medicina e saúde pública, enfrenta um desaio de superação entre dois tipos sociais: o médico e o sanitário, situação chamada pelo patrono de “dilema preventivista”. O desenvolvimento da medicina coletiva, congregando especialidades das ciências médicas, e os riscos da superespecialização da prática médica, que tem a prevalência do hospital como o centro da separação entre a técnica médica e sua função universal, são alguns dos desaios encampados pelo autor nesse capítulo. 20 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil No último capítulo desta obra, a contribuição seminal de Alberto Guerreiro Ramos para a sociologia é interpretada por Fernando de Barros Filgueiras. O aprimoramento recente da sociologia latino-americana caminha no sentido de reforçar e valorizar a produção cientíica própria. Isso permite consolidar uma autointerpretação de sua realidade social capaz de promover o desenvolvimento das diferentes potencialidades das sociedades latino-americanas. O objetivo desse capítulo é resgatar as posições práticas e epistemológicas de Guerreiro Ramos publicadas em diferentes meios e conhecidas como “redução sociológica”. Mediante as posições de Guerreiro Ramos, apresentadas no II Congresso Latino-Americano de Sociologia, pretende-se relacionar os termos da redução sociológica com o imaginário pós-colonialista, observando proximidades e distanciamentos metodológicos do ofício da sociologia e as inovações proporcionadas pelo autor a partir do conceito de redução sociológica. Por fim, cabe observar que os resultados do programa Cátedras para o Desenvolvimento não se circunscrevem à produção intelectual aqui consolidada. Parte importante do programa se destina a estimular a discussão do tema do desenvolvimento nos diversos centros acadêmicos de economia. Nos relatórios inais há uma listagem signiicativa de atividades complementares, que mostram a importância acadêmica e política do apoio inanceiro que o Ipea vem oferecendo a pesquisadores de diversas instituições do país, algumas delas sem infraestrutura suiciente para captar isoladamente recursos de apoio a programas desta natureza. Portanto, os resultados do programa ultrapassam, em muito, as contribuições aqui apresentadas. André Bojikian Calixtre Niemeyer Almeida Filho CAPÍTULO 1 IGNÁCIO RANGEL: INTÉRPRETE DO BRASIL Carlos Brandão1 A descoberta de elos débeis na economia brasileira, qualquer que seja sua origem, implica a descoberta de oportunidades de inversão. Ignácio Rangel Era preciso descobrir recursos ociosos e descobrir os meios de pô-los em evidência. Ignácio Rangel Na sociedade atual não é fácil discriminar, fazer escolhas, que é toda a tarefa do planejamento. O que escolher? O que hierarquizar? Francisco de Oliveira 1 INTRODUÇÃO Ignácio de Mourão Rangel (1914-1994) foi certamente um dos mais destacados intérpretes da natureza e das especificidades do capitalismo brasileiro. Sua originalidade e sua ousadia marcaram suas relexões teóricas, sempre voltadas ao esforço incansável de entender as peculiaridades do Brasil. Este capítulo busca, em uma visão bastante ampla, sistematizar algumas das inúmeras contribuições deste grande cientista social brasileiro. Este arrojado pesquisador, infelizmente pouco lido – e provavelmente o mais desconhecido entre os dez maiores intérpretes do Brasil –, apresenta uma das mais instigantes contribuições para se pensarem as peculiaridades nacionais em uma inusitada e imaginativa perspectiva dinâmica, concreta, histórica, cíclica, contraditória e dialética da sociedade brasileira. Sua liberdade intelectual e seus argumentos, com enorme inventividade e sempre cultivando a polêmica, proporcionam um sistema teórico-analítico de grande alcance. Um ponto importante de suas contribuições é que este audacioso sistema está apto a dialogar com todos os outros grandes intérpretes do Brasil. 1. Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). 22 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Como exemplo, o ponto de partida comum a todos eles é que não tem sentido uma abordagem altamente abstrata e geral do processo de desenvolvimento capitalista. Ignácio Rangel, assim como os outros grandes intérpretes do Brasil, nunca buscou teorizações abstratas sobre o país e sempre se esforçou por construir as devidas mediações teóricas e históricas para pensar as vias, os estilos ou os padrões que os variados países podem seguir. Ressaltou em toda a sua obra a necessidade de se fugir das aplicações mecânicas das teorias e dos modelos interpretativos importados. Perseguiu durante toda a sua vida o entendimento rigoroso das especiicidades marcantes do capitalismo periférico brasileiro. Airmou que “nossa evolução não é autônoma, não é produto exclusivo de suas forças internas” (Rangel, 1957, p. 29), daí a necessidade de investigar as relações internas vis-à-vis as relações externas, permanentemente em coexistência e tensão ao longo da história brasileira, que moldaram as relações sociais de produção e o sistema de forças produtivas do país. Tal sistema, em sua versão periférica e subdesenvolvida, por sua própria natureza inconcluso e travado, defende Rangel, apresenta enormes diiculdades de ser dirigido para ações criadoras e de se transformar em sistema de forças propulsivas do processo de desenvolvimento. Seria preciso forjá-lo, com intencionalidade de ações de programação, com o Estado desempenhando papel de liderança neste complexo processo conlituoso e tensoativo de forças que enfrentassem o atraso estrutural brasileiro. Por isso, é importante, nesse contexto, “identiicar pontos de estrangulamento e de capacidade ociosa – ou seja, das linhas de menor resistência para o desenvolvimento das forças produtivas” (Castro, 2005, p. 18). Rangel vai elaborar uma interpretação quase obsessiva do papel estratégico da adequada identiicação de oportunidades rentáveis de inversão de capital que se orientem para atividades “que dispõem de capacidade não utilizada, isto é, que podem aumentar seu volume de produção sem emprego de capital adicional” (Rangel, 1957, p. 190). Seu projeto teórico e de orientação de políticas públicas está sempre apoiado por grandes teóricos do desenvolvimento capitalista, sobretudo por Smith, Marx, Keynes e Schumpeter. Sua leitura do capitalismo é muito orientada: pela visão, inspirada por Smith, das formas pelas quais as atividades econômicas operam, dissociam-se e rearticulam-se, mediante a ação do aprofundamento e do aperfeiçoamento do processo de divisão social do trabalho; pela potência do sistema de forças produtivas de Marx e List; pelo processo de sobreacumulação e superacumulação de capitais e pelos esquemas de reprodução de Marx; pelo livro Business cycles, de Schumpeter (Schumpeter, 1939); e pela tese de Keynes da eiciência marginal do capital deprimida pela capacidade ociosa, entre outras inluências. Além desses grandes teóricos do sistema capitalista no plano mais geral, a rica agenda de perguntas de Rangel dialoga e é semelhante em vários aspectos às agendas dos cinco maiores intérpretes do Brasil (Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Ignácio Rangel: intérprete do Brasil 23 Florestan Fernandes, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda), procurando abordar questões decisivas, como a natureza do pacto brasileiro de dominação interna; o papel das estruturas de propriedade, com destaque para a fundiária; a lógica intersetorial e interdepartamental da economia, em seu movimento dinâmico e cíclico; o papel central dos investimentos; os condicionantes das estruturas de mercado oligopólicas; a questão da distribuição de renda e riqueza; a problemática do padrão de consumo; o papel constitutivo e decisivo do Estado; e a necessidade das ações de coordenação e planejamento, ou o que ele chama de projetamento e programação públicos. 2 PONTOS CENTRAIS DA AGENDA DE INVESTIGAÇÕES DE IGNÁCIO RANGEL 2.1 O processo de desenvolvimento e suas tensões O instigante e polêmico pesquisador Ignácio Rangel buscava orientar suas pesquisas e relexões sobre o Brasil segundo um problema-síntese que seria: como descortinar novos horizontes de aplicação de capital em uma economia com as características da brasileira; como lidar com recursos entorpecidos, latentes e ociosos na geração de nichos inusitados e esferas criativas de inversão; e como descortinar novos horizontes de inversão para capitais estacionados ou instalados em áreas ou nichos pouco dinâmicos. Todos os pensadores que tratam de estruturas, dinâmicas, processos e relações, como Rangel, sabem que o processo de desenvolvimento não pode ser marcado por equilíbrios, espontaneidades ou naturalidades. Ele falava dos desequilíbrios permanentes e da importância de se revelarem os elos débeis da economia, o que implicaria descobrir oportunidades de inversão no bojo dos movimentos cíclicos de “crescimento econômico em processo de ininterrupta mudança qualitativa, exprimindo quebras de proporcionalidade num nível qualquer de integração” (Rangel, 1956/2005d, p. 254). Como Albert Hirschman (Hirschman, 1961), Rangel compreende que o processo de desenvolvimento para ser desatado depende de agentes cruciais, como o Estado, dotado de macrodecisão, que saibam “provocar e mobilizar os recursos e as aptidões que se acham ocultos, dispersos ou mal empregados” (Hirschman, 1961, p. 19). É preciso revelar e mobilizar a seu serviço recursos e capacidades ocultas, desperdiçadas ou mal utilizadas, incitar, romper a inércia, pois desequilíbrios são concomitantes ao desenvolvimento e podem ser transformados em estímulos úteis no curso do processo. Hirschman (1985, p. 52) airma que é preciso perguntar-se em que medida as atividades em andamento, por causa de suas características inerentes, impulsionam, ou mais modestamente, “convidam” alguns operadores a enveredarem por novas atividades (...) [pois] estamos em presença de um efeito em cadeia que parte da atividade em andamento para a nova atividade. 24 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Só assim, criativamente, seria possível descobrir caminhos alternativos e inverter sequências de inversões, justiicando sequências de investimentos (efeitos em cadeia) que a princípio seriam ao revés, descortinando oportunidades aproveitáveis e vantagens relativas passíveis de apropriação. Tais oportunidades devem ser colocadas em confronto e representam interesses diferenciados em torno de determinada trajetória. Rangel entende que o processo de desenvolvimento é conlitivo por natureza, marcado por disputas das classes sociais em torno de projetos alternativos de destinação do excedente social. Sabe que nesse processo se busca recorrentemente promover a ativação e a canalização de recursos e, assim, mobiliza distintos sujeitos históricos concretos em ação contextualizada. Portanto, envolve tensões, confrontações e eleição de projetos rivais de poder que podem ou não construir trajetórias histórias especíicas e em aberto. Chamam atenção as semelhanças de sua abordagem com a perspectiva dos estilos de desenvolvimento de Aníbal Pinto (Pinto, 1982), pois, segundo ele, “cada sociedade carece de bens e serviços de várias especiicações para atender as suas necessidades e, por diversos modos, dependendo de sua estrutura institucional, de seu ‘regime’ ” (Rangel, 1980/2005a, p. 406). Encontra-se no centro da abordagem rangeliana a questão das decisões, do poder e dos distintos interesses das diversas frações de classes sociais sobre qual destinação dar ao excedente social, desatando horizontes de dinamismo. Como sabido, Rangel procura em suas análises ansiosamente identiicar focos de ociosidade de recursos, “porque a capacidade ociosa é nacional e o seu uso habilitará o Brasil a se desenvolver com seus próprios meios” (Rangel, 1980/2005a, p. 465), pois o país seria eivado de massas redundantes de recursos e de capitais. Assim, espera que a capacidade ociosa, “se for possível utilizá-la, aumentará a disponibilidade total de bens e de serviços e, portanto, será possível aumentar os investimentos, acelerar o desenvolvimento, sem aumento da contribuição do capital estrangeiro e sem compressão do consumo” (Rangel, 1980/2005a, p. 465). Segundo Rangel é da capacidade ociosa que se trata. O esforço de desenvolvimento do Brasil vem sendo feito de modo a aproveitar mal o potencial produtivo existente, deixando fora de uso instalações e mão de obra, além de recursos naturais. Resulta assim uma pressão considerável sobre certos fatores, ao lado do subemprego ou total desemprego de outros (Rangel, 1980/2005a, p. 464). Celso Furtado, de forma semelhante, também sustentava que há marcadas “antinomias entre racionalidade micro e macroeconômicas, ponto de partida para a percepção da especiicidade do subdesenvolvimento com uma forma particular de economia capitalista que subutiliza os recursos produtivos” (Furtado, 1980, p. 26). Assim, segundo Furtado, esta economia periférica e subdesenvolvida tem diiculdade de realizar acumulação reprodutiva. Ignácio Rangel: intérprete do Brasil 25 Contra economistas conservadores que alegam insuiciência de poupança ou de capital em países subdesenvolvidos, Rangel defende que, devido ao Brasil ter excesso de capital, redundante em relação a seu lócus de origem, caberia ao país construir estratégias para tirar proveito de todo o seu potencial de desenvolvimento que é esbanjado. Esse jogo de revelação simultânea de capacidade excessiva (condenada a tornar-se ociosa) e de criação de novas necessidades (que suscitam novos pontos de estrangulamento) é o que venho estudando sob a rubrica de dialética da capacidade ociosa. É essa dialética que está na raiz dos nossos ciclos breves endógenos que, pelo menos até agora, têm determinado o ritmo do nosso desenvolvimento industrial (Rangel, 1987/2005c, p. 435). Para avançar no entendimento desse ponto central de suas preocupações, há toda uma construção analítica, uma trajetória histórico-estrutural elaborada por Rangel, que aqui se procura sucintamente apenas pontuar, a im de situar a dialética da ociosidade no contexto mais geral de seu sistema teórico-metodológico e de orientação para a ação pública. 2.2 Da economia natural e dos complexos rurais ao mercado nacional integrado e as dualidades básicas da economia brasileira Rangel foi muito inluenciado pela obra e pela convivência com Gilberto Paim no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Eles procurarão ressaltar o que chamam de mudanças tecnológicas e institucionais que marcaram o avanço da divisão social do trabalho e das forças produtivas em uma sociedade que rapidamente se agrariza e depois se urbaniza. O processo rumo à industrialização seria, segundo Rangel, um enorme processo de realocação de recursos, equipamentos de antigo uso, forças produtivas artesanais e de produção natural, serviços domésticos etc. Abrangeria desde as unidades agrícolas de autossuiciência, que produziam para o consumo direto ou para o mercado exterior, em um longo movimento histórico, até a organização das unidades manufatureiras e a diversiicação de atividades, que substituiriam a economia natural dos complexos rurais, disputando fatores produtivos. Este processo ensejaria a substituição de importações e a expansão da riqueza reproduzível dentro da economia nacional que a nova ordem industrial possibilitava. Historicamente Rangel vai analisar o aumento dos luxos de intercâmbio, a complexiicação da sociedade urbana e o aprofundamento da divisão regional do trabalho. Tais processos exigirão ajustamentos institucionais, comandados pelos novos blocos intersetoriais de investimento do novo ciclo de crescimento, transformando “a magnitude do mercado e para a constelação de recursos suscetíveis de pronto emprego” (Rangel, 1968, p. 48). 26 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil A abordagem do problema da integração das economias regionais brasileiras, no sentido de incorporá-las mais estreitamente num esquema único de divisão nacional do trabalho, não pode ser tentada senão a partir de uma hipótese quanto ao desenvolvimento da economia nacional como um todo (Rangel, 1968, p. 43). Essas mudanças estruturais da sociedade urbana de massa, que se consolida na escala nacional, criarão formas de recondicionamento que redeinirão as relações regionais que conformam o todo nacional a partir da aceleração do processo de integração nacional, descortinando novos horizontes de oportunidades de inversão. A indústria desenvolvida no período anterior suscita necessidades novas, tais como novas matérias-primas, novas fontes de energia e, talvez acima de tudo, a necessidade de um mercado nacional uniicado, à altura da escala das novas empresas, fatos esses que não podem senão levar o impulso de crescimento condicionado à criação das novas atividades infraestruturais a novas áreas do território nacional, anteriormente à margem do desenvolvimento (Rangel, 1968, p. 45). A abordagem dos desaios nacionais que Rangel elenca deve ser vista no bojo do pacto de dominação que a dualidade básica estabelece. A cada momento histórico há sócios menores e sócios maiores no processo de acumulação de capitais no país. Seria crucial ter ciência das frações que hegemonizam cada conjuntura, investigando a aliança de classes que comanda o Estado e a natureza das relações interno-externas da economia brasileira. Para a adequada investigação das especiicidades de formações socioeconômicas como o Brasil, as diiculdades de análise são imensas, colocadas pela “coexistência da realidade ‘antiga’ com a ‘nova’ – a contemporaneidade do não coetâneo, por assim dizer”, a qual não é uma simples superposição, mas uma oposição. As duas realidades reagem uma sobre a outra e se modiicam mutuamente. Além disso, não constituem duas coisas separadas, mas uma realidade complexa única. Para usar uma linguagem hegeliana, os contrários estão em unidade dialética (Rangel, 1956/2005d, p. 207). Não será possível neste capítulo situar ou apresentar o papel muito polêmico da dualidade básica formulada por Rangel. Uma série de trabalhos se debruçou sobre esta controversa questão. Entretanto, cabe apenas airmar que Rangel buscará descrever com esta categoria central de seu pensamento as relações dialéticas sincrônico-diacrônicas que a cada momento histórico articulariam as relações externas – determinações provenientes do centro cíclico principal – com as relações internas ao país. Tal articulação permitiria averiguar as leis gerais de movimento do capitalismo brasileiro segundo uma visão abrangente, sequencial e dialética, combinando as relações sociais e as forças produtivas nos planos analíticos das escalas nacional e internacional. Ignácio Rangel: intérprete do Brasil 27 2.3 O processo de industrialização de uma economia nacional complexa e o papel central do investimento Rangel apresenta uma visão dinâmica do papel da industrialização no desenvolvimento socioeconômico de um país. Sabe que a industrialização é um processo de constituição estrutural e a consolidação coerente de uma base de acumulação assentada em densa matriz de relações intersetoriais e intrassetoriais, que crescentemente diferencia o aparelho produtivo, aprofunda a divisão social do trabalho e se revela motor do dinamismo de uma economia. Ressalta em vários textos que este processo é disruptivo: promove a capacitação do sistema de produção e engendra impulsos indutores e instáveis durante o andamento cíclico das estruturas industriais em maturação, gerando efeitos reprodutivos dinâmicos de dispersão intersetoriais e intrassetoriais e de acionamento de recursos disponíveis, permitindo menor subutilização desses. Na experiência brasileira, Rangel, manejando bem o instrumental interdepartamental, vai ressaltar a paulatina construção de um sistema industrial, a qual assim descreve: “Gradualmente izemos aparecer aqui unidades produtivas modernas dedicadas à produção de bens de consumo (os mesmos cuja importação foi sendo progressivamente limitada pelo Estado) e, depois, dedicadas também à produção de bens de produção” (Rangel, 1980/2005a, p. 513). Procura demonstrar como, no andamento da acumulação industrial, a economia brasileira utilizou recursos de diversas origens, que são tanto resultado como elemento reforçador das marcadas heterogeneidades estruturais brasileiras: “O desenvolvimento pode ser resultado tanto do emprego de meios arcaicos de produção ao suprimento de bens modernos como da modernização dos meios de produção” (Rangel, 1980/2005a, p. 512). Como bom leitor de Schumpeter, também estava ciente do papel de investimentos mais dinâmicos que gerassem novas combinações produtivas e organizacionais: “é pela inversão que a economia amplia e melhora seu instrumental ou pesquisa novos recursos, ampliando a constelação destes” (Rangel, 1980/2005a, p. 510). Rangel capta os determinantes centrais do investimento ao longo do processo de construção e avanço do sistema de forças produtivas industriais como uma variável central do sistema capitalista, demonstrando sua natureza contraditória e volátil. Discute a tomada de decisões, com ênfase nas expectativas dos agentes, e entende que a ação pública pode reagir, combater e neutralizar os efeitos perversos destas decisões. Em suas pesquisas identiicava muitos exemplos de investimentos mal dirigidos e improdutivos. O esquema keynesiano é, pois, basicamente, um método de utilização da capacidade ociosa (...) o investimento desempenha papel realmente estratégico, visto como 28 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil determina o grau de utilização da capacidade produtiva do sistema e o faz de tal modo que condiciona a expansão da capacidade do sistema (Rangel, 1980, 2005a, p. 495). Segundo sua concepção do funcionamento dinâmico da economia capitalista, ao longo do processo de industrialização pontos de estrangulamento são permanentemente engendrados e superados, seja por motivos quantitativos, seja qualitativos: Por motivos quantitativos, porque, desenvolvendo a economia, as atividades que não se houverem desenvolvido ao ritmo geral – e é próprio do nosso modo de industrialização desenvolvermos um setor após o outro – tendem a revelar-se insuicientes. Por motivos qualitativos, porque não há crescimento que não implique em mudança estrutural (Rangel, 1987/2005c, p. 435). Assim, segundo Rangel, a dinâmica cíclica da acumulação no Brasil é marcada pelas sequências de ciclos setoriais permanentes. Uma vez manifesta a tendência recessiva, o ritmo de acumulação cai até que surjam novas oportunidades de inversão capazes de provocar a reversão da tendência. Este período é marcado por crises nas quais agudizam-se as pressões sociais, os conlitos políticos que, em última instância, são a expressão do movimento do capital em busca de novas fronteiras para sua expansão. As crises acabam por resolver-se através da ação estatal que, promovendo um conjunto de mudanças institucionais, assegura as condições para que surjam oportunidades efetivas de inversão em novos setores da economia. Daí tem início uma nova fase de crescimento na qual os recursos necessários às inversões são buscados junto aos setores já desenvolvidos, carregados de capacidade ociosa. Iniciadas as inversões, o movimento se repete (Davidof Cruz, 1980, p. 74). Não há registro de que Rangel tenha estudado Kalecki; provavelmente sim, embora nunca o tenha citado. Entretanto, a dinâmica instável do investimento é ressaltada recorrentemente, de forma mais intuitiva, pois não é posta, de forma explícita e literal, a natureza dual-recíproca do investimento: gera demanda efetiva e gera o “problema” de ocupar a capacidade produtiva. Rangel tem aguda perspicácia sobre a dinâmica contraditória do funcionamento do sistema capitalista. Percebe que inexoravelmente este sistema engendra um potencial de acumulação de capital que ultrapassa recorrentemente a sua capacidade de absorver efetivamente a capacidade produtiva criada. Há assim, recursos e capacidades produtivas que jazem em ociosidade, dado que redundantes. Daí o ponto nevrálgico para Rangel, sobretudo no contexto de um país periférico, que é descortinar alternativas de mobilizar e direcionar recursos ociosos e gerar novas frentes expansivas, buscando carrear recursos, ativos e capacitações, transferindo-os de um lócus superinvestido para um lócus subinvestido. Este transporte entre locais, circuitos, espaços e polos de ociosidade e Ignácio Rangel: intérprete do Brasil 29 antiociosidade deveriam ser realizados pela mobilidade de recursos proporcionada por um adequado sistema de intermediação inanceira. 2.4 A não constituição de um aparelho de intermediação dinâmico e do capital financeiro no Brasil Rangel, assim como Caio Prado Júnior, estudou a hegemonia do capital mercantil rentista e patrimonialista como a matriz do capitalismo brasileiro. Compreende que, mesmo nos raros momentos de solidariedade entre indústria e inança, preponderou sempre apenas a articulação rentista-patrimonial, típica da coniguração patrimonialista dos grupos econômicos (familiares) nacionais (Miranda e Tavares, 1999). Segundo Rangel (1990, p. 10), “o aparelho de intermediação guardou, por muito tempo, em parte, um feitio usurário, ou meramente comercial, servindo para descontar promissórias e duplicatas, mas não para inanciar projetos industriais ou grandes serviços de utilidade pública”. Não se consolida, segundo Rangel, o capitalismo inanceiro no Brasil. Nem com todo o esforço do Estado, pois, como airma Tavares (2007, p. 8), o sistema inanceiro público não participa como sujeito do processo de monopolização do capital “que lhe é exterior” e a “ciranda financeira” desestabiliza o papel de “articulador inanceiro” do Estado. Não há dúvida de que a função de aglutinação e gestão de grandes massas de recursos inanceiros foi desenvolvida pelo Estado através de seus fundos, programas e agências inanceiras; entretanto, as instituições inanceiras públicas cumprem apenas o lado passivo da função inanceira, isso é, a de aportar massas de capital, sob diversas formas, inclusive a de crédito subsidiado. Para Rangel, a debilidade congênita do sistema inanceiro nacional, frágil e pouco diferenciado, impede a criação de mecanismo de transferência de recursos dos setores, elos e polos superavitários para os deicitários, não consolidando rotas e circuitos que deem vazão para as aplicações inanceiras excedentes e redundantes. Somente um renovado capital inanceiro poderá acionar e mobilizar excedente, visto que na economia brasileira há setores repletos de ociosidade, enquanto outros precisam germinar. A canalização de uns para outros só pode ser realizada pelo capital inanceiro, por meio do Estado, que pode efetuar o transporte dos fundos de uma área a outra, permitindo a efetivação do investimento. Nesse sentido, o aparelho de intermediação inanceira precisaria mobilizar o potencial de excedente de um polo de ociosidade e inanciar os projetos das áreas em estrangulamento, mudando totalmente o padrão de relacionamento fábrica-banco não virtuoso que o capitalismo brasileiro historicamente engendrou. 30 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Ao contrário do que muitos pensam, Rangel sabe que não há um descolamento das órbitas ictícias dos estoques de riqueza. Os processos de reprodução da riqueza são muito mais complexos: o sistema de crédito e os mercados inanceiros são inseparáveis de decisões que comandam a posse da riqueza, aí incluídas aquelas que determinam a criação de nova capacidade produtiva e a introdução do progresso técnico. Essas decisões são intrinsecamente especulativas: no capitalismo já investido de todas as suas conigurações, os critérios de avaliação da riqueza dita “ictícia” contaminam as decisões a respeito da posse de ativos, sejam eles inanceiros ou reprodutivos (Belluzzo, 2012, p. 65). A dominância da forma inanceira que preside os cálculos capitalistas de avaliação da riqueza gera parâmetros de comparabilidade permanente entre todas as outras formas e vai hegemonizando todos os circuitos de circulação de capitais, acabando por usurpar a gestão empresarial, que passa a ter horizonte temporal restrito e totalmente inanceirizado pelo poder acionário. 2.5 A necessidade da programação e do projetamento Para Rangel, a estruturação de novas frentes de inversão, que logrem explorar oportunidades econômicas antes não experimentadas, necessita de um agente coordenador, pois é preciso promover o desenvolvimento por processos nada espontâneos. Seria decisivo, em economias como a brasileira, permanentemente prospectar “onde houver indícios de potencial adormecido”, por intermédio da programação: O objetivo imediato da programação econômica é reconhecer as fontes desse potencial adormecido, dar-lhe um balanço tão completo quanto possível, e preparar sua exploração com os meios institucionais e técnicos que estão em nossas mãos. Não há dúvida de que, a partir de certa altura, o desenvolvimento depende do investimento, mas esses novos investimentos devem sair, não da compressão do consumo atual, muito menos do consumo popular, e sim daquela diferença, correspondente produto potencial, que o planejamento deve mostrar como se converte em produto efetivo adicional (Rangel, 1982/2005b, p. 489). Várias passagens suas lembram a discussão de Celso Furtado sobre as articulações entre microdecisões e macrodecisões e a necessidade de um agente dominante e desestabilizador das cadeias de decisões, o Estado, único com capacidade de vislumbrar temporalmente planos concorrentes e buscar coordená-los. Rangel distingue a constitutiva intervenção do Estado em duas frentes ou níveis de integração (microestratégicas e macroestratégicas): no enfeixamento de bons projetos, por meio do projetamento, “que é a ação sobre as unidades, no setor”; e na programação, “que é ação sobre o sistema nacional” – esta visão dinâmica Ignácio Rangel: intérprete do Brasil 31 permitiria estar atento às ininterruptas quebras de proporcionalidade que o processo de crescimento engendraria (Rangel, 1956/2005d, p. 254). Para além da necessária centralidade das adequadas seleção de técnicas e realocação de recursos, o projetamento exige uma apropriada base de prospecção, uma ideia razoável das estruturas e do ritmo da economia a im de, tendo uma visão estratégica elaborada, buscar enfeixar bons projetos. “Se temos uma ideia clara do que queremos, os fatos se ordenarão por si mesmos, porque saberemos ver na desordem aparente da realidade as coisas que realmente interessam” (Rangel, 1959/2005e, p. 365). Rangel como técnico de governo procurou desenvolver a capacitação de gestores públicos para bem ordenar o emprego de certa quantidade ou qualidade de recursos e buscar o encaminhamento de soluções a problemas postos, tendo presente custos e benefícios privados, mas sobretudo públicos. Assim ele arremata: “O projetamento é, ao mesmo tempo, macro e microeconômico; é teoria e é prática; é apreciação do particular no geral, do concreto no abstrato e veriicação do abstrato no concreto” (Rangel, 1959/2005e, p. 362). 3 A ATUALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DE IGNÁCIO RANGEL EM DIÁLOGO COM O PENSAMENTO CRÍTICO LATINO-AMERICANO Pretende-se, nesta seção, à luz dos ensinamentos de Ignácio Rangel, retomar um debate fundamental para se pensar o Brasil. Aquele sobre a natureza do capitalismo brasileiro, levantado em Lessa (1981, 1985), Lessa e Dain (1982) e Tavares (1999). Carlos Lessa, há quase três décadas, propôs hipóteses fundamentais sobre o regime brasileiro de valorização dos capitais, ou o seu padrão de acumulação, que devem dialogar com questões colocadas por Rangel, as quais se reatualizaram nos últimos anos. Lessa airma que os grandes capitais privados nacionais têm por característica fundante serem hegemônicos nos setores e subsetores não industriais (inanceiro, construção imobiliária, comércio, prestação de serviços etc.). Há como que um grande acordo ou pacto implícito de divisão de frentes de valorização entre as diversas facções de capital. Os setores que permanecem sob o comando do capital privado nacional têm uma característica importante. Neles, sistematicamente, a fração do excedente geral da economia de que se apropriam supera as possibilidades de transformação em novo capital no setor (…) A parcela da massa de lucro que é apropriada pelo grande capital privado nacional rebaixa tendencialmente as possibilidades de valorização em seu próprio setor, o que implica que há um problema estrutural permanente em sua trajetória de expansão, que é a busca de uma frente de valorização para essas massas de lucros 32 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil excedentárias. Excedentárias no sentido de que não podem se valorizar em seu setor hegemônico (Lessa, 1985, p. 214-215). A capacidade de reabsorver recursos em setores dinâmicos é muito débil na economia brasileira. Há aqui um ponto fulcral para dialogar com Ignácio Rangel: a não constituição do capitalismo inanceiro no Brasil. As massas redundantes de capital excedente que transbordam recorrentemente seus nichos de acumulação de origem não encontravam oportunidades de retorno e inversão lucrativa na órbita reprodutiva e são mantidas em estado de liquidez. Genialmente, Ignácio Rangel teve um insight que pode ser decisivo para se pensar o Brasil: “o mercado imobiliário – com o fundiário à frente – foi o primeiro mercado mobiliário que tivemos e é por aí que nossa charada será decifrada” (Rangel, 1980/2005a, p. 550). Esse enigma nacional deve ser articulado com a ideia de que “normalmente em um capitalismo que estivesse plenamente amadurecido desenvolver-se-ia um circuito inanceiro que capturaria estes excedentes e os utilizaria para inanciar outras frentes de expansão” (Lessa, 1985, p. 215). Entretanto, o Brasil não logrou constituir algo como um aparelho de intermediação inanceira capaz de mobilizar, concentrar e redirecionar recursos, com potente mobilidade e intersetorialidade, e de aglutinar as formas e as esferas de acumulação dos capitais industriais, comerciais, bancários etc. sob dominância do capitalismo inanceiro. Com isso, os circuitos mobiliário-imobiliários ganham centralidade singular, requerendo ser decifrados pelo que Lessa chama de uma macrodinâmica do patrimonialismo. Historicamente a aplicação de capital no circuito imobiliário cumpriu a função de setor compensatório, subsidiário e paralelo, ao longo da evolução do capitalismo, segundo Lefebvre (1999, p. 146): O “imobiliário” desempenha o papel de um segundo setor, de um circuito paralelo ao da produção industrial voltada para o mercado dos “bens” não duráveis ou menos duráveis que os “imóveis”. Esse segundo setor absorve os choques. (...) Neste setor, os efeitos “multiplicadores” são débeis: poucas atividades são induzidas. O capital imobiliza-se no imobiliário. Contudo, em países como o Brasil, o circuito que deveria ser subalterno acaba por se airmar como lócus privilegiado de reprodução ampliada, conformando um circuito-sistema imobiliário-mobiliário poderoso política e economicamente, que congrega uma miríade de atividades de engenharia e construção civil, serviços e produção, distribuição, troca e consumo imobiliários, esquemas de inanciamento, com características de alta lucratividade, liquidez e segurança. Ignácio Rangel: intérprete do Brasil 33 Tal circuito-sistema imobiliário-mobiliário acaba por sequestrar parte substancial do excedente social que poderia ser direcionado para o âmbito produtivo. Sem grau de centralização adequado, sem perspectivas disruptivas dinâmicas e ativas, este excedente redundante acaba luindo para estas arenas passivas de manutenção de ganhos e se acomoda nos espaços de valorização fácil e garantida pelo Estado. Os recursos inanceiros e imobilizados são absorvidos nesses locais de aplicação dotados de garantia de rentabilidade. Representam mero acúmulo de direitos de propriedade privada e concedem acessos e direitos à extração ampliada de rendas fundiárias e monetárias. Um exemplo sempre repetido por Rangel é a transformação da questão fundiária brasileira e sua articulação com o circuito mobiliário, desde que “a terra se tornou objeto de especulação inanceira, que absorve e esteriliza (...) imensas glebas (...) O mercado imobiliário foi o primeiro mercado organizado de valores no Brasil” (Rangel, 1960/2005f, p. 207). Ignácio Rangel é atormentado com o infortúnio de um país subdesenvolvido e periférico que esteriliza estruturalmente seu excedente social, totalmente em acordo com as preocupações de Celso Furtado sobre esta perda recorrente de oportunidades históricas. Rangel, como visto, dedicou grande parte de sua agenda cientíica e de sua vida política a denunciar e buscar mobilizar e direcionar recursos ociosos. Estes deveriam ser convidados a gerar novas frentes expansivas. Em suma, deveria ser facilitado o encontro de oportunidades de inversão destes capitais sobrantes, disponíveis em outros polos de ociosidade – por exemplo, nos circuitos mobiliários e imobiliários. As aplicações de capital-dinheiro nesses circuitos de natureza especulativa em relação ao futuro esperado de enriquecimento representam formas improdutivas de manutenção e valorização da riqueza. Além dos bens de raiz, como as aplicações fundiário-imobiliárias, também estão disponíveis várias modalidades de ancoragem em ativos mobiliários, com alta atratividade destes ativos inanceiros que tomam a forma de títulos da dívida pública; títulos de propriedade; títulos de renda ixa e variável etc. Estes ativos são dotados de liquidez e de alta capacidade de proteção patrimonial. Apresentam, no Brasil, evidentes garantias de rentabilidade, se conigurando enquanto formas privilegiadas, sancionadas pelo Estado, de preservação da riqueza privada. A composição dos portfólios das grandes fortunas combina, assim, aplicações mobiliárias e imobiliárias e, em alguns casos, acumulação produtiva, conigurando um peril patrimonial em que as formas de reprodução da riqueza expressam a lógica de curto prazo no horizonte de decisões dos agentes econômicos cruciais. Tais decisões de alocação de riqueza criam problemas dinâmicos para a determinação da 34 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil demanda agregada e dos níveis de produto e renda em uma economia monetária prenhe de polos de subinvestimento e de ociosidade de recursos. A agenda de estudos de Ignácio Rangel se debate o tempo todo com essa problemática: como mobilizar e direcionar recursos ociosos, transferindo-os de locais superinvestidos para locais subinvestidos. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS E A TENTATIVA DE ATUALIZAR UMA DAS PREOCUPAÇÕES CENTRAIS DE RANGEL: OS SERVIÇOS DE UTILIDADE PÚBLICA Ignácio Rangel, persona maior da polêmica, da liberdade intelectual e da originalidade, irá desenvolver todo um arcabouço teórico para pensar o Brasil que emoldura um quadro dinâmico-histórico-estrutural dos impasses e das potencialidades ao longo das trajetórias de construção ou desconstrução do desenvolvimento nacional. Nestas breves considerações inais, procurar-se-á situar e reatualizar uma preocupação constante de Rangel: como direcionar forças para a provisão de serviços públicos em uma sociedade urbana complexa de massas de um país continental. Não será o caso aqui de relembrar a proposta extremamente polêmica de Rangel de concessão dos grandes serviços públicos à empresa privada nacional, como única forma de transitar do capitalismo industrial para o capitalismo inanceiro no Brasil. Esta se tornou quase sua ideia ixa nos seus dez últimos anos de vida: o concessionário dos serviços oferecerá ao Estado a hipoteca dos seus bens, em troca do aval do Tesouro, com o qual seus papéis poderão circular no mercado inanceiro e induzir a completa remodelação deste. Entende-se neste capítulo que as circunstâncias históricas e a onda liberal tornaram esta questão totalmente datada e ultrapassada, restando a brilhante e original preocupação com a oferta dos grandes serviços de utilidade pública. Nota-se grande criatividade e atualidade no pensamento rangeliano, que listava entre estes serviços os energéticos, os logísticos, os ecológicos (municipais), entre outros. A questão que se mantém é aquela clássica de seus textos: como simultaneamente carrear recursos novos para atividades retardatárias – como a área de estrangulamento dos serviços públicos –, desenvolvê-las e oferecer destinação hábil ao excedente social em uma economia nacional complexa e urbanizada. Segundo Rangel, uma conluência de determinações interno-externas impôs uma natureza especíica ao processo de desenvolvimento capitalista no Brasil. Isto gerou uma economia nacional de grande dimensão e complexidade, com a convivência e a combinação de elementos heterogêneos em coexistência, formando uma unidade contraditória nacional com alto nível de contemporaneidade do não coetâneo. Ignácio Rangel: intérprete do Brasil 35 A rapidez da modernização conservadora e as taxas milagrosas de crescimento conduziram a uma exitosa fuga para a frente, sancionando os interesses representativos do atraso estrutural. Frações de capital, com diferentes poderes de valorização, expansão econômico-geográfica e vocalização política, se disseminaram e se defrontaram em todo o território nacional, orientadas, em sua maioria, pela sinalização direta ou indireta da ação pública. Conformou-se uma economia urbana moderna, alterando profundamente os processos de trabalho e erigindo uma estrutura produtiva densa, integrada, complexa e diversiicada, que se localiza em diferentes parcelas do espaço geográico nacional. Nesse contexto de rápidas transformações, o processo de industrialização cumpriu seu papel uniicador: “a industrialização uniicou a economia nacional, pondo em causa os exclusivismos regionais, assentes em estruturas ordenadas em empórios de interesse apenas regionais” (Rangel, 1987/2005c, p. 435). Não logrando enfrentar os interesses conservadores constituídos, o Brasil não cumpriu as clássicas tarefas das reformas burguesas de garantir os direitos individuais e sociais a seus cidadãos, nem avançou no sentido de realizar qualquer espécie de reforma agrária ou reforma urbana, travadas que foram pelo conservadorismo, mas sobretudo pela constrangedora e brutal mercantilização e inanceirização da terra. Ainda que sem as reformas agrária e urbana, a reprodução ampliada dos capitais no amplo território nacional impôs ritmos diferenciados de acumulação aos espaços receptores dos capitais produtivos. Preservou, mediante uma convivência pacíica, a soldagem de interesses de diversas frações mais modernas do capital, com a persistência e até o aprofundamento das relações de dominação de antigas formas do capital mercantil, aliança mantida graças à intocabilidade da questão da propriedade fundiária, rural e urbana. Em grande parte, isso explica como o país manteve e reservou espaços para a continuidade de massas de capitais sinuosos, deformados. Estes capitais eram grandes demais para não capturar o Estado, mas, ao mesmo tempo, pequenos demais para empreender sua metamorfose em capital industrial. Tinham pouco interesse na mudança para outras órbitas, pois obtiveram asseguradas várias garantias de preservação patrimonial. Malgrado esse atraso político, constituiu-se nas últimas décadas uma sociedade urbano-industrial de massas, com difusos interesses e complexas estrutura social e base material. Avança a interiorização produtora do urbano moderno não metropolitano e de outros variados espaços urbanos, do meio rural e da agroindústria moderna. O acelerado processo de urbanização tornou rapidamente insuicientes os serviços infraestruturais urbanos, os meios de consumo coletivo e os serviços de utilidade pública de grande porte que devem ser providos à massa superurbanizada, indispensáveis a cerca de 90% dos brasileiros. 36 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Posto tal quadro estrutural, pergunta-se como Ignácio Rangel poderia inspirar hoje uma agenda coletiva de relexões sobre a provisão de serviços de utilidade pública em um país que é máquina de crescimento, mas também máquina potente de geração e reprodução de toda sorte de desigualdades. Seria possível pensar em uma radical transformação do padrão de oferta de bens e serviços e de provisão de infraestruturas de utilidade pública, inovativas e geradoras de cidadania em todo o território nacional? O grande e recorrente desaio no Brasil continua a ser construir simultaneamente os seguintes pares, por vezes antitéticos, e dar unidade a eles: eiciência e equidade; especialização e diversiicação produtivas; crescimento e redistribuição de renda e de riqueza. Trata-se de construir permanentemente integração e coesão produtiva, social, política, cultural, econômica e territorial. Tensionar pela internação (interiorização e endogeneização) de dinamismos e promover a transmissão inter-regional, intersetorial e interclassial do processo de crescimento econômico. A provisão de quantidade e qualidade desses bens e serviços público-sociais deve instigar a habilitação cidadã. Deve ter por base os serviços de utilidade pública enquanto meios de reprodução e de consumo coletivo, isto é, enquanto instrumentos auxiliares na formação ampliada das forças e das capacidades produtivas e inovativas humanas, executando ações universalizantes e de criação de patamar adequado de homogeneidade social, pela via da construção de habilitação, não só pelo acesso à renda e aos bens e serviços, mas também à riqueza e à propriedade. Torna-se imprescindível, sobretudo em países enormes e heterogêneos como o Brasil, promover o suporte infraestrutural da provisão de bens e serviços públicos essenciais, de uso coletivo, para a consolidação de uma sociedade de consumo de massas que busque prover acesso aos direitos sociais – saúde, educação, seguridade social, transporte urbano de alta densidade, moradia, saneamento, aprendizado etc. Do mesmo modo, é fundamental prover infraestruturas e serviços de utilidade pública que aperfeiçoem habilidades e propiciem habilitações, que sejam antídoto permanente aos mecanismos de geração e reprodução de desigualdades e concedam direitos fundamentais. Entre diversos resultados, essa oferta pública revolucionada pode desempenhar papel crucial na redução do desemprego e do subemprego por meio da modernização da base tecnológica, gerando fontes de emprego e renda mais decentes. Um vigoroso projetamento que enfeixe e coordene a ação pública deve apoiar segmentos prioritários de grande capilaridade espacial ligados aos complexos de saúde e educação, habitação, saneamento, transporte urbano, recursos hídricos, energias renováveis, agricultura e processos produtivos de baixa intensidade de uso de recursos naturais e energia, entre outros. Isto é decisivo em países como o Brasil, Ignácio Rangel: intérprete do Brasil 37 que requerem redobrado esforço de inversão em serviços públicos de natureza social e coletivos, em utilidade pública, ou seja, em capital básico social e em atividades indiretamente produtivas. Além disso, é necessário enxertar implantes diversiicadores e elos de cadeias e circuito de ofertas transformativas de situações dadas, realizando-se inversões pulverizadas densiicadoras e enraizadoras de dinamismos, antes ocultos ou latentes e agora aptos a serem revelados por estratégias de planejamento territorial. A política de desenvolvimento social, produtivo e inovativo deve semear fatores de mudança e transformação, realizando consistentes inversões de recursos em ações de natureza indutora. A incorporação das massas deserdadas realizada apenas pela transferência de renda mostra já seus limites. O aumento de renda não acompanhado por esta revolução nos serviços públicos deságua no consumismo e pouco combate os mecanismos da exclusão pelas suas raízes. As ações de indução pública e coletiva devem contrariar a simples lógica e racionalidade do mercado e construir a competitividade sistêmica contrária à simples especialização em vantagens naturais reveladas. Elas precisam promover a eiciência das unidades econômicas e a capacidade articuladora do tecido socioprodutivo-territorial, ao lado de fomentar os adequados engate e conexão de aparelhos produtivos localizados e a distribuição de riqueza e renda, habilitando e distribuindo direitos aos cidadãos. O processo de desenvolvimento promove cadeias de desequilíbrios e deve necessariamente promover a coordenação da variedade, permitindo a manifestação das potencialidades do heterogêneo Brasil, que deve potencializar a formação ampliada das forças produtivas humanas presentes em determinado território. O poder público deve cumprir papel-chave nesse processo. Principalmente, torna-se desafiador discutir, orientar e realizar a programação rangeliana de implementação de políticas públicas que busquem colocar as forças inovacionais e produtivas a serviço do desenvolvimento sustentado, social e soberano. Devem ser programados, projetados, acionados, apoiados e articulados setores e segmentos prioritários de grande capilaridade espacial, ligados aos complexos de saúde, educação, habitação, saneamento, transporte urbano, recursos hídricos, energias renováveis, agricultura e processos produtivos de baixa intensidade de uso de recursos naturais e energia, entre outros. O problema crucial até aqui não tocado é que identiicar e acionar recursos ociosos e latentes e mobilizá-los para a estruturação de novos horizontes e oportunidades para a sociedade não é apenas uma questão técnica, como bem sabe Ignácio Rangel, mas uma questão de enfrentamentos cotidianos a brutais interesses políticos. Se será possível a radical transformação do padrão de oferta de serviços e infraestruturas de utilidade pública, social e cidadã, só o futuro da correlação de forças políticas postas no país poderá dizê-lo. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 38 REFERÊNCIAS BELLUZZO, L. G. Natureza contraditória. Carta capital, ano 17, n. 702, p. 65, jun. 2012. (Seção Contracorrente). CASTRO, M. H. Nosso mestre Ignácio Rangel. In: RANGEL, I. Obras reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. DAVIDOFF CRUZ, P. R. Ignácio Rangel, um pioneiro – o debate econômico do início dos anos sessenta. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1980. 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CAPÍTULO 2 A ATUALIDADE DE FLORESTAN FERNANDES EM QUESTÃO: UMA INTERPRETAÇÃO DA TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO E DA MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO1 Ronaldo Herrlein Jr.2 1 INTRODUÇÃO Neste capítulo, a atualidade do pensamento de Florestan Fernandes sobre a sociedade brasileira será airmada como suporte para uma interpretação acerca do caráter e das possibilidades da mudança social em curso no Brasil. Isso não signiica que se tenha a pretensão de indicar como o grande sociólogo brasileiro interpretaria a referida mudança. De fato, ninguém poderá falar em seu nome, mas a interpretação contida neste estudo encontra inspiração e apoio em seu pensamento. O ensaio interpretativo proposto a seguir lança o olhar sobre a mudança social, tomando como objeto o Estado brasileiro e, como questão, o padrão de desenvolvimento nacional.3 A exposição das ideias está organizada em cinco seções, contando com esta introdução. Começa-se enunciando, na segunda seção, uma hipótese sobre as transformações do Estado brasileiro, tratando de qualiicar com certa precisão o próprio enunciado. A terceira seção trata dos indícios que motivaram a formulação da hipótese enunciada. Aqui, de um modo descritivo, parcial e também valorativo, são comentadas algumas políticas públicas nacionais no período entre 1995 e 2010, bem como as características de certas instituições estatais brasileiras. Na quarta seção apresenta-se uma interpretação da mudança social, buscando alguns fundamentos no pensamento de Florestan Fernandes. Os desdobramentos desta mudança e os desaios do desenvolvimento são abordados na quinta e última seção, ainda com apoio nas ideias do eminente patrono, mas, simultaneamente, propondo uma diferente e inovadora perspectiva para fomentar a transformação social no Brasil. 1. Este capítulo é uma versão modiicada e adaptada de Herrlein Jr. (2011). 2. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGE/UFRGS). E-mail: <ronaldoh@ufrgs.br>. 3. A relexão proposta resulta de pesquisa em processo de realização, iniciada como parte do programa Cátedras para o Desenvolvimento, do Ipea junto ao PPGE e à Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) da UFRGS (2009-2010). Desde sua origem, esta pesquisa vincula-se ao eixo estratégico do Ipea, que visa ao fortalecimento do Estado, das instituições e da democracia. O propósito principal desta pesquisa é estabelecer um marco de referência para uma linha de investigação permanente sobre Estado e desenvolvimento no Brasil. 42 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 2 UMA HIPÓTESE SOBRE O ESTADO BRASILEIRO Para a realização desta pesquisa, houve três marcos importantes para a relexão que conduziu à hipótese apresentada. A investigação apoia-se em certas referências teóricas para a compreensão do Estado capitalista, bem como acerca das funções político-econômicas e dos fundamentos sociológicos de um Estado desenvolvimentista.4 Buscou-se também apoio em uma compreensão crítica da trajetória do desenvolvimentismo brasileiro e do papel do Estado nacional no período entre 1930 e 1980.5 Por im, foi realizada uma breve investigação exploratória das políticas públicas brasileiras, em diversas áreas, no período que vai de 1995 a 2010.6 Na elaboração deste ensaio considerou-se, ainda, o desenvolvimento para além das questões relativas ao “emparelhamento” com as economias capitalistas desenvolvidas, ou seja, nesta abordagem a transformação produtiva e técnica que transigura as estruturas econômicas e sociais é apenas o fundamento e a expressão material da mudança sociocultural e emancipadora que o desenvolvimento tem de ser. Assim, adotou-se uma abordagem normativa, em que será preciso explicitar as inalidades do desenvolvimento. Elas podem ser deinidas a partir da melhoria das condições da vida humana em sociedade, com sustentabilidade ambiental, assumindo especialmente que os critérios de valoração do desenvolvimento podem ser socialmente construídos por meio de procedimentos democráticos deliberativos.7 Nesse sentido, o desenvolvimento é percebido necessariamente como resultante de uma conquista, que se realiza tanto no âmbito das condições do indivíduo que se torna protagonista quanto no âmbito das coletividades e sociedades nacionais que substanciam esse indivíduo e, igualmente, se tornam protagonistas de seu destino, conigurando um “desenvolvimento endógeno”.8 A investigação realizada permitiu avaliar o caráter e o alcance das políticas públicas e das instituições estatais no Brasil, considerando o quanto elas se aproximam 4. Para compreensão do Estado capitalista em geral, foram utilizados como base os trabalhos de Poulantzas (1980) e Jessop (1985; 2002; 2008). Para uma abordagem do Estado desenvolvimentista, buscou-se apoio nos trabalhos de Chang (1999), Wade (1999), Johnson (1999) e Evans (1995). Estas referências implicam uma perspectiva teórica plural, com elementos marxistas, weberianos e institucionalistas, que se inscreve na proposição de uma economia política institucionalista formulada por Chang (2002). 5. As principais referências sobre este ponto são Fiori (1995, 2003), Fernandes (1975), Mello (1977) e Castro (1994). 6. Essa investigação foi realizada com o auxílio de bolsistas de iniciação cientíica (BICs) da UFRGS e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS) São eles: Marina Miotto Becker, Fernando Kuwer dos Santos, Laura Scheeren Viegas, Karen Frances Medroa, Mariana da Silva, Mariana Willmensdorf Steffen, Guilherme Ziebell de Oliveira, Rafael Roos Guthman, Henrique de Abreu Grazziotin, Hânder Costa Leal, Eduardo Schindler, Jonas Lunardon e Luiz Fernando Valter de Oliveira. Para indicação dos temas estudados por cada bolsista, ver Herrlein Jr. (2011). 7. Ao longo de todo o capítulo e especialmente na última seção, deve-se explicitar por que é preciso assumir uma perspectiva normativa acerca do desenvolvimento. Para uma consideração sobre a necessidade de o trabalho cientíico nas ciências sociais tornar explícitos os juízos de valor, ver Myrdal (1968, segunda parte). 8. Nesse contexto, “endogeneidade não é outra coisa senão a faculdade que possui uma comunidade humana de ordenar o processo de acumulação em função de prioridades por ela mesma deinidas” (Furtado, 1984, p. 108). Os fundamentos da abordagem normativa adotados neste ensaio estão em Sen (1989, 2000) e Sachs (2009), enquanto a proposição dos processos deliberativos apoia-se em Evans (2002, 2003) e Habermas (1995). A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 43 das funções, políticas e instituições características de um Estado desenvolvimentista, compreedendo este conceito em sentido “estrito” ou “ampliado”.9 Esta investigação levou à formulação da seguinte hipótese geral. Atualmente, no Brasil, está em curso um processo de construção de um Estado democrático para o desenvolvimento, pois: i) avançam as capacidades do Estado na realização de políticas de desenvolvimento;10 e ii) o enraizamento do Estado nacional está se transformando, no sentido de um alargamento de sua base social e de um maior controle da sociedade sobre o Estado. Esse processo de construção parece evidenciado pelas condições atuais do Estado e da sociedade brasileira. Entretanto, pode-se argumentar também que essa construção já estava em curso nos anos 1990 e tem suas origens no estabelecimento da nova Constituição Federal, em 1988 (CF/1988). Pode-se airmar que está em curso a construção de um Estado desenvolvimentista no Brasil, porém com algumas características que tornam essa experiência peculiar à transformação contemporânea da sociedade brasileira. Trata-se de um processo histórico novo e “lento”, vale dizer, um processo que pode ser percebido somente em sua temporalidade de mudança social inscrita na longa duração e em contraste com a história anterior do país. Esse processo diferencia-se da construção dos Estados desenvolvimentistas do Leste Asiático, pois o novo peril do Estado brasileiro e suas novas funções desenvolvimentistas, tanto quanto a estrutura social que lhes corresponde, não emergem de uma situação de comoção social (guerra, tensão militar externa ou invasão, episódios de destruição material e humana), como ocorreu para Japão, Coreia do Sul e Taiwan (Wade, 1999, p. 439-444; Evans, 1993, p. 136). Também de modo diverso, o Estado desenvolvimentista brasileiro em construção não assume a forma autoritária nem corporativa, sendo mais propriamente caracterizado como uma democracia com uma institucionalidade híbrida, que combina elementos 9. A noção de “estado desenvolvimentista” em sentido estrito corresponde ao conceito proposto originalmente por Johnson (1982) e reelaborado em Evans (1993) e Chang (1999). A noção de “estado desenvolvimentista em sentido ampliado”, em contraste com o “modelo” do Estado desenvolvimentista no Leste Asiático (Developmental State), refere-se a uma “ampliação” que possui três aspectos: i) o Estado tem de possuir bases sociais mais amplas que os empresários capitalistas da indústria e a burocracia pública, com a inclusão da classe trabalhadora como protagonista na coalizão social desenvolvimentista; ii) impossibilidade de uso exclusivo, sem controle externo e público, do aparelho do Estado e das políticas públicas por uma coalizão social restrita, em decorrência das condições vigentes em uma “poliarquia” (O’Donnell, 1998); iii) o exercício de funções desenvolvimentistas mais abrangentes (além das quatro funções assinaladas por Chang, 1999), entre as quais podem-se citar funções distributivas e promotoras de capacitações (educação e formação proissional), funções comunicativas e formadoras de cultura (ver Evans, 2003). O signiicado dos sentidos “estrito” e “ampliado” de um Estado desenvolvimentista está vinculado ao alcance do conceito de desenvolvimento e à amplitude da base social do Estado. 10. Esse aspecto do argumento foi reelaborado a partir da discussão com os pesquisadores da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea, em 24 de agosto de 2011, ocasião em que era sustentada a proposição mais forte de que o “Estado [brasileiro] já atua de forma incipiente cumprindo funções (sócio) econômicas características de um Estado desenvolvimentista” (Herrlein Jr., 2011). 44 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil corporativos e pluralistas com novos elementos de controle civil e participação direta (instituídos pela CF/1988), conigurando-se plenamente como uma poliarquia.11 A despeito das diferenças dessas formações estatais frente à formação brasileira, interessa observar as funções desenvolvimentistas cumpridas pelo Estado nos processos de desenvolvimento no Leste Asiático, em contraste com o Estado brasileiro.12 É notório que o Estado brasileiro não está promovendo uma ampla coordenação dos agentes sociais e econômicos nacionais para a consecução de uma mudança estrutural, deinida previamente por uma estratégia de desenvolvimento e uma respectiva visão de futuro que mobiliza a sociedade. Contudo, ocorreu algum avanço na escala e na coordenação do investimento público e do investimento privado, destacando-se nesse sentido os sucessivos blocos de investimentos denominados Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e os instrumentos da política industrial e da política tecnológica. A elaboração de uma Agenda Nacional de Desenvolvimento (AND)13 foi um passo muito tímido para formulação estratégica e não é certo que venha a ter desdobramentos práticos. Por sua vez, existe na esfera estatal brasileira um processo efetivo de criação de instituições ou revigoramento de instituições já existentes, um processo relacionado a empresas e agências públicas, conselhos, conferências, ouvidorias etc., que incidem nos rumos e nas possibilidades do processo de desenvolvimento. O Estado brasileiro também tem atuado satisfatoriamente no que concerne à administração de conflitos, num contexto de aceitação plena do regime de propriedade e de efetivas mudanças distributivas, que são muito recentes. Ainda assim, trata-se de um Estado que demonstra capacidade de promover a acomodação de interesses diversos, revelando-se também eventualmente incoerente, pois permanece bastante permeável aos particularismos. De qualquer forma, existe a virtude do Estado em assegurar uma ordem institucional democrática e estável, cuja solidez será posta à prova pelo caráter radical das transformações que o desenvolvimento poderá implicar. Ainda é preciso caracterizar melhor essa hipótese indicando que o atual processo nacional de construção do Estado é especialmente distinto da construção do Estado 11. Poliarquia é uma forma especiicamente deinida de organização democrática do Estado, cujos elementos característicos são: autoridades eleitas; eleições livres e justas; sufrágio inclusivo; direito de se candidatar aos cargos eletivos; liberdade de expressão; informação alternativa; liberdade de associação; impossibilidade de destituição arbitrária de autoridades eleitas (e algumas nomeadas, como juízes de cortes supremas) antes do inal do mandato; inexistência de constrangimentos severos e vetos sobre autoridades eleitas ou sua exclusão de determinados domínios políticos por parte de atores não eleitos (especialmente as forças armadas); e território inconteste deine claramente a população votante. As sete primeiras características são formuladas por Robert Dahl e as três últimas propostas por Guillermo O’Donnell (1998, p. 27), em quem se apoiou. 12. Esse contraste foi feito de modo sintético, para qualiicar a hipótese apresentada. Para uma consideração mais extensa do cotejo entre o Estado brasileiro e o Developmental State, ver Herrlein Jr. (2011, seção 4). Aqui apenas demarca-se até que ponto é legítimo cogitar que o Estado brasileiro realiza certas funções desenvolvimentistas. Para tanto, usou-se como referência a síntese proposta por Chang (1999) acerca das funções do Estado desenvolvimentista. 13. No âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) da Presidência da República (PR). Ver Garcia (2010). A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 45 desenvolvimentista brasileiro do ciclo 1930-1980. Em primeiro lugar, deve-se notar que atualmente está estabelecida no país uma democracia de massas, relativamente mais sólida e não contestada nos seus resultados e no seu funcionamento por nenhum setor expressivo da sociedade. A nova institucionalidade republicana, em pouco mais de vinte anos, tem operado soluções para os conlitos sociais e políticos de um modo aceitável por praticamente todas as forças políticas partidárias, minimizando os movimentos e episódios de oposição política extraparlamentar. Tais características parecem contrastar com o período democrático 1946-1964, marcado por inúmeros conlitos acerca da legitimidade de governos e de processos políticos. Em segundo lugar, comparativamente ao Estado nacional naqueles cinquenta anos, o Estado brasileiro possui hoje uma base social mais ampla, na medida em que a estrutura desse Estado (sua ossatura material) e algumas de suas políticas permanentes mostram-se mais implicadas com os interesses da grande parcela do povo que vive na pobreza ou próxima dela. Essa maior amplitude relativa da base social do Estado também se manifesta na sua maior transparência e na maior extensão da informação e do debate públicos acerca do que faz o Estado. Apesar dessas diferenças, talvez se pudesse aceitar a caracterização desse Estado como desenvolvimentista, tendo em vista três elementos que podem ser apontados como deinidores do desenvolvimentismo (Fonseca, 2004). Primeiro, o apoio do Estado à industrialização do país, que foi retomado nos anos 2000. Segundo, a intervenção estatal em favor do crescimento econômico, que atualmente se realiza, ainda que de forma ambígua, dado o caráter genericamente restritivo das políticas monetária e iscal. Por im, o terceiro elemento é o nacionalismo, que parece estar de volta, provavelmente por muito tempo, como parte do discurso político que norteia as ações do Estado brasileiro.14 Conforme assinalado por Fonseca, Cunha e Bichara (2011), as políticas econômicas do Estado brasileiro a partir de 2003 têm conteúdo social distributivista, como também tiveram as políticas desenvolvimentistas, principalmente no período democrático (1946-1964). Contudo, como bem destacaram os referidos autores, 14. O nacionalismo é considerado como um fenômeno social especíico das grandes sociedades-Estado industriais no nível de desenvolvimento atingido nos séculos XIX e XX e constitui um tipo de crença caracteristicamente secular. O nacionalismo pressupõe um elevado grau de democratização social, para que os sentimentos individuais de vinculação, de solidariedade e de obrigação se estabeleçam de modo especial, não apenas em relação a determinadas pessoas ou a uma única pessoa que comanda mas também em relação a uma coletividade soberana que o próprio indivíduo forma com milhões de outros indivíduos, coletividade que está organizada num Estado (Elias, 1997, p. 142-143). 46 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil o conteúdo é distributivista sem ser “populista”.15 As políticas que acarretaram uma redistribuição da renda nacional não provocaram tensões macroeconômicas.16 De outra parte, não é possível falar em desenvolvimentismo, pela ausência do projeto e da mobilização nacional em torno de uma ideologia e propósitos desenvolvimentistas. Em sentido estrito, não há Estado desenvolvimentista porque não existe uma estratégia de desenvolvimento. Portanto, o processo de construção estatal que se está observando não é, pelo menos até o presente momento, a realização de um projeto social autoconsciente, que expresse um pacto ou coalizão deinida entre grupos e classes que compõem a sociedade brasileira. Em concordância com Fonseca, Cunha e Bichara (2011), talvez esteja nisso outra diferença entre o projeto e o Estado desenvolvimentista dos anos 1930-1980, mesmo aceitando-se a presença daqueles três elementos distintivos do desenvolvimentismo citados anteriormente.17 Na próxima seção, serão apontadas evidências ou indícios de prováveis evidências do processo de construção de um Estado democrático para o desenvolvimento no Brasil, com base na observação de algumas políticas públicas no período 1995-2010 e da evolução das instituições republicanas. 3 POLÍTICAS PÚBLICAS E INSTITUIÇÕES ESTATAIS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO Como foi indicado, ao serem avaliadas as políticas públicas do Estado brasileiro contemporâneo, tem-se como perspectiva um sentido amplo do processo de desenvolvimento e assim também para o caráter do Estado desenvolvimentista. As políticas públicas que interessam ao desenvolvimento envolvem o conjunto da ação do Estado nacional, em todas as áreas, e incluem as políticas que emanam das esferas infranacionais de governo. A hipótese proposta neste ensaio remete a um estudo e a uma avaliação abrangentes, que estão muito além dos comentários traçados a seguir. Nestes comentários, tratou-se apenas de algumas áreas de atuação do Estado nacional e pôde-se avaliar as políticas públicas somente em nível federal, tomando como referência as evidências que uma breve pesquisa exploratória pode levantar. Nas descrições das políticas feitas a seguir, o foco é dirigido propositalmente às mudanças que transcorrem ao longo do período 1995-2010 ou que marcam todo 15. “Populismo econômico” signiica o padrão de política econômica apontado em Dornbush e Edwards (1991) e Bresser-Pereira (1991b), sem levar em conta se existe correspondência desse padrão com a experiência histórica brasileira. 16. Outra forma de indicar o caráter dessas políticas é denominá-las “responsáveis”, porque não pretendem elevar salários por meio de choques de reajuste ou com reajustes acima da elevação da produtividade. No que se refere a choques de reajuste, seguiram-se os dados do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Sócio-Econômicas (Dieese) para o valor real do salário mínimo (SM), considerando aumentos em base anual (comparação dos valores de dezembro). Nota-se que os aumentos anuais desde 2003 são persistentes, mas são bastante moderados (inferiores a 14%) quando comparados a aumentos anuais ocorridos de 1950 até 1964 (que chegaram a 160%, 58% e 28%) e mesmo inferiores a aumentos ocorridos nos anos de 1991, 1993 e 1995 (de 18%, 33% e 16%, respectivamente). 17. Não se deve perder de vista que o desenvolvimentismo teve diferentes momentos, com diferentes inspirações ideológicas e que foi sustentado por coalizões políticas e bases sociais eventualmente abrangentes e nem sempre explícitas. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 47 esse período, em contraste com a trajetória anterior. Nos comentários seguintes, foram negligenciadas, portanto, as permanências e insuiciências observadas nas políticas públicas. Priorizou-se o enfoque das políticas associadas diretamente ao progresso técnico e ao aumento da produtividade (políticas industrial, de ciência e tecnologia e educacional) ou ao provimento de infraestrutura (energia, transporte e comunicações) e o enfoque das políticas de caráter distributivo (políticas de rendas e de saúde, previdência e assistência social).18 O caráter adequado ou não da ação do Estado para o desenvolvimento transparece nas políticas públicas de cunho estruturante, como as recém-citadas. Pode-se denominá-las políticas-fim, na medida em que indicam diretamente, por seus objetivos e recursos, as inalidades da ação do Estado no seu aspecto mais diretamente “construtivo”, pelo qual o Estado é capaz de estruturar e inluenciar a coniguração da sociedade.19 Mesmo admitindo que as políticas macroeconômicas (e o regime subjacente) são decisivas para inluenciar a taxa de investimento e o crescimento econômico, entende-se que tais políticas devem ser vistas como políticas instrumentais, que podem favorecer, estimular, permitir ou, ao contrário, inibir, constranger e obstaculizar o desenvolvimento, mas que não implicam necessariamente a especiicação das inalidades outras da ação estatal ou mesmo da inalidade do próprio crescimento econômico.20 A política industrial é uma boa referência para iniciar a consideração do caráter desenvolvimentista da ação do Estado nacional, pois tem sido uma política central nas experiências de desenvolvimento econômico bem-sucedidas ao longo da história (Chang, 2004), ao promover o crescimento da produtividade do trabalho social, a expansão da produção nacional e a ampliação da agregação de valor nas cadeias produtivas. No caso do Brasil, pode-se observar que, após o abandono das antigas políticas de proteção tarifária e reservas de mercado, não houve a adoção efetiva de uma política industrial ao longo dos anos 1990, período marcado pela liberalização comercial acelerada, com efeitos destrutivos sobre as cadeias produtivas nacionais.21 Em 2003, já sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, foram lançadas as diretrizes de uma Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (Pitce), 18. Os elementos comentados nesta seção foram revelados por breve pesquisa exploratória acerca das políticas públicas. Não são apresentados aqui como comprovações da hipótese apresentada, mas são justamente os elementos que izeram com que se formulasse essa hipótese. 19. Conforme Poulantzas (1980, p. 35-37), o Estado capitalista também age de maneira positiva, cria, transforma, realiza. Faz isso quando age pela produção do substrato material do consenso das massas em relação ao poder, mas também quando se introduz no cerne da reprodução do capital. 20. Essa abordagem difere daquela proposta por Bresser-Pereira (2005, 2007) e por economistas pós-keynesianos (Sicsú, Paula e Michel, 2005), segundo a qual o novo-desenvolvimentismo se deine principalmente em função do regime de políticas macroeconômicas (iscal, monetária e cambial), reconhecendo que são necessárias mudanças institucionais para alcançar um novo regime. Vale notar que as abordagens são diferentes, mas não são necessariamente contraditórias. 21. Apesar do lançamento de documentos oiciais sobre políticas industrial e de comércio exterior, as medidas adotadas nessa área não seguiram qualquer diretriz de governo, mas resultaram de soluções ad hoc para problemas setoriais (como no caso do regime comercial da indústria automotiva). 48 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil que tomaria corpo a partir de 2004, orientando a ação do Estado até 2008 (Brasil, 2003).22 Dado o marco institucional anterior, a simples proposição de uma política industrial foi saudada como um grande avanço (Suzigan e Furtado, 2006). A nova política fundamentava-se numa compreensão abrangente do papel da inovação e das capacidades tecnológicas para o desenvolvimento econômico em longo prazo.23 A Pitce caracterizou-se por ser uma política basicamente horizontal, com incentivos gerais para a inovação, mas também por estar focada em alguns setores. Quatro destes (semicondutores, software, bens de capital e fármacos/ medicamentos) foram deinidos como opções estratégicas, pois sua melhoria produtiva tem ampla incidência sobre os demais setores ou na balança comercial. Outros três setores foram escolhidos por serem atividades portadoras de futuro (biotecnologia, nanotecnologia e biomassa/energias renováveis). O espírito da orientação governamental com a Pitce, que se manteve posteriormente com a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), era aproveitar as potencialidades da base produtiva local e induzir a criação de vantagens competitivas dinâmicas por meio de maior valorização da inovação tecnológica na empresa tendo o setor industrial como base do desenvolvimento econômico no contexto de estabilidade monetária e de restrições de natureza iscal (Campanário, Costa e Silva, 2005, p. 10). Associado à nova política, foram estabelecidas a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), criando condições para aprimoramento e gestão da política industrial num regime de parceria entre agentes públicos e privados, com ampla transparência (De Toni, 2007). Em 2008, a política industrial foi ampliada por iniciativa do governo, com o lançamento da PDP, que aumentou o conjunto de setores beneiciados para 21 (sujeitos a ampliação mediante proposição), agrupados, segundo uma diversidade 22. Tratava-se de um conjunto de onze programas de política constituídos de 57 medidas. Os objetivos e as medidas básicas da Pitce foram apresentados em três documentos governamentais: Sexta Carta de Concertação: Política Industrial como Consenso para uma Agenda de Desenvolvimento; Diretrizes de Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior; e Medidas de Política Industrial e de Comércio Exterior. O primeiro desses documentos foi elaborado pelo CDES, um órgão vinculado à PR, composto por 81 representantes de trabalhadores, empresários, cientistas e representantes de múltiplos setores da sociedade civil, além de ministros de Estado (ver nota de rodapé 55). A carta apresenta as bases políticas da Pitce. As Diretrizes de Política Industrial (2003) é um documento de caráter técnico que apresenta os objetivos, funções, características e forma de implementação da Pitce. Na avaliação de Campanário, Costa e Silva (2005), o documento é tecnicamente consistente ao enfatizar as diferenças setoriais e propor medidas especíicas de atuação da Pitce como meio de promover o desenvolvimento industrial. Já outros autores criticam o desenho institucional da política. 23. As diretrizes indicam um importante papel para as políticas públicas visando à absorção de tecnologias e à criação de capacidades. Apontam para uma ampla interlocução entre governo e setor privado, que estabeleça um espaço de negociação voltado para a construção de compromissos produtivos. Nas diretrizes também apareceu um conceito que permaneceria presente desde então: a necessidade de o país contar com grandes empresas nacionais que sejam ativas na liderança do crescimento. Sistemas empresariais maiores e mais compatíveis com as dimensões das corporações internacionais são necessários para aumentar a inserção externa e a capacidade de inovação da indústria nacional (Brasil, 2003). A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 49 de estratégias,24 em três programas estruturantes: mobilização em áreas estratégicas, fortalecimento da competitividade e consolidação/expansão da liderança. A nova política estruturou-se com amplo alcance, novos instrumentos iscais e creditícios e maior volume de recursos, buscando alcançar quatro macrometas para o período 2008-2011 – relativas a ampliação do investimento ixo, elevação do gasto privado em pesquisa e desenvolvimento (P&D), ampliação das exportações e dinamização das micro e pequenas empresas (MPEs). Uma nova ênfase foi dedicada aos arranjos produtivos locais. O eixo principal da PDP foi uma preocupação plenamente acertada com a geração de superavit comerciais.25 As críticas mais comuns à política industrial que foi construída ao longo dos anos de 2003 a 2010 dizem respeito à sua inconsistência com as políticas macroeconômicas (Suzigan e Furtado, 2006; Castilhos, 2005). A política industrial tem que operar, para ampliar a taxa de investimento e melhorar a situação da balança comercial, contra os sinais de preços que resultam dessas políticas macroeconômicas: elevada taxa de juros e baixa taxa de câmbio.26 Além disso, na área iscal, o sistema tributário é complexo, confuso e opaco, diicultando o uso simples e coerente de incentivos iscais. Mesmo concordando com essas críticas, é forçoso reconhecer que houve grandes avanços. O Estado nacional adotou uma política industrial explícita, já realizou modiicações e melhorias na mesma, bem como fomentou paralelamente a estruturação de novas instituições de governança para o desenvolvimento industrial (ABDI e CNDI). Essa política e as respectivas instituições constituem um formato de política pública que supera qualquer arranjo pretérito já alcançado pelo Estado brasileiro nessa área. É possível que o mesmo possa ser dito da Política de Ciência, Tecnologia e Inovação (C, T&I) adotada atualmente pelo Estado nacional brasileiro. Essa política começou a ser construída por meio de uma reforma ocorrida entre 1999 e 2002, durante o segundo mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando foi formulada a Lei de Inovação, aprovada somente em 2004, já no governo de Lula. Desde 1985 até 2010, foram realizadas quatro conferências nacionais de C, T&I, que contribuíram efetivamente para a formulação da política 24. As estratégias podem ser de liderança mundial, conquista de mercados, focalização, diferenciação e ampliação de acesso. 25. O estrangulamento externo costuma ser um obstáculo presente nos processos de desenvolvimento, como já indicava a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) desde os anos 1950 (Rodríguez, 1981). Atualmente, é reconhecido que os resultados da balança comercial podem limitar a taxa de crescimento da economia nacional, conforme indicado pela Lei de Thirlwall (Thirlwall, 2002). Cabe notar que na política industrial a produção para o mercado interno também é destacada. 26. De fato, há um problema grave de inconsistência que reduz a efetividade do Estado nessa área crucial para o desenvolvimento. Para alguns setores, a política industrial funciona propiciando condições meramente compensatórias das condições desfavoráveis de juros e câmbio, isto é, opera para contornar desvantagens competitivas e não para criar vantagens competitivas. 50 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil pública nessa área, consubstanciada no Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação (Pacti) (2007-2010) adotado pelo Estado nacional.27 A política de C, T&I apoia-se em fundos setoriais de base iscal, que servem para inanciamentos de projetos realizados ou propostos pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) em diversos setores: petróleo, energia, transportes, recursos hídricos, atividades espaciais, telecomunicações, informática, infraestrutura para pesquisa, biotecnologia, agronegócio, saúde, aeronáutico (Pacheco, 2007). Essa política também está articulada com a consecução de metas sociais e de desenvolvimento regional. Os princípios e os dispositivos da Lei de Inovação (no 10.973/2004) e da chamada “Lei do Bem” (no 11.196/2005) apoiam-se na mesma compreensão de fundo que orienta a política industrial acerca da importância da inovação e da aquisição de capacidades tecnológicas.28 A articulação (teórica e prática) entre as atuais políticas industrial e de C,T&I, no Brasil, indica que nessa área das políticas públicas há uma linha de continuidade entre os dois governos. No campo da política educacional, houve uma série de avanços desde os anos 1990. A cobertura do ensino fundamental atingiu a totalidade das crianças e aumentou o volume de recursos por meio da criação de fundos para custeio do ensino.29 Também nessa área houve uma continuidade na sucessão de governos de FHC para Lula, com a crescente adoção de sistemas de avaliação (provas e exames no ensino básico, médio e superior) e de programas de qualiicação do ensino e de melhoria da gestão dos recursos nas escolas (Saviani, 2009). No governo de Lula foram retomados os investimentos e ampliados os gastos com as universidades federais. Foram criadas onze novas universidades em regiões não atingidas ou com insuiciências no ensino superior, foram ampliadas as vagas nas universidades já existentes por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e criadas centenas de novos cargos públicos 27. O Pacti aponta os quatro eixos estratégicos da política brasileira: expandir, integrar, modernizar e consolidar o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI); acelerar o desenvolvimento de um ambiente favorável à inovação nas empresas; fortalecer as atividades de pesquisa e inovação em áreas estratégicas para a soberania do país, em especial energia, aeroespacial, segurança pública, defesa nacional e Amazônia; e promover a popularização e o ensino de ciências, a universalização do acesso aos bens gerados pela ciência e a difusão de tecnologias para a melhoria das condições de vida da população. 28. A nova legislação busca fortalecer o SNCTI por meio da constituição de um ambiente propício às parcerias estratégicas entre instituições cientíicas e tecnológicas e empresas, estimulando a participação de instituições de ciência e tecnologia no processo de inovação e incentivando a inovação na empresa. Para tanto, há diversos tipos de incentivos iscais ao gasto privado em P&D para pessoas jurídicas. Além disso, o MCT utiliza bolsas para favorecer a formação, absorção e ixação de pesquisadores e promove o inanciamento a projetos de grupos de pesquisa, de instituições e de redes temáticas. 29. Desde 2007, existe o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Proissionais da Educação (FUNDEB), formado com recursos federais, estaduais e municipais, em substituição ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), incluindo o ensino médio na aplicação dos recursos. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 51 para docência e serviços técnico-administrativos.30 A expansão de vagas ocorreu geralmente com dispositivos de cotas de vagas para estudantes mais pobres (abrangidos pelo critério racial ou pelo critério da formação anterior em escolas públicas), e também por meio do custeio de vagas em universidades privadas, destinadas a estudantes sem recursos que não obtêm acesso à universidade pública, o Programa Universidade para Todos (ProUni).31 O Estado brasileiro alcançou um nível de gastos com educação de 5% do produto interno bruto (PIB), o que representa o maior nível na sua história. Apesar das melhorias, os recursos ainda são claramente insuicientes. A experiência histórica nesse campo indica que os gastos públicos nessa área teriam de alcançar talvez 10% ou pelo menos 8% do PIB (Saviani, 2009). A educação continua sendo um setor em que as carências são enormes e cuja superação é crucial para o futuro da sociedade e do Estado nacional em construção.32 No campo das políticas sociais, houve notáveis avanços, que começaram com a implantação efetiva, por meio de leis complementares, de novos direitos e benefícios estabelecidos pela CF/1988, que abrangem a aposentadoria rural e os benefícios continuados para idosos e pessoas portadoras de deiciência. Essa implantação acarretou um aumento no montante dos gastos públicos da ordem de 3% do PIB, com efeitos decorrentes para o aumento da carga tributária (BresserPereira e Pacheco, 2005, p. 167).33 Ainda durante o governo de FHC, foram implantados vários programas sociais de complementação de renda para a população pobre (Comunidade Solidária, BolsaEscola, Bolsa-Renda, Bolsa-Alimentação, Bolsa-Qualiicação, Auxílio-Gás, entre outros). Durante o governo de Lula foi implantado o Programa Fome Zero e, depois, o Programa Bolsa Família (PBF), que integrou os vários programas existentes. Com 30. O Brasil tem um dos melhores sistemas de educação superior da América Latina e, ao lado do México, o sistema mais desenvolvido de pós-graduação, com maior eiciência em termos de índice de titulação. 31. Vale notar que, num país em que a cobertura do ensino universitário é bastante modesta (18%), mesmo para padrões latino-americanos (média de 32%), uma política de acesso à universidade com esse cunho social, desde que sustentada por uma ou mais décadas, tende a fomentar um novo tipo de proissionais de nível superior. Seria formada uma parcela da elite proissional mais identiicada com o Estado nacional, expressando maior gratidão e lealdade do que a classe média já constituída há mais de uma geração, cujos ilhos têm acesso a boas escolas privadas e terminam por obter a maior parte das vagas nas universidades públicas “por mérito próprio”. 32. A educação é um setor-chave porque, por um lado, dela depende a formação de capacidades comunicativas e políticas das amplas camadas populares, que seriam capazes de empolgar um Estado democrático e gerar um processo de desenvolvimento em bases deliberativas. Por outro lado, porque dela depende, em longo prazo, a formação e expansão de capacidades tecnológicas e de inovação, capazes de assegurar maior produtividade e padrões materiais de vida superiores e ecologicamente sustentáveis para toda população. 33. Os autores assinalam que esse aumento do gasto social correspondeu a uma estratégia claramente deinida pelas forças políticas que comandaram a transição democrática brasileira, em vista da sua preocupação com a radical desigualdade existente no país. O gasto social público per capita aumentou 43,4% entre 1980 e 2000, quando o PIB cresceu 8%. Os resultados se materializaram na melhoria de diversos indicadores sociais nesse período: aumento de 13% na esperança de vida ao nascer, queda de 56% na taxa de mortalidade infantil, redução de 48% na taxa de analfabetismo e alcance da cobertura do ensino fundamental atingindo 97% das crianças (Bresser-Pereira e Pacheco, 2005, p. 165-166). 52 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil ele, criou-se um Cadastro Nacional Único (Canu) para o programa e massiicou-se seu alcance. O programa exige contrapartidas das famílias (desempenho escolar dos ilhos e atualização das vacinas) e apresenta resultados expressivos para a formação da renda e para o comportamento social das 13 milhões de famílias atingidas.34 Todavia, os dispositivos constitucionais que asseguram a existência de uma política de Estado na área social, assim como as políticas dos governos recentes para a área social, ainda são insuicientes para eliminar a incidência da pobreza extrema para cerca de 24 milhões de brasileiros, que não estão contemplados pelas políticas existentes. Não se dispõe de elementos suicientes para considerar a política de saúde do Estado brasileiro, pois esta área esteve fora do alcance dos estudos desta pesquisa. Cabe apenas assinalar que os gastos com saúde vêm crescendo lentamente como proporção do PIB desde os anos 1990, assim como em termos per capita. No período de 2002 a 2010, houve um crescimento real de cerca de 30% dos gastos da União com saúde.35 Um campo da ação econômica do Estado no qual se observou uma inlexão sob o governo de Lula refere-se à efetivação de uma política de rendas, composta por diversas medidas que afetaram a qualidade dos empregos e os níveis salariais. Depois de experimentar um ganho real de 22% durante o governo de FHC (1995-2002), o SM acumulou novo acréscimo real de 58% nos oito anos seguintes.36 Houve uma expressiva formalização das relações de trabalho, com um aumento de 15 milhões de empregos com carteira assinada (registro formal) no período 2003-2009. O aumento do emprego em consonância com o crescimento econômico permitiu que, no mesmo período, 32 milhões de pessoas passassem para um extrato superior de renda (atingindo a classe C, provenientes das classes D e E).37 Entre 2000 e 2008, a renda dos 10% mais pobres cresceu 72% em termos reais, enquanto a renda dos 10% mais ricos cresceu 11%. Houve redução da concentração da renda, com uma 34. O Canu serve de referência para outros programas, inclusive aqueles dedicados à formação e qualiicação proissional dos beneiciários, o que viabiliza a conquista de outra posição social e uma via de saída do programa para as famílias que deixam de necessitar do benefício. Por conta desses programas, o Brasil tornou-se referência para elaboração e execução de políticas sociais em países com grande número de pobres. 35. Nessa área, predomina a percepção de que as políticas foram aprimoradas durante o governo de FHC, especialmente com a atuação de José Serra como ministro da Saúde. Não está claro se houve um declínio nos anos recentes, pois ocorreram concursos públicos, ampliação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), implantação de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e fortalecimento do Programa Saúde da Família, com extensão da cobertura municipal. Os serviços públicos estão longe de atender adequadamente às necessidades da população, enquanto permanecem mal deinidas as fronteiras entre serviços públicos e privados. 36. Conforme cálculos feitos com base nos dados do Dieese para o valor real do SM como média anual, incluindo o 13o salário. O cálculo do Dieese para a variação “ponta a ponta”, comparando-se os valores para os meses de dezembro, indica crescimento real de 35% nos oito primeiros anos e de 63% nos oito últimos. Em confronto com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), inlação oicial para o regime de metas, o ganho real nos últimos oito anos foi de 70%. 37. A classe C abrange a população residente em domicílios com renda entre R$ 1.115 e R$ 4.807 por mês (valores de 2008), equivalentes a cerca de US$ 1,000 a US$ 3,000. Entre 2003 e 2008 a classe “C” aumentou sua representatividade na população total de 37% para 64%. Conforme dados e critérios do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPS/FGV). A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 53 modiicação relativamente rápida no índice de Gini e redução da pobreza de 20% para 10% da população total.38 Aqui, é preciso assinalar a relação entre as mudanças distributivas e a retomada do crescimento econômico. Considerando o período dos últimos sete anos (2004 a 2010), o crescimento real do PIB alcançou 4,4% ao ano (a.a.), um resultado notável porque esse nível médio de crescimento, sustentado por igual período, era algo que não ocorria desde o inal do longo ciclo desenvolvimentista em 1980. Isso representou, portanto, o retorno do crescimento sustentado, num período de sete anos, que inclui a irrupção de uma crise mundial de grandes proporções em 2008. No início da década, o crescimento econômico foi estimulado pela expansão das exportações, o que permitiu reduzir a vulnerabilidade externa da economia brasileira. Após 2004, o crescimento teve continuidade principalmente devido à expansão do mercado interno. Vale notar que é inédita na história do desenvolvimento industrial brasileiro (desde 1950) a combinação de altas taxas de crescimento econômico e melhoria na distribuição da renda nacional. Quando o crescimento foi acelerado, a concentração da renda aumentou (1950-1990) e quando a concentração diminuiu, o crescimento foi muito modesto (anos 1990).39 O peril distributivo do crescimento sustentado foi diretamente afetado pelas políticas públicas, pois o crescimento apoiou-se amplamente na expansão do mercado interno, em vista da melhoria na distribuição da renda e sem provocar inlação. O movimento recente representa mudança expressiva e rápida na estratiicação social da população segundo a renda. São resultados alcançados pela economia nacional num período em que o governo limita os gastos públicos para gerar superavit primários (geralmente acima de 3% do PIB) e realiza uma política monetária estritamente comprometida com a estabilidade de preços. No crescimento econômico recente, transparece certo tipo de articulação da política industrial com a política social e econômica geral, apesar dos problemas já mencionados de inconsistência da política industrial com o regime de políticas 38. A evolução do índice de Gini consolida a reversão de uma tendência histórica. O índice de Gini para a distribuição do rendimento mensal da população com mais de dez anos crescera década após década, entre 1960 e 1990, passando de 0,50 para 0,63 em trinta anos. Segundo Benjamin et al. (1998, p. 197), a partir de dados básicos censitários, houve declínio ao longo da década de 1990, com o índice alcançando 0,59 em 1995 e 0,57 em 2001. Desde então, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE), com dados básicos das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (PNADs), houve uma lenta e sistemática redução da concentração da renda, mais acelerada após 2006, com o Gini atingindo 0,52 em 2009. Conforme documento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (OECD, 2009), a redução do índice de Gini atingiu 0,7% a.a. entre 2001 e 2007 e, se mantida nesse ritmo, o Brasil alcançará o nível atual de desigualdade dos Estados Unidos em menos de quinze anos (Fonseca, Cunha e Bichara, 2011). 39. Fonseca, Cunha e Bichara (2011, p. 13) observam outro aspecto que torna singular o atual ciclo de crescimento da economia brasileira: “(...) a aceleração do crescimento frente à média das últimas duas décadas [e em ritmo superior à média mundial] combina-se com a manutenção dos níveis mais baixos de inlação e de vulnerabilidade externa (...) desde que há registros estatísticos”. 54 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil macroeconômicas. A política industrial pretende, por um lado, incentivar as exportações, que são importantes para a sustentação do crescimento, evitando o estrangulamento externo. Por outro, trata de fortalecer o mercado interno para que a produção industrial em larga escala (principalmente de bens de consumo) tenha padrões internacionais de qualidade e custo para competir no exterior e melhorar a balança comercial.40 As políticas macroeconômicas (instrumentais) durante o governo de Lula estiveram fortemente comprometidas com a estabilidade monetária e a estabilidade macroeconômica, em sentido mais amplo. A estabilidade de preços segue sendo decisiva para o cálculo capitalista, que é preciso favorecer para obter a desejada expansão dos investimentos. Além disso, a manutenção da inlação em baixos patamares é valorizada não apenas por credores mas por amplas camadas populares e médias, tornando-se importante para a legitimação social dos governos (Erber, 2011). Trata-se certamente de um legado do governo de FHC, mas a estabilização foi ampliada posteriormente. Houve signiicativa redução da vulnerabilidade externa, acumulando-se reservas que permitiram a formação de um fundo soberano e uma posição credora junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), enquanto a dívida externa líquida declinou até zero. De outra parte, a política iscal tem sido criticada por sua “ortodoxia”, visto que tem metas de superavit iscal para reduzir a proporção da dívida pública em relação ao PIB. Nesse sentido, durante o governo de Lula, a política iscal foi muito mais dura e efetiva do que no governo de FHC, pois foi preciso reverter a grave situação da dívida pública, cujo montante líquido elevara-se de 29% para 54% do PIB entre 1995 e 2003, sendo legada como um dos custos da estabilização monetária obtida com o Plano Real. A política fiscal adotada, mais do que reletir uma orientação teórica ortodoxa, parece justiicar-se pela necessidade de recuperação das capacidades do Estado brasileiro. Como parte desse processo de recuperação, nota-se uma retomada dos investimentos públicos, considerando o orçamento federal e também os investimentos das estatais.41 Apesar de ter permitido uma trajetória de redução gradual da taxa de juros desde 2003 (de aproximadamente 25% para 10% a.a., em termos nominais), o modelo iscal baseado na expansão e centralização federal da carga tributária, para sustentar elevados pagamentos de juros e despesas de custeio 40. São modestos os efeitos da política industrial e de desenvolvimento produtivo sobre a taxa de investimento agregada da economia. Ela estagnou abaixo de 20% do PIB desde 1995, icando, desde então, próxima a 15% até 2004. A partir de 2005, a taxa de investimento cresce alcançando aproximadamente 19% em 2008. O valor do investimento agregado, medido pela formação bruta de capital ixo (FBCF)), reduziu-se em 2009 em 10% em termos reais, mas recuperou-se em 2010, crescendo 22% (Ipeadata). 41. Durante o governo de FHC (1995-2002), os investimentos públicos alcançaram uma média de R$ 22 bilhões por ano, em termos nominais. Essa média elevou-se para R$ 75,8 bilhões nos sete anos seguintes. A previsão para 2010 era de R$ 158 bilhões em investimentos, aproximadamente 4,6% do PIB, conforme dados oiciais da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) do Ministério do Planejamento, Orçamento Gestão (MPOG) e do Departamento de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (DEST). A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 55 e pessoal, dá claros sinais de esgotamento (Lopreato, 2007). A geração de superavit primários, enquanto se mantém o deficit nominal, é uma política que atende aos credores, evita o agravamento da situação iscal, mas não resolve de modo algum uma situação já deteriorada. A base iscal do Estado provavelmente é insuiciente para fazer frente aos custos de juros da política monetária e da instabilidade cambial, simultaneamente aos gastos necessários com políticas públicas sociais, de educação, de saúde, de ciência e tecnologia etc. e com os investimentos requeridos em infraestrutura.42 Do lado das receitas, o Estado brasileiro conigurou uma estrutura tributária das mais iníquas e também confusas que se tem conhecimento. A urgência de uma reforma tributária contrasta com a impotência do Estado em realizá-la, pois paralisado pelo impasse de um conlito entre múltiplos interesses estabelecidos ou contestadores. Há, portanto, muito que avançar no terreno fundamental da solidez iscal e patrimonial para que o Estado nacional seja capaz de cumprir com efetividade funções desenvolvimentistas. Cabe observar o papel desempenhado pelo Estado nacional, por meio do uso das políticas macroeconômicas, quando eclodiu a crise internacional, em setembro de 2008. Sem hesitar e contando com o apoio de empresários e trabalhadores no CDES, o governo executou uma política anticíclica com grande êxito. Anunciou que manteria os investimentos públicos programados, reduziu a meta de superavit iscal e utilizou-se dos bancos públicos para dar sequência à expansão do crédito e à redução da taxa de juros. O episódio revelou a capacidade do Estado nacional brasileiro de agir em defesa da produção, da renda e do emprego nacionais. No que se refere à política de energia, apesar de momentos difíceis de mudança, houve alguns avanços importantes. Nos anos 1990 ocorreram as privatizações de empresas públicas e a reestruturação do setor elétrico (Landi, 2010), porém o marco regulatório estabelecido revelou-se inadequado. A insuiciência de investimentos durante uma década combinou-se com a baixa ocorrência de chuvas e acarretou um “apagão” em 2001, quando a oferta de energia elétrica foi insuiciente e houve racionamento para parte da população e graves prejuízos à economia nacional. Contudo, nos anos mais recentes, estabeleceu-se um novo marco regulatório para o setor elétrico, promoveu-se o fortalecimento da Eletrobras e foram retomados os investimentos, com a construção de novas hidroelétricas. 42. Bresser-Pereira parece correto ao considerar que são necessárias mudanças institucionais relacionadas à dívida pública para permitir uma mudança do “regime monetário”, no sentido da redução expressiva da taxa de juros básica, com uma política de metas de inlação mais sensata e coerente com um novo regime. O autor deine “regime monetário” em sentido aproximado ao que se entende neste capítulo como regime de políticas macroeconômicas, referindo-se a “padrões de inlação, de taxa de juros e de taxa de câmbio (...), em conjunto com os prazos da dívida pública, as instituições existentes e as políticas utilizadas” (Bresser-Pereira, 2007, p. 218). 56 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Também ocorreram mudanças em relação à produção de petróleo e à Petrobras, que reairmou-se como uma grande empresa pública, de porte internacional e capacidades técnicas amplamente reconhecidas. Após o governo de FHC, houve apoio decidido à empresa, que ampliou seu capital e seus investimentos. A descoberta de petróleo na camada de pré-sal em alto-mar suscitou uma rápida mudança no modelo de exploração, permitindo assegurar melhores retornos econômicos ao país. Será formado um Fundo Social com os recursos da exploração, que serão destinados para educação e desenvolvimento tecnológico, entre outras inalidades.43 Em poucos meses, houve debates públicos e no parlamento para modiicar o modelo de exploração, num processo político democrático e relativamente qualiicado. A Petrobras irá expandir sua atuação na exploração de petróleo, enquanto uma nova empresa estatal foi criada para administrar os contratos de exploração, que deverá envolver ainda diversas grandes empresas estrangeiras. Além disso, a Petrobras atua no segmento de biocombustíveis, em que possui liderança internacional em pesquisa e produção. A política de transportes, desde 2003, retomou a função pública de exercer o planejamento de longo prazo e promoveu a retomada dos investimentos. As grandes obras de infraestrutura – com inanciamento público, misto ou privado, envolvendo portos, estradas, aeroportos, obras viárias, urbanização de favelas e outras intervenções urbanas – foram agrupadas num único programa, o PAC,44 cuja formulação permitiu visibilidade, planejamento e organização de um conjunto de investimentos de amplo alcance, setorial e regional. Também viabilizou uma gestão mais eicaz e transparente dos projetos em execução, pois estabeleceu metas claras, formas de monitoramento e de prestação de contas. Planejamento e organização tiveram grande importância para os setores elétrico e de transportes, nos quais os investimentos eram insuicientes há mais de uma década. Em diversas áreas de serviços públicos houve, simultaneamente, privatização e estruturação de um novo formato de operação e regulação, durante o governo de FHC. Isso criou uma situação precária de indeinição e menor responsabilização do setor público pelo planejamento e a tomada de decisões de investimento. No governo Lula, com as políticas de energia e de transporte e a organização dos investimentos globais no PAC, essa situação foi revertida. Contudo, foi preservado o novo modelo de agências reguladoras e com menor ou nenhuma participação do setor público na produção direta dos bens e serviços. 43. Os objetivos com a formação do fundo são três: constituir poupança pública de longo prazo, com base nos rendimentos auferidos pela União nas atividades do setor de petróleo; oferecer fonte regular de recursos para o desenvolvimento social, na forma de projetos e programas nas áreas de combate à pobreza, educação, desenvolvimento ambiental, cultura e ciência e tecnologia; e reduzir os impactos macroeconômicos decorrentes das variações da renda gerada pelas atividades de exploração e produção de petróleo. 44. A construção habitacional também se beneicia de programas e fundos públicos, que contribuem para expansão dos investimentos e do nível de atividade. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 57 A retomada do protagonismo do Estado nessas áreas não se confunde com uma eventual retomada das funções de Estado-produtor, embora esteja implicando o fortalecimento de empresas e outros entes públicos. Algumas modiicações nos marcos regulatórios vêm ocorrendo, como no caso da produção e distribuição de energia elétrica e da extração de petróleo, mas são preservadas as linhas gerais do modelo de agências reguladoras e a maior presença privada na produção. Vale observar que mesmo nessas áreas em que as políticas públicas experimentaram uma reversão (transporte e energia elétrica) no governo de Lula, as novas instituições criadas durante o governo de FHC foram preservadas ou aprimoradas, indicando que existe um processo de construção institucional em curso. Realizando tentativas e erros, a sociedade brasileira por meio do Estado democrático está construindo novas formas institucionais para regular a produção e distribuição de serviços públicos. Essas novas formas devem superar a dicotomia privatização versus estatização, pois as combinações possíveis são variadas e os critérios de eiciência e economicidade, transparência e controle público podem orientar distintos formatos institucionais e seu aprimoramento. Será preciso que ocorram em poucos anos significativas melhorias na infraestrutura urbana de transporte em várias capitais estaduais, assim como no modal de transporte aeroviário e também em diversos outros serviços públicos e privados. A necessidade decorre dos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro com os grandes eventos esportivos internacionais em 2014 e 2016 (Copa do Mundo de futebol em doze cidades-sede e Olimpíadas no Rio de Janeiro). Embora seja discutível a aplicação de recursos públicos para a realização desses eventos (especialmente para construção de estádios), em vista de diversas alternativas de gasto com saúde, educação etc., deve-se observar que os compromissos implicam não apenas a necessidade daquelas melhorias como também a oportunidade e a mobilização de recursos para que se realizem. De qualquer modo, são eventos que implicam um grande volume de investimentos e expansão da atividade econômica e dos empregos, por vários anos. Eventos que poderão deixar um legado positivo, desde que o Estado seja capaz de aplicar e controlar recursos públicos, aproveitando a oportunidade para melhorar os serviços, especialmente a segurança pública e os transportes, nas principais cidades brasileiras. Historicamente, a questão agrária é das mais sensíveis para o desenvolvimento econômico em países de renda média ou baixa. A política agrária não experimentou avanços qualitativos nas últimas décadas, mas novos assentamentos vêm se realizando desde os anos 1990. Há um avanço quantitativo, alguma aceleração em um lento processo de reforma agrária. Segundo dados oiciais, a área incorporada ao programa de reforma agrária elevou-se de 21,1 milhões de hectares, obtidos entre 1995 e 2002, para 48,3 milhões incorporados entre 2003 e 2010. O número médio de famílias assentadas por ano entre 1964 e 1994 foi de 7,7 mil (alcançou 18 mil entre 58 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 1985 e 1994) e de 76 mil no período mais recente (2003-2010).45 Esse avanço é insuiciente para alterar a realidade agrária do país, marcada pela presença do latifúndio. A reforma agrária avança pelas linhas de menor resistência, enquanto o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) permanece relativamente contido, mas sem resolução. As diiculdades de avançar nesse campo resultam do compromisso simultâneo da política agrícola com o agronegócio capitalista e também com a agricultura familiar. Ambos os setores têm recebido atenção das políticas públicas (seguro, financiamento) e vêm contribuindo para expandir a produção de alimentos para o mercado interno e para exportação. O agronegócio vem apresentando um desempenho vigoroso, cumpre um papel crucial para a balança comercial e está em vias de transformar o Brasil no maior exportador mundial de alimentos. Entretanto, o setor está geralmente vinculado ao latifúndio e com alguma frequência promove uma utilização predatória dos recursos naturais e o uso indiscriminado de agrotóxicos. A agricultura familiar também ampliou sua expressão econômica nos últimos anos, e o desenvolvimento econômico dos assentamentos e da pequena propriedade rural está integrado a outros projetos de políticas públicas, que garantem a aquisição da produção de alimentos. O setor tem recebido apoio técnico e inanceiro de órgãos estatais e dos bancos públicos.46 A política de relações externas do Brasil vem experimentando lentas modiicações, porém de grande alcance. Sem alterar sua trajetória de independência e multilateralismo, o Estado brasileiro buscou e alcançou maior protagonismo nos fóruns internacionais, como o G-20 e a Organização Mundial do Comércio (OMC), o que aumentou seu reconhecimento externo. A diplomacia brasileira colaborou para que ocorresse uma diversiicação muito maior dos mercados para os produtos brasileiros. A aproximação ao projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foi revertida, em favor de uma reairmação do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e de uma aproximação mais decidida, econômica e política, com os principais países sul-americanos. O Brasil tomou iniciativas importantes para a Cooperação Sul-Sul. O projeto de construção da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) tem no Estado brasileiro um de seus principais defensores, em conformidade com a Constituição. 47 O organismo deverá estreitar a integração entre os países, permitindo ações coordenadas 45. Os dados oiciais estão aqui incompletos e foram obtidos em Guanziroli (1998), exceto para o período inal, obtidos diretamente no site do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). 46. Além da agricultura familiar, órgãos estatais e bancos públicos têm atuado em favor das MPEs, de cooperativas e do microcrédito, porém numa escala ainda insigniicante frente às imensas possibilidades que têm as políticas nessa área para promover novas relações de propriedade e de produção. 47. Segundo o Artigo 4o da CF/1988, a República Federativa do Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 59 e cooperação nos setores de educação, cultura, infraestrutura, saúde, energia, ciências e inanças.48 Trata-se de uma articulação difícil, porém promissora, pois o PIB conjunto alcança cerca de US$ 4 trilhões, um mercado de grandes proporções. Além disso, já transcorreu a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) e está em discussão a criação de um parlamento internacional. A mudança sem rupturas na política externa brasileira tem sido um elemento favorável ao processo de desenvolvimento. Contribui para a expansão dos mercados externos, para a airmação pacíica da soberania nacional e projeta novos aspectos na imagem mundial acerca do Brasil.49 O país é visto como experiência social de uma democracia de massas pluralista que está erradicando a pobreza numa sociedade extremamente desigual.50 Apesar do alcance limitado da investigação realizada sobre as políticas públicas, cabem ainda algumas observações. Provavelmente seja válido airmar que, conforme a área, há pelo menos uma ou duas décadas, ocorre um processo geral de melhoria ou aprimoramento das políticas públicas, nas três esferas de governo (União, estados e municípios). Como todas essas políticas dependem de recursos materiais, além das capacidades humanas e institucionais, certamente a qualidade das políticas é afetada pelo contexto variável das contas do ente público especíico. Entretanto, as capacidades humanas e institucionais (enquanto capacidades do Estado) podem ser submetidas a um processo de melhoria cumulativa, e esta hipótese leva a presumir que um processo desse tipo está em curso no Brasil. Existem vários indícios nesse sentido. Podem ser citados os esforços realizados para a reforma do Estado durante o governo de FHC, a nova expansão dos serviços públicos nos anos 2000, com a retomada dos concursos em várias carreiras, assim como a criação de novos cargos de nível superior vinculados à gestão pública. Caberia referir também as percepções positivas em pesquisas que registram a opinião de usuários de serviços de saúde e assistência prestados pelo Estado (Bresser-Pereira e Pacheco, 2005). Também é crescente a preocupação na sociedade, expressa por lideranças de diferentes setores sociais e partidos políticos, com a adoção de políticas permanentes em todas as áreas de atuação do Estado (políticas-im) para que o jogo democrático e a alternância de poder político sejam compatíveis com a continuidade na administração pública, com planejamento, projetos e metas de 48. A criação da Unasul vem sendo articulada desde 2004. Em 23 de maio de 2008, em Brasília, representantes de doze países assinaram o tratado de criação (a ser ratiicado pelos congressos dos países-membros). Com a efetivação do tratado, a Unasul constitui-se como organismo internacional em condições de estabelecer medidas concretas. 49. Também vem contribuindo para ampliar as exportações a atuação da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), criada em 2003. A agência tem operado com agilidade para promover a divulgação e colocação de produtos brasileiros nos mercados externos. 50. Nos recentes movimentos de rebelião democrática em países islâmicos do Norte da África e Oriente Médio, o exemplo do Brasil (onde um “homem do povo”, trabalhador operário, se tornara presidente) era referido pelos oradores diante das massas, no Egito, para mostrar que a democracia pode ser um instrumento para atender às necessidades do povo. 60 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil longo prazo – perspectiva estratégica que implica elevado grau de amadurecimento de instituições democráticas e republicanas, capazes de gerar compromissos de Estado reconhecidos como legítimos e defensáveis, enquanto expressão do interesse nacional ou da maioria da população. Evidentemente, o Estado brasileiro precisa evoluir muito e ainda necessita de reformas profundas para materializar essa perspectiva (Accurso, 2007). A hipótese proposta neste ensaio sugere que a CF/1988 estabeleceu o início da transformação do Estado nacional brasileiro, processo que transcorre, desde então, nos marcos de um Estado democrático de direito.51A nova Constituição estabeleceu um regime político democrático e trouxe um grande avanço no que se refere aos direitos e garantias fundamentais.52 Foram assegurados novos direitos sociais cuja consecução proporcionou rendimentos monetários regulares para amplas camadas da população mais pobre, inclusive no meio rural. Os novos direitos trouxeram benefícios a grupos sociais até então excluídos total ou parcialmente dos mercados e/ou da cidadania. Aqui, como airma Anderson (2011), mais importante que o auxílio monetário é a mensagem que vai junto: o Estado brasileiro tem responsabilidade com cada cidadão brasileiro e com direitos sociais, não importando o quão miserável e oprimido ele seja. A Constituição também estabeleceu novos fóruns e instrumentos democráticos, como o plebiscito, o referendo, os conselhos gestores de políticas públicas nos níveis municipal, estadual e federal com representação do Estado e da sociedade civil, formas de participação direta da cidadania na proposição de leis (Silva, 2009).53 A Constituição está ancorada nos valores morais da igualdade, da liberdade, da democracia, do republicanismo, da justiça, da fraternidade, do desenvolvimento humano, da harmonia social, da tolerância e da paz. Convém não subestimar a 51. Embora o texto constitucional lembre, às vezes, uma carta de boas intenções, misturada com um regramento bastante detalhado de múltiplos aspectos da vida social, o conjunto não chega a ser uma aberração. Na verdade, é saudado por muitos juristas como um dos textos constitucionais mais avançados da atualidade. Conforme Abreu (2006), é reconhecido que a CF/1988 trouxe inovações pelo menos em dois aspectos: ao juntar à proteção dos direitos individuais e sociais a tutela dos direitos difusos e coletivos; e ao apresentar os direitos fundamentais antes da organização do próprio Estado. Para os ins da hipótese acerca do Estado brasileiro, aqui sugerida, deve-se considerar a Constituição como expressão de um consenso obtido em certo momento histórico. Seu conteúdo estabelece ou referencia a formação de instituições possivelmente capazes de reformar progressivamente o próprio Estado e modiicar as características da sociedade brasileira. O distanciamento axiológico entre as intenções propaladas e a realidade vivida não é novidade nos textos constitucionais brasileiros, marcados por uma tradição bacharelesca. Contudo, em nome dessas intenções e dos valores que a sociedade airma na Constituição, podem-se viabilizar pactos societários profundamente transformadores. 52. O Artigo 5o da Constituição, que trata sobre direitos e deveres individuais e coletivos, é longo e denso, considerando duas perspectivas: por um lado, a proteção dos indivíduos contra o arbítrio do Estado, demarcando, limitando e proibindo sua ingerência (liberdade negativa); por outro, a autorização e legitimação do poder do indivíduo-cidadão de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) (Joaquim José Gomes Canotilho apud Abreu, 2006). 53. Além de incluir, em seu âmbito, mecanismos de participação no processo decisório federal e local, a CF/1988 concedeu maior poder aos municípios, que estão, em princípio, mais próximos do cidadão. Conforme Silva (2009, p. 802), “a inscrição de espaços de participação da sociedade no arranjo constitucional das políticas sociais brasileiras apostou no potencial das novas ‘institucionalidades’ em mudar a cultura política do país, introduzindo novos valores democráticos e maior transparência e controle social na atuação do Estado no tocante às políticas sociais”. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 61 importância do texto constitucional, inclusive porque indica as aspirações utópicas de uma comunidade nacional. Em consonância com a Constituição, podem ser observadas mudanças na sociedade e no Estado. Na medida em que transcorreu a efetivação dos dispositivos constitucionais que estabeleceram os novos direitos sociais, pode-se constatar que foram ampliadas as bases sociais do Estado, que se tornou mais permeável aos interesses e necessidades do povo (os “de baixo”, na expressão de Florestan Fernandes).54 Uma vez que se airmaram as instituições democráticas, por meio de sua operação sistemática (eleições regulares), bem como do crescente espaço e maior qualiicação da discussão pública dos temas de governo (dentro e fora do parlamento), o Estado brasileiro adquiriu maior transparência e ampliou-se o controle da sociedade civil sobre os órgãos e os agentes públicos.55 Conforme o estudo de Silva (2009), ampliaram-se os espaços de participação social no âmbito do governo federal (conselhos e conferências nacionais em diversas áreas das políticas públicas), indicando que existe um percurso brasileiro de institucionalização de mecanismos de democracia participativa e direta. Apesar das diiculdades para que as deliberações sejam encaminhadas adequadamente e incidam sobre a elaboração das políticas públicas, há um crescente avanço na importância, na representação social, no número e na efetividade dos conselhos e conferências nacionais. São espaços de participação direta da cidadania e de entidades da sociedade civil, além dos agentes públicos, que atuam sobre temas como saúde, direitos humanos, C, T&I, educação, reforma agrária e sustentabilidade ambiental, direitos da criança e do adolescente, biossegurança, cultura, aquicultura e pesca, promoção da igualdade racial, arranjos produtivos locais, esporte, juventude, segurança alimentar, saúde do trabalho, economia solidária, cidades etc.56 54. Obviamente, o Estado permanece comprometido com a acumulação de capital e assegura todos os seus fundamentos jurídicos. Isso deine a natureza capitalista do Estado, que garante, assim, o poder social dos capitalistas. Esse Estado, porém, não existe como um instrumento dessa classe. Antes, representa um “resumo da sociedade” e está marcado pelas contradições inerentes às relações sociais que lhe servem de base (Poulantzas, 1980). As contradições (não apenas de classe) que animam a sociedade civil e sua transformação também se manifestam no nível do Estado e de sua transformação. 55. Vale notar que as “virtudes republicanas” do Estado brasileiro são aqui destacadas somente em termos relativos à própria história da República no Brasil, pois uma comparação com outros países indica que, no Brasil, a corrupção é ainda um problema grave. O problema persiste apesar dos vários esforços de governos, da existência de inúmeras leis e dispositivos de controle, da vergonha de grande parte dos brasileiros e da inconformidade ou indignação manifesta dos principais setores da sociedade. Todos esses fatores têm contribuído para minorar o problema e tendem a produzir um aprimoramento institucional capaz de operacionalizar com maior eicácia aquelas virtudes. 56. Entre os novos espaços de participação e deliberação junto ao governo, cabe referir o CDES, estabelecido junto à Presidência da República e que realiza um debate estratégico sobre o desenvolvimento, pensado como concertamento entre classes. São noventa cidadãos designados pelo presidente para mandatos de dois anos, representando diversos setores da sociedade civil (aproximadamente 45% são empresários), mais treze ministros de Estado. Operando desde 2003, o CDES realiza quatro reuniões plenárias anuais e possui diversos grupos de trabalho (GTs), permitindo um diálogo efetivo da Presidência com os conselheiros. São debatidos tanto encaminhamentos dos ministros quanto propostas dos GTs . As contribuições do CDES para o desenvolvimento incluem seis cartas de concertamento e principalmente a formulação da AND, que resgata o pensamento desenvolvimentista brasileiro e estabelece diretrizes para ação coletiva do Estado e da sociedade, inspirando o conjunto das políticas públicas. 62 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil É preciso avaliar as atuais instituições políticas democráticas brasileiras, com seus 24 anos, em contraste com os cem anos anteriores da história republicana. Elas asseguraram a operação de uma vigorosa democracia de massas, hoje efetivamente consolidada, cujos resultados eleitorais não são contestados por nenhuma força política minimamente relevante no cenário nacional. 57 O sistema não suscita mais o mesmo entusiasmo militante – entre alguns estratos sociais populares e da classe média de inspiração radical – que marcou as primeiras eleições diretas. Adquiriu, no entanto, a solidez da normalidade institucional e estabeleceu a rotina – e talvez o hábito – da sucessão contínua, periódica, de parlamentares e governantes, com subordinação geral de todas as forças políticas que disputam o jogo democrático.58 Em vista disso, tais instituições políticas limitam as possibilidades de um controle exclusivista do Estado por qualquer grupo político ou interesse social setorial, enquanto asseguram um modo de avançar, “dentro da ordem”, em uma transformação concomitante da sociedade e do Estado.59 Em favor dessa interpretação, pode-se observar que a sociedade brasileira conseguiu superar bem o episódio do impedimento do primeiro presidente eleito pelo voto popular. Tratava-se de um “aventureiro”60 que conseguiu derrotar uma ampla coalizão de forças políticas democráticas e progressistas.61 A própria ordem institucional que produzira esse resultado eleitoral desastroso e decepcionante forneceu os instrumentos de superação. Esse episódio, assim como diversos escândalos de corrupção que vieram à tona nas últimas duas décadas, pode desgastar as instituições políticas. Porém, na medida em que o desgaste não se transforma em repúdio à ordem democrática ou em apatia da sociedade, tem lugar a educação política em larga escala, e o aprimoramento institucional é uma possibilidade real. Não deve surpreender, portanto, que, por meio das mesmas instituições, a população tenha conduzido à Presidência, primeiro, o “sociólogo marxista” e, depois, o “líder sindical operário”. A chegada de Lula à Presidência da República, na sua quarta tentativa e contrariando os poderes adversos da grande mídia, é um feito político de grande alcance prático 57. O relativo desprestígio das instituições democráticas, revelado pela condenação popular aos políticos em geral, não chega a se conigurar como aspiração antidemocrática, pois a mesma população revela ampla preferência pelo sistema democrático em relação a outros não democráticos. Contribui para isso a inexistência de forças políticas que contestem os resultados eleitorais ou que tenham o propósito manifesto e a capacidade de subverter a ordem democrática estabelecida. 58. Essas instituições atendem a um importante requisito para viabilizar a democracia, que é a obtenção de adesão aos seus resultados (Przeworski, 1994). 59. Trata-se de uma transformação claramente “não revolucionária”, mas apenas no sentido em que não promove uma ruptura institucional, que é sempre uma possibilidade histórica. O que a torna improvável no contexto brasileiro é a ausência de forças sociais e políticas, tanto à esquerda como à direita, que se apresentem com esse propósito. Apesar das críticas e das aspirações variadas (e eventualmente frustradas) acerca de uma reforma do sistema político no Brasil, todas as forças parecem acreditar nas chances de assumir o poder democraticamente e de realizar assim, pelo menos em parte, seus projetos para a sociedade. 60. Expressão de Visentini (2003, p. 72). 61. Era praticamente a mesma coalizão que havia sustentado, nos anos imediatamente anteriores, a inclusão dos principais direitos sociais e aspectos democráticos na elaboração da chamada Constituição Cidadã. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 63 e simbólico. Chegava ao poder o partido que contribuíra para elaborar a nova Constituição, mas se negara a assinar o texto. Sua eleição pode ser interpretada como uma indicação clara de que existe espaço para o aprendizado político, tanto dos partidos como da massa popular. 4 A MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO O processo de construção de um Estado democrático para o desenvolvimento corresponde à manifestação na esfera estatal do processo de construção da Nação – sociedade nacional integrada que supera o subdesenvolvimento, alterando o padrão de desenvolvimento capitalista. No que segue, cogitou-se acerca das raízes sociais e do sentido da transformação do Estado brasileiro, buscando inspiração nas análises sociológicas sobre o Brasil feitas por Florestan Fernandes (2008, 1975, 1994, 2007). A transformação do Estado brasileiro corresponde a uma transformação da sociedade brasileira. O Estado muda porque a sociedade brasileira mudou. Nas três últimas décadas, a sociedade urbano-industrial já existente experimentou uma evolução marcada por novos protagonistas sociais e políticos. Uma evolução da qual emergiram a nova Constituição e as instituições democráticas brasileiras. Entre os aspectos mais notáveis da mudança social estão a extensão e organização sindical da classe trabalhadora industrial e a expansão do trabalho assalariado. Formou-se o Partido dos Trabalhadores (PT), um partido “operário” de massas (que se airma depois como partido pluriclassista) que chega ao poder de Estado. De outra parte, houve diferenciação e expansão dos setores médios e a formação de uma classe média proissional signiicativa – e ideologicamente cindida. A expansão do ensino superior e da pós-graduação, bem como de certas carreiras públicas, fomentou a ampliação de uma intelectualidade com inclinações genericamente progressistas, referenciadas na democracia republicana. O empresariado nacional que sobreviveu à década perdida e ao “choque” de abertura comercial dos anos 1990 parece muito menos coniante nas virtudes do “livre mercado” e preocupado com o desenvolvimento tecnológico e produtivo.62 Cresceu o contingente de pessoas 62. Diniz e Boschi (2003) mostram o enfraquecimento do empresariado nacional nos anos 1990, em um processo que redundou na recomposição da propriedade e desnacionalização da economia. Após uma fase de relativo consenso em favor da estabilização, com críticas pontuais à forma da abertura comercial, iniciou-se um movimento de redeinição ideológica e política do empresariado. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Empresarial (Iedi) manifestam-se pela redeinição de prioridades em favor da retomada do desenvolvimento e adoção de política industrial. Com a criação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), em 1999, tem início uma nova fase de convergência com o governo. A partir de 2002, as propostas empresariais para o desenvolvimento vão coincidir em linhas gerais com os propósitos das políticas públicas desenvolvimentistas: adoção com urgência de política industrial consistente, de estímulo às exportações e substituição competitiva de importações – visando aos efeitos em cadeia; política de inovação tecnológica, para criação de capacidades e produção de bens de alto valor agregado; aumento de produtividade e expansão do emprego industrial, com reversão da “informalização”; metas de crescimento econômico de 5% a.a.; política de desenvolvimento e integração nacional; ênfase na constituição de grupos empresariais brasileiros de porte mundial; novo marco regulatório para os serviços públicos, com fortes instituições reguladoras e desburocratização do Estado. 64 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil pobres, desclassiicadas, no campo e na cidade, e apenas nos últimos anos o emprego formal cresceu mais que as ocupações informais. Cresceu também a presença de indivíduos empreendedores entre as classes inferiores, proliferando os pequenos negócios. A recente melhoria na distribuição da renda ampliou a dimensão relativa da “classe média”, o que expressa o aumento da capacidade de consumo da maior parte da população, cujo peso no mercado não pode mais escapar aos cálculos de valorização dos capitais nacionais e forâneos. A transformação social desdobrou-se em uma diversidade de movimentos sociais, envolvendo as lutas das mulheres, dos negros, dos sem-terra, dos sem-teto, dos índios, mas também dos grupos religiosos, conservadores ou não, da classe média proissional, de consumidores (estratiicados por renda, padrão e/ou setor de consumo), de pequenos agricultores e de grandes produtores rurais, de empresários de todos os tipos e setores. Enim, como expressão do lorescimento de uma sociedade democrática pluralista, diversos movimentos sociais eclodem, setores, grupos e classes manifestam seus interesses especíicos e gerais, participam no debate público e passam a se relacionar com o Estado de nova maneira. A hipótese desenvolvida neste estudo sugere que, no bojo dessas transformações, estão se conigurando as bases sociológicas de um projeto nacional de desenvolvimento e, do mesmo modo, as condições de formação de uma coalizão social abrangente, em condições de imprimir uma direção política especíica (novo-desenvolvimentista) e duradoura, na condução do Estado. Estas bases sociológicas e as condições para se formar uma coalizão social abrangente dizem respeito à possibilidade da convergência de interesses entre amplos setores da classe trabalhadora urbana, trabalhadores rurais e produtores rurais de diferentes estratos sociais, parcelas da classe média, especialmente a burocracia pública, e frações da classe capitalista. Convergência em torno de um padrão nacional de desenvolvimento capitalista autônomo, capaz de prover as necessidades básicas de toda a população, estender o consumo de bens duráveis para parcelas crescentes da mesma e ampliar a efetividade de direitos e a realização de capacitações. A interpretação sociológica de Florestan Fernandes sobre o Brasil fornece outros elementos para avaliar as características e ambiguidades do processo de transformação social em curso. Por um lado, é uma transformação que se processa sem rupturas institucionais, sem ameaçar claramente os interesses econômicos constituídos dos estratos sociais muito ricos e dos grupos econômicos que ganham com o caráter dependente do capitalismo brasileiro.63 Por outro, a emergência dos 63. Esse aspecto também é assinalado por Novy (2009), que observa a transformação contemporânea sobre o pano de fundo histórico de “revoluções conservadoras e ampliações progressivas”. O governo de Lula é examinado diante da relação tensa entre mudança e permanência, entre modernização conservadora e revolução burguesa, de um lado, e capitalismo estatal social-democrático, de outro. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 65 trabalhadores como força social e política expressiva amplia o caminho possível de uma “revolução dentro da ordem”. Na análise de Florestan Fernandes, a “revolução dentro da ordem”, que conduz ao desenvolvimento capitalista nacional autônomo, está bloqueada pela dominância de uma burguesia associada, “classe privilegiada” que menospreza o trabalho e tacitamente recusa a normalidade da estratiicação em bases puramente econômicas e competitivas (Fernandes, 2008). O domínio burguês da sociedade civil bloqueia a revolução nacional e a revolução democrática, em vista das escolhas de uma burguesia associada, que conduzem ainal a uma “revolução burguesa” autocrática e antipopular, uma verdadeira contrarrevolução, que se concretiza com a ditadura militar a partir de 1964 (Fernandes, 1975, cap. 5). Florestan Fernandes indica que, consumada a “revolução burguesa” no Brasil, “existem três alternativas claras para o desenvolvimento econômico ulterior da sociedade brasileira, as quais podem ser identiicadas por meio de três destinos históricos diferentes, contidos ou sugeridos pelas palavras ‘subcapitalismo’, ‘capitalismo avançado’ e ‘socialismo’”. (Fernandes, 1975, p. 13). A hipótese tratada sugere que a evolução da sociedade brasileira nos últimos trinta anos requalificou as possibilidades daqueles três destinos históricos. Ampliaram-se as chances de uma passagem do primeiro para o segundo entre aqueles destinos possíveis, ainda que as possibilidades do terceiro pareçam mais remotas do que já foram. Nos termos de Florestan Fernandes, airma-se que, apesar de, historicamente, desde a emergência da sociedade de classes, as reservas de opressão e de repressão terem sido mobilizadas para solapar a emergência de uma “oposição de baixo para cima”, difícil de controlar, as massas populares conquistaram, de fato, um espaço político próprio, dentro da ordem institucional “burguesa”. Os trabalhadores assalariados compõem a base social do Estado e imprimem a marca de seus interesses de classe na sua condução. A política de classe “da burguesia”, que conduziria ao capitalismo avançado, ganha possibilidade de efetivação pela força dos interesses da classe trabalhadora, que polariza a coalizão de classes em favor desse desenvolvimento. Conforme Florestan, apesar de o Estado “ser mais um instrumento econômico de classe que um órgão da ‘vontade nacional’, a burguesia não o explora nos limites de programar, financiar e realizar o grande salto capitalista”. Seu imobilismo se explica pela polarização ideológica do liberalismo econômico, pelo receio de que uma programação econômica pudesse ameaçar seus negócios sem relevância para o desenvolvimento nacional, pela expectativa de que o Estado poderia interferir nos padrões vigentes de distribuição da renda e pela pressão externa. Na medida em que se fortalecem os interesses dos trabalhadores assalariados e dos setores populares na sociedade civil, poderiam ser superadas as limitações da burguesia 66 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil nacional associada, cujo “imobilismo impede a utilização esclarecida e audaciosa do Estado, mesmo para a realização de uma ‘política de classe’ consistente com a natureza e móveis do capitalismo” (Fernandes, 2008, p. 86). Segundo Florestan Fernandes, os trabalhadores (classe baixa urbana) estão em tensão com a ordem econômica do subdesenvolvimento, na medida em que esta limita o crescimento econômico. Ao airmar sua condição de classe, esse grupo social nega o subdesenvolvimento. Em 1967, Florestan julgava que não estava historicamente posta a questão da negação de sua condição de classe e pode-se sustentar que, de igual modo, não se põe na atualidade. (...) a classe baixa urbana vincula o seu destino social ao lorescimento da civilização vigente, mas sem precisar comprometer-se, como e enquanto classe, com os mecanismos e os objetivos da associação econômica dependente, que une pelo topo as classes altas, as classes médias e os núcleos hegemônicos externos. Portanto, ela é livre, como e enquanto classe, para se identiicar com os alvos mais profundos da autonomização econômica, social e política da sociedade nacional, os quais em vários pontos coincidem com a realização de seu destino como classe (Fernandes, 2008, p. 70-71, grifo nosso). A limitação ao crescimento econômico ameaça ainda mais as condições de vida da classe baixa urbana, o que poderia projetar o elemento de tensão existente em contextos histórico-sociais nos quais ele poderá tornar-se explosivo. Nesse caso, Fernandes (2008, p. 71) argumenta que a propensão a fazer a “revolução dentro da ordem”, pelo desenvolvimento, seria substituída por outros tipos de comportamento inconformista e por soluções verdadeiramente revolucionárias. Em termos estruturais, o desenvolvimento econômico, como revolução social, constitui uma fórmula conservadora. Destarte, a revolução burguesa no Brasil não realiza sequer a fórmula conservadora e consolida-se como contrarrevolução. Sugere-se, como interpretação, que, devido aos avanços reais no período que se abre com a redemocratização, os impasses, desaios e possibilidades políticas não são precisamente os mesmos já postos na história republicana, previamente à “consolidação da revolução burguesa” no Brasil. Se a essência dos impasses e desaios segue sendo a mesma, as possibilidades se modiicaram. A crescente força social e política dos trabalhadores pode aprofundar os mecanismos de uma ordem social competitiva, sem privilégios; poderá ser capaz, enim, de “descongelar a expansão da ordem social competitiva”, para que os direitos do trabalho se façam valer frente ao capital e para que o conlito entre as classes se expresse, institucionalmente, como elemento dinamizador da sociedade. A possibilidade de um salto histórico na direção do capitalismo avançado em uma sociedade subdesenvolvida requer o pleno estabelecimento da ordem social competitiva. Contudo, isso também signiica dizer que tal salto histórico implica o aprofundamento da democracia: A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 67 (...) o único meio possível para revolucionar a sociedade civil, adaptando-a às relações de produção imperantes e ao grau de desenvolvimento capitalista que apresenta. (...) [A]s classes trabalhadoras carecem da democracia para completar o circuito de seu desenvolvimento independente como classe social e para adquirir pleno acesso a todos os direitos civis e políticos que lhes são tirados na prática (Fernandes, 2007, p. 183-184). Uma forma política de democracia na qual a maioria – não a “maioria eleitoral”, mas a maioria dos destituídos, oprimidos e excluídos – ganhe peso e voz na sociedade civil, presença ativa na participação e controle das estruturas do Estado, o caráter de uma força histórica decisiva na liquidação do nosso execrável antigo regime (incorporado ao desenvolvimento capitalista e ao regime de classe) e na construção de uma nova sociedade (Fernandes, 2007, p. 24). A relação histórica [das classes trabalhadoras] com a democracia permite situá-las como classes revolucionárias, pois a sua necessidade política de democracia não se esgota com a revolução dentro da ordem, apenas se inicia com ela (...) Os trabalhadores lutam por uma democracia de componentes mistos, burgueses e proletários – como dizem os juristas, uma “democracia de conteúdo social” –, o que quer dizer que são os únicos paladinos da revolução democrática (Fernandes, 2007, p. 184). Contudo, para Florestan Fernandes essas transformações possíveis não podem se limitar à esfera do Estado. [N]ão basta “transformar o Estado”. É necessário transformar concomitantemente a sociedade civil existente, para impedir que uma minoria continue a manter indeinidamente certas posições-chaves, estratégicas para o exercício da monopolização do controle do Estado. (...) [O] uso social do Estado é parte de uma relação de forças sociais contraditórias. Os de baixo podem conquistar as posições-chaves e estabelecer novas estratégias sociais que possibilitarão a inversão do uso social do Estado, seu controle externo pela maioria e intensidade crescente em sua democratização institucional e funcional. O grande dilema brasileiro ergue-se nesses limites. (...) é no plano da luta de classes que deverá se ferir o combate decisivo para a transformação da sociedade civil e do Estado (Fernandes, 2007, p. 264). Nessa perspectiva, a transformação em curso levaria a algum arranjo social semelhante à social-democracia europeia (Przeworski, 1989).64 O desenvolvimento 64. A transformação brasileira seria ainda mais formidável, porque tem de superar a questão da inclusão social plena de mais de 25 milhões de pessoas nos mercados de trabalho e de consumo. O modelo europeu de regulação social do capitalismo (regulação fordista) revelou uma consciência muito limitada sobre formas de vida e de trabalho em sociedade, baseou-se em padrões de produção e consumo fomentados pelo individualismo possessivo e sem maiores preocupações ecológicas, foi viabilizado por formas autoritárias de ação estatal (Novy, 2009). O peril da mudança possível no padrão capitalista de desenvolvimento não é muito diferente do que seria a realização do antigo Programa Esperança e Mudança, proposto pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) nos anos 1980. Tratava-se de um programa para o desenvolvimento capitalista com distribuição da renda, justiça social e um sistema democrático de poder. Um programa que, vale a pena lembrar, era defendido ou mesmo elaborado por economistas e cientistas sociais como José Serra, Maria da Conceição Tavares, Luciano Martins, Pedro Malan, Carlos Lessa, João Manuel Cardoso de Mello, FHC, Antônio Barros de Castro e Celso Furtado; um programa que tinha o aval de políticos como Ulysses Guimarães, Teotônio Villela, Severo Gomes, Franco Montoro, Pedro Simon, Jarbas Vasconcelos, Miguel Arraes... As ideias desse programa e os ideais democráticos sustentados na luta contra a ditadura, por meio dos parlamentares do PMDB – logo alguns seriam do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) –, com as novas demandas populares expressas principalmente pelo PT inspiraram a coalizão que sustentou os principais avanços políticos, sociais e democráticos da nova Constituição. 68 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil nacional brasileiro pode apoiar-se em distintos padrões tecnológicos, de produção e consumo; pode apoiar-se em instituições democráticas de novo tipo, que permitam a formulação deliberativa dos propósitos e das políticas para o desenvolvimento. A peculiaridade do modelo brasileiro pode repousar em uma concepção democrático-participativa que se materializa em arranjos institucionais de participação social na gestão pública, complementares aos processos democráticos parlamentares.65 Hoje, parecem maiores as possibilidades de uma mudança “construtiva” no capitalismo brasileiro, justamente quando o principal partido da esquerda “socialista” assume a direção política do Estado nacional. Nessa condição, o êxito da coalizão política e social, polarizada pela esquerda, em formular e realizar um programa de “transformação produtiva com equidade” viria a mostrar que o capitalismo brasileiro pode significar outras coisas que não exclusão social, desigualdade extrema, privilégio de classe, o poder sem limites dos ricos. Tal transformação, com essa direção política, surge como possibilidade histórica também porque essa esquerda não pretende mais, ao menos por enquanto, “derrubar o capitalismo”, nem o governo. De fato, esse programa implica “desenvolver o capitalismo”.66 Para tanto, e para alcançar a direção do Estado, foi preciso um aprendizado político do PT, do próprio Lula e da esquerda em geral. Um aprendizado que implicou identiicar as possibilidades de poder conforme a correlação de forças, em vez de apoiar-se puramente na airmação da vontade. Aprendizado também no sentido de formular um programa realista para condução do Estado e a transformação do país, em lugar de se ixar no “programa ideal” para essa condução. Algo que se expressa também na alteração da política de alianças e no reconhecimento de que é preciso governar com a diferença, convivendo e eventualmente negociando, nos marcos institucionais existentes, com forças políticas que representam outros interesses, com apoio eleitoral. Políticos ou partidos de ideias antipopulares e/ ou condutas pouco ou antirrepublicanas são parte inescapável da atual política democrática e representam legitimamente parcelas da população, porque atuam dentro das regras estabelecidas. Regras que não vêm impedindo, mas, ao contrário, vêm permitindo a mudança da sociedade, das condições de vida do povo e do caráter social do Estado, por meio dos mecanismos de uma democracia de massas. 65. No mesmo sentido, Vianna (2008, p. 55) entende que caberia à esquerda “traduzir o nacional para a linguagem das grandes maiorias, a serem mobilizadas em torno das instituições e procedimentos da democracia política, bem como fazendo da história uma matéria-prima para a invenção e não um simples acervo de práticas a serem repetidas”. 66. No mesmo sentido, Novy (2009, p. 126) considera que o “domínio social-democrata” do PT pode levar a um “resultado paradoxal: um capitalismo nacional torna-se, pela primeira vez, viável, e, em consequência, a posição periférica no capitalismo mundial é superada, quando admite um mínimo de participação aos trabalhadores e aos pequenos agricultores. Mais uma vez, lutas sociais e mobilização política têm o efeito de alavancar as contradições capitalistas a um plano mais elevado”. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 69 5 OS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO Nesta última seção, são acrescentadas algumas observações conclusivas. Em primeiro lugar, sobre as possibilidades de retrocesso no processo de construção nacional (e de construção das capacidades desenvolvimentistas do Estado democrático). A construção sugerida pela hipótese apresentada é incipiente, constitui-se verdadeiramente num desaio à sociedade brasileira e corresponde a uma entre várias possibilidades abertas no processo histórico. Para indicar o caráter contingente e aberto desse processo, são mencionados os impasses atuais dessa construção e os obstáculos que ainda estão postos ao desenvolvimento. Por im, na perspectiva de uma “sociologia crítica e militante”, enunciam-se as tarefas ideológicas e políticas que se apresentam para os protagonistas da transformação. A possibilidade de ocorrer uma reversão nessa transformação social em curso pode ser formulada em três níveis: instituições democráticas, capacitação do Estado e equidade social. Em qualquer desses níveis, a reversão é aparetemente difícil e improvável. Não parece haver qualquer força política relevante ou algum setor na sociedade brasileira que pretenda realizar suas pretensões de poder ou fazer valer seus interesses econômicos por meio da destruição ou regressão das instituições democráticas. É mais provável que tenham lugar processos de mudança institucional que ampliem a esfera democrática e o poder popular sobre a condução do Estado. Houve uma melhoria da qualidade das políticas públicas, maior qualiicação da burocracia, mais transparência do Estado e uma ampliação do controle público sobre suas ações, gastos etc. Não parece haver motivos para acreditar que esse processo vá estancar ao invés de prosseguir, pois assim exigem as demandas publicamente expressas de amplos e diversos setores da sociedade. No que se refere aos progressos sociais, no sentido da redução da desigualdade e da erradicação da pobreza, obviamente há muito que avançar, mas pode-se cogitar que um governo com outro projeto político e social poderia reverter essa progressão ou provocar algum dano ao processo. Contudo, o sentido do movimento – desconcentração da riqueza e da renda – parece difícil de ser contrariado, ao menos abertamente, por algum projeto político que pretenda disputar democraticamente o poder. O incrível peso eleitoral dos pobres, contraposto ao grau de desigualdade econômica, para não falar da injustiça política, fazem do Brasil uma democracia diferente de qualquer outra no norte, mesmo aquelas em que as tensões de classe foram intensas no passado ou tiveram um movimento trabalhista mais forte. A contradição entre as duas magnitudes apenas começou a operar sobre si mesma (Anderson, 2011). A operação regular do sistema democrático brasileiro, com todas as suas limitações e imperfeições, parece estar criando uma consciência popular sobre as possibilidades de realização de importantes aspirações de ascensão social por meio 70 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil das escolhas políticas democráticas que estabelecem e modiicam governos. Como ilustram as eleições presidenciais brasileiras em 2010, a necessidade de aprovação eleitoral popular deve implicar que os projetos políticos viáveis se apresentem “igualmente” favoráveis ao crescimento econômico, sem inlação mas com aumento do SM e melhorias distributivas. Além de também favoráveis aos programas de assistência social, talvez mesmo prometendo sua ampliação ou aperfeiçoamento. É provável que não esteja em questão a reversão do processo social em curso, mas certamente existem questões relativas ao seu ritmo e ao alcance das mudanças, seja em nível do Estado, seja em nível da estrutura econômica e social. As mudanças em curso estão conformes à CF/1988 e à vontade democrática da grande maioria dos brasileiros, no sentido de melhoria de suas próprias condições de vida. A ascensão social de parte da população brasileira nas duas últimas décadas foi possível pela conquista da estabilidade dos preços e pelo retorno do crescimento econômico. Não há como voltar à situação dos anos 1980 ou 1990, de elevada inlação e crescimento ínimo, senão contrariando a vontade popular e também os interesses econômicos de quase todos. Não obstante, o desenvolvimento econômico, a construção nacional e a transformação do Estado brasileiro defrontam-se com impasses e obstáculos em diversas áreas, conforme já icou sugerido em alguns momentos deste ensaio. Os impasses indicam situações ou problemas em que as forças sociais e os interesses em jogo não encontraram ainda alguma deinição. A resolução de impasses requer alteração no equilíbrio das forças e a formação de alguma hegemonia que mova a situação ou resolva o problema. Os obstáculos indicam problemas graves que, se não forem enfrentados e realmente “removidos”, vão ganhar uma dimensão capaz de inviabilizar a construção nacional. Sem dúvida, existe o impasse referente à recomposição das forças sociais e políticas, no sentido de conigurar uma nova coalizão de poder. Sem a resolução desse impasse, não há como o Estado sustentar uma visão de futuro para a sociedade brasileira e realizar as políticas necessárias ao desenvolvimento. Deve se conformar uma nova coalizão de poder, que formule uma estratégia nacional de desenvolvimento e conquiste a hegemonia na sociedade (Bresser-Pereira, 2006). Somente isso permitirá derrotar as forças sociais e políticas conservadoras, destravar o crescimento, mediante a reforma do regime monetário, a subordinação das inanças à produção e da taxa de câmbio ao desenvolvimento produtivo nacional.67 67. Nos termos propostos por Erber (2011), airma-se que seria provavelmente necessário derrotar ou subordinar a coalizão que sustenta a convenção de desenvolvimento que o autor denomina institucionalista-liberal. O autor reconhece que as coalizões em disputa estão em transformação. O impasse a ser superado implica submeter uma ampla e poderosa constelação de interesses, estruturada ao longo do tempo, em favor da combinação de juros altos com câmbio valorizado. Essa coalizão sustenta a política macroeconômica, especialmente a política monetária, e tem como pilar a manutenção da estabilidade de preços. Ela usa seu poder para barrar as políticas que provocam mudanças estruturais e alteram a distribuição de riqueza e renda, assim como os preços relativos, aumentando o risco de inlação. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 71 A realização da reforma do sistema político e suas possibilidades contraditórias constituem outro impasse importante. Seria imperioso que a reforma reforçasse os vínculos territoriais do processo político (distritos com isonomia representativa), ampliando os poderes locais, os procedimentos participativos, o controle sobre os mandatos, a importância dos programas partidários e o enraizamento social dos agentes políticos. Permanece o impasse histórico da reforma iscal, que tem perpetuado um sistema profundamente injusto e irracional. Além disso, apesar das melhorias assinaladas, as capacidades técnicas e operacionais do Estado nacional permanecem claramente insuicientes. A coniguração atual do Estado ainda é um obstáculo a ser superado, na medida em que não viabiliza economicidade e eiciência dos serviços e ações públicas e também não impõe o respeito e o cuidado com as coisas públicas. A reforma do Estado tem de estar na agenda das políticas de desenvolvimento por muito tempo. A reforma agrária e a questão da sustentabilidade ambiental estão longe de serem solucionadas. São dois impasses cuja resolução será deinidora do caráter específico do novo padrão capitalista brasileiro. O colapso do sistema viário nas metrópoles brasileiras certamente é um obstáculo ao desenvolvimento, mas principalmente é um alerta para a inviabilidade de um padrão de consumo de massas centrado na propriedade e no uso do veículo individual. O deficit histórico do país na formação educacional e cultural do povo é obviamente um importante obstáculo ao desenvolvimento nacional, especialmente porque a aprendizagem, o domínio e a criação de conhecimentos, de um lado, e o envolvimento participativo dos cidadãos, de outro, são tão necessários. Outro obstáculo está na esfera da comunicação (e informação) pública de massas, na forma de um poder desproporcional das grandes empresas que controlam os principais veículos de mídia. A remoção desse obstáculo é favorecida pela expansão de novos veículos (internet), pela ampliação da consciência popular e pela atuação de muitos indivíduos, associações e grupos informais na constituição de uma rede de contrainformação. O maior obstáculo à construção nacional é o que se pode chamar de progressão da barbárie, que, paralelamente, transcorre na sociedade brasileira. A barbárie está expressa na extensão da criminalidade, na violência social, urbana e rural, na expansão do tráico e do consumo de drogas. Ela decorre fundamentalmente da falta de oportunidades para a grande maioria, do desperdício das vidas e das potencialidades imensas do povo brasileiro, em contraste com a grande riqueza e as imensas possibilidades de realização pessoal de uma minoria muito restrita. A progressão da barbárie transcorre com a degradação moral e a perda dos valores que referenciam um convívio social harmônico e favorável ao desenvolvimento dos indivíduos. A remoção desse obstáculo talvez seja o desaio mais decisivo para 72 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil as políticas públicas e para a capacidade do Estado, requerendo ações estratégicas integradas nas áreas de saúde, assistência social, formação cultural e proissional da juventude e segurança pública. A consideração de obstáculos, impasses e limites para a transformação social do desenvolvimento no Brasil somente estará completa quando integrar-se a uma avaliação do contexto internacional. Nesse sentido, será importante ter em conta as características da atual fase do capitalismo mundial (“inanceirização” da riqueza) e os efeitos da ascensão produtiva e comercial da China. Essa última implica ameaças severas à produção industrial nacional nos mercados interno e externo, enquanto fortalece setores econômicos de base primária, marcados pelo conservadorismo social e político. Tais condições sugerem que os caminhos de menor resistência para o crescimento econômico tendem a inviabilizar o desenvolvimento, ao fortalecerem o conservadorismo e as tendências rentistas associadas às reservas de recursos naturais. Contudo, essa é uma questão ainda em aberto, pois tais setores não podem gerar o volume de emprego necessário para absorver o crescimento da população economicamente ativa (PEA). Nem são, obviamente, capazes de fundamentar um crescimento econômico autônomo em longo prazo ou um genuíno processo de desenvolvimento. Ademais, a indústria nacional percebe as ameaças e é levada a uma reação. Tal reação pode ser um dos componentes necessários à formulação de um estratégia para o desenvolvimento industrial. É precipitado acreditar que será impossível a superação dos impasses e a remoção dos recém-referidos obstáculos ao desenvolvimento brasileiro. Identiicar e realizar os avanços possíveis, a cada momento, num processo cumulativo, constituem uma parte dos desaios do desenvolvimento. É certo que os rumos estarão deinidos pelas lutas sociais, pela consciência e pelo comportamento dos sujeitos coletivos e individuais que disputam a dominância cultural na sociedade brasileira. É nesses termos que se apresentam as possibilidades de uma nova coalizão social “desenvolvimentista” no Brasil, uma construção que representa um desaio basilar para consecução do desenvolvimento nacional. Tendo em vista contribuir com tal objetivo, ao inalizar este capítulo busca-se fazer jus à perspectiva de Florestan Fernandes na airmação de uma “sociologia crítica e militante”. Tratou-se de enunciar aquelas que parecem ser as principais tarefas ideológicas e políticas que estão postas para os protagonistas da transformação social em curso no Brasil. São quatro tarefas que se encontram entrelaçadas e que se resumem nos enunciados: radicalizar o desenvolvimentismo, radicalizar a democracia, reformar o Estado e ampliar o horizonte da imaginação institucional vinculada aos valores que inspiram a transformação social. Neste estudo vai-se dedicar especial atenção à primeira tarefa, porque ela determina o sentido das demais. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 73 A ideia de que é preciso radicalizar o desenvolvimentismo implica aceitar os questionamentos suscitados pela própria experiência histórica que reitera o subdesenvolvimento. Resta saber qual tipo de desenvolvimento e como e para quem será feito esse desenvolvimento. Sabe-se que o desenvolvimento econômico é um fenômeno inerente ao modo de produção capitalista, mas as suas realizações na história possuem um leque diverso de possibilidades societárias. Para enfrentar as tarefas históricas da atualidade em um país subdesenvolvido, é fundamental vincular ao desenvolvimento um sentido normativo que pode ser encontrado no vínculo do desenvolvimento com a emancipação humana, vale dizer, com a expansão das liberdades substantivas (efetivação de direitos e extensão das capacitações) dos indivíduos. 68 Nessa perspectiva, o desenvolvimento confunde-se com a construção de uma sociedade nacional integrada e é o resultado de uma construção nacional de base ampla.69 Os critérios normativos e os ins estratégicos do desenvolvimento nacional devem ser socialmente construídos e legitimados por meio de discussão e debate públicos,70 conigurando um processo de desenvolvimento deliberativo (Evans, 2003).71 A formulação desses critérios e de metas do desenvolvimento, bem como a elaboração e execução das políticas públicas desenvolvimentistas, via processos democráticos deliberativos, devem operar como um antídoto às tendências tecnocráticas e excessivamente centralizadoras do desenvolvimentismo. Pode-se conceber que tal formulação transcorra por intermédio do parlamento e de processos deliberativos 68. A agenda do desenvolvimento humano (“abordagem das capacitações” ou “desenvolvimento como liberdade”) proposta por Amartya Sen é de grande relevância para a esquerda, desde que ela possua como motivação central uma transformação social que viabilize o pleno desenvolvimento dos indivíduos em coletividade. Além disso, a abordagem de Sen (1989; 2000) estabelece um campo comum de disputa hegemônica, centrado no desenvolvimento humano, com outros sujeitos sociais e individuais de inclinações ideológicas liberais ou conservadoras. 69. Sobre o conceito de sociedade nacional integrada, ver Myrdal (1967, cap. 3; 1962, cap. 3 a 7). 70. Não é preciso muita elaboração ou imaginação para deinir critérios normativos de ampla aceitação na sociedade. Por exemplo, a CF/1988 estabelece os objetivos do Estado brasileiro, que se constituem na estruturação de “uma sociedade livre, justa e solidária; na garantia do desenvolvimento nacional; na erradicação da pobreza e na redução das desigualdades sociais e regionais; e na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (...)”. Esses objetivos estão expressos em direitos e deveres, que precisam se materializar por meios institucionais que não estão plenamente estabelecidos. 71. A democracia deliberativa implica o uso público da razão para a sustentação das diferentes ideias em disputa (Habermas, 1995). Deliberar é o processo dialético de elaboração no qual são construídos novos argumentos que fundamentam uma (consenso) ou mais alternativas, partindo-se de um número prévio superior indeinido de ideias alternativas participantes da disputa democrática. Essa noção é coerente com a resposta de Amartya Sen ao “teorema da impossibilidade de Arrow”, segundo o qual não é possível a formulação de uma vontade coletiva ou a obtenção de uma solução democrática inequívoca a partir das preferências individuais, pois ocorrem impasses insolúveis em que as soluções para os problemas de escolha social variam segundo as formas de apresentação das alternativas e de condução do processo de escolha (são manipuláveis). Sen (1999) argumenta que a escolha social é possível com a adoção de uma base informacional mais ampla, que pode advir por meio do diálogo e conhecimento recíproco das alternativas em disputa. Os indivíduos podem reformular suas preferências e escolhas ao longo do processo deliberativo. A noção de desenvolvimento deliberativo implica processos e instituições que permitam a deliberação quando se trata de alocar recursos públicos, deinir diretrizes e formas de ação públicas, individuais ou coletivas para o desenvolvimento. 74 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil em outras esferas institucionais, nos diferentes níveis territoriais do poder público, embora a esfera nacional tenha um caráter proeminente.72 Além da instrumentalização do Estado, a mobilização da sociedade nacional, no todo ou em parte, é outra característica encontrada nos processos históricos de desenvolvimento. Precisamente por isso, porque é preciso mobilizar indivíduos, elites, grupos sociais e instituições, a formação de uma ideologia desenvolvimentista é elemento importante do processo (Gerschenkron, 1973). O desenvolvimentismo e o Estado desenvolvimentista aparecem aqui como uma ideologia mobilizadora e uma força prática realizadora dotadas de critérios normativos que permitem direcionar o crescimento econômico. Essa ideologia fomenta a formação de uma vontade coletiva nacional, que se objetiva no pacto de metas de desenvolvimento humano, associadas ao crescimento econômico ambientalmente sustentável e à desconcentração da renda. A formação dessa vontade coletiva não pode ser considerada como implausível ou inalcançável, pois já se têm exemplos, hoje, na sociedade brasileira, de ixação de metas e diretrizes de políticas do Estado que expressam a existência dessa vontade. É o caso da meta do governo federal de erradicação da pobreza extrema, que conta com amplo apoio social. As regras para a elevação real do SM também expressam uma deliberação social de cunho redistributivo que se viabiliza por meio da política. Radicalizar o desenvolvimentismo signiica vincular estreitamente o crescimento econômico e as políticas públicas pró-crescimento à melhoria das condições de vida da maioria da população. Isso deve corresponder também à percepção da sociedade acerca dos objetivos e políticas desenvolvimentistas. O fundamento material das mudanças sociais implicadas na construção nacional é o desempenho produtivo do sistema capitalista nacional, que precisa ampliar a produtividade do trabalho e do capital. Portanto, os esforços nesse sentido devem se tornar uma prioridade social nacional, e deverá ocorrer um reconhecimento crescente do papel decisivo do Estado no planejamento e execução de políticas públicas, especialmente em áreas críticas para o desenvolvimento. Pelos interesses do capital e do trabalho nacionais, o Estado terá legitimidade para realizar políticas que ampliem o domínio de tecnologias produtivas e o alcance de mercado da produção nacional, favorecendo a formação de empresas brasileiras mundialmente competitivas. A radicalização sugerida implica a construção de um ideário capaz de mobilizar a sociedade e orientar a ação do Estado, de modo a tensionar e talvez conter certas tendências negativas da acumulação capitalista em crescimento acelerado. O caráter endógeno do desenvolvimento (Furtado, 1984) signiica que a formulação desse ideário tem suas bases na cultura nacional. Assim, tal 72. A experiência histórica indica que o desenvolvimento é também um processo de luta social e de tensão (ou conlito) entre Estados-nação, o que faz do Estado nacional um protagonista imprescindível (Fiori, 1999). A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 75 ideário possui referências históricas que fundamentam os possíveis avanços em sua construção. Importa aqui assinalar novamente o caráter decisivo de uma ideologia nacional e desenvolvimentista, porque é preciso disputar consciências e, assim, afetar positivamente os níveis de integração e de solidariedade moral existentes na sociedade brasileira. Conforme Fernandes (2008, p. 53), “tanto os ‘interesses univocamente econômicos’ quanto o ‘conlito de classe’ só podem manifestar-se como fatores de integração e de mudanças da ordem social quando eles encontram suporte em formas de consenso e de solidariedade (de alcance grupal ou nacional)”, isto é, uma forte integração da solidariedade moral em nível nacional. Entretanto, somente o vínculo com as aspirações populares de melhoria da vida poderá resgatar o desenvolvimentismo como ideologia eicaz, de mobilização da sociedade. Uma segunda tarefa político-ideológica atualmente posta aos protagonistas da transformação do desenvolvimento no Brasil consiste em radicalizar a democracia, tal como já se indicou ao longo do ensaio de interpretação realizado neste capítulo. Resumidamente, isso signiica consolidar a democracia política e aprimorar suas instituições no sentido do republicanismo. Signiica também estender a cidadania e envolvê-la na construção das políticas públicas, de modo a institucionalizar mecanismos de controle social sobre o Estado e de participação direta da população. A terceira tarefa político-ideológica para superar os desaios do desenvolvimento é reformar o Estado – reconhecidamente, a tarefa menos empolgante, mas absolutamente necessária para a superação do subdesenvolvimento.73 O sentido geral dessa reforma deverá ser a construção de capacidades estatais que permitam a formulação das alternativas da racionalidade econômica, o cuidado civil com a coisa pública, o planejamento e a apreciação da eiciência das políticas públicas em termos de metas sociais estabelecidas em âmbitos comunitários, locais, regionais e nacional. O caminho das reformas progressivas do Estado supõe a possibilidade do aprimoramento institucional pela via democrática. Pode-se concluir com a proposição da quarta e última das principais tarefas político-ideológicas que estão postas aos protagonistas da mudança social do desenvolvimento no Brasil. É necessário ampliar o horizonte da imaginação institucional vinculada aos valores que inspiram a transformação social. Isso não será possível sem a emergência de um novo pensamento de esquerda, vale dizer, uma nova abordagem da transformação social que promove a emancipação e a liberdade humanas. O pensamento que propõe a transformação social e a nova sociedade não pode ter como única referência os modelos históricos do passado, sejam os da luta de classes e da revolução política, sejam os do desenvolvimento capitalista realizado. 73. Segundo Evans (1995, p. 156), “reconstruir o Estado é uma tarefa amorfa e frustrante, um projeto para décadas, se não para gerações. Apesar disso, a capacidade ampliada do Estado continua a ser uma exigência da política econômica eicaz (...). Buscar outra alternativa seria uma forma perigosa de utopismo. Transformar o Estado de problema em solução deve ser um item central em qualquer agenda política realista para o Terceiro Mundo”. 76 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Os temas da transição ao socialismo seguem desaiando a imaginação da esquerda, na medida em que os modelos históricos realizados implicaram de fato uma regressão nas formas de sociabilidade e evidenciaram a virtual impossibilidade prática de abolir a mercadoria moderna. Um novo pensamento de esquerda deveria também reconhecer a necessidade de pensar a realidade histórica não apenas em termos de interesses de classe dados a priori, mas também, por um lado, nos termos das outras clivagens socialmente relevantes (geracionais, regionais, étnicas, de gênero etc.) e, por outro, como composição dinâmica de interesses de classes e grupos, em transformações sociais virtuosas que se apresentam como “jogos de soma positiva”, propiciando “retornos constantes ou crescentes” somente após algumas “rodadas”. Na superação do subdesenvolvimento e na proposição de uma transformação social que promova o desenvolvimento humano, a esquerda só pode cumprir sua tarefa se aprender a repensar e a reconstruir as instituições que hoje deinem a economia de mercado e a democracia política. Instituições a que a social-democracia sempre se resignou. Para isso, deve a esquerda romper de vez com o dirigismo estatal. Ao romper com ele, deve também recusar-se a aceitar o mercado e a democracia tal como eles se apresentam atualmente. Deve entendê-los e organizá-los de outra forma” (Unger, 2008, p. 31). A imaginação institucional vincula-se estreitamente aos valores que fundamentam a transformação social almejada, o “desenvolvimento”. Como já foi indicado, está presente na CF/1988 o compromisso com realizações sociais e valores humanos muito avançados. Agora deve-se admitir que a transformação da sociedade contemporânea não carece do enunciado de “valores elevados” que a possam orientar, pois esses valores já foram enunciados há muito tempo. Como indica Eagleton (1999, p. 42), Marx e o marxismo não tratam de inventar novos e admiráveis ideais para a sociedade, mas sim de indagar por que os ideais admiráveis que já se tem, legados da era burguesa, não se realizam para todos. O desaio à imaginação e ao movimento das classes sociais está na construção de instituições que permitam a realização desses valores (igualdade, liberdade, fraternidade, democracia...). Como sempre, não se trata de estabelecer uma receita a priori, pois essa construção requer a mobilização das forças sociais (nacionais) que desejam realizar uma transformação social que realize aqueles valores. Isso pode tomar a forma de um conjunto de reformas institucionais, que, por um lado, afetam a organização e o funcionamento do Estado e, por outro, reconstituem a sociedade civil, fomentando novas formas de propriedade e de produção. Trata-se, enim, de pensar em reformas revolucionárias. No entanto, isso não será possível enquanto não existir um pensamento criador, que, a partir de um ponto de vista brasileiro e de esquerda, esteja aberto para conceber e realizar novas possibilidades históricas. “Mais do nunca na história deste país”, é preciso levar imaginação ao poder. A Atualidade de Florestan Fernandes em Questão: uma interpretação da transformação do Estado e da mudança social no Brasil contemporâneo 77 REFERÊNCIAS ABREU, Neide Maria Carvalho. Os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 14., 2006, Florianópolis, Santa Catarina. Anais eletrônicos... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. v. 1, p. 143-163. 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CAPÍTULO 3 O CONCEITO DE CULTURA EM FURTADO E A PROBLEMÁTICA DA DEPENDÊNCIA CULTURAL1 César Bolaño2 1 INTRODUÇÃO Ingrid Sarti, em artigo fundamental para o estudo da história do pensamento comunicacional latino-americano, faz uma crítica muito adequada das chamadas teorias da dependência cultural,3 não sem antes reconhecer o seu “inegável mérito em denunciar o processo de dominação, mostrando que este não se esgota nos métodos puramente repressivos, mas se insinua pelos caminhos tortuosos do requinte ideológico” (Sarti, 1979, p. 234). A perspectiva da dependência cultural deriva das teorias da dependência, de autores como Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, heotônio dos Santos, Gunder Frank e Rui Mauro Marini, muito estudados no campo da comunicação nos anos 1970. Mas está essencialmente preocupada, como mostra a autora, em aplicar à análise dos meios de comunicação de massa o conceito althusseriano de aparelhos ideológicos de Estado (AIEs). Esta perspectiva postula que, na América Latina, os AIEs “cumprem a função ideológica de reforçar o caráter dependente das relações de produção” (Sarti, 1979, p. 235). Segundo Sarti: 1. O autor agradece o apoio do programa Cátedras para o Desenvolvimento, uma parceria entre o Ipea e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Agradece também o apoio do Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do Centro Internacional Celso Furtado para o Desenvolvimento. 2. Professor do Departamento de Economia da UFS. 3. Na classiicação da autora, a dependência cultural representa um avanço em relação a dois conjuntos de teorias anteriores, ambas críticas do mito dos meios de comunicação de massa entendidos, pela velha concepção de comunicação e desenvolvimento, como instrumentos capazes de atenuar a problemática do subdesenvolvimento. A primeira vertente, voltada para a análise da função ideológica dos meios massivos de comunicação, é representada por trabalhos clássicos de Herbert Schiller, Tapio Varis e Kaarle Nordenstreng, Mattelart, Faraone ou Peter Schenkel. Da segunda fazem parte os estudos sobre o conteúdo das mensagens, como o célebre livro de Mattelart e Dorfman sobre o Pato Donald, entre outros. Segundo a autora, “se é certo que se havia denunciado o fortalecimento do processo de dominação ideológica e desvendado seus mecanismos, ainda restava saber quais os seus efeitos sobre as populações latino-americanas. Conheciam-se já as formas de atuação dos veículos transmissores de ideologia, mas pouco ou nada se havia dito sobre seu resultado” (Sarti, 1979, p. 234). Esta seria a pretensão dos estudos da dependência cultural que a autora analisará ao longo do seu artigo. Trata-se, portanto, de uma terceira linha, já de crítica às teorias de comunicação e desenvolvimento, cujos referenciais a autora não cita explicitamente, mas, pode-se presumir, seriam os representantes do funcionalismo norte-americano que está na origem das chamadas ciências da comunicação. No campo da dependência cultural, cita, entre outros, Somavía, Pasquali, Beltrán, Sunkel, Fuenzalida, Reyes Mata e, especialmente, Evelina Dagnino, cujo trabalho Cultural and ideological dependence: building a theoretical framework (Dagnino, 1973 apud Sarti,1979) considera o esforço mais avançado de teorização deste enfoque. 84 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Tal como acontece com sua matriz [as teorias da dependência], a importância histórica da noção de “dependência cultural” reside, portanto, em sua proposta de superação de abordagens do tipo evolucionista e funcionalista, onde o “atraso”, visto em termos quantitativos, correspondia ao estágio “atrasado” do desenvolvimento. Com o tema “dependência”, pela primeira vez a sociologia da América Latina não propunha o “desenvolvimento” como solução ao “subdesenvolvimento”; aliás, apontavam-se as falhas – os atrasos – como resultado das contradições do próprio modo de produção. Considerando-se o prisma desenvolvimentista, até então vigente na mesma sociologia, dava-se um passo à frente de inegável valor histórico. Da mesma maneira, a teoria da “dependência cultural” busca superar o “desenvolvimentismo” através de uma visão crítica do capitalismo, mais especiicamente, de sua fase imperialista (Sarti, 1979, p. 235-236). Ao que parece, a essa altura, a autora não conhecia os avanços do velho e bom estruturalismo latino-americano, em especial, no que interessa a este capítulo, dos trabalhos de Celso Furtado, que então já publicara O mito do desenvolvimento econômico (Furtado, 1974), Prefácio à nova economia política (Furtado, 1977) e Criatividade e dependência na civilização industrial (Furtado, 1978). Em todos estes trabalhos, e também na Teoria e política do desenvolvimento econômico (Furtado, 1967), entre outros, a problemática da cultura, da dependência, do desenvolvimento e do subdesenvolvimento está posta de forma bastante mais complexa, incluindo – como se pretende mostrar aqui – uma soisticada teoria da dependência cultural muito distinta daquela que prevaleceu nos anos 1970 no campo da comunicação. Mais ainda, a perspectiva de Furtado – cuja inluência fundamental sobre as teorias da dependência é conhecida – ocupa, como já apontou Octavio Rodriguez em diferentes ocasiões, uma posição única no interior do estruturalismo latino-americano, pela centralidade que dá à cultura. A retomada de Furtado, nesse sentido, inverte o problema, pois mostra que a dependência cultural precede a dependência econômica e tecnológica, tal como ela se estabelece, a partir da divisão internacional do trabalho, promovida pela consolidação da hegemonia inglesa e a difusão da civilização industrial. Nas duas próximas seções, será apresentada a crítica de Sarti: na segunda seção, procura-se deslocar a questão no sentido aqui sugerido, para, na terceira seção, traçarem-se algumas considerações sobre a relação entre Furtado e as teorias da dependência, visando situar adequadamente o problema, em termos de história do pensamento. Na quarta e na quinta seções, apresenta-se uma visão do modelo teórico de Furtado, explicitando-se a problemática da cultura. Toma-se por base, por comodidade, e dados os limites deste capítulo, a sua Pequena introdução ao desenvolvimento (Furtado, 1980).4 Na sexta e última seção, chega-se, a partir das ferramentas oferecidas pelo autor, a uma interpretação da crise atual do capitalismo, vista na perspectiva do conceito furtadiano de cultura. 4. Um trabalho fundamental sobre o tema da cultura em Furtado é Dependência e criatividade (Furtado, 1978), analisado em Bolaño (2011). Também Cultura e desenvolvimento em época de crise (Furtado, 1984) é muito citado a este respeito. Rodriguez (2009) dá ainda, com razão, muita importância à Dialética do desenvolvimento (Furtado, 1965). Furtado (1967) seria o ponto de partida mais adequado para uma análise mais extensa. O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 85 2 COMUNICAÇÃO E DEPENDÊNCIA CULTURAL: QUAL EQUÍVOCO? Ingrid Sarti cita a crítica de Wefort (1971) às teorias da dependência, que coloca em dúvida a sua validade como instrumento de análise do desenvolvimento capitalista na América Latina. Sarti conclui que, se assim for, a dependência cultural deveria ser também automaticamente descartada, pois não seria mais que um apêndice da primeira, carecendo de vida própria. Entretanto, citando a réplica de Fernando Henrique Cardoso (1971) a Wefort, acrescenta que “em nenhum momento” a teoria da dependência “foi pensada como teoria explicativa da realidade latino-americana, nem sequer como teoria, mas como noção que serve de complemento à teoria marxista (leninista) do imperialismo” (Sarti, 1979, p. 242).5 Assim sendo, a estrutura de classes e a articulação entre elas em cada sociedade dependente, bem como o papel do Estado nisso, constituem o cerne da análise desta teoria da dependência que não existiria “senão como complemento à teoria do imperialismo” (Sarti, 1979, p. 242). Ora, o procedimento da literatura de “dependência cultural” parece ignorar justamente estes postulados fundamentais da própria “teoria” em que se baseia, pois adota a “teoria da dependência” como teoria explicativa da realidade latino-americana de forma globalizante e mecanicamente a transpõe ao nível da superestrutura ideológica. Cai assim em lagrante economicismo ao julgar que a superestrutura na América Latina tem que ser dependente porque assim o é sua economia (Sarti, 1979, p. 243). Mais do que isso, “em sua interpretação simplista, enfatiza-se de tal maneira a característica de dependência que se afasta a essência do problema, ou seja, sua natureza capitalista” (Sarti, 1979, p. 243). Minimiza-se ou anula-se a problemática da luta de classes, ao deslocar-se para a relação entre nações a contradição fundamental do sistema. Acaba-se por cair nas malhas do nacionalismo “em sua conotação radical pequeno-burguesa”, defendendo-se a solução de um “desenvolvimento autônomo e democrático”, incapaz de “superar a perspectiva desenvolvimentista nas propostas de soluções para os problemas culturais” (Sarti, 1979, p. 244). A adoção da perspectiva althusseriana dos AIEs, por sua vez, acaba por conferir aos meios de comunicação de massa um poder excessivo: Assim, o que poderia ser um mérito, o de reconhecer a necessidade de estudar o processo de dominação ideológica, deixa de sê-lo, na medida em que as análises dos meios de comunicação perdem a noção de proporção e lhes atribuem o papel de poderosos agentes quase autônomos no processo de produção das relações capitalistas (Sarti, 1979, p. 246). Muitos dos autores citados no texto de Sarti continuam em plena atividade e são reconhecidos pela inestimável contribuição que deram à construção de um 5. É duvidoso o marxismo-leninismo imputado a Cardoso, mas é verdade que este nega, no texto citado, o estatuto de teoria à teoria da dependência, preferindo falar em “situações de dependência” decorrentes “da existência de algum tipo de expansão do capitalismo” (Cardoso, 1971, p. 38). Isto é o que interessa a ele e a Enzo Faletto, em seu livro clássico (Cardoso e Faletto, 1969). 86 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil pensamento comunicacional crítico. Tal pensamento representou altivamente a América Latina numa batalha histórica, como foi a luta por uma Nova Ordem Mundial de Informação e Comunicação (NOMIC), nos debates em torno da Comissão McBride da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A crítica de Sarti, porém, que está, por certo, também marcada pelo radicalismo daqueles anos, permanece, no geral, correta e se assemelha a toda uma série de desenvolvimentos posteriores, seja no campo dos estudos culturais latino-americanos, seja no da economia política da comunicação. No primeiro campo, os pesquisadores têm insistido na necessidade de se estudarem os impactos concretos da ação dos meios sobre os indivíduos, visando romper o determinismo das teorias da dependência cultural. No segundo, os estudiosos têm tratado de elaborar uma teoria marxista mais soisticada, além de incorporar os mais diversos instrumentos da análise econômica ao estudo dos meios de comunicação de massa. Não vale a pena, porém, avançar aqui na resenha desta velha discussão. O maior interesse deste capítulo em retornar a este tema foi apenas apontar o que parece ter sido, salvo melhor juízo, a principal lacuna, para não dizer equívoco, de todo este debate: não ter considerado a contribuição fundadora de Furtado. O conceito de dependência cultural elaborado por Furtado está na origem das teorias da dependência e é completamente alheio ao determinismo das teorias analisadas por Ingrid Sarti – mesmo porque, na formulação furtadiana, a dependência cultural não é determinada pela dependência técnica e produtiva, antes pelo contrário. 3 FURTADO E AS TEORIAS DA DEPENDÊNCIA Não cabe aqui discutir as teorias da dependência, mas vale lembrar que muitas das suas contribuições derivam do pensamento original de Furtado.6 Para Bernardo Ricupero (Ricupero, 2008, p. 22), Furtado, Simonsen e Caio Prado “podem ser considerados os inauguradores de uma linha de pensamento de interpretação do Brasil”, na medida em que, antes, prevalecia a atenção aos fatores internos à sociedade brasileira. (...) Essa postura de uma historiograia mais tradicional, atenta, sobretudo, aos aspectos jurídico-formais 6. Assim, já em A economia brasileira, texto de 1954, a perspectiva que predomina é a observação das forças externas que promovem a transformação da economia colonizada. É este aspecto que adquire especial relevo na explicação de Furtado – em contraste com a que Simonsen ou Prado Júnior oferecem –, sendo detalhados os aspectos particulares das empresas e a forma de calcular seus custos e ingressos. Daí surgiria um discurso que nos anos vindouros se converteria em noção comum do discurso latino-americano (Mallorquin, 2005, p. 88). “Especialmente nos textos de Gunder Frank é fácil observar como A economia brasileira produz toda uma série de categorias que Frank transformará na tese sobre o ‘desenvolvimento do subdesenvolvimento’. No texto de Furtado encontramos termos como ‘metrópoles’, ‘colônias’, ‘apropriação do excedente’, e não menos importante, a noção contra a qual se rebela não só Frank, mas também Furtado, de que a divisão internacional do trabalho entre produtores de matérias-primas e industriais implica uma ‘propagação’ (Prebisch) dos frutos do progresso técnico da maneira que postulava a recém-lamejante teoria do comércio internacional (Samuelson)” (Mallorquin, 2005, p. 88). Adiante, Mallorquin repete, de forma mais explícita, que “as dívidas de Gunder Frank com Furtado jamais foram reconhecidas” (idem, ibidem, p. 126, nota 5). O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 87 (historiograia, iniciada pela “tese feudal”, que vê a colônia de “dentro para fora”), foi continuada com a interpretação da III Internacional sobre os “países coloniais, semicoloniais e dependentes” e aparece, atualmente, com os estudos sobre o “escravismo colonial”. Há, assim, mesmo hoje em dia, quem acuse Caio Prado Jr. e Celso Furtado de “circulacionismo” e outros pecados aparentados (Ricupero, 2008, p. 22). A necessidade de um adequado balanceamento das determinações internas e externas do desenvolvimento latino-americano, contra a perspectiva considerada muito externalista da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), está também nas apreciações de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, em sua obra mais célebre (Cardoso e Faletto, 1969), ou em João Manuel Cardoso de Mello (1982). Para Ricupero: As implicações de cada tipo de enfoque são óbvias: ao privilegiar o próprio desenvolvimento histórico, pode-se perder de vista muitas das conexões com fatores externos, ao passo que, a perspectiva teórica preocupada, sobretudo, com condicionantes internacionais possivelmente é incapaz de apontar para o que é único à experiência estudada. Mas, mesmo que o ideal seja balancear a análise, prestando atenção tanto às inluências internas como externas, o fato é que, em casos de países de passado colonial, o peso de fatores externos que não se controlam é maior (Ricupero, 2008, p. 22). Em todo caso, a acusação de externalista, tão importante na crítica de Sarti à dependência cultural, não se aplica a Furtado. Vera Cepêda, por exemplo, procura determinar a singularidade da interpretação furtadiana sobre a formação da sociedade brasileira, acentuando a habilidade em diluir a contradição entre uma explicação excessivamente endógena dos problemas nacionais e o deslocamento do transplante acrítico das interpretações gestadas no estrangeiro para realidades diferentes da nossa. A teoria do subdesenvolvimento resulta numa explicação profundamente madura e eicaz, já que articula as tendências gerais do capitalismo com as que reletem as particularidades nacionais, vinculando os problemas econômicos à leitura da estrutura social e política (Cepêda, 2008, p. 52). Para a autora, a força da interpretação de Furtado “nasce da conjunção entre uma visão geral em consonância com as mudanças mundiais do pós-Guerra e incorpora as correntes de explicação nacional, que vinham numa contínua evolução desde o inal do século passado” (Cepêda, 2008, p. 52). Seja como for, nada há em Furtado – nem, em geral, no estruturalismo latino-americano – do funcionalismo ou do evolucionismo, em relação aos quais, segundo Sarti, em trecho já citado, a teoria da dependência representaria uma ruptura. O método histórico-estrutural do autor é que representa de fato, como se sabe, uma ruptura fundamental com as teorias do desenvolvimento convencionais. 88 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Mallorquin – citando uma frase em que Furtado (1961) insiste em que o subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo e não uma etapa necessária na evolução de qualquer economia capitalista – acrescenta, em nota: Para além do debate sobre a suposta “originalidade” de Frank ou de Cardoso acerca deste tema (...), muitos anos antes Furtado mencionava (...) a relação teórica e a relação dicotômica conceitual desenvolvimento/subdesenvolvimento, sustentáculo inicial do discurso dependentista (Mallorquin, 2005, p. 127). O autor se refere aos comentários de Furtado sobre os estudos de Rosenstein-Rodan, em evento realizado em 1957, pela Associação Econômica Internacional, no Rio de Janeiro, cujos resultados foram publicados, no Brasil, em Ellis e Wallich (1964). Segundo Mallorquin, Furtado, nessa altura, ainda não rompera completamente com uma noção etapista do desenvolvimento.7 Contudo, já nesse momento, “adverte-se uma séria tentativa para obviar os problemas assinalados antes; adverte-se uma estratégia discursiva que tenta eludir a noção do subdesenvolvimento como uma fase ou etapa na evolução dos países não desenvolvidos” (Mallorquin, 2005, p. 126). Assim, na ideia de Furtado de que “as economias não são subdesenvolvidas por si mesmas, mas em comparação com outras que existem no mesmo período”, o autor vê o sinal de uma “noção etapista que impede supor que a noção de subdesenvolvimento representa uma conformação econômica sui generis” (Mallorquin, 2005, p. 126, nota 5). Tal será o caso em textos posteriores, que rompem mais explicitamente com as velhas teorias do desenvolvimento, fundando uma nova explicação da evolução do capitalismo em nível global, típica do pensamento de Furtado e do estruturalismo latino-americano. É desta raiz – da ruptura com as visões convencionais do desenvolvimento promovida por Furtado – que brotarão as teorias da dependência.8 Cardoso e Faletto (1969) deinem, eles próprios, sua contribuição como complemento sociológico das teorias do desenvolvimento do estruturalismo latino-americano. Furtado aquiesce, quando airma que o trabalho dos estruturalistas latino-americanos evoluiu no sentido de uma abordagem interdisciplinar da nova temática do desenvolvimento e de uma mais rigorosa caracterização do subdesenvolvimento, visto como a conformação de sociedades em 7. Mesmo em Furtado (1961), “apesar da insistente negação, a teorização apresenta indícios da concepção etapista da história econômica. Ao utilizar a ideia de ‘grau’ com relação às economias desenvolvidas, nosso autor indiretamente envolve sua pertinência em relação à economia subdesenvolvida; com efeito, está tentando sua teorização” (Mallorquin, 2005, p. 127). 8. Mallorquin lembra que Furtado discutiu grande parte das ideias desenvolvidas em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina no seminário que realizou a partir de 3 de junho de 1964, no Instituto Latinoamericano y del Caribe de Planiicación Económica y Social (Ilpes), da Cepal, no Chile, assistido, entre outros, por Fernando Henrique Cardoso, R. Cibotti, N. Gonzales, José M. Echevarría, O. Sunkel, Pedro Vuscovic e Francisco Weffort. “Em meados de 1965, na mesma sede, começou a circular um manuscrito de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (...) cuja culminação teórica pode ser vista em Dependência e Desenvolvimento na América Latina” (Mallorquin, 2005, p. 208). O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 89 que relações externas assimétricas, que geram dependência, articulam-se internamente com o sistema de dominação social (Furtado, 1980, p. 40). Furtado cita sua Teoria e política do desenvolvimento econômico (Furtado, 1967) e acrescenta, em nota, que, “de um ângulo sociológico, a obra básica na elaboração da teoria da dependência é Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependencia y desarrollo en América Latina, México, 1969” (Furtado, 1980, p. 40). O método histórico-estrutural de Furtado é interdisciplinar desde o início. A sua teoria do desenvolvimento e do subdesenvolvimento tem por pressuposto um conceito de cultura perfeitamente adequado para o debate sociológico ou antropológico mais especializado.9 Isto talvez relita a inluência que sofreu “da sociologia norte-americana, em particular da teoria antropológica da cultura, com a qual tomei contato pela primeira vez por intermédio do livro de Gilberto Freyre, Casa grande e senzala” (Furtado, 1972, p. 16), aos 17 anos de idade. Furtado esclarece: Olhando retrospectivamente, vejo com clareza que o livro de Freyre pouco ou nada me inluenciou no que respeita a sua mensagem substantiva, isto é, no que se refere à interpretação do processo histórico brasileiro. Sua importância esteve em que nos revelou todo um instrumental novo de trabalho (Furtado, 1972, p. 16). A teoria antropológica da cultura estava presente, portanto, como instrumento de trabalho, no pensamento de Furtado, desde as suas primeiras leituras, ainda na adolescência. Mais ainda, a sua ideia de cultura antecede a economia, como confessou a Cristovam Buarque, em entrevista de 1991, no apartamento de Paris: Eu não fui um economista desde o começo. Estudei direito, estudei ciências sociais, estudei ilosoia, e a minha paixão sempre foi a cultura e o mundo, com toda a sua riqueza. Meti-me na economia quando me convenci de que era a ciência social mais operacional, de maior importância para o mundo de hoje e com maior capacidade para mudar o mundo. Sempre me guiou a ideia de que o Brasil era um país atrasado. Simplesmente isso. E um país atrasado pode se recuperar (Furtado, 1991, p. 78). Ora, não há dúvida de que o seu domínio desse instrumental superior que a economia oferece lhe confere um lugar privilegiado entre os economistas, mas isso não é motivo para desconsiderar o fato de que a sua contribuição teórica é fundamental para o conjunto das ciências sociais. A importância que acaba por conferir ao trabalho 9. Marcos Costa Lima (Lima, 2008) lembra, por exemplo, que no capítulo da Dialética do desenvolvimento que trata do desenvolvimento no processo de mudança cultural, Furtado introduz o conceito de mudança social da antropologia “que foi uma reação contra o caráter determinista ou teleológico das ideias de evolução e progresso dominantes no século XIX. Segundo Furtado, os estudos sobre mudança social tanto restabelecem o interesse pelos aspectos históricos da herança social, como levaram a uma compreensão mais aguda da interdependência entre os elementos materiais e não materiais que constituem a cultura” (Lima, 2008, p. 38). Não obstante, “Furtado dá razão a Marx contra os teóricos da mudança social (preocupação antievolucionista para retirar da história todo sentido) ao dizer que ‘as inovações tecnológicas, introduzidas no processo produtivo (...) condicionam todo o processo de mudança social’” (idem, ibidem). Para uma boa leitura da Dialética do desenvolvimento, enfatizando a problemática da cultura na obra de Furtado, ver Rodriguez e Burgueño (2001) e Rodriguez (2009). 90 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil de Cardoso e Faletto, como obra básica na elaboração da teoria da dependência de um ângulo sociológico, está relacionada com as suas qualidades intrínsecas como recorte particular no interior daquela ciência social total a que Furtado (1977) se dedicava. Octavio Rodriguez (Rodriguez, 2009) – que inclui Cardoso e Faletto, mas não Gunder Frank, na escola estruturalista latino-americana de Prebisch e de Furtado – não discordaria desta avaliação. Para ele, o enfoque de Cardoso e Faletto não tem a pretensão de “se constituir em teoria, mas ajudar na compreensão do concreto, tratando de ampliá-la ou melhorá-la pela via da história comparada de diferentes casos” (Rodriguez, 2009, p. 276).10 O próprio Cardoso (1971) coloca a questão claramente nesses termos em sua resposta a Wefort (1971). Trata-se, portanto, de uma contribuição metodológica, coerente com uma característica básica do pensamento de Furtado e de todo o estruturalismo latino-americano, que é romper com o reducionismo economicista, entendendo a realidade social, política e econômica como uma totalidade. Assim, por exemplo, para Rodriguez e Burgueño (2001, p. 82-83), o modus operandi do capitalismo inclui nos centros a expansão de relações trabalhistas baseadas no assalariamento e enquadradas na sindicalização, ambas cruciais para o aumento gradual das remunerações dos trabalhadores e para a concomitante ampliação do mercado interno. No caso da industrialização periférica, “a apropriação de uma parte considerável do excedente por grupos locais, que o utilizam para ampliar sua própria esfera de ação”, não encontra resistência nos trabalhadores, cuja consciência de classe, segundo Furtado, não lhes permite, naquele momento crucial, construir “um poder sindical capaz de inluir com força na redução da heterogeneidade social” (Rodriguez e Burgueño, 2001, p. 83). Por sua vez, o controle do poder político pela burguesia industrial na América Latina não garante “a reconstrução em profundidade das estruturas sociais, cujos traços de arcaísmo reletem a sobrevivência e o peso de estruturas preexistentes” (Rodrigues e Burgueño, 2001, p. 83). Além disso, há fatores de ordem externa que limitam a esfera de ação desses grupos burgueses, que podem ser, segundo Rodriguez e Bugueño (2001, p. 83), de caráter econômico, como a apropriação de excedentes gerados na periferia pelo estrangeiro, mas também de caráter político, como a presença de interesses estrangeiros 10. Segundo o autor, diferentemente do de Frank, o trabalho de Cardoso e Faletto tampouco “deve ser visto como uma tentativa de levar a consideração do subdesenvolvimento para águas onde transitam as correntes do pensamento marxista” (Rodriguez, 2009, p. 275-276). Seja como for, parece claro que a “teoria” da dependência dos autores, ao contrário do que pensava Sarti (1979, p. 242), não serve de complemento à teoria marxista-leninista do imperialismo, mas sim à teoria do desenvolvimento e do subdesenvolvimento da escola estruturalista latino-americana. Seria interessante, neste ponto, resenhar a análise que o próprio Furtado (1967) realiza das contribuições de Lênin, Hilferding, Hobson ou Rosa Luxemburgo, em relação às quais situa também a sua proposta, mas não há espaço para tanto neste capítulo, muito menos para uma avaliação da complexa (e profícua) relação de Furtado com Marx. O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 91 na conformação das estruturas de poder. É essa presença que subjaz no conceito mais frequente de dependência, que a deine como relação estrutural externo-interna. Na sequência, Rodriguez e Burgueño citam o conceito de dependência de Cardoso, considerado, como se pode deduzir, perfeitamente adequado ao enfoque de Furtado, que “em seus esforços para elaborar uma teoria do subdesenvolvimento (...) imbrica em uma mesma análise, processos que considera indissociavelmente econômicos e sociopolíticos” (Rodriguez e Burgueño, 2001, p. 83-84). Furtado ainda vai além, e este é o ponto que interessa a este capítulo, pois há “outra característica básica do seu enfoque, que o torna peculiar e único no contexto do pensamento latino-americano” (Rodriguez e Burgueño, 2001, p. 84). Trata-se justamente da sua análise da cultura. “De fato, é através desse segundo ‘não reducionismo’ que se procura entender o desenvolvimento em seu sentido mais amplo, de desenvolvimento cultural global” (Rodriguez e Burgueño, 2001, p. 84). 