Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

O Fenômeno Hamilton

Breve ensaio sobre as possibilidades de compreensão do espetáculo "Hamilton: an American Musical" (2015), fenômeno cultural que narra a história de Alexander Hamilton, um dos "pais fundadores" dos Estados Unidos.

O Fenômeno Hamilton Marcos Sorrilha Pinheiro* Um musical sobre o milagre que é a América, um lugar de cidadania onde debatemos ideias com paixão e convicção. Um lugar de inclusão, onde valorizamos nossa divertida diversidade como um dom. Um lugar de oportunidades onde não importa o quão humilde sejam as origens, nós podemos conseguir se tentarmos. Essa é a história da América, uma experiência que ainda não terminou. Um projeto que pertence a todos nós. A América é o que nós, o povo, fazemos dela, desde que nos mantenhamos assim, como o nosso país: jovem, intrépido e faminto (Barack e Michelle 1 Obama na entrega do Prêmio Tony, 2016) . Anunciado no último Tony Awards não apenas como um game changer da cena artística, mas um fenômeno cultural, o espetáculo Hamilton: an American Musical (2015) é sem dúvida um dos mais bem sucedidos musicais produzidos na Broadway. Os recordes de bilheteria e de valor único por bilhete atestam sua popularidade, bem como o seu êxito junto a um público fiel que, hoje, consome outros produtos a ele atrelados, como: camisetas, álbuns, canecas e outros suvenires dos mais variados tipos. Não demorou para que o fenômeno se alastrasse pelos mecanismos de produção cultural, levando Lin-Manuel Miranda (produtor, ator e autor da peça) a participar de um número incontável de entrevistas nos principais programas do gênero na América. Tal visibilidade lhe rendeu um contrato com a Disney que, por sua vez, resultou em sua indicação ao Oscar de melhor Trilha Sonora pela animação Moana. Por essas e outras, Lin-Manuel, é visto hoje como uma espécie de “jovem gênio” e sua fama lhe gerou a admiração e o interesse dos principais nomes do mercado fonográfico2. Prova disso foi a organização de um álbum (The Hamilton Mixtape, 2016) com versões das principais canções de seu espetáculo e gravadas por artistas como Usher, Alicia Keys, Queen Latifah, Jill Scott, entre outros. Não bastasse a aprovação calorosa do público e a adesão efusiva entre os produtores de cultura nos Estados Unidos, Hamilton: an American Musical também ganhou amplo reconhecimento da crítica. Não a toa, foi o grande vencedor na noite * Professor Doutor do Departamento de História da Unesp de Franca, Bolsista Fapesp e Professor Visitante no Departamento de História da George Washington University - Washington/D.C. 1 Ver a íntegra do discurso aqui: http://www.slate.com/blogs/browbeat/2016/06/12/hamilton_tonys_cast_performs_yorktown_the_world_t urned_upside_down_video.html 2 Caso vença a premiação, Lin-Manuel Miranda será o mais jovem autor a ganhar Grammy, Oscar, Tony e Emmy por suas obras. Além disso, é detentor de um Pulitzer. de entrega do Tony Awards, mencionado anteriormente, levando onze estatuetas, após ter estabelecido o novo recorde de 16 indicações3. Nesta mesma ocasião, coube ao casal Obama fazer as honras de introduzir um pequeno resumo da obra à plateia4. Evidentemente, não foi apenas neste episódio em que o musical e a política se misturaram. Na realidade, esta simbiose se dá desde a própria concepção do espetáculo, uma vez que ele narra a trajetória de um personagem político da história norte-americana que, aparentemente, encontrava-se perdido no imaginário popular. Conhecido como o eterno rival de Thomas Jefferson, um presidente mais famoso, Alexander Hamilton (1757 – 1804) figurava como um dos “pais fundadores” dos Estados Unidos que de menor prestígio gozava entre seus compatriotas. Um exemplo disso foi quando tomou corpo a discussão a respeito da inserção do rosto de Harriet Tubman nas notas de Dólar. Hamilton era o mais cotado para deixar a cédula de 10 dólares e ceder o seu espaço à histórica líder abolicionista, mesmo tendo sido ele, ironicamente, o criador do sistema financeiro norte-americano. No entanto, o sucesso acachapante do espetáculo que leva o seu nome não foi responsável apenas por elevar Lin-Manuel Miranda à fama, mas recolocar o próprio Alexander Hamilton de volta às principais linhas da história de seu país. Justamente por isso, o seu espaço acabou sendo garantido. Pior para Andrew Jackson que irá abandonar o seu posto cativo na nota de 20 dólares5. Recolocar o personagem histórico de volta ao protagonismo não parece ter sido a intenção de seu idealizador, mas, sem dúvida alguma, a ideia de “dar voz” a este sujeito esquecido e “apresentar a sua história jamais contada” é o mote central da peça. Desde a primeira canção até a última, é possível se constatar tal intenção. Em Who Lives, Who Dies, Who Tells Your Story, composição que encerra o espetáculo, isto fica evidente nas falas dos personagens Angelica Schuyler e Aaron Burr, quando dizem: “Every other founding father story gets told/ Every other founding father gets to grow old/ But when you're gone, who remembers your name?