O Fenômeno Hamilton
Marcos Sorrilha Pinheiro*
Um musical sobre o milagre que é a América, um lugar de
cidadania onde debatemos ideias com paixão e convicção.
Um lugar de inclusão, onde valorizamos nossa divertida
diversidade como um dom. Um lugar de oportunidades onde
não importa o quão humilde sejam as origens, nós podemos
conseguir se tentarmos. Essa é a história da América, uma
experiência que ainda não terminou. Um projeto que
pertence a todos nós. A América é o que nós, o povo,
fazemos dela, desde que nos mantenhamos assim, como o
nosso país: jovem, intrépido e faminto (Barack e Michelle
1
Obama na entrega do Prêmio Tony, 2016) .
Anunciado no último Tony Awards não apenas como um game changer da
cena artística, mas um fenômeno cultural, o espetáculo Hamilton: an American
Musical (2015) é sem dúvida um dos mais bem sucedidos musicais produzidos na
Broadway. Os recordes de bilheteria e de valor único por bilhete atestam sua
popularidade, bem como o seu êxito junto a um público fiel que, hoje, consome
outros produtos a ele atrelados, como: camisetas, álbuns, canecas e outros
suvenires dos mais variados tipos.
Não demorou para que o fenômeno se alastrasse pelos mecanismos de
produção cultural, levando Lin-Manuel Miranda (produtor, ator e autor da peça) a
participar de um número incontável de entrevistas nos principais programas do
gênero na América. Tal visibilidade lhe rendeu um contrato com a Disney que, por
sua vez, resultou em sua indicação ao Oscar de melhor Trilha Sonora pela
animação Moana. Por essas e outras, Lin-Manuel, é visto hoje como uma espécie
de “jovem gênio” e sua fama lhe gerou a admiração e o interesse dos principais
nomes do mercado fonográfico2. Prova disso foi a organização de um álbum (The
Hamilton Mixtape, 2016) com versões das principais canções de seu espetáculo e
gravadas por artistas como Usher, Alicia Keys, Queen Latifah, Jill Scott, entre
outros.
Não bastasse a aprovação calorosa do público e a adesão efusiva entre os
produtores de cultura nos Estados Unidos, Hamilton: an American Musical também
ganhou amplo reconhecimento da crítica. Não a toa, foi o grande vencedor na noite
*
Professor Doutor do Departamento de História da Unesp de Franca, Bolsista Fapesp e Professor
Visitante no Departamento de História da George Washington University - Washington/D.C.
1
Ver a íntegra do discurso aqui:
http://www.slate.com/blogs/browbeat/2016/06/12/hamilton_tonys_cast_performs_yorktown_the_world_t
urned_upside_down_video.html
2
Caso vença a premiação, Lin-Manuel Miranda será o mais jovem autor a ganhar Grammy, Oscar,
Tony e Emmy por suas obras. Além disso, é detentor de um Pulitzer.
de entrega do Tony Awards, mencionado anteriormente, levando onze estatuetas,
após ter estabelecido o novo recorde de 16 indicações3. Nesta mesma ocasião,
coube ao casal Obama fazer as honras de introduzir um pequeno resumo da obra à
plateia4.
Evidentemente, não foi apenas neste episódio em que o musical e a política
se misturaram. Na realidade, esta simbiose se dá desde a própria concepção do
espetáculo, uma vez que ele narra a trajetória de um personagem político da história
norte-americana que, aparentemente, encontrava-se perdido no imaginário popular.
Conhecido como o eterno rival de Thomas Jefferson, um presidente mais famoso,
Alexander Hamilton (1757 – 1804) figurava como um dos “pais fundadores” dos
Estados Unidos que de menor prestígio gozava entre seus compatriotas. Um
exemplo disso foi quando tomou corpo a discussão a respeito da inserção do rosto
de Harriet Tubman nas notas de Dólar. Hamilton era o mais cotado para deixar a
cédula de 10 dólares e ceder o seu espaço à histórica líder abolicionista, mesmo
tendo sido ele, ironicamente, o criador do sistema financeiro norte-americano. No
entanto, o sucesso acachapante do espetáculo que leva o seu nome não foi
responsável apenas por elevar Lin-Manuel Miranda à fama, mas recolocar o próprio
Alexander Hamilton de volta às principais linhas da história de seu país. Justamente
por isso, o seu espaço acabou sendo garantido. Pior para Andrew Jackson que irá
abandonar o seu posto cativo na nota de 20 dólares5.
Recolocar o personagem histórico de volta ao protagonismo não parece ter
sido a intenção de seu idealizador, mas, sem dúvida alguma, a ideia de “dar voz” a
este sujeito esquecido e “apresentar a sua história jamais contada” é o mote central
da peça. Desde a primeira canção até a última, é possível se constatar tal intenção.