4 CULTURA MATERIAL E DESENVOLVIMENTO A Revolução Industrial, para Furtado, é o ponto de partida de um processo de aceleração da acumulação que tanto transforma o modo de produção, destruindo as formas precedentes de organização dos processos produtivos, como estabelece uma divisão inter-regional do trabalho em que determinadas regiões se transformam em focos geradores de progresso técnico. Em outras regiões, ocorreu também uma especialização geográica, que permitiu uma utilização mais eicaz dos recursos disponíveis, aumentando igualmente a produtividade. Nas áreas que constituiriam a periferia da civilização industrial, “a modernização dos padrões de consumo – transformação imitativa de segmentos da cultura material – pôde avançar consideravelmente sem interferência maior nas estruturas sociais” (Furtado, 1980, p. 23), graças à expansão do comércio que, neste caso, podia inclusive conviver ainda com a escravidão, como no Brasil. Enquanto isso, o mesmo movimento, nos centros geradores do progresso técnico, realimentava o processo acumulativo, “contribuindo amplamente para intensiicar as transformações das estruturas sociais nas áreas em que o sistema produtivo estava em rápida evolução” (Furtado, 1980, p. 23). Nesse caso, a formação do sistema econômico mundial se apoia na transformação das estruturas sociais, enquanto, na periferia, o que ocorre é uma modernização dos estilos de vida. Ao primeiro processo se denomina desenvolvimento; ao segundo, subdesenvolvimento – duas situações históricas distintas, “mas derivadas de um mesmo impulso inicial e tendendo a reforçar-se mutuamente” (Furtado, 1980, p. 23). A consolidação do primeiro núcleo industrial ocorre na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra. A partir disso, acaba por se constituir, na Europa, um 92 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil centro, composto de mercados nacionais protegidos por sistemas de poder estatal, cuja concorrência levaria à vaga imperialista da segunda metade do século XIX e às duas guerras mundiais do século XX. Além disso, a força expansiva do primeiro núcleo industrial levará a uma ocupação dos territórios de clima temperado, de baixa densidade demográica, pelo deslocamento de imensas levas de europeus para a América do Norte, a Oceania e a África do Sul. Esta segunda forma de expansão do núcleo inicial do sistema industrial permitia ampliar a base de recursos naturais, desafogar tensões sociais e promover uma enorme ampliação da cultura europeia para as demais regiões temperadas do planeta, que, inclusive, apresentavam, do ponto de vista da dotação de recursos naturais, vantagens importantes. O fato é que o centro se amplia: A história do capitalismo industrial está marcada por essa formidável expansão geográica ocorrida em sua fase inicial no próprio centro. A ela se deve que precocemente a mão de obra se haja tornado escassa, que cedo os salários reais hajam crescido e os mercados consideravelmente ampliados. Foi nesses novos territórios que se produziram as condições de mobilidade social mais propícias ao estímulo da iniciativa individual e à inovação institucional (Furtado, 1980, p. 81). Nessas condições de escassez de mão de obra e aumento do poder de barganha dos trabalhadores, no centro, o progresso técnico, que determinará os novos estilos de vida e a nova cultura material no seu conjunto, se dará no sentido da poupança de mão de obra, com o uso de tecnologias intensivas em capital. Ao mesmo tempo, o mercado interno se ampliará, com a incorporação das massas a um sistema de consumo cuja evolução acabará por promover uma transformação também radical nos sistemas de legitimação do poder, com o surgimento, no século XX, da indústria cultural (Bolaño, 2000). Em todo caso, o fundamental é que as consequências da expansão global da dupla revolução, como se refere Hobsbawn (1981) à Revolução Industrial inglesa e à Revolução Francesa, não se limitam às esferas da economia e da política, mas se traduzem na constituição de toda uma civilização industrial, uma cultura material especiicamente capitalista, base da hegemonia inglesa que se estabelece inconteste ao inal das guerras napoleônicas. Para além desse centro expandido do capitalismo industrial, o resto do mundo passará também por um processo de modernização, graças à ampliação do comércio mundial, mas, nesse caso, os sistemas de produção preexistentes não são afetados. Esta é a essência da ideia de modernização de Furtado, entendida como “modernização dos padrões de consumo” das elites locais dos países da periferia, que, em contato com o centro, tratarão de aperfeiçoar os mecanismos conhecidos de exploração do trabalho, promovendo a “transformação imitativa de segmentos da cultura material” (Furtado, 1980, p. 23). Assim, o progresso técnico atinge a periferia pelo lado dos novos bens importados do centro, ligados a um novo estilo de vida da parte das elites, ou seja, pelo lado da demanda, sem afetar o mundo da produção, isto é, sem alterar as estruturas sociais. O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 93 Esse processo corresponde precisamente à consolidação da hegemonia inglesa e, no caso da América Latina, à decadência do modelo de civilização implantado, desde o século XVI, a partir de dois focos intelectuais: o Renascimento italiano e a aliança precoce entre a burguesia comercial portuguesa e o Estado absolutista, que se engajará – seguido pelo seu rival espanhol – na aventura do desenvolvimento tecnológico a serviço da expansão ultramarina. A ruptura do sistema colonial em favor da Inglaterra, a partir da Revolução Industrial, signiica no plano da cultura uma mudança radical. Ela constitui, na periferia, um polo demandante de produtos manufaturados do centro que, graças aos excedentes gerados pela especialização, acabaria por promover, já nesse momento, em alguns casos, uma ampla urbanização. Instalam-se as primeiras indústrias – de transportes, serviços públicos e montagem, manutenção e assistência técnica dos produtos importados – antes da industrialização propriamente dita. Esta se dará, assim, pela via da substituição de importações, a partir da longa crise do capitalismo, na primeira metade do século XX, quando também a hegemonia inglesa se desestrutura. Ao inal da Segunda Guerra Mundial, quando inalmente um novo quadro hegemônico se estabiliza, sob o comando dos Estados Unidos da América, algumas das economias que enveredaram pelo terreno da industrialização substitutiva poderão se beneiciar da expansão transnacional da empresa norte-americana, seguida da europeia e da japonesa, para avançar, na base do planejamento estatal, no processo de implantação de um tipo particular de capitalismo monopolista. Furtado resume assim o signiicado do movimento por que passou a periferia latino-americana ao longo da crise do capitalismo, na primeira metade do século XX e, especialmente, a partir da crise dos anos 1930: O período da crise está marcado por duas guerras mundiais e uma depressão econômica que se estende por um decênio (...). [A]s deslocações ocorridas durante esse período na divisão internacional do trabalho (...) abrem um importante processo de transformação estrutural nas economias periféricas que não se encontravam submetidas ao jugo colonial. Tratou-se, em realidade, de autêntica mutação do sistema capitalista, cujas complexas projeções somente se farão plenamente visíveis nos anos 50 (Furtado, 1980, p. 120). O Brasil, onde a industrialização pesada se dará na segunda metade dos anos 1950, representa o caso mais bem-sucedido nesse contexto. O que importa ressaltar aqui, porém, é que a expansão industrial inglesa foi “o ponto de partida de um conjunto de processos que tenderão a uniicar a civilização material em todo o mundo” (Furtado, 1980, p. 80). A industrialização periférica, na fase de crise da hegemonia inglesa, se, por um lado, amplia o mercado interno e diversiica o aparato produtivo, por outro segue a mesma tendência de aculturação do processo de modernização de que faz parte. 94 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil [Assim,] não nos equivoquemos com respeito à natureza desse processo de reversão ao mercado interno, pois ele ocorria em economias destituídas de qualquer autonomia tecnológica. A diversiicação dos sistemas produtivos, ao guiar-se pela demanda dos bens inais de consumo, fazia ainda mais premente a necessidade de tecnologia e equipamentos importados. Portanto, a diferença era considerável com respeito às economias [França, Alemanha, Japão, Estados Unidos] que, na segunda metade do século dezenove, escaparam ao poder gravitacional da Inglaterra para transformar-se em sistemas nacionais autônomos (Furtado, 1980, p. 129). A reconstrução do sistema capitalista sob a hegemonia dos Estados Unidos, a partir da Segunda Guerra Mundial, garante a integração dos mercados nacionais do centro do sistema capitalista, superando a fase das disputas imperialistas. Esta transição se dará, mais uma vez, sobre a base de uma mutação cultural, na medida em que “a nova orientação tomada pelo capitalismo privilegiou a tecnologia que se havia desenvolvido nos Estados Unidos sob a inluência de seu mercado interno” (Furtado, 1980, p. 131). A hegemonia norte-americana se define, assim, não apenas no plano político-militar, ou monetário-inanceiro, mas fundamentalmente no econômico e cultural mais amplo. É o conjunto dos padrões de consumo, de estilos de vida e de comportamentos que se redeine em nível global, promovendo uma ampla americanização do planeta. Nessas condições, diversos países periféricos passarão a participar de uma divisão internacional do trabalho renovada, na qualidade de exportadores de manufatura. Isso, contudo, não elimina a dependência, que, ao contrário, se aprofunda, enraizando-se no sistema produtivo, em razão do estilo de desenvolvimento adotado, comandado, mais uma vez, pela dinâmica da demanda de produtos inais, de caráter imitativo. Trata-se, portanto, de uma dependência cultural determinada pela forma como se incorpora a tecnologia no sistema produtivo dos países periféricos. 5 DA HEGEMONIA INGLESA À NORTE-AMERICANA Até aqui, falou-se de cultura sempre no sentido material. É importante enfatizar que este caráter material da cultura entra em contradição com o caráter abstrato do capital, o qual, segundo Belluzzo (2009, p. 38), para revolucionar periodicamente a sua base técnica, submeter massas crescentes de força de trabalho a seu domínio e criar novos mercados (...), precisa existir permanentemente de forma “livre” e líquida e, ao mesmo tempo, crescentemente centralizada. A necessidade de regulação deste processo em nível internacional levará à imposição de um padrão monetário hegemônico que representa o aspecto determinante da “preeminência internacional da grande empresa americana”, O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 95 o qual não se deve “primordialmente às dimensões produtivas e tecnológicas” (Belluzzo, 2009, p. 44). A tão propalada difusão dos padrões americanos de consumo ou a generalização de sua “matriz” tecnológica são, ambas, sombras que acompanham a hegemonia do grande capital americano, que culminou com a imposição, em simultâneo, da vitória mundial de seu “sistema manufatureiro” e de seu “sistema inanceiro” (Belluzzo, 2009, p. 44). Isso é certo. A cultura, ao inal das contas, acabará por adaptar-se às novas condições, pois o que distingue justamente o capitalismo – sua novidade histórica – é que o excedente é prioritariamente dirigido à acumulação, o que cria as condições incontornáveis da destruição criadora. Não se trata de determinismo, pois o processo histórico está sempre aberto, e a ruptura produzida a partir dos atos de vontade de grupos com poder econômico exige a mobilização de imensas energias. No caso em exame, estas energias estavam relacionadas à luta de classes, por certo, mas também a uma disputa pela hegemonia global de meio século. Mais ainda: o poder econômico, na deinição de Furtado, é a capacidade que os grupos que o detêm possuem de impor rupturas no plano da racionalidade. Dessa forma, provocam inovações sociais em seu favor, que ampliam a sua capacidade de apropriar-se de uma parcela do excedente. Trata-se, portanto, de uma deinição totalmente dependente da sua noção de cultura, ainda que, no inal das contas, o que esteja em jogo seja sempre a acumulação de poder político e de riqueza material. Assim, a uniicação econômica e inanceira do centro a que se refere Furtado é a garantia da vitória simultânea, como lembra Belluzzo, dos sistemas produtivo e inanceiro dos Estados Unidos, base de uma uniicação cultural, decorrente da expansão do americanismo. Este processo representa, entre outras coisas, uma crucial integração da classe trabalhadora do centro, por meio da implantação de um modelo de desenvolvimento em que o consumo de massa de bens duráveis adquire um papel fundamental. É, portanto, no plano da imposição do padrão monetário e da coordenação do sistema econômico uniicado no centro que a hegemonia dos Estados Unidos frente aos seus sócios capitalistas se estabelece. A sua consolidação em nível social depende da constituição de um padrão de desenvolvimento global, no interior do qual é justamente a estabilidade da função-consumo, para colocar a questão em termos keynesianos, que garante a legitimidade. A universalização da cultura material típica do capitalismo americano se constitui, então, na base material sobre a qual se alça o poderio dos Estados Unidos. As relações entre as características do sistema produtivo e as dos padrões de consumo e estilos de vida, bem como a importância do setor de bens de consumo duráveis na dinâmica do desenvolvimento do pós-Guerra, são sobejamente conhecidas. 96 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Aqui, no entanto, já se está ultrapassando o terreno da cultura material, pois aquela dinâmica depende não só da constituição do sistema de crédito ao consumo mas também do desenvolvimento da publicidade, sobre a base de meios de comunicação de massa. Estes meios transformam as condições de construção da hegemonia, na medida em que a forma-capital acaba por introduzir-se na própria produção simbólica (Bolaño, 2000). As atividades artística e científica, a reflexão filosófica e a especulação religiosa são formas de produção simbólica que se diferenciam, em princípio, da produção dita material. A expansão capitalista, desde o seu princípio, provoca mudanças importantes e radicais nestas esferas da produção não material. Assim, a constituição mesma da ciência moderna está relacionada com uma ruptura de ordem espiritual, em que vence um determinado tipo de racionalidade instrumental. Esta racionalidade é adequada às necessidades impostas pelo mundo da circulação generalizada das mercadorias, mas está vinculada também, em termos mais gerais, a novas perspectivas intelectuais e visões de mundo surgidas do movimento de construção da modernidade. As relações entre cultura material e cultura espiritual são de toda ordem e se desenvolvem no sentido de uma crescente dependência da produção intelectual em relação ao capital. A partir, aproximadamente, do século XII, tem início o processo de quantiicação geral da realidade (Crosby, 1997) e surge o intelectual proissional, que, no século XIII, se organiza naquela corporação de ofício particular denominada universidade (Le Gof, 1957). Um momento crucial neste processo é o surgimento das ciências sociais, com a economia política em primeiro lugar, e de forma paradigmática, atendendo a necessidades – de conhecimento e de produção ideológica – do modo de produção capitalista e da nova classe hegemônica saída da Revolução Industrial. Em todo caso, até o inal do século XIX, é clara a separação entre produção material e produção intelectual. É certo que a segunda obedece crescentemente a determinações provenientes da primeira, mas se mantém a autonomia das instituições típicas do campo da produção simbólica, a universidade, a igreja, a educação pública. Durante todo o período da hegemonia inglesa, a legitimidade das estruturas de poder se constrói com base numa instituição tipicamente burguesa, a esfera pública (Habermas, 1961), que, com o surgimento do Estado liberal, se institucionaliza, O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 97 mas não se universaliza, mantendo condições de exclusão (educação e propriedade) que preservam a capacidade de crítica e de controle da burguesia sobre o Estado.11 A passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista, na virada do século XX, e a estabilização da hegemonia americana e da cultura americana, com seu big business, sua big science, suas broadways e hollywoods, alteram radicalmente o problema.12 A hegemonia cultural passa a ser construída mais que pelo intelectual orgânico, pelo próprio capital individual aplicado nas indústrias da consciência. O conceito original de mudança estrutural da esfera pública (Habermas, 1961) expressa bem o caráter regressivo desse movimento, não percebido, à sua época, por Gramsci, que, no entanto, ao formular a sua ideia de sociedade civil, explicita de forma mais adequada o caráter contraditório do processo. Perante um capitalismo que se democratiza, constituindo uma sociedade civil poderosa, a transformação social se dará sob o conceito de guerra de posição e a constituição das instituições, como os partidos operários, os sindicatos de massa e a imprensa operária, responsáveis pela construção de uma contra-hegemonia em processo que prepara as condições para uma democracia socialista real e não apenas formal, como aquela liberal burguesa. É interessante notar como ele apresenta a questão na parte célebre dos Cadernos do cárcere em que caracteriza o americanismo: O que hoje é chamado de “americanismo” é em grande parte a crítica antecipada feita pelas velhas camadas que serão esmagadas pela possível nova ordem e que já são vítimas de uma onda de pânico social, de dissolução, de desespero; é uma tentativa 11. O funcionamento desse modelo de esfera pública do capitalismo liberal exige um sistema de comunicação articulado em torno de cafés, salões, óperas, casas de espetáculo, clube e associações, em que se exercem o debate público e a circulação ampla da informação, por meio da imprensa e das agências de notícias, que se constituíam em instrumento estratégico da política imperial, da hegemonia inglesa (Kaul, 2006) e das disputas imperialistas. Do ponto de vista cultural, este sistema uniica, de um lado, as diferentes elites, em torno de uma cultura erudita universalista, e exclui, de outro, a maioria, cuja cultura (popular) se apresenta como oposta ou mesmo antagônica em relação à primeira. É claro que, conforme a distância do centro do sistema, as elites locais tratarão de buscar na sua cultura popular própria elementos de diferenciação e de legitimidade para projetos nacionalistas, mas a referida divisão, em todos os casos, permanece. Hobsbawn (1984) mostra bem como, no caso inglês, a cultura operária se constitui, no século XIX, como cultura de classe, que se opõe, conscientemente, à cultura da elite, seja nos seus hábitos alimentares, seja no tipo de esporte que pratica e em todas as formas da cultura material e espiritual. Por todas as partes, a luta de classes entre burguesia e proletariado opunha dois projetos de sociedade e duas alternativas de organização da cultura. Foi assim, também, com a primeira classe operária brasileira – constituída por trabalhadores europeus imigrantes, ao inal do século XIX e início do século XX, a maioria deles anarquistas – se apresentava como portadora de um projeto de sociedade e uma cultura radicalmente nova. 12. O surgimento da indústria cultural, em particular, representa uma mudança crucial na forma de construção da hegemonia, adequada à nova estrutura do capital (monopolista) – que incorpora, como apontado antes, as massas ao consumo capitalista – e do Estado, não mais liberal, que as incorpora ao processo político. De um lado, torna-se essencial a publicidade, para a reprodução ampliada do capital; de outro, a propaganda passa a ser peça fundamental para a manipulação política direta das grandes massas agora incluídas através do voto universal. Estas são as necessidades do sistema que a indústria cultural virá a cumprir ao longo de todo o século XX e, de forma paradigmática, a partir da implantação da televisão no pós-guerra. Com isso, a produção cultural hegemônica passa a ser uma produção cultural realizada pelo próprio capital e a sua matriz originária será, evidentemente, a cultura popular. Assim, a problemática da subsunção apresenta claramente a sua dupla face, expressa na dupla contradição (capital-trabalho, economia-cultura) que caracteriza o capitalismo desde o início. Para uma extensa discussão sobre a indústria cultural na perspectiva aqui adotada, ver Bolaño (2000). 98 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil de reação inconsciente de quem é impotente para reconstruir e toma como ponto de apoio os aspectos negativos da transformação (Gramsci, 1934, p. 280). A opção conservadora europeia estava condenada de pronto, pois o americanismo representava uma ordem superior de organização do capital. Não é dos grupos sociais “condenados” pela nova ordem que se pode esperar a reconstrução, mas sim daqueles que estão criando, por imposição e através do próprio sofrimento, as bases materiais desta nova ordem: estes últimos “devem” encontrar o sistema de vida “original” e não de marca americana, a im de transformarem em “liberdade” o que hoje é “necessidade” (Gramsci, 1934, p. 280). O fenômeno da indústria cultural, no entanto, escapa a Gramsci. São os autores da Escola de Frankfurt que se debruçarão sobre ele, desde Benjamin e a reprodutibilidade da obra de arte até a teoria da ação comunicativa de Habermas, passando, mesmo, pelo conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer. Em todo caso, tem razão Habermas quando airma que a indústria cultural esteriliza o potencial crítico e revolucionário que uma esfera pública universalizada teria ao constituir-se em um amplo sistema de manipulação. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM DESAFIO FURTADIANO Ao longo das páginas anteriores, puderam-se notar ao menos três momentos em que ocorre aquilo que Furtado denomina ruptura no plano da racionalidade, provocando uma mudança fundamental na organização do capitalismo. Isso ocorre, em todos os casos, porque um grupo social, com poder econômico, acaba impondo ao conjunto da sociedade transformações de acordo com seus interesses. Assim foi no momento da consolidação da hegemonia inglesa e no da hegemonia norte-americana. Assim o é também no momento atual, em que, a partir da crise estrutural iniciada nos anos 1970, a inanceirização geral submete o sistema a uma lógica especulativa, que rompe com todos os compromissos institucionalizados e as condições anteriores de estabilidade, impedindo, na visão de Chesnay (1994), a consolidação de um novo modo de regulação. Do ponto de vista do modo de produção, ocorre – instalada a crise estrutural – um profundo processo de subsunção do trabalho intelectual e de intelectualização geral dos processos de trabalho, com rebatimentos cruciais nos modos de consumo, que também se intelectualizam (Bolaño, 1995; 2002). Trata-se de uma mudança de época, de enorme complexidade. Em Bolaño (2003), já se apontou que a produção do valor na chamada economia do conhecimento – por exemplo, a produção intelectual vinculada à pesquisa do genoma, ou a cadeia do valor da indústria farmacêutica, que inclui a pesquisa de base orientada pelo mercado e inanciada com fundo público – se dá de acordo com uma lógica também intrinsecamente especulativa e rentista. O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 99 O fato é que as transformações ocorridas a partir do im do sistema de Bretton Woods, tanto no sistema inanceiro como no mundo da produção, representam uma nova ruptura no plano da racionalidade, com impactos ainda não plenamente compreendidos em termos das relações entre economia, cultura e sociedade, levando à seguinte situação: No capitalismo avançado norte-americano, o circuito riqueza-renda-consumo começa com a valorização ictícia do patrimônio das famílias, passa pela produtividade e pela poupança dos trabalhadores asiáticos e facilita o crédito barato aos consumidores. Ao im e ao cabo, o circuito riqueza-consumo “libera” uma fração cada vez maior do poder de compra das famílias de renda média e baixa para o endividamento, enquanto os que estão no topo da pirâmide, os credores líquidos, apropriam-se da valorização da riqueza inanceira (Belluzzo, 2009, p. 210). Assim: No mundo em que mandam os mercados de riqueza já produzida, os vencedores e perdedores dividem-se em duas categorias sociais: os que, ao acumular capital ictício, gozam de “tempo livre” e do “consumo de luxo”; e os que se tornam dependentes crônicos da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência. Apresentada como prova da soberania do indivíduo, esses controles suaves e despóticos foram se apoderando das mentes e almas (Belluzzo, 2009, p. 210). Na esfera jurídica, lembra o autor, vive-se a imposição do estado de exceção permanente e da consolidação da lei do mais forte, “para desgosto dos que se imaginam descendentes do Iluminismo e de seu projeto de liberdade e igualdade” (Belluzzo, 2009, p. 211). Terry Eagleton, em página inspirada, resume bem a situação: A liberdade de expressão cultural culminou em notícias sem valor e politicamente manipuladas da mídia baseada no lucro. O interesse próprio racional ou esclarecido traz em sua esteira a irracionalidade do desperdício, do desemprego, das desigualdades obscenas, da propaganda manipuladora, do acúmulo de capital sem qualquer outro objetivo e existências inteiras dependentes da lutuação aleatória do mercado (...) O individualismo político, destinado a nos salvaguardar da insolência do poder, resulta em uma drástica atroia das solidariedades sociais. O projeto iluminista vital de controlar a Natureza, que nos isentaria da condição de vítimas subjugadas e sofridas do meio ambiente, resultou na poluição geral do planeta (Eagleton, 2009, p. 71). Os inúmeros episódios de crise, iniciados após a ruptura de Bretton Woods, são momentos de uma crise estrutural que abala o conjunto daquela trindade que está na base da expansão da civilização industrial, na perspectiva de Elmar Altvater: i) “racionalidade europeia, que assume feições materiais na indústria moderna”; ii) “energias fósseis, que são o combustível da indústria”; e iii) “formação social capitalista com sua dinâmica estimulada pelo lucro e pela concorrência” (Altvater, 2005, p. 119). 100 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Na atual fase do capitalismo, a forma de valorização inanceira – a mais absurda, como diria Marx, e, ao mesmo tempo, a que lhe é mais adequada – impõe a sua lógica de forma avassaladora sobre o conjunto da sociedade. Nesta fase, a referida trindade, que faz parte da gênese mais remota do modo de produção, apresenta-se decididamente crítica e potencialmente catastróica. É pura ilusão imaginar uma economia virtual ou imaterial em que os riscos inerentes a esta coniguração pudessem ser superados. Natureza e cultura representam, ambas, aquela materialidade na qual o desejo de riqueza universal e abstrata é negado.13 Por isso, insistir no caráter pretensamente imaterial ou virtual do trabalho na nova economia, na economia das redes etc., é uma operação essencialmente fetichista. Se riqueza nova não é produzida em condições de rentabilidade compatível com os ganhos oferecidos pelo sistema inanceiro, o que resta é transferir riqueza já existente. Isto aumenta a concentração, de um lado, e o sofrimento dos perdedores (indivíduos, empresas, países), de outro, conigurando-se o que bem se pode chamar acumulação por espoliação (Harvey, 2003). Pouca dúvida haverá sobre a enormidade dos desaios com que se defronta a humanidade neste momento. Nestas condições, uma perspectiva holística, como a de Furtado, com a relevância que dá ao plano da cultura e a capacidade que tem de articular pensamento e ação, não pode ser menosprezada. Há uma necessidade premente, em particular, de se encontrar um novo modelo de desenvolvimento em nível mundial, dada a crise social e ambiental em que a humanidade está metida. Isto, somado às diiculdades enfrentadas no plano da hegemonia global e à posição particular do Brasil neste processo, sugere fortemente a necessidade de se retomar o tema da dependência e da autonomia, nos termos de Furtado. Note-se que, nessa linha, como explicitado na seção 4, a dependência é, em primeiro lugar, cultural, decorrente do processo de modernização da periferia, centrada numa atualização dos padrões de consumo das elites, consoante as necessidades de expansão da civilização industrial. A industrialização periférica posterior aprofundará esta dependência, na medida em que os processos produtivos implantados, a tecnologia, os métodos gerenciais, tudo seguirá os padrões exigidos pela lógica da substituição de importações. Vale citar, a esse respeito, o próprio Furtado (1971, p. 340): “La ‘sustitución de importaciones’ tenderá a asumir la forma de fabricación local de los mismos artículos que antes eran importados para el consumo de los grupos dirigentes y propietarios. Sin embargo, la calidad del producto determina, dentro de límites relativamente estrechos, la técnica a adoptar; es decir, el coeficiente de capital. 13. “Em sua metamorfose, o capital está obrigado a passar necessariamente pelo calvário da produção material e da exploração da força de trabalho com uma única inalidade: acumulação de riqueza abstrata, encarnada no dinheiro” (Belluzzo, 2009, p. 204). O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 101 En esta forma, el dualismo que se había formado en el plan cultural (patrones de consumo en mutación permanente y patrones importados versus patrones de consumo tradicionales) tenderá a proyectarse sobre la estructura del sistema productivo” (grifo nosso). Do ponto de vista global, o aparato produtivo se instala na periferia com a industrialização substitutiva para servir a “uma clientela que antes se abastecia através das importações”, ou seja, “uma clientela perfeitamente condicionada e sob controle” (Furtado, 1971, p. 343). Ele garante uma dependência econômica que reproduz a dependência cultural: “Así, en la economía dependiente existirá, bajo la forma de un ‘enclave’ social, un grupo culturalmente integrado en el subsistema dominante. Por lo tanto, el dualismo es inicialmente un fenómeno cultural, que se presenta desde el punto de vista económico, como una discontinuidad en la ‘superficie’ de la demanda” (Furtado, 1971, p. 343).14 O conjunto da cultura material e espiritual, como se viu, acaba por adequar-se a mudanças de grande impacto, que se coniguram como ruptura no plano da racionalidade, decorrente de alterações fundamentais na estrutura do poder político e econômico em nível global. Um elemento crucial na teoria do desenvolvimento e do subdesenvolvimento de Furtado reside no fato de que, como lembra Alfredo Bosi (2008, p. 21), a bandeira do progresso hasteada pelas luzes e pelas revoluções burguesas acabou por favorecer, nos países industrializados, a formação de um pacto tácito entre a classe dominante e as classes subalternas, prometendo lucro à primeira e emprego e eventual alta salarial às últimas. Esse pacto tácito decorre da capacidade de pressão da classe trabalhadora europeia em função das particularidades históricas em que o processo se deu naquele continente, perfeitamente esclarecidas por Furtado, que lamenta justamente as diiculdades encontradas para a organização da classe trabalhadora na América Latina, uma das condições-chave para a superação do subdesenvolvimento. Aníbal Quijano mostra que esta diferença tem raízes profundas, fruto da constituição do mercado mundial no período das Grandes Navegações, quando se constitui, dentro e fora da Europa, uma série de novas formas de controle do trabalho: 14. Vale, a esse respeito, fazer um pequeno reparo à interessante leitura de Albuquerque, para quem, segundo Furtado, a dependência seria, “em primeiro lugar, dependência tecnológica” (Albuquerque, 2007, p. 190). O próprio Furtado (1978) coloca a questão nesses termos, referindo-se ao fato de que a tecnologia é o mais nobre dos recursos de poder, de modo que a luta (política internacional) contra a dependência deve tomá-la como prioridade. Aqui, Furtado adota, ele próprio, a visão pragmática do economista “que tiende a observar una economía subdesarrollada como un sistema cerrado”, para o qual “ese fenómeno se presenta como un ‘desequilibrio al nivel de los factores’, resultante de lo inadecuado de la tecnología. Se le escapa que el fenómeno citado es, inicialmente, una consecuencia de las formas de comportamiento; este aspecto solamente puede ser captado si se observa la estructura del sistema global y la asimetría de las relaciones entre sus partes” (Furtado, 1971, p. 343). Este é justamente o ponto central da sua crítica, neste importante artigo, em que se posiciona explicitamente como teórico da dependência, ao pensamento econômico convencional, cujos méritos, não obstante, não nega; apenas esclarece as suas insuiciências. 102 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a reciprocidade e o salário (...) Todas eram histórica e sociologicamente novas. Em primeiro lugar, porque foram deliberadamente estabelecidas e organizadas para produzir mercadorias para o mercado mundial. Em segundo lugar, porque não existiam apenas de maneira simultânea no mesmo espaço/tempo, mas todas e cada uma articuladas com o capital e com o seu mercado, e por esse meio entre si. Coniguraram assim um novo padrão global de controle do trabalho, por sua vez um novo elemento fundamental de um novo padrão de poder, do qual eram conjunta e individualmente dependentes histórico-estruturalmente (Quijano, 2005, p. 230). Essa foi, pode-se dizer, uma ruptura fundamental no plano da racionalidade, que funda o capitalismo mundial, pela generalização da forma-mercadoria e de um conceito de raça, como insiste Quijano, que legitima a dominação europeia. À medida que a Europa vai-se tornando “a sede central do processo de mercantilização da força de trabalho (...) todas as demais regiões e populações incorporadas ao novo mercado mundial (...) permaneciam basicamente sob relações não salariais de trabalho” (Quijano, 2005, p. 233). É sobre esta base que operará, a partir de um determinado momento, sob condições de escassez relativa de mão de obra, o processo de desenvolvimento industrial no velho continente, conforme se viu com Furtado. Há um elemento de redundância aí. Harvey (2003) aponta como, a cada momento, os países centrais deverão encontrar formas de integração da classe trabalhadora. Assim, no período das disputas imperialistas entre as nações europeias, a noção de raça permanece central para garantir a unidade nacional. Por sua vez, a consolidação do poder americano no pós-Guerra – a uniicação do centro sob a hegemonia norte-americana, ou do capitalismo pós-nacional de que fala Furtado – exigirá, em nível global, a derrocada da ideia de superioridade racial ou cultural, junto com o anacrônico sistema colonial europeu. Não obstante, o racismo continuaria a ser praticado internamente, nos Estados Unidos. O centro uniicado sob o comando norte-americano deverá garantir agora a estabilidade interna por meio de outro mecanismo: a generalização daquela paradoxal sociedade de consumo. Esta, na visão de Furtado, levou ao limite a racionalidade dos meios, deslocando toda a criatividade e a inovação para a acumulação e esvaziando a lógica dos ins últimos, dos valores essenciais. Este é um problema geral, indicando que “a crítica da reiicação a que leva a fetichização da mercadoria precisa vitalmente de instrumentos teóricos que levem em conta a complexidade do sujeito preso nas engrenagens do mercado” (Bosi, 2008, p. 24). Além disso, há um problema especíico do subdesenvolvimento, ligado à permanência da heterogeneidade social, cuja solução exige, como propunha Furtado em 1978, “que os países dependentes vendam caro os seus recursos O Conceito de Cultura em Furtado e a Problemática da Dependência Cultural 103 não renováveis” e que tratem de “frear a tendência à superexploração da mão de obra”, visando à valorização dos seus recursos naturais e humanos (Bosi, 2008, p. 30). Para isto, devem procurar formas de coligação internacional, de modo que a interdependência corrija “certas formas mais agressivas da dependência” (Bosi, 2008, p. 30). Para o tratamento dos dois problemas, a contribuição de Furtado é fundamental. Por um lado, a saída da atual crise do capitalismo exige a consideração, em primeiro plano, da problemática da cultura nos termos de uma economia política crítica, elemento-chave para a construção de uma ciência social global (Furtado, 1977), de amplas repercussões de ordem epistemológica. Por outro, a atual crise de hegemonia em nível mundial, o eventual deslocamento do eixo industrial do capitalismo para a área do Pacíico, a valorização do Grupo dos Vinte (G20) no diálogo internacional, tudo indica a existência de um novo espaço para as coligações internacionais, em favor de certas economias periféricas, entre as quais, o Brasil, que possui seus principais trunfos no terreno cultural e no ambiental.15 Seja como for, a questão da dependência cultural e o problema da heterogeneidade social são cruciais. Nesse sentido, um elemento que salta à vista na obra de Furtado é a sua “defesa inédita do conlito como força modernizadora” (Cepêda, 2008, p. 58). Nesse sentido, é importante apontar ao menos uma semelhança entre a posição de Gramsci (1934, p. 280) e a de Furtado, nas suas relexões sobre a cultura brasileira: Uma visão panorâmica do processo cultural brasileiro neste inal de século descobre, num primeiro plano, o crescente papel da indústria transnacional da cultura, que opera como instrumento de modernização dependente. Num segundo plano, assinala-se a incipiente autonomia criativa de uma classe média assediada pelos valores que veicula essa indústria, mas que tem uma face voltada para a massa popular. Em terceiro plano, abarcando todo o horizonte, perila-se essa massa popular sobre a qual pesa crescente ameaça de descaracterização. A emergência de uma consciência crítica em alguns segmentos da classe média está contribuindo para elevar o grau de percepção dos valores culturais de origem popular, criando áreas de resistência ao processo de descaracterização. Uma nova síntese, capaz de expressar a personalidade cultural brasileira, depende, para deinir-se, da consolidação dessa consciência crítica, pois somente ela pode preservar os espaços de criatividade que sobrevivem na massa popular (Furtado, 1984, p. 24-25). 15. Sobre a questão ambiental, a contribuição de Furtado não se limita, por certo, ao livro de 1974. Conforme Wilson Cano, o autor foi precursor também na “problematização sobre a economia ambiental, por integrar a ecologia na análise econômica e nas proposições de políticas de desenvolvimento regional que deram base à formulação, em 1959, de nossa primeira política de desenvolvimento para o Nordeste brasileiro. Mais tarde, em 1972, voltaria ao tema, quando criticou as projeções do Clube de Roma sobre os limites dos recursos naturais ante o crescimento econômico mundial” (Cano, 2007, p. 310). Esta crítica foi publicada justamente em Furtado (1974). O trabalho de 1959 a que Cano se refere é A operação Nordeste (Furtado, 1959). Cita ainda, no mesmo sentido, o documento do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), de autoria confessa de Furtado, Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste (GTDN, 1967). Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 104 Assim, a política cultural adquire papel absolutamente estratégico na luta contra a dependência e assim deve ser pensada na formulação de um novo projeto nacional de desenvolvimento. Nesse sentido, Valério Brittos airma: Compreende-se que há uma dinâmica cultural instalada no país, altamente presente justamente nas localidades mais pobres, que, pelas próprias agruras, forjam-se no dia a dia como soluções para vencer as adversidades. Nesse sentido, encontram-se em estado bruto, não obstante tais referentes estejam sendo constantemente requeridos pelas indústrias culturais como elementos que endossam seus conteúdos. São absorvidos pelo capitalismo, mas poucos retornam ao chão social em termos de capacidade de alavancagem da autoestima e criação de mecanismos de geração de riqueza, pois se trata de uma apropriação privada, justamente pelos setores mais ricos da sociedade (Brittos, 2011, p. 125). O trecho, plenamente sintonizado com a perspectiva de Furtado aqui exposta, faz parte de uma relexão sobre as políticas nacionais de comunicação no Brasil,16 coerentes com políticas culturais visando aquele verdadeiro desenvolvimento a que Furtado (1974) se referia ao fazer a crítica ao mito do desenvolvimento econômico. Este, porém, é tema para outro trabalho. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Eduardo da Motta. Celso Furtado, a polaridade modernizaçãomarginalização e uma agenda para a construção dos sistemas de inovação e de bem-estar social. In: SABOIA, João; CARVALHO, Fernando Cardim (Org.). Celso Furtado e o século XXI. Barueri, São Paulo: Manole, 2007. ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos. 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CAPÍTULO 4 ESTUDOS EM DARCY RIBEIRO: UM CAPÍTULO DO PENSAMENTO CRÍTICO LATINO-AMERICANO E DECOLONIAL1 Adelia Miglievich-Ribeiro2 1 INTRODUÇÃO Darcy Ribeiro, no prefácio da obra de Manoel Bomim, A América Latina: males de origem, cuja primeira publicação data de 1905, revela o quanto o intelectual sergipano antecipa aqueles que, ao longo do século XX, viriam a se dedicar à descolonização do pensamento social brasileiro, contestando o senso comum travestido de ciência que atribuía o atraso brasileiro ao clima tropical, à mestiçagem e a um povo supostamente preguiçoso e refratário ao progresso. Ao contrário, Bomim fazia notar que nossos índios, os negros trazidos escravizados, os homens e as mulheres aqui nascidos mestiços, nas condições mais inóspitas e vivendo na mais absoluta pobreza, sob intensa violência, eram os únicos produtivos na Colônia, fazendo absolutamente tudo para uma elite despreparada e incapaz de realizar qualquer esforço de trabalho. Assim, a causa de nosso atraso era o sistema colonial que mantinha o parasitismo da Coroa, enviando administradores que conseguiam criar na colônia uma atmosfera de maior fausto que o existente na metrópole. Esta, por sua vez, desconhecia o desenvolvimento industrial ou o Estado Moderno. Noutros termos, as raízes de nosso atraso estavam no cume e não na base da pirâmide social. Darcy Ribeiro reconhece o débito intelectual para com o pensamento original de Manoel Bonim na elaboração de seus Estudos de antropologia da civilização 1. O texto é um dos frutos dos dois anos de dedicação da pesquisadora do programa Cátedras para o Desenvolvimento (2010-2012), tendo sido eleito pela autora como patrono Darcy Ribeiro, a partir do projeto Modernidade-Colonialidade, Nação e Autonomia em Darcy Ribeiro: Fundamentos e Propostas de Desenvolvimento. Qualquer agradecimento aos mentores e gestores do programa será insuiciente para fazer jus à relevância da iniciativa para a atualização do pensamento crítico brasileiro na busca de respostas ainda não inalizadas sobre o Brasil possível e desejável. Manifesto aqui também meu agradecimento a dra. Eliane Veras Soares, colega e especial incentivadora dos estudos em tela. 2. Doutora em ciências humanas – sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosoia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS/UFRJ); e do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ), com Pós-Doutorado Sênior pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (PDS/FAPERJ); professora adjunta no Departamento de Ciências Sociais (DCSO) e nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia (PGCS) e em Letras (PPGL) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); e líder do grupo de pesquisa cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico (DGP/CNPq) Transculturação, Identidade, Reconhecimento. 110 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil formado por O processo civilizatório – etapas da evolução sócio-cultural (1968); As Américas e a civilização (1969); Os índios e a civilização. A integração das populações indígenas no Brasil moderno (1970); O dilema da América Latina (1971); Os brasileiros – teoria do Brasil (1978); e, por im, O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil (1995). Nestes, estão trinta anos de relexão sobre quem somos e quem podemos ser, perguntas que tomam, como uma obsessão, o empenho mais fecundo dos estudiosos brasileiros. Darcy Ribeiro (1978) destaca a influência em seu pensamento da vasta bibliografia de interpretação ensaística, histórica, sociológica, econômica e antropológica do Brasil. Reconhece, além de Bomim, o pioneirismo de Euclides da Cunha (1911) e Capistrano de Abreu (1934). Refere-se às contribuições ímpares de Gilberto Freyre (1963), Arthur Ramos (1947), e Sérgio Buarque de Holanda (1956, 1957), dentre tantos. Dívida maior atribui ao revisionismo histórico de Caio Prado Jr. (1945, 1966). Dialoga com inúmeras fontes tais quais Celso Furtado (1959, 1970, 1972), Costa Pinto (1953), Florestan Fernandes (1972), Oracy Nogueira (1955), Guerreiro Ramos (1952), Maria Isaura Pereira de Queiroz (1965), Fernando Henrique Cardoso (1962), Octavio Ianni (1966), Victor Nunes Leal (1948), Raymundo Faoro (1958), Edison Carneiro (1967). São incontáveis as referências de Darcy Ribeiro ao melhor do pensamento social brasileiro e da literatura, de modo que o elenco acima é inevitavelmente injusto para com os textos e autores não citados, ainda que sirva ao propósito de constatar aqui o genuíno pertencimento de Darcy Ribeiro a uma geração de sábios e dedicados produtores intelectuais de um novo Brasil possível. Darcy fez parte de uma geração de intelectuais e artistas que acreditava irmemente ser possível construir um projeto cultural abrangente para o Brasil e para a América Latina. Um projeto destinado a revolucionar as estruturas do país e do continente, e não apenas reformá-las (...) era uma geração de humanistas que queria nada menos que o todo. (...) E mais que isso: era uma gente que bebeu no modernismo antropofágico da Semana de 1922, ávida por conhecer e fazer valorizar as raízes mais profundas da nossa formação híbrida (...). Darcy pertencia a esse tempo (Ferraz, 2008, p. 10-11). A ideia mannheimiana de intelligentzia3 ganhava vigor nos anos 1950. Aquela geração de homens públicos e algumas mulheres, em antagonismo às elites do atraso, desejava repensar e mudar o Brasil e tinha a consciência de ser este um pedaço da América Latina. Não é gratuito que, no exílio a que tantos foram submetidos a partir dos anos 1960, tal consciência fosse ainda mais reinada. Também não é 3. Os intelectuais públicos, em Karl Mannheim, marcavam-se pela sua formação rigorosa e comprometida com o fazer histórico que lhes permitia um ponto de vista privilegiado para a realização da síntese de elementos díspares na coniguração de uma realidade mais aperfeiçoada que a anterior. A utopia é a síntese a ser alcançada e se realiza plenamente no plano do pensamento, atuando como parâmetro de intervenção na realidade. Esta mentalidade utópica está presente em Darcy Ribeiro, como estado de espírito incongruente com a realidade concreta, desencaixada do diagnóstico de um dado espaço em um determinado momento histórico (Miglievich-Ribeiro e Matias, 2006). Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 111 casual a convicção de Darcy Ribeiro de que O processo civilizatório, que narra os últimos dez mil anos da história humana e situa os latino-americanos na “nova ordem civilizacional global em marcha” (Ribeiro, 2001, p. 245) – só pudesse ter sido escrito por um latino-americano. Assevera: “é um livro latino-americano, brasileiro, escrito no Uruguai” (Ribeiro, 2007, p. 224). Importa ressaltar que não se tratava de uma frivolidade que O processo civilizatório fosse escrito por um brasileiro, a partir do Terceiro Mundo. Segundo Heinz Rudolf Sontag, no Epílogo à edição alemã, tratou-se de uma ousadia sem paralelo à época revisitar a história da humanidade sem reforçar a crença de “que o umbigo do mundo se situa ainda em algum lugar em Viena, Berlim, Bonn, Moscou, Washington ou Roma” (Sontag, 2001, p. 283): Que Ribeiro atribua ao Primeiro Mundo um papel não relevante na realização das sociedades futuras e não lhe reserve senão insuiciências como o socialismo evolutivo, signiica um desaio com o qual tem que se defrontar a teoria crítica no mundo desenvolvido imediata e seriamente, se não quiser correr o risco de desaparecer. Este era o sentido do fazer antropológico para Darcy Ribeiro. Walter Mignolo, argentino, hoje professor na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, um dos mais ativos representantes do movimento intelectual modernidade-colonialidade,4 em seu livro Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar (2003), elegeu Darcy Ribeiro, ao lado de Henrique Dussel e Aníbal Quijano, como seu interlocutor privilegiado. Chamou-o de antropologiano, lembrando sua autodenominação em oposição àquela de antropólogo no sentido hodierno a im de fazer notar sua diferença e resistência em face da antropologia colonial. Expõe na obra darcyniana a tensão permanente do duplo pertencimento: objeto de estudo porque membro da população colonizada e, ao mesmo tempo, sujeito do conhecimento, em luta pelo lócus de enunciação na ciência dita universal. A palavra “antropologiano” constituía, na verdade, um marcador da subalternização do conhecimento: um antropólogo do Terceiro Mundo (Darcy Ribeiro escrevia em ins dos anos 60 e no meio da Guerra Fria e da consolidação dos estudos de área) não 4. A emergência do movimento modernidade-colonialidade – responsável por evidenciar a parte oculta, porém indelével, da modernidade que marca quer as metrópoles quer as colônias (guerras, genocídios, escravidão) dá-se no interior do Grupo de Estudos Subalternos Latino-americanos, na década de 1990, quando algumas de suas mais célebres personalidades, tal qual o próprio Walter Mignolo, denunciam o imperialismo dos estudos culturais e pós-coloniais, incapazes de realizar uma ruptura adequada com cânones eurocêntricos, negando assim a rica tradição cognitiva latino-americana. A modernidade-colonialidade vem enfatizar a trajetória da América Latina de dominação e resistência e a violência do esquema colonial moderno, atualizado nas relações dos Estados Unidos no continente. Mignolo, sugerindo ainda que a matriz colonial do poder é uma estrutura complexa de níveis entrelaçados (economia, Estado, natureza e ambiente, relações de gênero e sexualidade, subjetividades e conhecimento), inclui, a par de outros intelectuais, na agenda do movimento, o debate da diferença colonial e da geopolítica do conhecimento, retomando, a meu ver, preocupações presentes no pensamento crítico latino-americano, e também em Darcy Ribeiro, sobre o lócus de enunciação da ciência moderna. Sobre a modernidade-colonialidade e o Giro decolonial e a América Latina, recomenda-se a leitura do empenho de sistematização de Ballestrin (2012). 112 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil é o mesmo que um antropólogo do Primeiro Mundo, pois o primeiro está no local do objeto, não na do sujeito do estudo. É precisamente no interior dessa tensão que a observação de Darcy Ribeiro adquire sua densidade, uma tensão entre a situação descrita e o local do sujeito no interior da situação que está descrevendo (Mignolo, 2003, p. 35-36). Advindo da Escola de Sociologia e Política, em São Paulo, onde se formou, sobretudo, nos seminários ministrados por Herbert Baldus,5 entendia como tarefa primordial da antropologia “elaborar uma teoria sobre o humano e sobre as variantes do humano e melhorar o discurso dos homens sobre os homens” (Grupione, 1997). Darcy Ribeiro costumava citar a etnologia indígena como sua marca identitária e Rondon (1865-1958) como seu primeiro pai. Os dez anos em que Darcy Ribeiro conviveu com os índios antecederam os chamados políticos posteriores que izeram de Anísio Teixeira sua segunda e não menos deinitiva inluência intelectual e moral, agora, noutra seara, a da educação pública. Por causa de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro vai para Brasília e se incumbe da criação da Universidade de Brasília. É chamado, depois, para ocupar a pasta do Ministério da Educação de João Goulart. Com o retorno do presidencialismo, Jango dá-lhe a cheia de sua Casa Civil. O Golpe Militar de 1964 interrompe as reformas de base a superar com antigos e novos colonialismos e condena ao exílio o presidente deposto e seus colaboradores, inúmeros intelectuais e homens e mulheres de ação. Darcy Ribeiro consegue fazer do exílio um tempo de intensa produção intelectual e, ainda, de participação em projetos de governos latino-americanos até quando estes não eram atropelados igualmente pelas forças golpistas conservadoras. Foi professor, assessorou a criação e a reforma de universidades no continente.6 Neste texto, exponho O processo civilizatório e As Américas e a civilização, ambos publicados em 1968, tendo sido, pois, seus primeiros estudos publicados em antropologia das civilizações. Atento para sua coerência intelectual ao tematizar, também aqui, acerca de O povo brasileiro, de 1995, livro com o qual encerra seu ciclo de relexões sobre a brasilidade e as “americanidades”, tratadas do ponto de 5. Herbert Baldus (1899-1970), etnólogo alemão naturalizado brasileiro, chegou ao país na década de 1920, inseriu-se, desde o princípio, no processo de institucionalização da antropologia no Brasil que se iniciou nos anos 1930, tendo ocupado a cadeira de Etnologia Brasileira na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP), de 1939 a 1960, e assumido, posteriormente, a cheia da seção de Etnologia do Museu Paulista, de 1947 a 1968, vindo também a dirigir aquela instituição. Foi um dos introdutores do funcionalismo e dos estudos de aculturação indígena no país, desempenhando papel de liderança na deinição dos rumos tomados pela discussão de questões indigenistas desde a década de 1930 (Passador, 2002). 6. Darcy Ribeiro propôs as reformas da Universidade da República Oriental do Uruguai, da Universidade Central da Venezuela e do sistema universitário peruano na América do Sul. Colaborou na reestruturação da Universidade de Argel. Elaborou o projeto básico de implantação da Universidade Nacional de Costa Rica e, ainda, ofereceu para a Universidade Autônoma do México o plano de sua Faculdade de Educação e Comunicação (Ribeiro, 2010). Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 113 vista subalterno. Por isso, realizo ainda algumas conexões com o debate decolonial efervescente no continente, postulando a forte presença de Darcy Ribeiro neste. 2 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO E AS AMÉRICAS E A CIVILIZAÇÃO Darcy Ribeiro conta que, ainda nos tempos de estudante de medicina, em 1942, conheceu A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, a qual, inspirada em Morgan, se constituiu em obra fundamental para seu primeiro livro. Fala, também, de seu contato com os Grundrisse de Marx e de como a teoria sobre a formação da sociedade capitalista surpreendeu-o com a explicação das formas sociais anteriores ao escravismo, tais quais os grandes Estados como o Egito, a Mesopotâmia, o México, o Estado Incaico. Tais estudos alertaram-no, entretanto, para a ausência da Península Ibérica – uma formação social historicamente distinta – na narrativa do processo civilizador humano, assim como a enorme lacuna causada pelo silêncio dos povos colonizados. Decidido a incluir a Ibero-América na história das civilizações com base no materialismo histórico e dialético, é irônico diante dos que contestam sua apropriação heterodoxa do marxismo: Conforme se veriica, foi Marx quem me pediu que escrevesse O processo civilizatório. Obviamente, ele esperava uma obra mais lúcida e alentada do que minhas forças permitiam. Ainda assim, ico com o direito de crer que, apesar de tudo, o herdeiro de Marx sou eu (Ribeiro, 2001, p. 31). Marxista à sua maneira, Darcy Ribeiro apresenta-nos doze processos civilizatórios em suas singularidades, com dezoito formações socioculturais distintas, dentre as quais os povos americanos. Sistematiza nada menos que os últimos dez milênios da história dos homens e desenha um esquema da evolução sociocultural, a im de estabelecer algumas ordens possíveis de sucessão de formações socioeconômicas concretas, ainda não incluídas nos grandes tratados de seu tempo (Ribeiro, 2001, p. 29). Expande a história da humanidade ao incluir uma plêiade de formações socioculturais concretas em sincronia que desaiam as classiicações e hierarquizações da história moderna que ocultava a interdependência e a simultaneidade dos múltiplos processos de constituição das sociedades humanas. Elabora em O processo civilizatório uma tipologia a contemplar o que chamou de: i) sociedades arcaicas; ii) civilizações regionais; iii) civilizações mundiais, além dos subtipos. Na primeira formação, descreve as aldeias agrícolas indiferenciadas e as hordas pastoris nômades; na segunda, observa os estados rurais artesanais, as cheias pastoris nômades, os impérios teocráticos de regadio, os impérios mercantis escravistas e os impérios despóticos salvacionistas; no último grupo, nota as formações progressivamente mais híbridas, a saber, os impérios mercantis salvacionistas e o colonialismo escravista, o capitalismo mercantil e os colonialismos modernos; o imperialismo industrial 114 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil e o neocolonialismo, a expansão socialista, projetando, ao im, a civilização da humanidade, ou civilizações humanas, plurais e diversas. A recepção do conceito de evolução multilinear a partir de Julien Steward (1955), somada às contribuições de Leslie White (1959), é especialmente signiicativa em sua obra, possibilitando-lhe a percepção de que as formações socioculturais concretas têm caráter temporal e sincrônico. Também seu conceito de aceleração evolutiva, formulado em contraposição ao de modernização reflexa ou atualização histórica, bem demonstra as variações nos processos de desenvolvimento de cada sociedade particular, levando-se em conta o tipo de relação com as demais sociedades e a forma como conquista, ou não, sua autodeterminação. Se os últimos se expressam na modernização conservadora e dependente, o primeiro conceito liga-se à autonomia cientíico-tecnológica e política. Ultrapassa, em verdade, quer o evolucionismo unilinear quer o multilinear, ao recusar a ideia de quaisquer etapas ixas e necessárias do desenvolvimento. Pensa a história como movimento dialético de progressões e regressões, atualizações históricas (incorporações despojadas de autonomia) e de acelerações evolutivas (Ribeiro, 1991, 2001). Assim, a partir do rompimento evolutivo da condição primitiva, Darcy Ribeiro descreve as diversas feições das sociedades humanas ao longo do tempo. Em suas palavras: Esta construção ideal (diagnósticos homogêneos referentes aos sistemas adaptativo, associativo e ideológico que atravessassem todas as formações. Apresentando em cada uma delas certas alterações signiicativas) está muito distante do possível, em virtude do âmbito de dispersão das variações de conteúdo de cada cultura (Ribeiro, 2001, p. 47-48). Sua antropologia dialética contraria ainda o culturalismo de Franz Boas uma vez que este recusa o conceito de evolução sociocultural e descarta a generalização teórica.7 Em que pese veriicar as qualidades no culturalismo de Franz Boas, que permitiram aos antropólogos atentar para as sociedades e culturas perseguidas e buscar compreendê-las, não aceita o relativismo cultural que permite manter os dominados inconscientes de seu potencial emancipatório. Para Darcy Ribeiro, a aversão dos culturalistas a qualquer evolucionismo obstaculizava a crítica necessária dos povos subalternos à sua condição. Costumava dizer: 7. Darcy Ribeiro antagoniza-se ao boasista Gilberto Freyre em vários aspectos ainda que reconheça a importância de Freyre no pensamento social brasileiro tal como é Tolstói para o povo russo, Camões para os lusos ou Cervantes para os espanhóis. Também admira seu estilo literário, a documentação de pesquisa farta e as observações argutas. Admira ainda seu impacto no movimento de positivação de uma sociedade miscigenada. Contudo, adverte que a antropologia freyriana é colonialista: o protagonista de Casa grande & senzala, por exemplo, é “um dom juan de senzala”. Segundo Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre atribui as mais complexas relações de opressão e dominação numa sociedade colonial escravocrata ao masoquismo dos subalternos e ao sadismo dos senhores. Discordando disto, Darcy Ribeiro nega que haja provas de que os oprimidos o são por masoquismo em qualquer lugar do mundo. Insurge-se, pois, contra a justiicação da opressão por qualquer “atavismo social”, como propõe Freyre, e que ainda o possibilita falar em “equilíbrio de antagonismos”. Darcy Ribeiro ressente-se da ausência de teorização e de generalização no sociólogo pernambucano. Contra o método freyriano da “causação circular”, propõe a antropologia materialista, histórica e dialética (Ribeiro, 2011b). Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 115 Boas (...) hebreu, imigrado, trabalhou em meio ao puritanismo daquela Nova York da virada do século, provavelmente amedrontado com o que sucedera a Lewis Morgan. Era de seus dias a hedionda discriminação que desencadeara sobre o melhor dos etnólogos norte-americanos (...). Tudo isso porque ousara reconstituir em Ancient Society as etapas principais da evolução das sociedades humanas (...) ou sobretudo porque tivera má sorte, seu livro foi cair exatamente nas mãos de Engels, que se entusiasmou com aquele etnólogo do Novo Mundo que encontrara, por outras vias, as mesmas comprovações do caráter transitório e evolutivo das instituições sociais, que Marx estabelecera através do estudo da economia política (...). O efeito deste êxito foi ter recaído sobre Morgan todo o peso do preconceito e da odiosidade antievolucionista e antirrevolucionária do puritanismo e do liberalismo norte-americano (Ribeiro, 2001, p. 31). Recepcionando antropofagicamente, o materialismo histórico e dialético para pensar realidades impensadas por Marx e Engels, antecipava, pois, o Giro decolonial de ins do século XX (Ballestrin, 2012) ao entender que a imposição de classiicações eurocêntricas aos povos novos implica uma clara violência epistêmica. Não reconhece, portanto, na experiência brasileira, as burguesias progressistas em processos de disputa com as aristocracias feudais, nem o proletariado “ungido por irresistíveis propensões revolucionárias” (Ribeiro, 1995, p. 15). Admite a luta de classes e os blocos antagonistas, mas, informado pelo debate nacional-popular, contraria Marx que previu o im dos nacionalismos. Para Darcy Ribeiro, conceitos também como escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo que serviram na explicação da história europeia não bastam na análise dos novos cenários, se não por uma mediação crítica. Indaga, por exemplo, se seriam escravistas as sociedades coloniais, ou se seriam feudais ou semifeudais ou ainda, quem sabe, capitalistas. Como classiicar, uns em relação aos outros, os povos indígenas, que variavam desde altas civilizações até hordas pré-agrícolas e que reagiram à conquista segundo o grau de desenvolvimento que haviam alcançado? Como situar, em relação aos povos indígenas e aos europeus, os africanos desgarrados de grupos em distintos graus de desenvolvimento para serem transladados à América como mão de obra escrava? Como classiicar os europeus que regeram a conquista? Os ibéricos, que chegaram primeiro, e os nórdicos, que vieram depois – sucedendo-os no domínio de extensas áreas –, coniguravam o mesmo tipo de formação sociocultural? Finalmente, como classiicar e relacionar as sociedades nacionais americanas por seu grau de incorporação aos modos de vida da civilização agrário-mercantil e, já agora, da civilização industrial? (Ribeiro, 2001, p. 8-9). Em As Américas e a civilização, Darcy Ribeiro prossegue seu intento original ao integrar as abordagens antropológica, econômica, histórica e política na tentativa de compreensão das realidades americanas. Não recua ante a urgência de sistematizações que ultrapassem a descrição de casos isolados. Admite, porém, que não realizou um estudo acadêmico em sentido estrito, mas “um esforço deliberado de contribuir 116 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil para uma tomada de consciência ativa das causas do subdesenvolvimento” (Ribeiro, 2007, p. 14). Inicia sua narrativa com o estudo da expansão europeia. Lembra que o mundo feudal europeu resultara do contexto que fez se defrontar e hibridizar bárbaros e civilização greco-romana. Ao longo de séculos, neste mundo, foram gestadas as inovações tecnológicas e sociais que, num dado ponto de acumulação, permitiram a restauração do sistema mercantil e a formação de uma nova civilização sob o signo do Renascimento. Os ibéricos, como povos peninsulares, lançaram-se à expansão ultramarina, subjugando os novos mundos. O capitalismo mercantil, segundo Darcy Ribeiro, marcou a dominação imperialista no mundo. A Europa, representada pela Espanha e por Portugal, sociedades nacionais rigidamente estamentadas de base agrário-artesanal, tendo a Igreja Católica como a principal proprietária de terras, encontrou-se, primeiramente, com a América indígena. No processo europeu de expansão, milhões de homens e mulheres diferenciados em línguas e culturas foram submetidos a um único sistema econômico altamente uniformizador que, contudo, não se dava no vácuo, enfrentando a força das resistências e as hibridizações inevitáveis. O resultado da colonização, portanto, jamais foi a recriação de uma civilização ocidental/europeia “pura”, tal como o discurso colonial proclamava. Sequer a Europa seria a mesma após a violência de suas invasões no novo mundo. No decurso do processo civilizatório, todos os povos colonizados foram atingidos da maneira mais profunda e catastróica, desde as bases: a constituição étnica. Tiveram, pois, suas sociedades alteradas e experimentaram a degradação de suas culturas com a perda de sua autonomia. Transmudaram-se, assim, de uma multiplicidade de povos autônomos, com suas tradições autênticas, em poucas sociedades espúrias de culturas alienadas, só explicáveis em seu modo de ser pela ação dominadora que sobre elas exercia uma força e vontade externa (Ribeiro, 2007, p. 71). Incidentalmente, porém, como suplemento não desejado pelos promotores do empreendimento colonial, ocorria o inesperado e se constituíam sociedades novas. Portanto, “através de um esforço secular, realizado em surdina, nas esferas mais profundas e menos explícitas da vida dessas sociedades colonizadas, é que se foi operando o processo de reconstituição de si próprias como povos” (Ribeiro, 2007, p. 72). Na fricção interétnica, “cada contingente humano engajado no sistema global tornou-se, simultaneamente, mais uniforme com respeito aos demais e mais discrepante com relação ao modelo europeu” (Ribeiro, 2007, p. 70-71). A criatividade cultural fez nascer etnias diferenciadas das matrizes originais e, mais tarde, nacionalidades. Era como se, dialeticamente, de dentro da situação Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 117 espúria nascesse uma inédita autenticidade, incomparável a quaisquer das raízes. Entretanto, vistas e tratadas pelo europeu como subumanidade destinada ao papel subalterno na ordem mundial, as gentes morenas e negras ao sul da América internalizavam a tal imagem depreciativa que as condenava ao “atraso”, como uma espécie de atavismo sem sê-lo. Essa autoimagem espúria, elaborada no esforço de situar-se no mundo, de explicar sua própria existência e de atribui-se uma destinação, plasma-se como uma colcha de retalhos feita pela junção de troços tomados de suas antigas tradições com crenças europeias, tal como eles podiam perceber desde sua perspectiva de escravos ou de dependentes (Ribeiro, 2007, p. 73). Tal ideologia colonial e racista atribuiu a uma suposta inferioridade dos povos negros e ameríndios e degradação aos mestiços, combinados à inclemência do clima tropical, a recusa ao desenvolvimento da parte dos povos latino-americanos. Assim, a hierarquização das “raças”, com o branco-europeu no topo, justiicou a violência do processo “colonizador-salvacionista” cujos efeitos persistem a despeito das independências políticas no século XIX. Para Darcy, os “povos novos”8 constituem a coniguração histórico-cultural mais característica das Américas, espraiados em todo o continente. Como populações plasmadas na amálgama biológica e na aculturação de etnias díspares no interior do enquadramento escravocrata e fazendeiro, nasceram os brasileiros, os venezuelanos, os colombianos, os antilhanos, uma parte da população da América Central e do Sul dos Estados Unidos. Os distintos povos europeus a colonizar as Américas geraram, linguisticamente, peris culturais diferenciados: os luso-americanos, os hispano-americanos, os franco-americanos, os anglo-americanos e os batavo-americanos; também tradições religiosas diferentes. Mas a colonização escravista moldou todos eles, assim como o sistema de plantation, de modo que os distintos peris compõem o mesmo bloco latino-americano. No que concerne à matriz africana, Darcy Ribeiro supõe ser mais relevante atentar para a proporção dos seus contingentes integrados em cada população neoamericana do que para a análise da variação cultural dos diversos grupos negros trazidos à América. Alega que, sob as condições de escravidão, houve pouca margem para a ixação das especiicidades culturais de cada um dos inúmeros povos africanos em cada nova etnia nacional. A marca da opressão e do sofrimento da diáspora africana negra e a capacidade de reinvenção de sua humanidade é o que 8. Darcy Ribeiro elaborou sua “tipologia étnico-nacional” dos povos extraeuropeus no mundo moderno, a saber: i) povos-testemunho; ii) povos novos; iii) povos transplantados; iv) povos emergentes. Os primeiros são os sobreviventes de velhas civilizações autônomas sobre as quais se abateu a expansão europeia, a saber, as populações mexicanas, mesoamericanas e andinas, sobreviventes das antigas civilizações asteca, maia e incaica. Os povos novos resultam da “fricção étnica” das matrizes indígenas, negras e europeias. O terceiro grupo são os nascidos no continente, mas pela língua, cultura e peril étnico idênticos aos colonizadores. Os povos emergentes são as nações novas da África e da Ásia (Ribeiro, 2007). 118 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil reúne, em sua visão, as Américas de várias e distintas linhagens amalgamadas às etnias nacionais recém-nascidas, ressaltando, porém, no caso dos negros africanos, as inluências de várias ordens tais como nas religiosidades em que o sincretismo surgiu como inédita forma de resistência à dominação religiosa branca, tornando-se uma marca dos povos neoamericanos. A matriz indígena, o berço ecológico dos primeiros núcleos neoamericanos e suas variantes, por ser nativa, teve, na análise darcyniana, mais chances de expressão do que as negritudes. O primeiro dos núcleos indígenas foram as aldeias agrícolas dos Tupi-Guaranis na costa atlântica da América do Sul, dos Aruak, da loresta amazônica, e dos Karib, do Caribe. Enquanto isso, formaram os Estados rurais artesanais, os araucanos do Chile moderno; os Chibcha, na Venezuela, na Colômbia e na América Central, também os Timote e as confederações Fincenu, Pancenu e Cenufaná, acrescentando-se ainda os Jicague (Nicarágua), os Cuna (Panamá) e alguns outros (Ribeiro, 2007, p. 187). Com relação aos povos novos, Darcy Ribeiro fala das intrusões de contingentes imigrantes transplantados da Europa e da Ásia a partir do século XIX. Alguns aparecem ilhados em determinadas regiões, emprestando-lhes a característica de uma zona europeia, a exemplo do sul do Brasil, e de áreas da América Central e do Chile, mas, na maior parte das vezes, somente são distinguíveis da população nacional por traços fenótipos, estando imersos no ethos nacional. Assim ocorre com diversas populações do centro e norte europeus, também, japoneses, chineses e indianos do Brasil, do Peru e do Caribe. Ainda que não se possa falar que o novo ethos dos povos extraeuropeus, assentado em seus próprios códigos valorativos, interrompeu o ciclo civilizador europeu, Darcy Ribeiro vê com otimismo crescer no continente a aceitação e o orgulho “da própria igura humana nacional mestiça” (Ribeiro, 2007, p. 75). Os latino-americanos são hoje o rebento de 2 mil anos de latinidade, caldeada com populações mongoloides e negróides, temperada com a herança de múltiplos patrimônios culturais e cristalizada sob a compulsão do escravismo e da expansão salvacionista ibérica. Vale dizer, são a um tempo uma civilização velha como as mais velhas, enquanto cultura; metida em povos novos, como os mais novos, enquanto etnias. O patrimônio velho se exprime, socialmente, no que tem de pior: a postura consular e alienada das classes dominantes; os hábitos caudilhescos de mando e o gozo do poder pessoal; a profunda discriminação social entre ricos e pobres, que mais separa os homens do que a cor da pele; os costumes senhoriais, como o gozo do lazer, o culto da cortesia entre patrícios, o desprezo pelo trabalho, o conformismo e a resignação dos pobres com sua pobreza. O novo se exprime na energia airmadora que emerge das classes oprimidas, ainal, despertas para o caráter profano e erradicável da miséria em que sempre viveram; na assunção cada vez mais lúcida e orgulhosa da própria imagem étnico-mestiça; no Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 119 equacionamento das causas do atraso e da penúria e na rebelião contra a ordem vigente (Ribeiro, 2007, p. 77). Os desaios para a superação do atraso e do subdesenvolvimento marcam ainda os povos (não tão) novos. Darcy Ribeiro retoma seu conceito de modernização reflexa, explicitado em O processo civilizatório, que descreve a inserção subordinada de povos atrasados em formações socioculturais estruturadas e em sistemas tecnologicamente superiores, o que implica a inclusão subalterna e, no limite, a destruição de um povo como entidade étnica. Opõe a esta a aceleração evolutiva (atualização histórica), ou desenvolvimento autônomo – único desenvolvimento real – com o poder de produzir inéditos desdobramentos para seu processo civilizatório. 3 O POVO BRASILEIRO No prefácio de O povo brasileiro (1995), Darcy Ribeiro declara-se uma vez mais: “além de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço política e faço ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo” (Ribeiro, 1995, p. 17). Diz pretender mais que “um texto antropológico explicativo”, expressar seu “gesto” na “nova luta por um Brasil decente” (Ribeiro, 1995, p. 17). Darcy Ribeiro narra o povo brasileiro nascido de contínuos e violentos atos que vêm caracterizar a história de nossa uniicação política. Intitula o capítulo que inicia a segunda parte de seu livro signiicativamente: Brasil: criatório de gente. É o antropólogo Darcy que fala da instituição social que explica o Brasil em seu nascedouro: o “cunhadismo”, antiga prática indígena para incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhes dar uma moça índia como esposa e, assim que o homem estranho a tribo a assumisse, deixava de sê-lo e estabeleciam-se, automaticamente, mil laços que o aparentavam a todos os membros do grupo. Isso se alcançava graças ao sistema de parentesco classiicatório dos índios, que relaciona, uns com os outros, todos os membros de um povo. Como cada europeu posto na Costa podia fazer muitíssimos desses casamentos, a instituição funcionava como uma forma vasta e eficaz de recrutamento de mão-de-obra para os trabalhos pesados (...). A função do cunhadismo na sua nova inserção civilizatória foi fazer surgir numerosa camada de gente mestiça que efetivamente ocupou o Brasil. (...) Sem a prática do cunhadismo, era impraticável a criação do Brasil (Ribeiro, 1995, p. 83). Darcy Ribeiro explica a efetividade da transiguração étnica brasileira sob o prisma da “continuidade, através dos séculos, de elementos cruciais da ordenação social arcaica, da dependência da economia e do caráter espúrio da cultura” (Ribeiro, 1995, p. 261). Recorda o nome pelo qual os jesuítas espanhóis chamaram os primeiros brasilíndios: “mameluco”, em referência a uma casta de escravos que os árabes tomavam de seus pais para criar e adestrar em suas casas-criatórios, 120 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil onde cresciam, então, até que se revelando talentosos no exercício do mando e da soberania islâmica sobre o próprio povo de que foram tirados, eram devolvidos a este como seus cruéis capatazes. A analogia é perturbadora, mas serve, ao que parece, aos ilhos bastardos do pai branco, por este rejeitado, ignorado pelos irmãos europeus, negando a mãe índia e seus irmãos nativos, o brasilíndio nasce sob a marca da ninguendade, como não ser, incapaz de (se) reconhecer/ser reconhecido no/pelo outro. Assim, um Brasil que nasce “ninguém”, fruto do perverso processo de “desindianização”, “desafricanização” e “deseuropeização” de contingentes humanos, assim permanece na continuidade do Brasil arcaico que convive com os efeitos de uma industrialização dependente. Modernos na periferia do mundo, desenvolvemos uma forma singular de organização sócio-econômica que combinou o escravismo e a servidão à economia capitalista internacional. O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não índios, não europeus e não negros, que eles se veem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a brasileira (Ribeiro, 1995, p. 131). Conta-nos Darcy Ribeiro acerca dos brasileiros-brasilíndios-mamelucos que, castigando as gentes de sangue materno, expandem o domínio português na constituição do Brasil ao mesmo tempo em que o sistema colonial moderno interrompe a linha evolutiva prévia das populações indígenas, ora subjugadas como mão de obra servil de uma nova sociedade integrada numa etapa mais elevada da evolução sociocultural mediante a perda da autonomia étnica de seus núcleos primordiais. Na usurpação da identidade étnica, sobrevive, contudo, a nova “etnia nacional”, com todas as consequências de mutação cultural e social e de redeinição do ethos tribal. Não menos dolorosa é a transiguração étnica que fez nascer o brasileiro-mulato. Os primeiros contingentes de negros foram introduzidos no Brasil a partir de 1538. Com o desenvolvimento da cana-de-açúcar é que passaram a chegar em grandes levas constituindo-se no “grande negócio dos europeus” (Ribeiro, 1995, p. 161), em que imensos capitais eram investidos. A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eicácia incomparável. Submetido a essa compreensão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois, para ser outro, quando transigurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação dos seus interesses (Ribeiro, 1995, p. 118). Esta célula cultural neobrasileira, diferenciada e autônoma em seu processo de desenvolvimento, pode ser notada a partir de meados do século XVI, associada Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 121 ao modo de produção açucareiro. As feitorias ultramarinas, destinadas a produzir gêneros exóticos de exportação e daí extrair seus valores pecuniários, eram dirigidas por vontades e motivações externas a uma comunidade cativa. O senhor de engenho, situado na posição dominante do processo social, usufruía de uma autoridade que a própria nobreza jamais obtivera no reino. Diante dele se curvavam não apenas os braços da lavoura, mas os submissos clero e administração do colonizador. Elites integradas num sistema único que regia a ordem econômica, política, religiosa e moral, conformando uma oligarquia. Diante desta, apenas se igualava a camada parasitária de armadores e comerciantes exportadores de açúcar e importadores de escravos – que era também quem inanciava os senhores de engenho. Entretanto, não havia vácuo a sugerir antagonismos. Nenhuma disputa era mais relevante do que a complementaridade de seus interesses nos empreendimentos lucrativos. Darcy Ribeiro interroga-se como negros e índios submetidos a tal processo de deculturação puderam permanecer humanos num sistema que nega a condição humana. Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem icar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos (Ribeiro, 1995, p. 120). Responde que a subordinação, jamais voluntária, somente podia ser explicada pela força da opressão aliada à mais fervorosa vigilância e ao uso constante de castigos preventivos capazes de levar o ser humano a se esquecer de si. Exalta a fuga como a mais forte motivação do cativo para permanecer vivo. Destaca o conlito racial, que não oculta, ao contrário, elementos classistas como a marca da história brasileira, permeada por antagonismos entre negros e seus senhores.9 Palmares é o caso exemplar de enfrentamento inter-racial em seu caráter mais cruento. Continha este um projeto de sociedade de bases igualitárias e pautada na economia solidária cuja pronta ação repressora, aquela que sustenta o latifúndio, aniquilou. Darcy Ribeiro, por isso, não oculta nem subestima as dores do parto do povo brasileiro, gerados como proletariado externo, provedor colonial de bens para o mercado mundial. Modernos na periferia do mundo, desenvolvendo uma forma singular de organização socioeconômica a combinar o escravismo e a servidão à economia capitalista internacional. 9. Acerca da “democracia racial brasileira”, Darcy Ribeiro é objetivo: “O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, ‘democracia racial’, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conlitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos” (Ribeiro, 1995, p. 24). 122 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil A nacionalidade entendida como sociedade politicamente constituída a partir de um patrimônio comum de lembranças e expectativas, como sentimento de pertencimento a um coletivo e adesão voluntária de cidadãos a uma identidade comum é uma experiência desconhecida na formação do país. Nunca houve, aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente (Ribeiro, 1995, p. 446). Houve, sim, uma cúpula homogênea a congregar interesses internos e externos alheios ao povo aqui nascido. Tais elites – e não o povo – é que resistem às mudanças e à superação do atraso cuja modernização reflexa é perniciosa visto que falsa. Não há, como o discurso colonial empenha em nos convencer, qualquer atavismo, essencialismo e determinismo que impeçam o povo brasileiro de alçar sua soberania e autonomia, que não se deixará guiar pelos “manuais das civilizações” do Velho Mundo: “Nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente não era necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futuro comum” (Ribeiro, 1995, p. 13). Darcy Ribeiro opta, portanto, em acreditar no Brasil “que podemos ser”. Nascidos “ninguém” sob o crivo da crueldade, por algum elemento, reinventamo-nos. São muitos os brasileiros: sertanejos nordestinos, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do sudeste e do centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, citadinos também de uma sociedade urbano-industrial capturada pelos meios de comunicação de massa. Trata-se de um povo que, a despeito das especiicidades adaptativas regionais e da miscigenação, vê-se como tal. A identidade nacional, conforme já dito, não isenta, ao contrário, o povo brasileiro de disparidades, contradições e antagonismos que emergem de uma história de integração feita de continuados e violentos atos repressivos. Contudo, se nas “crenças coparticipadas, vontades coletivas abruptamente eriçadas, nestas as coisas se dão” (Ribeiro, 1995, p. 269), tornou-se, ao longo de quinhentos anos, este “povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado” (Ribeiro, 1995, p. 453). A saga do povo brasileiro contada por Darcy Ribeiro encerra-se de modo eloquente: da ninguendade que traduziu o assassinato de suas matrizes originais, dialeticamente, nasce um povo que ainda se revelará a si mesmo como uma nova Roma, bem melhor que a antiga, a tropical. Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso auto-sustentado. Estamos nos construindo na luta para lorescer amanhã como uma Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 123 nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra (Ribeiro, 1995, p. 120). 4 POR UMA DESCOLONIZAÇÃO EPISTEMOLÓGICA: O DEBATE ATUAL Desde o século XVI, a América Latina e seus povos foram objeto de descrição colonial. O descobrimento do Novo Mundo pela violência dos poderes coloniais e a subjugação do Oriente, com a ascensão da França e Grã-Bretanha à hegemonia mundial, negaram os conhecimentos e saberes dos povos e civilizações não ocidentais como partícipes do patrimônio da humanidade. A ciência moderna eurocêntrica deslegitimou-os e a seus portadores, classiicando-os abaixo do nível da herança greco-romana. Mignolo reconhece na obra darcyniana um esforço de deslocamento de formas hegemônicas do conhecimento a traduzir “um sangrento campo de batalha na longa história da subalternização colonial do conhecimento” (Mignolo, 2003, p. 35). Nesse sentido, propõe a atualidade da contribuição de Darcy Ribeiro para o debate então em voga que põe em xeque as macronarrativas que negligenciaram a perspectiva da colonialidade. Para Mignolo, assim como para o movimento teórico latino americano de raízes andinas, modernidade-colonialidade, que projeta, em nível mundial, também outros expoentes como Grosfoguel, Arturo Escobar, Fernando Coronil, Maldonado-Torres, Castro Gómez, dentre outros, é condição sine qua non repensar a globalização hoje através do deslocamento do lugar de enunciação. As teorias construídas a partir do chamado Terceiro Mundo não são apenas para o Terceiro Mundo, como se se tratasse de uma “contracultura ‘bárbara’ perante a qual a teorização do Primeiro Mundo tem de reagir e acomodar-se” (Mignolo, 2003, p. 417). Mas são teorizações, tão legítimas quanto as que vêm do hemisfério setentrional, e não podem ser descartadas ou subestimadas mais na elaboração da crítica da modernidade. “Remapear a nova ordem mundial implica remapear as culturas do conhecimento acadêmico e os loci acadêmicos de enunciação em função dos quais se mapeou o mundo” (Mignolo, 2003, p. 418). Ampliicar as vozes e a audição das vozes em todo o planeta, abranger um mundo de histórias locais e propor inéditas articulações da diferença cultural são os desaios da crítica pós-colonial, à qual se alia o giro decolonial latino-americano. Não se quer mais um projeto homogeneizador das diferenças sob o signo do universalismo que matou gentes, culturas, civilizações. Projeta-se um inédito humanismo, pode-se dizer, que, como um novo medievalismo, tem a “diversalidade como projeto universal” (Mignolo, 2003, p. 420). A pós-colonialidade é tanto um discurso crítico que traz para o primeiro plano o lado colonial do sistema mundial moderno e a colonialidade do poder embutida na própria modernidade, quanto um discurso que altera a proporção entre locais geoistóricos (ou histórias locais) e a produção de conhecimentos. O reordenamento da geopolítica 124 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil do conhecimento manifesta-se em duas direções diferentes mas complementares: 1. A crítica da subalternização na perspectiva dos estudos subalternos; 2. A emergência do pensamento liminar como uma nova modalidade epistemológica na interseção da tradição ocidental e a diversidade das categorias suprimidas sob o ocidentalismo; o orientalismo (como objetiicação do lócus do enunciado enquanto “alteridade”) e estudos de área (como objetiicação do “Terceiro Mundo”, enquanto produtor de culturas, mas não de saber) (Mignolo, 2003, p. 136-137). Não seria correto tratar a modernidade-colonialidade como um movimento absolutamente novo, nem seus representantes ambicionariam isto, ao contrário. Cada qual traz seu aporte crítico de não poucas jornadas intelectuais, iniciadas não de hoje no contato com importantes referências do pensamento latino-americano. Portanto, nas bases do movimento, podem-se veriicar as preocupações de Salazar Bondy, Leopoldo Zea, Enrique Dussel e da chamada Filosoia da Libertação. Também, constatam-se as inluências de José Martí e José Carlos Mariátegui. Especiicamente, no que se refere a esta pesquisa, podem-se encontrar referências diretas à obra de Darcy Ribeiro que contribuem, portanto, na elaboração de Mignolo acerca do que chama pensamento liminar. Para Mignolo, o continente latino-americano é uma localização geoistórica central10 na produção de conhecimentos mundiais do ponto de vista do pensamento liminar, isto é, sob um novo horizonte cognitivo nascido da atitude descolonizadora da ciência e de seus cânones que esmagaram, secularmente, as culturas não letradas e quaisquer saberes não classiicáveis segundo os critérios daquela que se impunha como a Razão (pseudo) Universal. Para falsiicá-la, o pensamento liminar resgata um acúmulo de saberes silenciados pelos colonizadores na forma de uma emergente e poderosa gnosiologia. Ao insistir nas ligações entre o lugar da teorização (ser de, vir de e estar em) e o lócus de enunciação, estou insistindo em que os loci de enunciação não são dados, mas encenados. Não estou supondo que só pessoas originárias de tal ou qual lugar poderiam fazer X. Permitam-me insistir em que não estou vazando o argumento em termos deterministas, mas no campo aberto das possibilidades lógicas, das circunstâncias históricas e das sensibilidades individuais. Estou sugerindo que aqueles para quem as heranças coloniais são reais (ou seja, aqueles a quem elas prejudicam) são mais inclinados (lógica, histórica e emocionalmente) que outros a teorizar o passado em termos de colonialidade. Também sugiro que a teorização pós-colonial relocaliza as fronteiras entre o conhecimento, o conhecido e o sujeito conhecedor (razão pela qual enfatizei as cumplicidades das teorias pós-coloniais com as “minorias”) (Mignolo, 2003, p. 165-166). 10. Mignolo introduz a ideia de “gnose” e “gnosiologia” para falar de um conhecimento além das culturas acadêmicas, portanto, não redutíveis aos usuais termos “epistemologia” e “hermenêutica” que conformaram as duas culturas modernas, respectivamente, as ciências e as humanidades. Seu propósito, com isto, é a descolonização e a transformação da rigidez das fronteiras epistêmicas e territoriais estabelecidas e controladas pela colonialidade do poder na construção do sistema mundial colonial-moderno (Mignolo, 2003). Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 125 O pensamento anticolonial de Darcy dialoga com o pensamento pós-colonial e decolonial pela ampliação do universal. Em comum, atentam para a violência da colonização e suas sequelas nas dimensões econômica e simbólica da vida social ontem e hoje. Também, Darcy Ribeiro sabia, assim como Frantz Fanon,11 ícone fundador do pós-colonial em África, que as estratégias de subordinação e desumanização/reiicação que produziram o colonizado, tornado “espectador sobrecarregado de inessencialidade” (Fanon, 1971, p. 26), produziram também o colonizador. Ambos concordariam que, sem a crítica radical ao projeto moderno do ponto de vista subalterno, a exigir a exibição de suas faces ocultadas: a colonização, o racismo, o sistema escravocrata, os genocídios, a garantir os benefícios da modernização para muito poucos, não se conseguirá ver da reorganização dialética da herança colonial, que contém o gérmen de um povo livre, portanto, o nascimento de homens e mulheres novos, híbridos e iguais, a conviver (bem) em sua diversidade posto que sustentada no fato que os iguala: todos e todas têm suas próprias aptidões e conhecimentos. O hibridismo, entendido como diferença cultural 12 é a própria impossibilidade dos modelos, das referências e dos padrões. O híbrido é uma fratura no universalismo hegemônico, uma fenda que corrói o projeto ocidental-setentrional de modernidade, que demonstra que a cultura é, antes de tudo, o local da incerteza, da indecibilidade, na qual as rearticulações incessantes entre classes, gêneros, raças e nações se processam. Segundo o pós-colonial Silviano Santiago: A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se airma, se mostra mais e mais eicaz. A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental, graças ao movimento de desvio da norma, ativo, ativo e destruidor, que transigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo (Santiago, 2006, p. 16). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A crítica pós-colonial ganha visibilidade na segunda metade do século XX com os movimentos de descolonização na África e no Sul da Ásia. Herda do pós-modernismo a denúncia das profundas conexões entre saber e poder e se 11. Martinicano, que lutou na Frente de Libertação Nacional da Argélia, era psiquiatra e tornou-se autor de livros célebres tais como Pele negra, máscaras brancas (1952) e Os condenados da terra (1961). Sobre a recepção da obra de Fanon no Brasil, ver Guimarães (2008). 12. “A diferença cultural é o espaço onde emerge a colonialidade do poder. A diferença cultural é o espaço onde as histórias locais que estão inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histórias locais que os recebem; é o espaço onde os projetos globais são forçados a adaptar-se, integrar-se ou onde são adotados, rejeitados ou ignorados. A diferença colonial é, inalmente, o local ao mesmo tempo físico e imaginário onde atua a colonialidade do poder, no confronto de duas espécies de histórias locais visíveis em diferentes espaços e tempos do planeta” (Mignolo, 2003, p.10). 126 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil consolida, segundo Costa (2006), pela constatação de que todo enunciado parte de um lugar que reproduz as relações neocoloniais para se manter hegemônico: (...) sua crítica ao processo de produção do conhecimento cientíico que, ao privilegiar modelos e conteúdos próprios ao que se deiniu como a cultura nacional nos países europeus, reproduziria, em outros termos, a lógica da relação colonial. Tanto as experiências de minorias sociais como os processos de transformação ocorridos nas sociedades nãoocidentais continuariam sendo tratados a partir de suas relações de funcionalidade, semelhança ou divergência com o que se denominou centro (Costa, 2006, p. 117). Se parece inadequado, num primeiro momento, falar em pós-colonial na América Latina dado que a independência da maioria de seus países fora conquistada no início do século XIX, e a crítica pós-colonial, com este nome, data da segunda metade do século XX, pode-se buscar melhor denominação na leitura, por exemplo, do cubano Roberto Retamar, com o qual Mignolo diz ter aprendido um conceito novo, por aquele elaborado em 1974, o pós-ocidentalismo (Mignolo, 2003, p. 153), que permitiria a agregação da América Latina, Caribe, África do Norte e África subsaariana. Também, o pós-ocidentalismo permitiria contemplar desde o império espanhol após o século XVI até a emergência dos Estados Unidos, potencializando a crítica. Entretanto, se não for dada excessiva importância às denominações dos movimentos teóricos, e enfatizado o que os une, sabendo que pessoas, formas de vida e ideias transitam e hibridizam-se intergeracionalmente, não há maiores riscos em se dizer que o pós-colonial, aqui abarcando os estudos subalternos latino-americanos e a vertente da modernidade-colonialidade, produzem juntos, no diálogo com pensamento crítico latino-americano, há bem mais tempo, a desconstrução do chamado Ocidente em sua falsa consciência como bloco monolítico a contrastar com um outro (o Oriente ou o Sul Global ou o colonizado) que, também, jamais foi uniforme. Falou-se de descolonização epistemológica que impõe a tarefa da superação dos neocolonialismos, também na universidade. Não é gratuito, pois, que o nome de Darcy Ribeiro se revele tão atual. Ainal, qual era sua obsessão que não a aposta na capacidade e inteligência de pensarmos por nós mesmos? Em carta-resposta de Roberto DaMatta, num conlito acompanhado pela mídia entre Darcy Ribeiro e a congregação de antropólogos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), escreveu: Quisera para o Brasil uma antropologia descolonizada. Se possível, uma antropologia tão boa no campo humanístico que trate logo de devolver aos índios o que aprendeu deles. Uma antropologia tão eicaz no plano sociopolítico que permita até aposentar, por dispensável, o materialismo histórico. E, quem sabe – se já não é desvario meu pedir tanto a vocês –, uma antropologia sem conivências com o despotismo, que ajude o Brasil a sair desse atoleiro de um subdesenvolvimento que se subdesenvolve cada vez mais (Ribeiro, 2011a, p. 147). Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial 127 Por reiteradas vezes e diversos meios, muito além do diálogo combativo com os colegas do Museu Nacional, Darcy Ribeiro explicitara suas convicções em torno da ciência que fazia. Não aceitava vê-la majoritariamente desvinculada da temática brasileira. Não se conformava em vê-la deslumbrada com as últimas novidades dos centros estrangeiros. Lamentava que Manoel Bomim, citado no início deste texto, fosse menos conhecido pelos recém-doutores, do que Lévi-Strauss, Victor Turner e Peter Berger. Haviam de ser, somente, igualmente conhecidos. E que os cientistas brasileiros de hoje soubessem relê-los e criticá-los, a luz de seu próprio patrimônio cultural, em permanente revisão, fundamentados em renovadas e mais abrangentes interpretações da realidade brasileira. Sabia dos malefícios dos “transplantes teóricos” na construção do discurso de nação que mantêm ainda os brasileiros, na consciência de tantos, como inferiores em relação aos padrões etnocêntricos do norte. Na prática, o povo brasileiro ainda é culpabilizado em saraus acadêmicos por suas próprias mazelas sem que estas sejam relacionadas às práticas de dominação e de acumulação que interessam a uma minoria ilustrada e enriquecida, quer nacional quer estrangeira porque coniventes. Sobre os índios, a paixão primeira de Darcy Ribeiro, lamenta-se que destes e de suas condições de degradação ninguém consiga saber se conta para isso unicamente com a produção brasileira dita universitária hoje. De Darcy Ribeiro, não se esperava um discurso menos indignado. Suiciente para alijar sua obra ainda do pensamento social brasileiro, mas não para sempre, como demonstram esforços recentes cuja enumeração seria invariavelmente injusta. Por im, Darcy Ribeiro não admite que a crítica necessária às metanarrativas na história seja tomada como inviabilizadora da busca das explicações gerais, devendo estar atenta – o que não é um paradoxo – às singularidades. Mais uma vez, parece aproximar-se do pensamento liminar proposto por Mignolo (2003) que, ao contrário da fragmentação, pretende a articulação das diferenças, não a universalidade, também não a incomunicabilidade entre seres, culturas, histórias, mas a diversalidade. Diz Darcy: Tentaremos (...) estabelecer as bases e os limites dentro dos quais nos propomos formular um esquema evolutivo geral (...) uma explanação teórica ideal construída pela redução conceitual da multiplicidade de situações concretas registradas pela arqueologia, pela etnologia e pela história, a um paradigma simpliicado da evolução global das sociedades humanas, mediante a deinição de suas etapas básicas e dos processos de transição de uma a outra dessas etapas (Ribeiro, 1991, p. 45). Destacando os elementos de criatividade nas culturas nos modos de intervenção na natureza quer na produção de bens quer na institucionalização de novas relações sociais, Darcy Ribeiro recusa a pretensão positivista e Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 128 homogeneizadora da ciência moderna e, nas lutas que ainda travaria, após seu retorno do exílio, sobretudo na educação pública e na questão indígena, revelaria a consistência de sua aposta decolonial. REFERÊNCIAS ABREU, J. C. Capítulos da história colonial – 1500/1800. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1934. BALDUS, H. Depoimento. Revista brasileira de informação bibliográfica em ciências sociais (BIB), São Paulo: ANPOCS, n. 44, 1997. BALLESTRIN, L. O giro decolonial e a América Latina. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 36., 2012, Águas de Lindoia, São Paulo. Anais... Águas de Lindoia, 21 a 25 de out. 2012. p. 1-32. BOMFIM, M. A América Latina. Males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. 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CAPÍTULO 5 SUBDESENVOLVIMENTO, SERGIO BUARQUE DE HOLANDA E O HOMEM CORDIAL – A IMPORTÂNCIA DA ESPECIFICIDADE RADICAL DA FORMAÇÃO HISTÓRICA DO BRASIL E DE SEU SUJEITO André Bojikian Calixtre1 Vain, very vain, my weary search to ind That bliss which only centres in the mind: Why have I strayed from pleasure and repose, To seek a good each government bestows? In every government though terrors reign, Though tyrant kings, or tyrant laws restrain, How small, of all that human hearts endure, That part which laws or kings can cause or cure! Still to ourselves in every place consign’d, Our own felicity we make or ind: With secret course which no loud storms annoy, Glides the smooth current of domestic joy. The lifted ax, the agonizing wheel, Luke’s iron crown, and Damien’s bed of steel, To men remote from power but rarely known, Leave reason, faith, and conscience, all our own. (Oliver Goldsmith, The Traveller, 1764) 1 INTRODUÇÃO Na visão do longo processo histórico de formação econômica do Novo Mundo, especialmente para o caso da América Latina, o recorte lógico que permite traduzir a dinâmica capitalista que, afastada de seu núcleo central, cria uma relação intrínseca e não antagônica entre modos de vida arcaico e moderno é a perspectiva do desenvolvimento e expansão do sistema capitalista essencialmente desigual e combinado.2 O dinamismo periférico é entendido, em suas diversas interpretações, como a reprodução e expansão de uma sociedade capitalista subdesenvolvida, não 1. Técnico de Planejamento e Pesquisa na Diretoria de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais (Deint) do Ipea. Mestre em economia social e do trabalho e doutorando em história econômica, ambos pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 2. Não se pretende, neste espaço, desenvolver o debate teórico da Teoria do desenvolvimento desigual e combinado, que é essencialmente uma apreensão da dinâmica da acumulação e da incapacidade inclusiva de expansão do capital no sistema de Estados nacionais. Como base para este debate teórico, ver Lenin (1963) e Trotsky (1977). 132 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil no sentido escalar de mais ou menos desenvolvimento, mas sim uma especiicidade radical na formação histórica dessa sociedade, que a difere profundamente de seus pares centrais, ainda que compartilhe do mesmo modo de vida. Esse olhar indagado sobre a difusão do modo urbano-industrial de vida pode ser considerado como um dos fundamentos mais importantes do pensamento crítico sobre o desenvolvimento em solos periféricos; não obstante, é seguramente uma das perguntas mais controversas a ser feita sobre a América Latina e sua história. A problemática do subdesenvolvimento constitui-se no método de interrogação da história da periferia do sistema capitalista que reproduz e difunde padrões desiguais de difusão do progresso técnico, que, por sua vez, traduzem-se em padrões distintos de conformações socioeconômicas reprodutoras desta desigualdade originária. Essa tradição aparece globalmente nos escritos de Raul Prebisch, em 1958, na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), e será apropriada pelo estruturalismo de Celso Furtado, mas tem seu pioneirismo algumas décadas antes, com a experiência do modernismo e da necessidade de interpretação dos países latino-americanos pela ótica da especiicidade radical de sua formação colonial dentro de uma expansão do Ocidente ainda por ser criado. Nessa tradição, por parte do Brasil, reside a obra da chamada “geração de 1930” (Antônio Cândido) que, dentro de seus protagonistas, tem forte representação na obra de Sergio Buarque de Holanda. A especiicidade radical da formação do Novo Mundo será a base da temática do subdesenvolvimento. Uma de suas sínteses, posteriormente interpretada por Florestan Fernandes, atingiu tamanha intensidade e clareza intelectual sobre tantos aspectos da formação histórica, social e econômica do Brasil que, por isso, é capaz de emanar grandes contradições, pois: A civilização ocidental não se espraiou como as águas de um rio que transborda, ela se corrompeu, se transformou e por vezes se enriqueceu, convertendo-se numa variante do que deveria ser, à luz dos modelos originais. O que interessa (...) é que, apoiando-se nos rebentos de uma mesma civilização, transplantada ao longo de um amplo e contínuo processo de migrações sucessivas ou por meio da difusão cultural, os homens reconstruíram esta civilização e, por isso, escreveram através dela uma história econômica, social e cultural particularíssima, que nos dá a justa medida do que pode e do que deve ser a dita civilização a partir de uma condição colonial permanente, embora instável e mutável (Fernandes, 1968, p. 26, grifo nosso). A constituição de sociedades expandidas pelo Ocidente criou, de fato, uma nova matriz civilizacional, dotada de uma sociológica particular que se misturou estruturalmente à história do Ocidente. No entanto, a ênfase dada ao caráter, ainda que permanentemente renovado e mutável, da condição colonial, apesar de constituir-se na linha geral do desenvolvimento capitalista periférico, retirou parte da força expressiva de um “outro” ocidente, ou da possibilidade real de existirem múltiplos caminhos civilizacionais, independentemente de realizarem-se ou não Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 133 os pré-requisitos da civilização ocidental. A especiicidade radical da formação do sujeito habitante dessas sociedades expandidas pelo Ocidente pode ser observada com mais vigor nos autores originários desse pensamento sobre o subdesenvolvimento, durante o inal da década de 1920 e por toda a década de 1930. A consolidação de uma teoria do subdesenvolvimento teve origem em uma pergunta anterior, formulada pelos pioneiros da interpretação do Brasil no auge da experiência do modernismo. A pergunta central – por que somos o que somos? – foi feita, com uma incomum lucidez, por Sergio Buarque de Holanda, então um jovem historiador que, com a experiência adquirida aos 18 anos com a Semana de Arte Moderna de 1922, escreveu, durante sua estadia na Alemanha, entre 1928 e 1931, um manuscrito intitulado “Teoria da América” – segundo entrevista publicada na Hispanic American Historical Review, em 1982 (Martins, 2009, p. 198) –, do qual alguns capítulos transformaram-se num dos mais importantes ensaios sobre a formação brasileira. A mesma pergunta foi também elaborada por praticamente todos os intérpretes do Brasil e, como toda questão fundamental, constantemente precisa ser refeita. No tempo desses patronos do pensamento social, a resposta combinava-se com nacionaldesenvolvimentismo e a promessa de superação do subdesenvolvimento. Porém, essa especiicidade radical reproduziu-se, renovou-se e modernizou-se nas estruturas econômicas do capitalismo inanceiro contemporâneo, reforçando o problema da formação nacional sob os escombros de uma era que, para os clássicos, determinava respostas enfatizadas em categorias de análise que, hoje, devem ser recolocadas.3 Inspirada nas contribuições seminais de Buarque de Holanda para a interpretação do Brasil, a proposta deste capítulo é apresentar uma relexão sobre o desenvolvimento do capitalismo ocidental como permanente (re)escritor de civilizações. O centro da análise é a categoria original criada pelo historiador, que sintetiza tanto a herança histórica colonial mercantil-escravista sem a presença da tradição quanto a construção de uma sociedade urbano-industrial sem a presença do moderno. Quando o Ocidente expandiu-se para o Novo Mundo latino-americano e nele misturaram-se a matrizes africanas e indígenas para gerar outro habitante, de qualidades radicalmente distintas de cada elo de sua tríplice matriz, nasceu o tipo sociológico, econômico e político que posteriormente seria reconhecido como o homem cordial.4 Busca-se apresentar, no capítulo, que esse “novo homem”, nascido 3. Exemplo disso está no próprio pensamento de Florestan, que descreve como ninguém aspectos sociais da modernização do arcaico, fonte segura para que se interprete o atual “ajuste”, entre elites e povo brasileiro, de reinserção da economia nacional aos novos luxos internacionais, reintegrando as populações mediante, por um lado, o consumo, e, por outro, a generalização da informalidade e da desigualdade profunda do capitalismo. Exemplo maior ainda está na forma como o próprio Buarque de Holanda executou, na primeira edição de Raízes do Brasil, uma das mais intensas sínteses sociológicas do Brasil num único conceito, o Homem Cordial, para, depois, ele mesmo, diminuir sensivelmente seu potencial explicativo nas edições seguintes, cujo debate será resgatado adiante, neste capítulo. 4. Para identiicação deste tipo sociológico, ver Dahrendorf (1969). 134 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil da especiicidade radical da formação brasileira, articulou-se com as forças profundas do capitalismo, em permanente processo de subordinação e autonomização entre distintas civilizações no mesmo Ocidente, mantendo como referência a centralidade de Raízes do Brasil, obra-prima do patrono Sergio Buarque de Holanda. 2 O NASCIMENTO CONSCIENTE DO HOMEM CORDIAL Apesar de fortemente associado à obra individual de Buarque de Holanda, o conceito de homem cordial somente ganhou sentido por ter-se associado, desde o princípio, a um esforço coletivo de interpretação do Brasil, que transcendeu gerações e perpassou obras fundamentais do pensamento social brasileiro. Pelo próprio caráter pessoal do historiador, Buarque de Holanda é compreendido se exposto da forma que ele sempre foi lembrado: entre amigos. A leitura de clássicos do pensamento brasileiro,5 considerando antagônicos espectros interpretativos, aponta um incômodo que permaneceu inconsciente por gerações, ora obliterado, posto que exercido seus determinantes, ora se mostrando objetivamente na força criativa e organizadora da formação nacional, na fonte da especiicidade e da diferença formadora da identidade brasileira. Esse incômodo é anterior à nação, acompanha-a como pedra fundamental da identiicação do que é ou não é ser brasileiro. O incômodo da não nação, da antinação, produzido pela expansão mercantil de outras nações, de formar-se como colônia objetivada pelo grande negócio mercantil (Prado Júnior, 1996) e, concomitantemente, ter atribuído a seu território explorado do Novo Mundo o imaginário de homens do Antigo Regime, do Éden descoberto em seus eldorados e amazonas (Holanda, 1958). O paradoxo do “paraíso explorado”, identiicado por Buarque de Holanda, incomoda e produz uma sensação de desterro6 na própria terra, de uma incompletude originária, de um nascimento sem origem teleológica. Organizadas as condições de ocupação exploratória da colônia, o “antiembrião” do nacional misturou-se ao caráter mercantil da subordinação da riqueza social ao tráico7 e monta-se uma sociedade dinamizada pelos luxos internacionais de 5. Deinir em sua totalidade os clássicos do pensamento brasileiro é uma tarefa tanto impossível como inútil, pois as obras relevantes de interpretação do Brasil estão subordinadas a devidos momentos históricos e reverberam-se pelo tempo social em ondas desconexas e, por vezes, ilógicas de signiicações. Um clássico está diretamente relacionado não às respostas que pôde oferecer àquele presente original, mas às perguntas que são herdadas ao tempo seguinte, aos próximos tempos presentes que imporão à obra a constante renovação do pensamento cristalizado em suas páginas. Este processo de sempre releitura do pensamento é o que distingue o clássico, mas não é capaz de cristalizar-se na obra em si. Noutras palavras, o pensamento contido na escritura sofre a intensa ação da história, cujo transbordamento para além das gerações impõe aos homens de tempos distintos a ideia contida no texto, porém sob distintos signiicados. Um clássico torna-se e esvai-se clássico à medida que interage com a mudança provocada pelo tempo histórico; por isso, é sempre contemporâneo. 6. “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.” (Holanda, 1982; p. 3, grifo nosso). 7. Para aprofundar o entendimento do caráter mercantil e da força explicativa do tráico na formação colonial e do escravismo no Brasil, ver Novais, 2001. Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 135 intercâmbio mercantil, qual fosse o tipo de mercadoria, principalmente, a mercadoria homem. O fundamento da espacialidade territorial brasileira, como bem deiniu Frei Vicente do Salvador, foi tatear como caranguejos as costas marítimas. A feitorização, em seu signiicado absoluto, permeou todas as esparsas relações sociais da colônia, que se interiorizou ao longo do século XVI e XVII sob os mesmos princípios dessocializantes, transitórios e, fundamentalmente, anti-identitários da exploração mercantil. Contíguo a esse processo, o tráico, ou o capital da acumulação no trânsito, introduziu ao éden explorado o segundo estágio da formação nacional. A vinda das instituições portuguesas encontrou-se adaptada pela feitorização e potencializou a negação do trabalho e a positivação do imediatismo aventureiro, tradições da península europeia que, por sua natureza pioneira, formou Estados burgueses anteriores à revolução burguesa, logo estabelecidos sob a lógica do antigo regime. O substrato ibérico fora a base primária de sustentação da identidade nacional, como ensina Buarque de Holanda. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns de nossos patriotas, é que ainda nos associa à Península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que sujeitou mal ou bem a essa forma (Holanda, 1982, p. 11). Esse impulso primordial, no entanto, permaneceria no vácuo da não nação, a menos que a cultura ibérica, originada da reconquista, encontrasse com matrizes antagônicas e, por meio da interação física das culturas, corpos miscigenados nasceriam e comporiam uma sociedade distinta da Europa, da África e da Ameríndia. Esta sociedade colonial nasce do antagonismo criativo entre matrizes, cujo elemento organizador foi a compulsão pelo negócio mercantil, introduzida pelo tráico. Em suma, o produto mercantil colonial representava elementos de uma antissociedade que estabeleceu, no entanto e ao mesmo tempo, as bases constituintes de um devir identitário.8 Os mundos opostos da formação colonial mercantil e escravista transferir-se-iam a novos antagonismos à medida que as forças internas produziram uma identidade própria, partindo da negatividade de tudo o que antes compunha o espaço colonial. Pouco a pouco, as matrizes originais são “expurgadas” (no sentido de puriicadas, de perderem sua força presente de pecado original e se transferirem ao passado do processo de identiicação da brasilidade) do espaço nacional, dando lugar à 8. Na fundamental passagem de Gilberto Freyre: “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade (...), um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo” (Freyre, 1978, p. 53). 136 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil nova identidade, mantendo uma vaga ideia de herança comum e, por isso, digna de memória. A violência como meio, por sua vez, organizou diretamente as relações do homem livre e pobre entre eles e deles com o patriarcado por meio da submissão do favor. Franco (1976) sugeriu uma compreensão sobre os homens livres na sociedade escravocrata, na qual a não separação entre o público e o privado limita o monopólio legítimo da violência pelo Estado. A violência, na sociedade escravista, organizou o homem livre na estrutura do favor e produz bloqueios à racionalização social ainda que seja uma parte extraordinariamente criativa na sociedade brasileira. O favor integrou e submeteu o homem livre pobre aos serviços oferecidos pelo senhor e constitui a base do patriarcalismo como sistema político – radicalmente distinto do patriarcado romano, pois não se constitui como uma consequência de uma cisão entre público e privado, e sim de uma imbricação entre estes. A imbricação do público e do privado também produziu um sistema econômico calcado na prevalência do patrimônio como referência para a riqueza, cujo papel da renda, raramente circulante na sociedade escravista ou nas relações entre homens livres e pobres, sempre foi reduzido. O patrimonialismo foi herdado da experiência portuguesa (Faoro, 1975), mas também fermentado e transmutado em formas privadas de reprodução da riqueza patrimonial, pois não é somente o encontro de um Estado absolutista e burguês formado antes de haver tanto o novo sistema burguês quanto o antigo regime feudal, mas também sua incorporação microeconômica, na unidade de sustentação colonial, no complexo das casas-grandes e das senzalas. Nessa intersecção das esferas público-privada, formiga uma sociedade na qual a ordem, dada pela norma, pelo império da lei, pelo monopólio legítimo e racional do Estado sobre a violência, está em constante contradição com a desordem da vida privada, desse patriarcado, do escravo e, especialmente, dos homens livres e pobres na estrutura imediata, quase anárquica e transitória do favor em sua forma negativa, pois é construído não segundo laços de solidariedade, mas sim por necessidades urgentes de sobrevivência. Ao comparar a identidade desse homem livre e pobre na obra literária Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, contida no personagem Leonardo Pataca, com Lázaro, da obra romântica Lazarillo de Tormes (autor desconhecido) – talvez o primeiro romance da história, sobre o aprendiz que serve incondicionalmente aos maus-tratos de distintos mestres –, Candido (1970, p. 79-80) ensina sobre a dialética da malandragem: É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas Memórias é sugestiva, não tanto por causa das descrições de festejos ou indicações de usos e lugares; mas porque manifesta num plano mais fundo e eiciente o referido jogo dialético da ordem e da desordem, funcionando como correlativo do que se manifestava na sociedade daquele tempo. Ordem diicilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 137 por uma desordem vivaz, que antepunha vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia. Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros lauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das muniicências, da sorte ou do roubo miúdo. Suprimindo o escravo, Manuel Antônio suprimiu quase totalmente o trabalho; suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os controles do mando. Ficou o ar de jogo dessa organização bruxuleante issurada pela anomia, que se traduz na dança dos personagens entre lícito e ilícito, sem que possamos ainal dizer o que é um e o que é o outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. Romance profundamente social, pois, não por ser documentário, mas por ser construído segundo o ritmo geral da sociedade, vista através de um dos seus setores. E sobretudo porque dissolve o que há de sociologicamente essencial nos meandros da construção literária. O malandro que vive na dialética da ordem e da desordem assistirá e será produzido pela obnubilação e expurgo das matrizes fundamentais que compuseram o povo brasileiro, no processo que Ribeiro (1995) nomearia transfiguração étnica. A começar pela matriz ameríndia, com a política de Pombal (1750-1777), a proibição do trabalho compulsório indígena e expulsão do jesuitismo da colônia separa das relações cotidianas o contato direto entre o índio e o outro, ainda que mantidas as estruturas de compadrio (“cunhadismo”) como fundamentais nas organizações familiares brasileiras. Certamente, o processo de miscigenação não cessa por esta medida, mas o índio não aculturado deixa a cena do antagonismo de matrizes para tornar-se algo de um passado sempre presente da consciência social. O mesmo processo sucede-se com a matriz portuguesa. A independência colonial, após o processo da “inversão brasileira” (1808-1820), detona o expurgo das estruturas identitárias do português para airmar o Estado nacional de acordo com a interpretação liberal da estrutura de poder, interpretação europeia não ibérica dos sistemas políticos, posto que o pensamento lusitano tenha-se manifestado, em solo português, muito mais simpático às novas correntes do liberalismo do que a face metropolitana e patrimonialista do mesmo império na colônia. A matriz africana, por sua vez, será expurgada com o im do homem-coisa, da longa e persistente escravidão encampada pelas elites pós-coloniais à revelia de um mundo crescentemente assalariado do capitalismo industrial. A escravidão, em sua inovação ibérica, ou seja, mantida pelo tráico, reproduzia o contato direto com a cultura africana na igura do negro boçal e, aprendido a língua portuguesa, ladino, cujo nexo umbilical entre continente Africano e Novo Mundo fora progressivamente cortado a partir do im do tráico em 1850. 138 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Ao longo do expurgo das matrizes e após, permanecem os antagonismos, que, em solo imperial do paradoxal liberalismo escravista, consolidarão o nascimento do homem cordial. A persistência do antagonismo entre senhor e escravo é crucial para sedimentar os valores patriarcais e da negatividade do trabalho, enquanto o avanço do processo de miscigenação transigura etnicamente as três matrizes, estranhas umas às outras, num novo sujeito, identiicado pela negação de todos seus predecessores. Ribeiro (1995, p. 131) explica: O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não índios, não europeus e não negros, que eles se veem forçados a criar sua própria identidade étnica: a brasileira. Este é o homem brasileiro, que aos ins do século XVIII já se encontrava em grande número na colônia.9 Importante salientar, como faz Ribeiro, que esse povo está dotado de uma identidade única de negatividade, constituindo-se na fuga do sentimento de ser ninguém, logo desprovido de um sentido teleológico, predestinado, característico das matrizes que a gestaram.10 O incômodo, no entanto, permanece como tônica da interpretação do que seria ou não próprio do nacional. O problema de identiicar algo formado pela negação de matrizes deinidas aparece primeiramente nos discursos de homens do Império, centrado mais no antagonismo entre Velho e Novo Mundo, rogando, em geral, a superioridade da primeira sobre a segunda. É, por um lado, o auge do eurocentrismo, do discurso racista, das teses de branqueamento, negadoras da essência identitária do povo brasileiro, no limite, da própria existência do povo; e, por outro lado, do antagonismo entre uma identidade “fermentada” pela vinda das instituições ocidentais aos trópicos e a relação subordinada que esta assume no continente metropolitano. Ou nas memórias de Joaquim Nabuco: Nós, brasileiros – o mesmo pode-se dizer dos outros povos americanos – pertencemos à América pelo sentimento novo, lutuante, do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratiicadas. Desde que temos a menor cultura, começa o predomínio destas sobre aquele. A nossa imaginação não pode deixar de ser europeia, isto é, de ser humana; ela não para na Primeira Missa no Brasil, para continuar daí recompondo as tradições dos selvagens que guarneciam as nossas praias no momento da descoberta; segue pelas civilizações todas da humanidade, como a dos europeus, com quem temos o mesmo fundo comum de língua, religião, arte, direito e poesia, (...), desde que haja 9. O resultado fundamental dos três séculos de colonização e dos sucessivos projetos de viabilização econômica do Brasil foi a constituição dessa população – de 5 milhões de habitantes, umas das mais numerosas das Américas de então –, com a simultânea deculturação e transiguração étnica das suas diversas matrizes constitutivas. Até 1850, só o México (7,7 milhões) tinha maior população que o Brasil. O produto real do processo de colonização já era, naquela altura, a formação do povo brasileiro e sua incorporação a uma nacionalidade étnica e economicamente integrada (Ribeiro, 1995, p. 159). 10. Abordagem semelhante sobre este fenômeno do nacional por negação foi feita por Schwarz (1986). Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 139 um raio de cultura, a mesma imaginação histórica. Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades (...) (Nabuco, 1963, p. 39, grifo nosso). O incômodo do novo homem arrastar-se-á pelo século XIX, na primazia da dualidade entre senhor e escravo. O setor “arcaico”, agrário-escravista, porém desprovido do mundo das tradições do feudalismo, subordinava o pequeno mundo moderno assalariado e urbano no Brasil Colônia e Império e estava, por sua vez, determinado pela acumulação mercantil, articulado, ora autônoma, ora subordinadamente à economia-mundo. Este novo homem, no entanto, ao longo do século XIX, cada vez mais se distanciava do irreversível processo de constituição industrial no mundo, fato este que será revertido no próximo século. Abolida a escravidão, expurgada a última matriz e ruído a base oculta do regime imperial, a República Velha, de onde esta condição levou a reproduzir uma sociedade sob a negação do trabalho, será marcada pelas dúvidas da nação dividida entre airmar sua especiicidade ou ignorar a marca reproduzida pelo cativo. Na República Velha, auge da mistura ideológica do positivismo,11 aprofundou-se a solução para o escravo, residida na “importação” da mão de obra assalariada, preenchendo o vazio mercado de trabalho que cá se encontrava. O homem brasileiro, fruto de antagonismos, encontra-se diante de um novo processo de transiguração étnica, a imigração europeia, que assimilará parte importante dos novos ventos industriais à cultura senhorial, sem, no entanto, descaracterizar a sociedade pós-colonial em seus determinantes. Antes de ser uma solução estruturante da nova sociedade, a constituição do mercado assalariado no Brasil tendeu a perpetuar as bases patriarcais, regionais e ruralistas em uma sociedade voltada para a agroexportação, porém, cada vez mais perturbada, em sua delicada harmonia, pelas crescentes populações urbanas dependentes de importados, como também pelo movimento complexo de urbanização das elites agroexportadoras, principalmente na região cafeeira paulistana. O complexo agroexportador dava origem ao projeto de assalariamento e, fundamentalmente, de sujeito moderno capitalista, segundo moldes de uma sociedade negadora do trabalho e airmadora do poder pessoal. Antes de um homem frio, impessoal e calculista como um Rothschild ou um Rockfeller, o capitalista moderno brasileiro parece-se mais como Paulo Honório, personagem de Graciliano Ramos em São Bernardo (1934), quando o inesquecível literato revela ao inal a imagem física perturbadora do empresário nacional: miúda das partes relacionadas ao espírito, uma cabeça demasiada pequena e os membros superdimensionados;12 uma espécie estranha, de ideias fora dos lugares, que provoca incômodo persistente. 11. Para uma investigação do positivismo na crise do Império e início da República Velha, ver Gonçalves (1989). 12. “Foi deste modo que a vida me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes” (Ramos,1976, p. 171) . 140 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil O brasileiro deine sua identidade caminhando sobre um paradoxo. Esse novo homem não se parece em quase nada com o homem europeu, salvo por ser parte negativa deste europeu, do homem africano e do homem ameríndio. O paradoxo é que a deinição negativa do ocidente, da matriz europeia não criou um antiocidente, mas sim uma variação Ocidental única, e a negação do homem civilizado pelo espírito não criou o bárbaro, mas a civilização da afetividade 13 (positiva e negativa, polida e bárbara), em que Buarque de Holanda chama seu habitante de homem cordial.14 Analogamente, a negatividade da matriz africana cria uma “outra áfrica” e, da ameríndia, uma “outra natividade”, como podemos ver na religião sincretista e na estrutura familiar do “cunhadismo”. O homem cordial nasce conscientemente pelas mãos de Buarque de Holanda, como a mistura disso tudo: a interação entre Europa, África e América fermentou e consolidou outra civilização e, como tal, capaz de organizar o sentido de povo latino-americano, especialmente de povo brasileiro. Esse incômodo persiste como a lógica da sociedade brasileira no século XX e ao tempo presente. Uma sociedade imbricada pelas esferas públicas e privadas do mundo patriarcal encontrou-se, na desarticulação do sistema agroexportador – durante a crise de 1929 – em meio ao já crescente processo de transbordamento da acumulação cafeeira para novos setores da produção interna. O momento representou um ponto crítico das tensões do homem cordial, no qual aquilo que, no século XIX, apenas se manifestara episodicamente nas iguras dos industrialistas conservadores (exemplo de Bernardo Pereira de Vasconcelos, Paulino José Soares de Sousa – Visconde do Uruguai –, Alves Banco e, inalmente, Rui Barbosa) e abolicionistas como Joaquim Nabuco, agora despontava para possibilidade real de um projeto industrial-modernizador como saída à reprodução da sociedade nacional. Nesse período crucial da formação do Brasil, a opção industrialista e a construção política do nacional-desenvolvimentismo apoiaram-se na promessa de que a condição agrário-escravista representava o passado bárbaro que deveria ser negado pela aceleração do modo urbano-industrial de vida na década de 1930. O Modernismo da década de 1920, fundamental ao pensamento de Buarque de Holanda e airmador da identidade cordial antropofágica, crítico do Brasil 13. Deve-se ter o máximo cuidado com o conceito de cordialidade. Como o mesmo Buarque de Holanda manifestou a partir da segunda edição de Raízes do Brasil, em resposta a manifestações apologéticas expressas em Ricardo (1959) à cordialidade do brasileiro, não se trata da cordialidade somente pelo seu lado positivo, ainal “(...) não há nenhuma contradição na violência do homem cordial. Ora, ele tanto pode ser muito violento quanto exageradamente cordato, muito amoroso quanto rancoroso ao extremo. Muitas vezes pode sê-lo simultaneamente, e sempre com grande intensidade. Na perfeita expressão espanhola, trata-se de vivir de corazonada: viver como o coração ordena. As razões do coração obedecem a uma lógica particular, a lógica afetiva, deinidora do espaço privado de convivência.” (Rocha, 2004; p. 36; grifo nosso). 14. Holanda atribui a “invenção” do termo “homem cordial” a Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes provavelmente no primeiro terço do século XIX (Holanda, 1982, p. 106). Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 141 romântico e racista, deu lugar, na preferência de artistas e intelectuais, à confusa e muitas vezes frustrante modernização do Estado Novo. Ainda que tenha germinado a geração de 1930, no dizer de Antonio Cândido, dos grandes intérpretes do Brasil, o modernismo pode ser visto, sob a ótica da formação nacional, como um pico das contradições entre o dilema de superar a dualidade arcaico-moderno sob a mutualidade entre capitalismo tardio e homem cordial ou explodir as bases coloniais por uma industrialização completa da sociedade, na qual a lógica da acumulação encarregar-se-ia de extirpar as raízes cordiais do Brasil arcaico. Pode-se observar, sobre o Modernismo, a aceitação sem reservas do homem cordial no excerto de Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago de 1928, a ponto de a identidade nacional reivindicar-se como parte indissociável da história universal do homem, sem a qual o moderno ocidental – graças a seu espectro no outro Ocidente – sequer teria existido: Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A uniicação de todas as revoltas eicazes na direção do homem. Sem nós, a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade do ouro anunciada pela América. A idade do ouro. E todas as girls (Andrade, 1928, p. 4). Antes de ser uma exacerbação sem limites da especiicidade brasileira, o que se observava no Modernismo era uma disputa profundamente civilizatória do papel do Brasil no mundo, como se o país estivesse prenhe de uma revolução “maior que a francesa”, portanto, um processo de gerar, por si mesmo, uma ruptura histórica e a criação de uma nova sociedade e de um novo homem. O espírito da década de 1930 “contaminou” a interpretação do Brasil pela obsessão em demonstrar sua especiicidade em relação ao mundo, rompendo inclusive com as teses deterministas e racistas do pensamento social construído desde o inal do Império. Essa hipertroia do homem cordial é contemporaneamente criticada por setores progressistas da sociedade, esperançosos que o arcaico-moderno ainda pudesse ser superado. Como ensaiado por Schwarz (1986): Na década de 1920 o programa pau-brasil e antropofágico de Oswald de Andrade também tentou uma interpretação triunfalista de nosso atraso. A dissonância entre padrões burgueses e realidades derivadas do patriarcado rural forma no centro de sua poesia. (...) O desajuste não é encarado como vexame, e sim com otimismo – aí a novidade –, como indício de inocência nacional e da possibilidade de um rumo histórico alternativo, quer dizer, não burguês. (...) A ideia é aproveitar o progresso material moderno para saltar da sociedade pré-burguesa diretamente ao paraíso. O próprio Marx na carta famosa a Vera Sassulitch, de 1881, especulava sobre uma hipótese parecida, segundo a qual a comuna camponesa russa alcançaria o socialismo sem interregno capitalista, graças aos meios que o progresso do Ocidente colocava à sua disposição. 142 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Essa trajetória inicial do Modernismo aproximou inclusive o jovem Buarque de Holanda com Gilberto Freyre,15 momento em que o primeiro elogiou largamente a obra Casa Grande e Senzala, sobre a qual disse ser “o estudo mais sério e mais completo sobre a formação do Brasil” (Holanda, 1936, p. 105). Nada mais efêmero que a união entre o progressismo atropofágico de Buarque de Holanda e o conservadorismo escravista e mercantil de Gilberto Freyre, ambos unidos na crítica da promessa do moderno do mundo desenvolvido, como se a modernidade pudesse ser simplesmente transposta aos trópicos. À medida que o modo urbano-industrial tomou forma e dinamismo na sociedade brasileira, a modernização apareceu como uma face oculta do modernismo originário, que por este último será negado. A evolução do debate com Gilberto Freyre não escapou de uma mudança ríspida da segunda edição de Raízes do Brasil. Toda a citação elogiosa e o nome de Freyre são suprimidos do texto revisado, permanecendo, no entanto a estrutura argumentativa do parágrafo. O Modernismo os aproximou na década de 1930, no entanto, na década de 1940, já sedimentada a experiência da modernização promovida desde o Estado Novo (1937), as diferenças insuperáveis entre a abordagem de ambos se sobrepuseram às circunstanciais convergências promovidas pela Semana de 1922. Também as airmações radicais sobre a cordialidade contidas na primeira edição de Raízes do Brasil deram vazão a interpretações apologéticas da “bondade” do homem brasileiro como uma entrega original ao mundo. As críticas de Cassiano Ricardo sobre tais airmações seriam dura e rispidamente respondidas por Buarque de Holanda na segunda edição. Apesar de Buarque de Holanda claramente manifestar o desconforto com a interpretação exacerbada do conceito de homem cordial como se este fosse uma contribuição puramente positiva do Brasil para o mundo, a transformação do clássico Raízes do Brasil entre a primeira edição (1936) e a segunda (1947) seguiu mudanças mais estéticas do que em seu conteúdo. Contrário ao que argumenta Cassiano Ricardo na sua tréplica da crítica à primeira edição de Raízes e lendo as modiicações da segunda edição, a ênfase do historiador no caráter semântico da palavra “cordial” – não associada à bondade, mas à tomada de decisão pela lógica da afetividade, pelas leis do coração, e não do espírito, da razão – não compromete a originalidade da contribuição do Brasil para o mundo. Para Ricardo, o homem cordial operar pela lógica da afetividade não seria uma exclusividade do brasileiro, estaria contido em qualquer homem ocidental marcado pelo conlito entre razão e afetividade. No entanto, deve-se notar que é precisamente essa pretensão universalista do homem cordial que deine sua força 15. Não por menos, a coleção Documentos Brasileiros, do editor José Olympio, cujo primeiro volume foi o inédito Raízes do Brasil, foi coordenada por Gilberto Freyre. As intersecções teóricas entre o homem cordial e o patriarcado brasileiro permitem uma extrapolação da análise para além da contenda que se estabelecerá entre os patronos sobre a natureza “democrática” ou “excludente” da formação brasileira (Rocha, 2004, cap. 2). Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 143 explicativa como um conceito, e não o suposto exclusivismo brasileiro do homem cordial como “homem bom”. É importante comentar que Buarque de Holanda imprimiu uma apresentação estética na primeira edição de Raízes mais poderosa do que na segunda. Na primeira edição, salta os olhos a citação de Sallustio,16 historiador de Roma e – abrindo o capítulo IV “O homem cordial” – do maravilhoso poema “The Traveller”, de Oliver Goldsmith, que estranhamente é confundido por um contemporâneo setecentista mais notório de Goldsmith, o poeta John Milton,17 e cujo erro nunca seria reparado, pois a epígrafe foi suprimida na segunda edição, junto com Sallustio. As duas epígrafes são extremamente poderosas: a primeira trata da origem de Roma como o encontro da diversidade étnica fundadora do Império da harmonia do Estado; a segunda é parte de uma viajem poética de Goldsmith entre Itália, Suíça, Bélgica e França, sua comparação ao Reino Unido e a negação do poeta do poder das leis e do Estado, supressor da afetividade e da razão, essas características da vida doméstica. Ambas reforçam uma distinção clara entre vida privada e vida pública e versam sobre a fundação de dois grandes impérios e sobre a constituição do Ocidente. O diálogo entre estes autores separados por séculos (Sallustio, Goldsmith e Buarque de Holanda) cria uma narrativa universal para o homem cordial como uma contribuição do Brasil para a história do Ocidente, um capítulo a mais e, portanto, parte indissociável do tempo do mundo ocidental, que se formou no encontro de etnias, expandiu-se nos reis e nas leis e reencontrou-se com a afetividade que não aceita separações entre o bem e o mal. Essa aceitação radical de antagonismos, que a razão insiste em separar, está profundamente ligada ao ideário proposto pela ilosoia de Nietzsche, com a qual Buarque de Holanda teve contato durante sua estada na Alemanha de Weimar, do inal da década de 1920 até o começo de 1930, quando foi introduzido à ilosoia logocêntrica de raiz nietzscheneana de Ludwig Klages, donde o historiador deine, em conversa com Manuel Bandeira, como uma ilosoia “da libertação dos instintos” (Martins, 2009, p. 42). Essa perspectiva permite compreender a riqueza interpretativa de Buarque de Holanda, para muito além da imagem, ainda 16. “Hi postquam in una mɶnia convenere, dispari genere, dissimili lingua, alius[alli] alio more viventes, incredibile memoratu est[,] quam facile coalurient”. (Sallustio, Catilinae coniuratio: VI apud Holanda, 1936, cap. 2). “Depois que estes homens juntaram-se sobre uma localização fortiicada, homens de diferentes raças, falando diferentes línguas, vivendo diferentes costumes, é incrível relembrar como eles facilmente se aglutinaram” (tradução nossa). 17. “How small of all that human h[e]art[s] endure/ that part that Kings or laws can cause or cure [!] ”. (Milton, J. [Goldsmith, O.] apud Holanda, 1936, cap. 4). “Quão insigniicante é o que o coração humano suporta, aquela parte em que reis e leis podem causar ou curar!” (tradução nossa). A confusão dos nomes, no entanto, em nada altera a importância do poema escolhido por Buarque de Holanda. Na epígrafe desse capítulo, é reproduzida a última estrofe, que dialoga profundamente com toda proposta teórica de Raízes do Brasil em seu momento mais crítico, que é a formulação de um conceito de Homem distinto dos tipos ocidentais disponíveis, mas que, ao mesmo tempo, seria capaz de disputar com todos a universalidade do projeto civilizatório. 144 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil que correta, de um dos primeiros pensadores brasileiros adeptos da concepção de Max Weber. Ademais de um dos primeiros weberianos brasileiros, a matriz ilosóica de nietzscheniana de Buarque de Holanda, por meio de Klages, como também a crítica ao racionalismo soviético, compõe a igura crítica do homem cujo compromisso com a interpretação ensaística do Brasil não fazia uso de purismos metodológicos, igura essa que foi antecipada pelo próprio Manuel Bandeira como um dos fundamentos de Raízes do Brasil: Estou certo que ele escreveria um livro notável, que interessaria não só a nós mas ao mundo inteiro. A mesma ausência de qualquer sistema era uma garantia da isenção com que ele nos informaria. A leve tendência que ele manifestava para a doutrina comunista, tendência que se dissipou ao contato da Alemanha nova [da República de Weimar], inluenciada pela ilosoia de Klages, era apenas o necessário e bastante para que ele a tudo olhasse com a simpatia desapaixonada de que não são capazes nem os comunistas militantes nem os seus adversários. E agora acabou-se! Sergio é da... libertação dos instintos... (Martins, 2009, p. 42). Talvez essa seja a verdadeira teleologia (a “libertação dos instintos”) que Buarque de Holanda arrisca com toda a força disponível na primeira edição de Raízes, mas que recua após o patrono perceber que essa força inédita do Brasil para o mundo possui uma ambivalência nem sempre desejável, quase sempre incontrolável. O espanto do autor em relação ao poder que um ensaio pode possuir sobre as pessoas que se apropriavam da primeira edição de Raízes levou-o inclusive a uma autocrítica com relação à própria inalidade do uso do “ensaio” como modo de expressão de um pensamento rigorosamente historiográico. Posteriormente, Buarque de Holanda manifestou-se sobre o conjunto das edições de Raízes do Brasil. É praticamente impossível fazer uma edição modiicada. Teria que mudar e desdizer muita coisa. Por exemplo: acho muito estática aquela deinição do início em que falo do personalismo, do individualismo. Não posso concordar com isso hoje. O mesmo vale para aqueles trechos sobre o ladrilhador, o semeador: acho aquilo ensaístico demais, precisaria refazer. Mas acredito que ele ainda tem valor: o livro foi publicado em 1936 [e modificado na segunda edição, de 1947], uma época muito dura para o Brasil, quase tão dura quanto a atual [1981]. Nele airmo que uma revolução no Brasil não pode ser uma revolução de superfície: teria que levar em conta todos os elementos mais aptos, que estão por baixo (Martins, 2009, p. 185 apud Musse, 2013, grifo nosso). O espírito interpretativo da “geração de 1930” guardava essa ambivalência entre a exacerbação da especiicidade radical do Brasil e a perspectiva de superação da mesma especiicidade pela força do modo urbano-industrial de vida, a destruir as raízes coloniais. O resultado desse processo, no entanto, combinou as forças díspares do Modernismo com o avanço do subdesenvolvimento na forma de um Estado Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 145 nacional-desenvolvimentista, ainda que de decisivo conteúdo urbano-industrial, e não da constituição de uma “civilização tropical” (Ribeiro, 1995). Inspirados contraditoriamente pela parte das ideias modernistas e, em outra parte, da ideologia do progresso extraída do positivismo, o avanço do trabalhismo getulista introduziu o Estado nacional como tutor e autocriador do proletariado moderno, misturando-se ao patronato nacional e ao capital internacional numa concepção mútua de progresso. Durante o período da industrialização restringida (décadas de 1930 a 1950) e começo da década de 1950, desenvolveram-se as principais instituições que coordenarão a mudança de qualidade do padrão industrial. As décadas de 1950 a 1970 representam, no Brasil, o salto da sociedade agrária e rural à indústria urbana. Associado ao capital internacional, o Estado assumiu posição central na coordenação do capital nacional e na superação da infraestrutura necessária à vinda das grandes empresas monopolistas. As peculiaridades do sistema do pós-guerra permitiram o transbordamento de capitais do centro a novos espaços de valorização, apropriados pelas instituições nacional-desenvolvimentistas. Parecia que dois grandes projetos estavam em gestação e se antagonizariam na década de 1960, quando a neutralização das raízes cordiais sob a grande indústria nacional – que superaria o subdesenvolvimento mediante plena formação nacional – seria objetivada i) ou pelo desenvolvimento de estruturas democrático-populares; ou ii) pela reconiguração do poder senhorial para uma nova sociedade urbana e industrializada. Esses projetos, respectivamente, da democracia popular e da modernização conservadora, disputavam na sociedade o apoio necessário à plena consecução do novo destino nacional. O avanço da democracia popular, no entanto, foi duramente bloqueado pelo golpe de 1964, no qual o Regime Militar ixou suas bases na tecnoburocracia, ampliando os instrumentos de ação do Estado, e na modernização conservadora da sociedade, como uma marcha forçada ao progresso. O novo poder senhorial emergiu de uma sociedade plenamente transformada pela industrialização e pelo capitalismo selvagem. Ao relerem-se os textos de intelectuais desenvolvimentistas da época, nota-se que a industrialização tinha um signiicado especial, mítico, de superação, ao menos o equacionamento, da ordem cordial em direção ao Ocidente. Entretanto, “a industrialização chegara ao im e a autodeterminação do capital estava, doravante assegurada. Pouco importava que não tivesse se mostrado capaz de realizar as promessas que, miticamente, lhe haviam atribuído” (Mello, 1982, p. 122, grifo nosso). O caráter mítico da industrialização indica que a constituição desse outro Ocidente era perfeitamente compatível com a acumulação de capital, com o modo de produção capitalista, e isso foi suiciente. Não havia antagonismo entre a matriz colonial que sustentou o surgimento do homem cordial e a autoconsciência crítica 146 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil no período nacional-desenvolvimentismo. A modernidade positiva, entendida como a construção de laços de sociabilidade tipicamente ocidentais calcados no princípio da igualdade, não se confunde com o capitalismo industrial, ou melhor, a sociedade da acumulação independe desses padrões modernos de sociabilidade para existir; pode adaptar-se, sem perdas dinâmicas, a estruturas de outra natureza – ainda que não se possa dizer de qualquer natureza –, que simplesmente permitam a instalação do setor autônomo da acumulação, constituindo uma sociedade industrial. A industrialização pesada das décadas de 1950 a 1970 expressou esse fenômeno, no qual a sociedade cordial silenciosamente se atualizou, escondida pela opulência do crescimento econômico, modernizando o arcaico, “arcaicizando” o moderno. Apontar esta atualização oculta do homem cordial, que emergira do nacional-desenvolvimentismo para o capitalismo inanceiro altamente concentrador da riqueza e renovou seus determinantes modernos e arcaicos para o século XXI, é o escopo central na urgência de releitura dos clássicos após o processo de mítica superação da sociedade cordial. 3 SOBREVIVÊNCIA E DINAMISMO DO HOMEM CORDIAL CONTEMPORÂNEO Do ponto de vista estritamente da acumulação, industrializar uma economia, qualquer que ela seja, e constituir uma sociedade industrial movida pelo núcleo autônomo das forças tipicamente capitalistas independe da existência ou não de uma sociedade moderna de matriz igualitária: basta incorporar dinamicamente, nesta sociedade, o setor de capital produtor de capital. As estruturas profundas determinantes das sociedades, no entanto, não são nem apagadas do substrato nacional, tampouco superadas pela maquinaria e grande indústria, mas transformam-se juntas com a autonomia da industrialização pesada. Em outros termos, na sociológica do subdesenvolvimento, vinda a industrialização pesada, criam-se agentes sociais novos, distintos do tipo ideal de burguesia protestante, abstencionista e, fundamentalmente, impessoal. O homem cordial burguês escondeu-se no mito da industrialização como meio e im da vida moderna e, para além da cópia dos padrões de consumo do centro, criou outra sociedade de acumulação. Essa força profunda esteve longe dos olhos do pensamento progressista das décadas desenvolvimentistas que, hoje, pode ser enxergada sem a opulência e o evidente dinamismo produzido pela combinação de industrialização pesada, introdução de forças tipicamente capitalistas e a recriação do espaço cordial dentro da mutualidade entre mundos arcaicos e modernos. A verdadeira face do homem cordial estava oculta na sociedade do nacional-desenvolvimentismo, mas revelava-se, de tempos em tempos, nas pressões populares, na resistência e na luta pela redemocratização e, também, entre a elite militar. Esta, com a desaceleração econômica, percebe que o capitalismo, tal como se constituíra, terminaria por inviabilizar o próprio projeto de segurança nacional, Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 147 pois a fragmentação profunda da sociedade atingiria, inevitavelmente, a soberania e a reprodução do Estado. O segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), de meados dos anos 1970, visava resolver as desigualdades regionais e aprofundar a industrialização de massas mediante tanto os bens de capital como os bens de consumo dos trabalhadores. Sonho e fracasso, termo de Carlos Lessa, o segundo PND naufragou nas contradições de uma sociedade nascida da modernização conservadora, no revés do sistema inanceiro internacional e na inexorabilidade da redemocratização. As transformações internacionais profundas da década de 1970 não foram imediatamente sinérgicas ao espaço nacional, que antes respondeu com essa política anticíclica de investimentos públicos para a suposta superação do subdesenvolvimento. Voltado para a consolidação do setor de bens de capital e diminuição das disparidades regionais, também objetivou a manutenção da demanda agregada interna, protegendo o patrimônio inanceiro das incertezas e do choque inlacionário. O complexo esquema de inanciamento da dívida dependia de luxos constantes de liquidez internacional, que pôde ser mantido ao longo de meados da década de 1970 (crescimento com endividamento) e início da década de 1980 (forte estatização da dívida), ao custo da socialização dos prejuízos e da deterioração do setor produtivo público, logo da capacidade de investimento do Estado. A desorganização do Regime Militar a partir do fracasso do segundo PND atingira o ápice das contradições no momento em que emerge, no começo da década de 1980, o movimento pelas Diretas, em meio à crise sistêmica da dívida externa. A longa parceria do subdesenvolvimento com o capital externo (restabelecida desde 1903) romper-se-á novamente na década de 1980, o que levará à crise sistêmica do Estado nacional-desenvolvimentista, desmanchando a longa, pragmática e antagônica “aliança” entre o Modernismo e o positivismo no plano da ação do Estado. Do ponto de vista da redemocratização, ao ser derrotada a emenda Dante de Oliveira (abril de 1984), a modernização-conservadora ganhou o último impulso garantidor da planejada “saída gradual e segura”, neutralizando temporariamente o renascimento da democracia popular. Do ponto de vista econômico, a “arrastada” década de 1980 amargará a perda do dinamismo característico do “milagre”, sufocada pela restrição da dívida externa e pela crise material do Estado nacional-desenvolvimentista. A mutualidade em que se escondeu o homem cordial, porém, reproduziu-se ao longo da década perdida, ainda que o im do decênio tenha legado um marco jurídico importante de diretrizes fundamentais da face progressista da sociedade, que foi a Constituição Federal de 1988 (CF/1988). A nova Constituição Federal representou uma ampliação extraordinária dos direitos sociais, quebrando o monopólio do acesso a estes pelo assalariamento. 148 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Devido ao conceito de seguridade social incorporado ao texto constitucional, foram garantidos direitos básicos ao cidadão, independentemente da sua contribuição para o benefício. Enquanto a CF/1988 resolve tensões antigas do trabalhismo e da sociedade cadastrada, a mutualidade arcaico-moderna gestou uma nova forma de reprodução de suas estruturas cordiais ocultas, mediante a progressiva “inanceirização” da riqueza, antes representada fundamentalmente pela produção industrial, incorporando mais uma vez as mutações da acumulação de capital. O capitalismo inanceiro é a nova máscara do Brasil profundo, que, nos meados da década de 1990, restabelecida sua capacidade de endividamento internacional, sepultará o passado nacional desenvolvimentista num tipo novo, único, de ideologia neoliberal. O movimento recente da sociedade brasileira incorporou as contradições do mundo pós-moderno sem que houvesse completado sua modernidade. A desconstrução, no mundo, do sujeito clássico, autocentrado, transparente consigo mesmo e, fundamentalmente, dotado de vontade, operou-se, no Brasil, no último respiro da dualidade modernização conservadora e democracia popular. Aprofundou-se a contradição entre uma sociedade incompleta e um sujeito incapaz de completá-la, contaminando os espaços públicos da ação política com os valores dos novos tempos: o imediatismo e a banalidade, provocados pela “ausência” cognitiva do tempo histórico. Especialmente durante a década de 1990, a aparência de familiarismo, de subsistência e de tradicionalismo no Brasil escondeu uma radical transitoriedade e dessocialização do homem cordial descartado por seus iguais, dissimulados modernos, durante o processo selvagem de concorrência intergeracional 18 pelo excedente do subdesenvolvimento. As concentrações urbanas, em que se desenvolvem mais radicalmente este processo, condicionam geograicamente o lócus da sociedade fracassada e mítica, como também seus necessários pontos de contato com a riqueza cada vez mais concentrada tanto em termos patrimoniais quanto na renda e no acesso à sociedade de consumo. A emergência do sujeito “apenas” consumidor regulou as tensões sociais produzidas pela ordem inanceira, substituindo a máscara do nacional-desenvolvimentismo, esta entendida como o crescimento econômico a qualquer custo. Isso produziu uma aceleração social profunda dos laços e das interconexões humanas, muito mais potente que o observado na Europa pós-moderna – e não é por menos que, lá, chama-se esse processo de “carnavalização do mundo” ou, mais emblemático ainda, “brasilianização”. 18. Apesar de o termo aqui utilizado simplesmente mencionar um processo que se reproduz entre gerações, é importante lembrar que tem surgido um debate distinto sobre padrões geracionais (gerações baby-boomer e X, Y e Z), ao qual não se pretende fazer referência neste espaço. Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 149 Em suma, a sobrevivência dinâmica do homem cordial revelou originalidade e relativa eicácia, inicialmente dentro de uma proposta democrática, cuja polarização levou à sua recusa do senhoreado, instituindo o Golpe de 64 e com isso o abandono da parte democrática do nacionalismo desenvolvimentista. Posteriormente à crise do nacional-desenvolvimentismo, o novo padrão de acumulação inanceira transformou e atualizou novamente as bases da reprodução social e da mútua existência do arcaico e do moderno. A sobrevivência ativa do homem cordial na história nacional, no entanto, é a chave para compreender o sentimento de uma coisa só e o esforço do subdesenvolvimento para postergar os problemas de soluções cada vez mais urgentes e impossíveis. Afastada de suas condições antigas, posta em situações novas e mais ou menos urbanas, a cultura tradicional não desaparecia, mas passava a fazer parte de um processo de outra natureza. A sua presença sistemática no ambiente moderno conigurava um desajuste extravagante, cheio de dimensões enigmáticas, que expressava e simbolizava em certa medida o caráter pouco ortodoxo do esforço desenvolvimentista. Aliás, com a sua parte de simpatia e de tolerância, mas também de absurdo e de primitivismo, essa mescla do tradicional e do moderno se prestava bem para emblema pitoresco da identidade nacional. Por outro lado, é certo que o ritmo e a sociabilidade tradicionais lançavam por sua vez uma luz crítica sobre as pautas do progresso econômico dito “normal”, criando a presunção de que nas condições brasileiras a sociedade moderna seria mais cordial e menos burguesa que noutras partes (Schwarz, 1999, p. 156). O esgotamento deste “esforço desenvolvimentista” não trouxe consigo a superação desta identidade nacional pitoresca. (...) é interessante notar que a realidade começava a se parecer com a ilosoia, no caso, com a terra movediça postulada pelo desconstrucionismo. O processo da modernização, com dinamismo próprio, longo no tempo, com origens e ins mais ou menos tangíveis, não se completou e provou ser ilusório. Nessas circunstâncias, a desestabilização dos sujeitos, das identidades, dos signiicados, das teologias – especialidades enim do exercício da leitura pós-estruturalista – adquiriu dura vigência prática (Schwarz, 1999, p. 158). Antecipou-se com isso a aplicação prática da pós-modernidade sem o país nunca ter sido moderno e “(...) não custa observar que as ideias de Derrida chegaram ao Brasil antes que se instalasse esse clima” (Schwarz, 1999, p. 159). As aproximações de Schwarz sintetizam o espírito dos ins da década de 1990, em que o fracasso do modelo neoliberal exacerbou características profundamente negativas do homem cordial na sociedade brasileira, o imediatismo, a banalização do racional e a desigualdade são elementos disruptivos da ordem social encampados pela cordialidade que compuseram o imaginário deprimente da década de 1990. 150 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Porém, a recusa desse modelo, na década de 2000, foi uma obra histórica da própria sociedade brasileira, cujas mudanças táticas no padrão de acumulação inanceira, posto que mantidas suas características fundamentais, permitiram uma retomada e aceleração sem precedentes da identidade nacional em bases menos infernais que antes. O ciclo dos anos 2000 combinou a emergência social com o crescimento econômico e a distribuição da renda do trabalho, cujo sucesso gerou novas contradições para a superação do subdesenvolvimento e para a própria identidade do homem cordial contemporâneo. Esse novo ciclo dos anos 2000 foi um tardio “New Deal brasileiro”, amparado pelo advento político do “lulismo”,19 um regime de coalizão com vetores à esquerda do espectro dominante e com um forte desejo de resgatar o potencial positivo que a especiicidade radical, ora discutida ao longo deste capítulo, representa para um devir civilizatório tropical. O “lulismo” fundamentar-se-ia em três grandes pilares. Primeiro: o crescimento econômico baseado em estabilidade de preços (logo uma política monetária restritiva e favorecedora do capital inanceiro); melhoria das contas externas, pela obtenção de superavit comercial lastreado pela expansão de produtos primários na pauta exportadora; e distribuição de renda salarial, pela melhoria no mercado de trabalho e reativação da capacidade de o Estado operar políticas públicas distributivas. Segundo: a consolidação do Estado de bem-estar social, na contramão da história do capitalismo pós-fordista; e na airmação e ampliação da democracia representativa pelo regime de presidencialismo de coalizão, mantendo a inluência do sistema partidário tradicional sobre o exercício do poder e abrindo as franjas do sistema político para mecanismos de democracia direta e controle social. E terceiro: a consolidação de um mercado interno de consumo em massa, com ênfase na expansão dos serviços privados e amparado por uma estratégia de oferta de produtos industrializados com alto conteúdo de importados. A primeira rodada do New Deal brasileiro aconteceu quando o sistema atualizado do homem cordial contemporâneo havia inalmente se estabilizado, no início do século XXI. Um crescimento econômico real podia agora ser canalizado para áreas estruturais de atividades econômicas, longe do padrão de crescimento dos anos 1990. Em termos dinâmicos, a acumulação do capital mudou de áreas defensivas do realinhamento internacional para as áreas ofensivas da competição internacional e, ao mesmo tempo, mudou setores internos que haviam sido esquecidos desde os últimos dias do nacional-desenvolvimentismo. A segunda rodada consolidou-se com a crise inanceira mundial de 2008. Nesta, as expectativas econômicas no Brasil apostavam que a crise bloquearia abruptamente o recente ciclo de crescimento brasileiro. Neste ano crítico, as ações 19. O termo “New Deal brasileiro” é uma analogia ao processo similar de reconstrução dos Estados Unidos após a devastadora crise de 1929 e segue as proposições sociológicas de André Singer, apresentadas em Singer (2009 e 2011). Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 151 contra a crise seguiram o clássico padrão de não prejudicar a riqueza patrimonial dos donos do poder. No entanto, todas as expectativas foram direcionadas para a demanda doméstica criada pelo New Deal, e esta correspondeu. No início de 2009, a crise internacional não parecia mais um problema para a economia brasileira, mas suas consequências secundárias ainda continuam. A sustentação dos ganhos sociais domésticos diante do cenário crítico internacional reposicionou novamente o homem cordial em sua geração “inanceirizada”. A terceira rodada inicia-se em 2011, quando, pela primeira vez de forma consistente, há uma tentativa de reduzir o peso do “rentismo” nas contas públicas, cuja política de redução dos juros básicos vai levar a uma polarização do governo com os donos da riqueza patrimonial. Os efeitos desse enfrentamento estão ainda decorrendo, sobre eles ainda é muito precoce arriscar uma relexão pretensiosa. Cabe ressaltar que este processo foi duramente combatido pelos donos do patrimônio no Brasil, em que o rentismo reagiu fortemente e, conjunturalmente, logrou reverter a tentativa de redução do piso da rentabilidade inanceira, desorganizando o ensaio de uma nova matriz macroeconômica, em favor do antigo modelo. A última rodada do New Deal brasileiro também enfrentou um fenômeno social da envergadura do fenômeno das Diretas, no entanto, incorporando as novas formas de organização em rede, produzidas pela tecnologia hiperconectada do capitalismo inanceiro contemporâneo, cujo valor passa a circular em velocidade instantânea e, em proporção menor, mas de grande signiicância, permite articulações políticas também em rede. Combinada com o advento nacional de uma geração que não experimentou o processo de redemocratização, nascida após a nova Carta Magna de 1988, o padrão privado de expansão de serviços públicos promovido pelo lulismo atingiu o limite na necessidade de expansão pública de serviços públicos, especialmente aqueles voltados para a mobilidade nos grandes centros urbanos. Amparados pela política de estruturação do mercado de trabalho, as chamadas Manifestações de Junho de 2013 colocaram um novo patamar de exigências ao modelo lulista, que se aproxima cada vez mais de um antagonismo com o rentismo. O centro deste antagonismo é a disputa por recursos públicos, cada vez mais acirrada, entre o orçamento alocado para o funcionamento da inanceirização (juros e amortizações) e o orçamento para o funcionamento do Estado de Bem-estar Social. Ainda que as manifestações populares recentes tenham modiicado o padrão de exigências de acesso público a serviços públicos pelas populações urbanas, a questão é que os três fundamentos estruturantes do “lulismo” permaneceram pelo ciclo político brasileiro de mais de uma década, o maior ciclo político dentro da história democrática do Brasil desde a República Velha. Mesmo diante da efervescência social de 2013, este ciclo político foi capaz de acolher, ainda que parcialmente, Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 152 mas de forma totalmente inédita no mundo, as reivindicações que invariavelmente exacerbarão o conlito distributivo dos recursos públicos. De uma situação defensiva na década de 1990, atacado pela generalização de seus aspectos negativos e dessocializantes da carnavalização ou brasilianização do mundo, a especiicidade brasileira e sua contribuição para o mundo parece inverter novamente seus vetores para o projeto de civilização tropical possível. Possivelmente, o império da afetividade estaria inalmente incluindo seus iguais em harmonia no capitalismo inanceiro pós-fordista e diante de um Estado de bem-estar inalmente completo. O cenário citado é tão ilusório e, ao mesmo tempo, tão real quanto sugere a compreensão do mundo ocidental pela reprodução e expansão de tipos sociológicos de homem. Diante da concreta inclusão de milhões de brasileiros na sociedade inanceira do consumo pelo fundamental instrumento da expansão e estruturação relativa do mercado de trabalho e pela política de aumentos reais de salário mínimo, é impossível ignorar que a população historicamente deinida pela violência da desigualdade inalmente se possa beneiciar dos frutos do progresso e do avanço da acumulação capitalista no subdesenvolvimento. O problema é que o acesso à dinâmica de consumo não basta para compreender os vetores civilizatórios dessa sociedade que nunca rompeu com seu passado colonial e, por isso, carrega consigo um irreversível tipo sociológico nascido de condições extremas de antagonismos e transigurações. O desaio permanece nas linhas de menores resistências sociais, ainda que estas estejam cada vez mais próximas de uma situação simultaneamente urgente e impossível: a negação, pelo corpo, do passado cordial e a construção, pelo espírito, do futuro racional. Nessa contradição transita a atuação do Estado brasileiro, marcado pela cordialidade, comprimindo as sinapses da razão e ampliando os membros da violência, mas também esperançoso por incluir a igualdade sob critérios superiores aos da Revolução Francesa: o caraíba cidadão, o indivíduo que é igual pela integralidade entre corpo e espírito, bem e mal, uma civilização de instintos. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando o recuo impresso por Buarque de Holanda à sua categoria do homem cordial e ao poder explicativo de Raízes do Brasil icou cada vez mais evidente, em suas entrevistas, o historiador, como “presa fácil de seu tempo” (Holanda, revista Veja, 1976, in Martins, 2009 p. 93), nunca escondeu certa desilusão: entre o que se esperava no difuso projeto de interpretação do Brasil, empenhado pelo Modernismo e a trajetória do país no Estado Novo; e o resultado, profundamente negativo para a face civilizatória do homem cordial, quando a polarização entre democracia popular e modernização conservadora atingiu um ponto de não retorno. O Golpe Militar Subdesenvolvimento, Sergio Buarque de Holanda e o Homem Cordial – a importância da especificidade radical da formação histórica do Brasil e de seu sujeito 153 resolveu esta polarização a favor do último, mas a promessa modernizante não extirpou as raízes cordiais na sociedade brasileira, nascida na imbricação sistêmica entre o público e o privado. O que Oliver Goldsmith usou para descrever o processo de construção do Estado moderno na Europa setecentista, o Estado absoluto que subjuga os corações humanos da vida doméstica, foi, no Brasil, outra história. Não que reis e leis, aqui, nunca carregassem consigo sua parcela de terror, tampouco a coroa de ferro do homem simples e pobre, pois subordinado à vida doméstica pela exclusão da política, seja a única forma possível de gozo e felicidade em uma sociedade regida pela norma. A diferença entre o mundo de Goldsmith e o de Buarque de Holanda está na inversão dos papéis da vida doméstica, subordinada no Ocidente europeu, subordinadora no Ocidente latino-americano. No Brasil, a permanência de estruturas negadoras da separação entre vida pública e privada, aliadas ao antagonismo entre senhor e escravo, trabalho e liberdade e ao processo intenso de transiguração e expurgo das matrizes “fundantes” do povo num sentimento de pertença a lugar nenhum – esse processo histórico único expandiu as características embutidas no projeto de moderno pela expansão da afetividade, fortemente amparada tanto na violência quanto na “lhanesa no trato”. Os parâmetros de uma nova civilização estão dados, concorrentes ao homem formado pelo espírito. Não obstante, as transformações radicais na sociedade urbano-industrial, desde a consolidação do grande capital, mostrou-se incapaz de generalizar para o mundo a prevalência do espírito sobre o homem, voltando-se mais ao desenvolvimento da sociedade de massas que ao esclarecimento prometido pelas revoluções que sepultaram o antigo regime, a “Idade das Trevas”. O que Buarque de Holanda – e qualquer homem em seu tempo histórico – não pôde enxergar é que o processo de industrialização e de desenvolvimento nacional não tornaria datada qualquer interpretação ensaística e totalizante sobre a especiicidade radical de nossa formação civilizatória. De um lado, a urbanização industrial carregou consigo e foi construída pelo homem cordial, escondido no véu da modernização para mostrar-se, vigorosamente, na reprodução da desigualdade, no bloqueio da democracia, na concentração patrimonial da riqueza. De outro, esse mesmo processo de exacerbação negativa do homem cordial guarda uma antítese revolucionária, ainda que nunca exercida em sua plenitude até hoje: a da possibilidade única de se construir uma democracia popular, quebrando a lógica patrimonial, aprofundando radicalmente a cidadania e equalizando os padrões de vida. Quanto mais se aproxima do presente, mais fácil presa da história é o historiador. No entanto, é a contemporaneidade quem deine, a todo segundo, os Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 154 pontos de contato entre o passado e o presente, dentro dos quais está a História.20 Os processos recentes permitem arriscar algumas relexões de dentro dessa “prisão criativa”, que felizmente nem mesmo Buarque de Holanda escapa. A inédita redução da desigualdade de luxos do trabalho possibilitada pelo “lulismo” reavivou a polaridade entre democracia popular e modernização conservadora. Seus efeitos, no entanto, ainda pouco modiicaram as estruturas patrimoniais da riqueza e a conformação excludente do Estado nacional, cuja centralidade está voltada para a reprodução dessa riqueza patrimonial, cada vez mais traduzida e atualizada para o padrão “inanceirizado” global do pós-1970. REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. Revista de antropofagia, ano 1, n. 1, p. 4 e 7, maio 1928. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/>. CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias). Revista do instituto de estudos brasileiros, São Paulo: USP, n. 8, p. 67-89, 1970. DAHRENDORF, Ralf. Homo sociologicus. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 1975. v. I e II. FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. FRANCO, M. S. de C. Homens livres na ordem escravocrata. 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A sociedade global passou a se constituir num novo palco ou totalidade geo-histórica, trazendo consigo a necessidade de realização de uma análise metateórica sobre os três principais paradigmas epistemológicos atualmente vigentes nas ciências sociais: sistêmico, compreensivista e histórico-dialético. O maior desaio neste campo do conhecimento é a resolução dos enigmas da modernidade-mundo, ou segunda modernidade (Ianni, 2003; 2010; 2011). A pavimentação teórica e metodológica, histórica e epistemológica, apresentada a partir de Ianni (1996, 2004a, 1997), implica diretamente uma mescla literária e orgânica: i) com lastro na formação do Estado brasileiro e seus subprodutos cívicos e político-administrativos, cujo delineamento sociofenomenológico ocorre no rastro de Estado e planejamento econômico no Brasil (Ianni, 1996), que trata da formação institucional do setor público brasileiro (Estado burguês, governo e administração pública); ii) institucionalizada a partir das preocupações com os grandes temas econômicos e políticos da questão nacional quanto a sua durabilidade e consistência epistemológica; e iii) fundamentada nas interpretações holísticas que visam equacionar, por dentro e por fora, e ao largo da geograia, os enigmas da sociedade global, também denominada segunda modernidade ou modernidade-mundo, diferente da primeira modernidade ou modernidade-nação, emblemas da sociologia tardo-moderna e da sociologia clássica, respectivamente. 1. Professor do Departamento de Ciências Sociais, do mestrado e do doutorado em políticas públicas, e do mestrado em sociologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). 158 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil A obra Estado e planejamento econômico no Brasil (Ianni, 1996), originalmente editada em plena vigência da Ditadura Militar, inscreve-se no quadro cognitivo e geral da formação da estrutura administrativa do Estado brasileiro. Tratava-se de uma estrutura voltada para a inteligência e a implementação de planos de desenvolvimento industrial, bem como para a funcionalidade das primeiras políticas propriamente públicas decorrentes da industrialização. A sociedade não mais se guiava por uma lógica territorial na qual o direito de secessão era tolerado e em que a identidade do indivíduo – que nessa época passa a se constituir no sujeito central do político (Rosanvallon, 1997) – derivava de seu lugar de nascimento ou morada. Octavio Ianni (1996) se entrega ao estudo do desenvolvimento econômico capitalista brasileiro tendo como foco as relações que se estabelecem historicamente entre o Estado e a economia desde a década de 1930. Estas relações se expressam a partir da implementação da política econômica governamental, concebida “como manifestação particularmente privilegiada das relações entre o Estado e a economia” (Ianni, 1996, p. 15). A antiga lógica de base destas relações – a lógica da formação socioeconômica medieval, de caráter territorial inerente à formação dos Estados nacionais – é celeremente substituída por uma lógica de caráter setorial, com foco apenas nas discussões, nas decisões e nas realizações efetivadas no âmbito das esferas econômicas da industrialização, do capital estrangeiro e da força de trabalho. O tema da questão nacional é central na obra de diversos intérpretes da sociedade brasileira. O pensador analisado neste capítulo, Octavio Ianni, é um deles, mas com uma diferença bem evidente: faz parte da estirpe dos intérpretes que não se contentam apenas com as interpretações confeccionadas por uma multiplicidade de estudiosos sobre o tema, mas que se dispõem a elaborar suas próprias interpretações acerca do Brasil moderno, na tentativa de tornar menos opacas as interpretações sócio-históricas contidas no quadro epistêmico geral do pensamento social no Brasil. É sempre importante indagar-se sobre a contribuição de Ianni (2004a, 2004b) para a compreensão dos enigmas da sociedade brasileira (modernidade-nação), uma vez que ele a concebe como uma nação em busca de isionomia e conceito; logo, de identidade. Assim sendo, pode-se perceber o apreço de Ianni por um tema que tanto constitui uma indagação ontológica nacional quanto, e por isso mesmo, um eixo temático recorrente na literatura brasileira. Isto está bastante nítido em sua obra A ideia do Brasil moderno (Ianni, 2004a) e na primeira obra compilada após sua morte – Pensamento social no Brasil (Ianni, 2004b). Para Ianni (2004a, p. 8), os aspectos fundamentais e secundários da sociedade brasileira se expressam numa diversidade de polêmicas entre os grupos, as classes e os movimentos sociais, os partidos políticos e as correntes de opinião pública, bem como entre os intelectuais, os artistas e os líderes, fazendo com que “os dilemas Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 159 do presente, das relações entre o passado e o presente, das possibilidades do futuro permaneçam ‘sempre em aberto’”. É o que revela a atual conjuntura político-econômica brasileira aludida no decurso deste ensaio, expondo a proliferação intermitente de protestos sociais que se entrecruzam aos borbotões nas ruas, coniguradoras por excelência do que Ianni (2003, 2004c, 2010, 2011) denominou uma guerra civil mundial permanente, desde meados da década de 1990. Em função do caráter transdisciplinar na abordagem dos fenômenos sociais, econômicos, políticos e culturais acerca dos temas com os quais o autor deste capítulo tem trabalhado desde o último trimestre de 2010 no âmbito do programa Cátedras para o Desenvolvimento, e em virtude da própria amplitude da temática e dos conceitos em tela, tornou-se inevitável referir-se a três eixos temáticos do Ipea,2 a saber: inserção internacional soberana; fortalecimento do Estado, das instituições e da democracia; e, supericialmente, proteção social, direitos e geração de oportunidades. Desse modo, tratar-se-á com maior ou menor profundidade de assuntos que se interconectarão nas múltiplas fronteiras do conhecimento, tendo os eixos temáticos citados como balizas genéricas para construir um quadro explicativo e abrangente que permita conceber formas alternativas de abordagem da questão do desenvolvimento nacional à luz do contributo teórico de Octavio Ianni. Nesse sentido, este trabalho está em consonância com a declaração de missão do Ipea: “Produzir, articular e disseminar conhecimento para aperfeiçoar as políticas públicas e contribuir para o planejamento do desenvolvimento brasileiro”. 2 A QUESTÃO NACIONAL Os temas tratados no decurso da construção da cátedra Octavio Ianni levaram a compilar as vertentes de um pensamento sociológico cujo centro de gravidade são as preocupações ilosóicas e intelectuais associadas à questão recorrente da noção de Brasil moderno. Ela suscita a questão regional e a questão social, bem como se submete a interpretações teóricas de cunho: • liberal ou neoliberal – o povo como coletividade de cidadãos; • conservador – destaque ao papel das elites como condutora das massas sociais; e • marxista – as classes sociais como motor da história, ou seja, como promotora de momentos e configurações que se produzem nos entrechoques entre a sociedade civil, enquanto arena do consenso, e o Estado, enquanto arena da coerção. 2. Os demais eixos temáticos do Ipea, perfazendo um total de sete, são os que se seguem: macroeconomia para o pleno emprego; estruturas tecnológicas e produtivas avançadas e regionalmente articuladas; infraestrutura econômica, social e urbana; e sustentabilidade ambiental. 160 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Seja como for, não importa tanto o caráter variado dessa coletânea de interpretações sócio-histórico-estruturais acerca do Brasil moderno. O que é realmente relevante é o interesse comum na compreensão dos processos simultâneos de articulação e desarticulação que originam as múltiplas formas históricas assumidas pela nação brasileira desde a sua fundação (Ianni, 2004a). Portanto, como observa, enfaticamente, Ianni: Em cada época marcante da sua história, a sociedade brasileira tem sido levada a pensar-se novamente. É como se ela se debruçasse sobre si mesma: curiosa, inquieta, atônita e imaginosa. Não só se formulam novas interpretações como se renovam as anteriores. Podem mesmo recriar-se ideias antigas, parecendo novas (Ianni, 2004a, p. 7). Como se pode concluir a partir da supracitada narrativa, é no âmbito dos momentos e das conigurações marcantes da história brasileira que o Brasil é conduzido a pensar-se verdadeiramente como nação. Momentos aqui são entendidos como o passado, o presente e o futuro, enquanto as configurações são as novas formas de sociabilidade e de modalidades de transculturação, assim como novos modos de produção alternativos e arranjos político-institucionais de regulação que permeabilizem as relações entre uma pluralidade de atores institucionais e não institucionais. Ainal, “a questão nacional é um tema constante no pensamento brasileiro”, uma vez que “diz respeito a como se cria e recria a nação, em cada época, conjuntura ou ocasião” (Ianni, 2004a, p. 8). Nessa linha de análise sócio-histórico-estrutural, Ianni enfatiza que por ocasião da Revolução Burguesa de 1930 armou-se um sturm und drang3 em torno do pensamento histórico-social brasileiro – “uma espécie de precipitação das potencialidades das crises e controvérsias herdadas do passado” (Ianni, 2004b, p. 24) – tornando-o, pois, um período particularmente fértil. Nesta oportunidade, despontam as principais interpretações do Brasil formuladas por estudiosos das mais diversas áreas das ciências sociais e humanas, bem como por aqueles oriundos de várias plagas geográicas do país. “A história do pensamento brasileiro está atravessada pelo fascínio da questão nacional. No passado e no presente são muitos os que se preocupam em compreender os desaios que compõem e decompõem o Brasil como nação” (Ianni, 2004b, p. 24). A ênfase em tal fascínio remonta às conjunturas assinaladas e simbolizadas pela Declaração de Independência (1822), pela Abolição da Escravatura (1888), pela Proclamação da República (1889) e, sobretudo, pela Revolução Burguesa (1930). Tais conjunturas representaram ocasiões em que se veriicou um intenso e fecundo debate sobre a formação e as perspectivas da sociedade brasileira. Elas 3. Tempestade e ímpeto ou tumulto e violência. Originalmente, título de uma peça de Friedrich Maxmilian von Klinger, de 1776, bem como uma referência a um ingente e efervescente movimento literário e artístico protorromântico ocorrido na Alemanha (1860-1880) e eivado de simbolismo de natureza nacionalista. Equivale no Brasil à Semana de Arte Moderna, de 1922, apontada por Ianni (2004b) como exemplo de indícios de modernização. Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 161 permitem, assim, a revivescência particularmente urgente dos dilemas da questão nacional que, por sua vez, se encontra “sempre presente, como desaio, obsessão, impasse ou incidente” (Ianni, 2004b, p. 24). Ianni compilou material literário de uma variada cepa de estudiosos de alto quilate que se esmeraram em dar o seu contributo interpretativo à decriptação dos enigmas da sociedade brasileira, ou da modernidade-nação brasileira. Alguns temas se destacam por serem por demais recorrentes, uma vez que se traduzem em linhagens de interpretação acerca das tendências predominantes na história da formação da sociedade brasileira. Trata-se das teses sobre o Brasil moderno, título de ensaio homônimo, a saber (Ianni, 2004b): i) o Estado como demiurgo da sociedade, do povo e da história; ii) o patriarcalismo da sociedade civil; iii) uma história culturalista a partir dos tipos ideais; iv) o catolicismo como “uma poderosa argamassa na tessitura das formas de sociabilidade e na tessitura das relações entre as elites, as esferas de poder, em especial os aparatos estatais, com a sociedade civil, principalmente em seus setores sociais, subalternos, rurais e urbanos” (op. cit., p. 50); v) a formação do capitalismo nacional – industrialização substitutiva de importações e o predomínio do mercado sobre o planejamento governamental; vi) a formação do capitalismo transnacional – o Estado como aparelho administrativo de classes e grupos sociais dominantes em escala global; e vii) a ideia de socialismo – formação e transformação da sociedade brasileira em termos de classes sociais e lutas de classe. Essa paixão de Octavio Ianni pela temática da identidade nacional relete ielmente a redundante centralidade da questão nacional no pensamento social brasileiro, do qual extrai o tema cardial de sua epistêmica aventura socioantropológica, como assevera o testemunho de Arminda do Nascimento Arruda, professora da Universidade de São Paulo (USP) em prefácio à obra Pensamento social no Brasil (Ianni, 2004b, p. 13): A busca dessa “ideia de Brasil moderno”, sintomaticamente título de outro livro que escreveu, marcou a produção de Octavio Ianni desde a sua estreia. Talvez resida aí o grande tema da sua sociologia, tornando-o uma personalidade de larga e intensa participação política, a despeito do seu afastamento, mesmo da sua recusa, em aderir plenamente a organizações partidárias. Para Ianni (2004b, p. 180), a questão nacional – que, por sua vez, engloba as dimensões social, econômica, política, racial, regional e cultural – ainda se encontra em aberto, uma vez que o país se constitui em um mero projeto inacabado de nação. Além do mais, os contrastes disparatados entre classes, regiões e raças banalizam esta imagem fragmentada de si mesmo. E uma das razões para o advento de tal fenômeno, na expressão de Octavio Ianni, é que o povo, aqui considerado como coletividade de cidadãos, “continua a ser uma icção política” (Ianni, 2004b, p. 29). Assim, por não se reconhecer como povo de uma nação, torna-se icção; 162 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil e, dessa forma, a ideia de povo parece denotar a ideia – e o sentimento – de um pertencimento remoto a alguma cultura com suas respectivas obras de civilização. Octavio Ianni observa também que o advento da modernidade no Brasil deparou-se com heranças históricas que propiciaram uma miscelânea entre as linhas de castas e as linhas de classes, em que as primeiras tendem a subsistir tanto por dentro quanto por fora das derradeiras, ainda em processo de maturação. E o antídoto a esta caracterização consiste no desenvolvimento de um projeto de nação a partir do desenho de uma isionomia e da formulação de um conceito que lhes sejam predominantemente próprios e de fácil distinção, propiciando, assim, a revelação genuína do caráter nacional brasileiro em plena fusão com a sociedade supranacional em gestação célere. Em suma, para Octavio Ianni, a questão nacional relativa à primeira modernidade ou modernidade-nação tende aceleradamente a se imbricar com o metabolismo acelerado da sociedade global, ou seja, da segunda modernidade ou modernidade-mundo. Neste sentido, pode-se atribuir o despertar cívico-político da sociedade brasileira em junho de 2013 às diferenças exorbitantes entre classes, regiões, raças, bem como à precariedade dos serviços públicos e à corrupção generalizada no âmbito das organizações públicas multiníveis (União, estados, Distrito Federal e municípios). Assim sendo, o Brasil é compelido a pensar-se como nação em processo de construção rumo ao descortino de sua própria isionomia e de seu próprio conceito, para, então, dar-se conta de suas incivilidades, descobrindo-se num projeto grosseiro de organização social absolutista e injusta; logo, estigmatizado pela assimetria social, econômica, política e cultural; e agora sobressaltado por efervescências não programadas cada vez mais vivazes. 3 ESTADO, ECONOMIA E SOCIEDADE Uma breve retrospectiva histórica sobre o processo de industrialização brasileiro basta para se constatar o quanto a ação do Estado no âmbito da sociedade civil pautou-se por parâmetros econômicos. A incorporação das massas urbanas populares no próprio jogo político após os anos 1930, caracterizando o populismo, é um exemplo disso. Ao permitir a participação das massas neste jogo, o Estado, em contrapartida, teve que satisfazer parte dos interesses de classe destas, mediante a implementação de políticas sociais preventivas e, sobretudo, compensatórias. As necessidades de reprodução econômica e de industrialização do país impuseram como precondição uma política de convergência de interesses políticos conduzida pelo Estado. Como toda política pública constitui um processo de mediação social, as que foram formuladas e implementadas pelo governo, na época considerada, tinham como objetivo especíico atender tanto às demandas das massas populares e dos setores médios urbanos quanto às necessidades de acumulação do capital, que se Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 163 expande de modo desigual, combinado e contraditório. Assim, a incorporação das massas urbano-populares – que constituíam o grosso da força de trabalho assalariada – ao processo político de então se deu via inserção destas à estrutura formal de produção. Os sindicatos – um dos dois principais agentes intervenientes no processo de formulação das políticas públicas, ao lado do Estado – subordinavam-se à tutela do Estado. Eles permitiam que os trabalhadores usufruíssem do sistema de proteção social à medida que se vinculavam formalmente ao mercado de trabalho, passando a contribuir compulsoriamente com os institutos de aposentadorias e pensões (IAPs) que, por sua vez, absorveram as antigas caixas de aposentadorias e pensões (CAPs). Esta relação formal entre capital e trabalho, no sentido de condicionar o usufruto de aposentadoria, pensão e assistência médica a um vínculo empregatício, é expressa num conceito-chave confeccionado por Wanderley Guilherme dos Santos (Santos, 1994b), a cidadania regulada. Este processo de extensão dos direitos de proteção social via contrato compulsório dos trabalhadores do setor privado com a previdência social – portanto, aquele era fonte de inanciamento desta – estava organicamente associado a outro processo: o da lógica de reprodução ampliada do capital, orientado com o objetivo de aproveitar-se de um regime de capitalização com base nas contribuições compulsórias destes trabalhadores. O excedente da receita previdenciária era todo canalizado pelo Estado para setores estratégicos da economia, com o escopo de acelerar a industrialização. Veriica-se desse modo a subordinação da lógica das políticas sociais varguistas à lógica de acumulação do capital (Cohn, 1996). Segundo Ianni (1996, p. 305), “a ação estatal favoreceu a ‘racionalização’ do sistema produtivo, segundo as exigências da reprodução e acumulação estabelecidas pelo setor privado”. Trata-se, aqui, de uma tergiversação utilitarista das funções originais das políticas sociais tais como elas foram originalmente concebidas e implementadas segundo os fundamentos filosóficos, econômicos, políticos e propriamente normativos de um Estado-providência, que praticamente se instaura na esteira da uniicação alemã por Otto von Bismarck, em 1871. Assim, a tergiversação das inalidades atuariais previamente ixadas pelos estatutos ou regimentos de referência formal (regime de solidariedade) é justiicada como instrumento de alavancagem inanceira do fundo de acumulação do capital – regime de capitalização visando à formação bruta de capital ixo (FBCF) – para ins de superação dos atrasos econômico-desenvolvimentistas e civilizatórios da nação brasileira. 3.1 Planejamento das políticas econômicas governamentais As análises de Octavio Ianni sobre o planejamento econômico no Brasil tornam possível um melhor entendimento acerca das formas de organização, funcionamento e transformação das relações de dominação política e de apropriação econômica no quadro geral da estrutura da sociedade brasileira. Para Ianni, o planejamento econômico seria a imbricação dialética que desnuda as relações e as inluências 164 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil recíprocas entre o Estado, ou poder político, e a economia, ou poder econômico, mediadas pelo jogo incipiente das forças sociais urbano-industriais. A estrutura social brasileira se desenvolve segundo um trajeto histórico-sociológico que oscila da década de 1930 ao início da década de 1970, constituindo, assim, um desdobramento natural do amplo espectro de construção de habilidades ou expertises estatais. Ianni estuda as discussões, os debates e as realizações circunscritas a três esferas ou arenas de atividades econômicas, listadas a seguir. 1) A industrialização. Ela coincide com a transição de poder econômico e político, antes sob o imperativo dos interesses dos cafeicultores, particularmente os setores mais modernos atrelados ao setor de exportação, cujas commodities tinham seu valor de cotação realizado no mercado externo. Com a transição, as determinações políticas do planejamento visando à industrialização e ao progresso deslocaram-se do setor agrário para o setor urbano-industrial. 2) O capital transnacional. Ele foi auxiliado pelos fundos de pensão e aposentadoria, que desde o início foram operacionalizados não a serviço da construção de um Estado de bem-estar social, mas a serviço da capitalização acelerada da industrialização em vista do seu atraso em relação às economias de industrialização avançada. 3) As forças produtivas. Sem elas, os empresários capitalistas não disporiam no mercado da mão de obra especializada de que necessitam, para então extrair aquele sobretrabalho que Karl Marx (Marx, 1988) denominou mais-valia. 3.1.1 Estado: sistema político-econômico e planejamento Sob a ótica de Ianni (1996), devem-se destacar duas tendências complementares que servem para explicitar o desenvolvimento econômico nacional desde 1930. Elas se inserem no quadro econômico-inanceiro da industrialização brasileira por meio da evolução de dois fenômenos sócio-histórico-estruturais que se implicam mutuamente: o sistema político-econômico de suporte e a formação de uma genuína política econômica governamental. Desse modo, para Ianni, o processo evolutivo do sistema político-econômico brasileiro deixa entrever o desenvolvimento convergente de duas tendências cruciais à compreensão do tipo de capitalismo que perdura até hoje no Brasil: a “crescente participação estatal na economia” e a “política econômica planiicada” (Ianni, 1996, p. 302). Tais tendências conigurariam manifestações básicas do sistema políticoeconômico brasileiro, que correspondem, em um plano mais amplo, à sua progressiva racionalização, como produto da “crescente diferenciação das relações e estruturas de poder político e econômico no país”; e, em outro plano, “à formação do Estado Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 165 propriamente burguês, em substituição ao Estado de tipo oligárquico vigente até 1930” (Ianni, 1996, p. 302). Ele destaca, entre as condições histórico-estruturais que proporcionaram o desenvolvimento convergente das tendências supracitadas, a erupção de crises econômicas, no mais das vezes associadas a crises políticas. A combinação destas contribuiu para a diversificação das funções estatais e, consequentemente, para a criação de novos órgãos e entidades administrativos, bem como para a elaboração de novas técnicas de gestão governamental. Segundo Ianni (1996), desde a década de 1930 duas tendências principais assinalam a história da política econômica governamental no Brasil, pendularmente. Elas representam a alternância de dois modelos de estratégias políticas de desenvolvimento capitalista que se sucedem no período histórico contemplado por Ianni: a estratégia de desenvolvimento nacionalista (1930-1945; 1951-1954; 1961-1964); e a estratégia de desenvolvimento associado ou dependente (1946-1950; 1955-1960; pós-1964). Os governos mais representativos destas posições político-ideológicas que se sucederam no curso da história econômica nacional foram os de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek. O primeiro adota a combinação da ideologia nacionalista com uma política econômica de igual índole, enquanto o segundo adota a combinação da ideologia nacionalista com uma política econômica de caráter internacionalista (Ianni, 1996). Trata-se, portanto, de uma política econômica pendular, erigida segundo o critério de soberania plenipotenciária e submetida à alternância histórico-periódica do capitalismo nacional no tocante ao capitalismo associado-dependente. “Ao longo dos anos, desde 1930, a política econômica governamental foi estatizante ou privatista, nacionalizante ou internacionalista, desenvolvimentista ou estabilizadora, conforme a constelação política dominante e a natureza dos dilemas econômicos existentes na ocasião” (Ianni, 1996, p. 259). 3.1.2 A tecnoestrutura estatal As transformações que se operam no contexto interno do Estado e que diretamente inluem sobre os processos sociopolíticos inerentes a eles são propiciadas pelo jogo do contato direto e institucionalizado entre uma multiplicidade de atores institucionais e não institucionais: o Estado, o mercado e a sociedade. Por um lado, estes atores administrativos são encarregados da gestão das políticas econômicas voltadas para o desenvolvimento nacional; por outro, constituem elementos e relações que conformam a tecnoestrutura estatal, um empréstimo feito por Ianni (1996) à noção de tecnoestrutura originalmente concebida por John Kenneth Galbraith (Galbraith, 1983). A tecnoestrutura estatal se refere à organização formada pelo conjunto de técnicos altamente especializados, que proporcionam os subsídios informacionais aos diretamente responsáveis pelas tomadas de decisões em grupo nas empresas amadurecidas. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 166 O conceito de tecnoestrutura estatal de Octavio Ianni transcende ao de Galbraith; e não apenas por uma mera transposição analógica, via adição de um mero adjetivo. A tecnoestrutura estatal se compõe de elementos e relações que concernem: • à pluralidade de grupos que integram a tecnocracia, cuja função é pôr em interação constante ministérios, comissões, órgãos, entidades, institutos, fundações, autarquias etc., associada com a institucionalização administrativa do pensamento técnico-cientíico, ou cientifização; • à hipertroia do Poder Executivo, tanto com relação ao Poder Legislativo quanto com relação à democracia representativa como um todo; e • à interação sistemática entre as instâncias de dominação, de apropriação e – na atualidade do paradigma sociocêntrico em que civicamente se enquadra a sociedade – de redistribuição. No quadro geral da análise histórico-sociológica (diacrônica-sincrônica) de Ianni, quanto aos desdobramentos da sociedade brasileira e seu suporte de ação instrumental – a produção de riqueza subordinada à lógica pré-capitalista de produção com base na grande lavoura (Prado Júnior, 1957) ou grande empresa agrícola (Furtado, 1987) –, apresenta-se de modo lagrante a assunção prototípica da política econômica governamental. Ela emerge como uma verdadeira política pública de caráter estatal que conduz à transmutação do próprio Estado, compelindo-o a despir-se de indumentárias aristocrático-agrárias e deixar-se guarnecer, sistematicamente, pelo manto das preocupações materiais. A manifestação disto, que antes deveria ser tênue em sua textura e parcimoniosa em seu manejo, transforma-se numa prisão de ferro. Como assevera Max Weber (Weber, 1992, p. 131), ao parafrasear Richard Baxter, um dos mais expressivos teóricos da ética puritana inglesa: as “preocupações pelos bens materiais somente poderiam vestir os ombros do santo ‘como um tênue manto, do qual a toda hora se pudesse despir’”. Este interregno histórico-cronológico estudado por Ianni relete a assunção vigorosamente utilitarista da prisão de ferro representada pelas preocupações materiais (concentração e centralização do capital) no quadro geral do tardio desenvolvimento capitalista brasileiro. Como se pode depreender do exposto, a política econômica estudada por Ianni nos primórdios da industrialização brasileira constitui uma política pública em sentido amplo, ou política pública “guarda-chuva”. De todo modo, ica para relexão, sobre as múltiplas dimensões cognitivas da política social, a deinição certeira de Claus Ofe acerca dos fundamentos sociais da produção e da reprodução econômica. Justiicando a interdependência férrea entre as dimensões social e econômica das políticas públicas designadas convencionalmente como política social e política econômica, respectivamente, Ofe (1994, p. 15) airmou: “A política social é a forma Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 167 pela qual o Estado tenta resolver o problema da transformação duradoura de trabalho não assalariado em trabalho assalariado”. 