/ Who keeps your flame?/ Who tells your story?”6. 3 Ver: https://www.nytimes.com/2016/05/04/theater/hamilton-tony-nominations-record.html?_r=0 A propósito, o ex-presidente dos EUA é um dos fãs declarados da peça, tendo convidado Lin-Manuel e sua trupe a apresentar algumas esquetes de Hamilton em sessões privadas na Casa Branca. Ver: https://www.washingtonpost.com/news/morning-mix/wp/2016/03/15/hamilton-star-lin-manuel-mirandareturns-to-the-white-house-and-freestyles-with-an-assist-from-obama/?utm_term=.71b7d6e5eca2 e https://www.youtube.com/watch?v=ZPrAKuOBWzw 5 Sobre a inclusão de Harriet Tubman nas cédulas de Dólar, leia: https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2016/04/20/u-s-to-keep-hamilton-on-front-of-10-bill-putportrait-of-harriet-tubman-on-20-bill/?utm_term=.52a23694040c 6 “Todas as outras histórias dos pais fundadores foram contadas/ Todos os pais fundadores puderam envelhecer/ Mas quando você se for, quem se lembrará de seu nome?/ Quem manterá sua chama acesa?/ Quem contará sua estória?” (tradução livre). 4 Neste ponto, a escolha de Lin-Manuel em como contar esta “história” explica em grande parte o sucesso e a adesão tão massiva a um espetáculo cujo tema é a história de um político do século 18, característica aparentemente pouco atrativa. Isto porque, o musical é na verdade, uma ode à cultura Hip-hop sendo a maioria de suas linhas narradas em forma de Rap. De certa maneira, tal escolha quebrou toda a formalidade que circunda as imagens imaculadas dos ícones históricos, aproximando-o da humanidade de sua plateia e, ao mesmo tempo, envolvendo o público em uma linguagem extremamente vernácula. Sem dúvida alguma, o auge desse elemento popular na peça se dá no embate protagonizado entre Thomas Jefferson e Alexander Hamilton. O histórico confronto que causou a cisão entre o autor da Declaração de Independência e o então presidente George Washington, é apresentado em forma de um “Duelo de Rap”, em duas faixas intituladas Cabinet Battle #1 e Cabinet Battle #2. Com ataques e contra-ataques de rimas performáticas e uma claque empolgada ao fundo, temos: de um lado do palco Hamilton, defendendo a centralização do Estado, representado pela criação do Banco Central; do lado oposto, está Jefferson, advogando em prol das liberdades individuais e a auto-gerência dos estados da República. Ao centro, como um mestre de cerimônias, está Washington, mediando o confronto. Historicamente, sabemos que Jefferson perdeu esta batalha. No espetáculo, a vitória é atribuída ao fato de Washington ter uma predileção por Hamilton, seu pupilo, como se vê na canção seguinte ao duelo, onde Jefferson e James Madison cantam juntos: “It must to be nice, it must to be nice, to have Washington on your side”7. Outro fator que ajuda a entender a aderência da audiência ao musical está no casting dos atores. Todos os personagens históricos são interpretados por negros, imigrantes, homossexuais, incluindo a participação de mulheres no papel de personagens masculinos ou participando de cenas onde, historicamente, contava-se ter existido somente a participação de homens. Esta escolha foi também intencional e muito bem planejada por Lin-Manuel Miranda, uma vez que a versão do Hamilton que ele se prestou a contar era a de um “bastard, orphan, son of a whore and a/ Scotsman, dropped in the middle of a/ Forgotten spot in the Caribbean by providence/ Impoverished, in squalor/ Grow up to be a hero and a scholar?”8. Na visão do autor da peça, Alexander Hamilton personificaria a América atual tornando, assim, o seu espetáculo em uma epopeia americana contemporânea, 7 “Deve ser ótimo, deve ser ótimo, ter Washington do seu lado” (tradução livre). “Bastardo, órfão, filho de uma prostituta com um/ escocês, jogado no meio de um/ lugar esquecido por Deus, no Caribe/ pobre, miserável/ que cresce para se tornar um herói e um estudioso?” (tradução livre). 