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RES - PUBLICA Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais 2007, 5/6 pp. 195 - 207 Entre Estado e Autoridades Tradicionais em Moçambique: Velhas Aporias ou Novas Possibilidades Políticas? Vitor Alexandre Lourenço * Resumo O actual panorama político em Moçambique é bastante complexo: contudo, predominantemente baseado num aparato político moderno, o Estado também tenta incluir as Autoridades Tradicionais sob a sua tutela, de modo a procurar uma forma de beneficiar de ambas as legitimações políticas que são «modernas» e «tradicionais». Palavras-chave: Estado; Autoridades Tradicionais; Moçambique; Frelimo; Renamo. Abstract The actual political landscape in Mozambique is rather complex: however predominantly based on a modern political apparatus, the State also tries to include the Traditional Authorities under its umbrella, thus seeking to benefit both from “modern” and “traditional” political legitimization. Key-words: State; Traditional Authorities; Mozambique; Frelimo; Renamo. * I.S.C.T.E. 195 Vitor Alexandre Lourenço Introdução Nos recentes debates políticos desenvolvidos em Moçambique tem sido prestada muita atenção às instituições políticas «tradicionais»2. Nos círculos governamentais, as discussões sobre o futuro e, necessariamente, sobre o passado das chefaturas têm tido lugar sob a égide do MAE3. Irae Lundin tomou a «liderança intelectual» desses debates, tendo produzido uma gama de trabalhos e actuando, desde 1991, como coordenadora do projecto Autoridade e Poder Tradicional (Lundin & Machava, 1995). O trabalho de Irae Lundin é pioneiro, contrariando alguns fundamentos centrais da propaganda e ideologia da Frelimo4. A autora, argumenta que a «cultura rural» não é o obscurantismo reaccionário que figura na doutrina político-ideológica da Frelimo, e que os chefes tradicionais não são simplesmente colaboradores disfarçados do colonialismo e desacreditados aos olhos da população rural. Pelo contrário, a chefatura e instituições políticas com ela relacionadas foram (e são) um importante factor de coesão e identidade sociocultural, legitimando a autoridade e regulando as relações das populações com o meio-ambiente.5 Outras análises mencionaram alguns desses pressupostos. Com efeito, académicos, como Christian Geffray, salientaram a força e a elasticidade das instituições e normas políticas, sociais e culturais rurais, constituídas sobretudo no quadro da linhagem e da chefatura. A urgência dessas interpretações residiu em grande parte na leitura segundo a qual as políticas da Frelimo relativamente aos chefes tradicionais e ao «obscurantismo», em paralelo com a política das aldeias comunais, facilitaram o alastramento da Renamo. Irae Lundin assevera que tais políticas transformaram uma «aquiescência quase total à Frelimo» num «clima de desconfiança»: quaisquer que tenham sido as suas origens, a Renamo «capitalizou a partir de um descontentamento interno» (Lundin, 1992). Christian Geffray considerou o Estado moçambicano do pós- 196 independência como uma força autoritária, alienígena (e profundamente alienadora), e incapaz de compreender os costumes socioculturais dos seus «constituintes» rurais. A guerra da Renamo foi expressa como uma oportunidade de recuperar «o direito básico ao livre exercício da vida social», aqui interpretado como um reassumir da cultura e instituições rurais «tradicionais» contra as políticas «modernizadoras» da Frelimo (Geffray, 1990). De dentro do Governo (e de alguns sectores da Frelimo) têm vindo a surgir apelos para a reinstalação dos chefes tradicionais com base numa capacidade sociopolítica ainda pouco definida. Neste sentido, Irae Lundin defende que é legítimo «o exercício de autoridade/poder» por parte dos chefes tradicionais, aos olhos das suas populações rurais (Lundin, 1992). Os chefes tradicionais «estão prontos a regressar para reassumir um papel que sempre foi seu» (Lundin, 1992)6. Estes pontos de vista, em conjunto, por um lado, com o recurso por parte da Renamo ao préstimo e/ou manipulação das chefaturas durante o período de «guerra civil», e por outro, com as dinâmicas endógenas e exógenas do actual quadro político, militaram recentemente a favor de um crescente papel social, político, económico e jurídico dos chefes tradicionais na representação, administração e intermediação e outros aspectos da vida rural de Moçambique. Entre Estado e Autoridades Tradicionais em Moçambique: velhas aporias ou novas possibilidades políticas? No período imediatamente a seguir à independência de Moçambique, a estruturação social e política do partido-Estado Frelimo era, para a generalidade dos moçambicanos das zonas rurais, inseparável da anterior política da Frelimo, relativamente aos chefes tradicionais em algumas «zonas libertadas». Por outras palavras, na linguagem da administração colonial portuguesa, tal significaria que os chefes tradicionais seriam utilizados como RES - PUBLICA Entre Estado e Autoridades Tradicionais em Moçambique intermediários administrativos «indígenas» (West, 1998; Dias & Dias, 1970). Todavia, após o decurso de uma década de «aliança» na guerrilha para expulsar os portugueses, a liderança da Frelimo a partir