4 O BRASIL MODERNO E O GLOBALISMO É bastante oportuno correlacionar as análises de Ianni acerca do planejamento governamental brasileiro com suas análises sobre o mosaico identitário nacional e sobre o fenômeno da globalização, globalidade ou globalismo. É do cruzamento teórico destes três temas que se consegue compor uma argumentação abrangente sobre a mudança nos fundamentos sociais, econômicos, políticos e culturais do capitalismo tardio brasileiro. A mudança culmina não em uma soma das sociedades nacionais, ou modernidades-nação, mas em uma síntese histórica e epistemológica: a sociedade global, ou a modernidade-mundo, também concebida como uma totalidade geo-histórica cujo fator maior propulsor é o globalismo. Observam-se, com cada vez mais senso de onipresença, as transformações estruturais por que o país vem passando, com os evidentes sinais de mudança qualitativa na economia, bem como na igura e no papel do Estado. Com relação ao papel deste, veriicou-se um curto período de implementação hegemônica de políticas neoliberais, em que se observou o deslocamento do setor público para o setor privado da função de propulsor do crescimento. Tal deslocamento possui implicação tanto político-ideológica quanto econômica, fazendo com que o Estado passe da condição de empreendedor à condição de regulador da economia (1995-2008). A seguir, em virtude da crise do subprime, em 2008, revitaliza-se a tendência estatista, fenômeno que se generalizou pelo mundo industrializado. A conjuntura atual, no entanto, tende a favorecer a parceria entre o Estado, a economia e a sociedade, o que propicia tornar afortunada a noção de Estado necessário, à revelia das noções reducionistas de Estado mínimo ou máximo. 4.1 O movimento pendular e a política econômica brasileira A oscilação pendular da política econômica brasileira no sentido explicitado implica o foco sobre as determinações geopolíticas e econômico-inanceiras, ora a partir de dentro (modernidade-nação) ora a partir de fora (modernidade-mundo). Nos antípodas da modernidade-nação, a problemática se transigura numa escala de cima para baixo e de baixo para cima, uma vez que duas globalizações se articulam, atribuindo, assim, além da instância interna e externa, uma conotação vertical-horizontal: a globalização pelo alto e a globalização desde baixo. Esta dupla oscilação pendular nas dimensões interna-externa e superior-inferior representa a síntese coniguratória – jamais a soma – da sociedade global conforme o ritmo acelerado em que se processam os momentos e as conigurações da história elevada ao patamar universal na esteira do cometa globalismo. 168 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Este movimento pendular clássico, recentemente – a partir de 2008 –, tem sido submetido a uma dinâmica acelerada. Cada vez mais, seus desdobramentos se tornam simultâneos, a ponto de se confundirem numa simbiose oculta que expressa uma retenção mútua, portanto complementar, entre os seus movimentos constitutivos. Estes movimentos – a exemplo da velocidade de uma hélice, cujo movimento em espiral a torna uma silhueta mista de opacidade e transparência – propendem empiricamente à marcação rítmica ou regrada entre dois extremos. Tudo depende da velocidade com que o pêndulo se desloca de uma extremidade à outra – da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Nestes termos, os movimentos de alternância dos modelos de estratégias políticas de desenvolvimento capitalista se aceleraram a um ritmo alucinante, a ponto de, em um primeiro momento, se mesclarem e, num segundo momento, inclinarem-se a favor da internalização das decisões pertinentes ao desenvolvimento econômico brasileiro. Assim sendo, esta alternância de outrora cede lugar a uma imbricação total, que, por sua vez, se combina com uma inversão de status quo econômico-inanceiro, acompanhado de um acanhado reconhecimento de simetria política para com os países emergentes. Isto se nota particularmente no que concerne ao grau de inluência geopolítica no âmbito decisório dos organismos multilaterais – Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Grupo dos Vinte (G20), Grupo dos Oito (G8) etc. A exceção é a Organização Mundial do Comércio (OMC), cuja direção está a cargo de um brasileiro pela primeira vez desde sua criação embrionária por meio da representação institucional global do Acordo Geral de Tarifas e Comércio – General Agreement on Tarifs and Trade (GATT). Essa imbricação dos modelos nacionalista e associado-dependente se desdobra sob a égide dos processos gêmeos de concentração e centralização do capital rumo a seu ponto culminante e terminante de desenvolvimento possível. Não mais se observa o movimento pendular clássico entre períodos relativamente duradouros em que predominam céleres momentos e conigurações históricas ora do capitalismo nacional, ora do capitalismo internacional, com desdobramentos justapostos, traduzindo-se numa relação de contenção mútua. E isto ocorre em virtude de o capitalismo ter assumido de uma vez por todas tudo aquilo que tal modo de produção e processo civilizatório preiguravam em seu próprio modo de ser – a onipresença. Desse modo, paulatinamente, o sistema social nacional, graças à força propulsora do globalismo, tende a transmudar-se em um sistema social transnacional, global ou planetário. Desse modo, à medida que tal sistema se consolida, incrementa-se o grau de desterritorialização (dessoberanização) exigida pela crise global como condição de sua neutralização. Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 169 O supracitado processo pressupõe simultaneamente em si mesmo uma ruptura histórica, traduzida em um mega-arranjo institucional propenso a desembocar numa nebulosa federativa, ou seja, em uma nova modalidade de governança global, a governança com governo, diferente da governança sem governo. A governança com governo corresponde à regulação global pós-westfaliana: subordinação federativa ou governança pública coordenada. Por sua vez, a governança sem governo equivale à regulação global westfaliana: cooperação confederativa ou governança pública colaborativa. Além disso, o processo de desterritorialização requer uma ruptura histórico-epistemológica que franqueia a criatividade teórico-metodológica a ponto de subverter as certezas e as eiciências de teorias e modelos, análises e métodos, técnicas e práticas que compõem o arsenal analítico das ciências sociais na efervescente atualidade global tardo-moderna. 4.2 Estratégias de desenvolvimento e inserção internacional As condições histórico-estruturais atuais são bastante distintas daquelas que propiciaram o advento das tendências convergentes referidas anteriormente, conforme o período histórico abrangido por Octavio Ianni (1930-1970), e que se expressam como crises econômicas e/ou políticas, provocando, por sua vez, a assunção de uma amplitude maior no desempenho de papéis por parte do Estado no curso do desenvolvimento do país. Agora, o contexto histórico-estrutural é assinalado pela expansão econômica nacional perante uma onda de depressão, recessão ou lenta recuperação no domínio dos países de industrialização avançada, graças: • à política de recuperação de poder aquisitivo do salário mínimo (SM); • aos programas sociais de transferência de renda; • ao aumento de consumo no mercado interno; • às políticas de câmbio lutuante, de metas da inlação e de responsabilidade iscal – tripé da política econômica; • à consolidação do sistema inanceiro nacional, fortemente regulado, um dos fundamentos do Plano Real, permitindo a implementação de políticas acomodatícias, como a redução do spread bancário em função da adoção de medidas macroprudenciais estratégicas impostas pela conjuntura histórica hodierna; • às políticas econômicas anticíclicas, particularmente as políticas paraiscais, ou seja, aquelas baseadas na renúncia iscal em áreas especíicas da indústria associada ao consumo e à produção (eletrodomésticos de linha branca e construção civil, por exemplo); e, sobretudo, Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 170 • à exploração da nova fronteira petrolífera brasileira, a região do pré-sal, agora acossada pelo surgimento de novas tecnologias de produção de hidrocarbonetos a partir do xisto betuminoso e das novas tecnologias de prospecção e perfuração horizontal e de fabrico de sondas constituídas de materiais, cuja resiliência conduz as ciências para além das restritas fronteiras cognitivas atualmente conhecidas. Vive-se atualmente uma situação histórico-estrutural paradoxal. Por um lado, o conjunto dos países e das regiões de industrialização avançada (Estados Unidos, Europa e Japão) encontra-se às voltas com o endividamento público (as chamadas dívidas soberanas); com a débâcle de instituições conformadoras do próprio capitalismo, situadas nos principais centros inanceiros mundiais; com o declínio do comércio mundial; e com a redução nos luxos de créditos destinados ao inanciamento das operações de empréstimo mercantis e não mercantis mundiais. Por outro, os países atualmente designados como emergentes – com destaque para aqueles que integram o acrônimo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), inspirado nas teses afortunadas do economista-chefe do Goldman Sachs, Jim O’Neill – izeram disparar os principais índices macroeconômicos associados ao crescimento acelerado do produto interno bruto (PIB) de cada um destes países, apesar de a presente conjuntura ser de reluxo. Além do mais, as origens desta ingente crise econômica e inanceira, assim como seu desdobramento, constituem o pano de fundo em que se projetam novas conigurações organizacionais e novos reordenamentos geopolíticos, típicos de uma ordem mundial cuja interligação entre os sistemas globais (social, econômico, político e cultural) se processa por meio de uma diversidade de múltiplas organizações governamentais internacionais, aqui concebidos como blocos de construção de uma ordem mundial supranacional em gestação. Portanto, o cenário no Brasil agora é outro, e a estratégia de desenvolvimento associado tende a ser duplamente dependente: i) em termos das interdependências entre as nações no mercado legal quanto à divisão transnacional do trabalho e às necessidades transnacionais de controle sobre problemas vinculados às externalidades físicas internacionais; e ii) em termos da seleção das estratégias e das políticas de desenvolvimento apropriadas a sua formação histórico-social e cultural, que terminam por se submeter à lógica de reprodução ampliada do capital em escala global. Tudo isto ocorre no transcurso do período mais longo de democracia da história brasileira, coincidindo com a expansão das áreas cobertas pelas políticas sociais; com o incremento da economia brasileira, devido à conjuntura de crise internacional para os países ricos e, consequentemente, de crescimento oscilante para os países emergentes, como o Brasil; e com as descobertas do pré-sal e suas repercussões sociais, econômicas e tecnológicas sobre a cadeia produtiva nacional associada aos hidrocarbonetos, além das demais matrizes energéticas. Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 171 Após um curto ensaio do neoliberalismo, cujo declínio acentuou-se com a crise cambial-inanceira mundial de 2008, tendo os Estados Unidos como epicentro, a imagem de um Estado forte reacende a velha discussão entre os modelos de estratégias de desenvolvimento propostos por Ianni (1996): desenvolvimento nacional e desenvolvimento associado ou dependente. Entre elas, há uma forma híbrida, a estratégia de desenvolvimento socialista. Assim, ao contrário do que diagnosticou Jürgen Habermas, quando airmou que “o Estado não constitui mais a vanguarda política apta a enfeixar as funções da sociedade global” (Habermas, 1990, p. 177 apud Ianni, 2008, p. 169), a conjuntura atual é marcada indelevelmente por um retorno à centralidade do papel do Estado nas funções de planejamento, orientação, regulação, alocação, distribuição e estabilização macroeconômica. As diretrizes, missões, valores, metas, objetivos e previsões de receitas e despesas são viabilizados por meio de um processo orçamentário em que a Lei Orçamentária Anual (LOA) desponta como o principal instrumento de política econômica governamental. A proliferação de multinacionais brasileiras é um dos fenômenos mais relevantes para a compreensão do jogo de forças econômicas em nível global que torna o Brasil uma potência mundial emergente, concebida simultaneamente tanto em termos econômicos e políticos quanto culturais. Em termos econômicos, tal fenômeno de expansão e transmigração vicária do Estado (“transestatalidade”) se cristaliza quando este se transforma em parceiro no processo gêmeo de concentração e centralização do capital em escala global. Ou seja, grosso modo, quando o Estado participa como coprotagonista, pela primeira vez na história, da própria dinâmica dos processos de acumulação ampliada do capital e dos processos de fusões e aquisições de empresas, cujo propósito inclui precipuamente a monopolização ou a oligopolização dos mercados. Em termos políticos, o fenômeno se efetiva quando o Brasil emerge e traz consigo, com outros países do sul, a materialidade de uma nova ordem global, cujo mecanismo de funcionamento propende crescentemente à multipolaridade geopolítica que se constrói e se consolida na trama das relações transnacionais que assinalam, notoriamente, uma conjuntura renitente de crises generalizadas no período atual da volátil modernidade-mundo. Finalmente, em termos socioculturais, o fenômeno se concretiza quando o Brasil busca ediicar uma hegemonia que se lastreia na cooperação internacional via programas públicos especíicos nas áreas da educação ou da cooperação técnica. São exemplos desta política: • a inauguração da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila); • a colaboração da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) na transferência de tecnologias de produção agrícola para os países Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 172 africanos pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), assim como a contribuição do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) brasileiro para estes mesmos países; • a formação de professores em Timor-Leste; e • as demais formas de cooperação com os países africanos de língua oicial portuguesa (PALOPs) e os países da América Latina, mediante as chamadas políticas integracionistas transversais. Com base nas análises de Ianni, observa-se que, tanto em termos positivos (momentos e configurações sociais favoráveis esperados e inesperados) quanto em termos negativos (momentos e configurações sociais desfavoráveis esperados e inesperados), o futuro da humanidade passa: pela construção e pela gestação de uma sociedade verdadeiramente global, submetida a um novo regime de governança de igual índole; pela formulação de um pensamento social global, em que o gênero humano se descobre como espécie dotada de consciência para si; e pela airmação e pela consolidação de uma sociedade civil mundial (macroperspectiva), bem como de sua correlata cidadania global (microperspectiva). Enim, o futuro da humanidade passa pelo esparrame de uma modernidade-mundo que consiste numa síntese transnacional de sociedades nacionais entrecortadas pelos inevitáveis fenômenos e processos sociais, econômicos, políticos e culturais, a saber: o advento de novas bases societais de convivência humana (novas formas de sociabilidade e respectivos jogos das forças sociais); a concentração e a centralização do capital (rede transnacional de infraestrutura econômica); a democratização das estruturas do poder mundial (governança pública multipolar); e a transculturação dos valores e das práticas etnográicos (história universal e humanidade). Antes circunscrita a um território local ou regional, a sociedade global atualmente se conigura em um sistema organizacional planetário que tende a criar mecanismos asseguradores de equilíbrio entre os subsistemas e os setores que o compõem. Assim, as políticas públicas supranacionais elevam-se à condição de processos políticoadministrativos estratégicos compatíveis com a nova ordem global em gestação e propriamente constitutivos de um novo regime de governança mundial. O advento de mecanismos de transição rumo a uma nova ordem mundial fundada na policentricidade política exige a realização de fusões entre países, a exemplo das grandes corporações transnacionais e, como tal, passa a apresentar-se em forma de um clichê, ou um imperativo do globalismo como força propulsora e escultora das novas circunscrições geopolíticas cuja base é o capitalismo (Ianni, 2010). Isso signiica dizer que as perspectivas de sobrevivência das pequenas nações estão em se aglutinar em blocos: Mercado Comum do Sul (Mercosul), União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Tratado Norte-Americano de Livre Comércio – North American Free Trade Agreement (Nafta) –, União Europeia etc., ou mesmo Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 173 em ser absorvidas para uma estrutura política federativa já em si consolidada. “A meta é construir uma nação que abarque todo o subcontinente [latino-americano]”, postula José Mujica, presidente uruguaio (Mujica, 2011). Pode-se constituir, dessa forma, uma síntese dos Estados que chancelam uma nação, uma federação subcontinental de Estados nacionais ou, no limite, uma humanidade planetária. Esse cenário não tem nada de absurdo, nem é original no cômputo geral da história.4 Além do mais, a perspectiva de concretização da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, protagonizada pelos Estados Unidos e a União Europeia, inserindo-os estrategicamente no âmbito ingente de uma megazona de livre comércio, tenderá a apressar a integração regional na América Latina, com fortes implicações na nebulosa federativa regional e subcontinental. Talvez tenha chegado o momento histórico em que as fusões entre Estados nacionais regionais sejam uma precondição para o equilíbrio multipolar, de maneira a prevenir a oligopolização exacerbada do poder. Em termos ilustrativos, isto signiica conceber a ideia segundo a qual os sustentáculos e os condutores da governança global comporiam uma estrutura oligarquizada de comando que desiguraria o componente democrático e libertário que inlama crescentemente a modernidade-mundo, na esteira de uma longa conjuntura de crises em cadeia: econômico-inanceira, bancária, soberana, socioética, política etc. 4.3 Agenda política estratégica As destacadas problematizações históricas e epistemológicas de Octavio Ianni sobre o desenvolvimento econômico capitalista brasileiro podem ser traduzidas em programas de ação governamental orientados para a saúde social, econômica, política e cultural da nação brasileira. O país, de forma errática, ainda procura uma isionomia, um projeto e um destino, agora em ritmo acelerado. O povo ainda se confunde com a icção, malgrado os protestos sociais que espontaneamente emergiram em junho de 2013 em dezenas de municípios, destacando-se as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília, assinalados por uma efervescência cívico-política que chegou a congregar nas ruas e nas praças mais de 1 milhão de cidadãos. Para tanto, convém realizar uma relexão aguda com base nos permeáveis “dilemas do presente, das relações entre o passado e o presente, das possibilidades do futuro” (Ianni, 2004a, p. 8) e nos mosaicos sociais, raciais, regionais e culturais, buscando, assim, soluções práticas para a construção de uma civilização genuinamente brasileira. Aqui a referência é a um exercício analítico que trata de fazer convergir as concepções sugeridas por Octavio Ianni em um conjunto relativamente ordenado de decisões político-administrativas ao qual se 4. Uma das primeiras fusões exitosas entre Estados ocorreu no século VI a.C. via contrato matrimonial e guerras de conquista entre os representantes dos pequenos reinos da Pérsia e da Média, culminando com a ediicação do Império Persa, graças ao gênio político e militar de Ciro, o Grande. 174 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil pode chamar de uma agenda social, econômica, política e cultural para o Brasil na atualidade, agora fustigada pelas efervescências cívico-políticas da população em busca da cristalização de desideratos civilizatórios. Trata-se de tomar medidas simples, mas que inicialmente produzem um grande impacto midiático, para, em última instância, preparar o terreno para a introdução, na agenda do poder governamental, de um programa sistêmico de regulação e ajustes político-organizacionais do próprio Estado, paralelamente ao desenvolvimento de programas que lidam diretamente com as demandas históricas difusas da sociedade civil brasileira. 4.3.1 Pensamento teórico e realidade empírica Em seus escritos do inal da década de 1990 e começo da década subsequente, Octavio Ianni concebeu a realidade do mundo tardo-moderno como marcada por uma guerra civil mundial permanente ou revolução social permanente. Decorrida quase uma década após sua morte, tal fenômeno adquiriu proporções de grande magnitude e senso de ubiquidade, subproduto de um mundo que se apresenta com os nervos à lor da pele. No período 2005-2013, com destaque para o ano emblemático de 2008, os embates entre a sociedade civil e os detentores do poder do Estado se intensiicaram de tal modo que possibilitaram issuras dramáticas entre a autoridade e o poder em díspares circunscrições territoriais nacionais, a ponto de defenestrarem ditadores mundo afora, a exemplo do ocorrido na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iemén do Sul. Agora, o Brasil é confrontado com acontecimentos alucinantes que o compelem a desenhar e formular, incipiente e celeremente, sua isionomia e conceito, logo, sua identidade enquanto nação civilizada. Ainal de contas, as manifestações de protesto social estão delineando com ímpeto, nervosismo e impulso cívico-político uma nova ideia de Brasil moderno. As predições a este respeito foram intuídas por Ianni (2010), quando este se refere à guerra civil mundial permanente, na esteira das discussões globais sobre a globalização da questão social, que por sua vez abrange dois tipos antinômicos de globalização em processo de mútua retenção: a globalização pelo alto e a globalização a partir de baixo. Nesse diapasão e nesta amplitude geo-histórica, processa-se um movimento tão ingente quanto surpreendentemente espontâneo rumo à construção de um projeto de nação, ou seja, rumo à formação e à consolidação de uma civilização genuinamente brasileira, a título de uma nação indispensável à modernidade-mundo, tendo por base o universalismo de procedimentos (Nunes, 1997), condição indispensável para o estabelecimento de um autêntico Estado democrático de direito. A delagração reivindicatória do Movimento Passe Livre aliada à reação truculenta da Polícia Militar do estado de São Paulo levou à extrapolação de meras reivindicações setoriais por melhoria dos transportes urbanos (mobilidade urbana). Tal movimento foi suplantado por uma torrente de protestos sociais que Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 175 inlamaram a opinião pública e os grupos de pressão a título de efeito-demonstração. Daí as consequências políticas negativas que se abateram – e continuam a se abater – sobre a classe política, em geral, bem como sobre os gestores públicos multiníveis – presidente (União), governadores (estados e Distrito Federal) e prefeitos (municípios) –, em particular. Ocorreram sérios prejuízos de avaliação e legitimidade política, como vem sendo demonstrado pelos índices de aprovação expedidos pelos institutos de pesquisas de opinião. Em outros termos, os atores eletivos e governamentais estão incorrendo em deficit de coniabilidade desde há muito, graças, sobretudo, a um contumaz processo sistemático de tergiversação política de responsabilidade pública (Buenos Ayres, 2006), favorecendo diretamente os limites e as possibilidades da democracia digital (participação política direta via telemática associada à cibernética). Sendo assim, paira sobre o cenário histórico coetâneo global, permeando-o, uma crise de racionalidade no âmbito da governança do Estado multinível. Por sua vez, esta crise desemboca numa crise de legitimidade, ou crise de governabilidade. Abre-se espaço, então, para as espontâneas, intempestivas e pluralistas manifestações sociais, cuja emergência vigorosa, impetuosa e resiliente desabrochou em junho de 2013. As manifestações despontam como um divisor de águas que situa e airma o projeto de nação em um momento histórico anterior (sorumbático) e em um momento histórico posterior (apoteótico) do curso contingente da trajetória republicana brasileira. Trata-se, portanto, do desabrochamento cívico-político do país mediante o advento do outono brasileiro, na esteira reverberante da Primavera Árabe e da revolução mundial que toma conta do mundo, a ponto de gerir uma sociedade civil mundial emergente. Esta sociedade – que cada vez mais se inclina ao recrudescimento – é constituída por classes sociais e grupos sociais (burguesia mundial e humanidade neossocialista), assim como por estruturas globais de poder (corporações transnacionais e organismos multilaterais). Ela se desenvolve na esteira do novo ciclo de globalização ou surto de expansão do capitalismo, ou seja, de um novo ciclo ou surto de expansão das forças e relações produtivas em escala mundial. Por im, a sociedade civil mundial traz os germes de um reencantamento do mundo, um subproduto e uma consequência direta do embate entre as classes sociais, tanto em escala nacional quanto em escala global, que propicia a longevidade de uma guerra civil mundial permanente, ao mesmo tempo endêmica e aberta, moderada e violenta, tanto por dentro quanto por fora das guerras em âmbitos locais e mundiais, como argutamente elucida Ianni: Sim, por todo o século XX, e entrando pelo século XXI, o que se veriica é uma revolução social permanente, subjacente às mais diversas formas de integração e fragmentação, acomodação e contradição, sempre envolvendo classes e facções de classes, grupos étnicos, de gênero, religiosos e outros; na maioria dos casos, Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 176 transbordando das fronteiras nacionais, avançando além de fronteiras continentais (Ianni, 2004c, p. 16-17). Em vista do exposto, conclui-se que o povo está em busca de seu próprio modo de ser: mediante o delineamento de sua isionomia, a deinição de seu conceito e a construção de sua personalidade rumo à persecução de ser o que ainda não é: “O Brasil ainda não é propriamente uma nação” (Ianni, 2004b, p. 199). Entretanto, a conluência de um projeto de nação emergente com a intensidade dos momentos e das conigurações da história que se revela enquanto sociedade global propende a constituir o Brasil em uma nação indispensável no curso desta totalidade geo-histórica em formação acelerada. Deduz-se que o Brasil deixa transparecer que foi acometido de um despertar torturante. Sua vontade de poder resvalou para o objetivo supremo de tornar-se propriamente uma nação, evocando assim a conformação do caráter nacional brasileiro. De todo modo, estes momentos e conigurações da história constituem acontecimentos históricos que surgiram na esteira das efervescências não programadas das massas sociais constituídas por mais de 1 milhão de manifestantes, em junho de 2013, distribuídos em dezenas de cidades Brasil afora. Tais acontecimentos impõem uma inlexão de rumo no quadro geral do Brasil enquanto modernidade-nação (primeira modernidade), que por sua vez interage com uma sociedade difusa que já apresenta os sinais mais evidentes de uma modernidade-mundo (segunda modernidade), ou simplesmente sociedade global. 4.3.2 Dimensões político-administrativas da coexistência de Estado e sociedade civil Atualmente, os desaios à administração pública brasileira estão associados, entre outros processos e relações: • à dinâmica do novo surto industrial e burguês de desenvolvimento, agora em escala global; • à formação das transnacionais brasileiras – induzidas e inanciadas pelo Tesouro Nacional por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do Banco do Brasil (BB) e da Caixa Econômica Federal, além das políticas paraiscais praticadas pela Receita Federal; • à diversiicação e à racionalização das funções públicas e dos organismos governamentais, bem como ao imperativo republicano da responsabilização, para além do sentido que o conceito inicialmente encerra, por sua vez em consonância com as exigências do mercado e da sociedade; e • à adequação do aparato estatal aos requisitos de uma diplomacia globalizada voltada para a inserção internacional soberana do Brasil. Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 177 Assim sendo, convém distinguir algumas dimensões político-administrativas que possibilitem uma visão geral de algumas das possíveis estratégias de ação do governo brasileiro visando à promoção do desenvolvimento social, econômico, político e cultural do país, sob os auspícios da civilidade ética e cidadã, mostradas a seguir. 1) Incluir, no organograma administrativo da República Federativa do Brasil, a Alta Direção (ou Conselho) da Administração do Estado, da qual deve emergir uma instância estratégica que conigure um think tank, ou centro de inteligência, bem como constituir um Plano Nacional de Administração Pública na esteira do processo de ampla reforma do próprio Estado, incluindo a redução dos ministérios e a constituição de um circuito intraorganizacional de telecomunicações propiciadoras de linhas de interface comunicativa entre o chefe do Poder Executivo e demais instâncias governamentais federais hierarquizadas. 2) Implementar uma transformação normativa e quantitativa dos cargos de livre provimento ou de direção e assessoramento superior (DAS). Restringir drasticamente o número destes cargos ou substituí-los por cargos exclusivos para funcionários públicos de carreira da administração pública federal. Isto evitaria a disfuncionalidade entre a burocracia e a democracia, e propiciaria à classe política dedicar-se a programas efetivos de governo em conformidade com objetivos estratégicos caracterizadores de projetos de nação nestes tempos nervosos e nebulosos. 3) Realizar auditoria da dívida pública, em obediência ao Artigo 26 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). O capitalismo brasileiro consiste em um produto genuíno oriundo da relação permissiva entre o Poder Público e os empresários burgueses no mercado (instituto do rent seeking, ou seja, tergiversação de recursos públicos via transações processadas ao largo das leis do mercado). 4) A execução de um orçamento impositivo, no lugar do orçamento autorizativo, constitui o produto político de um rearranjo de forças sociais em sentido amplo (incluindo igualmente forças econômicas, políticas e culturais), cujo objetivo maior é superar as idiossincrásicas alternâncias de humores dos governos e a consequente manipulação política do mercado de emendas parlamentares. Trata-se de examinar o quadro geral em que se situa e se desenvolve o processo de mercantilização ou desmercantilização de tais práticas políticas genuinamente brasileiras. Isto demanda um antídoto natural: a institucionalidade cívico-democrática das políticas de Estado e a elevação da alta administração pública ao status de órgão supremo da administração pública federal brasileira, incluída 178 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil no rol dos componentes institucionais do Estado brasileiro, a saber, os Poderes Executivo, Legislativo – incluindo o Tribunal de Contas da União (TCU) – e o Judiciário mais o Ministério Público Federal; 5) Em face da atual conjuntura sócio-histórica, tanto mundial quanto brasileira, convém empreender medidas governamentais capazes de eliminar o peso das estruturas jurídico-políticas e sociais cujo anacronismo é tão lagrante quanto avassalador. Para prevenir tal situação, torna-se necessário o respeito devotado por parte do Estado aos preceitos que se exprimem tanto como princípios político-constitucionais, ou normas-princípio – Artigo 5o, inciso I ao XXXVII, da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) – quanto como princípios jurídico-constitucionais, ou normas-garantia (Artigo 5o, inciso XXXVIII ao inciso LX da CF/1988) (Canotilho, 1991, p. 179 apud Silva, 2003). 6) Constitucionalizar uma cesta básica de prestação de serviços e produção de bens em nível igual ou superior ao dos países mais ricos. 7) Estabelecer um novo pacto federativo chancelado pela soberania popular, que atenda à compatibilização entre as prerrogativas de implementação de uma gama considerável de políticas públicas, em função de um mandato constitucional relativo à técnica jurídico-política da descentralização no nível político, com uma divisão mais equitativa dos recursos públicos da União. A CF/1988 transformou os municípios na esfera político-administrativa por excelência para a implementação das políticas públicas. Esta constitui uma das mais importantes deliberações constitucionais já tomadas, quando permitiu a descentralização, no nível político, da responsabilidade pela prestação de serviços e pela execução das políticas governamentais. Forja-se assim uma coarticulação entre os arranjos institucionais municipais e os arranjos institucionais estaduais e federais. 8) O advento do Imposto sobre Grandes Fortunas constitui um mandato republicano que se encontra positivado no ordenamento jurídico-mor da CF/1988, Artigo 153, inciso VII: “Compete à União instituir impostos sobre: (...) grandes fortunas”, cuja força jurídica plenipotenciária depende de regulamentação via projeto de lei complementar. 9) Reduzir drasticamente a distância material entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres, mediante um pacto social em torno da redução acentuada do índice de Gini da população brasileira. Aplicar, com ressalvas, o índice de Gini aos domínios da propriedade da terra. Utilizar o Índice do Desenvolvimento Humano (IDH), que mede e compara o grau de desenvolvimento das nações lastreado nos índices de expectativa de vida, Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 179 escolaridade e renda per capita. Esta empreitada tornar-se-á menos penosa devido ao bônus demográico de mais duas décadas à frente. 10) Criar força-tarefa multiproissional contra a violência pós-moderna, na expressão de Canotilho (2000), ou seja, a ignorância, paralelamente à implementação, ao monitoramento e à avaliação dos programas governamentais. A ação dos comandos implica a adoção de uma estratégia de ação que suprima a dicotomia trabalho intelectual versus trabalho manual, arenas da concepção versus arenas da operacionalização. 11) Intensiicar a educação cívica dos beneiciários do serviço público e despertar-lhes para a associação política, sobretudo no que concerne à sua participação nos processos de escolha e decisão relativos ao arranjo estrutural e funcional dos programas públicos de que participam como beneiciários normativos, bem como destinatários originais das inalidades práticas de tais programas governamentais. 12) O Brasil deve não apenas se preparar para a assunção de novas responsabilidades no âmbito da governança mundial, mas para a promoção de tal governança mediante a coediicação de dezenas de instituições transnacionais orientadas para o exercício de funções diferenciadas na emergência de uma nova ordem global ou supranacional. 13) Direcionar os luxos de recursos provenientes da exploração econômica do pré-sal para: a) países do Mercosul – procedimentos de infraestrutura e normatização de regras funcionais à consolidação da União Aduaneira do Sul, impedindo o advento intempestivo da chamada doença holandesa, um processo devastador assinalado pela desindustrialização doméstica, e contribuindo para o alento e a formação de uma nação subcontinental; e b) uma República Federativa Latino-Americana, que se processa via aceleração da integração regional, com base na uniformização de trocas comerciais, legislação tributária e disponibilização de recursos por meio do BNDES, para ins de construção e reconstrução de infraestruturas compatíveis com o desenvolvimento da América Latina, em geral, e do Mercosul, em particular, bem como da África. 14) Interceder de forma efetiva junto à OMC no sentido do destravamento político-administrativo da Rodada de Doha, bem como no sentido da concepção de mecanismos de controle da base de alimentos (arroz, milho e trigo) no mundo, visando prevenir a especulação desvairada em bolsa Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 180 de mercados futuros de commodities, às expensas de mais de 1 bilhão de pessoas no mundo: os deserdados globais do sistema-mundo. Em reforço a essas dimensões temáticas, sugere-se, a título de modernização administrativa, que as organizações do setor público sejam transformadas em organizações do conhecimento, à medida que passem a adotar alguns requisitos básicos, a saber: • cultura da aprendizagem, que consiste na institucionalização de valores e práticas relativos à aprendizagem constante, visando à socialização dos conhecimentos adquiridos pelos grupos que integram o setor público; • paradigma de gestão gerencial, a partir da inoculação no contexto interno da administração pública dos métodos e das técnicas de gestão oriundos do setor mercantil – contabilidade analítica, controle de gestão, administração por objetivos, métodos custo-benefício, custo-eicácia, técnicas de grupo com ênfase na análise de sistema, aferição ciclo plan, do, check, action (PDCA), reengenharia, enxugamento, cenário balanceado, planejamento estratégico, orçamento participativo etc.; e • sensibilização dos agentes político-administrativos para com os usuários, os competidores e as tecnologias em geral: introjetar na mente dos funcionários públicos o sentido de missão no atendimento aos usuários dos serviços ofertados pelo Estado, bem como estimular os servidores públicos a competir entre si, de modo a ofertar os melhores serviços aos seus beneiciários inais, mediante gratiicações por desempenho, e, por im, familiarizá-los com as mais diversas – e de última geração – tecnologias da informação e comunicação (TICs) (Reschenthaler e hompson, 1996). Convém acrescentar que o modelo de gestão burocrático é eiciente quanto ao manejo de processos decisórios cuja racionalidade administrativa faculta um desempenho satisfatório ao livre exercício de funções autoritário-abonadoras – racionalidade legal lógico-dedutiva voltada para a alocação de recursos orçamentários e não orçamentários. Mas ele incorre num profundo deficit de racionalidade quando lida com processos decisórios inerentes às funções de intervenção econômico-social – racionalidade empírico-indutiva, experimental e incremental que informa a estabilidade macroeconômica e a redistribuição – e com funções de intermediação de interesses – racionalidade receptiva que se expressa no processo de negociação ou emprego de técnicas de arbitragem (Freddi, 2000; Ofe, 1994). Além dessa visão técnica restrita ao modus operandi da burocracia no contexto interno das organizações públicas de caráter estatal, pode-se entrever uma outra perspectiva, a relacional, que se refere às relações entre o poder público, a sociedade e o mercado, dando a medida da importância da administração pública como Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 181 instrumento de planejamento, organização, regulação, direção, motivação e controle que proporciona a obtenção e mensuração de apoio político popular. Nesse caso, a gestão pública é concebida como um instrumento importantíssimo de consecução de legitimidade política no cotidiano das relações entre o setor público, o setor privado e a sociedade em geral. Ou seja: a governabilidade da administração pública deve ser obtida predominantemente no decurso do cotidiano das relações na própria administração pública (responsabilização horizontal), evocando, assim, o sentido de missão e de prestação de serviços de qualidade, bem como a eiciência e a urbanidade na prestação de serviços, relegando a um plano menos estratégico a expectativa de legitimidade política periódica baseada no atacado, como é o caso do período eleitoral (responsabilização vertical). Por sua vez, o debate global sobre o aperfeiçoamento organizacional e gerencial das organizações públicas de caráter estatal supera a dualidade entre Estado mínimo e Estado máximo, dissolvendo-a na racionalidade técnico-política do Estado necessário. Os usuários-cidadãos tendem a usufruir de crescentes prerrogativas republicanas, visto que são os legítimos representantes do poder plenipotenciário do Estado (responsabilização social), delegando parte dele a procuradores públicos eleitos. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, procurou-se demonstrar a fortuna das relexões sociológicas – e, portanto, metodológicas e epistemológicas – de Ianni, concernentes ao advento e à institucionalização do caráter planejado estatal no processo de desenvolvimento industrial brasileiro. Tal processo se cristaliza via consolidação do Estado capitalista e formação de um incipiente mercado de trabalho, compatível com as necessidades de reprodução da própria mão de obra urbana especializada. Nesse trajeto de construção explicativa do planejamento econômico governamental no Brasil, destaca-se a valorização estratégica do papel político e da função técnico-administrativa da tecnoestrutura estatal. A tecnoestrutura estatal é aqui concebida enquanto elementos e relações que propiciam a formulação e a implementação das estratégias e políticas de desenvolvimento nacional, sobretudo perante as novas condições e possibilidades geo-históricas proporcionadas pelo novo ciclo de expansão do capitalismo globalizado. No decurso da feitura deste capítulo, o autor deixou-se conduzir pela sensibilidade fenomenológica, pela experiência positiva e pela sapiência histórico-dialética despojada de Ianni acerca dos problemas do Brasil. Sempre se teve como foco e pano de fundo o desenvolvimento brasileiro, compreendido neste capítulo como marco civilizatório lastreado na ideia de uma democracia genuína. Sua expressão real consiste na redução progressiva das disparatadas e desumanas diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais que esgarçam o tecido social em recortes desarticulados, como uma 182 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil colcha de retalhos, ou uma parede ornada com mosaicos distintos e aleatoriamente dispostos em torno de si mesmos, independentemente de qual seja o motivo, a lógica e a estética subjacentes. O produto de tão horrendo quadro de civilidade capenga revela uma ordem violenta que se estriba na violência da ordem: do látego à ignorância, do acicate à alienação, da espora à consciência ilusória. Por essa razão, deve-se extrair de parte da obra de Ianni – dedicada a interpretar os enigmas da sociedade brasileira – um receituário social, econômico, político e cultural que sirva de mapa cognitivo-analítico para o combate às mazelas que permeiam uma dinâmica intermitente constituída de luxos e reluxos. As explanações formuladas abrangem o período histórico-cronológico das análises de Octavio Ianni sobre os primórdios da planiicação estatal no Brasil, sob a égide da persecução sem trégua da modernidade. Ianni ilustra os exemplos históricos da alternância entre soberanização interna ou externa das decisões no decurso do processo de formação da intelligentsia político-administrativa nacional, cuja missão suprema fora providenciar estratégias de ações práticas voltadas para a superação do atraso do país em relação às nações industrializadas europeias, bem como à norte-americana. Nesse sentido, o trabalho de Octavio Ianni centra-se nas discussões, nas decisões e nas realizações associadas: i) à industrialização tardia e às necessidades de sua implantação a toque de caixa; ii) ao protagonismo e à importância estratégica do capital estrangeiro em face da débil estrutura inanceira nacional; e iii) à dinâmica das relações capital-trabalho. O objetivo e a função política das decisões referentes às relações capital-trabalho propiciaram a paciicação entre vendedores e compradores da força de trabalho. O principal propósito da política adotada foi a sistematização e a formalização das relações políticas veriicadas no embate entre as classes sociais urbano-industriais. Disto resultou a formação de um mercado de trabalho compatível com a nova matriz econômica. Este, por sua vez, implicou uma crescente divisão social do trabalho, ampliando-a, englobando tanto o setor público quanto o setor privado na política de implementação de infraestruturas de base: energia hidrelétrica, indústria siderúrgica, combustíveis etc. Segundo as análises macrossociológicas de Ianni, a época atual constitui inequivocamente uma das conjunturas mais críticas de toda a história brasileira republicana, pois “quando se rompem um pouco, ou muito, os vínculos entre o passado e o presente, este é levado a pensar o novo, novamente” (Ianni, 2004a, p. 7). Assim sendo, conclui que “a nação é levada a pensar-se por seus intelectuais, artistas, líderes, grupos, classes, movimentos sociais, partidos políticos, correntes de opinião pública”, e que a conjugação deles propicia a emergência das forças sociais dominantes em cada momento histórico particular (Ianni, 2004a, p. 7). Octavio Ianni e a Ideia de Brasil Moderno na Era do Globalismo 183 A convulsão social que abruptamente alorou nas ruas, praças e instituições ou repartições públicas brasileiras tem se reverberado nos recônditos mais íntimos do cidadão comum, compelindo-o ao exercício de sua cidadania à medida que reivindica, protesta, opina. Esta situação sócio-histórico-estrutural demanda, simultaneamente, tanto mudanças conjunturais (incrementais) quanto mudanças estruturais (sistêmicas). O motivo inicial que determinou o advento dos recentes fenômenos sociais de massa se circunscreve ao âmbito da dimensão econômica. Entretanto, esta dimensão é preterida de supetão ao ser transfigurada por obra humana em um mero fator coadjuvante. Faculta-se à dimensão política o protagonismo teleológico, axiológico e praxiológico na formulação do reordenamento político-administrativo do Estado, cujo acicate consiste nos arrufos democráticos propiciados pela sociedade civil sob o escudo protetor do Estado democrático de direito. Assim sendo, a contextualização sócio-histórica-estrutural no Brasil de hoje evoca a hipótese da subsunção do aforismo americano “É a economia, estúpido!”, formulado na era Clinton (1993-1997 e 1997-2001), no aforismo brasileiro “É a política, estúpido, a economia é apenas um pretexto!”. Em termos iannianos, isto signiica postular a ideia de um Brasil moderno enquanto realidade geo-histórica que se distancia da icção à medida que assume efetivamente uma isionomia e uma identidade multicultural, componentes determinantes de um projeto humanista de nação e civilização – uma espécie de “nação indispensável” à forjadura sócio-histórico-estrutural deste século e milênio. É preciso ter consciência histórica de que o movimento acelerado do obsoletismo institucional nas sociedades local, regional, continental e transnacional constitui um dos emblemas da atual época. O presente regime de transição determina uma onda de disfuncionalidade que atinge milhares de instituições; e nas lacunas deixadas pela supressão destas proliferam outras, que são orgânicas a esta nova e emergente coniguração organizacional global. Com base no que já fora discorrido acerca das controvérsias e dos dilemas que a constituem, a época atual é pródiga em ilustrações empíricas de o quanto estão críticos os níveis de legitimidade da ordem social democrática brasileira e mundial. Na realidade, trata-se de um prognóstico que demonstra a fortuna vaticinante das investigações e das análises macrossociológicas de Ianni. Uma vez que “a história esconde o segredo do presente”, convém então decifrá-lo (Ianni, 2004a, p. 8), apesar da volatilidade que o caracteriza a cada nanossegundo do porvir. Dessa maneira, as espontâneas, intempestivas e pluralistas manifestações de protestos sociais que emergiram com vigor e tenacidade no Brasil despontam como um marco histórico que airma a nação em dois momentos e conigurações da história brasileira republicana – antes e depois de junho de 2013. Trata-se do recrudescimento da guerra civil mundial permanente, ou revolução social global, conforme o pensamento teórico premonitório de Ianni, confeccionado desde o Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 184 inal da década de 1990 à primeira metade da década de 2000. O pensamento de Ianni exprime muito bem o espírito da época (zeitgeist) ou espírito do século (genius seculi), que se traduz por uma explosão de movimentos sociais de expressão econômica, política, intelectual, artística e cultural de uma era. Desse modo, o alcançe da plenitude do capital é contemporâneo da reconiguração sociopolítica do mundo por meio da conluência dos Estados-nação rumo à assunção de uma federação de Estados terrestres. É este o sentido conferido por Octavio Ianni quando se refere à noção de federalismo mundial. REFERÊNCIAS BUENOS AYRES, C. A. M. de C. A administração pública brasileira e as vicissitudes do paradigma de gestão gerencial. 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Em parte, isto pode ser atribuído à insatisfação com o baixo nível de crescimento nos anos 2000, se comparado à média histórica desde o Plano de Metas até os anos 1970 (7,51%).3 As circunstâncias históricas, particularmente a ideologia desenvolvimentista, izeram que se pensasse que o âmbito da política de Estado pudesse efetivamente conferir um dinamismo à economia muito maior do que o dos últimos trinta anos, desde 1980, quando se iniciou a década perdida. É um legado e uma frustração sustentada, pelo menos no nosso caso, pela perspectiva cepalina originária.4 Contudo, as frustrações certamente indicam uma expectativa de desenvolvimento que não é possível pelas determinações estruturais do desenvolvimento brasileiro. Por certo, há um grau de manobra da política de desenvolvimento nacional, ou mesmo da política macroeconômica, embora esta venha se mantendo na mesma 1. O autor agradece o apoio inanceiro do Ipea, por intermédio do programa Cátedras para o Desenvolvimento. Este capítulo é uma síntese das relexões que puderam ser alcançadas pela realização da pesquisa e dos seminários ligados ao pensamento de Rui Mauro Marini, patrono do projeto, realizados no Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (IE/UFU) no período de março de 2009 a julho de 2010. 2. Professor associado do Programa de Pós-graduação em Economia da IE/UFU. 3. Cálculo feito com base na série histórica de variações reais anuais do produto interno bruto (PIB) do Ipeadata, tomando o período de 1956 a 1979. Na mesma série, as médias dos anos 1980, 1990 e 2000 são respectivamente 3,02%; 1,65%; e 3,71%. Tomando-se uma regra de bolso para o cálculo do tempo necessário para se dobrar o PIB, a uma taxa de 7,5% ao ano ( a.a.), a duplicação levaria 9,6 anos; a uma taxa de 3,71% a.a., levaria 19 anos. No ritmo de crescimento da China –10% a.a. – dobraria o PIB a cada sete anos, aproximadamente. 4. A qualiicação de perspectiva cepalina originária é importante, pois as recomendações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em anos recentes têm natureza diversa. Sobre isto, veja-se Almeida Filho (2003) e Almeida Filho e Corrêa (2011). 188 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil trilha nos últimos dezesseis anos. A questão está em saber se o capitalismo global e a inserção brasileira permitem de fato aspirar ao desenvolvimento em níveis sociais comparados aos países líderes do capitalismo. Aqui, dá-se um signiicado ao desenvolvimento que transcende o crescimento econômico, abrangendo não apenas a dimensão da incorporação de novas técnicas produtivas, como também a aproximação do que seria o nosso potencial de padrão de vida nacional, extensivo ao conjunto da população, nos marcos do capitalismo. A questão não é nova, tampouco as respostas estão disponíveis. Embora o desenvolvimento capitalista global tenha tido mudanças relevantes, elas não foram suficientes para estimular novas interpretações. 5 Todavia, há “respostas” que foram esquecidas e que continuam tendo validade. Se a história pode ser seguramente recontada a partir de novos elementos antes desconhecidos, de forma análoga, interpretações e teorias podem ser revisitadas e requaliicadas a partir de novos fenômenos, de modo a orientarem para a compreensão das condições presentes. Sugere-se que seja precisamente este o caso da teoria da dependência e, em particular, do pensamento de Rui Mauro Marini. A interpretação formulada por ele para explicar os limites ao desenvolvimento dos países da periferia do capitalismo apreende a forma e o período de inserção destes na divisão internacional do trabalho, forjada pela evolução capitalista global. Pretende-se apresentar a teoria de que o baixo dinamismo relativo da economia brasileira é um fenômeno estrutural, relacionado à natureza e a respectivos dilemas do nosso padrão de desenvolvimento capitalista dependente. Este padrão vem sendo abalado por mudanças estruturais do desenvolvimento capitalista global desde os anos 1970, e agudamente nos anos 1980, mas não alterou essencialmente a forma de inserção da economia, tampouco seu padrão de acumulação (Almeida Filho, 1999; 2004; Corrêa e Almeida Filho, 2001). A “explicação da dependência” e a produção intelectual de Marini obtiveram ampla repercussão na região da América Latina no inal dos anos 1960 e começo dos anos 1970,6 quando icou evidente que o desenvolvimento econômico não se dava por etapas, um caminho que bastaria ser trilhado para que os resultados pudessem ser alcançados. Ao contrário, os caminhos eram diversos e com obstáculos crescentes. Entretanto, por razões já estudadas (Dos Santos, 2000; Marini, 2000), esta explicação foi “esquecida”. Considera-se aqui, reiterando, que há validade ainda para o conceito de dependência. Por isto, vale a pena recuperar os termos originários do “aporte da dependência”, que 5. Duas exceções merecem registro. A primeira é a da tese da inanceirização, conforme expressa nos trabalhos de François Chesnais (1998, 2005). A segunda é a interpretação do capitalismo contemporâneo de David Harvey (2004). A este respeito, veja-se Almeida Filho e Paulani (2009). 6. Como será argumentado mais à frente, esta repercussão não ocorreu no Brasil, por razões que serão apresentadas. Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 189 continuam válidos no seu sentido de explicitar limites ao desenvolvimento dos países periféricos. A dependência expressa subordinação, a ideia de que o desenvolvimento desses países está submetido (ou limitado) pelo desenvolvimento de outros países. Por outro lado, embora o tema “inserção autônoma” sugira uma possibilidade histórica incompatível com os termos do “aporte da dependência”, entende-se que essa referência pode ser lida como a busca de maiores graus de liberdade no exercício da política de desenvolvimento. Neste particular, o estudo dos autores, que se debruça sobre o tema da dependência, pode ser bastante profícuo. É este o tema deste capítulo: retomar o cotejamento de uma intenção política de busca de autonomia com os limites estruturais historicamente postos, à luz do pensamento crítico de Rui Mauro Marini. O capítulo está organizado em quatro seções além desta introdução. Na segunda seção, apontam-se algumas razões para o estudo do pensamento de Marini. Na terceira, as suas ideias fundamentais sobre a natureza do capitalismo periférico, chamado por ele de um capitalismo sui generis, são recuperadas e sistematizadas. Na quarta seção, fez-se um apontamento a respeito da natureza do capitalismo dos anos 2000 e da inserção que nele apresenta a América Latina. Na quinta seção, recuperaram-se as ideias de Marini como fundamento de uma interpretação das condições de subordinação da região nesse período recente. Finalmente, na sexta e última seção, discutiram-se as possibilidades que se apresentam para uma melhoria no grau de autonomia dos países da região. 2 A IMPORTÂNCIA DO RESGATE DO PENSAMENTO DE MARINI Rui Mauro Marini, assim como outros intelectuais, seus contemporâneos, teve sua formação teórica forjada na experiência pessoal, sob uma inluência diversiicada até que abraçasse o marxismo. A partir daí, sua produção ganha importância e consistência.7 Ela pode ser separada em duas vertentes de estudos: a do capitalismo e a da revolução. A primeira delas tem repercussão sobre o que hoje se considera área de economia; a segunda vertente é mais importante para o campo da política. Contudo, elas aparecem imbricadas na origem da teoria da dependência, relexão teórica que tem inluência e reconhecimento internacional nos debates sobre desenvolvimento.8 Para Marini, a teoria da dependência tem raízes teóricas e históricas nas concepções que a “nova esquerda” elaborou, para fazer frente à ideologia dos partidos 7. Um relato detalhado de sua trajetória de vida é feito por ele mesmo. Está transcrito no site Rui Mauro Marini – Escritos, organizado e mantido por um grupo de pessoas em três países: Brasil, por Claudio Colombani, Vânia Bambirra e Emir Sader; Chile, por Patrícia Olave, Jaime Osório e Lila Lorenzo; e México, por Francisco Pineda, Dulce Maria Rebolledo, Ana Esther Ceceña, Márgara Millán e David Moreno. Disponível em: <http://www.marini-escritos.unam.mx/index. htm>. Acesso em: 12 maio 2010. 8. Este reconhecimento está atestado em importantes livros que tratam dos paradigmas do desenvolvimento econômico: Hunt (1989); Hette (1990); Kay (1989); Larrain (1989) e Lechman (1990). 190 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil comunistas.9 A inluência mais conhecida que a teoria da Cepal exerceu sobre a teoria da dependência10 foi indireta, na medida em que os comunistas, que haviam se dedicado mais à história do que à economia e à sociologia, apoiaram-se nas teses cepalinas da deterioração das relações de troca, do dualismo estrutural e da viabilidade do desenvolvimento capitalista autônomo, para sustentar o princípio da revolução democrático-burguesa, anti-imperialista e antifeudal, que eles haviam herdado da Terceira Internacional. Contrapondo-se a isso, a “nova esquerda” caracterizava a revolução como, simultaneamente, anti-imperialista e socialista, rechaçando a ideia do predomínio de relações feudais no campo e negando à burguesia latino-americana capacidade para dirigir a luta. Foi no Brasil da primeira metade dos anos 1960 que essa confrontação ideológica assumiu peril mais deinido e que surgiram proposições suicientemente relevantes para abrir caminho a uma elaboração teórica capaz de enfrentar a ideologia cepalina. A publicação do ensaio Dialética da dependência, em 1973, é um marco nesse processo de gestação de uma nova relexão. O ensaio passa a ser discutido, questionado e contestado tanto pela esquerda comunista tradicional como por interlocutores do tema da dependência. Neste último caso, merecem destaque os trabalhos de Cardoso e Serra (1978) e Castañeda e Hett (1978). Contudo, há repercussões positivas que buscam o aprofundamento das proposições de Marini, como a de Leal (1978). Este autor parte da teoria marxista do processo de trabalho, examinando sucessivamente Paul Baran, André Gunder Frank, FHC e Enzo Faletto, Prebisch e Marini, com o im de determinar em que medida esses autores contribuem a fundar uma teoria do capitalismo latino-americano. O próprio Marini aponta este trabalho de Leal como o que teria frutiicado melhor o desenvolvimento da teoria da dependência. Ainda sobre as repercussões positivas de seu trabalho nesse período, Marini destaca as de Arroio e Cabral (1974); Osório (1975); Fröbel, Jürgen e Kreye (1977); Bambirra (1978); Castro Martinez (1980); Torres Carral (1981); e Chilcote e Johnson (1983). 9. A “nova esquerda” é um termo usado no discurso político para se referir a movimentos radicais de esquerda dos anos 1960 em diante. Eles se diferenciam dos movimentos esquerdistas anteriores que haviam sido mais orientados para um ativismo trabalhista, adotando uma deinição mais ampla, comumente chamada de ativismo social. A “nova esquerda” foi um movimento intelectualmente dirigido, que buscava corrigir os erros dos antigos partidos de esquerda no período do após Segunda Guerra Mundial. Segundo Marini, esse movimento ocorreu particularmente no Brasil, embora seu desenvolvimento político fosse maior em Cuba, na Venezuela e no Peru. 10. A inluência de que se está tratando é a de servir de ponto de partida para uma discussão da dependência e da inserção da economia no desenvolvimento capitalista global. A teoria da dependência vai efetivamente mostrar a insuiciência da teoria da Cepal, ao mesmo tempo em que incorpora alguns dos seus elementos teóricos, sobretudo no caso de autores como Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Enzo Falleto. Devido a diferenças de perspectivas teóricas, metodológicas e políticas, a maior parte dos estudiosos do pensamento de Marini diferencia pelo menos duas correntes da dependência, a marxista (Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e outros) e a weberiana (FHC, Enzo Falleto, José Serra). A este respeito, veja-se Martins (2011), Baptista Filho e Almeida Filho (2009). Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 191 A partir dos anos 1980, a teoria da dependência entra numa nova fase em que se torna referência para as relexões sobre o desenvolvimento. Sobre essas relexões, Marini menciona como trabalhos relevantes os de Bottomore (1988); Kay (1989); Davydov (1986); Kuntz (1985); Dussel (1988); Cueva (1988, 1989); e Osório (1990). Estes dois últimos são mencionados em razão de seus propósitos de recuperar e transcender, no plano do marxismo, a teoria da dependência. Há, ainda, uma menção a Bordin (1987), que se serviria da teoria da dependência para reinterpretar os fundamentos e as projeções da teologia da libertação. Neste contexto da produção histórica sobre o tema da dependência, a importância de se retomar o pensamento de Marini está em dar conhecimento público nos meios acadêmicos de economia ao pensamento de um autor de grande originalidade teórico-histórica, para além de sua contribuição especíica para a teoria da dependência. Como se pode perceber das referências feitas por ele, sua produção repercutiu de forma signiicativa no campo crítico da economia na América Latina, de modo que a recuperação da sua obra pode contribuir para dar densidade teórica à discussão do desenvolvimento capitalista, especialmente num momento de crise aguda como é este dos anos 2008 a 2010. Por outro lado, observa-se que o debate sobre o desenvolvimento vem se concentrando nos requisitos ao crescimento sustentado, ideia teoricamente imprecisa e por si só limitada no que diz respeito aos diversos elementos teóricos que compõem a investigação do desenvolvimento.11 A concepção teórica e o método utilizado por Marini inserem-se no campo crítico da economia, comprometidos em pensar caminhos alternativos para a sociedade brasileira. Portanto, o estudo dos seus textos contribui para reairmar um campo de estudo mais abrangente sobre o desenvolvimento. 3 AS BASES TEÓRICAS DA “DEPENDÊNCIA” Considera-se aqui que a ideia de dependência apresenta um sentido quase que consensual nas vertentes que compõem o que pode ser chamado de aporte da dependência. A referência ao aporte é feita em razão das divergências a respeito do alcance (ou status teórico) do conceito de dependência, o que motivou o debate clássico entre as posições de heotônio dos Santos e Rui Mauro Marini e de FHC e Serra.12 Contudo, para sintetizar a ideia, parece apropriado apresentar a deinição de heotônio dos Santos (1970): “Por dependência entendemos uma situação 11. A imprecisão relaciona-se à ausência de elementos teóricos e históricos que possam dar suporte à ideia do crescimento persistente. Ao contrário, toda a teoria dos ciclos que se construiu desde Schumpeter, Keynes e, sobretudo, Kalecki sugere uma evolução com lutuações. 12. Esta questão está tratada em Almeida Filho (2005) e Araújo (2001). Uma síntese do debate propriamente pode ser encontrada em Hunt (1989) e Hette (1990). Para uma referência a posições dos participantes no debate, veja-se Dos Santos (2000); Marini (2000); Frank (1980); e Cardoso (1995). 192 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil em que a economia de certos países está condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outra economia à qual a primeira é submetida” (Dos Santos, 1970, p. 231, tradução nossa) Esta expressão enxuta da ideia de dependência por certo não é fiel aos argumentos e aos debates acalorados que ocorreram nos anos 1970, sobretudo aqueles que aconteceram no Brasil. Ali, como está muito bem apreendido em Paulani e Pato (2005, p. 43-46), tratava-se de discutir se o projeto de desenvolvimento capitalista brasileiro (e outros da América Latina) tinha potencial de se concretizar. As posições radicalizaram-se entre a negação completa (Marini) e um exagero de potencial (FHC).13 Mesmo assim, essa ideia apreende suicientemente uma dimensão considerada por muitos como estrutural ao sistema capitalista global, particularmente desde que o mesmo incorporou todo o espaço que o processo de acumulação do capital poderia aproveitar. Este fenômeno vem sendo extensivamente referido como processo de globalização.14 O ponto a se considerar é que o desenvolvimento dos países da periferia está condicionado pelo desenvolvimento dos países centrais. Mais ainda, que a riqueza gerada nos países periféricos serve de base para a aceleração do desenvolvimento dos países centrais. Esta é uma questão intensamente trabalhada por Marini, mediante o uso do conceito de superexploração da força de trabalho, muito embora o argumento seja mais diretamente utilizado para interpretar as condições concretas dos países da América Latina e não da periferia como um todo. O texto mais conhecido de Marini sobre este assunto – Dialética da dependência – faz um longo percurso histórico, desde o período colonial, passando pela etapa de exportação capitalista, até os anos 1960, para mostrar que a dependência é produto de um processo histórico de inserção das economias periféricas no capitalismo global. O argumento pode ser sintetizado nos termos atuais da seguinte forma: desde os primórdios da divisão internacional do trabalho no mundo capitalista os países da América Latina inseriram-se como fornecedores de bens-salário e matérias-primas. O processo de industrialização tornou esta inserção mais diversiicada, mas não a alterou na essência, isto é, a diversiicação ocorreu na margem, conservando as antigas exportações e complementando-as com bens mais soisticados. A inserção não permite uma dinâmica de acumulação a essas economias que seja baseada no 13. Enquanto Marini procurava mostrar que o desenvolvimento capitalista exigia um rompimento (evidentemente, esta não era a sua preferência) das amarras da dependência, com mobilização política suiciente para alterar uma inserção historicamente construída e sob controle dos países imperialistas, FHC argumentava que era possível o desenvolvimento numa situação de dependência, inclusive com aproximação às condições dos países centrais. 14. Faz-se referência ao período que se abre nos anos 1990, quando o socialismo real sucumbe, mantendo-se marginal, pois a economia chinesa abre-se ao capitalismo. Daí para frente, só icam de fora do sistema global os espaços que não apresentam sinergia com o processo de acumulação global, grande parte deles situados no continente africano. Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 193 progresso técnico, exigindo depreciação dos salários, o que por sua vez determina um mercado interno limitado. Vale a pena a reprodução da formulação de Marini nos seus próprios termos: A inserção da América Latina na economia capitalista responde às exigências que coloca (sic) nos países capitalistas a passagem à produção de mais-valia relativa. Esta é entendida como uma forma de exploração do trabalho assalariado que, fundamentalmente com base na transformação das condições técnicas de produção, resulta da desvalorização real da força de trabalho (Marini, 2000, p. 113). A passagem à mais-valia relativa apreende a ênfase concorrencial no progresso técnico, com aumento de produtividade do trabalho pela incorporação de novas técnicas produtivas. Isto permite o aumento da expropriação do trabalho sem necessariamente aumentar o dispêndio de energia física do trabalhador, possibilitando ainda a aceleração da produção. A condição histórica precedente sustentava o aumento da expropriação pela extensão e intensiicação da jornada. Segundo ele, para que isto ocorra é essencial que as novas técnicas produtivas venham a diminuir o custo de reprodução da força de trabalho, determinando o piso para a reprodução da mesma. Assim, se se puder imaginar uma economia isolada, haveria uma dinâmica especializada com parte dos setores produzindo bens-salário e parte produzindo bens de produção e bens de consumo capitalista. Os limites desta dinâmica seriam dados pela capacidade de consumo total de bens inais. Porém, a ideia de partir de uma divisão internacional do trabalho está precisamente justiicada pelas mudanças que ela vem a produzir em cada uma das economias. O movimento de superação dos limites apontados acima é de incorporação de novos espaços de produção/consumo, o que foi realizado pelo movimento imperialista. A divisão internacional do trabalho pode ser tomada como resultado desse processo. De todo modo, segundo Marini a divisão internacional do trabalho que resultou do primeiro movimento de internacionalização, com incorporação de novos mercados, reservou à América Latina a função de fornecedora de alimentos e matérias-primas. A oferta mundial de alimentos, que a América Latina contribui a criar e que alcança seu auge na segunda metade do século XIX, será um elemento decisivo para que os países industriais coniem ao comércio exterior a atenção de suas necessidades de meios de subsistência. O efeito dessa oferta (ampliado pela depressão dos preços dos produtos primários no mercado mundial) será o de reduzir o valor real da força de trabalho nos países industriais, permitindo assim que o incremento da produtividade se traduza ali em cotas de mais-valia cada vez mais elevadas. Em outras palavras, mediante sua incorporação ao mercado mundial de bens-salário, a América Latina desempenha um 194 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil papel signiicativo no aumento da mais-valia relativa nos países industriais (Marini, 2000, p. 115). Ainda segundo Marini, as consequências desse papel para o desenvolvimento (capitalista) são claras. Em primeiro lugar, ocorrem trocas desiguais no comércio internacional. Os produtos industrializados submetem-se ao processo concorrencial cuja natureza é de obtenção de ganhos extraordinários pela via da incorporação do progresso técnico. Há queda de preços compensada pelo aumento de produtividade e aumento da produção. No que diz respeito ao comércio, esses produtos têm preços relativos mais altos que os produtos primários.15 Desenvolvendo sua economia mercantil, em função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio as relações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado e que determinavam seu caráter e sua expansão. Mas esse processo estava marcado por uma profunda contradição. Chamada a coadjuvar a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve que fazê-lo mediante uma acumulação fundada na superexploração do trabalhador. Nesta contradição, radica-se a essência da dependência latino-americana (Marini, 2000, p. 131-132, grifo nosso) Explica Marini que esta condição dos países da América Latina traz consequências dramáticas para o desenvolvimento de suas economias. Isto porque no trabalhador aparecem duas características contraditórias: ele é produtor e consumidor de mercadorias. Essas características expressam-se em fases diferentes, sendo a de produtor de riqueza própria à fase da produção e a de consumidor própria à fase de circulação. O desenvolvimento do capitalismo e a sua expansão acelerada da produção exigem que essa condição de consumidor seja exercida. De maneira que o padrão de consumo dos trabalhadores vai incorporando, mesmo que defasado, produtos próprios ao consumo capitalista, redeinindo assim o próprio custo de reprodução da força de trabalho. Numa economia em que há superexploração, esta condição não é exercida da mesma maneira que em uma economia desenvolvida. Desta forma, a natureza da acumulação vai sendo redeinida. Segundo ele, o processo histórico de industrialização dessas economias não foi suiciente para alterar essa determinação estrutural. A diversiicação que a industrialização produziu encontrou seus limites na expansão do mercado interno dessas economias, engendrando um novo ciclo de exportações de bens-salário e matérias-primas, uma espécie de reiteração da inserção histórica. Ao abrir-se a fase de realização, esta contradição aparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a reprodução do capital desaparece, dado que esse consumo (somado ao dos capitalistas e das camadas improdutivas em geral) restabelece ao capital a forma que lhe é necessária para começar um novo ciclo, isto é, a forma dinheiro. (...) 15. A problemática do intercâmbio desigual é a mesma da Cepal. Como será visto, a análise de Marini leva a caminhos distintos. Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 195 Através da mediação que estabelece a luta entre operários e patrões em torno da ixação do nível dos salários, os dois tipos de consumo dos operários tendem assim a se complementar, no curso do ciclo do capital, superando a situação inicial de oposição em que se encontravam. Esta é, aliás, uma das razões pelas quais a dinâmica do sistema tende a canalizar-se através da mais-valia relativa, que implica, em última instância, no barateamento das mercadorias que entram na composição do consumo individual do trabalhador (Marini, 2000, p. 133). Marini assume que a divisão internacional do trabalho que se estabeleceu no século XIX sofre mudanças com o desenvolvimento da economia global. Assim, após o processo de industrialização das economias latino-americanas, que ocorre na primeira metade do século XX, há mudanças qualitativas nessa divisão do trabalho, mas não se altera o aspecto que poderia ser tomado como fulcral. Persiste a característica da superexploração. Isto lhe permite denominar a ordem social da região como capitalismo dependente. Coerente com a sua motivação de apreender as condições de desenvolvimento da América Latina para instrumentalizar uma ação política de transformação, ele mostra que essa determinação estrutural, em nível da economia, só será alterada por uma ação política que reordene as economias nacionais, mesmo que limitadas ao desenvolvimento capitalista. Cabe indagar se esta formulação tem sentido geral de traduzir uma condição intrínseca das economias da região.16 Para isto, é importante considerar o recorte apresentado por Marini em que essas determinações estruturais, que tendem a se reproduzir, estão postas na categoria da economia. Entenda-se com isto que as determinações estão postas em nível das forças produtivas e das relações sociais de produção. Há pelo menos dois outros níveis teóricos referidos por Marini que são importantes: o político e o sociológico. (...) o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho. Não nos resta, nesta breve nota, senão advertir que as implicações da superexploração transcendental no plano da análise econômica devem ser estudadas também do ponto de vista sociológico e político. É avançando nessa direção que aceleraremos o parto da teoria marxista da dependência, libertando-a das características funcional-desenvolvimentista que se aderiram a ela em sua gestação (Marini, 2000, p. 165). Sugere-se que seja este o ponto inal do ensaio de Marini que deve ser tomado como referência para uma requalificação dos seus termos, já que a tese mais ampla é a de que não há alteração da condição internacional brasileira nos anos que se seguem à falência do socialismo real.17 Registre-se que o sentido de uma 16. A este respeito, veja-se Katz (2011). 17. Evidentemente, está-se referindo aos aspectos fundamentais que coniguram a dependência. Esta tese está desenvolvida em Carcanholo (2004). Para uma discussão a respeito da inserção internacional da economia, do ponto de vista produtivo e inanceiro, veja-se Almeida Filho (2003). 196 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil proposição de requaliicação dos termos não será discussão teórica de validade do conceito de dependência, ou de seu status teórico. Esta foi a polêmica interna aos dependentistas. Distintamente, propôs-se uma requaliicação orientada pelas condições concretas do desenvolvimento capitalista, que não obstante apresentasse especiicidades e garantisse a reprodução das condições de subordinação formuladas há quarenta anos.18 4 AS CONDIÇÕES DE INSERÇÃO DA AMÉRICA LATINA NO CONTEXTO DO CAPITALISMO GLOBAL NOS ANOS 2000 A ideia de dependência, conforme colocada por Marini, pode ser traduzida para as condições dos anos 1990 nos termos de Arrighi (1997), que tem preocupações semelhantes. Segundo este último, há um núcleo orgânico do capitalismo, que consiste no conjunto formado pelos países que nos últimos cinquenta anos, até 1988, ocuparam as posições mais altas na hierarquia da riqueza global e, em virtude desta posição, estabeleceram (individual ou coletivamente) os padrões de riqueza a que todos os outros Estados aspiram. Os demais países são considerados como periféricos, subordinando-se aos rumos determinados pelo primeiro grupo, exatamente nos termos colocados, como ideia, pelos dependentistas.19 Os dados de Arrighi (1997), aqui atualizados até 2005, compilados na tabela 1, mostram que a característica marcante desse sistema global é a concentração de riqueza nas dimensões nacional, das unidades de capital, e mesmo, na interpessoal. Nos últimos trinta anos há um aumento da participação da “periferia”20 em relação ao núcleo orgânico, porém mantém-se a concentração do comando deste último grupo de países, que foi em 2005 da ordem de 36% da riqueza global. 18. A referência para esses trinta anos é a publicação do artigo de Theotônio dos Santos na American economic review em 1970. 19. O conjunto de países periféricos não corresponde aos países que estão fora do núcleo orgânico, pois esta referência diz respeito aos países inseridos no que poderia ser tomado como o sistema capitalista global. Há países que têm uma inserção insigniicante do ponto de vista de uma distribuição internacional do trabalho, como é o caso de muitos países africanos. O mais apropriado, neste caso, seria referir-se a esses últimos países como marginais, isto é, países que não têm inserção estrutural no sistema capitalista. 20. Colocou-se a palavra entre aspas porque ela não é utilizada por Arrighi. Assim, trata-se de uma adaptação, pertinente pela natureza dos argumentos deste autor. Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 197 TABELA 1 Importância relativa da riqueza gerada no núcleo orgânico – períodos selecionados (Em US$ bilhões de 2000) Anos Núcleo orgânico1 (a) Mundo (b) % a/b 1975 8.572 19.633 43,66 1985 11.459 27.558 41,58 1990 13.446 33.071 40,66 1995 14.993 37.255 40,24 2000 17.571 45.155 38,91 2001 17.823 46.330 38,47 2002 18.205 47.824 38,07 2003 17.165 49.654 34,57 2004 19.218 52.169 36,84 2005 19.733 54.568 36,16 Fonte: Banco Mundial, World Development Report (WDR). Nota: 1 Para esse período, não há dados sobre a Holanda. Obs.: Os dados são obtidos pelas somas dos PIBs. Fica evidente pelos dados da tabela 2 que a concentração vem sendo afetada signiicativamente pelo desempenho da economia da China, além de outros países da Ásia. No entanto, se se considerar o desempenho da China como extraordinário, como parte da incorporação dos espaços globais ao desiderato capitalista, a concentração ainda se mantém em níveis muito altos. A concentração de riqueza e a ideia implícita de transferência de recursos que ela apresenta atende a um dos elementos teóricos centrais da teoria marxista da dependência, que sustentava que a periferia cumpria funções de alavancagem dos países desenvolvidos. TABELA 2 Crescimento médio comparado dos PIBs – agregações e períodos selecionados (Em % dos PIBs) Períodos/países Mundo Brasil China Índia OCDE1 Estados Unidos 1972-2007 3,2 3,8 9,0 5,3 2,9 3,1 Países de renda média 4,4 1980-1989 3,0 3,0 9,3 5,7 3,0 3,0 3,4 1990-1999 2,7 1,6 10,0 5,7 2,5 3,1 3,5 2000-2007 2,9 3,4 10,0 7,2 2,4 2,6 6,0 Fonte: World Development Indicators (WDI). Nota: 1 Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Para corroborar a existência dessa função de alavancagem, pode-se utilizar os dados dos PIBs per capita, que dão uma indicação das disparidades de condição de vida entre os países do núcleo orgânico e a periferia (tabela 3).21 21. Outra forma é olhar os dados dos países desenvolvidos, de acordo com Caputo e Radrigán (2001). Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 198 TABELA 3 PIB per capita, em PPP – países do núcleo orgânico (Em US$ de 2000) Anos Austrália Canadá França Alemanha Noruega Reino Unido Estados Unidos Mundo 1975 15.554 17.079 15.557 14.478 16.429 15.506 19.83 4.834 1980 17.148 19.524 17.681 17.056 20.569 17.208 22.595 5.383 1985 18.753 21.183 19.720 18.180 23.668 18.822 25.167 5.712 1990 20.468 22.886 21.972 21.015 25.641 21.873 28.375 6.292 1995 22.535 23.566 22.963 23.186 29.620 23.227 30.166 6.591 2000 25.417 27.290 25.698 25.481 34.208 26.332 33.970 7.449 28.306 29.415 26.941 26.216 35.956 28.628 37.437 8.476 2005 Fonte: Banco Mundial, WDR. Obs.: Para o período, não há dados sobre a Holanda. Esta possível contradição entre o aumento da importância relativa de alguns países da periferia e a ideia de que há um núcleo orgânico do capitalismo, que controla os rumos do desenvolvimento global, pode ser resolvida se tratar de outra dimensão importante aos dependentistas. Trata-se da dimensão do comércio internacional. Na tabela 4 fica evidenciado o significativo crescimento do comércio internacional na fase atual do desenvolvimento capitalista. Este crescimento é feito à custa da importância relativa dos mercados domésticos, aumentando os vínculos econômicos entre as economias que compõem o sistema capitalista global.22 TABELA 4 Expansão do comércio mundial – conta-corrente como % do PIB Período Conta-corrente/PIB Números-índice 1972 13,84 100 1975 16,47 119 1980 18,75 136 1985 18,90 137 1990 19,05 138 1995 21,17 152 2000 24,65 178 2003 23,92 173 Fonte: WDI. 22. Não é propósito tratar aqui das consequências que este fato traduz. O aumento da importância relativa do comércio internacional opõe-se ao fortalecimento do Estado nacional, seja pela diminuição relativa do mercado interno, seja pela diminuição relativa dos recursos disponíveis ao fundo público (a receita de impostos, sobretudo), pois a competitividade própria ao comércio internacional exige desoneração de produtos. Contudo, é preciso aprofundamento sobre este aspecto, pois há grande heterogeneidade de comportamentos quando se alcança o nível de agregação das regiões e economias nacionais. Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 199 As condições concretas tomadas como referência para a formulação das teorias que compõem o aporte da dependência eram ainda aquelas da fase de ouro do capitalismo. É claro que sendo uma referência dos anos 1960 ali já estavam alcançados os limites ao crescimento produtivo relativo à II Revolução Industrial (Cano, 1993), isto é, ali já apareciam sinais de esgotamento dos investimentos de expansão dos setores que foram líderes daquela fase, engendrando uma crise de acumulação, que se apresentou agudamente apenas nos anos 1980. Foi justamente no processo de superação desses limites que o capitalismo foi-se transformando de modo a conigurar uma nova etapa do seu desenvolvimento. De alguma maneira, as transformações “descolaram” a formulação da dependência de seu objeto. Não houve capacidade da parte dos seus formuladores em apreender imediatamente as novas bases que ali se constituíam; da mesma forma, não houve interesse de outra parte dos formuladores em realizar as requaliicações que seriam indispensáveis para que as teorias da dependência mantivessem a sua capacidade explicativa. Quais foram essas transformações? Esquematicamente, pode-se dizer que o novo padrão tecnológico engendrado pela reestruturação produtiva subverteu não apenas o seu campo próprio de repercussão, mas também, pela sua natureza, campos que não haviam sido antes tão agudamente afetados. Além de redinamizar, pela reestruturação tecnocientíica, a produção, base privilegiada da acumulação de capital, houve efeitos signiicativos sobre a capacidade relativa de geração de empregos. Além disso, houve efeitos sobre o potencial de valorização ictícia do capital (Chesnais, 1998; 2005; Harvey, 2004; 2006) e, mesmo, sobre as relações anteriormente estabelecidas entre as esferas público-privadas das sociedades capitalistas. Neste caso, faz-se referência ao espaço supranacional que, embora já existente na fase anterior, foi ampliado em extensão e importância na regulação do sistema global. Um ponto a se ressaltar é que as mudanças alteraram a base concreta na qual o conceito de dependência vinha sendo construído. Parte-se da interpretação de que as teorias de dependência perderam capacidade explicativa. Todavia, esta perda não é o mesmo que assumir que essas teorias não tenham mais validade. Sugere-se que para recuperar a capacidade explicativa da análise da dependência seja preciso recorrer a atualizações teóricas, que venham a apreender aspectos próprios da fase atual de desenvolvimento do capitalismo. Desses aspectos merecem registro dois. O primeiro é que o plano do Estado tornou-se muito mais complexo, de modo que elementos teóricos relacionados à sua forma de operação são indispensáveis. O segundo é que a economia constituiu-se como economia mundial. Veja-se como esses aspectos podem ser apreendidos a partir de um tema aparentemente incongruente com a concepção da teoria marxista da dependência: a possibilidade da inserção internacional autônoma. 200 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 5 ECONOMIA MUNDIAL E INSERÇÃO AUTÔNOMA: O CAMPO DA AÇÃO DO ESTADO NACIONAL Na seção 4 deste capítulo, veriica-se que em Marini há elementos sociológicos e políticos a serem incorporados na formulação da dependência. Certamente, seu entendimento da natureza desses elementos estava em muito inluenciado pelas condições de desenvolvimento do capitalismo nos anos 1960 e pela natureza da inserção do Brasil e da América Latina neste processo. No seu ensaio Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil (1973), publicado em Marini (2000), sua argumentação segue a linha de uma análise da estrutura social brasileira, que se forja ao longo do período de transição ao capitalismo, e da maneira como ela se expressa no funcionamento do Estado. Trata-se de uma análise profunda e de grande capacidade explicativa das turbulências políticas do início dos anos 1960, que culminam com o Golpe de 1964. Não obstante, não há em Marini, pelo menos nos seus textos disponíveis em português e/ou na internet, uma formulação teórica do Estado capitalista.23 Esta parece ser uma condição comum aos debates da esquerda, que pode ter sido decisivamente inluenciada pela ausência de uma formulação teórica mais explícita no próprio Marx.24 O tema Estado é realmente controverso. Não há historicamente consenso teórico, mesmo no campo crítico, em que prevalece a perspectiva marxista. Em Carnoy (1988, p. 9) há um apontamento que mostra as diiculdades teóricas que o tema apresenta: (...) na medida em que as economias se desenvolveram em todo o mundo, o setor público – aqui chamado de Estado – cresceu em importância em todas as sociedades, da industrial avançada à exportadora de bens primários do Terceiro Mundo, e em todos os aspectos da sociedade – não apenas político, como econômico (produção, inanças, distribuição), ideológico (educação escolar, os meios de comunicação) e quanto à força legal (polícia, forças armadas). Por que isso ocorre e como se conigura o crescente papel do Estado têm se tornado uma preocupação crucial para os cientistas sociais – talvez a preocupação crucial – de nossos dias. O Estado parece deter a chave para o desenvolvimento econômico, para a segurança social, para a liberdade individual e, através da “soisticação” crescente das armas, para a própria vida e a morte. Compreender o que seja política no sistema econômico mundial de hoje é, pois, compreender o Estado nacional e compreender o Estado nacional no contexto desse sistema é compreender a dinâmica fundamental de uma sociedade. 23. Em La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo, Marini trata de aspectos da coniguração do Estado no Brasil, porém não avança em uma discussão teórica que não seja a de considerar o caráter classista do Estado. 24. Para sustentar essa airmação, há uma coletânea a respeito da controvérsia marxista sobre o tema Estado – Holloway e Picciotto (1978) – em que há confronto de posições. Na introdução à coletânea escrita pelos organizadores, há uma referência a este fato. No mesmo sentido, Carnoy (1988), embora neste caso se trate de um livro com outros objetivos, no qual se pretende apresentar as diversas correntes interpretativas da natureza e funcionamento do Estado capitalista. Far-se-á uso dele logo em seguida. Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 201 Carnoy sustenta a ideia de que as diferenças entre as concepções gerais de teoria de Estado são a base para a compreensão das distintas estratégias político-econômicas de mudança e controle sociais em disputa tanto nas sociedades capitalistas avançadas quanto nos demais países. Para ele as teorias do Estado são, pois, teorias da política. Este se constitui num ponto fundamental do debate que vem ocorrendo historicamente entre formuladores das teorias de Estado. A questão está em saber se a política tem uma autonomia (grande ou pequena) em relação à economia (produção, acumulação de capital), ou se simplesmente não a tem. Em relação a este capítulo, o ponto a se irmar é que a problemática do Estado está ausente na teoria marxista da dependência. Da mesma forma, a concepção de que a economia se conigura como mundializada não aparece com ênfase, embora a ideia de que o capital fosse constitutivamente internacionalizado estivesse presente, nos termos em que se apresenta na obra de Marx. Em parte essas insuiciências serão superadas na evolução teórica do pensamento de heotônio dos Santos, cuja análise auxilia na coniguração de um campo de atualização do tema da dependência. Em Baptista Filho e Almeida Filho (2009, p. 12, grifos nossos) essa evolução está assim sintetizada: Rui Mauro Marini faz relexões atualizando e aperfeiçoando suas análises sobre o capitalismo latino-americano em vários artigos, mas não há uma análise profunda e sistemática do neoliberalismo e da globalização, embora tenha estabelecido no México um importante centro de investigação sobre a América Latina. Theotonio dos Santos faz um trânsito sem rupturas à Teoria do Sistema mundo. O mesmo fará André Gunder Frank, que o explica da seguinte forma: “embora a teoria da dependência esteja morta, na realidade está viva, porque não há como substituí-la por uma teoria ou ideologia que negue a dependência; seria necessário substituí-la por uma teoria que fosse além dos limites da teoria da dependência, incorporando esta, juntamente com a dependência em si, numa análise global da acumulação” (Frank, 1980). Nessa nova fase acadêmica, a partir das bases estabelecidas pela Teoria da Dependência, dedicam-se à elaboração de uma teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação que vislumbram como uma fase superior da teoria da dependência para o qual retomam o trabalho já iniciado no Ceso25 e que havia sido, em grande parte, destruído pela repressão chilena. heotonio dos Santos e André Gunder Frank passam a tratar da ideia de desenvolvimento de longo termo do sistema mundial capitalista, combinando-a com os ciclos de longo prazo de Nikolai Kondratiev (as ondas longas ou ciclos de Kondratiev) e os ciclos históricos de Fernand Braudel, aproximando-se assim da teoria do sistema mundial. Sustenta-se que o caminho escolhido por heotônio dos Santos e André Gunder Frank é bastante profícuo no desenho de uma economia mundial, que engloba não apenas a ideia do capital mundializado, mas de um aparato produtivo 25. Centro de Estudos Socioeconômicos (Ceso) da Faculdade de Economia da Universidade do Chile. 202 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil e inanceiro que apresenta uma lógica desterritorializada. Porém, os autores ainda apreendem este plano como um sistema de Estados nacionais, que operam sobre a hegemonia de líderes, próximos, portanto, do pensamento de Wallerstein (1987) da coniguração de um sistema-mundo. Neste sentido, a evolução do pensamento de Theotônio dos Santos e, particularmente, as proposições de Gunder Frank da morte da teoria da dependência afastam-se do caminho que se considera o mais adequado: uma requaliicação dos termos da teoria marxista da dependência a partir do desenho atual do capitalismo. Entende-se que a articulação entre as classes sociais dominantes dos Estados nacionais e, mais ainda, a constituição de um âmbito político supranacional, em que algum tipo de regulação é estabelecida, são elementos indispensáveis da requaliicação. Há evidências de que o capitalismo contemporâneo tenha uma forma distinta da formulada pela teoria dos sistemas-mundo. Parece que a apreensão de David Harvey apresenta mais elementos convergentes com a teoria marxista da dependência. Harvey entendia que a dinâmica capitalista é resultado da operação de duas lógicas não sincrônicas, que se apresentam como eixos do processo de desenvolvimento capitalista, a lógica do território e a do capital. Em Harvey (2004, p. 11) há um exame da atual condição do capitalismo global e o papel que um “novo imperialismo” estaria nele desempenhando. A principal questão reside em saber como o poder americano se expandiu e vem se desenvolvendo no confronto dessas duas lógicas próprias ao desenvolvimento capitalista. Para respondê-la, o autor vai inicialmente mostrar que a lógica territorial estabelece-se no âmbito do poder político, entendido este como o âmbito do Estado capitalista. Para ele, “o poder político é sempre constituído por alguma combinação instável de coerções, emulações e exercício da liderança mediante o desenvolvimento do consentimento” (Harvey, 2004, p. 43), mas esses meios só são efetivos se fundarem-se numa base material. Harvey vai identiicar essa base no dinheiro, na capacidade produtiva e na força militar. São esses “os três pilares em que se apoia a hegemonia no âmbito do capitalismo. Mas também aqui estamos diante de conigurações mutáveis e instáveis” (Harveu, 2004, p. 43). A partir desses elementos, Harvey faz uma análise histórica, dividindo o período dos imperialismos capitalistas em três etapas. Na primeira delas, descreve a ascensão dos imperialismos burgueses, no período de 1870 a 1945 (período de consolidação do poder político burguês nos Estados europeus, reorientando a política territorial de modo a adequá-la aos requisitos da lógica capitalista). Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 203 A segunda etapa é a do pós-Segunda Guerra Mundial até os anos 1970, ou o período conhecido como os anos dourados do capitalismo. A ênfase aqui é colocada na hegemonia norte-americana sobre o bloco capitalista e no exercício do poder político. Segundo Harvey, os Estados Unidos puseram-se à frente dos acordos de segurança coletiva, usando a Organização das Nações Unidas (ONU) e, particularmente relevante, alianças militares como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a im de limitar a possibilidade de guerras intercapitalistas e combater a inluência da União Soviética e, mais tarde, da China. Além de apoiar a derrubada de governos democraticamente eleitos (os casos citados por ele são Irã, Guatemala, Brasil, Congo, República Dominicana, Indonésia e Chile), os Estados Unidos buscaram construir uma ordem internacional aberta ao comércio e ao desenvolvimento econômico, bem como uma rápida expansão da acumulação capitalista. Este é o período que a teoria marxista da dependência toma como base de suas análises, não obstante trate também, mesmo que sem profundidade, do período de transição ao capitalismo anterior à Segunda Guerra Mundial. Finalmente, a terceira etapa é a da hegemonia do neoliberalismo, cobrindo o período de 1970 a 2000. Ela conigura-se a partir do descolamento do dólar de qualquer referência material, além do descomprometimento das economias com uma institucionalidade supervisionada. Aqui Harvey faz uma descrição do que crê serem os fatos históricos fundamentais de airmação do neoliberalismo como visão de mundo, sempre abrangendo as duas vertentes do capital e do território, mediadas pelo poder político do Estado. Ameaçados no campo da produção, os Estados Unidos passam a exercitar a sua hegemonia por meio das inanças, o que exigia que os mercados em geral, e os mercados de capital em particular, se abrissem internacionalmente. Este foi um processo lento e de intensa pressão dos Estados Unidos, a partir das instituições multilaterais, particularmente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial. Nesse período, o Estado americano impôs ao mundo uma nova ortodoxia econômica, que evidentemente envolveu a passagem do equilíbrio do poder e de interesses da burguesia de atividades produtivas para instituições vinculadas ao capital inanceiro. Não parece ser necessária a recuperação integral da análise histórica desse período feita por Harvey, pois ela não difere essencialmente daquelas de outros autores marxistas. Vale a reiteração de que as crises que se sucedem têm sempre, para ele, natureza de sobreacumulação, argumento que está no centro, por exemplo, da tese defendida por Brenner (2003). O que difere de outras análises é a consideração do poder político como espaço fundamental de ação da burguesia. 204 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Ainda em O novo imperialismo, Harvey vai apresentar os dois elementos fundamentais de sua análise do capitalismo contemporâneo. Há inicialmente um tratamento do poder político, mostrando a relação entre este e a acumulação de capital, para em seguida tratar da acumulação por espoliação, ou da natureza permanente do capitalismo de demandar acumulação primitiva. Este parece ser um ponto fundamental de proximidade teórica entre Harvey e a teoria marxista da dependência. Em Marini, como visto na seção 3, o conceito marcante é o da superexploração da força de trabalho. Este conceito é, também, não por acaso, o foco recorrente das críticas, incluindo a de autores que são parte do aporte, como FHC. A intenção de Marini é mostrar as limitações ao processo de acumulação nacional de capital pelas imposições que uma relação política de dependência estabelece. Trata-se de uma determinação estrutural, que pode ser ainda hoje observada (Carcanholo, 2004; Caputo e Radrigán, 2001; Amaral, 2006). Contudo, a natureza do exercício do imperialismo contemporâneo é mais ampla, no sentido de que se sustenta, sobretudo, no controle e circulação do dinheiro (Almeida Filho e Paulani, 2009). A espoliação (ou a acumulação primitiva) coloca, em outro nível teórico, uma limitação adicional, que é constitutiva na periferia, mas que existe também no núcleo orgânico do capitalismo. A preocupação de Harvey é tratar em duas vertentes distintas aquilo que considera ser o problema recorrente do capitalismo: a ausência de oportunidades lucrativas que deem vazão ao processo de acumulação de capital. Para ele, o foco está em como e através de que mecanismos a expansão geográica e a reorganização espacial proporcionam ou pelo menos mitigam a depreciação do capital: “A lógica capitalista (em oposição à lógica territorial) do imperialismo tem de ser entendida, airmo eu, contra esse pano de fundo de buscar ‘ordenações espaço-temporais’ para o problema do capital excedente” (Almeida Filho e Paulani, 2009, p. 254). A questão é que a expansão geográica envolve investimentos em infraestruturas físicas e sociais de longa duração (redes de transportes e comunicações, educação e pesquisa básica), que poderiam ser realizados pelo capital, mas que são muito mais efetivos, deste ponto de vista, quando são realizados pelo Estado. Nessa perspectiva, o Estado é visto como “arcabouço territorializado no interior do qual agem os processos moleculares de acumulação de capital” (Harvey, 2004, p. 79). A acumulação de capital por meio da troca de mercado ixadora de preços loresce melhor no âmbito de certas estruturas institucionais da lei, da propriedade privada, do contrato e da segurança da forma-dinheiro. Um Estado forte dotado de poderes de polícia e do monopólio dos meios de violência pode garantir tal arcabouço institucional e sustentá-lo com arranjos constitucionais deinidos. A formação do Estado em associação com o surgimento da constitucionalidade burguesa têm sido, por conseguinte, características cruciais da longa geograia histórica do capitalismo. Os capitalistas não requerem absolutamente esse arcabouço para funcionar, mas na ausência dele encontram maiores riscos. Eles têm de se proteger em ambientes Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 205 que podem não reconhecer ou não aceitar suas regras e maneiras de fazer negócios (...) a condição preferida para a atividade capitalista é um Estado burguês em que instituições de mercado e regras contratuais (...) sejam legalmente garantidas e em que se criem estruturas de regulação para conter conlitos de classes e arbitrar entre as reivindicações de diferentes facções do capital (Harvey, 2004, p. 79-80). Assim, apesar de os processos moleculares de acumulação de capital poderem criar e criarem “as suas próprias estruturas de operação no espaço de inúmeras maneiras, incluindo o parentesco, as diásporas, os vínculos religiosos e étnicos e os códigos linguísticos como formas de produzir intrincadas redes espaciais de atividades capitalistas independentes das estruturas do poder do Estado” (Harvey, 2004, p. 80), o cenário mais propício e preferido para o funcionamento da atividade capitalista é aquele em que está presente a ação do Estado. Não se trata, portanto, de airmar que a atividade capitalista seria impossível sem o Estado, mas de que ela funciona melhor com ele. Assim, para ele, tão limitador quanto descrever a evolução do capitalismo como se ela fosse completamente infensa à lógica territorial do poder é considerá-la como mera expressão dos poderes do Estado no âmbito de um sistema caracterizado por lutas competitivas por posição e hegemonia. Dessa abordagem, porém, emerge uma nova questão: se elas são por natureza opostas (ixidez x movimento, inércia x dinamismo etc.), de que forma a lógica do poder territorial, expressa na política do Estado e do império, se associa à dinâmica da acumulação do capital, com seus processos moleculares que também convergem na produção de “regionalidades”? Segundo Harvey, a resposta é que essas duas lógicas não têm necessariamente qualquer relação direta uma com a outra. Por exemplo, a política de um Estado inteiro pode ser capturada pelos interesses regionais produzidos pelos processos moleculares de acumulação ou, ao contrário, espaços produzidos em função da pura lógica territorial (estradas e sistemas de comunicação construídos para ins de administração, controle militar e proteção do território) acabam por proporcionar maior luidez no luxo de bens, de trabalho e de capital, fomentando assim o processo de acumulação. Mas o Estado pode usar os seus poderes para direcionar a dinâmica regional não só por meio de seu domínio dos investimentos infraestruturais e do seu aparato administrativo, mas mediante sua atribuição de formular leis e sua capacidade de impô-las. Os exemplos vão de reformas institucionais à criação de paraísos para o investimento (Harvey, 2004, p. 92). Para Harvey, a partir dos anos 1970, com a crônica e persistente tendência à sobreacumulação que a partir daí se instaura, as ordenações espaço-temporais (deslocamentos no tempo, por meio de investimentos de longo prazo de maturação, e no espaço, por meio da abertura de novos mercados e novas capacidades produtivas) acabam por fracassar como remédios eicientes para tratar desse problema. Por conta 206 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil disso, essas ordenações que, no mais das vezes, assumem uma natureza construtiva, passam a exibir um caráter destrutivo, com o processo de se empurrar para terras distantes dos pontos centrais do sistema os necessários processos de desvalorização. Esse foi para ele o caso das crises dos anos 1980, que atingiram fundamentalmente os países da América Latina, e 1990, que se espalharam por todo o conjunto dos países emergentes. É esse o contexto no qual Harvey propõe o conceito de acumulação por espoliação. Fazendo uma analogia com a geopolítica, ele airma que a aliança dos poderes de Estado com os aspectos predatórios do capital inanceiro gera um tipo de intervenção que está para as ordenações espaço-temporais construtivas como a guerra está para a diplomacia. Para Harvey, assim como o sistema capitalista tem a sobreacumulação como tendência natural, tem também, por isso mesmo, a acumulação primitiva, que Marx diagnostica em sua origem histórica como algo que lhe é constitutivo. Em parte, a tese recupera preocupações de Rosa Luxemburgo, sobretudo em seu livro A acumulação de capital (1985). O ponto importante é que a dinâmica de acumulação é sujeita a crises permanentes, que não podem ser resolvidas apenas pela concentração e depreciação do capital, já que neste caso os efeitos sobre a acumulação tendem a alongar-se no tempo. Daí a ideia de que o capitalismo tem que dispor perpetuamente de algo “fora de si mesmo” para estabilizar-se. Assim, trata-se de uma incorporação da preocupação que estava por trás da análise de Rosa Luxemburgo, ainda que não propriamente do conteúdo de seu argumento (as teses subconsumistas). O termo-chave aqui é, portanto, excedente de capital. Esse excedente pode ser utilizado por ordenações espaço-temporais usuais, que desembocam todas em investimentos, os quais erguem a demanda efetiva. Mas, se isso não acontece, pode-se encontrar uma utilização para ele, desde que se disponha de insumos a custo muito baixo (ou zero). Nesse caso, o que a acumulação por espoliação faz é se apossar desses ativos e dar-lhes um uso lucrativo. O processo exemplar desse tipo é o da privatização. A violência, que é inerente a esses movimentos, tem sempre como esteio o poder de Estado, que é quem os conduz. Os outros expedientes que integram o processo de acumulação por espoliação encontram-se no sistema de crédito e no capital inanceiro, pois permitem, entre outras coisas, dilapidação de ativos, valorizações fraudulentas, falsos esquemas de enriquecimento e o aprisionamento de populações inteiras a enormes montantes de dívidas estatais. Nestes termos, o sistema de crédito e o capital financeiro tornaram-se importantes meios de predação e fraude e o Estado, “com seu monopólio da violência e suas deinições de legalidade, tem papel crucial no apoio e na promoção desses processos” (Harvey, 2004, p. 121). Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 207 Portanto, às limitações estruturais à escala do processo de acumulação de capital que ocorre na periferia do capitalismo, em nível das economias nacionais, determinadas pela superexploração da força de trabalho e pelas relações orgânicas entre as classes sociais dominantes das sociedades capitalistas, somam-se outras dadas pela forma de atuação do Estado capitalista na sua função de contra-arrestar as crises periódicas do capital. O mecanismo que opera essa função é a transferência da renda social ao capital privado nas diversas modalidades em que ela é possível. 6 AS POLÍTICAS DE DIMINUIÇÃO DO GRAU DE DEPENDÊNCIA, OU DE AUMENTO RELATIVO DO GRAU DE AUTONOMIA DO BRASIL Essas determinações estruturais de dependência comuns à periferia não repercutem igualmente sobre todas as economias/países, pois as condições de dimensão econômica, espacial e geopolítica são distintas. Além disto, a coniguração cultural e política (a forma Estado) de cada uma dessas economias confere correlações de forças sociais e políticas de desenvolvimento que podem intervir para alterar ou reforçar as determinações de dependência. Em Paulani e Pato (2005) há uma avaliação justamente dessa dimensão no que diz respeito às condições de desenvolvimento brasileiras. O texto parte de um insight de Paul Singer apresentado num seminário interno da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP) segundo o qual a dependência brasileira evolui em três fases: dependência consentida (1822-1914); dependência tolerada (1914-1973); e dependência desejada (1973 até hoje). A dependência consentida caracteriza o período no qual inexistiu qualquer dinâmica interna capaz de impulsionar o desenvolvimento. Um período em que, mesmo nos momentos em que o país entrava em confronto direto com os países adiantados, a relação de dependência jamais era questionada. Na perspectiva daquela época, não havia alternativas ao desenvolvimento senão a crescente inserção subordinada no mercado mundial. A dependência tolerada caracteriza-se pela imposição da necessidade de importação de equipamentos, tecnologias, componentes e recursos de capital em larga escala, pelas insuiciências da economia nacional. Neste caso, a dependência era vista como transitória, uma situação que seria superada pelo processo de industrialização. Por im, a dependência desejada expressa uma situação em que os governos de todos os países, sem exceção, passaram a depender crescentemente do luxo de capitais inanceiros. Um período no qual a América Latina, ao longo da década de 1980, assistiu ao abandono do desenvolvimentismo, à abertura do mercado interno às importações e à entrada incondicional dos capitais estrangeiros. 208 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Em contraste com os períodos anteriores, no de dependência desejada, a postura política das elites nacionais é de obediência entusiástica aos desígnios externos, forjando uma estrutura de dependência. Esta consiste em vínculos orgânicos de relações e interesses entre as empresas nacionais e os bancos com o núcleo dos capitais apontados por Chesnais (1998) como os controladores das inanças globais; e também uma política econômica que dá suporte e primazia a essas relações. Evidentemente, esses vínculos orgânicos de relação e interesses não são novidade, pois já existiam desde o período de transição ao capitalismo. Lessa e Dain (1982), por exemplo, apontam a década de 1920 como o primeiro período de ingresso signiicativo do capital estrangeiro no país. O que muda são os termos desta relação, que sucumbem ao ideário neoliberal, com abandono de uma perspectiva nacional. É justamente essa relação que tomam Paulani e Pato (2005) como eixo da argumentação de existência de uma postura política servil no Brasil. Nos termos em que se pretende incorporar essa ideia, ela se refere a uma postura política das elites de subserviência diante dos embates que ocorrem em nível das relações inanceiras, comerciais e diplomáticas e que se explicitam pelos seus objetivos e opções de política econômica. Na perspectiva histórica recente brasileira, desde os anos 1990, com o governo Collor, as ações de política de desenvolvimento seguem, ou se acomodam, o desiderato das inanças globais, perseguindo não só o objetivo da estabilização (Garlipp e Baruco, 2006), como também a “boa prática de política econômica”, nos termos sugeridos pelos organismos multilaterais e agências de cálculo de risco de crédito (Corrêa e Almeida Filho, 2003). A manter-se a condição da política econômica dos últimos vinte anos, o desenvolvimento deixa de caracterizar-se como um desiderato nacional, não se conigurando como uma aspiração de uma sociedade. Isto porque o desenvolvimento que vem ocorrendo, além de ser insuiciente para mitigar os graves problemas sociais estruturais, não é produto de uma decisão autônoma, mas resultado da soma de decisões individuais de atores econômicos. Em outras palavras, o desenvolvimento é resultado da somatória de interesses e objetivos particularizados, cuja única participação do Estado (federal/estadual) é a garantia de condições estáveis para a manifestação e exercício desses interesses e objetivos. A aspiração ao desenvolvimento, como indicaram mestres como Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, todos eles estudiosos do desenvolvimento, depende de uma postura política das elites (sobretudo as vinculadas diretamente à economia) e dos governos de defesa dos interesses nacionais sociais. Embora o governo Lula dê sinais de que pode vir a aspirar genuinamente ao desenvolvimento, esta aspiração não é colocada como o centro das ações do Estado. Inserção Autônoma para o Brasil: uma exegese do pensamento crítico de Rui Mauro Marini 209 Como se procurou mostrar, a aspiração ao desenvolvimento é uma possibilidade histórica, embora esteja condicionada pelas relações históricas de dependência. A mudança dessas relações exigiria o rompimento dos elos que moldam a dependência a uma condição de servidão, uma acomodação dos interesses nacionais ao desígnio dos interesses externos, sobretudo os da nação-império. REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, N. Alterações recentes na estrutura de investimentos brasileira. Nexos econômicos, Salvador, v. 1, n. 1, p. 45-58, 1999. ______. Limites à reversão das políticas econômicas neoliberais: a recolocação da problemática da teoria da dependência. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA, 8., 2003, Florianópolis. Anais... Florianópolis, 2003. ______. A transição brasileira a um novo padrão de desenvolvimento capitalista: os limites impostos pela preservação da estrutura de investimentos. In: XAVIER, C. L. 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Se as duas últimas atividades predominaram nos anos 1950 e 1960, quando ele passou a ocupar cargos de destaque – chefe da Assessoria Econômica do segundo governo de Getúlio Vargas, presidente do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), deputado federal eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) na bancada baiana, secretário da Fazenda do estado da Bahia, secretário-executivo da Área Latino-Americana de Livre-Comércio (ALALC) e membro do Comitê dos Nove Expertos da Organização dos Estados Americanos (OEA), apenas para citar alguns – sem tempo sequer para organizar uma publicação contendo seus principais artigos, isto se deve à primeira atividade ter sido exercitada durante os anos 1940, preparando-lhe o sentido da ação. A partir dos anos 1970, em virtude das múltiplas solicitações para palestras, entrevistas e pareceres, a relexão – que estivera cuidadosamente armazenada numa espécie de sótão íntimo, por parecer-lhe obra de menor valor – mais uma vez vai ganhando corpo por força do exílio da máquina pública a que os governos militares lhe tentaram impor. Rômulo recupera a vitalidade do pensamento sistêmico jamais abandonado, pois que indissociável da ação exercida no passado, agora escrutinada por uma sutil autocrítica, que não lhe impede de antever as possibilidades que o futuro ainda parece permitir, conforme a sua avaliação. Apesar do presente funesto, este economista político, como se buscasse uma insistente dialética contida no real, não entrega os pontos. 1. Este texto é uma versão resumida e aprimorada de um dos capítulos do relatório inal de pesquisa intitulado Rômulo Almeida e as bases econômicas e institucionais para o desenvolvimento da nação, elaborado no âmbito do programa Cátedras para o Desenvolvimento, entre dezembro de 2010 e novembro de 2012. Além do apoio do Ipea, foi fundamental, para a condução da pesquisa, o acesso ao acervo do Instituto Rômulo Almeida de Altos Estudos (Irae), em Salvador, e do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), no Rio de Janeiro. 2. Professor de história econômica e economia brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). 220 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Este capítulo procura elucidar o elo entre os vários Rômulos que circulam pela cena nacional no período 1940-1980, apontando como a posição dentro ou fora do aparato estatal e as mudanças nas coalizões de classe e da estrutura de poder redeinem a sua utopia genuinamente desenvolvimentista, marca da sua trajetória como pensador praxista.3 2 LAPIDANDO AS CATEGORIAS A singularidade de Rômulo encontra-se na multidimensionalidade da sua atitude relexiva. Seu pensamento praxista alia o retrospectivo ao prospectivo, avançando do econômico em suas várias dimensões (macroeconomia, microeconomia, planejamento, economia urbana e regional e economia internacional) rumo às esferas social e cultural, incorporando-as desde o início a partir de reformas nas estruturas políticas, em vez de encará-las como resultantes secundárias ou empecilhos para a ação modernizadora. Apesar das diferenças de iliação ideológica, esse estilo de relexão pode ser encontrado em vários de seus coevos, tais como Caio Prado Júnior, Ignacio Rangel, Celso Furtado e Florestan Fernandes. A diferença está em que ele não possui nenhuma obra magna. A sua relexão gira em torno das instituições por ele criadas e naquelas em vias de gestação. Neste sentido, Rômulo foi o mais mannheimiano dos “pensadores” brasileiros, dedicando-se a compreender o estilo, a dinâmica e as contradições do planejamento democrático numa sociedade ainda autoritária e marcada por fortes heranças clientelistas. Para além de suas características inatas ou desenvolvidas por força da necessidade, Rômulo encarna um tipo social característico dos países que lograram “saltar” da dependência clássica para o desenvolvimento dependente.4 Nesses casos, engendra-se uma elite burocrática, não mais vinculada às oligarquias, a qual, por vezes, justamente por questionar o padrão conservador da modernização, se transforma numa contraelite. Surge, assim, no seio do Estado, uma nova posição de classe que pretende agir sobre a própria estrutura social para assegurar o desenvolvimento, o qual deve transcender a esfera econômica. Trata-se aqui dos países latino-americanos mais diversiicados em termos produtivos, aos quais devem se somar os países do Sudeste Asiático – que, em vez de priorizarem a simples integração na nova divisão internacional do trabalho, buscaram trajetórias mais independentes, no sentido de criar seus próprios sistemas 3. Rômulo não se via como pensador ou como intelectual. Para ele, a atividade de relexão apenas se justiicava como insumo e resultado da sua práxis como “intelectual orgânico do setor público”. Sobre esta deinição, ver Barbosa e Koury (2012). 4. Para estes conceitos, ver Evans (1979, p. 10-11). Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 221 de inovação e suas empresas nos setores líderes, como no caso clássico coreano (Amsden, 2009, p. 46-47). Apesar das diferenças, lá e cá, foram criadas, em meados do século XX, “instituições-chave para o disciplinamento da economia”. Funcionavam por meio de “mecanismos de controle”, que impunham um princípio de reciprocidade na relação do Estado com os agentes econômicos, que se beneiciavam dos “preços errados”, na medida em que a industrialização não se alastraria alavancada apenas pelos baixos salários (Amsden, 2009, p. 38-44). Tais instituições eram operacionalizadas por técnicos perfazendo várias funções, segundo a deinição de Amsden (Amsden, 2009, p. 40): os sensores, para detectar os pressupostos do processo a ser “controlado”; os assessores, para monitorar a defasagem entre o almejado e o alcançado; os executores, para mudar os comportamentos; todos auxiliados por uma rede de comunicações, vital para que as informações entre os vários departamentos luíssem e a implantação do projeto de desenvolvimento não se mostrasse fragmentária. Estes “engenheiros econômicos”, segundo a deinição da autora, deveriam partir dos preços macroeconômicos (câmbio, juros, impostos e tarifas alfandegárias) – ainda que às vezes também procurassem adaptá-los para o funcionamento da máquina de expansão desequilibrada –, de modo a tornar a industrialização viável e rentável para os agentes econômicos nacionais, além de competitiva com relação aos seus concorrentes internacionais, ao menos os não internalizados. Essa interpretação casa bem com a análise de Oliveira (2003), para quem no novo modo de acumulação pós-1930, o Estado brasileiro passa a substituir os preços do “velho mercado” por “novos preços sociais”, via subsídios iscais e cambiais, controle do custo do trabalho, protecionismo e reciclagem das formas pré-capitalistas, agora permeadas pelos mecanismos de mercado. Em suma, as variáveis políticas aiguram-se endógenas ao padrão de capitalismo de acumulação no país – sujeito a várias rupturas e adaptações –, tornando inócuas as interpretações que se centram na existência de um suposto “capitalismo de Estado”. Trata-se antes de uma nova combinação entre Estado, mecanismos de acumulação e relações sociais diversa dos demais “capitalismos”,5 até por conta da posição assumida pelo país na nova divisão internacional do trabalho. Ora, Rômulo perfazia todas essas funções descritas por Amsden. Era, a um só tempo, sensor, executor e assessor, ocupando posição privilegiada na rede de comunicações, tanto interna ao setor público como na sua conexão com o setor privado e movimentos sociais de vários matizes, na medida em que procurava avançar para além do “regime de participação limitada”, tal como descrito por 5. Este diagnóstico já estava presente, nos anos 1970, nas análises de Florestan Fernandes sobre “padrões de desenvolvimento do capitalismo”, variáveis no tempo e no espaço, e na discussão cepalina sobre “estilos de desenvolvimento”, antecipando o debate realizado mais tarde no “centro” sobre “variedades de capitalismo”. 222 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Martins (1976). A onisciência romuliana, entretanto, não deve ser celebrada, revelando antes de tudo a precariedade institucional do Estado realmente existente, apenas potencialmente desenvolvimentista, segundo a deinição de Evans (2004, p. 30-38 e 72-73). No entender do sociólogo norte-americano, para além da transformação econômica, ativada pela acumulação de capital, o Estado nesses países deve enfrentar o sistema internacional, não apenas para assegurar a soberania política, mas especialmente para alterar a sua posição na divisão internacional do trabalho. Mais ainda, se a transformação econômica exige certo grau de autonomia do aparelho estatal (leia-se coerência organizativa), ela depende fundamentalmente da conexão social, pois Estados e sociedades são mutuamente determinantes. Ao contrário do arquétipo desenvolvimentista de Evans, a Coreia do Sul, o Brasil contaria com menos coerência corporativa, seja em virtude da constante reciclagem do clientelismo no contexto da modernização econômica ou da presença maciça e precoce do capital estrangeiro no sistema industrial brasileiro, o que contribui para enfraquecer as possibilidades de conexão social. A reforma do setor público se faria por adição, resultando muitas vezes numa expansão desordenada e pouco eiciente do Estado. Ainda assim, o setor público lograria impulsionar a transformação econômica, por mais que oscilasse entre a autonomia extrema e a captura pelo setor privado (Evans, 2004, p. 94 e 97-99). Rômulo tinha plena consciência dessas diiculdades. Em depoimento de 1988, ele tece o seguinte relato da sua experiência na Assessoria Econômica, conirmando, em alguma medida, as hipóteses lançadas por Evans ao inal dos anos 1970: Bom, aí talvez esteja uma ideia que, vamos dizer, nós não explicitamos que eu me lembre na época, mas depois interpretamos a própria diretriz implícita que continha. Era a ideia de que numa estrutura econômica muito incipiente, inclusive desprovida de informações, o planejamento formal, além de ser politicamente oneroso, era também pouco eiciente. Então, o que nos parecia mais importante era estabelecer programas básicos, projetos de impacto e, sobretudo, agências capazes de operação dinâmica. Ainda que essas agências contivessem um risco, o risco de cada uma delas, como entidade autônoma, puxar a sua política, então isso poderia representar uma diiculdade de coordenação a posteriori (Almeida, 1990, p. 10). À diferença de Amsden, que explicita as funções diversas dos operadores de instituições estatais, Evans elabora um “modelo” – possivelmente complementar – no qual constam os vários papéis econômicos assumidos pelos Estados desenvolvimentistas. O Estado atuaria como regulador (custódio) e produtor (demiurgo), mas também como parteiro e pastor do setor privado, até que este adquirisse vitalidade para caminhar com as suas próprias pernas num espaço Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 223 econômico que não lhe fosse desfavorável. Como parteiro, o Estado estimularia o aparecimento de novos grupos empresariais. Como pastor, auxiliaria o setor privado a avançar rumo a áreas mais arriscadas, inanciando atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) (Evans, 2004, p. 38-40). De acordo com esta deinição, pode-se dizer que o aparelho estatal brasileiro avançou nas tarefas de custódio e demiurgo, não conseguindo associá-las a uma atitude mais destacada e eiciente como parteiro e pastor. As exceções não são poucas, mas tendem, no geral, a conirmar a regra. Em síntese, o que deve ser suprido no caso desses países não é a suposta ausência de espírito empresarial, capital ou técnica. A solução destas insuiciências de nada vale sem uma “perspectiva de crescimento” que aponte não apenas para a aspiração ao desenvolvimento, mas também que venha acompanhada de uma percepção sobre a sua própria essência, não linear, repleta de percalços. Neste contexto, os mecanismos econômicos e não econômicos devem ser acionados de modo a gerir um processo eminentemente desequilibrado, que não suponha – de maneira equivocada – o salto de uma situação hipotética de equilíbrio de subdesenvolvimento rumo ao nirvana do desenvolvimento, que é como geralmente se concebe (historicamente) a situação dos países desenvolvidos. Esta interpretação foi lançada, em 1958, por O’Hirschman (1962, p. 7-11, 50-52 e 63-65). Ela parece ecoar o citado depoimento de Rômulo, pois, em vez de se perguntar sobre as causas necessárias para o desenvolvimento, o autor discute como, depois que ele se inicia nos países subdesenvolvidos, a despeito de desrespeitar os seus supostos pré-requisitos formulados à imagem dos países desenvolvidos, termina por superar – parcialmente e de maneira truncada, além de acrescentar outras – as carências e as ineiciências apontadas pelos economistas convencionais. Isto graças a uma série de mecanismos moduladores, entre os quais se destaca a capacidade de tomar e antecipar decisões (decision-making) tanto pelo setor público como pelo privado. Esta, sim, a “escassez” que condicionaria todas as demais (O’Hirschman, 1962, p. 4-5 e 27-28). Tal preâmbulo teórico procura explicitar a visão propriamente romuliana de desenvolvimento econômico no bojo da industrialização brasileira, haja vista que o economista ressalta – na sua atuação tanto no governo federal como no estadual – a necessidade de maior capacitação do empresário privado nacional. Porém, como criar um setor privado pujante e inovador numa economia ainda rudimentar, afogada em práticas rotineiras, sem infraestrutura e sem apoio estatal coerente? Daí a sua insistência em que as atividades de regulação e produção só fariam sentido se completadas por uma atitude missioneira do Estado como parteiro e pastor do empresariado nacional e regional. 224 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Mais ainda, para Rômulo, o Estado deveria reformar as estruturas sociais, pois do contrário o mercado seria travado por elas ou as tragaria na sua fúria conquistadora. O empresário, apoiado pelo Estado, não poderia se mostrar conivente com o engessamento da ordem social. Caso isto ocorresse, a dinâmica econômica se mostraria concentradora e ineiciente em face dos recursos potenciais. Não se deve esquecer que a trajetória de Rômulo é ímpar – e nesse aspecto difere da dos demais técnicos nacionalistas –, pois ele atuou também a partir do setor privado, pensando o planejamento no âmbito da Confederação Nacional da Indústria (CNI), sob a inluência de Roberto Simonsen; para voltar ao “setor privado” durante os templos da Clan, sua empresa de elaboração de projetos, quando esboça o formato da integração baiana à economia brasileira. Entretanto, a política industrializante incorporava a dimensão social como parte do “modelo” econômico. Rômulo relata que quando convidado por Roberto Simonsen e Euvaldo Lodi para estruturar o Departamento Econômico da CNI, “explicitara suas posições independentes sobre relações de trabalho e regime social” (Almeida, [s.d.]b, p. 2). Em outro artigo, lamenta a “iniltração do peleguismo no sistema sindical patronal” e a “duvidosa identidade de um verdadeiro empresariado industrial”, desde o início “confundido com a oligarquia rural e o comércio e a banca do velho estilo” (Almeida, 1978a, p. 1), ecoando os diagnósticos de Caio Prado Júnior, Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes. Este conhecimento do funcionamento interno do setor privado estará associado com uma busca pela ampliação do terreno da livre iniciativa e da audácia empreendedora, constantemente restringidas pelo regime econômico implantado desde a colônia. Rômulo não parte, pois, de uma visão linear dos processos econômicos, como a que se mostra predominante nas tentativas de incorporar a fórceps a história ao horizonte estreito da teoria neoclássica. Não poderia, pois, concordar com a visão etapista de seu contemporâneo, Rostow (1971, p. 13-30), que lista as etapas do crescimento econômico que todo país deveria percorrer, como se as nações estivessem numa corrida em raias separadas. E nem com os enfoques subsequentes de North (1993, p. 17-21) sobre os caminhos divergentes das mudanças históricas, quando o autor se pergunta sobre o porquê de alguns países insistirem na adoção de “instituições ineicientes”, estabelecendo “incentivos perversos”, favoráveis às atividades reprodutivas e não às produtivas, na medida em que concentra a sua lupa analítica numa interpretação reducionista sobre o papel mítico da segurança dos direitos de propriedade para o desenvolvimento do mercado. E tampouco com a visão recente e tão difundida de Acemoglu e Robinson (2012, p. 27-34, 80-86 e 89-97), que jogam toda a explicação sobre a divergência entre o desempenho econômico das nações no papel das instituições econômicas, Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 225 as quais se originariam de instituições políticas, deinidas binariamente entre “inclusivas” e “extrativistas”, abrindo mão de uma relação dialética entre elas, além de atenuarem, por mais que o reconheçam, o papel do sistema internacional ao moldar padrões de desenvolvimentos peculiares. Tudo se resume a um jogo utilitarista entre grupos de pressão cuja ação é informada pelos esquemas institucionais rígidos e supostamente históricos. Não percebem estes autores, em virtude do seu estreito horizonte analítico, como Rômulo parecia intuir – inluenciado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), por seus mestres companheiros, Furtado e Rangel e, mais tarde, pela leitura de O’Hirschman sobre o “desenvolvimento desequilibrado” – que as instituições importam, desde que em interação com as estruturas econômicas, sociais e políticas em constante mutação. 3 O DUBLÊ DE HISTORIADOR ECONÔMICO E GEÓGRAFO Voltando ao universo romuliano, seus primeiros textos de história econômica – sobre a economia amazônica (1941 a 1943) e sobre a economia baiana (1949), mas também, em menor medida, o texto sobre planejamento de 1950 discutido adiante – estão inluenciados por uma leitura smithiana e por uma defesa da economia de mercado ao estilo de Braudel, tentando mostrar como esta não alorava pelo predomínio de um capital comercial essencialmente parasitário. Esta relexão que Rômulo levaria para a CNI, ao inal dos anos 1940, municiaria a sua atuação sobre o presente quase passado, tal o ritmo acelerado assumido pelo desenrolar da história. Começa-se então por um mergulho nos primeiros anos da relexão do nosso historiador econômico, a partir da análise de duas experiências regionais (Amazônia e Bahia), em que já pode ser lagrado o economista formulador-planejador, não obstante ocupasse um posto mais de observador que de agente decisório. O Rômulo pensador-praxista vai mostrar suas garras, como se verá adiante, antes mesmo do segundo governo Vargas, com os artigos sobre os bancos de investimento, o papel do Brasil nas negociações comerciais e a experiência do planejamento. O jovem economista resenha os principais historiadores das regiões analisadas, procurando situar, a partir das especiicidades geográicas, as potencialidades de desenvolvimento. O primeiro texto, de outubro de 1941, descreve a evolução das principais atividades extrativas do Acre: borracha, castanha e madeira. Sobre a borracha, “ouro negro”, professa: “não dá trabalho para plantar e cultivar, é só apanhar no mato”. E depois completa: “mas ouro amaldiçoado, de extração penosa e que ele (o seringueiro) sente só lhe trazer decepções”. O problema está na cadeia de atravessadores: o seringalista, o lancheiro-regatão, o comerciante da cidade, 226 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil o comissário, o grande aviador e o exportador de Belém ou Manaus (Almeida, 1941, p. 69-71). Na ausência de numerário, funciona um sistema de crédito informal (em troca de mercadorias) altamente concentrador, já que os elos mais fortes e situados no andar superior da cadeia de comércio sugam o excedente sob a forma de preços baixos pagos aos seringalistas, que se compensam onerando os que vivem do trabalho por meio dos preços escorchantes cobrados nas mercadorias que chegam aos produtores. O diagnóstico de Rômulo é taxativo: “e assim o Acre continuava a receber nos seus acampamentos de borracha, sem roçados e quaisquer outros confortos, a não ser bebidas e latarias vindas do estrangeiro, novas levas de nordestinos” (Almeida, 1941, p. 71). Lamenta a falta de beneiciamento da borracha e da castanha e, especialmente, de organização econômica. “A loresta amazônica é dadivosa, mas nem tudo que ela oferece o homem sabe ou pode aproveitar” (Almeida, 1941, p. 73). Em face da crise da borracha, há o recurso à agricultura de subsistência, pouco rentável, mas colaborando para destruir o mito da “preguiça do brasileiro”. Esta pode, contudo, dinamizar-se, se coerentemente apoiada, por meio do escoamento à Bolívia e ao Amazonas, não possuindo grande potencial exportador, o que, aliás, não parece problema, já que as exportações representam “a antinacional e antissocial orientação única das nossas ocupações econômicas”. Depois o autor menciona as perspectivas da pecuária, que tem um “bonito aspecto”, melhor que o do baixo-Amazonas, ainda que não tenha visitado os campos de Marajó (Almeida, 1941, p. 75-76). Enim, um economista viajante, historiador e geógrafo participante, vendo e tomando nota de tudo. No capítulo Condições físicas e psicológicas do homem acreano, tem-se o contato com a inluência viva de Euclides da Cunha, mas agora apetrechado pelos conceitos da economia política. Airma Rômulo: “não bastaria uma lei de trabalho amparando o seringueiro. Uma reorganização total da economia é que se impõe, e ela reletirá na própria educação econômica daquela gente, se bem que esta, em particular, deva ser objeto de uma campanha pertinaz” (Almeida, 1941, p. 78). O historiador economista termina seu artigo constatando o potencial produtivo do Acre, malbaratado pelas elites, com um tom quase romântico: “dá coniança no Brasil”. Existe abaixo da superfície “uma vanguarda audaciosa que constituiu no extremo do Brasil uma colônia lucrativa”. Mas “falta auxílio e direção”, insiste (Almeida, 1941, p. 79). Como se o Estado devesse ser chamado para reestruturar a vida material e a Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 227 economia de mercado, no sentido braudeliano,6 conferindo-lhe dinamismo, o qual se encontra travado pelo degrau superior que vive da extração da riqueza natural e da dilapidação do trabalhador. Por mais que centre sua análise na livre iniciativa, fundada na valorização do trabalho, na cooperação entre produtores e no apoio do Estado, esta não pode alorar por aquilo que Prado Júnior chamaria “sentido da colonização” na sua obra clássica de 1942, que paira como uma intuição não desenvolvida, a informar sua análise empírica embasada numa contextualização da história do meio acreano. Em texto de junho de 1943 (Almeida, 1943c), veriica-se uma sutil inversão: aparece agora o economista historiador que elabora um plano de ação para a Amazônia, antes que se pronunciasse a palavrinha mágica “sustentabilidade”. Começa pelo papel do conhecimento e da educação. Diz o pensador pós-positivista: “conhecer é a primeira forma de dominar”. “São os sapadores da ciência que abrem o caminho”. Depois devem se generalizar os conhecimentos básicos de forma a criar “o clima para o desenvolvimento da sua tarefa”. Problema: o desconhecimento da geograia brasileira leva ao ceticismo, e deste à decadência moral ou à desonestidade. Enim, brinda-nos com uma economia moral enraizada no espaço e historicizada. O herdeiro de Euclides, provavelmente atualizado pela experiência do seu conterrâneo Anísio Teixeira, arremata: “nosso sistema educacional é destinado a manter a supremacia de uma casta citadina, estranhamente indiferente ao mundo no qual loresceu, e de cuja seiva fraca parteja a parte de leão” (Almeida, 1943e, p. 95). E continua Rômulo: o sistema educacional vive para “recrutar no meio regional as elites que pode alcançar para desentranhá-las do meio”. Não à toa, “os jovens assim educados se preparam para sair e não para voltar”. Como aplicar a ciência ao meio, partindo da sua especiicidade, e colhendo os louros da “democratização fundamental, ligada à própria ordem industrial”? Nosso herói quer transplantar Mannheim (Almeida, 1943e, p. 95), a quem cita, para os trópicos. A estrutura econômica deve mudar caso se deseje alguma reforma educacional, eis o seu argumento central. O primeiro aspecto ressaltado está no sistema de transportes, permitindo a conexão do sudeste amazônico com o Centro-Oeste e com a porção hispano-americana do continente, que lhe abre o Pacíico – “devemos apressar este abraço”, vaticina o economista! Mais, junto aos núcleos extrativos, deve se organizar uma agricultura subsidiária, mas imprescindível, sem a qual os 6. Para o historiador francês, existe uma topograia da estrutura econômica, que pode ser dividida em três degraus: o primeiro, da subsistência e do autoconsumo, uma espécie de inframercado; em segundo, a economia de mercado da divisão do trabalho, da troca, dos preços, da concorrência e da inovação; e o terceiro degrau do capitalismo, território do monopólio, no qual vigora o contramercado, a lei do mais forte. Pode-se dizer que o olhar situado de Rômulo e a sua observação cuidadosa, interligando espaços e fazendo-os avançar no tempo, permitem encaixar, nestes textos da juventude, as categorias braudelianas. Para mais detalhes, ver Braudel (1985). 228 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil núcleos coloniais não possuem vida produtiva (Almeida, 1943e, p. 104 e 109). Observa-se abaixo a sua síntese: racionalizar a indústria extrativa, que ainda se arrasta na fase indígena, completá-la com o cultivo de espécies locais e exóticas, para exportação e abastecimento, e consolidar esta economia com a indústria. Sem isto, mormente, naquela distância, estes centros continuarão a viver a sorte efêmera das indústrias extrativas, desperdiçando-se periodicamente fabulosos sacrifícios nacionais, e as fases de prosperidade deixarão apenas algumas fortunas e alguns edifícios em Belém e Manaus (Almeida, 1943e, p. 110). Ou seja, há que se estimular o beneiciamento e a diversiicação dos bens exportáveis, mas também o artesanato, a indústria doméstica e a construção civil com materiais próprios, instaurando e desenvolvendo escolas proissionais agrícolas-industriais. Estratégico para tanto é dotar estas iniciativas de crédito, amputando “o crime histórico da mais vil traicância com os índios e os núcleos brancos do interior”. O economista historiador rouba a cena, sugerindo o controle dos preços e dos mercados e a expansão do crédito regional via Banco do Crédito da Borracha, o que exigiria uma rede de organizações de produtores, de preferência sob o sistema cooperativado, “naturalmente” assistido pelo Estado. Como se não bastasse, conclama os institutos de previdência a inanciar “o equipamento das cidades e dos seringais com boas casas” (Almeida, 1943e, p. 112 e 114). Enim, um “plano” completo em miniatura que antecipa suas ações múltiplas de dinamização socioeconômica, durante o segundo governo Vargas, quando, para além das várias iniciativas na área de infraestrutura econômica, irá coordenar o Subcomitê de Habitação e Favelas da Comissão de Bem-Estar Social. Em outro texto da série (Almeida, 1943b), ele se dedica aos vaivéns da borracha, depois de se irmar como importante produto da pauta de exportações brasileira, ocupando o país mais da metade do mercado internacional entre 1900 e 1912. Rômulo analisa as condições deste mercado internacional, de 1914 a 1940, a perda de posição relativa do Brasil para os países do Oriente sob o comando das potências imperialistas, a emergência da borracha sintética e as novas possibilidades entreabertas durante a Segunda Guerra. O historiador e o economista caminham juntos. Sua síntese realça o aspecto trágico, pois o fausto aparente da borracha ofusca “a estupenda conquista do mundo amazônico, que é dos episódios que nos dão coniança na têmpera da nossa gente”. Entretanto, fora obra completamente “desprovida de organização” (Almeida, 1943b, p. 52). O trecho seguinte é revelador, denunciando o caráter aventureiro da empreitada, num tom que lembra o radicalismo buarqueano: Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 229 nesta febre de riqueza fácil, nada se preparou para a resistência nos dias de crise, para enfrentar os concorrentes que viriam fatalmente atraídos pelos fabulosos preços e pela segurança do progressivo consumo, nada se cuidou para o futuro. O espírito do caboclo, sem planos para o dia de amanhã, aliou-se ao nomadismo mercantil, ganancioso pelo lucro imediato da pilhagem, no qual o português se viciou nas feitorias da África e “na viagem da Índia, em que Portugal embarcou”, e que foi a sua perdição (Almeida, 1943b, p. 52-53). Descrito pelo historiador o quadro, o economista entra em cena, vislumbrando oportunidades, apenas aproveitadas se um conjunto de novas políticas e instituições agisse como suporte. Além do papel da Coordenação de Mobilização Econômica, por meio do Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta) e da Superintendência do Abastecimento do Vale Amazônico (Sava), ele ressalta a importância do Instituto Agronômico do Norte, do Museu Goeldi e do Banco da Borracha. A racionalização do processo produtivo pode levar a “uma autêntica realização cultural no terreno econômico”. A padronização do produto e a maior eiciência técnica, desde que eliminados os atravessadores e assegurado o beneiciamento local, por meio do acesso ao crédito e da organização comercial, são as condições para a “colonização com enraizamento”, “sem o que a luta pela Amazônia será um permanente recomeçar e um contínuo desperdício de energias” (Almeida, 1943b, p. 58-60). O desfecho pode parecer ingênuo aos olhos de hoje, mas anuncia a sua concepção do desenvolvimento para além do econômico, enraizado no território e na sociedade, abrindo caminho para o lorescimento da civilização brasileira. Aqui, sim, pode-se utilizar o desenvolvimentismo sem aspas. O trecho seguinte, euclidiano até a medula, que receberia aplausos tanto de Mario de Andrade quanto de Gilberto Freyre, situa o fator econômico, mas sem conferir-lhe a primazia: Preparar o futuro signiica não só resolver o problema da nossa produção regular de borracha, mas estabelecer como uma conquista mansa o completo aproveitamento das riquezas da loresta e dos rios (na Amazônia, apesar da nossa época industrial, só a racionalização da indústria extrativa é suiciente para manter uma economia vigorosa), e ainda descobrir soluções para a tranquilidade da vida humana no meio físico, onde infelizmente – digamos de passagem – somente o caboclo, o seringueiro, sabe morar. As casas dos civilizados revelam uma inadaptação total, agravada, certamente, pelo ânimo da aventura transitória que os levam ali (Almeida, 1943b, p. 60). O historiador econômico volta à ativa, em 1949, quando profere a conferência intitulada Traços da história econômica da Bahia no último século e meio (Almeida, 2009) para o Instituto de Economia e Finanças da Bahia (IEFB). O estudioso autodidata, recorrendo a fontes primárias e secundárias, faz um balanço sintético da Bahia colonial, mencionando a oscilação de preços, a dependência dos proprietários com relação aos comerciantes, o problema do 230 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil abastecimento, as vicissitudes da lavoura de subsistência, a destruição ecológica e os efeitos nefastos da escravidão para o “trabalho prático”. A conclusão está em sintonia com Prado Júnior e parece antecipar o enfoque estruturalista, mais tarde desenvolvido em toda a sua plenitude por Celso Furtado. Como fechamento da primeira parte do texto, Rômulo escreve: “se o espírito de livre empresa e de associação era fraco, devemos buscar a razão numa economia aleatória, vagando nas incertezas da produção natural e, sobretudo, do comércio estrangeiro” (Almeida, 2009, p. 88). Rômulo deseja entender por que, “se não faltou iniciativa e arrojo”, a máquina colonial emperrava. A estrutura voltada para fora, os gastos suntuosos das elites proprietárias, o transporte precário e o Estado patrimonialista contribuíram para a descapitalização das atividades produtivas, do açúcar ao cacau, passando pelo fumo, pelo algodão e pelos minerais (Almeida, 2009, p. 84-88). Mais grave ainda, enquanto a possibilidade de expansão industrial na Bahia, entre 1850 e 1930, vai se extinguindo aos poucos, São Paulo assume o centro do palco. Ele procura o espírito empreendedor e a inovação, o Estado a fazer inversões públicas e a fornecer assistência técnica aos produtores cacaueiros no inal do século XIX, mas o que vê é tão somente o peso das estruturas econômicas e dos padrões culturais – mesclados, mas não a partir de uma perspectiva determinista (Almeida, 1984)7 – soterrando as possibilidades de expansão da produtividade. O Estado é um fator de descapitalização, malbaratando as receitas provisórias geradas com o surto cacaueiro (Almeida, 2009, p. 91). No entanto, com a crise dos produtos de exportação e o aumento das populações, emergem “economias fechadas de autoabastecimento” (Almeida, 2009, p. 94). O sistema econômico tende à atroia e à regressão da divisão do trabalho, tal como Furtado (1959, p. 78-82) apontaria mais tarde ao mencionar o recuo da pecuária à subsistência nos períodos de queda dos preços do açúcar. Enim, a indústria, tão bem posicionada na Bahia da metade do século XIX, deinha. Um capital comercial, parasitário, arremata as propriedades de lavradores e industriais, enquanto a economia do interior se fecha. Estes homens de negócio, despreocupados com a produção, não apresentam “tirocínio industrial”, salvo honrosas exceções (Almeida, 2009, p. 94-97). Ele chega a citar em entrevista (Almeida, 1984) que “a Bahia era o maior tomador de apólices do governo central no inal do século XIX”, para reforçar esta mentalidade que não aparecia como fenômeno cultural isolado, mas como fruto da “ausência de opções de investimento”. 7. Em entrevista, referindo-se a este artigo, Rômulo chega a mencionar o relato de Saint-Hilaire, que, no início do século XIX, contrapusera “a vivacidade do baiano” ao suposto “desapego pelo trabalho” do paulista, no intuito de reforçar que as “mentalidades”, ao invés de exógenas, compõem as estruturas em transformação. Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 231 Talvez pudesse ter dito que um “capitalismo” se aninhava na esfera da circulação, matando a economia de mercado, enquanto se estendiam as áreas de autoconsumo, caso se queira mais uma vez enriquecer o mosaico romuliano a partir das categorias de Braudel. Adicionalmente, os ciclos econômicos se viam reforçados, na alta e na baixa, pelo sistema iscal. Na alta, por exemplo, em vez de reorganização econômica, “progressos igurativos”, em que se pode notar “um complexo de nobreza sem dinheiro, ou quiçá um certo traço litúrgico da nossa cultura” (Almeida, 2009, p. 98-99). Como consequência, a Bahia se recolhe no tempo. Se, por um lado, a variedade das exportações lhe permite uma menor instabilidade nas crises, por outro, o seu parco enraizamento faz com que um padrão de consumo não monetário se solidiique no interior. Entretanto, tal como no Acre, nunca faltou ao homem da região bravura para enfrentar as situações – mais uma vez o eco de Euclides. O que escasseava era o “saber fazer”, que levaria ao empreendimento e não ao “exagero do puro aventureirismo comercial”, predominante e responsável pelo “alheiamento do sistema produtivo atual e da vida moderna” (Almeida, 2009, p. 99). À prevalência de comerciantes limitados nos seus horizontes e nos seus interesses vem se somar – como efeito direto – o acentuamento do verbalismo sob a forma do desemprego intelectual, ou seja, das elites desgarradas acobertadas pelo empreguismo estatal (Almeida, [s.d.]e, p. 1). O fator cultural trava o desenvolvimento concebido como processo não apenas econômico. Mas não no sentido de disposições mentais atávicas e eternas que convidam ao fracasso inelutável. Isto porque os padrões de comportamento, especialmente das elites, podem e devem ser alterados, com o processo de desenvolvimento. 4 O PENSADOR PRAXISTA Se o pensador jamais se deixaria aniquilar nos anos subsequentes – talvez tivesse aflorado antes porque o serviço público então lhe permitia mais horas vagas dedicadas a uma tarefa de autoconscientização política a partir de uma análise “criteriosa” dos fatos e de uma interpretação particular da história –, ele agora passa a fornecer a matéria bruta para o planejador empedernido. A relexão já aparece plenamente incorporada à práxis no momento em que ele se aproxima das esferas de decisão. Neste segundo Rômulo – que emerge ao im do Estado Novo e durante o governo de Eurico Gaspar Dutra –, ambas as perspectivas se equilibram. É o que transparece em dois textos sobre assuntos tão diversos – o papel dos bancos de inversões (1943) e a participação do Brasil nas negociações para a criação da Organização Internacional do Comércio (OIC) (1946). Analisa-se também, ao inal 232 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil deste tópico, o estudo que ele faz para a seção técnica da Secretaria do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC), em agosto de 1944. No artigo de 1943, o economista baiano desenvolve a sua concepção acerca das complexas interações entre indústria e agricultura. De um lado, aponta “a economia agrícola como um imenso setor a recuperar ou construir”, “através da mecanização dos processos e da industrialização tanto possível nos centros de produção”, com o im de aproveitar as longas vias de comunicação, aumentando ao mesmo tempo o padrão de vida e a produtividade (Almeida, 1943a, p. 82). Por outro lado, a indústria não aparece como a salvação da lavoura. Possui uma “forte tendência ao crescimento quantitativo”. Falta-lhe, para além de maquinário, “uma adequada drenagem de capital particular para iniciativas largas e idôneas”. À exceção da “iniciativa de grandes grupos praticamente fechados, em pequeno número, grandes grupos só se montam pela iniciativa oicial” (Almeida, 1943a, p. 82). É o caso da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), da Companhia de Álcalis e da Fábrica Nacional de Motores (FNM). A conclusão é certeira: Contudo, muito mais poderíamos estar produzindo na agricultura e na indústria, com o melhor aproveitamento dos nossos recursos de mão de obra, equipamento e recursos naturais, se a organização inanceira estivesse apta a drenar em oportunas inversões as sobras de poder aquisitivo que estão criando a situação alitiva e desastrosa da corrida de preços de consumo (Almeida, 1943a, p. 82). Neste contexto, as aplicações imobiliárias campeiam, cumprindo o papel de reserva de valor. Trata-se de uma “economia de jogo” na qual se lançam muitos aventureiros, voltados para um mercado de ações ainda incipiente, incapaz de orientar empreendimentos coletivos de envergadura. “Antes que arranha-céus”, ele pontiica, é preciso “construir estradas e fábricas, vagões e barcos, aumentar os rebanhos, as plantações, racionalizar a mineração, produzir gêneros alimentícios e matérias-primas, ampliar as indústrias de consumo necessário”. No seu entender, faltam não apenas bancos – “que se multipliquem pela própria falta do que fazer com o dinheiro” –, mas bancos de inversões “que supram as deiciências de educação econômica do público, a de iniciativas, aproveitem da melhor maneira os recursos técnicos” e possam empregar adequadamente o disperso capital nacional (Almeida, 1943a, p. 83). Vê-se, então, o analista da cena econômica perscrutar as várias instituições inanceiras – tais como as sociedades anônimas, os investment trusts e os merchant banks – em voga na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França e na Alemanha. Empreende uma análise destes mecanismos de captação e distribuição de poupança nos seus contextos especíicos, com o intuito de tirar possíveis lições para o caso brasileiro. Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 233 Rômulo foca inicialmente na Inglaterra, caso em que uma “ordem supercapitalista” encontra-se articulada a um conjunto de instituições e costumes lentamente sedimentados, que contribuem para irrigar um “mercado inanceiro farto”. Nos casos francês e alemão, os bancos de negócios concentram-se mais nas operações de longo prazo, fazendo uso recorrente das participações industriais. Enim, tais instituições heterodoxas seriam criadas para alavancar capitais, “facilitar a criação e ampliação de empresas, dentro de exigências econômicas rigorosas” (Almeida, 1943a, p. 83-84), com o intuito de tirar a defasagem com relação ao pioneiro industrial, é o que parece sugerir Rômulo, antecipando a célebre análise de Gerschenkron (1962)8 do inal dos anos 1950. Mas o seu foco é o Brasil, que possui uma estrutura econômica a exigir dos instrumentos financeiros mais que a racionalização das operações e a proteção dos interesses do setor produtivo no mercado de capitais. A função dos bancos e das companhias de inversões estaria diretamente relacionada à própria estruturação de uma política nacional de fomento (Almeida, 1943a, p. 85). Depois de analisar a legislação existente e as limitações das instâncias em operação – como o Departamento de Financiamento do Banco do Brasil –, ele defende a necessidade de “órgãos estimuladores e orientadores do público nas inversões”. Quanto à fórmula, ele tece várias conjecturas: não deve se curvar facilmente ao jogo especulativo, atuando de maneira especializada, com alguma folga de capital de modo a lhe permitir uma eiciente organização dos negócios, algo apenas possível se municiada a instituição futura de “observadores econômicos, estatísticos, técnicos industriais e agrícolas, a im de empresar ou amparar, não a construção de apartamentos, mas projetos realmente produtivos” (Almeida, 1943a, p. 87). Mais uma vez, a ênfase, portanto, na montagem descentralizada e integrada dos fluxos sociais e econômicos, a partir de uma faculdade deliberativa, não necessariamente estatal, mas de caráter público, com papel de destaque dos técnicos em dissonância com os interesses imediatistas das elites. Este tom algo ingênuo – e até moralista – é comungado pelos desenvolvimentistas da sua geração, os quais ainda não se haviam enfrentado com as engrenagens do capitalismo em processo de transmutação. Dedicavam-se antes à tarefa possível (assim eles imaginavam) e inadiável do desenvolvimento de uma economia de mercado conduzida pelo planejamento estatal, cujas tarefas iriam muito além das imaginadas por Keynes.9 8. No seu texto seminal, o autor airma que nos “países atrasados”, os processos de industrialização assumem feições diversas em virtude da “rapidez do desenvolvimento”, das novas “estruturas organizacionais e produtivas da indústria”, dos “arranjos institucionais” e do “espírito” ou “ideologia” que anima as elites dirigentes. 9. A análise desenvolvida por Bielschowsky (1995, p. 135-136), para quem Furtado seria um “keynesiano atípico” – no sentido de que não aceitava a aplicação no país da macroeconomia keynesiana de maneira idêntica ao que se fazia nas “economias maduras” –, parece ser um traço comum aos demais economistas nacionalistas do setor público. 234 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Na sua tentativa de “imaginar” uma instituição – o banco de inversões – desequilibradora do processo de desenvolvimento, no sentido hirschmaniano, ele considera o duplo risco de se curvar à especulação, se privada, ou de se deixar levar pelo “desperdício da burocratização”, se assumisse um caráter oicial. Daí a aposta numa sociedade de economia mista, que poderia inclusive “ensaiar o emprego orientado das disponibilidades dos institutos de seguros sociais”, no sentido já propalado por Plinio Cantanhede, na época presidente do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (Iapi). Para então completar que tal se faria “sem prejuízo das sólidas organizações particulares que possam desempenhar esta importante função econômica” (Almeida, 1943a, p. 87). No seu entender, deveria haver uma mútua interação entre instituições públicas e privadas, cujos papéis se consolidariam no bojo do próprio processo de desenvolvimento. Assim, funcionava a utopia desenvolvimentista romuliana, adiante aprimorada nas funções que exerceria no setor público. Entretanto, nosso pensador jamais imaginou – nem aqui no auge dos seus 30 anos – que esta interação estivesse alheia a embates políticos ferrenhos, muitas vezes mal escondendo a defesa de privilégios e de interesses de classe. Vários elementos do futuro Rômulo aparecem associados neste texto de caráter aparentemente técnico: compreensão da dinâmica econômica a partir de uma perspectiva histórica, busca da especiicidade brasileira, discussão acerca do papel das instituições promotoras do desenvolvimento como centros privilegiados de poder técnico e, neste sentido, político, pois jamais apartadas da sociedade; e crítica ao crescimento econômico quantitativo, especulativo, sem planejamento e dissociado das potencialidades sistêmicas. O texto sobre a Conferência Internacional do Comércio e Emprego (Almeida, 1947), ao relatar as contendas entre os países que ele observara de camarote quando da reunião do Comitê Preparatório, realizada em Genebra entre 15 de outubro e 27 de novembro de 1946, mostra o alcance da mirada desenvolvimentista do jovem economista. Deixa-se de lado a descrição analítica e minuciosa do conteúdo das negociações para observar como ele concebe a diplomacia econômica como parte do esforço integrado de planejamento do desenvolvimento, distinguindo os interesses “dos países altamente e dos incipientemente industrializados” ou “dos países industrializados e dos países novos que procuram industrializar-se” – confusão conceitual oriunda de um momento em que a “economia do desenvolvimento latino-americana” (leia-se Cepal) ainda não havia precisado as suas categorias. No seu entender, o Brasil deveria se aliar aos “povos de semelhante estrutura” (Almeida, 1947, p. 35-36 e 38). Sobre o papel dos Estados Unidos, em vez de uma postura denuncista, ele apenas constata: Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 235 Não há má fé. O que há é que os Estados Unidos naturalmente não vivem hoje os problemas desses povos, nem os seus próprios problemas de há um século (...) Temos assim a impressão de que, no tocante à industrialização dos outros povos, inluem mais fortemente do que os próprios interesses gerais e duradouros dos Estados Unidos, os “slogans” da doutrina neoliberal dominante (Almeida, 1947, p. 37-38). É importante destacar que o “manifesto latino-americano” de Raúl Prebisch ainda não fora escrito. Rômulo, inluenciado por Simonsen, aponta que “a elevação da capacidade de procura em todo o mundo pela industrialização dos países novos terá como efeito ampliar o produto e o emprego dos grandes países” (Almeida, 1947, p. 37), prenunciando em quase vinte anos a utopia da “nova ordem internacional” protagonizada por Prebisch, quando da criação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), em 1964.10 Esta entidade, aliás, resultaria da compreensão de que o Acordo Geral de Tarifas e Comércio – General Agreement on Tarifs and Trade (GATT) – aprovado em 1947, ante resistência norte-americana à proposta da Organização Internacional do Comércio (OIC) – icara refém dos interesses dos países desenvolvidos. O tom crítico recai sobre o governo brasileiro, do qual ele faz parte como delegado, representando o Departamento Nacional de Indústria e Comércio. A posição brasileira revela-se, no seu entender, tímida, além de comprometer o estabelecimento de “uma grande indústria em futuro próximo”, caso sejam fornecidas as concessões tarifárias exigidas pelas potências. Encontra-se apoiada por alguns segmentos nacionais que defendem a maior abertura às importações, além dos grupos exportadores, cujas pressões se fazem sentir sobre a imprensa e a administração federal, em detrimento das “massas operárias” (Almeida, 1947, p. 36). A questão central é a seguinte: como participar desta negociação que tende a alterar de maneira signiicativa os luxos internacionais de comércio? O problema reside, de um lado, nas condições transitórias e potenciais do país e no “próprio dinamismo de sua economia, que procura uma adaptação nova e incerta na estrutura da economia mundial”. De outro, existe o problema da “falta total de política econômica interna e da desastrosa herança de anarquia administrativa” (Almeida, 1947, p. 42-43 e 46). Rômulo não advoga pela retirada do país das negociações, mas recomenda uma postura de cautela, ao menos até que sejam deinidas as prioridades para uma política integrada de fomento às atividades internas, sem menosprezo, antes pelo contrário, das possibilidades abertas pelos mercados externos. Em síntese, nada que 10. Dosman (2011, p. 489), localiza a cunhagem do termo por Prebisch, em outubro de 1963, portanto, antes da primeira Conferência da UNCTAD. 236 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil se assemelhe a uma defesa ideológica da autossuiciência nacional, como sugeririam os seus antípodas ideológicos. Nosso economista praxista lamenta não apenas a ausência de diretrizes de uma política econômica interna, a serem discutidas com “responsáveis da administração, líderes do Congresso, ouvindo os representantes de classes e os governos estaduais”, mas também a atitude de insuiciente coordenação do Itamaraty com os outros órgãos interessados nos problemas econômicos externos. Apesar do seu corpo técnico qualiicado, o Ministério das Relações Exteriores não consegue sozinho dar conta das “necessidades da diplomacia moderna, que é, sobretudo, econômica”. E, completa, a “política comercial é parte e consequência de uma política econômica nacional” (Almeida, 1947, p. 47-48). Transcorridos mais de 65 anos desta negociação – e apesar de a posição negociadora brasileira na Organização Mundial do Comércio (OMC), sucedânea do GATT, ter adquirido vulto e autonomia antes inimagináveis –, as questões levantadas pelo economista travestido de diplomata seguem pertinentes. Dois pontos adicionais mencionados por Rômulo no referido texto exigem menção. Um de cunho técnico e outro de natureza teórica. A primeira preocupação do economista servidor público está no esgotamento das reservas – que ocorreria logo em seguida – e na proteção insuiciente ao parque industrial nacional em formação – que foi contornada pelas licenças de importação estabelecidas já no governo Dutra. Isto porque o Brasil contava com tarifas especíicas “reduzidíssimas”, as quais haviam caído em virtude da inlação interna e da elevação dos preços dos produtos importados, não se encontrando ademais “na situação de um país industrial que não teme concorrência aos seus produtos” (Almeida, 1947, p. 42). Ao invés de propugnar o protecionismo, condena uma abertura precipitada no contexto especíico em que o país se encontrava, ou seja, às vésperas de um impulso industrializante que pudesse se sustentar no longo prazo. Em segundo lugar, criticando a “falta de hábito de pensar os nossos problemas de uma forma não colonial” por parte de alguns economistas, para quem se padeceria de uma espécie de “hiperemprego quantitativo” – ele prepara as suas lanças certeiras contra Eugenio Gudin, que já terçara forças com Simonsen (Gudin, 2010, p. 90-93)11 –, Rômulo oferece um diagnóstico alternativo: a situação brasileira seria de “desemprego de recursos naturais relacionado com o desemprego qualitativo, ou subemprego da mão de obra”, que contribui, no seu entender, negativamente para o comércio mundial. Em síntese, ele esboça um ataque à teoria das vantagens comparativas a partir de uma análise diferenciada da situação do emprego no centro e na periferia. Lá eles teriam “o desemprego tecnológico e friccional, de 11. No seu texto, que faz parte da controvérsia citada, e a quem Rômulo se refere de maneira implícita, Gudin descreve a situação da economia brasileira como sendo de “inlação e emprego total”, em virtude do suposto “hiperemprego e hiperinvestimento”. Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 237 larga escala”, o que poderia ser sanado a partir de uma “readaptação proissional em massa” (Almeida, 1947, p. 37 e 40). O melhor exemplo, contudo, do pensador praxista, deve ser buscado no ano de 1944. Convidado pelo ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, Alexandre Marcondes Filho, para redigir uma exposição de motivos sobre o parecer de Roberto Simonsen, de agosto desse ano, sobre A planificação da economia brasileira,12 Rômulo realiza seu próprio estudo, ampliando o escopo analítico do então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Entre o parecer de Simonsen e o texto de Rômulo, é travado um debate no âmbito do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC),13 no qual o conselheiro Ari Torres expõe a necessidade de se concentrarem os esforços na planiicação industrial, “a qual se impõe logicamente”, pelo estado em que se encontra o país. No seu entender, a discussão genérica da planiicação poderia levar a “pontos doutrinários em que os técnicos e administradores brasileiros podem divergir” (CNPIC, 1945c, p. 38). Em março de 1945, viria o texto de Eugênio Gudin, que daria início à famosa controvérsia sobre o planejamento da economia brasileira, já citado. Rômulo produz, ainda em agosto, o Estudo da seção técnica da secretaria do conselho, antes do engavetamento da proposta final, de outubro de 1944, submetida ao presidente Vargas pelo ministro, revelando as contradições internas do governo. O que vale ressaltar é que esta proposta leva em conta os pareceres dos dois engenheiros economistas – Roberto Simonsen e Ari Torres –, mas também o estudo de Rômulo. Já na introdução do seu texto, o jovem assessor defende que a planiicação relete “não apenas um estilo administrativo”, mas também um mecanismo para “mobilizar a opinião pública para a construção do futuro do país”. Trata-se, enim, de “educar a democracia brasileira para um funcionamento sadio” (CNPIC, 1945a, p. 61). Em virtude do encarniçado debate ideológico da época, Rômulo esclarece: “o plano tende a ser hoje uma técnica neutra, sem compromisso com qualquer ideologia”. O seu viés antiliberal decorre do desenvolvimento da tecnologia e da racionalização da intervenção estatal, ancorada nos instrumentos de observação e previsão econômicos e sociológicos. Entretanto, escudando-se em Mannheim, o aprendiz de economista airma que a planiicação autêntica “é a compaginação, articulada e vigiada, dos processos vitais regulados e dos de livre criação”. Daí optar pelo termo estratégia, “que dá a perfeita ideia política de plano” (CNPIC, 1945a, p. 62 e 66-67), em contraponto à ideia técnica, que pode subentender a preixação geral de todos os elementos e efeitos. 12. Este é o texto que daria início à polêmica de Roberto Simonsen com Eugênio Gudin. 13. Todos os textos, assim como o debate mencionado, encontram-se publicados em CNPIC (1945b). 238 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Para então arrematar: “o plano não é domínio da tecnocracia, mas uma tecnologia econômica e social a serviço da política”. Esta subordinação em vez de empobrecer o elemento técnico confere plasticidade ao plano “no seu papel de instrumento do progresso cultural, e não de paralisação das forças criadoras” (CNPIC, 1945a, p. 68). Após esta digressão sobre o “signiicado político do plano”, Rômulo desenvolve a sua argumentação da seguinte maneira: i) condições que impõem e favorecem o plano; e ii) estrutura do órgão encarregado da planiicação. No que concerne às condições, ele apresenta oito fatores: a necessidade de “guerra ao pauperismo”, conceito emprestado de Simonsen; a pobreza de recursos do país, o que exige o rigoroso planejamento no seu uso e distribuição; a necessidade de desenvolvimento no país de sua própria “cultura técnica” a partir de suas características geográicas sem menosprezo dos avanços alcançados em outros povos; o enfrentamento dos problemas da extensão do território, que levam muitas vezes ao “desperdício e dispersão dos fatores de trabalho e capital”; a “falta de uma consciência política geral”, geradora de “improdutividade coletiva”, pois “a emergência de forças centralizadoras, num contexto de precariedade do sistema representativo, expande a sua inluência perturbadora”; a herança do protecionismo que leva à “ilusão industrial” e empobrece a grande maioria agrária; os efeitos do im da guerra que levam a transformações na economia internacional; e a inlação, tomada aqui não como fenômeno meramente inanceiro, mas como problema de produção e de produtividade (CNPIC, 1945a, p. 70-77). Sobressai aqui a sua concepção sobre os elos intersetoriais da economia brasileira em processo de “reestruturação” e de “reequipamento”. Não se coloca contra a proteção temporária do mercado interno e, muito menos, contra a industrialização. Esta deve atuar como um “ativo válido”, levando a uma alteração das relações técnicas e sociais entre a indústria e a agricultura, por meio das melhorias de transportes e de comunicações, no sentido do aumento do poder aquisitivo das populações rurais num contexto de barateamento dos custos de produção e distribuição (CNPIC, 1945a, p. 73-74). Este diagnóstico certeiro, que amplia a visão simonseniana, apenas se justiica como pano de fundo para a ação política planiicadora. Para ele, o órgão planiicador – que seria no organograma proposto o “Escritório Central de Planiicação” – “não delibera e nem executa”, função a ser exercida pelo Conselho de Economia Nacional, criado a partir dos vários conselhos existentes e atuando de maneira sintonizada com os vários ministérios (CNPIC, 1945a, p. 80, 83-84 e 98).14 Em síntese, cabe ao órgão planiicador acompanhar a execução do plano, deinido a partir de uma estratégia política, observando os seus resultados, e 14. O Conselho de Economia Nacional estaria vinculado a um conselho superior, de natureza estritamente política. Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 239 excepcionalmente interferindo para adequar as metas às condições reais. Para tanto, deve fornecer documentação técnica e elaborar projetos referentes aos temas funcionais (problemas comuns), setoriais e regionais, dando consistência ao plano, adaptando-o às várias dinâmicas produtivas e territoriais, e permitindo o seu aprimoramento contínuo. A qualiicação dos “técnicos” aparece aqui como gargalo estratégico, pois “são estes que estudam, projetam, resolvem, intervêm, administram” (CNPIC, 1945a, p. 82, 86 e 92). Finalmente, cabe ao escritório divulgar junto à opinião pública “o debate sobre as ideias centrais e o desenvolvimento do plano”, “a im de que todas as classes e todas as regiões sintam que estão participando do projeto coletivo, em que, ainal de contas, tomarão parte direta ou indiretamente” (CNPIC, 1945a, p. 97). Rômulo não poderia sequer intuir que o pensador praxista teria de se remodelar, de modo a assumir a direção deste projeto coletivo, durante a assessoria econômica de Vargas, escudado pela relexão desenvolvida ao longo dos anos 1940. Ao escrutinar a dinâmica, estrutura e propósitos da planiicação – que avançaria por outros meios, forçada a enfrentar-se com as contradições condensadas no seio da máquina pública –, parece fazê-lo mais como analista distanciado, já sabendo, contudo, de que lado está e qual o desaio a ser vencido. 5 O PLANEJAMENTO E A EXECUÇÃO NA LINHA DE FRENTE, A REFLEXÃO NA RETAGUARDA No seu último texto mais analítico, de 1950, no qual versa sobre a experiência brasileira de planejamento, o equilíbrio entre relexão e planejamento/execução já oscila no sentido da práxis. Foi publicado na revista Estudos econômicos da CNI, como resultado de uma conferência proferida nas Nações Unidas sobre “os países de economia menos desenvolvida” (Almeida, 1950).15 É um dos primeiros trabalhos de fôlego elaborados pelos desenvolvimentistas brasileiros que floresceriam durante a década de 1950. Rômulo então já conhece a Cepal (Almeida, 1950, p. 10)16 criada em 1948. Muito provavelmente lera o manifesto de Prebisch, publicado na Revista brasileira de economia, de 1949, o qual teve, graças à tradução de Furtado, ampla difusão no país (Furtado, 1985, p. 63). A interpretação cepalina seria facilmente incorporada ao seu instrumental analítico em virtude da sua familiaridade com as ideias de Simonsen. Sua bagagem teórica também incluía as leituras sobre a economia de guerra e de clássicos do pensamento econômico, como os Princípios de economia política de Alfred Marshall, por ele traduzido junto com Otolmy Strauch, além 15. O texto é concluído em abril desse ano. 16. Ele cita, por exemplo, o estudo sobre a economia brasileira preparado pelo Centro de Investigações da Cepal, sob a autoria de Celso Furtado, para a conferência desta organização realizada, em 1950, na cidade de Montevidéu. 240 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil de provavelmente ter tido acesso a conceitos do universo keynesiano – a obra introdutória sobre o pensamento do economista inglês fora publicada por Prebisch, em 1947, pelo Fondo de Cultura Económica. Estas novidades teóricas ampliam o horizonte das suas próprias conclusões tiradas da análise in loco dos problemas regionais e de instituições econômicas por ele analisadas, como discutido nos tópicos anteriores. O economista, então com 36 anos, tece uma análise certeira dos impasses do Brasil no início da década de 1950. Como se o olhar aguçado sobre o real o guiasse pelas ideias novas que brotavam na época, e não o contrário. Como se o poder da intuição, desenvolvido pela necessidade de respostas rápidas em virtude das exigências da máquina pública, o protegesse contra as tentações dedutivas da ciência econômica. A capacidade de lidar com o pensamento abstrato – e suas iluminações sobre o real – viria muito depois, para o que ele contaria com as leituras de Celso Furtado e Ignácio Rangel, amigos que admirava, e de outros autores contemporâneos, muitos dos quais estrangeiros, mas todos passando pelo crivo de sua experiência como planejador e executor, como homem prático e avesso a fantasias que não fossem capazes de frutiicar em políticas públicas aqui e agora. Antes de ingressar na temática do planejamento – desaguadouro de todos os seus esforços analíticos – ele apresenta uma introdução intitulada Notícia sobre a economia geral do país. Inicia o seu diagnóstico partindo do sistema latifundiário, responsável pela “tradição predatória e móvel de nossa exploração rural”. Com exceção de algumas poucas culturas tropicais, os rendimentos agrícolas são muito baixos. Além das riquezas naturais que existem em grande quantidade no solo, as riquezas minerais são muito mal conhecidas. Para os combustíveis, ressalta o “potencial hidroelétrico elevado”. O tipo de economia prevalecente, somado à extensão e à topograia do território, diicultou o desenvolvimento de um sistema de transporte. As condições da população se casam, por sua vez, às da geograia, tornando a sua valorização educacional e sanitária de alto custo. Nosso geógrafo se faz de antropólogo ao mencionar, contudo, que “testemunhos isentos atestam a aptidão da população rústica para assimilar a técnica moderna”. Apesar da tendência à deterioração dos termos de intercâmbio no longo prazo, as atividades internas têm-se ampliado, processo que, entretanto, não obedeceu a uma política sistemática de fomento. A industrialização avança, assim como a diferenciação da produção agrícola, o que não impede a limitada absorção do excedente populacional. “Tropeços institucionais” retardam a estruturação da economia nacional em bases mais sólidas. A organização bancária não acompanha o surto industrial. O sistema tributário segue concentrado nos tributos indiretos, ao passo que a distorção da renda e da procura desvia os lucros para a manutenção do padrão elevado de uma minoria. O padrão técnico da administração pública Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 241 se ressente do patrimonialismo, que mantém evidentes sobrevivências, e da precariedade do sistema educacional (Almeida, 1950, p. 5-15). Entretanto, ele não deixa de mencionar os avanços representados pela criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), do Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE), do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) (Almeida, 1950, p. 27 e 36). Enim, o parco aproveitamento dos recursos naturais e a escassez de meios técnicos e inanceiros conluem para que o ônus do território não se converta num ativo à disposição do processo de transformação das estruturas econômicas e sociais. O principal problema do país reside “no vulto das inversões sem produtividade direta necessárias para tornar viável e útil a paisagem” (Almeida, 1950, p. 6 e 16). Este problema tende a se agravar com a Constituição de 1946 que, no seu entender, inluenciada pelas ideias neoliberais, tentou desfazer quanto possível os controles econômicos. Entretanto, informada por critérios políticos, não necessariamente antieconômicos, assegurou verbas para o Vale do São Francisco, o Polígono das Secas e para a Amazônia (Almeida, 1950, p. 17-21). Aos poucos, ele vai tecendo o sentido potencialmente dialético da história. De maneira sintética, airma que “o subemprego é um problema geral, a se confundir com o do desenvolvimento, ou da produtividade” (Almeida, 1950, p. 22). Em vez de mera causalidade, parece existir uma interação entre as várias dimensões do subdesenvolvimento – ele não utiliza o conceito – que se reforçam, além de apresentarem distintas conigurações territoriais. Devem ser tratadas de maneira integrada, portanto. O linguajar econômico empresta sentido à utopia de Alberto Torres e Monteiro Lobato. O planejamento, tido por arriscado ou de baixa eicácia, encontra apoio no espírito nacional. Ele pode detonar mudanças irreversíveis, caso se saiba atinar com seu método, capaz de integrar ixação de objetivos, levantamento de prioridades, deinição de metas, localização de interdependências e controle dos resultados, submetendo-o à revisão sistemática. Entretanto, até o presente momento, “o intervencionismo tem lorescido em atividades ou setores isolados ou ocasionais”, para a correção de desequilíbrios ou para sanar as deiciências da iniciativa privada (op. cit., p. 16-17 e 18). Como se não bastasse, a falta de conhecimento dos problemas do país está relacionada ao atraso das ideias econômicas do público. Em poucas palavras, o liberalismo não nos serve! Antes, leva a uma “psicologia do conformismo com a limitação das possibilidades de capital e de técnica”. Ora, “se tivermos em vista uma substancial e não remota elevação da procura efetiva”, nada impediria – se avaliadas fossem as alternativas disponíveis por meio de uma projetação minuciosa, 242 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil sob a incumbência de órgãos de planejamento – que se caminhasse no sentido de “uma política econômica de mais largo alcance” (Almeida, 1950, p. 16, 36 e 44). Rômulo elenca as insuiciências para tal esforço, localizadas na ausência de coordenação entre os órgãos e as entidades da administração federal e entre estes e os equivalentes das esferas estaduais e locais; de informações notadamente estatísticas; de pessoal qualiicado nas atividades de gestão; de reformas em várias das instituições nacionais (sistema bancário, administrativo, de comércio exterior, institutos de previdência e outros). Para tanto, não se deve descuidar das “bases para um compromisso duradouro entre os vários ramos das classes patronais, e entre estas e o operariado e a classe média localizada nos centros de decisão política”, de modo a se traduzir numa política econômica que possa contar com o apoio dos partidos (Almeida, 1950, p. 40-51). Num documento de natureza estritamente técnica, Rômulo vai deslindando sua familiaridade com a temática econômica, ao mesmo tempo que navega pelo terreno das instituições e das ideias, sem se esquecer da viabilidade política e do enraizamento das propostas. Já se coloca como um servidor público que almeja interferir nos destinos nacionais, por mais que ocupe, ainda, o cargo de diretor do Departamento Econômico da CNI. Em vez de separar o diagnóstico do país da estrutura de planejamento, como no texto de 1944, quando ocupa o segundo escalão do ministério e possui pouca margem de manobra política, agora ele ganha desenvoltura e põe o dedo na ferida. Aposta na necessidade de um “levantamento razoável da estrutura das áreas econômicas em que se divide o país”, pois estas se mostram ainda inluenciadas pela dependência na exportação de monoculturas, o que exerce, por sua vez, impacto sobre a economia nacional como um todo (Almeida, 1950, p. 53-54). Vetado o Escritório Técnico de Planiicação, o planejamento deve partir das estruturas existentes e das novas a serem criadas. É, neste sentido, que propõe “um inventário de recursos”, o que lhe permite sair da cilada neoclássica de que a dotação de recursos está dada e que existe uma única produtividade marginal, ou do argumento sustentado adiante por parte da esquerda para quem o aumento da produtividade deveria ser contido, pois do contrário levaria à exacerbação do problema da absorção de mão de obra. Os excertos a seguir são contundentes por sua singeleza em combater o senso comum: Os recursos não valem isolados, mas na medida em que se completam, em fórmulas alternativas, de diversas produtividades. Aqui nos referimos evidentemente a todos os recursos: o patrimônio produtivo ou capital nacional, os recursos naturais mobilizáveis, o potencial de trabalho e os recursos correntes apurados na renda nacional e no balanço de pagamentos. Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 243 A produtividade indireta de uma parcela adicional de capital e de técnica (inclusive mão de obra qualiicada), possibilitando a absorção em emprego mais produtivo da massa subempregada e do potencial natural, não parece ter sido ainda avaliada devidamente nas circunstâncias de um país como o Brasil (Almeida, 1950, p. 54). Existem, portanto, várias economias ou subsetores econômicos, distribuídos de diversas maneiras nas economias regionais, que podem ser acionados com distintas aplicações de capital, desde que haja um planejamento integrado, de modo que sejam priorizadas as inversões vultosas e necessárias intensivas em capital, mas sem descuidar das intensivas em trabalho, recursos naturais e capacidade técnica. O desenvolvimento econômico deve desde o início “trabalhar” as desigualdades sociais e regionais. Ou melhor, a economia é vista como um grande sistema que por meio de mudanças estruturais dinamiza e é dinamizado pelos vários tecidos sociais e regionais. Este pensamento sistêmico – traço característico de Rômulo – será lapidado quando ele se deparar, mais adiante, com os meandros da máquina pública nos governos federal e da Bahia. A relexão serve agora essencialmente para nutrir o vulcão de iniciativas que o economista-servidor público mobiliza e para processar seus limites e insuiciências, assim como para avançar nas possíveis soluções administrativas, jamais concebidas sem um diálogo com as transformações da realidade social e política. De fato, no texto do presidente Vargas, Mensagem ao Congresso Nacional (1951), nosso ghost writer – ele coordenara a sua elaboração, antes de se tornar chefe da Assessoria Econômica do governo – já não pode mais reletir de maneira desinibida. O planejador, sempre apoiado no pensador, aparece agora “vigiado” pelo político que precisa encarnar, enobrecendo os feitos dos anos 1930, contra os quais lutara, e criticando os desmandos do governo Dutra, aqui como se estivesse a dar o troco, pois sua margem de ação fora podada. Mas as concessões feitas a Getúlio são equilibradas com as demandas que ele lança ao governante agora eleito pelo voto, de maneira sutil, quase inadvertidamente, como se quisesse indicar ao seu chefe o sentido a ser trilhado pelo desenvolvimento nacional. A sua relexão processada no período anterior – por mais que a mensagem tivesse vários redatores, ele fora o principal editor, além de responsável em última instância pelo seu conteúdo (Barbosa e Koury, 2012, p. 1.095-1.107) – transparece em várias passagens do texto. Logo na introdução aparece a menção ao “Estado-serviço” que, por meio de uma remodelação da administração e dos métodos, deve implantar uma “atitude democrática de serviço público”. A próxima diretriz trata da “efetiva realização da igualdade de oportunidade na competição social”, já que as diiculdades econômicas e o sistema educacional travam as possibilidades de ascensão e a emergência de uma 244 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil “saudável circulação das elites” (Vargas, 1951, p. 10). Mais adiante, encontra-se a defesa do potencial de capitalização, sem o qual não existem “maiores e mais amplas oportunidades de emprego e de salários”. O economista-servidor público, como estivesse se defendendo das futuras acusações de “distributivismo prematuro”, arremata: A elevação dos níveis de vida, num país como o Brasil, depende, assim, muito menos da justa distribuição de riqueza e do produto nacional que do desenvolvimento econômico. A verdade é que temos pouco para dividir. Devemos, portanto, por um lado, atender ao problema da justiça, corrigindo os abusos e a ostentação de uma minoria, e ainda elevar a produtividade através de melhores níveis de consumo, mas, por outro lado, não devemos permitir que uma distribuição insensata venha prejudicar o potencial de capitalização (Vargas, 1951, p. 12-13). A mensagem traz algumas surpresas, que pautariam a vida nacional nos anos subsequentes. Por exemplo, a defesa de uma “nova diplomacia”, moldada a partir da “concepção de cooperação visando ao desenvolvimento econômico”. Além de defender as relações hemisféricas, ressalta a novidade que acomete o continente africano, para concluir de forma taxativa: “todo e qualquer colonialismo deve ser entendido como uma sobrevivência indesejável nos quadros da vida internacional de hoje” (Vargas, 1951, p. 18-22). Em síntese, um nacionalismo não exclusivamente econômico, que iria ser retomado quando da atuação internacional de Rômulo nos anos 1960. Em vez da defesa do fechamento da economia, nosso escriba aponta que o maior dinamismo do mercado interno não deve se fazer em detrimento do comércio exterior. O processo é mais complexo: “a economia nacional, através de lento e contínuo processo de adaptação, vem sofrendo uma transformação estrutural, que consiste essencialmente na substituição de importações pela produção doméstica e na diversificação das exportações”. Os desequilíbrios no balanço de pagamentos devem ser enfrentados pela defesa das indústrias nacionais viáveis, contando com o concurso de divisas via exportações, “além do inluxo estável de capitais estrangeiros” (Vargas, 1951, p. 91-92). Sobre a relação entre a indústria e a agricultura, a primeira acarreta mudanças na segunda, ainda caracterizada pelo “ultrapassado rotineirismo”. Apesar de não mencionar a reforma agrária – a coalizão de poder o permitiria? – defende a mecanização do campo, a expansão do crédito, os centros de comercialização e a formação de cooperativas de produtores. Não sem completar que o homem do campo – “depositário secular das características fundamentais da nossa nacionalidade” – pode ser ameaçado pelo “impacto da civilização industrial” (Vargas, 1951, p. 100-102). O documento parte depois para a defesa da implantação da indústria de base e para a necessidade de uma política industrial que proteja, “sem liberalidades excessivas em relação à concorrência estrangeira”, a produção de bens de consumo essenciais, que já contam com um suprimento considerável de máquinas e equipamentos Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 245 produzidos internamente. Trata-se, enim, do esboço de uma proposta de política industrial coerente no país, inclusive apontando para a necessidade de ampliação dos mercados externos para as manufaturas brasileiras (Vargas, 1951, p. 120-130). A defesa do aproveitamento dos recursos naturais, da energia e dos combustíveis e sua articulação com os meios de transporte e comunicações – cujos equipamentos podem ser produzidos internamente –, permitindo ligar o território nacional, vêm associadas a programas regionais de desenvolvimento na Amazônia brasileira e no Nordeste. O território é pensado para dar guarida ao escoamento da produção ampliada e permitir a diversiicação das fontes de renda. O tema do capital estrangeiro é enfrentado sem revanchismos. As disposições da Constituição de 1946, neste aspecto, são “plenamente satisfatórias”. Aliás, “cabe aos países exportadores de capitais facilitar as inversões em países como o Brasil”. Estes devem ser apoiados pelo governo brasileiro, “sobretudo em associação com os nacionais, uma vez que não iram interesses políticos fundamentais do nosso país”. Mas sem vantagens excessivas, pois “o esforço enérgico e sistemático de desenvolvimento econômico será um fator de coniança para o capital alienígena” (Vargas, 1951, p. 187). A última parte da mensagem não procura ocultar as mazelas do país. Recheada de dados estatísticos, ela revela como a economia não integra a sociedade. O combate à desigualdade transparece na defesa da centralização da gestão dos recursos previdenciários, a serem expandidos para o homem do campo. O Estado, em vez de contribuir com um terço dos benefícios previdenciários para as diversas categorias, ampliando a desigualdade entre elas, deveria estabelecer um plano básico (Vargas, 1951, p. 226-227). Essas e outras facetas do Rômulo pensador vão se transformar em projetos de ação, alguns levados a cabo com o apoio do presidente, outros apenas parcialmente em virtude das condições políticas, outros ainda seriam simplesmente engavetados. Estas várias dimensões do seu pensamento sistêmico jamais deixariam de revelar a sua necessária complementaridade para um projeto de desenvolvimento que fosse digno deste nome. Tal projeto de desenvolvimento, mais que a superação do subdesenvolvimento – ainda não teorizado de maneira consistente –, permitiria a realização em sua plenitude de uma civilização brasileira moderna, tropical e mestiça, capaz de transformar todos os seus patrícios em agentes sociais e econômicos. Uma espécie de Euclides redivivo pelo instrumental do planejamento estatal e pela cooperação social no contexto de uma economia de mercado pujante e autônoma, que se pretende capitalista, talvez subestimando seu potencial concentrador e disruptivo. Esta utopia concreta moveria Rômulo e boa parte dos intelectuais orgânicos do 246 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Estado que lhe acompanharam ou sucederam neste tempo curto que foi o período 1951-1964, após o qual o vendaval da longa duração faria girar o sentido da história. Depois do segundo governo Vargas e da experiência como secretário da Fazenda na Bahia, recém-retornado de uma missão junto ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, Rômulo reassume a sua cadeira de deputado federal, quando realiza, em novembro de 1957, no Congresso, o pronunciamento Clientelismo contra desenvolvimento: dilema dos nossos dias, publicado na íntegra no ano seguinte (Almeida, 1958). Uma versão enxuta, em forma de artigo, pode ser encontrada no Observador econômico e financeiro (Almeida, 1957). Nesse documento, ele analisa a estrutura de poder – e as instituições que o encarnam – como óbices ao desenvolvimento. Apresentam-se as ideias principais deste opúsculo, já que ilustram aspectos fundamentais do seu estilo de pensamento, além de revelarem uma ruptura no seu estado de ânimo, marcado pelo “pessimismo viril” (Almeida, 1958, p. 11). É elaborado em pleno governo de Juscelino Kubitschek, quando ele já não ocupa o centro do palco e se dá conta de que o processo de desenvolvimento apresenta-se como essencialmente contraditório. Apesar de reiterar que “observando o desenvolvimento europeu e as angústias do Velho Mundo” chegara à conclusão de que “o Brasil é, possivelmente, a grande área potencialmente feliz de toda a terra” (p. 12-13),17 ele se mostra cético. Isto porque, diante do progresso tecnológico, pareceu-lhe que “o Brasil era, no mundo industrial de hoje, uma espécie de ilha distante do mundo” (Almeida, 1958, p. 12-13). O desencanto que lhe toma advém adicionalmente do desajustamento manifesto das instituições nacionais – permeadas de clientelismo e caudilhismo – ante as necessidades do desenvolvimento nacional. Rômulo diagnostica “uma crise profunda das classes dirigentes do país”. Emperravam o desenvolvimento do fator tecnológico e do fator empresarial ou de direção, o que era pior que a insuiciência da formação de capital nacional, pois levavam a uma baixa produtividade no uso dos fatores capital e trabalho e recursos naturais, o que valia tanto para o plano microeconômico, da empresa isolada, como para o macro, quando se toma “a nação como empresa no conjunto das nações” (Almeida, 1958, p. 13-16). As relações de clientela impregnavam as forças armadas, a imprensa, o funcionalismo civil, a universidade, os clubes políticos, as instituições de classe. O Estado cartorial – conceito que empresta de Hélio Jaguaribe, seu colega isebiano – imperava, nutrindo “uma estrutura política pré-ideológica ou antiprogramática”. O problema não era de regime político, mas de uma estrutura de poder calcada no 17. No seu entender, tal potencialidade se deve ao fato de o país não ser acometido por lutas sociais e raciais, não sofrer o cerco racial ou político de outros países, além de estar fora “das superfícies afetadas pelo grande conlito mundial de nossos dias”. Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 247 patrimonialismo, que sustentava uma “sociedade antidemocrática” (Almeida, 1958, p. 17 e 26-27). Em síntese, há “um problema de comando no país”, o qual reside na organização do Estado, e não em um governo, provisoriamente ocupado por um homem “cuja atitude pessoal chega a ser comovente no dramático esforço para dinamizar o país” (Almeida, 1958, p. 16-17 e 21). No texto de 1957, ele assim resume o problema: “há uma crise de tecnologia econômica e social, incluindo a política” (Almeida, 1957, p. 52). A capital federal, que lhe havia acolhido de braços abertos e permitido a sua ascensão em bases meritocráticas no interior do aparelho estatal, se havia transformado “numa espécie de câmara de esterilização dos esforços nacionais do desenvolvimento e que irradia dessa megalópole monstruosa o mal-estar para todo o país” (Almeida, 1958, p. 13). Como explicar essa aparente ruptura com relação à postura combativa, mas coniante, dos textos anteriores? O clientelismo, ele parece sugerir, teria se reciclado no contexto da expansão econômica. As elites dirigentes, ao invés de transformadas, no sentido de preparar o país para os desaios impostos pela “crescente concentração de capital e de técnica nos países desenvolvidos” – o que exigiria “uma elevação dos padrões de vida, assim como a viabilização do desejo de airmação nacional perante o mundo” (Almeida, 1958, p. 14-15) –, preferiram manter as posições conquistadas, negociando demandas imediatistas no âmbito do Estado cartorial. Como se não bastasse, enquanto as elites dirigentes mostravam-se “surdas aos desaios do desenvolvimento nacional”, o “clientelismo frequentemente empunha os cartazes do desenvolvimento e do nacionalismo” (Almeida, 1958, p. 22-23). Esta lucidez – por se escorar numa autocrítica aos seus anseios passados de construir a nação, de cima e do centro, mas de maneira sintonizada com as forças situadas abaixo da estrutura de poder ou nas várias periferias regionais – revela a trama complexa dos conlitos sociais e políticos. No entender de Rômulo, duas instituições ilustram tal desajustamento entre as elites dirigentes e os anseios do desenvolvimento nacional: o sistema educacional (Almeida, 1957, p. 53),18 “funcionalmente inadequado para preparar os trabalhadores, os técnicos, os cientistas, os homens de criação espiritual, os líderes de que necessitamos”; e o atual sistema individualista de uso da propriedade da terra (Almeida, 1957, p. 53),19 sem cuja remoção “não resolvemos o problema da ocupação rural e grave problema 18. No texto de 1957, mais enxuto, ele acusa o sistema educacional de ser “uma fábrica de desemprego conspícuo”, “como se com diplomas se resolvessem problemas”, além de ser “um ixador de desigualdades e privilégios”. 19. No texto de 1957, ao se referir ao uso da propriedade fundiária, ele aponta para “o hiato reacionário da Constituição de 1946”. 248 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil urbano da nação”, sendo “uma das condições para o desenvolvimento do próprio capitalismo que tais bases se reformem radicalmente” (Almeida, 1958, p. 24-26). Ao mencionar, no texto de 1957, a questão urbana, ele vai além do pronunciamento, e dirige a seguinte pergunta à nação: “O Brasil ainda é um dos países menos urbanizados do mundo. O que acontecerá com o rápido crescimento populacional e o forte aumento da taxa de urbanização que se veriicará nos próximos anos?” (Almeida, 1957, p. 54). Talvez não imaginasse que o capitalismo realmente existente no Brasil se nutria destas instituições e do próprio Estado cartorial. Ou seja, apesar do tom amargo, Rômulo não larga o campo de batalha, antes vem a público ostentando suas barricadas. Não deixa de mencionar o caminho percorrido, as instituições públicas de relevo – como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), que logrou superar o sistema clientela – e “a nossa indústria, uma epopeia da capacidade do empresário, do técnico e do operário de assimilar o estrangeiro e sua técnica”, como já o izera nos estudos regionais sobre a Amazônia e a Bahia; mas “tudo isso nada é, porém, face ao domínio do paleotécnico e do clientelístico” (Almeida, 1958, p. 31-32). Termina o seu pronunciamento no Congresso em forma de presságio: Do contrário, o desenvolvimento do Brasil não esperará a lenta acumulação do processo democrático no estilo presente e, então o impulso, o arranque destas duas forças – a força interna do desenvolvimento e a força da tecnologia universal –, não tenhamos dúvida, destruirá as instituições sob as quais estamos vivendo no regime de liberdade (Almeida, 1958, p. 35). Apesar de captar a complexidade do dilema enfrentado pela nação – e não custa lembrar que ele o faz no período de euforia, não quando os conlitos já se acirraram, durante o governo João Goulart –, Rômulo não poderia imaginar ainda que a “solução” encontrada faria o capitalismo dar saltos em termos de desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo que reciclava as relações clientelistas sob o manto do governo autoritário. A relação entre clientelismo e desenvolvimento não era de simples oposição, antes se caracterizava por uma intrincada relação dialética. 6 O SERVIDOR PÚBLICO ISOLADO, O PENSADOR REDIVIVO20 Nos anos 1970, a experiência de servidor público, associada à sua concepção pretérita de desenvolvimento, naquele momento atualizada por leituras de autores contemporâneos, lhe permitiu fazer a crítica do modelo político e econômico brasileiro instaurado durante o “milagre econômico”. Rômulo parecia ter consciência de que os problemas diagnosticados lá atrás possuíam naquele instante uma dimensão que 20. Este tópico contém uma síntese das ideias elaboradas na parte 3 do artigo de Barbosa e Koury (2012). Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 249 fugia ao controle da sociedade e de um aparato estatal que se pretendesse eiciente e democrático. Ainda assim, a denúncia jamais deixa de vir acompanhada de novas proposições reformistas, que atacariam os desaios de sempre, agora magniicados. Em suma, o economista, durante a ditadura militar e o início do processo de redemocratização, retoma vários temas a que se dedicara como servidor público entre os anos 1940 e 1960. A relexão a partir desse momento avança nutrida pela práxis vivida, mas sem deixar de se dedicar às possibilidades de ação corretiva, mesmo que reconheça as distorções do “modelo econômico” e o fechamento autoritário do espaço político. Três questões articulam a análise crítica de Rômulo neste período pós-desenvolvimentista, sempre reiterando que ele não quer recuar no tempo, mas dar um salto adiante. São elas: o novo modelo econômico e político; a recuperação da noção de planejamento integral; e o enfrentamento das disparidades regionais. Inicia-se por dois textos do começo dos anos 1980. No primeiro, Rômulo se diz “revendo a experiência empírica”, buscando confrontá-la com “o repositório, hoje muito mais rico, do pensamento acadêmico sobre os problemas do subdesenvolvimento, particularmente os de uma região periférica condicionada a uma unidade nacional” (Almeida, 1982, p. 2). Aponta para as limitações do instrumental teórico convencional ante um sistema econômico dinâmico, já que os elementos invariantes destes modelos “mudam e mudam inclusive qualitativamente” (Almeida, 1982, p. 3). Termina apontando para a necessidade de resgate de uma nova economia política, inspirada pela preocupação ética e social e redeinida pelas questões postas pela realidade brasileira. É o último Celso Furtado que ele cita (Almeida, 1982, p. 6).21 Mas para além das formulações teóricas de Furtado – que lhe fornece um extenso cardápio de conceitos operacionais –, Rômulo continua a residir no horizonte possível de atuação, projetando utopias e buscando a superação dialética do regime militar. No segundo texto, composto de notas datilografadas para um seminário realizado em Teresópolis, de 1983, ele assim caracteriza o capitalismo tardio gestado no país: “capacidade ociosa nos setores de ponta e na infraestrutura, à custa de deiciências em agricultura e bens de consumo não duráveis e nos gastos sociais”, ao que se deve agregar “uma estrutura urbana disforme, a pobreza crescendo à frente da urbanização” (Almeida, 1983, p. 1). Aqui já se sente o eco de Rangel (1985), Economia: milagre e anti-milagre, “pensado” ao longo das últimas duas décadas, mas publicado pela primeira vez em 1985. 21. O livro a que ele provavelmente recorre é Furtado (1980). 250 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Nosso pensador mostra como a estrutura urbana (e social) criada, associada à necessidade de concentração de poder para “sustentar o processo de ampliação imoderada do excedente”, acarreta a repressão e o controle dos meios de comunicação. Por sua vez, a baixa organização política, em virtude das condições de subemprego urbano, engendra manifestações em grande medida espasmódicas, enquanto o controle estrito das áreas não urbanizadas do interior assegura a manutenção de mecanismos casuístas. Aponta, todavia, que tais efeitos políticos poderiam ser contestados de modo efetivo e duradouro pelos novos segmentos urbanos em ascensão (Almeida, 1983, p. 2-3). Talvez por não ter lido a obra magna de Florestan Fernandes (1987), ele descreve o seguinte círculo vicioso: “sem a consolidação de uma moderna democracia burguesa não se amadurece um sistema capitalista” (Almeida, 1983, p. 4). Com a centralização estatal pós-1964 e a integração do mercado, mostra como sai enfraquecido o coronelismo local, cada vez mais dependente das oligarquias estaduais. Entretanto, a dependência econômica, especialmente das regiões periféricas do país, impede uma transformação política. No sentido inverso, a estrutura política impossibilita uma transformação econômica que ampliasse o raio de atuação do capitalismo brasileiro. Essa relexão, justamente quando a igura do “economista-rei” assume o centro do palco, faz com que Rômulo questione o papel do economista. Ele já não é mais o “técnico em ins”,22 atuando próximo ao centro do poder e dialogando com as forças sociais, como no período pré-1964. Agora, “utilizar o oligopólio da informação é uma possibilidade rendosa” (Almeida, [s.d.]a, p. 1). Em vez da fria “engenharia econômica requintada” e calcada no “hermetismo gremial”, o economista deve saber lidar com as complexas realidades sociais e políticas, detectando muitas vezes como obter mesmo que “pequenos progressos no sistema de distribuição de renda”. O problema está em como as forças sociais dinâmicas, lavradores, trabalhadores e empresários, “costumam interpretar equivocadamente os seus interesses de grupo” (Almeida, [s.d.]a, p. 3). Nosso pensador, exilado do setor público, coloca-se à disposição destes segmentos, mas a partir de uma lógica de ampliação da eiciência econômica e social, questionando o modelo vigente. Isto porque estes grupos sociais, especialmente nas regiões menos desenvolvidas, têm menos acesso às informações. Ou seja, dependem mais deste novo (velho) tipo de economista, que é o antípoda do tecnocrata, e que Rômulo está disposto a reencarnar. Um economista que busque “uma perspectiva multidisciplinar, em comunicação com os setores da sociedade, especialmente os desprotegidos e dominados, no sentido de habilitá-los ao desenvolvimento, pela informação e pela luta, já que as mudanças essenciais não podem resultar de mera atitude elitista” (Almeida, [s.d.]a, p. 4). 22. Os conceitos entre aspas se encontram na análise de Sola (1998, p. 151-153). Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 251 Ao associar a transformação do modelo econômico e político com a necessidade de uma mudança no papel do economista, Rômulo revela como sua relexão encontra-se ancorada na práxis, em plena ditadura militar, o que faz dele o último militante da sua geração a atuar, desde o centro da tormenta, na defesa do desenvolvimentismo em todas as suas dimensões. Mas Rômulo não se destaca apenas por sua resistência. Ela está vinculada a uma renovada capacidade de análise e de formulação de instrumentos para a ação coletiva. Por exemplo, em artigo de 1978, para a Folha de S. Paulo, o autor mostra como já estava colocada a polêmica em torno da privatização e dos impactos para a empresa nacional da generalização da presença estrangeira no mercado interno. Sua argumentação é tudo menos movida pelo nacionalismo ideológico. O problema estaria no fato de que a abstenção do Estado enfraqueceria o crescimento econômico, além de desequilibrá-lo social e espacialmente. As empresas nacionais não dispunham de recursos para certos investimentos de longa maturação, enquanto as transnacionais não estavam dispostas a correr riscos, apenas antecipando posições vantajosas num mercado interno seguro. E completa: (...) só o Estado pode fazer os investimentos, com postura promocional, o que ocorre tanto para os empreendimentos de benefício social mais que direto, como por meio da criação de externalidades para as empresas privadas”. Em suma, com a suposta privatização, “cresceremos menos, cresceremos mais capengas e mais dependentes (Almeida, 1978b, p. 3). Trata-se de uma análise no calor do debate, de alguém que se sabe respeitado pelo governo de plantão e procura ampliar o alcance de suas convicções atuando junto aos grupos sociais emergentes, a partir da sua experiência singular. O cerne da questão encontra-se na “imperfeição estrutural do mercado para orientar os investimentos”, o que só se faz aguçar com a velocidade das mudanças tecnológicas e mercadológicas, a longa maturação dos investimentos e a escala das operações. E completa: “uma internacionalização passiva signiicaria a própria castração do potencial de desenvolvimento nacional” (Almeida, 1978b, p. 3-4). Qual a solução? Para Rômulo, “o reforço das empresas estatais, submetidas a uma mais eiciente coordenação administrativa, e a um lídimo controle social, de modo a cumprir o múltiplo papel que lhes cabe, inclusive o de apoiar o empresariado nacional”. Esta formulação dialoga com a noção de capitalismo inanceiro de Rangel, centrado no Estado, mas abrindo espaço para concessões à iniciativa privada, ao mesmo tempo que resiste à fúria transnacionalizadora descrita por Furtado. O seu resgate do nacionalismo, neste novo contexto, vai se nutrir da vivência isebiana, calcada na fórmula “radicalidade na opção e flexibilidade tática no manejo”. O capital externo deve trazer aporte líquido de capital, contribuir para 252 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil o aumento da produtividade, melhorar o balanço de pagamentos, sem levar ao condicionamento e à alienação do poder nacional. Devem-se diferenciar ainda as tecnologias produtivas básicas das tecnologias de consumo. Do contrário, a atuação destas empresas não permitiria a transferência de tecnologia e se transformaria em superfetação inútil (Almeida, [s.d.]c, p. 3 e 8). Em diálogo com seus contendores à esquerda, ele explicita que se as transferências se fazem em benefício dos empresários nacionais e com prejuízo de classes com menor capacidade de disputar seu quinhão, pelo menos a injustiça ica no Brasil, e aí permanecendo torna-se mais fácil reparar a injusta distribuição (Almeida, [s.d.]c, p. 10). Segue, pois, a crença na dialética planejadora como forma de fazer emergir uma sociedade mais complexa, à medida que se internalizam os centros de decisão. É neste sentido que Rômulo louva o esforço do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), por mais que perceba a estreiteza de seu horizonte estratégico. Tampouco se mostra ingênuo, pois observa que “o capital privado nacional, especialmente nos setores dinâmicos, pode lutar contra a dependência e aprofundar o apoio ao processo democrático” ou “se submeter aos desígnios internacionais, compensando-se na exploração dos trabalhadores e consumidores” (Almeida, [s.d.]d, p. 2-3). Em discurso como paraninfo da Faculdade Católica de Ciências Econômicas da Bahia (Facceba), Rômulo sintetiza as possibilidades de desenvolvimento do país. No seu entender, trata-se de “um país fácil do Terceiro Mundo” (Almeida, 1977, parte II). Apesar da sua defasagem tecnológica, esta pode ser sanada por meio de uma renovação cultural no âmbito de um processo de desenvolvimento democrático, que aproveite os recursos agrícolas, o potencial lorestal e os novos minérios ainda não descobertos, além da maior uniicação do território por meio das tecnologias de transportes disponíveis. Novos padrões de consumo poderiam emergir a partir da absorção e geração de tecnologias. As condições positivas são as tecnologias agrícolas desenvolvidas para o trópico; o núcleo industrial nos setores de bens de capital e intermediários, tanto em termos de capacidade produtiva como de manejo de uma tecnologia avançada; a capacidade empresarial e dos recursos humanos ao menos nos segmentos modernos; a qualidade do Estado brasileiro no que tange ao padrão de organização e de métodos de gestão; o sistema federativo, com entidades espaciais descentralizadas com relativa autonomia; além da escala do mercado interno, acrescida da crescente capacidade para exportar. Do lado das condições negativas, o ufanismo autoritário que engessa mudanças culturais e institucionais; a semialfabetização, de um lado, e o cartorialismo gremial, de outro, que concede privilégios por meio de diplomas; o exagero expropriativo de Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 253 uma minoria; o explosivo problema urbano, que não se resolve sem mudanças no plano da distribuição e no uso da propriedade; o crescimento econômico gerador de dependência externa; a deterioração da solidariedade e da participação que pode fazer esgarçar a cordialidade como característica nacional; e a postura de superioridade com relação aos demais países da região (Almeida, 1977, parte III e IV). Após esta síntese por pares de oposição acerca das possibilidades de desenvolvimento do país – a qual se caracteriza pela simplicidade analítica e pelo amplo alcance dos temas abordados – Rômulo aponta para o impasse da “civilização brasileira”. Sim, é este o termo utilizado. O adiamento de uma melhora distributiva, junto com uma mudança na estrutura produtiva que a possibilitasse, é visto como o fator a obstaculizar a maior capacidade de geração de empregos na agricultura e nas áreas urbanas, o que levaria por sua vez a uma arrecadação maior do Estado. Melhores salários representam maior demanda para bens agrícolas e industriais, habitações e obras públicas, todas estas atividades menos poupadoras de mão de obra (Almeida, 1977, parte V). Rômulo ataca de frente a questão urbana, resultado da combinação entre pobreza e especulação imobiliária. Torna-se fundamental o controle do uso do espaço. Porém, no Brasil, “exacerba-se um privatismo, com um selvagem pré-capitalismo que tem a seu serviço a inibição anticomunista” (Almeida, 1977, parte V). Finalmente, ele enfrenta o mestre e amigo Furtado de O mito do desenvolvimento econômico (Furtado, 1974), ao airmar que não está provado que o crescimento elevado do produto interno bruto (PIB) exija necessariamente uma distribuição tão desigual. Ou seja, a desigualdade está na base da acumulação capitalista no Brasil (o que é diferente de condição), em relação à qual o Estado tem perdido a capacidade de acionar mecanismos corretivos. O modelo pode ser superado pelas próprias forças que ele engendra e pela reorganização da sociedade, acionando o Estado de maneira democrática, mas sem retirar-lhe a autonomia e a capacidade propositiva. É o último canto da sereia de um capitalismo autônomo, democrático, regulado e adaptado à realidade cultural dos trópicos (Almeida, 1977, parte V). Rômulo, de fato, já tinha perdido o bonde da história. A sua posição merece consideração pelo salto dialético que ela sugere, ao indicar uma superação do modelo em vigor, partindo das limitações existentes, sem uma volta ao passado, mas antevendo novos padrões de desenvolvimento possíveis. Essa espécie de utopia pragmática associa um Rômulo cético na análise do real a outro que se propõe a escrutinar possibilidades não antecipadas pelos modelos convencionais. Isto se dá pela iltragem do ferramental econômico por 254 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil uma sensibilidade aguçada pela diversidade territorial do país e pela crença no potencial do planejamento desde que ancorado nas forças sociais. Como culminação dessa relexão, pode-se encontrar sua síntese do processo de planejamento como instrumento democrático e agente dinâmico da organização produtiva nacional a partir de um enfoque territorial, a qual seria apresentada em três aulas ministradas no Instituto de Arquitetos do Brasil em setembro de 1975.23 Ele recupera o Rômulo de 1944. Entretanto, em vez de “planejar o planejamento”, trata-se de interferir alterando a sua lógica centralizadora e autoritária. Para Rômulo, o desenvolvimento regional assume papel estratégico. No seu entender, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), sob a ditadura militar – ao não determinar qual o tipo de indústria seria potencialmente mais indutora e por adotar uma política industrial guiada pelo mercado e pelas isenções iscais exclusivamente –, não conseguiu garantir um desenvolvimento regional minimamente balanceado, condição para o próprio desenvolvimento do capitalismo nacional em bases menos excludentes. Observa-se a seguir seu diagnóstico acerca do potencial do Nordeste: Estou, apenas, aqui, exibindo uma ilustração em torno do programa mais importante para o país. O programa que realmente é chave para o processo de integração nacional, não considerando integração em torno simplesmente de estradas, de miragem milionária para ligar o deserto, quer dizer ligar o nada ao nada. Mas em termos de integração ao mercado nacional. Dar uma nova dimensão ao mercado nacional. Incorporando trinta milhões de brasileiros ao mercado nacional. Incorporando uma região com uma posição geográica extraordinariamente positiva (Almeida, 1975, p. 13). Apesar da sua avaliação negativa acerca da política territorial conduzida pelos militares, Rômulo não abandona o papel do Estado como promotor do desenvolvimento. Critica simultaneamente tanto a diretriz “descentralizadora” ingênua como a falta de um planejamento geral articulado com as potencialidades regionais, conforme se depreende do trecho a seguir: Uma política regional é uma política necessariamente de desconcentração concentrada. Essa é uma primeira indicação. Aviso aos navegantes. Quem sair disso, se arrasa, se afunda, em termos de desenvolvimento regional. Uma política de desenvolvimento regional é uma política de polarização progressiva. Corrigindo, entretanto, a tendência à concentração interminável. Então, aí perdura o fator político, manejado com lucidez dessa tendência de concentração do processo. O processo que for conduzido, em termos de dispersão, é um processo estéril (Almeida, 1975, p. 10). 23. Acervo do Instituto de Altos Estudos Rômulo Almeida. Pensando, Planejando e Executando o Desenvolvimento: a trajetória de Rômulo Almeida 255 Dessa forma, ao vincular a questão das disparidades regionais ao mecanismo do planejamento integrado, como forma de gerar novas potencialidades no território nacional, integrando-o de maneira efetiva, Rômulo foge da síndrome do localismo que tomaria conta do país nos anos 1980 e 1990. Se, de um lado, ele sabe que, no plano político, “não pode haver solução cabal ao desajuste regional sem uma mudança político-social a nível nacional”, de outro, ele reconhece que, no plano econômico, não adianta atenuar a produtividade e o conteúdo tecnológico das regiões periféricas do país. A aposta no dualismo tecnológico está fadada ao fracasso e a inserção nordestina deve se mostrar competitiva.24 O técnico que assumira, no passado, uma “consciência nitidamente nacional e antirregionalista”, no momento de unir o país, defenderia adiante uma “política lúcida de desconcentração, sem distributivismo espacial prematuro”. Do contrário, o movimento imperial interno inicial poderia levar a um país dual (Almeida, 1985, p. 4-6). O combate às disparidades regionais, no seu entender, não se faria com programas sociais compensatórios, mas com um planejamento democrático e descentralizado que reconhecesse a relevância dos processos econômicos e sociais, os quais não são movidos exclusivamente pelas forças de mercado. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este texto procurou fundamentar a importância da sinergia entre relexão, execução e planejamento do desenvolvimento ao longo da trajetória do economista e servidor público Rômulo Almeida. Se esses atributos mudaram de importância durante o período 1940-1980, eles sempre se mantiveram imbricados. Partiu-se de uma análise de textos, depoimentos e discursos desse pensador praxista, de modo a capturar os vários Rômulos que emergem junto com as transformações por que passa o país, no âmbito da economia, das relações sociais, do aparato estatal e da estrutura de poder. O período (1951-1966) em que Rômulo ocupa cargos de destaque é marcado pela presença importante, porém jamais hegemônica, do desenvolvimentismo. Esse conceito – hoje em voga, e geralmente restrito à esfera econômica – não se encontrava associado a nenhum governo especíico. Estava enraizado na sociedade e em postos-chave do setor público. Fazia parte de uma cultura política e de um anseio de autotransformação do país. Pode-se dizer que a tríade utopia-projeto-interpretação do país delimitava esse conceito historicamente. Em síntese, havia uma utopia sobre as potencialidades nacionais, um estilo próprio de interpretação do país e um projeto de atuação soberana do Estado na economia (mas não somente), ancorada num conjunto 24. Ver texto de Rômulo Almeida enviado ao Jornal do Brasil, em 3 de outubro de 1979. Mimeografado. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 256 amplo de forças sociais, e sobre elas impactando de maneira dinâmica, no sentido de aprofundar a democracia. O período posterior ao golpe, e até a crise dos anos 1980, pode, no máximo, ser chamado pós-desenvolvimentista, na medida em que desarticula esse tripé, mantendo tão somente a intervenção do Estado na economia e uma ideologia (a do “Brasil potência”) sem enraizamento social. Nos anos 1970, Rômulo ainda procura superar esse modelo econômico e político, a partir de um salto dialético no sentido da democracia e do retorno a um “desenvolvimentismo” possível. O conhecimento da utopia e práxis desse economista-servidor público – aqui encarado como síntese de uma época, ou de um grupo social que logrou, atuando no âmbito das políticas públicas, transformar o real no sentido da airmação nacional – permite recuperar uma concepção de desenvolvimento hoje esquecida, em virtude do predomínio quase inconteste das análises macroeconômicas de caráter estático e voltadas para o curto prazo. Como se tentou demonstrar, a concepção que nutria a práxis romuliana – e a de vários companheiros de sua geração – partia da compreensão das estruturas econômicas e sociais que se reproduzem histórica, mas também espacialmente, em contextos internacionais que muitas vezes comprometem o desenvolvimento nacional. Daí a necessidade de um planejamento democrático capaz de articular um projeto soberano de inserção externa e de dinamizar a nação, em termos econômicos e sociais, ao mesmo tempo que são redeinidas as relações inter-regionais no sentido da redução das disparidades. A principal contribuição de Rômulo está nas instituições (BNB, BNDES, Capes, Petrobras, Eletrobras, entre outras) – e nos projetos que as embasaram – ainda hoje existentes, muitas das quais distorcidas dos seus anseios originais, mas que nasceram a partir de uma compreensão da complexidade do desenvolvimento em todas as suas dimensões. REFERÊNCIAS ACEMOGLU, D.; ROBINSON, J. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 27-34, 80-86, 89-97. ALMEIDA, R. As opções do economista. [s.d.]a, p. 1. ______. Humor e carrapicho. [s.d.]b, p. 2. Mimeografado. ______. Nacionalismo e capitais estrangeiros. [s.d.]c, p. 3-8. Mimeografado. ______. 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Rio de Janeiro: FGV/CPDOC – História oral, 1990. 258 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil ______. Traços da história econômica da Bahia no último século e meio. Revista de desenvolvimento econômico, ano XI, n. 19, jan. 2009. (Este texto teve sua primeira versão publicada na Revista de Economia e Finanças do IEFB, ano IV, n. 4, 1952). AMSDEN, A. A ascensão do “Resto”. São Paulo: Editora da UNESP, 2009. BARBOSA, A. F.; KOURY, A. P. Romulo Almeida e o Brasil desenvolvimentista (1946-1964): ensaio de interpretação. Revista economia & sociedade, Campinas: Instituto de Economia da UNICAMP, v. 21, número especial, 2012. p. 1.095-1.107. BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995. BRAUDEL, F. La dynamique du capitalisme. Paris: Flammarion, 1985. CNPIC – CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA INDUSTRIAL E COMERCIAL. O estudo da planiicação pela seção técnica da Secretaria do Conselho. 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CAPÍTULO 9 MAURÍCIO TRAGTENBERG E A APROPRIAÇÃO HETERODOXA DE MARX: UMA INTRODUÇÃO AO PROBLEMA1 Vinícius Soares Solano2 Elcemir Paço-Cunha3 Deise Luiza da Silva Ferraz4 1 INTRODUÇÃO Quinze anos completam-se, em 2013, da morte de Maurício Tragtenberg (1929-1998), o pensador brasileiro que, segundo Resende (2001, p. 137), era um “militante sem partido e um intelectual sem cátedra”. Contudo, como bem destacou Michel Löwy (2001), suas ideias permaneceram, auxiliando pesquisadores, militantes e trabalhadores a enfrentarem os desaios do terceiro milênio. Para que as contribuições de Tragtenberg cumpram esse papel de instrumento analítico e crítico, há, também, a necessidade de submeterem-se suas ideias a uma análise crítica, indagando a atualidade do pensamento do autor, bem como os seus limites. Liana Carleial (Carleial, 2012) mencionou que o pensamento de um grande autor pode ser considerado atual em diferentes perspectivas. Nesse sentido, formulou três questões que guiam a avaliação da contemporaneidade de um intelectual, listadas a seguir. 1) Manutenção do poder explicativo das categorias e dos conceitos do autor a despeito do tempo decorrido da produção de suas ideias: contribuição do pensamento do autor para entender o contemporâneo. 1. Os autores agradecem ao Ipea pelo inanciamento do projeto Desenvolvimento social equânime e autônomo: as contribuições de Tragtenberg para os estudos das contradições da autogestão nas políticas públicas de geração de trabalho e renda, bem como pela concessão de bolsa do programa Cátedras para o Desenvolvimento, realizado em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Agradecem também à Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) pela concessão de bolsa de iniciação cientíica e igualmente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo apoio inanceiro ao projeto que originou esta pesquisa. 2. Aluno do curso de administração da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 3. Professor adjunto do Departamento de Ciências Administrativas, do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFJF. 4. Professora do Departamento de Ciências Administrativas e do Centro de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 262 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 2) Atualidade das contribuições intelectuais do autor: permanência da atualidade do autor, apesar do tempo decorrido, em virtude de a realidade, embora diferente, não se ter alterado substancialmente. 3) Possibilidade de as categorias do autor serem atualizadas sem que o conjunto do seu pensamento seja refutado: em que medida são necessárias transformações no pensamento do autor para compreender a realidade atual. O estudo realizado por Paes de Paula (2008) sobre a publicação de artigos críticos em revistas e congressos especializados da área das ciências administrativas entre 1980 e 2004 demonstrou que Tragtenberg segue sendo referência para os estudiosos que buscam compreender o mundo social de forma não naturalizada. Sendo o sétimo autor mais citado nestes textos, suas ideias parecem dar suporte para a produção do saber contemporâneo, indícios de que seu pensamento permanece atual. Ademais, o “pioneiro na construção de uma teoria crítica em administração” (Ide, 2001, p. 290) fez escola, como destaca Paes de Paula (2008) ao relatar a inluência de Tragtenberg nos escritos de outros dois intelectuais brasileiros: Fernando Cláudio Prestes Motta (1945-2003) e José Henrique de Faria (1959-). Faria, por exemplo, publicou em três volumes o livro Economia política do poder, cujo volume dois é dedicado à crítica às teorias administrativas (Faria, 2004), dando continuidade ao empreendimento efetuado por Tragtenberg no livro Burocracia e ideologia (Tragtenberg, 1985). O paradoxo na atualidade de Tragtenberg é que, possivelmente, ele não desejaria manter-se atual. Maurício Tragtenberg combateu intensamente qualquer tipo de opressão e propugnava em seus textos, acadêmicos ou jornalísticos, a necessidade da emancipação humana. É justamente a não alteração estrutural do modo de sociabilidade que mantém o pensamento do autor um guia para a produção crítica hodierna. Existem relexões conjunturais realizadas por Tragtenberg, nas décadas de 1970 e 1980, que poderiam facilmente ser reproduzidas nos jornais e nos livros de hoje. “No Brasil, muda-se de partido como quem muda de camisa” – publicado no jornal Notícias populares de 26 de janeiro de 1986) (Silva, 2008, p. 133). “Salvo raras exceções, o sindicato não é a casa do trabalhador, é a casa do ‘pelego’” – publicado na edição da Folha de S. Paulo de 08 de novembro de 1979) (Silva, 2008, p. 126). “Da mesma forma que o grupo negro, homossexual, a mulher está inserida na totalidade do real e ao mesmo tempo tem problemas especíicos, no contexto da totalidade, que não podem ser escamoteados” – publicado na Folha de S. Paulo, em 26 de fevereiro de 1981 (Silva, 2008, p. 129). “A teoria da administração, até hoje, reproduz as condições de opressão do homem pelo homem; seu discurso muda em função das determinações sociais” (Tragtenberg, 2006, p. 267). Reconhecer esses trechos como atuais é render mais uma concordância com Tragtenberg, é afirmar que “estruturalmente nada mudou (...). Porém, Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução ao problema 263 conjunturalmente algo mudou”, conforme se lê na edição do Notícias populares de 17 de março de 1985 resgatada por Silva (2008, p. 130). A capacidade analítica de Tragtenberg pode ser decorrência de seu heterodoxismo. Tragtenberg, conhecedor de autores clássicos de diversas áreas do saber, tem como seus principais interlocutores pensadores como Hegel, Weber e Marx. É, segundo Ide (2001, p. 298), um dos mais “profundos conhecedores da obra de Weber no Brasil”. Isto estimulou muitos estudiosos da sociologia das organizações ou das teorias organizacionais a realizarem análises e discutirem as contribuições de Tragtenberg. Eis um motivo para que este texto não se estenda na explanação acerca da atualidade das críticas que Tragtenberg traçou à burocracia, à heterogestão, ao poder disciplinador do ensino etc. As duas primeiras indagações realizadas por Carleial (2012) para avaliar a atualidade do poder explicativo de um pensador já foram comprovadas por autores como Silva (2008), Paes de Paula (2008) e Meneghetti (2009). Este texto dedicar-se-á a explorar o terceiro ponto levantado, ainda que não exaustivamente, tratando-se, pois, de uma introdução ao tema e nada mais que isto. O conjunto do pensamento de Tragtenberg não pode ser refutado, embora, como mencionado, o autor desejá-lo-ia em nome da liberdade humana. Sob inluências marxistas, ele compreendeu que o homem faz história a partir das condições concretas em que se reproduz, sendo esta também uma limitação ao desenvolvimento do conhecimento. Dessa forma, Tragtenberg, apesar de ter rompido com a forma hegemônica de apreender Marx existente nas últimas cinco décadas do século XX, foi de alguma forma por ela condicionado. Assim, Tragtenberg permanece atual, sem deixar de ser homem de seu tempo, o que faz com que o estado da arte do debate em que se envolveu constitua, ao mesmo tempo, a possibilidade da crítica e se conirme como condicionador dos limites da superação intelectual, sobretudo no que tange à aproximação do pensamento de Karl Marx e Max Weber. Tragtenberg debruçou-se sobre estes autores de forma mais sistemática na elaboração de sua tese doutoral, da qual emergiu o livro Burocracia e ideologia. A elaboração de um sistema explicativo a partir da aproximação daqueles autores ocorreu no século XX e permanece sendo um esforço intelectual desenvolvido por muitos estudiosos das relações sociais. Nesse sentido, os estudos de Tragtenberg ainda hoje suscitam e iluminam discussões. Grande parte dos estudos produzidos a partir desse texto seminal de Tragtenberg procura apresentar o Weber contido em Tragtenberg. No estudo aqui apresentado, o objetivo não é explorar toda a problemática de uma articulação entre categorias marxistas e weberianas, mas tão somente apontar, ainda que de forma introdutória, alguns elementos do texto Burocracia e ideologia no que tange a um lertar de Tragtenberg com posicionamentos weberianos que divergem por 264 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil completo das análises de Marx. Isto porque o objetivo especíico deste capítulo é ter uma primeira compreensão sobre como Marx foi apreendido por Tragtenberg na elaboração da obra Burocracia e ideologia. Para isso, fez-se necessário também reletir sobre a metodologia do autor brasileiro. Apreender o Marx em Tragtenberg e problematizar sua metodologia é uma tarefa necessária ao desenvolvimento do conhecimento sobre o real, tendo em vista as considerações de Gabriel Cohn, um reconhecido weberiano: Grande parte daquilo que passa por ser análise marxista na sociologia é perfeitamente compatível com o esquema weberiano, sem que isso signiique em absoluto que essas duas linhas de pensamento sejam compatíveis entre si. Cada qual deve ser tomada pelos seus respectivos méritos – e é claro que se eu não estivesse convencido dos méritos intrínsecos ao esquema weberiano, não teria escrito este livro. De qualquer modo, não se trata de defender este contra aquele, mas assinalar sem margem para equívocos a especiicidade de cada qual e com isso recordar que também nesse caso as posições ecléticas são insustentáveis (Cohn, 1979, p. 12). O texto não se estenderá quanto a méritos e deméritos dos esquemas marxiano e weberiano; apenas deixará indicado, assim como foi observado por Cohn, que a junção entre Marx e Weber (webero-marxismo ou marxismo weberiano) é insustentável devido às suas especiicidades. Esta problemática ocorre repetidamente no interior da obra de Tragtenberg, como será visto no decorrer deste capítulo, que está dividido em quatro seções, além desta introdução. Na segunda seção, toma-se a categoria burocracia como sendo a raiz da pesquisa, por ter sido esta categoria um ponto central na pesquisa desenvolvida por Tragtenberg. Nesse item, interessa apresentar tal categoria (weberiana) como ela realmente é: uma abstração arbitrária (Paço-Cunha, 2010b). Na terceira seção, será trazida a discussão metodológica em Tragtenberg, na qual é possível observar seu distanciamento em relação à análise da sociedade empreendida por Marx. Na quarta seção, o Marx que se faz presente em Tragtenberg será apresentado ao leitor. Por im, na quinta seção, são apresentadas as considerações sobre as contribuições e limitações explicativas do pensamento de Tragtenberg em função do modo de apreender Marx. Busca-se, como aponta Carleial (2012), demonstrar o que do sistema tragtenbergiano não pode ser refutado, carecendo ser aprimorado, com o objetivo de calibração do instrumento analítico legado à contemporaneidade por Tragtenberg. Espera-se que este texto suscite a discussão acadêmica sobre o Marx em Tragtenberg, tal como tem ocorrido com Weber. 2 OBLITERAÇÃO DA RELAÇÃO-CAPITAL O livro Burocracia e ideologia foi baseado na tese de doutorado de Tragtenberg. Nessa obra, o autor pretende responder algumas perguntas, como as reproduzidas a seguir. Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução ao problema 265 Sendo o estudo da teoria da administração a análise da legitimação burocrática do poder, seja privado ou público, essa teoria de caráter repressivo aparece na ênfase na adaptação e controle do homem. Por que sua preocupação com o nível do conhecimento permanece instrumental e o conhecimento do humano, limitado àquelas partes passíveis de controle? Em que medida a passagem do vapor à eletricidade condicionou o surgimento das teorias de Taylor-Fayol como ideologia administrativa de acumulação? E como o capitalismo de organização encontrou em Mayo sua ideologia administrativa explícita? Quais as condições históricas alemãs que permitiram a passagem da teoria da administração para a sociologia da organização em Weber? Quais os limites e ambições da explicação weberiana? Quais os níveis de articulação de sua metodologia com sua sociologia da organização, do seu racionalismo burocrático com o capitalismo moderno e da sua neutralidade axiológica com o liberalismo político? (Tragtenberg, 1985, p. 15). Diante dessas perguntas, Tragtenberg desenvolve sua pesquisa indicando que as teorias da administração são representações intelectuais de um momento histórico-social especíico, sendo esta teoria transitória e ideológica na medida em que o saber cientíico apresenta uma representação distorcida da realidade em nome da permanência e da reprodução de interesses especíicos das classes dominantes enquanto interesses gerais. Em sua análise sobre Max Weber, o autor aponta o problema metodológico da neutralidade de valores e adverte sobre as limitações de Weber, mas sempre lembrando o contexto em que aquele autor se encontrava. Tragtenberg se concentra na categoria da burocracia, assinalando seu surgimento, desenvolvimento e a problemática da crescente burocratização da sociedade capitalista. Elege Max Weber como um dos maiores críticos da burocracia e não seu ideólogo, contrariando assim muitos outros estudiosos, que apontam Weber como o seu maior defensor – especialmente nas vulgarizações da chamada teoria geral da administração. Tragtenberg (1985) indica a evolução das formas de burocracia e menciona que o surgimento do primeiro tipo se deu nas sociedades asiáticas, com o modo de produção asiático. A partir daí, Tragtenberg retoma as obras de autores que se dedicaram a operacionalizar o conceito de burocracia, perpassando assim por Weber e Hegel e salientando a importância desta análise. Como nascemos, vivemos e morremos em organizações formais, as teorias explicativas destas são de primordial importância, principalmente, quando pela intervenção do Estado na economia, o próprio Estado aparece como organização. Daí, qualquer análise da teoria administrativa deve partir da burocracia enquanto poder, para atingir a burocracia na estrutura da empresa (Tragtenberg, 1985, p. 16). A airmação anterior guarda problemática de difícil solução, pois o autor busca a explicação da teoria da administração por meio da teoria da burocracia de Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 266 Weber, que encobre uma generalidade de relações, entre elas a relação de valorização do capital pelo trabalho. Ao contrário do veriicado no pensamento de Weber, [n]o interior das elaborações marxianas, tal relacionamento (capital x trabalho) é categorial porque tem na objetividade existência. Tanto o capital quanto o trabalho com o qual se relaciona são categorias existentes na própria efetividade por meio das quais se pode realizar uma reprodução no pensamento da lógica operante dessa mesma efetividade. Antes, porém, de serem reproduções no pensamento, as categorias têm existência objetiva, nascem das relações sociais reais. Não apenas têm nessas relações a sua origem, mas são essas relações mesmas que se expressam por essas categorias. As categorias são, por isso, abstrações razoáveis (Paço-Cunha, 2011b, p. 3). O conceito de organização burocrática enquanto um tipo ideal weberiano é erigido não a partir das relações sociais reais, mas a partir de mistiicações que acabam obliterando estas relações. Construído levando-se em conta apenas a aparência e não as relações efetivas, este conceito é denominado abstração arbitrária. No entanto, Weber foi um dos mais importantes teóricos da burocracia, considerado pelos estudiosos da sociologia das organizações o ponto principal para a análise deste conceito. Talvez, por este motivo, Tragtenberg tenha dado tanta importância ao autor em sua obra. A própria estrutura de Burocracia e ideologia foi focada em uma análise mais aprofundada na obra de Max Weber. Tragtenberg aborda a crise da consciência liberal alemã na qual Weber estava inserido, indicando o momento turbulento por qual passava a Alemanha e a reação intelectual de Weber a este período. Dedica também um capítulo exclusivo ao sociólogo, descrevendo sua metodologia, seus avanços e limitações. Tragtenberg (1985, p. 189) entende que Weber, em sua teoria das organizações, (...) na qual a burocracia se esgota como organização formal, não explica situações em que a burocracia não é agente dos detentores do poder econômico – como sob o capitalismo clássico –, mas deinida como um poder econômico e politicamente dominante. E continua: Enquanto Weber, na sua análise da burocracia, preocupa-se com a enumeração de critérios que a constituem, parece-nos fundamental estudá-la na sua dinâmica interna, isto é, a maneira pela qual ela estrutura suas raízes na sociedade e o princípio em torno do qual ela aumenta o seu poder. (…) Enquanto na indústria capitalista a burocracia em Weber deine-se como órgão de transmissão, isso não se dá numa estrutura em que um partido único detém o monopólio do poder total, pois o burô político do Partido Comunista da URSS não se reduz a transmissão e execução. Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução ao problema 267 O acesso aos cargos do partido não depende de conhecimento técnico ou proissional, não é necessário ser remunerado pelo partido para ter cargo importante. A burocracia, participando da apropriação da mais-valia, participa do sistema de dominação (Tragtenberg, 1985, p. 189). Nesta passagem o autor aponta que a proposição de Weber sobre as organizações apresenta um caráter essencialmente descritivo e que sua teoria não abarca todos os tipos de organizações burocráticas. Para compreender melhor como age a burocracia, Tragtenberg indica ser fundamental estudar a sua dinâmica interna, ou seja, a maneira pela qual ela estrutura suas raízes na sociedade e o princípio em torno do qual ela aumenta o seu poder. Nessa airmação percebe-se a forma como o autor pretende estudar aquela categoria; ele não parte das relações que a arquitetaram, mas das relações superestruturais, diicultando o entendimento de como a categoria burocracia foi erigida e de qual forma a burocratização poderá ser superada, por exemplo. Do modo como analisa a burocracia, Tragtenberg contribui com a proposição de Weber sobre as organizações, mas não a supera, pois comete os equívocos metodológicos do próprio Weber. Isto ocorre quando ele pretende expor a maneira pela qual a categoria weberiana de burocracia estrutura suas raízes nas relações sociais e não o contrário (como as relações sociais capitalistas estruturaram a burocracia). Assim, Tragtenberg expõe apenas a forma aparente na qual a burocracia se apresenta, resultando em uma análise que não concebe as relações sociais efetivas, mas apenas sua supericialidade. O autor não leva em consideração ainda que, como sugerido antes, o conceito de burocracia, em Weber, acaba por encobrir uma generalidade de coisas, pois pretende, a partir do estudo de um fenômeno superestrutural, explicar como este se enraíza na sociedade e não como as relações sociais estruturam a burocracia. [Assim,] o conceito de burocracia em Weber é uma abstração arbitrária na medida mesma em que obstrui a apreensão da relação-capital no fundamento da produção capitalista e que se apresenta na forma mistiicada da empresa e do Estado (além de outras formas), isto é, apresenta-se como uma forma que oblitera este seu próprio caráter fundamental. Nesse sentido, a conjunção entre Marx e Weber está operativamente obstruída, é a diluição do projeto marxiano em revelar a relação fundamental entre capital e trabalho e o processo de valorização do primeiro pelo segundo (Paço-Cunha, 2011a, p. 5). Outro importante autor analisado por Tragtenberg foi Hegel, que, em sua opinião, “foi quem primeiro operacionalizou no plano lógico o conceito de burocracia em nível do Estado e da corporação privada” (Tragtenberg, 1985, p. 21). Para Tragtenberg, a teoria de Hegel aplicada à burocracia encobre uma realidade que o próprio autor desconhece, reduzindo arbitrariamente a oposição e traindo o real. Dessa forma, ele entende que a teoria formulada por Hegel não relete efetivamente o existente. 268 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Mesmo reconhecendo a problemática implícita ao conceito de burocracia de Hegel, Tragtenberg concluiu, após uma análise das sociedades pré-capitalistas e capitalistas, [que] a emergência da burocracia patrimonial como poder político nas sociedades orientais e pré-colombiana antecede de muito o aparecimento da burocracia funcional da indústria moderna, conirmando o aforismo hegeliano de que a substância do Estado é a realização do interesse universal enquanto tal (da burocracia) (Tragtenberg, 1985, p. 44). O autor, nessa formulação, assim como em outros momentos, elegeu a categoria burocracia como sendo a peça fundamental para se analisar a sociedade, seja esta sociedade pré-colombiana, seja capitalista, ou qualquer outra. Esta análise de Tragtenberg é muito parecida com a visão idealista da história. Nessa última passagem está ausente que o interesse universal ocorre somente na aparência. Um pouco à frente ele completa: o Estado aparece como triunfo da razão hegeliana, onde a maturidade política é conquistada por mediação da burocracia, que introduz a unidade, na diversidade da sociedade civil. O Estado como burocracia acabada gera a sociedade civil, o regresso de Marx a Hegel (Tragtenberg, 1985, p.44). A sociedade civil representa não só o conjunto da sociabilidade burguesa (capitalista), mas também a base material da sociedade. Tragtenberg faz uma airmação às avessas quando diz que o Estado como burocracia acabada gera a sociedade civil, pois somente por meio de um posicionamento idealista esta airmação poderia sustentar-se, sendo, então, oposta à concepção materialista de Marx. Em A ideologia alemã, Marx e Engels pontuam algumas destas inversões dos idealistas. Essa concepção (materialista) da história assenta, portanto, no desenvolvimento do processo real da produção, partindo logo da produção material da vida imediata, e na concepção da forma de intercâmbio intimamente ligada a esse modo de produção e por ele produzida, ou seja, a sociedade civil nos seus diversos estágios, como base de toda a história, e bem assim na representação da sua ação como Estado, explicando a partir dela todos os diferentes produtos teóricos e formas da consciência – a religião, a ilosoia, moral etc. etc. – e estudando a partir destas o seu nascimento; desse modo, naturalmente, a coisa pode também ser apresentada na sua totalidade (e por isso a ação recíproca dessas diferentes facetas umas sobre as outras). Ao contrário da visão idealista da história, não tem de procurar em todos os períodos uma categoria, pois permanece constantemente no solo histórico; não explica a práxis a partir da ideia, explica as formações da ideia a partir das práxis material, e chega, em consequência disso, ao resultado de que todas as formas e produtos da consciência podem ser resolvidos, não pela crítica espiritual, pela dissolução na “Consciência de Si” ou pela Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução ao problema 269 transformação em “fantasmas”, “espectros”, “visões” etc., mas apenas pela subversão prática das relações sociais reais de que derivam essas fantasias idealistas (...) (Marx e Engels, 2009, p. 57-58). Grosso modo, observa-se que aqueles posicionamentos de Tragtenberg fazem com que o autor se distancie do objetivo de Marx em revelar a relação fundamental entre capital e trabalho. Dessa forma, Tragtenberg acaba realizando uma análise da sociedade partindo de um fenômeno superestrutural, a burocracia – ao menos em sua forma estatal. Como foi dito por Meneghetti (2009, p. 85), “a concepção de Tragtenberg em relação à burocracia é essencialmente weberiana”. Esta concepção permite muito facilmente a transição entre Estado, empresa capitalista e outras formas de organizações. A categoria burocracia em Tragtenberg também é de cunho weberiano e de amplo sentido, que comporta em seu interior várias relações distintas, sem mostrar, porém, suas diferenças. Esta categoria, segundo Paço-Cunha, não expressa (...) se as relações são de geração de valor de uso ou de prestação de serviço ao Estado, se são de geração de valor de troca e, portanto, de exploração do trabalho estranho ou de promoção dos interesses de classe como sindicatos, etc. Sob tal categoria, portanto, desaparecem as determinidades formais da empresa capitalista, do partido, do Estado etc. (Paço-Cunha, 2010b, p. 9). Percebe-se então que o grande problema da burocracia, do ponto de vista weberiano, é que ela serve para descrever vários tipos de organizações, sem que o autor pontue as abissais diferenças entre Estado e empresa capitalista, por exemplo, no que tange às relações de fundamento, às contradições sociais e, igualmente, ao relacionamento recíproco entre estas esferas ou complexos (político e econômico). Diante disso, Tragtenberg acaba por seguir a obliteração da relação-capital que se pode encontrar em Weber, descrevendo apenas as formas mistiicadas com que se apresentam as relações sociais, inclusive a de valorização do capital pelo trabalho. Podem-se encontrar as raízes para tal mistiicação na opção de Tragtenberg pelo uso da metodologia semelhante à de Weber, ou seja, não embasada na materialidade sustentada por Marx, como se verá a seguir, ao analisar-se a metodologia de Tragtenberg. 3 METODOLOGIA DE MAURÍCIO TRAGTENBERG Tem-se um grande impasse no que diz respeito ao método da pesquisa de Maurício Tragtenberg. Entre os próprios estudiosos de Tragtenberg não há um consenso sobre suas posições, porque este transita entre várias vertentes. (...) mas o próprio Maurício se deine como um marxista anarquizante (Tragtenberg, 1991). Declara que aceita as teses econômico-sociais de Marx, mas se opõe ao marxismo-leninismo-stanilismo-trotskismo que gerou o fetichismo do partido político e da representação parlamentar e, na opinião dele, é responsável pelo fracasso das 270 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil experiências socialistas. Defende que o anarquismo tem uma contribuição importante no nível das superestruturas, na análise dos movimentos sociais, na questão da luta contra a burocracia e na defesa da liberdade como valor. (...) Por outro lado, a análise da obra de Tragtenberg permite situá-lo entre os anarco-marxistas, que também são denominados marxistas libertários, socialistas libertários, comunistas libertários, comunistas conselhistas ou marxistas autogestionários (Paes de Paula, 2008, p. 953). Em virtude desse posicionamento metodológico complacente com várias correntes – não só o estudo de Marx por meio das obras dele mesmo –, o autor acaba inserindo em sua obra uma abordagem, muitas vezes, afastada da de Marx, fazendo com que ele se distancie do objetivo marxiano de desvelar a relação contraditória entre capital e trabalho. Esta questão das vertentes do marxismo e os problemas metodológicos advindos de posicionamentos diferentes ao marxismo “ortodoxo” foram abordados por Lukács em História e consciência de classe, quando ele airma: Suponhamos, pois, mesmo sem admitir, que a investigação contemporânea tenha provado a inexatidão prática de cada airmação de Marx. Um marxista “ortodoxo” sério poderia reconhecer incondicionalmente todos esses novos resultados, rejeitar todas as teses particulares de Marx, sem, no entanto, ser obrigado, por um único instante, a renunciar a sua ortodoxia marxista. O marxismo ortodoxo não signiica, portanto, um reconhecimento sem crítica dos resultados da investigação de Marx (...). Em matéria de marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao método. Ela implica a convicção cientíica de que, com o marxismo dialético, foi encontrado o método de investigação correto, que esse método só pode ser desenvolvido, aperfeiçoado e aprofundado no sentido dos seus fundadores, mas que todas as tentativas para superá-los ou “aperfeiçoá-lo” conduziriam somente à banalização, a fazer dele somente um ecletismo – e tinham necessariamente de conduzir a isso (Lukács, 2003, p. 64). Sem perder de vista todos os avanços realizados por Tragtenberg, não se pode deixar de questionar essa articulação metodológica problemática na qual o autor lerta com posições diretamente contrárias – tenha-se em mente também Cohn (1979), indicado na introdução deste capítulo. O problema aqui não é a impossibilidade de uma articulação entre categorias baseadas em metodologias diferentes. O problema antes de qualquer coisa surge em decorrência da falta de razoabilidade das abstrações weberianas, incapacitando desta maneira qualquer tentativa de alargamento das discussões. Em sua análise, Tragtenberg atribui à burocracia o papel unificador da sociedade civil com o Estado. A burocracia age antiteticamente: de um lado responde à sociedade de massas e convida a participação de todos, de outro, com sua hierarquia, monocracia, formalismo e opressão airma a alienação de todos, torna-se jesuítica (secreta), defende-se pelo sigilo administrativo, pela coação econômica, pela representação política. (…) Em suma, ela une a sociedade civil ao Estado, efetua a viagem de volta de Marx a Hegel, Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução ao problema 271 converte sua razão histórica na razão na história, do contingente passa à essencialidade (Tragtenberg, 1985, p. 190) Nessa passagem, Tragtenberg faz uma análise isolando a sociedade civil do Estado, separa as duas categorias, expressando corretamente um fato concreto. O autor buscou, porém, uma maneira de amalgamar sociedade civil e Estado por meio de uma solução silogística ao estilo hegeliano, pois a mediação capaz de unir esta e aquela categoria é, na opinião de Tragtenberg, a burocracia. Esta solução, no entanto, é problemática, uma vez que o Estado, na forma de sua burocracia, não pode mediar sua própria relação. De tal maneira, a burocracia não conigura um termo médio, uma particularidade entre a singularidade (sociedade civil) e a universalidade (Estado), desconsiderando, ainda, o fato de o último ser um falso universal. Do ponto de vista marxiano, o Estado é fruto das relações sociais, sendo de vital importância partir-se das relações fundamentais para então compreender o Estado. Algumas linhas depois, Tragtenberg airma que a análise da burocracia enquanto dominação foi iniciada por Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Por realizar uma análise condescendente com o ponto de vista weberiano de burocracia, parece haver aqui uma imputação a Marx de um posicionamento weberiano sobre burocracia. Dominação é algo certamente presente nas análises de Marx neste livro, mas o que fornece substância a ela é a luta de classes. Apenas deste ponto de partida, isto é, das relações materiais e da luta de classes, apreender-se-ia a burocracia como uma falsa mediação. A burocracia, assim como o Estado enquanto complexo que a comporta, não é senão produto das contradições sociais e, em última instância, funciona na direção de preservar e reproduzir o domínio da classe do capital. Tragtenberg não aponta ao certo a passagem de O 18 de brumário de Luís Bonaparte na qual Marx realiza a referida análise. Sendo assim, extraiu-se desta obra a passagem que mais se aproxima de tal airmação: (...) sob a monarquia absoluta, durante a primeira Revolução, sob Napoleão, a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a restauração, sob Luís Filipe, sob a república parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que lutasse por estabelecer seu próprio domínio (Marx, 1978, p. 114). A burocracia enquanto instrumento de dominação, aludida por Marx, refere-se ao fato de a “estrutura do Estado” (Marx, 1978, p. 114) ser o instrumento usado pela classe burguesa para, mediante o seu controle, preparar e posteriormente manter o domínio da sociedade (ser a classe dominante) na França daquele período. Trata-se de algo que se afasta de uma determinação conceitualmente geral, como se encontra em Weber, cuja análise da burocracia como dominação não se vincula ao antagonismo fundamental, mas, ao contrário, é identiicada por toda a história. A burocracia para Marx, enquanto categoria do real, não engloba uma ininidade de organizações, mas remete sempre à estrutura do Estado, como ica 272 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil nítido na seguinte passagem: “Além da hipoteca que lhe é imposta pelo capital, a pequena propriedade está ainda sobrecarregada de impostos. Os impostos são a fonte de vida da burocracia, do exército, dos padres e da corte, em suma, de toda a máquina do Poder Executivo” (Marx, 1978, p. 120). O conceito de burocracia por uma ótica weberiana, ao contrário do posicionamento marxiano, tem a capacidade de englobar não só toda a máquina do Poder Executivo, mas também qualquer “organização” que valorize capital ou não, em um só conceito (com escolas, sindicatos etc.). A teoria da dominação burocrática de Weber é descrita pelo próprio Tragtenberg da seguinte forma: Weber distingue no conceito de política duas acepções, uma geral e outra restrita. No sentido mais amplo, política é entendida por ele como “qualquer tipo de liderança independente em ação”. No sentido restrito, política seria liderança de um tipo de associação especíica; em outras palavras, tratar-se-ia da liderança do Estado. Este, por sua vez, é defendido por Weber como “uma comunidade humana que pretende o monopólio do uso legítimo da força física dentro de determinado território”. Deinidos esses conceitos básicos, Weber é conduzido a desdobrar a natureza dos elementos essenciais que constituem o Estado e assim chega ao conceito de autoridade e de legitimidade. Para que um Estado exista, diz Weber, é necessário que um conjunto de pessoas (toda a sua população) obedeça à autoridade alegada pelos detentores do poder no referido Estado. Por outro lado, para que os dominados obedeçam é necessário que os detentores do poder possuam uma autoridade reconhecida como legítima. (…) A autoridade pode ser distinguida segundo três tipos básicos: a racional-legal, a tradicional e a carismática. Esses três tipos de autoridade correspondem a três tipos de legitimidade: a racional, a puramente afetiva e a utilitarista. O tipo racional-legal [dominação burocrática] tem como fundamento a dominação em virtude da crença na validade do estatuto legal e da competência funcional, baseada, por sua vez, em regras racionalmente criadas. A autoridade desse tipo mantém-se, assim, segundo uma ordem impessoal e universalista, e os limites de seus poderes são determinados pelas esferas de competência, defendidas pela própria ordem. Quando a autoridade racional-legal envolve um corpo administrativo organizado, toma a forma de estrutura burocrática (Tragtenberg, 1997, p. 14). Após essa passagem mais longa, nota-se que a dominação burocrática (teoria weberiana) traz à baila essencialmente um caráter mistiicador da relação-capital, pois oculta as relações fundamentais na qual esta própria categoria é erigida. Isto ocorre devido a um desenvolvimento metodológico que não leva em conta o inter-relacionamento estrutural fundamental entre o capital e o trabalho, obliterando dessa maneira os fenômenos infraestruturais, que ediicam os fenômenos da superestrutura. O objetivo de Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte não era descrever esse tipo de dominação burocrática, mas explicitar as lutas de classe na França, a verdadeira força motriz da luta política. A burocracia do Estado foi apenas uma das ferramentas – pense-se também no exército, nos impostos, nos juristas etc. – Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução ao problema 273 apresentadas por Marx, que foram utilizadas pela classe burguesa para que ocorresse a dominação de uma classe sobre as outras naquele determinado período. Esse posicionamento eclético de Tragtenberg fez com que o autor empregasse uma metodologia com traços das teorias de Marx e Weber. Na análise da burocracia, o autor apresenta um posicionamento mais próximo de Weber que de Marx, contribuindo com a apreciação de Cohn (1979), exposta na introdução deste texto. Por essa proximidade de Tragtenberg com as teorias de Max Weber, o autor acabou por analisar Marx por um ponto de vista weberiano, em uma clara tentativa de aproximação das obras destes dois autores. 4 ANALISANDO MARX POR UMA ÓTICA WEBERIANA Na obra Burocracia e ideologia, Tragtenberg faz algumas airmações que comportam um grande complexo de problemas, apresentando Marx muitas vezes por uma ótica weberiana, imputando posicionamentos que Marx não teve e em outros momentos lamentando por algo que ele não se propôs a fazer. Estas cobranças em alguns casos expressam um posicionamento diretamente contrário à própria elaboração de Marx. Em uma passagem de seu livro, Tragtenberg airma: Karl Marx fornece uma visão sociológica inalista, que perpassa seu pensamento no nível de modelos macrossociais, surgindo como reação ao desaio da revolução inglesa, onde a divisão manufatureira do trabalho como combinação de ofícios independentes, implica a concentração do processo produtivo, criando estruturas reificadoras do homem. Ao lado da importância atribuída à fábrica como instituição decisiva da sociedade industrial, Karl Marx incidentalmente aborda o processo de burocratização da empresa, a patologia industrial, sem, porém, desenvolver sistematicamente uma teoria da organização formal (Tragtenberg, 1985, p. 69). Primeiramente, cabe perguntar o que seria essa visão sociológica inalista. Pode-se apenas levantar hipóteses sobre o real sentido dela. Nesse caso, a visão sociológica finalista parece assumir o sentido de uma teleologia presente na história, como em Hegel, algo que certamente se difere por completo do pensamento marxiano. Entretanto, se é que o pensamento marxiano é redutível à sociologia, deve-se considerar que se trata muito mais de uma razão interessada e, por isso mesmo, revolucionária; algo mais autêntico que o que o termo finalista possa expressar. O segundo ponto a ser destacado na citação é a airmação de Tragtenberg sobre a forma incidental com que Marx abordou o processo de burocratização. O que Tragtenberg chama de abordagem incidental do processo de burocratização nada mais é do que a constatação do próprio Marx de que o desenvolvimento da produção capitalista traz consigo a regimentação do trabalho sob um despotismo organizado – nem por isso autoritário no sentido corrente –, forma mais civilizada 274 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil e reinada de exploração do trabalho, e não um processo de burocratização per se, como nos moldes weberianos (Paço-Cunha, 2010a, p. 35-36). Por último, na parte inal do citado trecho de Burocracia e ideologia, Maurício Tragtenberg lamenta que Marx não tenha desenvolvido uma teoria da organização formal, apresentando assim uma cobrança indevida. Sobre esta cobrança a Marx, Paço-Cunha argumenta: [Marx] não desenvolve [uma teoria da organização] precisamente porque não poderia ter feito jamais, como também não poderia nunca ter falado de organização, já que organização formal, burocrática, instância de controle são categorias que guardam um único e mesmo registro, isto é, o weberiano, e do ponto de vista do padrão de cientiicidade que Marx mesmo alcançou tais categorias eliminam as diferenças especíicas e apagam, portanto, a particularidade das relações sobre as quais Marx se debruçou (Paço-Cunha, 2010b, p. 14). Talvez em um esforço de aproximação entre Marx e Weber, Tragtenberg tenha, por esse motivo, avaliado o primeiro pelas realizações teóricas do segundo, sem questionar a validade desta operação em si ou as próprias problemáticas inerentes a uma teoria das organizações formais que, como indicado anteriormente, traz consigo a obliteração da relação-capital, das contradições efetivamente existentes. O que é preciso ter em mente é que em nenhum momento Marx se propôs a teorizar sobre as organizações formais, até mesmo porque quem desenvolveu esta teoria foi Weber, décadas depois. No interior de Burocracia e ideologia, percebe-se um forte esforço de seu autor em tentar articular os estudos de Weber com os de Marx. Ainda na introdução de sua obra, Tragtenberg propõe indicar quais os limites e as ambições da explicação weberiana. Apresenta várias críticas sólidas em direção à metodologia desenvolvida por Weber, apontando algumas das arbitrariedades e das limitações de sua sociologia. Nesse esforço de articulação metodológica, Tragtenberg airma: O importante é a possibilidade de despertar do sono dogmático, pensar e reletir criticamente com Weber e não polemizar contra Weber, sem subterfúgios, escamoteações dos problemas centrais, penetrando na relexão efetiva para superar em Weber as limitações do tempo e contexto social em que se situa a sua obra; discuti-la sem compromissos ideológicos que impliquem o sacrifício do intelecto com o respeito que uma obra do porte que ele nos legou implica (Tragtenberg, 1985, p. 156-157). Quando Tragtenberg expõe que o importante é pensar e reletir criticamente com Weber e não polemizar com Weber, o autor, direta ou indiretamente, condena os críticos de Weber que por muitas razões – algumas explicitadas até mesmo por Tragtenberg – não consideram ser possível a articulação das categorias de origem weberiana com o marxismo. Na passagem supracitada, não há um esforço para uma possível articulação entre categorias advindas de metodologias diferentes, Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução ao problema 275 mas um esforço para a continuação do legado weberiano, mesmo com todas as limitações de sua sociologia. A teoria weberiana caminha na direção contrária no que se refere à busca de expressar a relação-capital. A crítica, por exemplo, de Mészáros (2008) e outros autores a Weber surgem não por uma falta de esforço por parte destes, ou de um dogmatismo tacanho, mas pela impossibilidade real de uma articulação válida entre o weberianismo e Marx. Devido à esquiva dos problemas materiais, István Mészáros (2008), por exemplo, apontou tanto quanto foi possível a radical ausência do relacionamento estrutural entre capital e trabalho no conjunto da obra de Weber, relacionamento este que encontra lugar central no projeto marxiano em revelar a lógica da coisa, isto é, da forma particular da produção na qual nos encontramos (Paço-Cunha, 2011a, p. 5). O esforço de articulação categorial entre Marx e Weber, realizado por Tragtenberg, acabou criando neste um posicionamento mais complacente com as teorias de Weber. Isto fez com que Tragtenberg deixasse de explicitar as abissais diferenças entre, por exemplo, a categoria burocracia de Weber e a burocracia advinda dos estudos de Marx que alude a esta categoria somente no âmbito do Estado e sua derivação a partir das contradições sociais fundamentais. Não é pelo motivo de Hegel, Marx e Weber terem tratado da categoria burocracia que uma tenha de ser sinônimo da outra. Antes, deve ser levado em conta o contexto histórico e metodológico em que essa categoria foi erigida. Caso contrário, esta articulação da burocracia como uma categoria que expresse relações reais terá diiculdades em expressar as coisas enquanto tais, isto é, em expressar a lógica própria da processualidade efetiva da sociabilidade presente. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra Burocracia e ideologia de Maurício Tragtenberg é ainda hoje de fundamental importância para estudiosos de várias áreas, principalmente as ciências sociais. Trata-se de um livro produzido por uma análise crítica do autor, sobretudo em relação às teorias da administração, que, segundo ele, reletem os interesses das classes dominantes, assumindo assim um caráter ideológico. A importância da obra ganha destaque ainda ao lembrar que o autor produziu grande parte de seus escritos durante o período da Ditadura Militar do Brasil, o que sem dúvidas é mais um mérito para Tragtenberg, devido ao conteúdo de suas análises e críticas sociais, realizadas em um momento de grande censura e perseguições políticas. Não obstante todos os seus méritos e avanços, Tragtenberg faz análises e airmações limitadoras quanto à potencialidade de construção de uma explicação do real que coloque na pauta das discussões a emancipação humana – em seu 276 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil sentido radical. Nesta pesquisa, buscou-se indicar alguns destes pontos, focalizando principalmente a categoria burocracia. Apontou-se que a análise de Tragtenberg em relação à burocracia apresenta um caráter essencialmente weberiano (Meneghetti, 2009). A partir disso, advertiu-se que o conceito weberiano de burocracia guarda em seu interior a obliteração das relações fundamentais entre capital e trabalho, sendo este pensamento diametralmente oposto ao de Marx no sentido ontoepistêmico, razão pela qual são problemáticas algumas considerações realizadas por Tragtenberg. Não foi objetivo deste capítulo negar a validade da categoria burocracia, mas apenas pontuar as especiicidades desta no pensamento de Tragtenberg. Em vários momentos de sua obra, Tragtenberg parece retirar de cena o relacionamento entre capital e trabalho, e o processo de valorização do primeiro pelo segundo, assim como Weber. Em vez disso, o autor traz à baila a luta entre as burocracias das empresas privadas e a pública, e o problema da burocratização como empecilho para a unidade de classe. O grande problema deste posicionamento é que ele desloca as bases materiais da produção capitalista sobre a qual a sociedade se encontra assentada e em seu lugar elege conceitos que não partem destas próprias relações. As bases materiais, na concepção marxiana, são o que fundamenta as lutas no seio do Estado. A luta contra a crescente burocratização e a luta entre burocracias representam apenas a supericialidade das relações fundamentais. Por estas relações (infraestruturais) não apresentarem um caráter imutável, assim também as relações superestruturais não podem ser consideradas imutáveis ou insuperáveis, como fazem crer alguns teóricos que analisam a sociedade de cima para baixo. Tais análises contribuem com uma miopia teórica e prática que não consegue revolucionar a sociedade, mas no máximo proporcionar alguns ganhos sociais, os quais são ameaçados logo que uma nova crise se aproxima. Percebe-se, também, uma tentativa de aproximação entre a teoria de Marx e a de Weber (webero-marxismo) no interior da obra de Tragtenberg. Assinalou-se este esforço por parte de seu autor e, posteriormente, pontuaram-se os equívocos deste posicionamento, que acaba realizando uma leitura de Marx por uma ótica weberiana e, assim, imputando a Marx um posicionamento que é contrário a ele mesmo. Outro ponto a ser precisado na obra de Tragtenberg decorre do seu posicionamento metodológico complacente com várias vertentes das ciências sociais. Não que esta postura tenha sido feita de forma tacanha, mas foi um dos motivos que levaram Tragtenberg a realisar uma análise da categoria burocracia em Hegel, Marx e Weber, sem que o autor apontasse as limitações dos desdobramentos explicativos decorrentes das abissais diferenças que existem entre elas. Em seu estudo, Tragtenberg indica, não extensivamente, as limitações da categoria burocracia em Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução ao problema 277 cada autor. Entretanto, não leva em consideração que estes conceitos – e categorias, no caso de Marx – surgiram de diferentes metodologias e por isso apresentam em seu interior diferentes anseios por parte destes autores. Não podem, assim, ser complementares sem uma problematização inteiramente dedicada à questão. Em suma, levanta-se neste capítulo uma discussão relativa a como Tragtenberg apreende Marx e o expõe em uma de suas obras mais conhecidas. Tratou-se de uma discussão introdutória que deseja fomentar o debate sobre a atualidade do pensamento de Tragtenberg, problematizando, sobretudo, os pontos nos quais deve-se avançar a partir dele. Este movimento relexivo, como postularia o próprio Tragtenberg, faz-se necessário, uma vez que a teoria é uma construção sócio-histórica e, em especial, o referido livro tem sido a chave para o caminho de uma crítica à teorização no campo da administração. REFERÊNCIAS CARLEIAL, L. Atualidade do pensamento de Ruy Mauro Marini. In: SEMINÁRIO CÁTEDRAS PARA O DESENVOLVIMENTO: AS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS DE MAURÍCIO TRAGTENBERG E RUY MAURO MARINI. Curitiba: Ipea; Capes, out. 2012. COHN, G. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. IDE, I. T. Solidariedade de gênero. In: SILVA, D. A.; MARRACH, S. A. (Org.). Maurício Tragtenberg: uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. FARIA, J. H. Economia política do poder. Curitiba: Juruá, 2004. v. 2. LOWY, M. Maurício Tragtenberg, espírito libertário. In: SILVA, D. A.; MARRACH, S. A. (Org.). Maurício Tragtenberg: uma vida para as ciências humanas. 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CAPÍTULO 10 (SUB)DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO-ECONÔMICO DO BRASIL: AS TEORIAS MODERNAS E A TESE DE RAYMUNDO FAORO1 Joilson Dias2 1 INTRODUÇÃO O estudo do papel das instituições no crescimento e, em especial, no desenvolvimento econômico é destaque na fronteira do debate econômico atual. Para entender este debate faz-se necessário perceber por que as teorias que preconizam a acumulação de insumos produtivos não explicam completamente os níveis de crescimento e desenvolvimento econômico dos países. Os modelos de crescimento econômico que estabelecem a importância dos insumos produtivos propostos por Solow (1956), Lucas (1988) e Romer (1990) enfatizam o papel preponderante destes na economia. No caso de Solow, o papel da acumulação do capital físico (K) é o destaque, enquanto Lucas demonstra o papel do capital humano (H) e Romer o da tecnologia (A). Estes três insumos determinariam o tamanho do produto da economia (Y), ou seja, Y = AF(K, H). Dessa forma, políticas de acumulação de insumos-produtos trariam como resultado maiores níveis de crescimento no longo prazo e, portanto, maior grau de desenvolvimento econômico. Assim, um nível maior de capital físico aumenta a produtividade do capital humano, enquanto maior nível de capital humano faz o mesmo com relação ao capital físico. O nível de tecnologia aumenta a produtividade de ambos os fatores. Em síntese, políticas de acumulação dos insumos produtivos são mais do que justiicadas para se obter maior nível de crescimento e desenvolvimento econômico no tempo. A pergunta em aberto é: por que as políticas econômicas que enfatizam a acumulação destes insumos produtivos estão presentes em economias desenvolvidas, mas não fortemente em economias em desenvolvimento ou menos desenvolvidas? Este paradoxo foi reportado recentemente por Horowitz (1999) e Psacharoupolos e Patrinos (2004). Segundo estes autores as taxas de retorno para cada ano adicional de educação em países menos desenvolvidos são em muito superiores às dos países desenvolvidos. 1. O autor agradece imensamente o apoio inanceiro recebido pelo Ipea/Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com o programa Cátedras para o Desenvolvimento. 2. Professor-doutor do Departamento de Economia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: jdias@uem.br 282 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil É como olhar para a história destas economias e não observar a prática das políticas de acumulação destes insumos produtivos. Portanto, a busca para explicar o não investimento em insumos produtivos levou os cientistas a indagar sobre a existência de um fator que sobrepõe os incentivos para acumulação presente nos mercados. O fator que sobreporia o papel da acumulação dos insumos produtivos seriam as instituições existentes nos países, assim, estas tornaram-se o foco de várias pesquisas, ou seja, deixaram de ter um papel coadjuvante para assumir o papel causador. As instituições neste novo papel são determinantes do nível dos insumos produtivos e, portanto, do grau de desenvolvimento da economia. A literatura usa basicamente duas metodologias para demonstrar esse papel preponderante das instituições: i) fatos históricos; e ii) técnicas econométricas. É interessante notar que as teorias que surgiram a este respeito, de certa forma, estão vinculadas aos aspectos históricos. Para entender este vínculo, resgatou-se a teoria proposta por Adam Smith para as colônias da América, cuja abordagem se assemelha à de Raymundo Faoro para o Brasil. Em a Riqueza das nações, de 1776, Adam Smith expõe sua teoria para a diferença no papel da colonização das Américas: Os colonizadores levam consigo um conhecimento da agricultura e de outros ofícios úteis, superior àquele que pode desenvolver-se espontaneamente entre nações selvagens e bárbaras, no decurso de muitos séculos. Além disso, levam consigo o hábito da subordinação, alguma noção sobre o governo regular existente em seu país de origem, sobre o sistema de leis que lhe dá sustentação e sobre uma administração regular da justiça e, naturalmente, implantam algo do mesmo tipo na colônia (Smith, 1983, volume II, p. 56). Esta teoria possui dois aspectos importantes: i) o capital humano dos colonizadores era superior e, portanto, as colônias que receberam mais imigrantes europeus acabavam alcançando um patamar mais elevado no seu desenvolvimento econômico; ii) as instituições que os colonizadores levaram estabeleciam subordinação, noção de governo e um sistema de leis e justiça herdadas da pátria mãe. A herança institucional e as demais teorias apresentadas na revisão de literatura parecem explicar o desenvolvimento histórico-econômico dos países. Estas serão utilizadas para interpretar a teoria de “estamento burocrático”3 proposta por Raymundo Faoro e, assim, melhor explicitar o desenvolvimento econômico do Brasil ao longo da sua história. A referida teoria será apresentada na seção seguinte à das teorias que preconizam o papel importante das instituições. Este artigo propõe-se a comparar as teorias sobre o desenvolvimento econômico dos países, comumente aceitas na literatura econômica, com a de Raymundo Faoro para o Brasil. 3. Derivado da palavra alemã stand que signiica social standing, standing position e rank. (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 283 2 REVISÃO DE LITERATURA: O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES É importante enfatizar que o papel das instituições sempre esteve presente de alguma forma na literatura econômica, ainda que não recebendo a mesma importância na atualidade. Por exemplo, Wolf Júnior (1955) deixou claro que em alguns países a baixa quantidade de capital físico, humano e de tecnologia estava associada à qualidade das instituições, denominadas pelo autor right institutions. Em sua concepção, a qualidade das instituições em conjunto com os insumos produtivos determinaria o grau de desenvolvimento econômico. Assim, instituições e insumos produtivos possuíam papeis iguais no estabelecimento do desenvolvimento histórico-econômico dos países. A demonstração da tese do papel preponderante das instituições em autores mais recentes está associada ao desenvolvimento das Américas. Assim, o continente foi dividido em dois grupos: i) América do Norte, que exclui o México; e ii) América Latina, que inclui o México. A análise do desenvolvimento destas colônias tornou-se crucial para compreender o desenvolvimento econômico dos países. O primeiro fator a ser explicado seria a questão da reversão do grau de desenvolvimento econômico dos dois grupos de países mencionados. Engerman e Sokolof (1997, 2002) apresentam fatos históricos da época e uma teoria muito interessante para explicar o reverso da fortuna entre os dois grupos de países. Segundo os autores, entre 1500 e 1700 os países latino-americanos eram muito mais ricos que os Estados Unidos e o Canadá. Por exemplo, Cuba e Barbados tinham renda per capita superior em 50% e 67% a dos Estados Unidos e Canadá. Mesmo em 1800, quando os Estados Unidos ultrapassaram a maioria das economias latinas, a sua renda per capita era inferior a dos países do Caribe e Haiti. Portanto, as explicações teóricas concentram-se em explicar o que ocorreu para este reverso no desenvolvimento econômico e, por extensão, com a riqueza destas nações. A primeira explicação proposta foi efetuada por Engerman e Sokolof (1997) e baseia-se na forma da apropriação do produto marginal dos trabalhadores nas Américas. O produto marginal do trabalho era elevado nas Américas comparado ao da Europa, o que atraiu investidores europeus. Os imigrantes europeus que investiram na América do Norte, excluindo México, o izerem in loco utilizando seu próprio trabalho como forma de produção. Já os europeus que investiram na América Latina utilizaram-se, como forma principal de produção, de escravos.4 As implicações destes fatos, segundo Engerman e Sokolof (1997), eram de duas naturezas: 4. Segundo os autores, até 1900, apenas 20% da América Latina eram habitados pelos europeus e, somente, no inal do século tornaram-se predominantes na Argentina e Chile. Nos Estados Unidos, segundo o Censo de 1790 e Cubberley (1920), 91,8% da população nos Estados Unidos eram de ingleses e 5,6%, de origem alemã. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 284 • o produto marginal dos trabalhadores escravos na América Latina era enviado à Europa, especialmente para Portugal e Espanha, fomentando o mercado daqueles países; e • na América do Norte, Estados Unidos e Canadá, o produto marginal era apropriado pelos imigrantes europeus, portanto, fomentando o mercado local. Esta diferença entre os mercados iniciais gerou mais tarde o reverso do desenvolvimento das economias, com o esgotamento das riquezas naturais locais, reforçando, juntamente com os fatos anteriores, a hipótese de que a imigração europeia seria importante para explicar o desempenho histórico-econômico dos países, inclusive para o salto no desenvolvimento econômico, do início do século, da Argentina e do Chile em relação aos demais países Latinos. Portanto, à teoria inicial de maior capital humano e instituições soma-se a de mercado local. Contudo, devido as estes fatos, a pergunta muda de direção e torna-se a seguinte: por que houve a imigração europeia inicial mais forte para os países do Norte, Estados Unidos e Canadá, e menos para os países latinos? Uma nova teoria, colocada por Sachs (2000, 2001) e Acemoglu, Johnson e Robinson (2001), surge associada às condições climáticas e de saúde dos imigrantes. Segundo os autores, a maior semelhança entre o clima europeu e o prevalente nos Estados Unidos e Canadá tornava o imigrante europeu mais apto para a sobrevivência, enquanto no clima tropical este não tinha total domínio sobre as doenças associadas. Assim, o sistema de expropriação seria mais condizente para a América Latina. Dados sobre a mortalidade dos imigrantes nas colônias corroboraram econometricamente com esta hipótese inicial; no entanto, esta teoria não explicava o reverso da fortuna ocorrido entre as economias, pelo contrário demonstrava que o estado inicial da América do Norte sempre ensejou possuir maior grau de desenvolvimento econômico desde o início. A busca por uma explicação mais consistente prevaleceu, e Acemoglu, Johnson e Robinson (2002) apresentaram dados e aspectos que explicariam o reverso da fortuna. Segundo estes autores, os imigrantes escolheram imigrar para áreas menos densamente povoadas, como Estados Unidos e Canadá, ou seja, de menor risco. A interpretação da teoria pelo autor seria a seguinte: a ocupação ordenada trouxe instituições iniciais que ao longo do tempo izeram com que insumos produtivos se tornassem mais importantes que as riquezas naturais de expropriação. Assim, o reverso da fortuna estaria contemplado. Esta hipótese é desenvolvida posteriormente por Acemoglu, Johnson e Robinson (2003, 2005) para explicar o chamado “caminho do desenvolvimento histórico dos países”.5 Segundo os autores, a volatilidade 5. Historical growth development path. (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 285 econômica atual, a instabilidade política, a qualidade da política macroeconômica etc., estariam de alguma forma ligadas às instituições iniciais. A pergunta é: quais seriam estas instituições? Para Acemoglu, Johnson e Robinson (2005), eram as que garantiam “o direito de propriedade”, e como nas colônias da América Latina não existiam instituições capazes de valer o direito de propriedade, não atrairam, portanto, com a mesma intensidade inicial os imigrantes europeus. A argumentação proposta pelos autores assevera que as colônias receberam inicialmente instituições com diferentes qualidades. A pergunta, então, torna-se a seguinte: por que estas instituições diferiam entre si inicialmente e continuam a diferir? As explicações são de duas naturezas. 1) Se as instituições das colônias reletiam as da pátria mãe, então o que aconteceu nas colônias estava associado exatamente a diferenciação no grau de desenvolvimento histórico das economias europeias entre si. Mais especiicamente, a explicação para o desenvolvimento das colônias remetia ao desenvolvimento histórico das economias europeias. 2) Se as instituições iniciais eram aproximadamente idênticas entre as colônias, então o desenvolvimento posterior destas instituições levou ao reverso da fortuna. As teorias que explicam a primeira hipótese podem ser denominadas teorias incidentais, nas quais as colonias são o que são em virtude do desenvolvimento econômico em curso nas economias que as controlavam. Destacam-se a seguir as principais correntes teóricas. 1) Origem Legal – Esta teoria proposta por Moore (1966) tornou-se popular no trabalho de Glaeser e Shleifer (2002). Os países latinos têm como origem o sistema legal baseado no código napoleônico e, portanto, diferente do código da Lei dos Comuns presente nas economias não latinas. Esta diferença teria emergido no período medieval para estabelecer o poder entre reis e lordes e, assim, teriam permanecido até o presente nas colônias. 2) Conlito social – As instituições políticas não são sempre escolhas sociais, mas de um grupo dentro da sociedade que as controla. Esta teoria foi sistematizada por North (1981). Onde os agentes que controlam o estado possuem interesses próprios. Isto equivale a dizer que os objetivos das pessoas engajadas no setor público seriam a de maximizar seus próprios ganhos e não os da sociedade. Portanto, uma teoria muito parecida com a do “estamento burocrático”. Por exemplo, de acordo com Brener (1976, 1982) o feudalismo seria um grupo de pessoas que controlava o poder do estado para extrair renda dos demais membros da sociedade. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 286 3) Teorema de Coase6 – Uma interpretação histórica do Teorema de Coase feita por North e homas (1973) equivaleria dizer que existe um sistema de trocas eiciente entre os grupos econômicos na história. Ou seja, o feudalismo era um sistema de troca, onde os senhores providenciavam aos demais em troca de seu trabalho o bem público que era a segurança. As teorias que desconsideram a diferença entre as instituições iniciais e colocam a importância do desenvolvimento destas no decorrer da história das economias têm como fundamento o seguinte: as instituições são relexos da escolha das pessoas e, portanto, alteram-se no tempo, conforme as alterações nos poderes estabelecidos pela sociedade. Estas teorias podem ser resumidas como a seguir. 1) Mudanças democráticas. Engerman e Sokolof (2005) encontraram evidências que explicam as diferenças nas regras do sufrágio para escolha de governo entre os países das Américas durante sua história. O sufrágio evoluiu ao longo do tempo nas Américas de forma diferenciada. Estas regras evoluíram de forma mais intensa e benéica em termos econômicos nos Estados Unidos e Canadá, ou seja, o sistema democrático produziu instituições mais eficientes em termos de geração de crescimento e desenvolvimento econômico ao longo do tempo, quando comparadas aos demais países. O exemplo desta maior eiciência institucional, segundo Khan e Sokolof (2006) é a lei de propriedade intelectual. De acordo com os autores, entre 1790 e 1930 os Estados Unidos cresceram de forma contínua passando todas as economias latinas das Américas em termos de produto per capita devido a esta lei. Em 1930, segundo os autores, 30% das inovações já eram feitas por pessoas com alta qualiicação. Portanto, um forte indício de existência de instituições que fomentavam a acumulação de capital humano e desenvolvimento tecnológico. 2) Eiciência e distribuição econômica. O sistema institucional puramente eiciente pressupõe ganho para todos quando políticas que maximizam o interesse social são adotadas. Neste caso, a distribuição dos ganhos econômicos é perfeita. No outro extremo está a eiciência em prol de uma única família, no caso dos reinados. Nos demais sistemas, a distribuição dos ganhos econômicos oscila entre beneiciar um grupo ou vários grupos dentro da sociedade. Segundo a teoria proposta por Acemoglu, Johnson e Robinson (2005), o sistema institucional somente é estável se as duas premissas, de eiciência e distribuição dos ganhos econômicos, que são inseparáveis combinarem, e somente a atuação de forma equilibrada consegue manter ao longo do tempo instituições estáveis. Em resumo, as alterações institucionais nas histórias dos países, em especial as mudanças 6. Coase (1960). (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 287 de regimes, se deve à falta de equilíbrio entre eiciência e distribuição dos ganhos econômicos. Acemoglu, Johnson e Robinson (2005) demonstram que o conlito sobre a atuação das instituições no aspecto econômico é crucial para o funcionamento da economia. Assim, os conlitos na história das economias não são devidos a ideologias, instituições incidentais, poder político etc., mas sim a problemas de distribuição econômica decorrentes dos poderes das instituições. A teoria de Acemoglu, Johnson e Robinson (2005) reconhece ainda a existência de dois poderes na economia: i) as instituições políticas que possuem o poder de jure – poder legal; e ii) as que possuem o poder de facto detido por um grupo de pessoas capazes de inluenciar as demais instituições. A combinação destes dois poderes é que determina se as instituições são mais ou menos eicientes e estáveis ao longo do tempo. O importante é que o grupo de pessoas que possui o poder de facto está envolvido em controlar as instituições econômicas e, por conseguinte, o processo distributivo na economia. O autor ilustra vários exemplos desta teoria em prática e a sua capacidade de explicar dois importantes fatos que geraram alterações no padrão de desenvolvimento econômico da sociedade moderna: i) o surgimento da monarquia constitucional e o crescimento econômico na Europa moderna; ii) o surgimento da democracia eleitoral de massa na Inglaterra que é uma descrição representativa do surgimento da democracia em vários países da Europa, ou seja, divisão do poder e da distribuição econômica através da democracia. Estas teorias, apesar de fundamentadas historicamente, não possuem bases microeconômicas que relacionem o papel das instituições e a acumulação de insumos produtivos. Dias e Tebaldi (2011) propuseram uma nova teoria construída a partir de fundamentos microeconômicos que incluem instituições e acumulação de insumos produtivos. O principal resultado é que as instituições estruturais que fomentam o desenvolvimento da economia estão intimamente ligadas à proporção de pessoas educadas e não educadas no tempo. Ou seja, as instituições criam as condições iniciais da economia, o sistema educacional e fomentam ou não o processo de acumulação de capital humano. Entretanto, após as condições iniciais, é o processo de acumulação ao longo do tempo, com uma proporção maior de pessoas educadas, que se alteram as instituições e seu papel distributivo. Se não houver acumulação de capital humano, as instituições ruins tenderão a prevalecer como determinantes do desenvolvimento econômico no tempo, gerando instabilidades. Em suma, as instituições estruturais estão intimamente ligadas à relação pessoas educadas/não educadas no tempo. 288 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil No entanto, se a proporção educados/não educados for pequena, o predomínio é das instituições e estas podem não executar o objetivo maior das sociedades, que é a melhoria de seus ganhos econômicos coletivos no tempo. Assim, o efeito subsequente do capital humano sobre a estrutura das instituições não ocorreria. Neste caso, a teoria de Dias e Tebaldi (2011) explica a diferença entre instituições nas colônias e seu importante papel inicial e o reverso da fortuna. Mas, contrariamente à teoria do papel incidental, a história do desenvolvimento da economia não está associada à sua condição inicial e nem ao seu passado, mas sim à evolução pari passu entre instituições e o seu sistema educacional. Por que esta ligação? De acordo com a teoria, a gerência das instituições e do mercado depende de capital humano. As instituições e os mercados serão mais eicientes ou tornarão mais eicientes e preocupadas com aspectos distributivos do aumento do capital humano no tempo. Os dados econométricos recentes conirmaram esta hipótese de associabilidade, bem como os dados históricos na descrição de Cubberley (1920, p. 308, tradução nossa): A organização do sistema educacional nacional na Inglaterra não foi fácil ou simples como em outras terras (Europa) como descrevemos. Em parte devido à ideia estabelecida pela pequena classe dominante de que educação não era responsabilidade do estado; em parte devido ao profundo enraizamento de que educação era uma concepção religiosa e com propósitos religiosos; em parte devido ao fato de que a classe alta no governo controlava o sistema educacional de forma a produzir lideres para a igreja e para o estado; em parte – provavelmente em grande parte – devido ao fato de a evolução do crescimento econômico da Inglaterra, desde a guerra civil de 1642-49) era lenta, mas pacíica, apesar desta evolução ser acompanhada por pensamentos e discussões parlamentares vigorosas. Como visto, as reformas educacionais e institucionais ocorreram de forma interligada na Inglaterra. Esta reforma foi acelerada nas colônias, conforme Cubberley (1920, p. 247-248, tradução nossa): Em 1765, e novamente em 1774, a Declaração dos Direitos foi elaborada e adotada pelos representantes das colonias e enviada ao Rei. Em 1774 o primeiro Congresso Continental se reuniu e formou a união das colônias; Em 1776 as colônias declararam sua independência. Esta independência foi confirmada pelo Tratado de Paris; Em 1787, a constituição dos Estados Unidos foi escrita; E em 1789, o governo Americano se iniciou. No preâmbulo da declaração de independência feita ao Rei consta vinte e sete relatos de opressão e tirania realizadas pelo mesmo, nós encontramos também nesta declaração a airmação de uma ilosoia política que é uma combinação da luta dos Ingleses por liberdade e dos Franceses do século dezoito por reformas ilosóicas e demandas revolucionárias. (...) A estas demandas constava não somente o desejo pela liberdade religiosa, já conquistada, mas o estabelecimento de uma política comum (nacional), de sistema educacional público. O começo de um novo estado, que motivava educação e fez com que a educação deixasse de ter propósitos meramente religiosos (...) também foi o começo da emancipação da educação das igrejas e inserida na Constituição Nacional. (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 289 Em resumo, as teorias estabelecem vários aspectos importantes, condizentes com a história da formação econômica dos países, em que sobressaem os seguintes elementos: • as instituições são determinantes do processo de crescimento e desenvolvimento econômico; • existe uma indissolubilidade entre instituições e o papel distributivo dos ganhos econômicos determinada pela combinação dos poderes de facto e de juri; • os poderes de facto e de juri formam as instituições estruturais econômicas dos países; e • as alterações na instituição estrutural são determinadas posteriormente pela razão pessoas educadas/não educadas. Em suma, as mudanças e reformas ao longo da história dos países sempre tiveram como objetivo estabelecer instituições estáveis e que resultassem em crescimento e desenvolvimento de longo prazo. Estas mudanças ocorreram com a inalidade de tornar as instituições de facto e de juri e o processo distributivo econômico mais equitativo e eiciente. Mas, tal estabilidade de longo prazo somente foi alcançada em algumas economias que fomentaram a acumulação de capital humano amplo, ou seja, deve existir um sistema educacional que permite produzir pessoas educadas para as instituições e para o mercado, amplo acesso. É esta acumulação de capital humano no longo prazo que vai melhorar no tempo a eiciência das instituições e o processo produtivo e distributivo nas economias e, assim, gerar estabilidade de crescimento econômico. 3 A TEORIA INSTITUCIONAL DE RAYMUNDO FAORO É importante entender o Brasil do ponto de vista da estabilidade das suas instituições democráticas antes de se apresentar a teoria de Raymundo Faoro. O Center for Systemic Peace (CSP)7 estabeleceu para os países um indicador denominado Polity Index. Este índice estabelece uma faixa de medida da qualidade das instituições democráticas para os países entre –10 (muito ruim) e 10 (excelente) desde 1800. A primeira medida do Brasil aparece como sendo a do ano de 1824, cujo índice foi de –6, portanto, indicando que naquele período as instituições democráticas eram de péssima qualidade. A evolução mais recente do Brasil pode ser vista no gráico 1. 7. Disponível em: <http://www.systemicpeace.org/polity/polity4.htm>. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 290 GRÁFICO 1 Índice da qualidade das instituições democráticas 10 8 6 X C C 4 2 0 1945 –2 1950 1955 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 –4 –6 C –8 –10 Fonte: CSP (2011). De acordo com o gráico 1, entre 1900 e 1965, o índice de qualidade das instituições democráticas brasileiras caiu de 6 para –9. A partir da década de 1970 este índice vem melhorando. Atualmente, encontra-se nivelado a um patamar considerado bom, com o índice equivalente a 8, portanto, próximo da máxima. Esta alternância e baixa qualidade das instituições no tempo do Brasil são explicadas por Faoro (1957) como advinda do “estamento burocrático”. A teoria a ser abordada, de Raymundo Faoro, estabelece a relação direta entre a qualidade das instituições nacionais com as herdadas de Portugal, sendo, portanto, uma tese incidental que causa os problemas a seguir. 1) Desenvolvimento cultural: “A principal consequência cultural do prolongado domínio do patronato do estamento burocrático é a frustração do aparecimento da genuína cultura brasileira” (Faoro, 1958, p. 209). 2) Desenvolvimento econômico: Nossa civilização, que nasceu franzina, talvez não esteja destinada à morte infantil. Não se trata de um caso de civilização frustrada, senão de uma civilização tolhida no seu crescimento, como se estivesse atacada de paralisia infantil. Seguindo, ainda uma vez, a lição de Toynbee, pode dizer-se que a sociedade brasileira está impedida em sua expansão pela resistência das instituições anacrônicas (Faoro, 1958, p. 271). A preocupação é com o item 2), que estabelece claramente a inluência das instituições no desenvolvimento econômico do Brasil. O objetivo desta seção é entender o porquê desta inluência e a relação desta com as teorias anteriormente descritas. (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 291 4 O SURGIMENTO DO ESTAMENTO BUROCRÁTICO Segundo Raymundo Faoro, a forma prevalente de instituições na história de Portugal e Brasil surgiu com a revolução Portuguesa de Avis, em 1385. A revolução ocorre em função de eventos que contrariam exatamente as teorias preconizadas anteriormente (Faoro, 1957, p. 47-52). 1) Em 1348, a peste leva a perecer um terço da população, causando escassez de mão de obra no campo. Como resultado, os salários estavam aumentando e as pessoas podiam escolher a função mais adequada às suas habilidades. 2) Em 1349 o Rei Afonso IV expede circular aos concelhos que nomeie dois árbitros em consonância com a burguesia para relacionarem todas as pessoas capazes para o trabalho. As pessoas arroladas seriam obrigadas a trabalhar em funções que sabiam exercer ou que o concelho demandasse mediante salário imposto. 3) Na política nacional, duas correntes opostas estavam presentes nos concelhos do rei. A primeira, e predominante, apoiava os gastos extravagantes do rei em suas aventuras, ou seja, no sistema patrimonialista. A segunda introduzia leis que deveriam favorecer o comércio, a agricultura ou produzir outros benefícios e, principalmente, reprimir a insolência dos poderosos, mas que os desatinos do rei anulavam parte destes benefícios. 4) O último ato foi o Tratado de Salvaterra de Magos de 1383, interpretado pelos portugueses como entrega do reino à tutela ao reino de Castela. A morte do rei português uniu burgueses e clero em prol da rainha de Castela D. Beatriz. Este conjunto de eventos colocou em desiquilíbrio os poderes de facto, de juri e principalmente alterou o princípio distributivo econômico. Como resultado, ocorre o esperado, alterações nas instituições de Portugal. Desaparece o estado patrimonial com a revolução em que ascende ao trono D. João I, Mestre de Avis (1385-1580).8 Este novo tipo de governo surge conforme descrito a seguir (Faoro, 1957, p. 56-57). 1) Álvaro Pais, ex-chanceler-mor de D. Pedro, e D. Fernando, que manobrava os vereadores em Lisboa, fomentaram a falsa notícia de que o séquito da rainha de Castela procurava matar o Mestre de Avis. 2) Foi delagrada uma rebelião em Lisboa, na qual predominava o tumulto, o saque pelo povo miúdo, que contou com o apoio dos camponeses e dos trabalhadores que tinham seus salários ixados e eram forçados a 8. Filho bastardo de D. Pedro. 292 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil atividades impostas. Foram poupados somente os comerciantes judeus, mas não a aristocracia, que eram os mais prejudicados. 3) Em dois anos de guerra emerge o Mestre de Avis como regedor e defensor do reino. O reino expande seu poder econômico em três direções: i) doações de terras da aristocracia aos combatentes; ii) privilégios a burguesia comercial; iii) elevação dos letrados legistas. Estas três categorias são projetadas no círculo ministerial e nos concelhos dirigentes formando a nova aristocracia da revolta, o estamento que controlava o governo. Portanto, o novo equilíbrio institucional ocorreu com o restabelecimento do equilíbrio dos poderes de facto e de juri através da redistribuição dos ganhos econômicos. Esta nova forma de governo institucionaliza o poder duplo; a do rei e a dos revolucionários, prevalescendo o poder dos últimos em decisões econômicas; portanto, o estamento passou a comandar a economia. No entanto, a duração da estabilidade requer novos conhecimentos de acordo com as teorias anteriores. Assim, de acordo com Faoro (1957, p. 60), a crise da monarquia ente 1383-1385 leva a burguesia a perder poder, e um novo grupo dominante, a dos juristas, estes donos virtuais do comércio, da riqueza e de planos capazes de demonstrar por toda parte a sombra da sua força, emergem, levando o Estado a se aparelhar grau a grau em termos de organização político-administrativa, ou seja, um estado juridicamente pensado e escrito para sobrepor-se ao mercado. A nova forma de organização político-administrativo leva à formação de novos órgãos do estado que permite a nomeação a cargos e o estabelecimento de privilégios e, portanto, de aumento do poder de facto. Segundo Faoro (1957, p. 60) “Esta corporação de poder se estrutura numa comunidade: o estamento”. É interessante colocar a razão para o surgimento e concepção do estamento, segundo Faoro (1957, p. 62-63). 1) “Os estamentos lorescem, de modo natural, nas sociedades em que o mercado não domina toda a economia, a sociedade feudal ou patrimonial”. 2) “O estamento supõe distância social e se esforça pela conquista de vantagens materiais e espirituais exclusivas”. 3) “As convenções, e não a ordem legal, determinam as sanções para a desqualiicação estamental”. 4) O estamento leva “[a]o fechamento da comunidade [que] leva a apropriação de oportunidades econômicas, que desembocam, no ponto extremo, nos monopólios de atividades lucrativas e de cargos públicos”. (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 293 Assim, ao longo do tempo, uma nova aristocracia emerge a dos “juristas e burocratas” no comando da coroa e dos órgãos, segundo Faoro (1957, p. 65). Os juristas e burocratas formavam uma nova casta, na qual os cargos da magistratura superior e da burocracia eram geralmente desempenhados por famílias ligadas entre si por laços de parentescos. Como resultado, tem-se que: O conglomerado de direitos e privilégios, enquistados no estamento, obriga o rei, depois de suscitá-lo e de nele amparar, a lhe sofre inluxo: a ação real se fará por meio de pactos, acordos, negociações. No seu seio haverá a luta permanente na caça do predomínio de uma facção sobre outra; a teia jurídica que envolve não tem o caráter moderno de impessoalidade e generosidade; a troca de benefícios é a base da atividade pública, dissociada em interesses reunidos numa única convergência: o poder e o tesouro do rei (Faoro, 1957, p. 66). Esta forma de governo foi transferida para o Brasil, como será visto na seção 5. 5 AS INSTITUIÇÕES BRASILEIRAS: O ESTAMENTO BUROCRÁTICO O Descobrimento do Brasil, em 1500, leva a coroa a conceder inicialmente a exploração do pau-brasil mediante monopólio real. A vigilância pública desta concessão obedecia aos interesses do estamento, assim entre 1521-1557 D. João III inaugura uma nova forma de exploração mercantil submetendo estas explorações aos tentáculos burocráticos e, por extensão, do estamento.9 O sistema de capitanias hereditárias entre 1534-1549 cria um novo sistema econômico de ixação da população no Brasil, como resultado os dados de 1550 registraram 15.500 habitantes.10 O objetivo principal das capitanias era da exploração do açúcar, cujos preços em 1500 haviam mais que dobrado na Europa. Por volta de 1545, havia 21 engenhos no Brasil e em 1570 subiu para 61, sendo 42 destes em Pernambuco e Bahia.11 Este objetivo estava claro na outorga ao donatário que somente ele podia fabricar e possuir moendas e engenhos de águas.12 Esse sistema, no entanto, parece ter lançado o Brasil a um retrocesso em suas instituições, segundo os autores, pois no século XVII o feudalismo do século XVI da Península Ibérica havia se projetado no Brasil. No entanto, a premissa essencial da política real era de que o Estado se esquiva de colocar seu dinheiro e acenasse a particulares, nobres e ricos, a opulência de lucros no Brasil com a exploração de exportáveis à Europa via Lisboa. Esta ação coordenada pelo estamento levou à expansão da propriedade rural brasileira. O rei subordinava as pessoas e o 9. Op. cit., p. 125 e 127. 10. Disponível em: <http://asnovidades.com.br/2007/populacao-brasileira/>. Acesso em: 28 jul. 2011. 11. Disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=325>. Acesso em: 28 jul. 2011. 12. Op. cit., p. 131. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 294 governo dirigia as ações. Portanto, onde aforava riqueza aí estaria o rei através do seu estamento burocrático; ouro, prata, açúcar tinham a mesma dignidade, pois atrairiam oiciais públicos que haveriam de transformar senhores em feitores.13 O mesmo ocorre com a exploração do ouro, ou seja, onde havia riqueza, para lá deslocava-se a autoridade estamental. Em 1710 se constitui a capitania de São Paulo, em 1713 ergue-se a capitania do Rio Grande do Sul, em 1720 Minas Gerais é desmembrada da de São Paulo. Segundo Faoro (1957, p. 191 e 197): Em cada seção, o poder armado, ielmente obediente a Lisboa, fazia calar os rebeldes, velava pela parte do rei na exploração mineradora e regia o comércio, arrendando dele os funcionários. (...) Fazenda, guerra e justiça são as funções dos reis, no século XVI, funções que se expandem e se enleiam no controle e aproveitamento da vida econômica. (...) O patrimônio do soberano se converte, gradativamente, no Estado, gerido por um estamento, cada vez mais burocrático. No agente público – o agente com investidura e regimento e o agente por delegação – pulsa a centralização, só ela capaz de mobilizar recursos e executar política comercial. Assim, o sistema brasileiro parece ter seguido o mesmo sistema de governo implantado na revolução do Mestre de Avis de Portugal. Este estamento burocrático ganha novas diretrizes no século XVII com os aumentos contínuos de pessoal, das pensões e das despesas do governo com juros, fatos que levaram ao congelamento de salários dos agentes públicos.14 Isto faz surgir a corrupção. Assim, o cargo público, com ins privados, atrai todas as classes e as mergulha no estamento, os órgãos tornam-se instrumentos usados com ins de conquistas de apoio por parte do soberano. Assim, “(...) dos séculos XVI a XIX tudo – a economia, as inanças, a administração, a liberdade – está regulado, material e miudamente, pelo poder público, do qual os conselhos serão um ramo, ramo seco ou vivo, conforme as circunstâncias.”15 A migração da corte para o Brasil gerou novos impactos na economia brasileira em 1808. Os principais impactos econômicos foram: i) a fundação do Banco do Brasil; ii) a liberdade econômica industrial; iii) melhoramentos urbanos e de transporte; iv) o jardim botânico para experimento de plantas; v) a instituição de ensino superior militar e médico; e vi) a siderurgia nacional. No entanto, uma crise econômica emergiu devido ao baixo consumo mantido pela escravidão, a falência do banco do Brasil e da siderurgia e os altos custos das cortes que assomados ao custo do estamento existente. O maior impacto foi no comércio, que era a principal atividade econômica da época. Além disso, a migração desencadeou onda de descontentamento entre a burocracia colonial e a da corte 13. Op. cit., p. 156-158. 14. Op. cit., p. 199. 15. Op. cit., p. 203. (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 295 que era favorecida com promoções à idalguia e aos postos principais.16 Somados a isto, tem-se que a renda per capita havia caído de 30 libras ouro em 1600 para 3, em 1800.17 Este conjunto de fatores novamente causa o desiquilíbrio entre os poderes de facto e de juri devido aos efeitos sobre a distribuição dos ganhos econômicos. É a primeira vez que surge uma condicionante favorável para o desenvolvimento de longo prazo com estabelecimento mínimo de acumulação de capital humano. O resultado foi novamente mudanças na forma de governo. A independência em 1822 foi o relexo deste desequilíbrio de poderes e da divisão de ganhos, em especial. A implantação de mudança estrutural na economia havia se iniciado com a semente das escolas de níveis superiores. No entanto, os bacharéis formandos seriam pré-juizes, pré-promotores, senadores e ministros, e não objetivavam a criação da ordem social e política, mas eram ilhos legítimos do Estado, pois o sistema das escolas superiores era gerar letrados necessários à burocracia, regulando a educação de acordo com as exigências sociais.18 Como resultado, ocorre profunda transformação econômica no segundo reinado, pós-1822. O Estado provê tudo às empresas industriais, mercantis, bancos, operações inanceiras etc., da sua burocracia emanam favores para poucos privilegiados. Segundo Faoro (1957, p. 450): “O Estado, presente a tudo e que a tudo provê centraliza as molas do movimento econômico e político, criando um país a sua feição, o país oicial.” No entanto, a estabilidade é dependente da produtividade no campo, e a queda dessa produtividade, em especial no Vale do Paraíba, São Paulo e a abolição dos escravos em 1871 izeram com que grande parte das fazendas de café se endividassem ainda mais com os pagamentos de salários. Em 1884, a oferta de crédito se torna escassa, inviabilizando a sustentação dos assalariados e consequentemente do grande número de fazendas. Em 1890, a execução hipotecária acaba de vez com o elo entre os fazendeiros e a monarquia e com a sustentação do regime em vigor.19 Novamente o equilíbrio entre os poderes de facto e de juri estava rompido pela distribuição dos ganhos econômicos. Entre os séculos XIX e XX, a valorização da livre concorrência toma forma de liberdade econômica. Descobre-se a política monetária, os liberais vencem e a emissão de moeda deixa de ser monopólio estatal; esta passa a ser vinculada inicialmente à quantidade de títulos públicos, mas não perdura no tempo. 16. Op. cit., p. 292. 17. Op. cit., p. 280. 18. Op. cit., p. 446. 19. Op. cit., p. 520. 296 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil A alteração em seguida, vinculava a emissão ao valor do capital dos emissores, foi estendida para até o triplo do valor do capital.20 Os bancos podiam assim conceder créditos a qualquer empresário que os procurasse. Estes créditos, concedidos sem qualquer sustentação econômica de aumento de produção e/ou investimentos, na maioria das vezes, ou seja, nem sempre usados em prol da empresa, levou a que inúmeras empresas falissem não sem antes serem vendidas e revendidas na bolsa de valores. Esta política entra na história como o período do encilhamento.21 A evolução econômica parecia atestar a qualidade da política monetária, segundo Faoro (1957, p. 575): “Dos 636 estabelecimentos, 398 foram fundados no período 1880 a 1899, com particular expressão a partir de 1885.” Em 1899 mais da metade da atividade industrial estava concentrada na capital federal luminense e no estado do Rio de Janeiro, esta preponderância persistiu até 1907, no entanto a partir de 1910 São Paulo assumiu a liderança.22 Assim, a concepção das pessoas no poder era a de acelerar o progresso econômico com a emissão desenfreada de moeda recuperaria o tempo perdido, segundo Faoro (1957, p. 581): A república seria estável, progressista, atraente com aceleração do quadro industrial, abandonando o agrarismo exclusivo do Império, embora sobre a base, não percebida plenamente, do que de mais característica teve a monarquia, o vínculo entre o estado e o dinheiro. No entanto, os estadistas do processo liberal alteram o processo de distribuição econômica com a política monetária e criam uma nova classe poderosa, a dos financistas. Mas as chefias do estamento burocrático não haviam perdido a capacidade de se apropriarem das benesses da política monetária. Uma nova igura emerge no mercado das concessões, a do especulador. Segundo Faoro (1957, p. 584): O estadista atua, realiza seus planos pelas mãos do homem de negócios, do especulador – esta será a réplica visível da delegação das funções públicas, do controle, para fomentar e modernizar a economia. Ouro Preto ocupa o palco por meio do Visconde de Figueiredo, seu banqueiro e empresário de coniança. Rui Barbosa serve-se dos préstimos do conselheiro Francisco de Paulo Mayrink, espécie de presidente de um sindicato inanceiro, que se apropria das concessões e privilégios públicos. Será ele o comandante da unidade emissora, resultante da fusão do Banco dos Estados Unidos do Brasil com o Banco Nacional do Brasil, da qual sairá o Banco da Republica dos Estados Unidos do Brasil, a qual em 1892, gerará, por outra amálgama o Banco da Republica do Brasil. 20. Op. cit., p. 569. 21. Disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=357>. Acesso em: 28 jul. 2011. 22. Op. cit., p. 575. (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 297 O resultado econômico do encilhamento (política monetária desenfreada) foi a inlação, que atinge 50% no ano e gera greves por salários, algo novo na economia. A resposta foi a alteração no poder com o chamado “Golpe da Bolsa” que dissolve o congresso em 1891, cujo objetivo era restabelecer a autoridade monetária única e eliminar a orgia na emissão de papel moeda.23 Portanto, a qualidade das instituições econômicas era ruim, sofriam mudanças sempre que se alterava o processo de distribuição na economia que se reletia nos poderes de facto e de juri. A disputa pelo poder e a crise da cafeicultura, que levou à redução drástica na renda de um grupo poderoso de famílias levou a ruptura deinitiva no poder em 1930.24 A revolução de 1930 encerra o período da república velha e emerge uma nova ordem institucional com a promulgação da constituição de 1934. Nesta nova ordem emerge um poder novo, o militar. Segundo Faoro (1957, p. 789): O orçamento militar expande-se na participação de 30,4% em 1938, contra 19,4% em 1931, denunciando a reorganização das Forças Armadas, quase esfaceladas após profundo dissídio de 1930. (...) O papel de predomínio da União atua, desta forma, como fator mais importante de integração nacional, no comando da economia controlada – e da burocracia em expansão, capaz de abrigar largas fontes de emprego às classe média. O período a partir de 1930 em nada se alterou no governo, o estamento burocrático continuou sendo a forma de governar, mas com a alteração de que o poder de facto passou para os militares. No entanto, o estamento burocrático estava implantado e arraigado no comando da economia do Brasil. O aumento no orçamento militar facilitava o controle pelo estamento. A escritora Sabrina E. Medeiros (2007) coloca de forma precisa como se dava esta relação na visão do autor Faoro. Segundo a autora, haveria laços estreitos entre a esfera pública (a burocracia) e a privada. O estamento usava de seus poderes para, em conjunto com a iniciativa privada, comandar a economia. A visão de Faoro (1957, p. 253) é ainda mais direta: O intervencionismo não é abominado pelos empresários, senão que é desejado, pois, à sombra das tarifas alfandegárias, das diiculdades de importação, dos ágios e prêmios, crescem e proliferam indústrias alimentadas dos altos preços e lucros rápidos. Para sustentar essas indústrias sem horizontes e esse comércio especulativo, as emissões – de estímulo ao comércio e à indústria – favorecem o incremento de uma economia especuladora, comercial, ligada aos favores do governo. É a classe lucrativa que se 23. Op. cit., p. 585. 24. Disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=872>. Acesso em: 28 jul. 2011. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 298 reexpande, no consórcio clássico com o estamento burocrático, que se fortiica com o controle da economia. Segundo Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil, os poderes de facto e de juri e o conlito distributivo não são exclusivos da história do Brasil: As constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias são fenômeno corrente em toda a história da América do Sul. É em vão que os políticos imaginam interessar-se mais pelos princípios do que pelos homens: seus próprios atos representam o desmentido lagrante dessa pretensão (Holanda, 1987, p. 137). A tese de Raymundo Faoro também foi comparada à de Celso Furtado por Arend (2008, p. 678), o autor concluiu que: Ambos atestam que “são classes dirigentes” que ao promoverem processos de modernização acarretam a estratiicação social característica da trajetória capitalista do Brasil. Também para os dois autores, as modernizações, vindas de cima, acabam por adaptar técnicas, padrões de consumo e uma cultura estranha à verdadeira identidade nacional, fazendo com que o país não apresente uma estratégia local, particular, de desenvolvimento econômico. O que se depreende do livro de Raymundo Faoro é que este “estamento burocrático” que dominou a economia portuguesa no período pré-descobrimento das Américas se tornou a principal instituição dominante no Brasil. Apesar de parecer ser uma instituição estável, esta não atende a princípios que estabelecem estabilidade econômica e social por meio de melhor distribuição dos ganhos e equilíbrio entre os poderes de facto e de juri. Em suma, esta forma de administração não demonstrou ao longo da história ser capaz de gerar instituições econômicas, políticas e sociais estáveis. 6 CONCLUSÃO Após a revolução de Avis em 1385 uma nova forma de administração do estado passou a existir. O controle da economia por meio de normas, decretos, concessões exigiu cada vez mais a criação em número maior de órgãos e cargos para o controle da burocracia. Os cargos nestes órgãos foram usados amplamente como moeda de obtenção de apoio político para os poderes. Os encarregados destes cargos descobriram na burocracia a forma de privatizar bens públicos por meio de concessões especiais que burlassem as leis ou as interpretasse de maneira especial em favor dos interessados, ou ainda que concedessem monopólios especiais a pessoas ou empresas. A mistura do interesse pessoal daqueles que estão no cargo com os dos agentes econômicos é transparente na história do Brasil, ou seja, a história demonstra um país governado pelo estamento burocrático. (Sub)Desenvolvimento Histórico-Econômico do Brasil: as teorias modernas e a tese de Raymundo Faoro 299 A teoria do estamento burocrático é uma teoria de conflito social, equivalente a proposta mais recentemente por North (1981). Esta é também uma teoria de instituição incidental e tem como resultado principal o fato de os interesses estamentais formarem uma instituição com poderes de facto. A principal consequência deste tipo de instituição é o controle do processo de distribuição dos ganhos econômicos. Esta capacidade de controlar a distribuição dos ganhos econômicos acabam afetando os poderes de juri, gerando instabilidades institucionais históricas. Além disso, o estamento burocrático controla o processo de acumulação de capital humano evitando o amplo acesso da comunidade à educação e/ou educação voltada mais para o estamento do que para o mercado. Portanto, o aperfeiçoamento do aparelho estamental leva ao controle de poderes, processos distributivos e de formação de capital humano. Como resultado inal, o domínio de instituições de baixa qualidade sobre o dos insumos produtivos na história da economia parece prevalecer ainda no Brasil. Em suma, a forma de governar a economia por meio do controle burocrático estamental nunca produziu instituições estáveis na história do Brasil. A razão é simples, as instituições do governo são criadas não com o propósito de tornar a economia e a administração pública mais eiciente, mas para exclusivamente acomodar apoio ao poder através do “estamento burocrático”. A questão atual é a seguinte: o Brasil ainda é governado com uso de cargos para atender interesses do governo? As pessoas em cargos o usam em proveito próprio, privatizam os interesses públicos? REFERÊNCIAS ACEMOGLU, D.; JOHNSON, S.; ROBINSON, J. A. he colonial origins of comparative development: an empirical investigation? The American economic review, v. 91, n. 4, p. 369-1.401, 2001. ______. Reversal of fortune: geography and institutions in the making of the modern world income distribution? The quarterly journal of economics, n. 118, v. 4, p. 1.231-1.294, 2002. ______. Disease and development in historical perspective. 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CAPÍTULO 11 ROBERTO SIMONSEN: AS CONTRIBUIÇÕES E A ATUALIDADE DO PENSAMENTO Marcelo Curado1 1 INTRODUÇÃO Em 25 de maio de 1948, falecia no salão nobre da Academia Brasileira de Letras no Rio de Janeiro o empresário, engenheiro, economista e político Roberto Cochrane Simonsen. O infarto fulminante que o vitimou ocorreu enquanto discursava na recepção ao primeiro-ministro da Bélgica, o economista Paul van Zeeland (O farol..., 1948). O primeiro economista aceito para ingressar na Academia Brasileira de Letras era um homem de múltiplas atividades e diversos interesses. Suas atividades empresariais, políticas e sociais foram tão intensas quanto a sua dedicação à produção intelectual, que, como pode ser observado pela data de sua morte, ocorreu antes do surgimento e da difusão das ideias da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), criada justamente em 1948. Não é sem motivos que Bielschowsky (1988), em livro seminal sobre o pensamento econômico brasileiro para o período compreendido entre 1945 e 1964, qualiica Simonsen, por seu pioneirismo e originalidade, como “o patrono do desenvolvimentismo brasileiro”. Este capítulo promove uma recuperação de suas contribuições para o debate econômico brasileiro, com ênfase em seu papel pioneiro na apresentação de alguns dos pilares básicos do projeto desenvolvimentista. Atenção especial é dedicada aos debates promovidos com Eugênio Gudin na conhecida “controvérsia do planejamento”, ocorrida entre os anos de 1944 e 1945. Na sequência, o capítulo discute a atualidade e a relevância dos temas discutidos nesta controvérsia. Argumenta-se que as discussões sobre a evolução recente da estrutura produtiva, do padrão de especialização comercial e o papel do Estado para o desenvolvimento – temas centrais na obra de Simonsen e de suas “controvérsias” com Gudin – persistem como temas essenciais na atual agenda de debate sobre o desenvolvimento brasileiro. 1. Doutor em Política Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Responsável pela cátedra Roberto Simonsen no programa Cátedras para o Desenvolvimento. 304 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil O capítulo encontra-se organizado da seguinte forma: após esta breve introdução, a seção 2 apresenta uma síntese das contribuições de Simonsen, com destaque para os debates ocorridos com Eugênio Gudin nas “controvérsias do planejamento”. Na seção 3 é discutida a atualidade das contribuições do autor. Finalmente, na seção 4 apresentam-se as considerações inais do trabalho. 2 ROBERTO SIMONSEN E A “CONTROVÉRSIA DO PLANEJAMENTO” Roberto Simonsen foi um homem de múltiplos interesses e talentos. O ilho de aristocratas britânicos, engenheiro, economista, professor, político, dono de uma construtora e membro da Academia Brasileira de Letras, notabilizou-se por sua inluência nos debates acadêmicos e políticos de sua época, especialmente pela sua defesa dos nascentes interesses industriais no país. O legado de Simonsen para a sociedade brasileira é extenso. Apresentam-se apenas os mais notáveis. Em 1928, em parceria com José Ermínio de Moraes e Francisco Matarazzo criou o Centro das Indústrias de São Paulo (CIESP), marco na consolidação dos interesses industriais no país. Vale lembrar que até então a representação dos empresários industriais paulistas era realizada no interior da Associação Comercial, o que limitava seu campo de ação. Simonsen foi também fundador do Serviço Social da Indústria (Sesi), do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e da Escola Livre de Sociologia. A defesa dos interesses industriais não se limitou apenas ao campo da organização interna da indústria nacional e à criação de centros de qualiicação de mão de obra e de pesquisa. Simonsen teve também intensa vida política. Ele foi um dos responsáveis por organizar o esforço de guerra paulista na Revolução Constitucionalista de 1932, papel que lhe “rendeu” um breve exílio em Buenos Aires. Em 1933, no pleito da Assembleia Nacional Constituinte, foi eleito deputado. Um ano antes de sua morte, iliou-se ao Partido Social Democrático (PSD) e elegeu-se senador pelo estado de São Paulo (O farol..., 1948). A contribuição de Roberto Simonsen no campo estritamente acadêmico foi igualmente vasta. Maza (2002), em tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP) enumera um total de 52 trabalhos entre livros e artigos de autoria de Roberto Simonsen. Além de vasta, sua produção intelectual foi bastante diversiicada. Ainda assim, é possível airmar – levando em consideração a literatura especializada no autor – que duas obras merecem ser destacadas deste conjunto. A primeira é o clássico História econômica do Brasil: (1500-1820). A segunda, formada por dois trabalhos, diz respeito aos debates travados com Eugênio Gudin e que teve como ponto de partida o parecer apresentado por Simonsen ao Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC) em 16 de agosto de 1944 e que posteriormente icou conhecida na literatura como as “controvérsias do planejamento”. Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 305 A importância da obra de Simonsen, sobretudo no contexto do desenvolvimento da literatura econômica da época, é enfatizada, entre outros, por Carone (1971). Apesar de seu didatismo, o que não se pode negar é o fato de que seus estudos são mais completos do que a maioria dos trabalhos contemporâneos. Além de uma boa biblioteca geral, que o mostra familiarizado com a história, Simonsen utiliza-se de fontes primárias, numa descrição e aprofundamento do processo de produção agrícola e comercial (...) Demonstra o mesmo cuidado quando se trata da indústria, procurando sempre encaminhar os estudos para o conhecimento dos seus fatores determinantes (...) a noção que dá dos diversos fatores de desenvolvimento da indústria – imigração, mercado interno, eletricidade, política tarifária, inlação, acúmulo de capitais agrícolas – e da importância da cultura do café, como fator primeiro e determinante para o processo industrial, torna-o um pioneiro (Carone, 1971, p. 25). A importância e a influência dos trabalhos de Simonsen para os desenvolvimentos posteriores da literatura econômica brasileira são destacadas, entre outros, por Cunha e Curi (2011). Os autores lembram que o livro História econômica do Brasil (1500-1820), publicado originalmente em 1937, foi utilizado por Celso Furtado no clássico Formação econômica do Brasil, editado em 1959. O uso por Furtado do História econômica do Brasil como fonte direta na elaboração de seu livro é um bom exemplo, de acordo com Cunha e Curi (2011), da relevância dos trabalhos acadêmicos elaborados por Simonsen não apenas em sua época mas também para o desenvolvimento posterior da literatura econômica brasileira. Não obstante a importância acadêmica de outros trabalhos, há relativo consenso na literatura econômica especializada em Simonsen, veja-se entre outros Bielschowsky (1988) e Teixeira, Maringoni e Gentil (2010), de que sua principal contribuição para a consolidação do projeto desenvolvimentista no Brasil encontra-se nos dois trabalhos que compõem a “controvérsia do planejamento”. O primeiro, A planificação da economia brasileira, escrito para o CNPIC, em agosto de 1944 deu início ao debate. A resposta de Gudin, publicada em março de 1945 e intitulada Rumos de política econômica estabeleceu duras críticas ao relatório original de Simonsen. A resposta às críticas elaboradas por Gudin foram estabelecidas no relatório O planejamento da economia brasileira, publicado em junho de 1945. Finalmente, em agosto desse mesmo ano, Gudin enviou a Carta à comissão de planejamento no qual estabelece sua resposta às críticas elaboradas por Simonsen. Pela importância dos envolvidos, pelo momento histórico em que ocorreu e pela relevância ainda atual dos embates sobre o planejamento pode-se, sem margem para dúvida, airmar que o debate, posteriormente reunido no livro, editado pelo Ipea em 1977, intitulado Roberto Simonsen e Eugênio Gudin: a controvérsia do planejamento da economia brasileira, é um marco fundamental do pensamento econômico brasileiro, com consequências que extrapolam a esfera 306 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil estritamente acadêmica, já que inluenciaram os rumos da política econômica nas décadas posteriores. Por se tratar de um dos últimos materiais produzidos pelo autor, pode-se airmar também que suas contribuições na “controvérsia do planejamento” apresentam de forma madura, o conjunto de ideias elaboradas pelo autor ao longo de sua vida. Alguns de seus elementos centrais passam a ser discutidos a partir deste momento.2 Em seu relatório original, Simonsen sustenta que o desenvolvimento das atividades industriais constituía-se no elemento central de uma estratégia para a superação do atraso econômico do país. Para ele, havia uma forte correlação entre o desenvolvimento das atividades industriais no país e a constituição de uma “estrutura econômica e social forte e estável”. O desenvolvimento das atividades industriais não ocorreria, no entanto, como fruto de um processo natural de funcionamento das forças de mercado. Pelo contrário, o desenvolvimento destas atividades seria fruto de um esforço coordenado de planiicação com ampliação do papel do Estado na economia. O trecho a seguir apresenta uma síntese destes dois pontos: Impõe-se, assim, a planificação da economia brasileira em moldes capazes de proporcionar os meios adequados para satisfazer as necessidades essenciais de nossas populações, e prover o país de uma estrutura econômica e social forte e estável (...) A parte nucleal de um programa dessa natureza (...) tem que ser constituída pela industrialização (Simonsen, 2010a, p. 14, grifo nosso). De acordo com Maza (2002), Simonsen defendia o planejamento como uma técnica de organização social. É fundamental ressaltar, especialmente no contexto do imediato pós-guerra, que, em nenhum momento de sua trajetória intelectual, Simonsen defendeu o modelo soviético ou foi um defensor do comunismo. Sua defesa do capitalismo como modo de organização da sociedade era evidente. A inluência intelectual era outra, encontrava-se no desenvolvimento da teoria do planejamento que ocorreu na academia norte-americana no período, com destaque para a contribuição de Carl Landauer,3 citado explicitamente por Simonsen nas “controvérsias”. O frágil desenvolvimento do capital privado nacional e as barreiras existentes para sua atuação em diversas atividades econômicas constituíam-se nos elementos centrais do argumento de Simonsen de defesa da intervenção estatal. Nas palavras do autor: (...) a renda nacional está praticamente estacionária, não existindo possibilidade, com a simples iniciativa privada, de fazê-la crescer, com rapidez ao nível indispensável para assegurar um justo equilíbrio econômico e social... Essa insuiciência, em vários 2. Recomendam-se para aqueles que desejam aprofundar a discussão do tema, além evidentemente da leitura do livro editado pelo Ipea em 1977, os trabalhos de Bielschowsky (1988) e Teixeira, Maringoni e Gentil (2010). 3. Professor da Universidade da Califórnia e autor, entre outros livros, da Teoria do planejamento econômico nacional. Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 307 setores da iniciativa privada, tem sido reconhecida pelo governo federal que direta ou indiretamente (...) tem promovido a ixação de importantes atividades no país (Simonsen, 2010a, p. 47). Finalmente, nesse contexto de fragilidade da nascente indústria brasileira, vale lembrar que Simonsen foi um defensor do protecionismo como forma de promoção do desenvolvimento industrial. Ao mesmo tempo foi um crítico ácido do padrão de especialização comercial proposto pela literatura baseada nas vantagens comparativas ricardianas, tal como defendido por Gudin, que indicavam a especialização na exportação de produtos agrícolas e minerais como a melhor alternativa para a inserção externa do país. Em sua concepção, fortemente influenciada por List e Manoilescu, a implantação do livre comércio levaria o Brasil a regressar ao estágio de uma “fazenda ultramarina”, tal como exposto adiante. No caso particular do Brasil, na hipótese de implantação do livre câmbio, os preços de artigos de consumo baixariam, de início. Mas como não teríamos capacidade de exportar em concorrência com as colônias e outros países mais férteis e de terras mais acessíveis em quantidade suiciente para pagar nossas importações, a queda violenta das taxas cambiais encareceria, na mesma proporção, os artigos importados (...) Regressaríamos ao estatuto de fazenda ultramarina, com baixíssimo padrão de vida, desprestigiados no concerto internacional das nações (...) (Simonsen, 2010a, p. 164). Em lado oposto no debate, encontra-se o economista Eugênio Gudin. Fiel representante da tradição liberal, o autor atacou de forma veemente a existência de uma relação direta, tal como proposto por Simonsen, entre industrialização e desenvolvimento. Um dos argumentos mais correntes a favor de nossa industrialização é o de que os países industrializados são ricos e os países de economia agrícola ou extrativa são pobres. Como princípio, não é verdadeiro... a economia agrícola pode formar um país muito rico e de alto padrão de vida. Para nós brasileiros, basta que olhemos para a Argentina... E se continuarmos a expandir indústrias que só podem viver sob a proteção das pesadas tarifas aduaneiras e do câmbio cadente, continuaremos a ser um país de pobreza, ao lado do rico país que é a Argentina (Gudin, 2010, p. 105). Gudin não argumenta apenas que não há relação entre industrialização e desenvolvimento. Ele vai além, argumentando que o desenvolvimento artiicial das atividades industriais, promovido por meio de forte proteção tarifária e com intervenção direta do Estado acarretaria a manutenção do subdesenvolvimento. Para Gudin, “tudo está na produtividade” e o essencial para o desenvolvimento econômico era “aumentar nossa produtividade agrícola, em vez de menosprezar a única atividade econômica em que demonstramos capacidade para produzir vantajosamente” (Gudin, 2010, p. 15). A influência da teoria das vantagens 308 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil comparativas não é algo subliminar na obra de Gudin. O relato apresentado pelo autor para a Comissão de Planejamento Econômico (CPE) em 1945 traz toda uma seção em que se defende explicitamente a teoria de Ricardo. É evidente que os debates processados em meados dos anos 1940 entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin foram profundamente influenciados pelo ambiente econômico e político da época. Em grande medida, estas discussões reletiam a evolução concreta da economia brasileira, especialmente as alterações processadas na estrutura produtiva desde o início da década de 1930. Vale lembrar que esta década foi marcada pelo intenso desenvolvimento das atividades industriais no Brasil.4 No plano político, merece ser ressaltado que, a partir de 1937, com a instituição do Estado Novo, Vargas assumiu deliberadamente o projeto industrializante, baseado na proteção à indústria nacional e na realização de grandes investimentos públicos. A criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 1941, foi um símbolo deste projeto. Em síntese, a qualiicação feita a Simonsen por Bielschowsky (1988) como “patrono do desenvolvimentismo brasileiro” é justiicada pelo caráter pioneiro e original das contribuições do autor ao debate econômico brasileiro nos anos 1940, antes, portanto, do surgimento das teses cepalinas e da difusão do estruturalismo como modelo teórico alternativo ao pensamento econômico ortodoxo liberal. Suas contribuições, no entanto, não icaram restritas ao seu momento histórico, como será observado a partir das discussões promovidas na próxima seção do trabalho. 3 A ATUALIDADE DE ROBERTO SIMONSEN: ESTRUTURA PRODUTIVA, INSERÇÃO EXTERNA E PLANEJAMENTO A seção 2 apresentou uma breve revisão das contribuições de Simonsen para o pensamento econômico brasileiro, com ênfase nos elementos debatidos com Eugênio Gudin nas “controvérsias do planejamento”. Objetivamente, podem ser destacados três elementos centrais da posição de Simonsen, conforme descrito a seguir. 1) O Brasil deveria promover um processo de industrialização como forma de superação de seu atraso econômico.5 Esta alteração deveria ocorrer ainda que as vantagens comparativas ricardianas indicassem um padrão de 4. Além do ritmo acelerado de crescimento das atividades industriais – entre 1933 e 1939 o setor industrial cresceu a uma taxa média de 11,2% ao ano (a.a.) – observou-se também um importante processo de diversiicação das atividades produtivas. De acordo com Possas (1983), em 1920, aproximadamente 75% da produção industrial eram derivados do setor de bens salário, com participação signiicativa dos ramos têxteis, bebidas e produtos alimentares, enquanto o setor de bens de produção respondia por apenas 7% do produto industrial. Já em 1939, a produção dos setores de bens intermediários e dos bens de capital saltou, respectivamente, para 22% e 8,8% do produto industrial. 5. De uma perspectiva histórica, tal como proposto por Fonseca (2004), pode-se airmar que a defesa da industrialização como forma de promoção do desenvolvimento era uma ideia, ainda que marginal, presente há muito tempo no país, sobretudo após a Proclamação da República. Amaro Cavalcanti, Aristides de Queirós, Alcindo Guanabara, Serzedelo Correa e Felisbelo Freire já haviam defendido as vantagens da promoção de uma industrialização. Seus argumentos eram, no entanto, ainda rudimentares, limitados a uma “necessidade de superação de uma economia colonial”. Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 309 especialização concentrado na produção de bens intensivos em trabalho não qualiicado e recursos naturais. 2) O processo de industrialização também promoveria uma alteração no padrão de especialização comercial do país, reduzindo a importação de bens industriais e, portanto, melhorando a situação de suas contas externas. 3) Finalmente, e talvez esta seja a mais original contribuição do autor ao debate na época, a realização destas transformações na estrutura produtiva e na inserção comercial do país somente poderia ser realizada com participação do Estado e de seu esforço de planejamento. Simonsen, de modo pragmático, já tinha clareza da impossibilidade de o capital privado nacional realizar os investimentos necessários em áreas-chave para o processo de industrialização, especialmente na área da infraestrutura econômica e da produção de insumos industriais. Os temas trabalhados por Simonsen ao longo das décadas de 1930 e 1940 – especiicamente as três discussões selecionadas – não são apenas atuais e relevantes para o debate do desenvolvimento brasileiro; constituem-se no cerne dos principais debates econômicos do país, sobretudo do ponto de vista dos economistas heterodoxos. A preocupação com a evolução da estrutura produtiva, com a inserção externa e com o papel do Estado e do planejamento no desenvolvimento, temas centrais na obra de Simonsen, continuam extremamente atuais e relevantes para o debate econômico contemporâneo. Da mesma forma que o debate original entre Simonsen e Gudin foi inluenciado pelas condições históricas concretas em que ocorreu, os debates atuais sobre o desenvolvimento são igualmente inluenciados pela evolução atual do cenário econômico e político interno e internacional. Nesse sentido, algumas tendências recentes da evolução da estrutura produtiva e de alterações no padrão de especialização comercial do país, assim como a retomada do esforço de planejamento nos anos mais recentes, contribuem no sentido de elevar a relevância e a atualidade das discussões originalmente realizadas nas “controvérsias do planejamento”. Para organizar melhor a discussão, estas questões devem ser tratadas separadamente. É necessário, no entanto, fazer uma ressalva. Não se pretende, neste espaço, promover uma discussão mais aprofundada de cada um dos temas selecionados. O objetivo é mais singelo. Pretende-se apenas, a partir da seleção de algumas evidências empíricas e de literatura especializada, demonstrar a relevância e o estágio atual das discussões. Assim, as subseções a seguir tratam, respectivamente, de: analisar a discussão recente sobre a evolução da estrutura produtiva para o desenvolvimento; discutir o tema da inserção externa; e apresentar, ainda que brevemente, uma relexão sobre o papel do planejamento e da intervenção do Estado no sistema econômico para o desenvolvimento. 310 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 3.1 Estrutura produtiva, política industrial e desenvolvimento A promoção de um processo de industrialização constituía-se no ponto de partida, de acordo com Simonsen, para a superação do atraso econômico do país nas décadas de 1930 e 1940. A evolução recente da estrutura produtiva, com destaque para a redução da participação da indústria no produto e na geração de emprego, reacendeu o debate sobre o papel da estrutura produtiva para o desenvolvimento. Vale lembrar que, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE), a participação da indústria de transformação no produto interno bruto (PIB), que em 1986 ultrapassou 30%, atingiu em 2011 a marca de 14,60%, valor muito próximo aos 13,56% registrados em 1956, ano em que teve início o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Nesta subseção apresenta-se uma breve recuperação de algumas contribuições selecionadas sobre o tema, com objetivo restrito de demonstrar sua atualidade e relevância.6 Oreiro e Feijó (2010), por exemplo, airmam que existem “evidências conclusivas a respeito da ocorrência de desindustrialização na economia brasileira para o período 1986-1998” (Oreiro e Feijó, 2010, p. 231). Em função de mudanças metodológicas procedidas pelo IBGE em 2007, a mesma airmação não pode ser feita para o período posterior à alteração do regime de câmbio, em 1999. O artigo também sustenta que existem “sinais inquietantes da ocorrência de ‘doença holandesa’, ou seja, de desindustrialização causada pela apreciação da taxa real de câmbio que resulta da valorização dos preços das commodities e dos recursos naturais no mercado internacional” (Oreiro e Feijó, 2010, p. 231).7 No entanto, dado o objetivo especíico deste trabalho, é mais importante destacar a conexão proposta por Oreiro e Feijó (2010) entre a estrutura produtiva e o desenvolvimento. De acordo com esses autores, “os economistas heterodoxos acreditam que a indústria é o motor do crescimento de longo prazo das economias capitalistas” (Oreiro e Feijó, 2010, p. 223). Há, portanto, uma associação direta entre indústria e crescimento de longo prazo, sintetizada na passagem que se segue. Em suma, a indústria é vista como “especial” pelo pensamento heterodoxo, pois ela é a fonte de retornos crescentes de escala (indispensável para a sustentação do crescimento no longo-prazo), é a fonte e/ou a principal difusora do progresso tecnológico e permite o relaxamento da restrição externa ao crescimento de longo prazo... Nesse contexto, a desindustrialização é um fenômeno que tem impacto negativo sobre o potencial de crescimento de longo-prazo, pois reduz a geração de retornos crescentes, diminui o ritmo de progresso técnico e aumenta a restrição externa ao crescimento (Oreiro e Feijó, 2010, p. 231). 6. Para uma discussão detalhada sobre o tema do papel da industrialização para o desenvolvimento econômico, recomenda-se a leitura de Curado (2013). 7. Uma visão distinta é encontrada em Nassif (2008). As evidências selecionadas pelo autor apontam para a inexistência de um processo de “desindustrialização” no Brasil, particularmente no período recente. Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 311 De fato, o debate sobre a ocorrência de um processo de desindustrialização só tem importância se, de uma perspectiva teórica, a estrutura produtiva for um elemento relevante para a trajetória de desenvolvimento. Da mesma forma, as discussões sobre a política industrial ganham relevância e importância na medida em que apresentam em sua formulação a visão sobre o papel da estrutura produtiva industrial no desenvolvimento. Diversas são as formas de agrupar o debate recente sobre política industrial no país. No entanto, em função dos objetivos do artigo, pode-se propor uma organização deste debate em dois grupos dispostos a seguir. 1) Os que defendem que a promoção de políticas industriais deve ser pensada como um elemento de transformação da estrutura produtiva, o que, em geral, implica adotar políticas de corte setorial. 2) Os que defendem que a promoção de políticas industriais setoriais só faz sentido econômico na presença de “falhas de mercado”. Não é de se estranhar que, como tomam pontos de partida distintos, os resultados em termos de sugestão de política industrial sejam igualmente distintos. Como exemplos da primeira linha, apresentam-se, entre outros, Kupfer (2003) e Suzigan e Furtado (2006). Na segunda linha apresentam-se, entre outros, Ferreira e Hamdan (2003) e Pinheiro et al. (2007). Kupfer (2003) é enfático em demonstrar o papel central da execução de políticas industriais como forma de “transformação” da estrutura produtiva e promoção do desenvolvimento. Desenvolvimento econômico é mais do que crescimento do nível de produto. Não é, e em economias atrasadas, não pode ser mais do mesmo. Desenvolvimento é crescimento com mudança estrutural. É nessa perspectiva que a política industrial deve ser pensada. Cabe à política industrial acelerar os processos de transformação produtiva que as forças de mercado podem operar, mas o fazem com lentidão, e disparar os processos que estas mesmas forças são incapazes de articular (Kupfer, 2003, p. 281). Kupfer (2003) defende a política industrial como forma de transformação da estrutura produtiva, necessária para o desenvolvimento econômico. Esta política deve agir de forma complementar às forças de mercado, mas também disparar “os processos que estas mesmas forças são incapazes de articular”. Esta forma de conceber a política industrial, no qual o Estado deve desempenhar um papel ativo no desenvolvimento de setores especíicos, não faz sentido de uma perspectiva mais convencional, tal como a apresentada em Ferreira e Hamdan (2003). Uma passagem dos autores, ao comentar a proposta de Kupfer (2003) deixa evidente este ponto: 312 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Quanto às diretrizes da política industrial no plano setorial, a proposta de incentivos a setores não competitivos nos parece totalmente descabida. Ao invés de alocarmos recursos para setores que hoje não são competitivos internacionalmente (...) deveríamos nos questionar porque não deveríamos nos especializar mais intensamente (mas não exclusivamente) na produção daquilo em que somos eicientes, ou seja, em setores intensivos em trabalho não qualiicado e recursos naturais. Não há nada de inerentemente “nobre” ou “plebeu” neste tipo de especialização. Isto somente relete o fato de sermos eicientes hoje na produção de determinados bens e serviços e de que o custo-benefício aqui é bem menor que o das alternativas dinâmicas (Ferreira e Hamdan, 2003, p. 313). Qualquer semelhança com as indicações de Ricardo para o padrão especialização entre Portugal e Inglaterra não nos parece ser mera coincidência. Ao defender a especialização na produção baseada na dotação de fatores existente hoje na economia, Ferreira e Hamdan (2003) promovem uma defesa explícita das vantagens comparativas ricardianas e da literatura de comércio internacional à moda Heckscher-Ohlin e também de um padrão de especialização centrado na exploração de fatores produtivos abundantes hoje, o que elimina da discussão o caráter de transformação da estrutura produtiva, ponto de partida, entre outros, de Kupfer (2003). A importância da estrutura produtiva e, em especial, o papel da industrialização para o desenvolvimento, temas centrais do debate travado por Simonsen e Gudin na década de 1940, continuam presentes na agenda dos debates econômicos contemporâneos, como visto a partir da breve discussão realizada nesta subseção. Os avanços registrados pela literatura e a evolução concreta do sistema econômico não eliminaram as divergências existentes entre os analistas sobre o tema. Finalmente, chama atenção também que, em alguma medida, boa parte dos debates “atuais” repetem argumentos já presentes nos debates originais das ”controvérsias do planejamento”. 3.2 Inserção externa e desenvolvimento A ideia de que as características da inserção externa de um país desempenham um papel-chave em sua trajetória de desenvolvimento não é nova e tem forte tradição na América Latina. Simonsen, nos anos 1940 já chamava a atenção para os perigos da prática do livre comércio, defendida por Gudin. Estas práticas poderiam promover um regresso do país a um estágio de uma “fazenda ultramarina”. Seus trabalhos também já destacavam a dependência do Brasil em relação à importação de bens industriais e seus efeitos negativos sobre o potencial de crescimento do país. Vale lembrar que, na década de 1940, a industrialização brasileira dependia substancialmente da capacidade de importação da economia, sobretudo para a compra de bens de capital e insumos industriais. Não é sem motivos que após Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 313 a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o ritmo de crescimento das atividades industriais foi reduzido. Entre 1939 e 1945, a taxa de crescimento médio anual destas atividades foi – de acordo com Villela e Suzigan (1975) – de 5,4%, bem inferior ao patamar observado entre 1933 e 1939. Simonsen preocupava-se com esta dependência e com os efeitos sobre o balanço de pagamentos do elevado coeiciente de importação de produtos industriais. Na década de 1950, essas ideias se desenvolveram por toda a América Latina. Os trabalhos de Raul Prebisch e da tradição cepalina destacavam o baixo dinamismo exportador – e a elevada propensão a importar – como a principal limitante à obtenção de taxas mais altas de crescimento nos países em desenvolvimento.8 É inegável a inluência do estruturalismo cepalino e, mais recentemente, das contribuições schumpeterianas na formação do pensamento econômico heterodoxo brasileiro. Nessa perspectiva teórica, as alterações recentemente veriicadas no padrão de especialização comercial – especialmente a elevação da participação relativa dos bens básicos na pauta de exportação brasileira – são preocupantes. Vale lembrar que em 2009, 40% das exportações foram derivadas das vendas de produtos básicos, tal como apresentado na tabela 1. TABELA 1 Exportações por fator agregado global e por país de destino (Anos selecionados) ANO Brasil China Estados Unidos SemimaUS$ Manufamilhões Básico nufaturaturados dos FOB1 US$ SemimaManufamilhões Básico nufaturaturados FOB¹ dos US$ SemimaManumilhões Básico nufaturafaturados FOB¹ dos 1995 46,506 23,6 19.7 55,0 1.204 15,9 57,3 26,8 21,9 67,2 2000 55,086 22,8 15.4 59,0 1.085 68,2 13,0 18,8 13.190 7,1 18,5 72,4 2005 118,308 29,3 13.5 55,1 6.835 68,4 14,7 16,7 22.540 9,2 18,9 71,2 2009 152,995 42,0 12,6 43,3 21.004 77,7 15,5 6,8 15.602 26,1 13,3 59,8 89.187 43,4 13,9 40,5 13.467 83,6 11,6 4,7 8.954 29,7 16,1 53,4 2010* 8.683 10,1 Fonte: Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC, 2010) apud Porcile, Curado e Cruz (2012). Nota: ¹Free on Board. Não bastasse, porém, o fato de que a participação dos produtos intensivos em recursos naturais tem aumentado de forma signiicativa nos últimos anos, quando consideradas apenas as exportações industriais diferenciadas por grau de intensidade tecnológica, há perda relativa em quase todos os setores, conforme demonstra a tabela 2. Nesse caso, as principais exceções são as indústrias “aeronáutica e 8. Na tradição de Harrod, Kaldor e Seers, o comportamento assimétrico das elasticidades-renda das exportações e importações era visto como um determinante da taxa de crescimento relativa das distintas economias, num sistema internacional interligado por luxos de capital, comércio e tecnologia. Posteriormente, a chamada Lei de Thirlwall deu um arcabouço formal a essas ideias e contribuiu para o desenvolvimento de novos modelos que enfatizam o papel da competitividade externa como determinante do crescimento sustentável no longo prazo. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 314 aeroespacial” (classiicada como de alta tecnologia) e “Produtos de petróleo reinado e outros combustíveis” (classiicada como de média-baixa tecnologia), para a qual as políticas industriais e tecnológicas setoriais poderiam servir como referência, tendo como destaque os casos da Embraer e da Petrobras, além dos programas de estímulo ao desenvolvimento da tecnologia e utilização do etanol como combustível veicular. TABELA 2 Participação dos setores industriais por intensidade tecnológica1 na exportação brasileira (1996-2009) (Em %) Setores 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2007 2008 2009 Produtos não industriais 16,4 19,4 16,6 19,4 20,0 21,9 24,1 28,3 31,6 Produtos industriais 1 83,6 80,6 83,4 80,6 80,0 78,1 75,9 71,7 68,4 Indústria de alta e média-alta tecnologia (I+II) 27,1 31,7 35,6 31,3 30,0 30,4 29,1 26,1 23,7 Indústria de alta tecnologia (I) 4,3 6,3 12,4 9,8 6,9 6,8 6,4 5,8 5,9 Aeronáutica e aeroespacial 1,2 2,8 6,7 4,7 3,6 2,7 3,2 3,1 3,0 Farmacêutica 0,7 0,8 0,7 0,7 0,6 0,7 0,7 0,7 1,0 Material de escritório e informática 0,7 0,7 0,9 0,4 0,3 0,4 0,2 0,1 0,1 Equipamentos de rádio, TV e comunicação 1,3 1,5 3,5 3,4 1,9 2,6 1,8 1,5 1,3 Instrumentos médicos de ótica e precisão Indústria de média-alta tecnologia (II) 0,4 0,5 0,7 0,6 0,4 0,5 0,5 0,4 0,5 22,8 25,4 23,1 21,4 23,1 23,6 22,7 20,3 17,8 Máquinas e equipamentos elétricos n. e. 1,8 1,6 1,7 1,6 1,5 1,9 2,0 1,9 2,0 Veículos automotores, reboques e semirreboques 8,1 11,5 9,7 9,2 10,0 10,5 9,3 8,2 6,1 Produtos químicos, exclusive farmacêuticos 6,3 5,9 6,0 5,2 5,0 4,9 5,1 4,4 4,9 Equipamentos para ferrovia e material de transporte n. e. 0,1 0,1 0,2 0,2 0,3 0,4 0,4 0,3 0,2 Máquinas e equipamentos mecânicos n. e. 6,5 6,2 5,5 5,3 6,4 5,9 5,9 5,4 4,6 16,2 20,5 17,3 18,6 17,6 19,5 19,8 19,7 19,6 Construção e reparação naval Indústria de média-baixa tecnologia (III) 0,4 0,3 0,0 0,0 1,3 0,0 0,5 0,8 0,1 Borracha e produtos plásticos 1,8 1,8 1,7 1,5 1,4 1,5 1,6 1,4 1,5 Produtos de petróleo reinado e outros combustíveis 1,9 1,7 3,1 3,6 3,3 4,4 4,4 4,8 3,8 Outros produtos minerais não metálicos 1,4 1,5 1,5 1,6 1,6 1,5 1,4 1,1 1,0 Produtos metálicos 15,0 12,1 12,2 10,9 11,9 12,3 11,8 11,6 9,8 Indústria de baixa tecnologia (IV) 36,0 31,6 29,3 31,7 30,5 27,9 27,1 26,0 28,5 Produtos manufaturados n. e. e bens reciclados 1,5 1,4 1,6 1,5 1,5 1,1 1,1 0,9 0,9 Madeira e seus produtos, papel e celulose 6,3 6,0 7,3 6,4 6,2 5,3 5,1 4,4 4,4 20,8 18,1 14,0 17,9 17,8 17,4 17,2 17,9 20,7 7,4 6,1 6,4 5,9 5,0 4,0 3,8 2,8 2,5 Alimentos, bebidas e tabaco Têxteis, couro e calçados Fonte: MDIC (2010) apud Porcile, Curado e Cruz (2012). Nota: 1 Classiicação extraída de Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), Directorate for Science, Technology and Industry, STAN Indicators, 2003. Obs.: n. e. signiica não especificados, nem compreendidos em outra categoria. Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 315 Porcile, Curado e Cruz (2012) defendem que os efeitos favoráveis da rápida expansão da economia mundial deveriam ser vistos também à luz de seus efeitos sobre a composição das exportações brasileiras. O novo padrão da demanda mundial, que favorece as matérias-primas e bens intensivos em recursos naturais, pode afetar negativamente setores com maior potencial de inovação e aprendizado futuro. Uma restrição menos severa no curto prazo pode implicar perdas de capacidades competitivas e problemas (potencialmente) maiores no longo prazo, caso os ganhos advindos deste cenário não sejam direcionados a ações voltadas a melhorar a competitividade dos setores mais intensivos em tecnologia, incluindo diversos segmentos da indústria de transformação. A conjuntura econômica contemporânea, com destaque para a elevação da participação das commodities nas exportações totais, traz à tona mais uma vez o tema da inserção comercial e de seus efeitos sobre o desenvolvimento de longo prazo. Nesse sentido, o trabalho de Porcile, Curado e Cruz (2012) é apenas um exemplo da literatura econômica, inluenciada pelo estruturalismo e pelo neoschumpeterianismo, que vê com muitas ressalvas esta tendência do padrão de especialização comercial; preocupação que, num plano mais geral e intuitivo, já fazia parte das relexões de Simonsen, tal como apresentado na seção 2. 3.3 Estado, planejamento e desenvolvimento A crise dos anos 1980 colocou em xeque os ideais desenvolvimentistas que Simonsen ajudou a construir. Os últimos anos da década foram marcados pela repetição – com mudanças marginais – na forma de combate à inlação preconizada pelo choque heterodoxo implementado com o Plano Cruzado em 1986.9 Às vésperas da primeira eleição direta para presidência da República após o Golpe Militar de 1964, a economia encontrava-se em recessão, e a inlação estava praticamente descontrolada. O ambiente era propício para a crítica a tudo aquilo que fora construído nas décadas anteriores. O padrão brasileiro de desenvolvimento vigente do pós-guerra até o inal dos anos 1970 não era apenas posto em xeque, passava a ser responsabilizado pelo seu atraso relativo. É nesse contexto especíico que se deu a implantação da agenda neoliberal no país. Em alguma medida, o Brasil respondia, com atraso temporal, a uma tendência internacional de ascensão de um projeto neoliberal. Vale lembrar que a década de 1990 foi pródiga na promoção e na difusão do sonho liberal de formação de uma grande “aldeia global”. Difundia-se a ideia de que o capitalismo, por meio da intensiicação do processo de globalização atingira seu estágio máximo de evolução. Na grande aldeia global, tal como proposto, entre outros, por Ohmae (1995), não havia espaço para os velhos Estados-nações e seus interesses particulares. Não 9. Os planos Bresser (1988) e Verão (1989) repetiram o uso do congelamento de preços e o fracasso no combate à inlação após o processo de “descongelamento” da economia. 316 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil havia espaço para o planejamento e para a participação do Estado na atividade econômica, não havia espaço para agenda desenvolvimentista. No plano nacional, a chegada de Collor à presidência da República marcou o início da implantação desse “projeto”. O subdesenvolvimento brasileiro era entendido como o resultado dos equívocos cometidos nas décadas passadas. A alocação de recursos deveria ser conduzida pelo mercado. O Estado deveria retirar-se da atividade produtiva, tal como deinido pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), Lei no 8.031/90. A proteção à indústria deveria ser eliminada por intermédio de um processo de abertura comercial, com o im das barreiras não tarifarias e a redução das alíquotas de importação. Desestatização e abertura promoveriam, pela ampliação da concorrência e da eiciência na alocação e gestão de recursos, o aumento da produtividade do sistema. Restava, no entanto, ainda um grave problema. Era preciso combater a inlação. A resposta do governo a este problema foram os planos Collor I e II e seu ineiciente bloqueio de liquidez. O fracasso no combate à inlação e a instabilidade política gerada pelo processo de impeachment contra o presidente limitaram, naquele momento, o alcance da agenda neoliberal. Isso não signiica, no entanto, que esta agenda não tenha promovido avanços mesmo nos anos de maior instabilidade econômica e política. Vale dizer que entre 1990 e 1992, ocorreu a desestatização de dezoito empresas nos setores de siderurgia, fertilizantes e petroquímica, com destaque para a privatização da Usiminas em outubro de 1991. A implantação do Plano Real e o sucesso no combate à inlação, somados à estabilidade política dos primeiros anos da gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC), permitiram a deinição, de acordo com os membros do governo, com destaque para a contribuição de Franco (1998), de um “novo” padrão de desenvolvimento. Em suas linhas gerais, no entanto, este “novo” padrão reproduziu, com alterações marginais, os elementos básicos do projeto neoliberal. A redução do tamanho do Estado por meio do processo de desestatização e a abertura comercial e inanceira foram intensiicadas. No que tange ao primeiro aspecto, vale lembrar que, a partir de 1995, foram incorporadas ao programa de desestatização o setor de eletricidade e as concessões de serviços públicos (nas áreas de transporte e telecomunicações). A venda da Companhia Vale do Rio Doce em 1997 foi um marco importante desse processo de retirada do Estado da atividade produtiva. Ainda que durante a gestão FHC a estabilidade de preços tenha sido conquistada, elemento crucial para o desenvolvimento de uma economia, não há como negar que em diversos aspectos o “novo” projeto de desenvolvimento apresentou resultados limitados. Entre 1994 e 2002, o novo padrão, baseado na elevação da eiciência, gerou um crescimento médio do PIB de apenas 2% a.a., o que acarretou, entre outros efeitos, a elevação na taxa de desemprego e a redução dos Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 317 salários reais. Os avanços na distribuição da renda, observados sobretudo no início do processo de estabilização, foram marginais e logo interrompidos. Essa diiculdade em combinar crescimento e estabilidade foi anunciada por diversos especialistas de distintas matrizes teóricas, desde o início do processo de estabilização.10 A condução da política macroeconômica no período, além de contribuir para o reduzido ritmo de expansão do produto, gerou outros graves problemas. Entre março de 1995 e janeiro de 1999, a administração de uma taxa de câmbio real valorizada, via regime de bandas cambiais, contribuiu, de acordo Belluzzo (1999), para a recorrência de deficit comerciais e no saldo em transações correntes, elementos que cumpriram um papel-chave para o ataque especulativo contra o real em janeiro de 1999. A necessidade de atrair capitais especulativos para manter a estabilidade do regime de câmbio gerou, num contexto de ampliação das incertezas no cenário internacional, a manutenção de taxas de juros básicas entre as mais elevadas do mundo,11 o que, além de reduzir a demanda agregada, contribuiu de forma decisiva para a elevação da dívida pública federal no período. A alteração da política macroeconômica após o ataque especulativo, com implantação do regime de câmbio lutuante e, posteriormente, a instituição do regime de metas de inlação, contribuíram para melhorar o comportamento de algumas variáveis, com destaque para os avanços nas contas externas a partir de 2001. No entanto, as mudanças procedidas a partir de 1999 não foram capazes de dar início a um ciclo consistente de expansão dos investimentos e do produto, nem de promover avanços relevantes na distribuição da renda. O modelo baseado em investimentos privados – via privatização e/ou concessões com regulação estatal – nos setores de infraestrutura revelaram-se, também, incapazes de promover a necessária expansão de setores-chave para o desenvolvimento. O “apagão” do setor elétrico que desencadeou o racionamento energético em 2001 é um bom exemplo da ineiciência do modelo em promover a necessária expansão dos setores de infraestrutura do país. Em alguma medida, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência da República em 2002 foi uma resposta da sociedade brasileira à fragilidade do projeto neoliberal e sua incapacidade de promover o desenvolvimento. Durante o governo, especialmente em seu segundo mandato, ocorreram mudanças relevantes no que tange ao papel do Estado e ao planejamento para o desenvolvimento. Uma questão ainda muito discutida é sobre até que ponto as alterações processadas no 10. Pastore e Pinotti (1996) e Castro (1996) são exemplos destas contribuições. 11. De acordo com dados do Banco Central do Brasil (BCB), entre julho de 1994 e dezembro de 1998, a taxa de juros Selic foi, na média, de 22,5% a.a. 318 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil governo Lula romperam com a agenda neoliberal e promoveram a implantação de um novo padrão de desenvolvimento. Barbosa e Souza (2010), por exemplo, defendem que, a partir do segundo mandato de Lula, ocorreu uma inflexão na condução da política econômica – fruto dos debates no interior do governo entre a “visão liberal” e a “visão desenvolvimentista”. Este debate levou a adoção de uma “postura mais pragmática” com base em três linhas: [1] adoção de medidas temporárias de estímulo iscal e monetário para acelerar o crescimento e elevar o potencial produtivo da economia; [2] a aceleração do desenvolvimento social por intermédio do aumento nas transferências de renda e elevação do salário mínimo; e [3] o aumento do investimento público e a recuperação do papel do Estado no planejamento de longo prazo (Barbosa e Souza, 2010, p. 69-70). Morais e Saad-Filho (2011, p. 520) sustentam que, no segundo governo Lula, o sentido mais amplo das mudanças foi: Dar ativismo ao Estado no domínio econômico, principalmente (a) no fomento à produção via inanciamento de capital e investimentos públicos em infraestrutura; (b) na expansão do mercado de consumo de massa via programas de transferência de renda, elevação do salario mínimo e do crédito ao consumo; (c) apoio à formação de grandes empresas brasileiras, transformando-as em agentes competitivos em frente às multinacionais tanto no mercado interno como no mercado internacional. A ocorrência destas mudanças, concomitantemente à manutenção do núcleo de políticas macroeconômicas herdadas de FHC, criou, de acordo com os autores, um modelo “híbrido” de política econômica. De toda forma, Barbosa e Souza (2010) e Morais e Saad-Filho (2011) concordam que a inflexão veriicada a partir do segundo mandato de Lula não constituiu uma “nova política”, tendo em vista a preservação dos elementos nucleares da política econômica nos campos iscal, monetário e cambial. A concordância dos autores sobre o caráter parcial das mudanças ocorridas não encerra o debate. Os impactos deste maior ativismo do Estado devem ser analisados, já que seus efeitos sobre a economia foram distintos – aspecto não discutido pelos autores. Os efeitos do apoio à formação de grandes empresas brasileiras, pelo menos até o presente momento, são limitados. Seus resultados concretos, especialmente em termos de competitividade, deixam a desejar. O signiicativo aumento das importações no período, a dependência das exportações de commodities para a geração de superavit comerciais e os deficit registrados na balança comercial de manufaturados, que, apenas em 2011, atingiram a marca de US$ 92,3 bilhões, sugerem que os resultados concretos desta política, ao menos em termos de competitividade, são, na melhor das hipóteses, limitados. Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 319 O fomento à produção via financiamento de capital e os investimentos públicos em infraestrutura são também destacados por Saad-Filho e Morais (2011). Ao longo desse período, sobretudo após a ocorrência da crise inanceira global, ocorreu uma signiicativa ampliação no inanciamento concedido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES). O aumento da participação dos investimentos públicos em infraestrutura foi igualmente registrado. Esse processo ocorreu a partir de 2007, com a criação dos Planos de Aceleração do Crescimento (PACs). Ainda que apontem numa direção conceitualmente distinta, na qual se retoma o papel do Estado na realização de investimentos em setores-chave da economia, os efeitos concretos dos planos são limitados, tendo em vista que: i) especialmente o primeiro PAC, lançado em 2007, promoveu a reunião de um conjunto de investimentos já previstos, sobretudo pela Petrobras, não se tratando, portanto, de um novo conjunto de investimentos; ii) os recursos alocados nos planos são escassos em relação às necessidades de investimentos nos setores, e sua execução ocorre com atrasos (o décimo balanço do PAC, apresentado em junho de 2010, registrou a conclusão de 46,1% do total de investimentos previstos para o período 2007/2010); e iii) os planos têm caráter conjuntural, não se constituindo numa política institucionalizada de elevação permanente da participação do Estado nos investimentos em setores-chave da economia. Apesar das críticas elaboradas anteriormente, que dão conta dos limites dos PACs em seu formato atual, não há como negar que os planos apontam numa direção conceitualmente distinta daquela proposta pela agenda neoliberal. Os PACs retomam claramente o papel do Estado no planejamento e na realização de investimentos do Estado em atividades produtivas, rompendo, portanto, com o processo de retirada do Estado destas atividades promovido durante as gestões de Fernando Collor e FHC. Finalmente, Morais e Saad-Filho (2011) destacam a expansão do mercado de consumo de massa via programas de transferência de renda, elevação do salário mínimo (SM) e do crédito ao consumo como características do novo ativismo estatal. De fato, nesse campo, as mudanças ocorridas foram substantivas. A recuperação do crescimento econômico observada a partir de 2004 ocorreu concomitantemente à melhora nos indicadores de distribuição da renda e de redução da pobreza. O índice de Gini, que, em 2003, era de 0,59, atingiu em 2009 a marca de 0,54, rompendo com a tendência histórica de manutenção de um elevado grau de concentração da renda. Vale lembrar que em 1981 o índice de Gini era de 0,58 e, em 2001, alcançava a marca de 0,60. Os efeitos sobre a redução da pobreza também foram igualmente importantes. A taxa de extrema pobreza foi reduzida de 11,49%, em 2005, para 7,28% em 2009, de acordo com cálculo apresentado em relatório produzido pelo Ipea (2010). 320 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Avanço ainda mais signiicativo foi obtido no que concerne à evolução da taxa de pobreza do país. Em 2005, esta taxa era de 30,82%, enquanto, em 2009, seu valor atingiu 21,42%. O comunicado intitulado: A década inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda (Ipea, 2012) fornece dados relevantes para a discussão deste processo no Brasil. De acordo com a publicação, entre 2001 e 2011, os 10% mais pobres do país tiveram um crescimento de renda acumulado de 91,2%, enquanto os 10% mais ricos obtiveram nesse mesmo período um incremento de 16,6% na renda acumulada. O comunicado conclui que o crescimento da renda derivado do trabalho respondeu por 58% da redução da desigualdade. Os ganhos previdenciários e o Programa Bolsa Família (PBF), por seu turno, responderam, respectivamente, por 19% e 13% desta redução. Portanto, a diminuição da desigualdade foi fruto principalmente do aquecimento do mercado de trabalho. Os avanços na distribuição da renda e na queda da pobreza devem ser creditados a inúmeros fatores. A retomada do crescimento e a ampliação do mercado formal de trabalho desempenharam um papel relevante. O mesmo deve ser dito sobre a política de transferência de renda encabeçada pelo PBF e pela política deliberada de elevação do SM real. Sobre o PBF, vale a pena ressaltar que beneiciou 12,7 milhões de famílias em 2010 e injetou na economia (dada a baixa propensão a poupar destes beneiciados) em torno de R$13 bilhões. Portanto, durante o governo Lula foi realizada uma ampliação das políticas de assistencialismo social, consolidadas no PBF. A rigor o programa não pode ser considerado uma inovação, já que, desde a Constituição de 1988, as políticas assistencialistas encontram-se estruturadas no país. O elemento novo encontra-se na expansão promovida na área. Ao atingir 12,7 milhões de famílias em 2010, o programa extrapolou seu caráter assistencial com impactos não desprezíveis para a economia. Ao que tudo indica, a economia brasileira atravessou, naquele momento, o trecho kaleckiano da relação distribuição da renda/crescimento, já que a desconcentração da renda – e ampliação do consumo dela derivada – estiveram positivamente relacionadas com a expansão do produto.12 Em síntese, tal como sustentam Barbosa e Souza (2010) e Morais e Saad-Filho (2011), as análises do governo Lula devem levar em consideração as alterações processadas a partir de seu segundo mandato. Esta inlexão, no entanto, não deu origem a uma “nova política”, tendo em vista a preservação de elementos nucleares da política econômica herdada da gestão FHC. O fato de ter conduzido 12. A ampliação do mercado consumidor não resultou apenas das boas condições do mercado de trabalho. Contribuiu de forma decisiva neste processo a signiicativa expansão do crédito, especialmente para aquisição de bens de consumo duráveis. Em janeiro de 2003, a relação operações de crédito (setores público e privado)/PIB era de 23,94%. Em outubro de 2010, esta relação atingiu 47,25% do produto. Roberto Simonsen: as contribuições e a atualidade do pensamento 321 uma política “híbrida”, no entanto, não pode encobrir as alterações processadas no papel do Estado na economia, com destaque para a retomada, ainda que limitada, dos investimentos públicos em infraestrutura e nos avanços promovidos sobre a distribuição da renda e o combate à pobreza pelas políticas assistencialistas e de elevação do SM. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A evolução da estrutura produtiva e do padrão de especialização comercial, assim como o papel do Estado no domínio econômico – temas tratados pelo debate original da “controvérsia do planejamento” entre Simonsen e Gudin – continuam atuais e persistem como temas de debates das atuais gerações de economistas e cientistas sociais preocupados com a temática do desenvolvimento. As alterações recentes processadas na estrutura produtiva (queda da participação da indústria na geração do produto), no padrão de especialização comercial do país (elevação das exportações de commodities) e as mudanças observadas na segunda gestão Lula (retomada do papel do Estado, especialmente via investimentos públicos em setores de infraestrutura) contribuem para a atualidade e relevância do debate inaugurado por Simonsen e Gudin. O pioneirismo e a originalidade das contribuições de Simonsen, especialmente ao incorporar o papel do planejamento para o desenvolvimento, reforçam a importância de estudos adicionais sobre o autor. Do ponto de vista da reconstrução da história do pensamento econômico, restam ainda diversos temas para estudo. A importância da teoria econômica da década de 1940 na formação do pensamento de Simonsen, fator até recentemente marginalizado por boa parte da literatura especializada, é um exemplo de tema que merece novos estudos e relexões, tal como argumentado por Curi e Cunha (2011). A atualidade dos temas desenvolvidos por Simonsen não signiica evidentemente que as propostas concretas de políticas públicas defendidas pelo autor possam ser transportadas para o presente. A mesma observação é válida para as propostas de políticas públicas elaboradas pelo desenvolvimentismo da década de 1950. A reedição de propostas utilizadas no passado, num contexto histórico local e internacional radicalmente distinto, seria um equívoco. A impossibilidade de transplantar no tempo o modelo desenvolvimentista é tema relativamente consensual. Teixeira, Maringoni e Gentil (2010, p. 29), por exemplo, ao se questionarem sobre a viabilidade de um retorno do desenvolvimentismo airmam que não: “(…) certamente não como uma repetição das experiências passadas, no longo ciclo que se estendeu de meados dos anos 1950 ao inal da década de 1970. O mundo mudou e com ele o Brasil”. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 322 Se, por um lado, o transplante das medidas desenvolvimentistas para o presente seria um equívoco; por outro, os resultados concretos obtidos ao longo da década de 1990 e as atuais condições vigentes na economia brasileira e no cenário internacional, especialmente após a crise de 2008, tornam desprovida de qualquer relevância a agenda neoliberal. É nesse contexto mais complexo e difuso que os temas discutidos devem ser tratados. O papel da estrutura produtiva, a relevância do padrão de especialização comercial e o papel do Estado na economia não podem ser deixados de lado por aqueles que pretendam fazer uma discussão consistente sobre os desaios do desenvolvimento econômico brasileiro e que, ao mesmo tempo, entendem que o papel do economista não deve icar limitado ao estudo das lutuações de curto prazo de produto e inlação. REFERÊNCIAS BARBOSA, N.; SOUZA, J. A. A inlexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda. In: SADER, E.; GARCIA, M. A. (Org.). Brasil: entre o passado e o futuro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo e Boitempo, 2010. BELLUZZO, L. G. Plano real: do sucesso ao impasse. Economia aplicada, v. 3, número especial, mar. 1999. BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1988. (Série PNPE, n. 19). CARONE, E. Roberto C. Simonsen e sua obra. 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Ao analisar o pensamento econômico brasileiro no período entre 1930 e 1964, Bielschowsky (1988) classiica os autores nacionais em cinco categorias e cita Roberto Campos como um “desenvolvimentista do setor público não nacionalista”.3 O próprio Campos (1994, p. 168) não contesta essa classiicação; sugere apenas uma alteração na denominação da categoria em que foi colocado, que a seu ver icaria mais bem caracterizada se chamada de liberal desenvolvimentista ou de desenvolvimentista cosmopolita. No inal da sua vida, no entanto, Roberto Campos havia se convertido em um convicto liberal e cáustico crítico da intervenção do Estado no domínio econômico. O autor, que, antes, atribuía ao Estado certa “capacidade telescópica”, que justiicaria sua ingerência no planejamento e no disciplinamento do mercado, não hesitava, em seus textos da maturidade, em airmar que “o Estado não sabe prever e não é capaz de prover” (Campos, 1988, p. 151) e em considerar que “nada há mais perigoso do que a coniança do tecnocrata em corrigir o mercado”(op. cit., p. 138). Como poderia o Estado, inicialmente visto como o motor do desenvolvimento, ter se transformado no grande vilão do atraso do país? O que teria acontecido com as ideias de Roberto Campos? Haveria contradições internas em seu pensamento ou alguma rejeição de seus argumentos iniciais pelos desenvolvidos posteriormente? É certo que a ênfase e o foco de Roberto Campos mudaram. Porém, a tese que se pretende defender neste artigo é a de que a sua argumentação permaneceu coerente ao longo da sua vida. E o que permite a conexão entre posições aparentemente tão distintas como as anteriormente ilustradas é exatamente a sua iliação ao que se 1. Professor-adjunto da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: gasparini@ccsa.ufpb.br 2. Segundo Bielschowsky (1988), o desenvolvimentismo pode ser definido como o projeto de superação do subdesenvolvimento através da industrialização integral, por meio de planejamento e decidido apoio estatal. 3. As cinco categorias propostas são: neoliberais, três grupos de desenvolvimentistas (do setor privado, do setor público nacionalista e do setor público não nacionalista) e socialistas. 326 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil poderia chamar de projeto mais amplo, contido no ideal Iluminista: usar a razão e o conhecimento humano para “moldar” a sociedade, ideal este que é base do planejamento (governamental ou não). Para se compreender a suposta coerência das teses de Campos, será preciso observar ainda algumas transformações fundamentais que aconteceram no Brasil, na realidade internacional e na teoria econômica. Segundo argumenta o cientista político José Antônio Giusti Tavares na abertura do interessante livro de Reginaldo Perez (1999), “a biograia intelectual de Roberto Campos contém o logos, secreto e complexo, da trajetória da economia e da política brasileira deste século que inda”. Airma ainda que, para reconstruir essa biograia, é preciso pensar e integrar (...) as tensões e as contradições dramáticas, todavia não resolvidas pela política ou pela ciência econômica, entre estruturalismo e monetarismo, nacionalismo e cosmopolitismo, mercado e Estado, produtividade e distributivismo, cada um dos quais com suas razões e legitimidade. Implica, em suma, pesar com circunspecção os argumentos de Keynes e Hayek. Na caracterização “iluminista” de Roberto Campos aqui sugerida, tanto o Estado como o mercado devem ser visualizados como instrumentos para a realização social. E a mudança de atitude desse autor em relação a ambos espelha o fato de que a experiência humana, na sua interpretação, teria evoluído na constatação de que o mecanismo de mercado é um instrumento mais eficaz para gerar prosperidade, bem-estar e liberdade do que o intervencionismo estatal sobre a economia. Nessa perspectiva, Campos não teria mudado de posição, nem abandonado em nenhum momento sua proposta inicial – adotar mecanismos sociais de tal forma que a organização humana se situe num patamar melhor. Sustenta-se que, na visão de Campos, tanto o mercado como o Estado possuiriam um papel importante, mas meramente instrumental. Cada qual possuiria virtudes e falhas que precisariam ser analisadas. As falhas de mercado deveriam ser corrigidas, e a atuação estatal precisaria ser controlada. O papel que cada um deles assume ao longo do tempo não deveria ser absoluto, mas sim dependente do conhecimento humano, da realidade interna e do contexto internacional em que se insere a sociedade. Portanto, é a partir das agudas mudanças experimentadas nessas três dimensões, ao longo do século passado, que se tenta compreender a mudança de ênfase que Campos atribui a cada um desses elementos nos momentos distintos do tempo. O artigo está estruturado em nove seções, incluindo esta introdução. Na segunda seção, revisa-se rapidamente o ideal iluminista de transformação da realidade por meio da razão e do conhecimento, ponto de partida para toda a argumentação do texto. A terceira seção trata da visão de Campos sobre o papel do Estado e do planejamento. A seção seguinte inaugura os questionamentos sobre as possibilidades e as limitações da atuação governamental e expõe argumentos, inspirados na obra Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 327 de Roberto Campos, que a justiicariam no contexto de países subdesenvolvidos. As três seções subsequentes descrevem as mudanças que izeram Roberto Campos afastar-se cada vez mais do intervencionismo: as ocorridas no Brasil, no contexto internacional e no plano das ideias econômicas, respectivamente. A oitava seção retoma as formulações de Campos agora adequadas à nova realidade. A última seção reúne as considerações inais do trabalho. 2 O PROJETO ILUMINISTA E A RAZÃO TRANSFORMADORA O ponto de partida para a compreensão da coerência atribuída ao “projeto teórico” de Campos, na perspectiva aqui assumida, é a obra de Jeremy Bentham (1748-1832). Segundo Friedmann (2006, p. 69), a este autor pode ser atribuída a ideia original de que o conhecimento cientiicamente embasado a respeito da sociedade poderia ser aplicado para melhorá-la. Com o abandono de uma perspectiva mais “moralista”, até então dominante, para voltar-se a uma preocupação prática com as consequências das ideias, Bentham teria gerado implicações revolucionárias, com imensa repercussão no continente europeu e, consequentemente, em todo o pensamento ocidental. Ainda segundo Friedmann (2006), John Stuart Mill seria um dos que desdobraria, na Inglaterra, as ideias de Bentham, no chamado Utilitarismo. No entanto, na França, caberia a Saint-Simon e a Auguste Comte iniciar outra tradição derivada destas ideias. Dessa mesma matriz, curiosamente, surgiriam, portanto, as duas principais correntes modernas de discussão que permeiam toda a obra de Roberto Campos: o liberalismo britânico, enraizado no individualismo e nas suas liberdades; e o socialismo francês, que atribui ao Estado um papel decisivo. O próprio Roberto Campos (1998, p. 142) ressalta essa conexão. Referindo-se à “esquerda”, evidencia que ela “nasceu do mesmo grande tronco do racionalismo e do iluminismo de onde provêm as ideias liberais. Na medida em que um espírito de esquerda se sente obrigado pela Razão e tem como valor maior a Liberdade, nada de intransponível o separa de um liberal, por mais que possam analisar diferentemente situações concretas”. A despeito dos desdobramentos e das particularidades em que cada uma dessas correntes se desdobrou,4 o interessante para os propósitos deste trabalho é destacar exatamente o ideal básico que inspirou a atitude intelectual de colocar o conhecimento e a razão humana para trabalhar em prol da construção de uma sociedade melhor. Dentro desta tradição racionalista, procura-se entender as ideias de Roberto Campos, analisando sua coerência em relação a esse ideal. A frase citada não deixa dúvidas quanto ao lado da disputa em que Campos se coloca. Averiguar a coerência do seu pensamento não signiica absolutamente 4. Para mais detalhes, ver Friedmann (2006). O autor recompõe toda a trajetória do pensamento moderno sobre planejamento, descreve as matrizes teóricas, seus respectivos desdobramentos e suas nuances. 328 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil concordar com ele, atribuir-lhe um status mais elevado, nem alegar que as ideias concorrentes não seriam racionais ou razoáveis. O que se procura neste artigo é apresentar a obra de Campos e, acompanhando sua argumentação, reletir sobre ela e avaliar em que medida podem ser encontrados, nos termos do próprio autor, elementos de continuidade e coerência. Reconstruir os argumentos de Campos, no entanto, é também se envolver com o seu pensamento. Como coloca Perez (1999), pode-se concordar ou discordar das ideias de Campos, mas diicilmente se passa por elas incólume e com indiferença. 3 O PAPEL DO ESTADO E DO PLANEJAMENTO O argumento de que o Estado para Roberto Campos deveria assumir um papel “racional” e “objetivo” – e não absoluto, fruto de ideologias ou dogmas – pode ser encontrado já nas obras mais antigas do autor. Em artigo de 1960, ele airmava: Poucas coisas haverá mais urgentes que a formulação de uma teoria racional e objetiva sôbre o grau, forma e limites da intervenção estatal convinhável às economias subdesenvolvidas. Assim não pensará o grupo pequeno, porém árdego, de estatistas e socializantes, que entre nós viceja, e que reza no altar de Leviatã, o Estado todo-poderoso. Para estes a teoria a adotar é simplesmente o reverso de Locke. Quanto mais intervenção, melhor. (Campos, 1960 apud Campos, 1964). No mesmo texto, Campos procura separar o que chama de motivações válidas e espúrias para a intervenção estatal. Segundo sustenta, em países subdesenvolvidos, seria justiicável e mesmo necessário que o Estado assumisse funções mais amplas. Em primeiro lugar, existiria certa “anemia empresarial”. Além disso, outras motivações decorreriam das imperfeições do mercado ou do mecanismo de preços: i) o mercado é, às vezes, pequeno demais e desencoraja a concorrência; ii) existe risco excessivo em alguns empreendimentos devido às rápidas transformações dessas economias; iii) é necessário intervir para atenuar desigualdades de renda entre classes e regiões; e iv) fatores tecnológicos e de escala podem exigir investimentos maciços e de rentabilidade diferida, diicilmente mobilizáveis pela frágil iniciativa privada das nações na condição de subdesenvolvimento. Roberto Campos procura, também, refutar alguns argumentos considerados por ele espúrios quanto à atuação pública. O primeiro seria o que chama de “ilusão transpositiva”, que consistiria em imaginar que a empresa estatal teria a faculdade “mágica” de reduzir custos, quando na verdade o que faz, segundo ele, é distribuí-los (injustamente), cobrando dos usuários tarifas baixas e preços políticos, para repassar os verdadeiros custos para o público em geral, por meio de impostos. Outro motivo espúrio para Campos seria a “tradição paternalista”, por meio da qual o Estado serviria para dar generosos empregos, sem necessariamente dar trabalho, ideia que seria reforçada pela ilusão transpositiva mencionada. Associada a essas Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 329 distorções, existiria também o problema do preconceito ideológico contra a iniciativa privada, o que levaria a uma expansão desnecessária do Estado apenas para expulsar os agentes particulares (ao que Campos chama ideologia estatizante). Além disso, haveria o argumento contestável da “preocupação com a segurança nacional”, por meio do qual se deveria aceitar, sem discussão, a intromissão estatal em áreas questionáveis (nas quais a racionalidade econômica muitas vezes apontaria em direção contrária). A partir dessa análise, Campos (1964, p. 56) conclui de forma muito clara suas considerações a respeito do papel do Estado: Endosso o pioneirismo do Estado, desde que seja temporário e não se estenda à senectude. Acho indispensável a presença e a iscalização do Estado nas áreas que chamei de vedatórias [petróleo e minerais atômicos, por exemplo], mas não enxergo vantagens no monopólio. Considero útil o investimento supletivo, desde que suplemente ao invés de expulsar. Por im, Campos expressa a preocupação de que o excesso de atribuições não deveria afastar o Estado de suas áreas tradicionais: educação, saúde, irrigação, fomento agrícola, controle de inundações, construção de estradas etc. No que toca ao planejamento, Campos (1994, p. 169) sustenta que isso seria em princípio um instrumento neutro, que poderia servir a vários propósitos: tanto auxiliar a economia de mercado (pela clara deinição de áreas próprias e impróprias para a intervenção governamental), como inviabilizá-la (por meio do planejamento central socialista). Em países subdesenvolvidos, lança mão de três argumentos básicos para justiicar o esforço de planejamento e algum grau de intervenção estatal: a debilidade da iniciativa privada, a necessidade de concentração de recursos e a faculdade telescópica do governo para investimentos de longo prazo de maturação. 4 EMPRESÁRIOS VERSUS BUROCRATAS Os argumentos de Roberto Campos quanto à capacidade do Estado em corrigir o mercado, no entanto, podem ser questionados a partir de uma alegação básica, atribuída por Campos a Eugênio Gudin (Campos, 1994, p. 167): em qualquer país, o empresário privado e o funcionário público são, em princípio, extraídos da mesma “bacia cultural”, ou seja, da mesma população. Por que então esperar que o segundo consiga avançar onde o primeiro não prospera? Uma tentativa de resposta à luz da visão de Roberto Campos sobre o papel do Estado e dos mercados pode ser esboçada a partir dos argumentos discutidos a seguir. 1) A capacidade de diluição do risco. No regime de iniciativa privada, o empresário que empreende irá arcar exclusivamente com o ônus e com o bônus das suas escolhas (muito embora parte dos bônus seja compartilhada com o Estado, via tributação). Assim, um erro de avaliação ou uma mera oscilação conjuntural pode ser fatal para o seu negócio. Num 330 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil contexto de mercado incipiente e com restritas fontes de inanciamento – realidade comum em países subdesenvolvidos –, o risco pode tornar-se demasiadamente alto, inibindo o investimento. Admitindo ainda o mesmo cenário, o burocrata, por sua vez, poderia dispor de pelo menos três facilidades promovidas pelo Estado, não disponíveis diretamente ao empresário: a) o “risco”, em caso de erro, não é assumido pelos burocratas, mas sim compartilhado com toda a sociedade; b) a maior capacidade de mobilização de recursos financeiros, via tributação, bancos públicos, avais e garantias do Estado e assim por diante; e c) mecanismos de “autodefesa”, artiicialmente criados para evitar eventuais “fracassos”, como reservas de mercado, subsídios e toda sorte de proteção, dos quais o Brasil tanto fez uso. 2) A obviedade das carências do mercado nos primórdios do processo de crescimento. Nos países subdesenvolvidos, com mercados insuicientemente constituídos vis-à-vis aos países desenvolvidos, seria mais fácil “detectar” ou “diagnosticar” as áreas onde a “expansão produtiva” precisaria ocorrer, bastando se espelhar nos mercados desses países e tomá-los como modelo. Haveria, assim, nesse estágio inicial, menos chances de erros por parte dos burocratas (os empresários esbarrariam nos riscos do negócio e na diiculdade de inanciamento). 3) A diluição dos custos de planejamento. Nos casos em que é menos óbvio onde investir, os burocratas teriam ainda outra vantagem sobre os empresários: a diluição dos custos das equipes de planejamento e desenvolvimento de projetos. Se um empresário tivesse que manter uma equipe de especialistas para estudar o mercado, arcaria integralmente e sozinho com esses custos. No caso do setor público, esses gastos provavelmente não onerariam a viabilidade da empreitada, sendo imputados à agência (pública) de desenvolvimento. 4) A capacidade de criação de mecanismos de proteção. Conforme já comentado diluidamente nos itens anteriores, o burocrata possui a vantagem de poder, ao mesmo tempo em que “identiica” e “planeja” um investimento, criar os mecanismos necessários para “garantir” ou ao menos “facilitar” o sucesso do empreendimento (e também de “esconder” o seu insucesso...). A partir dos argumentos apresentados anteriormente, observa-se que Campos não airma exatamente que o burocrata possui uma “capacidade telescópica” que o empresário não tem. Muito pelo contrário, o burocrata apenas arcaria com “menores Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 331 custos privados” para por em marcha sua capacidade. Já o Estado, por sua vez, poderia alterar esse balanço de forças (ou seja, a suposta capacidade telescópica seria própria do Estado e não do burocrata). Se isso é verdade, e diante da insuiciência do mercado, inexistiria razão para não usar essas “facilidades” para estimular os investimentos e auxiliar o processo de desenvolvimento de um país atrasado. Como consequência, haveria, nas fases iniciais do processo de “desenvolvimento defasado”,5 um papel claro para o Estado desenvolvimentista. E, aqui, justiica-se também, de passagem, a importância de fontes de inanciamento para que o Estado faça uso da sua capacidade maior de mobilização de recursos. Daí a defesa de Roberto Campos, diante da precariedade das fontes internas, do uso de capitais estrangeiros, argumento pelo qual foi tão duramente criticado pelos “nacionalistas”.6 5 AS MUDANÇAS NO BRASIL A “defesa” de Roberto Campos a respeito da atuação do Estado, no entanto, não deve ser tomada como deinitiva. É importante ressaltar inicialmente que, mesmo em seus primeiros textos, ele tem sempre o cuidado de associar a maior prescrição de intervenção estatal à condição dos países subdesenvolvidos, que deine como sendo “aqueles em que a grande maioria da população se entrega a atividades primárias (agropecuárias ou extrativas), com a aplicação de processos primitivos de produção e baixo nível de renda per capita” (Campos, 1963, p. 10). No início da sua carreira, o Brasil, sem dúvida, ainda podia ser enquadrado na deinição citada no parágrafo anterior, ou seja, como país subdesenvolvido: a maior parte do seu produto interno vinha do setor primário, seu maior contingente populacional estava no campo e empregava técnicas pouco soisticadas de produção, com renda per capita baixa, além de mal distribuída. Nesse contexto, não é de se estranhar a ênfase dada por Roberto Campos quanto ao papel do Estado. Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, o Brasil intensiica bastante a velocidade com que vinha se transformando desde 1930, quando o foco das ações do governo deixa de ser o setor primário em benefício da indústria, por meio do que se chamou Processo de Substituição de Importações (PSI). A partir da década de 1950, o país embarca deinitivamente no desenvolvimentismo, cujo auge pode 5. É interessante destacar essa ressalva de Campos: o argumento é válido apenas para os países retardatários. Nos chamados processos “espontâneos” de desenvolvimento (experimentado por alguns países no século XIX e início do século XX), ou nas economias maduras, o Estado não possuiria qualquer vantagem “telescópica”. Teria apenas os mecanismos artiiciais de proteção, que distorcem o mercado e podem encobrir mais erros do que descobrir virtudes. 6. Não é intenção deste capítulo explorar a questão do nacionalismo em Roberto Campos, mas vale citar um pequeno trecho bem ilustrativo da sua posição sobre o assunto: “O ‘pseudo-nacionalismo’ é o daqueles que pensam que o nacionalismo se comprova com fervidos discursos, quando a nação precisa é de resultados. Nacionalismo é criar empregos; é amar seu país, sem odiar os outros” (Campos, 1994, p. 243). 332 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil ser identiicado com a realização bem-sucedida do Plano de Metas no governo de Juscelino Kubitschek.7 Com esse impulso de industrialização induzida pelo Estado, já em meados da década de 1950 o produto interno bruto (PIB) do setor primário é superado pelo industrial. Em 1965, a população urbana supera pela primeira vez a população campesina no Brasil, sepultando definitivamente o predomínio rural. Essas tendências tiveram continuidade nos anos subsequentes, de tal forma que, ao inal da década de 1960 e início dos anos 1970, o Brasil já se afastara bastante da deinição anterior de país subdesenvolvido e igurava, no início da década de 1980, entre as grandes economias do planeta.8 Não obstante essa mudança de cenário, a intervenção do Estado no domínio econômico no Brasil continuou crescendo. Roberto Campos já começava então a ser um crítico da expansão das estatais na economia, principalmente a partir do impulso que tiveram ao longo do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), sob o regime de ditadura militar.9 A carga tributária no Brasil, que era de 14,4% do PIB em 1950, passa para 26,0% em 1971. Ao inal da década de 1970, o Brasil já tinha concluído com êxito todas as etapas do processo de substituição de importações. Após cinquenta anos de deliberada intervenção estatal, o modelo apresentava-se “esgotado”. As principais conquistas tinham sido o intenso crescimento, a substituição do modelo primário-exportador pela industrialização (no caso brasileiro, fechada, voltada para o mercado interno), bem como a implantação de um parque industrial completo e integrado no país. Apesar dessas conquistas, o modelo adotado trazia também alguns problemas: elevado grau de intervenção estatal na economia, uma indústria dependente do Estado e pouco competitiva, concentração regional e pessoal de renda, forte deterioração dos fundamentos macroeconômicos do país, inlação ascendente, estagnação do crescimento, endividamento externo e interno elevados, forte deficit público e grande pressão sobre a balança de pagamentos. Ao im do processo, o Brasil passou a vivenciar um momento agudo de crise. O Estado, que até então fora o “motor” principal do crescimento, encontrava-se “falido” e era, na visão de Campos, o principal indutor dos problemas. A partir de então, cada vez mais, 7. Vale salientar que Roberto Campos foi, ao lado de Lucas Lopes, um dos idealizadores e coordenadores do plano. Mais detalhes podem ser encontrados em suas memórias (Campos, 1994, cap. IX). 8. Mais detalhes sobre a evolução econômica brasileira, contendo as informações estatísticas aqui mencionadas, podem ser encontrados em Giambiagi e Villela (2005). Há uma vasta literatura sobre esse período brasileiro, a exemplo de Abreu (1992) e Baer (2002), entre outros. 9. Convém destacar que Roberto Campos participou como ministro do Planejamento do regime autoritário entre 1964 e 1967 (governo do general Castelo Branco). Nessa fase, contribuiu ativamente para o desenho do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), que implantou uma série de mudanças institucionais até hoje importantes para a economia brasileira, com destaque para as reformas tributária, inanceira e do mercado de trabalho. Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 333 Roberto Campos passa a ter uma visão crítica quanto à intervenção do Estado na economia. Com o im do governo militar, em 1985, instala-se no Brasil a Nova República, abrindo caminho para a nova Constituição Federal de 1988 (CF/1988). Considerada por muitos como a “Constituição Cidadã”, foi alvo de severas críticas por parte de Roberto Campos, que sobre ela escreveu: “É um balaio de confusos anseios, sem custo calculado ou indicação de pagador. (...) Na Constituição, promete-se uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos” (Campos, 1990, p. 195). O descontrole das finanças públicas, segundo Roberto Campos,10 teria cobrado o seu preço, que no país tomou forma de uma intensa e descontrolada espiral inlacionária. Algumas das soluções tentadas no Brasil só teriam piorado o problema: uma sequência de planos heterodoxos malsucedidos que, entre outras violações aos princípios do mercado, sob inusitada intervenção estatal, adotaram como linha de ação expedientes como congelamento de preços (recorrente) e sequestro de ativos inanceiros (Plano Collor), só para citar duas ingerências mais radicais sobre a livre iniciativa. Com os acontecimentos descritos, a exacerbação do papel do Estado no Brasil teria se tornado para Roberto Campos tão intensa que sobre ela assim se expressou: Pensamos viver, mas não vivemos, numa economia de mercado, num mundo capitalista. Na realidade, o Brasil está numa fase pré-capitalista, uma vez que capitalismo só existe numa economia em que os preços lutuam livremente e onde há livre acesso ao mercado – o que não ocorre no Brasil. Ainda vivemos numa economia mercantilista11 (Campos, 1988, p. 167). 6 AS TRANSFORMAÇÕES MUNDIAIS No início da carreira de Roberto Campos, particularmente nas décadas de 1950 e 1960, quando suas crenças na capacidade de intervenção do Estado eram ainda expressivas, o panorama internacional era bem distinto do que havia no inal do século XX. Vivia-se o auge da Guerra Fria, a União Soviética era uma potência tecnológica e sua forma planiicada de organização da economia podia ser vista como uma alternativa à experiência de mercado capitalista. No plano dos países em desenvolvimento, as ideias da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) fustigavam com vigor o liberalismo comercial, pregando a 10. A preocupação de Roberto Campos com o equilíbrio macroeconômico está presente mesmo em seus textos precursores (Campos, 1963, p. 125-155). Na prática, pode ser comprovada por meio dos programas de ajuste cambial e monetário integrados ao Plano de Metas (e não executados por Juscelino), bem como nas reformas implantadas por meio do PAEG. Mais detalhes podem ser encontrados em Campos (1994). 11. Campos, reportando-se ao Dicionário de Ciências Sociais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), entende o mercantilismo como “a crença de que o bem-estar econômico da sociedade somente pode ser assegurado mediante regulamentação governamental de caráter nacionalista”(Campos, 1988, p. 167). 334 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil industrialização induzida pelo Estado, num modelo fechado de substituição de importações, como uma maneira viável para se escapar da “dependência”. O que se deu, entretanto, como airma Campos (1987, p. 123): (...) as coisas não se passaram exatamente como previa Marx. Não houve a “pauperização” do proletariado. O capitalismo monopolista sobreviveu à perda dos impérios. O socialismo não surgiu do proletariado industrial amadurecido, senão que resultou do comando de intelectuais revolucionários sobre massas primitivas. Ademais, ainda segundo Campos, as “economias de comando” teriam se tornado cada vez mais “monistas” e autoritárias, com o partido deinindo valores econômicos, políticos e sociais. O capitalismo, por sua vez, teria evoluído para tornar-se politicamente mais plural e lexível e culturalmente mais diversiicado. Seja pelas “crueldades” do mercado, seja pela própria pregação socialista, as economias de mercado, segundo Campos, passaram a absorver e se adaptar às chamadas demandas sociais. Donde poder-se falar hoje nas “economias de mercado corrigido”, nas quais o mercado sofre intervenções que reletem as contínuas tensões resultantes daquilo que se poderia chamar o tríplice compromisso entre riqueza individual, equidade social e liberdade política. O mercado privado seria o criador de riqueza, o governo, o promotor de equidade, e o sistema democrático, o preservador da liberdade (Campos, 1987, p. 125). Outra transformação importante apontada por Campos no plano internacional é o que ele chama de “obsolescência do Estado-nação” como forma de organização política na “era planetária”. Parafraseando o sociólogo Daniel Bell, Roberto Campos resume as características peculiares do Estado-nação moderno: “demasiado pequeno para os grandes problemas da vida, e demasiado grande para os pequenos problemas”. No domínio privado, sua reduzida dimensão estaria demonstrada pela ascensão das multinacionais e pela conscientização da maior necessidade de interdependência comercial, eliminando as possibilidades de autossuiciência mesmo para os países continentais. No plano público, isso seria ilustrado pelas associações governamentais na forma de mercados comuns, zonas de livre comércio ou outros agrupamentos regionais que transcendem as fronteiras “nacionais”. Haveria ainda a crescente percepção de outros problemas comuns, como o controle da poluição, exploração do fundo do mar, proliferação nuclear e assim por diante. Ainda no plano econômico, haveria, na visão de Campos, a interdependência das economias modernas na esfera inanceira, o que poderia ser resumido pela crescente possibilidade de contágio em crises. Nesse sentido, mesmo as nações poderosas estariam condenadas a buscar uma ação conjunta internacional em relação a questões vitais como recessão e desemprego. Já para tarefas administrativas, por seu turno, assim como para a autoexpressão política de minorias, Campos ressalta Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 335 que o Estado-nação estaria grande demais, incapaz de dar conta adequadamente dessas demandas. Finalmente, vale lembrar que Campos aponta uma “impressionante descentralização do poder industrial e da acumulação do capital” ao redor do mundo, bastando para isso observar os chamados “tigres asiáticos” tardiamente industrializados (Taiwan, Cingapura, Coreia do Sul), ao lado dos que o izeram seguindo as postulações da Cepal na América Latina, a exemplo de México e Brasil. O sucesso dos primeiros desautorizaria em larga medida, segundo Roberto Campos, aquelas visões protecionistas da industrialização, [pois] ao contrário das postulações dos teoristas da dependência, que supõem uma hierarquia industrial estática de acumulação, que favoreceria os países capitalistas existentes, o que de fato temos (...) são hierarquias mutáveis de desenvolvimento desigual – novos centros de poder surgindo através do terceiro mundo. E citando Bill Warren, arremata: “O imperialismo declina à medida que o capitalismo cresce” (Campos, 1987, p. 148). 7 AS ALTERAÇÕES NAS CONCEPÇÕES ECONÔMICAS Segundo Campos (1987, p. 130): As décadas de cinquenta e sessenta constituíram o ápice do intervencionismo keynesiano e do prestígio do socialismo como doutrina econômica. Já a partir da década de setenta, quando o problema da inlação se delineou mais tenaz e claramente no Ocidente (...), começa a haver maior respeito pela economia de mercado. O movimento neoliberal que então começa a tomar corpo teria, conforme salienta Campos (1988, p. 85-87), quatro razões explicativas. A primeira seria o descontentamento com o keynesianismo, inadequado para conter a inlação no pós-guerra, cuja contrapartida latino-americana teria sido o estruturalismo. A segunda razão seria o desapontamento com a ineiciência econômica dos sistemas de planejamento central, demasiado lentos para a “nervosa complexidade das economias modernas”. Em seguida, viria a insatisfação com o chamado welfare state, que teria levado a um crescimento desproporcional de benefícios e custos, o que exige carga fiscal desfavorável à eficiência e ao crescimento econômico. Finalmente, Campos ressalta o desabrochar da era de alta tecnologia, que pressuporia “individualismo criador e excitação competitiva”, impossíveis de serem alcançados sob a égide de “burocracias dirigistas”. Ao lado desse diagnóstico, Campos enfatiza que os países que mais progrediram, tanto entre os industrializados como entre os em desenvolvimento, foram os que abandonaram o intervencionismo, o estruturalismo e o estatismo, conforme exempliicados pela Alemanha Ocidental, Japão, Coreia do Sul e Formosa. Além 336 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil disso, aponta que a social-democracia teria conseguido, na prática, via mercado, razoável grau de igualdade, enquanto os regimes comunistas caracterizar-se-iam cada vez mais pela ineiciência econômica e falta de liberdade política, sem eliminarem totalmente a desigualdade. Esse cenário leva Campos (1987, p. 130) a airmar: “Exit Keynes. Intrat Hayek”. Essa “redescoberta” do mercado teria sua contrapartida também na teoria econômica. Na macroeconomia, surgem abordagens como as da supply side economics e a dos novos clássicos, que conduzem a maiores restrições ao intervencionismo estatal.12 Já autores como Niskanen (1975) e Brennam e Buchanan (1980) passam a desenvolver teorias que incorporam explicitamente na análise as chamadas falhas do governo. A partir dessas abordagens, torna-se difícil deixar de considerar que a matriz de decisão governamental inclui outros fatores além do “bem-estar social” (como a reeleição, o montante e a destinação de orçamentos, indicações para cargos públicos etc.), bem como as limitações e os riscos das ações do governo em certas atividades. No plano especíico da economia do setor público, a teoria evoluiu no sentido de incorporar questões referentes tanto às falhas do mercado, como às falhas do governo. Temas como incentivos, assimetria de informação, externalidades e desenho de mecanismos passaram a ser incorporados extensivamente tanto para analisar o mercado como para deinir e desenhar as ações governamentais e as instituições públicas delas encarregadas (Stiglitz, 1998). Em todos os casos, tem-se um crescente cuidado com o desempenho da ação governamental, o que muitas vezes resulta na prescrição de uma série de medidas devolutivas de responsabilidades ao mercado, como as privatizações, a regulação no lugar da ação direta estatal e assim por diante. Roberto Campos, seguramente, esteve atento a essas transformações e não deixou de incorporá-las em sua retórica sobre o papel do Estado. 8 O PAPEL DO ESTADO E A NOVA REALIDADE A partir das transformações apontadas, o rumo a ser seguido parece bastante nítido para Roberto Campos: “O movimento de desestatização é hoje universal” (Campos, 1987, p. 176). O Estado teria crescido demais em quase todos os países e precisaria ser integralmente redimensionado. Os motivos seriam vários. Primeiro, o constante risco de ineiciência das estatais, não sujeitas aos perigos e recompensas do mercado. O segundo motivo, talvez mais importante para os países em desenvolvimento, 12. Ver, por exemplo, Canto, Joines e Laffer (1983) para a economia do lado da oferta. Um dos textos precursores dos novos clássicos é o de Lucas e Prescott (1971). Não se pode deixar de mencionar, entretanto, o contra-ataque neokeynesiano, reivindicando em novas bases a intervenção estatal. Apesar da controvérsia, o predomínio inconteste do intervencionismo das décadas de 1950 e 1960 estava superado. Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 337 seria a obtenção de recursos não inlacionários e o estancamento de deficit públicos. Além disso, a burocracia teria um tríplice custo: o da pesada máquina estatal, o da demora nas decisões e o da corrupção. A desestatização signiicaria, assim, a redução da área de preços controlados, um estímulo à produtividade e à criatividade individual, assim como uma contribuição de natureza ética. 8.1 O Estado Leviatã Para Campos (1988, p. 91), a liberdade e a competição teriam se mostrado receita muito mais sadia para o desenvolvimento industrial do que o processo de estufa experimentado pelo Brasil (tese comprovada, segundo Campos, pelo exemplo dos tigres asiáticos). Além disso, a consequência natural do processo induzido seria o exacerbado crescimento estatal. Uma vez implantado o “Estado Paternalista”, o mesmo ganharia autonomia reprodutiva e resistência a eventuais mudanças. No tocante à autonomia reprodutiva, as consequências seriam uma tendência de crescimento ainda maior do Estado e a sua ingerência em áreas cada vez mais amplas. Adotado o princípio da intervenção sobre os mercados, a burocracia estatal passaria a se julgar conhecedora do “preço do equilíbrio”, do “lucro correto” e do “socialmente justo”. Assim, “em vez de deixar que o mercado, essa instituição impessoal e secular, se ajuste em sua ininita complexidade, procuram ajustá-lo com extrema simplicidade” (Campos, 1988, p. 121). O resultado seria uma intervenção perversa e inepta sobre a economia. Daí a sua frase cotada anteriormente: “nada há mais perigoso do que a coniança do tecnocrata em corrigir o mercado” (op. cit., p. 138). Exemplo eloquente dessa interferência exacerbada e “desastrosa” do Estado na economia, entre muitos outros apontados por Roberto Campos, seria a política protecionista de informática posta em prática no Brasil na década de 1980. 13 Segundo Campos (1988, p. 111), ela estaria baseada em três falsas percepções: i) que é possível criar autonomia tecnológica por decreto; ii) que a segurança nacional só estaria “bem servida” se a produção estivesse sob o controle de acionistas residentes no país; e iii) que os tecnocratas são planejadores iluminados e que sabem quando e em que direção deve marchar o desenvolvimento. Para Campos, a autonomia tecnológica, na verdade, resultaria de três ingredientes: mercado, massa crítica universitária e liberdade criadora, todas colocadas à margem da política de proteção. Além disso, o que interessaria para a “segurança nacional” não seria o local de residência do acionista, mas que a 13. A Lei no 7.232, de 29 de outubro de 1984, denominada antiga Lei da Informática, consolidava uma série de atos normativos exarados pela Secretaria Especial de Informática (SEI), órgão responsável pela política do setor no país. A lei garantia reserva de mercado para empresas nacionais. Foi totalmente reformulada no governo Collor, por meio da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 338 produção fosse realizada no país, gerando emprego e desenvolvimento. Finalmente, o que constituiria a qualidade essencial e insubstituível do empresário (e não do burocrata) seria precisamente a descoberta e a previsão de oportunidades.14 Com base nessas observações, Campos assevera: o isolacionismo imposto pela política de informática “nos encheu de carpintarias eletrônicas e castrará nossa proeza competitiva no mercado mundial” (Campos, 1988, p. 177). E conclui: “A verdade, porém, é que a reserva de mercado contribui negativamente, e não positivamente, para a ‘autonomia tecnológica’!” (op. cit., p. 102). E, passados alguns anos, veriica com dados a concretização da sua tese: “o Brasil é o menos informatizado dos grandes países da América Latina. Tinha, em 1996, 18 computadores pessoais por mil habitantes, contra 45 no Chile, 29 no México, 25 na Argentina, 23 na Colômbia e nada menos que 362 nos Estados Unidos” (Campos, 1999). O caso das estatais também é emblemático. Para Campos (1998, p. 43), elas seriam, sem falar da ineiciência, ilhas ingratas do Tesouro e mães bondosas dos funcionários: suas doações aos fundos de pensão (privados) dos funcionários excedem por larga margem, regularmente, os dividendos pagos ao Tesouro. Citando a Companhia Vale do Rio Doce (então estatal) como exemplo – “sem dúvida a mais eiciente das nossas estatais” (op. cit., p. 42) –, destaca que ela não escaparia (...) ao defeito comum das estatais brasileiras. Trabalha mais para os seus 17 mil funcionários que para a massa de milhões de brasileiros representados pelo Tesouro. As doações ao fundo de pensão Valia (que é patrimônio privado dos funcionários) excedem os dividendos pagos ao Tesouro, principal acionista: Em milhões de reais 1991 1992 1993 1994 1995 Total Dividendos do Tesouro 36 43 42 59 70 250 Doações à Valia 56 54 48 55 48 261 (Campos, 1998, p. 55-56) Mais um exemplo destacado por Campos dos atropelos da ingerência do Estado brasileiro na economia seria o “experimentalismo econômico” vivido pelo Brasil como forma de combate à inlação na década de 1980 e início dos anos 1990. Para Campos (1988, p. 137): A causa da inlação é a expansão monetária, que por seu turno deriva do déicit público, do fato de o Estado gastar mais do que arrecada. E a alta dos preços é meramente o efeito da inlação. Mas ao mudar os vilões da peça, o Governo, que é responsável pela expansão monetária, se inocentou. E culpou o pecuarista, o banqueiro e o dono do 14. Observa-se, neste ponto, uma inlexão importante no pensamento de Roberto Campos. Com as transformações apontadas, a capacidade telescópica do Estado, antes defendida, encontra-se totalmente desacreditada em seus textos mais recentes. Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 339 supermercado, que não fazem senão reletir as conseqüências da expansão monetária, mas não têm em suas mãos o poder de fazer moeda. Outra intromissão excessiva e ilusória do Estado na economia para Campos seria a questão do salário mínimo (SM): (...) não está nas mãos do governo ou do Congresso determinar o salário real; o que podem inluenciar é o nível de inlação ou de desemprego. A legislação do salário mínimo é rigorosamente inútil. Se reletir as realidades da oferta e da procura da mão-de-obra, será desnecessária. Se desajustada, será inócua pois que o mercado anulará os aumentos de três formas: (a) Pelo repasse aos preços; (b) Pela despedida do pessoal; (c) Pela submersão no mercado informal, onde inexistem leis trabalhistas”. E, mais adiante, assevera: “a legislação do salário mínimo é um embuste disfarçado de caridade” (op. cit., p. 154). Um paradoxo da intervenção estatal destacado por Campos15 é o fato de “sermos um país de salários baixos e mão-de-obra cara, em virtude da tríplice cunha – a burocrática, a iscal e a previdenciária” (Campos, 1998, p. 129). Em relação à última questão, ponto até hoje nevrálgico em nossa economia, a visão de Campos é emblemática: (...) a previdência pública compulsória, segundo o modelo de repartição, é antidemocrático pois obriga o cidadão a entregar sua poupança previdenciária a um administrador catastrófico – o governo – coisa cruel para os pobres que não podem comprar previdência complementar. É antissocial, porque redistribui dinheiro dos pobres para os burocratas e alta classe média, beneiciários de aposentadorias precoces e especiais. É antidesenvolvimentista porque não serve de alavancagem de poupanças para o crescimento, ao contrário do sistema de capitalização individual privado, que acumula poupanças disponíveis para aplicação produtiva (op. cit., p. 53). Quanto à resistência às mudanças gerada pela máquina estatal, Roberto Campos (1988, p. 99) destaca que grande parte da aversão em relação à desestatização no Brasil derivaria mais de interesses corporativos contrariados do que de argumentos econômicos racionais. Segundo ele, haveria uma sabotagem burocrática à desestatização, feita com os argumentos “espúrios” já comentados ou baseada em noções “com prazo de validade esgotado”. O primeiro deles seria a ideologia estatizante, ainda muito presente no país, mas, segundo o autor, carente de qualquer fundamentação razoável. O segundo seria o empreguismo, pois funcionários públicos veriam na privatização um risco às suas “mordomias e privilégios”. Um instrumento de sabotagem à desestatização feita pela burocracia seria, segundo Campos, os intermináveis debates sobre o preço “justo” a ser cobrado pelo patrimônio público, supostamente para proteger o interesse coletivo (naturalmente 15. A lista de críticas de Campos aos excessos de intromissão estatal na economia brasileira é bastante vasta. Não é pretensão deste trabalho esgotá-la. Espera-se apenas que os casos abordados sejam suicientemente ilustrativos. 340 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil incompatível com a valorização privada realizada pelo mercado...), mas que, na verdade, serviriam para ocultar o motivo real: a resistência dos burocratas em abrir mão de privilégios e empregos.16 8.2 Privatizações e redefinição do papel do Estado Diante dessa realidade, a receita para o Brasil parece bastante clara para Roberto Campos: um choque de liberdade e uma injeção de cultura capitalista, em que a redeinição (com redução) do papel do Estado, a abertura econômica e a presença do capital estrangeiro são indispensáveis. Uma das formas de diminuir a intervenção do Estado na economia se daria por meio do processo de privatização. Campos (1998, p. 59) sustenta que “a privatização há muito deixou de ser um modismo neoliberal para se tornar parte essencial da modernização do Estado”. As razões seriam inúmeras: fazer recuar as fronteiras do Estado pelo retorno às suas funções clássicas; substituir a cultura da dependência pela cultura empresarial; despolitização das decisões gerenciais; melhoria da eiciência, pela concorrência inerente ao setor privado ou por ações regulatórias que simulem ambientes competitivos; aliviar crise iscal pela receita de vendas, eliminação de deficit e subsídios, transferência de dívidas e desobrigação de investir; restauração da infraestrutura e dinamização da capacidade decisória (fatores essenciais diante da rápida evolução tecnológica); redução da taxa de corrupção; democratização do capital; enfrentamento dos desaios da globalização e atração de capitais estrangeiros; redução dos gastos com juros, pela aplicação das receitas de venda na amortização da dívida pública e assim por diante (op. cit., p. 39, 59 e 60). Campos destaca ainda que há diversas modalidades de privatização: (a) Privatização de empresas, seja por venda em dinheiro, seja pela distribuição gratuita de ações aos cidadãos; (b) Privatização de serviços públicos pela venda de empresas existentes ou pela outorga de concessões a investidores privados; (c) Privatização da gerência, segundo três modalidades: contratos de gestão dentro do próprio setor público; transferência da gestão ao setor privado, mediante contratos de administração; contratos regulatórios, que vinculam o concessionário a normas de comportamento supervisionadas por órgãos reguladores públicos (op. cit., p. 71). 16. Segundo Campos (1998, p. 85), a obsessão com o “justo preço” das estatais “implica ignorância do mecanismo da concorrência nos leilões abertos. Nestes, o único preço relevante é o que equilibra a oferta e a procura, pago por quem corre o risco do negócio. Os outros preços – o do tecnocrata que quer preservar seu emprego, o do político que tem na estatal uma fonte de poder, o dos consultores que avaliam tecnicamente o luxo de caixa mas não apostam o seu dinheiro – são meramente informativos. Se esses preços forem inferiores ao que equilibra a oferta e a procura, haverá ágio. Se superiores, o leilão fracassará”. Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 341 Como se observa, o processo de privatização não seria para Campos uma simples forma de “dilapidação” pela venda de patrimônio público,17 mas uma forma de reestruturação racional do Estado. Isso signiicaria, inclusive, “a realização capitalista de um sonho socialista: a coletivização da propriedade” (Campos, 1998, p. 38). Além de tudo isso, ao vender suas empresas, o Estado receberia o seu valor patrimonial, sem ter de abrir mão do luxo de receitas obtido por meio do imposto de renda (op. cit., p. 56). Apesar dos argumentos contundentes, o processo não se daria sem controvérsias. Nesse sentido, Campos enumera vários opositores das privatizações: O corporativismo das estatais, que sonegam dividendos do Tesouro para engordar seus fundos de pensão; os socialistas nostálgicos, que resistem ao emagrecimento do Estado; os nacionalistas obsoletos, que desejam preservar as riquezas naturais num mundo em que as verdadeiras riquezas são artiiciais – educação e tecnologia. E há os perfeccionistas, divididos em dois grupos: os que defendem a lentidão em nome da “transparência”, esquecidos de que nada é mais transparente do que a competição dos acionistas nos leilões de Bolsa; e os “reformatadores”, que querem reorganizar as empresas para vendê-las melhor, esquecidos de que as reestruturações são incertas e caras e não compensam os custos da rolagem das dívidas (op. cit., p. 51). 8.3 O Estado neoliberal Ainal, até onde ir com a desestatização, as privatizações e a devolução ao mercado? Dito de outra forma, restaria ao Estado algum papel a desempenhar na economia moderna, ou deveríamos nos concentrar na sua eliminação? Para Roberto Campos, [o] Estado constitui o mecanismo formal do poder na sociedade, aquele que detém os instrumentos para compelir os indivíduos a seguirem determinadas regras. [Assim,] não é algo que possamos querer ou não querer nas nossas vidas. [Pelo contrário,] é uma instituição universal exatamente porque responde a certas necessidades básicas dos seres humanos, a começar pelo controle da selvageria dos conlitos, para viabilizar sociedades estáveis, como o proto-liberal Hobbes teorizou há mais de três séculos (op. cit., p. 123-124). Esse poder de coerção, contudo, pode ser usado para uma variedade de ins, bons e maus. O problema, para Campos, é enxergar no Estado uma espécie de “super-Orixá, dotado de poderes mágicos” e “como uma abstração benévola capaz de corrigir o mercado”. “Ora, o Estado é o governo, não passando de um aglomerado de burocratas e políticos, que almoçam poder, promoção e privilégios. Somente na sobremesa pensam no ‘bem-comum’” (Campos, 1998, p. 101). E, “pela sua natureza de estrutura de coerção, 17. Para Campos (1998, p. 73), “não há político que não tenha orgasmos verbais pretendendo ser defensor do patrimônio público. Mas o que é patrimônio público? Patrimônio é o que dá retorno. Nesse sentido, as empresas públicas não são patrimônio e sim encargos públicos.” E mais: “não existem ‘empresas estratégicas’. O que há são ‘atividades estratégicas’. O valor estratégico não depende da natureza do acionista – público ou privado. Depende da ‘eiciência’ da operação. E o maior estímulo à eiciência vem da competição” (Campos, 1998, p. 66). Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 342 é muito poroso a interesses escusos e à corrupção, e é um péssimo instrumento para ouvir [os desejos e necessidades humanas]” (op. cit., p. 144). Nesse sentido, segundo Campos, “os liberais querem o Estado eicaz, instrumento da sociedade – mas nem um grande incubo totalitário, nem um agente coletor de ‘novas classes’ corporativas” (op. cit., p. 134). O mesmo acontece com o mercado, que não deve ser visto como um elemento necessariamente malévolo ou benévolo. Mercado não é um artefato cruel e sim uma das grandes instituições espontâneas da sociedade, como a linguagem, a religião e a família. É um indispensável sistema de sinais para orientar o produtor a produzir, o investidor a investir e o consumidor a escolher (op. cit., p. 100). Para Campos, o mercado [é] apenas o lugar em que as pessoas transacionam entre si. Só isso. Mas não é pouco, porque no seu espaço a interação competitiva entre os agentes econômicos equivale a um plebiscito ininterrupto, que não só permite fazer uma apuração, a todos os momentos revista, das preferências dos indivíduos, como lhes dá uma medição quantitativa, tornando possível, por conseguinte, o cálculo racional (op. cit., p. 143). Para Campos (op. cit., p. 100) “a vantagem do mercado é precisamente liberar as pessoas para o máximo exercício de sua criatividade; oferece acesso porém não garante sucesso”. Contudo, o mercado tampouco seria “perfeito”. Campos (op. cit., p. 105) ressalta que “os liberais não dizem que o mercado seja o mecanismo regulador perfeito, mas apenas que, tudo considerado, é o instrumento mais eiciente para responder às livres preferências dos indivíduos”.18 Referindo-se ainda ao mercado, Campos salienta: (...) há bens que não são adequadamente transacionáveis diretamente entre indivíduos no mercado, e que só uma estrutura de autoridade pode fornecer de modo satisfatório como defesa e representação externas, justiça, ordem pública, segurança. E há, também, bens e serviços que, embora possam ser transacionados no mercado entre agentes individuais, vêm se tornando objeto de uma demanda crescente por parte do público, para que sejam fornecidos em caráter coletivo, como os “bens públicos” (op. cit., p. 124-125). 18. Vale salientar que a maior “eiciência” do mercado não é derivada de nenhuma característica “superior” do empresário, nem tampouco da “malevolência” das burocracias. É que, no setor privado, há um mecanismo de controle automático: devido à concorrência, ou aprende ou quebra. “É pela automaticidade do castigo, e não por inspiração divina, que os empresários privados não param de pensar em custos. Quando, porém, os custos não recaem diretamente sobre quem os causa (como acontece com a poluição, e outras ‘deseconomias externas’), os agentes privados são iguaizinhos aos burocratas (...)”(Campos, 1998, p. 151). Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 343 Nesse balanço de atribuições, portanto, os liberais entendem, segundo Campos: [que o Estado] se presta para certas tarefas – quando for inviável fracionar a oferta de certos bens (públicos), ou preciso exercer ação pioneira, ou defender a moralidade e a ordem pública. Mas é inepto para outras, como gerir eicientemente a produção de bens e serviços (op. cit., p. 105). O Estado deve: (...) cuidar de funções indelegáveis, como segurança, justiça, educação de massa e saúde (sobretudo preventiva). Deve partilhar responsabilidades pela infraestrutura e ser forte em duas tarefas especíicas: estabilizar a moeda e preservar a concorrência (op. cit., p. 101). E completa: “Ninguém nega que há deveres de solidariedade. Os resultados serão fatalmente desiguais, mas é da essência do pensamento liberal que todos tenham oportunidades razoavelmente iguais. Os extremos de carência são ofensivos a todos” (op. cit., p. 143-144). Em resumo, para Campos (op. cit., p. 101): “O Estado ótimo é o ‘Estado mínimo’”. Por todos os argumentos expostos, percebe-se que “mínimo” não signiica de forma alguma “ausente”, nem sequer “pequeno”. Depende do caso. O Estado tem funções a desempenhar (maiores, nas economias subdesenvolvidas; mais restritas, nas mais maduras). Mas não é panaceia. Tem limitações e pode falhar. Deve ser adequadamente desenhado, se concentrar nas suas funções e ser regularmente avaliado. E, se necessário, revisto. Esse é o Estado mínimo defendido por Roberto Campos. As duas citações a seguir ilustram bem o papel concreto que Campos passa então a defender para o Estado. Em primeiro lugar, “o que o Estado tem de fazer é se concentrar na área social: nutrição básica, educação, saúde e saneamento. O que não é possível é fazer-se uma opção social e ao mesmo tempo manter intacto o Estado empresarial” (op. cit., p. 142). Mais adiante, Campos complementa: (...) no Estado liberal moderno há uma área apropriada de integração governamental no setor social e em atividades de infra-estrutura. Além disso, cabe ao governo uma ação regulatória, diferente daquela a que estamos acostumados. O Estado deve proteger, assegurar a concorrência. E não impedir a concorrência. E o remédio natural para evitar abusos do poder econômico é a legislação antitruste, uma peça morta em nossos livros (op. cit., p. 152-153).19 19. É interessante observar que, analisadas atentamente, essas airmações não são de maneira alguma incongruentes com aquelas expressas por Campos no início da carreira, a exemplo da citação exposta no segundo parágrafo da página 329 deste trabalho. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 344 8.4 Novos rumos do Estado brasileiro Roberto Campos foi um pensador atendo às transformações ao seu redor, muitas vezes antecipando-se a tendências posteriormente consolidadas. Daí muitas de suas ideias terem sido consideradas “proféticas”. Nesse sentido, anunciou o fracasso do socialismo bem antes da queda do muro de Berlim e do colapso da União Soviética. Defendeu a abertura, as privatizações e a redeinição do papel do Estado antes que elas fossem “impostas” pela globalização e pelo vertiginoso avanço tecnológico das últimas décadas. No Brasil, da mesma forma, defendeu precocemente ideias que posteriormente (talvez devido à sua insistente “pregação”) foram adotadas. A abertura do mercado e a revisão do papel do Estado se inseriram na agenda nacional no início da década de 1990, com o governo Collor, e foram adotadas de forma mais intensa na segunda metade daquela década, com o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Devido à ocorrência dessas transformações, cumpre perguntar até que ponto o Brasil teria chegado próximo aos ideais defendidos por Campos. Para ele, no entanto, estaríamos ainda muito longe disso: “Houve uma tímida guinada liberalizante, sobretudo após o colapso do socialismo, mas o paradigma liberal está longe de ser dominante na América Latina” (Campos, 1998, p. 99). E exercitando a sua tão reconhecida ironia, arremata: “sinto-me tentado a processar, por calúnia, injúria e difamação, quem disser que o Brasil adotou um modelo de neoliberalismo econômico” (op. cit., p. 144). A partir do exposto, ica claro que, apesar das muitas transformações na direção que apontou, Campos ainda via o Estado brasileiro como grande, ineiciente e intervencionista demais. A frase a seguir, apesar de anterior a grande parte dessas mudanças, ilustra bem a forma como Roberto Campos percebia o Estado brasileiro: “Está longe o sonho do ‘Estado Minimalista’. Ainda somos a República dos Alvarás e das Mordomias. O que temos mesmo é o ‘Estado Maximalista’, que faz mais do que pode e por isso não faz o que deve” (Campos, 1987, p. 178). Para não deixar dúvidas quanto à sua convicção sobre a inadequação do nosso Estado, mesmo após algumas mudanças favoráveis à sua visão, vale citar esta passagem: “No Brasil, o Estado tem sido o valhacouto dos interesses corporativos e dos privilégios de tudo quanto é grupo capaz de fantasiar-se de ‘nacionalista’, ‘progressista’, ou lá o que seja” (Campos, 1998, p. 144). 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho procurou expor e analisar as ideias de Roberto Campos quanto ao papel do Estado na economia e avaliar a sua coerência intertemporal. A hipótese defendida foi a da consistência da sua linha de argumentação ao longo do tempo. Essa tese Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 345 pode ser encontrada também na obra de Perez (1999, p. 252): “o pensamento de Campos pode e deve ser tomado como uma unidade. O elemento axial é a ideia de racionalidade, sedimentadora dos conteúdos do órgão decisor e do mercado”. Da mesma forma que em Perez (1999), a tese aqui defendida tem na ideia de racionalidade, sempre presente no pensamento de Campos, a sua fundamentação.20 Diferencia-se, porém, daquela em relação à sua colocação na obra de Campos. A análise de Perez (1999, p. 252) sustenta que “no primeiro caso [fase inicial da obra de Campos], a razão é instalada no poder público e, a partir dele, propõe-se sua disseminação pelo tecido social; no segundo [já na fase madura], com a experiência da crise iscal do Estado e o encorpamento da vida privada, reposiciona-se a ratio nos indivíduos e em suas microrrelações”. A argumentação aqui esboçada, mesmo sendo compatível com a de Perez, seguiu trajetória de justiicação diferente. Defendeu-se neste trabalho que o que emprestaria coerência ao ideário de Campos é o seu “projeto” mais amplo: a sua iliação ao ideal iluminista de utilização da razão e do conhecimento humanos para a melhoria da sociedade. Nesse sentido, tanto o Estado quanto o mercado possuiriam um papel mais instrumental.21 Suas funções não deveriam ser tomadas como absolutas, pois estão inseridos na realidade social e reletem o nível do conhecimento e do entendimento humanos. A mudança de atitude de Roberto Campos em relação ao papel do Estado espelharia o seu convencimento gradual, a partir das transformações ocorridas na sociedade e no conhecimento humano ao longo do século XX, de que o mercado teria se mostrado um instrumento mais eicaz para gerar prosperidade, bem-estar e liberdade do que o intervencionismo estatal sobre a economia. Como se pôde observar ao longo do artigo, a primeira dessas transformações diz respeito ao próprio Brasil. O país se urbanizou e se industrializou; seu mercado e suas fontes de inanciamento se expandiram, assim como sua capacidade empresarial. Nada mais natural, seguindo a visão de Campos, que o Estado passasse então a reduzir seu papel em cena, abrindo maior espaço para o mercado. Entretanto, o que se observou foi exatamente o contrário. O intervencionismo estatal continuou aumentando e ocupando áreas cada vez mais vastas. Segundo Campos, o Estado não só cresceu, mas, ao se afastar de suas funções clássicas, teria se tornado também inadequado e ineiciente por dinâmica própria. A segunda linha de transformações aconteceu no plano internacional. A desarticulação do modelo de planejamento central soviético, que se revelou 20. “Campos é um típico homem moderno. Acreditou como poucos nos efeitos positivos da razão, elevando-a a condição de prius da sociedade ideal” (Perez, 1999, p. 258). 21. “Meus caros colegas concordam comigo que a Razão não é o Estado, mas acrescentam que tampouco é o mercado. Sou o primeiro a concordar com isso, mas acho que estão vendo uma falsa oposição” (Campos, 1998, p. 142). 346 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil autoritário e ineiciente, e a sua posterior guinada novamente em direção ao capitalismo teriam demonstrado a maior versatilidade dos sistemas de mercado (corrigidos) para gerar prosperidade, igualdade e liberdade. Além disso, a maior internacionalização da economia e o sucesso dos Tigres Asiáticos teriam posto por terra as postulações da teoria da dependência, com seu modelo fechado e estatizante. Finalmente, o próprio pensamento econômico evoluiu no sentido de questionar a ação do Estado e também do mercado, atribuindo a cada um deles papéis mais especíicos e racionais. Nessa direção, as discussões acerca do papel do Estado passaram a ser cada vez mais técnicas, menos “ideológicas”. Campos foi um autor extremamente atento às transformações que aconteciam ao seu redor, inclusive antecipando algumas tendências. Como sempre procurou basear-se na racionalidade para buscar soluções sociais melhores, não icou alheio a essas transformações e suas repercussões sobre a sociedade humana. Nesse sentido, não é estranho que o papel que atribuía ao Estado tenha mudado. Como se procurou demonstrar ao longo deste trabalho, isso é perfeitamente coerente com sua atitude “racional” e, mais do que isso, parte integrante do seu “projeto intelectual”. As passagens a seguir ilustram de forma emblemática a tese aqui sustentada. Em texto em que reclama “menos Estado e mais mercado”, Campos (1998, p. 135-136) reconhece: “nos países em desenvolvimento, no entanto, existe, de fato, muita pobreza e falta de oportunidade, sem nenhuma culpa das vítimas”. Ao comentar em outro artigo (Perplexidades...) as sugestões da “nova esquerda”, porém, assevera: “Abrir mão da razão, em troca de tutelas salvacionistas, é suicídio moral e intelectual” (op. cit., p. 106). De volta ao primeiro dos textos citados, Campos conclui: Distinguir os que devem ser ajudados, e qual a maneira de fazê-lo, exige a difícil coragem da racionalidade. No caso brasileiro, o maior inimigo da equidade é o Estado corporativista e clientelístico, refém de malandros e aproveitadores. A maior das nossas injustiças é a ineiciência (op. cit., p. 136). Como se destacou no início deste trabalho, pode-se concordar ou não com as teses defendidas por Roberto Campos. Difícil é negar-lhe o vigor e a consistência. E impossível parece ser passar indiferente diante da sua argumentação. Nesse sentido, as ideias de Campos mostram-se instigantes e desaiadoras, férteis de relexões importantes sobre como construir uma sociedade “melhor” e qual vem a ser o papel do Estado nesta construção. Se o debate de ideias é um fator contributivo nessa questão, o projeto de Roberto Campos parece cumprir o seu papel. Papel do Estado e Desenvolvimento no Brasil: uma análise da obra de Roberto Campos 347 REFERÊNCIAS ABREU, M. P. (Org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BAER, W. A economia brasileira. 2. ed. rev. e atu. São Paulo: Nobel, 2002. BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1988. BRENNAM, G.; BUCHANAN, J. The power to tax: analytical foundations of a iscal constitution. New York: Cambridge University Press, 1980. CAMPOS, R. de O. Economia, planejamento e nacionalismo. Rio de Janeiro: APEC Editora, 1963. ______. Freios para Leviatã. Correio da Manhã, 20 nov. 1960 apud Campos, 1964. ______. A moeda, o governo e o tempo. Rio de Janeiro: APEC Editora, 1964. ______. Ensaios imprudentes. Rio de Janeiro: Record, 1987. ______. Guia para os perplexos. Rio de Janeiro: Nórdica, 1988. ______. O século esquisito. 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Ao longo de sua longa, produtiva e bastante ativa vida, ele foi membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), da Academia de Ciências Morais do Instituto de França, do Conselho Federal de Educação (CFE) e da Comissão Pontifícia de Justiça e Paz; foi professor catedrático da Universidade do Brasil; ajudou a fundar a Pontifícia Universidade Católica (PUC); recebeu, entre outras honrarias, a Ordem Nacional do Mérito, a Legião de Honra da França e a Ordem de São Gregório Magno; foi premiado com o Juca Pato como intelectual do ano, com o Moors Cabot de jornalismo, e com o Junípero Serra pela sua obra de crítico e pensador. Esses seletos exemplos dão uma pálida amostra de sua importância para o pensamento brasileiro. Além disso, foi autor de uma vasta obra, em que todos os domínios do saber o atraíram e, ao mesmo tempo, mereceram a sua atenção e relexão: a crítica literária, a sociologia, a economia, a educação, a ilosoia, o direito, a política e a religião. Sendo um espírito trinitário, a sua vida também pode ser dividida em três fases especíicas: a das formas, em que a discussão estética era o centro de sua preocupação; a das ideias, que começa logo após a sua conversão ao catolicismo, em 1928, e na qual o seu foco de atenção estava nas questões ideológicas e ilosóico-religiosas; e a dos fatos, cujo início se dá após a instauração do regime militar, em 1964, em que a crítica dos acontecimentos passa a ser a tônica dominante, principalmente em função da crescente supressão das liberdades. Essas distintas fases da vida de Alceu correspondem à longa trajetória intelectual deste raro e fecundo pensador brasileiro e, ao mesmo tempo, servem como uma espécie de guia para facilitar a compreensão não só do seu pensamento, como também de suas posições e ações. Entretanto, elas estão longe de ser “camisas de força”, posto que essas fases não são estanques e, além disso, o seu pensamento não é linear e, portanto, está sujeito a avanços e retrocessos ao longo do tempo. 1. Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP). E-mail: mserra@eco.unicamp.br. 350 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil O acompanhamento do caminho percorrido por Alceu, desde a sua mocidade até o limiar dos seus noventa anos, possibilita vislumbrar nitidamente a evolução do seu pensamento, que adquire, com as suas vivências e, obviamente, múltiplas leituras, maior densidade e soisticação. Essa estatura, mais profunda, complexa e requintada do seu pensamento está assentada em dois pilares fundamentais: humanismo e liberdade, os quais estão intrinsecamente relacionados aos valores cristãos, valores que lhe eram muito caros e que estavam nele internalizados desde a sua conversão, em 1928. Essa rica consistência e, também, vitalidade de seu pensamento se mostra extremamente atual na medida em que conexões de seu pensamento podem ser realizadas com autores mais recentes. Um exemplo bem ilustrativo é o de sua concepção acerca da primazia do homem na ordem econômica, que encontrou um forte eco no movimento economia e humanismo liderado pelo padre dominicano Louis Joseph Lebret o qual ele ajudou a introduzir e a difundir no Brasil. São essas ideias que foram germinar, décadas mais tarde, a concepção de desenvolvimento humano em que desenvolvimento deve estar fundamentalmente centrado no – e direcionado para o – homem. O principal objetivo deste capítulo é analisar a concepção de desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima com base em dois dos principais pilares de seu pensamento: humanismo e liberdade. Para tanto, este capítulo está estruturado em quatro seções, além desta introdução. Na segunda seção, apresenta-se a mocidade de Alceu em que se destacam as suas preocupações estéticas e um socialismo “romântico”. A terceira seção tem como foco central a fase após a sua conversão religiosa, em que as questões ideológicas e ilosóico-religiosas ocupam um lugar prioritário. A primazia dos fatos, em que Alceu investe, a partir de 1964, contra arbitrariedades perpetradas pelo regime militar é o objeto de análise da quarta seção, e na quinta e última seção, algumas considerações inais serão tecidas. 2 LA DOCEUR DE VIVRE: O DILETANTISMO COMO PRIMADO Alceu Amoroso Lima nasceu, em 1893, à rua Cosme Velho no verdejante bairro carioca das Laranjeiras, onde tinha um ilustre vizinho: Machado de Assis, amigo de seu pai. Filho de D. Camila da Silva Amoroso Lima e do industrial Manuel Amoroso Lima, teve uma infância abastada na belle époque carioca. Foi alfabetizado pela mãe, fez seus primeiros estudos em casa com o famoso educador João Kopke e teve que cursar, por exigência paterna, o Ginásio Nacional (depois Colégio Pedro II) para que tivesse contato com estudantes provenientes de classes sociais diferentes da sua. Embora tivesse detestado o ensino no Ginásio Nacional, esse contato, reconheceu-o mais tarde, veio a ser importante para a sua formação (Lima, 2000a) no sentido de dirimir os preconceitos de classe. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 351 Em 1909, ingressou na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais e foi, ao longo de sua formação jurídica que o pendor para a literatura se manifestou. Uma prova inconteste é a da mudança de orientação da revista A Época, para a qual havia sido eleito seu diretor no quarto ano do curso de direito, imprimindo-lhe um caráter mais literário que jurídico (Villaça, 1983; Lima, 2000a). A sua principal referência nesses anos de faculdade é Sílvio Romero, seu professor nas disciplinas de ilosoia do direito e economia política, que lhe incutiu o gosto pelo conhecimento, pela cultura brasileira e pela ilosoia ligada à sociologia (Villaça, 1983; Lima, 2000a). De fato, esse ávido e incansável intérprete do Brasil, um dos próceres da Escola de Recife, de vasta cultura, evolucionista spenceriano, foi considerado por Alceu um verdadeiro mestre e que acabou por lhe inluenciar com o evolucionismo de Herbert Spencer, que punha em dúvida o valor da metafísica e sublinhava que todo o conhecimento residiria nas ciências (Costa, 1960). Apesar da lembrança positiva que lhe deixara Sílvio Romero, a faculdade foi incapaz de entusiasmá-lo e a advocacia não conseguia seduzi-lo. Tornou-se um leitor voraz e infatigável. No campo da literatura, as suas principais inluências foram Machado de Assis, Eça de Queirós e Anatole France, todos eles exímios mestres não só do ofício de escrever, mas também do diletantismo intelectual, da ironia, e do ceticismo, traços que encontravam eco no jovem Alceu da belle époque. Dentre eles, Anatole foi o autor que mais o marcou, em função das características já mencionadas e, também, pelo caráter sociológico de sua obra, na qual a vocação da transformação social direcionado para o socialismo é um aspecto relevante (e não se pode deixar de mencionar que o eminente escritor francês, ganhador do Nobel de literatura de 1921, foi membro do partido comunista). Se a trindade literária foi importante pela inluência exercida no gosto estético e nas próprias ideias do Alceu, outras inluências também foram signiicativas, num sentido complementar, para a sua formação: Euclides da Cunha com Os sertões; Joaquim Nabuco com Minha formação; Afonso Arinos com o seu sertanismo e, sobretudo, a sua presença; e além do já citado Sílvio Romero. Todos esses escritores desempenharam um papel de relevo na vida do Alceu, principalmente por fazê-lo “descobrir” o Brasil e, fundamentalmente, ixar as suas raízes brasileiras, quando então muitos jovens de sua geração e classe social se desconectavam completamente da realidade do seu país em função de uma formação europeia, em geral francesa, e alienante. Não é por outra razão que Guerreiro Ramos (1955) escreveu uma crítica mordaz sobre a ideologia da jeunesse dorée. Em 1913, Alceu fez a sua terceira viagem à Europa e frequentou, na bela e inebriante Paris da belle époque, o curso ministrado no Collège de France por Henri Bergson, então o mais famoso e inluente ilósofo francês, e cuja obra era marcada pelo evolucionismo espiritual: “a ilosoia nos introduz na vida espiritual. 352 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil E ela nos mostra ao mesmo tempo a relação da vida do espírito com a do corpo” (Bergson, 1922, p. 283). Segundo Bergson, havia uma limitação da razão que decorria da incapacidade de o intelecto apreender a realidade como um todo. A física e a matemática eram reconhecidamente ciências na mais pura essência da palavra, mas a vida, em função do seu contínuo processo de mudanças que a transformava constantemente em algo diferente, estava além da simples capacidade de compreensão racional. Se a vida estava em constante mudança, ela acabava por desempenhar um poder de criação no universo e, portanto, não deixava de ser um tipo de criação, que não podia ser quantiicada e nem determinada previamente por meio de um esquema objetivo e de leis imutáveis. A intuição assumia uma importância fundamental na medida em que a pureza da visão advinda do interior do ser seria o elemento-chave para um retorno ao impulso vital da vida – o elã vital no dizer de Bergson – que possibilitaria a transposição das inúmeras barreiras existentes para se atingir o verdadeiro conhecimento, aquele que não seria produto de uma relexão, de um sistema lógico. Esse novo evolucionismo, superior ao spenceriano, impregnado de ideias reveladoras e no qual os fatores espirituais prevaleciam, mostrou ao jovem Alceu a importância de se levar em consideração os valores do espírito. O ano de 1914 foi passado quase que em sua totalidade na Europa, principalmente em Paris, cidade que exerceu, e que continuará a exercer ao longo de sua vida, um grande fascínio em Alceu. Além de desfrutar intensamente a vida na capital parisiense – um verdadeiro lâneur na mais pura acepção da palavra – e de aprofundar as suas variadas leituras, Alceu testemunharia um acontecimento marcante que não só o impactaria, como também a toda sua geração: a Primeira Guerra Mundial. A guerra se deu entre a Tríplice Aliança, formada pela França, Inglaterra e Rússia, e os países das Potências Centrais, constituídas pela Alemanha, o império Austro-Húngaro e a Turquia, envolvendo, ao longo de seus quatro anos de duração, países europeus e não europeus e foi determinante para a queda de quatro impérios – alemão, o Austro-Húngaro, o turco e o Russo –, e mudou consideravelmente o mapa geopolítico mundial. No curto século XX, aos olhos de Hobsbawm (1995), 1914 abriu uma era de massacre. O século XIX terminava ali, em agosto de 1914, e com ele, como bem gostava de frisar Alceu (Villaça, 1983; Lima, 1984; Lima, 2000a), indava a belle époque e, consequentemente, toda uma civilização impregnada de facilidades, disponibilidades, diletantismo, agnosticismo e alienações inconsequentes. A angústia e a inquietação seriam, a partir de então, os sentimentos dominantes. De fato, o mundo jamais seria o mesmo... Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 353 Ao regressar da Europa, em ins de 1914, Alceu retomou o seu trabalho no escritório de advocacia de Souza Bandeira, tio do poeta Manuel Bandeira, considerado por Mário de Andrade o João Batista do modernismo brasileiro, e essa atividade se estendeu até 1917, quando ingressou no Itamarati, onde icou por um ano. Abandonou a carreira diplomática para assumir a direção da fábrica de tecidos Cometa do pai e, assim, poder se casar com a jovem Maria Teresa, que seria sua esposa por sessenta e três anos (Carpeaux, 1978; Villaça, 1983). Nesse período, Alceu intensiicou as suas leituras, que continuavam a cobrir um leque signiicativo de temas. Era um leitor voraz, atento e aguçado. Entre as suas principais inluências, podem-se citar Benedetto Croce, Stéphane Mallarmé e Marcel Proust, de quem seria o primeiro a escrever uma crônica literária no Brasil. A Primeira Guerra o havia impactado e os problemas de cunho social começavam a fazer parte de suas preocupações e o socialista Henri Barbusse, com o seu Le feu, foi a sua grande referência e fonte de inspiração. Embora izessem parte de um tremendo processo interno de fermentação de ideias, as preocupações com a pobreza, a miséria, a injustiça social, a liberdade, a justiça davam os seus primeiros sinais e, pouco tempo depois, alorariam com toda a densidade e vigor. Cumpre sublinhar que esse período, apesar da grande variedade de leituras, é marcado por um absoluto amadorismo, pela ânsia de apreensão do conhecimento sem qualquer direcionamento especíico, uma necessidade de abrir novos horizontes que o acompanhará ao longo da vida e, fundamentalmente, pelo predomínio das preocupações estéticas. De um encontro casual com o seu amigo Renato Lopes no centro do Rio de Janeiro, em 1919, surgiu o convite para fazer crítica literária no O Jornal, o qual foi aceito por Alceu. Nas felizes palavras de Villaça (1983, p. 49), o “hobby se encontrava com o destino”. O que antes era lazer, leitura displicente, descompromissada e espontânea, passou a ser, com a formulação do convite, compromisso proissional e regular, ou seja, a literatura proporcionou o casamento de uma atividade prazerosa, o hobby, com a obrigação proissional de crítico literário, o destino. Assim nasceu Tristão de Athayde, cuja primeira crônica literária na coluna “Bibliograia” foi publicada em 17 de junho daquele ano. A visão de conjunto, a sólida cultura, a excelente informação, o bom gosto, a independência, a lucidez e a justeza de avaliação são componentes que izeram de Alceu uma referência na crítica literária nacional. Um aspecto importante de ser salientado aqui é o fato de ele ter inovado na crítica literária, ou seja, o seu método crítico destoava completamente do que era então hegemônico no Brasil. Ele cunhou a sua crítica de expressionista, denotando claramente a inluência de Benedetto Croce, estando o seu método crítico delineado no prefácio de seu primeiro livro, publicado em 1922, sobre a vida de Afonso Arinos. Segundo Alceu (Lima, 1966a, 354 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil p. 537, 2000b, p. 36), a crítica expressionista repousava “numa penetração mais profunda do espírito das obras, numa fusão preliminar da alma do crítico com a do autor, na transformação da análise objetiva em síntese expressiva, na individuação do juízo estético”. Candido (2004, p. 86-87) ressalta: [o] livro inaugural já mostrava, portanto, a força de mestre Alceu, que não cessaria de se construir e se reconstruir dali por diante, percorrendo as mais variadas contradições, até se tornar um dos maiores homens de pensamento e de militância intelectual, além de uma das mais completas organizações morais que o Brasil conheceu. De fato, o reconhecimento do novo crítico literário foi imediato, sendo a importância de sua atividade crítica muito bem exempliicada nas palavras de Holanda (1996c, p. 61), que salienta que “bastaria lembrar a circunstância de, alheio embora ao movimento modernista de 1922, ter sabido, desde cedo, apreciá-lo no seu justo valor e na importância verdadeiramente singular que assume na história da literatura e do pensamento brasileiros”. Ficará marcado para sempre como o crítico do modernismo por excelência e suas qualidades, anteriormente mencionadas, também explicam a sua fecundidade e a inluência exercida sobre as gerações futuras. A partir do momento em que se torna um crítico militante, a produção intelectual do Alceu é intensa e assim o será pelo resto de sua longa vida. Além da biograia sobre o Afonso Arinos, publicada em 1922, grande parte de suas críticas literárias assinadas em O Jornal foi convertida em livros, que saíram com títulos genéricos de Estudos.2 Ao se lançar um olhar atento para essa produção, principalmente a dos anos 1920, o que inclui tanto a fase anterior quanto a posterior ao movimento da Semana de Arte Moderna, podem-se perceber claramente as já referidas qualidades do crítico, a diversidade de temas abordados, a sua preocupação em acompanhar e avaliar a produção literária nacional, sem, contudo, deixar de perceber o que se passava no mundo, e a primazia do estético. Apesar da prevalência do viés estético, algo perfeitamente natural e compreensível para um proissional da crítica literária, um aspecto importante de ser ressaltado é que as suas críticas, a partir de um determinado momento, começaram a sinalizar algumas inquietações pessoais, que seriam o combustível necessário, anos depois, para uma tomada de decisão fundamental na vida do Alceu: a conversão religiosa. Eram essas inquietações pessoais fruto não só de uma insatisfação com o puro diletantismo e com as preocupações de ordem estética, mas principalmente da necessidade do Alceu de abrir novos horizontes, enim de buscar um sentido 2. Os Estudos de 1919 e 1920 foram publicados, em 1948, como Primeiros Estudos I; os Estudos de 1919 a 1925 foram editados, em 1966, como Estudos Literários (sendo os dois primeiros – 1919 e 1920 – republicados neste volume); os Estudos primeira série saíram em 1927; e os Estudos segunda série no ano seguinte. Na década de 1930, os outros três Estudos terceira série, quarta série e quinta série – foram publicados, respectivamente, em 1930, 1931 e 1933. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 355 mais amplo para a existência. Dois artigos, publicados em Estudos 1925 (Lima, 1966a), reletem bem esse seu estado de espírito: A Salvação pelo Angélico e Essência e Evanescência. O primeiro3 deles é resultado de sua polêmica com Sérgio Buarque de Holanda acerca do surrealismo em que Alceu criticava os surrealistas franceses e, ao mesmo tempo, o Oswald de Andrade, um dos líderes do modernismo brasileiro, com o seu primitivismo e sentimento nacionalista expressos no manifesto Pau-Brasil. No seu artigo, Alceu dá pistas da sua mudança de rumo ao sublinhar que “até lá, subindo mais alto que essas competições rasteiras, e olhando em torno o vazio que o mundo contém para nós, que ainda não conseguimos escalar o divino, só uma salvação nos resta: o angélico” (Lima, 1966a, p. 994). Já no segundo artigo,4 essa mudança de rumo ica ainda mais clara quando Alceu ressalta: A vida é um perene reapelo às coisas essenciais. A natureza não inventa incessantemente. (...) O que há de maravilhoso nela não é tanto a eterna criação, como a eterna coordenação. Essa lei de coexistência e de harmonia fundamental é que decanta ainal todas as contradições, e faz da vida uma vitória das unidades sobre as multiplicidades, das essências sobre as evanescências (Lima, 1966a, p. 1.029). Aqui está o indício de que novas preocupações assomavam fortemente dentro do Alceu, que sentia a necessidade de passar das aparências às essências da vida. Neste lento processo de mudança de itinerário, uma pessoa assumiu um papel de destaque: Jackson de Figueiredo, principal representante leigo do movimento de renovação católica no Brasil, criador do Centro Dom Vital e da revista A Ordem. Apresentado ao Alceu em 1918, Jackson se tornou seu amigo e desenvolveu uma correspondência epistolar, que se intensiicou a partir de 1924 e se estendeu até 1928, ano de sua morte, com o já reconhecido crítico literário. De fato, foi esse homem, extremamente conservador, de fortes convicções religiosas e com um projeto de recristianização da sociedade brasileira, que ajudou Alceu a superar determinados preconceitos, fundamentalmente a de que a igreja católica era uma instituição arcaica, retrógrada e na qual grassavam a ignorância e a mediocridade de espíritos. 3. Esse artigo, cujo título é Perspectivas, foi publicado, em 1925, na revista Estética e consta também da coletânea de artigos de Sérgio Buarque de Holanda organizada por Antonio Arnoni Prado (Holanda, 1996a), e O espírito e a letra: estudos de crítica literária (1996b). 4. O artigo em questão é O lado oposto e outros lados, que foi publicado originalmente na Revista do Brasil, em 15 de outubro de 1926. Ele também consta da seleção organizada por Antonio Arnoni Prado (ver nota 3) e do livro Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência. (Monteiro, 2012). 356 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Esse sentimento está muito bem ilustrado na carta, datada de 28 de maio de 1928, escrita a Jackson em que Alceu diz textualmente: Vejo toda a inteligência fora da Igreja. E entre os católicos brasileiros só vejo você, como homem superior, como homem cujo gênio e cuja alma sinto realmente superiores. Tudo mais, um deserto de mediocridade! E o terror de me contaminar ainda mais nessa multidão de medíocres, de agravar a minha própria mediocridade (Etienne Filho, 1992, p. 115). A insatisfação existencial era cada vez maior e Alceu, na sua busca por um sentido mais amplo da vida, tomou contato com uma vasta e rica literatura produzida por autores católicos das mais diversas tendências. Alguns exemplos signiicativos são: Léon Bloy; Charles Péguy; Charles Maurras, expoente da antirrepublicana e antiliberal Action Française; Léon Daudet; Fulton Sheen; Graham Greene; Georges Bernanos; Jacques Maritain; e Gilbert Chesterton. Na verdade, Alceu manteve a sua tradição de ser um leitor ávido e voraz. E é exatamente essa sua voracidade, e a sua amplitude de leituras, aliada a um intenso debate ilosóico e epistolar com Jackson de Figueiredo que o ajudarão a transpor alguns dilemas pessoais e, consequentemente, a caminhar na direção da provavelmente mais difícil decisão de sua vida: a conversão religiosa. Esse processo de conversão é lento e, sobretudo, racional, eminentemente intelectual. A superação das muitas prevenções contra a igreja católica, a aceitação dos dogmas desta e a remoção de conlitos pessoais exigiram de Alceu longas relexões e uma demorada maturação das suas próprias ideias. Neste processo, algumas inluências podem ser destacadas: o livro God and intelligence in modern philosophy5 de Fulton Sheen (Sheen, 2009) que ressaltava a importância da razão para se atingir o conhecimento de Deus, sendo um empecilho para tal o agnosticismo, com a sua desconiança da razão, do mundo moderno; os livros Trois réformateurs (1925) e Primauté du spirituel (1927) de Jacques Maritain, um ilósofo católico que exerceria uma signiicativa e deinitiva inluência no pensamento de Alceu em anos vindouros e se tornaria seu amigo, e que tinha tecido uma forte crítica à Action Française e salientava ser necessária uma restauração da cristandade tendo o espiritual como prioridade; o romance Sob o sol de Satã 6 de Georges Bernanos (2010) revelava a luta do padre Donissan, personagem principal, para salvar os seus paroquianos e este conlito entre o bem e o mal era o pano de fundo para um ataque a todo tipo de conformismo, ceticismo e de covardias interiores que acabavam por diminuir o homem, o que era, na verdade, uma crítica ao Anatole France, um dos ícones da juventude do Alceu; e os livros he everlasting man (1925) e he outline of sanity (1927) e a revista G. K.’s Weekly de G. K. Chesterton, jornalista, poeta, escritor, 5. A sua primeira edição foi em 1925. 6. A primeira edição de Sous le soleil de Satan foi em 1926. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 357 católico convertido e, acima de tudo, um liberal, cujas ideias, principalmente a do distributismo, encontraram um forte eco em um Alceu à procura de um norte existencial para a sua vida. As ideias liberais de Chesterton causaram forte impacto em Alceu, que escreveu, em 1927, um longo artigo sobre o distributismo, uma espécie de ilosoia econômica desenvolvida pelo próprio Chesterton e pelo seu amigo Hilaire Belloc que reletia, na realidade, o desencanto destes autores acerca das soluções preconizadas tanto pelo capitalismo quanto pelo socialismo para os problemas do mundo moderno. Nas palavras de Lima (2003a, p. 227), o distributismo [vinha] combater categoricamente tanto a ideologia da economia ilimitada, que o liberalismo do século passado [século XIX] promoveu, como em geral os esquemas de “racionalização” econômica, como hoje se diz, em que o interesse coletivo da sociedade prevalece sobre a liberdade do indivíduo. Há, nesse sentido, uma defesa da pequena propriedade e da pequena empresa contra o “real crescimento do monopólio” (Chesterton, 1927, p. 30). De acordo com Lima (2003a, p. 237): Se o comunismo assenta numa economia socialista, se o capitalismo assenta numa economia liberal, o distributismo assenta numa economia do homem. É a pessoa, como vimos, que representa para ele o ponto central de todas as suas ideias econômicas. E o que ele procura é justamente encontrar uma solução que permita à pessoa realizar plenamente a sua atividade e conservar a sua independência, sem ceder os seus direitos naturais ao estado, como no socialismo, nem chegar à anulação da liberdade pelo excesso de liberdade, como no individualismo ilimitado da economia capitalista. Ainda nessa fase de pré-conversão, a ilosoia distributista já faz parte do ideário sociopolítico de Alceu, conforme pode se veriicar na sua carta, escrita em 28 de julho de 1927, ao Jackson de Figueiredo, em que salienta: A fórmula política brasileira a que eu há muito tempo cheguei é a seguinte (...): política central forte, constituindo a chave da abóboda; uma administração descentralizada e portanto permitindo à vida da nação uma amplitude de movimentos autônomos, que a centralização do tempo do Império diicultava. E inalmente uma vida econômica dominada sobretudo pela satisfação das necessidades locais, de modo a multiplicar a pequena propriedade, as pequenas fábricas, etc., isto é, o próprio mecanismo distributista de Chesterton (Etienne Filho, 1991, p. 126). Cabe aqui ressaltar que essas ideias de Chesterton nunca abandonarão o Alceu por completo. Na verdade, elas estiveram, pode-se assim dizer, entorpecidas na sua fase de extremo conservadorismo, ou seja, logo após a sua conversão religiosa para depois retomar um lugar especial e cativo em seu pensamento, tal como está expresso na sua carta escrita praticamente vinte e um anos após a sua conversão 358 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil – 21 de janeiro de 1959 – e, portanto, numa outra, e completamente distinta, fase de sua vida, e endereçada a sua ilha Lia, a monja beneditina Maria Teresa;7 “Minha própria posição, que continua a ser a de Chesterton, é a distributiva. Nem capitalista nem socialista” (Lima, 2003b, p. 96). É interessante observar que essas ideias distributistas de Chesterton acabaram por substituir as antigas convicções socialistas do jovem Alceu, as quais foram uma forte fonte de conlitos com o seu pai, Manoel Amoroso Lima, dono da indústria de tecidos Cometa. A contradição entre a sua posição de diretor industrial e as suas ideias socialistas veio à tona com a greve dos operários da empresa. Na árdua discussão travada entre os dois a esse respeito, Alceu saiu em defesa dos trabalhadores e sofreu um duro e deinitivo golpe ao ouvir as seguintes palavras do pai: “Pois se pensa como eles, vá trabalhar por eles e não continue no seu lugar” (Etienne Filho, 1992, p. 101). Derrotado no embate, Alceu capitulou, permaneceu no cargo da empresa e continuou a levar uma “vida de homem rico”, porém não sem acumular profundos arrependimentos: Ah! Jackson, há dez anos que vivo em luta com esse lugar que ocupo! (...) Mas o fundo de minha vida, desde novembro de 1917, isto é, desde que pus os pés neste meu posto, é que vivo: roído de remorsos. Fui socialista por cinco anos, mais ou menos. E o absurdo da contradição entre a minha posição na vida e as minhas ideias, me forçou sempre a calar isso, a jogar-me na literatura, como dizem os franceses, por um pis aller (Etienne Filho, 1992, p. 100). Esse marcante episódio lhe fez enxergar a incoerência em que vivia e também a incompatibilidade entre a sua posição de industrial e os seus sonhos socialistas, sendo o desdobramento desse processo o mergulho profundo na crítica literária e o consequente afastamento progressivo do ideário socialista. Embora esse conlito interior tenha sido serenado, esta serenidade foi momentânea na medida em que o gérmen da sua angústia existencial estava tão somente incubado. Na verdade, o seu debate epistolar com o Jackson aliado a um intenso contato com uma vasta literatura produzida por escritores católicos levaram Alceu rumo ao catolicismo. Na sua carta ao Jackson, datada de 10 de maio de 1928 e, portanto, antes da conversão, Alceu já se assumia como cristão e dizia: “Hoje, que estou no pórtico de uma Nova Vida, e que vejo com deslumbramento e com angústia, sobretudo com angústia, que estou nascendo de novo” (Etienne Filho, 1992, p. 103). A angústia mencionada anteriormente se deve não somente às consequências de uma deinitiva e difícil decisão que estava prestes a ser tomada – a conversão religiosa –, e às incertezas do futuro como católico militante, mas também ao próprio 7. Nome laico de madre Maria Teresa, que ingressou, no início dos anos 1950, como monja enclausurada da Ordem de São Bento. Em 1978, tornou-se abadessa do mosteiro beneditino de Santa Maria vindo a falecer, aos 82 anos, em julho de 2011. É com essa ilha que Alceu estabeleceu um longo diálogo epistolar ao lhe escrever diariamente cartas de 1951 até 1983. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 359 conlito íntimo entre a sua condição de rico industrial e a de cristão, não sendo mera coincidência o fato de o Alceu, já inluenciado pelas ideias chestertonianas, ter escrito ao Belloc, companheiro de Chesterton, com o intuito de saber como proceder para conciliar as suas funções empresariais e com as suas convicções distributistas (Lima, 2000a). Como a resposta de Belloc foi uma pura decepção, a angústia permaneceu, o que levou Alceu, nessa mesma carta ao Jackson, a questionar “Pois, não é tão absurdo um socialista industrial, como um cristão industrial?”; a sublinhar ao seu amigo: Veja se eu não tenho razão de ter o coração triste, de ver a minha aurora cristã sombreada por uma nuvem intransponível, que forma no meu céu um imenso ponto de interrogação”; para em seguida arrematar a carta com a seguinte sentença: “Tudo é uma grande angústia. E volto aos dias do meu socialismo interior, inconfessável, de que só meu pai ouviu a conissão naquela tarde triste e chuvosa de Petrópolis, que evoco hoje como se tivesse sido ontem! (Etienne Filho, 1992, p. 104-105). Essas inquietações e dúvidas foram sendo dirimidas com as leituras e, sobretudo, com o intenso diálogo epistolar com o Jackson de Figueiredo, e Alceu, em quinze de agosto de 1928, recebeu o sacramento da Eucaristia do padre Leonel Franca. Este era o passo inal de uma longa e sinuosa caminhada. A conversão havia sido realizada e com ela toda a fase do diletantismo e das preocupações eminentemente estéticas se extinguia. Uma nova fase estava por começar, mas as interrogações acerca do seu futuro persistiam, tal como estão expressas na carta que Alceu escreveu ao Jackson no dia seguinte ao da sua comunhão: “Estou portanto de novo na velha Igreja. Que farei por ela? Poderei fazer alguma coisa? São tantas as nuvens no horizonte, dentro de mim e fora de mim! Tanta coisa a pesar-me sobre a alma! Há momentos em que vejo tudo insolúvel” (Etienne Filho, 1992, p. 227). A conversão de Alceu se tornou pública, em 1929, com a sua famosa carta – o Adeus à disponibilidade – dirigida a Sérgio Buarque de Holanda e na qual assumia não só o rompimento com “a disponibilidade gidiana” e com “a irresponsabilidade do diletantismo”, mas fundamentalmente a sua opção pelo Catolicismo: “Optando pela Verdade eu bem sei que arranco de mim mesmo as últimas veleidades de inluir sobre ‘a nossa geração e o nosso momento’, que só amam a ilusão” (Lima, 1969a, p. 18). Esta carta foi motivada pela crítica de Sérgio, intitulada Tristão de Athayde8 e publicada no Jornal do Brasil em 29 de agosto de 1928, ao livro Estudos primeira série de Alceu em que apontava as hesitações, incertezas e contradições deste último, que até então insistia em ocultar que o Catolicismo era a sua resposta para os problemas que transcendiam o caráter estético e, portanto, abrangiam as dimensões sociais e políticas: “Não é admirável, diante disso, nem espantoso, que 8. Esta crítica de Sérgio conirmava as suas antigas teses a respeito do Alceu abordadas nos artigos Perspectivas e O lado oposto e outros lados. A esse respeito, consultar Holanda (1996a, 1996b). 360 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil se incline com insistência para o ponto de vista do catolicismo. (...) Nenhuma outra doutrina conviria tão plenamente a um homem que aspira a organizar a sua desordem neste mundo sem recusar subvenções do outro mundo” (Holanda, 1988, p. 113). O catolicismo, a solução religiosa encontrada por Alceu para as suas inquietações e incertezas, era tão somente o pano de fundo do debate9 entre Alceu e Sérgio, cujo epicentro é a questão da liberdade, que para este último seria tolhida com a opção religiosa na medida em que haveria a tentativa de se “disciplinar os demonismos da liberdade” (Holanda, 1988, p. 113), o que prejudicaria a atividade crítica. Desnecessário salientar que subjacente a este debate estava também, como não poderia deixar de ser, a divergência política de ambos os críticos em face das suas distintas, e agora bem perceptíveis, visões de mundo.10 Torna-se importante ressaltar que a decisão de Alceu de se converter ao catolicismo, embora consciente e decidida, estava revestida de coragem, uma irmeza de espírito em assumir uma posição que estava na contramão do seu tempo, quando então uma parcela considerável da intelectualidade brasileira ou era avessa à igreja e às atitudes desta ou estava sob a inluência, direta ou indireta, da esquerda, sendo importante lembrar que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi fundado em 1922. O artigo11 de Antônio de Alcântara Machado, jornalista e escritor modernista, sobre o Alceu é bem ilustrativo: Ainal de contas, Tristão de Athayde viveu o drama de todos nós. (...) Sou um dos covardes que ainda não optaram. Ganhando um nojo inaudito pelo capitalismo cego, estúpido, assassino, conservei o gosto pelas camisas de seda. Mas do liberalismo nefasto em que me eduquei guardo a faculdade de medir os valores, independente dos credos a que se iliam, e quis prestar uma homenagem a quem tem o desassombro de optar e permanecer, dentro do catolicismo, o muito que já era fora dele (Lima, 1984, p. 10-12 e Barbosa, 2002, p. xxvi-xxviii). 3 ADEUS À DISPONIBILIDADE: A MILITÂNCIA CATÓLICA A conversão de Alceu e sua definição política com o Adeus à disponibilidade marcam definitivamente uma nova fase na vida deste intelectual em que o diletantismo descompromissado seria deinitivamente abandonado e as preocupações eminentemente literárias icariam, a partir desse momento, relegadas ao segundo plano. De fato, agora o foco de suas atenções estaria voltado, como não poderia deixar de ser em face de sua assumida postura política, para as questões ideológicas e para os problemas de cunho ilosóico e religioso. 9. Para uma discussão mais detalhada a respeito do debate entre Alceu Amoroso Lima e Sérgio Buarque de Holanda, consultar Reis (1998) e Monteiro (2012). 10. Sérgio continuaria ateu até o im de sua vida. 11. Este artigo, intitulado Tristão de Athayde, foi publicado em 5 de novembro de 1933, em O Jornal. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 361 Um fato marcante traria impensados desdobramentos neste início da nova fase da vida de Alceu: a trágica morte, em novembro de 1928, de Jackson de Figueiredo. Em decorrência desta tragédia, Alceu foi alçado, com o apoio incondicional do cardeal Leme, à presidência do Centro Dom Vital12 e à direção da revista de cultura católica A Ordem, ambas fundadas por Jackson no começo dos anos 1920, e passou a ser identiicado como o principal representante do laicato católico no Brasil. Na realidade, Alceu se inscreve num ambicioso projeto político, concebido pelo cardeal Leme, que identiicava a necessidade de a igreja ter uma presença mais relevante na vida do país. Para tanto, o objetivo era aumentar o grau de participação da igreja junto ao Estado, sendo seus instrumentos o Centro Dom Vital, constituído por uma elite intelectual católica (Williams, 1974b), e a revista A Ordem (Azzi, 2003). Aos olhos da igreja, a sua presença mais efetiva “visava criar uma sociedade que respeitasse os valores tradicionais do catolicismo” (Azzi, 2001, p. 11), ou seja, os de ordem e autoridade. Deste projeto resultaram, por exemplo, a criação, em 1929, da Coligação Católica Brasileira (CCB), uma associação civil que tinha por objetivo reunir todas as associações católicas brasileiras e da qual Alceu foi seu diretor (Azzi, 2003); a Ação Universitária Católica13 (AUC), criada, em 1929, pelo próprio Alceu e constituída por jovens universitários, cujo objetivo era a difusão dos princípios católicos no meio acadêmico (Azzi, 2003); a Confederação Nacional dos Operários Católicos (CNOC), estabelecida, através do Centro Dom Vital, em ins de 1931, com o objetivo de prover uma orientação geral e padronizada ao movimento sindical católico, sendo a estratégia por trás dessa ação a de combater o avanço dos sindicatos comunistas e anarquistas e, ao mesmo tempo, a sua propaganda em prol de um sistema socioeconômico que era “contrário às verdades da fé” (Arduini, 2009, p. 90); a Liga Eleitoral Católica (LEC), fundada em 1932 e com o Alceu como seu secretário-geral, que era uma organização concebida para atuar, de forma paralela ou mesmo acima dos partidos políticos, como grupo de pressão na defesa das concepções e valores católicos (Williams, 1974a; Azzi, 2003; Arduini, 2009); o Instituto Católico de Estudos Superiores, criado em maio de 1932, cujo intuito era o da ampliação da rede católica de ensino superior (Arduini, 2009), sendo a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) a primeira universidade católica estabelecida no Brasil; e a ACB, estabelecida em 1935 e tendo o Alceu como seu diretor, que era uma instituição civil voltada para a organização 12. O Centro, desde que fora fundado por Jackson, tinha uma clara intenção política, que era a de “defender o princípio de autoridade”. Ao assumir a sua presidência, Alceu teve como principal preocupação a de “afastar o Centro Dom Vital de toda a atividade política partidária e o de defender o princípio da liberdade” (Lima, 2001, p. 69-70). Aqui está não só uma diferença de postura, como também uma diferença acentuada entre Alceu e o seu antecessor. 13. Esse movimento universitário foi posteriormente incorporado pela Ação Católica Brasileira (ACB) para depois se transformar no grupo especíico da Juventude Universitária Católica (JUC) (Azzi, 2003). 362 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil do laicato nas ações da Igreja para a divulgação dos seus princípios na sociedade (Azzi, 2003; Cury, 2010). Como se pode notar, o Alceu, na condição de braço direito do cardeal Leme, desempenhou um papel político de extrema relevância na luta em prol dos interesses da Igreja Católica junto ao Estado e à sociedade, sendo suas posições nesse período, que se estende de 1928 até praticamente o im dos anos 1930, marcadas pelo conservadorismo, dogmatismo, intolerância e reacionarismo. É desse período que Alceu, por exemplo, se opôs ao ensino público laico, combateu vigorosamente o plano de reforma de educação no Brasil, liderado principalmente pelo Anísio Teixeira,14 se posicionou favoravelmente às forças de Franco15 na Espanha, moveu uma intensa campanha contra a Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma frente ampla liderada por comunistas, e como secretário-geral da LEC, lutou pelo reconhecimento constitucional da indissolubilidade do casamento religioso e chegou a recomendar o integralismo aos católicos.16 O reacionarismo do Alceu deste início de sua nova fase de vida pode ser explicado, por um lado, pela associação que fazia entre catolicismo e uma posição de direita e, por outro, pela herança extremamente conservadora do Jackson de Figueiredo. Na realidade, Alceu, ao substituir o Jackson tanto na presidência do Centro Dom Vital quanto na direção da revista A Ordem, sentia-se no dever moral de seguir os passos daquela pessoa que havia sido o principal responsável pela sua conversão religiosa. Nesse sentido, as suas posições reacionárias, intolerantes, dogmáticas e conservadoras são as de um impetuoso cristão-novo desejoso de cumprir ielmente as diretrizes estabelecidas pela igreja através do cardeal Leme, o então arcebispo do Rio de Janeiro. Essa atuação certamente o conigurou como um católico irrepreensível, o que pode ser comprovado nos depoimentos coligidos no volume Alceu Amoroso Lima: testemunho (Franca et al., 1944) e também nas palavras de Costa (2006, p. 32): “Sua militância, solicitada e abençoada pela hierarquia – a começar por ninguém menos que D. Leme – é apresentada como exemplar. Alceu é apontado como modelo de crente”. A questão importante, no entanto, é que as suas posturas e as atitudes de ardoroso cruzado católico estão claramente reletidas em seus escritos desse período. 14. Embora em lados opostos nos anos 1930, Alceu e Anísio, nos anos 1960, se aproximaram e estiveram no mesmo campo de batalha. 15. O equívoco do Alceu em não perceber a gravidade de que a vitória de Franco representava a ascensão do fascismo e do nazismo pode ser facilmente explicado: a Igreja Católica considerava ambos os movimentos políticos como seus próprios aliados. A sua mudança de atitude, em 1938, se deveu com a ciência das posições de dois importantes e inluentes intelectuais católicos, Maritain e Bernanos, que condenaram veementemente o franquismo. 16. O lerte de Alceu com o integralismo pode ser explicado pela própria posição da Igreja Católica e aos pontos de convergência entre a LEC e o integralismo quanto aos aspectos sociais e religiosos. Apesar da declarada simpatia, a LEC não forneceu um apoio especial à Ação Integralista Brasileira (AIB), tal como desejava Plínio Salgado, posto que o entendimento do Alceu, com o aval do cardeal Leme, era o de que a LEC não deveria se comprometer com nenhum partido em particular (Lima, 2000a; Azzi, 2003). Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 363 Nesse sentido, toda a sua produção bibliográica desses anos de católico militante, o que inclui os seus livros com maior aderência ao tema do desenvolvimento econômico – Introdução à economia moderna17 (Lima, 1961) e Política18 (Lima, 1999b) – estão impregnados da fé católica, em que os fatores espirituais estão hierarquicamente acima de todos os demais. No primeiro livro, Alceu (Lima, 1961, p. 28) tinha por objetivo “mostrar como a concepção do espiritual da Divindade inluiu diretamente sobre os problemas econômicos mais materiais e indiretamente sobre toda a estrutura social do mundo antigo, do mundo medieval e do mundo moderno”. Ao lançar um olhar para a evolução da humanidade, o que se constatava era a concomitância de dois fenômenos: a decadência da sacralidade e a hipertroia do economismo, sendo que o primeiro se iniciava com o domínio do capitalismo e se completava com o socialismo comunista, ao passo que o segundo teve início com a vitória da economia capitalista contra a economia cristã e, da mesma maneira, se completava no socialismo. Nesse sentido, Alceu criticava ambos os sistemas – capitalismo e socialismo19 –, que seriam vetores com uma mesma direção e sentidos opostos, ou seja, comungavam de uma base comum, que era o foco nos fatores econômicos, embora a ênfase de um estivesse centrada no indivíduo e a do outro na coletividade (Silva, 2008). Em suma, ambos os sistemas padeciam do mesmo mal: levavam a hipertroia econômica, em que os valores espirituais estavam subordinados aos materiais. Na verdade, essa crítica do Alceu aos sistemas capitalista e socialista está consoante com a sua convicção distributista da sua fase pré-conversão, muito embora o distributismo não tenha sido sequer mencionado e o próprio Chesterton tenha sido citado somente duas vezes na Introdução à economia moderna, e também com as suas posições explicitadas no seu livro Tentativas de itinerário.20 Aqui Alceu ressaltou: [a] economia liberal não conseguiu organizar a vida econômica e deu em resultado a instabilidade social de nossos dias e o contraste monstruoso das condições de luxo e de miséria do mundo moderno. A ela estão sucedendo as duas formas atuais de organização econômica: a economia comunista, pela centralização absoluta, e a nova economia capitalista de trusts e cartéis, pela centralização relativa. Uma economia racional e humana não pode aceitar inteiramente nenhum desses esquemas de organização, cujo perigo é reduzirem de todo a personalidade, que se procura exatamente preservar (Lima, 1969a, p. 30). 17. Escrito entre ins de 1929 e início de 1930, sendo publicado neste ano com o título Esboço de uma introdução à economia moderna. A segunda edição, publicada em 1933, é que teve o título alterado para Introdução à economia moderna. 18. Este livro, publicado em 1932, é resultado de uma série de conferências de Alceu realizadas, em 1931, nas cidades de Belo Horizonte e Juiz de Fora. 19. Alceu utiliza o termo socialismo e às vezes socialismo comunista. Na verdade, eles são sinônimos, uma vez que sua crítica estava voltada para a experiência russa e, portanto, marxista. 20. Este livro foi publicado, em 1928, pelo Centro Dom Vital e incorporado ao volume Adeus à disponibilidade e outros adeuses. 364 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Essa crítica ao capitalismo e ao socialismo, sistemas, embora antagônicos, considerados inadequados na medida em que eram responsáveis tanto pela hipertroia da economia quanto pela falta de liberdade, o acompanhará por toda essa fase e, também, por um período da próxima fase, quando então Alceu começará a se desfazer de alguns equívocos em relação ao socialismo. Além de a crítica ser coerente e natural nesse momento de sua vida, não é mera coincidência o fato de Alceu abraçar o distributismo, uma espécie de caminho alternativo ou terceira via, que estava centrado no desenvolvimento do homem, que poderia realizar todo o seu potencial sem as limitações impostas por ambos os sistemas. Especificamente em relação ao livro Política, ele, da maneira como foi concebido e estruturado, se assemelha a um conjunto de princípios e deveres para os católicos brasileiros, em que há uma preocupação de se partir dos problemas gerais – sociedade, Estado, autoridade etc. – para os particulares no Brasil – econômicos, políticos, espirituais etc. – de modo a fornecer uma visão abrangente e coesa dos temas analisados. O caráter normativo desse livro está muito coerente com o papel de arrojado cruzado católico na luta contra os gentios que estava sendo desempenhada vigorosamente pelo Alceu daquele início dos anos 1930. Um aspecto importante de ser ressaltado nesse livro é o fato de Alceu, ao abordar o problema econômico no Brasil, estabelecer os princípios gerais de uma economia cristã que deveriam reger a política econômica do país. Sendo a economia uma ciência de caráter prático, ela deveria ser governada pela Moral na medida em que não é um im em si mesmo, apenas um meio. Portanto, todos os problemas econômicos práticos – população, produção, distribuição, organização proissional, preço, renda e salário – seriam resolvidos levando-se em conta os dois lados característicos da ciência econômica: i) o experimental – provido pela observação dos fatos –, que incorpora o lado cientíico especíico – a contribuição de outras ciências, tais como a psicologia, a história e a política; e ii) o especulativo, fornecido pelos princípios morais norteadores da ação política. Na verdade, todos os problemas econômicos do país deveriam ser regidos pela moral cristã e, portanto, a política econômica do Brasil deveria respeitar essas normas fundamentais. Nesse sentido, o Estado não deveria ter um papel passivo, como desejava a concepção liberal, tendo em vista que a “concepção econômica humanista, para a qual os elementos morais e os elementos naturais colaboram necessariamente, exige do Estado uma ação positiva, coordenadora, estimulante ou restritiva, para que se cumpram os preceitos da justiça comutativa, que estão na base de toda a economia racional” (Lima, 1999b, p. 233). Outro aspecto importante de ser sublinhado nesse livro é o da inluência de Alberto Torres, a quem Alceu considerava o maior pensador social do Brasil, na parte relacionada aos problemas econômicos brasileiros. De fato, Alceu ressaltava Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 365 que as recomendações de política econômica de Torres estavam em consonância com os “princípios doutrinários mais puros da economia cristã” (Lima, 1999b, p. 234) e as diretrizes de política econômica para o Brasil foram estabelecidas à luz do pensamento de Torres, em que a hipertroia do economismo, a descentralização econômica, a pequena propriedade e a nacionalização eram alguns dos temas abordados e analisados. Havia uma crítica, tal como no seu livro Introdução à economia moderna, ao progresso econômico como um im em si mesmo e, ao mesmo tempo, uma preocupação distributista subjacente em função de suas inluências chestertonianas, e uma ênfase na necessidade de o Estado ter uma política econômica e não ter uma atitude passiva diante dos problemas a serem enfrentados. As proposições feitas, de maneira resumida, eram o que o Alceu considerava como o caminho para uma política econômica sadia e humana, mas sublinhava que nada disso adiantaria se: [não] lutarmos contra a inversão total de valores que há muitos séculos se vem processando em nossa civilização ocidental e se não iluminarmos de novo toda a nossa ação social, política ou econômica pelos princípios supremos da lei de Deus, da moral de Cristo, da igreja e da razão do homem, sem cuja primazia serão vãs todas as reformas sociais e todas as revoluções políticas (Lima, 1999b, p. 256). Embora faça algumas ressalvas à filosofia política de Alberto Torres, principalmente no que concerne à sua dimensão espiritual, o encantamento de Alceu com este pensador é visível e se deve, sobretudo, ao fato de que nas obras de Torres (1914a, 1914b), especiicamente os livros O problema nacional brasileiro e Organização nacional, havia uma rejeição tanto do socialismo quanto do individualismo, as quais seriam inconciliáveis com a realidade do país e, ao mesmo tempo, responsáveis por sua desagregação. Conforme mencionado anteriormente, Alceu criticava reiterada e veementemente o socialismo e o liberalismo econômico como os causadores, em última instância, de uma hipertroia econômica e da falta de liberdade. Portanto, a obra de Alberto Torres, ainda mais sendo um patrício, lhe dá o suporte necessário para endossar as suas próprias teses e, consequentemente, lutar por aquilo que acredita: uma economia humana e essencialmente cristã. Com o passar dos anos, Alceu vai se desvencilhando da forte herança reacionária de Jackson de Figueiredo e, por conseguinte, da sua couraça de intrépido cruzado católico, sendo alguns fatores determinantes para essa mudança de atitude: a leitura do artigo Dieu, est-Il à droit?, publicado, em 1936, na revista dominicana La vie intellectuelle, em que o frade dominicano Yves-Marie Joseph Congar, o seu autor, apontava para o equívoco da associação entre catolicismo e o pensamento de direita, posto que Deus, na verdade, não estava à direita (Villaça, 1983; Lima, 366 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 2000a; Costa, 2006); a irme posição do escritor católico George Bernanos21 contra o franquismo explicitada no seu passional e combativo romance Les grands cemetières sous la lune, publicado em 1938, no qual denunciava não somente as atrocidades cometidas na Guerra Civil Espanhola pelas tropas franquistas, com o beneplácito da Igreja Católica – e em particular da espanhola –, como também da liberdade que agonizava com a ascensão do regime fascista de Franco (Villaça, 1983; Lima, 2000a; Costa, 2006); a leitura do Humanisme intégral, publicado em 1936, ano da guerra civil em Espanha, do eminente ilósofo católico Jacques Maritain, que preconizava uma “nova cristandade” baseada em valores de liberdade, tolerância com a diversidade existente, pluralidade e de respeito à autonomia do Estado laico em sua própria esfera de atuação, o que signiicava a defesa de um regime político e econômico centrado na liberdade e na justiça (Maritain, 2000). Além deste livro, a posição de Maritain manifestamente contrária ao regime fascista de Franco, o que lhe valeu inúmeros inimigos dentro da igreja católica, foi útil para que Alceu revisse suas posições passadas (Carpeaux, 1978; Villaça, 1983; Lima, 2000a; Costa, 2006); o contato com a obra do ilósofo, paleontólogo e padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, que possibilitou o reencontro de Alceu com o evolucionismo, mas agora de outro matiz, um “evolucionismo teocêntrico” (Lima, 2000a, p. 266) em que ciência e religião não são dissonantes e sim convergentes (Mendes, 2009); e a leitura dos trabalhos do ilósofo católico Emmanuel Mounier, também uma voz extremamente ativa na luta contra o nazifascismo, que procurou incorporar os aspectos positivos do marxismo na sua ilosoia personalista, centrada na transformação do homem, uma espécie de revolução espiritual, em que os cristãos teriam que se empenhar com a mudança política do seu tempo (Lima, 2000a; Mendes, 2009). À medida que Alceu ampliava o seu leque de leituras, principalmente dos ilósofos franceses, mais ele se desprendia de suas posições dogmáticas passadas. A inluência de Maritain (2005) em seu pensamento se irmará no decorrer dos anos 1940, principalmente com os seus livros Christianisme et démocratie e Les droits de l’homme et la loi naturelle, publicados em 1943 e, portanto, durante a Segunda Guerra Mundial, período em que as democracias e os direitos civis foram fragorosamente aviltados, que reletem a preocupação do ilósofo católico com ambas as questões. No primeiro livro, Maritain procurou estabelecer as bases de um pensamento político que compatibilizava democracia e cristianismo, uma vez que o espírito democrático se funda essencialmente em valores espirituais, ao passo que no segundo livro os direitos do homem são discutidos à luz de um humanismo político sustentado no respeito à pessoa humana, à sua dignidade e aos seus direitos (Maritain, 2005). 21. Bernanos viveu, entre os anos 1938 e 1945, no Brasil, onde ergueu a sua trincheira para combater, através de seus artigos pungentes, passionais e virulentos, o nazi-fascismo. Exerceu uma forte inluência em um grupo de intelectuais católicos brasileiros, tais como Jorge de Lima, Edgar da Mata Machado, Virgílio de Melo Franco, Henrique Hargreaves, Augusto Frederico Schmidt, Hélio Pellegrino etc., além do próprio Alceu. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 367 Esta inluência do Maritain, segundo o próprio Alceu (Lima, 1948, p. 16), foi exercida em toda a América, muito embora a receptividade dos seus três livros, anteriormente mencionados, tenha sido bem distinta. Enquanto nos Estados Unidos houve praticamente uma unanimidade por parte dos leitores, que enxergavam a sua “inestimável contribuição para a luta da democracia contra o espírito totalitário”, na América Latina a opinião foi muito mais dividida, e a explicação para tal fenômeno decorria do fato de que o espírito totalitário havia deixado marcas muito mais profundas nesta parte da América, em que havia lorescido, em nome do perigo comunista, ditaduras ou então democracias autoritárias, que eram ambientes relativamente refratários à ilosoia política tomista de Maritain. Entretanto, inúmeros católicos, com a doutrina social maritainiana, reviram as suas atitudes em relação à igreja e ao catolicismo social. Este afastamento cada vez maior das antigas posições, em virtude das inluências recebidas, teve como contrapartida críticas provenientes dos próprios meios católicos, muitos dos quais estavam descontentes com as “novas” atitudes e posicionamentos do Alceu, que deixava de ser, como bem frisou Costa (2006), o católico modelar, referencial.22 Vários são os exemplos destas novas atitudes, mas dois deles merecem destaque: o primeiro acontece logo após o falecimento, em 1942, do cardeal Leme, quando então o futuro arcebispo do Rio de Janeiro, D. Jaime Câmara, solicitou ao Alceu que deixasse de escrever sobre Maritain, considerado persona non grata pelas suas posições modernizantes. Este pedido foi peremptoriamente rejeitado, o que serviu para ampliar o afastamento de Alceu em relação não só ao próximo arcebispo carioca, mas também às próprias autoridades eclesiais da igreja. Já o segundo exemplo é a defesa de Alceu, expressa no artigo23 Carta aos católicos de Maceió, publicado em 1946, pela legalidade das atividades do PCB, posição esta que foi duramente censurada por muitos católicos como sendo prejudicial à Igreja Católica no Brasil (Costa, 2006). Este exemplo é bastante signiicativo por mostrar claramente a mudança de atitude de Alceu – uma atitude difícil de ser imaginada quando na década anterior ele mesmo havia combatido ferozmente o comunismo –, relexo de suas leituras, de independência do meio católico em que estava inserido e, ao mesmo tempo, de coragem por assumir estas novas posições, mesmo que elas não agradassem a todos. Ainda no tocante a Maritain, Alceu (Lima, 1948), ao apontar a inluência do filósofo católico na América Latina, sublinhou dois aspectos relevantes: o primeiro é o da existência de que um grupo inluente de católicos sul-americanos – Eduardo Frei (Chile), Manuel Ordoñez (Argentina), Dardo Regules (Uruguai) e o próprio Alceu Amoroso Lima – responsável por lançar as bases do movimento 22. Para mais detalhes a respeito do processo de mudança de registro eclesial de Alceu, consultar Costa (2006). 23. Este artigo foi publicado, em 25 de abril de 1946, no Jornal de Alagoas e também na revista A Ordem no mesmo ano. Para mais detalhes, consultar Costa (2006). 368 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil democrata-cristão,24 tinha aceitado, por unanimidade, realizar os princípios do Humanisme intégral no continente. De fato, a Declaração de Montevidéu, assinada em maio de 1947, apresenta alguns pontos, além daquele que explicita a inluência maritainiana, que reletem o pensamento político-social de Alceu (Villaça, 1983), cabendo destaque àquele em que há o comprometimento de se superar o capitalismo individualista ou estatal – uma preocupação que se tornou marcante na vida de Alceu, ou seja, a de superar os extremos – através do humanismo econômico. O segundo aspecto é a menção ao movimento Economia e Humanismo, liderado pelo padre dominicano Lebret e lançado no Brasil em 1947. A esse movimento, que também sofria inluências da ilosoia tomista de Maritain, caberia aos dominicanos do Brasil, no entender de Alceu, a tarefa de desenvolvê-lo. Alceu, na verdade, foi quem primeiro escreveu sobre o padre Louis-Joseph Lebret e o seu movimento e, consequentemente, ajudou a difundi-lo no Brasil. O seu contato pessoal com o padre dominicano data de 1947, quando então Lebret ministrou um curso no Rio de Janeiro e participou de uma mesa redonda, junto com Alceu, em São Paulo (Lima, 1956a). Além disso, Alceu havia lido um texto doutrinário do Lebret, que o produziu especiicamente para a reunião de Montevidéu naquele mesmo ano de 1947 (Bosi, 2010). E foi exatamente ao Lebret que Alceu manifestou o seu total apoio quando o padre dominicano foi visto pelas altas hierarquias da igreja católica paulista e carioca com muitas restrições, a ponto de ele ter que retornar ao seu país com a advertência de não mais pregar no Brasil, sendo a razão para essa dura reação das autoridades eclesiais brasileiras a sua declaração contrária à decisão do governo Dutra de cassar não só os mandatos parlamentares do senador e dos deputados comunistas, todos democraticamente eleitos, como também do próprio PCB, que passou para a ilegalidade em 1947. Uma nova visita de Lebret ao Brasil só ocorreria cinco anos depois, ocasião na qual o veto da igreja havia sido suspenso, muito em função do auxílio de D. Helder Câmara e Josué de Castro à causa (Bosi, 2010). Essa postura do Alceu em relação ao Lebret endossa o que foi mencionado anteriormente, ou seja, a de que ele se afastava cada vez mais de suas posições intolerantes da década anterior, se distanciava da hierarquia católica, e incorporava a inluência de suas novas leituras, sobretudo as do Maritain voltado para a defesa dos valores democráticos. Entretanto, a pergunta central é a seguinte: o que havia nas ideias de Lebret e de seu movimento para que fossem tão bem acolhidas por Alceu? Para responder a essa questão é preciso compreender o universo de Lebret e, consequentemente, o do movimento que este liderou. 24. O desdobramento desse movimento foi a criação dos partidos democrata-cristãos na América do Sul. A respeito do projeto democrata-cristão na América Latina, consultar Compagnon (1999). Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 369 Louis-Joseph Lebret tem uma história singular e o seu movimento Economia e Humanismo teve reflexos importantes ao longo dos anos 1950 e 1960, principalmente nos países em desenvolvimento. Nascido em 1897 na pequena cidade de Minihic-sur-Rance, localizada ao norte da Bretanha, Lebret foi oicial da marinha francesa, lutou na Primeira Guerra Mundial e, pelos serviços prestados, recebeu a medalha da Legião de Honra. No entanto, abandonou a sua carreira militar e a segurança que esta lhe proporcionava para ingressar, em janeiro de 1923, na Ordem de São Domingos, onde recebeu a sua formação teológica ao longo de sete anos e se tornou sacerdote, sendo enviado, em 1929, por seus superiores para a sua primeira tarefa como missionário: pregar na cidade portuária de Saint-Malo, que está localizada, tal como sua cidade natal, na região da Bretanha (Houée, 1997; Bosi, 2010, 2012). Essa experiência, vivida intensamente, e que se provou bastante fecunda, será determinante na etapa subsequente de sua vida, aquela em que o movimento Economia e Humanismo foi criado. A situação com que se deparou Lebret em Saint-Malo foi a de decadência econômica. A sua análise indicou que as principais causas deste fenômeno eram: uma excessiva mecanização responsável pela introdução de novas técnicas de produção; o aumento da capacidade de carga dos navios; a inoportuna abertura às importações; uma industrialização impelida sem levar em conta o homem; o individualismo; a desorganização da proissão; a indiferença do Estado diante da anarquia das trocas; e a mudança nos hábitos alimentares (Houée, 1997). Na realidade, o avanço da grande indústria pesqueira, com toda a sua dimensão, estrutura e disponibilidade de capital, estava gerando sérios impactos negativos à pequena pesca, profundamente integrada na sociedade e na cultura regional, levando os pescadores da região à miséria material e moral. Em face desta realidade adversa na qual os pescadores e suas famílias eram afetados gravemente pelo desemprego, pela fome e por doenças e, consequentemente, se viam impossibilitados de qualquer reação é que Lebret delineou a sua estratégia de ação: o Movimento de Saint-Malo. O primeiro passo foi a criação da Juventude Marítima Cristã,25 que se expandiu pela costa bretã e foi uma arena importante para a ação social e católica e, ao mesmo tempo, um terreno fértil, fundamentalmente para Lebret, em termos de compreensão dos acontecimentos e das lições a serem extraídas. Baseado nessa rica experiência, Lebret passou da ação social à ação sindical e proissional fundando, num primeiro momento e em conjunto com Ernest Lamour, em 1931, um sindicato misto de patrões e pescadores – o Sindicato Nordeste Bretanha –,26 que se espalhou e esses vários “sindicatos”, no ano seguinte, acabaram por se constituir na Federação Francesa dos Sindicatos Proissionais 25. Jeunesse Maritime Chrétienne (JMC). 26. Syndicat Nord Est Bretagne. 370 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil dos Marinheiros27 (Pelletier, 1996; Houée, 1997). Um aspecto importante de ser ressaltado é o fato de a federação de sindicatos, criada com o apoio do Movimento Saint-Malo, nascer se opondo ao tradicional e dominante sindicalismo de classe da Confederação Geral do Trabalho,28 isto porque sua ação corporativa estava moldada numa estrutura comunitária assentada em fortes laços de solidariedade e de cooperação. Essa experiência adquirida possibilitou a Lebret não só fortalecer as suas convicções a respeito da importância do espírito comunitário no fomento ao desenvolvimento, como também extrair algumas lições importantes, sendo uma delas a de que o capitalismo era um sistema extremamente injusto, que privilegiava sempre os mais fortes no processo de concorrência. Para combater essa desigualdade provocada pelo capitalismo, que não estava restrita somente a escala local, era necessário outro tipo de arsenal e foi no marxismo que Lebret buscou uma compreensão mais ampla acerca daquele sistema e da exploração ensejada por este, uma vez que havia atrasos e deiciências do catolicismo social na interpretação dos processos econômicos, além da cumplicidade deste com o próprio capitalismo (Houée, 1997). O desapontamento com as ações do governo Vichy em Saint-Malo,29 o im de suas missões nesta região, a constatação dos desequilíbrios gerados pelo sistema econômico vigente e, sobretudo, o desejo de transformá-lo levaram Lebret a um desaio cuja complexidade e alcance eram bem maiores do que ele já tinha enfrentado até então: o movimento Economia e Humanismo, que foi fundado em 24 de setembro de 1941,30 sendo o seu Manifesto publicado em fevereiro-março do ano seguinte (Pelletier, 1996; Houée, 1997; Bosi, 2010, 2012). Lebret e Gatheron (1944) salientavam que os princípios da economia humana se reduziam a um só: o respeito ao homem, uma vez que toda economia deveria estar baseada nele, que é o centro da economia e da sociedade. Se o homem é o 27. Fédération Française des Syndicats Professionnels de Marins (FFSPM). 28. Confédération Général du Travail (CGT). A Confédération Général du Travail Unitaire (CGTU), uma dissidência da CGT, existiu entre os anos 1921 e 1936, quando então voltou a fazer parte da CGT. A respeito da questão sindical na França, consultar Sirot (2011). 29. Apesar de várias conquistas do Movimento de Saint-Malo (o reconhecimento da proissão de pescador, mudanças na legislação etc.), o regime de Vichy interveio fortemente na federação dos sindicatos contrariando o que havia sido idealizado e construído, gerando uma forte desilusão em Lebret. Essa discussão foi muito bem explorada por Pelletier (1996) e Houée (1997). 30. Fazia parte do seu conselho de direção, o economista François Perroux, que se tornaria famoso com a publicação, em 1955, do seu artigo La notion de pôle de croissance. A teoria dos polos dominaria a literatura econômica regional e muitos países, principalmente os subdesenvolvidos, adotaram estratégias de desenvolvimento baseadas na criação destes polos com o objetivo de promover crescimento econômico, equilíbrio interregional e a integração de regiões atrasadas, sendo o Brasil um excelente exemplo (a esse respeito, consultar Serra, 2003). Os valores cristãos estão inseridos na sua busca por uma economia mais humana, voltada para o homem em toda a sua complexidade e, também, para todos os homens, posto que é intolerável um processo de exclusão. Nesse sentido, o desenvolvimento é concebido como um esforço conjunto necessário para que os homens pudessem se alimentar, se aperfeiçoar e efetuar a sua própria libertação (Perroux, 1969). Uma visão abrangente da obra e do homem Perroux é fornecida por Denoel (1990), ao passo que a abordagem econômica é o foco de Uri (1987). Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 371 epicentro das atenções, a noção de comunidade ocupa um lugar de destaque no pensamento do padre dominicano na medida em que a comunidade é o lócus em que os esforços individuais se destinavam ao bem pessoal e, também, ao bem comum, em que havia uma repartição dos bens e das tarefas de acordo com as capacidades e necessidades, sendo as necessidades materiais e espirituais de cada indivíduo harmoniosamente satisfeitas (Lebret e Gatheron, 1944). Um aspecto capital é a crítica feita aos dois sistemas econômicos: o capitalista e o comunista. O primeiro tinha sido responsável por reduzir todas as dimensões da vida e da atividade humana ao mercado, em que a avidez por lucro era o seu leitmotiv, ao passo que o segundo sistema pecava pela imposição de uma ordem mecânica em que o indivíduo só é considerado pela sua capacidade de esforço em prol da construção do comunismo, sendo os outros valiosos domínios da vida ignorados (Lebret, 1959; Houée, 1997). Portanto, ambos os sistemas, na concepção de Lebret (1959), falhavam ao propor soluções que descartavam o homem, cabendo, portanto, a tarefa de valorizar a humanidade e, fundamentalmente, a de ultrapassar regimes e ideologias. As ideias de Lebret acerca da necessidade de se colocar o homem como eixo central de toda a economia e o seu movimento por uma reumanização da economia encontraram em Alceu uma grande acolhida e sintonia, que então salientava no seu artigo de 1947: “a economia a serviço do homem, eis o sentimento do humanismo econômico, em bases que o próprio Marx não poderia repudiar, pois são as suas, e representam, igualmente, o fundamento da mais autêntica economia cristã”, sendo o humanismo econômico “o caminho para escaparmos ao dilema Kremlin-Wall Street” (Lima, 1956a, p. 63). Ambos, na verdade, defendiam a primazia do homem na ordem econômica e comungavam da necessidade de se superar o capitalismo liberal e o comunismo, e Alceu destacou não só o fato de que a nova posição social do catolicismo, defendida por Lebret, “representou a contribuição deinitiva do movimento Economia e Humanismo, baseado na mais objetiva e despreconcebida observação dos fatos econômicos, sem confusão com a singularidade dos atos espirituais e suas consequências sociais”, como também a importância do pensamento do dominicano bretão no desenvolvimento de suas concepções ao sublinhar: “pessoalmente, muito lhe devo” e, ao mesmo tempo, que suas ideias “tiveram um eco profundo em minha própria evolução social” (Lima, 2000a, p. 309). Esta evolução social salientada por Alceu ratiica, de forma muito clara, a libertação que ele paulatinamente vai sofrendo, a partir do im dos anos 1930, da herança conservadora recebida de Jackson de Figueiredo. Além dos aspectos já mencionados, Lebret, como bem assinalou Lowy (1993, 2000), ao utilizar categorias marxistas em suas análises, contribuiu para desmistiicar o marxismo 372 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil perante muitos católicos no Brasil e, desta maneira, acabou por inluenciar toda uma geração de católicos de esquerda31 (é bem verdade que ele também angariou um considerável séquito de opositores dentro da igreja católica, os quais julgavam que comunismo e cristianismo eram incompatíveis, sendo o combate aos comunistas considerado uma obrigação de todo e qualquer católico, fosse ele militante ou não), precursora da teologia de libertação,32 a qual teve de Alceu a sua compreensão e simpatia (Lima, 1984). Cabe aqui ressaltar que as ideias de Lebret foram disseminadas na Ásia, África e América Latina,33 muito em função de sua inesgotável capacidade para lutar em prol de um desenvolvimento econômico humano. Suas ideias frutiicaram não somente em virtude do vigor físico de seu autor, mas fundamentalmente porque elas eram ricas e férteis. Por exemplo, em 1962, na Assembleia Geral das Nações Unidas, Lebret já falava em “desenvolvimento humano”, conceito que veio a ser desenvolvido, décadas mais tarde, pelo economista paquistanês Mahbub Ul Haq, que icou conhecido como o criador do consagrado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), cuja ideia central é a de que o desenvolvimento humano está centrado em três dimensões: longevidade, educação e renda, não sendo o fator econômico o único responsável pelo processo de desenvolvimento. Na verdade, o conceito de desenvolvimento humano “pode ser considerado um eco distante das preocupações e intuições de Lebret” (Centre Lebret, 1999, p.1). Há, de fato, uma extrema ainidade entre a concepção de desenvolvimento de Lebret e a de Alceu, ambas marcadas essencialmente pela preocupação com a primazia do homem. Esta ainidade, porém, não pode ser dissociada da renovação da igreja liderada e empreendida pelo catolicismo francês (e que contava com o próprio Lebret em suas ileiras), que, segundo Alceu (Lima, 1956b, p. 417), era “tão mal compreendido e, até, incluído nessa onda de ‘suspeição’ com que se quer diminuir a ação social dos verdadeiros representantes de um catolicismo vivo e autêntico”. Essas palavras constam do seu artigo Nova et vetera,34 publicado originalmente na imprensa em 1955, que é ilustrativo em muitos aspectos, ou seja, nele Alceu mostra claramente a sua identidade com uma nova postura da igreja católica, liberta das “formas ultrapassadas ou ditatoriais” e tendo à sua frente iguras 31. É importante salientar aqui que muitos teólogos franceses do pós-Segunda Guerra, legítimos representantes do que havia de mais avançado na renovação do catolicismo, e, principalmente, Emanuel Mounier exerceram uma forte inluência na esquerda católica. A esse respeito, ver Lowy (1993, 2000). 32. A respeito das inluências francesas na teologia da libertação, consultar Lowy e Garcia-Ruiz (1997) e Lowy (2000). 33. As suas experiências no Chile – onde se aproximou da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), especialmente de Raúl Prebisch, que foi seu secretário executivo ao longo dos anos 1950 –, Peru, Colômbia, Uruguai e, principalmente, no Brasil estão descritas no oitavo capítulo do livro de Pelletier (1996). No caso do livro de Houée (1997), há um capítulo, escrito por Francisco Whitaker Ferreira, sobre o caso brasileiro e outro, escrito por Roland Colin, sobre a África, particularmente o Senegal. Tanto a América Latina quanto a Ásia são abordadas de forma geral. 34. Esse artigo foi incluído no seu livro A vida sobrenatural e o mundo moderno (1956b), composto por artigos escritos para a imprensa no período de 1940 a 1956. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 373 como os padres jesuítas Riquet e Chaillet e os dominicanos Ducatillon e Lebret, que eram testemunhos cristãos no mundo moderno na medida em que adequavam os “princípios imutáveis da lei natural e das verdades reveladas” ao tempo presente. Esse seu posicionamento igualmente revela o quão distante ele, naqueles meados dos anos 1950, já se encontrava de suas posições iniciais de recém-convertido. No início dos anos 1950, Alceu embarcou para os Estados Unidos, onde assumiu o cargo de diretor do Departamento Cultural da União Pan-Americana. Dessa experiência de pouco mais de dois anos no exterior, Alceu pôde não só compreender melhor a realidade daquele complexo país, como também conhecer pessoalmente o monge trapista homas Merton,35 que tinha se tornado famoso a partir da publicação, em 1948, de sua autobiograia, he seven storey moutain, que já tinha sido lida, ainda no im dos anos 1940, e causado grande impressão em Alceu. Esse contato pessoal foi motivado inicialmente pelo fato de Merton, tal como Alceu, ter sido um convertido à fé católica. Embora distintas, ambas as trajetórias guardam certas similaridades na medida em que havia o mesmo padecimento da busca pela verdade, verdade esta que fosse capaz de saciar a sede de respostas de um espírito altamente desassossegado. Além de certas ainidades de percurso e de inluência intelectual religiosa, já que ambos foram inluenciados por Maritain, Alceu encontrou em Merton um espírito extremamente curioso diante da vida, crítico em relação ao mundo moderno, e sobretudo aberto à pluralidade de pensamento, o que certamente o fez, no seu livro Meio século de presença literária, dar o seguinte testemunho: Não conheço escritor mais completo, nos dias de hoje, do que homas Merton. (...) um escritor que reúna, ao mesmo tempo, um pouco de tudo isso – como teólogo, ilósofo, sociólogo, poeta, prosador – e consiga integrar todas essas facetas numa personalidade que sabe dizer o que deve ser dito, com uma agudeza perfeita de estilo, no momento conveniente, tanto para os mais requintados no malabarismo intelectual (sua poesia é de uma sutileza que desaia os críticos mais penetrantes) como para os que procuram a paz do espírito e a claridade da eterna Sabedoria – não conheço outro (Lima, 1969b, p. 216). A crítica tanto ao falso cristianismo, caracterizado pelo conformismo e pelo fanatismo, quanto à sociedade de massas, marcada fundamentalmente pelo individualismo econômico, pela inversão de valores, pela alienação dos homens e pela transformação destes em meros números, feita por Merton era em função de sua percepção de que os males do mundo moderno só poderiam ser combatidos 35. Nascido na pequena cidade de Prades, localizada no sul da França, em 1915, Merton se educou na prestigiosa Universidade de Columbia, na qual foi também professor, se converteu ao catolicismo em 1938, e três anos depois entrou para a vida monástica e contemplativa na abadia cisterciense de Gethsemani, onde foi ordenado padre em 1949 (Merton, 1998). Dono de um estilo cativante e de uma vasta obra, marcada pela amplitude de temas, que vão desde as biograias religiosas até os problemas sociais, como o racismo e a injustiça econômica, Merton foi considerado um dos mais inluentes autores católicos norte-americanos da segunda metade do século XX, vindo a falecer em Bangkok, na Tailândia, em 1968, enquanto participava de uma conferência religiosa. 374 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil através de uma mudança de comportamento e de mentalidade do próprio homem, sendo a liberdade de “ilhos de Deus” um instrumento com o qual se deve operar essas mudanças. É bem verdade que no momento em que Alceu conheceu Merton (pessoalmente e a sua obra), o processo de mudança nele já estava em curso. Mesmo assim, Merton teve uma forte inluência na evolução do seu pensamento, signiicando no caminho que estava percorrendo “uma nova paisagem, um novo horizonte, um novo descortino” (Lima, 2000a, p. 307), caminho este que o afastava cada vez mais de suas posições intolerantes e retrógradas de sua fase inicial de militante católico. Esta evolução do pensamento de Alceu cristalizou-se no decorrer dos anos 1950, em que tanto a sua passagem pelos Estados Unidos como o contato com Merton contribuíram para este processo de transformação que vinha se operando gradualmente desde o im da década de 1930. Nesta sua estadia, Alceu se desfez de antigos preconceitos, reconheceu várias virtudes da sociedade norte-americana e, com base no que havia testemunhado, fez uma referência ao clássico livro de Eduardo Prado A ilusão americana para ressaltar que o que havia visto não tinha sido uma ilusão e, sim, uma realidade (Lima, 1955). Em que pese o reconhecimento dos avanços realizados, tais como a melhoria do nível de vida da população em geral e a do proletariado em particular, Alceu teceu uma série de críticas aos Estados Unidos, especialmente ao Gigantismo econômico (Lima, 1955, 1960, 196236) – cujo germe era o individualismo e que estava assentado no tamanho das máquinas, empresas industriais e propriedades agrícolas – que era fruto de um domínio cada vez maior das técnicas produtivas, de um tremendo dinamismo econômico e das crescentes ambições pessoais. É exatamente essa sociedade industrial, baseada numa intensa competição, na supremacia da tecnocracia e no consumo de massa, a principal responsável por produzir uma despersonalização nos homens, cujos valores passaram a ter como referência essencial o poder de aquisição de bens, ou seja, uma inversão de valores da sociedade em que os aspectos morais, o bem comum, o trabalho e a cooperação eram esquecidos ou mesmo desprezados. Na realidade, Alceu (Lima, 1962, p. 12) ressalta que o “gigantismo, como panaceia, é uma trágica ilusão. (...) O essencial não é o tamanho da unidade econômica. O essencial é a defesa do homem, é a justiça social, é a economia à medida da personalidade, contra a absorção do homem pela economia”. Essa crítica não só se coaduna perfeitamente com a sua defesa de uma economia mais humana ou um humanismo econômico, como também está alinhada ao pensamento crítico de Merton em relação à sociedade moderna, que era responsável, ao preconizar o individualismo econômico, por alienar o homem de si mesmo e, 36. Este livro, O gigantismo econômico, embora publicado em 1962, é produto de artigos escritos em Washington para a imprensa brasileira. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 375 consequentemente, o afastar dos verdadeiros valores que deveriam ser cultivados. Cabe aqui sublinhar que Alceu, ao im dos anos 1950 e início dos 1960, tinha indado o seu longo percurso rumo ao amadurecimento e reinamento intelectual, em que o seu pensamento social tinha adquirido a soisticação, a abrangência e a solidez capazes de lhe dar a irmeza necessária não só para defender as suas posições, mas principalmente para enfrentar as vicissitudes que ocorreriam na vida social e política brasileira com a delagração, em 1964, do golpe militar. 4 UM COMBATENTE DA LIBERDADE EM AÇÃO Os anos 1960 foram marcados indelevelmente pela interrupção da frágil e instável democracia brasileira, que não resistiu ao decisivo e letal golpe desfechado pelos militares, que em 1964 tomaram o poder, dando então início a um longo e conturbado período da história nacional em que o autoritarismo e a supressão de todas as liberdades foram os seus traços característicos. O golpe militar, na realidade, foi o resultado de crises político-institucionais e econômicas iniciadas na década de 1950 com as transformações operadas, em diferentes moldes, no país pelos governos Vargas e Kubitschek. De fato, há vários fatores por trás da dinâmica do golpe militar, podendo-se destacar: a aparente exaustão da industrialização baseada no modelo de substituições de importações (Hirschman, 1981); o crescente incitamento à luta de classes no início dos anos 1960, caracterizado pela forte demanda popular por reformas de base; o clima da guerra-fria; a revolução cubana em 1959; o receio da disseminação das táticas de guerrilhas baseadas no exemplo cubano (O’Donnell, 1978); as tensões existentes e a falta de harmonização entre os poderes Legislativo e Executivo, responsáveis pela instabilidade e indecisão política; a fragilidade das organizações populares no Brasil (Ianni, 1986); uma desaceleração do crescimento econômico acompanhada pela elevação da inlação; e a aglutinação de uma ampla frente conservadora da sociedade brasileira, incluindo nesse espectro a grande maioria dos militares (Fiori, 1995). Apesar de todas essas razões por trás do golpe, é importante sublinhar o fato de que os militares não só tinham um projeto para o país – acelerar o processo de desenvolvimento nacional –, como também contavam com o apoio da burguesia inanceira e industrial e da classe média para viabilizá-lo. De fato, este projeto, segundo Evans (1979), estava baseado numa tríplice aliança, formada pelo capital estatal, empresas transnacionais e a burguesia local, e conjugava políticas monetárias ortodoxas com intervenção estatal e uma ampla repressão política. Este era o contexto no qual Alceu, em pleno vigor intelectual, inauguraria uma nova fase em sua vida, em que testemunharia os acontecimentos político-sociais, manifestaria as suas opiniões e, fundamentalmente, defenderia os valores que lhe eram preciosos: humanismo e liberdade. 376 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Antes mesmo de o golpe militar vingar, Alceu já vinha escrevendo artigos premonitórios do que estava por vir. Por exemplo, no seu artigo O letes e o rubicon – II, publicado em setembro de 1961, ele criticava a solução adotada com a renúncia de Jânio Quadros ao dizer que das “três soluções da crise a que nos arrastam as forças assustadas, as Forças Armadas e, acima de tudo, o temperamento e o gesto imperdoável do senhor Jânio Quadros, foi evitada a pior – a guerra civil. Mas não foi escolhida a melhor, que teria sido a franca legalidade, a posse pura e simples do vice-presidente eleito”. (Lima, 1964, p. 70). Cabe aqui destacar a sua defesa, que se tornará veemente e mesmo intransigente, pela legalidade e pelo respeito às normas constitucionais vigentes. No ano seguinte, seu artigo versava sobre a crise da democracia social: (...) que pode ser uma crise de crescimento como uma crise de malogro, tudo dependendo do bom senso das nossas elites políticas, intelectuais e técnicas, se souberem compreender corajosamente as reformas de base, que consolidarão a democracia social, na linha de nossa autêntica tradição histórica, ou enveredarão, ao contrário, por experiências extremistas, antidemocráticas, no lamentável caminho dos mimetismos cosmopolitas (Lima, 1965, p. 94). Dois aspectos merecem destaque: o seu apoio às reformas de base preconizadas pelo governo Goulart como uma forma de se preservar a democracia no país e, ao mesmo tempo, a sua preocupação com o radicalismo político crescente na sociedade, o que poderia resultar em governos antidemocráticos. Em agosto de 1963, Alceu escreveu outro artigo, Golpismo à vista, manifestando novamente a sua preocupação com a preservação da democracia: Esta, entre nós, só se fará se essas reformas [de base] forem feitas, o custo da vida não continuar subindo vertiginosamente e o anticomunismo fanático não alimentar o messioanismo golpista da Direita. Mas também não será preservada a Democracia se o governo cercear o direito de crítica, prender jornalistas proissionais no exterior dos seus direitos mais fundamentais e estimular o golpismo da esquerda, declarado ou sub-repitício (Lima, 1964, p. 132). Ao mesmo tempo em que condenava todo o extremismo de direita, Alceu protestava em sua coluna contra a prisão do padre Alípio e o interrogatório de Dom Jerônimo, em Salvador, e também contra a prisão do jornalista Hélio Fernandes, posto que, além das arbitrariedades de tais atos, considerava esses três exemplos o “melhor presente que o governo poderia ter dado à oposição”, exatamente num momento que exigia serenidade máxima. Entretanto, é no seu artigo – Apelo ao bom senso – escrito praticamente às vésperas do golpe, que a sua análise de conjuntura é precisa. Explicitava ele clara e cabalmente o perigo, então iminente, de se transferir o debate político da área civil para a área militar, sendo necessário a seu ver a preservação de todas as maneiras Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 377 da legalidade na medida em que havia um perigo ainda maior do que a “arritmia por precipitação revolucionária”: o “descontrole por intolerância conservadora ou reacionária”. Nesse sentido, o seu diagnóstico da situação era categórico: A resistência às reformas de base está na linha dessa intolerância catastrófica. As acusações de “comunismo” a toda e qualquer tentativa de mudar, paciicamente, a estrutura latifundiária do país é o maior serviço que se pode prestar aos que realmente querem dividir para imperar. A dissidência violenta entre os governos estaduais e governo federal, entre Legislativo e Executivo, entre Direita e Esquerda, está trabalhando pela Ditadura (Lima, 1964, p. 206). A sua posição nesse período que antecede o golpe militar é de uma irmeza e transparência absolutas, ou seja, considerava todo ato, viesse de onde viesse, que se propusesse a corrigir ou prevenir contra o possível, um “golpe de morte na vida nacional”, na “frágil árvore das liberdades públicas”. Além do mais, o ato seria uma “traição ao humanismo brasileiro” e um desaio à história do país e, portanto, o golpe deveria ser repelido.37 Todos os artigos publicados na imprensa no período pré-golpe militar mostram um Alceu extremamente atento aos fatos sociopolíticos do país, um espectador participante desses acontecimentos através de suas crônicas jornalísticas e, ao mesmo tempo, um pregador do equilíbrio, do bom senso e, sobretudo, da manutenção da democracia, que estava sendo ameaçada por posições extremistas em que a intolerância não só reinava como também contaminava o ambiente, cegando a todos e, consequentemente, impedindo que se preservasse o bem maior: as liberdades públicas. Na realidade, esses artigos são o prenúncio do que viria a ser o Alceu nesta terceira fase de sua vida: um combatente da liberdade e dos valores democráticos de uma sociedade. Se os artigos publicados na imprensa revelam as análises, preocupações e as posições de Alceu diante dos fatos, são nas cartas dirigidas à sua ilha monja beneditina que ele dá o seu livre testemunho sobre os acontecimentos políticos e sociais no país sem a preocupação em obliterar nomes ou qualquer outro tipo de autocensura. Portanto, essas cartas são ricos documentos que mostram o Alceu em sua verdadeira essência, ou seja, um intelectual sensível ao que se passava ao seu redor, explicitando as suas reações aos acontecimentos com absoluta franqueza, a franqueza de um pai para com sua ilha estimada. Nesse sentido, a sua longa carta de 1o de abril de 1964, data do início do golpe militar, é muito ilustrativa e reveladora: Desgraçadamente rompeu-se de novo a continuidade civil do nosso governo e a solução foi transferida para a área militar. E por quem? Pelo nosso amigo Magalhães Pinto 37. Esta opinião de Alceu consta no seu artigo publicado no Jornal do Brasil, em 10 de janeiro de 1964 e, ao mesmo tempo, foi reproduzida pelo próprio autor no seu artigo 30 de Março, escrito em abril daquele ano, ou seja, logo após a tomada de poder pelos militares, e que está presente no seu livro Revolução, reação ou reforma?, publicado em 1964. 378 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil [MP], que inicia a nova era dos golpes e contragolpes, passando a perna no Carlos Lacerda e desapontando todos aqueles que nele viam um dos esteios da legalidade por meios legais. Pois ele, como acontece com todos os golpistas, proclama que a legalidade gera a subversão, quando a legalidade (Jango) ameaça subverter a legalidade. Jogo de palavras bem bolado que já inspirou o golpe do Lott em 1955 (...). O MP está agora na mesma linha. Daí o golpe militar em defesa da “legalidade”, isto é procurando justiicar os meios pelos ins. E a esta hora o inefável cardeal do rio de Janeiro estará aplaudindo o golpe, como acaba de justiicar o uso do “rosário em cerimônias cívicas”... O cúmulo. Entendam-se - cerimônias cívicas que estejam de acordo com suas próprias preferências políticas. No caso: o mais obscurantista reacionarismo. (...) E no momento, o radicalismo direita-esquerda vai transformar-se em governo e revolução, esta nas mãos das direitas. Quer dizer que estamos com um golpe direitista e uma revolução direitista em início, semelhante à que se deu na Espanha, em que as esquerdas representavam a legalidade e as Direitas é que levantaram a bandeira da rebelião, que acabou vencendo e lançando a Espanha, há 25 anos, na mais cruel ditatura direitista (...). Aqui se está dando o mesmo. São as direitas que dão o golpe, com Magalhães Pinto à testa. E o Adhemar e o Lacerda de reboque. Ironia... (...) O San hiago, que está muito bem informado, e esteve no Palácio das Laranjeiras com o Jango até de madrugada, me diz que as forças que estão com o governo legal parece que são fortes: o II Exército. (...) Portanto, é possível que, dentro de poucos dias, esteja tudo clareado. Mas o próprio San hiago confessa que há muitas probabilidades de triunfo do golpe. E será então um triunfo direitista “que atrasará por 20 anos o progresso do Brasil”, diz-me o San hiago. E digo eu: “Nos recolocará no clima de tensão constante entre elite e povo”. (...) E estamos em um típico golpe direitista. Com grandes probabilidades de vencer, pois o anticomunismo substancial do povo brasileiro vem sendo muito habilmente explicado pelos políticos e pelos...cardeais golpistas e reacionários...e pelas boas senhoras ultimamente alucinadas e psicopatizadas pelos slogans “Deus, Família, Liberdade”, e apavoradas com as ameaças nos seus prédios e nas suas fazendas. (...) Mas acontece que, se triunfar o golpe direitista, como creio, imediatamente desaparecerá o pavor do comunismo das senhoras amedrontadas. (...) Bem, com a vitória do direitismo lacerdista, juscelinista ou pintista – imediatamente desaparece o pânico do comunismo pois a polícia durante algum tempo se encarregará de meter no xadrez e no cabo de borracha os comunistas sem colarinho, e os Lacerdas se encarregarão de fechar todos os sindicatos operários e de expulsar e exilar os líderes de colarinho. As boas senhoras voltarão aos seus bailes, às suas boîtes, aos seus vestidos de 200 contos ou então aos meios piedosos dos seus terços na igreja ou diante da imagem do Sagrado Coração em casa ou aos seus tricôs e aos seus aluguéis e cupons de debêntures...E com isso os mais espertos, adiantados ou... de bons sentimentos, voltarão a achar que há uma doutrina social da Igreja (...). Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 379 Será um retrocesso, uma perda de tempo, será uma marginalização do Brasil, mas... (Lima, 2003b, p. 365-370). Nessa longa citação, pode-se observar a análise irreprochável de Alceu, que conseguiu, de maneira feliz e despreocupada, apontar todas as mazelas embutidas no golpe, ou seja, o discurso falacioso da legalidade, o seu caráter direitista, a ânsia de poder do Magalhães Pinto e do Lacerda, que enxergavam no golpe liderado pelos militares o melhor caminho para chegarem à presidência, a hábil propaganda anticomunista, que contava com o apoio incondicional da própria Igreja Católica, conduzida para arregimentar todas as insatisfações, e que tinha nas “boas senhoras” católicas da classe média e da elite nacional um forte exército de aliadas, e o reacionarismo triunfante – com as faces lacerdista, juscelinista e pintista – sendo confundido com a doutrina social da igreja, que continuaria a ser pregada como se nada fosse. E para arrematar, o vaticínio de San hiago Dantas que o golpe poderia durar 20 anos... Mal o golpe havia completado seu primeiro mês, Alceu escreveu, em maio de 1964, o famoso artigo Terrorismo cultural em que denunciava as arbitrariedades cometidas pelo governo militar ao “cassar mandatos, suprimir direitos políticos, demitir juízes e professores, prender estudantes, jornalistas e intelectuais em geral, segundo a tática primária de todas as revoluções que julgam domar pela força o poder das convicções e deter a marcha das ideias” (Lima, 1964, p. 231). Nele Alceu citava nomes de reputação internacional, como o do educador Anísio Teixeira, o do médico Josué de Castro, e o do economista Celso Furtado, todos demitidos de suas funções simplesmente pelo fato de pensarem de forma distinta da “nova ideologia dominante”, segundo as palavras do próprio autor do artigo, que salientava que esses atos, assim como os da prisão do ilósofo Ubaldo Puppi sem qualquer razão e o do jovem líder intelectual Luís Alberto Gomes de Sousa por considerarem subversivos os seus métodos de alfabetização, caracterizavam o terrorismo cultural em que se estava vivendo naquele início de golpe.38 À medida que o tempo foi passando, a ditadura não foi abrandando. Muito pelo contrário. O que aconteceu foi o seu recrudescimento, sendo a sucessão de Inquéritos Policiais Militares (IPM) e Atos Institucionais – e quatro de um total de cinco foram assinados pelo marechal Castello Branco – a face mais visível do regime militar em que a supressão das liberdades – individuais, públicas e políticas – eram cada vez mais amplas e em que a democracia era tão somente uma 38. Este artigo teve uma grande repercussão nacional e uma de suas consequências foi a ligação telefônica, completamente inesperada e incomum, do marechal Castello Branco, então presidente da República, ao Alceu. O presidente manifestou o seu apreço pelos escritos do Alceu e lhe deu as explicações para todos aqueles atos, o que lhe provocou a sensação de que o presidente era “um homem de bem” e de que a revolução não entraria “pelo caminho do reacionarismo brutal e sargentônico” (Lima, 2003b, p. 401). Muito provavelmente a impressão positiva de Alceu tenha sido causada pelo telefonema do presidente, que se mostrou atencioso com o pensador católico. Houve um erro de avaliação do Alceu, que não precisou de muito tempo para constatar as reais intenções e a brutalidade do regime militar. 380 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil fachada. Acompanhando de perto esta crescente deterioração da vida política e social brasileira, Alceu deixou muito claro na carta para a sua ilha, datada de 26 de novembro de 1965, uma de suas preocupações essenciais: Por isso é que cada vez mais concentro na liberdade a ideia fundamental de uma sociedade justa. O limite da liberdade deve ser apenas impedir o seu abuso para oprimir os fracos ou os pobres. Mas mesmo na repressão contra esse tipo de abusos é preciso usar a liberdade, e o que estamos vivendo faz com que isso se torne em mim uma verdadeira obsessão (Lima, 2003b, p. 519). Não é sem outra razão que no artigo Pela liberdade cultural, escrito em 8 de abril de 1966, Lima (1968, p. 247) ressaltou com todas as letras: A perseguição à liberdade de pensamento é odiosa, quaisquer que sejam os regimes políticos que a pratiquem. (...) E muito mais odiosa ainda nos regimes que se dizem democráticos, e continuam a não permitir a liberdade de pensamento, denunciando como incursos em crime contra a segurança nacional editores de obras marxistas e processando escritores por terem pronunciado conferências na então Universidade de Brasília, considerada reduto subversivo... Essa sua “obsessão” pela liberdade se intensiicaria ao longo dos anos em função das crescentes e abrangentes violações cometidas pelos militares e a constatação da violência, do desrespeito e da ofensa à liberdade alheia tem como consequência imediata a elevação do tom de seus artigos, que passam a ser mais incisivos, críticos e bem duros em relação aos acontecimentos da vida social e política brasileira. Nesse sentido, o seu artigo Imposturas semânticas, de 25 de agosto de 1968, é um excelente exemplo na medida em que logo no início do seu texto caracterizava a revolução como a “nossa quartelada de março de 1964” e sublinhava o fracasso de um retorno do país à “normalidade dinâmica do processo de desenvolvimento econômico e político, inanceiro ou educativo”, sendo sua conclusão do que estava ocorrendo simplesmente fulminante: Não se operou, portanto, ao cabo de dois anos e meio de empirismo oportunista, a reintegração do país no leito natural do seu curso. Continuamos em pleno processo de artiicialismo, agravado pelo esforço semântico de deturpar as palavras, empregando-as em sentido contrário ao do seu conteúdo: democracia (verbal) por ditadura (real); Revolução (verbal) por Golpe (real); combate à inlação (verbal), por enriquecimento do Estado e empobrecimento do povo (real); Povo (verbal), por Cúpula (real); liberdade de imprensa (verbal) por ameaça potencial (real); ausência de presos políticos (verbal), por cassações em massa (real); organização de Diretórios Acadêmicos (verbal), por marginalização da mocidade (real); interdependência internacional (verbal), por satelitismo norte-americano (real) e assim por diante indeinidamente. (...) Nadamos em pleno mar da impostura semântica” (Lima, 1968, p. 333-334). Com o aumento indiscriminado das cassações e das violações de toda ordem e a exacerbação dos conlitos, Alceu criticava os católicos, de uma maneira geral, Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 381 pelo completo desconhecimento da doutrina social da igreja em função de estarem profundamente impregnados de liberalismo capitalista, o que os fazia, quando ouviam falar da doutrina social católica, clamar “logo ‘lobo, lobo’, isto é, por ... comunismo, comunismo. Foi o que vimos, à farta, depois do lançamento da nossa frota marcial de IPMs...” (Lima, 1968, p. 256). Ao mesmo em que constatava a falta de conhecimento dos católicos em relação aos próprios princípios e valores sociais da igreja, e daí a diiculdade de se colocá-los em prática, ele percebia que uma parte substancial dos católicos apoiava o regime militar, o que, de uma parte, era resultado dessa espessa ignorância acerca dos ensinamentos da igreja, contidos principalmente nos documentos Mater et Magistra, Pacem in Terris, e Gaudium et Spes, e, de outra, um medo obtuso e patológico do comunismo, uma vez que desconheciam integralmente essa doutrina política e econômica. Nesse contexto de crescente aviltamento de todos os direitos civis e humanos, em que muitos católicos e a própria igreja apoiavam o golpe militar, não deixa de ser interessante observar que Alceu manteve uma postura crítica, íntegra, coerente e, acima de tudo, independente, posição esta que seria mantida até o im de sua vida. O acirramento da luta política, que arrastou milhares de jovens, inclusive católicos e representantes oiciais do clero, para o embate armado era visto por Alceu como consequência natural da falta de liberdade, dos golpes letais desfechados na democracia, das perseguições, cassações e detenções e do uso da força como solução redentora por parte do regime ditatorial. É exatamente nesse sentido que o seu artigo Marcos da nova cristandade se inscreve. Aqui Alceu escreve sobre a morte trágica do padre colombiano Camilo Torres,39 que decidiu pegar em armas, assim como o fariam muitos outros sacerdotes de países latino-americanos esmagados por ditaduras, depois de perder a paciência para tentar mudar a injusta estrutura social de seu país – que em nada diferia da realidade dos seus vizinhos. Embora não comungasse dos métodos e nem quisesse justiicar a opção do padre colombiano, Alceu salientava: Mesmo quando trocam as batinas pelo fuzil de guerrilheiros, são esses admiráveis jovens que dão o testemunho do sangue pela Fé e pela redenção da sociedade moderna. (...) [Eles] são os mais puros, os mais nobres, os mais autênticos marcos e mártires da Nova Cristandade – e o Cristo é o futuro e não o passado (Lima, 1968, p. 250-251). 39. Camilo Torres, ilho de uma família abastada, nasceu em Bogotá em 1929. Em 1947, abandonou a faculdade de direito para ingressar no seminário, onde se ordenou padre em 1954. Após sua ordenação, seguiu para a Universidade Católica de Louvain com o objetivo de cursar sociologia. De regresso ao seu país, tomou contato com a dura realidade: estrutura social injusta e um divórcio entre as autoridades civis e eclesiásticas e a população carente. Os conlitos sociais o levaram a concluir que os cristãos que desejassem a mudança social deveriam se unir aos socialistas e marxistas e, ao mesmo tempo, considerar que a violência era justa em situações de grave injustiça social. Ingressou na luta armada e veio a falecer em janeiro de 1966. Sua morte causou impactos na igreja latino-americana, inluenciou a opção, nos anos subsequentes, de muitos sacerdotes e religiosos pela luta armada, e suas ideias inspiraram os teólogos da libertação. Para mais informações, consultar Melo (1991). 382 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Eram esses jovens, e muitos brasileiros seguiriam o mesmo caminho, que não tinham se resignado diante das injustiças sociais, que desejavam mudar a triste e dura realidade de seus países e que, portanto, estavam sedentos de aplicar de maneira efetiva a doutrina social da igreja. A compreensão de Alceu para com esses jovens é ainda mais visível no belo e comovente prefácio Um conto de fados, escrito para o pungente livro do Frei Betto Cartas da prisão, no qual descreveu a saga de quatro jovens dominicanos brasileiros, denominados mosqueteiros da fé, que deixariam testemunhos de uma vivência integral: [verdadeiros] contos de fados, isto é, de destinos pessoais, de uma estória que se converterá em História, para a ediicação pessoal e para as instituições renovadas. Poderão inluir no próprio destino da Igreja, como na obra de inserção da liberdade e da justiça no convívio humano, de que não temos o direito de desesperar. Pois o Reino de Deus começa nesta terra. Ou não começa jamais (Lima, 1985, p. 15). A continuação das arbitrariedades perpetradas pelo regime militar mereceu de Alceu novas manifestações, como foi o caso do seu artigo Medo da inteligência, em que criticou duramente o governo pelo afastamento do pleito eleitoral dos jornalistas Mário Pedrosa, Hermano Alves, Márcio Moreira Alves e Hélio Fernandes por pretextos levianos, tais como o de apresentá-los como “comunistas”, “esquerdistas” ou “subversivos”, sendo a verdadeira razão de tal ato o medo de suas palavras, inteligência, caráter e independência (Lima, 1968). Da mesma maneira, Alceu (Lima, 1966b) prefaciou o livro de Márcio Moreira Alves, Torturas e torturados, em que manifestava sua esperança de que aquele “terrível documentário” pudesse não só acelerar o restabelecimento do país à normalidade das instituições políticas livres, como também infundir cada vez mais a repulsa à violência nos processos políticos nacionais. Com a posse do marechal Costa e Silva como presidente da República, aos 15 de março de 1967, o regime militar iniciou uma nova fase, que foi marcada pelo im de qualquer esperança por redemocratização do país e, principalmente, pela forte e implacável repressão. De fato, no dia 13 de dezembro de 1968, foi instaurado o Ato Institucional n° 5 (AI-5) e com ele indavam-se todas as liberdades civis e políticas, tendo o governo militar plenos poderes para fechar o Congresso Nacional e, sobretudo, institucionalizar a repressão e a tortura. No dia seguinte ao anúncio do AI-5, Alceu escreveu para a sua ilha: “Ontem, sexta-feira 13, a bomba da morte civil da liberdade em nosso país” (Lima, 2003b, p. 619). A sua indignação com os acontecimentos cresceria e com ela as suas críticas ao regime, recebendo o presidente o expressivo epíteto de “sargentão”, tal como bem claro na carta para a sua ilha: “É a ditadura pura, agravada pela impostura, pela hipocrisia, pela máscara, pela mentira, pois o sargentão presidente deitou o verbo ontem pela TV. Esse sargentão ousou falar em democracia ‘para manter a democracia’... É o cúmulo da desfaçatez” (Lima, 2003b, p. 623). Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 383 Ao mesmo tempo, ele revela o seu desconforto para a sua ilha monja com os tempos vividos: “Esse é o clima de terror em que estamos vivendo, com os Corções e companhia tomando champagne e os homens de bem nas grades. Por isso é que te digo que tenho vergonha de estar solto, numa hora destas, pois são os melhores que estão presos de fato, embora todos nós estejamos presos cá fora” (Lima, 2003b, p. 625). Esse sentimento também está presente em seu artigo, Inocentes e culpados, escrito em 30 de maio de 1973, no qual sublinhava que as prisões naquele tempo eram mais trágicas na medida em que a “ambiguidade dos regimes bifrontes ou o fanatismo das ditaduras uniformes criaram a terrível promiscuidade, nas celas, dos realmente inocentes com os realmente culpados” (Lima, 1974, p. 240). No plano econômico, se a preocupação do governo Castello Branco estava centrada no combate à inlação (Resende, 1990), a dos governos Costa e Silva e Médici foi com a aceleração do crescimento econômico (Lago, 1990), que supostamente propiciaria rebatimentos positivos para a área social. Essa dimensão também não escapou ao olhar do Alceu, que no seu artigo Tecnologia e humanismo, escrito em 27 de julho de 1967, durante a administração Costa e Silva, já salientava que o que se via e sentia, através das declarações e dos atos oiciais, era “a bifurcação entre o pragmatismo e o humanismo. Por mais que se apregoem os seus propósitos humanistas, os dirigentes da nova fase revolucionária só se entusiasmam mesmo é com os progressos práticos, os projetos tecnológicos, a onda de dólares que vai chegar” (Lima, 1974, p. 43). Após seis anos, Alceu voltava a se debruçar sobre os aspectos econômicos, com o seu artigo A desconcentração econômica, sendo a sua análise do período simplesmente lúcida e irretocável: O badalado milagre brasileiro baseado numa crescente concentração das riquezas de tipo capitalista – redundou e tende a redundar cada vez mais naquela distorção que há muito vimos anunciando: Estado rico num povo pobre. À medida que crescem os nossos saldos no exterior e o Governo se gaba de ter mantido o PIB acima de 10%, as riquezas são distribuídas de modo cada vez mais iníquo (...) e a capacidade aquisitiva dos trabalhadores cresce na proporção inversa do enriquecimento estatal (Lima, 1974, p. 218). Aqui Alceu aborda um tema que sempre lhe foi caro: o distributismo chestertoniano. Ao enxergar que o mundo caminhava para a concentração econômica, ele manifestava a sua convicção e preferência pelo distributismo econômico: “sou pela desconcentração econômica que permita um Estado forte, controlando a justa distribuição da riqueza nacional, como sua tarefa primordial. E não um Estado rico como o nosso, alimentado pela pobreza do povo” (Lima, 1974, p. 220). A crítica de Alceu à anomalia de se ter um Estado rico com um povo pobre está intrinsecamente relacionado a uma hipertroia do Estado, denominado por ele “estatalismo”, fruto de um capitalismo altamente concentrador, que beneiciava uma pequena parcela de 384 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil aquinhoados e privilegiados da população e agravava os riscos de um “monopolismo político de tipo fascistizante”, uma situação vivida pelo Brasil da ditadura. A desconcentração econômica, portanto, estaria irremediavelmente associada a valores fundamentais como liberdade e justiça, uma vez que sem estes valores os regimes políticos causariam impactos nocivos nas sociedades, não importando a natureza deles porque em nome, por exemplo, da “defesa da Civilização Ocidental Cristã” foram cometidas “as mais violentas negações da verdade, da justiça, da liberdade e da dignidade humana” (Lima, 1977, p. 137). Alceu é taxativo ao airmar que: [continuava] a crer que a sentença de Hobbes de que o “homem é o lobo do homem”, é tão falsa como a de Rosseau, de que o “homem nasce bom e a sociedade é que o corrompe”. Não. O homem nasce social e só os maus governos ou os maus instintos é que o corrompem e o tornam lobo dos seus semelhantes, nos regimes políticos sem liberdade e sem justiça (Lima, 1977, p. 135). No seu artigo dirigido aos universitários de Juiz de Fora, Alceu sintezou, de maneira muito feliz, os problemas urgentes da realidade brasileira, os quais faziam parte do rol de suas preocupações: Antes de tudo, a palavra liberdade. (...) Liberdade, não é esse privatismo econômico, de que hoje tanto se fala, em que o bem comum do povo é subordinado à sede de enriquecimento individual. Liberdade, não é a da raposa no galinheiro, mas a da pequena indústria, da pequena agricultura, do pequeno comércio, em face da desnacionalização de nossas fontes de riqueza cada vez mais submissas aos tentáculos das famosas multinacionais. Economia livre não é a que só aproveita as oligarquias. É a economia justa. Como a política livre não é uma política sujeita ao arbítrio de um AI-5. Não é um Parlamento sem autonomia legislativa. Não é a negação sistemática de uma ampla anistia política, que permita uma sociedade aberta a um Brasil unido, na diversidade de suas posições ideológicas livres e convivendo, democraticamente, e não apenas uniformizado pela insegurança coletiva e por uma ordem meramente policial. Pois há um abismo entre um Estado Policial e um Estado Policiado. Aquele é o da falsa ordem. Este o da verdadeira autoridade. Aquele é o Estado violento. Este o Estado forte. Aquele o do arbítrio governamental. Este o da justiça, equitativamente distribuída e garantida pela força pública, a serviço da lei e dos direitos essenciais de cada cidadão (Lima, 1977, p. 145). Essas preocupações estão também reletidas no seu livro Os direitos do homem e o homem sem direitos, publicado em 1974, no qual discute cada um dos trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem – aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em dezembro de 1948 – com base em seu vasto saber humanístico. Escrito num contexto em que o arbítrio, a violência, as perseguições, e a completa falta de liberdade imperavam, o livro mostra, mais uma vez, o combatente Alceu em sua trincheira lutando pelo retorno e pela garantia das liberdades, da democracia e da pluralidade na sociedade, em que o respeito à Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 385 diversidade é um direito básico dos cidadãos em um país civilizado. A questão central, como não poderia deixar de ser, é a defesa da garantia das liberdades, da justiça, da dignidade humana, do Estado de direito e, consequentemente, a luta contra todo tipo de arbítrio, autoritarismo, impostura, cinismo, injúrias, e ilegalidades que atentem contra o próprio homem. De acordo com as suas próprias palavras: “Para que este monumento histórico da luta do homem contra o arbítrio seja realmente um marco em defesa da liberdade e da dignidade humanas, é preciso velar para que em nome do direito não se cometam as piores injúrias contra o próprio homem, seja por deiciência, seja por abuso” (Lima, 1999a, p. 201). Todas essas preocupações, obsessões, e lutas do Alceu nesta última fase de sua vida, então dominadas pelas críticas aos fatos sociais, que nada mais eram do que a voz de um insurgente contra o arbítrio ditatorial e seu ilho dileto, o terrorismo cultural, estão particularmente relacionadas a sua concepção de mundo, concepção que está impregnada, e que não poderia deixar de ser diferente, de valores cristãos, e também apresentam conexões com discussões mais recentes, principalmente na área econômica. Nesse sentido, Sen (2000, p. 18) enfatiza que a liberdade é um fator essencial para o processo de desenvolvimento, que para ser alcançado precisa que se “removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos”. É dentro desse contexto que o desenvolvimento é concebido como a expansão das liberdades humanas, uma vez que a sua consecução depende totalmente da livre condição de agente dos indivíduos. De fato, há uma estreita conexão entre liberdade individual e concretização do desenvolvimento social, sendo a realização dos indivíduos inluenciada por diversos fatores, tais como as oportunidades econômicas, liberdades políticas, condições de saúde e educação etc., ao passo que a liberdade dos indivíduos, pela sua participação no processo de tomada de decisões públicas e nas escolhas sociais, acaba por inluenciar as instituições, que propiciam as oportunidades econômicas. A democracia também assume um papel relevante no processo de desenvolvimento, posto que nela estão embutidas muitas virtudes, tais como: i) a liberdade política – parte constitutiva da liberdade humana – posto que a participação política e social e a própria liberdade têm um caráter essencial e determinante para a vida humana; ii) o valor instrumental dos incentivos políticos para a manutenção da responsabilidade e da prestação de contas dos governos, o que é resultado das reivindicações dos cidadãos; e iii) o papel construtivo na formação de valores e na compreensão das necessidades, direitos e deveres, uma vez que os cidadãos têm a oportunidade de aprender uns com os outros através da discussão pública e troca de informações, visões e análises. É em função de todos esses aspectos que Sen (1999) reconhece a democracia como um valor universal. 386 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Ainda a respeito da questão da democracia, há uma vasta literatura, especificamente no que tange à discussão sobre a maldição dos recursos naturais, que sublinha que as substanciais rendas advindas da exploração dos recursos naturais aumentam a possibilidade de comportamentos disfuncionais, principalmente o rentista, e contribuem para o crescimento da corrupção (Leite e Weidmann, 1999; Ross, 2001; Arezki e Bruckner, 2009; Bhattacharyya e Hodler, 2010; Brollo et al., 2010), que é frequentemente considerada uma enfermidade séria nos países dependentes das indústrias extrativas como sua principal fonte de renda (UNCTAD, 2007), e também fornecem o combustível necessário para o aumento do risco de conlitos (Ross, 2004a; Ross, 2004b; Collier e Hoeler, 2005; Fearon, 2005; Brunnschweiler e Bulte, 2009). Nesse sentido, o tipo de regime político assume particular relevância na medida em que todos esses problemas – rentismo, corrupção e conflitos –, frutos da debilidade dos governos e da pouca responsabilidade existente, poderiam ser superados através da diplomacia, transparência e, sobretudo, da democracia. Assim como a liberdade e a democracia, os direitos humanos também estão inseridos no rol das questões importantes para o processo de desenvolvimento. Segundo Sen (2004, p. 319-320), os direitos humanos são importantes porque: i) podem ser vistos primeiramente como demandas éticas. Eles não são mandamentos legais. Embora possam inluenciar legislações, esse é um fato adicional e não uma característica constitutiva dos direitos humanos; ii) estão relacionados à importância das liberdades que constituem o principal tema desses direitos; iii) proporcionam razões para as ações dos agentes que estão em posição de ajudar na promoção ou na salvaguarda das liberdades fundamentais; iv) a sua implementação pode ir além da legislação, e uma teoria dos direitos humanos não pode estar coninada dentro do modelo jurídico em que é frequentemente encarcerada; v) podem incluir signiicativas e inluenciáveis liberdades econômicas e sociais; e vi) a sua universalidade está relacionada à ideia de sobrevivência numa discussão que está aberta à participação das pessoas além das fronteiras nacionais. Como não poderia deixar de ser, a justiça, tal como os outros elementos já mencionados, é importante no processo de desenvolvimento, uma vez que sua noção está intrinsecamente relacionada à ideia que se tem de uma sociedade desejável ou, numa visão mais pessimista, tolerável. Na discussão empreendida por Sen (2000, 2011), a abordagem voltada para a liberdade possibilitaria distintas ênfases a respeito das questões de eiciência e equidade, o que implicaria a formulação de teorias da justiça. De fato, Sen aponta limitações nas teorias da justiça tradicional, baseadas na abordagem utilitarista tradicional na qual a “utilidade” de um indivíduo está representada por alguma medida de bem-estar. Esta abordagem que apresenta uma indiferença distributiva é, ao mesmo tempo, um descaso com os direitos, liberdades e qualquer outra questão que não esteja relacionada à utilidade. Humanismo e Liberdade: as faces do desenvolvimento em Alceu Amoroso Lima 387 Dentro da discussão sobre justiça, ganha relevo a questão da justiça distributiva, que alige inúmeras sociedades. Assim como Rawls (2005), Sen ressalta que o aspecto mais importante relacionado à justiça distributiva é a liberdade efetiva dos indivíduos, sendo a sua abordagem das capacitações uma maneira clara de escapar das armadilhas e restrições impostas pela teoria utilitarista. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Alceu Amoroso Lima deixou marcas profundas na sociedade brasileira do século passado. Foi um homem de múltiplos talentos e interesses, um infatigável escritor, um leitor voraz, possuidor de uma vasta erudição e, sobretudo, um intelectual em busca da verdade, da sua própria verdade, busca esta tão bem explicitada por ele numa entrevista concedida, em 1977, a Stella Car: “Eu vou seguindo o meu caminho, as minhas ideias, o que eu penso que seja verdade. Quem quiser seguir, me siga. Quem quiser divergir, divirja. Eu quero é que me dêem liberdade” (Lima, 1984, p. 238). Liberdade e humanismo, estes foram os eixos centrais do seu pensamento, expressos em sua longa trajetória intelectual, desde a sua mocidade, marcada pelo agnosticismo e por um socialismo romântico, até a completa maturidade, fase na qual se debruçou sobre os acontecimentos sociais e políticos, praticamente impelido pela complexa, delicada e tensa situação que o Brasil vivia no início dos anos 1960 e que culminou com o golpe militar em 1964. A sua trajetória de vida mostra claramente que a evolução do seu pensamento não é linear. Ela é repleta de avanços e retrocessos, de certezas e dúvidas, de contradições e angústias de um homem com sede de conhecimento para melhor entender e explicar não só o mundo em que vivia, mas também a si mesmo. Procurar a verdade e seguir o caminho... É essa sua procura que o levou ao catolicismo e, consequentemente, a dar “adeus à disponibilidade”. Entretanto, carregou consigo, nessa nova etapa da sua vida que então se iniciava, inluências decisivas, de socialistas e de católicos, todos humanistas, que icariam adormecidas no começo de sua vida de militante católico para depois retornar com vigor, sendo talvez Chesterton, com o seu distributismo econômico, a principal referência. A segunda etapa de sua vida, em que a conversão é o divisor de águas, pode ser dividida em duas fases distintas: a primeira, na qual se inseriu no projeto da igreja de cristianização da sociedade brasileira e, portanto, assumiu posturas reacionárias – quando há um certo lerte com o integralismo – e mesmo intolerantes, atitudes e posicionamentos de um verdadeiro cristão novo; e a segunda, em que se desprende da herança conservadora de Jackson de Figueiredo e, ao mesmo tempo, se distancia da hierarquia da igreja. É nesta fase que recebeu inluências determinantes, principalmente de Jacques Maritain do Humanismo integral e do Cristianismo e democracia, de Mounier, e de sacerdotes franceses 388 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil responsáveis pela renovação da igreja católica, que o ajudam a se libertar de uma ortodoxia introjetada no início de sua conversão religiosa. Ao longo desta segunda etapa, marcada pela preocupação com as questões ideológicas e ilosóico-religiosas, Alceu foi amadurecendo e o seu amadurecimento pessoal resultou num pensamento mais complexo, requintado e denso, em que os valores cristãos não limitavam a sua cosmovisão. Muito pelo contrário. Ele conseguiu enriquecê-la e ampliá-la sem, contudo, abandonar os seus sagrados princípios cristãos. É exatamente nesta etapa de sua vida que Alceu conheceu – e o introduziu no Brasil – o padre dominicano francês Louis Joseph Lebret, engajado nas ileiras pela renovação da igreja católica e líder do movimento economia e humanismo, cujas ideias tiveram nele um forte acolhimento. De fato, a defesa da primazia do homem na ordem econômica, o combate à pobreza, a necessidade de se promover um desenvolvimento mais justo, mais humano e a imprescindibilidade de se humanizar o mundo se coadunavam perfeitamente com as ideias de Alceu, que via no humanismo e na liberdade os caminhos para o desenvolvimento. No início dos anos 1960, o Brasil testemunhou um momento extremamente tenso em sua vida política e social e cujo desdobramento foi o golpe militar. Esta tragédia que se abateu sobre a vida nacional coincidiu com a fase de vida de um Alceu completamente maduro, consciente da importância de sua pena, com absoluto domínio e destreza intelectual e em pleno exercício laboral. Em função da supressão das liberdades e das arbitrariedades cometidas pelo regime militar, Alceu se tornou, desde o início, um tenaz crítico do golpe e um arrojado combatente pela liberdade, democracia, justiça e por um humanismo, que naquele contexto de violência e autoritarismo de Estado, parecia inalcançável. Em que pesem as mudanças de posição ocorridas ao longo de sua vida, o fato é que o Alceu da terceira fase não pode ser dissociado do das fases anteriores na medida em que aquele Alceu estava totalmente impregnado pelos atributos, relexões e, por que não dizer, erros de avaliação cometidos pelo jovem e impetuoso Alceu, que salientava, já ao im de sua longa trajetória: “Viver é mudar. O mundo mudou e mudei eu também” (Lima, 1984, p. 391). E só muda quem tem coragem de rever seu passado, de admitir erros e, ao mesmo tempo, de assumir, sem qualquer medo, novas posturas, o que foi uma marca registrada da vida de Alceu Amoroso Lima e um legado para as futuras gerações. 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Historicamente, existem três momentos em que o papel da terra foi importante na conformação da sociedade brasileira: em 1850, quando foi regularizado, por meio da Lei das Terras, o acesso privado às terras, impedindo que parte da população trabalhadora rural também tivesse esse direito. O segundo momento ocorreu nas décadas de 1920 e 1930, quando o Movimento Tenentista questionou o latifúndio improdutivo e iniciou os primeiros debates sobre a necessidade de reformar a estrutura agrária do país. Já a terceira fase se iniciou no pós-guerra, quando surgem as Ligas Camponesas e, mais recentemente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), momentos que transformaram o campesinato em um dos atores sociais mais relevantes do país, ao indicarem a reforma agrária como um dos principais instrumentos de luta para transformar a sociedade brasileira. Sem dúvida, foi durante esta terceira fase que ocorreram intensos debates acadêmicos sobre o modelo de desenvolvimento brasileiro, com a reforma agrária assumindo um papel de destaque nessa discussão. De um modo geral, pode-se dizer que estes debates faziam uma conexão entre a estrutura agrária e os temas da pobreza rural, da dinâmica populacional, do desemprego, da modernização da agricultura, das mudanças nas relações de trabalho no campo e do êxodo rural. Neste cenário, as discussões ganharam dimensão política nacional, inclusive fazendo parte de forma destacada da agenda dos governos e dos diversos atores sociais rurais. Todavia, em função do processo de modernização da agricultura dos 1. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em economia e administração, ambos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: l.mattei@ufsc.br. 396 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil anos de 1960 e 1970 e das mudanças estruturais das últimas décadas, novas questões foram lançadas. Assim, nos debates recentes perguntas têm sido constantemente feitas, destacando-se duas delas: o Brasil ainda precisa fazer a reforma agrária? A reforma agrária ainda é uma questão pertinente para a sociedade brasileira no início do século XXI? Para as organizações dos trabalhadores rurais essas questões não fazem muito sentido, tendo em vista que a reforma agrária continua sendo um tema extremamente atual em suas pautas de reivindicações e com expressão decisiva nas diferentes formas de lutas que continuam sendo desenvolvidas (ocupações de terras, organização de assentamentos, reestruturação dos sistemas de produção etc.). É no meio acadêmico, sem dúvida, que residem as maiores contradições deste debate. Observa-se que diversos grupos de pesquisadores das áreas das ciências sociais e humanas vêm airmando que o desenvolvimento rural brasileiro das últimas cinco décadas rebaixou o problema fundiário, fazendo com que a reforma agrária deixasse de ser uma reivindicação nacional e um instrumento decisivo capaz de alterar os destinos históricos do desenvolvimento do país. Com isso, a “questão agrária” perde sua centralidade no debate nacional, pois deixa de ser um instrumento impeditivo do desenvolvimento social e econômico. Contudo, grupos de pesquisadores das mesmas áreas de conhecimento citadas anteriormente mostram a relevância e a atualidade da reforma agrária para o Brasil, país que historicamente mantém um dos maiores índices de concentração de terra do mundo, além de apresentar graves problemas econômicos e sociais no meio rural e conlitos agrários constantes. Neste sentido, o objetivo deste estudo é sistematizar os principais argumentos de cada um desses grupos de pesquisadores em relação à realização da reforma agrária. Para tanto, além desta breve introdução, o capítulo contém mais três seções. A primeira delas sistematiza os argumentos de alguns autores que se posicionam a favor da reforma. A segunda discute as principais teses contrárias à ideia da necessidade da reforma agrária no século XXI, enquanto a terceira e última seção apresenta as considerações inais do trabalho. 2 PRINCIPAIS TESES FAVORÁVEIS À REFORMA AGRÁRIA 2.1 As teses de José Graziano da Silva Este autor – integrante do grupo de novos intérpretes da questão agrária brasileira – possui uma vasta obra, e alguns de seus estudos se tornaram referências clássicas para os debates atuais. Neste caso, destacam-se os livros Progresso técnico e relações de trabalho na agricultura (1981); O que é a questão agrária (1982); A nova dinâmica da agricultura brasileira (1996); O novo rural brasileiro (1999). Em todos esses trabalhos O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 397 o problema agrário está presente, porém recebendo tratamento diferenciado com o passar do tempo, conforme será visto mais adiante. Inicialmente, o autor faz uma distinção conceitual entre a questão agrícola e a questão agrária, mostrando que o primeiro tema diz respeito aos aspectos relacionados às mudanças no processo de produção (o que se produz, onde se produz, quanto se produz), enquanto o segundo se refere às transformações nas próprias relações de produção (como se produz, de que forma se produz), merecendo destaque neste último caso a maneira como se organiza o trabalho e a produção, o emprego e a produtividade dos trabalhadores (Graziano da Silva, 1982). Todavia, o processo histórico de desenvolvimento da agricultura brasileira nem sempre permitiu analisar essas duas questões de forma separada, uma vez que elas se apresentam inter-relacionadas. Mesmo assim, conforme adverte o autor, a maneira pela qual se busca resolver o problema agrícola pode agravar a própria questão agrária. Este parece ter sido o caso brasileiro durante o processo de modernização agrícola (décadas de 1950 a 1970), uma vez que a adoção das técnicas que faziam parte do pacote da Revolução Verde acabou agravando fortemente o problema agrário do país. Os trabalhos recentes do autor vão mostrar uma mudança em suas interpretações da agricultura brasileira, uma vez que ele aponta a existência de uma nova dinâmica por trás daquilo que a literatura convencionou chamar de “modernização conservadora”. É neste contexto interpretativo que os Complexos Agroindustriais (CAIs) vão ganhar destaque em suas análises, de modo a não permitir mais se falar em agricultura brasileira como única unidade de análise relevante. Na essência, os CAIs representam: A substituição da economia natural por atividades agrícolas integradas à indústria, a intensiicação da divisão do trabalho e das trocas intersetoriais, a especialização da produção agrícola e a substituição das exportações pelo consumo produtivo interno como elemento central da alocação dos recursos produtivos no setor agropecuário (Graziano da Silva, 1996a, p. 1). Desta forma, a partir da década de 1970 a constituição dos CAIs representou: A integração técnica intersetorial entre as indústrias que produzem para a agricultura, a agricultura propriamente dita e as agroindústrias processadoras, integração que só se torna possível a partir da internalização da produção de máquinas e insumos para a agricultura. Sua consolidação se dá pelo capital inanceiro, basicamente através do SNCR e das políticas de agroindustrialização especíicas instituídas a partir dos chamados fundos de inanciamentos (Graziano da Silva, 1996a, p. 31). Este processo, segundo o autor, gerou uma nova dinâmica na agricultura brasileira, a qual recoloca problemas antigos, mas também novas questões sobre os 398 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil condicionantes estruturais desse padrão de desenvolvimento agrário. Dentre esses problemas destacam-se os temas da propriedade da terra e das classes sociais rurais, além das profundas transformações nos planos da concentração e centralização dos capitais aplicados no setor agropecuário. Os impactos deste processo sobre a estrutura produtiva e sobre as relações sociais rurais indicam um processo extremamente excludente, tanto em termos das regiões do país como dos produtores, e apenas os médios e os grandes proprietários de terras conseguiram se incorporar a esta nova etapa de mudanças no campo, enquanto os agricultores familiares sofrem um forte processo de diferenciação. Para o autor, essa diferenciação desenha uma polarização crescente que se explicita da seguinte forma: (...) de um lado, uma perda gradativa do papel produtivo dos segmentos mais pobres de pequenos produtores, de modo a converter a terra que possuem em mero local de moradia ou, quando muito, em produção para autoconsumo da família; de outro, uma tecniicação crescente dos produtores familiares integrados aos complexos agroindustriais, aliando um patrimônio imobilizado cada vez maior a menores níveis de autonomia na organização de seu próprio processo produtivo (Graziano da Silva, 1996b, p. 173). O primeiro grupo estará condenado a atividades marginais do ponto de vista produtivo, ou seja, “estarão condenados à produção para autoconsumo ou, quando muito, para fornecimento direto às populações locais com um nível tecnológico rudimentar” (Graziano da Silva, 1996b, p.176). Assim, ressalta-se que o nível de vida desses segmentos não integrados aos CAIs dependerá em muito das políticas públicas. É justamente nesta direção que apontam suas proposições de política agrária. Tomando como referência a questão sobre o que fazer com esses excluídos, ou seja, o que fazer com os “descamisados”, ou os “extremamente pobres” que, segundo o autor, em sua maioria são trabalhadores temporários sem vínculo empregatício e pequenos agricultores não modernizados que trabalham por conta própria. Desta forma, são propostas de diversas políticas para esses segmentos, com destaque para o novo enfoque dado à política agrária. Confrontado com a indagação de se a reforma agrária é ainda necessária no Brasil, o autor vai responder airmativamente propondo uma “reforma agrária não essencialmente agrícola”, ao mesmo tempo em que destaca os elementos básicos daquilo que ele considera como sendo um novo programa agrário para o país no inal do século XX e início do século XXI. Na sequência, essa proposição será apresentada em detalhes. Inicialmente, observa-se que Graziano da Silva defende uma reforma de caráter mais “social” que “econômico”, por entender que esta teria a função de gerar O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 399 empregos, conter os luxos migratórios e evitar a lumpenização do campo. Neste caso, o papel da reforma agrária seria o de auxiliar no equacionamento da questão populacional do país, até que fosse completada a transição demográica iniciada na última década. Para tanto, as políticas de um programa agrário desta natureza teriam de ser menos produtivistas e mais voltadas ao não agrícola existente no espaço rural. Por isso, a reforma agrária proposta (...) não precisa ter mais um caráter estritamente agrícola, dado que os problemas fundamentais da produção e preços podem ser resolvidos pelos nossos complexos agroindustriais. É preciso hoje a reforma agrária para ajudar a equacionar a questão do nosso excedente populacional até que se complete a transição demográfica recém-iniciada. E a reforma agrária que permitisse a combinação de atividades agrícolas e não agrícolas teria a grande vantagem de necessitar de menos terra, o que poderia baratear signiicativamente o custo por família assentada, o que é forte limitante para a massividade requerida pelo processo distributivo, especialmente nos estados do Sul e Sudeste (Graziano da Silva, 1999, p. 133). Neste caso, propõe-se que, além de não alterar substancialmente a distribuição da propriedade da terra, pois seriam necessárias quantidades menores deste bem natural, se se buscasse gerar um conjunto de novas ocupações que não exijam níveis de qualiicação mais elevados visando atender à parcela da população sobrante do ponto de vista estritamente agrícola e industrial, os milhões chamados de “sem-sem”. Isto poderia ser buscado, segundo o autor, nas franjas do crescimento da prestação de serviços pessoais que caracteriza o mundo atual. Além dessa concepção geral, propõe-se “a retomada da concepção de programa regionalizado de reforma agrária para o país, com a decretação das zonas prioritárias previstas no antigo Estatuto da Terra, de modo a se conseguir a concentração de assentamentos agropecuários em determinadas regiões” (Graziano da Silva, 1999, p. 134). Na verdade, o autor defende a ideia de que é inviável uma intervenção massiva sobre a estrutura fundiária do país em função das restrições ixadas pela atual Constituição Federal (CF) que impedem uma ampla distribuição de terras em todo o país. Destaca-se como área prioritária para execução dessa proposta o sertão da região Nordeste do país. Desta forma, o autor fundamenta: (...) a deinição de regiões prioritárias permitiria estabelecer zonas reformadas com políticas públicas e regras diferenciadas do restante do país (como por exemplo, serviço de extensão rural especíico, crédito do PROCERA etc.) que garantissem o sucesso dos novos produtores rurais nos seus primeiros anos, combinados com programas especiais de previdência social que garantissem renda mínima àquelas famílias rurais ou urbanas que não tivessem condições de serem beneiciadas com um lote (Graziano da Silva, 1999, p. 135). 400 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Como medidas complementares a este programa agrário, são propostas mais duas formas de intervenção governamental. Por um lado, devia ser alterada a concepção sobre o Imposto Territorial Rural (ITR), o qual precisaria ser “tratado como um tributo sobre a propriedade, à semelhança do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU), com participação decisiva das municipalidades na sua implantação” (Graziano da Silva, 1999, p. 136). Por outro lado, deveriam também ser apoiados programas de parcerias e arrendamentos como formas de acesso à terra pelos não proprietários, especialmente nos locais onde o preço da terra é muito elevado. Neste caso, torna-se necessária a elaboração de uma legislação especíica que regulamente a atividade visando estimular esta prática no país. Desta forma, o autor airma: (...) a alternativa de gerar empregos no meio rural através da redistribuição do acesso à terra não se impõe apenas pelo lado microeconômico de representar menores custos (...) mas pelo fato de que uma política social compensatória do tipo “passe no caixa” tem-se mostrada muito cara até mesmo para os países desenvolvidos; e a política de inserção em serviços pessoais urbanos requer um “aprendizado” que não está ao alcance da maioria das famílias “sem terra” e principalmente dos “sem-sem” do nosso país; além, é claro, do custo macroeconômico da urbanização dessas famílias em termos de infraestrutura de transportes, habitação, saneamento básico, etc. (Graziano da Silva, 1999, p. 140). Decorre dessa interpretação sua proposição – polêmica – de reabertura das discussões sobre reforma agrária na região amazônica do país. Estas mesmas teses voltaram a ser defendidas na primeira década do século XXI quando foram escritos novos artigos que, na essência, apenas reforçam as mesmas proposições anteriores sobre o caráter e a função da reforma agrária atualmente. Assim, em artigo publicado em 2001, é reforçada a tese de que a reforma neste século não precisa mais ter um caráter estritamente agrícola, uma vez que os problemas da produção e dos preços agropecuários podem ser resolvidos pelos complexos agroindustriais já instalados no país. Além disso, reforça-se a tese sobre a função da reforma agrária no contexto contemporâneo, ou seja, ela serviria para ajudar a equacionar a questão do excedente populacional do país. Partindo de uma análise crítica sobre a política de assentamentos em prática no país, o autor a caracteriza como sendo uma “reforma agrária de pipoqueiro”: Os governos, inclusive o atual, limitam-se a correr atrás dos conlitos que estouram aqui e acolá. Desde 1987 não existe um Plano Nacional de Reforma Agrária, como exige o Estatuto da Terra. Com isso, os assentamentos não passam de intervenções pontuais, verdadeiras ilhas cercadas de problemas por todos os lados (...) (Graziano da Silva, 2001, p. 5). O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 401 Mesmo diante deste cenário caótico, reconhece-se que essa política criticada conseguiu dar casa, comida e trabalho para mais de 400 mil famílias, as quais certamente não conseguiriam – devido às suas condições sociais – ser absorvidas pelas novas fábricas e indústrias que se instalaram no país. Desta forma, justiica-se a continuidade das políticas agrárias, comparando-se os custos do sistema prisional com os de uma família assentada. Além de esses últimos custos serem inferiores aos primeiros, deve-se registrar que a maior parte dos recursos investidos retorna para a sociedade de forma direta (produção agrícola) e indireta (famílias assentadas viram cidadãos de fato). Desta maneira, o autor concluiu seu estudo com a seguinte airmação: “se não existissem outras razões, bastaria essa: a pior das reformas agrárias que ao menos garante casa, comida e trabalho por uma geração, custa menos da metade do que é gasto para manter alguém na cadeia” (Graziano da Silva, 2001, p. 5). Como é do conhecimento de todos, a partir de 2003 Graziano da Silva integrou a equipe central do governo Lula até o ano de 2006, quando passou a comandar o escritório regional da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura para a América Latina – Food and Agriculture Organization (FAO) –, cargo exercido até o ano de 2011. Neste período, embora tenha escrito pouco sobre o assunto, sua posição continuou sendo idêntica a dos períodos anteriores. Assim, em artigo escrito em 2007 apresentou as mesmas teses anteriores, defendendo a opinião de que as mudanças ocorridas no “formato da questão agrária” abriram novas oportunidades para repensar a ilosoia e a geograia da reforma nos próximos períodos no Brasil. Para tanto, voltou a defender uma política agrária concentrada regionalmente, com ênfase na região Nordeste e com um caráter de política não essencialmente agrícola. 2.2 As teses de Guilherme Delgado O economista Guilherme Delgado desde a década de 1980 se transformou em uma das principais referências analíticas sobre o capitalismo agrário brasileiro, especialmente a partir de sua obra clássica Capital financeiro e agricultura no Brasil, publicada no ano de 1985. Desde então especializou-se em interpretar as mudanças no campo, mostrando que o pensamento conservador que organizou e implementou a modernização conservadora da agricultura brasileira na década de 1960 isolou a questão da reforma agrária. Todavia, em diversos estudos publicados recentemente, o autor airmou que aquela contradição (reforma agrária x modernização técnica) tem resposta na atualidade, porém sob um novo arranjo político orquestrado a partir do segundo governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e durante os dois mandatos do governo Lula. Na essência, constituiu-se uma estratégia de relançamento dos grandes 402 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil empreendimentos agroindustriais apoiados na propriedade fundiária com o objetivo claro de gerar excedentes comerciais para o país. A consequência desse arranjo, segundo o autor, recai sobre a política agrícola, cuja prioridade absoluta é apoiar o setor do agronegócio para que este cumpra sua função no âmbito da macroeconomia do país, ajudando a evitar constrangimentos do balanço de pagamentos. Com isso, além de não alterar a estrutura, esta opção dos governos recentes reforça “as estratégias privadas de maximização da renda fundiária e especulação no mercado de terras” e sufoca a luta pela reforma agrária protagonizada por diversos movimentos sociais rurais. Assim sendo, nota-se que a conta-corrente do Brasil, que até 2002 era deicitária, passou a ser superavitária a partir de 2003. Essa inversão se deve ao papel decisivo desempenhado pelo setor primário exportador desde então. Fica, assim, evidente a mudança da macroeconomia política para as áreas rurais, a qual passou a incentivar e priorizar o agronegócio em detrimento de uma política agrária para todos os segmentos sociais rurais, o que a torna apenas parte residual dos programas de governo. Desta forma, conigurou-se na última década uma estratégia de expansão das commodities agropecuárias (soja, carnes, sucos, celulose etc.). Esta política foi viabilizada pela combinação de dois movimentos sinérgicos: por um lado, a expansão da demanda internacional desses produtos puxada pela China e, por outro, a grande valorização dos preços dessas commodities, possibilitando a manutenção e ampliação da renda fundiária. Isso levou a se airmar que esse movimento positivo da renda da terra tem propiciado diferentes arranjos e acomodações políticas, porém com grande exuberância durante os períodos de expansão da atividade econômica setorial. Mesmo que o produto interno bruto (PIB) agropecuário esteja crescendo, o autor alerta que este movimento recente da economia brasileira, assentado no bom desempenho das cadeias agroexportadoras, depende cada vez mais da manutenção de uma situação favorável no comércio internacional, ao mesmo tempo em que destina ao país com esta característica – caso do Brasil – um lugar precário na divisão internacional do trabalho. Neste caso, Delgado reairma que nenhum país do mundo se desenvolveu desta maneira, ou seja, apostando no setor primário exportador como setor-chave. Isto porque, quando ocorre alguma redução da demanda externa, gera-se uma falta de ligação do setor primário com o restante da economia, o que representa um desastre para o desenvolvimento do país. Delgado airma que as condições que fortalecem essa estratégia de expansão na agropecuária brasileira são, simultaneamente, a matriz da moderna questão agrária, uma vez que elas representam obstáculos reais ao desenvolvimento da agricultura familiar e dos assentamentos da reforma. Assim, qualquer projeto de desenvolvimento que não desbloqueie esses obstáculos no sentido de incorporar esses O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 403 outros segmentos sociais rurais não será viável, na perspectiva analítica adotada pelo autor, para a construção de um projeto nacional de desenvolvimento autônomo. De uma maneira clara e precisa, Delgado aponta que essa incompatibilidade do projeto de desenvolvimento é peculiar, uma vez que este projeto se apoia em uma estratégia que mantém a estrutura agrária intocada, ao mesmo tempo em que fortalece apenas a expansão do agronegócio. A exclusão do campesinato brasileiro em detrimento da expansão do agronegócio não possibilita a construção de um crescimento sustentável do país nem mudanças signiicativas na estrutura agrária. Segundo o autor, o início do século XXI está marcado por este novo “pacto” do setor agrário com apoio do Estado brasileiro, o que leva a uma brutal apropriação de capital no setor primário. Este processo se revela na concentração da riqueza nacional, na expropriação dos recursos naturais e na geração de problemas nas contas externas (deficit externos). Para Delgado são exatamente esses aspectos que recolocam a questão agrária como uma questão brasileira. É neste contexto analítico que a reforma agrária segue como um tema pertinente e atual: Uma reforma agrária includente, de desenvolvimento e igualdade, não está fora da agenda, ao menos que se pense que não há desigualdade no país. O pessoal acha que desenvolvimento é modernização conservadora. É a moda Geisel, desenvolver o modelo do regime militar (Delgado, 2008, p. 1). Nestas passagens ica evidente o caráter da reforma agrária defendida pelo autor: uma reforma que promova a distribuição das terras e da renda e, ao mesmo tempo, que seja portadora da justiça e da equidade social. Esta posição se contrapõe ao projeto dominante, pois segundo Delgado: (...) há uma orquestração nacional em defesa do modelo primário-exportador. Contra esta visão, tudo é colocado como atraso. Mas o atraso é justamente esse modelo, essa aliança do grande capital com os grandes latifúndios. O atraso é priorizá-lo em detrimento do crescimento industrial, do setor de serviços, da agricultura sustentável, da participação familiar (Delgado, 2008, p. 4). Com isso, é rejeitada a tese “de que o tempo da reforma agrária já passou”. No Brasil, diferentemente de exemplos da Europa e dos Estados Unidos que izeram mudanças na estrutura da posse da terra, não se fez nenhum alteração na estrutura agrária. O fato de que tenham mudado alguns instrumentos produtivos e algumas formas de intervenção não quer dizer que passou o tempo de se fazer uma política de distribuição e de igualdade também no meio rural do país. Ao contrário, precisa-se cada vez mais de uma política agrária que impeça que apenas um setor (agronegócio) que não tem obrigações com sua função social e com o meio ambiente e que não respeita as relações de trabalho seja o condutor do desenvolvimento. 404 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Por fim, o autor afirma que sem essa premissa o modelo brasileiro será construtor de desigualdades crescentes e a reforma será tratada como engodo, pois de tão residual será engolida pela lógica do modelo do agronegócio, versão atual da modernização conservadora do regime militar. 2.3 Teses de outros pesquisadores defensores da reforma agrária Há, ainda, um número expressivo de pesquisadores, diga-se de passagem, que entende que diversos obstáculos estruturais do meio rural brasileiro continuam existindo devido à questão agrária “não resolvida”. Estes obstáculos se situam nas esferas econômica, política e social e revelam que o desenvolvimento das forças produtivas está travado por normas, costumes, rotinas, relações de poder e de trabalho, entre outras; fatos estes que decorrem de relações historicamente estabelecidas entre os proprietários de terra e o restante da população rural. Tais relações são fortemente marcadas pela condição desigual de acesso à terra, pela desigualdade de renda e pelo poder político dominante imposto pelo latifúndio. Na verdade, trata-se de um grupo de pesquisadores que sustenta a ideia de que a não solução da questão agrária continua sendo um impeditivo ao desenvolvimento mais equitativo e justo do país. A saída, neste caso, seria romper com o poder dos grandes latifúndios e das grandes empresas agropecuárias, via desconcentração da posse da terra. No entanto, isto não deve ser lido como se a reforma agrária se restringisse apenas à desconcentração fundiária, mas como um amplo programa que tivesse em seu seio medidas que viessem a romper com o modelo produtivista e estabelecessem os parâmetros básicos de um modelo sustentável de desenvolvimento. Vejam-se alguns desses autores e suas principais teses. Para Sergio Pereira Leite, professor do curso de pós-graduação em desenvolvimento, agricultura e sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ) e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA), o debate sobre a reforma agrária normalmente tem sido marcado por declarações – contrárias ou favoráveis – que nem sempre vêm acompanhadas de análises sobre os processos sociais, econômicos e políticos relativos ao tema. Ganham destaque nesta trajetória de discussões, segundo o autor, declarações que procuram enaltecer as distorções que um programa de reforma geraria sobre os sistemas produtivos e a própria organização econômica. Recorrendo às teses de Conceição Tavares sobre as transformações ocorridas no campo brasileiro nas décadas de 1960 e 1970, as quais provocaram um reducionismo da concepção de reforma agrária, o autor mostra: [este reducionismo] viu-se, ainda, reforçado na conjuntura das duas últimas décadas, quando uma abordagem mais complexa sobre as transformações do meio rural brasileiro deu lugar ao discurso em prol do produtivismo renovado, agora em bases O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 405 – inanceiras, tecnológicas e institucionais – diferentes daquelas que vigeram ao longo do período anterior, e da forte orientação liberalizante e exportadora imposta à atividade agropecuária como resultado dos ajustes operados nas variáveis de política macroeconômica (Leite e Vieira de Ávila, 2007, p. 780). Considerando as implicações da reforma agrária sobre o crescimento econômico, esfera em que o tema vem recebendo as maiores críticas dos segmentos contrários a um programa agrário, os autores mostram que vários países da América Latina que apresentam elevada concentração da terra correlatamente também apresentam diiculdades em seus modelos de desenvolvimento. Assim, tais níveis de concentração econômica e fundiária são impeditivos para a promoção da justiça social, deixando milhões de pessoas à margem do processo de cidadania plena. Neste sentido, a reforma agrária constitui-se, seguramente, num dos principais mecanismos de política com amplo grau de cobertura e com baixo custo de realização para o enfrentamento dessa situação (...) (Leite e Vieira de Ávila, 2007, p. 784). Nesta perspectiva analítica airma-se que a reforma agrária é um tema ainda atual, sobretudo quando se observa que as últimas informações do Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE) – Censo Agropecuário de 2006 – revelam que o Brasil se mantém entre os países com as maiores taxas de concentração de terra do mundo. Para o autor, este fato – concentração extremamente forte da propriedade fundiária no país –, aliado ao grande número de pessoas que demandam terra, justiica a necessidade de uma política agrária. Todavia, defende-se que o caráter da reforma agrária precisa ir além de uma mera política produtiva e de combate à pobreza e se transformar numa política de desenvolvimento do país que seja capaz de atuar no sentido de combater a desigualdade social. Isto porque, sociedades que historicamente cresceram e se desenvolveram rapidamente realizaram, em algum momento de suas trajetórias, processos efetivos de distribuição das terras e de reforma da estrutura fundiária. Para José Juliano de Carvalho Filho, professor aposentado de economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), a persistência do alto grau de concentração de terras comprovada pelo Censo Agropecuário de 2006 revela que o modelo agrário exportador brasileiro é, em grande medida, responsável também pelas gritantes desigualdades da estrutura social do país. Para o autor, esse modelo de desenvolvimento agrário é subalterno, tanto interna como externamente. No plano interno está sendo praticada uma volta ao período colonial, uma vez que a política econômica privilegia os interesses do agronegócio, tornando o governo refém dos interesses dos ruralistas e do grande capital agrário. Com isso, a política agrícola passa a concentrar um grande volume de recursos para este setor, em detrimento dos demais. No plano externo, por sua 406 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil vez, este modelo revela sua vulnerabilidade e dependência dos setores capitalistas externos, devido à baixa incorporação tecnológica e a pouca competitividade das commodities brasileiras. Com isso, o Brasil se submete à nova divisão internacional do trabalho de cunho liberal cumprindo o papel de exportador de produtos primários. Esse processo retrógrado aumentou fortemente a diiculdade de acesso à terra por parte dos setores mais fragilizados economicamente do meio rural. A reforma agrária, com isso, passou a ser tratada pelos distintos governos do período pós-redemocratização como a pequena política, ou seja, seu caráter deixa de ser uma proposta de reforma estrutural para se transformar em ações meramente compensatórias, uma vez que o instrumento da desapropriação de terras deixa de ser o principal mecanismo da política agrária. Assim, os resultados das ações dos últimos governos nesta esfera levam o autor a airmar: As medidas têm como eixo a ausência de ações públicas fundamentais para o desencadeamento de um processo de reforma agrária capaz de enfrentar o “agronegócio”, um eufemismo para a atual fase do capitalismo no campo, marcada pelo aumento da taxa de exploração da mão de obra, pela exclusão, pela violência, pela concentração fundiária e pela degradação ambiental (Carvalho Filho, 2007). Nesse contexto, airma-se que a realização de uma reforma agrária ampla e de qualidade, capaz de alterar as atuais estruturas do campo, não passou de simples promessa, icando clara a opção dos distintos governos pelo modelo do “agronegócio”. Com isso, evidencia-se a questão atual a partir do agravamento da contradição marcada pelos interesses do capital em detrimento dos interesses de milhões de trabalhadores rurais. Além da concentração fundiária, estão presentes a exploração do trabalho, as migrações, as mortes, a perda da biodiversidade, a destruição dos solos e das águas, a desnacionalização das terras, a insegurança alimentar, a ampliação dos conlitos agrários, a exclusão social etc., as quais coniguram a nova face perversa do modelo de desenvolvimento rural sem reforma agrária. Em síntese, a crítica à política agrária das últimas décadas airma que ela foi eficaz apenas para os latifundiários. Com isso, trata-se de uma pequena política subalterna que apenas serve para iludir, uma vez que a reforma não foi e não está sendo prioridade política, porque a primazia do modelo rural é o agronegócio exportador. Certamente haveria um número expressivo de outros autores que continuam analisando a questão agrária no contexto atual do desenvolvimento rural brasileiro, ao mesmo tempo em que defendem a reforma como um instrumento eicaz para se alterar a realidade social e econômica, conforme destacado anteriormente. Optou-se apenas por sistematizar as teses anteriores para apontar os argumentos centrais utilizados pelos defensores da pertinência da reforma agrária no desenvolvimento do país. O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 407 3 TESES CONTRÁRIAS À NECESSIDADE DA REFORMA AGRÁRIA Todo autor que se debruça e estuda por um longo período um determinado tema – como é o caso da questão agrária brasileira – precisa ser interpretado levando-se em consideração o acúmulo de suas análises em um determinado período de tempo. Isso pressupõe ao analista observar cuidadosamente a trajetória interpretativa desse autor no sentido de captar possíveis releituras de processos sociais que poderão inluenciar e/ou alterar a linha analítica que vinha sendo seguida. É exatamente essa tentativa que será feita nesta seção ao se procurar sistematizar as teses e proposições sobre a reforma agrária de alguns dos mais renomados cientistas sociais brasileiros que ao longo das últimas duas décadas deram grandes contribuições ao debate. Registre-se, desde logo, que não se trata aqui de fazer qualquer juízo de valor sobre essas proposições, ao contrário, o que se pretende é sistematizar e esclarecer os principais argumentos acadêmicos que sustentam essas proposições que caminham em sentido oposto àquelas dos autores discutidos na seção anterior. 3.1 As teses de Zander Navarro Há mais de duas décadas o sociólogo Zander Navarro, professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atualmente pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vem estudando e problematizando a temática da reforma agrária brasileira numa perspectiva analítica dos processos sociais agrários, tendo como io condutor a ação de movimentos sociais – em especial do MST – e o papel da reforma no novo cenário rural do país. Zander Navarro, assumindo uma posição transparente e aberta, porém crítica e dura sobre os dois temas, tem insistido em suas teses que procuram mostrar as inconsistências das argumentações que defendem a atualidade da reforma agrária airmando: É forçoso veriicar que muitos de nós continuam com a mente nos anos sessenta, ainda procurando “latifúndios” nas regiões rurais, propondo “reforma agrária” quando quase ninguém mais demanda esta política e usando categorias analíticas e discursos que morreram tempos atrás. Falar em “questão agrária” e ressuscitar os termos do marxismo clássico, por exemplo, beira a insanidade analítica, e precisamos ser mais ousados, criativos e não temer enfrentar propostas interpretativas novas, mesmo que possam parecer demasiadamente heterodoxas (Navarro, 2012). Para tanto, o autor entende que “precisamos ter a abertura necessária para duas iniciativas e ações novas e diferentes do que estamos fazendo: a) no campo da interpretação dos processos sociais em desenvolvimento no mundo rural, e b) na ação governamental” (Navarro, 2012).2 2. Conteúdo extraído de mensagem eletrônica enviada no mês de junho de 2012 a um conjunto de endereços eletrônicos que o autor denomina comunidade de agraristas. 