Em Who Lives, Who Dies, Who Tells Your Story, composição que encerra o
espetáculo, isto fica evidente nas falas dos personagens Angelica Schuyler e Aaron
Burr, quando dizem: “Every other founding father story gets told/ Every other
founding father gets to grow old/ But when you're gone, who remembers your
name?/ Who keeps your flame?/ Who tells your story?”6.
3
Ver: https://www.nytimes.com/2016/05/04/theater/hamilton-tony-nominations-record.html?_r=0
A propósito, o ex-presidente dos EUA é um dos fãs declarados da peça, tendo convidado Lin-Manuel
e sua trupe a apresentar algumas esquetes de Hamilton em sessões privadas na Casa Branca. Ver:
https://www.washingtonpost.com/news/morning-mix/wp/2016/03/15/hamilton-star-lin-manuel-mirandareturns-to-the-white-house-and-freestyles-with-an-assist-from-obama/?utm_term=.71b7d6e5eca2
e
https://www.youtube.com/watch?v=ZPrAKuOBWzw
5
Sobre
a
inclusão
de
Harriet
Tubman
nas
cédulas
de
Dólar,
leia:
https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2016/04/20/u-s-to-keep-hamilton-on-front-of-10-bill-putportrait-of-harriet-tubman-on-20-bill/?utm_term=.52a23694040c
6
“Todas as outras histórias dos pais fundadores foram contadas/ Todos os pais fundadores puderam
envelhecer/ Mas quando você se for, quem se lembrará de seu nome?/ Quem manterá sua chama
acesa?/ Quem contará sua estória?” (tradução livre).
4
Neste ponto, a escolha de Lin-Manuel em como contar esta “história” explica
em grande parte o sucesso e a adesão tão massiva a um espetáculo cujo tema é a
história de um político do século 18, característica aparentemente pouco atrativa.
Isto porque, o musical é na verdade, uma ode à cultura Hip-hop sendo a maioria de
suas linhas narradas em forma de Rap. De certa maneira, tal escolha quebrou toda
a formalidade que circunda as imagens imaculadas dos ícones históricos,
aproximando-o da humanidade de sua plateia e, ao mesmo tempo, envolvendo o
público em uma linguagem extremamente vernácula.
Sem dúvida alguma, o auge desse elemento popular na peça se dá no
embate protagonizado entre Thomas Jefferson e Alexander Hamilton. O histórico
confronto que causou a cisão entre o autor da Declaração de Independência e o
então presidente George Washington, é apresentado em forma de um “Duelo de
Rap”, em duas faixas intituladas Cabinet Battle #1 e Cabinet Battle #2. Com ataques
e contra-ataques de rimas performáticas e uma claque empolgada ao fundo, temos:
de um lado do palco Hamilton, defendendo a centralização do Estado, representado
pela criação do Banco Central; do lado oposto, está Jefferson, advogando em prol
das liberdades individuais e a auto-gerência dos estados da República. Ao centro,
como um mestre de cerimônias, está Washington, mediando o confronto.
Historicamente, sabemos que Jefferson perdeu esta batalha. No espetáculo, a
vitória é atribuída ao fato de Washington ter uma predileção por Hamilton, seu
pupilo, como se vê na canção seguinte ao duelo, onde Jefferson e James Madison
cantam juntos: “It must to be nice, it must to be nice, to have Washington on your
side”7.
Outro fator que ajuda a entender a aderência da audiência ao musical está
no casting dos atores. Todos os personagens históricos são interpretados por
negros, imigrantes, homossexuais, incluindo a participação de mulheres no papel de
personagens masculinos ou participando de cenas onde, historicamente, contava-se
ter existido somente a participação de homens. Esta escolha foi também intencional
e muito bem planejada por Lin-Manuel Miranda, uma vez que a versão do Hamilton
que ele se prestou a contar era a de um “bastard, orphan, son of a whore and a/
Scotsman, dropped in the middle of a/ Forgotten spot in the Caribbean by
providence/ Impoverished, in squalor/ Grow up to be a hero and a scholar?”8.
Na visão do autor da peça, Alexander Hamilton personificaria a América atual
tornando, assim, o seu espetáculo em uma epopeia americana contemporânea,
7
“Deve ser ótimo, deve ser ótimo, ter Washington do seu lado” (tradução livre).
“Bastardo, órfão, filho de uma prostituta com um/ escocês, jogado no meio de um/ lugar esquecido por
Deus, no Caribe/ pobre, miserável/ que cresce para se tornar um herói e um estudioso?” (tradução
livre).
8
como sugere o seu título. Nesta versão da história, Hamilton seria o único “Pai
Fundador” que não pertenceria à uma elite aristocrática, dona de terras ou escravos
e que, apesar de branco, seria um imigrante, filho de um relacionamento ilegítimo.