de 1977 veio a retratar os chefes tradicionais como oportunistas corruptos, que haviam lucrado com o seu papel de cobradores de impostos, recrutadores de mão-de-obra e agentes de policiamento local na estrutura colonial portuguesa. Para além disto, a Frelimo havia testemunhado igualmente, em alguns casos, a colaboração destes agentes políticos nas campanhas de contra-revolta das Forças Armadas Portuguesas (West, 1997). No final da guerra de libertação, a Frelimo estabeleceu como objectivo não só a independência de Moçambique do Governo colonial português, mas similarmente a «transformação total da sociedade moçambicana» (Abrahamsson & Nilson, 1994). Essa reorganização visava impossibilitar o estabelecimento de sistemas políticos e/ou económicos neocoloniais de governação e exploração, na sequência da saída dos europeus, sustentados por intermediários de poder tradicionais. Após a independência, a Frelimo edificou a hierarquia político-administrativa do partido-Estado, proscrevendo explicitamente os «comprometidos» de quaisquer posições de responsabilidades políticas (Monteiro, 1989; Sachs & Welch, 1990). Para mais, a Frelimo rotulou todas as instituições políticas e sociais que baseavam a sua reprodução social na(s) lógica(s) do parentesco e asseguravam os lugares da autoridade política pela sucessão hereditária, como «feudais», «obscurantistas» e «retrógradas». No entanto, alguns anos mais tarde, em Junho de 1995, ao regressar de uma visita à remota província de Niassa quase vinte anos depois da independência, o presidente Joaquim Chissano proferiu palavras que, à luz da história do partido-Estado Frelimo, devem ter parecido estranhas para aqueles que o estavam a ouvir «nós queremos que a autoridade tradicional exista» (O Notícias, 22 de Junho 1995)7. No que diz respeito à Frelimo, as Autoridades Tradicionais deixaram de existir no momento imediato após a Artigos e Ensaios independência de Moçambique, se não mesmo antes, excepção feita a algumas «zonas libertadas» do controle colonial, pela guerrilha durante a guerra de libertação. Todavia, ocorreram mudanças operadas por dinâmicas conjunturais exógenas e endógenas no panorama social, político e económico moçambicano desde esse momento histórico, fazendo com que as estratégicas palavras proferidas por Joaquim Chissano parecessem não só possíveis, mas também necessárias. Com efeito, três décadas depois da independência, os Moçambicanos voltam a pronunciar-se sobre Autoridades Tradicionais8. As considerações para tal são multíplices. Em primeiro lugar, importa referir que, apesar da retórica e da prática hostis da Frelimo, aquilo que o partido-Estado rotulava de «autoridade tradicional» nunca deixou completamente de existir no mundo rural, quer após a independência de Moçambique, quer mesmo durante os anos em que a Frelimo implementou com sucesso relativo, o seu programa de «modernização socialista». Os quadros locais da Frelimo, mais letrados que os chefes tradicionais, comprovaram ser modestamente bem sucedidos como auxiliares dos programas sociais do partido – a expansão da educação rural, a construção de uma rede de cuidados de saúde a nível rural, o fornecimento de água potável às aldeias rurais, etc. – demonstrando, contudo, serem relativamente inaptos em assuntos de conhecimento e gestão do mundo rural. A visão revolucionária, mas por vezes ambígua, da Frelimo para um Moçambique socialista deixava estes jovens líderes comunitários – a trabalhar numa localidade que não era a sua e cheios, por vezes, de pretensões «laterais» ao projecto político da Frelimo – mal preparados para enfrentar as complexidades de governar comunidades rurais9. Os agentes políticos locais da Frelimo não manifestavam empenho, ou conhecimento para lidar com algumas «particularidades» das comunidades rurais, porém, os chefes tradicionais – quer fossem «comprometidos» ou não – eram, normalmente, mais sensíveis a estas questões e mais «competentes» para lidar com elas. 197 Vitor Alexandre Lourenço As políticas da Frelimo faziam com que os agentes locais discordassem, de um modo geral, das crenças e práticas inerentes aos seus cargos, em assuntos tão diversos, mas fundamentais para a vida rural, como, por exemplo, o casamento, o divórcio, questões de herança, resolução de conflitos, a encenação de rituais de iniciação, de chuva, a súplica aos antepassados e o controle da feitiçaria (Lundin, 1995). No entanto, alguns dos próprios elementos da Frelimo procuravam o conselho e a cooperação dos chefes tradicionais locais – incluindo, por vezes, aqueles que haviam suplantado –, mas outros mantinham-se mais obstinados. Quando tinham oportunidade, os residentes rurais iam ter com os chefes tradicionais, em busca de conselhos ou coordenação social, e encontravam-nos mais compreensivos, relativamente às subtilezas das relações sociais dentro da comunidade rural, do que as estruturas políticas governamentais. Em segundo lugar, o começo da «guerra civil», nas localidades rurais de Moçambique apenas dois anos após a independência, fez com que, cada vez mais, as comunidades rurais se afastassem do Estado e, consequentemente, das instituições e projectos políticos da Frelimo. Treinados e aprovisionados pelas forças