408 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Nesta síntese interpretativa das proposições de Navarro em epígrafe nos interessam as questões relativas ao primeiro item. Neste caso, observa-se que duas grandes temáticas emergem para o debate: por um lado, a análise das transformações em curso no mundo rural e, consequentemente, o papel da reforma agrária neste cenário de mudanças e, por outro, os autores sociais envolvidos neste processo, particularmente o MST. São amplamente conhecidas por todos os analistas “agraristas” as teses extremamente críticas a esse movimento social que o autor em apreço vem desenvolvendo desde a década de 1990. Neste caso, destaca-se artigo emblemático divulgado eletronicamente no mês de maio de 2000, sob o sugestivo título de MST: decifrar é preciso. Neste ensaio, indagando-se sobre o que é o MST, Navarro airma: (...) embora familiar, pois onipresente nos momentos de crise social, parece que poucos conhecem, de fato, a organização dos sem terra, causando algum espanto a persistência de sua desenvoltura política. Para compreendê-la, é necessário apresentar um conjunto de proposições sobre o MST e sua ação e características nos anos mais recentes, que talvez desvendem parte de seus mistérios (Navarro, 2000, p. 1). Na sequência, são desenvolvidas oito teses para explicar esse movimento social rural com o objetivo de “tensionar” o debate sobre o papel político do MST, organização que o autor considera estar desenvolvendo análises equivocadas sobre o cenário das áreas rurais brasileiras. O problema, segundo Navarro, é que esse “insensato equívoco” leva de roldão outras organizações sociais rurais e até mesmo partidos políticos. Obviamente que tal artigo provocou impactos e gerou inúmeras críticas que o obrigaram a mergulhar mais profundamente nesta temática especíica relativa ao papel do MST. Assim, é publicado no ano de 2002 o artigo Mobilização sem emancipação: as lutas sociais dos sem terra no Brasil, momento em que Navarro aprofunda suas análises sobre a trajetória da principal organização social que reivindica a reforma agrária no Brasil, destacando-se que o MST e seus aliados utilizam o argumento de ordem moral para justiicar a reforma, ou seja, a penalização do latifúndio. Para o autor, esta é uma proposição de difícil operacionalidade no jogo político, uma vez que a moralidade raramente impera.3 Breves considerações sobre aspectos relativos às interpretações a respeito do MST foram feitas para mostrar o quanto este debate é inconcluso e merecedor de outras interpretações, o que foge aos objetivos deste ensaio. Desta forma, serão apresentados a seguir as interpretações de Navarro sobre os processos sociais rurais e o lugar da reforma agrária neste debate. 3. Este assunto continuou sendo discutido em artigo para o jornal Folha de São Paulo, publicado dia 5 dezembro de 2009. O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 409 Inicia-se a abordagem pelo final, ou seja, pela principal conclusão do autor: “o tempo da reforma agrária acabou”. Esta frase de impacto sintetiza sua argumentação sobre o tema: (...) se fosse apenas por uma decisão exclusivamente presidencial, nem mesmo teríamos mais ações em reforma agrária. Lula não interrompe tal programa em face das inevitáveis consequências políticas e do poder de inércia que tem tal bandeira na visão de alguns setores sociais, incapazes de perceber que o mundo rural brasileiro mudou radicalmente nos últimos 30 anos. Este relativo distanciamento da parte principal do governo em relação à reforma agrária relete o que todos sabemos, mas ninguém parece ter coragem de dizer claramente: o tempo histórico da reforma agrária passou (Navarro, 2007).4 A argumentação posta desta forma obriga que se recuperem as teses centrais do autor sobre as mudanças das últimas décadas que ocorreram no campo para situar adequadamente sua airmação explicitada no parágrafo anterior. As análises de Navarro sobre esse processo de mudanças, embora não sendo novas, ganharam maior dimensão no cenário social e político brasileiro na última década. Assim, já em artigo de 2002, Navarro airma que os anos recentes introduziram transformações importantes no mundo rural, representando: (...) por um lado, um golpe mortal na dominação social e econômica da grande propriedade territorial, em amplas regiões rurais. Por outro lado, contudo, as mesmas modiicações podem ter produzido a liquidação deinitiva da reforma agrária como uma reivindicação nacional e decisiva para os destinos históricos do país (Navarro, 2002, p. 2). Na sequência, o autor apresenta um conjunto de fatores que, em sua interpretação, corroeram a proeminência política e econômica da grande propriedade rural. Neste caso, destacam-se o encurralamento econômico e inanceiro da atividade agrícola, em especial da agricultura empresarial; a perda de importância da chamada bancada ruralista; a redução do peso político da agricultura empresarial e da grande propriedade territorial nas grandes decisões nacionais; a urbanização acelerada das últimas décadas e seus impactos na vida rural que também se urbaniza; o sistema de produção agropecuária e de comercialização garantiu o abastecimento alimentar, dentre outros citados. Seguindo a mesma lógica interpretativa, Navarro mostra em artigo de 2011 que as transformações operadas nas áreas rurais no período recente impuseram: (...) uma dramática inlexão na questão agrária no Brasil, virtualmente sepultando-a em sua versão clássica (...) já que as áreas rurais experimentaram, especialmente a partir da segunda metade dos anos noventa, uma silenciosa e profunda revolução econômica-produtiva que rapidamente enraizou uma sociabilidade distinta do 4. Chamam atenção alguns equívocos de intérpretes desses “novos clássicos” do debate agrário, ao não perceberam a sutileza do que realmente está sendo defendido. É o caso especíico de Valente (2009, p. 108). 410 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil passado agrário e suas representações – ainda que estas se mantenham em boa parte do imaginário coletivo nacional (Navarro, 2011, p. 98-99). Com isso, airma que os últimos quinze anos apresentaram a “formação de uma geração de agricultores com aguçada sensibilidade capitalista motivados pela elevação dos preços das mercadorias agrícolas no mesmo período, crescimento estimulado pela demanda internacional, particularmente a chinesa” (Navarro, 2011, p. 99). Percebendo que este não é um movimento homogêneo e que a agricultura beneiciada foi a de maior escala, o autor faz a ressalva de que os produtores de menor porte não icaram totalmente à margem deste processo de expansão capitalista. Para tanto, destaca o papel crucial do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), as políticas sociais e, mais recentemente, a política de transferência de renda. Ou seja, a pobreza rural não foi totalmente esquecida. Este processo de mudanças levou a um crescimento expressivo da produtividade dos fatores, tanto na agricultura como na pecuária, em função de “uma notável aceleração de incorporação tecnológica a partir de meados da década de 1990” (Navarro, 2011). Assim, essa nova realidade rural mostra que praticamente não existe mais uma questão agrária no Brasil, mesmo que os padrões de desigualdade social permaneçam praticamente intocados, ilustrados pela distribuição da propriedade fundiária (...) isto porque quando considerado apenas o fator terra, esta não é mais contradição que tem a mesma dimensão do passado e gradualmente nos acostumamos com este padrão fundiário” (Navarro, 2011, p. 101-102). As razões explicativas para esse comportamento, segundo o autor, decorrem da combinação das mudanças antes mencionadas com algumas tendências em andamento. Neste caso, destacam-se: a já mencionada urbanização do país, fator que traz consigo o corolário da inexistência de demanda social para mudar a estrutura fundiária atual que deverá manter-se concentrada; a expansão da demanda internacional para a agricultura comercial brasileira, fato que a tornará mais robusta e espraiará uma sociabilidade capitalista; a manutenção de um padrão agrário bimodal com ampla dominação da agricultura comercial nas diversas regiões do país, sendo que apenas nos três estados sulinos haverá espaço para agricultura de menor porte; e as potencialidades produtivas da agropecuária do país e o potencial derivado da bioenergia aprofundarão ainda mais a acumulação de capital gerada pela agricultura. Para o autor, o resultado combinado deste processo em curso fez com que a questão agrária brasileira praticamente deixasse de existir. [e apenas] alguma dimensão de conlito social deverá permanecer, mas vai se tornando residual com o passar do tempo, reduzindo-se à esfera trabalhista, nas poucas regiões O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 411 onde permanece importante um contingente de trabalhadores rurais assalariados... enquanto as outras dimensões de conlito (no interior das cadeias produtivas e entre Governo Federal e interesses setoriais) continuarão ocorrendo. Passivos históricos, como a apropriação fraudulenta da terra em diversas regiões e em épocas distintas, a esta altura, não tem a menor possibilidade política de serem revistos, tendendo a ser deinitivamente legalizados (Navarro, 2011, p. 105-106). A consequência principal desse processo, segundo o autor, é que a problemática social deixou o campo e foi para as cidades e, com isso, a questão agrária tradicional começou a entrar nos livros de história “como uma faceta do passado” (Navarro, 2011). Isto porque as mudanças ocorridas no campo brasileiro, anteriormente mencionadas, alteraram totalmente a natureza da demanda agrária. Se esta ainda existir, ela precisaria lidar com apenas três temas: o poder econômico dos grandes grupos agroindustriais, que sem regulação estatal formarão setores oligopolizados; a face trabalhista, que é restrita apenas ao tema dos direitos historicamente negados pelos proprietários de terra e visa ao estabelecimento de relações de trabalho “consentâneas com a modernidade capitalista”; e a face ambiental, que será a mais problemática nos anos vindouros devido às ameaças decorrentes das mudanças climáticas. Para demonstrar a não necessidade de uma política pública para a reforma, que no passado simbolizava a própria questão agrária, o autor destaca dois aspectos centrais. Por um lado, processos de reforma agrária ocorreram, em sua maioria, entre os anos cinquenta e setenta do século passado. Posteriormente saíram de moda, sendo o Brasil o único país que insiste com tal política (...) e por outro, porque a reforma agrária signiica transferir direitos de propriedade de forma irrecorrível, sendo por isto mesmo que apenas o Estado pode implementá-la e operá-la. Desta forma, com as ondas democratizantes do período contemporâneo, tais atos de força foram se tornando crescentemente implausíveis do ponto de vista do jogo político democrático (Navarro, 2011, p. 107-108). Em síntese, com isso icou demonstrado pelos argumentos utilizados pelo autor o anacronismo de uma política de reforma agrária no Brasil, tanto do ponto de vista técnico como político, objetivo que se sobressai em sua produção acadêmica recente. 3.2 As teses produtivistas conservadoras Durante o pós-guerra e mais fortemente durante o processo de modernização da agricultura brasileira, consolidou-se um grupo de pesquisadores e acadêmicos liderados, em sua maioria, por engenheiros agrônomos com formação parcial em economia e também por economistas Formados sob o domínio do pensamento neoclássico, passaram a interpretar a realidade agrária brasileira exclusivamente a 412 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil partir da ótica da produtividade dos fatores de produção, em especial da tecnologia, conformando aquilo que muitos estudiosos denominam “grupo dos produtivistas”. Não é objetivo deste estudo fazer uma revisão de todo esse processo que já está fartamente documentado pela literatura especializada. Apenas pretende-se ressaltar a importância que algumas instituições e pessoas tiveram nesta trajetória, com destaque para o caso da Embrapa e de seu grupo de pesquisadores atrelados a esta linha interpretativa. Neste caso, destaca-se o papel aglutinador deste pensamento conservador do engenheiro agrônomo Eliseu Alves, que foi presidente da Embrapa entre 1973 e 1985,5 período em que as teses anteriormente mencionados se consolidaram entre os analistas deste campo. Recentemente este pesquisador divulgou alguns estudos em que as abordagens referidas aparecem com maior clareza. Tomando como referência o Censo Agropecuário do IBGE de 2006, separaram-se do universo total de estabelecimentos agropecuários do país aqueles estabelecimentos com renda bruta6 acima de dez salários mínimos (SMs) daqueles com renda entre dois a dez SMs de referência e daqueles com renda bruta inferior a dois SMs. Neste último caso, chegou-se à conclusão de que existem 3.775.826 estabelecimentos nesta condição no universo total de 5.175.489 estabelecimentos existentes no país no último censo. Além disso, pelo critério da renda bruta, concluiu-se que o primeiro grupo de estabelecimentos responde por aproximadamente 85% do valor da produção total, enquanto o grupo dos mais de 3 milhões de estabelecimentos respondem por menos de 5% da produção total (Alves e Rocha, 2010).7 Feita esta constatação a partir dos dados censitários, partiu-se para a elaboração de um diagnóstico da realidade rural brasileira. Assim, chegou-se à conclusão de que há claramente dois grupos de agricultores: os bem-sucedidos e os malsucedidos, sendo que o feito dos primeiros se deve à modernização da agricultura. Para os autores, como a pequena produção gastou muito menos por hectare, ela deve estar sofrendo discriminação pelo mercado ou discriminação que depende da personalidade do agricultor (...) fazendo com que os produtores malsucedidos apresentem produtividade por hectare e total dos fatores muito menores que os bem-sucedidos. Decorre daí que os malsucedidos não sabem administrar a tecnologia (Alves et al., 2012, p. 45). 5. Registre-se que este pesquisador continua exercendo as funções de assessor do presidente da empresa até os dias de hoje. 6. Os autores justiicam o uso da renda bruta pelo fato de ter “a vantagem de escapar do problema relativo às imputações em terra, benfeitorias etc.” (Alves e Rocha, 2010, p. 277). 7. Para os autores, o potencial migratório rural-urbano encontra-se justamente neste grupo majoritário. O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 413 Os autores também encontraram justiicativas para o problema: (...) o insucesso deve-se a escolhas errôneas de tecnologias e a má administração do estabelecimento e da tecnologia. Deve-se também a restrições intrínsecas ao próprio produtor (muito conservador quanto ao risco) e as restrições externas, principalmente do crédito, que impedem a exploração adequada dos recursos do estabelecimento (Alves et al., 2012, p.47). Ou seja, a culpa é dessa massa de pequenos produtores que são “conservadores” e não souberam se modernizar. Ora, quem acompanhou atentamente o que ocorreu durante o processo de modernização da agricultura brasileira sabe perfeitamente distinguir a supericialidade desse diagnóstico diante da realidade vivenciada por milhões de famílias de trabalhadores rurais que foram excluídas do processo produtivo exatamente pelo caráter e natureza do processo modernizante.8 Chama atenção que o autor e seu grupo de pesquisadores sequer mencionam nessas análises a problemática agrária, a não ser pontualmente quando airmam que “a inluência da terra é pequena em relação à da tecnologia no que diz respeito ao valor da produção” (Alves et al., 2012, p. 46). Isto porque “a área do estabelecimento tem pequeno poder para explicar a concentração. Nesta explicação, a maior responsabilidade é da tecnologia” (op. cit., p. 61). Diante do cenário diagnosticado, foram propostas duas estratégias distintas. Assim a saída para o grupo de agricultores com renda bruta entre dois e dez SMs (ao redor de 1 milhão de estabelecimentos) “é fazer cada hectare produzir mais, ou seja, usar tecnologias que poupem a terra (...) Portanto, a mecanização, mesmo que de pequeno porte, tem que vir ao lado da tecnologia bioquímica. Isso exige assistência técnica de boa qualidade, aliada ao crédito rural” (Alves e Rocha, 2010, p. 284). Isto é, trata-se de modernizar também esta pequena parcela à luz da trajetória daquele segmento minoritário que apresenta renda bruta elevada. Já para o grupo malsucedido (3.775.826 estabelecimentos agropecuários) a solução para as baixas condições de renda não virá pela agricultura, segundo os autores. Para este grupo “forte dose de política social, de caráter assistencialista, se faz necessária para manter as famílias a ele vinculadas nos campos” (Alves e Rocha, 2010, p. 288). Assim, os autores defendem que este enorme grupo de produtores rurais deveria ser atendido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e não pela estrutura institucional agrária – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Em síntese, pode-se afirmar que na essência as análises e proposições deste grupo ignoram totalmente a história agrícola brasileira, icando presas ao desempenho de alguns indicadores (em especial da renda bruta) questionáveis 8. Esse capítulo da história agrária brasileira está fortemente documentado na literatura especializada. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 414 para se explicar a lógica e os resultados dos complexos processos em curso no meio rural do país. Desta forma, ignorar a inluência da estrutura agrária nesta dinâmica analítica é tentar explicar a realidade atual de forma extremamente supericial e por parâmetros técnicos que nunca estiveram acessíveis à maioria dos agricultores do país, especialmente durante o período em que uma minoria teve capacidade e apoio estatal para transformar suas estruturas produtivas. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste capítulo, foi possível perceber as modiicações sofridas pela trajetória histórica que marcou o debate sobre o papel da reforma agrária na sociedade brasileira. Se nas décadas iniciais do período do pós-guerra ela era considerada como um dos instrumentos mais decisivos na deinição dos rumos do desenvolvimento do país, hoje se veriica que, diante das transformações estruturais ocorridas na esfera rural, há distintas concepções sobre o papel da reforma no debate do modelo de desenvolvimento que se quer construir. Assim, por mais que se possa tergiversar sobre alguns aspectos, a questão central que se coloca no momento é o que fazer com o universo de 3.775.826 estabelecimentos agropecuários que são explorados por agricultores familiares e que se encontram fragilizados socialmente. Essa não é uma questão menor, uma vez que estes estabelecimentos respondem por 73% do total de estabelecimentos do país. É neste cenário de fundo que se move o debate acadêmico apresentado nas seções anteriores, pois além de ele ser bem menos incipiente que nos períodos antecedentes, observa-se também que está muito mais afeito à ideologia dominante emanada pela concepção do agronegócio do que pela realidade efetiva do mundo rural. Neste sentido, não é de se estranhar a existência de teses que passaram a defender a inviabilidade da reforma agrária enquanto um mecanismo eicaz para promover, além da produção agropecuária, o combate à pobreza e à desigualdade social que impera neste espaço geográico. Estas teses, na verdade, procuram estabelecer um novo peril sobre o papel da reforma agrária no desenvolvimento brasileiro, uma vez que a realidade atual não a justiicaria sequer como instrumento para solucionar os problemas sociais rurais, tendo em vista que a “modernização conservadora” já resolveu o problema do capitalismo agrário brasileiro, problema que tanto preocupava os analistas clássicos que a interpretaram como um dos pilares do modelo de desenvolvimento do país. É nesta direção que devem ser analisadas as teses conservadoras que buscam isolar o problema agrário da dinâmica rural, ou seja, tenta-se buscar a solução para esse enorme contingente de pessoas fora da realidade agrária, como se o fato de destinar parcos recursos de programas assistenciais fosse capaz de resolver um O Debate Atual sobre a Pertinência da Reforma Agrária no Brasil 415 problema histórico de pobreza e de exclusão social, cuja matriz está diretamente relacionada às condições de acesso a dois bens essenciais: terra e água. Não é por menos que o problema se revela de forma mais expressiva exatamente nas regiões onde o acesso a esses dois bens naturais foi historicamente negado. Chama atenção, neste caso, que setores importantes do próprio Estado brasileiro passaram atualmente a compartilhar e a reproduzir essa interpretação analítica. Com isso, o resultado concreto é que a reforma agrária saiu da agenda governamental, inclusive com o abandono do uso dos dispositivos constitucionais, os quais poderiam auxiliar na execução de um processo massivo de reforma no país. Dessa forma, defende-se que para este público basta apenas a oferta de um conjunto de políticas públicas que podem tranquilamente ser caracterizadas como “políticas sociais compensatórias”, uma vez que elas têm apenas a inalidade de amenizar as mazelas do modelo de capitalismo agrário implantado no país. No entanto, como visto, há um grupo expressivo de pesquisadores e estudiosos da questão agrária brasileira que entende que a reforma ainda tem um papel importante a desempenhar nos rumos do desenvolvimento do país, especialmente em termos de auxiliar a equacionar o problema demográico, bem como atuar tanto na esfera produtiva como na melhoria das condições sociais e econômicas das populações rurais fragilizadas. Este estudo mostrou ser esta concepção (defesa da reforma agrária) o elo aglutinador entre esses diferentes grupos, não escondendo a existência de divergências entre esses intérpretes quanto ao caráter e abrangência da reforma. Em grande medida, o que sustenta a argumentação dos defensores dessa posição são dois fatores fundamentais: por um lado a existência de 90 milhões de hectares de terras improdutivas e, por outro, a existência de 4 milhões de famílias de sem terras, as quais sobrevivem em regiões que apresentam elevados índices de desigualdades econômicas e sociais. Por isso, entendem que não se pode prescindir do uso de um instrumento eicaz – como é o caso da reforma agrária – para tentar reverter este cenário, processo implementado pela maioria dos países que hoje são considerados desenvolvidos. Finalmente, deve-se frisar que do ponto de vista dos movimentos sociais rurais, as teses anteriormente discutidas são frequentemente rejeitadas, uma vez que eles defendem uma reforma agrária com dupla inalidade: por um lado que atue no sentido de destruir o poder político dos latifúndios e, por outro, que promova uma alteração completa da estrutura agrária do país, no sentido de rediscutir o próprio modelo de produção agrícola que, como se sabe, cada vez mais, torna-se injusto e ecologicamente insustentável. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 416 REFERÊNCIAS ALVES, E. et al. Lucratividade da agricultura. Revista de política agrícola, ano 21, n. 2, p. 45-65, abr./maio/jun. 2012. ALVES, E.; ROCHA, D. P. Ganhar tempo é possível? In: GASQUES, J. G.; RIBEIRO VIEIRA FILHO, J. E.; NAVARRO, Z. (Org.). A agricultura brasileira: desempenho, desaios e perspectivas. Brasília: Ipea, 2010. 298 p. CARVALHO FILHO, J. J. O. esvaziamento da reforma agrária sob Lula. Folha de S. 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Entre as transformações que vêm ocorrendo, uma das que se tornam relevantes é a questão do desenvolvimento rural através do agronegócio e do investimento no setor industrial, com destaque na economia e na participação nas exportações. Estes investimentos, ao mesmo tempo que emergem como um dos grandes negócios da economia capitalista, apresentam problemas na área da degradação ambiental, abrindo possibilidades de conlitos socioambientais pelo acesso aos recursos naturais. Tal relação entre território e desenvolvimento ocorre dentro de uma forma de dominação institucionalizada por meio de políticas públicas que vêm promovendo uma mudança no modo como se organizam a desigualdade e o aumento da pobreza rural. Nessa perspectiva, os conlitos ambientais surgem como espaços de apropriação material e simbólica, onde se forma o território, que marcam as disputas sociais e políticas, já que o modo de distribuição de poder pode ser objeto de contestação entre os grupos. Como bem destaca Acselrad (2004, p. 24-25): O conlito ambiental surgiria de eventuais rupturas do acordo simbiótico entre as diferentes práticas sociais dispostas no espaço. Pois dadas certas combinações de atividades, o “meio ambiente” poderia constituir um veículo de transmissão de impactos desejáveis, disseminados pela água, pelo ar, pelo solo e pelos sistemas vivos, capazes de fazer com que o desenvolvimento de uma atividade comprometa a possibilidade de outras práticas se manterem. 1. Professora do Departamento de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento em Meio Ambiente da UFPE desde 1983. 420 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Acrescenta-se a essa condição que o real signiicado do espaço – já que ele é a base material e simbólica na qual se desenvolvem as práticas sociais numa sociedade marcada pela desigualdade de classes – constitui-se, dessa maneira, na relação de poder e de conlitos sociais. Isso faz com que o espaço criado pela relação de poder seja percebido como uma área territorial. Esses conlitos reletem a problemática do trabalhador rural e as divergências que marcam as relações sociais no campo, sendo fundamental a análise e a abordagem do desenvolvimento no âmbito rural, questão que deve interessar a toda a sociedade brasileira. A relexão sobre o processo de globalização que ora domina o mundo, como destaca Andrade (1995), leva ao questionamento sobre a forma como esta globalização vem sendo imposta aos países, em função dos interesses dos grandes grupos econômicos. Cabe analisar até que ponto este processo da globalização e do chamado desenvolvimento sustentável, em um país de fortes diferenças regionais e desigualdades de recursos naturais, de renda e de formação étnico-cultural, atende a todos os segmentos sociais. É necessário planejar o processo de participação baseado em uma política de globalização e de integração com países vizinhos, a im de não se acentuarem as desigualdades existentes, não só as sociais, mas também as territoriais. Deriva daí a importância da análise do meio rural e de se produzir um conhecimento cientíico comprometido com o meio ambiente e com a questão socioambiental, com base no conhecimento da realidade e dos anseios da população. Sendo assim, destaca-se que a organização política e econômica realizada dentro da lógica capitalista no processo de globalização atual estabelece a racionalidade econômica e caracteriza-se pelo desajuste entre as formas e os ritmos de extração, exploração e transformação dos recursos ambientais e das condições ecológicas. Quando o sistema político formado pelos governos e pelas empresas utiliza os sistemas técnicos contemporâneos e o seu imaginário para produzir a atual globalização, aponta-se para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica indispensável ao funcionamento do sistema como um todo (Santos, 2002). Essa situação de depredação do ambiente e dos homens faz emergir conlitos sociais, numa relação de dominação e poder, em que as relações sociais de produção são determinantes sobre as condições orgânicas dos seres vivos e dos demais recursos, assim como a subserviência dos diferentes tipos de cultura ao modelo de sociedade dos países centrais. O Espaço Rural na Contemporaneidade 421 Os processos de destruição ecológica mais devastadora, bem como a degradação socioambiental (perda de fertilidade dos solos, marginalização social, desnutrição, pobreza e miséria extrema), têm sido resultado das práticas inadequadas do uso do solo, que dependem de padrões tecnológicos e de um modelo depredador de crescimento e permitem maximar lucros econômicos no curto prazo, revertendo seus custos para os sistemas naturais e sociais (Lef, 2001). A racionalidade econômica pode ser percebida, desta forma, a partir da função e do domínio que o homem dá à técnica, como condição fundamental de desenvolvimento do sistema capitalista. Essa escolha política ocorre em detrimento da capacidade do homem de pensar e de agir, fazendo assim surgir a crise ambiental marcada pela degradação do ambiente e do homem. É no aspecto político e cultural que se fundamenta o modo de produção capitalista, estabelecendo assim uma maneira de pensar a partir do domínio humano em detrimento dos demais estilos de vida e, consequentemente, da dominação dos outros homens nas relações sociais de produção. Neste sentido, considera-se que as transformações pelas quais passa o espaço rural brasileiro recaem com signiicativos impactos sobre suas funções e conteúdo social, que à luz da relação cidade-campo não pode mais ser compreendido separadamente. Essa política de integração ocorre a partir da concepção de uma política territorial, em que a deinição de território rural visa fortalecer os segmentos sociais. É importante com isso destacar que a política de desenvolvimento sustentável para o espaço rural relete o contexto dos movimentos sociais e a crítica ao modelo produtivista de modernização agrícola que emergiu nos anos 1980. Na concepção de Wanderley (2009), os estudos rurais no Brasil vão dar um grande salto, especialmente sob a inluência de três fatores: a consolidação dos movimentos sociais e de sua capacidade de formular seus próprios projetos e expressar socialmente suas demandas; o aprofundamento da crítica ao modelo produtivista de modernização da agricultura; e a crise dos grandes paradigmas das ciências sociais. O estudo do mundo rural deve incluir a análise de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento sustentável e não daquelas direcionadas para um enfoque setorial, isto é, para o desenvolvimento rural, em função das potencialidades do setor agrícola, que se traduz pelos processos de industrialização da agricultura e de urbanização do campo, em consequência de sua articulação com o mundo urbano-industrial dominante. Trata-se de políticas de desenvolvimento que possibilitem a integração complementar campo-cidade, em que se reairma a pertinência do rural como um espaço especíico, com a preservação da natureza e a presença de comunidades e grupos, nos quais predominam as relações de proximidade e interconhecimento. 422 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 2 O ESPAÇO RURAL DA MATA SUL DE PERNAMBUCO: ANTECEDENTES Ao se discutirem as interligações entre o rural e o urbano busca-se o entendimento desses ambientes apoiado num conjunto de elementos que permitam a leitura de um espaço num determinado tempo, considerando que a realidade é sujeita a constantes transformações e seu movimento deve ser entendido em uma perspectiva histórica. Neste sentido, nos períodos iniciais da colonização brasileira a questão principal que se impunha para a agricultura e a sociedade colonial era a falta de mão de obra e de alimentos, quando o produto exportador básico estava em alta. Nesse período, exigia-se uma ação do governo colonial no sentido de garantir uma produção alimentar num povoado de fronteira e nas franjas de grandes fazendas, para incentivar a expansão de pequenas fazendas nas terras incultas dos latifúndios (Abramovay, 2000; Martins, 1979). No período imperial, a interligação e a ruptura entre latifúndio e escravatura caracterizaram o sistema de produção agrícola. Os conlitos entre proprietários de solos improdutivos e agricultores sem posse da terra, iniciados no período colonial, se aprofundaram nessa época, especialmente com a Lei no 601/1850, que regulamentava a propriedade privada das terras no Brasil. Neste tempo, também se registram as primeiras experiências de produção em regime de colonato, com migrantes europeus, em pequenas propriedades. Na Nova República, entre os anos de 1940 e meados de 1960, a agricultura passou a ser analisada, de forma secundarizada pelos demais setores da economia brasileira, como arcaica, e o latifúndio, como o símbolo do atraso. Este debate levava à ideia de uma reforma agrária para o capitalismo e de uma via nacional de desenvolvimento capitalista no campo para criar o mercado interno e viabilizar a indústria, gerando divisas que sustentassem o prosseguimento da industrialização e acelerassem a formação de uma mão de obra livre para o mercado. Nesse período Furtado (1989) analisa a reestruturação da economia capitalista, em que se desmantelavam as velhas estruturas coloniais e se criavam as bases do que seria a Comunidade Econômica Europeia (CEE), ao se realizarem debates orientados no sentido de reduzir os obstáculos ao intercâmbio de manufaturas entre os países industrializados. Diante dessas circunstâncias, Furtado (1989) destaca a política de desenvolvimento para o Nordeste, que necessitava de mudança na orientação geral, em que a ação do governo deveria privilegiar a produção de alimentos, tanto no semiárido como nas terras úmidas litorâneas, monopolizadas pela cana-de-açúcar, criando as bases de uma industrialização. O Espaço Rural na Contemporaneidade 423 A questão agrária no país historicamente articulou desafios de âmbito econômico e sociopolítico. No Nordeste, a concentração de terras atendia à estrutura da produção de exportação e ao controle social dos trabalhadores. Segundo Andrade (1997, p. 13), os principais problemas identiicados na realidade rural nordestina assim se apresentam: (...) o predomínio do latifúndio, a baixa utilização da terra, a diiculdade de acesso do produtor à propriedade e à posse da terra, os baixos níveis da produção agrícola, a orientação da política governamental estimulando a produção para a exportação, e a assistência aos grandes e médios produtores, em detrimento dos pequenos produtores. As políticas territoriais brasileiras no século XX produziram muitos custos de ordem socioeconômica, cultural e ambiental. E mesmo sendo consideradas como tentativas de integração social, segundo Andrade (1997), observam-se ameaças de fragmentação do território causada pelas relações entre classes sociais e o espaço ocupado e dominado com grande interferência internacional. O processo de reestruturação produtiva e territorial no Nordeste reforça a realidade dialética, o que denota alguns subespaços dinâmicos, onde se podem observar os impactos negativos em termos sociais, territoriais e ambientais. Como já explicitado, um dos resultados do processo de territorialização do capital é o acirramento da dialética dos espaços agrícolas, formando-se alguns arranjos territoriais produtivos que vêm contribuir na desintegração dos espaços agrícolas nordestinos. Tal fragmentação dos espaços aumenta a diferenciação na lógica da sua organização, como pode se observar na seletividade de distribuição das políticas públicas e dos sistemas de objetos, fortalecendo as diferenças e reforçando, desta forma, a existência de vários nordestes (Andrade, 2001; Santos, 2002). Identiicam-se áreas de atração e repulsão populacional causadas pelo desenvolvimento agrário desigual com concentração de terras; a questão das terras improdutivas; ausência de políticas agrárias e agrícolas; migração do trabalho rural para outras regiões e frentes de trabalho; e ausência de investimentos na agricultura irrigada e em outras ações para o enfrentamento do problema climático, como perenização de rios e perfuração de poços e cacimbas. Neste sentido, o que se pode ressaltar e deduzir da obra do professor Manuel Correia de Andrade sobre o Nordeste brasileiro, em sua abordagem sobre a questão social da modernização agrária, é uma crítica ao desenvolvimento do capitalismo no campo, que se fundamenta no aumento da produtividade social do trabalho agrícola. Conforme apontado pelo autor, é por meio de novas tecnologias e novas formas de organização e controle, sem a participação das pessoas trabalhadoras que habitam e vivem no rural nordestino, que vem se tornando precária a condição de vida do trabalhador rural que compõe a agricultura familiar. 424 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Essa condição vem sendo observada por intermédio do planejamento e da incrementação de políticas de incentivo à pluriatividade, considerada atividade não agrícola executada pelos(as) agricultores(as) da unidade de produção familiar e apoiada por políticas públicas destinadas ao campo. Estas políticas de desenvolvimento que visam atender à agricultura familiar de baixa renda são uma discussão antiga e, ao mesmo tempo, atual, pois além de precarizarem o acesso à terra e ao trabalho ainda fragmentam as pessoas do rural, promovendo maior desigualdade social e fragilizando seus direitos sociais adquiridos por meio de lutas e conlitos por um desenvolvimento inclusivo e sustentável. A pluriatividade só pode ser entendida no contexto de política de modernização da agricultura e da sociedade fordista, decorrente da ação de uma categoria proissional de agricultor(a) que vivia exclusivamente da agricultura, mas ao entrar em crise passa a se ajustar via estratégias não agrícolas nas atividades de prática social. A condição pluriativa do(a) trabalhador(a) rural, provocada pelo esgotamento do modelo de produção produtivista fordista, deve ser considerada, ao mesmo tempo, conjuntural e estrutural, e essas práticas são estratégias enfrentadas em períodos de crise por segmentos da população rural (Carneiro, 2006). No caso especíico em estudo, em face dos conlitos sociais pela posse da terra ocorridos na região da Mata Sul de Pernambuco desde a década de 1960, e após o golpe militar de 1964, o regime militar promoveu uma reforma agrária baseada no então criado Estatuto da Terra,2 viabilizado por uma política de crédito rural subsidiada que modiicou o peril produtivo da agricultura sem atenuar a concentração da propriedade e a posse da terra. Incentivou, dessa forma, a liberação da mão de obra do meio rural e a abertura de mercado para os produtos industrializados via mudança do padrão tecnológico e transformação das relações de trabalho. Este processo é denominado modernização conservadora – desigual entre regiões e produtos, além de parcial e excludente no que diz respeito aos seus efeitos social e ecologicamente danosos nos impactos sobre o solo e demais recursos naturais. Nesse período, os pequenos produtores rurais foram excluídos do processo, perdem suas terras e são desapropriados de suas áreas inundadas por barragens e privados de acesso a contratos de arrendamentos, parcerias e outras formas de acesso à posse da terra pelas mudanças introduzidas nas relações de produção e trabalho. São atores de um mundo rural em decomposição que foram excluídos do campo 2. O Estatuto da Terra (Lei no 4.504), promulgado em 30 de novembro de 1964, é na verdade a primeira lei brasileira, após a Lei de Terras, de 1850, que normatizou o uso da terra no país e estabeleceu as diretrizes referentes ao desenvolvimento rural. A lei está dividida em três textos: o primeiro trata das disposições preliminares, que airmam os princípios gerais e os conceitos que o inspiram; o segundo contém os dispositivos referentes ao uso da terra e à reforma agrária; e o terceiro é dedicado à Política de Desenvolvimento Rural (Wanderley, 2009). O Espaço Rural na Contemporaneidade 425 e ao mesmo tempo tiveram seu acesso bloqueado à plena vivência no meio urbano com seus serviços e suas possibilidades de participação política e mobilidade social. A compreensão das condições de reprodução da agricultura familiar brasileira contemporânea trouxe à tona a problemática da pluriatividade no território da Mata Sul de Pernambuco. Outra questão em destaque são as práticas sociais dos(as) agricultores(as) rurais, representando a dimensão da multifuncionalidade da agricultura, quando as atividades não agrícolas desse tipo de trabalho realizado se integram à dinâmica da reprodução familiar. A reorganização espacial do capital e as estratégias da execução de atividades não agrícolas – pluriatividade – usadas pelas agricultoras na unidade de produção agrícola, no território da Mata Sul de Pernambuco, reletem o projeto de reestruturação do Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS), desenvolvido pelo estado e inanciado pelo capital na região metropolitana (RM) do Recife, repercutindo no cotidiano e nas condições de vida das pessoas trabalhadoras do campo. Nesse contexto, destaca-se a região da Mata Sul de Pernambuco, que, ao se analisarem os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, coloca em evidência a importância do desenvolvimento territorial. Nos estudos e nas pesquisas do professor Manuel Correia de Andrade sobre a sustentabilidade na agricultura, discute-se e salienta-se a necessidade de um planejamento para o desenvolvimento rural sustentável em uma região foco de uma modernização dolorosa, mas com potencialidade de sustentabilidade local, desde o período colonial. Na atualidade, com as relações urbano-rural delineadas na pesquisa da Mata Sul de Pernambuco, a compreensão da realidade exigiu um esforço de aproximação da totalidade, pois a realidade não se constrói, ela é apreendida, mesmo que parcialmente, no contexto de múltiplas e complexas situações (Lefebvre, 1999). A própria forma de coleta das informações baseada na divisão políticoadministrativa das cidades para separar o rural e o urbano nem sempre permite apreender o movimento da realidade, pois tal divisão ignora sua inserção num contexto espacial especíico, numa rede mais ou menos densa de cidades em certo momento técnico e com um determinado conjunto de infraestrutura em uma formação econômico-social especíica que envolve, segundo Lefebvre (1963, p. 75): (...) O processo concreto que se desenrola a base de certo desenvolvimento das forças produtivas. O estudo de cada formação econômico-social revela a ação eicaz – política, administrativa, jurídica e ideológica – das grandes personalidades, mas nas condições e nos limites do tempo e do lugar, isto é, do modo de produção e da classe. Conforme Lefebvre, é o conteúdo socioespacial que diferencia o espaço rural e o urbano, e é o conjunto de informações que permite uma análise mais consistente das ligações do urbano e do rural, porque possibilita perceber as imbricações entre 426 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil as dimensões e, portanto, apreendê-las em sua complexidade. Lefebvre (1999) reconhece o urbano como o processo que tem como fundamento as contradições sociais derivadas das relações sociais conlituosas, relações de classe, pressupondo o papel fundamental da práxis – das práticas urbanas. Dentro da perspectiva teórico-metodológica lefebvreana, tanto a cidade quanto o processo de urbanização se apresentam enquanto movimento do urbano e expressam determinada forma e conteúdo, em contextos histórico-espaciais especíicos. Isto implica conceber o processo de urbanização enquanto movimento urbano, como condição, meio e produto ao mesmo tempo, manifestação dos conlitos entre a necessidade de capital em seu processo de (re)produção e as necessidades das sociedades como um todo. Na atualidade, o processo de urbanização em curso na Zona da Mata Sul de Pernambuco retrata uma dinâmica, onde urbano e rural permanecem como construções sociais diferenciadas, urbanidade e ruralidade. No entanto, a oposição cidade e campo atenua-se, como sugerem Santos e Silveira (2008), pela absorção no campo de tecnologias e sistemas produtivos surgidos da aplicação do conhecimento cientíico desenvolvido na cidade, manifestando-se numa nova organização territorial. 3 POLÍTICAS PÚBLICAS, DESENVOLVIMENTO E TERRITORIALIDADES NO CAMPO A questão do desenvolvimento, tomando como referência empírica as políticas públicas para o rural da década de 1990, evidencia que elas foram direcionadas para as pessoas trabalhadoras, entre elas as que trabalhavam na agricultura, consideradas como sujeito social de tais políticas. No entanto, ao analisar a temática do desenvolvimento e seus modelos alternativos, pode-se observar que estas pessoas agricultoras e os pobres rurais deixam de ser sujeito e passam a se constituir em objeto de políticas públicas de atencão e superação da pobreza rural. Na atualidade da Mata Sul de Pernambuco observa-se que estas políticas apresentam características e estratégias que podem ser consideradas como políticas de desenvolvimento endógeno, local ou territorial, tendo como modelo mais dinâmico a Política de Desenvolvimento Rural no Brasil.3 Nos últimos anos ela orienta-se pelo enfoque territorial, cuja formulação e implementação ocorre por meio da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA). Essa política tem se tornado uma estratégia inovadora de desenvolvimento 3. A Resolução no 2.191, de 24 de agosto de 2008 – Banco Central do Brasil (BCB) – e de 25 de agosto de 2008 – Diário Oicial da União (DOU), por meio do Crédito Rural, instituiu o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Esse programa é destinado ao apoio inanceiro às atividades agropecuárias exploradas mediante emprego direto da força de trabalho do produtor e de sua família. O PRONAF é a principal política do governo federal lançada desde 1995 e executada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O Programa Territórios da Cidadania foi instituído pelo Decreto no 25/2008 e tem como objetivo promover e acelerar a superação da pobreza e das desigualdades sociais no meio rural, inclusive as de gênero, raça e etnia, por meio de estratégias de desenvolvimento territorial sustentável (Brasil, 2005). O Espaço Rural na Contemporaneidade 427 institucional, concretizando-se mediante o Programa Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PDSTR), que se baseia na gestão social do território. A concepção de gestão social territorial do MDA signiica o processo pelo qual se estabelece uma nova forma de participação, negociação, alcance de consensos e democratização das decisões que deinem a natureza, o foco e as prioridades da aplicação dos instrumentos da política. Um dos diferenciais desta estratégia é a criação de espaços de legitimação da participação organizada dos atores sociais em cenários de acordos territoriais, os quais permitem estabelecer um modelo participativo de planejamento, uma estrutura institucional de participação e um tipo de gestão das decisões de política e de controle social baseada em uma renovada ortodoxia neoliberal, com ênfase no desenvolvimento. Este modelo se torna exigente em relação à qualiicação da participação, tanto dos agentes públicos como da sociedade civil. Entre os múltiplos aspectos que este processo demanda, a comunicação e a gestão da informação adquirem um papel privilegiado. A informação correta, no processo e no momento adequado, nas mãos dos atores certos, é um desaio central e determinante do êxito da gestão social do desenvolvimento territorial, cuja constância garante ao Estado o poder sobre as pessoas e, por sua vez, vem favorecer e ceder lugar ao domínio dos mecanismos que asseguram o desenvolvimento do capital. Com isso, a percepção crítica da atuação da mulher agricultora nas discussões de uma gestão participativa é de fundamental importância quando se busca estudar o desenvolvimento social e a participação, de fato e de direito, das pessoas que trabalham na agricultura. É nessa relação de transformação territorial, de política de desenvolvimento rural local e endógeno, e de acesso precário de homens e mulheres na produção do trabalho que se conigura a organização do território rural da Mata Sul de Pernambuco. Nessas circunstâncias, a organização patriarcal da sociedade brasileira contribui na análise das relações desiguais de gênero, uma vez que o patriarcado foi base para a formação de um sistema de desigualdade social autônomo e, nesse caso, a sexualidade e a reprodução são as bases desses sistemas. Em relação à condição da mulher, veriica-se que em toda formação social existe uma produção de bens (produção) e uma produção de seres humanos (reprodução), que são distintas, porém relacionadas uma a outra. Deste modo, produção e reprodução são indissociáveis. Contudo, com o advento do sistema capitalista tem-se a deinição da subordinação da reprodução à produção. Essa apreensão de subordinação do papel da mulher, principalmente na agricultura 428 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil familiar, no território da Mata Sul de Pernambuco, constitui um desaio para a gestão do território, porque as relações sociais de gênero se incluem no marco mais amplo das relações de produção capitalista. Sendo assim, as relações sociais de gênero na agricultura familiar evidenciam uma dinâmica na conceituação do trabalho, no qual se veriicam a valorização do indivíduo por meio do lugar que ocupa na esfera do trabalho e a subjetividade a ele atribuída. Na concepção de Hirata (1995) a reorganização do capital do modo de produção fordista/taylorista para a flexibilização da produção está relacionada ao papel do homem na sociedade e, por isso, cabe à mulher o papel secundário na produção agrícola. A relação desigual de gênero, acentuada pelo capitalismo e evidenciada nas condições de trabalho das mulheres produtoras rurais, é intensa nas atividades agropecuárias. Com isso, as relações sociais de gênero e de trabalho são para o acesso ao inanciamento e para a sua aplicação apreendidas na dimensão da prática social e da participação política da mulher na agricultura familiar. Uma questão relevante da Política de Desenvolvimento Rural, contemplando o território na área da agricultura familiar, refere-se ao programa de linha de crédito direcionado às mulheres – PRONAF Mulher. O PRONAF Mulher é uma linha de investimento dirigida à agricultora, independentemente de seu estado civil, que pertence a unidades familiares de produção. A linha de crédito visa atender a propostas de créditos relacionadas com projetos especíicos de interesse da agricultora sempre que o projeto técnico ou a proposta de crédito contemplar atividades agregadoras de renda e/ou novas atividades exploradas pela unidade familiar (PRONAF, 2011). Entre as diiculdades para o acesso ao inanciamento e para a sua aplicação estão a pouca autonomia econômica e a falta de documentação básica (documentação pessoal) e de título de propriedade da terra como exigência para se ter direito ao crédito. Na identiicação destes problemas, o Estado mobilizou outras ações, entre elas: o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural; a ampliação do acesso da população dos territórios à atenção básica, por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF); e investimentos já aplicados e outras ações ainda em fase de implantação, como o Programa de Organização Produtiva das Mulheres Trabalhadoras Rurais e o Programa de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) para Mulheres Rurais. A presença de ações especíicas para as mulheres representa a necessidade de realização de ações que promovam a inclusão da mulher trabalhadora em condições de igualdade aos homens (Brasil, 2005). Destaca-se o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural, que identiicou um grande número de agricultoras sem registro de nascimento e de identidade, o que impedia seu acesso aos direitos sociais, via instituições públicas. O Espaço Rural na Contemporaneidade 429 A implantação de políticas públicas territoriais demonstra a presença do Estado tentando minimizar estas desigualdades socioeconômicas que atingem especialmente o meio rural, visto que estas políticas foram planejadas com o objetivo do desenvolvimento agrário e da melhoria das condições de vida dos agricultores. Com o processo de modernização agrária e a inclusão da produção nos mercados globalizados, a agricultura familiar vem sendo o foco de ações governamentais abrangentes, diversiicadas e com altos investimentos, como o Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) da Zona da Mata Sul de Pernambuco. A dinâmica territorial, ao superar as fronteiras municipais, desenha um novo espaço interligado e, portanto, deve reconhecer que todas as mudanças focais aplicadas terão resultado no território. A relação assimétrica de classes existentes, além de ser um desaio para a construção de vínculos de cooperação, é a base da formulação de ações que superem as desigualdades atuais. Com altos investimentos e diversiicadas atividades, o PRONAF foi criado dentro de uma perspectiva de gerenciamento da política pública que amplia a condição do beneiciário e o inclui, por intermédio de sua representação, no processo de elaboração, execução e avaliação das atividades. A participação dos movimentos sociais na avaliação das políticas públicas, entre elas, o PRONAF, delineia uma nova perspectiva de participação da sociedade e exige do Estado outras formas de interligações e divulgação de suas ações. Os programas sociais que integram a representação política dos agricultores e a pressão dos movimentos sociais por maior interlocução com o poder público vêm alterando as inter-relações entre o Estado e a sociedade, interferindo no processo gestório territorial. É através do PTDRS da Zona da Mata Sul de Pernambuco que foi concebido um plano estratégico, no qual diversos atores locais privados e públicos estabeleceram uma institucionalidade para a gestão social do território. Aceitam o desaio de implantar, permanentemente, mecanismos para o alcance do desenvolvimento sustentável, mediante a articulação dos diversos setores sociais em torno de uma visão comum, a de construir políticas públicas com sustentabilidade social, econômica, ecológica, política e cultural. Independentemente das esferas de articulação institucional, a construção dessas políticas sempre será uma tarefa política e social baseada na identiicação e na deinição de indicadores que orientam seus atores na implementação das ações planejadas em favor do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, as lideranças organizacionais atreladas à gestão do programa e ao Colegiado Territorial devem estar comprometidas continuamente com o cumprimento de metas consensuais de desenvolvimento sustentável, sempre sob a orientação de processos de monitoramento e avaliação que indiquem sucessos e insucessos da efetivação do que foi proposto. 430 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Esse envolvimento pretende fortalecer o protagonismo dos atores locais no acompanhamento do planejamento e na execução das políticas públicas de sustentabilidade. A necessidade de informação é um dos aspectos fundamentais do processo de implementação do programa, do plano e do sistema de gestão social do território (Sistema de Gestão Estratégica). Na análise e no diagnóstico de situações em que se pretende modificar e acompanhar a efetivação das ações propostas, é preciso informações tanto quantitativas quanto qualitativas que expressem resultados esperados e forneçam uma referência para o debate e a avaliação. Essas informações devem ser sintetizadas em indicadores que servem como instrumento para a tomada de decisão. Assim sendo, a sistemática de monitoramento e a avaliação têm um papel relevante, pois foi nessa perspectiva que os dados empíricos coletados tiveram como objetivo analisar a atuação do PDSTR do MDA/SDT na Zona da Mata Sul de Pernambuco, mediante a elaboração do sistema de monitoramento e avaliação, com utilização de indicadores de sustentabilidade e envolvimento dos atores locais. 4 RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO INSTITUCIONALIZADAS A concepção de políticas de integração territorial, no Brasil, emerge a partir da década de 1970. Pode ser considerada como uma prática de determinados atores para impor suas estratégias políticas, econômicas e sociais, com o intuito de obter legitimidade, consenso e apoio. No cenário atual, o Ministério da Integração Nacional e o MDA destacam-se na concepção e na implantação dessas políticas territoriais. No contexto internacional, a atuação do Estado acerca das políticas territoriais aparece mais concretamente na fase de fortalecimento da sua ação no espaço nos anos pós-1945 e assinala, para além do fordismo, a sua importância no planejamento do desenvolvimento. O novo padrão internacional de poder que se conigura com a importância cada vez maior das grandes corporações empresariais transnacionais, como ressalta Porto-Gonçalves (2006), em termos institucionais num conjunto de entidades supranacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), vem sendo gestado desde o im da Segunda Guerra Mundial, rompendo assim o sistema ixo de câmbio e do padrão-ouro para uma inanceirização cada vez maior da economia mundial. Esse período marca o início de uma nova era dentro do percurso capitalista, com as perspectivas abertas pela revolução técnico-cientíico-informacional (Santos e Silveira, 2008), já que representa o momento de lançar a semente da dominação do mundo pelas irmas multinacionais, preparando assim todos os espaços mundiais para uma nova aventura que, na escala, só iria frutiicar plenamente trinta anos depois. O Espaço Rural na Contemporaneidade 431 Nesse contexto político econômico, a globalização procura reestruturar e territorializar o espaço social global e transformar o papel do território nacional na organização e na reprodução do capitalismo mundial desde o início de 1970. As relações sociais do local e do regional tornam-se interligadas com o processo global, enquanto a dinâmica da escala mundial parece impactar as práticas subglobais com regularidade e intensidade. Isso relete a reestruturação do Estado como uma consequência direta da crise mundial da coniguração fordista-keynesiana, em que essas transformações têm prejudicado gravemente os pressupostos da teoria cientíica e da investigação social centrados na relação Estado-espaço do século XIX, tornando as questões da espacialidade e da escala espacial cada vez mais expressivas para a análise da dinâmica da sociedade contemporânea. No que se refere à política agrícola de desenvolvimento da agricultura familiar, é a partir dos anos 1990 que se observa um crescente interesse por essa agricultura no Brasil, conigurando a atual política pública focalizada em determinados territórios. Esse interesse se materializou em políticas públicas como o PRONAF, com qualidades relacionadas com a presença de consenso entre seus atores, associativismo, competitividade e formação de redes. Além do mais se torna importante incorporar a perspectiva da condição de gênero nos estudos sobre as áreas rurais, onde se podem encontrar comunidades de camponesas, pescadoras e marisqueiras como grupos sociais dinâmicos e, portanto, estruturantes na realidade social (Gehlen, 2010b). A agricultura familiar está associada à dimensão espacial do desenvolvimento, por permitir uma distribuição populacional mais equilibrada no território, em relação à agricultura patronal, normalmente associada à monocultura e ao agronegócio. Estas ideias devem ser contextualizadas no debate sobre os caminhos para a construção do desenvolvimento econômico e sustentável. No entanto, vale salientar que o território é um âmbito de imbricações de múltiplas expressões de poder que estão associadas com a continuidade e a permanência da dominação existente. Tais expressões produzem um conjunto de reivindicações que nem sempre correspondem a um determinado planejamento de desenvolvimento no território, pois, como acentua Harvey (1992), sobre o espaço e o tempo encontram-se campos de ambiguidade, contradições e luta, e os projetos de desenvolvimento e a ordem institucional fornecem os mecanismos para mascarar as relações de poder e dominação. Uma das problemáticas enfrentadas no contexto da política neoliberal é a desvalorização da agricultura familiar rural, no urbano ou periurbano rural. Isso contribui para que se acentue a fragilidade dessa atividade, como também se fragilizem suas relações sociais de produção, reletida na divisão social do trabalho 432 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil e nas relações sociais de gênero. Os estudos sobre as diferentes espacialidades, no ambiente público-privado, o acesso aos recursos e ao trabalho informal se destacam na literatura atual, estabelecendo categorias dentro de uma estrutura dualista e contrastante como produção-reprodução, tecnologia-natureza, razão-emoção, entre outras, assinalando sua associação vertical e sua correspondência com os papéis atribuídos socialmente aos homens e às mulheres. Trata-se de uma etapa cujo objetivo foi tornar visível a mulher nas políticas públicas e demonstrar que os atributos de gênero identiicados como naturais não são diferenças biologicamente estáticas, mas reletem noções de feminilidade e masculinidade construídas socialmente e, portanto, cambiáveis. Nesse sentido, apreender o papel da mulher na agricultura familiar dos territórios da Mata Sul de Pernambuco se constitui em um desaio para a gestão dos territórios e para a atuação do assistente social. As relações de gênero se incluem no marco mais amplo das relações sociais e explicam a subordinação da mulher sobre uma base materialista – a de sua capacidade reprodutora, a qual não se pode compreender desengajada dos processos de produção e reprodução social, cujo entendimento contribui para uma prática proissional mais comprometida com as demandas da população assistida pelas políticas voltadas para o rural. As diferenças de gênero são decorrentes das desigualdades sociais, de classe e dos diversos papéis construídos pela sociedade e designados a homens e mulheres. A produção e a reprodução do espaço não se centralizam somente na mulher, pois esta é responsável pela produção e reprodução dos seres humanos que reunidos em família produzem e reproduzem o espaço da sociedade. A sociedade burguesa colocou os fundamentos de uma revolução nas relações sociais objetivas por meio da bandeira da igualdade, com certeza jurídica e não econômica, que caminhava ao lado da igualdade da mercadoria na concorrência e nas diferentes composições da força de trabalho. Mas a igualdade política não concernia às mulheres. Sob o capitalismo, a situação das mulheres não melhorou nem se agravou, mas permitiu colocar a questão sobre sua igualdade com os homens, e mesmo sendo incapaz de realizar esta igualdade, ele reuniu os elementos que poderiam torná-la efetiva. O combate pela igualdade entre os gêneros pode e deve ser considerado e realizado dentro do quadro da sociedade capitalista. Todo progresso nesse sentido, mesmo o mais limitado, deve ser conquistado e defendido, e cada recuo deve ser reprovado, a im de fazer uma ligação deste combate pela igualdade de gênero mais geral, objetivando mudanças nas estruturas sociais atuais que coloquem a opressão e a exploração dentro de uma perspectiva das relações sociais igualitárias. O acesso das mulheres a direitos iguais deve ser protegido e respeitado, e esta desigualdade em face dos direitos humanos ou do ser humano, seja homem ou mulher, deve ser entendida como uma violação, como uma transgressão da obrigação do Estado de garantir direitos iguais para todos. O Espaço Rural na Contemporaneidade 433 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pode-se observar, na análise que Andrade faz sobre o espaço e os polos de desenvolvimento, a atualidade de seus estudos, ao demonstrar que existem caminhos para uma leitura baseada no materialismo histórico e geográico sobre a condição humana. Isto torna possível fundamentar uma crítica a ideias isolacionistas sobre as desigualdades sociais e de classe que predominam na atual fragmentação das políticas públicas setoriais e focalizadas. Tais políticas vêm fragilizando o trabalhador como ator social e o território rural como coletivo de luta, diicultando por meio do discurso instrumentalizador do Estado uma leitura da realidade concreta dentro de uma perspectiva crítica e uma visão de totalidade do real signiicado do espaço. Todas as intervenções do Estado – entre elas as sociais, por meio das políticas públicas – são meio e resultado, ao mesmo tempo, na direção da sociedade. Desse modo, entende-se que as problematizações sobre seleção, formas de deinição e valoração dessas políticas devem ser analisadas como parte da sua evolução e de sua prática real, na medida em que pertencem à luta social e política, às orientações que elas assumem e aos cursos de ações situadas historicamente. Não se deve separar a análise da institucionalidade de suas bases sociais herdadas ou legadas pela transformação neoliberal em face da reorientação do Estado. De acordo com o senso comum sobre o conceito de justiça social, ica difícil aceitar que as condições de vida, saúde, educação e emprego em que se encontram homens e mulheres como o agricultor familiar, o pescador artesanal ou o trabalhador sazonal da cana-de-açúcar sejam socialmente justas. Não se concebe aplicar o conceito de justiça social ao desenvolvimento que vem ocorrendo no território da Mata Sul de Pernambuco, devido às circunstâncias e condições em que se encontram hoje os moradores dos assentamentos rurais no entorno do território do CIPS, no município do Cabo de Santo Agostinho. O território da Mata Sul tornou-se um espaço global ampliado e se denomina região metropolitana (RM) dentro de uma área considerada rural, mas que cresce de acordo com as necessidades do capital espacializado. A justiça social se tornou um conceito heterogêneo, e categorias como classe, gênero, raça, etnia ou meio ambiente são vistas com desconiança, pois se transformaram em elementos cruciais na deinição de como se desenvolve um discurso particular e como este discurso está sendo colocado em uso como parte do jogo de poder da elite política e econômica que quer um desenvolvimento a qualquer preço. O que se observa no espaço rural da Mata Sul de Pernambuco são concepções de competição, políticas públicas que promovem a fragmentação do trabalhador e um desenvolvimento voltado para interesses particulares e internacionais. O território rural como ator coletivo na Mata Sul passa por um processo de desconstrução do conceito de justiça social, que esconde relações de poder e gera Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 434 trabalho precarizado, desemprego, submissão da mão de obra feminina e impactos socioambientais de grandes proporções nos territórios rurais. Esse desenvolvimento territorial faz com que se tornem mais graves as desigualdades sociais, a ausência e a inobservância dos direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora, em especial, por não incluir a mulher que trabalha como uma pessoa que deve ter os mesmos direitos já conquistados pelos homens por meio da declaração dos direitos humanos. As políticas públicas, na prática, são neutras ao gênero ou indiferentes aos direitos das mulheres. É preciso abrir caminho para um modelo de política baseado no tripé gênero-cidadania-desenvolvimento (Bandeira, 2012, p.117). Com o advento da globalização os lugares se tornam cada vez mais distintos e as evidências das desigualdades sociais atingem, em especial, as mulheres pobres, que são as primeiras vítimas da crise ecológica e da deterioração do meio ambiente (Rossini, 2012, p. 41). Um dos primeiros passos para que as mulheres trabalhadoras procurem seus direitos é redirecionar as políticas públicas e executá-las dentro de uma transversalidade de gênero, permitindo àquelas atendidas pelos projetos que tenham conhecimento dos seus direitos, como devem ser protegidos e a quem recorrer quando forem negados ou violados. Esse processo de redução do perfil social e econômico empresarial das instituições do Estado se expressa em orientações para a privatização, a participação, a descentralização e a focalização, agregando também a desconcentração e a terceirização. Com base na descentralização e na privatização derivadas da focalização, sobressai o recorte nas responsabilidades do Estado em direção à mercantilização e à substituição de políticas públicas por projetos. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, R. Funções e medidas da ruralidade no desenvolvimento contemporâneo. Rio de Janeiro: Ipea, 2000 (Texto para Discussão, n. 702). ACSELRAD, H. (Org.). Conflitos ambientais no Brasil. 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CAPÍTULO 16 CICLOS, INSTITUIÇÕES E DUALIDADE ECONÔMICA: RANGEL1 Viviane Freitas Santos2 Adalmir Marquetti3 1 INTRODUÇÃO Autor de influência marxista, Ignácio Rangel empregou de modo original o materialismo histórico e a evolução dos modos de produção para analisar a história da economia brasileira. A sua interpretação abarca desde o período da Abertura dos Portos até os anos 1980, com o im da era dourada do capitalismo. Rangel tinha uma concepção, denominada dualidade básica, sobre como o processo de organização institucional e a sua mudança ocorriam de acordo com o movimento dos ciclos longos identiicados por Nikolai Kondratief. As dualidades formavam a base do processo de acumulação de capital nas fases expansivas (fases A) do ciclo longo. Por sua vez, as mudanças institucionais eram a chave para a retomada do crescimento nos períodos de retração (fases B). A obra de Rangel possui semelhanças com os trabalhos da escola da regulação (ER) e os da estrutura social de acumulação – social structure of accumulation (SSA), desenvolvidos inicialmente na França e nos Estados Unidos na década de 1970, os quais Rangel antecede. Ignácio Rangel viveu grande parte de sua vida durante o período de substituição de importações, de elevado crescimento econômico. Na década de 1950, ocupou inúmeros postos de governo, quando colaborou na execução de projetos que estavam na origem das grandes empresas estatais. Foi neste período e no início dos anos 1960 que publicou parte signiicativa de sua obra, sendo um artíice e um intérprete do crescimento econômico brasileiro durante o período de substituição de importações. Este capítulo aborda a interpretação de Rangel sobre o crescimento econômico brasileiro no longo prazo, bem como aponta algumas semelhanças e elementos especíicos da obra de Rangel. O capítulo está organizado em sete seções. 1. Este capítulo foi escrito a partir de Santos (2013). 2. Professora do Departamento de Economia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). 3. Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 440 2 AS INFLUÊNCIAS NO PENSAMENTO DE RANGEL Autor eclético, Ignácio Rangel, tendo formação em direito, combinou diferentes escolas de pensamento econômico para analisar a evolução histórica da economia brasileira. A tradição marxista foi a que teve maior inluência no seu trabalho. O materialismo histórico, com passagem por diferentes modos de produção, foi determinante na análise de Rangel sobre a economia brasileira. Outro elemento fundamental em seu trabalho é a análise da história da economia capitalista em ciclos de longo prazo de aproximadamente cinquenta anos, os ciclos de Kondratief (1935). Haveria um paralelismo, apesar de o Brasil não fazer parte do centro dinâmico da economia mundial, entre os acontecimentos da história nacional e a economia mundial, que decorreria dos ciclos longos. Acompanhando a delimitação temporal dos ciclos de Kondratief para o capitalismo mundial, Rangel analisa a história econômica brasileira no longo prazo considerando a existência de quatro ciclos de Kondratief, a saber: • 1780-1848: primeiro Kondratief; • 1848-1896: segundo Kondratief; • 1896-1948: terceiro Kondratief; e • 1948-anos 1970:4 quarto Kondratief. Rangel reconhece que as formações econômicas são duais, ou seja, há dupla formação produtiva, tecnologicamente diferente, e com dupla formação política – duas classes sociais diferentes ao mesmo tempo disputam e dividem o poder político. O autor ainda reconhece como válida a característica de país periférico, em razão da formação econômica do Brasil, voltada para o abastecimento de Portugal, e em virtude da não existência de uma dinâmica econômica autônoma, mas complementar à realidade nacional – e, muitas vezes, alheia a ela (Rangel, 2005a, p. 296). Rangel, aqui, portanto, aproxima-se da interpretação da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). São dois os instrumentos que percorrem todo o trabalho de Rangel e dão originalidade a sua interpretação: a combinação das ondas longas de crescimento e a dualidade básica da economia brasileira. Os ciclos de Kondratief dizem respeito ao comportamento mundial do capitalismo: seus movimentos de recessão e expansão acompanham este aluxo, e o Brasil segue reletindo este movimento. Por sua vez, a dualidade é um movimento independente das ondas longas, mas suas mudanças ocorrem na fase recessiva do Kondratief, como uma resposta à perda de hegemonia do representante do setor dominante. 4. Rangel aponta o início da fase recessiva do quarto Kondratieff para a década de 1970, embora não o tenha deinido formalmente. Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 441 A dualidade não é uma característica exclusiva do Brasil (Rangel, 2005a); outros países, em especial os subdesenvolvidos, a apresentam por conta do contexto histórico de suas formações, em que características duais convivem com formas de capitalismo distintas no que se refere ao desenvolvimento interno e ao mercado internacional. As mudanças na dualidade também acompanham esta delimitação periódica, mas se efetivam na fase de retração do ciclo longo e se referem a transformações mais amplas, para além do modo de produção. Estão incluídas aqui a formação dos pactos de poder e a ascensão da classe social hegemônica, além da construção de diversas instituições necessárias para a manutenção e o retorno da estabilidade social e das taxas de lucro. Estas transformações reairmavam a opção feita pelo capitalismo como modo de produção e demonstravam a superação dos estágios de desenvolvimento em direção a formas capitalistas mais avançadas. Isto é reletido diretamente na forma e na velocidade com que se dava a acumulação de capital internamente, e na homogeneização das relações entre o mercado interno e externo, ou seja, nas mudanças que conduziam para o im da dualidade (Rangel, 2005b, p. 655). A construção desses conceitos indica uma forte inluência marxista. O retorno à história econômica e a constante contraposição teórica do autor demonstram, claramente, a utilização do materialismo histórico e do método dialético como metodologia de análise em sua obra. Entretanto, não é possível deini-lo como fundamentalmente marxista, porque existem em seus trabalhos posicionamentos que vão de encontro a este campo teórico. Ou, como colocado por Bresser-Pereira e Rêgo (1993), Rangel soube utilizar a teoria clássica com pioneirismo, criatividade e pensamento independente. Afora o método de análise, Rangel utiliza-se de conceitos marxistas, como a formação do exército industrial de reserva, para explicar o movimento de saída dos trabalhadores do campo para a cidade, sem a devida reforma agrária. Ainda, reconhece o socialismo como estágio inal e mais avançado de desenvolvimento das estruturas socioeconômicas e institucionais (Rangel, 2005a; 2005b). Mas, o autor utiliza-se de elementos e chega a conclusões que estariam próximas do campo ortodoxo do pensamento econômico. Um dos exemplos mais contundentes é a indicação da necessidade de privatização de áreas do setor público que se tornaram do interesse da iniciativa privada, pois, segundo ele, isto contribuiria para a redistribuição dos investimentos (Rangel, 2005b, p. 686). Se há capacidade ociosa na economia, esta deverá ser apropriada pela iniciativa privada, pois dela é a capacidade de gerar capital incremental, ampliando o emprego, o salário e, logo, o lucro (Rangel, 2005b, p. 692). Soma-se à sua formação uma fundamentação institucionalista e keynesiana. No que se refere à primeira escola, Rangel reconhece nas instituições o apoio necessário para sustentar a nova força hegemônica, política e economicamente (Rangel, 2005a, p. 697). Além disso, sua formação em direito 442 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil faz com que questões de organização institucional perpassem diversos aspectos de sua obra; em particular, quando aborda as questões dos diferentes enquadramentos dos serviços públicos e a inanceira. O desenvolvimento econômico ocorre inluenciado por forte presença do setor externo, o que leva ao desenvolvimento de instituições que atendam a este setor e ao mercado interno, cada um com o seu modo de produção e força política. Conforme a troca da dualidade ocorre, as instituições serão modiicadas para atender à nova etapa do desenvolvimento produtivo, agregando elementos outros que não são de sua formação original (Rangel, 2005b, p. 285). A inluência keynesiana mais clara está na responsabilidade dada ao Estado de promover os investimentos nos setores-chave e estimular o investimento privado, a im de que haja uma ampliação dos setores estratégicos para a economia nacional. Bielschowsky (2004) destaca que a contribuição de Rangel parte de uma original adaptação do materialismo histórico e da teoria econômica ao estudo da economia brasileira, para que fosse possível compreender as especificidades da formação histórica e econômica do Brasil. As considerações são sintetizadas por Cruz (1980) para deinir a percepção do curso do desenvolvimento econômico brasileiro. Em especial, merece destaque a análise de Rangel de que a industrialização brasileira ocorreria em ciclos decenais, os ciclos de Juglar, que passaram a ocorrer a partir da crise de 1929. Inicialmente, houve a implantação da indústria leve, seguida pela indústria de bens de consumo durável, prosseguindo na direção da indústria de bens de produção. 3 A RELAÇÃO SOCIOECONÔMICA DUAL A formação econômica brasileira é uma reunião dialética de contrários (Rangel, 2005a), porque é o convívio de uma formação econômica mais avançada, externa à economia nacional, com outra mais conservadora e interna, interagindo e transformando as forças produtivas. O conceito de dualidade está relacionado ao ambiente socioeconômico e institucional, e não se refere, apenas, à relação estritamente econômica, embora o elemento desencadeante o seja. De cada lado, há uma relação dual, com suas respectivas formações sociais e políticas. (...) o fato de que todos os nossos institutos, todas as nossas categorias – o latifúndio, a indústria, o comércio, o capital, o trabalho e a nossa própria economia nacional – são mistos, têm dupla natureza, e se nos aiguram coisas diversas, se vistos do interior ou do exterior respectivamente (Rangel, 2005a, p. 286). Trata-se da lei fundamental da economia brasileira (Rangel, 2005b, p. 298), pois é nesta formação socioeconômica que está assentado todo o desenvolvimento nacional. A justiicativa do conceito de dualidade está nos fatores econômicos desenvolvidos internamente, mas que não são produtos exclusivos das forças Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 443 nacionais (Rangel, 2005a) e de conlitos internos. O conceito leva em consideração, principalmente, a inserção no mercado internacional e a inluência deste. Trata-se de examinar quais as relações dominantes dentro e fora de cada unidade da economia, isto é, de pôr em evidência as duas economias dominantes – porque cada uma delas, em seu próprio campo, é dominante. A isso eu proponho que se chame de dualidade básica da economia brasileira (Rangel, 2005a, p. 298). As formas de reprodução do capital são diferentes em sua concepção. Uma delas, evolutivamente superior e estranha ao mercado interno, será progressivamente assimilada à economia nacional, conforme a correlação de forças entre as classes sociais penda para determinado grupo. Muito mais que o retorno à historiograia econômica, entender o evento da dualidade é analisar a complexa relação socioeconômica e institucional brasileira. Rangel retorna à formação econômica do país, ao período colonial escravista, para compreender o motivo dessa característica tão distinta. Inicialmente, a economia brasileira é construída para atender às necessidades da metrópole portuguesa. Não há autonomia política e, muito menos, econômica, o que impede que seja estimulada a acumulação de capital. A economia doméstica se desenvolve de forma complementar (Rangel, 2005a, p. 146) a uma realidade muito distante da observada internamente. A independência econômica do país só acontece em 1808,5 quando a Europa já tinha estabelecido uma base industrial muito sólida. A dinâmica capitalista brasileira é construída para atender às necessidades de matérias-primas e de mercado consumidor dos países centrais, corroborando para o subdesenvolvimento econômico. Conforme as crises se desenvolviam nos centros econômicos e atingiam o Brasil, um dos polos da dualidade mudava, por dois motivos. Primeiro, para atender à nova coniguração do capitalismo mundial, pois a formação deste polo em questão não mais se coadunava com as exigências de acumulação. E, em segundo lugar, porque a classe representante deste polo ou setor estava enfraquecida, não possuía mais força política para manter sua inluência nas deliberações de política econômica (Rangel, 2005a; 2005b). A igura 1 representa a estrutura da dualidade básica da economia brasileira. São dois polos representados por quatro classes dirigentes, uma para cada lado dos polos (Rangel, 2005b, p. 665). Uma delas encontra-se no país central com o qual o Brasil preserva relações de dependência. A relação de dominação entre os capitalistas só se mantém enquanto a estrutura de produção puder manter os 5. Chegada da família real ao Brasil e Abertura dos Portos às Nações Amigas. A transferência das instituições políticas e econômicas da metrópole para a colônia inseria, nesta última, as primeiras considerações de política econômica no país. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 444 níveis de lucro, embora muito do enfraquecimento desta classe política se deva à evolução das forças produtivas fora do país. FIGURA 1 Dualidade básica da economia brasileira Polo interno Polo interno Polo externo Dualidade básica da economia brasileira Polo interno Polo externo Polo externo Fonte: Rangel (2005b, p. 655-686). A relação de dualidade, portanto, é composta de dois polos contrários, cada um com seu respectivo lado, interno e externo, nos quais se expõem relações econômicas, à primeira vista, incompatíveis. O polo interno refere-se à economia doméstica, às formas de reprodução de capital e ao desenvolvimento socioeconômico aqui estabelecido. O polo externo do polo interno (Rangel, 2005b, p. 655) é a formação econômica que se relaciona com o mercado externo. Ele diz respeito ao tipo de relacionamento estabelecido com os países centrais de capitalismo avançado, e é por onde “somos parte do capitalismo mundial” (Rangel, 2005a, p. 166). A relação é construída no sentido Brasil-mercado internacional. No lado externo da dualidade, as forças produtivas estão em um estágio superior do modo de produção, o capitalismo é industrial e a sociedade, em sua maioria, já está urbanizada. A produção de tecnologia permite que as irmas sejam cada vez mais intensivas em capital, e a relação econômica, que se desenvolve, segue o sentido mercado internacional-Brasil. Inicialmente, o relacionamento principal é com Portugal; após a Abertura dos Portos e a Independência, desloca-se para a Inglaterra; e, por im, para os Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial. O modo de reprodução do capital no polo externo da dualidade não está vinculado às relações econômicas internas e, inclusive, opõe-se a ele. Funciona de forma independente porque é o centro de progresso tecnológico e da tomada de decisões, é a formação econômica mais avançada, que atrela as economias subdesenvolvidas Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 445 à sua dinâmica produtiva. Neste sentido, opõe-se às formações anteriores, inclusive àquelas presentes no Brasil, por não conservar mais a estrutura institucional e política que viabilizava a manutenção do lucro e os níveis de acumulação de capital. Nos países centrais, as formas de produção sucederam-se conforme se dava o desenvolvimento capitalista e, uma após outra, tornavam-se hegemônicas com suas novas relações de trabalho e instituições. Internamente, estes países venciam cada fase isoladamente. Além de apresentar uma estrutura econômica que explica o porquê do subdesenvolvimento do Brasil, Rangel demonstra que há uma relação de poder entre as classes sociais, determinante para a formação da dualidade brasileira. Se há uma sucessão de classes economicamente hegemônicas, há uma nova coniguração das instituições para que estas se relacionem conforme a conveniência dos interesses; portanto, o pacto de poder formado também caracterizará as dualidades (Rangel, 2005a, p. 736). O elemento fundamental desta relação é que a classe representante do polo externo exerce forte inluência sobre as decisões do Estado, e o faz por intermédio das classes dirigentes internas (Rangel, 2005b, p. 665). Uma vez enfraquecido um lado do polo, este deverá ser substituído por nova classe hegemônica, que representará a relação de poder estabelecida para o desenvolvimento de novo modo de produção e, assim, de nova fase do capitalismo. Rangel (2005b, p. 662) lista cinco leis de mudança dos polos da dualidade que irão conduzir a sobreposição de estágios de desenvolvimento. A primeira diz respeito aos limites alcançados pela conformação social da última dualidade. Os limites da expansão produtiva provocam queda nos níveis de lucro e tensão social entre capitalistas e trabalhadores, o que contribuirá para o enfraquecimento político da classe hegemônica e, consequentemente, para a mudança na dualidade. A segunda diz respeito à já discutida condição de país periférico. O fator desencadeante das mudanças na dualidade é exógeno à economia nacional. Por isso, progressivamente o país assimila o modo de produção mais avançado, embora este já tenha sido superado, ou esteja em vias de superação, pelo país central. Isto, por sua vez, é a terceira condição para a mudança da dualidade: o modo de produção mais avançado está em vias de superação nas economias centrais. A relação dialética é mantida porque os países centrais são capazes de produzir suas crises internamente. Isto signiica, também, criar condições para que haja a superação deste momento de instabilidade, visto que as instituições sociopolíticas mudam e a coniguração do capitalismo acompanha a mudança. Desta forma, a relação dual se mantém e os estágios do capitalismo avançam. Por im, alternadamente, mudam o polo interno e o externo (Rangel, 2005b, p. 662), o que deine a quarta lei. A quinta, por sua vez, refere-se ao caráter exógeno dos eventos que desencadeiam a mudança na dualidade – as relações de comércio externo têm inluência decisiva na dinâmica interna. 446 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Em cada ramiicação dos polos, é possível identiicar diferentes organizações institucionais, modos de produção e, principalmente, relações de trabalho. Utilizando o conceito da dualidade e ressaltando as diferentes formações sociais e políticas, o autor identiica a sequência evolutiva das cinco relações de produção: o comunismo primitivo; o escravismo; o feudalismo; o capitalismo; e, inalmente, o socialismo (Rangel, 2005b, p. 626). Ainda que o conceito de dualidade se reira a todos os campos de formação da sociedade, este é um evento fundamentalmente econômico, pois somente quando o Brasil apresenta uma dinâmica econômica própria, e com certa independência, é que se torna possível identiicar a primeira dualidade. Antes disso, o que havia eram sociedades “primitivas”, pré-capitalistas, como é o caso das comunidades indígenas e das comunidades quilombolas (Rangel, 2005b, p. 655). Somente quando a família real vem para o Brasil é que a primeira dualidade tem início, porque é um dos eventos da fase recessiva da primeira onda longa que se desenvolvia na Europa (Rangel, 2005b, p. 668). Este é o momento em que se começa a pensar o Brasil como país a ser desenvolvido. Toda a construção do aparelho institucional do Primeiro Império imprimiu ao país características de nação soberana e trouxe dinamismo ao mercado interno. Mas, principalmente, houve o reconhecimento por parte das pessoas da existência de uma autoridade política e de uma autonomia sobre as decisões. Embora estas mudanças izessem referência mais às questões de política externa que a uma deliberação focada no mercado interno, indiretamente os resultados inseriam, paulatinamente, objetivos de acúmulo de capital. As transformações no centro do capitalismo mundial passaram a exigir mudanças institucionais por parte dos países subdesenvolvidos para a estabilidade dos níveis de lucro e o escoamento da produção. O polo interno, escravocrata, relacionava-se com o polo externo europeu a partir de uma relação feudal. Enquanto isso, do lado externo, as relações Europa-Brasil davam-se a partir do capitalismo mercantil. À medida que dentro dos países centrais avançava o desenvolvimento de instituições que formariam o capitalismo industrial, aumentava a necessidade de mudanças nas relações internas de produção (Rangel, 2005b, p. 658). A segunda metade do século XIX foi marcada pelas mudanças no polo interno da dualidade, ou seja, na coniguração institucional brasileira. A Abolição da Escravatura em 1888 e a Proclamação da República em 1889 são os eventos políticos que deinem o início da segunda dualidade. Esta dualidade, nascida nas condições da fase recessiva do ciclo longo, deveria promover uma forma qualquer de substituir importações (Rangel, 2005b, p. 674). A Europa em suas relações econômicas internas já tinha um capitalismo industrial solidiicado e já havia promovido a sua Segunda Revolução Industrial. Por isso, a exigência de matérias-primas e de mercado consumidor tornava-se maior. Havia, também, o Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 447 movimento político pela Abolição: os ilhos de escravos que nasciam livres e os escravos “libertos”, somados aos trabalhadores livres e semilivres, conseguiam provocar desestabilizações políticas (Rangel, 2005b). Ainda, tornavam-se um problema econômico, pois permaneciam desempregados ou subempregados. As relações de produção encaminhavam-se para uma estrutura feudal no polo interno, mas ainda frágil por conta das recentes transformações, que a colocaram como sócio menor na dualidade. No que se referia ao polo externo, o capital mercantil era o sócio maior (Rangel, 2005b, p. 674), que se fortalecia por dois motivos: por um lado, pela maior exigência de uma produção interna, devido à solidiicação do aparelho Estatal; e, por outro, pela crescente demanda de matéria-prima dos países centrais. Era de responsabilidade do capitalismo mercantil promover a diversiicação da produção interna, por processos artesanais e manufatureiros (Rangel, 2005b, p. 674). A partir de 1896, o ciclo longo entra em sua fase ascendente: é o início do terceiro Kondratief. Este período de expansão mundial provoca na economia brasileira um forte crescimento do setor cafeeiro, manifestação do dinamismo do latifúndio encarnado no polo interno do sistema (Rangel, 2005b, p. 676), e estende-se até a crise de 1929, passando pela Primeira Guerra Mundial. Embora a economia nacional estivesse estabelecida sobre o feudalismo, a relação externa, por sua vez, já estava calcada no capitalismo mercantil, e os primeiros produtos manufaturados começavam a ser produzidos internamente. Entretanto, este período apresenta uma peculiaridade, pois as relações internas do polo externo também eram mercantis. Este elemento em comum ocorria porque a sociedade brasileira começava a urbanizar-se, muito por conta do aumento da renda provocado pela expansão do café (Rangel, 2005a) e pelo crescimento das pequenas manufaturas nos centros comerciais. Somado a isto, havia um movimento contínuo de urbanização das regiões, acentuado pela mudança da elite agrária para as cidades (Rangel, 2005a; 2005b), o que provocava transformações institucionais, inclusive, nos costumes e nos hábitos. O início da fase recessiva do terceiro Kondratief também é o início da terceira dualidade, marcada pela Grande Depressão e a Segunda Guerra. O polo que está em mudança é o externo. O capitalismo mercantil entra em crise nos países centrais e é substituído pelo capitalismo industrial (Rangel, 2005b, p. 676). Este, por sua vez, traz consigo um novo sistema de produção, passa do taylorismo para o fordismo, além de criar várias instituições que regulamentam, ainda hoje, as relações de trabalho. O Estado impulsiona a criação e a manutenção de instituições que contribuam para o desenvolvimento produtivo e social das forças econômicas, seja mediante a manutenção dos níveis de consumo ou do estímulo econômico induzido e formulado pelos diversos planos de desenvolvimento. 448 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil No início da quarta dualidade, a qual perpassa por toda a fase de ouro do capitalismo, o país utiliza-se das instituições construídas para contribuir com o crescimento econômico. Esta linha de condução da política econômica era condizente com a fase de expansão do capitalismo mundial. Não faltava financiamento para os esforços de industrialização do Estado, independentemente das possíveis consequências. A disposição econômica do im da fase ascendente do quarto Kondratief aponta a estrutura da próxima dualidade. A crise que se inicia no im da década de 1960 marca a mudança de fase da onda longa. Mesmo sem formalizar uma análise deinitiva sobre este período de transição para a quarta dualidade, Rangel (2005b, p. 682) indica os contornos que esta deverá assumir. Aponta o capitalismo inanceiro como a nova relação dual que dominará as relações de produção nos países de capitalismo desenvolvido. Se for necessário datar esta transição e assinalá-la por um fato marcante, pode-se indicar o ano de 1973, com a crise do petróleo (Rangel, 2005b, p. 685). 4 O ESTADO E A CONSTRUÇÃO DAS INSTITUIÇÕES CAPITALISTAS O papel assumido pelo Estado brasileiro no desenvolvimento das forças produtivas, desde 1930, foi bastante ativo. A política deliberada de manutenção do preço do café e, em seguida, a adoção de medidas que promovessem a industrialização e o desenvolvimento do mercado interno foram políticas contracíclicas. É fato que o Estado brasileiro optou por regular a mão invisível da economia, a im de promover o desenvolvimento do capitalismo, sem que houvesse ruptura com a dependência econômica, na qual a estrutura produtiva nacional é formada. Os planos de desenvolvimento, por exemplo, representam mais as medidas de combate aos efeitos das crises que um programa deliberado de desenvolvimento. O próprio II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) é construído no início do quarto Kondratief, em um período de crise. Rangel é um enérgico defensor do Estado como indutor do desenvolvimento econômico. Há em sua obra passagens que indicam esta característica fundamental do Estado interventor, estimulando as atividades que ainda não são do interesse do setor privado, mas que têm papel fundamental para o desenvolvimento econômico. O interesse do setor público está estritamente ligado à formação e à compreensão do que é público. A dualidade representada nas relações comerciais também está simbolizada na composição governamental, e o Estado será, em grande medida, representado pela classe do polo hegemônico. Por sua vez, a sucessão da classe dominante se dá pelo rompimento da dualidade. A crise enfraquece a classe social ligada ao regime vigente, defensora da preservação do estado de coisas (Rangel, 2005b, p. 666), bem como fortalece a dissidência e as novas instituições que comporão o novo modo de desenvolvimento. Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 449 Cruz (1980) aponta que a análise de Rangel sobre a intervenção estatal ocorre em três linhas distintas: econômica, política e jurídica. Rangel estuda a formação institucional que contribui para a reprodução e a solidiicação das organizações capitalistas. Uma das medidas que acompanharam o processo de desenvolvimento econômico brasileiro foi a opção pela substituição de importações. A proposta, inicialmente desenvolvida com o intuito de fazer frente ao estrangulamento no balanço de pagamentos, tornou-se instrumento de política econômica com o claro objetivo de favorecer a industrialização, uma vez que criava uma reserva de mercado para a futura indústria nacional (Rangel, 1983). Paralelamente, foram regulamentadas as relações de trabalho. Garantiam-se direitos e institucionalizava-se a mão de obra assalariada, ao mesmo tempo que se evitava uma forte organização dos trabalhadores devido aos altos níveis de exploração. Ao atuar em diversas frentes de organização produtiva, o Estado manteve claro seu objetivo: inserir o Brasil na dinâmica industrial, sem que houvesse qualquer tipo de ameaça ao capitalismo brasileiro. Assim, o Brasil conseguiu expandir sua indústria de bens de consumo, com muitos de seus ramos chegando à década de 1950 com considerável capacidade ociosa (Rangel, 2005a, p. 129). A dependência econômica observável nas relações mercantis centrais é perceptível também nos movimentos não econômicos. A criação das instituições que solidiicam o capitalismo também relete algum nível de dependência, mas nesse caso no campo político. Apesar de a política de substituição de importações, numa primeira leitura, estimular o mercado interno, a ausência de uma política industrial clara, com planejamento dos setores a serem desenvolvidos e deinidos como estratégicos, reforça a situação de dependência. Isto ocorre principalmente devido ao nível de dependência do capital estrangeiro para o inanciamento industrial. A ação estatal mostrava-se paradoxal. Nas fases A dos ciclos longos, a opção era de expansão das forças produtivas e da capacidade de importar; mas, nas fases B, a escolha revertia-se para o desenvolvimento do mercado interno e a restrição às importações (Rangel, 2005a, p. 178-201). O impulso dado à industrialização colocou o Estado como responsável pelos grandes blocos de investimento e de atração de tecnologia necessária para o aumento do estoque de capital. Tendo em vista que as divisas utilizadas para custear o parque produtivo eram captadas a partir do Estado, os grandes insumos para a indústria eram de responsabilidade das empresas estatais. As mudanças estruturais são operacionalizadas durante este período, e a urbanização da sociedade brasileira é completada na fase recessiva deste ciclo. Assim, vê-se de forma muito bem deinida e articulada a opção pelo modo de produção capitalista. Por sua vez, no que se refere ao mundo do trabalho, a legislação garantiu a estabilidade para o desenvolvimento do capitalismo nacional (Rangel, 1983). Os trabalhadores oriundos do setor agrícola formavam o exército industrial de reserva e 450 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil pressionavam para baixo os níveis de salário. A institucionalização do salário mínimo, marco do avanço capitalista, deine-o como o mínimo de subsistência, nivelando-o por baixo, mas permite criar um mercado consumidor para a indústria de bens de consumo, além de provocar a monetização da economia (Coriat e Saboia, 1988). Mesmo com o crescimento econômico observado durante a fase de ouro do capitalismo industrial, este não foi acompanhado pelo aumento dos salários reais, ou por qualquer política que objetivasse a classe trabalhadora. A política salarial regressiva, com baixos reajustes, bem como o controle sindical por meio de legislação especíica – é o Estado que reconhece a entidade de representação oicial das categorias de trabalhadores (Coriat e Saboia, 1988) – ilustram o tamanho do domínio exercido sobre a classe trabalhadora. A intervenção das classes fora da área de poder é mais restrita, ocorre de forma indireta, apenas por intermédio do apoio a este ou àquele subgrupo da coalizão dominante (Rangel, 2005b, p. 686-696). O trabalhador brasileiro, para Rangel, tem uma participação muito passiva no interior da disputa de classe, muito por conta da função de mediador assumida pelo Estado brasileiro e de seu papel de opressão da classe trabalhadora. 5 AS CRISES E AS ONDAS LONGAS DO CAPITALISMO POR RANGEL Rangel (2005a; 2005b) pontua que a característica periférica da economia nacional coloca-a na dependência do centro dinâmico (Inglaterra, depois Estados Unidos), o que torna os ciclos longos exógenos e as crises internas uma resposta àquela crise que se desenvolvia no país de capitalismo avançado. Embora haja um fundamento mecânico nas ondas de Kondratief, por delinear, previamente, o comportamento do sistema econômico mundial em um espaço de tempo demarcado, o seu conceito traz elementos muito mais complexos que o inicialmente sugerido. A crise acentua a luta de classes, e é marcada por mudanças institucionais de grande envergadura, que proporcionam, no médio prazo, intensa mudança tecnológica, além de retomada da lucratividade. Dos três ciclos de Kondratief identiicados e analisados completamente por Rangel, somente a partir da fase recessiva do terceiro ciclo é que a economia brasileira é capaz de gerar de modo endógeno os ciclos de Juglar. Isto possibilita transformações nos meios de produção, absorvendo tecnologia e construindo as instituições que permitem a reprodução e o avanço do capitalismo. No caso brasileiro, só se torna possível gerar pequenas crises6 quando é criado o ambiente de reprodução do capital. Isto ocorre em 1930, quando o Estado impulsiona o processo de industrialização por meio de importações. 6. Rangel em seus trabalhos também destaca que a industrialização brasileira ocorreria em ciclos decenais, os ciclos de Juglar, que passaram a ocorrer a partir da crise de 1929. A industrialização brasileira, fato que permite a manifestação destes ciclos endógenos, é feita, inicialmente, por meio da indústria leve (bens de consumo), prosseguindo na direção da indústria de bens de produção. Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 451 A ligação com o mercado externo e a vulnerabilidade da economia brasileira são manifestadas claramente com as fases recessivas dos ciclos longos e a troca de dualidade. Assim, em um momento de crise, esta irá manifestar-se primordialmente pelo estrangulamento do comércio exterior (Rangel, 2005b, p. 263). Ocorrendo problemas no balanço de pagamentos, o acesso ao mercado internacional torna-se limitado, pois importar bens gera aumentos nos deicit em transações correntes. A soma entre, de um lado, o acesso limitado ao mercado externo e, de outro, as diiculdades no balanço de pagamentos remete à única solução plausível: o mercado interno, mesmo havendo uma sujeição estrutural entre os polos da dualidade. Isto, de alguma forma, provoca um processo de substituição de importações (Rangel, 2005a; 2005b). Portanto, antes do período destacado como de desenvolvimento via substituição de importações, Rangel já apontava a existência deste fenômeno em períodos de crise. De forma não intencional e sem o objetivo de desenvolver um parque industrial qualquer, o estímulo ao mercado interno se dava como a única opção para a classe hegemônica interna – independentemente do estágio de desenvolvimento. Este movimento, que acompanha toda a história econômica contemporânea, a partir de 1930 torna-se mais que consenso: é institucionalizado como política de desenvolvimento efetivamente. [A]o fechamento do mercado externo aos nossos produtos – manifestado nos volumes físicos e nos preços relativos – resultante da conjuntura declinante dos países cêntricos, temos reagido por uma forma qualquer de substituição de importações, ajustada ao nível de desenvolvimento de nossas forças produtivas e ao estado das nossas relações de produção, isto é, enquadramento institucional em que se devem mover aquelas forças (Rangel, 2005b, p. 263). Em traços gerais, é possível interpretar o conceito de desenvolvimento econômico construído por Rangel a partir de quatro pilares: i) a formação da mão de obra assalariada; ii) a construção das instituições capitalistas; iii) a ediicação do parque industrial; e iv) as trocas de dualidade. Dessa forma, cada ciclo de Kondratief trará mudanças na composição de cada um destes grupos institucionais, o que sugere uma nova etapa de desenvolvimento com uma nova correlação de força entre as classes sociais. O primeiro ciclo de Kondratief inicia-se em sua fase ascendente em 1780 e se estende até 1808 (Rangel, 2005a; 2005b), período em que a economia brasileira está em sua fase colonial. Numa visão geral, a base produtiva deste período, predominantemente agrícola e mineradora, está ligada diretamente ao nível de desenvolvimento do mercado interno português. A força de trabalho está concentrada na zona rural e é escrava. A partir de 1808, tem início a fase recessiva do primeiro Kondratief e, consequentemente, a manifestação da primeira dualidade. O período é marcado por intensa disputa de classes na Europa, observada 452 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil claramente na Revolução Francesa que se desenvolvia desde o im do século XVIII. Sob esta inspiração, a Independência do Brasil concretizou-se. A crise que se desenvolvia no mercado externo promoveu o retorno às bases produtivas internas, o que signiicava a reorganização da produção interna em condições propícias ao desenvolvimento da autossuiciência da fazenda (Rangel, 2005b, p. 311). Trata-se de um movimento de substituição de importações, não intencional, mas que dinamizava as fazendas, redistribuía a atividade produtiva em direção ao consumo interno e fortalecia o uso da mão de obra escrava. Esta dinamização das fazendas permitiu que ela se tornasse menos agrícola. Suas atividades foram orientadas para a construção inicial da indústria de transformação e para os serviços (Rangel, 2005b, p. 671). Gradativamente, os latifundiários ixam-se permanentemente nas cidades, começando o luxo migratório e a urbanização da sociedade brasileira. No segundo Kondratieff, iniciado em 1848, a economia brasileira se fundamenta em mão de obra escrava, mas começa a utilizar-se de mão de obra assalariada, por intermédio da vinda dos imigrantes europeus. Neste ciclo, a mudança da dualidade ocorrerá internamente. O latifúndio mantém seu caráter feudal, mas existe o desenvolvimento de instituições que formarão a burguesia comerciante, construindo o capitalismo mercantil. Firmas inglesas e portuguesas são criadas no país, a princípio como simples agências e, depois, como parte integrante da economia brasileira (Rangel, 2005a, p. 312). O mercado internacional já solidiicado sobre instituições mercantis avançava para o capitalismo industrial já existente no lado interno do seu polo, e isto provocava aumento da produção de manufaturados e da necessidade de mercado consumidor. Além disso, havia movimentos internos crescentes no sentido de libertação dos escravos e institucionalização da mão de obra assalariada. Desta feita, os eventos políticos que marcaram o início da fase B do Kondratief e a troca da dualidade foram a Abolição da Escravatura e, em seguida, a Proclamação da República. A crise que se desenvolvia no mercado internacional encaminhava as estruturas produtivas para o mercado interno; portanto, a substituição de importações ocorreu, mas neste período assumiu um papel coadjuvante. O esforço principal era do capital mercantil, mediante a diversiicação da produção interna por processos artesanais e manufatureiros (Rangel, 2005b, p. 675). É, por conseguinte, a partir da fase recessiva do segundo Kondratief que as bases industriais de produção começam a ser criadas no país e que a intensiicação do luxo migratório em direção às cidades contribui para a reorganização produtiva do país. O terceiro Kondratief tem início no im do século XIX. As mudanças nos centros econômicos já incorporavam a Segunda Revolução Industrial e o nível tecnológico empregado na linha de montagem contribui para o aumento da produtividade do capital. Este período está deinido por Rangel (2005b, p. 655-686) como uma lutuação de longo prazo, correspondente à renovação do capital ixo e Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 453 à revolução cientíico-técnica. Neste período, no centro do sistema, as indústrias de bens de capital são formadas e permitem a expansão da linha de montagem, ao passo que no Brasil as relações internas e externas são de base agrária. A principal composição produtiva do país é a mão de obra recém-liberta e o principal produto da pauta de exportação é o café. A dicotomia existente entre os polos da dualidade reforçava esta coniguração econômica, mas aprofundava a submissão econômica e tecnológica da nação. O período que se estendeu até a década de 1930 corresponde à fase A do ciclo de Kondratief, marcado pela expansão do café (Rangel, 2005b, p. 655-686). As mudanças ensejadas iam em direção à solidiicação do capital mercantil, ao passo que a classe econômica hegemônica, embora politicamente frágil, mantinha relações com o mercado externo, que estava em franco crescimento. O período é marcado por aumento expressivo na produtividade de capital e grande expansão no mercado internacional, além de internamente ter transformado o capitalismo, agregando elementos que viriam a caracterizá-lo por inanceiro (Rangel, 2005b, p. 655-686). A fase B do terceiro Kondratief, que se inicia com a crise de 1929 e estende-se até meados de 1950, é um dos períodos mais importantes da história econômica brasileira, pois é a fase em que o país é inserido, deliberadamente, no sistema capitalista. É o início de um período de forte apelo desenvolvimentista, com a intensiicação de políticas pró-industrialização e com o deslocamento do centro dinâmico da economia para o mercado interno (Fonseca, 2003). As instituições criadas fortalecem esta escolha e transformam todo o contexto social brasileiro. Já há um signiicativo número de famílias urbanizadas – a partir desta década, o número será sempre crescente; ao im da década de 1980, a sociedade brasileira terá completado esta transição (Araújo, 2000). Rangel (2005a; 2005b) discute que esse movimento em direção às cidades ocorre por conta da crise do café iniciada em 1927, que debilita o setor agrário e expulsa mão de obra para as cidades. O caráter do setor agrícola nos países subdesenvolvidos, de forma geral, está ligado à subsistência da família. Neste período, a dualidade interna tinha uma estrutura feudal, reforçando a ligação com a terra. Esta fase B do Kondratief traz o capitalismo para todos os setores da economia, inclusive para a agriculta, que foi mecanizada. Diferentemente do processo de formação industrial de muitos países, a industrialização brasileira deu-se pela formação da indústria de transformação (Rangel, 2005a, p. 39-128), porque o estrangulamento do balanço de pagamentos, devido à queda da demanda externa, forçava a produção interna dos bens que não 454 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil podiam mais ser importados.7 A ordem inversa da industrialização brasileira nada tinha de acidental, ela era consequência dos movimentos conjugados, das trocas de dualidade e das crises vivenciadas pelo país. Ocorreu nas condições paradoxais da criação de estabelecimentos industriais – intensivos em capital e poupadores de mão de obra –, mediante o emprego de instalações e equipamentos produzidos, em grande parte, de modo pré-industrial. Em outras palavras, o Brasil criou um departamento industrial produtor de bens de consumo (departamento 2) pelo uso de um departamento pré-industrial produtor de bens de produção (departamento 1) (Rangel, 2005a, p. 693). As mudanças que ocorriam dentro da economia nacional eram respostas à crise que se desenvolvia no centro econômico mundial. Assim, diferentemente do ocorrido nas crises dos ciclos anteriores, a política de substituição de importações tornou-se instrumento de política econômica. Primeiro, porque as dualidades não mais se complementavam. Internamente, a estrutura feudal não podia mais fazer frente às necessidades do capitalismo industrial do polo externo. Segundo, porque os deslocamentos de formação da sociedade urbana provocaram a criação de uma estrutura de consumo dependente dos bens manufaturados. Ao mesmo tempo, a não realização de uma reforma agrária levou muito mais pessoas à condição de dependência do trabalho assalariado, o que contribuiu para o aumento do subemprego e da economia informal (Rangel, 2005b). A fase A do quarto Kondratief abrange toda a era de ouro do capitalismo mundial, e o Brasil, neste período, foi a economia que apresentou maior impulso econômico (Rangel, 2005a). Quando ocorrer a mudança do ciclo, a fase B contará com uma sociedade totalmente urbanizada, um parque industrial de bens de capital consolidado, instituições que regulam o mercado de trabalho e todo o sistema inanceiro brasileiro formado. Estas mudanças, já consolidadas, permitem que sejam formados os próprios ciclos internos da economia brasileira, menores e autocorretivos. O Brasil já demonstra relativa autonomia, embora haja forte dependência dos países centrais, inclusive tecnologicamente (Rangel, 2005a; 2005b). Neste período, os Estados Unidos já são o país de capitalismo avançado com o qual o Brasil mantém relações de dependência, extremamente sensíveis aos luxos e aos reluxos. Será no polo externo da dualidade, em seu lado externo, que se desenvolve a crise do quarto Kondratief. O primeiro choque do petróleo, em 1973, é o evento que marca, de fato, o seu início (Rangel, 2005b). Antes, no im da década de 1960, a economia mundial já demonstrava sinais de menor crescimento, apesar de no Brasil este ser o período do milagre econômico. O início da quarta dualidade, indicado por Rangel, ocorreria no polo externo em seu lado externo, com a assunção 7. Essa é a tese da industrialização por exportação defendida por Pelaez (1968), já antecipada por Rangel. Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 455 pelo capitalismo inanceiro da condição de sócio maior da dualidade. E, de fato, é possível apontar a existência deste movimento através do processo de globalização e inanceirização das relações produtivas. O sistema inanceiro mundial, regulado no im da crise de 1929, passa a ser, progressivamente, desregulamentado. O Estado keynesiano assume a responsabilidade pela crise na década de 1970, ao passo que os trabalhadores têm parte de seus direitos tolhidos. Para o caso do Brasil, país periférico e dependente de capitais externos, o período provocou acentuação das dívidas internas, relexo da dependência dos mercados centrais em crise, e aumento do desemprego e da inlação. 6 CRISE, CICLO E ACUMULAÇÃO DE CAPITAL: UMA COMPARAÇÃO Os primeiros trabalhos sobre o desenvolvimento capitalista norte-americano pela ER e pela escola da SSA foram realizados em meados da década de 1970. Rangel, por sua vez, vinha desenvolvendo sua teoria da dualidade econômica associada aos ciclos longos de Kondratief e reletindo sobre o formato do desenvolvimento econômico brasileiro desde os anos 1940. A obra Dualidade básica da economia brasileira, que sintetiza a sua concepção sobre a história brasileira, foi publicada em 1957. As três concepções concordam acerca da existência de estágios de evolução do sistema capitalista e sobre o papel central que algumas instituições ocupam no processo de acumulação de capital. Outra semelhança entre elas refere-se ao marco teórico, pois partem de conceitos marxistas. Há o retorno à formação histórico-econômica dos países e, a partir dela, a relexão acerca de seu desenvolvimento, empregando o materialismo histórico para entender a evolução histórica dos países. As três abordagens discutem as diversas formações assumidas pelo capitalismo ao longo do processo histórico. Também é um elemento comum a utilização de outras correntes do pensamento econômico, em especial, a inluência de autores keynesianos e institucionalistas. A ênfase colocada em cada aspecto destas correntes de pensamento é importante para a construção dos conceitos próprios de cada concepção. No que se refere ao conceito de SSA e de modo de regulação, são perceptíveis os elementos do institucionalismo no papel determinante que as instituições ocupam na formação socioeconômica e política. Todas as correntes admitem que a crise é o momento em que as contradições do capitalismo se manifestam – no caso de Rangel, em que uma nova dualidade é formada. Entre as três concepções, a de Rangel é a que utiliza de modo mais automático as ondas de Kondratief em sua análise. O desenvolvimento econômico brasileiro é interpretado a partir dos movimentos das ondas longas. A própria organização da dualidade ocorre na crise do ciclo longo, devido ao desgaste das instituições que a compõem (Rangel, 2005a; 2005b). Na crise, são gestadas as novas estruturas 456 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil socioeconômicas e políticas para a mudança da dualidade. Há na análise de Rangel uma percepção pioneira de que no capitalismo as crises longas implicam mudanças nas instituições que dão suporte à acumulação de capital. Apesar de os autores ligados à SSA reconhecerem as longas ondas como características do sistema capitalista, eles não a veem como um movimento autônomo. As mudanças de fase ocorrem conforme a SSA chega ao seu limite, e a intensidade da luta de classe torna-se insustentável, afetando a estabilidade das instituições (Gordon, Edwards e Reich, 1982; Kotz, 1994). O retorno à fase de expansão somente ocorrerá com a construção de um novo núcleo institucional que estabilize o conlito de classe e gere uma nova SSA. Malgrado reconhecer a existência e a importância do impacto da luta de classes nos níveis de acumulação de capital, Rangel atribuiu às variáveis econômicas um papel mais decisivo na composição do desenvolvimento econômico e nas fases do ciclo de Kondratief. A característica cíclica do capitalismo não se restringe, apenas, às ondas longas. Para Rangel, a partir de 1930 passaram a ocorrer ciclos endógenos de menor duração, os ciclos de Juglar, que marcam o processo de industrialização do Brasil. De forma análoga, os autores da SSA fazem uma divisão entre dois grupos de ciclos, os reprodutivos e os não reprodutivos. Neste último grupo está incluso o ciclo de Kondratief. Contudo, as causas para a crise são distintas daquelas observadas para Rangel: este atribui a crise ao esgotamento do crescimento econômico e à necessidade de a economia interna adaptar-se ao modo de produção mais avançado, já efetivado na economia central (Rangel, 2005b). A literatura associada à SSA atribui à intensiicação da luta de classes a causa para a instabilidade no processo de acumulação de capital (Gordon, Edwards e Reich, 1982; Kotz, 1994; Lippit, 2006), bem como para a mudança nas instituições-chave. Por sua vez, a literatura associada à ER, apesar de não admitir a existência de ciclos no comportamento da economia mundial, reconhece que as grandes lutuações são causadas pelo esgotamento da relação entre o modo de regulação e o regime de acumulação, com intensiicação da luta de classes (Boyer, 1990). Para os autores da SSA, há um conjunto de instituições construídas historicamente que apoiam a acumulação de capital e que regulam a disputa entre as classes sociais. As maiores mudanças ocorrem nos períodos de transição entre as fases, indicando qual classe ou setor de classe terá a hegemonia. A fase de crescimento econômico e de maior estabilidade do conlito social ocorre com a formação institucional de um novo núcleo-chave da SSA. Com a reconstrução de novos elos entre as diversas instituições, há a retomada da acumulação de capital (Kotz, 1994; Gordon, Edwards e Reich, 1982; Wolfson, 2006). O novo conjunto institucional relete certo consenso entre as classes para a superação da crise; por isso, além de propiciar a lucratividade desejada pelos capitalistas – não necessariamente maior que a vigente no período anterior –, estabiliza tensões entre trabalhadores e capitalistas. Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 457 A ER, por seu turno, observa o desenvolvimento capitalista a partir de dois conceitos centrais: o modo de regulação e o regime de acumulação. O regime de acumulação é formado mediante a organização produtiva para o trabalho: tecnologia, estrutura de mercado, competição intercapitalista etc. A crise do capitalismo pode resultar de inadequações em qualquer uma destas estruturas (Aglietta, 1979; Lipietz, 1991). O modo de regulação corresponde ao rearranjo da estrutura social, de forma a adequá-la às exigências do regime de acumulação, a im de que o sistema possa, efetivamente, se reproduzir (Conceição, 1987). Qualquer inadequação entre o modo de regulação e o regime de acumulação poderá resultar em crises. Uma peculiaridade do pensamento de Rangel é seu objeto de análise, o Brasil, um país periférico. Enquanto a ER e a SSA estudam os Estados Unidos para tecer considerações sobre a economia capitalista mundial, Rangel observa os desdobramentos do capitalismo mundial em uma economia periférica (Rangel, 2005a). O desenvolvimento tecnológico, os ciclos longos e o próprio papel do país na divisão internacional do trabalho são, em grande medida, exógenos ao Brasil. Portanto, as instituições que aqui se formam são diferentes das vigentes nos países centrais e, em certa medida, respondem às mudanças ocorridas no país hegemônico. Nesse sentido, as dualidades reletem as mudanças tecnológicas e institucionais que ocorrem nos países centrais. As dualidades também se ocupam em estabilizar o conlito de classes, o que é fundamental para a acumulação de capital. Portanto, as instituições possuem papéis similares na sociedade capitalista. As instituições-chave que compõem o sistema capitalista e permitem sua reprodução constituem-se e desenvolvem-se por meio da luta de classes. As instituições que dão forma ao modo de regulação (Boyer, 1990), que compõem as instituições-chave da SSA (Kotz, 1994) ou, ainda, que reletem a dualidade brasileira (Rangel, 2005b, p. 553) estão divididas em cinco grandes grupos: i) forma e regime monetário; ii) relação salarial; iii) concorrência entre capitalistas; iv) adesão ao regime internacional; e v) Estado (Boyer, 2009; Diebolt, 2002; Rangel, 2005a; 2005b). Embora seja uma deinição presente na ER, todas estas instituições são analisadas pelas demais escolas. Das cinco estruturas institucionais, apenas duas (relação capital-trabalho e Estado) são diretamente inluenciadas pela tensão da luta de classes. Nas demais, a inluência é indireta, embora o componente desestabilizador seja muito forte. O elo entre as instituições, os capitalistas, os trabalhadores e o mercado externo é o Estado. É a única instituição que consegue receber as demandas de trabalhadores e capitalistas e encaminhá-las com sentido de interesse público, justamente por ser o relexo da sociedade organizada. O Estado é a construção social com a função de regular a luta de classes (Lipietz, 1984), e atua no sentido de proporcionar ao capitalista o ambiente adequado para o investimento produtivo. A SSA também reconhece esta função do Estado dentro do sistema capitalista, aproximando-se 458 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil dos regulacionistas, mas enfatizam o papel de intermediador da luta de classe, com viés para os capitalistas. Rangel (2005a; 2005b), por sua vez, caracteriza o Estado bem ao contexto keynesiano, com a função de orientar os luxos inanceiros para os investimentos, conduzir os recursos para setores que não são objeto dos capitalistas e, assim, industrializar a economia setor por setor. Não há como pensar na expansão do modo de produção capitalista sem a presença do Estado como mediador das relações sociais. Ele é a forma institucional em que se condensam os interesses econômicos, sem a qual os diferentes grupos que compõem a comunidade nacional se consumiriam numa luta sem im (Lipietz, 1984). Com uma relação de intensidade variável perante o pensamento econômico dominante, esta instituição estará sempre presente no desenvolvimento capitalista. A partir dela são concretizados os acordos de classe, ou seja, é nela que o modo de regulação e a estrutura de acumulação são estabelecidos. Os estudiosos da SSA reconhecem uma crescente atuação estatal na economia, inclusive com mudança ideológica em relação ao seu comportamento diante das questões econômicas. Quando estes airmam que as estruturas são sobredeterminadas8 (Lippit, 2006) e que, de alguma forma, o núcleo-base está interligado com as demais instituições da SSA, o responsável pela reprodução e solidez institucional é o Estado. Em uma fase recessiva, ele torna-se muito mais decisivo e reletirá, com mais clareza, a força política exercida pelo capitalista. Neste sentido, a SSA aproxima-se signiicativamente de Rangel, pois ele já havia reconhecido esta característica, ressaltando o comportamento das classes hegemônicas no delineamento das características do Estado, e de sua atuação política e econômica. “O Estado resulta da aliança de apenas duas classes dirigentes associadas num pacto de poder implícito, que só muda com a dualidade, sejam quais forem os estamentos pelos quais as duas classes dirigentes se façam representar” (Rangel, 2005b, p. 665). É por meio dele que se darão as mudanças institucionais e que serão asseguradas as oportunidades de investimento em novos setores produtivos (Cruz, 1980). Essas mudanças institucionais acompanham a troca da dualidade, e em cada período da história econômica brasileira o Estado assume caráter distinto – distinto inclusive daquele indicado como ideal pela teoria econômica. Rangel (2005b, p. 717) airma que as mudanças nos serviços públicos acompanham as crises e, portanto, as trocas na dualidade. Quando o ciclo de Kondratief retornar à sua fase expansionista, uma das causas deste movimento será a nova forma de gerenciamento dos usos e recursos disponíveis. Assim, as mudanças seguem essa lógica: primeiramente, os serviços públicos são concedidos a empresas privadas estrangeiras; depois, à administração direta do Estado; e, por im, a empresas públicas (Rangel, 2005a; 2005b). Esta última forma, característica do período de 8. Lippit (2006) desenvolve o conceito de sobredeterminação e o deine como uma relação mútua entre as instituições, que permite a incorporação de elementos umas das outras e das forças sociais que interagem na sociedade. Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 459 crise do quarto Kondratief, reairma a falta de uma política de inanciamento das empresas públicas, entre os muitos problemas que este período sugere. Somada ao nível da dívida da União, esta política colabora para o estado de insolvência das contas públicas (Rangel, 2005b). A próxima mudança no oferecimento dos serviços públicos deverá ser feita por meio de empresas privadas, ou seja, por meio da privatização dos serviços públicos (Rangel, 2005b, p. 722). O autor justiica esta polêmica proposta argumentando que o setor privado tem condições de hipotecar seus bens ao Estado e capitalizar-se no mercado de títulos e, por esta razão, detém uma fonte de inanciamento para os investimentos necessários no setor, que não está disponível para o Estado. No que se refere às relações entre capital e trabalho, as três escolas fazem jus à sua origem marxista. A ER destaca o caráter evolucionário nas relações capital-trabalho, a crescente automatização do chão de fábrica e a apropriação pelo capitalista do espaço de produção. Trata-se do que Lipietz (1988) deine como “a submissão real do trabalho ao capital, (...) da produção ao uso das ferramentas, o trabalhador tende a tornar-se servente da máquina”. Esta escola ainda chama a atenção para a inserção do trabalhador no sistema produtivo como consumidor, com a mudança no regime de acumulação após 1930. O sistema de produção fordista é responsável por esta característica, ao institucionalizar a luta de classes a partir das negociações coletivas e criar uma norma para o consumo (Aglietta, 1979). A SSA, por sua vez, também reafirma o progresso contínuo do sistema capitalista a partir das relações de trabalho, mas seus autores dão mais ênfase à luta de classes na determinação da estrutura institucional que permite a reprodução estável do capital. O ponto-chave para a construção da estrutura de acumulação do pós-Segunda Guerra está fundamentado no controle do processo de trabalho e dos acordos de cooperação via sindicato para garantir aumentos salariais regulares (Kotz, 1994). A análise é muito próxima à feita pela ER, inclusive, as conclusões alcançadas com a regulamentação e a institucionalização do mundo do trabalho também sugerem o aumento da demanda por bens inais. Rangel discute todas as questões referentes às relações capital-trabalho a partir da reforma agrária. O que de fato proporcionou a constituição do mercado de trabalho no Brasil foi o deslocamento de trabalhadores do setor agrícola para as cidades, o que, sem uma prévia reforma agrária, levou os trabalhadores a subempregos (Rangel, 2005b). Este enorme exército industrial de reserva pressionava para baixo os níveis salariais, subjugando a classe trabalhadora e aumentando a favelização das cidades. O desenvolvimento capitalista pressupõe desenvolvimento tecnológico, devido a duas necessidades: i) fazer frente às diversas e crescentes necessidades dos indivíduos; e ii) garantir a reprodução do capitalismo, em épocas de crise 460 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil ou estabilidade. As três escolas estudadas observam o avanço tecnológico sob o mesmo prisma: aumento da produtividade do capital. Para a SSA e Rangel, considerar o desenvolvimento capitalista a partir de ciclos de Kondratief torna a inovação tecnológica parte do ciclo produtivo e elemento impulsionador dos desenvolvimentos sociais (Rangel, 2005b). A ER se coloca em posição contrária neste ponto, pois o empuxo do progresso tecnológico pode ser expresso concretamente por meio das transformações das condições sociais de produção (Aglietta, 1979). Embora Rangel e a SSA estudem o impacto do progresso tecnológico no crescimento das nações, as percepções são distintas porque os objetos de análise são, naturalmente, antagônicos. A SSA observa a criação e a expansão tecnológica com seus ganhos de produtividade a partir da ótica do país que a desenvolve – nesse caso, dos Estados Unidos para o resto do mundo –, enquanto Rangel observa o resto do mundo. Como nação subdesenvolvida que é, o Brasil não produz tecnologia, pois não existem nos países periféricos precondições históricas e cientíicas para a produção de tecnologia de vanguarda (Rangel, 2005b, p. 255-408), embora estas condições possam ser criadas. Nestas economias, os movimentos de resposta aos ciclos de Kondratief referem-se, também, à assimilação da tecnologia oriunda do centro dinâmico – muitas vezes, já defasadas. Mas, ainda assim, uma vez que novas instituições são construídas como condição para superar a fase B do Kondrtief, o progresso técnico assume seu papel importante dentro da reprodução capitalista. As inovações tecnológicas surgem em resposta ao cenário de crise da fase B do Kondratief e tornam-se o elemento central para a saída do país da crise em que se encontra. A superação será feita, sempre, via adoção de uma tecnologia já amadurecida (Rangel, 2005b, p. 271). Ainda por conta do caráter subdesenvolvido da economia nacional, e diante da impossibilidade de produção de tecnologia, Rangel (2005b) aponta para a substituição de importações como o caminho para o progresso técnico. Embora haja alguns pré-requisitos, produzir tecnologias signiica ter autonomia sobre suas decisões de investimento e, portanto, utilizar-se dos instrumentos de política econômica para propor caminhos para o desenvolvimento. Mas, antes, é necessário solidiicar o departamento produtor de bens de produção da economia (departamento 2), e ainda importar tecnologia em estado puro (Rangel, 2005b, p. 255-408); só assim haverá ganhos de produtividade. Neste ponto, há uma aproximação com os teóricos franceses da ER, quando se percebe a dependência da produtividade em relação às importações e à adaptação das tecnologias incorporadas aos equipamentos e aos bens intermediários produzidos pelas economias mais avançadas (Boyer, 2009). Um ponto pouco explorado por Rangel, mas que é predominante em toda a discussão da SSA e da ER no que se refere à tecnologia, é o crescimento do desemprego devido ao aumento da produtividade. As irmas buscam o investimento em tecnologia visando à redução de seus custos, à poupança de mão de obra e à Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 461 ampliação de sua competitividade (Diebolt, 2002). Este é o caminho para que lhes seja possível lançar-se no mercado internacional. As questões que tocam o mundo do trabalho remontam à luta de classes e a seu acirramento. O processo de produção impele o desenvolvimento de tecnologia tanto para o consumo quanto para a linha de montagem, e isto libera mão de obra para empregos mal remunerados ou para o completo desemprego. Ou, ainda, a própria irma leva a sua planta de produção para um país em que a organização trabalhista seja pouca ou inexistente, gerando formações distintas de capitalismo, como o fordismo periférico (Lipietz, 1988; Coriat e Saboia, 1988). Todavia, a irma continua desenvolvendo tecnologia e a enviando para os países subdesenvolvidos, mantendo a divisão do trabalho dentro da irma e entre os países. Estas mudanças têm sido facilitadas, em grande medida, pela evolução tecnológica na comunicação e nos transportes, que permitiu o gerenciamento da produção e do trabalho a distância (McDonough, 2006). O desenvolvimento tecnológico é conquistado em paralelo com o desenvolvimento econômico e social. Conforme o país avance em direção a formas capitalistas mais avançadas é que se tornará capaz de produzir tecnologia (Rangel, 2005b). Desta maneira, a perspectiva industrializante imprime a necessidade de domínio do setor tecnológico por qualquer país que almeje a saída do subdesenvolvimento, a inserção no mercado internacional e a melhoria das condições de vida de sua população. 7 CONCLUSÃO Estudar o comportamento do capitalismo e seus impactos nas diferentes sociedades foi do interesse das diversas escolas de pensamento próximas à tradição marxista. Apesar das diferenças, esta inquietação acaba por produzir conceitos e relexões que se aproximam em grande medida. Este capítulo discutiu algumas similaridades, bem como diferenças, entre três escolas do pensamento econômico próximas ao marxismo, a saber: a ER, a escola da SSA e o trabalho de Rangel. A ER e a escola da SSA partem de base semelhante, inclusive cronologicamente: suas relexões iniciaram-se nos anos 1970, analisando o desenvolvimento capitalista a partir do centro econômico mundial e seus desdobramentos no restante da economia. Rangel observa os efeitos do capitalismo em um país periférico, e identiica a relação estreita entre o sistema econômico e as instituições socioeconômicas, convergindo para sustentar os níveis de lucro e a estabilidade social e política. Percebe-se, também, que os movimentos do capitalismo não são formados, apenas, de elementos econômicos. As relações são sociais e, por isso, remetem a fundamentos não deinidos economicamente, mas construídos e transformados conforme o contexto histórico e, principalmente, conforme o desenvolvimento da luta de classes. Uma primeira conclusão aponta para a importância das instituições no processo de desenvolvimento econômico e seu papel na manutenção da sustentabilidade da Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 462 lucratividade e na acumulação de capital. Para as três escolas, a luta de classes tem papel fundamental na construção e na manutenção de um conjunto de instituições na economia capitalista. Como na crise se acirra a luta intraclasses e interclasses, este é o momento de acentuação das contradições e a construção de novas instituições, bem como da adoção de um novo bloco de inovações. A ER e a escola da SSA reconhecem as crises como consequência do acirramento das lutas de classes e do limite alcançado pelo conjunto institucional. A superação dos períodos de instabilidade se dá mediante a construção de um novo núcleo-base que propicie a retomada da taxa de lucro. Rangel considera a crise um evento regular e predeinido pelos ciclos de Kondratief. Airma que nas crises do ciclo longo ocorreram mudanças na dualidade vigente na fase expansiva. Esta concepção pode sugerir um comportamento mecânico ao observador pouco atento. No entanto, sua verdadeira natureza traz elementos que permitem explicar a inluência dos eventos não econômicos no comportamento do capitalismo brasileiro e o porquê de as crises longas serem formadas exogenamente. Ambos os fatores são explicados pela característica dual das instituições econômicas e políticas brasileiras, nas quais sistemas produtivos e formações políticas distintas convivem e reproduzem-se continuamente até seu limite. Este ponto de crise é alcançado quando estas instituições não conseguem estabilizar as lutas de classes e a lucratividade. A análise de Rangel contribui para entender o desenvolvimento capitalista em seu contexto histórico e institucional. O pensamento de Rangel, construído na periferia da economia mundial, revela-se pertinente e atual, e aponta elementos que permitem compreender a crise em curso. REFERÊNCIAS AGLIETTA, Michel. Regulación y crisis del capitalismo: la experiencia de los Estados Unidos. Tradução: Juan de Bueno. Madrid: Siglo Veiteuno, 1979. 344 p. ARAÚJO, Tânia B. de. Ensaios sobre o desenvolvimento brasileiro: heranças e urgências. Rio de Janeiro: Revan, 2000. BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. 480 p. BOYER, Robert. A teoria da regulação: uma análise crítica. Tradução: Renée Barata Zicman. São Paulo: Nobel, 1990. 192 p. ______. Teoria da regulação: os fundamentos. Tradução: Paulo Cohen. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. 156 p. Ciclos, Instituições e Dualidade Econômica: Rangel 463 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; RÊGO, José Márcio. Um mestre da economia brasileira: Ignácio Rangel. 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CAPÍTULO 17 IGNÁCIO RANGEL E A CATEGORIA DUALIDADE BÁSICA: UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL Maria Mello de Malta1 Certa palavra Certa palavra dorme na sombra de um livro raro. Como desencantá-la? É a senha da vida a senha do mundo. Vou procurá-la. (...) Procuro sempre, e minha procura icará sendo minha palavra. Carlos Drummond de Andrade 1 INTRODUÇÃO Ignácio Rangel foi um pensador do Brasil. Sua contribuição genuinamente brasileira transcende a de um estudioso expert em analisar temas e questões brasileiras. Tem a cara da complexidade deste país, que, segundo ele, seria irretratável por teorias estrangeiras, pois precisava de um estudo próprio, que descrevesse seus movimentos tão particulares e, ao mesmo tempo, tão conectados às inquietações da ordem externa. Maranhense da cidade de Mirador, nasceu no dia 20 de fevereiro de 1914. Seu pai era um juiz crítico do governo local; muito provavelmente por isso, transferido constantemente de localidade, pelo interior do estado. O menino Rangel, então, teve que se construir intelectualmente como autodidata, na medida em que muitas das cidades em que viveu não possuíam escolas. O próprio pai fora a igura fundamental na formação do rapaz e, em sua percepção do ilho, acabara por “predestiná-lo” para o direito desde cedo. 1. Professora adjunta do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) e Coordenadora do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (Lema). 466 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Em 1926, foi para a capital fazer o ginasial. Um pouco pelo caráter curioso e crítico e outro tanto pela inluência de seu pai, que lhe contava desde cedo as venturas e desventuras da Coluna Prestes, Rangel acabou integrando-se ao movimento denominado Revolução de 1930, participando da sublevação do 24o Batalhão de Caçadores. Sua sanha revolucionária não arrefeceu nunca: em 1935, partiu para mais uma ação, a Aliança Nacional Libertadora (ANL). Desta vez terminou preso. Enviado para cumprir pena no Rio de Janeiro, participou de uma espécie de universidade popular do presídio, quando, segundo o próprio, tratou de dar cabo do estudo de alemão, francês, inglês, sociologia, economia e matemática (Rangel, 1991). Libertado depois de dois anos, retornou ao Maranhão de onde foi impedido de sair durante oito anos. Já nesta época, começou a reletir sobre os problemas do projeto nacional dominante. Percebia que o país vivia os estertores de uma crise e que não era possível pensar o Brasil sem esta dimensão. Por isso, Rangel foi um dos autores que mais inluenciou a produção crítica sobre a questão do desenvolvimento brasileiro sob crise. Seu trabalho marca as penas de autores fundamentais para a construção do debate, inclusive universitário, no Brasil, como é o caso da professora emérita Maria da Conceição Tavares, que já se declarou muitas vezes rangeliana2 em sua análise sobre o desenvolvimento brasileiro. Contraditoriamente, Rangel não é amplamente reconhecido como um pensador importante na academia brasileira. Como teórico, ainda que não acadêmico, Rangel organizava seu pensamento a partir de um esquema analítico que construíra com base no método dialético de aplicação do materialismo. A este esquema de compreensão da realidade do país chamou de tese da dualidade básica da economia brasileira. 2 A DUALIDADE BÁSICA E SEU MÉTODO A tese da dualidade básica, segundo Castro e Bielschowsky (1987), trata da história econômica e política do Brasil. Corresponde a uma adaptação original do materialismo histórico e da teoria econômica para a análise do caso brasileiro, de onde Rangel retirou leis gerais da formação histórica e do funcionamento da economia brasileira para descrever o processo de desenvolvimento do país. 2. Pode-se destacar a referência, na introdução a sua obra Da substituição de importações ao capitalismo financeiro: ensaios sobre economia brasileira, à posição inovadora de Rangel no debate sobre o padrão de acumulação brasileiro, que continha uma forte crítica à interpretação estagnacionista do desenvolvimento nacional na entrada dos anos 1960. Neste texto, Tavares (1973, p.18) airma, sobre Rangel, que “suas ideias originais sobre inlação, superinvestimento e capacidade ociosa foram levantadas antes que o sistema entrasse em crise total e não deixa de ser uma ironia para um intelectual crítico que o governo posterior aplicasse ‘ortodoxamente’ não poucas das receitas ‘heterodoxas’ recomendadas por ele no seu livro Inlação Brasileira, no que respeita a inanciamento público e mercado de capitais, com um sentido histórico inteiramente distinto daquele que aconselhava o autor”. Ignácio Rangel e a Categoria Dualidade Básica: uma interpretação do Brasil 467 Rangel via a história como uma sequência de etapas nas quais se articulavam os modos de produção da vida, suas relações sociais de produção e o desenvolvimento das forças produtivas. A tais formas estruturais, Rangel considerava que existiam correspondentes métodos superestruturais que derivavam e eram limitadores desta infraestrutura.3 Cada etapa de desenvolvimento deste conjunto dialético de estrutura e superestrutura corresponderia a um modo de produção especíico. A sequência destas etapas, porém, não estaria predeterminada e poderia incorporar uma série de especiicidades distintivas. A dinâmica de seu argumento preservava a essência dialética do materialismo, ainda que permeado por um tanto de esperança evolucionista, ou seja, seguia a lógica de que um modo de produção se transformaria em outro, mais avançado, no momento em que as suas relações de produção deixassem de estimular o desenvolvimento das forças produtivas e passassem a entravá-lo. No caso periférico, mais especiicamente no caso brasileiro, que é o seu verdadeiro objeto, Rangel destacava que as especiicidades eram fundamentais para se perceber como a sequência de etapas brasileiras se distinguira da trajetória do centro capitalista durante seu processo de formação. Assim, abriu espaço em sua teoria para a adaptação crítica das teses econômicas existentes no campo do marxismo e da teoria econômica ocidental para a análise do Brasil, em sua inserção especíica na economia mundial e na história de formação do capitalismo. Segundo Rangel, o elemento fundamental que diferenciaria, desde o ponto de partida, a análise de uma economia como a brasileira seria a evolução das suas relações com as economias centrais. Estas relações, combinadas com a interação entre o desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção, dariam origem aos processos sociais, econômicos e políticos brasileiros. Em larga medida, as relações externas são determinantes do desenvolvimento das forças produtivas internas e, consequentemente, também das relações de produção internas. Não se poderia encontrar um método marxista mais autêntico, no sentido de se preocupar em ser materialista, histórico e dialético. Materialista, por jamais perder o concreto como ponto de partida e de retorno do processo de compreensão; histórico, por poder perceber como as especiicidades históricas vão inluenciar as trajetórias de desenvolvimento; e dialético, por se preocupar com todas as contradições presentes como constituintes do movimento do todo. No entanto, Rangel foi obscurecido no debate da história do pensamento econômico brasileiro por ser considerado um determinista, dualista e, por isso, nada dialético. Analisar-se-á na proxima seção, como isso ocorreu. 3. As formas superestruturais eram muito importantes na análise de Rangel, pois, sendo compostas das leis, das formas políticas de governo e sucessão, bem como de todo o aparato da consciência social (em larga medida, ideológico), traziam em si o espaço de concretude da disputa das ideias. Para ele, conhecer as leis de um país era uma parte fundamental do processo de compreensão da sua formação histórica, na medida em que é nas leis que se inscreve a história dos vencedores. 468 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 3 A DUALIDADE BÁSICA ENQUANTO CATEGORIA E TEORIA O primeiro passo para a incompreensão da obra de Rangel foi dado por ele mesmo, quando escolheu a palavra dualidade para intitular sua interpretação. O estudo Dualidade básica da economia brasileira foi editado em 1957, pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiro (ISEB), na série Textos brasileiros de economia. Nesse período, a noção de dualidade estava associada a dois grupos: a direita agrarista conservadora e o stalinismo ortodoxo. Apesar de representarem pensamentos bastante opostos do ponto de vista político, ambos eram largamente contestados pelo pensamento crítico libertador da época. Os livros Raízes do Brasil e formação do Brasil contemporâneo, respectivamente de Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior, já tinham sido publicados há cerca de duas décadas e eram o norte do pensamento daqueles, como diz Antonio Candido, “que adotavam posições de esquerda, como eu próprio” (Candido, 1967, p. 13). Assim, naquele momento histórico, o Brasil dual era aquele conforme interpretado pelos que tinham como norte uma orientação metodológica ou naturalista, ou de tipo positivista, apresentando uma visão hierárquica e/ou autoritária da sociedade. Rangel não tinha nenhuma das duas filiações. Como já mencionado, sua juventude foi marcada por pensamentos e ações revolucionários, o que o incompatibilizava com o pensamento de direita. Havia saído, ainda, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em virtude do grau de heterodoxia de sua interpretação teórica. A visão de dualidade rangeliana era (e é) extremamente original, como será visto a seguir. Nesse ponto, parece razoável supor que faltaram ao autor palavras adequadas para expressar suas ideias, tendo sido obrigado a lançar mão de expressões já institucionalizadas no âmbito de várias teorias, com vistas a dar a elas novos signiicados, na intenção de criar uma teoria diferente para a compreensão do Brasil. O autor, porém, falhou simbolicamente, na construção destas novas referências. A categoria de dualidade básica aparece na obra de Rangel sempre aplicada a um contexto histórico. No livro de 1957, já anteriormente mencionado, o autor assume, no prefácio, sua tarefa crítica e seu elemento conservador. Nele, airma que o conceito de dualidade não é novo, mas que ainda não se haviam extraído dele todas as suas consequências, e que utilizá-lo reletiria sua posição de não abandonar a ciência econômica estrangeira. [Ou] demoli-la, para, sobre os seus escombros erigir uma ciência autóctone, mas, ao contrário, salientar um aspecto próprio de nossa economia, a im de facilitar o emprego dos instrumentos cientíicos tais quais os importamos e que, não raro, são inúteis sem esta precaução (Rangel, 2005, p. 286). Assim, airmava que seus estudos o haviam levado à conclusão de que o que há de peculiar no Brasil é a dualidade, no sentido de que, no país, todas as instituições e categorias possuem dupla natureza e se apresentam como coisas diversas, se vistas Ignácio Rangel e a Categoria Dualidade Básica: uma interpretação do Brasil 469 do interior ou do exterior. Partiu, então, imediatamente, para aplicá-la à formação histórica da nação brasileira, cujo ponto de partida seria a abertura dos portos. Em todos os seus textos, Rangel tem sempre como referência analítica sua teoria da dualidade básica. Seus textos sobre a questão agrária, sobre tecnologia e crescimento e sobre a economia brasileira e o projeto nacional, escritos no calor de debates fundamentais na história brasileira do século XX, possuem a marca indelével desta teoria original. Por isso, não é possível pensar Rangel sem compreender esta estrutura básica, que será discutida adiante. A primeira questão a ser compreendida é que a categoria dualidade pretende descrever, em toda sua complexidade, a formação histórico-social predominante em um período no Brasil. Desse modo pode-se dizer que esta categoria cumpre o papel de identiicar os modos de produção (articulação dinâmica entre estrutura e superestrutura) existentes no Brasil em cada época. A condição histórica de se ter constituído como nação tardiamente em relação aos países do centro capitalista, na compreensão de Rangel, trazia a necessidade de apreciar sempre o movimento, de forma simultânea, de uma perspectiva interna e externa. Assim, cada dualidade da economia brasileira como um todo seria originada a partir da dupla determinação das relações internas e externas, que também vão consubstanciar a dualidade presente em todas as instituições econômicas brasileiras. Vale ressaltar que Rangel articula, todo o tempo, os dois lados (interno e externo) das dualidades e os identiica como partes de uma mesma dinâmica de desenvolvimento, construindo uma unidade de contrários – que, a despeito de ser uma unidade, ainda assim preferiu descrevê-la com a palavra dualidade. Como em toda análise dialética, Rangel introduz um movimento que ao mesmo tempo é a essência e a explicação da tese da dualidade brasileira. Cada dualidade é um modo de produção complexo, que combina elementos de diferentes modos de produção já referenciados na análise da história europeia e mundial. Os modos de produção brasileiros (dualidades) se sucedem segundo uma lógica que se expressa em cinco leis que organizam os movimentos dos componentes da dualidade. Cada dualidade possui um polo externo e um polo interno e cada polo possui dois lados. O polo interno expressa a convivência de dois modos de produção no país. O lado interno do polo interno diz respeito à relação interna de produção mais arcaica, ainda que predominante em parte do tempo. É nele que está a forma a ser superada. O lado externo do polo interno representa a nova forma de organização produtiva, que começa, minoritariamente, convivendo com a antiga até o momento em que o desenvolvimento das forças produtivas indica que é a hora de se superar 470 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil o modo arcaico e substituí-lo. O lado externo do polo interno comunica-se com o lado interno do polo externo na dualidade. O polo externo representa as relações do país com o exterior tanto em sua face de inserção no mercado mundial como em sua face de recepção do movimento mundial. O lado interno do polo externo é a forma por meio da qual o país se relaciona com o exterior, e que traz em si o modo de produção mais adiantado. Segundo Rangel, será esta a forma de produção que irá ocupar o lado externo do polo interno quando aquele se modiicar. Finalmente, o lado externo do polo externo representa o modo de produção vigente no centro do sistema. Assim, os lados interno e externo do polo interno, bem como o lado interno do polo externo dizem respeito às formas das relações sociais de produção e às forças produtivas vigentes no Brasil. Já o lado externo do polo externo retrata o andamento das relações sociais e forças produtivas em curso no centro capitalista ao qual o país está submetido. A caracterização dos polos e dos lados da dualidade é importante para sua compreensão, mas ainda não revelam sua chave analítica, qual seja, o seu movimento. Rangel pretendia apresentar uma leitura baseada na lógica dialética. Portanto, o aspecto essencial para sua compreensão está na sua capacidade de descrever o movimento das estruturas caracterizadas. A descrição do movimento transformador das dualidades foi sumariada pelo autor nas cinco leis de funcionamento apresentadas a seguir. 1) O desenvolvimento das forças produtivas muda a dualidade, mas a mudança ocorre apenas em um dos polos. 2) Os polos interno e externo mudam alternadamente. 3) O polo muda pelo processo de internalizar o modo de produção existente no seu lado externo. 4) O lado externo do polo em mudança também se modiica, incorporando elementos de um modo de produção mais avançado. 5) As mudanças na dualidade brasileira são provocadas por mudanças no centro dinâmico. Assim, a leis de movimento garantem que cada polo muda sempre sozinho, e que uma mudança no polo externo será sempre seguida por uma mudança do polo interno e vice-versa. Não é possível que um dos polos mude sem implicar mudanças no outro, ou que mude novamente antes do outro polo o acompanhar. A dinâmica da mudança é sempre a incorporação do externo para dentro, o que implica, em última instância, que o movimento detonador do processo de mudança Ignácio Rangel e a Categoria Dualidade Básica: uma interpretação do Brasil 471 vem sempre de fora. Esta visão evidencia o grau de dependência que Rangel identiica nas dualidades brasileiras. Por isso, também, muitos o chamaram de determinista. A interpretação deste trabalho como determinista padece da incompreensão de que se trata de uma explicação para a história do Brasil. A tese da dualidade básica, ao descrever a história, fala de algo que já está determinado e aponta para uma dinâmica que pode ser mantida ou rompida. Porém, permanece a questão sobre se o rompimento com o sistema capitalista teria de vir também do centro do capitalismo ou se está aberto a um movimento nacional ou da periferia, como possível saída. Para Rangel, a dinâmica do centro também segue uma lógica, que é a do ciclo de Kondratiev. Segundo Kondratiev, a economia capitalista se desenvolve em ciclos de aproximadamente cinquenta anos. Estes ciclos longos estão relacionados com o processo de difusão das inovações tecnológicas, cuja dinâmica implica uma progressiva substituição técnica e uma consequente onda de investimento produtivo capaz de gerar empregos até o ponto em que a nova técnica passa a dominar a anterior. Esta dominância determina uma obsolescência da tecnologia antiga, que determinará um sacrifício de recursos materiais e humanos correntemente em uso, expressando-se na forma de crise. A superação desta é dada pela própria dinâmica do ciclo. Após um período de crise, em que há queima de capital e desemprego, abre-se espaço, em seguida à maturação no último ciclo de investimento, para a introdução progressiva de uma novíssima técnica, restaurando seu movimento ascendente por meio do investimento em nova tecnologia. A questão levantada por Rangel era que, no Brasil, no entanto, não era possível identiicar a dinâmica dos ciclos de Kondratiev, na medida em que o país era uma economia dependente do ponto de vista tecnológico, onde a dinâmica de inovação não era traçada internamente. Rangel era bem radical nesse aspecto, supunha totalmente ilusória para o Brasil a hipótese de independência tecnológica imediata, fundamentalmente pela ausência de um setor inanceiro estruturado. De seu ponto de vista, o efeito fundamental desse ciclo longo na dualidade brasileira é que, na fase recessiva do ciclo, há uma mudança dos parceiros da aliança de poder que domina as relações político-econômicas. Isso ocorre porque a economia dependente ica forçada a voltar-se para dentro, já que há um estrangulamento do comércio exterior nos momentos de crise no centro capitalista. Sua tese central é de que a superestrutura política acompanha as mudanças na infraestrutura “dual”, num movimento que, como o da própria infraestrutura, passa por rupturas, seguindo a lógica dos ciclos longos de Kondratiev. 472 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Com isso, resta então a última questão: saber como este complexo esquema teórico daria origem a uma interpretação do Brasil. 4 A DUALIDADE COMO UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL A teoria da dualidade de Rangel foi construída como uma crítica marxista ao etapismo que vigorava na ortodoxia do pensamento deste campo sobre o stalinismo ou no marxismo destituído de sua dialética. O próprio Rangel, em 1930, lutara com a ANL, tendo como interpretação de referência o etapismo ortodoxo. Acreditava que, sem a reforma agrária, não seria possível que o Brasil se industrializasse. Em seguida, assistiu à primeira fase do processo substitutivo de importações, precisou parar para compreender os limites da abordagem que seguira e chegou à teoria da dualidade. Em sua primeira formulação, a teoria da dualidade partia da concepção de que: fora da história, a economia se reduz à lógica, à dialética e a uma gnoseologia, que, tanto são econômicas como físicas ou químicas. Não existe, pois, economia “pura” (…). A ciência econômica, porém, varia com o modo de produção, e este muda ininterruptamente (Rangel, 2005, p. 287-288). A referência de Rangel para dar partida ao intento de interpretar o Brasil com sua teoria historicizada é Mauá. Rangel destaca em Mauá a preocupação de fazer uso do “bom senso nacional”, que, segundo o maranhense, tinha implícito um aspecto essencial da noção de historicidade das leis da ciência social. De seu ponto de vista, estava aí colocada a ideia de que o homem varia seu ser e sua consciência segundo a realidade social em que surge e cresce. Este Mauá seria ratiicado pelo pensamento de Keynes, que só teria proposto sua Teoria geral para explicar uma economia monetária – algo que Rangel airmava não ser completamente o caso da economia brasileira –, bem como por Prebisch, recusando-se a admitir o sentido de universalidade que normalmente se pretende atribuir às teorias formuladas nos centros mundiais. Desta perspectiva, Rangel airma: “Recuso-me a admitir que a economia de uma tribo indígena pré-cabralina seja regida pelas mesmas leis que regem o funcionamento da bolsa de Nova York ou os planos quinquenais soviéticos” (Rangel, 2005, p. 289). Sob esta certeza, Rangel formula questionamentos sobre o comportamento histórico do capitalismo e airma que se há algo que pode ser considerado permanente em uma economia capitalista é que períodos de depressão se alternam com períodos de prosperidade. Indica, inclusive, que alternativas para solucionar esta instabilidade cíclica foram sendo construídas historicamente. Estas saídas, identiicadas por ele como presentes no centro do sistema, estariam postas pelo socialismo, de um lado; e pelos gastos públicos, pelo lado do contexto capitalista. Destaca, em ambos os Ignácio Rangel e a Categoria Dualidade Básica: uma interpretação do Brasil 473 casos, a ação humana deliberada em prol da estabilidade e, assim, o sentido do planejamento. Para Rangel, uma lei que fora antes verdadeira, na medida em que reletia com suiciente idelidade um processo real, torna-se falsa com o correr da história. Isto porque é substituída por outra cuja construção é resultado deliberado de ações humanas, “porque o acaso (…) não pode ser outra coisa que a expressão de nossa ignorância” (op. cit., p. 291). Se isso é verdade para as economias modernas, centrais, Rangel se pergunta o que dizer então de uma economia que seja ao mesmo tempo moderna e antiga. A resposta que encontra para esta pergunta é a dualidade. No Brasil, a convivência de modos diversos de organização social da vida implicaria a impossibilidade de se aplicar as leis do capitalismo a partes importantes constituintes do sistema econômico vigente dentro de nossas fronteiras. Em 1957, quando escreveu pela primeira vez sobre a interpretação do Brasil a partir da dualidade básica, Rangel identiicou a coexistência de um setor capitalista e um pré-capitalista na economia brasileira. Airmava também que o próprio setor capitalista não era homogêneo, pois se articulava externamente com um capitalismo que estaria, em sua visão, na fase descendente do ciclo, enquanto, internamente, a própria crise mundial articulava um “vigoroso capitalismo nacional” desenvolvido com base na substituição de importações. Para além da identiicação da coexistência de várias etapas características do desenvolvimento da economia ao longo da história do Brasil, o que intrigava o intelecto de Rangel era descobrir como as leis dos vários modos de produção coetâneos se articulavam, auxiliavam ou limitavam umas às outras. Com esta questão em mente, Rangel apresentou, talvez de forma mais acabada em seu artigo A história da dualidade brasileira, de 1981, uma interpretação sobre o Brasil na forma da construção de dualidades que foram se transformando. A primeira dualidade iniciar-se-ia com a abertura dos portos, em 1808, pois Rangel considera que este movimento gestou a integração do polo externo brasileiro. De seu ponto de vista, a sanção política deste movimento foi dada pela Carta da Lei de 1815, que criou o Reino do Brasil, ganhando sua forma inal com o 7 de setembro de 1822. Na interpretação de Rangel, as dualidades brasileiras mudam a partir de alterações que ocorrem no centro capitalista, mais especiicamente na fase B (fase declinante) do ciclo de Kondratiev. No caso da primeira dualidade, Rangel destaca que os movimentos no centro iniciaram-se na Revolução Francesa (1789) e terminaram sua caracterização em Waterloo (1815), com a restauração. Assim, o polo externo na primeira dualidade brasileira teria em seu lado externo o capitalismo industrial europeu, que se articulava com o lado interno por meio do capitalismo mercantil constituído dentro do Brasil, a partir de 1808, 474 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil com a instituição de um aparelho de intermediação mercantil distinto do serviço público concedido a uma empresa pela Coroa de Portugal. O polo interno da primeira dualidade tem outras referências, pois havia se caracterizado em seu lado interno pela organização da produção escravista, centrada na fazenda de escravos que “tende a tudo reduzir à condição dos escravos, inclusive trabalhadores livres e semilivres” (Rangel, 1981, p. 668). O lado externo do polo interno seria a faceta feudal deste mesmo sistema, na medida em que a produção escravista, segundo Rangel, se dava sobre uma estrutura de propriedade e uso feudal da terra, seguindo as máximas “toda terra é terra do Rei” e “nenhuma terra sem senhor”. Rangel identifica a sociedade brasileira sob a primeira dualidade como caracterizada pelo domínio de apenas duas classes (duais) representativas dos dois polos. Estas classes seriam os vassalos-senhores de escravos, como hegemônicos e representando o polo interno, e os capitalistas mercantis, representando o polo externo. Rangel denomina o grupo social hegemônico de sócio maior da dualidade, enquanto o outro grupo dominante é intitulado de sócio menor. O movimento de mudança interno é apresentado com a lógica da luta de classes, e, por isso, airma que o sócio menor teria a função precípua de “fortalecer-se economicamente, assumir novas posições de comando no sistema e amadurecer politicamente, ganhando coesão, homogeneidade e clara consciência de seus interesses” (op. cit., p. 670). Caracterizada assim, e nascida sob o signo da transição da fase A para a fase B do primeiro Kondratiev, a primeira dualidade teria como papel histórico resolver o problema de assegurar o crescimento da economia – não obstante o estancamento prolongado do comércio exterior – ou, em outras palavras, promover um processo de substituição de importações.4 As considerações elaboradas por Rangel, acerca da substituição de importações, são muito heterodoxas. Na visão dele, a permissão de existência de indústrias no país, dada com a abertura dos portos, não signiicou a possibilidade de instalação de uma indústria substitutiva de exportações, no sentido próprio, em virtude da violência da concorrência externa. No entanto, segundo airma, houve substituição de importações no Brasil no contexto do feudo-fazenda de escravos. Nas palavras do autor: Com efeito, escorraçado da economia de mercado, o esforço de substituição de importações, nas condições da fase B do Kondratiev (1815-50), assumiria a forma especíica de diversiicação da atividade produtiva, no interior da fazenda de escravos, vale dizer nas condições da economia natural, aonde o poder de competição da 4. Esta será a dinâmica de ajustamento em toda dualidade. As mudanças de dualidade são sempre precedidas deste tipo de movimento. Ignácio Rangel e a Categoria Dualidade Básica: uma interpretação do Brasil 475 indústria capitalista do centro dinâmico chegava mais enfraquecido do que limitado por uma forte tarifa aduaneira (op. cit., p. 671). A esta ação substitutiva de importações, Rangel atribui a mudança de natureza da fazenda de escravos, que crescera em escala e se tornara menos agrícola, na medida em que realocava seus recursos internos para atividades como construção, indústria de transformação e serviços. Na visão do autor, o feudo-fazenda de escravos se tornara mais autárquico, o que implicava que o país como um todo se tornava mais autossuiciente, e capaz de crescer em ritmo diferenciado daquele marcado pelo padrão do comércio exterior. Foi esse mesmo movimento que deu origem à agudização das contradições internas à fazenda de escravos, representadas pelo arcaísmo das relações sociais de produção e pelas mudanças vivenciadas nas forças produtivas. Destas contradições nasce a mudança do polo interno, na qual há uma transformação da fazenda escravocrata em uma estrutura feudal para dentro, enquanto da porteira para fora se converte em uma empresa comercial, internalizando o modo de produção do lado interno do polo externo. Nesse contexto, os vassalos-senhores tornam-se barões comerciantes que precisaram se adaptar às transformações das limitações legais de importação da mão de obra escrava e da lei de terras, ambas iniciadas em 1850. A passagem da primeira para a segunda dualidade foi resultado de um longo processo de trabalho das contradições mencionadas. Na nova dualidade, a fazenda internamente feudal tinha seus produtos – extraídos como tributo feudal aos produtores diretos – convertidos em mercadorias pelo novo peril de empresa comercial que adquirira da porteira para fora. Sobre essa base econômica assentava-se a superestrutura de um Estado cujo sócio maior agora era a burguesia comerciante, fortalecida pelo processo de contradições vivenciado no im da dualidade anterior; e o sócio menor, os fazendeiros, latifundiários feudais, por um lado, e os comerciantes, por outro. Nesta dualidade o antigo sócio menor fortalecera-se e fora capaz de tomar a posição de sócio maior na ocupação do Estado. As condições externas sob as quais nascera esta segunda dualidade também se referiam a uma fase recessiva do ciclo longo. Nesse caso, era a fase recessiva do segundo Kondratiev. Novamente, a questão-chave estava na substituição de importações. Agora, o esforço principal estaria nas mãos do capitalismo mercantil, que deveria promover basicamente uma diversiicação da produção interna por processos artesanais e manufatureiros. A interpretação rangeliana aponta para uma mudança na fazenda no período de ascensão do segundo ciclo longo, que levou a uma acumulação, nas mãos dos senhores, de uma renda monetária que fora convertida em gastos na direção do 476 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil espaço urbano, especialmente no que tange à moradia. Levaram consigo uma criadagem escrava que fora convertida em “negros de ganho” – trabalhadores escravos aplicados em serviços urbanos e atividades artesanais cujo recebimento era totalmente entregue aos seus proprietários. Rangel considera que foi a partir desta “pequena produção de mercadorias” que, sob a orientação do capitalismo mercantil, o país se preparou para a industrialização substitutiva de exportações que viria a ocorrer na dualidade seguinte. A segunda dualidade também fora marcada pela Primeira Guerra Mundial. No Brasil, isso se reletiu na forma de uma expressiva crise do comércio externo, o que reforçou a necessidade do processo de substituição de importações e antecipou o movimento que se definiria no declínio do terceiro ciclo de Kondratiev – representado pela grande depressão mundial, que abriria as portas para a chamada terceira dualidade. A terceira dualidade se forma a partir da mudança do polo externo da segunda dualidade, pois este era o polo mais antigo e que tenderia a ser alterado. A alteração esperada pelo esquema de Rangel seria a internalização do modo de produção do lado externo do polo externo, ou seja, a introjeção do capitalismo industrial como forma de organizar as relações entre o país e o exterior. Do lado externo, a organização mundial pós-grande depressão teve como centro fundamental a instauração do capitalismo inanceiro, cujo nascimento anárquico tinha dado origem à fase B do terceiro Kondratiev, além de carregar em si a dualidade capital industrial-capital bancário. A estrutura multinacional do capitalismo inanceiro, especialmente o norte-americano, teria facilitado para o Brasil a implantação do capitalismo industrial no lado interno do polo externo – revelando não apenas uma troca de hegemonia interna mas também uma troca de hegemonia no plano internacional (hegemonia inglesa pela hegemonia americana). A superestrutura da terceira dualidade era formada por um sócio menor, que era a burguesia industrial nascente, representando o polo externo. É interessante notar, porém, que Rangel destaca que o sócio maior eram os fazendeiros-comerciantes, representantes do polo interno. “Tal como das outras vezes, a origem desse sócio-menor foi uma dissidência da classe hegemônica da anterior dualidade” (op. cit., p. 679), no entanto, o sócio maior aparece como uma dúvida: o que seria a tal burguesia comercial brasileira, senão os fazendeiros-comerciantes? Por sua vez, a dinâmica de representação das classes de Rangel parece revelar em si uma dualidade entre urbano e rural na disputa da dominação do Estado brasileiro. Nestas condições, percebia-se o nascimento de uma economia periférica que produzia seu próprio ciclo, na medida em que desenvolvia um processo de substituição de importações industrializante. Nela, o Estado entrava subsidiando o capital, por meio de uma acumulação de recursos engendrada pela nova legislação trabalhista. Ignácio Rangel e a Categoria Dualidade Básica: uma interpretação do Brasil 477 Assim, a entrada em cena dos ciclos de Juglar (ciclos de investimento, independentes de um novo padrão tecnológico, que ocorrem aproximadamente a cada dez anos) explica a dinâmica da dualidade brasileira a partir do advento da industrialização no país, ou seja, do ponto de vista de Rangel, a partir dos anos 1930, da terceira dualidade. Os ciclos de Juglar, no Brasil, seriam causados pelo acentuado desajustamento estrutural do processo de industrialização, que orientou o ajustamento da capacidade ociosa intersetorial e gerou a necessidade periódica de ajustes institucionais para reestruturação de sua fase de ascensão. Outra singularidade da terceira dualidade está no fato de que a industrialização não se interrompeu quando da fase A do quarto Kondratiev. “O dinamismo do processo de industrialização, engendrando demandas de importações sempre novas, fez com que o impulso se mantivesse, não obstante a considerável expansão da capacidade de importar (op. cit., p. 681)”. Assim, a industrialização brasileira teve fôlego, passando de sua fase de produção apenas de bens não duráveis de consumo, para a produção industrial de peças, bens duráveis de consumo, bens de investimento e insumos básicos. Rangel ainda destaca que esta industrialização esteve presente também na própria agricultura, tornando mais agudas as contradições internas do setor e do sistema como um todo. Finalmente, como Rangel está escrevendo em 1981, abre sua análise sobre a quarta dualidade airmando que ela “está, obviamente no futuro (…) não obstante, de certo ponto de vista é tão atual como se tivesse acontecido” (op. cit., p. 682). Daí sua grande contribuição para pensar a crise dos anos 1980. Rangel enxerga ali a crise da terceira dualidade e a possibilidade de se desembocar na quarta, pelo que há de contradições internas. O quadro externo também indicaria o movimento de entrada na fase B do quarto Kondratiev, iniciado, segundo o autor, por volta do ano de 1973, com a primeira crise do petróleo. Também estava presente a crise do comércio exterior, normalmente diagnosticada como o elemento detonador de um processo interno de reorganização da produção para substituição de importações, crucial para o acirramento das contradições internas e a mudança de dualidade brasileira. A diferença é que esta crise não viria inicialmente pelos fatores tradicionais de restrições expressivas de quantum exportado e piora dos termos de troca; ao contrário, o aumento de exportações, via desvalorização cambial, apresentou-se como uma forma de saída da crise, que se conigurou por meio do corte do inanciamento à dívida externa. Nessa análise, Rangel ainda destaca que o esforço de substituição de exportações, necessário para a criação das condições para uma mudança na dualidade brasileira, seria mais do que apenas substituir o petróleo internacional pela produção interna ou por fonte de energia alternativa, seria também mudar a forma de produzir Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 478 os vários bens dependentes desta base energética na matriz insumo-produto. A preocupação de Rangel era que este tipo de alteração na estrutura industrial demandaria vultosas imobilizações de capital, e o país carecia de um aparelho de intermediação inanceira que permitisse viabilizar esta notável formação de capital. Nascia daí sua observação mais polêmica, pois a mudança da terceira para a quarta dualidade provocaria uma alteração no polo interno da dualidade e, no seu entendimento, isto implicaria enfrentar a questão agrária. Essa questão o fez pensar o problema do desenvolvimento brasileiro nos anos 1930, airmando que: (...) com efeito, estivemos industrializando o país com uma estrutura agrária por reformar, e isso somente foi possível pelo motivo (…) de que a execução de projetos industriais (elevada relação capital/produto), num país de capacidade para importar inelástica e não dispondo ainda de um parque moderno produtor de meios de produção, implicava a produção desses meios por processos pré-industriais, com emprego intensivo de mão de obra (op. cit., p. 683-684). A novidade agora seria que tal industrialização se maturou, caracterizando-se pelo tradicional formato poupador de mão de obra, inclusive na agricultura, levando o sistema a produzir um exército industrial de reserva superdimensionado, situação cuja solução efetiva seria limitada pelo preço proibitivo da terra. Na opinião de Rangel, este preço não era inerente à terra, mas ligado ao fato de este ativo ser usado no Brasil como reserva de valor, o que signiica airmar que o preço da terra é um fenômeno inanceiro, sensível a mudanças que se observam no campo inanceiro. Essa excelente observação, especialmente no que tange à tentativa de compreender o fenômeno da terra urbana hoje, provavelmente foi a origem do ostracismo deinitivo da teoria da dualidade básica da economia brasileira. Castro (2005) airma que, a partir de 1960, esta tese deve uma aceitação inversamente proporcional à sua importância para a compreensão do desenvolvimento brasileiro. Acredita que tenha sido sufocada pelo debate da Revolução Brasileira. A ideia de dualidade não se encaixava bem na posição ortodoxa, nem na revisão teórica que tomou corpo a partir de A revolução brasileira, de Caio Prado Junior. A visão da questão agrária, dela derivada, afastava a teoria da dualidade das duas posições dominantes. Antes de provocar uma grande polêmica, foi ignorada e envolvida por um manto de silêncio (Castro, 2005, p. 20). 5 CONCLUSÃO Fica, então, para o leitor a tarefa de reletir por que uma interpretação do Brasil tão rica e articuladora de teoria e história pôde ser tão amplamente abandonada. Inscreve-se, aqui, uma possibilidade interpretativa que está no campo da análise das condições sócio-históricas, que levam à alimentação de certas visões com respeito ao funcionamento da sociedade e não de outras. Ao mesmo tempo, porém, revela-se a responsabilidade do autor sobre o seu destino de assimilação acadêmica e política. Ignácio Rangel e a Categoria Dualidade Básica: uma interpretação do Brasil 479 Do ponto de vista desta análise, a dualidade básica da economia brasileira, tantas vezes trabalhada e transformada por Rangel, tem o limite que talvez Florestan Fernandes tenha sintetizado de forma precisa: (...) na periferia do mundo capitalista e de nossa época, não existem “simples palavras”. (...) Se a massa dos trabalhadores quiser desempenhar tarefas práticas, especíicas, criadoras, elas têm que se apossar primeiro de certas palavras-chave (que não podem ser compartilhadas com outras classes, que não estão empenhadas ou que não podem realizar aquelas tarefas sem se destruírem ou se prejudicarem irremediavelmente). Em seguida deve calibrá-las cuidadosamente, porque o sentido daquelas palavras terá de confundir-se, inexoravelmente, com o sentido das ações coletivas envolvidas pelas mencionadas tarefas históricas (Fernandes, 1981, p. 57). Dualidade era uma palavra da classe que Rangel combatia. Representava uma visão, um modo de pensar, que era irreconciliável com o movimento que pretendia revelar e explicar. Talvez por isso não tenha sido compreendido. REFERÊNCIAS CANDIDO, A. Prefácio. In: HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967. p. 11-22. CASTRO, M. H. M. Nosso mestre Rangel. In: RANGEL, I. Obras reunidas. 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A frente partidária de sustentação ao governo – a chamada “base aliada” – controla quase 80% das cadeiras do Congresso Nacional; o Judiciário e o Ministério Público (MP) contam com a mais ampla liberdade de atuação e se consolidam como poderes independentes e soberanos; as Forças Armadas parecem haver se retirado deinitivamente da cena política e demonstram real disposição de colaboração com o governo; e, por im, a despeito das recorrentes críticas à corrupção, o apoio da mídia e da intelectualidade à política econômica em curso é virtualmente universal. Assim, de acordo com o senso comum, amplamente difundido, o Brasil teria conquistado a estabilidade de preços a partir do rompimento com o populismo político e ao adotar regras iscais, monetárias e cambiais “sérias, transparentes e consistentes”. As críticas, quando emergem, não se dirigem ao sentido global da política econômica, mas ao fato de que algumas das reformas modernizantes que foram anunciadas há muito ainda não se completaram. Critica-se, pois, preferencialmente, o atraso na formalização jurídica da independência do Banco Central (BCB) – uma vez que sua independência de fato é amplamente reconhecida e elogiada –, a continuidade do deicit na previdência pública ou a ampliação do funcionalismo público federal nos anos da gestão de Lula e Dilma, que gerariam incertezas acerca da sustentabilidade de longo prazo da política de superavit primário. 1. Pesquisador economista da Fundação de Economia e Estatística (FEE) e Coordenador Adjunto do mestrado em desenvolvimento regional da Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). 2. Professor da rede municipal de ensino de Canoas, mestre em geograia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3. Foi dito que o PT é um partido de esquerda em função de sua base social e do seu programa histórico. Não obstante – como será demonstrado adiante – este partido não produziu para o país um projeto de gestão macroeconômica alternativo àquele em curso a partir de 1994. Vale lembrar, o projeto do real é essencialmente conservador. 484 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Ao se observar a política econômica em curso sob o ponto de vista de suas consequências objetivas, contudo, este aplauso quase universal não pode deixar de surpreender. Ainal, se é verdade que, a partir do Plano Real, o país conquistou taxas de inflação “de primeiro mundo” (de um único dígito), as reservas internacionais são expressivas e até um “grau de investimento” foi atribuído pelas agências internacionais de avaliação de risco, também é verdade que, desde o real, as taxas médias de crescimento do produto interno bruto (PIB) icaram muito inferiores à média histórica nacional prévia à longa crise dos anos 1980 e início dos anos 1990. Além disso, parece haver se imposto uma inversão de sentido no que diz respeito ao processo de industrialização que caracterizou o século XX. Da emergência da indústria de bens de consumo de massa em São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, ao II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), no governo Geisel, o Brasil diversiicou sua estrutura produtiva e constituiu uma indústria de crescente complexidade tecnológica. O contraste do período pós-real com as oito primeiras décadas do século passado é insoismável e se traduz na recorrência do único discurso efetivamente crítico ao programa econômico em curso: a crítica à “desindustrialização nacional”.4 Esta crítica – ainda que tímida, tópica e secundarizada na mídia – não parece gratuita, nem inconsequente. Mais do que pertinente, ela é indissociável do núcleo da política econômica anti-inlacionária em curso. A depender do indexador eleito – Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI), Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) etc. – a taxa básica de juros real brasileira praticada ao longo da primeira década do século XXI5 variou entre 7% 4. A este respeito, ver Feijó e Oreiro (2010) e Iedi (2005). 5. A análise que se segue é rigorosamente pertinente à primeira década do século XX, encerrada em 2011. No ano de 2012, a política econômica sofreu uma discreta – e aparentemente ainda inconclusa – inlexão. Um dos traços mais marcantes desta inlexão encontra-se, justamente, na continuada queda da taxa básica ao longo do ano, que evoluiu de 11% em janeiro para 7,25% ao inal do ano. Simultaneamente, os bancos públicos – em especial, Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica Federal (CAIXA) – implantaram políticas de depressão dos seus spreads, com vistas a impor o repasse (via concorrência bancária) da queda dos juros básicos para o tomador inal de crédito. É preciso reconhecer que – se for levada às últimas consequências – a inlexão da política monetária em curso imporia revisões e atualizações a este texto. Quanto mais não seja, para reconhecer que aquilo aqui caracterizado como a “Era do real” (e sua peculiar solução monetário-cambial para o “trilema” de Florestan) de fato se esgotou. Esta possibilidade, contudo, parece muito remota aos autores deste capítulo. Na realidade, não são percebidas as tentativas de inlexão em curso como consistentes ou sustentáveis nos planos econômico, social e político. Desde logo, nem as quedas na taxa Selic, nem nos spreads bancários foram de monta a alterar a posição inanceira relativa do Brasil entre as principais economias mundiais: o país continua a ter uma taxa básica de juros positiva em termos reais (quando boa parte das economias capitalistas centrais opera com taxas reais negativas desde a crise de 2008) e as taxas de mercado para os mais distintos clientes ainda se encontram entre as mais elevadas do mundo. Não obstante, as pressões inlacionárias associadas à discreta desvalorização do real ao longo de 2012 já se manifestaram e só estão sendo controladas a partir da depressão de “custos públicos”, via congelamento (não oicial) de preços administrados (em especial, mas não exclusivamente, do petróleo) e liberalidades iscais (ao longo de 2012, queda do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI), o que é claramente insustentável no médio e no longo prazo. A tentativa de transformar este controle de preços numa nova política de competitividade, comprometendo a sociedade civil no processo (como na tentativa de derrubar as tarifas de A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 485 e 4% ao ano (a.a.). Como, no Brasil, as taxas de mercado são muito mais elevadas que a taxa básica, poucas empresas conseguem inanciar seu capital de giro pagando menos do que 40% a.a. Vale dizer: pagando taxas que seriam consideradas usurárias em qualquer país desenvolvido ou em rápido desenvolvimento. Entre 2005 e 2009, o saldo em transações correntes anual caiu de um superavit de US$ 14 bilhões para um deicit de US$ 47 bilhões. Este resultado adveio da explosão do deicit na Balança de Serviços e Rendas (de US$ 35 bilhões para US$ 70 bilhões), em movimento alinhado com o superavit comercial (que evolui de US$ 45 bilhões para US$ 20 bilhões). Os crescentes deicit em transações correntes foram inanciados com a entrada de capital de curto prazo, estimulada pela continuada elevação do diferencial entre os juros internos e os juros internacionais. Assim é que a Conta Capital e Financeira do Balanço de Pagamentos, no mesmo período, evoluiu de um deicit de US$ 9 bilhões para um superavit de quase US$ 100 bilhões. E o desdobramento necessário dessa política é a oferta excedente de divisas estrangeiras, que redunda na valorização do real e na crescente perda de competitividade cambial da produção doméstica. Com o ingurgitamento das reservas e a crescente valorização do real, o BCB conquistou o controle de preços e, na sequência, o “grau de investimento” para o país. Hoje, o Brasil conta com reservas suicientes para tranquilizar o especulador externo. Visto que já se consolidou como um dos principais fornecedores de commodities para a locomotiva China, não recaem quaisquer suspeitas sobre a solvabilidade do país. De sorte que, enquanto o país continuar oferecendo ganhos reais superiores (mesmo que ínimos, para a tradição nacional) ao oferecido por países com risco similar, o hot Money deve continuar ingressando, travestido de “investimentos diretos” por meio de empréstimos intercompanhias ou de outros tantos subterfúgios contábeis. Não obstante, esta política carrega um custo enorme. Na verdade, ela apenas freia o crescimento e adia um ajustamento que terá de ser feito mais cedo ou mais tarde. Ainal, o saldo comercial vem diminuindo justamente porque o câmbio vem deprimindo nossa competitividade em manufaturados e semimanufaturados. A pressão é tal que mesmo empresas brasileiras que atuam em mercados onde competitividade é estrutural (como a agroindústria de carnes, por exemplo) começam energia elétrica pela antecipação da renegociação das tarifas com as concessionárias), é muito interessante. Em particular, na medida em que elas explicitam as contradições de interesses entre distintos segmentos da burguesia, colocando a burguesia industrial (usuária dos serviços do sistema elétrico) em oposição à burguesia “neo-estatal” (que assumiu as funções do Estado na oferta dos serviços industriais de utilidade pública a partir do processo de privatização dos anos 1990). Mesmo estas tentativas, porém, parecem estar assentadas na subestimação da dimensão estrutural da unidade da plutocracia deste país. Na esteira de Caio Prado e Florestan, há o entendimento de que os interesses do latifúndio, do sistema inanceiro, da grande indústria, da burguesia “neo-estatal” e da grande imprensa são muito mais solidários do que os desenvolvimentistas de ontem e hoje alcançam perceber. 486 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil a deslocar parte de suas operações produtivas para o exterior. Simultaneamente, a política levada a cabo desde a implantação do real, de inanciar os deicit em transações correntes com atração de capital externo pela elevação dos juros internos, tem se reletido nos crescentes deicit na Conta Rendas, que alcançou a cifra de US$ 47 bilhões em 2011. A pergunta que não quer calar é: a quem interessa e por que recebe tanto aplauso uma política macroeconômica que só alcança a estabilidade de preços à custa de uma crescente exposição competitiva da indústria interna? A resposta a esta questão só pode ser obtida a partir de uma análise de longo prazo. Na verdade, de uma análise que toma, como ponto de partida, a obra de um dos maiores intérpretes do processo de desenvolvimento capitalista brasileiro – Florestan Fernandes, em particular, seu trabalho, de 1975, A revolução burguesa no Brasil. É lá que se pode encontrar o io da meada desta verdadeira charada sobre um governo popular e de esquerda com uma ampla e conservadora base de apoio congressual conquistada com uma política econômica que vem conduzindo à crescente perda de competitividade da indústria nacional. 2 FLORESTAN FERNANDES E AS PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO BRASILEIRO Passados mais de trinta anos desde a primeira edição de A revolução burguesa no Brasil, a encruzilhada sinalizada por Florestan já no primeiro parágrafo desse seu trabalho parece não haver perdido a atualidade: (...) existem três alternativas claras para o desenvolvimento econômico ulterior da sociedade brasileira, as quais podem ser identiicadas através de três destinos históricos diferentes, contidos ou sugeridos pelas palavras “subcapitalismo”, “capitalismo avançado” e “socialismo” (Fernandes, 1981, p. 13).6 Parece que esta introdução foi escrita com vistas a causar estranheza e curiosidade. Ainal, qual o sentido da pretensão de que as três alternativas que (aparentemente) exauriam as possibilidades de futuro de qualquer sociedade nacional no último quartel do século XX seriam as três alternativas abertas para o Brasil? Que conteúdo e contribuição teórica se escondem por trás desta aparente tautologia? A resposta a estas perguntas é muito simples. De acordo com Florestan, não existiria a alternativa do capitalismo desenvolvido para inúmeras sociedades nacionais onde a transição para a ordem mercantil capitalista teria se dado a partir de impulsões estritamente exógenas, consolidando um padrão de heteronomia e de 6. Ainda que muitos tenham criticado a pretensa atualidade do projeto socialista, a crise efetiva foi do chamado “socialismo real” e ainda é do projeto leninista de transição. Tal como em Paiva (2007), a universalização da sociabilidade burguesa é a universalização dos seus limites, que se desdobra em crises crescentes e na necessária reconstrução do projeto de superação da tão perversa quanto descontrolada dinâmica capitalista. A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 487 externalização do excedente que seria incompatível com a articulação e consolidação de um processo nacional de desenvolvimento. Diferentemente – e este é o ponto crucial na análise de Florestan –, esta alternativa, para o Brasil, já existiria em meados da década de 1970. Pela linha de raciocínio seguida na elaboração deste estudo, esta alternativa continua posta no horizonte nacional no ingresso do século XXI, já que, se não tomou os caminhos do capitalismo avançado ou do socialismo, o país tampouco se embretou ou se perdeu na trilha do subcapitalismo. Na verdade, o que se defende aqui é o ponto de vista de que, nos últimos trinta anos, a reacomodação das forças sociais e políticas internas determinou um deslocamento para frente da encruzilhada apontada por Florestan em meados dos anos 1970. No universo dos autores que discutem a Teoria da Dependência na América Latina, Florestan Fernandes destaca-se por considerar que o desenvolvimento das formações sociais latino-americanas deve ser explicado mediante a interação entre as realidades locais e suas respectivas interações com o capital externo. Em suma, Florestan é um “dependentista dialético”, que critica o “dependentismo vulgar” justamente por ignorar o papel das contradições e conlitos de classe rigorosamente internos (inclusive os referidos às disputas entre distintas frações da burguesia) na determinação dos arranjos políticos internos. Existem dois polos na dominação: o externo e o interno. Quando se fala em imperialismo, se explica o que ocorre de fora para dentro. Agora, resta saber o que ocorre de dentro para fora. Se se cultiva uma imagem dialética da dominação imperialista, é preciso compreender que as Condições de dominação não são dadas a partir de fora, são dadas também a partir de dentro (...) De uma maneira geral, o capitalismo dependente condiciona o próprio imperialismo. Ele condiciona o imperialismo porque ele também comercializa o subdesenvolvimento. (...) É por isso que é errada a crítica que muitos marxistas fazem ao estudo da dependência na sociologia, na antropologia, na economia. Se nós quisermos ir além das descrições sumárias temos de ver como é que os mecanismos do imperialismo se realizam dentro dos países submetidos à dominação imperialista. E aí é preciso analisar a dependência em termos da maneira pela qual os vários setores da sociedade capitalista dependente se ajustam, tanto passiva quanto ativamente à dominação imperialista (Fernandes, 1978, p. 111-112). Segundo o autor, os processos concretos de desenvolvimento dos países latino-americanos devem ser buscados e só podem ser entendidos a partir da estrutura histórica de cada economia em sua articulação com o capitalismo internacional. No que diz respeito ao Brasil, em particular, Florestan lembra: (...) os móveis capitalistas do comportamento econômico foram introduzidos no Brasil juntamente com a colonização. Às plantações era inerente um propósito comercial 488 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil básico, que orientou as adaptações econômicas imprimidas à grande lavoura pelas formas de apropriação colonial (da seleção dos produtos exportáveis, que deviam alcançar os mais altos valores possíveis por unidade, aos mecanismos de apropriação de terras, de trabalho escravo ou mesmo livre, que asseguravam os custos mais baixos possíveis de produção e provocavam, ao mesmo tempo, extrema concentração de renda). Todavia, graças à posição marginal que ocupava no circuito externo de mercantilização dos produtos exportados (mesmo a Metrópole não participava das principais fases desse circuito, que se desenrolavam fora de Portugal), as funções econômicas do senhor de engenho quase equivaliam, no âmbito do referido circuito, às dos administradores e beneiciários das feitorias. Assim, as inluências dinâmicas que o capitalismo comercial poderia exercer, em outras condições, sobre a organização e o desenvolvimento da economia interna, eram pura e simplesmente neutralizados (...) Na verdade, os referidos móveis capitalistas foram rápida e irremediavelmente deformados (Fernandes, 1981, p. 22). Provocativamente, Florestan explicita o problema escamoteado por todos aqueles que tomam o Brasil como capitalista desde o descobrimento: como os móveis capitalistas e os valores especiicamente burgueses puderam realorar e ganhar crescente hegemonia enquanto referência utópico-ideológica a partir da crise do antigo sistema colonial.7 Simultaneamente, esclarece dois pontos cruciais de sua teoria da dependência latino-americana: i) que as origens da dependência devem ser buscadas no nosso passado colonial; ii) que o desenvolvimento endógeno não é incompatível com o imperialismo.8 Na realidade, para Florestan (em consonância com Furtado),9 a demanda externa estimula a produção interna e a criação de um mercado nacional; e o padrão de controle sobre esta produção vai depender da capacidade dos agentes nacionais de convergirem para formas mercantis de produção e se articularem a cadeias globais de forma competitiva. A particularidade da inserção dependente latino-americana não se encontraria, assim, na perda de controle dos agentes internos sobre o Estado nacional, mas na forma como este mesmo Estado articularia a “competitividade” dos agentes internos. É preciso (...) [saber identiicar] o modelo concreto de capitalismo que irrompeu e vingou na América Latina, o qual lança suas raízes na crise do antigo sistema colonial e extrai seus dinamismos organizatórios e evolutivos, simultaneamente, da incorporação econômica, tecnológica e institucional a sucessivas nações capitalistas hegemônicas e do crescimento interno de uma economia de mercado capitalista. Esse modelo reproduz as formas de apropriação e de expropriação inerentes ao capitalismo moderno (aos níveis da circulação das mercadorias e da organização da produção). Mas possui um componente adicional 7. Uma questão tão mais candente na medida em que (como bem o salienta Faoro, 1975) o im da ordem colonial não implicará, nem o im do escravismo, nem a crise da ordem patrimonial. Pelo contrário: ambos se consolidarão a partir da Independência, com desdobramentos deletérios à plena endogeneização da ordem mercantil-competitiva. Este tema é tratado por Florestan ao longo dos capítulos 2, 3 e 4 de A revolução burguesa no Brasil e foi objeto de análise por Paiva (1997). 8. No sentido de Lênin (1982), vale dizer: enquanto movimento de internacionalização do capital e da ordem capitalista. 9. A este respeito, ver os três primeiros capítulos de Paiva e Cunha (2008). A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 489 especíico e típico: a acumulação de capital institucionaliza-se para promover a expansão concomitante dos núcleos hegemônicos externos e internos (ou seja, as economias centrais e os setores sociais dominantes)... De fato, a economia capitalista dependente está sujeita, como um todo, a uma depleção permanente de suas riquezas (existentes ou potencialmente acumuláveis), o que exclui a monopolização do excedente econômico por seus próprios agentes econômicos privilegiados. Na realidade, porém, a depleção de riquezas se processa à custa dos setores assalariados e destituídos da população, submetidos a mecanismos permanentes de sobre-apropriação e sobre-expropriação capitalistas (Fernandes, 1975, p. 45). Em suma: para Florestan, a contradição de interesses entre as frações periféricas e imperialistas da burguesia não é aparencial. Além disso, a forma como esta contradição se resolve é crucial para a avaliação das perspectivas dinâmicas de uma economia dependente. O equacionamento “padrão-dependente” deste conlito é a transferência integral “da conta” para os produtores diretos da periferia. Este processo seria coordenado pelos Estados periféricos e envolveria uma profunda concentração de renda – e da propriedade – associada à defesa simultânea dos interesses da burguesia monopolista internacional e da (menos competitiva economicamente, mas mais organizada politicamente) burguesia nacional. Na realidade, é a apropriação privatista do Estado nacional pelo extrato social dominante internamente e a transformação deste Estado em um agente regulador da divisão do excedente entre as frações nacional e internacional da burguesia que deinem e emprestam particularidade às formações sociais latino-americanas. Não será gratuito, portanto, que, de Oliveira Vianna a Raymundo Faoro, inúmeros intérpretes do desenvolvimento capitalista no Brasil tenham salientado a estabilidade/continuidade dos padrões patrimonialistas de administração da “coisa pública”. De acordo com Florestan, esta continuidade é real e impositiva. É exatamente isso que diz na introdução de Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (1975), referindo-se ao padrão de mudança social típico deste continente. Se se apanham as classes sociais tendo em vista a hegemonia dos estratos dominantes, as aparências são de uma “sociedade sem história” (pois todas as mudanças convergem para um mesmo im, a perpetuação do poder nas mãos de pequenos grupos, de acordo com a conhecida regra segundo a qual plus c’est la change, plus c’est la même chose) (Fernandes, 1975, p. 36). A continuidade, porém, é apenas uma face da moeda; não é toda a história. O essencial a entender é que, se o Estado preserva funções patrimonialistas ao longo da transição da sociedade brasileira para o capitalismo, como corretamente defende Faoro, as funções do patrimonialismo variam ao longo da história, ao contrário do 490 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil que parece haver pretendido o mesmo autor.10 Para Florestan, o patrimonialismo da dinastia de Avis não se confunde com o patrimonialismo do Império Nacional; assim como este último se distingue daquele das diversas “Repúblicas”. De sorte que, se se tomam as classes sociais tendo em vista a natureza, a duração e as debilidades da revolução burguesa e os ritmos históricos das “transições inesperadas” (das revoluções dentro da ordem, que só se podem concretizar convertendo-se em revoluções contra a ordem), o que se patenteia é o reverso da medalha, e as sociedades latino-americanas aparecem como sociedades em convulsão, que estão em busca do seu próprio patamar e tempo históricos (Fernandes, 1981, p. 272). No Brasil – como em diversos outros países da América Latina –, o convulsionamento associado à transição para a ordem burguesa dependente acabaria por impor a solução autocrática representada pelo golpe de 1964. Ainal, os processos articulados – e extraordinariamente bem-sucedidos – de industrialização, urbanização e universalização das relações mercantis levariam – como de fato levaram – à disseminação de organizações civis, em geral, e operárias, em particular, em luta pela universalização de direitos e democratização do Estado e da sociedade. A contradição crucial é esta: de acordo com Florestan, as distintas frações da burguesia brasileira não poderiam abrir mão da apropriação privatista do Estado representado pela Ditadura Militar. Ainal, a preservação e mobilização da estrutura patrimonialista do Estado pré-burguês seria condição sine qua non de defesa do “poder competitivo” – isto é, da capacidade de apropriação e acumulação de parcela expressiva do excedente social – das frações nacionais da burguesia confrontadas, de forma crescente, pelas forças centrípetas dos grandes blocos internacionalizados de capital. Assim, em meados da década de 1970, as contradições que punham o trilema – socialismo versus capitalismo desenvolvido versus subcapitalismo – seriam evidentes e pulsantes. A acumulação acelerada sustentava o nível de lucros e gestava o excedente inanceiro que revolvia a ordem produtiva, abrindo novos e mais amplos mercados. Nesse processo, um número cada vez maior de trabalhadores era incorporado ao exército dos assalariados, enquanto os demais produtores diretos do campo e da cidade eram engolfados no dinamismo das redes mercantis. Novos padrões de consciência, novas reivindicações e novas formas de organização dos trabalhadores brotavam em todos os cantos. Para Florestan, essa efervescência expressava simultaneamente o sucesso e os limites da revolução burguesa brasileira. Feita pelo alto, sem o povo e contra o povo, sua conclusão e ápice, em 1964, vai se traduzir na monopolização do Estado 10. Na realidade, Faoro parece hipostasiar um “estamento burocrático” sobranceiro ao desenvolvimento das relações sociais de produção e das forças produtivas capitalistas no Brasil. Não será gratuito que, mesmo na reedição dos anos 1970 de sua obra maior (Os donos do poder), Faoro não tenha conseguido enfrentar a questão da ordem política brasileira a partir da industrialização pesada encetada entre 1930 e 1960 e do Golpe Militar de 1964. A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 491 pela burguesia. O desdobramento necessário deste padrão antidemocrático de revolução burguesa será a crescente asixia interna das forças propulsivas capitalistas representadas pelos binômios concorrência/inovação e acumulação/expansão dos mercados – isso na medida em que, para Florestan, os controles institucionais formalmente patrimonialistas (mas de conteúdo especiicamente burguês) impostos à concorrência e à redistribuição da renda no Brasil pós-1964 solapavam gradualmente as impulsões à inovação (e ao investimento extraordinário) e à expansão do mercado interno (e à aceleração do investimento ordinário). Para Florestan, o problema de fundo da estagnação anunciada no horizonte era que só a continuidade do crescimento permitia administrar o tenso conlito distributivo entre as frações interna e externa do capital.11 Com a depressão do crescimento – e, por consequência, dos lucros – só restaria a alternativa de ampliar a já extraordinariamente elevada taxa de exploração interna, o que parecia insustentável ao grande mestre da sociologia brasileira, dada as novas formas de organização operária que se anunciavam como desdobramento das revoluções econômicas e sociais abertas pela acelerada acumulação entre 1950 e 1975. Em suma: o trilema não estava apenas posto no horizonte; o horizonte estava a poucos passos. Passadas mais de três décadas, cabe perguntar quais inlexões se impuseram ao desenvolvimento da ordem burguesa no Brasil que não haviam sido projetadas por Florestan e que permitiram deslocar o trilema até os dias de hoje. 3 DA CRISE DA DITADURA AO PLANO REAL A grandiosidade da contribuição teórica de Florestan não pode ser posta em dúvida. Não há como deixar de saudar sua antecipação, na primeira metade dos anos 1970, em pleno “milagre”, tanto da profundidade da crise econômica à frente, quanto da radicalização do movimento social, da emergência do sindicalismo autêntico e dos novos partidos operários. De fato, a crise do “milagre” não apenas se impôs como veio alavancar o coro dos descontentes, inlando o espaço reservado à oposição consentida e impondo uma radical rearticulação da ordem e da disputa políticas. A Ditadura respondeu ao desaio com a “abertura lenta, gradual e restrita”, cuja expressão maior foi a implosão da unidade oposicionista a partir da reforma político-partidária na transição dos anos 1970 para os anos 1980. A estratégia, contudo, se mostrou menos funcional do que pretendiam seus artíices. A criação do PT e a anistia política potencializaram – em vez de dividir e esvaziar – os novos movimentos reivindicatórios, representados pela emergência do sindicalismo combativo, de um forte movimento de trabalhadores sem-terras e de uma miríade de associações populares catapultadas pela igreja militante e 11. A este respeito, ver o último capítulo de Paiva (2012). 