Apesar de tudo isso, conseguiu se consagrar em um homem com tanta importância
quanto os demais. O Hamilton de Lin-Manuel Miranda daria voz a esses diversas
minorias responsáveis por dar continuidade às realizações empreendias pelos pais
fundadores na luta pelo direito à liberdade.
Esta ideia de tomar Hamilton como a personificação do caldo cultural que dá
tons mesclados aos Estados Unidos dos dias de hoje é confirmado pelo próprio
autor da peça que, em entrevista concedida ao documentário Hamilton’s America
produzido pelo canal PBS, declarou o seguinte: “vamos fazer com que os pais
fundadores tenham a aparência atual do nosso país”. Cabe destacar que ele próprio,
que também interpreta o papel principal da peça, é filho de imigrantes portoriquenhos, nascido e crescido em Nova York.
Este confronto entre o país atual e a imagem consagrada dos pais
fundadores, como homens, brancos e aristocratas, também fica bastante evidente
na maneira como é retratado o personagem de Thomas Jefferson. Apesar de ser
interpretado por um ator negro (Daveed Diggs), fato por si só bastante emblemático,
por conta de toda a questão que envolve o terceiro presidente dos EUA e a
escravidão9, este aparece retratado como uma espécie de “bon-vivant”, apreciador
da boa comida, do luxo e dos ambientes requintados; como alguém distante dos
problemas cotidianos e dos dilemas pragmáticos da Nação que então se construía.
Diante disso, Hamilton, seu antagonista clássico, ganha ainda mais os contornos de
um americano comum; um sujeito simples que faz uso de sua liberdade e persegue
sua felicidade.
Diante de seu assombroso sucesso, Hamilton: an American Musical, ainda
que de maneira não intencional, acabou produzindo uma reconstrução do
personagem histórico no imaginário nacional americano. De seu esquecimento
completo, hoje, passou a figurar como “o” pai fundador por excelência, fato que
gerou alguns efeitos ainda mais interessantes. O próprio antagonismo estabelecido
contra Jefferson é um ótimo exemplo disso. Apesar de Hamilton ter vencido a
batalha de gabinete, não há dúvidas que Jefferson foi um personagem que cravou o
seu nome na história de seu país com mais ênfase do que seu adversário. Toda a
9
A relação entre Jefferson e a escravidão é o tema mais abordado sobre a controversa e longa carreira
política de Thomas Jefferson, principalmente a partir de meados da década de 1960, quando se
começou a produzir uma revisão historiográfica a seu respeito. De um ávido defensor do fim do tráfico
de escravos, fato destacado em seus rascunhos da Declaração de Independência, Jefferson entrou
para a história como uma figura ambígua no trato deste tema, uma vez que jamais deu liberdade a
seus próprios escravos. Sobre Jefferson e escravidão ver: COHEN, 2000 e SCHWABACH, 2010.
linhagem de presidentes jeffersonianos que o sucedeu após 1808, e outras questões
da história política dos EUA, acabaram por tornar Jefferson em uma espécie de
consciência moral nação. Conforme ilustrou o historiador Gordon Wood (2006, s/p.),
“a maioria dos americanos pensam de Jefferson o mesmo que o
seu primeiro biógrafo profissional, James Parton, pensou. ‘Se
Jefferson estava errado’, escreveu Parton em 1874, ‘a América
está errada’. ‘Se a América está certa, Jefferson estava certo’”.
Não por menos, tanto Abraham Lincoln quanto Franklin Delano Roosevelt,
em momentos chaves da história estadunidense, recorreram a Jefferson em seus
discursos, em busca de inspiração para a superação de seus dilemas. Esse mesmo
sentimento foi identificado por Merrill Peterson em seu aclamado livro The
Jeffersonian Image in the American Mind, de 1960, quando, ainda no prólogo de sua
obra, o autor afirma que Jefferson é “um refletor sensível, ao longo de várias
gerações, da conturbada procura que a América faz de sua própria imagem”
(PETERSON, 1998: 3).
É bem verdade que esta interpretação sobre Jefferson passou por uma
revisão historiográfica desde a década de 1960, quando seu nome foi alvejado por
historiadores que, repercutindo o momento de tensão causado pelas manifestações
em prol dos Direitos Civis, entenderam ser incompatível os valores defendidos por
Jefferson na Declaração de Independência e a sua condição de senhor de escravos.
Tal revisão negativa da imagem do terceiro presidente dos Estados Unidos ganhou
traços ainda mais severos quando, na década de 1990, comprovou-se por meio de
exames laboratoriais, que ele não apenas teve um longo relacionamento com uma
de suas escravas, Sally Hemmings, como esta relação teria gerado filhos
(GORDON-REED, 2008).