8 como sugere o seu título. Nesta versão da história, Hamilton seria o único “Pai Fundador” que não pertenceria à uma elite aristocrática, dona de terras ou escravos e que, apesar de branco, seria um imigrante, filho de um relacionamento ilegítimo. Apesar de tudo isso, conseguiu se consagrar em um homem com tanta importância quanto os demais. O Hamilton de Lin-Manuel Miranda daria voz a esses diversas minorias responsáveis por dar continuidade às realizações empreendias pelos pais fundadores na luta pelo direito à liberdade. Esta ideia de tomar Hamilton como a personificação do caldo cultural que dá tons mesclados aos Estados Unidos dos dias de hoje é confirmado pelo próprio autor da peça que, em entrevista concedida ao documentário Hamilton’s America produzido pelo canal PBS, declarou o seguinte: “vamos fazer com que os pais fundadores tenham a aparência atual do nosso país”. Cabe destacar que ele próprio, que também interpreta o papel principal da peça, é filho de imigrantes portoriquenhos, nascido e crescido em Nova York. Este confronto entre o país atual e a imagem consagrada dos pais fundadores, como homens, brancos e aristocratas, também fica bastante evidente na maneira como é retratado o personagem de Thomas Jefferson. Apesar de ser interpretado por um ator negro (Daveed Diggs), fato por si só bastante emblemático, por conta de toda a questão que envolve o terceiro presidente dos EUA e a escravidão9, este aparece retratado como uma espécie de “bon-vivant”, apreciador da boa comida, do luxo e dos ambientes requintados; como alguém distante dos problemas cotidianos e dos dilemas pragmáticos da Nação que então se construía. Diante disso, Hamilton, seu antagonista clássico, ganha ainda mais os contornos de um americano comum; um sujeito simples que faz uso de sua liberdade e persegue sua felicidade. Diante de seu assombroso sucesso, Hamilton: an American Musical, ainda que de maneira não intencional, acabou produzindo uma reconstrução do personagem histórico no imaginário nacional americano. De seu esquecimento completo, hoje, passou a figurar como “o” pai fundador por excelência, fato que gerou alguns efeitos ainda mais interessantes. O próprio antagonismo estabelecido contra Jefferson é um ótimo exemplo disso. Apesar de Hamilton ter vencido a batalha de gabinete, não há dúvidas que Jefferson foi um personagem que cravou o seu nome na história de seu país com mais ênfase do que seu adversário. Toda a 9 A relação entre Jefferson e a escravidão é o tema mais abordado sobre a controversa e longa carreira política de Thomas Jefferson, principalmente a partir de meados da década de 1960, quando se começou a produzir uma revisão historiográfica a seu respeito. De um ávido defensor do fim do tráfico de escravos, fato destacado em seus rascunhos da Declaração de Independência, Jefferson entrou para a história como uma figura ambígua no trato deste tema, uma vez que jamais deu liberdade a seus próprios escravos. Sobre Jefferson e escravidão ver: COHEN, 2000 e SCHWABACH, 2010. linhagem de presidentes jeffersonianos que o sucedeu após 1808, e outras questões da história política dos EUA, acabaram por tornar Jefferson em uma espécie de consciência moral nação. Conforme ilustrou o historiador Gordon Wood (2006, s/p.), “a maioria dos americanos pensam de Jefferson o mesmo que o seu primeiro biógrafo profissional, James Parton, pensou. ‘Se Jefferson estava errado’, escreveu Parton em 1874, ‘a América está errada’. ‘Se a América está certa, Jefferson estava certo’”. Não por menos, tanto Abraham Lincoln quanto Franklin Delano Roosevelt, em momentos chaves da história estadunidense, recorreram a Jefferson em seus discursos, em busca de inspiração para a superação de seus dilemas. Esse mesmo sentimento foi identificado por Merrill Peterson em seu aclamado livro The Jeffersonian Image in the American Mind, de 1960, quando, ainda no prólogo de sua obra, o autor afirma que Jefferson é “um refletor sensível, ao longo de várias gerações, da conturbada procura que a América faz de sua própria imagem” (PETERSON, 1998: 3). É bem verdade que esta interpretação sobre Jefferson passou por uma revisão historiográfica desde a década de 1960, quando seu nome foi alvejado por historiadores que, repercutindo o momento de tensão causado pelas manifestações em prol dos Direitos Civis, entenderam ser incompatível os valores defendidos por Jefferson na Declaração de Independência e a sua condição de senhor de escravos. Tal revisão negativa da imagem do terceiro presidente dos Estados Unidos ganhou traços ainda mais severos quando, na década de 1990, comprovou-se por