492 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil revolucionária. Ao mesmo tempo, instituições tradicionais da sociedade civil – como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), União Nacional dos Estudantes (UNE) etc. – ganharam nova expressão política e reairmaram a unidade na luta daquele amplo leque de estratos sociais descontentes que já não se articulavam mais sob o guarda-chuva comum da oposição amestrada e articulada no Movimento Democrático Brasileiro (MDB). De forma sutil, mas persistente, vai se impor, desde então, uma profunda inlexão na estratégia de reação conservadora. Entre o último governo da Ditadura e o primeiro governo da Nova República, todo um conjunto de reivindicações de massa que alcançaram conquistar o consenso popular foi incorporado à gestão pública, mas esta incorporação era mais formal do que real. No plano do conteúdo objetivo, elas se viam diluídas nas curvas e escaninhos de uma administração pública amplamente treinada no descumprimento de leis e acordos desde, pelo menos, as primeiras legislações contra o tráico em 1826 e 1831. Se essas foram “legislações para inglês ver”, as reformas legais não eram mais do que “inovações de papel para o povo ver”. A conquista do gatilho salarial se transforma, assim, em aceleração da inlação; a conquista do congelamento com o cruzado se transforma no estelionato eleitoral da Constituinte Congressual de 1986; o movimento contra a carestia se resolve no aparelhamento das associações de moradores, responsabilizadas pela distribuição de leite gratuito para as famílias de baixa renda, e assim por diante. Entre todos os desdobramentos da “nova política econômica” aberta com a crise da ditadura, porém, nenhum teve consequências mais graves do que a grande aceleração da inlação a partir do início dos anos 1980. Em sua essência, a inlação não era mais do que o signo externo da explosão do conlito distributivo antecipado por Florestan. De fato, a conversão do conlito em inlação signiicava a preservação das funções redistributivo-patrimonialistas do Estado ditatorial em um ambiente formalmente democrático, já que os instrumentos de correção monetária não incidiam sobre o conjunto dos agentes de forma igualitária. Na realidade, a inlação da Nova República beneiciava apenas os mais indexados. Ao mesmo tempo, aparecia como um desdobramento do gatilho salarial e, como tal, como desdobramento dos novos tempos, do poder dos sindicatos, da “baderna pós-ditatorial”. Simultaneamente – e em total acordo com os prognósticos de Florestan –, as circunscrições (primariamente) internas e (secundariamente) externas ao crescimento vão se impondo de forma crescente ao longo dos anos 1980. Como efeito, para além da depressão da taxa de acumulação, cai também o nível de emprego, com a consequente depressão da capacidade de organização e reivindicação populares. A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 493 Como se não bastasse a crise interna de acumulação – manifesta na estaglação da “primeira década perdida” –, o poder de pressão e conquista do movimento social reivindicatório organizado ao longo dos anos 1970 será fortemente deprimido pela evolução da conjuntura internacional ao longo dos anos 1980, marcada pela crise simultânea do estado de bem-estar social (no Ocidente) e do socialismo real (no Oriente). Do reaganomics (que abre a crise da dívida na América Latina) à queda do Muro de Berlim (com a supressão objetiva da alternativa política que impôs a disseminação do estado de bem-estar social no pós-Segunda Guerra), o que se generaliza é a crítica e a desarticulação dos mais distintos projetos de controle e planejamento da acumulação produtiva e da distribuição do produto social. A própria intelligentsia de esquerda vai se deixar engolfar, de forma crescente, pela maré neoliberal, desenvolvendo – sob o signo do pós-marxismo e do pós-modernismo – as críticas mais acerbas e radicais ao autoritarismo que estaria subjacente a todo e qualquer projeto de regulação e ordenamento social. Não obstante, entende-se que não foi a dinâmica internacional que selou o destino do Brasil. Assim como o reluxo neoliberal não impediu o desenvolvimento dos Países Recentemente Industrializados – Newly Industrialized Countries (NIC) – asiáticos – inclusive “socialistas”, como a China –, ele não teria sido capaz de cercear o desenvolvimento econômico e social do país se não fosse articulado desde dentro. Na verdade, foi a estaglação dos anos 1980 – que resolve de forma conservadora e regressiva o conlito distributivo aberto pela crise da Ditadura – que gerou as bases da rearticulação política e social que culminará na vitória do projeto hegemônico na entrada do século XXI. Um projeto aberto no governo Collor-Itamar, consolidado no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e sacramentado nos governos Lula e Dilma. Um projeto que não faz mais do que deslocar o horizonte sem desmanchar o trilema de Florestan. 4 O ESTADO PATRIMONIALISTA-BURGUÊS NACIONAL NOS GOVERNOS FHC, LULA E DILMA (OU ATÉ QUE PONTO FLORESTAN É ATUAL?) A prolongada estaglação dos anos 1980 e da primeira metade dos anos 1990 não vai implicar apenas o gradual mas consistente solapamento do poder reivindicatório da classe trabalhadora. Vai também ser funcional para o resgate das classes médias – proissionais liberais, funcionalismo público, intelectualidade acadêmica e religiosa, micro e pequenos empresários etc. – para o campo conservador, vale dizer, para o campo dos interessados primariamente na ordem e apenas secundariamente no progresso. Além disso, a depressão das taxas de crescimento internas e a explosão da valorização ictícia vão deprimir tanto o interesse do capital multinacional sobre o mercado e a indústria nacionais quanto suas práticas expansionistas. Esses três movimentos redundarão na descompressão do conlito distributivo intraburguês e interclasses em prol de uma solução capaz de beneiciar a fração mais organizada 494 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil e competitiva da burguesia brasileira. É nesse quadro que vai se mostrar viável o resgate, sempre matizado pelas cores nacionais da negociação e do conchavo, do projeto liberal burguês nacional – de inlexão paulista e udenista – de ordenamento político e social interno simbolizado no Plano Real. Antes de se iniciar a abordagem deste ponto, contudo, é importante destacar que a leitura apresentada anteriormente reforça a hipótese já referida – e essencialmente “lorestanista” – da prioridade das articulações internas sobre as externas na determinação dos ritmos e sentidos da revolução burguesa brasileira. Não que se subestime o papel da conjuntura externa na consolidação do projeto interno, mas é preciso que se entenda que a principal contribuição da dinâmica política e econômica externa foi negativa e “desarticuladora”, contribuindo, com o virtual fechamento da “via socialista” do trilema antevisto por Florestan em 1975, para o arrefecimento do movimento de massas. A questão efetivamente complexa, no entanto, é outra. O que importa é saber como foi possível constituir um novo projeto, que projeto é este e, acima de tudo, como ele alcança ser “consensual” e pode se impor e se realizar sobranceiro às mudanças dos partidos no poder e incensado pela direita e pela esquerda como a “única alternativa viável”. O segredo desta “consensualidade” parece se encontrar na explosão inlacionária dos anos 1980. Mais do que um instrumento de preservação das funções distributivo-concentradoras do Estado sob a Nova República, a inlação impôs uma inlexão radical na pauta política. Até os anos 1980, a questão posta no debate político e econômico era descobrir a quem servia esse desenvolvimento – o que se desdobrava em outro questionamento: perceber que tipo de desenvolvimento almejam aqueles que sustentam mas não se beneiciam do crescimento interno. A explosão inlacionária impôs uma única pauta: controlar este dragão. O controle da inlação passou a ser o objetivo primeiro, segundo, terceiro e último de todos os segmentos socialmente incluídos, ainda que estes não contassem com mecanismos automáticos e permanentes de indexação de rendas e patrimônio e, por conseguinte, percebessem corretamente a inlação como um mecanismo de esbulho e solapamento da contratualidade. O controle da inlação, isto é, o combate ao sistemático solapamento da norma de equivalência ou o combate à “descontratualização” das trocas, passou a ser, assim, a condição necessária e suiciente para a conquista do apoio político dos estratos médios, independentemente dos desdobramentos deste controle/combate sobre o padrão – inclusivo ou excludente, nacionalista ou dependente-associado, industrializante ou patrocinador de uma especialização regressiva – de desenvolvimento econômico nacional. O Plano Real não passa de um projeto de gestão macroeconômica que torna desnecessária a inlação para a realização das funções distributivo-concentradoras imanentes ao “Estado burguês dependente nacional” num ambiente formalmente A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 495 democrático. Ele realiza esta função contemplando os interesses de todos os segmentos internos social e economicamente incluídos, ou seja, todos os segmentos receptores de rendas monetárias passíveis de depleção inlacionária – inclusive com segmentos que não contavam com a indexação integral de suas rendas durante a década e meia de hiperinlação pré-real. Para que se possa entender adequadamente a tese esgrimida anteriormente é preciso retomar os fundamentos do Plano Real como programa anti-inlacionário. Como se sabe, o principal instrumento de controle de preços associado ao real é a chamada âncora monetário-cambial.12 Ainal, para além dos importantes elementos associados à implantação do Plano – em especial, o choque expectacional associado à criação da Unidade Real de Valor (URV), seu virtual emparelhamento com o dólar e a subsequente mudança de denominação da moeda nacional, lançada no mercado a uma taxa de câmbio de forte valor simbólico (R$ 1,00 = US$ 1,00) –, o eixo do Plano Real era justamente a exploração dos diferenciais interno e externo de juros, com vistas a atrair capitais de curto prazo e impor a valorização da moeda nacional. No plano estrito do combate à inlação, a continuada valorização do real impôs uma forte concorrência externa sobre o conjunto dos tradables. Objetivamente, todos os importados e/ou importáveis e todos os exportados e/ou exportáveis cujos preços eram deinidos no mercado internacional em dólar icaram mais baratos a cada movimento de valorização do real. Com os preços dos tradables sob controle, eliminar-se-iam as pressões de custos sobre os serviços e o movimento competitivo (via ingresso em setores de maior rentabilidade e abandono dos setores de menor rentabilidade relativa) imporia o im da inlação também nos segmentos produtivos que não se encontram submetidos à concorrência externa. Não resta dúvida de que o sistema de controle de preços associado ao real foi bastante eiciente. Tão eiciente que garantiu duas eleições a FHC. Tão eiciente que impôs uma radical rotação no discurso do PT entre 1994 e 2002. Ao longo deste período, as críticas cáusticas ao Plano foram sendo paulatinamente abrandadas, até a plena adesão ao projeto. Contudo, o que interessa analisar aqui não são, primariamente, os determinantes de sua eicácia como instrumento de controle e combate à inlação,13 e, sim, sua funcionalidade como instrumento de administração 12. Seu fundamento teórico e prático é a “consistência imperfeita” do modelo Mundell-Fleming. De acordo com este modelo, diferenciais de taxa de juros seriam insustentáveis entre países integrados comercial e inanceiramente, pois o capital luiria para o país com taxas de juros mais elevadas, ampliando a liquidez no interior deste último e deprimindo a liquidez no primeiro. Como resultado, a taxa de juros real tende a cair no país para o qual alui capital. Este movimento só não ocorreria caso os diferenciais de juros fossem percebidos pelos agentes como meras compensações por diferenciais de risco. Além disso, os bancos centrais poderiam retardar a eicácia do movimento equilibrador por meio da esterilização do aluxo de capital via expansão de reservas inanciadas com a emissão de títulos da dívida. Usualmente, argumenta-se que tal movimento esterilizador geraria desequilíbrios iscais – via ampliação dos dispêndios com juros – e comerciais – derivados da valorização da moeda do país que mantém juros acima do padrão mundial – insustentáveis a médio e longo prazo. 13. A este respeito, ver Paiva (2004). Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 496 da concorrência intercapitalista e de redistribuição da renda em prol da grande burguesia nacional. Neste particular, o que importa é que, mais do que o controle da inlação (que consolidou o apoio da classe média e dos segmentos empregados da classe trabalhadora ao status quo) os juros reais positivos e elevados funcionaram, simultaneamente, como instrumento de: • acelerada valorização ictícia do capital nacional e internacional (valorização que se tornou real pelo controle inlacionário e pela geração do superavit primário, que garantiu a estabilidade da dívida com relação ao PIB); • sobrevalorização crônica da moeda nacional, que emprestou mobilidade internacional ao capital nacional inanceirizado ao mesmo tempo em que cerceou os movimentos de aquisição não consentida das grandes empresas nacionais pelo capital forâneo; e • depressão das taxas de crescimento internas, o que deprimiu o emprego e o poder de barganha da classe trabalhadora ao mesmo tempo em que freou o ingresso e o crescimento da participação do capital multinacional no excedente interno. Como que por passe de mágica, pode-se dizer que se conseguiu, assim, “ordem e progresso”.14 Evidentemente, esse tipo de arranjo tem limites e ônus. Em primeiro lugar, a crescente exposição competitiva associada à “estruturalização” de uma moeda nacional sobrevalorizada vai se resolver na redução da taxa de crescimento da produção industrial e, no limite, no fechamento de um grande número de empresas. Só que este movimento está longe de ser universal. Na realidade, o ônus recai, essencialmente, sobre o pequeno capital, incapaz de se internacionalizar, e sobre segmentos produtivos relativamente tradicionais, com pequenas barreiras à entrada e intensivos em mão de obra e em matérias-primas. Estes setores – por exemplo, o setor calçadista no Rio Grande do Sul – operam com mark-up relativamente baixo, de modo que, dado o preço internacional da mercadoria em dólar, a depressão do preço em reais associada à valorização da moeda interna conduz, rapidamente, ao esgotamento da margem de lucro, tornando inviável a continuidade das atividades. Diferentemente, aqueles setores em que as barreiras à entrada são elevadas – seja por determinações tecnológicas, seja em função do volume de capital necessário ao ingresso – podem suportar a pressão competitiva por um tempo maior – mais exatamente por tempo suiciente para amortizar parte do capital imobilizado, que passa a ser convertido para a – agora fraca e barata – moeda internacional (o dólar), instrumentalizando movimentos de extroversão produtiva em direção ao exterior; 14. O fato de que o progresso seja medido pelo crescimento da poupança inanceira de uma minoria privilegiada é algo que não alige os poderosos de plantão e não chega a tirar o sono da parcela “incluída” dos estratos médios e operários. A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 497 em especial em direção aos países que adotam estratégias distintas de controle da inlação, mantendo suas moedas desvalorizadas com relação ao dólar. Este foi o movimento perseguido, no caso da indústria gaúcha, por parcela expressiva das irmas ligadas aos segmentos metal-mecânico e de material de transporte.15 Além disso, a exposição competitiva está longe de ser universal. Tal como Paiva (2012) propõe em seu capítulo inal, o projeto de regulação da concorrência entre as frações nacional e internacional do capital acionado pela Ditadura Militar a partir do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) já havia deinido a priorização dos segmentos non-tradables – em especial, a construção civil e os serviços (com ênfase no sistema inanceiro e serviços prestados ao Estado) – como os setores a serem privilegiados pela burguesia nacional em sua divisão do trabalho com a fração imperialista. Estes setores continuam a ser objeto de políticas de apoio e de garantia de demanda por parte do Estado: do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mobilizador da construção civil, ao Programa Universidade para Todos (Prouni), que empresta sustentação ao sistema educacional privado, passando pela política de independência do BCB, responsável pela estruturação dos ganhos especiicamente financeiros do conjunto dos estratos proprietários, toda a política econômica volta-se à promoção da rentabilidade dos segmentos econômicos que não se encontram submetidos à concorrência externa aberta. Como se não bastasse, a crônica sobrevalorização do real levou a um mecanismo, tão sutil quanto eicaz, de defesa do grande capital nacional frente ao capital estrangeiro multinacionalizado, na medida em que a supervalorização da moeda nacional provocou igual efeito nos ativos das empresas brasileiras. Esta sobrevalorização teve duas dimensões. A dimensão direta e mais facilmente perceptível se derivou do fato trivial de os ativos serem preciicados em reais, de modo que sua conversão em dólares, relativamente desvalorizados, implicou preços muito superiores ao padrão internacional. Além dessa dimensão direta, houve ainda outra. Dadas as políticas monetária e cambial em curso, as taxas de crescimento atuais e prospectivas do mercado (interno e externo) para a produção local – em especial, mas não só, dos bens tradables – foram relativamente discretas e inferiores às perspectivas de crescimento de mercado aberto às empresas instaladas em países emergentes que adotaram políticas de controle inlacionário que não se assentam na valorização da moeda interna (a China, por exemplo). Dessa maneira, a rentabilidade esperada de aplicações no mercado de títulos superou a rentabilidade esperada da aquisição de empresas consolidadas. Em especial, superou a aquisição de plantas industriais locais voltadas ao atendimento do mercado interno. 15. A este respeito, ver Macadar (2009). 498 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Esse mecanismo de depressão do interesse externo sobre ativos reais internos foi fundamental para garantir que o processo de privatização aberto no governo FHC não redundasse na desnacionalização do conjunto dos setores industriais estratégicos, até então sob controle público. Pelo contrário, com a mediação de inluentes iguras públicas e a contribuição dos Fundos de Previdência das empresas estatais (como a Previ e o Petros), a privatização levada a cabo no governo FHC deu origem, simultaneamente, a novos grupos empresariais nacionais e a um número não desprezível de novos milionários brasileiros. Superado o período de privatização acelerado, ainda se observam movimentos de (re)nacionalização de empresas que ou emergiram como empresas estrangeiras ou foram adquiridas por multinacionais anos atrás.16 É claro que este padrão de defesa do grande capital nacional apresentou um amplo conjunto de limitações e senões. A começar pela depressão das taxas de crescimento da renda e do emprego e pela sustentação de índices rigorosamente subcapitalistas de informalidade no mercado de trabalho e de marginalidade social em geral. Entretanto, por maior que seja o preço, ele é pago sempre pela base da pirâmide social e pelo segmento empresarial que atua em setores de livre ingresso, de calçados e vestuário à agroindústria não internacionalizada mas voltada ao mercado interno (orizicultura, vitivinicultura, laticínios etc.). Em suma, quem pagou o preço do ajuste foram as frações não mopolistas da burguesia industrial brasileira, os pequenos produtores rurais – que também sofreram com a versão verde da “âncora cambial” – e os segmentos desempregados ou subempregados do proletariado nacional. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: SÃO DOIS PRA LÁ, DOIS PRA CÁ A avaliação da política econômica pós-real que foi feita não implica qualquer subestimação dos avanços políticos e sociais dos anos recentes. Avanços que, ao contrário do que se poderia pretender em uma leitura partidarizada, não se restringem às políticas sociais dos governos Lula e Dilma, mas têm início nos anos 1980, são consolidados juridicamente na Constituição de 1988 (CF/1988), avançam ao longo dos dois mandatos de FHC e atingem um máximo nos anos recentes. A CF/1988 é um marco no que diz respeito à universalização de direitos sociais,17 e a consolidação da autonomia do Judiciário e do MP associada ao processo de organização dos diversos estratos da sociedade civil em instituições 16. Dois exemplos interessantes são a aquisição da Swift internacional pelo frigoríico JBS-Freeboi e, no Rio Grande do Sul, a aquisição da Almadén por vinícolas gaúchas. 17. É bem verdade que parcela não desprezível dos avanços consagrados na CF/1988 ainda não ganhou efetividade. Inúmeros artigos previam regulamentações posteriores que – não gratuitamente – vêm sendo procrastinadas sine die. Outros tantos – seguindo a velha tradição luso-brasileira de “legislar para inglês ver” – sequer foram redigidos com vistas a saírem da letra para o mundo. A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 499 que preservam sua independência vis-à-vis governos e partidos vêm impondo uma aproximação crescente entre o “legal” e o “real”. Além disso, é preciso que se entenda que o acordo político que viabilizou o Plano Real como instrumento de preservação das funções “redistributivo-concentradoras” do Estado e permitiu a superação da estaglação não pode ser reduzido a um movimento conservador. Quando ressaltou-se anterioremnte esta dimensão do Plano Real foi tão somente porque esta é o seu aspecto menos percebido e compreendido. Desde o momento em que o PT se comprometeu com a manutenção da política macroeconômica articulada na última fase do governo Collor-Itamar, consolidou-se uma espécie de consenso acrítico em torno desta política que, entende-se, urge enfrentar. Não obstante, é preciso levar em consideração o fato de que esta política comporta uma dimensão de pacto social que envolveu a inclusão de segmentos sociais e políticos que, até então, jamais haviam participado da articulação das políticas públicas. Assim é que, para além de todos os seus componentes conservadores, ao retirar do Estado o poder de impor aos “de baixo” o pesado imposto inlacionário, o Plano Real também comporta uma dimensão de avanço quanto ao controle do Estado pela sociedade civil. Desde então, o Estado brasileiro não poderá mais driblar o controle parlamentar sobre a iscalidade, nem poderá mais impor impostos inlacionários sobre os “menos indexados”. Há, aqui, um avanço no sentido da consolidação do ordenamento liberal do poder público. Como bem ensinou Faoro (na contramão de cepalinos inlacionistas e nacional-desenvolvimentistas da velha cepa), o projeto liberal não é exclusivamente conservador no Brasil: ele também comporta genuínas dimensões libertárias em seus desdobramentos antipatrimonialistas e burocratizantes (no sentido weberiano) de instituições e funções públicas. O resultado é que, ao lado de suas consequências mais evidentes e louvadas por dez entre dez conservadores nacionais (privatizações; Lei de Responsabilidade Fiscal; reforma da Previdência; autonomia efetiva do BCB; estruturalização de políticas iscais e monetárias restritivas e geradoras de elevados superavit primários; taxas de juros reais fortemente positivas e superiores ao padrão mundial; moeda nacional hipervalorizada etc.), a modernização do Estado brasileiro imposta pela crise da Ditadura também vai se airmar na crescente burocratização e universalização das funções públicas representadas, por exemplo, na incorporação dos trabalhadores rurais ao sistema de Previdência Social, na constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), na consolidação do MP, na crescente eicácia, transparência e legitimidade dos processos eleitorais etc. Em suma, mais do que em qualquer outro período da história , o país se encontra, hoje, sob o império da lei. Isto é um avanço insoismável. Por im, é preciso reconhecer e saudar a eicácia das políticas sociais postas em curso a partir do primeiro governo Lula e que vêm redundando na acelerada queda Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 500 do índice de Gini da economia nacional. À continuada elevação do valor real do salário mínimo se agrega todo um conjunto de políticas de inclusão que vão do Programa Bolsa Família (PBF) à efetiva universalização da Previdência Social pública associada à formalização das mais distintas formas de inserção produtiva por meio da criação de empresas individuais de responsabilidade limitada. Muito mais do que uma “política compensatória”, estas ações vêm alimentando um crescimento expressivo e continuado do mercado interno, com evidentes desdobramentos para a inclusão de estratos sociais e territórios que, até então, eram postos à margem do desenvolvimento. Reconhecer os avanços do transcurso, porém, não envolve qualquer reconsideração do que foi apontado anteriormente. É justamente por reconhecer este conjunto de avanços que se pode airmar a atualidade do trilema de Florestan. Ao longo dos últimos trinta anos, o Brasil, nem estagnou, nem enveredou decisivamente pela trilha do subcapitalismo. Vem daí o entendimento de que ainda estão abertas, à frente, as três possibilidades apontadas por Florestan em seu texto clássico. Em particular, ao Brasil – ao contrário do que, infelizmente, ocorreu com outras economias dependentes da América Latina e da África – ainda está aberta a possibilidade de transição para o capitalismo avançado. Possibilidade esta que só está posta na medida em que o Estado brasileiro vem passando por um conjunto de transformações internas que – de forma lenta, gradual e restrita – vem circunscrevendo as possibilidades de mobilização discricionária e particularista do poder político em prol deste ou daquele segmento de agentes privados. Não obstante – e aqui está o busílis da questão – é preciso entender que: • este movimento de depressão do poder discricionário do Estado se impôs justamente no momento em que parcelas nunca dantes contempladas no pacto social interno passaram a se organizar politicamente e a participar (mesmo que de forma subordinada) dos governos regionais e nacional do país; e • simultaneamente ao processo de burocratização do Estado patrimonialistaburguês brasileiro impôs-se, a partir do Plano Real, uma cesura estritamente ideológica e teoricamente inconsistente entre determinações “técnicas” – que orientariam a condução das Políticas Monetária, Cambial e Fiscal – e opções “políticas” – que estariam abertas exclusivamente às políticas sociais (e, em grau muito menor, às políticas industriais). O mais interessante e instigante no plano intelectual, contudo, é a forma como o novo “consenso” foi articulado. Ele não emergiu como um projeto pronto e acabado, nem é fruto de qualquer “conspiração” teórico-política deste ou daquele A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 501 grupo de interesses. Toda a articulação política que gerou o “Projeto Real” foi impulsionada pela forma peculiar de manifestação da crise socioeconômica na crise da Ditadura: a estaglação dos anos 1980 e primeiro lustro dos 1990. Com o advento do real, a ancoragem monetário-cambial consagra-se como a resposta viável e universalmente (por parte dos incluídos) aplaudida de combate à inlação. Desde então, o único agente institucional com a responsabilidade para combatê-la passa a ser o BCB. Nenhum outro órgão público – Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Ministério da Fazenda (MF) etc. – tem como tarefa fazê-lo. Todos os demais órgãos atendem às suas (outras) funções prioritárias, delegando ao BCB sua função exclusiva de combate à inlação. O único instrumento que o BCB possui para realizar sua única e exclusiva função é a alteração na liquidez e, por extensão, na taxa básica de juros. O que traz o questionamento de como os economistas que apoiam este governo podem criticar a elevação dos juros a cada elevação da inlação se os governos Lula e Dilma sustentam a distribuição de tarefas/funções que foram deinidas nos governos Collor-Itamar-FHC. O caráter institucional e a divisão do trabalho intergovernamental impõem a elevação dos juros como única estratégia. Nada mais do que isso o BCB pode fazer. O desdobramento necessário desta política anti-inlacionária é a continuada valorização do real. Malgrado movimentos tópicos e erráticos de depreciação da moeda nacional (usualmente alimentados por crises externas, que induzem a uma busca pela liquidez representada pelo dólar), o real vem passando por um processo continuado de valorização frente às principais moedas do mundo. Como se pode observar na tabela 1, reproduzida adiante, entre meados de 2003 (US$ 1 = R$ 3,08) e meados de 2011 (US$ 1 = R$ 1,67), a valorização nominal do real foi de 84,07%. No entanto, como a inlação brasileira superou a norte-americana em mais de 50 pontos percentuais no período, a verdadeira valorização do real neste período foi de 157,87%. É bem verdade que – como se pode observar nas últimas linhas da tabela 1 – o processo de desvalorização do dólar é global, airmando-se sobre as mais diversas unidades monetárias. Não obstante, este processo é muito mais acelerado e radical naqueles países que têm enfrentado a inlação a partir de modelos de ancoragem cambial (como a Austrália) e que apresentam inlação signiicativamente superior à norte-americana (como a Índia). Como o Brasil apresenta inlação superior à indiana, a despeito de adotar uma política monetário-cambial de viés australiano, o processo de valorização real da moeda nacional ao longo da primeira década do século XXI foi o mais acelerado do mundo. Em especial, ao se tomar o primeiro ano de governo Lula (2003) e o primeiro ano do governo Dilma (2011) por Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 502 referência, a valorização real anual da moeda nacional supera os dois dígitos, atingindo 11,10% a.a. TABELA 1 Evolução do PIB, inflação e taxas de câmbio reais e nominais de países selecionados (entre 2001-2011 e 2003-2011) Variável/País Brasil 2001-2011 PIB (% real) Moeda nacional/ US$ (média anual) Taxa de câmbio PPP 2011 Taxa de valorização nominal (%) 195,97 Grécia 12,80 14,08 Índia 120,22 Estados Unidos 18,71 3,53 2,97 10,37 1,10 1,20 7,44 1,57 40,88 29,35 150,53 10,96 5,84 102,75 15,35 3,88 2,90 10,74 1,16 0,63 8,17 1,60 103,00 38,98 30,27 20,32 44,12 100,45 30,63 Média anual 6,65 3,04 2,43 1,70 3,38 6,53 2,46 2003-2011 75,20 29,26 30,33 16,49 33,80 85,08 25,06 Média anual 6,43 2,89 2,99 1,71 3,29 7,08 2,52 2001-2011 72,36 8,35 –0,36 –10,31 13,48 69,82 0,00 Média anual 5,07 0,73 –0,03 –0,98 1,16 4,93 0,00 2003-2011 50,14 4,21 5,28 –8,56 8,74 60,02 0,00 Média anual 4,62 0,46 0,57 –0,99 0,94 5,36 0,00 2001 2,35 1,93 8,28 1,12 1,12 47,18 1,00 2003 3,08 1,54 8,28 0,88 0,88 46,56 1,00 2011 1,67 0,97 6,46 0,72 0,72 46,60 1,00 2001 3,65 2,06 8,25 1,03 1,23 72,40 1,00 2003 4,31 1,59 8,63 0,82 0,95 68,90 1,00 2001-2011 40,46 99,41 28,10 55,39 55,39 1,26 0,00 Média anual 3,46 7,15 2,51 4,51 4,51 0,13 0,00 2003-2011 84,07 58,83 28,10 23,07 23,07 –0,09 0,00 Média anual 7,93 5,95 3,14 2,63 2,63 –0,01 0,00 118,26 112,15 27,75 43,13 71,43 55,38 0,00 2001-2011 Taxa de valorização real (%) 37,95 Alemanha 2003-2011 2001-2011 Diferença de inlação com os Estados Unidos (%) 46,52 China Média anual Média anual Inlação (%) Austrália Média anual 7,35 7,08 2,25 3,31 5,02 4,09 0,00 2003-2011 157,87 64,18 33,51 14,64 31,67 47,86 0,00 Média anual 11,10 5,66 3,26 1,53 3,10 4,44 0,00 Fonte: FMI, World Economic Outlook Database Esta proeza foi conseguida abrindo mão de qualquer política de controle de preços por vias internas18 e entregando-se de forma virtualmente exclusiva à 18. Como faz a China, por exemplo, que estressa ao limite o sistema competitivo ao estimular a convivência entre empresas estritamente capitalistas (sejam nacionais, sejam estrangeiras) com empresas público-estatais, cooperativas de trabalhadores e com uma verdadeira miríade de microempresas que operam no limiar entre informalidade e clandestinidade. A quantas Anda a Revolução Burguesa no Brasil 503 ancoragem monetário-cambial. Ainal, dado que parcela expressiva da produção nacional voltada ao mercado interno é de non-tradables (como é o caso de todos os serviços, inclusive os serviços industriais de utilidade pública, e a construção civil), e estas atividades só são afetadas indiretamente (via preços dos insumos importados) pela ancoragem cambial, o Brasil acaba apresentando taxas inlacionárias que são bastante modestas – se avaliadas de uma perspectiva histórica –, mas signiicativamente superiores às taxas inlacionárias de países desenvolvidos em geral e de países que vêm alcançando controlar seus preços com base na concorrência interna. Vale observar que esta relação entre inlação, padrão competitivo interno e peso relativo de tradables e serviços na economia nacional se manifesta com clareza no interior da União Europeia (UE). A despeito da uniicação monetária, a Alemanha – com uma economia assentada na indústria de transformação – e a Grécia – cuja economia se assenta nos serviços, com ênfase no turismo – apresentaram taxas de inlação e, por extensão, processos de valorização monetária real muito distintas. Entende-se que a crise grega deriva-se primariamente deste processo de valorização monetária real, que conduziu a um crescente deicit em transações correntes e à notável perda de dinamismo econômico na segunda metade da década passada. Na medida em que o processo de valorização tem sido muito mais intenso (malgrado a discreta e insuiciente desvalorização de 2012) do que o grego e a deterioração da balança de transações correntes vem sendo ainda mais acelerada do que o grega, pergunta-se até quando a indústria rigorosamente nacional aguentará, isto é, até quando a parcela da indústria que não alcançou se multinacionalizar ao longo da era do Plano Real suportará a pressão competitiva antes de o Brasil virar a Grécia da vez. REFERÊNCIAS FAORO, R. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo; São Paulo: EDUSP, 1975. FEIJÓ, C.; OREIRO, J. L. Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro. Revista de economia política, v. 30, n. 2, abr./jun. 2010. FERNANDES, F. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. ______. A Condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978. ______. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 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CAPÍTULO 19 DESIGUALDADE NA AMÉRICA LATINA: ESTUDO SEGUNDO O ENFOQUE DE CELSO FURTADO1 Silvia Harumi Toyoshima2 Francisco Carlos da Cunha Cassuce3 Luckas Sabioni Lopes4 1 INTRODUÇÃO Desigualdade, pobreza e crescimento são temas que voltaram a ser centrais em pesquisas, em âmbito internacional, somados à discussão sobre o meio ambiente. Essas preocupações remetem ao resgate de pensadores que se dedicaram a reletir sobre o desenvolvimento econômico de forma abrangente. Um desses grandes pensadores é o economista brasileiro Celso Furtado, cuja vasta bibliograia foi dedicada à relexão sobre a dinâmica do capitalismo dos países periféricos, de modo a gerar soluções para o desenvolvimento sustentável de ampla maioria da população mundial. Uma das principais obras desse autor denomina-se Formação econômica da América Latina, publicada em 1969 e reeditada com o título A economia latino-americana, em 1976. Essa obra destina-se a aplicar o esquema teórico furtadiano para analisar o desenvolvimento dos países da América Latina, ressaltando suas semelhanças e diferenças, segundo o contexto histórico geral e particular de cada país, enfatizando suas formas de inserção na divisão internacional do trabalho. De acordo com Furtado,5 a divisão do trabalho que se conigurou espacialmente no mundo, a partir da Revolução Industrial, gerou regiões desenvolvidas e subdesenvolvidas, dentro do mesmo processo da dinâmica capitalista. À América Latina coube o subdesenvolvimento, cujas raízes históricas se encontram nas 1. Pesquisa realizada com o suporte inanceiro do Ipea – programa Cátedras para o Desenvolvimento. 2. Professora do Departamento de Economia da Universidade Federal de Viçosa (UFV). E-mail: htsilvia@ufv.br 3. Professor do Departamento de Economia da UFV. E-mail: francisco.cassuce@ufv.br 4. Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus de Governador Valadares (UFJF/GV). E-mail: luckas.lopes@ufjf.edu.br 5.Ver, entre outras obras, Desenvolvimento e subdesenvolvimento (1965); Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina (1968); Teoria e política do desenvolvimento econômico (1987); O mito do desenvolvimento econômico (1974); A economia latino-americana (1976); Introdução ao desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural (2000); e Em busca do novo modelo (2002). Essas são algumas referências do vasto acervo que trata de modelos de desenvolvimento e subdesenvolvimento. 506 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil relações dos países latino-americanos com suas respectivas metrópoles – no caso, Portugal e Espanha. Na análise do desenvolvimento dos países da América Latina, e também do Caribe, é possível traçar um amplo quadro de similaridades entre eles em relação a aspectos políticos, sociais e econômicos, o que permitiu a formação de uma escola de pensamento, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), uma das cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas (ONU), a qual visa à compreensão e à superação do subdesenvolvimento da região. Um dos aspectos importantes dessa similitude, argumentada por Furtado, é a inserção das economias latino-americanas na divisão internacional do trabalho via comercialização de produtos primários. Contudo, para que análises de desenvolvimento tracem um quadro mais correto da realidade dos países, é importante estudá-los, também, sob o enfoque das dissimilaridades. Nessa perspectiva, o autor observou que os graus de subdesenvolvimento dos países latino-americanos são diferentes. Entre seus principais determinantes, podem-se mencionar: i) os tipos de produtos primários comercializados e a estrutura socioeconômica e política engendrada a partir da atividade produtiva principal; e ii) o desenvolvimento, ou não, do setor manufatureiro. Em outras palavras, na análise das economias latino-americanas e caribenhas, ao longo dos séculos, veriicou-se uma dinâmica capitalista comum que difere substancialmente da dos principais países industrializados, na composição da estrutura produtiva, no comportamento da inlação, nos indicadores sociais e nos processos políticos. No entanto, internamente, alguns países alcançaram maior grau de desenvolvimento (ou de menor subdesenvolvimento), implicando condições socioeconômicas diferenciadas. Diante do exposto, o objetivo deste capítulo foi resgatar o esquema teórico de Celso Furtado, a im de analisar o desenvolvimento recente da América Latina e do Caribe. O foco de interesse recaiu, particularmente, sobre o segundo tipo de análise mencionado, que trata das diferenças entre as economias latino-americanas. Mais especiicamente, pretendeu-se analisar e comparar o comportamento de variáveis econômicas e sociais dos países, nas décadas de 1950 e de 2000, com base nos determinantes históricos que conformaram suas estruturas econômicas e sociais. As principais questões às quais se procurará responder, ressaltando as diferenças entre os países latino-americanos, são: i) em que medida as diferentes formas de inserção no comércio mundial no período colonial ainda contribuem para explicar o grau de desenvolvimento diferenciado entre os países, no período analisado? ii) pode-se airmar que os países cuja vocação industrial é maior apresentam um grau superior de desenvolvimento econômico e social? e iii) o período de entrada Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 507 no processo de industrialização comprometeu o desenvolvimento socioeconômico dos países? Utilizando o arcabouço teórico de Furtado, de conformação de diferentes graus de subdesenvolvimento, partiu-se do pressuposto de que se podem distinguir grupos de países com desempenhos socioeconômicos diferentes a partir da dinâmica de desenvolvimento gestada segundo a forma de inserção de cada país no comércio internacional. É desnecessário dizer que diversos outros elementos – como formações econômicas e sociais diferenciadas já estabelecidas anteriormente às conquistas ibéricas, o tipo de clima e de solo, as lutas políticas que determinaram as divisões territoriais, o tamanho da população, entre outros fatores – tiveram implicações fundamentais no rumo do desenvolvimento de cada país. As alterações de política econômica, ao longo do período analisado, sobretudo aquelas que impactaram a indústria, também cumpriram papel fundamental na diferenciação socioeconômica da região. No entanto, acredita-se que esses fatores não conseguiram eliminar por completo a estrutura socioeconômica conformada por séculos, em que havia uma clara divisão de trabalho entre os países centrais e os da região estudada. Para empreender tal análise, foram realizados os seguintes procedimentos: i) identificação de grupos menos heterogêneos, segundo características socioeconômicas, no começo de 1950 (estabelecido como o período inicial do estudo) e nos anos 2000; e ii) análise dos grupos identiicados, de acordo com o processo histórico de inserção na economia mundial e a dinâmica de desenvolvimento dos países que os compõem, comparando-se as alterações ocorridas entre esses dois anos. Há relativamente poucos estudos que abordam o tema tratado neste capítulo, além de comportarem conclusões diferentes. Em relação à desigualdade intrarregional, o estudo recente da Cepal (2008) faz uma ampla análise da situação econômica atual da América Latina e do Caribe, comparativamente ao restante do mundo, focalizando setores dinâmicos e suas possibilidades e diiculdades de inserção no comércio mundial. Há ainda trabalhos empíricos que procuraram mostrar se houve um processo de convergência, ou não, de rendas per capita entre os países latino-americanos. Barrientos (2007) elaborou um trabalho considerando três períodos históricos diferentes para os países da América Latina e do Caribe, a saber: i) de pré-industrialização, 1900-1930; ii) de substituição de importações, 1931-1974; e iii) de crescimento com base em dívida externa e interna, de reformas estruturais e de mudanças de paradigma, 1975-2005. Esse autor concluiu que no primeiro e terceiro períodos houve redução das desigualdades entre os países, devido à maior transmissão de tecnologia entre eles. Já no segundo período, o fato de alguns países 508 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil terem se industrializado, e outros não, levou a um processo de não convergência de renda entre eles. Holmes (2005) veriicou a possível convergência das rendas per capita entre os dezesseis países que formam o Mercado Comum Centro-Americano (MCCA), não se observando nenhum processo a respeito. Em relação à desigualdade da renda per capita intrapaíses, o World Bank (2006) elaborou um amplo relatório sobre equidade e desenvolvimento no mundo. Nele, enfatiza-se que maior equidade pode conduzir a um uso mais pleno e mais eiciente dos recursos das nações, uma vez que o excesso de desigualdade no poder tem a possibilidade de construir instituições políticas, sociais e econômicas que implicam menor crescimento no longo prazo. O relatório mostra, ainda, que os países da África e os da América Latina são os que apresentam os maiores índices de concentração de renda, mensurados pelo índice de Gini. Stallings e Peres (2002) estudaram o conjunto de países da América Latina nas últimas duas décadas e observaram que o processo de abertura, a maior estabilidade macroeconômica e o aumento de gastos destinados à área social não levaram, na média dos países, à grande elevação da produtividade e do emprego e à maior equidade. Contudo, esse processo foi muito heterogêneo entre os países. Ffrench-Davis (2007) mostra que as reformas pós-Consenso de Washington levaram a uma concentração da renda ainda maior na América Latina. Autores como Franco e Sáinz (2001) defendem gastos elevados em educação na América Latina, de modo a criar postos de trabalho com maior produtividade, para elevar os coeicientes de investimentos e a captação e difusão do progresso técnico. A melhor combinação de trabalho, capital e progresso técnico assentaria bases mais igualitárias na sociedade e conduziria a um maior crescimento econômico. Os autores salientam, ainda, que a hipótese de Kuznets (1955) de que a desigualdade aumentaria no início do processo de industrialização, mas reduziria no período seguinte – ou seja, de que a relação entre crescimento e distribuição de renda poderia ser representada na forma de U invertido –, não foi econometricamente comprovada por inúmeros trabalhos. Essa breve revisão bibliográica mostra, em primeiro lugar, que há alguns estudos recentes dirigidos para o tema crescimento e desigualdade no mundo, incluindo os especíicos para a América Latina. Em segundo, que não há consenso sobre a ampliação da desigualdade de renda entre os países da América Latina. E, por im, há relativamente poucos estudos que tratam historicamente o tema, procurando associar a estrutura econômica e social formada anteriormente em cada país e o desenvolvimento econômico posterior. Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 509 Neste capítulo, pretende-se ampliar a discussão sobre o tema, resgatando as hipóteses originais de teóricos da Cepal, representados aqui por Celso Furtado, de forma a relacionar o processo histórico e a estrutura econômica e social conformada nesses países como importantes no processo de desenvolvimento destes. Uma das principais contribuições de Celso Furtado, segundo Bresser-Pereira e Rego (2001, p. 35), foi o método utilizado na análise do desenvolvimento, a saber, o histórico-indutivo, “na medida em que lhe permite combinar a grande visão do processo histórico com as especiicidades de cada momento e de cada país”. O pressuposto contido na obra de Furtado é que a desigualdade de renda é inerente ao processo capitalista de produção, em que desenvolvimento e subdesenvolvimento são faces de uma mesma moeda. É de se esperar, assim, que essa desigualdade se amplie, principalmente, nos períodos em que novos paradigmas tecnológicos surgem. Países que não possuem capacitação tecnológica suiciente para se inserir nesses novos paradigmas tenderão a ocupar posição cada vez mais secundária no mercado internacional. Outro pressuposto é que a industrialização não resolveu a questão da equidade internamente (Furtado, 1976). O que se observou até recentemente, ao contrário, foi o acirramento da desigualdade, não somente quando se considera a concentração de renda interna, em nível pessoal, mas também em âmbito regional e mundial, ou seja, entre países (Cepal, 2008). Nas análises iniciais, a industrialização para a escola cepalina seria a solução para o subdesenvolvimento da região, o que incluiria melhoria na distribuição de renda. As recentes reduções das desigualdades em alguns países da América Latina deveram-se, em grande parte, às políticas públicas destinadas a esse im,6 e não como resultado do processo de industrialização. No entanto, o nível de desigualdade permanece ainda muito alto, além do que ela não parece ter sido reduzida entre os países da região. Essa discussão se mostra fundamental, pois, caso a tendência do processo capitalista seja a ampliação da desigualdade, haveria de se discutir um outro modelo de desenvolvimento, o que não signiica necessariamente questionar o próprio sistema capitalista, mas pensar conjuntamente em algum tipo de solução para que essa desigualdade não se aprofunde, sob pena de trazer outros tipos de problemas para as sociedades. Este capítulo encontra-se dividido em mais quatro seções, além desta introdução. A segunda seção trata do referencial teórico do trabalho, apresentando o esquema analítico básico da pesquisa, a partir de Celso Furtado. Na terceira seção é realizado o agrupamento, pelo menor grau de heterogeneidade, dos países 6. Para mais informações, ver, por exemplo, Lopez-Calva e Lustig (2009), que analisam a queda da desigualdade na Argentina, Brasil, México e Peru. 510 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil da América Latina analisados neste capítulo. Já na seção 4 é feita uma análise das formações encontradas. Por im, a quinta seção trata das principais conclusões. 2 O SUBDESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO E CARIBENHO SEGUNDO O ESQUEMA ANALÍTICO DE CELSO FURTADO7 Ao contrário dos modelos de crescimento de Solow (1956), a desigualdade das rendas per capita entre as regiões do mundo, em Celso Furtado, é inerente à dinâmica capitalista de longo prazo, acentuada pela forma de inserção dos países no comércio internacional, a partir da Revolução Industrial. Assim, diferentemente dos países desenvolvidos, nas regiões subdesenvolvidas houve a geração de uma estrutura com características especíicas, ao longo de vários séculos, identiicadas como: caráter dualista das sociedades; heterogeneidade técnica; alto grau de especialização; inserção no mercado internacional como exportador de produtos com base em recursos naturais; industrialização (quando se desenvolveu) restringida, com subordinação às técnicas geradas nas economias centrais; entre outras. Nas economias que lograram alcançar maior grau de industrialização e desenvolvimento, algumas dessas características se atenuaram. Contudo, há ainda grande defasagem em relação às estruturas econômico-sociais apresentadas pelos países desenvolvidos. Furtado (1987) faz, assim, uma subdivisão entre as próprias regiões subdesenvolvidas, classiicando-as como economias subdesenvolvidas de grau superior e de grau inferior. No primeiro grupo, em geral, há três setores – subsistência, exportador e manufaturas. O setor dinâmico é o exportador, podendo gerar um grau de acumulação interna capaz de modiicar as estruturas produtivas. O mecanismo desencadeador de tal fenômeno ocorreria de acordo com o seguinte esquema: aumento do setor externo → aumento da renda interna → aumento dos lucros da indústria → aumento dos investimentos → redução da importância do setor de subsistência. A amplitude desse efeito dependeria do quanto da renda gerada pelo setor externo seria gasto internamente, ou seja, de como o capitalista gastaria o excedente. E a melhor situação seria alcançada quando houvesse a diversiicação do núcleo industrial, com produção de parte dos equipamentos. No entanto, as características fundamentais de dependência externa e de heterogeneidade estrutural permaneceriam. Já as economias subdesenvolvidas de grau inferior caracterizam-se por possuir apenas dois setores, o exportador e o de subsistência, sendo o primeiro o único 7. Vários desses conceitos podem ser identiicados como cepalinos, uma vez que o autor fez parte dessa escola. Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 511 gerador de renda capaz de induzir modificações estruturais. O aumento das exportações modiica o peril da procura, levando ao crescimento da produtividade. Entretanto, se o nível de exportações estaciona, o aumento populacional reduzirá os salários. Com base nesses argumentos teóricos, Furtado (1976) acrescenta um tipo de diferença que caracterizou o desenvolvimento dos países latino-americanos,8 os quais podem ser classiicados conforme o quadro 1.9 QUADRO 1 Tipologia dos países segundo a forma de inserção no comércio internacional Exportadores de produtos de clima temperado Exportadores de produtos de clima tropical Exportadores de produtos minerais Argentina Brasil Regiões do México Uruguai Colômbia Regiões da Venezuela Equador Chile América Central Peru Caribe Bolívia Regiões do México Regiões da Venezuela Fonte: Furtado (1976). Elaboração dos autores. O ponto de partida, nesse caso, é a divisão das economias segundo o tipo de produto de exportação, conforme a seguir. 1) Países exportadores de produtos de clima temperado. Esses tinham como concorrentes os países desenvolvidos e se beneiciavam de contínuo avanço técnico desses produtos, além de possuírem terras de boa qualidade, o que lhes conferia altas taxas de crescimento. A exigência de implantação de um sistema de transportes considerável permitiu a uniicação do mercado interno em torno de grandes portos de exportação.10 Esses países constituíam fronteira da Europa ocidental em pleno processo de industrialização. 8. De acordo com o World Bank (2007), atualmente, fazem parte da América Latina e Caribe 27 países, a saber: Argentina, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Suriname, Uruguai e Venezuela. 9. Lambert (1969) possui uma taxonomia semelhante, com base no grau de subdesenvolvimento dos países latino-americanos na década de 1960, mas considerando fatores políticos e institucionais, entre os quais está incluída a capacidade de mudança ou não do país de sua estrutura social antiga. A classiicação é a seguinte: relativamente desenvolvidos: Argentina e Uruguai; desigualmente desenvolvidos: Chile, Brasil, México, Venezuela e Colômbia; subdesenvolvidos: Peru, Equador, Paraguai, Nicarágua, República Dominicana, Guatemala, El Salvador e Honduras; e situações aberrantes: Costa Rica, Panamá e Cuba. 10. Chandler (1978) observa a importância das ferrovias para o desenvolvimento dos Estados Unidos, por aumentar a velocidade de transportes e, consequentemente, de vendas para todas as regiões americanas. 512 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 2) Países exportadores de produtos de clima tropical. Foram os desfavorecidos pela concorrência de outras colônias e da região escravista dos Estados Unidos, dispondo de mão de obra abundante, que recebia baixos salários. Entretanto, embora os produtos tropicais, como café e cacau, integrando essas regiões à economia internacional, permitissem a abertura de importantes áreas de povoamento, não conseguiram desencadear o seu pleno desenvolvimento. As razões disso podem ser tanto os baixos preços dos produtos, sob a inluência dos reduzidos salários, como a não implementação de infraestrutura de porte signiicativo. No entanto, em algumas regiões esses produtos conseguiram induzir um processo de industrialização, cujo exemplo mais expressivo é a cafeicultura no estado de São Paulo, o que conferiu ao Brasil a classiicação de economia subdesenvolvida de grau superior. 3) Países exportadores de produtos minerais. Ao criarem uma demanda internacional importante de metais industriais, houve modiicações substanciais na produção desses países, substituindo as pequenas unidades artesanais por grandes unidades controladas por capitais estrangeiros e administradas a partir dos países de origem, sobretudo os Estados Unidos. A produção altamente tecnológica, com elevado aporte de capital, conseguiu desenvolver uma importante infraestrutura para o escoamento desses produtos. Contudo, essa infraestrutura era especíica para esse tipo de atividade, gerando baixas externalidades para o restante da região. A absorção de quantidade reduzida de mão de obra foi outro fator que impediu a geração de renda que induzisse o incremento de um mercado interno importante. Em suma, o cerne da explicação de Furtado para as diferenças nos graus de subdesenvolvimento é a forma de participação na divisão internacional do trabalho, incluindo o tipo de produto primário exportado. Quanto mais especializada na produção de determinados produtos e maior a dualidade existente na sociedade, o grau de subdesenvolvimento será superior. Nas análises iniciais, o autor, comungando com a visão cepalina, acreditava que a industrialização seria a saída para diversiicar a produção e retirar a população de atividades de subsistência, conduzindo-a para os setores modernos, de modo a reduzir o caráter dualista das sociedades dessas regiões e, consequentemente, a alta concentração de renda. Com a crise de 1929, as economias latino-americanas que lograram algum grau de industrialização, até aquele momento, foram as mais beneiciadas no sentido de acelerar esse processo, alcançando maior desenvolvimento relativamente às outras. Os países que lideraram esse processo foram Argentina, México e Brasil (Furtado, 1976). Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 513 Aqui, destaca-se a dimensão dos países tanto em termos territoriais como populacionais. Estes últimos apresentam as maiores dimensões, e somente os três totalizam quase dois terços de todo o território da América Latina e abrigam cerca de 60% da população da região (UN, 2011). Fajnzylber (1989) ressalta o tamanho da economia do país como fundamental para a diversiicação produtiva. Quanto menor for, mais especializado será o país, devido a problemas de escala. Isso explicaria, em parte, por que foram exatamente os maiores países que deslancharam primeiro o processo de industrialização latino-americano. A fim de aplicar o esquema analítico de Celso Furtado em relação ao grau de desenvolvimento, elaborou-se o quadro 2 com base em estudos sobre a industrialização latino-americana e caribenha. QUADRO 2 Classificação dos países segundo o período de desencadeamento da industrialização Antes de 1930 A partir de 1930 Após 1945 Após 1960 Argentina Colômbia Paraguai América Central Caribe Uruguai Peru Bolívia Brasil Equador Venezuela México Chile Fonte: Cepal (1963). Elaboração dos autores. Espera-se assim que, quanto mais retardatário no processo de industrialização, pior o desenvolvimento exibido nos dias atuais. Em relação ao grau de desenvolvimento, Furtado (1976) destaca que, embora a Argentina apresentasse a menor taxa de crescimento industrial por volta de 1930, igualmente ao Uruguai, ambos registraram os melhores indicadores sociais. Isso porque a industrialização não tinha contribuído, até então, para reduzir as desigualdades de renda nos demais países. Ou seja, a industrialização contribuiu para o aumento da renda per capita dos países, mas isso não implicou que as regiões que mais cresceram fossem aquelas que mais se desenvolveram, considerando-se as variáveis sociais. Dois fatores foram elencados como os mais signiicativos para conigurar o peril de distribuição da renda: a concentração fundiária e o excedente populacional. Quanto mais elevados fossem esses fatores, maior seria a concentração de renda e menor a capacidade de formação de um mercado interno capaz de criar novas atividades. Novamente, os dois últimos países mencionados levaram vantagens nesse sentido. Em síntese, o grau de desenvolvimento dos países latino-americanos dependeu: i) da natureza da atividade exportadora, com sua capacidade de absorção de 514 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil mão de obra; ii) do tipo de produto de exportação, que determinou o modelo de infraestrutura e sua capacidade de geração de economias externas; iii) da nacionalidade da propriedade do capital, o que determinava o luxo de renda interna; iv) do excedente de mão de obra, que regulava o nível da taxa de salários no setor exportador em sua fase inicial; e v) da dimensão absoluta do setor exportador, que relete, em grande parte, as dimensões geográicas e demográicas do país. Furtado (1976) exempliica esse esquema colocando dois países em situações opostas: Argentina e Bolívia. No primeiro país, todos os itens mencionados atuaram no sentido de favorecer o seu desenvolvimento, o que traz relexos até hoje. Já no segundo, tudo contribuiu para que ele permanecesse num círculo vicioso do subdesenvolvimento. 3 AVALIAÇÃO COMPARATIVA ENTRE A EVOLUÇÃO SOCIOECONÔMICA DOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS E A DO RESTANTE DO MUNDO A América Latina possui extensão de 21.069.501 km2, cerca de 14,1% do território total do mundo. Compreende vinte países11 e onze territórios, não independentes. Já o Caribe é formado por mais de 25 ilhas, próximo ao Golfo do México, e banhado pelo Mar do Caribe. Segundo dados do World Bank (2007), a população dessas regiões em 2005 era de 550 milhões de habitantes, representando 8,5% da população mundial. Apesar da dimensão territorial e populacional expressiva, a América Latina e o Caribe encontram-se entre as regiões pouco desenvolvidas do mundo, com alto índice de pobreza e desigualdade, embora a heterogeneidade interna seja considerável. Apesar de diversos países serem classiicados como de “alto desenvolvimento humano” (cerca de quinze), num ranking de 182 países, outro tanto é considerado como de “médio desenvolvimento humano”, icando acima apenas de alguns países africanos (UNDP, 2007).12 Contudo, o indicador mais desfavorável para a região é a desigualdade na distribuição pessoal da renda,13 igurando a América Latina como a pior região no mundo, atrás inclusive dos países africanos, cuja grande maioria apresenta menores indicadores de IDH , segundo Morley (2001).14 No período que vai de 1870 a 1980, houve grande aumento do produto per capita na região, de US$ 676 para US$ 5.183. No entanto, a relação entre este e 11. São os seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. 12. O Chile registrou o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região (0,878), ocupando o 44o lugar no ranking, e o Haiti, o pior (0,532), icando no 149o lugar. 13. Para mais detalhes da distribuição de renda dessa região, ver Cepal (2009). O decil superior da população recebia entre 35% e 50% do total da renda, de acordo com o país ou ilha, entre os anos 2005 e 2007, ao passo que o decil inferior percebia abaixo de 2% e, em muitos casos, abaixo de 1% da renda total. 14. Numa divisão dos países em sete grandes regiões, na década de 1990, a América Latina apresentou um índice de Gini médio de 49,3, o pior do mundo; a África Subsaariana, o segundo pior, 46,9; e a Europa Ocidental, o melhor, um índice médio de 28,9. Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 515 o produto per capita mundial se manteve estagnada, em torno de 28%. Após 1980, ocorreu uma redução dessa proporção, atingindo 21,5% em 2006. Ou seja, houve aumento da desigualdade entre a América Latina e os países desenvolvidos. Esse fenômeno foi geral, quando se compara o produto interno bruto (PIB) per capita das regiões menos desenvolvidas com o daquelas mais desenvolvidas (Cepal, 2008). A exceção entre as regiões antes consideradas menos desenvolvidas, contudo, ica por conta da Ásia, onde diversos países lograram industrializar-se com base no novo paradigma produtivo e tecnológico das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). A participação da Ásia (excluindo o Japão) no produto mundial aumentou de 15,5%, em 1950, para 36,4%, em 2006, principalmente após 1980. Já o PIB per capita da Ásia sobre o mundial passou de 33,4%, em 1980, para 63,2%, em 2006, registrando um aumento maior que o da média mundial. Entre 1990 e 2005, o grau de industrialização dessa região continuou aumentando, sobretudo na China e na Coreia do Sul, enquanto na América Latina houve redução generalizada (Cepal, 2008). Com base nesses dados, infere-se que a industrialização continua explicando o nível de crescimento geral entre os países do mundo e que houve aumento na desigualdade em nível mundial. Resta saber se, dentro da América Latina e do Caribe, ocorreu um processo de convergência ou de divergência do padrão de desenvolvimento e quais os fatores que explicam esse processo. Uma vez que a industrialização continua sendo importante para a diferenciação em termos de crescimento e, segundo a classiicação de Furtado (1987), constitui o fenômeno que distingue as economias subdesenvolvidas de grau superior das de grau inferior, é importante destacar alguns aspectos que diferenciam a industrialização entre as regiões da América Latina e do Caribe. De acordo com Cepal (1965), o ano de 1930 representa um marco, em que algumas economias dessa região passam de desenvolvimento “voltado para fora” para desenvolvimento “voltado para dentro”. Antes dessa época, um grupo formado por alguns países tinha desencadeado um processo de industrialização de relativa signiicância, que eram os casos da Argentina, Brasil, México, Chile e Uruguai, implantando, principalmente, indústrias tradicionais (de alimentos, vestuário, calçados e têxteis). Entre esses, a Argentina, sobretudo, tem destaque, uma vez que nesse país conjugaram-se fatores favoráveis, como a renda relativamente elevada e mais bem distribuída entre a população, a concentração urbana elevada e a forte corrente de imigração – que trouxe iniciativas e capacidades técnicas. A menor heterogeneidade interna – o que representa que a estrutura dualista não era tão acentuada – propiciou maior desenvolvimento. Furtado (1976), como mencionado anteriormente, destaca 516 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil o fato de esse país ter se inserido no comércio internacional como exportador de produtos de clima temperado. O mesmo ocorreu com o Uruguai. Em um segundo grupo, em que se podem citar Colômbia, Peru e Venezuela, que tinham área e população relativamente grandes, não houve o desencadeamento da industrialização veriicado no grupo anterior. O primeiro país não exibiu nenhuma iniciativa, e os últimos, iniciativas débeis e isoladas. Na maioria dos demais países, as circunstâncias foram muito menos propícias, como estímulos para a industrialização, em relação ao pequeno tamanho do mercado e à permanente possibilidade de importar qualquer tipo de bem. Após a crise, de 1930 até 1960, as economias que já tinham iniciado o processo de industrialização deram continuidade a ele, sobretudo até a Segunda Guerra Mundial, algumas de forma mais agressiva, como foi o caso do Brasil e do México, e outras exibindo menores taxas de crescimento, como o Chile, o Uruguai e a Argentina. Neste último, entretanto, a indústria manteve uma participação bastante elevada no produto. O Brasil aproximou-se do nível de industrialização da Argentina nesse período. Dentro desse agrupamento, destacam-se Argentina, Brasil e México, que eram responsáveis por cerca de 80% do produto industrial da América Latina, em 1960. No segundo grupo de países, destacam-se Colômbia, Equador e Peru, em que a crise de 1929 desencadeou uma iniciativa industrializante signiicativa. A Venezuela somente apresentou crescimento expressivo da indústria após 1955. Quanto aos demais países, apenas Paraguai e Bolívia exibiram crescimento desse setor, mas no período pós-Segunda Guerra Mundial; na América Central e no Caribe, a indústria teve pouco desenvolvimento até 1960. No primeiro grupo, a industrialização avançou para os setores mecânico e químico, enquanto nos demais a indústria tradicional predominou. O que se observa quando se chega a 1960 é que as diferenças iniciais de industrialização da Argentina, sobretudo, e do Uruguai em relação a alguns países da América Latina e Caribe tinham diminuído. Isso porque estes foram alcançados por alguns países, como o Brasil e, em menor medida, o México e o Chile, que registraram maiores taxas de crescimento da indústria, pós-crise de 1930. Apesar dessa convergência na industrialização, as condições econômico-sociais permaneceram divergentes. A Argentina e o Uruguai continuaram a exibir rendas per capita15 maiores nesse período. No caso da Argentina, apesar de o Brasil tê-la 15. Argentina e Uruguai apresentavam, em 1960, uma renda per capita de US$ 8.824 e US$ 6.554, respectivamente, e Brasil, México e Chile, de US$ 3.067, US$ 4.420 e US$ 5.860, respectivamente (Penn World Table, 2009). Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 517 alcançado em termos de disponibilidade de produtos manufaturados,16 esse valor per capita era, ainda, 3,5 vezes maior no primeiro, relativamente ao segundo país. Ao longo dos últimos cinquenta anos, a industrialização na América Latina e no Caribe sofreu modiicações consideráveis em todos os países, avançando no processo de substituição de importações. A década de 1980 foi de estagnação para a maioria das economias da região, devido à crise dos balanços de pagamentos e inlação. Na década de 1990, ocorreram modiicações substanciais em suas economias, com o processo de reestruturação produtiva e tecnológica. Veriicou-se, sobretudo na América do Sul, um processo de desindustrialização, com acentuada especialização em indústrias com base em recursos naturais. O crescimento acelerado dos países asiáticos, principalmente da China, tem inluenciado nesse processo, com perda de competitividade da América Latina e do Caribe (Cepal, 2008). Apesar das grandes similaridades no desenvolvimento, as taxas de crescimento do produto, de produtividade e de produção de manufaturas com maior conteúdo tecnológico foram bastante diferenciadas entre as economias da região (op. cit.). O México e a América Central, por exemplo, desenvolveram as denominadas maquilas, principalmente nos anos 1990, conectadas ao comércio com os Estados Unidos. Esse tipo de produção acabou por industrializar países da América Central, que foram retardatários nesse processo. A concorrência da China, contudo, tem reduzido as exportações dessas indústrias para os Estados Unidos. Brasil, Argentina e México, porém, continuam dominantes na participação da produção industrial da região. Em suma, esse breve histórico da industrialização na América Latina e no Caribe teve como intuito periodizar o desencadeamento da implantação das indústrias e mostrar as características gerais desse processo. 4 ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO DOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS Com o objetivo de analisar a trajetória do desenvolvimento dos países latino-americanos, assim como a ocorrência de divergência ou convergência nessa trajetória, foram formados clusters (aglomeração) para os anos de 1950 e 2007. A comparação dos períodos possibilitou fazer inferência dos principais fatores responsáveis pelo desenvolvimento destes, além da existência ou não de convergência ao longo dos anos.17 A análise foi feita considerando um grupo de países da América Latina, para os quais havia todos os dados, a saber: Argentina (ARG), Bolívia (BOL), Brasil 16. De acordo com Naciones Unidas (1965), esse valor aumentou 2,5 vezes na Argentina e cinco vezes no Brasil, entre 1929 e 1960. 17. A metodologia utilizada neste trabalho foi de análise de agrupamentos ou formação de clusters. A aplicação dessa técnica permitiu reunir os países da amostra em grupos pouco heterogêneos (ou mais semelhantes). 518 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil (BRA), Chile (CHI), Colômbia (COL), Costa Rica (CRI), República Dominicana (DOM), Equador (ECU), El Salvador (ELS), Guatemala (GUA), Honduras (HON), México (MEX), Nicarágua (NIC), Paraguai (PAR), Peru (PER), Trinidad e Tobago (TTO), Uruguai (URU) e Venezuela (VEN). A deinição dos países em agrupamentos é baseada em alguma medida de similaridade ou de dissimilaridade.18 O objetivo é obter um vetor de medida construído por meio de um conjunto de variáveis. Neste estudo, trabalhou-se com medidas de dissimilaridade. Assim, quanto menores os valores, mais parecidos seriam os países e, portanto, maior a possibilidade de se apresentarem em um mesmo agrupamento. A análise dos agrupamentos foi desenvolvida para as décadas de 1950 e de 2000. As variáveis utilizadas para construir a medida de dissimilaridade para a década de 1950 foram: PIB por trabalhador (GDPW); grau de abertura comercial (OP); percentual dos investimentos sobre o PIB (KI); taxa de alfabetização (ALF); expectativa de vida (EXPV); e taxa de natalidade (NAT).19 Para a década de 2000, utilizaram-se as variáveis: GDPW; NAT; ESPV; percentual de população subnutrida (SUBNUT); ALF; número de computadores pessoais (COMP); usuários com acesso à internet (INT); consumo total de energia (Cene); OP; KI; e índice de Gini (Gini). A inclusão de novas variáveis, em comparação com a análise feita para o ano de 1950, teve como objetivo elevar o número de informações a respeito dos países, por exemplo, inferir o tamanho da economia dos países, reletida pelo consumo total de energia. A medida de dissimilaridade utilizada foi o quadrado da distância euclidiana. A construção dos agrupamentos pode ser feita utilizando as técnicas hierárquicas ou não hierárquicas. Como um dos objetivos foi deinir, além dos países que formariam cada um dos agrupamentos, o número existente destes na América Latina, optou-se pela técnica hierárquica. Essa técnica parte do princípio de que cada país é um grupo, e, a partir da medida de dissimilaridade, os países passam a ser agrupados. No estágio inicial, a dispersão entre os países de cada agrupamento é a menor possível, já que cada grupo é composto por um único país. No estágio inal, é apresentada a maior dispersão (ou maior grau de heterogeneidade) entre os países, já que todos seriam alocados em um único grupo.20 18. Detalhes sobre a técnica de agrupamentos podem ser encontrados em Mingoti (2005) e Hair Junior et al. (2005). 19. Essas foram as variáveis cujos dados estão disponíveis para todos os países analisados. 20. Para mais detalhes, ver Mingoti (2005). Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 519 Os dados referentes ao produto nacional por trabalhador (em dólares), à participação do investimento no produto nacional bruto per capita e ao grau de abertura (todos a preços constantes) foram obtidos em Penn World Table 6.3 e são referentes aos anos de 1950 e 2007. A taxa bruta de natalidade para cada mil habitantes foi adquirida no site da Cepal e compreende a média para 1950-1955, assim como o consumo de energia em equivalência de barris de petróleo. Os dados da taxa bruta de natalidade para o ano de 2007 foram retirados do Demographic indicators. Os dados relacionados à taxa de alfabetização das pessoas de 15 anos ou mais (dados de 2007), ao percentual de população subnutrida (dados de 2005), ao número de computadores pessoais a cada 100 mil habitantes (dados de 2005) e ao número de usuários de internet a cada 100 mil habitantes (dados de 2008) foram obtidos no site do Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE).21 As taxas de alfabetização e de esperança de vida foram adquiridas em UNDP (2007). Por im, o índice de Gini foi obtido em World Bank (2007). É importante deixar claro que os dados utilizados na análise foram padronizados, a im de evitar equívocos gerados pelas diferentes unidades de medida. Na sequência são apresentados os agrupamentos encontrados para, em seguida, veriicar em que medida as hipóteses de Furtado se ajustam, nos dois momentos históricos estudados (no início da década de 1950 e no período atual), à trajetória de desenvolvimento dos países da América Latina e do Caribe. O primeiro passo foi deinir o número de grupos e os países que compõem cada grupo. Para isso, foram realizados testes envolvendo dados referentes aos anos de 1950 e da década de 2000. Na deinição dos agrupamentos foi utilizada a técnica hierárquica, valendo-se do método de Ward.22 A igura A.1 do apêndice A corresponde ao dendrograma deinido para a década de 1950. Segundo os valores Pseudo F 23 calculados (tabela A.9 do apêndice), o dendrograma e o conhecimento a respeito da diversiicação das economias analisadas, optou-se por separar os países em quatro grupos distintos, uma vez que eles apresentariam, teoricamente, características diversas e, além disso, demorariam a se fundir (igura A.1). Os grupos são apresentados no quadro 3. Além disso, veriicou-se que os quatro grupos são estatisticamente diferentes.24 21. Disponível em: <www.ibge.gov.br/paisesat>. 22. Para mais detalhes, ver Mingoti (2005). 23. Uma das diiculdades da análise de cluster é saber quando parar o processo de aglomeração, ou seja, deinir o número inal de agrupamentos. Mingoti (2005) apresenta várias medidas que podem auxiliar na escolha do número de grupos mais adequado – entre elas, a estatística denominada Pseudo F. Essa medida é calculada para cada passo do processo de aglomeração. O número de agrupamentos é deinido no ponto em que o Pseudo F é maximizado. No caso de o Pseudo F crescer monotonicamente, não haveria uma estrutura de agrupamentos deinida. 24. A análise Manova, apresentada no apêndice A, mostra os resultados das estatísticas de Lambda de Wilks, Pillai’s trace, Lawley-Hotelling trace e Roy’s largest root (tabela A.1) para testar a diferença entre as médias dos grupos. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 520 Resumindo, conclui-se que os agrupamentos formados são boas aproximações da homogeneidade entre os países na década de 1950 e de suas divisões por grau de desenvolvimento. QUADRO 3 Agrupamentos de países da América Latina e do Caribe para 1950 Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3 ARG BOL BRA Grupo 4 CHI URU DOM COL PER ELS CRI TTO GUA ECU VEN HON MEX NIC PAR Elaboração dos autores. O gráico 1 apresenta a média das variáveis padronizadas dentro de cada grupo, assim como a média total destas. Os quatro grupos podem ser ordenados segundo seu grau de desenvolvimento. Considerando uma ordem decrescente, tem-se a seguinte classiicação: 1, 4, 3 e 2. Esse resultado para a década de 1950 encontra suporte teórico nas análises discutidas anteriormente sobre o subdesenvolvimento, bem como o seu grau, da América Latina e do Caribe. Os agrupamentos encontrados (quadro 3) não contrariam a taxonomia de Furtado (1976). No caso da Argentina e do Uruguai, todas as classiicações distinguem ambos os países como muito diferentes da média latino-americana e caribenha. As variáveis utilizadas na análise para o agrupamento dos países exibem valores que indicam maior desenvolvimento. A renda por trabalhador, o percentual de investimentos em relação ao PIB, o grau de alfabetização e a expectativa de vida são maiores que a média da região, e a taxa de natalidade é mais baixa. Para Furtado (1976), esses países desenvolveram-se como extensão das economias europeias, utilizando técnicas semelhantes e, posteriormente, criando novas técnicas. Quanto ao grau de abertura, é interessante observar que essa variável não contribuiu para diferenciar o nível de desenvolvimento da região, naquele ano (tabela A.2). Observa-se no gráico 1 que o grupo mais desenvolvido exibia o menor grau de abertura, ao mesmo tempo que o segundo grupo mais desenvolvido apresentava o maior. Esse resultado vai de encontro às teorias, como a das vantagens comparativas, que justiicam o maior desenvolvimento de um país devido à sua elevada exposição ao mercado internacional. Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 521 GRÁFICO 1 Perfis gráficos da solução para os quatro agregados, considerando a década de 1950 2,50 2,00 1,50 1,00 0,50 0,00 –0,50 –1,00 –1,50 –2,00 –2,50 –3,00 OP Agrupamento 1 KI RGDPWOK Agrupamento 2 ALF Agrupamento 3 EXPV NAT Agrupamento 4 Elaboração dos autores. Na Argentina, especiicamente, a falta de mão de obra estabeleceu níveis salariais maiores para os trabalhadores, revertendo em melhor distribuição de renda interna, assim como no Uruguai, embora consideradas concentradas quando comparadas às dos países mais desenvolvidos do mundo. Isso permitiu a criação de um mercado interno mais amplo, desencadeando o processo de industrialização. Segundo Lambert (1969), esses países conseguiram modernizar suas atividades agropecuárias, alterando a estrutura agrária inicialmente bastante concentrada. O segundo grupo do quadro 3 consiste em um cluster com maior número de países que se apresentavam como os menos desenvolvidos em 1950. Grande parte são economias centro-americanas, exceto a Bolívia, da América do Sul, e a República Dominicana, do Caribe. Apresentam os piores indicadores em termos econômicos e sociais. Na classiicação de Furtado (1976), com exceção da Bolívia, que se inseriu na divisão internacional do trabalho como exportadora de produtos minerais, o restante do grupo se inseriu como exportadores de produtos agropecuários tropicais. Ambas as formas de inserção não geraram externalidades suicientes para difundir a modernização para o conjunto da sociedade.25 Além disso, o processo 25. Para Lambert (1969), este grupo de países classiica-se como aqueles em que a sociedade tradicional, existente antes da colonização espanhola, predominou, de forma a não desencadear um processo de desenvolvimento. 522 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil de industrialização foi o mais tardio para a grande maioria, tendo iniciado após 1960, período posterior ao ano analisado. O terceiro grupo, formado por Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, México e Paraguai, exibe o segundo pior conjunto de indicadores da América Latina e do Caribe. Com exceção do México – que era exportador tanto de produtos tropicais como derivados de mineração –, os demais foram caracterizados por Furtado (1976), principalmente, como exportadores de produtos agrícolas tropicais, o que justiica o seu subdesenvolvimento. Quanto à industrialização, esse é o grupo mais heterogêneo, reunindo países que iniciaram esse processo em diferentes períodos. Já segundo Lambert (1969), grande parte é classiicada como desigualmente desenvolvida, ou seja, onde o dualismo social foi bastante acentuado. Nesse sentido, seriam sociedades que comportavam um setor moderno convivendo com outro tradicional – em geral, atividades agrícolas de subsistência. É importante ressaltar que para Furtado (1968), também, o dualismo está no cerne do conceito de subdesenvolvimento. Portanto, todos os países da América Latina e do Caribe, com as possíveis exceções de Argentina e Uruguai, na década de 1950, consistiam em sociedades duais. Por im, Chile, Peru, Trinidad e Tobago e Venezuela formam o quarto grupo, que apresenta o segundo melhor conjunto de indicadores. Apesar de Furtado (1976) ressaltar que se caracterizaram como economias com enclave acentuado, devido à atividade de mineração, que gerava pouca externalidade para o seu entorno, esse grupo de países possuía os maiores índices de investimento, além de outros bons indicadores, sobretudo o Chile e Trinidad e Tobago. No caso deste último, trata-se do menor país em termos populacionais da região. O seu melhor desempenho, em relação a alguns outros países, advém da atividade de exploração de petróleo. Em suma, respondendo às questões feitas na introdução do capítulo, os agrupamentos encontrados indicam que, em 1950: i) havia diferenças socioeconômicas consideráveis entre os países latino-americanos e caribenhos; ii) a forma de inserção na divisão internacional do trabalho parece ter tido papel importante para desencadear o desenvolvimento de cada país; iii) o grupo menos desenvolvido é composto por países com nível populacional menor. Esse último fator pode ser um limitante ao desenvolvimento de um mercado interno amplo, uma vez que reduz as possibilidades de surgimento de atividades que exijam maiores escalas, como sugerido por Fajnzylber (1989); e iv) a industrialização, embora já em desenvolvimento nesse período em muitos países da América Latina e do Caribe, parece ainda não ter se constituído em elemento diferenciador das condições socioeconômicas desses países. Argentina, Brasil, México, Colômbia e Chile foram os pioneiros no desencadeamento desse processo na região. Contudo, Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 523 na análise de clusters icaram distribuídos em três diferentes grupos, com graus distintos de desenvolvimento.26 Após a análise de 1950, as mesmas questões a responder referem-se, agora, à evolução do capitalismo na América Latina e no Caribe após esse período até a atualidade. Foi observada, primeiramente, a conformação dos grupos, ou seja, se houve grandes alterações nos clusters identiicados em 1950 e, em segundo lugar, quais foram os principais fatores que contribuíram para a nova conformação, caso esta tenha se modiicado. Valendo-se de iguais procedimentos, foi realizada uma análise de agrupamentos para os mesmos países para a década de 2000. As variáveis utilizadas na análise foram: GDPW; NAT; ESPV; SUBNUT; ALF; COMP; INT; Cene; OP; KI; e Gini. A inclusão de novas variáveis, em comparação com a análise feita para a década de 1950, teve como objetivo elevar o número de informações a respeito dos países. Assim como na análise desenvolvida para a década de 1950, o ponto de máximo da estatística Pseudo F (tabela A.9 do apêndice) e o dendrograma (igura A.2 do apêndice), gerados para a década de 2000, indicam a formação de dois agrupamentos. Observou-se, entre 1950 e 2000, a redução do número de grupos: de quatro para dois. Comparando os dendrogramas dessas duas décadas, percebe-se que, em 2000, o agrupamento em dois conjuntos de países formou-se muito mais rapidamente que em 1950, o que indica menor dissimilaridade entre eles. Da mesma forma, esses grupos são tão distintos um do outro que sua união ocorreu num ponto muito distante do dendrograma. Esses agrupamentos são apresentados no quadro 4. QUADRO 4 Agrupamentos de países da América Latina e do Caribe para a década de 2000 Grupo 1 Grupo 2 ARG BOL BRA COL CHI DOM CRI ECU MEX ELS TTO GUA URU HON VEN NIC PAR PER Elaboração dos autores. 26. De qualquer forma, nenhum deles pertencia ao grupo classiicado por Lambert (1969) como o mais subdesenvolvido, no qual o tipo de organização de sociedade pré-colonização predominou. 524 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Os resultados mostram que esses agrupamentos são estatisticamente diferentes (tabela A.3 do apêndice), ressaltando-se, novamente, que o grau de abertura (OP) não teve importância para a diferenciação dos países (tabela A.4 do apêndice). Esse resultado sugere apenas que a maior exposição ao mercado internacional não teria efeitos positivos sobre o desenvolvimento dos países. O maior grau de abertura deveria ser acompanhado de políticas que assegurassem a competitividade da produção desses países diante do cenário internacional. A variável KI, ao contrário de 1950, também não foi importante para diferenciar os grupos na década de 2000. Uma das possíveis explicações é que, em 1950, o KI pode ter feito diferença, uma vez que a característica desses investimentos era bem mais homogênea (em infraestrutura, em atividades produtivas etc.), possibilitando que países como o Chile se agrupassem àqueles como a Argentina e o Uruguai. Já na década de 2000, a concepção de KI podia não mais fazer o mesmo efeito. A variável KI não considera, por exemplo, os investimentos em capital humano, tão fundamentais para o crescimento atual. O gráico 2 apresenta a média das variáveis padronizadas para os respectivos clusters, na década de 2000. Comparando 1950 com a década de 2000, observa-se que a formação de dois grupos bem distintos seguiu uma trajetória histórica já esboçada nos anos 1950. Ao grupo 1, mais desenvolvido, se agregou o grupo 4 (o segundo com melhores indicadores em 1950), com exceção do Peru, e três países do grupo 3 (o segundo com piores indicadores em 1950) – Brasil, México e Costa Rica. Os dois primeiros países, e a Argentina, foram os primeiros a se industrializar, alcançando um nível de diversiicação da produção acentuado, o que, de acordo com a teoria de Furtado e a Cepal, pode incorporar a população do setor de subsistência em setores modernos, elevando os indicadores socioeconômicos, ora analisados. A conclusão dessa análise é da persistência histórica do grau de subdesenvolvimento. Observa-se que os países do grupo 2 (os menos desenvolvidos em 1950), sem qualquer exceção, permaneceram nessa condição após cinquenta anos. A eles se uniu metade dos países do grupo 3. Todos eles apresentam economias menos diversiicadas em produção, apesar de muitos países da América Central terem seguido a trajetória do México de implantação das “maquilas” para a venda nos Estados Unidos. No entanto, como mencionado, essa participação no mercado americano está sendo contestada pelos países da Ásia, sobretudo a China. Fica visível no gráfico 2 o fato de o grau de abertura e o percentual de investimentos em relação ao PIB não contribuírem para diferenciar os grupos apresentados no quadro 4. No entanto, percebe-se claramente que o agrupamento 1 apresentou resultados mais satisfatórios (econômicos e sociais) que os países que compõem o agrupamento 2. Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 525 GRÁFICO 2 Perfis gráficos da solução para dois agregados, considerando a década de 2000 1,00 0,50 0,00 –0,50 –1,00 OP KI GDPW NAT ESPV Agrupamento 1 SUBNUT ALF COMP INT Cene Gini Agrupamento 2 Elaboração dos autores. A industrialização, como apontado por Furtado (1976), não logrou melhorar as condições sociais da América Latina. É interessante, assim, empreender mais duas análises de formação de grupos: uma utilizando apenas variáveis econômicas e outra apenas variáveis sociais para a década de 2000. Este estudo visa veriicar se o crescimento econômico foi acompanhado pela melhoria das condições de vida da população, e em quais países isso ocorreu. Pretende-se, adicionalmente, observar a persistência histórica do dualismo e do subdesenvolvimento, de modo geral. A análise econômica foi desenvolvida com as variáveis: GDPW; COMP; INT; Cene; OP; e KI. O ponto de máximo da estatística Pseudo F (tabela A.9 do apêndice) e a observação do dendrograma (igura A.3 do apêndice) apontaram para a formação com três agrupamentos. Eles são apresentados no quadro 5. Comparando com o quadro 4, veriica-se que, do ponto de vista econômico, especiicamente, o Brasil ica isolado dos demais países, formando o grupo 3, o que indica uma estrutura econômica bem diferenciada da dos países da América Latina e do Caribe, e até mesmo quando se compara com a Argentina e o México. A maior diversiicação da economia brasileira, com liderança na produção de diversos produtos nessa região, o amplo mercado interno e as grandes escalas de produção contribuíram para esse desempenho diferenciado. Colômbia, Costa Rica Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 526 e Peru, por sua vez, migraram para o grupo 1, mostrando que economicamente diferem do grupo 2, com pior desempenho, em todos os agrupamentos feitos até o presente momento. QUADRO 5 Agrupamentos de países da América Latina e do Caribe para a década de 2000, considerando apenas variáveis econômicas Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3 ARG BOL BRA CHI ECU COL ELS CRI GUA DOM HON MEX NIC PER PAR TTO URU VEN Elaboração dos autores. A análise da diferença da média entre os grupos indicou que os agrupamentos são estatisticamente diferentes (tabela A.9 do apêndice). O gráico 3 apresenta as médias dos agregados para cada variável considerada na análise, o que possibilita classiicá-los em nível de crescimento econômico. GRÁFICO 3 Perfis gráficos da solução para três agregados, para a década de 2000, considerando variáveis econômicas padronizadas 4 3 2 1 0 –1 –2 OP KI Grupo 1 Elaboração dos autores. GDPW Grupo 2 INT COMP Grupo 3 Cene Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 527 A im de veriicar se o desempenho econômico foi acompanhado de melhoria nas condições sociais, foi feito um novo agrupamento com as variáveis sociais, o qual é apresentado a seguir. Com base no ponto de máximo da medida Pseudo F (tabela A.9 do apêndice) e no dendrograma (igura A.4 do apêndice), optou-se pela separação social dos países em dois agrupamentos. Esses grupos são apresentados no quadro 6. QUADRO 6 Agrupamentos de países da América Latina e do Caribe para a década de 2000, considerando variáveis sociais Grupo 1 Grupo 2 ARG BOL CHI BRA CRI COL MEX DOM TTO ECU URU ELS GUA HON NIC PAR PER VEN Elaboração dos autores. No gráico 4, que apresenta as médias padronizadas das variáveis para cada grupo, pode-se veriicar que o grupo 1 exibiu melhores resultados em relação às variáveis sociais. Isso classiica esse agrupamento como o mais desenvolvido em termos sociais. Observa-se, também, a grande diferença entre os dois grupos. O dendrograma (igura A.4 do apêndice) conirma a demora para que esses dois grupos se unam. No grupo 1, que apresenta melhores indicadores sociais, foram classiicados apenas seis países: Argentina, Chile, Costa Rica, México, Trinidad e Tobago e Uruguai. Os demais doze países formam o grupo 2, com indicadores sociais bem piores. Comparando com o quadro 5, veriica-se que cinco países saem dos grupos mais desenvolvidos economicamente para compor o grupo dos menos desenvolvidos socialmente. São eles: Brasil, Colômbia, República Dominicana, Peru e Venezuela. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 528 GRÁFICO 4 Perfis gráficos da solução para dois agregados, para a década de 2000, considerando variáveis sociais 1,00 0,50 0,00 –0,50 –1,00 –1,50 NAT ESPV Grupo 1 SUBNUT ALT Gini Grupo 2 Elaboração dos autores. Comparando com 1950, houve pouca variação dos países mais desenvolvidos. Nesse grupo são reunidos Argentina e Uruguai (grupo 1, em 1950) e Chile, Costa Rica e Trinidad e Tobago (grupo 4, o segundo melhor conjunto de indicadores). Apenas o México estava no grupo 3 (o segundo pior). Da mesma forma, observa-se que o tamanho dos países não foi importante para determinar o grau de subdesenvolvimento, considerando-se variáveis sociais. Em suma, mesmo com os esforços de diversos países em industrializar-se, continua válida a argumentação de Furtado (1976), que já observara desde a década de 1970 que a industrialização não resolveu os problemas sociais da região. A sociedade dual ainda persiste. Os fatores apresentados por Furtado (1976) – e por outros, como Lambert (1969) – para a diferenciação de Argentina e Uruguai, ainda no período colonial, do restante da América Latina parecem ter inluência até o presente momento, uma vez que sempre iguraram entre os países mais desenvolvidos. Costa Rica, por sua vez, difere muito historicamente dos seus vizinhos na América Central, o que lhe conferiu características especíicas, incluindo maior desenvolvimento. Apesar de se inserir no mercado internacional como exportadora de poucos produtos agrícolas, essa inserção foi tardia pela falta de população indígena para ser utilizada como mão de obra. Isso proporcionou uma sociedade com terra mais bem distribuída e, em consequência, mais igualitária. Durante a década de 1940, houve grandes reformas sociais, e esse é o único país da América Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 529 Central e do Sul que tem sustentado uma democracia desde essa década até os dias atuais (Yashar, 1997). Trinidad e Tobago constitui o menor país estudado, com apenas 1.342 mil habitantes. Sua economia depende, em grande parte, da extração e reino de petróleo, cuja matéria-prima foi encontrada na segunda metade do século XIX, o que lhe tem conferido bons indicadores socioeconômicos. O Chile também apenas convergiu para o grupo mais desenvolvido, pois desde 1950 já apresentava indicadores econômicos e sociais melhores que a média da América Latina. É importante ressaltar que, na análise de 1950, o KI do Chile era bastante alto. Assim, em termos de melhoria na qualidade de vida, apenas o México veio de um grupo menos desenvolvido em 1950, mesmo assim, não o pior entre os quatro identiicados, mas o segundo pior. 5 CONCLUSÕES A análise dos agrupamentos chegou às seguintes conclusões sobre a evolução do desenvolvimento da América Latina e do Caribe entre os anos 1950 e a década de 2000. 1) Houve maior convergência entre os indicadores socioeconômicos nos anos 1950 a 2000, de forma que, de quatro, houve a formação de dois grupos; isso não signiica que o grupo menos desenvolvido saiu ou demonstra fazer esforço para sair da condição de subdesenvolvido. 2) Os dois grupos identiicados, na década de 2000, são muito distintos entre si. 3) Os grupos com base somente em indicadores econômicos diferem daqueles com indicadores sociais; neste último caso, o número de países classiicados como os mais desenvolvidos é bem mais reduzido. 4) O agrupamento segundo os indicadores econômicos ampliou muito o número de países, nesse período, classiicados como os mais desenvolvidos, o que indica que do ponto de vista econômico houve maior convergência entre eles. 5) O Brasil icou isolado, de acordo com critérios econômicos, dos demais países, mostrando uma estrutura produtiva diferenciada dentro da região; a diferença fundamental diz respeito ao tamanho da economia, com um número de atividade industrial superior ao de outros países. 6) O agrupamento segundo os indicadores sociais não diferiu muito da classiicação feita em 1950, o que sugere a persistência e a diiculdade na transformação da qualidade de vida da população, de modo geral. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 530 Esses resultados mostram que a interpretação de Furtado sobre o subdesenvolvimento e o seu grau continua válida para a análise da América Latina e do Caribe. Em primeiro lugar, as economias que lograram maior diversiicação foram aquelas que mostraram melhor desempenho socioeconômico, sobretudo por meio do desenvolvimento da estrutura industrial. Segundo, a forma de inserção no comércio internacional, a partir da Revolução Industrial, explica, ainda, em grande parte o grau de desenvolvimento desses países, dada a diferença entre eles do grau de dualismo presente na sociedade. Esse fenômeno é indicado pelo alto grau de desigualdade de renda, de analfabetismo, de subnutrição, entre outras variáveis sociais. Do mesmo modo, a forma de inserção pode explicar as diferenças entre o desenvolvimento da América Latina e o da Ásia. Por im, a industrialização trouxe maior desenvolvimento econômico, porém não foi capaz de reduzir as desigualdades nas condições de vida da população. Como conclusão geral, observou-se ao longo do estudo a persistência histórica do subdesenvolvimento, implicando a resistência quanto à melhoria de indicadores como desigualdade distributiva da renda e pobreza. REFERÊNCIAS BARRIENTOS, Paola. heory, history and evidence of economic convergence in Latin America. Institute for Advanced Development Studies, 2007. (Development Research Working Paper Series, n. 13). BRESSER-PEREIRA; Luiz Carlos; REGO, José M. (Org.). A grande esperança em Celso Furtado: ensaios em homenagem aos seus 80 anos. São Paulo: Editora 34, 2001. CEPAL – COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE. Problemas y perspectivas del desarrollo industrial latinoamericano. Buenos Aires: Solar; Hachette, 1963. ______. El proceso de industrialización en América Latina. Nueva York: Naciones Unidas, 1965. 279 p. ______. 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Nota: ¹ Análise Multivariada de Variância – sigla em inglês. Obs.: *** nível de signiicância = 1% . TABELA A.2 Teste de igualdade das médias dos grupos determinados (1950) Lambda de Wilks F df1 df2 Signiicância OP 0.666659 2.333414 3 14 0.118275 KI 0.330565 9.450578 3 14 0.001142 RGDPWOK 0.424982 6.314181 3 14 0.006231 ALF 0.287828 11.54675 3 14 0.000445 EXPV 0.245141 14.37000 3 14 0.000148 NAT 0.131762 30.75075 3 14 2.04E-06 Elaboração dos autores. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 534 FIGURA A.2 Dendrograma construído a partir do método de Ward, para a formação de clusters (década de 2000) PAÍSES 0 5 10 15 20 25 ECU PER ELS DOM COL BOL PAR HON NIC GUA CHI CRI ARG VEN MEX URU TTO BRA Elaboração dos autores. TABELA A.3 Análise Manova para o agrupamento de quatro grupos (década de 2000) Estatística do teste Wilks’ lambda 0,0612*** Pillai’s trace 0,9388*** Lawley-Hotelling trace 15,3342*** Roy’s largest root 15,3342*** Elaboração dos autores. Obs.: *** nível de signiicância = 1% . TABELA A.4 Teste de igualdade das médias dos grupos (Manova) determinados (2007) Lambda de Wilks F df1 df2 Signiicância OP 0.973714 0.431935 1 16 0.520384 KI 0.991441 0.138125 1 16 0.715028 GDPW 0.381136 25.97971 1 16 0.000108 NAT 0.497955 16.13143 1 16 0.000997 ESPV 0.661678 8.180940 1 16 0.011338 SUBNUT 0.416562 22.40967 1 16 0.000225 ALF 0.572336 11.95562 1 16 0.003241 COMP 0.37383 26.80023 1 16 9.18E-05 INT 0.632526 9.295401 1 16 0.007657 Cene 0.751942 5.278227 1 16 0.035423 Gini 0.800459 3.988541 1 16 0.063111 Elaboração dos autores. Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 535 TABELA A.5 Análise Manova para o agrupamento de quatro grupos, para variáveis econômicas (década de 2000) Estatística do teste Wilks’ lambda 0,0313*** Pillai’s trace 1,5755*** Lawley-Hotelling trace 11,5782*** Roy’s largest root 9,5448*** Elaboração dos autores. Obs.: *** nível de signiicância = 1% . TABELA A.6 Teste de igualdade das médias dos grupos determinados (Manova), para variáveis econômicas (2007) Lambda de Wilks F df1 df2 OP 0.687 3.416 2 15 Signiicância 0,060 KI 0.878 1.042 2 15 0.377 GDPW 0.506 7.308 2 15 0.006 COMP 0.573 5.585 2 15 0.015 INT 0.238 23.996 2 15 0.000 Cene 0.246 23.010 2 15 0.000 Elaboração dos autores. FIGURA A.3 Dendrograma construído a partir do método de Ward, para a formação de clusters para as variáveis econômicas (década de 2000) PAÍSES 0 ECU GUA ELS BOL PAR HON NIC CHI TTO CRI ARG VEN MEX COL DOM PER URU BRA Elaboração dos autores. 5 10 15 20 25 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 536 FIGURA A.4 Dendrograma construído a partir do método de Ward, para a formação de clusters para as variáveis sociais (década de 2000) PAÍSES 0 5 10 15 20 25 BRA COL PAR DOM PER ECU VEN ELS HON GUA NIC BOL CHI CRI ARG MEX URU TTO Elaboração dos autores. TABELA A.7 Análise Manova para o agrupamento de quatro grupos para variáveis sociais (década de 2000) Estatística do teste Wilks’ lambda 0,2490*** Pillai’s trace 0,7510*** Lawley-Hotelling trace 3,0162*** Roy’s largest root 3,0162*** Elaboração dos autores. Obs.: *** nível de signiicância = 1%. TABELA A.8 Teste de igualdade das médias dos grupos determinados (Manova), para variáveis sociais (2007) Lambda de Wilks F df1 df2 Signiicância NAT 0.5222 14.6413 1 16 0.0015 ESPV 0.6231 9.6779 1 16 0.0067 SUBNUT 0.4823 17.1729 1 16 0.0008 ALF 0.6179 9.8940 1 16 0.0063 Gini 0.7389 5.6551 1 16 0.0302 Elaboração dos autores. Desigualdade na América Latina: estudo segundo o enfoque de Celso Furtado 537 TABELA A.9 Estatística Pseudo F para a escolha do número de agrupamentos Valor da Estatística Pseudo F Número de grupos Agrupamentos para o ano de 1950 Agrupamentos para a década de 2000 Agrupamentos para a década de 2000 (variáveis econômicas) Agrupamentos para a década de 2000 (variáveis sociais) 6 8,80 6,45 5,30 5,35 5 8,52 6,12 4,28 6,41 4 8,581 6,82 4,38 7,41 3 9,56 8,30 5,531 7,37 2 7,96 11,571 2,65 10,781 1 – – – – Elaboração dos autores. Nota: 1 Número de agrupamentos selecionados. CAPÍTULO 20 IMPACTOS REGIONAIS DE UMA REFORMA COMERCIAL NO BRASIL BASEADA NAS CONTRIBUIÇÕES LIBERAIS DE ROBERTO CAMPOS Mauricio Vaz Lobo Bittencourt1 1 INTRODUÇÃO Diversas variações de políticas de liberalização comercial ocorreram para muitos países em desenvolvimento após a crise do México, no inal dos anos 1980. A principal ideia por trás de tais políticas de comércio era a de que o livre comércio traria ganhos de bem-estar e proporcionaria o crescimento econômico almejado. No inal dos anos 1980, o Brasil foi um dos últimos países da América do Sul a adotar políticas comerciais mais liberais. No começo dos anos 1990, sob o Tratado de Assunção, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai estabeleceram um acordo de comércio regional chamado Mercado Comum do Sul (Mercosul). Recentemente, a inserção do Mercosul na Área de Livre Comércio das Américas (Alca)2 foi suspensa após amplas divergências oriundas das autoridades dos países envolvidos. De acordo com Winters (2002), países em desenvolvimento podem experimentar um alto grau de incerteza devido à liberalização comercial, política de mercado em que o país se torna mais vulnerável a choques de comércio, tais como grandes variações de preços e mudanças na taxa de câmbio, reduzindo a eicácia de políticas para diminuição da pobreza3 e redistribuição de renda. A teoria tradicional do comércio enfatiza os ganhos do livre comércio, principalmente no longo prazo, sugerindo que qualquer país que remova barreiras de comércio vai sempre ganhar com a abertura de sua economia. Em geral, reformas comerciais trazem ganhos para um país no longo prazo, pois há tempo suiciente para ocorrer uma melhor alocação e distribuição de recursos, melhorando a economia como um todo. O problema está na incerteza dos efeitos de reformas nas políticas comerciais sobre a pobreza e a distribuição de renda no curto e médio prazo,4 principalmente quando 1. Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico (PPGDE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: mbittencourt@ufpr.br 2. A Alca deveria incluir inicialmente os países das Américas do Norte, Sul e Central, sendo que os principais acordos e regulamentações ainda estão em debate e negociações. 3. A análise da pobreza devido à liberalização comercial pode ser mais geral que as restrições impostas pelo padrão de comércio entre os países. Para mais detalhes, ver Winters (2002). 4. A expressão curto e médio prazo, aqui, se refere ao período em que alguns dos fatores de produção não são totalmente ixos. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 540 existem disparidades regionais acentuadas, como é o caso do Brasil, que resultam em alguns agentes ganhando e outros perdendo com tais medidas. Este capítulo vai ao encontro de um importante eixo temático do Planejamento Estratégico do Ipea, a Inserção Internacional Soberana, a qual trata de buscar o desenvolvimento econômico sustentado, com autonomia para com as políticas internas e externas. O objetivo deste estudo é investigar os impactos econômicos regionais na pobreza e na distribuição de renda de uma redução nas tarifas de importação baseadas nas ideias de Roberto Campos. Devido à importância econômica e política de Campos para a formação econômica do Brasil, acredita-se que suas ideias liberais para o desenvolvimento possam ser avaliadas empiricamente por meio de um modelo de Equilíbrio Geral Computável (CGE) aplicado para o Brasil. Busca-se veriicar se a adoção de políticas de liberalização comercial inspiradas nos ideais de Campos pode trazer ganhos de bem-estar para os pobres e uma melhor distribuição de renda regional. 2 O PROBLEMA A eliminação de tarifas de importação é considerada como um dos principais instrumentos de políticas de ajustamento estrutural disponível em muitos países em desenvolvimento. Enquanto a teoria neoclássica tradicional sugere que um país se beneicia do livre comércio, o principal argumento é que os ganhos são obtidos ao mesmo tempo em que as barreiras tarifárias são removidas, já que controles comerciais absorvem recursos do governo e causam perdas líquidas de bem-estar. A principal preocupação com a política a ser adotada aqui se refere à conexão entre a política de reforma comercial a ser proposta e a pobreza e a desigualdade de renda regional no Brasil. Dessa forma, este capítulo busca avaliar os impactos de curto e médio prazo da redução nas tarifas de importação conforme algumas ideias liberais propostas por um importante e inluente economista, diplomata e político brasileiro, Roberto de Oliveira Campos.5 Quais seriam as principais consequências da redução das tarifas de importação na presença de disparidades regionais, alto nível de pobreza e má distribuição de renda? O que aconteceria com os pobres das áreas urbana e rural? Se existem alguns setores cuja abertura comercial prejudica os pobres, estes setores deveriam ser excluídos de uma reforma liberal como a sugerida? A população de baixa renda 6 nas regiões Norte e Nordeste do Brasil corresponde, respectivamente, a 64% e 79% do número total de habitantes 5. Roberto de Oliveira Campos teve importantes contribuições nos governos de Getúlio Vargas, Café Filho, Juscelino Kubitschek e Castelo Branco. Foi diplomata em Los Angeles, Nova York e Londres, além de ter sido eleito deputado, senador e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). 6. De acordo com o Censo Demográico 2000 (IBGE, 2000), fazem parte da população de baixa renda aqueles cujos ganhos totais mensais são menores que duas vezes o salário mínimo (SM). Impactos Regionais de uma Reforma Comercial no Brasil Baseada nas Contribuições Liberais de Roberto Campos 541 nestas localidades. No Sudeste, a proporção é de 48%. Estes números ilustram algumas das disparidades regionais do Brasil. Em 1990, o país tinha mais de 30 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza (mais de 20% da população). Apesar de a pobreza ter sido reduzida no Brasil após 1995, muito ainda precisa ser feito em termos de políticas para reduzi-la ainda mais. Adicionalmente à pobreza, a desigualdade na distribuição da renda é outra importante característica da economia brasileira. Apesar do coeiciente de Gini ter diminuído nos últimos anos, passando de 0,60 em 1995 para 0,56 em 2006,7 a distribuição de renda no Brasil continua sendo uma das mais desiguais no mundo,8 com um coeiciente aproximado de 0,58. Uma característica da análise de política a ser examinada neste estudo é exatamente como mitigar os efeitos positivos 9 e negativos de bem-estar nos mais pobres. Devido a alguns setores poderem ocasionar impactos negativos nos mais pobres após uma redução nas tarifas de importação, as autoridades políticas devem ter como objetivo identiicar a melhor alternativa de reforma comercial para o Brasil: a setorial (alusivamente aos “pontos de germinação” de Roberto Campos) ou a global (que serviria para toda a economia). Levando em conta as características regionais dos setores produtivos e da alocação de fatores, pode-se deinir o seguinte objetivo deste estudo: avaliar, de acordo com as ideias de Roberto Campos, os efeitos de diferentes níveis de redução das tarifas de importação na pobreza e na distribuição de renda em áreas rural e urbana brasileiras e também nos setores produtivos e nos mercados de fatores regionais. 3 EFEITOS DE COMÉRCIO NO BRASIL POR MEIO DE ESTUDOS COM CGE Existem muitos estudos que avaliam os impactos de políticas comerciais e de integração regional na economia brasileira. Alguns deles são de equilíbrio parcial (Carvalho e Parente, 1999), que falham em não considerar a integração regional como um fenômeno de equilíbrio geral.10 Outros estudos usam a abordagem de equilíbrio geral para estudar o Mercosul, tais como Campos-Filho (1998) e Flores (1997); e outros, como Haddad (1999), Haddad e Azzoni (2001), e Carneiro e 7. Para mais detalhes com respeito às mudanças recentes no coeiciente de Gini para o Brasil, ver Hoffmann e Ney (2008). 8. Segundo informações do Banco Mundial, África do Sul e Malawi são os países com maior desigualdade de renda, com coeicientes de Gini, respectivamente, de 0,62 e 0,61. O Brasil é o terceiro nesta lista (Barros, Henriques e Mendonça, 2001). 9. Mitigar efeitos positivos de bem-estar nos pobres pode ser importante para indicar uma ou mais opções de políticas que podem ser adotadas. 10. Quando o estudo trata de variáveis econômicas importantes, os resultados são viesados porque não levam em conta a interdependência dos agentes econômicos, as interações de mercado e os seus preços naturais ixos. Mais detalhes, ver Wobst (2000). 542 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Arbache (2002), analisam problemas relacionados à liberalização unilateral e suas implicações para a alocação de recursos. Carneiro e Arbache (2002) usam um modelo CGE para analisar as reações do mercado de trabalho à liberalização comercial. Os resultados mostram que a liberalização comercial melhora o bem-estar econômico por meio de maior produção, menores preços domésticos, e maior demanda por mão de obra, mas tais benefícios tendem a ser apropriados pelos trabalhadores mais qualiicados nos setores orientados ao comércio. Haddad, Domingues e Perobelli (2002) investigam três cenários diferentes de liberalização comercial por intermédio de um modelo inter-regional integrado a um modelo CGE e a um modelo CGE nacional. Os resultados sugerem que as estratégias de comércio testadas devem aumentar a desigualdade regional no Brasil. Apesar de este referido estudo analisar efeitos de liberalização comercial no curto prazo, o mesmo não investiga estes efeitos sobre a pobreza, a qual é bastante afetada pela distribuição regional de recursos, população e setores produtivos na economia brasileira. Monteagudo e Watanuki (2001) investigaram os impactos de três diferentes acordos de livre comércio, Mercosul, Alca e acordo de livre comércio com a União Europeia (UE). Os resultados sugerem que, com a remoção de barreiras tarifárias e não tarifárias, a Alca seria a melhor opção para os países do Mercosul. Esta integração teria fortes efeitos sobre o Brasil, estimulando a especialização na exportação de manufaturas. Flores (1997) usa um modelo CGE com competição imperfeita para avaliar os ganhos do Mercosul para Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Os resultados, em geral, mostram que os ganhos são maiores para o Uruguai do que para outros países. Os resultados para Argentina e Brasil parecem estar diretamente relacionados. Os trabalhos de Taylor et al. (1980), e Lysy e Taylor (1980), que estudaram a distribuição de renda no Brasil usando um modelo de equilíbrio geral, são estudos pioneiros na investigação dos efeitos de políticas e programas econômicos na distribuição de renda. Em Lysy e Taylor (1980), o efeito da desvalorização cambial é examinado, e eles concluem que o comércio melhora a distribuição de renda, aumentando a renda da população mais pobre. Barros et al. (2000) é um dos poucos estudos que investigam o impacto da liberalização comercial sobre a pobreza no Brasil. Os autores usam um modelo CGE e simulam um aumento na proteção para o mesmo nível que a vigente em 1985. De acordo com suas conclusões, a liberalização comercial é benéica para o país como um todo, especialmente para a população pobre rural e urbana. Este estudo contribui para o debate sobre opções de políticas comerciais disponíveis para o Brasil com o emprego de uma análise regional, cujas opções de políticas são delineadas pelo pensamento de Roberto Campos. O modelo utiliza-se Impactos Regionais de uma Reforma Comercial no Brasil Baseada nas Contribuições Liberais de Roberto Campos 543 de simulações globais e setoriais para avaliar diferentes opções de políticas comerciais. Diferentemente de outros estudos, faz uso de um modelo CGE de curto e médio prazo, no qual existe mobilidade intrarregional de mão de obra (qualiicada e não qualiicada) e ausência de mobilidade de capital e terra (fatores de produção atividade-especíicos). Outra contribuição interessante está no uso de uma decomposição de diferentes medidas de distribuição de renda nas simulações e, inalmente, ao fato de a Matriz de Contabilidade Social – Social Accounting Matrix (SAM) – a ser utilizada apresentar uma boa desagregação regional e setorial, com famílias representando diferentes classes de renda. 4 SAM A SAM desagregada para o Brasil para o período 1995-1996 a ser usada neste estudo foi construída por Andrea Cattaneo, do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda) (Cattaneo, 1998).11 Esta matriz foi gerada a partir de tabelas de insumo-produto para 1995 (IBGE, 1997a), contas nacionais (IBGE, 1997b), e censo agropecuário para 1995-1996 (IBGE, 1998). De acordo com Cattaneo (1999), mão de obra total, terra e valor adicionado do capital foram alocados por meio de atividades agrícolas baseadas no Censo Agropecuário. 5 O MODELO CGE PADRÃO12 O modelo CGE a ser adotado neste estudo é uma adaptação regional do chamado “modelo CGE padrão”,13 desenvolvido pelo Instituto Internacional de Pesquisa de Políticas de Alimentos (IFPRI). 14 O modelo segue a tradição neoclássica-estruturalista (Chenery, 1975) de modelagem apresentada em Dervis, de Melo e Robinson (1982). O mesmo tem características importantes para países em desenvolvimento, incluindo autoconsumo de commodities, tratamento explícito de custos de transação e distinção entre atividades produtivas e commodities.15 O modelo consiste de um sistema de equações lineares e não lineares, com restrições relacionadas ao mercado e aos agregados macroeconômicos, descrevendo os luxos existentes na SAM. O principal papel desempenhado pelo sistema de equações é procurar descrever o exato comportamento dos agentes na economia. A seguir, 11. Dados recentes não estão disponíveis porque o Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE) não faz mais as atualizações das tabelas de insumo-produto para o Brasil, apesar de existirem outras mais atualizadas disponíveis com metodologia de cálculos diferente. Este detalhe não é tão crítico porque a principal estrutura da economia brasileira tem se modiicado muito lentamente nas últimas décadas. No entanto, as principais elasticidades a serem usadas no modelo CGE são provenientes de estimações recentes das mais diversas fontes. 12. Ver Lofgren, Robinson e Thurlow (2002), Thurlow e Van Seventer (2002) e Wobst (2002). 13. Alguns estudos que utilizam alguma versão deste modelo são Lofgren, Robinson e Thurlow (2002), Thurlow e Van Seventer (2002), Wobst (2002) e Bittencourt (2004). 14. Para mais detalhes sobre este modelo, ver Lofgren, Harris and Robinson (2001). 15. O modelo contou com um sistema de aproximadamente 5 mil equações, com 60 atividades (quinze atividades para quatro regiões). 544 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil as principais características do modelo são apresentadas, por meio da divisão da economia em dois blocos. 5.1 Preços, atividades, produção e mercados de fatores Assume-se que os produtores em cada região maximizam lucros sujeitos à tecnologia adotada e tomam preços como dados, sendo que a tecnologia é especiicada por uma função de elasticidade de substituição constante – Constant Elasticity of Substitution (CES) – ou uma função Leontief das quantidades de valor adicionado e insumos agregados intermediários.16 O valor adicionado, por sua vez, é uma função CES dos insumos primários, e os insumos agregados intermediários são deinidos por uma função Leontief destes insumos intermediários desagregados. Cada atividade regional produz uma ou mais commodities, ou qualquer commodity pode ser produzida por mais de uma atividade. No mercado de fatores, a quantidade ofertada de cada fator é ixa ao nível inicial (SAM). Trabalho é considerado móvel através dos setores dentro de uma mesma região, não permitindo movimentos migratórios. Capital e terra são considerados setores especíicos. Trabalho deve ser realocado para usos mais produtivos depois da redução das tarifas de importação. As atividades regionais pagam um salário especíico por atividade que é o produto do “salário geral para toda a economia” e a “constante salarial atividade-especíica”. 5.2 Instituições e os mercados de commodities Instituições incluem consumidores, governo, empresas e o resto do mundo. Consumidores recebem renda pelo pagamento do uso de fatores de produção e transferências de outras instituições. Seu consumo é alocado por meio de diferentes commodities, de acordo com um Sistema de Dispêndio Linear – Linear Expenditure System (LES) – de demanda. Empresas podem receber pagamentos diretos dos consumidores e transferências de outras instituições. Como as empresas não consomem, elas alocam sua renda em impostos diretos, poupança, e transferências para outras instituições. O governo recebe pagamento de impostos (fixos na forma de taxas ad valorem) e transferências de outras instituições e usa esta renda para consumo e para transferências indexadas pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC) 17 para outras instituições. As transferências de pagamentos do resto do mundo, de instituições domésticas e fatores são todas ixadas em moeda estrangeira. Poupança externa é a diferença entre despesas e receitas em moeda estrangeira. O primeiro estágio no luxo da produção regional consiste da produção doméstica agregada, oriunda da produção regional das diferentes atividades de uma dada 16. Apesar de o modelo permitir o uso de ambas as especiicações, todas as atividades foram especiicadas como uma função CES das quantidades de valor adicionado e insumos agregados intermediários. 17. As transferências do governo indexadas pelo IPC fazem com que o modelo seja homogêneo de grau zero em preços. Impactos Regionais de uma Reforma Comercial no Brasil Baseada nas Contribuições Liberais de Roberto Campos 545 commodity. Uma função CES é usada como de agregação. A produção doméstica agregada é alocada entre exportações e vendas domésticas regionais, em que fornecedores maximizam receitas de vendas para um dado nível de produção agregada, sujeita à transformação imperfeita entre exportações e vendas domésticas regionais por meio de uma função de Elasticidade de Transformação Constante – Constant Elasticity of Transformation (CET). Todas as demandas pelos mercados domésticos são definidas como uma commodity composta pela produção doméstica e pelas importações. Assume-se que os compradores domésticos minimizam custo sujeito à imperfeita substitutabilidade. Isso também é captado pela função de agregação CES (Armington, 1969). As demandas derivadas por commodities importadas são fornecidas pelas respectivas ofertas internacionais, que são ininitamente elásticas aos preços externos. Tarifas de importação e custos de transação ixos são incluídos nos preços de importação pagos pelos compradores domésticos. A demanda derivada pela produção doméstica é atendida pela oferta doméstica, e os preços pagos pelos compradores incluem custos de transação ixos de serviços. Os valores das elasticidades de substituição entre produtos importados e domésticos são baseados em Tourinho, Kume e Pedroso (2002), que estimaram as elasticidades de Armington para 28 setores industriais no Brasil para o período 1986-2001. Outras elasticidades foram obtidas de Asano e Fiuza (2001). O fechamento macroeconômico usado aqui trata a poupança do governo18 como um resíduo lexível enquanto todas as taxas de impostos são ixas. Como resultado, o consumo do governo é ixo, seja em termos reais, seja como proporção da absorção nominal. No equilíbrio externo, a taxa real de câmbio19 é lexível enquanto a poupança externa é ixa. O equilíbrio poupança-investimento é do tipo investment-driven. Para gerar poupança que iguale o custo da cesta de investimentos, as taxas de poupança no ano-base das instituições não governamentais são ajustadas. 5.3 Medidas de desigualdade Este estudo apresenta pioneiramente, como medidas de desigualdade a serem usadas em nível regional, o coeiciente de Gini e algumas medidas de desigualdade de entropia generalizada desenvolvidas por Theil, Hirschman-Herfindahl (H-H), e Bourguignon. Conforme Silber (1989), Dagum (1997) e Mussard, Seyte e Terraza (2003), pode-se decompor o coeiciente de Gini por componentes de fatores quando fontes detalhadas de renda estão disponíveis. É possível decompor a desigualdade dentro e entre classes de desigualdade quando existem grupos com diferentes faixas de renda. Os dados disponíveis contêm não só diferentes grupos 18. A poupança do governo é deinida como a diferença entre receitas e despesas correntes do governo. 19. A política cambial brasileira em anos recentes permite lutuações cambiais lexíveis dentro de uma banda controlada e determinada pelo Banco Central do Brasil (BCB). 546 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil de consumidores agrupados por classes de renda mas também por localização (urbano e rural), ou subgrupos da população, com fontes de renda oriundas de diferentes atividades e regiões. 6 CONTRIBUIÇÕES DE ROBERTO CAMPOS PARA AS SIMULAÇÕES DE POLÍTICAS COMERCIAIS A despeito de ser um dos mais importantes economistas que o Brasil já teve, Roberto Campos é também um dos mais subestimados, talvez por ser tão controverso e polêmico. Campos conseguiu posições de destaque atuando no governo e na academia, sendo reconhecido tanto nacional como internacionalmente e tendo sido convidado para cursar o doutorado sob a orientação de Joseph Schumpeter20 devido à sua excelente dissertação de mestrado sobre ciclos reais. Ele foi muito importante para o Departamento de Relações Exteriores do governo brasileiro como embaixador, chegou a ministro do Planejamento e da Fazenda, além de ter sido eleito deputado e senador. Campos foi também uma igura pública, cujas palavras e discursos inluenciaram muita gente por causa do seu pensamento com relação ao desenvolvimento do país em diferentes momentos de sua carreira política, o que lhe rendeu inúmeros inimigos, com perspectivas diferentes. Mesmo nos dias de hoje, Roberto Campos é considerado um economista liberal ou neoliberal, que parece representar um paradigma de desenvolvimento que não deu certo, representativo de tudo o que contribui para o baixo nível de desenvolvimento brasileiro. Quando as importantes contribuições em diferentes momentos de sua carreira são analisadas, porém, não é fácil rotulá-lo como um economista liberal ou desenvolvimentista. De acordo com Bielschowsky (1988), Campos não deveria ser considerado nem como liberal, nem como desenvolvimentista. Não era um estruturalista como Celso Furtado, nem um liberal como Eugênio Gudin. Era tido mais como um economista “desenvolvimentista liberal”, como o próprio Campos se rotulava após concordar com Bielschowsky (Campos, 1994). De acordo com Campos (1963), a indústria tem um papel muito importante no desenvolvimento econômico brasileiro, mas a ênfase deve acontecer nos incrementos de produtividade, os quais devem trazer melhorias nas desigualdades regionais e equidade e melhorias na distribuição de renda. Desde 1950, Campos tinha algumas ideias liberais, mas sempre defendeu o Estado como um importante 20. No entanto, isto não ocorreu devido aos compromissos diplomáticos assumidos por Campos à época. Impactos Regionais de uma Reforma Comercial no Brasil Baseada nas Contribuições Liberais de Roberto Campos 547 planejador, tendo ainda um papel de “empresário schumpeteriano”21 a ser exercido pelo Estado na economia, pois em seu pensamento a economia brasileira na época não tinha a “racionalidade” suiciente para promover o espaço privado que deveria trazer o almejado desenvolvimento. Uma das principais ideias de Campos é utilizada nas simulações de políticas comerciais a serem descritas neste estudo, ideia esta que se origina da maneira com que Campos pensa sobre o papel do Estado planejador, especificamente com relação ao que chamou “setores de germinação”,22 e também do debate conhecido como “bicho da seda versus aranha”,23 a respeito de como acreditava que o desenvolvimento nacional deveria acontecer. A ideia de Campos sobre “setores de germinação” sugere que a prioridade do Estado deveria ser os setores da economia mais problemáticos, débeis, aqueles em que o mercado privado ainda não tinha interesse ou condições de apoiar. A ideia advinda do debate “bicho da seda versus aranha” pode ser atribuída ao fato de que, sob o regime desenvolvimentista chamado por Campos de “bicho da seda”, o Brasil conseguiria proteger amplamente a sua economia. Entre estas diversas formas de proteção, estaria incluído o uso de barreiras tarifárias, um importante instrumento de política de substituição de importações adotado no passado e que persiste até os dias de hoje em muitos setores da economia brasileira. Na visão de Campos, este comportamento protecionista deveria permanecer até o país atingir um nível de desenvolvimento tal que pudesse passar para um regime alternativo chamado regime da “aranha”, no qual a economia removeria em algum grau estes níveis de proteção e expandiria sua economia para outros mercados, o que pode ser comparado ao comportamento da aranha quando tece sua teia. As contribuições de Campos para este estudo vêm das suas obras pós-1955, período em que defende um mercado racional24 como carro-chefe para o desenvolvimento econômico, basicamente devido ao “gigantismo” do Estado no Brasil à época e ao excesso de intervencionismo e protecionismo nos diferentes setores da economia brasileira. Assim, este estudo elabora dois diferentes cenários, descritos a seguir, com os quais se pode comparar o impacto de uma reforma comercial geral ou global (redução ou eliminação de tarifas de importação) a uma reforma que é limitada a setores selecionados. 21. Para Campos, a existência do “empresário schumpeteriano” propiciaria o que ele chama de “desenvolvimento espontâneo”. Contudo, na sua ausência, o Estado deveria desempenhar este papel e promover o que chamou de “desenvolvimento derivado” (Campos, 1963). 22. Este tipo de Estado planejador esteve presente no Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, para o qual Campos foi um de seus principais responsáveis. 23. Estes termos se referem à palestra que Campos fez na Escola Superior de Guerra (ESG) em março de 1953. 24. Neste período, a racionalidade deveria estar no mercado e não no Estado como Campos defendera no período anterior a 1955. A liberdade se torna uma importante parte de seu pensamento a partir deste período (Campos, 1987). 548 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Cenário 1: simulação que consiste na eliminação das tarifas de importação para todos os setores.25 O objetivo é veriicar quais setores trazem impactos negativos para as famílias mais pobres após a eliminação das tarifas de importação. Cenário 2: simulação que consiste na eliminação de tarifas de importação para atividades ou setores especíicos. O rationale para este conjunto de simulações é veriicar quais seriam os ganhos de bem-estar para as famílias após a identiicação e exclusão da reforma comercial dos setores ou atividades que trazem perdas para as famílias mais pobres. De acordo com o IBGE (1997c), 60% da população economicamente ativa (PEA) são não qualiicados, sendo que a proporção de trabalhadores não qualiicados na população de baixa renda ica em torno de 78%. Assim, espera-se que, com a redução das tarifas de importação, as famílias com trabalho não qualiicado lucrem com a reforma comercial proposta. Isto é esperado com base no modelo de Heckscher-Ohlin-Samuelson (HOS), pois o Brasil protege os setores relativamente intensivos em capital. Já após a remoção do instrumento de proteção, estes setores deverão perder; e os setores relativamente intensivos em trabalho deverão ganhar. Quase 20% dos trabalhadores de baixa renda estão empregados na agricultura, a qual deve se expandir com a reforma comercial, trazendo ganhos de bem-estar para estas famílias em áreas rurais (mão de obra menos qualiicada), contribuindo, dessa forma, para melhorar a distribuição de renda. 7 RESULTADOS E DISCUSSÃO 7.1 Liberalização comercial para todos os setores (cenário 1) 7.1.1 Impactos em nível nacional Quanto ao bem-estar, o impacto das reduções de tarifas de importações foi positivo, em nível nacional. Na média, houve melhora para todas as famílias, com exceção daquelas de baixa renda, em áreas urbanas. As famílias mais pobres, formadas pelos consumidores de baixa e média renda de áreas rurais, tiveram acréscimos nos seus níveis de bem-estar após a reforma comercial. Não é surpresa, portanto, que o coeiciente de Gini e o índice de heil tenham sofrido redução após a remoção das tarifas de importação. Estes resultados enfatizam que a preocupação com a igualdade na distribuição de renda não é equivalente à preocupação com a pobreza, haja vista 25. Em geral, a tarifa de importação nominal média no Brasil está em torno de 13%, como observado por Estevadeordal, Goto e Saez (2000), Leipziger et al. (1997) e Monteagudo e Watanuki (2002). Alguns setores apresentam, em média, baixos níveis de proteção, mas existem produtos especíicos, com tarifas de importação muito elevadas. Como exemplo, pode-se citar a tarifa média de importação da indústria, que é de aproximadamente 10,6%, sendo que a tarifa de importação de veículos é superior a 39% e a de roupas e calçados, 18,3%. Impactos Regionais de uma Reforma Comercial no Brasil Baseada nas Contribuições Liberais de Roberto Campos 549 que as simulações de comércio analisadas nesta seção resultaram em uma melhora na distribuição de renda, mas com um aumento na pobreza em áreas urbanas. As mudanças de preços devido à liberalização comercial afetam os incentivos destinados à produção de bens especíicos, especialmente a tecnologia utilizada para que possam ser produzidos. O Teorema de Stolper-Samuelson (TSS) prevê que, atendidas algumas condições particulares, um aumento no preço da commodity, que é mais intensiva na utilização de trabalho não qualiicado, irá aumentar o salário real do trabalho não qualiicado e reduzir o salário do trabalho qualiicado. Os resultados obtidos para os consumidores em áreas rurais foram exatamente aqueles previstos pelo TSS. A respeito dos resultados obtidos para os pobres que vivem em áreas urbanas, de acordo com Winters (2002), apesar da sua elegância teórica, o TSS não é robusto o bastante para explicar totalmente a conexão entre comércio e pobreza no mundo real. Um dos complicadores é o problema da dimensionalidade. O TSS é resultado de um modelo teórico que é altamente agregado. Os resultados podem ser bastante diferentes dos previstos pelo TSS quando existem muitas atividades, commodities e também fatores de produção, que não são móveis através dos setores. Outra complicação está no fato de o TSS ignorar bens não comercializáveis. No modelo proposto neste estudo, os preços desses bens são determinados de forma a atender às condições de market clearing do mercado doméstico. Desse modo, choques de comércio induzem mudanças na taxa de câmbio real,26 e os efeitos nos mercados de fatores podem ser bastante diferentes daqueles previstos pelo TSS se os bens comercializáveis e não comercializáveis tiverem diferentes intensidades de uso de fatores (Lal, 1986). Como o Brasil utiliza intensivamente mão de obra não qualiicada em determinadas atividades, a eliminação de tarifas de importação deveria implicar a melhoria dos níveis de bem-estar dos trabalhadores. No entanto, no Brasil, o trabalho menos qualiicado, que é uma característica dos mais pobres, é um dos principais fatores de produção usados mais intensivamente na fabricação de produtos comercializáveis, principalmente nas regiões rurais. De acordo com Winters (2002), as atividades agrícolas deveriam ser aquelas que realmente ganhariam com o livre comércio, porque apresentam uma grande proporção de trabalhadores não qualiicados. Os resultados para os consumidores rurais, apresentados na tabela 1, são consistentes com o TSS. 26. A taxa de câmbio real no modelo proposto é representada pela relação de preços dos bens comercializáveis e não comercializáveis. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 550 TABELA 1 Resultados da simulação em nível nacional da eliminação das tarifas de importação para toda a economia (cenário 1), mudança dos valores do benchmark (base) (Em %) Mudança percentual Absorção 0,1 Consumo privado 0,1 Exportações 14,4 Importações 12,4 Taxa de câmbio real 4,4 Variação equivalente Família rural de baixa renda 0,7 Família rural de média renda 0,7 Família urbana de baixa renda –0,7 Família urbana de média renda 0,0 Família de alta renda 0,3 Bem-estar total 0,1 Coeiciente de Gini –0,2 Índice de Theil –0,3 Elaboração do autor. 7.1.2 Impactos regionais O efeito regional da liberalização comercial na agricultura traz ganhos de bem-estar para todos os consumidores rurais, com um maior aumento nos salários dos trabalhadores menos qualiicados. Os resultados conirmam resultados de estudos anteriores, que indicam que a importação de bens de capital a menores preços pode aumentar a produção, criando uma maior demanda por trabalho qualiicado, de modo a tirar vantagem das novas tecnologias. A região Sul/Sudeste é a mais desenvolvida e próspera do país, onde se concentra a maior parte da produção agrícola e industrial, sendo responsável por mais de 90% do produto interno bruto (PIB) total gerado. Esta região tem a maior proporção de consumidores, dotação de recursos, proporção de trabalhadores qualiicados e mais capital que qualquer outra do país. Apesar de os salários pagos ao trabalho não qualiicado terem tido um maior aumento relativo quando comparado com os pagamentos ao trabalho qualiicado, esta diferença é insuiciente para superar as perdas advindas da indústria, principal gerador de renda para as famílias urbanas de baixa renda nesta região. Ganhos na renda do trabalho ocorrem nas regiões Norte e Centro-Oeste, mas principalmente para a população rural. Apesar de a desigualdade na distribuição de renda inter-regional ter-se reduzido levemente após a eliminação das tarifas de importação, é preciso que se saiba quais são Impactos Regionais de uma Reforma Comercial no Brasil Baseada nas Contribuições Liberais de Roberto Campos 551 as principais mudanças ocorridas entre as regiões. A tabela 2 aponta alguns elementos que podem ser úteis para responder esta questão. Nela tem-se a decomposição das quatro medidas de desigualdade usadas. A maior parte da desigualdade de renda no país parece ser oriunda da desigualdade de renda do trabalho existente entre as quatro regiões brasileiras analisadas.27 De acordo com o coeiciente de Gini, 78,6% da desigualdade total de renda do trabalho são devidos à desigualdade na distribuição desta renda entre regiões. Somente o coeiciente de Gini pode proporcionar a intensidade de “transvariação” (4,8%), que representa a parte das disparidades entre regiões com distribuições em comum.28 Assim, a simulação mostra que a estrutura da desigualdade entre e dentro das regiões do Brasil não se altera, mas enfatiza que a desigualdade de renda entre regiões é mais importante que a existente dentro das regiões. TABELA 2 Contribuição das quatro decomposições para a desigualdade da distribuição da renda total do trabalho antes e depois da simulação (Em %) Componente dentro da região Índices Componente entre regiões Transvariação Base Sim Base Sim Base Sim Gini 16,6 16,6 78,6 78,6 4,8 4,8 Theil 40,2 40,2 59,8 59,8 - - H-H 58,2 58,1 41,8 41,9 - - 37,5 37,4 62,5 62,6 - - Bourguignon Elaboração do autor. Obs.: “Base” indica os valores da solução de benchmark (base); “sim” indica os valores após a simulação. Pode-se notar a importância relativa das quatro regiões na desigualdade dentro de determinada região. A multidecomposição dos quatro índices de desigualdade mostra que a liberalização comercial parece pouco contribuir para diminuir a desigualdade total entre regiões. A região Sul/Sudeste é a que mais contribui não só para aumentar a desigualdade na distribuição de renda entre regiões, como também dentro da região. Ou seja, a principal contribuição para a desigualdade na distribuição de renda dentro das regiões vem da região Sul/Sudeste. De acordo com o coeiciente de Gini, aproximadamente 13% da desigualdade de renda total é originada da desigualdade existente dentro da região Sul/Sudeste. 27. O índice H-H foi o único a indicar que a desigualdade dentro das regiões é o mais importante componente para explicar a desigualdade global. Este resultado relete como este componente é calculado, o que inclui o produto da renda individual e o quadrado do coeiciente de variação. Isto é, se a renda é altamente concentrada, a desigualdade dentro das regiões tende a ser maior do que a desigualdade entre as regiões, o que parece ser o caso do Brasil. 28. O baixo valor da transvariação não foi surpresa devido à maneira com que a SAM utilizada foi desagregada, pois a renda do trabalho é oriunda de atividades especiicadas por regiões, sem sobreposição de fontes de renda. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 552 7.2 Liberalização comercial em nível setorial (cenário 2) O principal objetivo desta subseção é veriicar a possibilidade de se identiicar algum setor no qual uma redução na tarifa de importação não cause efeitos negativos aos mais pobres, seguindo a ideia dos “pontos de germinação” sugerida por Roberto Campos. As simulações ora propostas consistem da eliminação das tarifas de importação para setores especíicos. Diferentemente do cenário anterior, os setores aqui são divididos em cinco grupos: i) agricultura (AGR), composto por atividades que produzem milho, arroz, soja, feijão, produtos perenes, produtos de produção anual, produtos hortícolas, produtos lorestais, carne de gado, carne de frango, leite, açúcar, e outros produtos agropecuários; ii) anual (ANN), composto por commodities anuais como milho, arroz, soja, feijão, outros produtos anuais, e produtos hortícolas; iii) perene (PER), o qual inclui café, cacau, mandioca, produtos perenes, e produtos lorestais; iv) industrial (IND), composto por produtos industriais, produtos oriundos de mineração, derivados de petróleo, e alimentos processados; e v) o último grupo, composto por indústria e agricultura (MIX). A liberalização comercial somente no setor agrícola não traz consideráveis alterações na economia no curto prazo. Os impactos no comércio são pequenos, sem mudança substancial nas medidas de desigualdade. Entretanto, os mais pobres nas áreas rurais acabam perdendo, o que não é surpresa devido à redução de bem-estar para estas famílias. Neste caso, os recursos da agricultura poderiam ser realocados para os setores mais intensivos no uso de capital. Por sua vez, os consumidores das áreas urbanas experimentariam ganhos com a eliminação das tarifas de importação na agricultura (tabela 3). A desigualdade na distribuição de renda não sofre redução em nenhuma região, como se pode notar na tabela 4. A tabela 3 mostra que os consumidores das famílias pobres das regiões rurais são os que mais perdem com a liberalização comercial somente no setor agrícola. Depois da remoção da tarifa do setor que usa trabalho mais intensivamente, com uma oferta ixa de capital, o trabalho migra para setores que utilizam mais intensivamente capital, cuja produção consequentemente aumenta. O resultado inal é a redução nos salários em ambos os setores. TABELA 3 Resultados da simulação de eliminação de tarifas de importação em nível setorial (cenário 2), mudança dos valores do benchmark (base) (Em %) Eliminação das tarifas de importação AGR ANN PER IND Absorção - - - 0,1 0,1 Consumo privado - - - 0,1 0,1 1,3 0,9 0,4 13,1 14,1 Exportações MIX Continua Impactos Regionais de uma Reforma Comercial no Brasil Baseada nas Contribuições Liberais de Roberto Campos 553 Continuação Eliminação das tarifas de importação AGR ANN PER IND MIX Importações 1,3 0,8 0,5 11,2 12,1 Taxa de câmbio real 0,2 0,2 0,1 4,2 4,3 Variação equivalente Família rural de baixa renda -0,4 -0,4 -0,02 1,1 1,0 Família rural de média renda -0,4 -0,3 -0,03 1,0 0,9 Família urbana de baixa renda 0,2 0,1 0,02 -0,8 -0,7 Família urbana de média renda 0,1 0,1 0,03 -0,2 -0,1 Família de alta renda Bem-estar total - - - 0,3 0,3 0,02 0,01 - 0,1 0,1 Coeiciente de Gini - - - -0,2 -0,2 Índice de Theil - - - -0,4 -0,3 Elaboração do autor. TABELA 4 Medidas de desigualdade de renda regional antes e após a eliminação das tarifas de importação para o setor agrícola Norte Índices Base Nordeste Sim Base Centro-Oeste Sim Base Sul/Sudeste Sim Base Sim Gini 0,258 0,259 0,353 0,354 0,402 0,403 0,475 0,476 Theil 0,115 0,116 0,229 0,231 0,275 0,276 0,390 0,391 H-H 0,106 0,106 0,201 0,203 0,275 0,276 0,388 0,389 Bourguignon 0,139 0,140 0,310 0,315 0,342 0,344 0,526 0,528 Elaboração do autor. Obs.: “base” indica os valores da solução de benchmark (base); “sim” indica os valores após a simulação. Como esperado, o setor industrial desempenha o papel mais importante na tentativa brasileira de liberalização comercial, devido à existência de um alto grau de proteção neste setor por muitas décadas. Os resultados na tabela 3 mostram um aumento bastante signiicativo no comércio, com uma desvalorização da taxa de câmbio real.29 O principal impacto negativo acontece, mais uma vez, nas famílias pobres das áreas urbanas, cujos níveis de bem-estar sofrem redução com tal reforma comercial. Como esperado, as famílias pobres rurais têm ganhos de bem-estar com a eliminação da proteção nos setores que usam capital mais intensivamente. A eliminação das tarifas de importação na indústria prejudica as famílias urbanas de baixa e média renda. Já as famílias pobres das áreas rurais têm aumento de bem-estar com a reforma comercial, por meio de aumento nos níveis salariais. 29. Um aumento no valor da taxa de câmbio no modelo proposto representa uma desvalorização. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 554 Apesar de os consumidores urbanos perderem, existe uma melhora na distribuição de renda dentro das regiões (tabela 5). TABELA 5 Medidas de desigualdade de renda regional antes e após a eliminação das tarifas de importação na indústria Norte Índices Base Nordeste Sim Base Centro-Oeste Sim Base Sim Sul/Sudeste Base Sim Gini 0,258 0,255 0,353 0,350 0,402 0,400 0,475 0,474 Theil 0,115 0,112 0,229 0,225 0,275 0,272 0,390 0,387 H-H 0,106 0,103 0,201 0,198 0,275 0,272 0,388 0,385 Bourguignon 0,139 0,135 0,310 0,304 0,342 0,336 0,526 0,520 Elaboração do autor. Obs.: “base” indica os valores da solução de benchmark (base); “sim” indica os valores após a simulação. A eliminação de tarifas de importação na agricultura resultou em reduções de bem-estar para famílias de baixa e média renda em áreas rurais, sendo que resultados similares ocorreram para famílias de baixa e média renda em áreas urbanas após a eliminação de tarifas de importação na indústria. Quando a liberalização comercial ocorre como uma combinação dos setores agrícola e industrial (MIX), a mesma produz perdas para as famílias urbanas de média e baixa renda (tabela 3). Apesar de as implicações de bem-estar advindas da política comercial combinada para estes dois setores não se mostrarem favoráveis para os consumidores de áreas urbanas (tabela 3), a desigualdade da renda regional diminui (tabela 6). No entanto, os valores não diferem signiicativamente daqueles apresentados na tabela 5 (liberalização comercial somente na indústria). TABELA 6 Medidas de desigualdade de renda regional antes e após a eliminação das tarifas de importação conjuntamente na agricultura e na indústria Norte Índices Gini Nordeste Centro-Oeste Sul/Sudeste Base Sim Base Sim Base Sim Base Sim 0,258 0,256 0,353 0,351 0,402 0,400 0,475 0,474 Theil 0,115 0,113 0,229 0,226 0,275 0,272 0,390 0,387 H-H 0,106 0,104 0,201 0,199 0,275 0,272 0,388 0,386 0,139 0,136 0,310 0,305 0,342 0,336 0,526 0,521 Bourguignon Elaboração do autor. Obs.: “base” indica os valores da solução de benchmark (base); “sim” indica os valores após a simulação. Impactos Regionais de uma Reforma Comercial no Brasil Baseada nas Contribuições Liberais de Roberto Campos 555 8 CONCLUSÕES Este trabalho contribui para um importante eixo temático do planejamento estratégico do Ipea, a Inserção Internacional Soberana, utilizando um modelo estático de CGE, para avaliar políticas de reforma comercial no Brasil, sob dois cenários, de acordo com as contribuições liberais de Roberto de Oliveira Campos, por meio de uma SAM regionalizada com sessenta setores, dividida em quatro regiões e cinco categorias de famílias. Os experimentos do modelo foram divididos em dois cenários. No primeiro, o modelo considerou somente uma redução global nas tarifas de importação para toda a economia, conforme Campos chamou de regime da “aranha”. No segundo, o modelo consistiu em reduções nas tarifas de importação para setores especíicos e combinações dos mesmos, tentando identiicar o que Campos chamou de “pontos de germinação”. No primeiro cenário, as principais consequências regionais de uma redução nas tarifas de importação para toda a economia resultaram nas conclusões a seguir descritas. 1) Existe um ganho global de bem-estar como consequência da reforma comercial. 2) Consumidores pobres em áreas urbanas perdem, o que indica a presença de um trade-of entre os ganhos agregados de bem-estar e as perdas para famílias de baixa renda em áreas urbanas após redução nas tarifas de importação. 3) Desigualdade na distribuição de renda em níveis nacional e regional é reduzida entre consumidores, assim como encontrado em Ferreira Filho e Horridge (2004; 2006), contrastando com resultados obtidos por Haddad (1999) e Haddad, Domingues e Perobelli (2002). 4) A redução ou eliminação das tarifas de importação não é suiciente para mudar a estrutura da desigualdade na distribuição de renda regional. 5) A região Sul/Sudeste tem o maior e mais importante peso na determinação da desigualdade na distribuição de renda entre as regiões brasileiras. Os maiores impactos regionais da reforma comercial analisada indicam um padrão similar para todo o país, no qual a indústria sofre impactos negativos, com uma redução na renda e bem-estar para as famílias de baixa renda empregadas neste setor. No segundo cenário, os principais resultados da eliminação das tarifas de importação parecem validar as tradicionais teorias do comércio internacional. A reforma comercial na agricultura resulta em perdas de bem-estar para as famílias pobres rurais, com resultados similares ocorrendo para as famílias pobres em áreas urbanas após a reforma comercial realizada somente na indústria. Como consequência, uma combinação da redução de tarifas de importação na agricultura e na indústria foi simulada de modo a se obter uma política alternativa que não prejudicasse os Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 556 consumidores mais pobres. Os resultados foram similares àqueles encontrados no cenário 1, os quais conirmaram que os pobres nas áreas urbanas sofrem perda de bem-estar após a liberalização comercial, com um aumento na desigualdade da distribuição de renda em nível regional. Os resultados mostraram que somente políticas comerciais podem não ser suicientes para atingir uma distribuição de renda mais igualitária no Brasil. Sem maiores investimentos em capital físico e humano, a tendência é que a maior parte das regiões brasileiras ique ainda mais pobre em relação à região Sul/Sudeste. Desse modo, apesar de o regime de desenvolvimento da “aranha”, sugerido por Roberto Campos trazer melhorias em nível nacional na distribuição de renda, o mesmo instrumento não garante que o mercado “racional” irá ser capaz e suiciente para melhorar a distribuição de renda em nível regional, o que pode ser um indício da necessidade de se utilizar políticas complementares à liberalização comercial investigada neste estudo – cenário que pode ser incluído em uma agenda de pesquisa futura. REFERÊNCIAS ARMINGTON, P. A. A theory of demand for products distinguished by place of production. IMF staf papers, v. 16, n. 1, p. 159-178, 1969. ASANO, S.; FIUZA, E. Estimation of the Brazilian consumer demand system. Rio de Janeiro: Ipea, 2001. (Texto para Discussão, n. 793). BARROS, R. P. de; HENRIQUES, R.; MENDONÇA, R. A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: Ipea, 2001. (Texto para Discussão, n. 800). BARROS, R. P. de et al. 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Com efeito, por subsidiar os transportes o governo aumenta seus déicits; por impedir que o setor privado se interesse pela produção de energia elétrica, vê-se obrigado a transformar-se em investidor supletivo e com isso aumenta seus dispêndios; por manter a lei da usura (ainda que intensamente contornada) provoca um excesso de demanda de empréstimos o qual, ainda que se reprima parcialmente, sempre é responsável por maiores expansões de crédito. E assim por diante. Em suma, por não aceitar a inlação corretiva o país se afoga na inlação crônica (Simonsen, 1961, p. 75-76). 1 INTRODUÇÃO Após alguns anos de retração do produto interno bruto (PIB) no início da década de 1930, a economia brasileira vivenciou um período de grande crescimento até o início da década de 1960. Apesar do comportamento favorável da renda, esse resultado não foi acompanhado pelo desenvolvimento do crédito de modo abrangente. Ainda que o setor bancário expandisse suas operações de curto prazo, o quadro geral foi de desequilíbrio permanente entre a oferta e a demanda crescentes por empréstimos, em especial dos setores de infraestrutura e os mais dinâmicos do comércio e da indústria. Esta contradição não impossibilitou o país de crescer signiicativamente, encontrando formas alternativas de inanciamento por meio do setor privado e até mesmo do Estado, principalmente nos prazos mais longos por 1. O autor agradece às funcionárias do setor de Documentação do Ipea que facilitaram o acesso aos livros da biblioteca não disponíveis em outros locais: Margarida Maria Pacheco de Araújo (chefe da biblioteca) e Elizabeth Ferreira da Silva. Adicionalmente, agradece o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para o desenvolvimento da pesquisa empírica. 2. Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-RP/USP) e bolsista no programa Cátedras para o Desenvolvimento. 562 Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil meio das caixas econômicas federais e estaduais e de bancos públicos, sobretudo o Banco do Brasil (BB) e, posteriormente, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE).3 Apesar de todos os esforços públicos e privados para contornar as diiculdades daquele momento, as restrições mantiveram-se e tornaram-se ainda mais agudas no início da década de 1960 com a aceleração da inlação e a redução do crescimento. O esgotamento desse padrão de inanciamento conduziu ao debate sobre mudanças e, durante o governo militar, à indexação e às reformas inanceiras que auxiliaram no processo de retomada do crescimento ao inal da década de 1960. As diiculdades para o inanciamento da economia brasileira e a necessidade de buscar alternativas mostraram-se mais evidentes ao longo da década de 1950, em face da aceleração do crescimento e da própria inlação.4 Diversos autores coevos trataram da questão em correntes de pensamento econômico distintas. Neste capítulo, pretende-se enfocar a visão de um personagem que ganhará importância especialmente após o golpe militar de 1964, tanto na formulação como na execução da política econômica.5 Mario Henrique Simonsen (1935-1997) assumiu papel bastante destacado nos governos militares, chegando a ministro da Fazenda. Por meio de diversos trabalhos a partir de 1961, Simonsen reforçou o diagnóstico das diiculdades de inanciamento e a necessidade de adaptações do sistema inanceiro ante as regulamentações do governo, abraçando a corrente neoliberal de Eugenio Gudin e Otávio Gouveia de Bulhões. Esse diagnóstico, no início da década de 1960, embasará as proposições e as medidas tomadas posteriormente.6 Mario Henrique Simonsen sintetizou o quadro de diiculdade de inanciamento privado tanto às empresas quanto às pessoas que poderia limitar o investimento e o próprio crescimento da economia brasileira naquela época: A oferta de crédito a longo prazo, para o inanciamento industrial e para as hipotecas, se limitava a uns poucos recursos oferecidos por agências governamentais, como o BNDE e as Caixas Econômicas. Tais inanciamentos subsidiados eram altamente 3. As caixas econômicas não eram consideradas parte do sistema bancário até os anos 1950-1960. Existiam caixas privadas e públicas, entre estas últimas destacavam-se as federais das províncias e depois dos estados que eram independentes. Ao inal dos anos 1960, as caixas federais dos estados foram uniicadas numa única instituição: a Caixa Econômica Federal. Alguns estados criaram suas próprias caixas estaduais, como Minas Gerais e São Paulo. Elas captavam depósitos populares e emprestavam sob determinadas formas, como penhor e posteriormente caução e hipotecas. 4. Maria da Conceição Tavares comentou que no período anterior a 1960 a inlação foi solidária ao desenvolvimento: “suas raízes estruturais emergem das modiicações rápidas e profundas do aparelho produtivo que provocam uma demanda crescente por recursos inanceiros sem a contrapartida de um desenvolvimento paralelo da estrutura inanceira capaz de captar os luxos necessários de poupança e de transferi-los por forma concentrada aos vários setores que lideram o processo de expansão. A inlação apresenta-se, assim, como um mecanismo heterodoxo de inanciamento que, mediante tensões crescentes, mobiliza e sanciona a acumulação de capital” (Tavares, 1983, p. 151). Vários mecanismos de transferência de renda para o setor industrial ocorreram nessa época por meio do câmbio e de empréstimos do governo. 5. Mario Henrique Simonsen teve um importante papel nas reformas inanceiras, especialmente do mercado de capitais durante o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) do primeiro governo militar. 6. Este trabalho procura analisar a contribuição de Mario Henrique Simonsen para o entendimento das vicissitudes da economia brasileira no período pré-1964. Outros artigos analisaram a sua contribuição à teoria econômica, como Cysne (2001). Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 563 disputados pelos interessados e, em muitos casos, a sua distribuição se guiava por critérios de prestígio político. Obviamente a escala em que eram oferecidos era muito inferior à da procura potencial. Ao mesmo tempo, o sistema tributário em vigor poucos incentivos trazia ao desenvolvimento do mercado de ações. Assim, no início da década de 1960, a atroia do sistema inanceiro se havia transformado num dos mais ponderáveis obstáculos à manutenção de um crescimento rápido da economia brasileira. As empresas, diante da estrutura do mercado e das desvantagens iscais de manter altos índices de capital de giro próprio, passaram a depender exageradamente do inanciamento bancário a curto prazo. Novas indústrias que se haviam instalado no país, como a automobilística, a de máquinas e a de eletrodomésticos, ressentiam-se da falta de um mecanismo que pudesse assegurar o inanciamento das suas vendas pelo sistema de crédito ao consumidor. A construção residencial se tornara altamente limitada pela escassez do mercado de hipotecas. Generalizou-se, na época, o sistema de incorporações (...) (Simonsen e Campos, 1979, p. 125). A partir desta caracterização, procurou-se analisar se a economia brasileira apresentava a atroia apontada por Simonsen mediante o estudo do mercado hipotecário. A literatura historiográfica mais recentemente apontou o desenvolvimento relativo do crédito até a década de 1930, por meio do mercado de títulos públicos e privados, como debêntures e hipotecas 7. A partir da crise de 1929 o governo federal promoveu uma série de mudanças inanceiras importantes, que aumentou a regulamentação do mercado e a participação pública no setor. Os bancos já foram mais estudados pela literatura, principalmente o BB e o BNDE. Este artigo avalia o diagnóstico de atroia inanceira de Simonsen por meio do estudo especíico do crédito hipotecário e das caixas econômicas federais. Esse mercado e essas instituições foram pouco destacados pela literatura. De início, lançou-se mão da historiograia e dos trabalhos de Simonsen para salientar as consequências positivas das ações tomadas durante a grande depressão dos anos iniciais da década de 1930 para a recuperação do sistema inanceiro nacional. Entretanto, a manutenção de tal legislação no período posterior marcado pelo crescimento da inlação restringiu, como destacado por Simonsen e outros autores, a retomada do crédito na economia, como ocorria no período anterior à grande depressão. Nas seções seguintes, analisa-se, de forma mais detalhada e especíica, a dinâmica da dívida pública e das hipotecas, a im de avaliar a dimensão das restrições do crédito a prazos mais longos naquela época mediante dois mercados importantes até 1930. Por im, destacam-se os desaios de uma instituição pública para manter o inanciamento imobiliário urbano por meio de hipotecas nessa época: as caixas econômicas federais autônomas. 7. Ver Saes (1986), Goldsmith (1986), Triner (2000), Hanley (2005) e Musacchio (2009). 564 Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil 2 MUDANÇAS E ADAPTAÇÕES DO SISTEMA FINANCEIRO Apesar da gravidade da crise de balanço de pagamentos, o impacto da grande depressão mostrou-se relativamente menos expressivo no Brasil. Tal resultado decorreu de uma intervenção forte na economia, por meio da política anticíclica de compra dos excedentes cafeeiros, renegociação da dívida externa, monopólio e controle cambial e também reestruturação do sistema bancário e do crédito.8 No campo monetário e inanceiro, o governo atuou mais fortemente para evitar o aprofundamento da crise, principalmente mediante as reservas da Caixa de Mobilização Bancária (1932) e a carteira de Redesconto (1930).9 Entretanto, nesse novo contexto das décadas de 1930 e 1940, o BB elevou sua participação no setor bancário, em detrimento principalmente dos bancos estrangeiros que, em virtude de um contexto internacional e uma legislação desfavorável, retraíram suas operações no país.10 Num momento de insolvência de muitos inanciamentos, o governo também aprovou a lei da usura, que limitou, por decreto, os juros cobrados dos devedores em 12%.11 Adicionalmente, a lei da cláusula-ouro proibiu a indexação em ouro ou moeda estrangeira dos contratos.12 Por im, a Lei do Reajustamento Econômico reduziu pela metade as dívidas dos agricultores contraídas antes de 30 de junho de 1933, desde que com garantia real ou pignoratícia.13 As dívidas foram trocadas por apólices do governo federal, denominadas obrigações do reajustamento econômico. Simonsen (1996, p. 408-409), ao analisar a política extraordinária de Oswaldo Aranha durante a grande depressão, airmou a sua pertinência para um momento de grande depressão: Em suma, o grande efeito do Programa de Reajustamento Econômico foi retirar a espada de Dâmocles, que pendia sobre agricultores e seus credores, conseguindo tranquilizar o mercado sem maiores custos. Segundo, o Reajustamento Econômico parecia impor aos credores uma mudança das regras do jogo, desrespeitando atos juridicamente perfeitos, (...) Na época, porém, os credores se haviam habituado a essas declarações de inadimplência não-protestáveis, a começar pela decretação, pela Inglaterra, da inconversibilidade da libra esterlina em ouro. A percepção da 8. Ver Furtado (2000, quinta parte), Abreu (1990, p. 74-82) e Simonsen (1996, p. 384-386). 9. Decreto no 19.525, de 24 de dezembro de 1930, e Decreto no 21.499/1932. 10. O processo de nacionalização dos bancos iniciou-se após a Primeira Grande Guerra com a criação da Inspetoria Geral dos Bancos em 1921, a im de iscalizar as instituições bancárias (Decreto no 14.728, de 16 de março de 1921). Tal movimento acentuou-se na década seguinte, com as novas constituições do país. Por sua vez, os bancos públicos aumentaram a participação tanto em número de instituições como em ativos (Costa Neto, 2004). O BB expandiu o crédito também por meio da criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (Creai) em 1937, motivada pela insuiciência de fundos para empréstimo (Beskow, 1994). Para mais informação dessa carteira do BB, consultar Silva (2007), Silva (2010) e Beskow (1994). 11. Decreto no 22.626, de 7 de abril de 1933. Esta lei também facultava ao devedor a possibilidade de pagar a dívida em dez prestações anuais, representando geralmente um alongamento do prazo da dívida. 12. Decreto no 23.501, de 27 de novembro de 1933. 13. Decreto no 23.533, de 1o de dezembro de 1933. Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 565 maioria dos bancos era que o valor real de seus ativos aumentava com a substituição de 50% da dívida dos agricultores pelas Obrigações do Reajustamento Econômico. Terceiro, a Lei da Usura foi promulgada em 1933 com uma espécie de “aviso aos incautos”, (...) juros acima de 12% ao ano eram inconcebíveis em qualquer operação normal de mercado. (...) O erro posterior foi manter a lei da Usura a partir da década de 50, quando a inlação escalou o patamar de 20% ao ano. Essas medidas tomadas decorreram das necessidades de se enfrentar o rigor da crise, muitas vezes inspiradas em leis principalmente norte-americanas, como redução de juros e alongamento das hipotecas. Tais ações somadas a outras ajudaram o país a minorar os seus efeitos e a se recuperar ao longo da década de 1930. Todavia, esta legislação manteve-se, grosso modo, válida para mais de um quarto de século seguinte, quando as condições do país revelaram-se bastante distintas, apresentando taxas de aumento do produto expressivas e inlação crescente. Desse modo, as leis que se mostravam adequadas para aquele momento de crise passaram a diicultar a retomada do funcionamento do sistema inanceiro nos moldes do período anterior à crise.14 A aceleração da inlação posteriormente combinada à lei da usura e a outras medidas restritivas tomadas naquela época provocou uma retração dos juros reais. O governo de Getúlio Vargas no Estado Novo criou, por meio do Decreto no 7.293, de 2 de fevereiro de 1945, a Superintendência de Moeda e Crédito (SUMOC), como embrião do Banco Central do Brasil (BCB), atuando como regulador do sistema inanceiro. Esta instituição editou várias normativas ao sistema bancário limitando os juros nominais pagos aos depositantes a taxas menores de 12%, dependendo do tipo e prazo de aplicação. Uma ilustração foi a Instrução no 34 da SUMOC de 1950, que limitou entre 3% e 6%, bastante inferiores aos vigorantes na economia (Gomes Júnior, 1950, p. 24-25). Desse modo, as restrições revelaram-se maiores do que as impostas pela lei da usura. De acordo com Simonsen (1964, p. 57), os juros “não indo além de 5, 6, ou quando muito 8% ao ano. Alguns bancos pagavam juros adicionais a certos depositantes a prazo, mas isso é uma operação irregular e que não pode ser escriturada”. Outras formas de conseguir remuneração adicional para os bancos consistiam na sobrecarga de comissões bancárias que eram legalmente aceitas e em estabelecer uma proporção em depósito à vista para conseguir um empréstimo. 14. Como Contador (1974, p. 24) airmou sobre a lei da usura: “Na época de sua promulgação, os efeitos distorcivos da regulamentação eram insigniicantes, pois o país atravessava, desde 1925, um período de estabilidade satisfatória de preços. A taxa média anual de inlação durante 1925-33 era negativa e próxima de menos 2%. Diicilmente haveria condições para que a taxa real de juros, determinada pela produtividade marginal do capital atingisse, em equilíbrio, valores anuais superiores a 14%”. 566 Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil Apesar dos papéis renderem valores nominais positivos, muitas vezes a inlação superou tais rendimentos. Durante a Segunda Grande Guerra e nos anos posteriores, a inlação foi maior do que os retornos dos títulos públicos e das hipotecas (Goldsmith, 1986, p. 278). Esta restrição produziu distorções expressivas no sistema inanceiro, contribuindo para a retração da poupança inanceira da economia. A quase totalidade dos papéis sujeitava-se a esta condição, desde títulos públicos, debêntures, apólices e seguros. Assim, um dos principais problemas para o funcionamento do mercado do crédito eram as taxas de juros reais negativas. Aos poucos o mercado encontrou diversos artifícios para contornar as restrições dos tetos de juros, como incluir no preço os juros na venda a prazo ou comissões nos serviços bancários de inanciamento ou exigência de saldos médios em contas correntes para obter empréstimos.15 O principal mecanismo para burlar as restrições foram as letras de câmbio que começaram a circular de forma mais comum ao inal da década de 1950.16 Como se tratam de títulos negociados em bolsas de valores, eles podem apresentar deságios do valor nominal dos papéis. Como se pode notar no gráico 1, as remunerações ultrapassavam normalmente os juros legais, porém ainda eram insuicientes para garantir uma remuneração real aos aplicadores entre 1959 e 1964.17 Assim, mesmo o melhor instrumento inanceiro disponível somente ao inal do período e para grupos bastante seletos não conseguiu sistematicamente produzir um juro real positivo para seus aplicadores, em face especialmente da aceleração da taxa de inlação.18 15. A partir dos balanços dos bancos, Sochaczewski (1993, p. 36) calculou taxas efetivas pagas e cobradas pelos bancos, que chegaram ao início da década de 1960 a cerca de 30% a 40%. Não foram computados nessa estimativa os saldos médios e as comissões que elevavam a remuneração dos bancos. Em geral, o setor bancário apresentou aumentos de custos (para abertura de novas agências) e principalmente dos spreads, consequentemente dos lucros. Mesmo com taxas de juros negativas, os bancos conseguiam manter a rentabilidade, conciliando uma demanda forte por fundos e uma busca pelos depósitos à vista. No entanto, como se observou para os depósitos, a relação empréstimos totais bancários/PIB revelou uma estabilidade entre 0,23 e 0,32 desde 1951 até 1964, mas sem que se pudesse avaliar o prazo deles (op. cit., p. 57). Isto favoreceu a busca de alternativas, como o crescimento de um mercado paralelo (sem intermediação bancária) e do inanciamento inlacionário, por meio do autoinanciamento das empresas. 16. As Sociedades de Crédito, Financiamento e Investimento (SCI) foram criadas a partir do Decreto-Lei no 7.583, de 25 de maio de 1945, mais conhecidas como financeiras. Apesar de no início não poderem aceitar depósitos, elas foram autorizadas a recebê-los de seus sócios (Decreto-Lei no 9.603, de 16 de agosto de 1946). Inicialmente, atuavam no crédito a prazos de seis a 24 meses, por meio dos fundos de participação, dos quais os sócios extensivos eram depositantes. Simonsen (1964, p. 59) informava o procedimento de transformar juros em lucros que não apresentavam restrições legais: “Fundamentalmente, há apenas uma mudança de rótulo: os depósitos e empréstimos passam a denominar-se sociedades em conta de participação e os juros tomam o nome de lucros”. A Portaria no 309 do Ministério da Fazenda, de 30 de novembro de 1959, regulamentou as SCIs e possibilitou o aceite e a colocação das letras de câmbio, que substituíram as contas de participação, pois não havia imposto de renda nem a identiicação do comprador da letra (Contador, 1974, p. 36-37). 17. Utilizaram-se as informações de Contador (1974) para as taxas de juros das letras de câmbio e dos títulos públicos, disponibilizadas pelo Ipeadata. 18. Os volumes negociados cresceram signiicativamente de tão somente 0,04% do PIB em 1959 para 0,8% em 1964. Outro instrumento que ganhou importância momentaneamente foram as letras de importação criadas a partir da Instrução no 204 da SUMOC, de março de 1961. Por alguns meses esses papéis atraíram a atenção pela possibilidade de juros maiores que os da lei da usura (Loureiro, 2012, capítulo 2). Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 567 GRÁFICO 1 Juros nominais das letras de câmbio e taxas de inflação mensais (1959-1964) (Em %) 12 10 8 6 4 2 Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI) jul./1964 out./1964 abr./1964 jan./1964 jul./1963 out./1963 abr./1963 jan./1963 jul./1962 out./1962 abr./1962 jan./1962 jul./1961 out./1961 abr./1961 jan./1961 jul./1960 out./1960 abr./1960 jan./1960 jul./1959 out./1959 abr./1959 jan./1959 0 Juros das letras de câmbio Imagem reproduzida em baixa resolução em virtude das condições técnicas dos originais disponibilizados pelos autores para publicação (nota do Editorial). Nessas condições, o sistema bancário passou a operar empréstimos a prazos curtos, captando depósitos principalmente à vista que possibilitavam emprestar a juros reais negativos. Como se pode observar no gráfico 2, esses depósitos mantiveram a participação no PIB entre 15% e 20% ao longo do período de 1946 a 1962, apresentando uma pequena redução posteriormente. Entretanto, houve uma expressiva retração para a parcela dos depósitos a prazo no período, representando ao inal menos de 0,5% do PIB. Para elevar a captação de depósitos à vista que eram muito importantes para a rentabilidade dos bancos comerciais, eles expandiram a estrutura de agências de forma signiicativa, porém diminuíram o número de instituições e elevaram a concentração bancária.19 Apesar do crescimento das agências, os depósitos e, por consequência, os empréstimos não se expandiram além do crescimento do produto. Por sua vez, não houve estagnação do setor bancário e possivelmente a lucratividade dos bancos elevou-se em função do diferencial 19. De acordo com Sochaczewski (1993, p. 120), o número de matrizes dos bancos diminuiu, entre 1945 e 1964, de cerca de quinhentos para pouco mais de trezentos, porém o número de agências cresceu de pouco mais de 1.500 no primeiro ano para cerca de 7 mil no segundo. Isto salienta o processo de concentração bancária, por meio de fusões, e o desaparecimento das pequenas instituições. O BB consistia no único banco nacional e aumentou suas agências de 260 em 1945 para seiscentas em 1964. Em 1946, essa instituição detinha mais de um quinto dos depósitos à vista (21,6%). Por im, a Caixa Econômica Federal elevou suas agências de 150 em 1947 para 450 em 1964 (Goldsmith, 1986, p. 270). Saes (1997) sintetizou o sistema bancário daquela época como de consolidação dos grandes bancos de âmbito regional. Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil 568 de taxas de captação e aplicação, como apontam Almeida (1980, p. 13-14) e Sochaczewski (1993, p. 136). GRÁFICO 2 Depósitos à vista e a prazo (1946-1964) (Em % do PIB) 25 20 15 10 5 0 1946 1948 1950 1952 1954 Depósitos à vista 1956 1958 1960 1962 1964 Depósitos a prazo Imagem reproduzida em baixa resolução em virtude das condições técnicas dos originais disponibilizados pelos autores para publicação (nota do Editorial). Como ocorrido nos anos 1980, esperava-se observar nessa época de aceleração inlacionária uma redução da importância dos depósitos à vista em favor dos a prazo, pois estes rendem juros nominais ao contrário dos primeiros que perdem valor real crescentemente com a inlação. Contudo, as restrições ao pagamento de juros não atraíram os recursos disponíveis para aplicações a prazo mais longo, que procuraram alternativas, como aplicações fora do sistema bancário e até mesmo ativos reais. Os bancos utilizavam os depósitos à vista como meio para elevar os juros em seus empréstimos, existindo muitas vezes uma contrapartida de depósito mínimo em conta corrente. Apesar do elevado custo de oportunidade, as pessoas e as empresas mantinham depósitos em conta corrente, em função da necessidade de esses agentes manterem contas de movimento (Simonsen, 1965, p. 66). Desse modo, em seu trabalho de 1961, Simonsen (p. 62-63) já apontava as distorções do mercado de crédito com a expectativa de juros reais negativos: i) desequilíbrio permanente entre oferta e procura de empréstimos; ii) fuga dos depósitos a prazo; iii) criação de um mercado paralelo de crédito; e iv) atroia das operações de crédito a médio e longo prazo. Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 569 Esse quadro inlacionário incentivou investimentos fora do mercado inanceiro, como o surto imobiliário das incorporadoras salientado por Gudin (1956, p. 24-27). Apesar do airmado pelo autor sobre os excessos da construção civil, Baer (1988, p. 112) observou o crescimento desequilibrado das licenças para a construção de obras residenciais em comparação ao do cimento e do aço entre 1947 e 1961, revelando um aumento bastante inferior da primeira em relação às demais. Este resultado reforça a sua visão de que a inlação não inviabilizou os investimentos da indústria pesada e os serviços de utilidade pública no período, pelo contrário, pode-se notar a contribuição positiva para o crescimento real do país ao redistribuir a renda dos consumidores para os investidores.20 Os empresários adaptaram-se à inlação e conseguiram contornar suas restrições, reinvestindo os lucros e elevando o retorno do capital em comparação com outras opções do mercado. No entanto, o setor público mantinha seus investimentos em setores de reduzida lucratividade e subvencionava as empresas privadas nesses setores, como transportes. Assim, as adaptações possibilitaram os investimentos e o crescimento bastante expressivo nesses anos.21 A adaptação não modiicou o cenário de severas diiculdades de acesso aos recursos inanceiros privados para empréstimo a mais longo prazo.22 A criação do BNDE em 1952 procurou atenuar tais restrições por meio de empréstimos compulsórios como adicionais do imposto de renda, mas muito insuicientes para o conjunto da economia, restritos principalmente ao setor público. 23 Apesar dessa nova instituição, Mario Henrique Simonsen retratou o quadro de restrição inanceira, pois, de um lado, havia uma demanda extraordinária diante de condições de juros reais negativos e, de outro, o disponibilizado pelos 20. Simonsen (1964, p. 68) fornece uma visão semelhante à de Baer: “Ao contrário da suposição tradicional, a inlação brasileira desestimulou, ao invés de estimular a compra de imóveis (...) Isso se deveu basicamente a dois fatores. Em primeiro lugar, à permanência de uma lei do inquilinato que, mantendo congelados ou semicongelados os aluguéis nominais, tornou profundamente desinteressante a compra de imóveis para locação. Em segundo lugar, à atroia da oferta de crédito hipotecário em virtude do binômio inlação-lei da usura”. O Decreto-Lei no 4.598, de 20 de agosto de 1942 (Lei do Inquilinato), inluiu desfavoravelmente na expansão da construção civil ao congelar inicialmente os aluguéis residenciais por dois anos, não incentivando o investimento nessas construções. As leis complementares mantiveram o congelamento e compreenderam outros imóveis, possibilitando em certos casos aumentos nominais, porém em geral inferiores à taxa de inlação do período (Simonsen, 1961, p. 74-75). Entretanto, de forma idêntica, Simonsen não observa no Brasil outro efeito negativo da inlação, que seria a acumulação de estoques pelas empresas. Maria Bárbara Levy (1977, p.605) adiciona a questão do lucro imobiliário, que nominalmente cresceu sobretudo com a inlação, gerando elevadas taxações na transação com imóveis. 21. Tal visão corrobora a proposição estruturalista latino-americana da poupança forçada, de que as elevações de preços garantem maior retorno aos empresários em detrimento dos inanciadores e trabalhadores. Desse modo, a inlação passou a ser funcional para o desenvolvimento, como airmou Maria da Conceição Tavares (1983, p. 131): “A inlação parece ter funcionado, no contexto do desenvolvimento brasileiro, até alguns anos atrás, não só como um mecanismo de poupança forçada (em sentido global) mas principalmente como uma força capaz de dissolver uma certa rigidez da institucionalidade inanceira e de proporcionar brechas e canais subterrâneos para transferência intersetorial de recursos entre as unidades familiares, as empresas e o setor público e, em particular, dos setores menos dinâmicos para os de maior potencialidade de crescimento. A inlação como mecanismo de inanciamento tende, porém, a esgotar rapidamente suas potencialidades”. 22. Alguns setores privados detinham restrições adicionais por conta dos controles de preços das tarifas, que desestimulavam os investimentos, como em energia elétrica. Isto estimulou a participação pública nesses setores. 23. Lei no 1.628, de 20 de junho de 1952. 570 Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil órgãos governamentais para o inanciamento de longo prazo, especialmente as caixas econômicas e o BNDE. Sobre o conjunto do sistema, Simonsen (1995, p. 19-20) descreveu o seguinte quadro: o sistema bancário privado passou a concentrar suas aplicações em empréstimos a curto prazo, especialmente no desconto de duplicatas, a prazos não superiores a 120 dias. O crédito ao consumidor não se desenvolveu até 1965, apesar do crescimento da produção nacional de automóveis e bens duráveis de consumo. O crédito industrial a longo prazo, assim como o crédito hipotecário, passou a ser suprido apenas pelas instituições inanceiras públicas, num mercado de oferta fortemente racionada, tendo em vista a taxa real negativa de juros. Apesar das distorções criadas, deve-se salientar para os diferentes interesses na manutenção dos juros reais negativos dos tomadores de empréstimos, especialmente agricultores e industriais.24 Em seu livro Inlação brasileira, Ignácio Rangel apontava no início da década de 1960 para a persistência da taxa negativa de juros reais. Uma série de artifícios foi criada para contornar as restrições legais, possibilitando quase um sistema paralelo: Já que uma legislação irracional e arcaica proíbe as operações regulares, esse movimento teve que fazer-se, em grande parte, à margem da lei. Os juros pagos “por baixo do balcão” izeram expandir os depósitos a prazo em medida muito maior do que as estatísticas oiciais o reconhecem. Um dos meios de formalização dessas operações foi o uso das letras de câmbio negociadas em bolsas com um deságio que implica um juro muito mais elevado do que o permitido pela legislação em vigor (Rangel, 2005, p. 609-610). Os consórcios de carros tornaram-se bastante difundidos no início da década de 1960, pois seus valores acompanhavam o preço de automóveis.25 Tais soluções atenuaram de forma parcial os problemas do binômio inlação e lei da usura, pois poucos conseguiram se utilizar dessas estratégias e houve custos de transação adicionais, como taxas e comissões. 26 A elevação dos preços e principalmente a aceleração da inlação ao inal do período também diicultaram estas adaptações. Por im, o crédito de longo prazo restringiu-se cada vez mais ao BNDE e às caixas econômicas de modo fortemente racionado, mantendo a opção de debêntures papel irrisório. Para Simonsen, enquanto perdurasse a inlação elevada, a alternativa calcava-se na criação de instrumento de preservação do valor dos contratos, como o utilizado pelo BNDE nessa 24. Loureiro (2012) discute os diferentes grupos de interesse na manutenção da política econômica no inal da década de 1950 e início da década de 1960. 25. Ver Montoro Filho (1982, p. 66). 26. Como aponta Ness (1977, p. 51), as letras de câmbio diicilmente superavam a inlação até 1966 em razão dos impostos e das margens das inanceiras. O custo para o mutuário era muito superior ao de captação. Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 571 época; posteriormente o governo militar expandiu a sua utilização por meio da correção monetária: A solução natural para os problemas de crédito a longo prazo na atual conjuntura inlacionária consistiria, como já apontamos anteriormente, nos contratos com cláusula de escala móvel. Esse tipo de cláusula, todavia, é proibido pela legislação brasileira (salvo para o caso do BNDE e, de acordo com a recente reforma habitacional, no caso de certas operações de compra e venda de casas populares) (Simonsen, 1964, p. 61).27 O BNDE ainda aportava recursos por meio de participação acionária de modo a não perder o seu capital. Apesar do início do emprego da indexação em certos casos, o resultado geral restringiu o crédito de forma bastante severa na economia, impondo custos e seletividade aos agentes. Como os inanciamentos a prazos mais longos mostraram-se limitados, as empresas mantinham elevado capital próprio e dependiam do inanciamento bancário de curto prazo para se inanciarem.28 Assim, esse quadro foi denominado por Simonsen atroiamento das operações de crédito a médio e longo prazo no início da década de 1960 para a economia brasileira, especialmente no inanciamento do Estado e do crédito imobiliário como se verá adiante. Em suma, uma visão mais agregada da atroia do crédito mais longo nessa época pode ser observada por meio dos haveres inanceiros totais, que se reduziram em proporção do PIB, de um patamar de pouco mais de um terço logo depois da Grande Guerra para pouco mais de um quinto em 1964. Contudo, a maior parcela desses ativos consistiu em haveres monetários, que elevaram a sua participação ao longo do tempo para cerca de nove décimos do total ao inal do período. Desse modo, os demais haveres (títulos inanceiros) representaram cerca de 2% do PIB em 1964. Num cenário de restrições elevadas ao funcionamento do mercado inanceiro, o pouco crédito mais a longo prazo para a economia concentrou-se nas mãos das instituições inanceiras públicas, mas também utilizado de forma racionada, em face de demandas extraordinárias. Por im, o crédito privado orbitou em torno de prazos mais curtos tanto na captação quanto na aplicação. 27. A Lei no 2.973, de 26 de novembro de 1956, isentou de aplicação da Lei no 23.501 as operações do BNDE, ver também o depoimento de Campos (1994, v. 1, p. 256) sobre essa legislação. Desde o início da década de 1950, o governo possibilitou de forma extraordinária ajustes na contabilidade das empresas, como a correção do ativo imobilizado, procurando reduzir os lucros ilusórios (Lei no 1.474, de 26 de novembro de 1951). Posteriormente, a Lei no 3.470, de 28 de novembro de 1958, permitiu a correção do ativo imobilizado das empresas até o limite estabelecido pelos coeficientes determinados pelo Conselho Nacional de Economia a cada dois anos, reduzindo os lucros ilusórios sobre os quais se cobrava imposto de renda (Simonsen, 1995, p. 42-44). Por fim, no início da década de 1960, o governo utilizou o maior salário mínimo (SM) mensal como referência para faixas do imposto de renda a partir de 1961 e no ano seguinte nos financiamentos habitacionais populares (Lei no 3.898, de 19 de maio de 1961). 28. Maria da Conceição Tavares (1983, p. 148) resume da seguinte forma o financiamento industrial dessa época: “a atividade urbana e, em particular, o setor industrial que liderou o processo de desenvolvimento resolveram seus problemas de financiamento utilizando fontes internas – lucros retidos – para a acumulação de capital fixo e recorrendo, para o capital de giro, crescentemente, a fontes externas: começando pelo crédito bancário, passando pelo endividamento interempresas e terminando, em anos mais recentes, no mercado financeiro não-oficial”. Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil 572 A partir desse quadro, serão analisadas as diiculdades para o inanciamento público por meio de títulos e, posteriormente, para o setor privado por meio do mercado hipotecário. 3 DÍVIDA PÚBLICA Além da possibilidade de emitir moeda e títulos da dívida externa, as despesas do governo podem ser inanciadas por meio de apólices públicas emitidas internamente. As necessidades iscais do governo brasileiro implicaram diferentes combinações de inanciamento com títulos externos e internos desde o início do país independente. A conjuntura econômica e a da própria política condicionaram o desenvolvimento do mercado de títulos públicos no plano interno. Tais papéis constituíram importante fonte de inanciamento, como ocorreu durante a Guerra do Paraguai. Nessa época, os títulos públicos e privados passaram a ser negociados em bolsa, bem como as ações. As apólices públicas representavam uma forma importante de inanciamento dos municípios, dos estados e da União. A União inanciou-se durante todo o Império principalmente por meio de títulos públicos vendidos internamente. De acordo com a estimativa de Goldsmith (1986, p. 75), quase dois terços dos deicit acumulados foram inanciados dentro do país, sendo mais da metade por meio de títulos. Tais papéis foram colocados principalmente nas regiões mais próximas da capital do Império. No início da República, os capitais estrangeiros assumiram um papel mais relevante que os internos no inanciamento do Estado (op. cit., p. 125 e 205). Apesar da existência de um estoque elevado de dívida externa, a Primeira Grande Guerra e principalmente a crise do início da década de 1930 restringiram o acesso a capitais estrangeiros, que retornaram apenas a partir da década de 1950 em volumes expressivos. Possivelmente, a associação entre desvalorização cambial e crescimento da inlação também produziu uma retração na importância relativa dos títulos públicos no mercado interno. Apesar da importância da dívida interna no início do período em análise, o comportamento ao longo desse período mostrou-se declinante em relação ao PIB.29 No gráico 3, observa-se essa proporção no período em questão. Durante a década de 1930 a dívida interna representou cerca de um décimo do PIB. A Segunda Grande Guerra elevou a despesa do governo, que foi inanciada por meio de obrigações de guerra de forma compulsória, aproximando-se mais de uma taxação do que uma aplicação para o público. A partir do inal da guerra houve uma tendência de redução da participação da dívida no produto, alcançando no início da década de 1960 menos de 0,5 ponto percentual (p.p.) do PIB. Este comportamento revelou 29. Em 1909, a dívida interna representou 11,9% do PIB, lutuando ao redor desse patamar até 1927. Posteriormente, houve uma retração, apesar da delação dos preços. Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 573 uma correlação negativa quanto à taxa de inlação de 1930 a 1964 (–0,65).30 Assim, a elevação da taxa de inlação diminuiu o interesse na aquisição dos títulos públicos, em função do juro tornar-se cada vez mais real negativo. GRÁFICO 3 Dívida interna federal (Em %) 14 12 10 8 6 4 2 1964 1962 1960 1958 1956 1954 1952 1950 1948 1946 1944 1942 1940 1938 1936 1934 1932 1930 0 Imagem reproduzida em baixa resolução em virtude das condições técnicas dos originais disponibilizados pelos autores para publicação (nota do Editorial). Ao inal da Segunda Guerra Mundial, depois de muitos anos de reduzido acesso aos mercados inanceiros internacionais e a diiculdade de colocação dos papéis também no mercado interno, o Brasil apresentou um estoque bastante reduzido de dívida tanto interna quanto externa. Como Lafer (1948, p. 33) salientou na época: “A dívida pública brasileira se apresenta insigniicante”. Outro ministro da Fazenda reconheceu a crescente aversão aos títulos do governo por parte do público, como relatou Silveira Filho (1951, p. 63) em seu relatório de 1949: Ainda está por se restabelecer o crédito público. Há inlação de origem orçamentária, pela diiculdade enorme do levantamento dos empréstimos públicos para fazer face aos investimentos governamentais; por outro lado, há diiculdade de obtenção de subscrição dos títulos públicos por causa da inlação. O reduzido endividamento público poderia a princípio facilitar a colocação de papéis no mercado, porém o financiamento por meio de títulos públicos mostrava-se pouco atrativo para os compradores das apólices. Menos de 1% dos ativos dos principais bancos era aplicado em dívida pública federal em 1949 30. Utilizaram-se os dados disponíveis no Ipeadata para a dívida interna, o PIB e o delator implícito do produto. 574 Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil (Gomes, 1950, p. 20). Poucos anos mais tarde, em meados da década de 1950, o Conselho Nacional de Economia airmava: “em plena fase de desvalorização monetária, que traz a depreciação dos rendimentos fixos, ninguém aplica voluntariamente suas reservas em títulos. O mercado tende à imobilização, e o governo perde uma parte importante de suprimento inanceiro” (CNE, 1956, p. 23).31 O principal economista liberal da época e também ministro da Fazenda em 1954-1955 foi Eugenio de Gudin. Ele airmava já em meados da década de 1950 sobre o descrédito dos títulos públicos e a necessidade de empréstimos do BB para inanciar o governo: A excessiva alta da taxa de juros em conseqüência da inlação faz com que o governo não encontre compradores para seus títulos, mesmo de 7%, ao par. Saca então do Banco do Brasil, o que conduz à emissão, agravando novamente a inlação, fazendo subir as taxas de juros, e assim sucessivamente (Gudin, 1956, p. 25). O seu sucessor no ministério foi José Maria Whitaker, que revelou um quadro semelhante numa carta ao presidente João Café Filho de 7 de outubro de 1955, pois “o Tesouro paga 8%, a prazos curtos e não encontra quem lhe empreste” (Whitaker, 1956, p. 128). Lessa (1981, p. 95) também reforçou o quadro: Registra-se a quase total ausência de instrumentos públicos de crédito a longo prazo. A secular inlação brasileira, defrontando-se com limitações legais, que impediam o governo de emitir títulos reajustáveis segundo a alta de preços, havia desmantelado esta fonte tradicional de recursos para o governo. A dificuldade crônica de financiamento público conduziu o governo a obrigar a aquisição dos papéis como empréstimos compulsórios das pessoas físicas e jurídicas no imposto de renda ou como alternativa aos recolhimentos obrigatórios dos bancos comerciais.32 Os institutos de aposentadoria e as caixas econômicas também foram obrigados a comprar esses papéis desde a década de 1930. Tal medida não alterou o quadro de declínio na colocação dos títulos no mercado. Ademais, Simonsen salientou, referindo-se ao início da década de 1960, a concentração do inanciamento do governo nas mãos do BB: o próprio governo era vítima da corrosão do mercado de capitais: tornava-se impossível cobrir os déicits públicos pela emissão de títulos voluntariamente subscritos pelo público. Na realidade, a maior parte dos déicits era inanciada por empréstimos do Banco do Brasil ao Tesouro Nacional, e as raras emissões de títulos públicos costumavam revestir-se da forma esdrúxula de empréstimos compulsórios, cobrados como adicionais do imposto de renda. (Simonsen e Campos, 1979, p. 125). 31. O conselho foi criado em 1945 e conirmado pela constituição de 1946. 32. Os governos estaduais e municipais lançam títulos de curto prazo em montantes relativamente pequenos com elevados deságios para se inanciarem (Simonsen, 1995, p. 32). Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 575 Desde o inal da Grande Guerra, havia severas restrições para o inanciamento do setor público por meio de títulos vendidos ao público internamente. Desta forma, vários autores e atores da época defendiam mudanças que pudessem alterar a natureza dos títulos para torná-los atraentes aos poupadores, sem se sujeitarem às incertezas da taxa de inlação, como já apontado por alguns autores citados anteriormente.33 Na falta desta última alternativa, os empréstimos do BB e por consequência as emissões constituíram as formas mais comuns de inanciamento dos deicit públicos. As diiculdades observadas para o inanciamento do Estado contrastavam com a crescente participação pública nos empréstimos ao setor privado, especialmente indústria, agricultura, construção civil e infraestrutura por meio do BB, caixas econômicas e depois BNDE. 4 MERCADO HIPOTECÁRIO DAS CAPITAIS O mercado hipotecário também sofreu as restrições do binômio inlação e lei da usura, como já apontadas para os títulos públicos. Em virtude das restrições, os inanciamentos caracterizavam-se por prazos curtos relativamente às necessidades do setor imobiliário e dos outros setores tradicionais na utilização desses recursos. No entanto, uma alternativa para desenvolver o mercado imobiliário foi a incorporação das construções pelos compradores, mas muitas vezes alongava o tempo de obra por conta da falta de recursos. Apesar do papel destacado desse mercado antes de 1930, a grande depressão produziu uma retração na concessão de novas hipotecas.34 Nesta seção, pretende-se avaliar o comportamento do mercado hipotecário, por meio das informações das instituições de crédito nos censos e das hipotecas das capitais dos estados nos Anuários estatísticos do Brasil do Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE) a partir da década de 1940.35 O recenseamento econômico de 1940 permite uma visão geral do crédito hipotecário dos estabelecimentos inanceiros. A participação de empréstimos garantidos por hipotecas nos créditos concedidos no ano de 1939 por estabelecimentos que operavam no mercado de crédito revelou-se bastante reduzida para o conjunto do país (2,4%).36 O alcance desse tipo de inanciamento pelas instituições mostrou-se restrito, pois menos de um sexto das agências realizou empréstimos hipotecários naquele ano (14,2%). Entretanto, os descontos de títulos e os empréstimos garantidos por conta corrente envolveram um volume maior 33. Em meados da década de 1950, o ministro da Fazenda solicitou ao Conselho Nacional de Economia estudos acerca da viabilidade de emissão de títulos com cláusula de garantia contra a desvalorização da moeda (CNE, 1956). 34. Goldsmith (1986, p. 178) salientou o declínio das hipotecas em relação ao PIB: “A relação caiu de 6% em 1914 para uma média de menos de 4% nas datas-limite 1919, 1924 e 1929, declinando rapidamente para cerca de 2% nos anos-base 1934, 1940 e 1945”. 35. Infelizmente, não se possuem dados para o conjunto do país, mas apenas para algumas capitais nos Anuários estatísticos do IBGE. 36. De acordo com os dados do Censo de 1940 (IBGE, 1950, p. 384-385). 576 Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil de recursos das instituições – 60,5% e 23,7%, respectivamente. Ao contrário do veriicado para o conjunto das instituições de crédito, as caixas econômicas foram os principais agentes operantes com hipotecas, totalizando quase dois terços dos valores emprestados (64,2%). Como as caixas restringiram-se apenas ao meio urbano, a quase totalidade dos inanciamentos concedidos nesse ano por meio de hipotecas destinou-se a imóveis urbanos, representando nove décimos do total. Quase dois terços desse mercado funcionavam no Distrito Federal, em função da importância da Caixa Econômica Federal da capital da República.37 Portanto, as hipotecas realizadas por estabelecimento de crédito mantinham-se bastante reduzidas, centradas na atuação das caixas econômicas, que serão analisadas melhor na próxima seção. Apesar do grande avanço das instituições inanceiras durante a década de 1940, que mais que dobraram o número de agências, a importância desse mercado hipotecário para estas instituições reduziu-se relativamente aos demais, pois os novos créditos concedidos dessa forma representaram pouco mais de 1% dos empréstimos totais em 1949 (1,4%).38 Os bancos tornaram-se mais importantes na concessão de hipotecas que as caixas econômicas nesse momento, mesmo na área urbana, além de predominarem nas transações rurais. Novamente, os dados censitários apontam para uma reduzida importância das hipotecas nos ativos dos estabelecimentos de crédito. Posteriormente, o crédito hipotecário representava 1% dos ativos rentáveis dos bancos comerciais em 1961, segundo Sochaczewski (1993, p. 146). Em contrapartida à pouca relevância das hipotecas para os bancos nessa época, os particulares realizavam a maior parte das transações com ônus real até o início da década de 1930. Para contemplar de forma mais ampla o mercado hipotecário como um todo, lançou-se mão das informações anuais do número e dos valores inscritos das novas hipotecas apenas para os cartórios das capitais dos estados desde 1940. Assim, não se tem as informações para o estoque de hipotecas em vigor nem para o conjunto do país, mas compreendem uma grande parcela dele e bastante dinâmica no período e possibilitam avaliar melhor a sua importância e o seu comportamento, não se restringindo aos estabelecimentos inanceiros. No gráico 4, apresentam-se o número e o valor real das hipotecas inscritas nos municípios das capitais.39 O comportamento mostrou-se crescente até o início da década de 1950, tanto em termos de número como de valor, 37. Os créditos totais concedidos concentraram-se no Distrito Federal e em São Paulo, que responderam por 23,7% e 31,4% do total, respectivamente (IBGE, 1950, p. 391-397). 