Mesmo assim, apesar do longo cerco armado pela historiografia norteamericana em torno da figura de Jefferson, alguns autores como Joseph Ellis
(1998), um de seus principais biógrafos, acredita que sua imagem teria sobrevivido
ao crivo popular, mantendo o seu posto de guia da razão norte-americana.
Conforme defende Ellis, até mesmo o relacionamento com Sally Hemmings teria
sido relevado e entendido como uma espécie de “romance proibido”. No coração
dos americanos, portanto, Jefferson continuaria a possuir um espaço cativo.
Evidentemente, o juízo de Joseph Ellis deverá também passar por uma
revisão, tendo em vista que o terceiro presidente dos Estados Unidos parece ter
ficado ainda mais enfraquecido agora que seu rival triunfa de maneira soberana nos
principais veículos de produção cultural. Além disso, como dissemos, o próprio
Jefferson que o espetáculo apresenta, reforça a imagem arrogante e hipócrita de um
senhor de escravos que pouco tem a ver com a América dos tempos presentes10.
Por fim, o mais irônico de toda a trajetória produzida por Hamilton: an
American Musical reside no fato de que o ano de sua consagração foi o mesmo em
que Donald Trump se sagrou vitorioso na campanha eleitoral ao posto de Presidente
dos Estados Unidos. A América de Hamilton, ou ao menos aquela que nos
apresenta Lin-Manuel Miranda, é bastante diferente daquela que atraiu milhões de
eleitores a se unir ao discurso trumpista. Neste caso, a “experiência inacabada”
parece dar lugar ao “passado consagrado”. Momentos como este levantam
questionamentos em torno da relação entre a cultura e a política, fazendo com que
seja ainda mais fascinante o universo do político e suas diversas possibilidades de
análise.
Sem que promovam um duelo aberto, Hamilton e o trumpismo se enfrentam.
Um duelo velado, mas que expõe todas as rusgas e fracções de um país que
ensaiou enaltecer a sua diversidade como uma qualidade. Representação cabal
deste desconforto foi a recepção pouco amigável que Mike Pence, vice-presidente
recém eleito teve quando foi assistir ao espetáculo, no final de novembro de 201611.
Na oportunidade, após algumas vaias, o elenco acalmou a plateia e lhe dirigiu um
discurso no qual reafirmava a sua condição multicultural e esperava que, apesar
disso, o governo do qual ele faria parte os defendesse e garantisse seus “direitos
inalienáveis”.
Dentre os vários embates que Alexander Hamilton travou em sua vida, um
deles lhe custou o último sopro de sua existência. Um confronto de pistolas causou
a sua morte, tendo a Aaron Burr, um de seus mais próximos amigos, o seu algoz. O
homem que saiu da pobreza para se tornar um dos pais fundadores teve, de fato,
uma vida difícil e um final trágico. Hamilton se foi e com ele todo o seu
reconhecimento. Em sua ausência, Jefferson triunfou. Séculos depois, sua história
voltou a tona, provida de toda a roupagem e de todas as invenções típicas das
grandes tradições e das ótimas construções históricas. Seu lado implacável e pouco
conciliador deu lugar ao seu caráter destemido, de maneira a vender ao público um
herói digno de sua admiração, garantindo uma sobrevida ao mito dos “pais
fundadores” como amálgama da Nação. Dentre todas as novas concepções em
torno dele, ao menos o seu espírito combativo parece ter resistido ao tempo. Diante
de um novo duelo, apenas o tempo dirá se sua sorte continua a mesma.
10
Ver entrevista do ator Daveed Diggs que interpreta Thomas Jefferson no programa The Late Show
with Stephen Colbert: https://www.youtube.com/watch?v=l6cLX9aTjQc
11
Sobre o episódio Pence vs Hamilton, acesse: http://www.cnn.com/2016/11/20/politics/mike-pencehamilton-message-trump/
Referências
COHEN, William. Thomas Jefferson e o Problema da Escravidão. In: Estudos
Avançados n. 14 (38), 2000. p. 151-180.
ELLIS, Joseph. American Sphinx: The Character of Thomas Jefferson. First
Vintage Edition. New York: Knopf, 1998.
GORDON-REED, Annette. The Hemingses of Monticello: An American. Family.
New York: W.W. Norton & Co., 2008
PETERSON, Merrill. The Jeffersonian Image
Charlottesville: University of Virgínia Press, 1998.
in
the
American
Mind.
SCHWABACH, Aaron. Thomas Jefferson, Slavery, and Slaves. In Thomas
Jefferson Law Review, Vol. 33:1, 2010, p. 1 – 60.
WOOD, Gordon. Revolutionary Characters: What Made the Founders Different.
New York: Penguin Press, 2006 (versão Kindle).