meio de exames laboratoriais, que ele não apenas teve um longo relacionamento com uma de suas escravas, Sally Hemmings, como esta relação teria gerado filhos (GORDON-REED, 2008). Mesmo assim, apesar do longo cerco armado pela historiografia norteamericana em torno da figura de Jefferson, alguns autores como Joseph Ellis (1998), um de seus principais biógrafos, acredita que sua imagem teria sobrevivido ao crivo popular, mantendo o seu posto de guia da razão norte-americana. Conforme defende Ellis, até mesmo o relacionamento com Sally Hemmings teria sido relevado e entendido como uma espécie de “romance proibido”. No coração dos americanos, portanto, Jefferson continuaria a possuir um espaço cativo. Evidentemente, o juízo de Joseph Ellis deverá também passar por uma revisão, tendo em vista que o terceiro presidente dos Estados Unidos parece ter ficado ainda mais enfraquecido agora que seu rival triunfa de maneira soberana nos principais veículos de produção cultural. Além disso, como dissemos, o próprio Jefferson que o espetáculo apresenta, reforça a imagem arrogante e hipócrita de um senhor de escravos que pouco tem a ver com a América dos tempos presentes10. Por fim, o mais irônico de toda a trajetória produzida por Hamilton: an American Musical reside no fato de que o ano de sua consagração foi o mesmo em que Donald Trump se sagrou vitorioso na campanha eleitoral ao posto de Presidente dos Estados Unidos. A América de Hamilton, ou ao menos aquela que nos apresenta Lin-Manuel Miranda, é bastante diferente daquela que atraiu milhões de eleitores a se unir ao discurso trumpista. Neste caso, a “experiência inacabada” parece dar lugar ao “passado consagrado”. Momentos como este levantam questionamentos em torno da relação entre a cultura e a política, fazendo com que seja ainda mais fascinante o universo do político e suas diversas possibilidades de análise. Sem que promovam um duelo aberto, Hamilton e o trumpismo se enfrentam. Um duelo velado, mas que expõe todas as rusgas e fracções de um país que ensaiou enaltecer a sua diversidade como uma qualidade. Representação cabal deste desconforto foi a recepção pouco amigável que Mike Pence, vice-presidente recém eleito teve quando foi assistir ao espetáculo, no final de novembro de 201611. Na oportunidade, após algumas vaias, o elenco acalmou a plateia e lhe dirigiu um discurso no qual reafirmava a sua condição multicultural e esperava que, apesar disso, o governo do qual ele faria parte os defendesse e garantisse seus “direitos inalienáveis”. Dentre os vários embates que Alexander Hamilton travou em sua vida, um deles lhe custou o último sopro de sua existência. Um confronto de pistolas causou a sua morte, tendo a Aaron Burr, um de seus mais próximos amigos, o seu algoz. O homem que saiu da pobreza para se tornar um dos pais fundadores teve, de fato, uma vida difícil e um final trágico. Hamilton se foi e com ele todo o seu reconhecimento. Em sua ausência, Jefferson triunfou. Séculos depois, sua história voltou a tona, provida de toda a roupagem e de todas as invenções típicas das grandes tradições e das ótimas construções históricas. Seu lado implacável e pouco conciliador deu lugar ao seu caráter destemido, de maneira a vender ao público um herói digno de sua admiração, garantindo uma sobrevida ao mito dos “pais fundadores” como amálgama da Nação. Dentre todas as novas concepções em torno dele, ao menos o seu espírito combativo parece ter resistido ao tempo. Diante de um novo duelo, apenas o tempo dirá se sua sorte continua a mesma. 10 Ver entrevista do ator Daveed Diggs que interpreta Thomas Jefferson no programa The Late Show with Stephen Colbert: https://www.youtube.com/watch?v=l6cLX9aTjQc 11 Sobre o episódio Pence vs Hamilton, acesse: http://www.cnn.com/2016/11/20/politics/mike-pencehamilton-message-trump/ Referências COHEN, William. Thomas Jefferson e o Problema da Escravidão. In: Estudos Avançados n. 14 (38), 2000. p. 151-180. ELLIS, Joseph. American Sphinx: The Character of Thomas Jefferson. First Vintage Edition. New York: Knopf, 1998. GORDON-REED, Annette. The Hemingses of Monticello: An American. Family. New York: W.W. Norton & Co., 2008 PETERSON, Merrill. The Jeffersonian Image Charlottesville: University of Virgínia Press, 1998. in the American Mind. SCHWABACH, Aaron. Thomas Jefferson, Slavery, and Slaves. In Thomas Jefferson Law Review, Vol. 33:1, 2010, p. 1 – 60. WOOD, Gordon. Revolutionary Characters: What Made the Founders Different. New York: Penguin Press, 2006 (versão Kindle).