38. De acordo com os dados do Censo de 1950 (IBGE,1957, p. 126). Como os empréstimos hipotecários eram a prazo mais longo do que os demais, o saldo de hipotecas em 31 de dezembro de 1949 representou um décimo dos saldos totais dos estabelecimentos. Estes últimos eram inferiores aos concedidos durante o ano. Por im, os saldos em hipotecas no inal de 1949 superavam os créditos hipotecários concedidos durante o ano em quase quatro vezes (3,9%), fornecendo uma ideia, grosso modo, do prazo médio delas. 39. Foram utilizados como delatores da série o índice de custo de vida da cidade do Rio de Janeiro até 1943 e o IGP-DI a partir de 1944. Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 577 especialmente durante o governo de Eurico Gaspar Dutra. Posteriormente, houve uma tendência de retração signiicativa em número e principalmente em termos dos valores reais das hipotecas. Até mesmo no período do governo Juscelino Kubitschek de elevadas taxas de crescimento da economia, o número e mesmo o valor real não cresceram.40 GRÁFICO 4 Número e valor real das hipotecas das capitais (1940-1964) (Em 1 mil cruzeiros de 1944) 3.500 25.000 3.000 20.000 Milhares 2.500 15.000 2.000 1.500 10.000 1.000 5.000 500 0 Valor real 1964 1962 1960 1958 1956 1954 1952 1950 1948 1946 1944 1942 1940 0 Número Imagem reproduzida em baixa resolução em virtude das condições técnicas dos originais disponibilizados pelos autores para publicação (nota do Editorial). As hipotecas em termos relativos ao produto apresentaram uma retração mais elevada, como mostra o gráico 5. Quando se comparam tais informes com os dados disponíveis para as décadas de 1920 e 1930, veriica-se uma redução das participações desde o início da década de 1930.41 Ainda que exista um crescimento na segunda metade da década de 1940, na seguinte houve uma estagnação ao redor de 1,5% do PIB e, posteriormente, um declínio acentuado até o inal, atingindo menos de 0,5% nos anos de 1962 a 1964, quando da aceleração da inlação. Desse 40. O governo tentou fomentar a colocação de letras hipotecárias do BB para inanciar a colonização agrícola das áreas menos desenvolvidas por meio da Lei no 2.237, de 19 de junho de 1954. Contudo, não se tornou uma fonte expressiva de inanciamento. 41. A participação das hipotecas no PIB chegou a uma média de pouco menos de 4% entre 1919 e 1929, declinando rapidamente no início da década de 1930 (Goldsmith, 1986, p. 28). Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil 578 modo, numa época de crescimento econômico signiicativo, o crédito hipotecário retraiu-se fortemente. GRÁFICO 5 Valor das hipotecas inscritas nas capitais (1940-1964) (Em % do PIB) 2,5 2,0 1,5 1,0 0,5 1964 1962 1960 1958 1956 1954 1952 1950 1948 1946 1944 1942 1940 0,0 Imagem reproduzida em baixa resolução em virtude das condições técnicas dos originais disponibilizados pelos autores para publicação (nota do Editorial). Se calculada a correlação entre a taxa de variação do delator do produto e a participação das hipotecas no PIB, será veriicada uma correspondência negativa signiicativa (–0,72). Não somente os títulos de dívida pública interna, mas também as hipotecas retraíram-se em face da elevação da taxa de inlação. Desse modo, os instrumentos bastante tradicionais de crédito privado (debêntures, crédito ao consumidor e hipotecas) revelaram-se pouco relevantes ao inal da década de 1950 e início da década de 1960, necessitando muitas vezes o emprego de adaptações e artifícios que impunham custos. O mercado de capitais também não se constituía em alternativa para o inanciamento das empresas.42 Salienta-se a seguir uma instituição que se destacou nesse mercado durante esses anos. 42. De acordo com os dados informados por Levy (1977) para a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, as ações e as debêntures nunca alcançaram proporção expressiva no volume de títulos negociados na bolsa para o período entre 1940 e 1964. Os dois papéis somados sempre se mantiveram inferiores a p.p. do PIB. Entre estes dois ativos, as ações foram sempre mais relevantes que as debêntures, principalmente ao inal do período. Além disso, as debêntures emitidas nessa época ainda eram a sua maior parte por prazo inferior a um ano (Simonsen, 1961, p. 72). Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 579 5 CAIXAS ECONÔMICAS FEDERAIS As caixas econômicas constituíram uma importante fonte de captação de depósitos populares desde a criação da primeira na Corte em 1861.43 Ainda no século XIX, houve a expansão para as capitais das províncias de forma autônoma. As aplicações dos recursos concentraram-se principalmente em penhores e títulos da dívida pública, porém aos poucos iniciaram empréstimos de variadas formas nas primeiras décadas do século XX. Durante a crise dos anos 1930, houve uma ampla reforma, passando a realizar empréstimos hipotecários e ganhando destaque no inanciamento imobiliário urbano. A tendência das séries de depósitos e de empréstimos das caixas econômicas Federais autônomas revelou-se declinante, especialmente a partir do inal da década de 1940, como visto no gráico 6.44 A aceleração da inlação parece ter reduzido o interesse pelos depósitos nessas instituições, diminuindo a disponibilidade de fundos emprestáveis. Comparado com a série de títulos públicos, o movimento mostrou-se um pouco mais tardio e em menor intensidade, apontando para maior diiculdade dos depositantes das caixas em substituir suas aplicações do que dos detentores de títulos públicos, que necessitavam de valores mínimos de aplicações maiores e, assim, possuíam mais informações e alternativas para contornar o problema. No caso da proporção dos depósitos e empréstimos das caixas, houve uma mudança da relação entre essas duas séries. A reformulação dessas instituições na década de 1930 possibilitou uma expressiva expansão dos empréstimos imobiliários urbanos e, em menor monta, dos depósitos, perfazendo 58,4% em 1940.45 Até o inal da Grande Guerra, a proporção de empréstimos em relação aos depósitos reduziu-se, chegando a 45,6% em 1944.46 Todavia, a partir de 1945, essa razão aumentou até o inal da década de 1950 de modo signiicativo, alcançando uma proporção extraordinária de 86,5% em 1958, o que poderia fragilizar a instituição dado o descasamento entre a disponibilidade 43. Ver Adams (2006). 44. Os dados consolidados também foram obtidos nos Anuários do IBGE. 45. O penhor constituiu a forma mais tradicional de empréstimos, por meio do Monte Socorro, que foi criado junto à Caixa em 1861. O Decreto no 11.820, de 15 de dezembro de 1915, possibilitou empréstimos por meio de caução de títulos, muitas vezes ainda contabilizados como penhores. Posteriormente, as caixas realizaram, mediante o Decreto no 20.225, de 18 de julho de 1931, empréstimos consignados a funcionários públicos e, logo nos anos seguintes, hipotecas, conforme o Decreto no 24.427, de 19 de junho de 1934. Antes mesmo da legislação permitir empréstimos hipotecários, houve uma autorização em 1931. 46. A restrição aos empréstimos foi mais drástica na Caixa Econômica Federal paulista do que na do Distrito Federal, pois a proporção empréstimos/depósitos reduziu-se a 19,3% para a primeira e a 61,4% para a segunda em 1943. As caixas apoiaram os poderes públicos em diferentes áreas, especialmente durante a guerra. Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil 580 dos depósitos e dos empréstimos para as caixas.47 Desse modo, a retração da razão empréstimos/PIB mostrou-se menor do que a dos depósitos nessa época. GRÁFICO 6 Depósitos e empréstimos das caixas econômicas federais autônomas (1940-1964) (Em % do PIB) 5 4 3 2 1 Depósitos 1964 1962 1960 1958 1956 1954 1952 1950 1948 1946 1944 1942 1940 0 Empréstimos Imagem reproduzida em baixa resolução em virtude das condições técnicas dos originais disponibilizados pelos autores para publicação (nota do Editorial). A aceleração da inlação e as restrições às novas concessões de maior vulto no início da década de 1960 tornaram os empréstimos proporcionalmente menos representativos, perfazendo 61,2% dos depósitos em 1964. As diiculdades de manter os inanciamentos num cenário de declínio dos depósitos reais desde o inal da década de 1950 conduziram o governo a restringir os empréstimos, tomando várias medidas nesse intento, como o Decreto no 48.646, de 1o de agosto de 1960, que limitava a concessão de empréstimos imobiliários sob garantia hipotecária pelas instituições de Previdência Social e caixas econômicas à aquisição de imóvel para residência própria. Já no governo Jânio Quadros, o Decreto no 50.316, de 6 de março de 1961, suspendeu para as caixas empréstimos em caução de títulos, sob garantia de bancos e a companhias de viação. Os empréstimos consignados foram limitados a 48 meses e os hipotecários aos da “casa própria” e inalidade pública ou coletiva, mantendo inanciamento a estados 47. O descasamento entre ativos e passivos foi salientado pelo presidente do Conselho Superior das Caixas Econômicas Federais, João Henrique, em 1960 (p. 176): “os empréstimos das Caixas Econômicas, considerados percentualmente, sobre os seus recursos, representam 83%, o que de irrecusável expressa uma taxa bastante alta, pois os depósitos, na sua quase totalidade, são exigíveis à vista, e as operações, em grande parte, são liquidadas a longo prazo, isto é, a dez, quinze e vinte anos, havendo devedores, principalmente municípios, sempre em grande atraso” . Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 581 e municípios, bem como a pequenas indústrias. Os casos não compreendidos nessa lei deveriam ter autorização expressa do presidente da República.48 Posteriormente, no governo João Goulart, o Decreto no 51.883, de 2 de abril de 1963, estabeleceu um novo limite nominal dos empréstimos, reforçando que deveriam ser eminentemente sociais.49 Em seguida, autorizou-se exceção ao inanciamento de investimento industrial para a melhoria da produtividade e a redução de custo operacional.50 Ao inal do período considerado, tanto depósitos como principalmente empréstimos das caixas econômicas federais representavam menos de p. p. do PIB do país.51 Se forem comparados os depósitos das caixas com os a prazo de outras instituições bancárias, é possível notar, para 1946, que os segundos superaram os primeiros em proporção do PIB: 7,6% em relação a 4,2%. Como visto anteriormente, as duas séries apresentam tendência de declínio pela restrição aos juros pagos, mas a retração dos das instituições bancárias revelou-se maior. Já na segunda metade da década de 1950 os depósitos das caixas em proporção ao PIB superaram os dos bancos, mantendo-se maiores até o inal do período em análise e reletindo menor efeito da inlação nos das caixas. Pode-se analisar em separado os diferentes tipos de empréstimos das caixas, conforme o gráico 7. Os empréstimos com garantia hipotecária representaram a principal forma de inanciamento das caixas econômicas em todo o período em questão.52 Se durante a guerra eles representavam ao redor de 1 p.p. do PIB, depois chegaram a 1,8% entre 1947 e 1949.53 Depois houve uma retração continuada até o inal do período em estudo neste capítulo. Ao se comparar com informações da seção anterior, nota-se uma participação no PIB semelhante entre o saldo das hipotecas das caixas e o luxo de novas hipotecas das capitais, porém em alguns anos as primeiras superaram as segundas. Embora a maior parte das hipotecas das caixas referia-se às capitais, ocorre que as informações são de estoque e não 48. Decreto do Conselho de Ministros no 1.382, de 12 de setembro de 1962. 49. O jornal O Estado de S. Paulo reportou em 3 de agosto de 1963: “Assinou, porém, na hora, algumas autorizações para empréstimos da Caixa Econômica Federal, solicitados por amigos do jogador. [Pelé / RLM]” (p. 12). 50. Decreto no 52.013, de 17 de maio de 1963. 51. Quando as restrições de recursos tornaram-se mais signiicativas ao inal da década de 1950. 52. No conjunto das caixas federais a proporção de hipotecas nos empréstimos cresceu de 44,3% em 1940 para 61,5% em 1949, estabilizando nesse patamar até 1961, depois reduzido até 47,4% em 1964. Por sua vez, o balanço da caixa paulista de 1946 permitiu veriicar a proporção dos empréstimos hipotecários relativamente às garantias imobiliárias, que foi de 32,9% (O Estado de S. Paulo, de 18 janeiro de 1947). Nessa época, a hipoteca inanciava principalmente imóveis residenciais, porém a indústria recebeu um quinto do total dessa carteira (20,7% dos valores) em 1947, sem considerar o penhor industrial que mesmo em montantes menores representava pouco mais de um quarto dos penhores tradicionais de joias e objetos (Folha da manhã, 22 de janeiro de 1948, p. 1, segundo caderno). No início da década de 1950, as hipotecas industriais perizeram 8,8% do total hipotecado pela caixa paulista em 1953, reduzindo a sua relevância (O Estado de S. Paulo, 17 de janeiro de 1954, p. 14). Assim, veriicou-se que uma parte signiicativa dos empréstimos destinava-se à indústria, não se restringindo ao mercado imobiliário residencial ou comercial. 53. Estes valores divergem das informações do Censo de 1950, em virtude de aqueles se referirem ao luxo de novas concessões de todas as caixas econômicas, não apenas as federais, como também as estaduais, e este ser o estoque das federais. Como os empréstimos hipotecários são a mais longo prazo do que os demais empréstimos, eles se mostram mais relevantes no estoque do que no luxo. Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil 582 das novas concessões de empréstimos, por isso infelizmente não se pode compará-las diretamente. A segunda forma mais importante de empréstimo foi o consignado, que manteve uma participação ao longo do tempo entre 0,2% e 0,5% do PIB. As restrições aos inanciamentos hipotecários a imóveis não populares facilitaram este tipo de empréstimo a se tornar quase tão importante quanto as hipotecas em 1964. Por im, o terceiro tipo de empréstimo consistiu no de garantias simultâneas, que abarcam mais de uma garantia para os inanciamentos. As hipotecas, títulos, penhores etc. podem ser utilizados em garantia conjuntamente. O comportamento desses empréstimos mostrou-se mais importante no início da década de 1940, retraindo-se posteriormente até o inal do período.54 GRÁFICO 7 Empréstimos sob garantia hipotecária, simultânea e consignações das Caixas Econômicas Federais (1940-1964) (Em % PIB) 0,020 0,018 0,016 0,014 0,012 0,010 0,008 0,006 0,004 0,002 Hipotecas Garantias simultâneas 1964 1962 1963 1961 1959 1960 1958 1956 1957 1955 1953 1954 1952 1950 1951 1949 1947 1948 1946 1944 1945 1943 1941 1942 1940 0 Consignações de vencimentos 54. Ademais, havia empréstimos aos poderes públicos, especialmente durante a Grande Guerra. Uma ilustração bastante notória foi a viabilização da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). De acordo com Wirth (1973, p. 105): “Em 1941, a Caixa Econômica e as instituições de previdência social entraram com mais da metade do capital inicial de 25 milhões de dólares em moeda brasileira. Em troca desse sacrifício involuntário de suas reservas de capital, aquelas instituições izeram jus à totalidade das ações preferenciais. Guilherme Guinle, o presidente da CSN, reagiu à relutância das fontes de capital privado em adquirir mais de um terço das ações ordinárias emitidas. (...) apenas 83 mil contos de subscrições privadas, e isso apesar de os principais bancos, grupos proissionais, grandes irmas e a própria indústria nacional de aço terem sido ‘instados’ a participar. O Tesouro icou com as ações ordinárias restantes (167 mil contos)”. Desse modo, a participação privada nas ações ordinárias iniciais foi de um terço. No caso da Caixa Econômica paulista, eles eram poucos casos, mas chegaram a representar pouco mais de um terço dos empréstimos em 1945 (36,9%). Segundo esse balanço: “(...) ainda possibilitam o auxílio a todas as atividades produtivas de São Paulo. A propósito podem ser destacados os inanciamentos feitos às Estradas de Ferro paulistas, para melhorar o seu aparelhamento e habilitá-las a enfrentar a crise de transportes” (O Estado de S. Paulo, de 25 de janeiro de 1946). Por im, ainda havia a carteira da casa própria para o inanciamento de imóveis populares criada no início da década de 1940. No caso da caixa paulista, essa carteira não rivalizou com a hipotecária em termos de valores, pois representava 7,6% dos empréstimos em 1947. Contudo, o número de operações de hipotecas prediais foi de 1.256 e o da carteira popular de 1.057 ao inal desse ano (Folha da manhã, 16 de janeiro de 1948). Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 583 Como se dispõe de alguns relatórios da Caixa Econômica Federal de São Paulo, pode-se analisar de forma mais aprofundada os seus empréstimos. Em 1943, os inanciamentos considerados de longo prazo superavam em grande monta os demais prazos, perfazendo quase nove décimos do total (89,8%). Os principais inanciamentos a prazos mais longos foram os hipotecários, que se separavam entre a indústria e sobre imóveis e representavam quatro décimos do total dos empréstimos (40,9%) e um terço (33,8%), respectivamente. Ainda havia penhor industrial que perfez 2,7%, salientando a importância do inanciamento a este setor para a caixa paulista. Posteriormente, o direcionamento para a indústria reduziu-se expressivamente, passando a representar hipoteca e penhor industrial pouco mais de um décimo em 1946 (11,6%), menos de um décimo em 1950 (9,6%) e inalmente menos de um vigésimo em 1955 (4,9%). Esta mudança decorreu, provavelmente, da expansão da Creai do BB. No entanto, inicialmente, o poder público ganhou destaque em 1946, representando pouco mais de um terço do inanciamento de longo prazo (36,7%). Nos anos seguintes, a participação do poder público declinou para um quinto em 1950 (20,7%) e menos de um décimo em 1955 (8,4%). Nesse período da década de 1950, as hipotecas sobre imóveis e casa própria aumentaram a sua participação para pouco menos de dois terços em 1950 e 1955 (61,0% e 66,3%, respectivamente). Os empréstimos considerados a prazos curtos e médios foram principalmente os consignados e os penhores não industriais. Como visto para o conjunto das caixas, a partir de meados da década de 1950 estes inanciamentos a prazos menores da caixa paulista cresceram de menos de um décimo em 1955 (8,8%) para cerca de um sexto em 1960 (15,5%) e depois para um quarto em 1965 (25,0%). Entretanto, as hipotecas ainda mantinham uma parcela superior a dois terços dos empréstimos em todo o período de 1946 a 1965. Assim, o movimento mostrou-se semelhante aos das caixas como um todo. A redução dos empréstimos ao inal da década de 1950 foi notada pelos próprios administradores das caixas. João Henrique (1960, p.178) informava do problema da lei da usura: (...) a verdade é que, no meu entender (...) é necessário que as Caixas Econômicas Federais, sem perda de tempo, adotem novos rumos e diretrizes, com o objetivo de salvaguardar o seu patrimônio, pois icou provado, anteriormente, que, diante do custo do dinheiro, não podem as Caixas Econômicas limitar-se a fazer empréstimos dentro da taxa de juros de 12%. [...] para agravar a sua situação, durante certo período, estiveram suspensos os empréstimos hipotecários, o que determinou não obtivessem, sequer, o emprego de suas disponibilidades, dentro do juro legal de 12%. As caixas sobreviveram apesar dos juros reais negativos e poderiam continuar dessa forma, desde que os depósitos se mantivessem, mesmo que recebendo juros Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil 584 nominais extremamente limitados em relação à inlação do período.55 Entretanto, primeiro a proporção depósitos/PIB reduziu-se, depois eles diminuíram em termos reais, principalmente após 1958. A aceleração da inlação agravou o desequilíbrio e impossibilitou a manutenção da expansão das caixas. Como salientado, as diiculdades crescentes impuseram a necessidade de restrições aos empréstimos reduzindo a autonomia administrativa das caixas econômicas federais dos diferentes estados, como Simonsen (1995, p. 26) airmou sobre o binômio inlação e lei da usura: reduziu à mingua a oferta de empréstimos para a aquisição de moradias, a ponto de a concessão de um inanciamento para a compra de um pequeno apartamento pela Caixa Econômica Federal depender, em 1963, de expressa autorização do presidente da República. Com isso, os edifícios residenciais passaram a ser construídos com o autoinanciamento dos condôminos, o que, entre outros efeitos, costumava esticar os prazos de término das obras, encarecendo seus custos. Mesmo sem recursos crescentes para emprestar, a demanda por empréstimos cresceu, em função de juros reais negativos muito atraentes aos tomadores. Assim, não havia condições para o atendimento das solicitações, gerando muita reclamação, discricionariedade e insatisfação da população. Desse modo, a atroia do crédito de prazos mais largos limitou as construções. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O crescimento econômico manteve-se desde meados da década de 1930 até o início da década de 1960 sem a expansão do crédito de forma ampla, até mesmo da dívida pública interna e das hipotecas. Os juros reais negativos que vigoraram em grande parte do período posterior à Segunda Grande Guerra não incentivaram a poupança doméstica. No entanto, os capitais estrangeiros entraram de modo signiicativo apenas durante a década de 1950. Assim, agentes públicos e privados procuraram encontrar soluções para conseguir recursos para inanciar suas atividades. Diferentes alternativas e adaptações foram criadas para viabilizar o crescimento da economia brasileira. No início da década de 1960, grande parte desses mecanismos perdeu funcionalidade com a aceleração da inlação e a instabilidade política, reduzindo o crescimento da economia. Apesar da manutenção da importância relativa dos depósitos à vista e do crescimento das agências bancárias, havia grandes diiculdades de inanciamento dos investimentos de forma geral, mas principalmente dos que requeriam prazos 55. A Caixa Econômica Estadual de São Paulo manteve depósitos em valores superiores à federal do estado em todo o período. Em 1963, ela mantinha mais de 3 milhões de cadernetas, enquanto a segunda detinha 1,6 milhão. Após a Grande Guerra, efetuou empréstimos de forma crescente, que chegaram a representar 55,3% dos depósitos em 1960. Atrofia do Crédito e Desenvolvimento: o pensamento de Mario Henrique Simonsen e o sistema financeiro brasileiro (1930-1964) 585 maiores.56 Outros mecanismos de inanciamento operaram para viabilizar o crescimento, mas não resgataram o papel de dois instrumentos clássicos de crédito, como o título público e a hipoteca. No caso do mercado hipotecário, observaram-se transações signiicativas nas décadas de 1940 e 1950, porém com uma retração mais expressiva ao inal dessa última década, até mesmo das operações das caixas econômicas. Essa instituição não conseguiu manter a sua captação de depósitos e atender à demanda crescente de empréstimos a taxas favoráveis, restringindo os inanciamentos. Tal comportamento acompanhou o movimento mais geral do sistema inanceiro, como dos títulos públicos e depósitos a prazo. Como Mario Henrique Simonsen apontou na época e posteriormente, a fragilidade institucional do sistema inanceiro e do próprio Estado ao inal do período em questão expressou-se por meio da diiculdade de crédito para o inanciamento do desenvolvimento a médio e longo prazo, como de crédito ao governo, ao consumidor para bens duráveis, à habitação e às empresas − debêntures. No caso das hipotecas e das caixas econômicas Federais, a redução de suas operações relativamente ao produto foi notória, corroborando o quadro apontado por Simonsen. REFERÊNCIAS ABREU, Marcelo de Paiva (Org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Campus, 1990. ADAMS, Alison Anne. A social and economic history of popular banking in Rio de Janeiro, 1821-1929. 2006. Tese (PhD em História) – Harvard University, 2006. ALMEIDA, Julio Sergio Gomes de. As inanceiras na reforma do mercado de capitais: o descaminho do projeto liberal. 1980. 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Uma vez abertas alternativas de inanciamento, o sistema econômico não parece ter sido inibido de expandir-se face ao sistema inanceiro rígido. Apesar disso, não se deve, no momento, concluir apressadamente que a aceleração da inlação e o quase colapso do sistema inanceiro brasileiro em 1963/65 foi consequência dessa rígida estrutura, uma vez colocada sob forte tensão”. 586 Cátedras para o Desenvolvimento - patronos do Brasil BESKOW, Paulo Roberto. O crédito rural público numa economia em transformação: estudo histórico e avaliação econômica das atividades de inanciamento agropecuário da Creai/BB, de 1937 a 1965. 1994. Tese (Doutorado em economia) – IE/Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 1994. CAIXA – CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Relatórios da Caixa Econômica Federal, vários anos. CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa: memórias. 4. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. CNE – CONSELHO NACIONAL DE ECONOMIA. Obrigações do Tesouro com garantia de desvalorização da moeda. 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Muito se poderia discutir sobre esse tema, recomenda Furtado, chamando a atenção para o atraso ao qual o país icou submetido desde então. As “deformações estruturais” não foram, nessa perspectiva, apenas fruto de um legado colonial da formação histórica brasileira, mas também das opções feitas por sujeitos sociais historicamente determinados, em face dos horizontes estreitos que se apresentaram no período de transição do trabalho escravo para o trabalho livre no século XIX. As observações de Furtado remetem ao pensamento de André Rebouças, pensador dos mais notáveis do século XIX, que entendeu, desde cedo, a necessidade de pôr im à “obra do passado” que entravava a modernização do país e de desenvolver forças produtivas que correspondessem a um novo estágio de relações sociais de produção numa sociedade de homens livres. Ou seja, defendia um pacto social amplo que partiria da emancipação social e se concretizaria num programa estruturante de transformações. A proposta reformadora de Rebouças pode ser associada ao momento atual como um desafio, senão semelhante, de grande 1. Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pesquisador do Centro de Estudos de Desenvolvimento Econômico (Cede/UNICAMP) e do programa Cátedras para o Desenvolvimento até 2012. E-mail: humberto.mn@uol.com.br. 590 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil identidade no que se refere ao comprometimento com a transição para projetos de mudança nas estruturas econômico-sociais, sabendo que, se o país não o levar adiante, reduzirá ainda mais o horizonte de escolhas da sociedade. André Pinto Rebouças (1838-1898), nascido no município de Cachoeira, no estado da Bahia, deu relevantes contribuições para pensar a construção do Brasil num momento histórico chave, entre as décadas de 1870 e 1890. Sua obra compreendia desde manifestos sobre o im do escravismo e do latifúndio, passando pela emergência da democracia rural, pela necessidade da industrialização, pela integração do negro e do imigrante à sociedade, pelo assalariamento digno, bem como pela integração do território nacional com a construção de portos e ferrovias. A intensa atividade empresarial e seus ideais mais amplos levaram o professor Carlos Lessa a deini-lo de modo original: “Rebouças persegue um capitalismo nascido da distribuição de um novo patrimônio produtivo a ser criado” (Lessa, 2001, p. 8). Um patrimônio que incluía a igualdade de oportunidades para os homens livres, do negro liberto ao imigrante estrangeiro. Num momento como o de hoje, em que a academia retoma o debate em torno dos objetivos do desenvolvimento socioeconômico no início do século XXI, com enfoques diversos que dão destaque ao “novo desenvolvimentismo” – ainda que a necessidade do uso de tal preixo seja discutível –, o que motiva a abordagem deste estudo sobre as contribuições originais desse intérprete é o fato de ele ter exposto claramente o sentido da mudança estrutural por meio de seu programa de reformas. E também porque os estudos sobre André Rebouças como um crítico da transição da sociedade agrária para a sociedade moderna no Brasil ainda são, em boa medida, raros na área de economia, especialmente no que concerne à análise das transformações materiais que tal transição requer. Deste modo, este capítulo tem por objetivo apresentar e discutir o propósito central do programa de reformas de Rebouças num momento em que o Brasil vivia uma transição nas suas relações sociais de produção. O propósito central do seu programa ficou consagrado na ideia de que somente abolindo o monopólio da terra se tornaria completa a Abolição de 1888. Nesse sentido, defende-se que Rebouças seja visto como um intérprete pós-abolicionista, sendo ele mais interessado em discutir as condições objetivas de como se moverá para o futuro uma sociedade que conta com o peso dramático do legado colonial e escravista. O que o torna atual, nesse aspecto, é a maneira como interpela, por intermédio de seu programa, o modelo de Estado submisso às classes proprietárias rurais e como isto inlui decisivamente na materialização de um sistema de dominação econômico-territorial cuja dinâmica impõe, logo de partida, a contínua reprodução social de desigualdades tanto no meio rural quanto no urbano. Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 591 A intenção de destruir um legado de obstáculos socioeconômicos na segunda metade do século XIX no Brasil, um tema imortalizado na obra de Joaquim Nabuco, está presente na obra de Rebouças como io condutor daquela interpelação, especialmente, no livro Agricultura nacional: estudos econômicos e nos artigos que escreveu, entre 1870 e 1890, para a Revista novo mundo, editada em Nova York, e para a Revista de engenharia, editada pela Escola Politécnica no Rio de Janeiro. Diferentemente do clima de mudança por que passam tanto a Europa (Inglaterra, França, Itália e Alemanha) quanto os Estados Unidos, incomodava-o o parasitismo das elites do Império no Brasil. Passou, portanto, a dedicar-se a escrever e discutir sobre quais seriam verdadeiramente as bases de uma nova economia nacional, democrática e moderna. Muitas das relexões sobre a geração de 1870 2 não serão abordadas neste texto e nem há a intenção de abrangê-las suicientemente. Dito isto, a motivação deste texto sobre aquela geração tem a ver diretamente com as contribuições de Rebouças no sentido que muito bem atribuiu Lessa (2001) – a preocupação desse intérprete com a transformação das forças produtivas nacionais como condição para o desenvolvimento capitalista brasileiro. Rebouças propunha em sua ampla agenda transformadora a superação de estruturas sociais arcaicas por meio de um programa de reformas e, por isso, também entende-se que ele tem importantes ainidades, embora não se confunda, com a melhor tradição do pensamento social brasileiro dos anos 1930. Além desta introdução, este capítulo divide-se em mais quatros seções. A seção 2 apresentará algumas proposições sobre as inluências de André Rebouças as quais o identiicam como reformador social, sem vesti-lo em armaduras doutrinárias prontas. A seção 3 discutirá o sentido da emancipação social na obra de Rebouças, de modo a compreender o alcance de sua visão reformadora no im do século XIX. A seção 4 abordará o sentido da transformação estrutural de Rebouças, embebido do ideário popular emancipador discutido na seção anterior, como temática central de sua obra, ou seja, a eliminação do monopólio da terra como condição necessária à mudança estrutural. Na seção 5, serão apresentadas as considerações inais. Conhecer as ideias desse pensador, se não ajuda a corrigir a miopia dos governantes, permite que se vá com profundidade ao princípio do processo histórico de desenvolvimento para entender as razões pelas quais as “deformações estruturais” tornaram-se permanentes e obnubilaram as lentes do presente. 2. A chamada “geração de 1870” – conjunto expressivo de ativistas que tinham em comum o apoio à luta abolicionista, ainda que vinculados a matizes políticas diversas como liberais, republicanos, monarquistas e federalistas – produziu uma “fortuna crítica” tal que acabou em grande medida influenciando a reflexão sobre a formação social brasileira da “geração de 1930”, que, segundo Alonso (2002, p. 340), “bebeu em seus temas e abordagens”. 592 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 2 ANDRÉ REBOUÇAS COMO REFORMADOR SOCIAL: INFLUÊNCIAS André Rebouças era um dos oito ilhos de Antônio Pereira Rebouças e Carolina Pinto Rebouças. A mãe era uma típica representante da classe média baiana, ilha de comerciante português. Antônio Pereira Rebouças era um advogado autodidata e um dos líderes do processo de independência na Bahia, depois parlamentar e conselheiro do Império. Dois dos ilhos do casal, André e Antônio, foram alfabetizados pelo próprio pai e ingressaram na Escola Politécnica3 em 1854. Depois que obtiveram o título de engenheiros em 1860, eles viajaram para completar os estudos na Europa entre 1861 e 1862. Na volta ao Brasil, assumiram funções públicas comissionadas e executaram serviços de vistoria em diversas obras, alguns portos e fortiicações litorâneas.4 No período de maio de 1865 a julho de 1886, André serve na Guerra do Paraguai, adoece e retorna ao Rio de Janeiro; em seguida, prossegue participando do planejamento e da execução de obras públicas, passa a ministrar aulas na Escola Politécnica e torna-se um proeminente abolicionista. André Rebouças se dedica a projetos que visavam à modernização da infraestrutura do país. Enfrenta uma dura batalha no parlamento para fazer com que seus projetos de obras públicas fossem discutidos e aceitos. As obras de infraestrutura com as quais André Rebouças tornou-se conhecido no Império foram o plano de abastecimento d’água da cidade do Rio de Janeiro, a construção das docas da Alfândega e da Companhia Docas Dom Pedro II, tendo sido inclusive diretor desta última em 1871. Depois de abandonar a ideia de criar uma empresa pública de abastecimento d’água, sob a alegação do governo imperial de que faltavam recursos inanceiros para tal, Rebouças obtém a concessão para implantar a ferrovia que ligaria Antonina a Curitiba, na província do Paraná. O mesmo papel terá nos projetos da ferrovia Paraná-Mato Grosso (Princesa Isabel), Estrada de Ferro da Paraíba (Conde d’Eu) e Companhia Florestal Paranaense. Nestes projetos, além de sua concepção técnica e viabilidade econômica, o empresário sabe da necessidade de estruturar uma organização societária, competente e harmônica, de mobilizar o inanciamento e administrar cuidadosamente as relações com o Estado (agente deinidor e iscalizador do contrato de concessão). André Rebouças jamais foi um empreiteiro; não forneceu obras para o Governo Imperial. Disputou e bancou o risco empresarial em seus projetos de desenvolvimento. Viveu, em toda a complexidade, o papel do empresário (Lessa, 2001, p. 3, grifo nosso). Desfrutando de prestígio incomum na Corte, Rebouças vai, na década de 1880, engajar-se na campanha abolicionista. Sua atuação se dá com a participação 3. A Escola Politécnica do Rio de Janeiro, hoje Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nasceu como Real Academia de Artilharia, Fortiicação e Desenho em 1792, passando a Academia Real Militar em 1810, denominada Escola Central em 1858 e Escola Polytechnica em 1874, período de Rebouças. 4. Os irmãos Rebouças foram responsáveis pela construção da Estrada de Ferro de Campinas a Limeira e Rio Claro, no estado de São Paulo, da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá e da rodovia Antonina-Curitiba, conhecida como estrada da Graciosa, um patrimônio histórico-cultural do estado do Paraná. Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 593 na fundação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, na Sociedade Abolicionista, com seus alunos da Escola Politécnica, e na Sociedade Central da Imigração. Quase uma década antes, entre agosto de 1872 e julho de 1873, realiza viagens a várias cidades europeias5 e aos estados de Massachusetts (Lowell, Boston e Rochester), Nova York (Albany, Niagara e Bufallo) e Pensilvânia (Tutsville, Oilcity, Pittsburg e Filadélia) nos Estados Unidos, viagens estas que tiveram impacto na sua formação intelectual. Em várias delas, Rebouças tratou de negócios, visitou fábricas, fazendas, estradas de ferro e teve contato, nos Estados Unidos, com o Homestead Act (1862), a Lei da Propriedade Rural norte-americana.6 Como saldo de seus contatos com os círculos da Corte e o mundo desenvolvido, pode-se perguntar sobre quais teriam sido as suas principais inluências no campo das ideias. Certamente, como na maior parte da bibliograia consultada, seria possível produzir uma lista bastante eclética de autores. Todavia, para icar somente no campo da economia, citam-se quatro autores principais: Adam Smith (1723-1790), Jean-Baptiste Say (1767-1832), Georg Friedrich List (1789-1846) e John Stuart Mill (1806-1873). Pode-se dizer que, do primeiro, há a importante inluência da concepção de divisão do trabalho quando pensa no funcionamento dos engenhos e fazendas centrais, sendo este um de seus estudos mais aprofundados. Do segundo, retirou a noção de liberdade econômica individual ou a livre-iniciativa como produto da igualdade de oportunidades, especialmente na sua fase de empresário, durante a década de 1870, quando se sentiu premido pelo peso da burocracia do Estado Imperial para tocar seus negócios. Do terceiro, surgiu o estudo sobre o “Zollverein brasileiro”, publicado na Revista de engenharia, visando à uniicação comercial e iscal do território nacional via a integração dos mercados regionais pelas “ferrovias de penetração”, relexões reforçadas pela visita à Alemanha. Do quarto, divagou sobre a convergência entre os interesses individuais e o “socialismo libertário”, para que cada indivíduo buscasse a própria “airmação no mundo”, visão, aliás, inluenciada pelos círculos intelectuais liberais que frequentava na Corte (Carvalho, 1998, p. 232). As relexões de Rebouças no campo da economia, salvo alguma omissão, param aí. Do ponto de vista desta pesquisa, porém, tais ideias lhe servem mais de inspiração quanto ao sentido que aqueles autores emprestaram à causa nacional da modernização socioeconômica nos seus respectivos países que uma demonstração cabal de filiação doutrinária. Ou seja, Rebouças identificava-se mais com as causas (ou projetos) sociais subjacentes àquelas teorias. Isto porque muitas dessas 5. Lisboa, Coimbra e Cintra (Portugal), Madri (Espanha), Paris, Marselha, Lourdes, Bayonne e Toulon (França), Roma, Gênova, Turim, Nápoles, Milão e Veneza (Itália), Viena (Áustria), Munique (Alemanha), Genebra (Suíça), Verniers (Bélgica), Liverpool, Newcastle on Tune e Londres (Inglaterra) e Glasgow (Escócia). 6. O seu conhecimento do Homestead Act estadunidense fazia-o crer que sua adoção pelo regime monárquico vigente no Brasil seria consistente com o aperfeiçoamento da Lei de Terras de 1850, vindo esta a ser complementada pelas reformas econômico-territoriais que propusera: centralização agrícola, ferrovias de penetração e democracia rural. Para maiores informações, ver Jucá (2001, p. 57) e Carvalho (1998, p. 232). 594 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil discussões serviram-lhe para forjar uma convicção sobre a necessidade de integrar, modernizar e democratizar o espaço econômico nacional. Passou, então, a ter no engajamento público, na inserção em círculos intelectuais e na imersão proissional, crescentemente, um ambiente polivalente que o ajudou a consolidar sua formação política. Estes, sim, foram ingredientes e canais de inluência direta na criação de um pensamento próprio e original, além dos valores transmitidos por seu pai. Era notório seu maior entusiasmo pelos Estados Unidos que pelos países europeus. Nestes lugares visitou instalações de empresas privadas e projetos estatais de engenharia urbana nos anos de 1870, período que coincidiu com a fase empresarial de Rebouças. O encantamento do intérprete pelos Estados Unidos justiicava-se, todavia, pela sedução que nele exerceu o potencial emancipador que via naquela sociedade. Segundo Trindade (2011, p. 166): Sem dúvida, todo o seu encantamento dizia respeito não apenas à magnitude do progresso técnico, mas também às suas potencialidades emancipatórias. Assim é que interpreto suas referências repletas de comparações entre a paisagem social norteamericana e a europeia. Curiosamente, ao mesmo tempo que se encantava com os ianques, Rebouças criticava o protecionismo econômico norte-americano em relação ao comércio exterior. Não há, como se poderia airmar, uma iliação direta – e, menos ainda, ingênua – à doutrina do livre comércio. Por mais que se tente construir uma unidade de relexões em torno de certas ideias liberais ou se junte algumas delas para forçar essa identidade, ao fazê-lo, corre-se o risco de desprezar o essencial de seu pensamento. Por essa razão, procuraram-se destacar nos trabalhos mais vigorosos sobre o pensamento de Rebouças ou sobre aquele momento histórico os elementos realmente sólidos que o distinguem como reformador social. Nos livros O quinto século (1998), de Maria Alice Rezende de Carvalho, André Rebouças, um engenheiro do Império (2011), de Alexandre Dantas Trindade, e A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro (2008), de João Marcelo Ehlert Maia, encontram-se uma convergência e uma riqueza maior de nuanças em torno do personagem. Embora Maia (2008) esteja centrado na igura de outro engenheiro da Politécnica, estes três textos são os mais ricos em captar a essência de seu pensamento ou a importância da geração de engenheiros da época. Os demais textos existentes têm caráter de informação biográica ou de divulgação das ideias e dos ideais de Rebouças, inclusive o seu próprio Diário e notas autobiográficas, publicado em 1938. Aqui defende-se a necessidade de valorizá-lo como intérprete de um período determinante da história socioeconômica nacional e como símbolo de uma geração esclarecida de intelectuais, reunida na Escola Politécnica nos anos de 1870, que se indou com o Império. Na leitura desses textos, percebe-se que o mundo capitalista em expansão e em mudança daquele momento histórico em particular foi outro elemento não Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 595 doutrinário que inluenciou sobremaneira as convicções de Rebouças. Ele observou in loco as engrenagens da vida econômica e social na Europa e nos Estados Unidos, pôde compará-las, estudá-las e refutá-las, mas não as confundiu com a realidade brasileira a ponto de desejar transplantá-las. Seu intuito básico era desvelar o novo sentido da vida econômica ao alcance do homem concreto, tal como ele estava historicamente dado, num mundo capitalista em transformação. Era o ritmo do tempo, o ritmo das transformações que se sucediam o que lhe interessava mais de perto. Consequentemente, em quase todos os relatos que se teve acesso sobre as viagens feitas por Rebouças, encontrou-se uma visão aguçada e sensível para a questão social ou para a condição do trabalhador, seja no campo e na cidade, na lavoura e na indústria. Este é mais um elemento que ajuda a situar seu pensamento. Há uma série de observações do intérprete sobre a distinção entre a vida operária ou camponesa na Europa e nos Estados Unidos, referindo-se com frequência a “todo esse conjunto de pobreza e abatimento que tornam bem dolorosa a visita de uma fábrica europeia!” (Rebouças apud Trindade, 2011, p. 167). Outra passagem, no Diário e notas autobiográicas de 13/1/1873, quando Rebouças (1938) relata sua visita a dois portos de uma cidade italiana, airma que “estas duas repartições, o estado de porcaria da cidade, as roupas penduradas pelas janelas, as ruas mal calçadas e quase sempre em lajedos, os oratórios em quase todas as esquinas, demonstram o grau de abatimento em que se achava Roma”. Vê-se nessa e em outras passagens de seu Diário... (Rebouças, 1938) que aqueles lugares alimentavam as relexões de Rebouças sobre a natureza e a viabilidade de um programa de reformas socioeconômicas especíicas que pudessem responder às necessidades brasileiras ou que transformassem o Brasil em algo que a própria experiência do mundo desenvolvido europeu não continha, como a vivacidade do mundo moderno que encontrou em Lowell e Boston (Massachusetts) em viagem aos Estados Unidos: “Que saudades deixou-me Lowell! Como é linda essa cidadezinha; quão diversa das cidades manufatureiras da velha Europa” (12/6/1873). Ou: “Em Boston vi um edifício, que deixa bem longe os disparates arquitetônicos de Glasgow: seu estilo é simultaneamente egípcio, dórico, coríntio” (12/6/1873). Uma paisagem física e humana peculiar, com tez própria, diferente da sombria Europa. Foram, portanto, seu senso de observação, sua formação e seus conhecimentos empíricos que lhe permitiram pensar reformas socioeconômicas apropriadas para o Brasil da segunda metade do século XIX. Em que pese sua sensibilidade de observador de campo, a chave para entender o pensamento de Rebouças estava em outro lugar também peculiar: a cidade do Rio de Janeiro no im do século XIX. O Rio de Janeiro contava com quase 275 mil habitantes em 1872, conforme o censo realizado à época. A Escola Politécnica mais o Clube de Engenharia, este último fundado em dezembro de 1880, tornavam 596 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil aquela cidade um ambiente fértil para Rebouças desenvolver suas convicções. Os engenheiros eram, naqueles tempos, uma elite cientíica voltada para a vida pública e, como assevera Maia (2008, p. 95), “o sentido principal da ação desses personagens estaria na busca de uma sociabilidade civilizada, própria a uma nação desejosa de integrar-se ao ritmo do tempo”. A cidade passara a ser o espaço de atuação por excelência dos engenheiros, que nela agiam como reformadores a serviço do Estado e em detrimento dos inúmeros interesses imediatos e difusos ligados a diferentes frações do capital (comércio, construção civil, transporte e especulação imobiliária). Para que esses interesses particulares não se impusessem, exigia-se uma ação ordenada do Estado na produção do espaço urbano e territorial moderno. Os engenheiros tornaram-se portadores (e porta-vozes) desse ordenamento modernizador ou reformador da sociedade. Eles representavam uma “intelligentsia animada por uma vocação iluminista de intervenção na vida pública” (Maia, 2008, p. 94-95). Havia, portanto, um contexto social e cientíico profícuo no qual Rebouças estava totalmente engajado. Surge desse último aspecto um elemento decisivo. Para essa geração de engenheiros, a capacidade interventora do Estado era clara e predominava sobre as demandas do mercado e as “patologias do moderno”, especialmente aquelas muito identiicadas com as mazelas sociais da industrialização europeia, que requeriam alguma reação da ciência positivista da época. Mais que qualquer inluência de doutrinas liberais, era o domínio de um mundo capitalista e de um Brasil urbano em mudança que animava Rebouças, enquanto o Brasil rural o desanimava profundamente. O pensamento social deste intelectual forjou-se, assim, no contato com o ambiente cientíico da Escola Politécnica, somado a um grupo cuja formação foi ampla o suiciente para capacitá-los a atuar na vida pública. Segundo Maia (2008, p. 101): A Escola Politécnica, criada pelo decreto no 5.600 de 25 de abril de 1874, caracterizava-se, desde a fundação, pela ênfase na formação científica, e não na qualificação de proissionais especializados. Único centro superior do país dedicado à formação de engenheiros até 1894, a Escola notabilizou-se por produzir certo peril de homens públicos, que combinavam atuação na burocracia estatal e participação em grandes negócios e companhias (grifo nosso). Ainda de acordo com Maia (2008, p. 98), “o trabalho de Maria Alice de Carvalho mostra que o destino de uma vocação ianque na engenharia brasileira estaria fadado a se frustrar, dada a sólida coniguração do arranjo burocrático saquarema”,7 fazendo com que, a partir da primeira década de 1900, aquela geração de 1870 7. Saquarema ou Conservador e Luzia ou Liberal eram grupos políticos importantes durante o Segundo Reinado (1840-1889) no Brasil. O grupo Saquarema tinha como um dos seus líderes o Visconde de Itaboraí, sendo o nome do grupo uma referência direta à fazenda onde seus membros se reuniam. Já o grupo Luzia fazia alusão ao povoado de Santa Luzia, em Minas Gerais, que foi palco da revolta liberal derrotada pelos conservadores em 1842. O pacto que conciliou os grupos conservadores e liberais foi marcado pelo predomínio da política centralizadora dos primeiros e pela crise que os opôs e precipitou o im do Império. Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 597 perdesse espaço, deixando os engenheiros restritos a tarefas rotineiras ligadas à iscalização e à gestão de obras civis de infraestrutura (Gomes apud Maia, 2008, p. 98). A participação ativa dos engenheiros na vida nacional só seria retomada com vigor novamente nos anos de 1930. No caso de Rebouças, a sua formação e atuação na Escola Politécnica explicam, por im, o seu desempenho na vida política nacional, independentemente de ter sido construtor de obras públicas e amigo da família real. Ao contrário do que imaginam os leitores que têm o primeiro contato com a obra deste intérprete, nenhum desses vínculos era contraditório com sua maneira de pensar e atuar politicamente em prol da causa abolicionista, haja vista que a esta causa ele não se dedicou de modo clandestino. A inserção de Rebouças nos altos círculos intelectuais e políticos da cidade do Rio de Janeiro explica a sua liberdade de pensamento e participação ativa como um negro que, sem nunca ter sido escravo, os inluenciou e projetou a si mesmo numa intensa vida além-muros. O seu suicídio em 1898 marcou o im prematuro do membro de uma geração que pensou o sentido amplo da emancipação social brasileira, como se discutirá em sequência. 3 O SENTIDO DA EMANCIPAÇÃO SOCIAL: UMA INTERPRETAÇÃO A preocupação com o propósito da emancipação social no inal do século XIX fez com que André Rebouças se tornasse, de certa forma, prisioneiro do legado das lutas abolicionistas dos anos de 1880, momento de maior circulação de suas ideias. A maior parte dos estudos que abordam a pessoa e a obra deste pensador revela-o como alguém preso ao “espelho partido por sua imagem”,8 ou seja, como alguém que é olhado apenas pelo contexto da Abolição. A natureza dos seus ideais, porém, visava à construção da nação, seguindo a tradição de muitos dos pensadores sociais brasileiros, posteriores a 1930 – entre os quais, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Este é o primeiro problema com o qual se defronta nesta seção, qual seja: situá-lo nessa tradição requer que se perceba o sentido emancipador amplo de seu projeto. No caso de se considerar a vida e a obra de Rebouças somente em função do contexto da Abolição, seu maior destaque será o de compor, com uma série de lideranças e intelectuais da época, uma lista de célebres abolicionistas. Acontece que, para os propósitos da Abolição, muitos desses intelectuais e líderes foram em boa medida mais importantes que Rebouças naquele momento histórico.9 Os abolicionistas destacaram-se pela coragem, argúcia e desenvoltura no parlamento e na imprensa, nos vários movimentos de rebelião dos escravos nas senzalas, inclusive, 8. A frase original é de Joaquim Nabuco, referindo-se a Rebouças: “Quem sabe se não foi a imagem que partiu o espelho!” 9. São abolicionistas com reconhecida liderança: Luiz Gama, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Antônio Bento, José do Patrocínio, Joaquim Serra, Wenceslau Guimarães, entre outros. 598 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil na promoção de fugas, muitas das quais motivadas pelas próprias organizações abolicionistas. Apesar de sua importante atuação nesse período, Rebouças foi mais demandado pelo movimento abolicionista que seu demandante, exclusivamente. O processo de Abolição rapidamente se materializou na sociedade e produziu duas leis fundamentais na sua direção, a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885). A liberdade do nascituro e a garantia da liberdade na velhice ao negro com mais de 65 anos permitiram, pela primeira vez, conceber um horizonte de vida fora do cativeiro e um limite etário aos cativos de então. Todavia, a questão que Rebouças tinha em mente era de natureza mais ampla, ou seja: inda a escravidão, como se formará “a grande nacionalidade brasileira” com o monopólio da terra ainda intacto? Esta questão altera a percepção de que Rebouças foi apenas um defensor do abolicionismo para vê-lo como um intérprete pós-abolicionista. Há na sua obra, portanto, um entendimento sobre o sentido da emancipação que se materializaria somente com a eliminação do monopólio da terra até então mantido pelas classes proprietárias, a expensas do clamor da população por liberdade, trabalho e direitos. Diferentemente de alguns autores e na linha de raciocínio seguida por Beiguelman (2005), entende-se que o problema da extinção da escravidão segue níveis de análise distintos nos países centrais e nos periféricos. Nos centrais, de acordo com a hipótese da autora, o tráico deixa de ser fator de acumulação devido ao aprofundamento da Revolução Industrial e sua difusão. Diversamente, os países periféricos experimentam uma expansão da economia do açúcar no mesmo período, como no caso cubano (além das colônias inglesas e holandesas). No Brasil, a economia do açúcar passa a cumprir um papel marginal na acumulação, e a economia cafeeira, a ocupar o lugar central, levando à emergência de uma economia de mercado interno. Na periferia, segundo a autora, opera-se “uma distinção preliminar básica entre as áreas egressas do escravismo negro e as demais” (Beiguelman, 2005). As três demarcações temporais com as quais a autora trabalha para estabelecer, ao longo do século XIX, o encaminhamento da questão da passagem da economia escravista para uma economia de mercado interno são: a extinção do tráico entre 1831 e 1850, a libertação dos nascituros em 1871 e a Abolição propriamente dita em 1888. Pode-se perceber na leitura do texto o acento que a autora dá ao imigrantismo como um elemento emancipador chave para o entendimento dessa passagem, o que daria início à “transição urbana” do começo do século XX. Para este estudo, baseado nas ideias de Rebouças, o sentido da emancipação é mais amplo que o processo abolicionista e o imigrantista do inal do século XIX, ambos considerados por Beiguelman como funcionais à emergência de uma economia de mercado interno. Ainda, é preciso que a Abolição e o imigrantismo sejam compreendidos como parte constitutiva daquele sentido. Beiguelman (2005, p. 12) Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 599 salienta que o fulcro desse processo de transição está na “presença de um trabalho que conjuga ao braço a capacidade de consumo”, ativando a economia urbana. Neste texto, entretanto, o elemento emancipador é mais estruturante que funcional na análise de Rebouças e está condicionado à necessidade de ruptura com o status quo agrário, para que a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre leve em conta a inclusão social do negro liberto e do imigrante estrangeiro – inalmente, do homem livre – no processo de integração econômico-territorial do país. Segundo Carvalho (1998, p. 221), pode-se dizer que progressivamente as preocupações de Rebouças evoluíram de um diagnóstico referido aos malefícios sociais produzidos pela escravidão na direção da caracterização dos impasses à construção da autonomia do homem comum, em um contexto de monopólio da terra. Sua perspectiva seria dominada, doravante, pelo tema da emancipação social. A abolição requerida era outra, a do monopólio territorial. Esta era a verdadeira emancipação, a mãe de todas as abolições, na visão de Rebouças. O sentido da emancipação se confundia, para ele, com a construção da nação, pois tinha como condição necessária a ruptura com as relações de propriedade que sustentaram por séculos o escravismo e aviltavam o trabalho do imigrante, “escravizando-o” também à terra, logo que os incentivos ao imigrantismo passaram a vigorar antes e após a Abolição de 1888. O processo abolicionista em si mesmo, nesta perspectiva, não representou de fato um obstáculo para que o monopólio territorial se fortalecesse com o advento da República. Era o monopólio da terra, sua condição jurídica, moral e material, que impedia a verdadeira emancipação da sociedade, segundo sua visão. A clareza com que Rebouças constrói uma análise sobre a superação do monopólio territorial fez com que se considerasse a hipótese de que o processo de emancipação social, defendido por ele, redeine a importância analítica de sua obra para responder a condicionantes estruturais do período de transição do trabalho escravo para o livre. Isto é, a interpretação segundo a qual a transição rumo a uma economia de mercado interno e a uma economia urbana relete apenas os aspectos funcionais relativos à “troca do braço negro pelo do imigrante” é muito restritiva e estranha ao caráter emancipador amplo que veio se forjando ao longo de boa parte do século XIX, tal como se depreendeu a partir dos autores estudados e dos escritos de Rebouças. Os impactos socioeconômicos sobre a ordem colonial das transformações provocadas pela força dos ventos da Revolução Industrial alimentaram os movimentos por emancipação na América colonizada e escravocrata. O boom econômico no inal do século XVIII no Brasil se deu por duas razões principais: a transição para a industrialização nos países centrais e a alta internacional no preço do açúcar. Conforme salienta Grinberg (2002), a esses dois fatores juntaram-se as 600 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil revoltas americanas da década de 1790, especialmente a dos escravos na colônia francesa de São Domingos (hoje, Haiti), que, além de deixar as elites coloniais temerosas de levantes generalizados contra a ordem colonial, abriu o mercado internacional do açúcar para a Capitania Geral da Bahia e o Norte Fluminense. A abertura do mercado externo para os produtos brasileiros resultou no aumento do número de engenhos, no incentivo à comercialização de outros produtos10 que não o açúcar, como algodão, aguardente e tabaco, o que levou a um considerável crescimento da importação de escravos. Este processo funcionou como fator de pressão econômico-territorial e teve efeitos relevantes no que se refere ao rompimento da ordem colonial. No Brasil, apesar do breve período de prosperidade econômica para as zonas açucareiras, houve crescente instabilidade social devido ao desabastecimento dos mercados urbanos provinciais e ao aumento do custo de vida da população. Crescia o temor das classes proprietárias sobre uma possível aliança entre os escravos, os libertos e os comerciantes. É nesse contexto que ocorre a Revolta dos Alfaiates nas cidades do recôncavo baiano e dá-se início à longa marcha para a emancipação social, advinda de uma grande reação popular na província contra o governo de Dom Fernando José de Portugal e Castro, reivindicando a independência, o im da escravidão, o direito de propriedade, a igualdade perante a lei, o im da discriminação racial, a abertura de fábricas, manufaturas, minas e a revisão da relação entre o Estado e a igreja (Grinberg, 2002, p. 48). No outro extremo desse processo de contestação social da ordem colonial estavam os movimentos de independência da primeira metade do século XIX e o abolicionista, da segunda. O pai de Rebouças, Antônio Pereira Rebouças, foi participante ativo do processo de independência nacional, muito atuante na Independência da Província da Bahia em 1823 e se opondo às revoltas populares ocorridas no recôncavo baiano, como a Sabinada (1837-1838). No ritmo das lutas por emancipação, as revoltas da primeira metade do século XIX confrontaram o governo regencial e invocaram o federalismo republicano.11 O conselheiro Rebouças, como era conhecido na Corte, teve importante atuação na garantia da ordem institucional do Império e ajudou a sufocar o movimento que chegou a “fundar” a República Bahianense e a nomear ministros. A saída da família Rebouças da cidade de Cachoeira, na Bahia, para morar na cidade do Rio de Janeiro em 1942 teve a ver com esses acontecimentos. Entretanto, o conselheiro agiu também a favor da emancipação ao propor, como legislador, a ampliação dos direitos civis aos alforriados e libertos. A atuação 10. Furtado (2007, p. 141) salienta a prosperidade precária desse período em que o Brasil se torna uma nação independente, mas com enormes diiculdades em manter sua posição nos mercados de produtos que tradicionalmente exportava. 11. Nesse mesmo período acontecia a Revolta dos Farrapos, entre 1835 e 1845. Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 601 do conselheiro como parlamentar foi importante ao enfatizar “a necessidade de não se levar em conta a ascendência africana ou a origem escrava na hora de se escolher as pessoas que iriam ocupar cargos importantes na nação” (Mattos e Grinberg, 2000, p. 46). Lutou intransigentemente pela queda das leis do antigo regime, que privilegiavam a origem ou descendência portuguesa, embora não advogasse contra as relações de propriedade baseadas no trabalho escravo. O essencial nesse debate era a garantia da igualdade civil a todos os cidadãos livres, sem distinção de origem. No inal das contas, a Abolição de 1888 não garantiu isso, ou seja, a possibilidade de ascensão social da população livre, liberta ou descendentes de ex-escravos. André Rebouças aprofunda o entendimento do problema. Tratava-se para ele da realização da justiça e da equidade social de forma abrangente na organização social e econômica brasileira, ou seja, contra “todo o mecanismo em que funcionava o poderoso elemento da propriedade rural” (Carvalho, 1998, p. 206). Nesse sentido, o argumento central deste texto é de que o controle do processo de emancipação perpetrado pelas elites proprietárias nacionais – interpretado normalmente como elemento funcional da transição – sofreu contestação intensa ao longo do século XIX. A luta contra a preservação dos interesses econômicos e políticos das elites nacionais gerou um potencial de emancipação social (força centrípeta) ainda inédito naquela sociedade, incluindo desde as revoltas populares propriamente ditas, passando pelas necessidades de mudança no status quo escravista, extensão dos direitos civis, proibição do tráico, libertação dos nascituros e dos sexagenários, até o próprio movimento abolicionista e a extinção da escravidão. Um potencial de emancipação que acabou derrotado por outro movimento de força contrária, o das elites (força centrífuga) e seu programa imigrantista, que levou ao fortalecimento das oligarquias regionais com a queda do poder imperial e a dispersão política e social das forças libertárias. Essas forças antagônicas projetavam sociedades bem diferentes do ponto de vista do interesse nacional e, no embate entre ambas, salienta-se a defesa por parte de Rebouças de um programa reformista que considerasse o potencial emancipatório da sociedade brasileira. Nesta perspectiva, o avanço da emancipação sustentaria e, ao mesmo tempo, seria fruto de um programa de reformas sociais, políticas, econômicas e infraestruturais, a im de alterar os rumos de uma sociedade “escrava” do monopólio da terra, comandado pelas classes proprietárias nacionais, e de permitir, por meio da integração territorial, a criação de novas bases para o desenvolvimento da nação. Haveria de “libertar a terra” como uma condição sine qua non para corrigir rumos e realizar a integração econômico-territorial efetiva daquela sociedade de ins do século XIX. Segundo Carvalho (1998, p. 220), o que tornava Rebouças um elo tão evidente entre os abolicionistas e os imigrantistas era o fato de que seu conceito de escravidão dissociara-se, progressivamente, do fenômeno, tal como ele se apresentava no cenário brasileiro, estendendo-se a todas 602 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil as formas de negação da “democracia rural”, isto é, da possibilidade de controle da terra por parte de quem nela produzia. Nesse sentido, abolicionismo e imigrantismo seriam polos opostos, mas não antagônicos, até porque estes se mesclaram visivelmente ao rearranjo do poder que se processou dentro da armação republicana do inal do século XIX. Desse modo, restabeleceu-se o controle da transição nas mãos das classes proprietárias – e desde logo em prol dos interesses estritos da oligarquia cafeeira – e inaugurou-se uma nova ordem político-institucional da Primeira República (1889-1930). O poder estatal foi descentralizado, o pacto oligarca fortalecido e o governo central passou a primar pela defesa da ordem econômica liberal-conservadora. Rebouças, nesse novo contexto, dedicou-se também a criticar a forma como se deu a imigração. O problema, segundo ele, foi que o imigrante icou “sujeito ao draconiano contrato de locação de serviços” (Rebouças apud Carvalho, 1998, p. 221). O poder centralizador da classe proprietária de terras tornou-se crescente dentro da solução imigrantista adotada e a República estimulou tal paroxismo em vez de resolvê-lo. Rebouças dava, assim, um caráter de consciência de classe à questão da Abolição e da Imigração ao airmar que sem libertar a terra, não se libertará o homem. Ele falava contra a “reescravização” do homem à terra pelo capital agrário. Foi nesse sentido que se tornou um pós-abolicionista. A avaliação que fez da troca do braço escravo pelo braço imigrante expressava uma compreensão radical sobre a força exploradora e atávica da classe proprietária que atrasava a modernidade. Como assevera Carvalho (1998, p. 220), “para Rebouças, a independência dos imigrantes jamais poderia ser dissociada da propriedade da terra, pois, na condição de ‘colonos’ estariam expostos à heteronomia em que se encontravam os pobres nacionais (...)”. Numa frase: “o limite à expansão do mercado interno era agrário” (op. cit., p. 213). Eis o elemento estrutural – e que não pode ser reduzido a funcional – subjacente ao processo de emancipação social. O fato de pretender a destituição do poder das oligarquias e defender a centralização do poder estatal e a massiicação do campo com a pequena propriedade tornava-o um crítico pragmático do liberalismo, pois não fazia sentido defender a liberdade de comércio a expensas do bem-estar de toda uma nação. Por causa de sua radicalidade, Joaquim Nabuco chegou a reclamar de sua simpatia ao comunismo. Mas, ao contrário do que Nabuco via, talvez as convicções de Rebouças tenham partido a imagem espelhada de um país por uma classe proprietária opulenta e conservadora, o que lhe custou o exílio e o desaparecimento prematuro. A sua defesa intransigente nos anos de 1880 e 1890 da iniciativa monárquica para combater a “aristocracia territorial” foi um dos pontos altos de sua vida política. O sentido que lhe emprestava, entretanto, era pragmático: “era mais fácil democratizar um Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 603 rei ou uma rainha do que uma assembleia de opulentos proprietários” (Rebouças apud Carvalho, 1998, p. 205). Deve-se reiterar que a trajetória de André Rebouças é prenhe do contexto social e político do século XIX e não se limita a um de seus capítulos decisivos, a Abolição. Sua visão de que a realidade nacional ensejava um potencial imenso de mudança social – diferentemente de Joaquim Nabuco, que a temia – é considerada aqui como um elemento de distinção entre ambos. Segundo Alonso (2002, p. 338), “Nabuco não viu, recusou-se sistematicamente a ver, o vínculo entre escravidão e monarquia”. E Mello (2010, p. 508) airma que “a monarquia é para ele o mesmo que o sistema representativo (...)”. Para Rebouças, não. Porém, Nabuco e Rebouças se reencontrariam na ideia de um Estado Nacional forte.12 Rebouças defendia uma monarquia renovada – nas suas palavras uma “monarquia popular e democrática” – que ampliasse o sistema representativo às classes subalternas. Daí sua luta contra a classe proprietária, que dominava o parlamento e que só seria contrariada por uma solução racional do problema do monopólio territorial; solução esta que só poderia ser conduzida adequadamente por um poder centralizado e atento às grandes questões nacionais. Para ele, a tomada de decisão pela abolição do escravismo e, simultaneamente, o favorecimento da imigração via subvenção estatal não alterariam as relações de propriedade que obstaculizavam o desenvolvimento da nação. 4 REBOUÇAS E O SENTIDO DA TRANSFORMAÇÃO DAS ESTRUTURAS A concepção da reforma social do desenvolvimento em Rebouças é simplesmente a aplicação de um programa de reformas que começa com a Abolição, devendo prosseguir com a inclusão socioeconômica do negro liberto e do imigrante nacional e estrangeiro e com a reorganização produtiva do espaço nacional, no intuito de aprofundar o processo de emancipação. Nascem assim suas propostas relativas à execução de um programa de reformas pelo Estado Nacional, muitas das quais se expõem no quadro 1. 12. Rebouças cita a entrada em vigor da Lei Áurea de 1888 como ato de um monarca esclarecido em benefício da nação, daí sua defesa pragmática da monarquia (Carvalho, 1998). Para uma discussão aprofundada da posição de Nabuco e sua agenda política, que defendia “a reforma social, a democracia política, a cidadania, o desenvolvimento da nação”, ver Nogueira (2010). Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 604 QUADRO 1 Agenda de reformas de Rebouças: síntese Infraestrutura econômica 1. Construção de portos e estradas (inclusive, estradas interoceânicas) em escala ampla para viabilizar “corredores de exportação”. 2. Defesa da reforma agrária como solução capitalista e antilatifundiária. 3. Proposta de plantio consorciado de “árvores de lei com grama de prado” para transformar terras cansadas em instrumento de investimento econômico. 4. Proposta de aproveitamento do capital natural como estoque estratégico, a im de valorizar o uso futuro da madeira e a possibilidade de trabalho pastoril. 5. Projeto propondo “ferrovias de penetração” para dar suporte à formação de complexos agroindustriais (fazendas ou fábricas centrais). 6. Criação de “bancos territoriais”, que captariam recursos de terceiros emitindo debêntures colocadas no mercado inanceiro. Infraestrutura social 1. Proposta de saneamento para a Baixada Fluminense como projeto urbanístico, transformando-a numa “Nova Amsterdam”. 2. Criação de um programa habitacional humanizado para a população de baixa renda. 3. Substituição do latifúndio pela pequena propriedade rural. 4. Projeto de criação de uma companhia de águas para gerir o novo sistema de abastecimento de água na cidade do Rio de Janeiro. 5. Criação de uma malha ferroviária densa no Nordeste, para lidar com o êxodo e a remessa de recursos aos flagelados, a fim de combater os efeitos da seca. Infraestrutura ambiental 1. Uso do reflorestamento como instrumento de recomposição ambiental. 2. Criação de parques nacionais integrados a uma política de desenvolvimento regional, para a preservação integral de “alguns tesouros da natureza” e como “um benefício palpável para as sociedades locais”. 3. Preocupação com o saneamento das baías de Guanabara e Sepetiba no Rio de Janeiro, para evitar agravamento de problemas ambientais. Infraestrutura urbana 1. Projeto de higiene pública para tornar a cidade mais habitável, limpa e confortável para seus habitantes (concepção sanitarista, mas não higienista). 2. Realização de ensaios para obras urbanas de pavimentação com cimento utilizando impermeabilizantes e madeiras. 3. Ampla visão do emprego da madeira para o futuro das obras no país (pontes etc.). Fonte: Santos (1985), Jucá (2001) e Pádua (2002). Elaboração do autor. O quadro revela o conjunto de propostas de Rebouças na intenção de dar suporte material às transformações que ele julgava já estarem em curso. Nesse sentido, a Abolição imediata e sem indenização em 1888 fora “o primeiro passo para um programa de reformas”, sendo conferido ao Estado um papel ativo nessa direção. Rebouças via na Abolição o início de um processo de mudança coroado pelo Estado e fruto das lutas concretas por emancipação ao longo de todo o século XIX. Sua divergência com abolicionistas como Joaquim Nabuco, por exemplo, não estava na luta pelo im da escravidão em si e nem no papel que o Estado13 deveria ter, mas dizia respeito às reformas necessárias para o rompimento com o passado escravagista e servil. Algo que só faria sentido com o im do monopólio da terra, e esta não era uma causa isolada da luta pelo im da escravidão. 13. Rebouças fez fortes críticas ao Estado excessivamente burocrático e centralizador, fazendo coro com Nabuco sobre o “Estado agigantado artificialmente” pelas estruturas sociais que sustentavam a escravidão. Nem por isso deixam de considerá-lo imprescindível para a ação reformadora. Ver Nogueira (2010). Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 605 O fato de Rebouças conferir ao regime monárquico de um Império em crise essa enorme missão pode parecer paradoxal, mas, na verdade, era um reconhecimento de que cabia ao Estado ser o principal agente reformador, acima dos interesses particularistas e patrimonialistas das classes proprietárias. Implicitamente, este desiderato, porém, estaria na dependência do real poder das forças sociais de emancipação. Ou seja, o papel do Estado permitiria ampliar a escala da ação reformadora, desde que rompesse politicamente com o poder dos proprietários, dando impulso ainda maior à emancipação social. O argumento, portanto, dirige-se ao entendimento do sistema de dominação em relação ao qual a inluência estatal é decisiva. Para Rebouças, nas palavras de Carvalho (1998, p. 206), “a escravidão dos negros era apenas a ponta mais visível de um sistema de dominação ‘feudal e bárbaro’ que impedia o Brasil de conhecer ‘os novos princípios de liberdade, de igualdade e fraternidade’”. Entender esse sistema de dominação vigente no Brasil do século XIX era mais importante que qualquer suposição acerca do feudalismo brasileiro, uma questão sem maior fundamento dentro do horizonte reformista de Rebouças. Contudo, a análise do que se poderia chamar economia política da transição, ou a passagem de uma economia colonial em bases estruturais atrasadas para uma economia nacional em bases estruturais modernas e socialmente civilizadas, dependia naquele momento de quais estruturas seriam postas em movimento, o que naturalmente requer que se deina a problemática fundamental brasileira do último quarto do século XIX. Para André Rebouças, ela estava deinida pela necessidade de superação do monopólio territorial. Este era um obstáculo estrutural à acumulação de capital e à igualdade de oportunidades num momento-chave, em que a transição para o trabalho livre poderia ter representado um avanço nas relações de propriedade, nas relações sociais e nas forças produtivas nacionais. Se o monopólio da terra era o nó principal a ser desatado, a consecução da abolição do trabalho escravo por si só não contestaria o pacto de dominação. Na interpretação de Rebouças, a Abolição não tratou simplesmente de libertar o homem para cativar a terra,14 a sua equação respondia ao ingrediente mais estrutural do problema. A Abolição tornou-se funcional ao cativeiro da terra, podendo-se manter o homem preso a ela de outro modo. Tratou-se, no pós-Abolição, de manter o homem cativo das relações de propriedade que concentraram terra e poder. Nas palavras dele: “Quem possui a terra possui o homem (...)”, frase que sintetiza a essência de sua interpretação original da exploração do trabalho. Mais que a Abolição imediata e sem indenização, portanto, era necessário destruir uma das principais obras da escravidão, a herança da estrutura fundiária. Este enorme fardo socioeconômico viria a perpetuar as estruturas sem movimento, as 14. Ver a ideia-síntese de Martins (2010) no livro O cativeiro da terra. 606 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil quais se caracterizavam pela marcante presença das rugosidades espaciais15 produzidas por séculos de escravismo e mantidas pelos compromissos repactuados durante a primeira era republicana, forjando a permanência histórica das desigualdades no Brasil. De acordo com Joselice Jucá e Maria Alice Rezende de Carvalho, a diferença fundamental entre Rebouças e seus contemporâneos abolicionistas liberais estava justamente na preocupação com o grau de materialidade das condições de desenvolvimento no Brasil pós-abolicionista. A concentração de poder na grande propriedade fundiária refrearia severamente qualquer programa de reforma social e econômica que visasse à democracia rural, ao incentivo à pequena propriedade e à redistribuição da terra. Passar à República, como ocorreu em 1889, sem materializar tais reformas, ajudou a fortalecer o “landlordismo” e suas relações de produção até então vigentes no espaço rural. Rebouças avança sua análise e vai referir-se ao problema da fronteira espacial pioneiramente, pois, ao redimensionar a questão da terra, ele não a trata apenas pelos limites físicos da propriedade rural, mas por meio de uma distinção fundamental entre um sistema de dominação “landlordista” e outro, a democracia rural. Um sistema que se materializa no espaço de maneira predatória, subordinado à lógica de expansão da fronteira com a reprodução da miséria, e outro que explora produtiva e racionalmente o território com a redistribuição de oportunidades. Em Silva (1996), sobre os efeitos da Lei de Terras de 1850, a autora argumenta que os contemporâneos de Rebouças não ignoravam o problema da fronteira agrária: [Homens como] Tavares Bastos não concebeu, como a maioria dos seus contemporâneos, a existência de terras livres (fronteira móvel) como um obstáculo a ser contornado, por diminuir a oferta de mão de obra para os fazendeiros. Concebeu-a como uma oportunidade excepcional de forjar numa base rica de recursos naturais uma sociedade com oportunidades individuais amplas no seu país (op. cit., p. 167). Tavares Bastos foi um dos que advogaram a distribuição de terras gratuitamente ao imigrante. Rebouças, entretanto, antepôs ao caráter distributivo o redistributivo, defendendo o “cancelamento” do latifúndio, a adoção de um imposto territorial progressivo e reformas sociais, econômicas e inanceiras, já que o problema do Brasil não era a falta de braços. O problema estava na apropriação dos fundos territoriais pelo “landlordista”. Na sua brilhante interpretação, “a grande solução para o campo seria que o governo proporcionasse as condições para que as terras fossem aproveitadas pelos ‘braços que não têm capitais, ou que os têm em diminuta 15. No sentido que Santos (1980, p. 138) atribui de construção e destruição de formas e funções sociais dos lugares, pois, segundo ele, “as rugosidades nos oferecem, mesmo sem tradução imediata, restos de uma divisão de trabalho internacional, manifestada localmente por combinações particulares do capital, das técnicas e do trabalho utilizados”. Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 607 escala’” (Silva, 1996, p. 222). Por isso, a província de São Paulo foi considerada por Rebouças como um caso à parte, por ser a mais bem preparada no período pós-abolicionista para encaminhar uma solução para a questão territorial. Apesar de considerar São Paulo o “castelo forte do hediondo esclavagismo”, distinguia sua infraestrutura avançada das demais províncias, como que reconhecendo a gênese de uma dinâmica capitalista regional, em alguma medida semelhante à consagrada na obra Raízes da concentração industrial em São Paulo (Cano, 1998). Rebouças considerava que São Paulo dispunha de uma série de condições propícias à transformação das forças produtivas: (...) a rede de estradas de ferro está completa em seus grandes troncos; umas já chegaram aos conluentes navegáveis do rio Grande ou do Paraná; outras já penetraram nas províncias limítrofes de Goiás e de Minas Gerais. O planalto de São Paulo possui o mais ameno clima do mundo; a capital da província já é servida por lombardos e por italianos de todas as procedências. (...) A província de São Paulo é a mais conhecida na Europa; no dia, em que se anunciasse no Times, que o território ubérrimo dessa riquíssima província estava livre, nesse dia tomariam vapor para o porto de Santos milhares e milhares de emigrantes. Não há negar; quem repele o emigrante é o fazendeiro; é o senhor de baraço e cutelo; é o déspota de chicote, de vergalhão e de azorrague; é o usurpador dos lotes dos colonos; o incendiário de suas choupanas; o sultão insaciável prostituindo mulheres casadas, viúvas e órfãs (...). (...) No dia seguinte ao da abolição, aconteceria ao planalto de São Paulo o mesmo que ao vale do Mississipi, depois da guerra de emancipação nos Estados Unidos. A produção em café cresceria, como lá cresceu a do algodão – a terra roxa e o massapé, lavrados por homens livres, produziriam dez vezes mais do que regadas pelas lágrimas e pelo suor de míseros escravos (Rebouças apud Trindade, 2011, p. 234-235). Como se pode constatar nessa citação, havia uma clara visão da questão territorial, para além dos argumentos a respeito do “princípio de centralização agrícola”, um tema muito explorado na maioria dos estudos sobre Rebouças. A proposta da centralização agrícola, entretanto, não teve maior consequência, visto que as condições gerais para a sua adoção, tendo a regionalização da “democracia rural” como seu pressuposto, não foram atendidas. O que vale destacar é a tentativa de Rebouças, por meio da centralização, de reorganizar produtiva e economicamente o território, criando o gérmen daquilo que mais tarde icou conhecido como complexos agroindustriais. Além disso, a ideia de constituir “engenhos centrais”, “fazendas centrais” e “fábricas centrais” tinha o objetivo de promover o avanço das forças produtivas nacionais ligadas à terra, mediante divisão social e territorial do trabalho e viabilização de um conjunto de progressos técnicos e socioeconômicos, via “associação dos pequenos capitais”. 608 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Com isso, quebrar-se-ia a espinha dorsal do sistema de dominação vigente, por meio da subdivisão da grande propriedade territorial, a im de transitar para uma economia capitalista em bases nacionais. Algo que a expansão cafeeira de São Paulo prenunciava para ele. O fundamental nessa argumentação é a análise que faz das relações de trabalho. Nela, encontra-se o núcleo interpretativo mais original da sua proposta reformista. Ainal, para ele, ao lado da questão do monopólio da terra, haveria necessidade de pôr em prática um programa de imigração diferente do que foi adotado. Ele se opunha a utilizar o imigrante como “braço colono” da grande lavoura, pois considerava que ele deveria ser contratado ou vir voluntariamente, não importando a origem, se estrangeiro ou nacional ou, desde logo, vir ao Brasil como “imigrante proprietário” de uma porção de terra. Trindade (2011, p. 214) reforça esse aspecto: Um argumento nada devedor a um programa que previa a “emancipação dos escravos pela livre vontade dos seus possuidores em empregá-los como colonos e assalariados nos trabalhos rurais” (Rebouças, 1875-R., grifo nosso) e, mediante os Engenhos e Fazendas Centrais, satisfazer à modernização da agricultura, adotando desde o “arado no amanho das terras” à abolição do “sistema de cultura extensiva a ferro e fogo com derrubada e queimada, abandon[ando], enim,(...)toda a rotina, que é mais fatal à lavoura do que a toda decantada falta de braços e de capital (op. cit., grifo do autor)”. Embora Rebouças salientasse que, em tese, o propósito da emancipação estaria ao alcance da livre-iniciativa dos possuidores de escravos, ele vai argumentar, contrariamente a Tavares Bastos, americanista, defensor da imigração como solução para a falta de braços na lavoura, que a substituição do braço escravo pelo do imigrante era um falso problema. Resumindo: se, de um lado, o escravo havia sido substituído pelo imigrante, de outro, o ex-escravo fora abandonado à própria sorte; se, de um lado, o imigrante seria absorvido em condições vantajosas dentro do sistema de dominação, de outro, o foi numa condição inferiorizada, ou seja, com salário aviltado. Sem romper com o sistema de dominação, a solução da imigração subvencionada, que acabou prevalecendo, agravaria as condições de vida dos trabalhadores da lavoura, aumentando a marginalização social do negro e tornando miserável a dos imigrantes. Daí sua defesa do imigrante proprietário, como elemento avançado da relação social com a terra; do colono nacional proprietário, como elemento que sofrerá uma reeducação, pelo exemplo e pelo estímulo, na relação econômica com a terra; e do liberto-proprietário, como elemento resultante da abolição. Este último seria “o âmago da evolução natural do escravizado a servo da gleba, a colono, a parceiro e a proprietário territorial” (Rebouças apud Trindade, 2011, p. 244), alcançando a condição de produtor independente. Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 609 A proposta de Rebouças passava, como se nota, pelo combate à maneira pela qual o imigrante estrangeiro era incorporado ao sistema agrário “landlordista”. O estrangeiro, para o landlord, deveria ser conservado em estado semisservil, como servo de gleba, como meeiro, rendeiro, foreiro, agregado, assalariado com redução ao menor salário possível. O landlord nativista e monopolizador odeia o imigrante proprietário de um lote de terra, o qual certamente é elemento primordial, a célula genésica da Democracia Rural (André Rebouças para Alfredo Taunay, 12/6/1896) (Trindade, 2011, p. 250). Rebouças mostra, assim, como se dava o uso da força de trabalho no sistema de dominação territorial. Para ele, é esta relação de exploração que deve ser superada. Seu diagnóstico é de que “landlordismo” faz com que prospere um sistema de exploração social cujo resultado é a proliferação de formas de trabalho degradantes e subvalorizadas – de parceiros, meeiros, rendeiros, colonos, trabalhadores migrantes e locatários. Todos eles passariam a subsistir na grande propriedade (unidade monopolizadora), enquanto o Estado subsidiasse uma migração que se, por um lado, elevava substancialmente a renda dos proprietários, por outro, estimulava a marginalização e a miséria da massa proletária. No seu entender, essa situação também seria funcional à industrialização do país e poderia limitar os reais benefícios desta para a massa trabalhadora. Como assevera o ótimo texto de Trindade (2011, p. 247), “quem a seu ver promovia tal quadro desolador era a permanência da expropriação, metamorfoseada em proletarização”. A “metamorfose da expropriação” baseava-se tanto na proletarização do campo quanto na da indústria, dada a constituição desta em monopólios que elevavam o trabalho ao máximo possível e o salário ao mínimo; o trabalho tornava-se esgotante e atroiante e o salário era “tão imoral e tão iníquo como a nefanda escravidão (...)” (Rebouças apud Trindade, 2011, p. 246). A “aristocracia medieval” convertida em “plutocracia industrial” agravaria o problema da miséria. Ou seja, o sentido da transformação não estaria completo se a própria industrialização aviltasse a parte da renda derivada do trabalho. Nessa direção, a crítica de Rebouças à imigração subvencionada revela uma percepção aguçada do compromisso de classe que se forja no período pós-abolicionista, isto é, a condição econômica de explorado igualava escravo, liberto e imigrante. Ao mesmo tempo que o sistema de dominação em curso “nega” o status de classe ao negro liberto e o marginaliza, reconhece o do imigrante apenas parcialmente, como proletário, pois avilta seu salário, limita seu acesso à terra e segmenta sua inserção no espaço urbano. Por essa riqueza de nuanças, o programa de reformas de Rebouças não deve ser lido, todavia, como um conjunto de prescrições ordenadas e acabadas, nem como um conjunto coeso de análises, mas como uma reunião de princípios Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 610 norteadores da ação reformadora estatal, reforçada por sua convicta percepção de que a mudança estava em marcha naquela sociedade, de que os sinais eram claros em duas direções opostas. Há nessa percepção, apesar de certo grau de pragmatismo, um reconhecimento de que o ritmo da marcha tornava necessário o rompimento com o sistema de dominação landlordista, preservador da rotina e dos privilégios de classe. Esta foi a direção que defendeu. No im das contas, Rebouças pôde constatar, com o advento da República, que a possibilidade de superar esse sistema de dominação e substituí-lo por outro, que outorgasse direitos mais efetivos à população trabalhadora naquele momento de transição, fugira ao alcance dos libertos e imigrantes. Igualmente, na sua visão, a queda da Monarquia pode ter permitido a consolidação de uma ordem política e social tão conservadora quanto à do Império e isso, presume-se, impediu as reformas. O fato é que a adesão ao regime republicano acabou sendo a saída encontrada pelas elites nacionais para pôr im às contestações sociais que perduraram em boa parte do século XIX, ainda que em nenhum momento possam ter sido decisivas a ponto de limitar o poder das classes proprietárias. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao discutir a contribuição original de André Rebouças, a preocupação fundamental foi salientar a sua condição de intérprete dos problemas econômicos nacionais. Como se tentou demonstrar, este intérprete pensou a problemática da transição do trabalho escravo para o livre com base no sentido amplo da emancipação social que proclamou em seus escritos e no sentido especíico da transformação estrutural defendida no seu programa de reformas. Decifrar a natureza da exploração do trabalho, decorrente do monopólio territorial exercido pelas classes proprietárias rurais, segundo as várias formas que este trabalho assume no sistema de dominação de então, foi o ponto mais inovador de sua visão sobre a economia política brasileira. Discutiu-se como, na sua interpretação, o controle do processo de emancipação social pelas elites agrárias era mais estrutural que funcional àquele contexto de transição do inal do século XIX, o que o fez exigir reformas na direção da construção da nação. A transição nas relações sociais de produção, o que acabou de fato se dando, entretanto, mais “calciicou” que modiicou as relações de propriedade e conformou, via a reiteração do pacto oligarca, o processo de formação de uma economia nacional a bases econômicas, sociais e espaciais desiguais no período pós-Abolição. Tal dinâmica corroborou vários aspectos das raízes históricas de subdesenvolvimento do país, em particular, evitando que o potencial emancipador da sociedade se transmutasse em fator de mudança social. Rebouças tinha consciência de que seu programa de reformas havia sofrido uma derrota amarga com o advento da República de 1889 e a sua principal Reforma Social do Desenvolvimento: contribuições de André Rebouças (1838-1898) à interpretação das mudanças estruturais no Brasil 611 consequência foi o sufocamento do potencial popular emancipador no período pós-Abolição. Apesar do destino trágico, sua vida motivou-se por ideais que propugnaram desde cedo uma perspectiva de mudança estrutural alicerçada em reformas socioeconômicas dirigidas à construção da nação, tema central ao pensamento social brasileiro a partir dos anos 1930. Segundo essa tradição, teve-se um Império vencido, uma República inacabada, tentativas de construção da nação interrompidas, o que ocasionou uma nação inconclusa e um desenvolvimento de parco horizonte social. Rebouças deixou, portanto, um legado intelectual em prol da reforma social do desenvolvimento altamente construtivo em face das preocupações nacionais que orientaram a relação entre economia e sociedade no im do século XIX e continuaram a desaiá-la no século XX. REFERÊNCIAS ALONSO, A. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. BEIGUELMAN, P. A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2005. CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 4. ed. São Paulo: Editora UNICAMP, 1998. CARVALHO, M. A. R. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ-UCAM, 1998. FURTADO, C. Um projeto para o Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Saga, 1968. ______. 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(Série Abolição, n. 4). CAPÍTULO 23 REFORMAS SANITÁRIAS E CONTRARREFORMAS MÉDICAS: A NATUREZA DILEMÁTICA DE UM CAMPO EM CONSTRUÇÃO PERMANENTE – UMA LEITURA SOB A ÓTICA DA CONTRIBUIÇÃO DE SÉRGIO AROUCA AOS DILEMAS DA SAÚDE PÚBLICA Giovanni Gurgel Aciole1 1 INTRODUÇÃO A saúde, setor altamente complexo e ambíguo, está diretamente envolvida na segurança à vida individual e coletiva. Pode-se reconhecer no seu entorno a presença de diferentes vetores, quer vinculantes, quer conlitantes, pelos quais se desenrola a luta entre o interesse público e a iniciativa privada, que lhe é uma espécie de energia constitutiva. Há a tensão entre, de um lado, o indivíduo isolado e, do outro, os limites e os contornos do social e do coletivo, em que se sobrepõem diversos pares. Entre eles, cita-se o capital e o trabalho (Donnangelo, 1975; 1976; Fleury, 1994; 1997; Merhy, 1987; 1992; Schraiber, 1993), bem como o médico e o sanitário (Donnangelo, 1976; Mendes-Gonçalves, 1994). Por meio destes pares, pode-se compreender o denso arco dialético que vincula o ético-político e o técnico-social no borramento das fronteiras entre o público e o privado (Aciole, 2006). Sob este arco de tensões, a saúde, vista tanto como um campo de práticas quanto como um setor de produção e consumo de bens e serviços, constitui, por esta duplicidade mesma, um espaço real de ação e disputa de projetos de diferentes estratos sociais por eles gerados e/ou a eles dirigidos. Estes projetos são estruturados em termos de práticas sociais que operam saberes tecnológicos e práticos distintos (Mendes-Gonçalves, 1994), isto é, envolvem práticas médicas e práticas sanitárias. Tais práticas, construídas historicamente, recebem diferenciações importantes e signiicativas na valoração ideológica e semântica com que são compreendidas, por serem tanto práticas técnicas quanto sociais (Donnangelo, 1976). Também podem ser vistas como campos que permitem a constituição de modelos tecnoassistenciais de organização da produção de serviços (Merhy, 1992). Enquanto campo das práticas, a saúde cresceu imersa numa trama em que se vão constituindo práticas coletivas, preventivas, imediatamente identiicadas à 1. Professor do curso de medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). 614 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil saúde pública, isto é, estatal, e práticas individuais, curativas, automaticamente relacionadas com a clínica e, por extensão, com a esfera privada, conforme o resgate histórico trazido por Rosen (1994). Essa identiicação aprofundou o fosso entre uma e outra, e é decorrência de um processo societário maior, que esgarça os limites entre a esfera pública e a esfera privada. Neste processo se airma a supremacia do indivíduo sobre o coletivo, e as preocupações com o corpo assumem dimensões hedonistas e sensualistas que sustentam a produção de um conjunto de mercadorias, entre as quais, a mercadoria saúde. A medicina capturará estas características como quase exclusivamente suas, num fetichismo exemplar (Aciole, 2006). À luz dos interesses organizacionais e das representações ideológicas, esses campos de práticas terminam por receber vinculações culturais e sociais, expressão fenomênica pela qual se estabelece que os modelos assistenciais sejam reunidos em torno de dois grandes macroatores: o Estado e o mercado, dados como esferas do público ou do privado, respectivamente. Estas opções tendem a agrupar os atores sociais a partir da defesa do predomínio de uma sobre a outra: a supremacia do mercado ou a ação interventora do Estado. Em grande medida, essa dicotomia constrói um movimento pendular entre distintos modos – universais ou restritos – de organização da oferta de produtos, serviços e ações para contingentes populacionais, cujo tamanho variará em função da amplitude e das noções que ganhem o público e o privado. Disto decorre a amplitude dos acessos permitidos por estas mesmas noções. Os subsistemas de saúde, diferenciados em sua natureza política, são considerados suplementares ou complementares, em evidente vinculação econômica. Cada um deles vai produzindo no senso comum uma oscilante opinião pública, de base dicotômica, em favor do predomínio de um ou de outro modo de prestar assistência ou de cuidar da vida dos indivíduos e dos grupos. Essas questões levam à problematização das dimensões políticas e econômicas que envolvem o par público-privado e, junto com este, os demais binômios existentes. Elas permitem subsidiar a discussão que se coloca entre um projeto de seguridade social – desenho institucional da política social que é o Sistema Único de Saúde (SUS) – e um projeto de meritocracia social – desenho organizacional da política de mercado que é o sistema suplementar. Essa relação condicionante, que tem raízes históricas, pode ser base para a compreensão dos recortes ideológicos e conceituais que vão estruturando possibilidades e impossibilidades, assim como laços e contradições, para a compreensão das relações ideológicas presentes na antinomia pendular entre novas práticas e velhos dilemas. Reformas Sanitárias e Contrarreformas Médicas: a natureza dilemática de um campo em construção permanente – uma leitura sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca aos dilemas da saúde pública 615 Por esses caminhos este capítulo envereda, sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca, elaborada a partir de sua análise do vetor reformista, expresso na emersão de um projeto de formação médica calcado na busca de uma síntese entre a medicina e a saúde pública, a qual Arouca chamou de dilema preventivista. 2 O DILEMA PREVENTIVISTA: AINDA EM CENA? A antiga e a atual saúde pública continuam sendo compreendidas como um conjunto de práticas numa rede de serviços, em que se conjugam verbos antagônicos, porque remetem a vetores de direções opostas: i) expansão da cobertura; e ii) controle e redução – ou melhor, racionalização – de custos. Um vetor de dilatação, outro de contenção. Essa conjunção persegue fazer a revolução copernicana do modelo de atenção, cujo objetivo supremo é a compatibilização de assistência universal e de qualidade com custos compatíveis aos padrões de desenvolvimento econômico das sociedades em que se instala. Trata-se de revolução transformadora, portanto, de práticas de saúde hegemonizadas pela sua subsunção à medicina. A subsunção se expressa no predomínio da assistência tecnologicamente assentada, o que constitui duplo óbice ao alcance daqueles propósitos de socializar a assistência médica, visto que sua expansão a estratos cada vez mais amplos da população esbarra sempre na fronteira opaca dos custos exponenciais com que a prática médica vai revestindo-se no seu casamento e na íntima conjunção com a via tecnológica da produção de atos centrados em equipamentos e insumos industriais, alocando-se no território de sua mais alta densidade, que é o hospital moderno. Assim, o vetor reformista atuaria invertendo a lógica médico-hospitalar destas práticas para sua antípoda, formada por unidades de saúde e equipes multiproissionais, em que o trabalho médico compartilha e divide responsabilidades e saberes. Seu horizonte, alocado na proximidade com a comunidade, situa-se externamente ao hospital, como forma de abertura para os aspectos contraditórios que cercam a expressão do fenômeno saúde-doença no contexto social e econômico de sociedades desiguais. Essa concepção de unidades de saúde as conforma como um espaço simultaneamente simples e complexo. Simples na dimensão física de ser uma estrutura simpliicada em relação a seu oposto hospitalar; e complexo por constituir, entrelaçar e integrar um conjunto de práticas multiproissionais e interdisciplinares, recortadas para o interesse coletivo. Objeto ambíguo, que se articula, especialmente, pelo distanciamento em relação ao espaço do hospital, visto como lugar menos apropriado para práticas de saúde pública, e como território sagrado para práticas de atenção individualizadas. 616 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Sérgio Arouca foi um dos primeiros autores no Brasil a estudar e identiicar os princípios e os conlitos envolvidos neste distanciamento, o qual a escola médica se esforçava para superar por meio de um processo de reforma conservadora. A estratégia conservadora consistia em perder os anéis mas conservar os dedos, isto é, abrir-se para uma demanda social, incorporada pela intromissão do Estado na produção de saúde, mas conservar o controle mercadológico caro à manutenção do seu status quo. Arouca produziu um estudo seminal, e ainda atual, ao reconstruir analiticamente os passos iniciais desta reforma – verdadeira contrarreforma que se expressou na adjetivação da medicina como preventivista e seus sucedâneos: integral, comunitária e social (Arouca, 2003). A contrarreforma nasce como uma reação da corporação médica aos vetores socializantes das práticas de saúde, especialmente revigoradas com as reformas que as antecederam, historicamente delimitadas nas experiências da medicina social na França, da saúde pública na Inglaterra e da política médica na Alemanha. Em comum, estas reformas germinam em torno da subordinação da prática médica à dimensão social do processo saúde-doença, diversiicadas apenas em torno do grau de controle que o Estado assumiria nesta subordinação. Em todas, gravita um desaio transformador para o qual são necessárias rupturas imensas e, ainda hoje, caras ao processo de reforma sanitária: a superação do corte entre aspectos orgânicos e psicossociais, entre o preventivo e o curativo e entre a atenção individual e os efeitos coletivos da atenção. A reação preventivista emergiu, como discurso, a partir de três vertentes: a higiene; 2 a discussão dos custos da atenção médica; e a redefinição das responsabilidades médicas surgida no interior das escolas médicas. A tripla vertente deu origem a uma proposta de adjetivação nova para a medicina, que se apresentava carcomida por estes vetores extracorpóreos. Numa virada epistêmica, permitiu à categoria apresentar a renovação como objeto de sua lide, resistindo, assim, à tentativa de subordinação que, vinda de fora, do campo social e do poder estatal, conigurava insuportável intromissão. O novo objeto assim formado pela adjetivação a um velho termo, a medicina preventiva, irá estruturar-se, contudo, num processo de diferenciação das condutas higienistas, superpondo-se ao campo da medicina. Isto poderia ser deinido como a intenção de revestir de uma nova roupagem uma prática velha ou já existente; como uma nova roupagem estética, portanto. 2. O aparecimento da higiene se deu no século XIX, intimamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo e da ideologia liberal. Acompanha historicamente as transformações por que passa a humanidade do Estado absolutista ao contratualismo de Rousseau, e os seus desdobramentos posteriores, que acabam por colocar o Estado como depositário do bem comum e, enquanto tal, responsável pela adoção de práticas sanitárias. Ver Rosen (1994). Reformas Sanitárias e Contrarreformas Médicas: a natureza dilemática de um campo em construção permanente – uma leitura sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca aos dilemas da saúde pública 617 Talvez seja precisamente aí que se apresenta ontogeneticamente o dilema de origem. Se, para a medicina, enquanto prática velha, o enfoque deinidor é a responsabilidade sobre indivíduos, o enfoque deinidor da nova roupagem estética é a transferência parcial desta responsabilidade às famílias, delimitadas pelas condições determinantes das doenças que constituem espaço de estudo e intervenção dos médicos. De forma mais precisa, diferenciando-se das condutas higienistas, centralmente individualizadoras, a nova perspectiva preventiva coloca a doença no contexto ecológico,3 ou melhor, no centro de um discurso cujo enfoque é o vínculo entre ambiente, sujeitos e ocorrência de doenças. Este ambiente, certamente, não parece estar contido na dimensão individual do organismo biológico, mas na amplitude do contexto social e cultural: versão antropológica do que, em biologia, seria denominado bioma ou biossistema. Imbuído desta perspectiva, que para Arouca (2003) constitui um mito conceitual,4 o discurso médico de modelagem ecológica propõe a ampliação dos serviços de saúde pública, uma melhor distribuição dos recursos e a adoção do seu controle através de organizações comunitárias. Ao mesmo tempo, amplia e deine a responsabilidade médica em termos de estabelecer novas relações de trabalho, e introduz uma nova noção, o trabalho em equipe. O discurso médico mimetiza, deste modo, o vetor reformista do alcance universalizador das práticas de saúde, propondo um agir orientado a partir do núcleo do seu próprio saber, e não do saber sanitário. Deine, além disso, uma estratégia – a de inculcação – baseada na noção de contato e no enfoque de que o hospital é um campo restrito de observação, de baixa aderência à realidade. Adota, pois, certa noção sensualista, algo alinhado ao pensamento empirista de larga tradição ilosóica: o contato abre a possibilidade do conhecimento, da percepção e da afetividade. Ou seja, reconhece a limitada capacidade de o hospital, em sua estrutura e natureza especializada e espacializada em torno do organismo individual, alcançar o interior do ecológico humano, isto é, o social – entretanto, o faz a partir da conservação de uma perspectiva biomédica, ou medicalizadora, da realidade, o que implica sua redução ao natural. Dois dilemas claros, novamente, vão se manifestar. O primeiro decorre da articulação com a sociedade da proposta de medicina preventiva. Trata-se de articulação dilemática, pois a base conceitual da proposta – a história natural da doença – distribui as técnicas e as condutas num espaço neutro, como se estas 3. O modelo ecológico de saúde-doença foi proposto por Leavell e Clark (1972) e organiza uma história natural da doença, adotada pela medicina preventiva como modelo para operar a reorganização do conhecimento médico. 4. Dada sua despolitização e alienação. A aposição do termo preventiva à medicina constitui para Arouca a atitude de procurar dar vida nova a um substantivo adjetivando-o. 618 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil tivessem equivalentes valores de troca na sociedade capitalista, marcada pela produção de desigualdades e de diferentes possibilidades de acesso e consumo aos bens e aos serviços que a própria medicina cria a todo instante. Isso equivale a negar que o cuidado médico seja mercadoria, ao passo que este segue sendo exatamente um bem de consumo, o que os desdobramentos das políticas das décadas seguintes até hoje só izeram reairmar. O segundo dilema é referente ao espaço da própria medicina, que se vê inserida num contínuo e problemático desdobramento do conhecimento em áreas, especialidades, disciplinas e subdisciplinas, a que a proposta preventiva não está imune, acabando por assumir para os agentes uma natureza disciplinar de especialidade. Essa situação altamente dilemática acaba impondo, desde os primórdios, a reorganização do projeto, e novas adjetivações se farão necessárias. Um exemplo são os projetos de medicina comunitária, depois social, depois ambos, ora comunitária e social, ou seu inverso. Todos estão envoltos na intenção de extensão da atenção, mas prenhes de uma necessidade de racionalização que, incapaz de ser contida na sociedade civil, tem de procurar o seu espaço junto ao Estado. Contudo, a formação da atitude preventiva é substituída pelos estudos de custo-benefício, bem como por técnicas de programação e avaliação, num desdobramento do cuidado médico em atos que possam ser controlados. De novo, estas substituições abrem lugar para o desdobramento em especialidades, subáreas etc. Elas não logram superar nem o caráter reformista da atitude preventiva, nem seu valor de uso enquanto campos ou propostas de extensão da medicina, embora sejam marcadas pelas tensões e pela marginalidade a que são relegadas. Enquanto campo de extensão da medicina, a medicina comunitária procura manter a forma de serviço individual. Requer, contudo, uma nova estruturação dos elementos da prática médica, sobretudo uma nova forma, mais ampla ainda, o que a leva a desejar ser integral. Adjetivo iconoclasta, dado o hiato entre intenção e gesto. Ocorre que o conceito de integral, acoplado à medicina, instala o confronto entre o caráter fragmentário do trabalho médico e uma concepção globalizadora do objeto individual da prática. Torna necessário, assim, um novo uso e uma nova estruturação do trabalho médico, que implicará o trabalho auxiliar de outras categorias proissionais. Constitui-se, então, uma proposta de trabalho coletivo, cujo sentido é dado pela redistribuição de tarefas. O cuidado, buscando ser integral, resolve-se por meio de um conjunto de práticas complementares, o que signiica também elemento potencial na redução de custos. Entretanto, adotando a sistemática fragmentária de especialidades e subespecialidades, e novas práticas proissionais, assume uma forma de gestão pela lógica industrial taylorista, muitas vezes similar a uma linha de produção. Aqui, novamente, a medicina, ainda que deseje ser integral e unir-se às demais práticas, Reformas Sanitárias e Contrarreformas Médicas: a natureza dilemática de um campo em construção permanente – uma leitura sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca aos dilemas da saúde pública 619 continuará advogando papel central e lugar primordial. Linhas de produção com proissões centrais e coadjuvantes não impactarão em nada signiicante a questão dos custos, exceto, talvez, no que toca à corresponsabilização de indivíduos e comunidades como participantes ativos do enfrentamento das doenças e da manutenção da saúde. Esse conjunto de rupturas sinaliza a necessária recomposição do sentido totalizador da prática, isto é, sua entrega ao integral. Isto implica o deslocamento do enfoque biológico no sentido de apreender a complexidade do paciente – dada por sua inclusão em um campo de relações sociais – e interferir nela. Tais rupturas, em virtude do seu grau de complexidade, somente seriam superáveis por meio de novos modelos de organização que tomem como base o cuidado dos grupos sociais antes que dos indivíduos, pois mascaram as determinações ou as diferenciações sociais básicas. Com estas características, representarão para categorias sociais o acesso a formas determinadas de cuidado. E ganham uma signiicação política maior, quando são apenas um projeto de extensão da assistência médica. Em uma suprema mimetização, camulam o espírito médico na investidura de política social e de expansão da atenção. Com essa estratégia, instrumentaliza-se signiicativamente a nova prática, que é, ou deseja ser, preventiva e comunitária, ou mesmo busca airmar-se como tal. Ao cabo, sugere uma forma de mobilização grupal em torno da criação ou da reorientação de interesses e objetivos, mantida a centralidade dos objetivos medicalizadores, que assumem forma normativa, de um lado, e abertura a experimentações, de outro. A experimentação de modelos, mais que um modelo organizacional especíico, constitui o núcleo da proposta da medicina comunitária e, mais uma vez, vai caber à escola médica a elaboração e a experimentação destes novos modelos. A resposta implica, porém, alteração substancial dos elementos componentes do campo. Essa dimensão comunitária do cuidado como elemento central da estratégia de reforma médica desdobra-se em vários momentos, mas o tempo inteiro como que reairma certo conjunto ideológico a constituí-la. Assim, de novo indica uma delimitação geográica para a prática, que, inclusive, relete a identiicação entre comunidade e sociedade local, airmada na exterioridade com relação ao hospital. Ou seja, põe ênfase na identidade social e de interesses, embora reduza o espaço social a uma homogeneização sem precedentes. Em suma, podem-se marcar algumas caraterísticas traçadoras do discurso preventivista e, por que não, comunitário e social, que ainda hoje persistem como dilemas e tensões, além da suprema tarefa de produzir a submissão do médico ao sanitário, que são: a busca do integral; a externalidade em relação ao hospital; e a aproximação orgânica com o espaço social, via comunidades e grupos, dos quais a pobreza é a marca distintiva. 620 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 3 DILEMAS QUE AINDA PERSISTEM? Apesar dos dilemas e das tensões, dadas, sobretudo, pela égide de uma transformação conservadora, verdadeira contrarreforma à reforma da saúde, a incorporação do conceito de medicina comunitária pela saúde pública vai se estabelecer, como visto, em torno de algumas premissas básicas ainda caras para os formuladores das reformas atuais. Entre elas, menciona-se a racionalidade dos custos de atenção à saúde; a extensão de cobertura; e a adoção de uma simpliicação tecnológica, no sentido material do termo, centrada em torno dos pressupostos de atenção primária e de saúde para todos. O hospital acabou vinculado, pelo mesmo ideário presente no diálogo entre saúde pública e medicina, como o depositário das práticas médicas hegemônicas, que têm na medicina cientíica e tecnológica seu aspecto mais emblemático.5 O diálogo entre reforma e contrarreforma acaba, mesmo que não intencionalmente, construindo no senso comum a imagem-objetivo que põe a saúde pública em torno da relação medicina pobre para pobres, com parcas possibilidades de êxito, baixa resolutividade e diiculdades de acesso. Na outra ponta, está a medicina hegemônica, assistencial e curativa – ou seja, quase que seu par oposto. Outro elemento presente, reforçador do objeto-pobreza e da função social da reforma, e que se amalgama com o processo preventivista e seus sucedâneos, é o conceito de atenção primária, formulado na reunião da Organização Mundial de Saúde (OMS), em Alma Ata, em 1976, que propôs a meta de Saúde para todos no ano 2000. A campanha vislumbrava a superação dos graves indicadores de desigualdade que se veriicavam entre os hemisférios norte e sul do globo, pela adoção de uma série de medidas cientiicamente embasadas, coletivamente validadas e economicamente suportáveis pelo nível de desenvolvimento social atingido pelo país na região em que se estava aplicando. A identiicação com a pobreza, aliás, é quase uma marca identiicadora, um elemento que expressa o caminho dicotomizante e a face poliédrica que a medicina assume nas suas relações com o sistema capitalista,6 conforme as reformas e as contrarreformas. De um lado, a prática médica centrada na preocupação com os custos econômicos socialmente suportáveis consolida a emergência de uma medicina simpliicada tecnologicamente. De outro, mergulha na exponenciação tecnológica como prática predominante sempre a erodir a questão dos custos. De um modo, ergue-se sobre o princípio da participação comunitária e amplia as funções sociais a que serve de suporte. De outro modo, aprofunda a exclusão a que o custo 5. Ver Arouca (2003) e Donnangelo (1976). 6. Aqui é fundamental pôr em diálogo a contribuição de uma autora, cujo estudo é praticamente apresentado e defendido no mesmo período que o de Sérgio Arouca. Trata-se de Maria Cecília de Ferro Donnangelo (Donnangelo, 1976). Reformas Sanitárias e Contrarreformas Médicas: a natureza dilemática de um campo em construção permanente – uma leitura sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca aos dilemas da saúde pública 621 exponencial vai submetendo mais e mais contingentes populacionais na sociedade desigual que é a capitalista.7 A esta dupla face se soma a pobreza como o objeto atribuído à medicina através dos novos projetos.8 Com esta face poliédrica, a extensão do cuidado médico vai assumindo proporções variadas em distintas sociedades, enquanto a medicina tecnológica em seus corolários se mantém invariável. Como forma dominante da organização da prática, porém, sofre uma única, mas significativa, transformação: o consultório médico é sucedido pelo hospital como lócus indispensável do exercício do trabalho médico, de concentração tecnológica e, portanto, de concentração do capital. Ao se instalarem no quadro econômico e político das sociedades dependentes, como a brasileira, a medicina preventiva e a medicina comunitária vão adequando a sua estratégia às características da estrutura da atenção médica e à estrutura social. Elas redimensionam as suas práticas, apresentando-se como resposta à inadequação da prática médica para atender as necessidades de saúde das populações. Sobretudo, representam tentativas de recomposição da prática médica, ou mesmo novas modalidades de sua organização interna, que buscam compatibilizar o aumento do consumo de serviços, pela expansão da população assistida, com a equalização dos custos. Tal condição dilemática vai permitir pensá-las como uma forma particular de articulação entre o objeto e os meios de trabalho, num campo de relações sociais determinante das práticas médicas. Ainal, as desigualdades de acesso a serviços e à própria participação envolviam elementos da divisão social em classes, o que, ao lado das inalidades precípuas com a pobreza, já colocava esta participação como predeinida. Estas tensões constituem polos sugestivos da dupla articulação da prática à modalidade predominante de atenção médica e às formas de realização da estrutura social, isto é, articulação reformista e lugar marginal ou contra-hegemônico. O problema da participação comunitária e da corresponsabilização, por seu turno, revelou tensões no interior do projeto, decorrentes do monopólio médico das ações de saúde, que não admitia de pronto outras práticas e outros diálogos, além das questões originadas pelos limites, possibilidades e tipos de participação, compatíveis com a estrutura de sociedades diferenciadas. 7. O caráter excludente da atenção médica, além de resultante do processo de acumulação nas sociedades, deve-se às formas de acomodação entre a participação do Estado e a do setor privado na área da saúde. Ver Donnangelo (1976). 8. A prática da medicina comunitária nos Estados Unidos, por exemplo, surge na década de 1960 e se confunde com um movimento que orientou a política social para programas de assistência destinados à pobreza. Entre os princípios que norteiam genericamente tal política estão: a articulação de agências públicas e privadas; a mobilização de recursos locais; a participação dos usuários no planejamento e na administração; e o eventual emprego de mão de obra local na realização de tarefas auxiliares. Ver Donnangelo (1976). 622 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Essa nova política se estrutura, do mesmo modo, em torno dos polos de oportunidades sociais e de participação, dados pela criação dos programas de ação comunitária. Estes programas vão ser os responsáveis pela mobilização e coordenação, em nível local, dos recursos para o desenvolvimento de projetos sociais e educacionais, bem como pelo envolvimento do pobre em seu planejamento e administração, à base da concepção de que a autoajuda constitui a forma mais efetiva de superação da pobreza. Como projetos de reforma médica, entretanto, a medicina preventiva e a comunitária vão postular – ou melhor, continuar postulando, como as reformas que as antecederam, historicamente delimitadas nas experiências da medicina social, na França, da saúde pública, na Inglaterra, e da política médica, na Alemanha – a subordinação da prática médica à dimensão social do processo saúde-doença. Para tanto, são necessárias algumas rupturas imensas e, ainda hoje, caras ao processo de reforma sanitária: a superação do corte entre aspectos orgânicos e psicossociais, entre o preventivo e o curativo, entre atenção individual e efeitos coletivos da atenção. A diferenciá-las, sobretudo, o agente responsável: o Estado, no caso das primeiras; os proissionais liberais, no caso das segundas. Contudo, em solo brasileiro, este vetor reformista será incorporado ao escopo de ação daqueles empenhados em implantar uma política de transformação da realidade social no país, mas atribuindo ao Estado esta função precípua. Essa situação decorre de uma duplicidade: de um lado, a linearidade dos avanços cientíicos e tecnológicos vai desenhando uma imagem de competência para a medicina e a prática médica hegemônica; e, de outro, revela a fragilidade da proposta de reestruturação pelo setor governamental de até então. A explicação decorre de que a primeira é uma política pública atravessada por aquelas questões agudizadas em uma dimensão coletiva, enquanto a esfera privada dilui estas mesmas questões, dando-lhes aspecto de consumo individual de procedimentos e atos médicos instituídos pela organização da prática hegemônica.9 A partir destes campos de práticas e das tentativas de reforma envolvidas nas propostas preventiva e comunitária, conigura-se um conjunto de ideários, que formatam dois projetos em disputa para a sociedade, em geral, e para o campo da saúde, em particular. Um, o projeto da chamada reforma sanitária, que deseja a extensão de cobertura e a compreensão e o signiicado da saúde como inserida no contexto histórico-estrutural da sociedade, tendo a garantia do seu usufruto como um dos direitos de cidadania. Outro, o chamado modelo médico hegemônico, que persegue a universalização seletiva da assistência médica predominantemente curativa, e que está baseado no discurso médico como saída para os problemas de saúde da população, e tendo acentuado caráter privado. 9. Ver, a respeito, Donnangelo (1976) e Schraiber (1993). Reformas Sanitárias e Contrarreformas Médicas: a natureza dilemática de um campo em construção permanente – uma leitura sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca aos dilemas da saúde pública 623 No cenário do Brasil atual, pode-se apontar, inalmente, como uma das principais ideias difundidas, a partir da adoção do conceito de saúde coletiva como enfoque ordenador, que a reforma sanitária brasileira esteja sintonizada em torno de um eixo: fazer com que a rede básica de unidades de saúde efetive práticas de saúde que reposicionem o sentido de produção de serviços e de suas inalidades, no que acabariam redeinindo o lugar dos outros, isto é, atuariam visando a uma mudança de direção de um sistema hospitalocêntrico para um redebasicocêntrico (Merhy, 1997, p. 198). Esta missão aponta a necessidade de construção de um modelo de atenção que produza acolhimento, responsabilização e vínculos, e cujo desaio central consiste em aliar os procedimentos eicazes no controle das exposições aos riscos de adoecer com aqueles que são efetivos na intervenção junto aos processos de adoecimento. Tem sido um desaio combinar saúde pública e medicina (op cit.). Esse conjunto de preocupações, que sempre esteve presente centralmente no campo da saúde pública, continua a orientar a agenda de formulação de políticas públicas nos anos 1990, e em cujo cerne a família aparecerá como unidade fundamental, num visível reencontro dos agentes da reforma sanitária com as concepções reformistas que orientaram os movimentos de medicina preventiva, comunitária e social. Tem-se assistido, assim, à consolidação de um projeto de atenção à saúde calcado no desenho organizacional de saúde da família; projeto que recoloca a tradição em que se tem mantido o pensamento sanitário brasileiro para o setor saúde, quando se vê afunilar no cenário uma adesão quase total ao imaginário que toma a família como núcleo da organização social e como foco das práticas de saúde. Esta perspectiva vai formando amplas margens de constituir um sistema de saúde passível de operar com pacotes mínimos de tecnologias de saúde, as chamadas cestas básicas de procedimentos,10 estabelecendo ações políticas focais para grupos especíicos, em que, mais uma vez, a pobreza será o traço marcador e agônico. 4 SUPERANDO POLARIDADES? A TRANSFORMAÇÃO DO PÚBLICO PELO COLETIVO Os discursos que se sucederam no campo da saúde pública também podem ser vistos enquanto tentativas de conigurar novos recortes e deinições, em alguns casos excludentes, para as práticas proissionais dos médicos. Notadamente, os discursos construídos são explicados pela recusa médica em aceitar os saberes da clínica como adequados ao enfoque normativo utilizado para a formatação da prática de saúde pública. Esta recusa tem na epidemiologia, e também nas diretrizes originadas pelo campo da ciência administrativa, com suas normas e racionalidade economicista, seus eixos paradigmáticos mais importantes. 10. Ver, por exemplo, a discussão que fazem Franco e Merhy (2003). 624 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Sob tal perspectiva, abria-se a possibilidade, inclusive para a produção epistêmica do campo, de recompor sua construção teórica, cada vez mais deinidora de saúde, medicina, serviços de saúde e assistência médica como objetos distintos, tanto para a ação quanto para a relexão e a tomada de posições. Concebe-se, então, o conceito de saúde coletiva (Donnangelo, 1983; L’Abbate, 2003), que nasce engravidado da busca de superação das dicotomias e dos dilemas presentes como feridas narcísicas entre o preventivo e o curativo, entre o assistencial e o promocional, entre o individual e o coletivo, e entre o hospital e a rede básica. Veriicando-se as contribuições de diferentes correntes de pensamento para a conformação deste campo, identiica-se na natureza da saúde coletiva seu caráter reformador e sua natureza de dependência ou submissão do técnico ao social. Desde Garcia (1993), por exemplo, vários estudiosos só izeram conirmar que já não existe nenhuma corrente de pensamento nas ciências sociais que airme que a medicina tem uma autonomia completa da estrutura social ou das partes, instâncias ou elementos que a integram. Tal fato é resultado de um processo histórico em que diferentes correntes de pensamento conformaram este campo enquanto movimento social e prática teórica. De cada período em que predominou uma corrente de pensamento, vieram contribuições que ampliaram, signiicaram, ressigniicaram e constituíram o objeto da prática médica na sociedade, e o alargaram até comportar diversos arranjos e formas. A existência de diferentes correntes de pensamento como contribuintes para a conformação de um pensamento no campo da saúde, originando o que vem a se chamar de saúde coletiva, enquanto um campo de práticas, já faz conigurar a existência, ainda que subjacente, de um recorte estético emprestado a este campo: a multidisciplinaridade. A multidisciplinaridade é considerada no escopo da diversidade, da apresentação do fragmentado como faceta da complexidade, da alteridade, da disputa entre diferentes. Estas características constituem duplamente sua força e sua fraqueza, visto que a multidisciplinaridade é, muitas vezes, impotente no enfrentamento da síntese transformadora da prática médica que quer subsumir. Assim, a existência de uma relação, sempre buscada mas nunca suicientemente encontrada, entre o coletivo e a transdisciplinaridade, e entre este e o individual, é vista nos diversos campos (jurídico, ético, político, estético, psíquico etc.) que a atravessam. Trouxe para a saúde coletiva uma tal complexidade que a aprisiona, decerto, nesta mirada ixa para o movimento de mudança, geometricamente maleável em formas que vão da pirâmide ao círculo. Desconstrução-reconstrução como uma alternativa para estabelecer uma relação de transversalidade, de modiicabilidade, de reconstrução simultânea em suas relações entre si e com os objetos, movendo-se pelos processos coletivos de conhecimento e de autoprodução, mais que pela compulsão da dominação. Reformas Sanitárias e Contrarreformas Médicas: a natureza dilemática de um campo em construção permanente – uma leitura sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca aos dilemas da saúde pública 625 Movendo-se acerca da história das ideias e dos conceitos neste campo, Nunes (1993) demarca às ciências sociais um papel consolidador de um campo de práticas e de construção de conhecimento. O autor sugere a ação subsumidora daquelas em produzir outra direcionalidade, e outro sentido à junção das ciências da clínica e da epidemiologia, em seu olhar sobre o indivíduo e o coletivo. Ao fazê-lo, não faz apontar senão a dimensão conformadora de uma estética, aqui signiicada enquanto prática produtora de uma “forma”, que transcende ao “olhar” de deleite diante da obra, para se conigurar no plano de outra razão, imanente e permanente à própria racionalidade em si, transformando-se num para si da prática sobre o coletivo, mas preocupada com o individual, o verdadeiro fundante do seu conteúdo. Não obstante, esse agir não foi inteiramente feito em direção ao consenso, uma vez que durante o predomínio do chamado projeto preventivista, segundo Nunes (1992), os sanitaristas tenham vociferado contra a clínica, apontando-lhe o caráter objetivista, biologicista e associal, atitude resultante da corrente de pensamento predominante neste momento histórico. De todo modo, Nunes oferece elementos para sustentar que o Brasil caminha para a superação das dicotomias e das desconianças presentes. Ainda, Nunes (1992; 1993; 1994) aponta que a saúde coletiva – constituída nos limites do biológico e do social – continua a ter a tarefa de investigar, compreender e interpretar os determinantes da produção social das doenças e da organização social dos serviços de saúde, nos planos sincrônico e diacrônico da história. Isto porque, ao trazer para o interior do campo da saúde as ciências humanas, a saúde coletiva reestrutura as coordenadas deste campo, trazendo neste movimento as dimensões simbólica, ética e política, revitalizadoras do discurso biológico. São, assim, o esteio teórico para uma prática estética e, ao mesmo tempo, o fundamento deste trânsito enquanto estética transdisciplinar. A tradição dos anos 1990 parece que tem trazido outra estética à cena, que implica o reconhecimento das relações interdisciplinares entre os dois polos, a clínica e a epidemiologia. Este reconhecimento ica evidente quando Lessa (1998), por exemplo, airma o entendimento de que o conhecimento epidemiológico baseia-se nas disciplinas ou ciências que apoiam a clínica, e que esta subsidia a epidemiologia, da qual necessita para a melhor compreensão do processo saúde-doença, e como facilitadora da elaboração de diagnósticos. O convite interdisciplinar se anuncia quando Campos (1992; 1997; 2004), por exemplo, propõe a ampliação da clínica, como instrumento de consolidação do SUS, pela construção de outra relação dialógica entre trabalhadores e usuários, na direção do vínculo com acolhimento e resolutividade. E se amplia com Merhy (1997) e Franco e Merhy (2003), que trazem a proposta de uma caixa de ferramentas para a ação e a gestão cotidiana na produção do cuidado à saúde, cuja tônica passa pelo reconhecimento de que todos os trabalhadores fazem clínica. Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 626 A interdisciplinaridade convida à transcendência quando advoga a centralidade do cuidado como doadora do sentido e do signiicado da clínica, verdadeira “alma” dos serviços ao perseguirem produzir integralidade na atenção ofertada. Decorridos mais de trinta anos da explicitação desses desaios, em termos de saúde coletiva vislumbram-se críticas à trajetória de institucionalização de seus conceitos e práticas pelo SUS, dado o rumo fragmentário que tomou o movimento sanitário, em boa parte das últimas décadas. Por im, o próprio campo se interroga e se questiona sobre certa dissociação entre a teoria e sua prática, haja vista as críticas a uma simpliicação do processo saúde-enfermidade-atenção de forma mecânica e positivista, a que se associa uma diluição da importância especíica dos serviços de saúde na produção da saúde, subestimando intervenções e superestimando receitas, e vice-versa, imersa numa totalização paralisante de um delírio onipotente de radical transformação do social. Persistiriam, desta maneira, os vieses de análise e conceituação que ainda encarariam esta dimensão da política de saúde de forma asséptica, naturalizando elementos contraditórios e homogeneizando conlitos e tensões pelas lentes normativo-institucionais que embalaram os sonhos no leito das reformas. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os avanços e, por que não, as cisões entre democracia formal e democracia substantiva, ou entre democracia política e democracia econômica, instigam uma relexão sobre o Brasil. O país apresenta uma situação de intensa concentração de renda, a ponto de já se terem distinguido duas nações num mesmo território: a Bélgica e a Índia, fundidas numa Belíndia. Uma delas detém a propriedade da quase totalidade da riqueza social, ao passo que a outra, não necessariamente minoritária, se contenta com as migalhas da mesa principal em que ocorre o festim, ou se vê compelida a sobreviver com elas. Ainda assim, nos últimos anos, esta curva assimétrica tem-se lexionado para uma posição estacionária, de modo a reconduzir os avanços econômicos na trilha de um equacionamento socialmente justo. Nesse percurso de reforma e transformações, o campo da saúde, também ele aberto a uma dimensão socialmente importante, travou um giro discursivo, aqui sumariamente recuperado, no qual se pode reconhecer a persistência de uma polaridade dilemática, ainda não resolvida, em que pesem os avanços e as propostas dialógicas experimentadas. De um lado, no polo sanitário, tem forte acentuação o ideário da atenção primária, cujas origens remontam à formulação do discurso preventivista, comunitário e social. Do outro, permanece presente a adesão dos agentes do trabalho médico a um ideário de defesa de autonomia da prática e de liberdade de escolha pelos clientes, verdadeira saga liberal. Reformas Sanitárias e Contrarreformas Médicas: a natureza dilemática de um campo em construção permanente – uma leitura sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca aos dilemas da saúde pública 627 Dois polos, de cuja franca oposição se salienta a existência de uma grande disputa de projetos para a saúde no Brasil atual, em que dialogam raivosamente a medicina e a saúde pública, o Estado e o mercado, o individual e o coletivo. Para o senso comum, constitui-se a existência de nítida distinção: de um lado, o projeto do Estado como sinônimo de ineiciência, insuiciência e toda sorte de mazelas. Do outro lado da trincheira ideológica, airma-se a oferta de um projeto funcional e eiciente, que mascara sua lógica excludente pelo luzir de equipamentos eletrônicos e consumo de procedimentos tecnologicamente caros e inacessíveis. Esse senso comum ganha consistência diante da penetração do Estado na área da assistência médica como principal produtor de serviços. Esta penetração, eliminando ou reduzindo a produção privada e o consumo em um mercado livre, equivale, na sociedade capitalista, ao modelo mais radical de interferência neste campo de problemas, pelo confronto com as teses liberais mais gerais, de que o mercado é o território da liberdade, do consenso e da harmonia, enquanto o Estado é elemento aberrante a desequilibrar este universo.11 A intervenção do Estado, mesmo sob a restrição do enfoque racionalizador, encontra sustentabilidade diante das formulações keynesianas que lhe atribuem um papel interventor na compatibilização dos custos com a generalização socialmente necessária do consumo e da produção sob a forma cientíico-tecnológica predominante, o que, em grande parte, passa pela adoção de medidas de inanciamento. O inanciamento do consumo sempre implica algum grau de controle dos elementos de produção, sobretudo quando este mecanismo corresponde ao monopólio da compra de serviços pelo Estado. Em nenhum lugar, todavia, o Estado assumiu integralmente a produção de serviços. Nem mesmo por intermédio do seguro social, envolvendo a prestação de assistência médica, garantiu-se o acesso universal da população ao consumo médico.12 Por essas razões, o vetor da reforma sanitária brasileira tencionou tanto para uma reforma das práticas de saúde, quanto para uma transformação do Estado no sentido de sua democratização institucional e sua abertura para os interesses dos setores desfavorecidos e menos aquinhoados socialmente. A superação de tal polaridade – ou, pelo menos, a possibilidade de sua superação – aparece historicamente, no caso brasileiro, a partir da construção de outro conceito que abre possibilidades fecundas de transversalidade neste diálogo, pela recomposição do campo da saúde. O potencial transformador das práticas 11. Ver, a respeito, Borón (1994, 2001). 12. O seguro social, embora tenha sido historicamente a modalidade mais frequente de participação, apresenta características restritivas, e mesmo excludentes. Oliveira e Teixeira (1989) mostram a produção de desassistência pelos mecanismos de compra de serviços de saúde a partir do seguro social controlado pelo Estado, em que este, anemiado de sua função pública, omitiu-se gravemente de adotar mecanismos de controle ou de indução do acesso. 628 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil do campo e das relações entre o público e o privado partia da ruptura com a visão dos aspectos econômicos e político-sociais referentes à medicina e à saúde pública, para perceber que a prática médica e a prática dos serviços de saúde pública constituem-se em práticas sociais imersas e integradas na formação social concreta em que estão presentes.13 São características que se podem identiicar como fortemente presentes nos discursos reformuladores e reformistas que o movimento de reforma sanitária ainda mantém em seu ideário e sua agenda de ação. Estas características, décadas mais tarde, continuam a ser o motor de reformas sanitárias pautadas pelos princípios da universalidade e da equidade, cuja tradução organizacional é a proposta do SUS. Prisioneiros deste ideário, nenhum dos polos tem conseguido transcender, nem estender outras possibilidades de diálogo produtivo com os adeptos da medicina tecnológica, em que uns e outros possam superar a dualidade dicotômica, ou o convívio em oposição, entre o estatal e o mercantil, entre o público e o privado. A exploração da antinomia público-privado se revela numa tripla importância: é central para a compreensão do setor enquanto política, constituída no processo histórico das sociedades ocidentais; é basilar para as relações sistêmicas entre os componentes da organização de serviços; e é reveladora da complexidade que cerca as relações subjacentes aos demais binômios, medicina-saúde pública, Estado-mercado. Binômios que constituem elementos estruturais das práticas existentes no setor, e representam o chão concreto em que se disputam os projetos societários que organizam os distintos modos – público e privado – de ofertar, produzir e acessar saúde. Tal airmação discursiva pode ser vista como uma das marcas da saúde pública, que vai construindo suas possibilidades e seus limites de modo simultâneo. A menção a esses momentos ganha mais importância pelo fato de que seus efeitos izeram sentir larga aplicação no território brasileiro e, de certo modo, constituem a proto-história da atual situação do debate em torno da saúde pública e da luta pela constituição de um sistema nacional de saúde. Nesta luta, a saúde pública brasileira vai traduzindo intenções em gestos em que se alinham continuidades e rupturas (Aciole, 2013). Essas continuidades e rupturas constituem o solo germinativo em que foi se constituindo o conjunto de ideários e práticas chamado de saúde coletiva. 13. Ver Donnangelo (1976). Reformas Sanitárias e Contrarreformas Médicas: a natureza dilemática de um campo em construção permanente – uma leitura sob a ótica da contribuição de Sérgio Arouca aos dilemas da saúde pública 629 REFERÊNCIAS ACIOLE, G. G. A saúde no Brasil: cartograias do público e do privado. São Paulo: HUCITEC; Campinas: SINDIMED, 2006. 352p. ______. Depois da reforma: contribuição para a crítica da saúde coletiva. São Paulo: HUCITEC, 2013. AROUCA, A. S. S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Rio de Janeiro: Fiocruz; São Paulo: Editora UNESP, 2003. BORÓN, A. A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. 272 p. ______. A coruja de Minerva: mercado contra democracia no capitalismo contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2001. 421 p. CAMPOS, G. W. S. Reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo: Hucitec, 1992. ______. 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O pensamento pós-colonial procura compreender o modo como se constituem estes signiicados e o que eles representam para consolidar uma saída própria em relação aos conlitos inerentes às referidas culturas. De acordo com essa premissa que caracteriza o pensamento pós-colonial, a condição de colônia não se resume a um arranjo político e econômico de opressão e exploração. Ela inclui a construção de uma cultura subalterna, em que os valores e as percepções de mundo se alinham àqueles constituídos pela cultura ocidental. O colonialismo não é apenas um arranjo de exploração econômica. É, também, uma condição de subalternidade da cultura nativa, que tem consequências na construção das identidades. O sujeito colonizado é aquele que, em detrimento de sua cultura nativa, se submete aos valores e às percepções constituídas pela cultura moderna. A condição colonial, portanto, não é apenas uma condição de dominação econômica mas também de submissão a um padrão de conhecimento dirigido e imposto pela cultura moderna. É nesse sentido que a discussão da condição pós-colonial deve tratar, antes de qualquer coisa, das condições epistemológicas em que o conhecimento social é constituído. O discurso moderno da ciência impõe as condições do conhecimento, criando concepções de verdade que não resultam em autonomia, mas reproduzem condições a partir das quais o colonialismo se reproduz e se fortalece (Santos, 2003). A questão central das teorias pós-coloniais é ressaltar o papel que as culturas subalternas exercem no conhecimento social e a sua importância para a construção da autonomia da sociedade na construção do desenvolvimento. Assim, valorizam-se 1. Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Correio eletrônico: <filgueiras@faich.ufmg.br>. 634 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil estas culturas, ressaltando-se a importância da solidez destas identidades. A identidade é importante a partir do momento em que não se justiica que uma cultura seja capaz de impor um padrão único de conhecimento. O fundamento do pós-colonialismo é que as culturas podem estabelecer diálogo sem haver um padrão de valores e percepções que se imponham a outras culturas. Esses diálogos culturais têm sido a tônica da construção de uma perspectiva crítica de culturas hegemônicas da modernidade, no âmbito das ciências sociais. Tais diálogos signiicam a possibilidade de outra via para a questão do desenvolvimento político, social e econômico que se conigura pela valorização das identidades. Tendo em vista a discussão sobre as identidades, duas têm sido as possibilidades abertas pela perspectiva pós-colonialista: i) a constituição do diálogo sul-sul, com o objetivo de possibilitar o desenvolvimento das culturas do sul e a construção de uma aliança contra a hegemonia do Ocidente; e ii) a reinterpretação e a ressigniicação do nacionalismo. O movimento pós-colonial é apresentado como uma perspectiva pós-moderna. Todavia, a primeira utilização do termo e a construção do seu signiicado surgiram nos movimentos de descolonização dos países do sul, incluindo os países da África e os do Oriente, em especial a Índia. Historicamente, os movimentos pós-colonialistas surgiram em meados do século XX, no contexto pós-Segunda Grande Guerra, por meio dos movimentos de independência dos países africanos e asiáticos. Dessa maneira, é importante frisar que o pós-colonialismo não se trata de um movimento único. Ele deve ser compreendido, por um lado, como valorização diferenciada das culturas nacionais e, por outro lado, como um movimento de constituição do conhecimento que valorize as culturas locais. Este conhecimento pós-colonialista do social passa por uma perspectiva interdisciplinar que compreende os parâmetros traçados pela sociologia, pela política, pela economia e pela literatura, compondo um ramo de interpretação e signiicação da cultura com o objetivo de fortalecer as identidades nacionais e buscar caminhos próprios para o desenvolvimento. No caso da América Latina, o movimento pós-colonialista foi comparado com os processos de independência dos países orientais e africanos. É marcante, nos debates fundadores das ciências sociais, a inluência que o pensamento latino-americano recebeu do movimento pós-colonial. O movimento pós-colonialista latino-americano surgiu no mesmo contexto de meados do século XX, por inluência da discussão sobre o papel do conhecimento nos movimentos nacionalistas. No caso brasileiro, merecem destaque as posições defendidas por Alberto Guerreiro Ramos, as quais podem ser enquadradas como pós-coloniais à medida que valorizam o papel da cultura brasileira na constituição de uma real independência e procuram pela constituição de um signiicado para o nacionalismo brasileiro no desenvolvimento nacional. Isto ica claro nas teses defendidas por Guerreiro Ramos no II Congresso Latino-Americano de Sociologia, ocorrido em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1953. Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 635 A partir desse enquadramento, o objetivo deste capítulo é discutir a tese da redução sociológica e o seu papel na constituição de um imaginário pós-colonial no Brasil, com especial enfoque na questão do desenvolvimento nacional. Será mostrado, aqui, como a tese da redução sociológica de Guerreiro Ramos resultou em uma concepção instrumental de desenvolvimento que visa satisfazer uma concepção pós-colonial da cultura brasileira. Também serão apresentadas as possibilidades da crítica aberta por Guerreiro Ramos ao próprio nacionalismo brasileiro, com o objetivo de ressaltar suas particularidades frente à sociologia brasileira. 2 A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA COMO MARCO DO EXISTENCIALISMO BRASILEIRO É mais que conhecido que Guerreiro Ramos buscava para a sociologia um sentido prático que congregasse, ao mesmo tempo, os avanços da ciência social e os problemas práticos da sociedade brasileira no que diz respeito às condições do atraso do país. Também é mais que conhecido que a sociologia defendida por ele tem o caráter de engajamento nas questões sociais, mesmo que isto signiicasse, a seu juízo, o sacrifício da objetividade da ciência. A sociologia deveria ter, de acordo com o autor, o tom de uma ciência interpretativa (Oliveira, 1995). Sua militância no Teatro da Experimentação Negra (TEN) exerceu forte inluência sobre o tipo de conhecimento necessário para a constituição da autonomia, seja de estratos sociais especíicos, como o caso dos negros, seja da sociedade brasileira em seu conjunto. Guerreiro Ramos procurou defender uma sociologia engajada, com a preocupação constante de inluenciar a vida política nacional e participar dela. No caso de sua sociologia sobre o negro brasileiro, inluenciada pelas posições de Abdias do Nascimento, ele propõe que ela fosse uma espécie de voz do próprio negro. A sociologia da questão racial no Brasil deveria ser feita pelo próprio negro, o qual tomaria consciência de sua própria negritude e assumiria uma posição militante capaz de inluenciar a agenda política. A posição desta sociologia do engajamento do negro, fortemente inluenciada por Franz Fanon, quer romper o estatuto colonial do racismo para difundir uma perspectiva de autonomia constituída, sobretudo, pela ação política. Contra as posições de Gilberto Freyre (Freyre, 2000) e de Arthur Ramos (Ramos, 2002), que tendiam a olhar o negro como um objeto folclórico, Guerreiro defendia, nesta posição de uma sociologia engajada, o rompimento da condição de cultura colonizada da negritude, difundindo e apoiando os valores inerentes às suas tradições (Ramos, 1950; Maio, 1997). No entanto, é importante frisar que Guerreiro não defendia o endosso entusiástico das sobrevivências africanas. Para ele, o erro de sociólogos e antropólogos, quando discutem a questão do negro do Brasil, é tratá-los como objeto exótico, desalinhado e estrangeiro em relação à própria cultura nacional. Em sua disputa com Costa Pinto, Guerreiro Ramos airmava que o preconceito em relação ao 636 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil negro no Brasil não era de raça, mas de cor. Isto signiicaria que, ao contrário do veriicado em outras sociedades, o preconceito não se constitui, no Brasil, por linhas de castas.2 O fato de o preconceito contra o negro não se constituir por linhas de castas é que permite que ele seja integrado no conjunto da nação. Os estudos sobre o negro no Brasil seriam alienados, de acordo com Guerreiro, porque se espelhavam nos parâmetros sociológicos das realidades sociais europeia e norte-americana. A saída para o negro, de acordo com Guerreiro Ramos, seria ascender socioculturalmente por meio da luta de classes, constituindo, por conseguinte, um processo de cooperação que lhe permita participar da cultura nacional (Maio, 1997). O mesmo se pode dizer de outro ramo de conhecimento sociológico ao qual Guerreiro Ramos se dedicou. O tema da administração pública e das organizações do Estado deveria romper com os projetos de modernização desenvolvidos pela cultura ocidental e buscar uma rota própria de constituição das instituições políticas e burocráticas. Guerreiro Ramos foi um dos responsáveis por introduzir a sociologia de Weber no Brasil, quando de sua atuação no Departamento de Administração do Serviço Público (DASP). Como funcionário do DASP e, mais tarde, assessor de Getúlio Vargas, Guerreiro Ramos se dedicou a diferentes pesquisas empíricas e à introdução e discussão de diferentes matrizes teóricas da sociologia das organizações. Para ele, a organização do serviço público deveria ter uma base cientíica voltada a temas práticos, tais como a mortalidade infantil, o orçamento familiar, o processo de industrialização e urbanização, as transformações nos padrões de consumo da sociedade. Estes temas, aos quais Guerreiro se dedicou quando funcionário do DASP, irmaram o pressuposto de que, para ele, o conhecimento sociológico é, antes de qualquer coisa, um conhecimento prático, voltado para os problemas sociais contemporâneos. O que esta sociologia engajada jamais poderia perder, segundo ele, é o caráter de promoção existencial da autonomia da vida social. Como intelectual, Guerreiro Ramos procurou constituir esta sociologia prática, mas seu trabalho foi realizado de forma quase isolada, sem um contexto institucionalizado que lhe desse apoio e sustentação. A exceção é o período em que atuou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e depois quando ajudou a fundar a Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) (Schwartzman, 1983). 2. A sociologia sobre o tema das raças de Costa Pinto circunscreve-se ao projeto da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) voltado para a construção de um conceito cientíico de raça que pudesse se contrapor às matrizes racialistas. De acordo com Costa Pinto, a questão do negro no Brasil deve ser compreendida na dimensão das classes, observando-se, sobretudo, a posição do negro-proletário. Ademais, é fundamental observar o conlito intrarraça, que promove a ascensão isolada de negros e mulatos, constituindo um quadro de tensão social que envolve uma elite negra de classe média. Esta enfrenta a barreira representada pelos valores tradicionais do branco, o qual tenta colocar, a todo instante, o negro “em seu lugar”. É nesse sentido que a questão racial assemelhar-se-ia a um domínio de castas, em que o problema fundamental é o da hierarquia social estabelecida em torno de valores. A este respeito, conferir Maio (1997). Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 637 Essa posição de uma “sociologia em mangas de camisa” e pouco institucionalizada fez Guerreiro Ramos tomar parte em uma das principais controvérsias que coniguraram a sociologia brasileira. No âmbito do II Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia, em 1953, Guerreiro Ramos apresentou as suas teses a respeito do conceito de redução sociológica, originalmente apresentadas na Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo. A controvérsia se deu pelas críticas que Florestan Fernandes fez em relação às teses da Cartilha, tendo em vista questões epistemológicas e também político-ideológicas. Para Florestan Fernandes, a sociologia, como ciência, deveria seguir um padrão institucionalizado e universal, independentemente dos recursos disponíveis para o trabalho sociológico. Segundo Fernandes, não importavam as particularidades históricas e sociais de uma sociedade para que o trabalho cientíico fosse possível. A sociologia era, para ele, uma ciência positiva, o que demandava uma especialização voltada para a construção do conhecimento, cujo trabalho é feito por acadêmicos treinados nas doutrinas e nas atividades inerentes ao trabalho empírico. As ciências sociais brasileiras, de acordo com Fernandes, deveriam romper com o padrão ensaístico que então as dominava, institucionalizando o ofício de sociólogo em torno de padrões cientíicos universais (Fernandes, 1977). Para Guerreiro Ramos, entretanto, o trabalho da sociologia no Brasil deveria buscar uma perspectiva de aloração da consciência. A tarefa primordial da sociologia no Brasil, observando-se as condições histórico-sociais da nação, seria a busca de uma condição existencial da sociedade, fazendo-a tomar consciência de suas condições e possibilitando-lhe rever suas trajetórias e ins (Ramos, 1996). Em função dessa controvérsia, Guerreiro Ramos procurou organizar suas teses sobre a epistemologia das ciências sociais no Brasil em A redução sociológica, originalmente publicado em 1965. Para o autor: A redução sociológica é um método destinado a habilitar o estudioso a praticar a transposição de conhecimentos e de experiências de uma perspectiva para outra. O que a inspira é a consciência sistemática de que existe uma perspectiva brasileira. Toda cultura nacional é uma perspectiva particular. Eis porque a redução sociológica é, apenas, modalidade restrita de atitude geral que deve ser assumida por qualquer cultura em processo de fundação (Ramos, 1996, p. 42). A inluência que o pensamento pós-colonial de Franz Fanon e de Balandier exerceram em Guerreiro Ramos está na coniguração da atividade sociológica, epistemologicamente, no que ele nomeia como perspectiva. Uma perspectiva, para Guerreiro, é o modo segundo o qual se constitui um tipo de olhar diferenciado sobre um objeto de estudo. Este olhar se conforma e ganha substrato normativo por meio de uma cultura que o insere em um conjunto de valores e de percepções de mundo. A sociologia é um tipo de atividade hermenêutica, em que as percepções acerca do próprio mundo social coniguram os problemas e o modo de abordar 638 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil determinada realidade social. Por inluência da ilosoia de Husserl, a perspectiva é um tipo de abordagem do mundo social estipulada pela cultura. De acordo com esta ideia de perspectiva, três elementos precisam ser destacados em relação à tarefa da redução sociológica, de acordo com Guerreiro Ramos: i) ela é um tipo de conhecimento fundacional, inspirado na busca das condições ontológicas e existenciais da cultura brasileira; ii) ela ressalta a necessidade de se compreenderem as condições críticas para a ciência nacional; e iii) as condições desta consciência crítica suscitam a existência de uma cultura particular, a qual é o objeto primordial da sociologia brasileira. Por esta perspectiva, não cabe, segundo Guerreiro, a existência de uma sociologia institucionalizada se ela não se der conta do fato nacional brasileiro e de seus problemas concretos. A tarefa da redução sociológica, ante um padrão institucionalizado de conhecimento sociológico então em ascensão no Brasil, seria descortinar os problemas reais da sociedade brasileira, focados nos valores e nas percepções deinidos pela identidade nacional. Não basta, segundo o autor, importar formas de conhecimento exteriores à cultura brasileira, pois o resultado é reproduzir uma condição subalterna e alienada que contraria a própria existência da sociedade brasileira. Se a sociologia é um tipo de conhecimento prático, cabe a ela buscar as bases interpretativas da cultura, com o condão de analisar e rever os problemas sociais dela derivados. A obra de Guerreiro Ramos também recebeu forte inluência do existencialismo de Sartre e da ontologia de Heidegger. Se o objetivo da sociologia é descortinar as condições existenciais da sociedade brasileira, atesta Guerreiro Ramos que todas as questões e perguntas suscitadas pela atividade sociológica devem se dirigir ao que ele nomeou como fato nacional brasileiro. As condições existenciais que Guerreiro procurou compreender dizem respeito à coniguração da identidade nacional no Brasil. O fato nacional brasileiro se refere ao Brasil ter deixado de ser um povo natural para se tornar um povo histórico. As condições do desenvolvimento acelerado na Era Vargas propiciaram o alorar desta consciência crítica que deveria ser organizada e reletida pela sociologia. As condições do desenvolvimento brasileiro – que, segundo o autor, se expressam pela industrialização, pela urbanização e pela mudança nos padrões de consumo, com a inclusão do meio popular – suscitaram o estágio de uma consciência crítica do Brasil sobre si mesmo. O Brasil, inalmente, havia chegado à sua condição histórica, rompendo com os padrões impostos pelo estatuto colonial. E por ter alcançado a sua condição histórica é que o conhecimento sociológico se torna possível e necessário. Observando o movimento de reação ao colonialismo no mundo afro-asiático, Guerreiro Ramos aponta que a redução sociológica é uma tarefa de construção de um conhecimento em torno de uma perspectiva da cultura nacional. O autor veriicava no Brasil o mesmo movimento das conferências terceiro-mundistas e Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 639 pan-africanas – como a de Bandung, ocorrida em 1955, a do Cairo, em 1957, e as de Acra e Tânger, em 1958 –, tendo em vista ações que se constituíam por normas derivadas de projetos autônomos de existência. A redução sociológica, portanto, é um movimento pós-colonial de busca de um conhecimento existencial próprio, que não nega os avanços da ciência, mas não reproduz os termos hegemônicos de seu discurso. Ela é, sobretudo, uma atitude consciente e crítica, cujo conteúdo não é parcial, mas de reivindicação universal de reconhecimento da própria existência. É nesse sentido que não é possível compreender a sociologia de Guerreiro Ramos sem compreender suas teses sobre o nacionalismo. Se a redução sociológica signiica um alorar da consciência crítica de uma sociedade, as identidades nacionais são fundamentais como substrato normativo de uma sociologia engajada. É importante frisar que, para Guerreiro Ramos, o nacionalismo não é um movimento político baseado em heranças raciais ou fundamentalistas. O nacionalismo, para ele, é uma experiência de ação comunitária, fundada em valores e ins capazes de instituir, por meio do poder, as possibilidades contidas em uma etapa social determinada. É necessário observar o que Guerreiro entende por poder. Seguindo o conceito weberiano, Guerreiro compreende o poder como “a oportunidade que possui um indivíduo, ou um grupo, de impor a sua vontade na ação comum, mesmo contra a resistência de outros que dela participam” (Weber apud Ramos, 1957, p. 18). O poder, para Guerreiro, é um ingrediente inseparável de toda sociedade. O autor absorve este conceito weberiano de poder, observando que a vontade constitui o elemento primordial da ação comunitária. Conforme a sociologia weberiana, se a ação comunitária estabelece os valores fundamentais da ação política, é necessário conigurar o conceito de poder em torno de situações históricas dadas. É nesse sentido que, para Guerreiro Ramos, o conceito de poder deve ser seguido de um adjetivo. Nesse caso, o termo poder deve ser seguido da característica nacional, observando-se o modo como a direção política de uma sociedade é exercida. A característica nacional diz respeito ao olhar que a sociologia nacionalista deveria lançar sobre o corpo político, tomando as posições das classes dominantes e das classes dirigentes como objeto fundamental da interpretação política. Sendo o nacionalismo uma experiência social que funda os valores básicos da ação comunitária, o poder deve ser seguido da expressão nacional. É o poder nacional o conjunto de todos os grupos e indivíduos dirigentes que desempenham papel ativo na organização de um país; de todos os elementos políticos por excelência que concentram em suas mãos a direção econômico-social, o poder militar e as funções administrativas (Ramos, 1957, p. 11). O nacionalismo não é a expressão exótica de uma orientação fundamentalista, mas o conjunto dos valores e das percepções estipulados em uma cultura que delineiam a direção do poder político. A condição moderna do poder político exige que a vontade seja estipulada por uma razão normativa de fundo. A condição 640 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil nacional é o alorar de uma consciência crítica, capaz de conigurar a vontade por meio de uma existência autônoma de um povo. O nacionalismo, portanto, é um substrato normativo capaz de informar a vontade coletiva por meio da ação comunitária e, dessa forma, conformar a ação social por meio da atividade política (Ramos, 1957). O nacionalismo, ademais, é a ruptura com a situação de dependência colonial, constituindo as premissas fundamentais para conduzir o processo emancipatório de um país (Ramos, 1960; Souza, 2009). O caso brasileiro revela que o poder nacional emergiu com o processo de desenvolvimento. A independência do Brasil, em 1822, segundo Guerreiro Ramos, não proporcionou a emancipação social; apenas estabeleceu uma forma nacional para a sociedade, sem a presença do substrato normativo das identidades. O Brasil Império e a República Velha seriam o domínio privado de fazendeiros, que se institucionalizava na forma de oligarquias mantidas em torno de compromissos políticos. “O que sociologicamente é relevante, porém, é assinalar que, durante o período de dominação dos fazendeiros, o Brasil foi um país sem povo” (Ramos, 1957, p. 14). A independência instituiu uma forma nacional, sem um conteúdo de valores capazes de assegurar a existência de uma identidade e de uma cultura nacional. A ruptura só ocorreria a partir da industrialização e da urbanização do Brasil, fazendo com que os titulares do poder, os proprietários de terras, perdessem suas posições dominantes. Contudo, não perderam sua condição dirigente. A modernização brasileira criou um hiato, segundo Guerreiro, entre as classes dominantes e as classes dirigentes. Este desencontro seria o principal entrave à emergência do poder nacional no Brasil, uma vez que não propiciaria que a vontade geral pudesse condicionar a ação política. O Brasil da Era Vargas seria o Brasil do desencontro entre as classes dominantes e as classes dirigentes. O problema principal, de acordo com o autor, é que o desenvolvimento brasileiro segue um modelo de complementaridade. O desenvolvimento não permite o alorar de uma cultura capaz de romper com a dependência colonial. Uma vez que a classe dirigente alinha-se a todo o atraso brasileiro, originado do estatuto colonial, cria-se um processo complementar de desenvolvimento que reproduz as amarras de uma cultura dependente. O desenvolvimento, sem o substrato normativo do nacionalismo, terminaria por reproduzir as condições de dependência colonial. O desenvolvimento seria uma espécie de fuga para a frente, sem proporcionar um processo sólido de emancipação social. O nacionalismo no Brasil, segundo Guerreiro Ramos, seria o fator de ruptura, dependente da posição que as classes dominantes exerceriam no processo de aloramento de uma cultura pós-colonial. O fundamental é romper com a complementaridade do desenvolvimento: Jamais poderemos levar a bom termo o nosso processo de emancipação, se as instâncias do poder, em suas mais diversas modalidades, forem apenas receptivas ao que se contém de possibilidade material nesse processo, e não sentirem a exigência ética nele Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 641 incluída, isto é, o seu conteúdo de valor. Na medida em que tais instâncias de poder pautarem sua ação em critérios correspondentes ao que aqui estamos chamando de complementaridade, estarão não só embaraçando o processo de emancipação, como desvirtuando-o, degradando-o (Ramos, 1957, p. 30). O surgimento de uma mentalidade nacional (ou pós-colonial) no Brasil dependeria de uma modiicação das bases interpretativas da sociedade, capazes de romper com o processo complementar do desenvolvimento. A redução sociológica, nesses termos, serviria para a construção de bases interpretativas do Brasil, solidiicadas em uma mentalidade nacional. Não se pode compreender, por conseguinte, o problema epistemológico da sociologia, lançado por Guerreiro Ramos, sem a compreensão de suas teses sobre o nacionalismo. A redução sociológica é a tarefa mediante a qual se descobrem os pressupostos referenciais dos objetos e dos fatos da realidade social (Ramos, 1996, p. 71). Por isso, ela não é ditada pelo imperativo do conhecimento pelo conhecimento mas por sua atividade prática, balizada nas necessidades reais da comunidade e no projeto de sua existência histórica. A sociologia é fundamental ao aloramento de uma mentalidade nacional à medida que ela sirva à busca das experiências existenciais de um povo. No entanto, antes de qualquer coisa, ela exige, segundo Guerreiro Ramos, uma posição metódica e cientíica. A redução sociológica é um processo de conhecimento. O autor postula um conjunto de enunciados que coniguram este processo, conforme exposto a seguir. 1) A redução sociológica é uma atitude metódica. Com isso, o autor quer dizer que o conhecimento sobre a sociedade exige a obediência a regras que se pautem pelo esforço de depurar o objeto de estudo, com o objetivo de formulação exaustiva e radical do seu signiicado. A atitude metódica não é uma atitude espontânea. Ela pretende dar conta dos signiicados mais profundos da realidade social, indo além dos aspectos externos dos fenômenos sociais. A atitude metódica não trata de airmar ou aceitar os aspectos da realidade social mas de invertê-los com o im de fazer do conhecimento uma ferramenta para a emancipação social. 2) A redução sociológica não admite a existência na realidade social de objetos sem pressupostos. Para Guerreiro Ramos, seguindo a sociologia weberiana, a realidade social é sistemática e representa um conjunto de fatos que guardam conexões entre si. A realidade social é dotada de sentido, e são as suas conexões de sentido que estabelecem as signiicações sociais. Os pressupostos dizem respeito ao processo de valoração social que estabelece o signiicado dos objetos de estudo do sociólogo. Logo, é fundamental ao processo de conhecimento, por meio da redução sociológica, absorver estas valorações com o objetivo de compreender melhor os vínculos que os fenômenos sociais guardam entre si. 642 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 3) A redução sociológica postula a noção de mundo. Seguindo a ilosoia de Husserl, a redução sociológica deve dar conta de que a consciência ocorre à luz da reciprocidade de perspectivas. A consciência e os objetos relacionados à realidade social são reciprocamente relacionados, fazendo com que a primeira seja, por deinição, intencional e estruturalmente referida aos objetos. “O mundo que conhecemos e em que agimos é o âmbito em que os indivíduos e os objetos se encontram numa ininita e complicada trama de referências” (Ramos, 1996, p. 72). A noção de mundo estipula, portanto, que é fundamental à redução sociológica buscar os elementos referenciais da cultura para estipular seus ins. A atividade interpretativa proporcionada pela sociologia deve dar conta desta noção de mundo em que os objetos do conhecimento não estão dissociados do sujeito que procura interpretá-los. Nesse sentido, o próximo postulado suscita a ideia de que o essencial para a redução sociológica é que ela trabalha com perspectivas. 4) A redução sociológica é perspectivista. Guerreiro Ramos parte da premissa de que a perspectiva segundo a qual os objetos são tomados os constitui. Dessa maneira, o autor estipula que o objeto de estudo não pode estar desligado de seu contexto. A perspectiva é informada, sobretudo, pela cultura, a qual estabelece o conteúdo de sentido deinido para o objeto de estudo. Se a sociologia é perspectivista, ela é uma ciência que se insere nos suportes coletivos da realidade social. 5) Os suportes para a redução sociológica são coletivos e não individuais. O trabalho do sociólogo é inserido na sociedade em que ele vive, criando situações que limitam sua margem de especulação. A sociologia, nas palavras de Guerreiro, é um conhecimento operativo e não especulativo, uma vez que seus suportes são coletivos. A sociologia só é possível em uma sociedade que assuma sua autoconsciência como processo coletivo. Isto explica que a sociologia só tenha sido possível com a modernidade. A sociologia fundamenta-se em uma lógica imanente à existência da sociedade. 6) A redução sociológica é um procedimento crítico-assimilativo da experiência estrangeira. Os suportes da redução sociológica existem em torno da autoconsciência das sociedades e em torno do fato nacional que a explica. Isto não signiica, no entanto, que ela deva prescindir dos avanços proporcionados pela ciência e de teorias constituídas em outros países. A ciência, para Guerreiro Ramos, tem uma aspiração universal e diz respeito a problemas que podem vir a afetar diferentes sociedades. A pretensão universal da ciência, porém, não elimina a característica de ela ser mediatizada, seja pelo local, pelo regional ou pelo nacional. A redução Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 643 sociológica não se opõe à transplantação de conceitos e categorias fundamentais ao conhecimento sociológico, mas exige que eles sejam submetidos a critérios de seletividade. Conceitos e categorias importados devem ser reinterpretados pela cultura nacional, de forma a adequá-los ao seu conteúdo de sentido. 7) Embora os suportes coletivos da redução sociológica sejam vivências populares, ela é uma atitude altamente elaborada. A atitude redutora, como nomeia Guerreiro Ramos, não é uma modalidade de impressionismo com relação às vivências populares. A atitude redutora precisa ser justiicada e baseada em esforços elaborados de relexão, mostrando as razões pelas quais se fundamenta. A redução sociológica é, antes de tudo, um método para o conhecimento do social, que deve ser autorreferido à cultura que o cerca. Tendo em vista esses sete postulados traçados por Guerreiro Ramos, a redução sociológica se fundamenta em quatro leis que organizam o trabalho do sociólogo: • a lei do comprometimento; • a lei do caráter subsidiário da produção cientíica estrangeira; • a lei da universalidade dos enunciados gerais da ciência; e • a lei das fases. O caráter de lei signiica que a redução sociológica só é possível por esta mirada crítica da posição do sociólogo diante das questões que cercam a comunidade. A lei do comprometimento procura incitar o conhecimento do social aos objetivos derivados da cultura nacional. A sociologia engajada de Guerreiro Ramos estabelece que “nos países periféricos, a ideia e a prática da redução sociológica somente podem ocorrer ao cientista social que tenha adotado sistematicamente uma posição de engajamento ou de compromisso consciente com o seu contexto” (Ramos, 1996, p. 105). A posição engajada corresponde ao fato de que cabe à redução sociológica a busca dos signiicados existenciais da comunidade. Esta concepção dista de um endosso entusiástico das heranças históricas ou dos traços exóticos da cultura. A posição epistemológica de Guerreiro Ramos a respeito da redução sociológica é coerente com a sua posição sobre as heranças africanas e a negritude brasileira. O comprometimento não é a aprovação entusiástica da cultura nacional, mas a imersão sistemática do cientista social no ponto de vista da sua própria comunidade. Dessa forma, o comprometimento, como se apontou nas linhas anteriores, é coerente com a ideia de que a nação é o conjunto dos valores e das percepções que uma comunidade faz sobre si mesma. Por este motivo, a redução sociológica se cerca de uma concepção pós-colonial que quer airmar a identidade nacional como fundamental para a consolidação da consciência crítica, a qual, por sua vez, possibilita o tipo de conhecimento constituído pela sociologia. 644 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil A posição nacionalista de Guerreiro Ramos não é contraditória em relação aos objetivos da redução sociológica. O conhecimento produzido no estrangeiro é fundamental para o avanço universal da ciência e para a interpretação crítica que as sociedades podem fazer sobre si mesmas. Por esta razão é que a produção cientíica estrangeira tem um caráter subsidiário. O nacionalismo de Guerreiro Ramos circunscreve-se à ideia de que as identidades estão inscritas em valores e percepções de mundo que se conformam na forma de uma nação, estabelecendo o caráter intencional e prático do conhecimento sobre o social. Transplantar conceitos e categorias desenvolvidos em outras comunidades sem os reduzir corresponde a utilizá-los envolvidos pela intencionalidade de que são portadores. A utilização de produção cientíica estrangeira é fundamental para a elaboração teórica, de acordo com Guerreiro Ramos, mas deve ser condicionada por fatores particulares da sociedade em que se vive (Ramos, 1996, p. 115). Com respeito à lei da universalidade, ela prescreve que a “redução sociológica só admite a universalidade da ciência tão somente no domínio dos enunciados gerais” (op. cit., p. 123). A ciência não deve ser feita imbuída de jacobinismo, porquanto representa, para Guerreiro, a conquista do esforço universal dos cientistas. No que diz respeito a esta terceira lei, o autor indaga por que os esforços para a construção de uma sociologia nacional no Brasil não seriam profícuos. Uma sociologia nacional não postula que a sociologia varie de nação para nação, mas que o contexto e a cultura nos quais o conhecimento social é construído importem. O que explica o insucesso de uma sociologia nacional no Brasil, segundo Guerreiro Ramos, é a situação colonial, a qual postula que o Brasil viveria uma essência alienada, em que a mentalidade dos analistas seria condicionada por fatores exclusivamente externos. A universalidade da ciência está na produção de enunciados gerais que podem ser apropriados pelo cientista social a qualquer momento. Contudo, esta apropriação ocorre em um contexto e, por conseguinte, deve estar imbuída de uma intencionalidade informada pelos valores e pelas percepções constituídas por uma cultura nacional. Quanto à lei da universalidade dos enunciados gerais da ciência, Guerreiro Ramos retira qualquer possibilidade, ao contrário de Florestan Fernandes, de a sociologia ser concebida como uma ciência positiva, realizada exclusivamente por acadêmicos. Por im, a lei das fases postula que “[à] luz da redução sociológica, a razão dos problemas de uma sociedade particular é sempre dada pela fase em que tal sociedade se encontra” (op. cit., p. 129). Ou seja, existe uma razão histórica que conforma e estabelece as fases em que os problemas relativos à sociedade se coniguram. A ideia de fase não corresponde à existência de um pensamento linear em termos de causa e efeito, mas à compreensão de momentos históricos que formam os problemas centrais com os quais as sociedades se debatem. Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 645 Guerreiro Ramos teve a ousadia crítica de formular uma filosofia do conhecimento para atribuir o caráter nacional à sociologia brasileira. Sua sociologia em “mangas de camisa”, fortemente inluenciada por uma razão pós-colonialista, não nega a universalidade do conhecimento sociológico, enquanto conhecimento cientíico. Porém, não admite que a atividade desta sociologia esteja imbuída de uma mentalidade colonial. O caráter das leis da redução sociológica não é o caráter de leis universais da epistemologia, mas o condicionamento, ao mesmo tempo, de uma mentalidade pós-colonial da comunidade cientíica brasileira, capaz de inseri-la na comunidade universal da ciência. A manutenção de uma mentalidade colonial na sociologia brasileira, com a institucionalização acrítica dos termos da ciência, jamais a inseriria na comunidade. Além disso, jamais permitiria quebrar o eixo de complementaridade que caracterizou o desenvolvimento brasileiro até então. A sociologia nacional no Brasil, seguindo-se a lei do comprometimento, deve buscar a consolidação de um imaginário pós-colonial capaz de estabelecer critérios adequados para a avaliação do desenvolvimento e superar o caráter complementar que o cerca. 3 O DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO A PARTIR DA ATIVIDADE DE REDUÇÃO SOCIOLÓGICA A redução sociológica é um método para as ciências sociais brasileiras, preocupado em estabelecer um conjunto de regras necessárias para a construção do conhecimento social. As leis da redução sociológica estão voltadas para evitar os problemas relacionados ao anacronismo de conceitos e teorias e à falta de retiicação destas teorias em relação ao contexto que se pretende compreender. Elas buscam uma interpretação correta do problema do desenvolvimento brasileiro. A atuação de Guerreiro Ramos no ISEB e no DASP, bem como na esfera política, proporcionou as bases práticas para o tratamento dispensado ao problema do desenvolvimento. A abordagem de Guerreiro Ramos sobre o desenvolvimento nacional brasileiro deve ser compreendida, na coerência de sua obra, como o ato de colocar a redução sociológica em prática (Souza, 2009). Nesse sentido, sua concepção de desenvolvimento deve vir seguida do adjetivo nacional, porquanto ela mobiliza as diferentes teorias e concepções relacionadas ao processo de modernização de maneira crítica e comprometida com os problemas brasileiros. A concepção de Guerreiro Ramos sobre o desenvolvimento nacional brasileiro é crítica à perspectiva segundo a qual o desenvolvimento econômico promoveria o desenvolvimento social. Para ele, o desenvolvimento econômico de nada adianta se não for vinculado às bases existenciais da cultura brasileira. Sem isso, as ciências sociais produzem uma falsa compreensão do desenvolvimento, reproduzindo as condições de um subdesenvolvimento atrelado a uma mentalidade colonizada. 646 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil Essa crítica às perspectivas do desenvolvimento brasileiro dirige-se aos cientistas sociais que elaboram critérios comparativos de desenvolvimento, tomando como base conceitos e categorias derivados do pensamento hegemônico europeu e norte-americano. Sem o processo de redução sociológica, os critérios comparativos adotados para a compreensão do desenvolvimento brasileiro não permitem distinguir suas causas e os seus resultados (Ramos, 1996, p. 144). Para Guerreiro Ramos, “o desenvolvimento é uma promoção mediante a qual as regiões e nações passam de uma estrutura a outra superior” (op. cit., p. 140). O autor aborda esta questão como um problema estrutural das sociedades, tendo em vista uma sociologia assentada em traços existencialistas marcados pelo conceito de nação. É primordial a esta sociologia que o problema estrutural do desenvolvimento seja enquadrado na matriz de problemas, perspectivas e valores balizados na cultura de fundo. A sociologia nacional brasileira, tendo em vista os conceitos centrais da redução sociológica, deve buscar um critério de desenvolvimento adequado e informado pela cultura nacional. Nenhuma estratégia de desenvolvimento é possível apenas pelo crescimento quantitativo de instituições, quadros e recursos. É necessário que uma estratégia de desenvolvimento seja adequada ao plano estrutural das normas sociais que são informadas pela cultura nacional. Nesse sentido, é fundamental que uma perspectiva nacional de desenvolvimento dê conta de um ponto de vista estratégico. A promoção do desenvolvimento é, segundo Guerreiro, um ato político e, como tal, exige a participação da sociedade na conformação dos objetivos e dos valores inerentes à sua fundação (Ramos, 1960). Guerreiro Ramos compreende por estratégia não uma concepção instrumental de meios e ins, mas a deinição de um horizonte de possibilidades que se abrem em confrontação com a cultura de massas. A premissa do problema do desenvolvimento em Guerreiro Ramos é que a concepção do desenvolvimento deve ocorrer a partir dos parâmetros de redução sociológica que implicam o comprometimento do cientista social com o seu contexto, o trabalho metódico e a apropriação de conceitos e categorias de forma subsidiária. O desenvolvimento brasileiro, segundo ele, exigiria um processo de modernização da sociedade, aberto aos valores e às percepções constituídas na cultura de massas. No caso brasileiro, o desenvolvimentismo da década de 1950 e 1960 proporcionou mudanças no cenário político, econômico e social brasileiro. Porém carecia, ainda, de uma perspectiva crítica capaz de solidiicá-lo no plano dos valores. Para os objetivos deste texto, é fundamental perceber o modo como a sociologia de Guerreiro Ramos, tendo em vista o método da redução sociológica, é inluenciada por uma concepção pós-colonial. Além disso, é preciso compreender como esta concepção inluencia uma perspectiva de desenvolvimento especíica na obra do autor, capaz de enquadrar os objetivos estratégicos da mudança social no quadro de valores e percepções deinidos na cultura brasileira. Para tanto, é interessante observar as críticas de Guerreiro às teorias da modernização e ao formalismo brasileiro. Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 647 A concepção de desenvolvimento de Guerreiro Ramos é construída em torno de um trabalho de forte revisão da literatura sobre modernização, administração pública e desenvolvimento econômico. Em Administração e estratégia do desenvolvimento (Ramos, 1966), o autor coloca em revisão os conceitos de burocracia, ação administrativa e modernização para buscar uma concepção adequada do desenvolvimento brasileiro. Traçar uma estratégia de desenvolvimento no Brasil signiica aplicar os parâmetros metodológicos da redução sociológica para compreender o melhor caminho da mudança social. Merece destaque a crítica do autor às teorias da modernização. Para Guerreiro Ramos, a mudança social deve ser um processo consciente, tendo em vista a mudança de etapas da estrutura social para compor um processo não tautológico de evolução institucional. O autor, apoiado nas sociologias de Eisenstadt e de Don Martindale, airma que a modernização não obedece a um conjunto de condições necessárias à coniguração de uma sociedade dita moderna. As teorias da modernização erram e promovem tautologias ao procurar por pré-requisitos da mudança social aplicáveis universalmente. A análise comparativa dos processos de mudança social deve constituir um sistema de conceitos generalizados, capaz de possibilitar a comparação sistemática de diferentes sociedades e deinir rotas de modernização e, ao mesmo tempo, distinguir fenômenos particulares da mudança (Souza, 2009). Na visão do autor, políticos e administradores dos países periféricos são tentados a adotar soluções hipercorretas para os problemas reais destas nações quando o processo de desenvolvimento é analisado segundo pré-requisitos estruturais e funcionais estabelecidos em realidades sociais distintas, ditados pela experiência dos países do centro do capitalismo. Em vez de buscarem soluções hipercorretas, que reproduzem os caminhos adotados pelos países do centro do capitalismo, os países da periferia devem buscar soluções adequadas, as quais necessitam de um ponto de vista estratégico (Ramos, 1966). A estratégia administrativa deve estar voltada para a busca de soluções adequadas ao quadro histórico-cultural da nação, com o objetivo de superar os problemas práticos que se apresentam ao Estado. Segundo Guerreiro Ramos, o Estado é propulsor do desenvolvimento, e sua administração deve adotar esta perspectiva estratégica que exige, por sua vez, um processo de redução sociológica (Souza, 2009). Para Guerreiro Ramos, o principal entrave ao desenvolvimento brasileiro seria o formalismo presente na administração do Estado, que acarreta não haver uma mudança nos valores da sociedade capaz de encaminhá-la para a modernidade, mesmo com os ganhos do desenvolvimento econômico. O formalismo, segundo Guerreiro, “é a discrepância entre a conduta concreta e a norma prescrita que se supõe regulá-la” (Ramos, 1966, p. 333). Ele é típico de sociedades prismáticas, 648 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil as quais apresentam alto grau de heterogeneidade, uma vez que nelas coexistem o tradicional e o moderno, o velho e o novo, o atrasado e o avançado. Sociedades prismáticas, segundo o autor, são sociedades necessariamente duais e ambivalentes, cuja prática convencional é estipular processos de superposição de estruturas que assumem a dualidade como marca fundamental das práticas sociais. O formalismo é a discrepância entre o formal e o efetivo, fazendo com que o conhecimento objetivo sobre a realidade institucional deste tipo de sociedade jamais possa ser consolidado a partir de suas estruturas normativas e legais. O formalismo é típico de sociedades que se estruturam em circunstâncias de dependência em relação aos países do centro do capitalismo e que têm um tipo de cultura fortemente elitista. O caráter dual do formalismo implica que as normas sociais e legais são sempre adaptáveis à realidade e têm um caráter convencional. É um tipo de comportamento de sociedades que carecem de forma, uma vez que sua cultura se alinha a parâmetros de uma mentalidade colonizada. A não obediência às normas, não adaptadas à realidade, no cotidiano dos órgãos administrativos do Estado, é a tônica de sociedades prismáticas. O resultado é que projetos de desenvolvimento, que provocam mudança dos padrões normativos da sociedade, esbarram em convenções previamente ixadas e em um comportamento ora irônico, ora histriônico das elites. A conduta política das elites ou se baseia em uma ironia de fundo ou em uma reação moralista pouco organizada, fazendo com que o formalismo implique um conservadorismo de base que impede a mudança dos valores da cultura social (Ramos, 1966, p. 341). Em sociedades que convivem com o formalismo, normalmente, os indivíduos têm consciência das normas existentes, contudo sua ação concreta ocorre em contextos que procuram adaptar as normas existentes às necessidades reais. Esta discrepância entre normas e comportamento implica que o processo de desenvolvimento ocorra em torno de um processo de acomodação. O desenvolvimento econômico e a modernização administrativa do Estado não geram uma mudança estrutural profunda, mas apenas um processo de acomodação da sociedade ao estilo de vida moderno. Como ressalta Guerreiro Ramos, o formalismo não impede o desenvolvimento econômico. Muitas vezes, faz com que ele se torne necessário. As mudanças sociais, porém, nunca ocorrem de modo a serem inclusivas e profundas. Respeitam apenas a um processo de acomodação e complementaridade, os quais não permitem uma institucionalização efetiva de normas modernas e um processo autêntico de transformação. Em sociedades prismáticas, a mudança social ocorre, mas sempre pautada por uma elite que reinventa seus valores tradicionais. No caso brasileiro, segundo Guerreiro Ramos, o formalismo ocorre exatamente pela falta de forma à nação. O processo de independência foi apenas um processo formal de ruptura com o estatuto colonial. A ausência de forma da nação fez com Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 649 que ela tivesse que tomar emprestado a outras nações os seus valores, modos de vida, hábitos de consumo, padrões de trabalho, instituições políticas. Institucionalmente, a sociedade brasileira seria, em seu nascedouro, uma sociedade formalística. Na literatura, haveria um estilo formalístico, preocupado com a forma e não com a autenticidade de seu conteúdo.3 O mesmo se pode dizer da política. De acordo com as contribuições de Alberto Torres e Oliveira Vianna, a política brasileira seria pautada por um comportamento elitista que seguiria um idealismo utópico da organização institucional do Estado (Ramos, 1966). Este idealismo implica distanciamento das instituições políticas perante a cultura nacional, resultando, necessariamente, em um padrão apenas formal – e não efetivo – de cidadania e de direitos. Para Guerreiro Ramos, Visconde do Uruguay, Oliveira Vianna, Silvio Romero e Alberto Torres foram os primeiros a fazer a crítica do formalismo brasileiro. No entanto, nenhum deles, de acordo com o autor, logrou atingir uma compreensão satisfatória do formalismo brasileiro. Apesar de Guerreiro citar autores do pensamento autoritário como importantes à crítica do formalismo brasileiro, ele ressalta que os corretivos propostos reletem uma compreensão parcial da natureza do fenômeno, ao acreditarem que o Estado, sobrepondo-se autoritariamente à sociedade, pudesse conduzir o Brasil ao caminho da modernidade (op. cit., 1966, p. 361). Para Guerreiro Ramos, o formalismo brasileiro implica o jeitinho como o genuíno processo para resolver diiculdades. O jeitinho é uma estratégia para contornar diiculdades a despeito da lei ou mesmo contra ela. É uma condição de sobrevivência do indivíduo em uma sociedade que carece de processos mais sólidos de institucionalização da lei. É também uma estratégia de preservação do corpo social, no qual as leis são textos fora de contextos e não respeitam a cultura nacional de fundo. O Brasil seria uma sociedade que transplanta leis advindas de experiências estrangeiras de forma acrítica, sem estabelecer a relevância delas para as necessidades reais do desenvolvimento. É importante frisar que, para Guerreiro Ramos, o jeitinho não é uma regra do caráter nacional brasileiro, equivalente a um traço de originalidade da população. Não é um tipo de comportamento herdado do patrimonialismo português. O jeitinho é a vigência do formalismo em um contexto de uma estrutura de poder altamente oligárquica e diferenciada (op. cit.,1966, p. 381). Nesse sentido, diante do formalismo e do jeitinho na cultura brasileira, não basta a importação de normas e leis deinidas no estrangeiro. O resultado disso é constituir na sociedade brasileira uma devassa moral que pode resultar em formas autoritárias e mais oligarquizadas de poder. Importar soluções modernizantes sem o processo de redução sociológica acarreta a adoção de soluções hipercorretas, mas que geram reações conservadoras na base da sociedade. O político e o administrador 3. Guerreiro Ramos apoia-se em Sílvio Romero para airmar que a literatura brasileira teria um tom formalístico. Para Romero, a literatura brasileira seguiria padrões dogmáticos deinidos em estilos adventícios determinados pela cultura francesa. A este respeito, conferir Ramos (1966, p. 352). 650 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil devem adotar, ante o formalismo, não a busca de soluções hipercorretas, mas uma concepção estratégica de desenvolvimento capaz de colocar o Brasil na rota da modernidade. Dessa forma, o formalismo não deve ser uma espécie de inimigo inconteste da sociedade, nem mesmo se devem transplantar ideias e normas que serviram ao desenvolvimento de países do centro do capitalismo. O formalismo brasileiro, ao ser concebido dentro de uma concepção estratégica de desenvolvimento, com base no processo de redução sociológica, deve servir à modernização (Ramos, 1966, p. 387). O fundamental é romper com uma perspectiva elitista e colonizada, constituindo estratégias próprias de desenvolvimento que alicercem um caminho próprio para a modernização, sem as tautologias designadas por uma concepção que queira estabelecer os pré-requisitos do desenvolvimento. Seguindo a airmação de Euclides da Cunha de que o Brasil seria “o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política” (Cunha, 1999, p. 341), Guerreiro Ramos airma que a origem do formalismo está no processo de construção nacional. Segundo ele: Os três poderes, nas velhas nações, foram primeiramente uma realidade, costumes coletivamente consagrados e, depois, uma teoria formal e sistemática, elaborada e discutida por autores. No Brasil, por força da particularidade da sua formação histórica, observa-se o inverso desse processo. Não caminhamos do costume para a teoria; do vivido concreta e materialmente para o esquema formal. É o inverso que se dá; caminhamos, até agora, no tocante à construção nacional (nation building), do teórico para o consuetudinário, do formal para o concretamente vivido. O formalismo é, nas circunstâncias típicas e regulares que caracterizam a história do Brasil, uma estratégia de construção nacional (nation building) (Ramos, 1966, p. 389). Romper com as interpretações tautológicas do formalismo brasileiro signiica partir da premissa de que qualquer estratégia de desenvolvimento deve encará-lo como elemento central para a sua consecução. Uma vez que o formalismo é o elemento deinidor da nação, visto que as regras sempre tiveram um caráter exógeno, derivado de uma mentalidade colonial, qualquer projeto de mudança social no Brasil deve adotá-lo como estratégia para o desenvolvimento. Se o desenvolvimento, respeitando uma mentalidade pós-colonial, deve estar alicerçado no plano dos valores e percepções deinido pela cultura, o formalismo brasileiro deve ser um elemento central para a constituição de uma estratégia de desenvolvimento sem a presença de soluções hipercorretas. Para Guerreiro Ramos, é essa característica formal da sociedade brasileira que permite a sua articulação, enquanto sociedade periférica, com o mundo. A sociedade brasileira, em função do formalismo, mostra-se uma sociedade adaptável à mudança. No caso da administração pública, o formalismo permite certa maleabilidade das instituições em relação à sociedade. Ademais, o excedente de pessoas diplomadas pode ser incorporado no Estado, de modo que o formalismo Guerreiro Ramos, a Redução Sociológica e o Imaginário Pós-Colonial 651 contribui para a mobilidade social ascendente. A mobilidade ascendente de negros, por exemplo, foi fortemente inluenciada pela presença deles no serviço público brasileiro (Ramos, 1960). O formalismo, segundo Guerreiro Ramos, “atesta que ela está em movimento histórico, ascendente, positivo; que está deixando de ser o que era” (Ramos, 1966, p. 395). O formalismo, fenômeno inerente à realidade social brasileira, é elemento imprescindível de ser considerado em qualquer estratégia de desenvolvimento, uma vez que a base do processo de construção nacional se deu a partir de seu alcance. Portanto, ele é, no Brasil, um fenômeno regular e normal, que existe em função de uma cultura política mais sólida. O formalismo é o momento de uma transição, que respeita um processo histórico em que a institucionalização de normas deve obedecer a um processo regular de gradativa institucionalização na cultura nacional. Guerreiro Ramos era, antes de qualquer coisa, um otimista em relação ao Brasil. Para ele: O desenvolvimento, no Brasil, enquanto persistir a dualidade, jamais implicará, em cada fase, a substituição integral do velho pelo novo, mas, antes, a cooptação do velho pelo novo, dos elementos arcaicos e retardatários pelos elementos modernos e atuais (Ramos, 1966, p. 417). Sendo assim, o formalismo é uma estratégia de mudança social, imposta pelo caráter dual da formação histórica brasileira e pelo modo como o Brasil se articula com o mundo. Reconhecido isso, é possível, segundo Guerreiro Ramos, superar a mentalidade colonial e fazer com que a sociologia tenha o papel fundamental de compreender e trabalhar o caráter existencial da cultura brasileira, a qual, de acordo com ele, ainda é fenômeno obscuro e passível de interpretação. Buscar as bases existenciais da sociedade brasileira, por meio da redução sociológica, é reconhecer que a rota para o desenvolvimento deve estar alicerçada no conjunto de problemas práticos que o fato nacional brasileiro implica. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este texto tratou das bases epistemológicas fundamentais do pensamento social de Alberto Guerreiro Ramos. Mostrou-se que este autor, ao estabelecer o método da redução sociológica, proporcionou a consolidação de uma concepção própria de desenvolvimento para o Brasil, a qual está preocupada, fundamentalmente, com as bases interpretativas da cultura, de forma a consolidar uma via própria para a modernização. Este movimento de discussão metodológica do fazer sociológico no Brasil e da sua importância para a interpretação das condições existenciais brasileiras proporcionou a consolidação de uma perspectiva de desenvolvimento alicerçada em um imaginário pós-colonial. Observe-se que este imaginário pós-colonial é publicamente informado e orientado pelas bases interpretativas abertas pelo Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil 652 conhecimento autêntico da cultura brasileira. Não se propala, então, uma fórmula universal para o desenvolvimento, mas uma perspectiva estratégica e cientiicamente informada. A sociologia, nesse sentido, tem papel fundamental, desde que não seja concebida em um marco institucional universal, mas que se mostre capaz de arregaçar as mangas em prol de uma cultura em formação, que busca o seu lugar no mundo. No atual contexto de revisão e revisitação das estratégias de desenvolvimento, delagradas no presente estágio da sociedade brasileira, é impossível não perceber as possibilidades que tanto o pensamento de Guerreiro Ramos quanto o pensamento pós-colonial oferecem à coniguração de um caminho próprio. Isto signiica que há possibilidade de que os projetos sejam revistos e não cometam os mesmos erros do passado. Buscar as bases existenciais da cultura brasileira pode ser um caminho aberto à imaginação, com o condão de reletir sobre a própria identidade nacional do Brasil e deixar que ela se consolide. A janela de oportunidade ora aberta exige medidas de conhecimento. A redução sociológica pode ser um caminho, entre os vários apresentados à sociedade brasileira. REFERÊNCIAS CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. In: SANTIAGO, Silviano (Org.). Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. v. 2. MAIO, Marcos Chor. Uma polêmica esquecida: Costa Pinto, Guerreiro Ramos e o tema das relações sociais. Dados – revista de ciências sociais, v. 40, n. 1, 1997. OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. A sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995. RAMOS, Alberto Guerreiro. O negro no Brasil e um exame de consciência. 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Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Editorial Coordenação Cláudio Passos de Oliveira Supervisão Andrea Bossle de Abreu Everson da Silva Moura Revisão Carlos Eduardo Gonçalves de Melo Elaine Oliveira Couto Elisabete de Carvalho Soares Lucia Duarte Moreira Luciana Bastos Dias Luciana Nogueira Duarte Míriam Nunes da Fonseca Vivian Barros Volotão Santos (estagiária) Editoração Aeromilson Mesquita Aline Cristine Torres da Silva Martins Carlos Henrique Santos Vianna Roberto das Chagas Campos Nathália de Andrade Dias Gonçalves (estagiária) Bernar José Vieira Cristiano Ferreira de Araújo Daniella Silva Nogueira Danilo Leite de Macedo Tavares Diego André Souza Santos Jeovah Herculano Szervinsk Junior Leonardo Hideki Higa Capa Aline Cristine Torres da Silva Martins The manuscripts in languages other than Portuguese published herein have not been proofread. Brasília SBS – Quadra 1 – Bloco J – Ed. 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Foram mais de dois anos de trabalho, milhares de páginas de relatórios, que aqui se concentram em textos-sínteses de uma seleta de contribuições feitas a partir de pareceres e da escolha dos organizadores. Os capítulos convidam a uma reflexão sobre temas relevantes do desenvolvimento e proposições de políticas inovadoras, atingindo um dos objetivos mais importantes de criação do programa: aprofundar o debate, em suas múltiplas modalidades teóricas, sobre o desenvolvimento. Ademais, todos eles cumpriram a função de recuperar pensadores do desenvolvimento brasileiro que, embora clássicos pela repercussão de suas contribuições, estavam de alguma forma relegados pela ausência de memória do debate contemporâneo sobre os rumos do desenvolvimento econômico brasileiro. ISBN 978-85-7811-241-7 9 78 8 5 7 8 1 1 2 4 1 7 Secretaria de Assuntos Estratégicos