de segurança da Rodésia e, mais tarde, da África do Sul, os operacionais da Renamo iniciaram uma campanha de terror e desestabilização com pouco mais do que a sabotagem e o saque arbitrários como estratégia político-militar. Todavia, depressa descobriram que os outrora respeitados chefes tradicionais, das comunidades rurais espalhadas por Moçambique, estavam frequentemente dispostos a colaborar com esta «nova» revolta contra o partido-Estado da Frelimo que os tinha marginalizado, envergonhado e cometido sobre si uma série de abusos políticos e sociais (Geffray, 1990). Genericamente, à falta de uma ideologia própria, a Renamo opunha-se a tudo aquilo a que a Frelimo estava a favor, bem como a favor de tudo aquilo a que a Frelimo se opunha (Alexander, 1995). Discordar da Frelimo significava, entre outros aspectos, um 198 regresso a um passado histórico no qual os chefes tradicionais eram respeitados, obedecidos e integrados na respectiva estrutura de autoridade política. Em terceiro lugar, com o fim da Guerra Fria (que tinha servido de contexto internacional para as hostilidades entre a Frelimo e a Renamo), e à medida que as ONG e as instituições de doadores internacionais (FMI e BM) foram ganhando influência política nos assuntos internos de Moçambique, a perspectiva através da qual a «guerra civil» tinha sido interpretada até então sofreu uma revisão substancial. De facto, segundo Christian Geffray, a visão da guerra por parte da comunidade internacional passou de uma guerra de agressão estrangeira, para uma «guerra civil», na medida em que a Renamo detinha uma base social de apoio e era recebida entusiasticamente por algumas populações rurais descontentes, «coordenadas» pelos chefes tradicionais (Geffray, 1990). Este argumento começou a ganhar aceitação entre os múltiplos expatriados políticos. Muitos dos intermediários do cessar-fogo, entre os combatentes, acabaram por acreditar que não só eram necessárias eleições multipartidárias para equilibrar as forças político-militares em conflito e fazer com que estas parecessem mais responsáveis perante a população, mas também, que era preciso estender o direito de voto a nível local, onde o Estado tinha recentemente causado tanta antipatia política. Assim, foi elaborada uma agenda ambiciosa de descentralização democrática de acordo com os objectivos políticos estratégicos da maior parte das instituições internacionais a trabalhar em Moçambique. A maioria dos que participaram neste debate concordou que tal reforma política iria cicatrizar os males provocados por um Estado da Frelimo altamente centralizado e criar, entre outros objectivos, espaço político para as Autoridades Tradicionais, no Governo a nível local. A dedicação dos vários doadores a esta agenda política foi ainda superior quando a Frelimo mostrou intenção de partilhar o poder com membros da oposição após a vitória eleitoral daquela, nas presidenciais e RES - PUBLICA Entre Estado e Autoridades Tradicionais em Moçambique legislativas, de 1994. A generalidade dos doadores internacionais argumentava que uma vez que a Frelimo estava disposta a nomear membros da Renamo para ministros do Governo, ou até mesmo como governadores de província onde a oposição gozava de apoio social substancial, então os cargos políticos de nível hierárquico inferior deveriam igualmente ser sujeitos ao voto. Finalmente, não obstante a linha dura da Frelimo no que diz respeito à partilha de poder, muitos dentro do partido e do próprio Governo formado após a vitória eleitoral, tornaram-se cada vez mais conscientes da importância que vozes políticas influentes poderiam ter dentro das comunidades rurais em Moçambique. Nos anos que antecederam os Acordos de Paz de Roma de 4 de Outubro de 1992 (Vines & Wilson, 1995), e com o forte encorajamento da comunidade internacional, a Frelimo reformou a constituição moçambicana para permitir a formação de partidos políticos da oposição e para fortalecer os direitos humanos mais básicos, incluindo o direito à expressão política10. Por todo o país, as pessoas que antes tinham receio de ser declaradas «inimigos do povo», começaram a manifestar os seus pontos de vista sobre o período pós-independência e os actuais problemas sociais, económicos e políticos de Moçambique. Entre estes, incluíam-se muitos daqueles agentes classificados como Autoridades Tradicionais. À medida que os Moçambicanos se volviam para as eleições asseguradas pelos acordos de 1992, os agentes políticos da Frelimo não tardaram em reconhecer o poder de influência no voto que estes agentes sociopolíticos poderiam ter nas suas áreas de residência. Nos meses que antecederam as eleições, o presidente Joaquim Chissano iria encontrar-se com grupos de ex-régulos em algumas das dez províncias moçambicanas. Com efeito, até mesmo antes do final da «guerra civil», o Governo da Frelimo pareceu sensibilizado para a questão das Autoridades Tradicionais. Em 1991, o Governo consentiu acolher um projecto de pesquisa, financiado pela Fundação Ford, sobre a Artigos e Ensaios questão das Autoridades Tradicionais, dentro das próprias instalações do MAE (MAE, 1996). Semanas antes das eleições de 1994, o Governo aprovou legislação que assegurava a devolução de responsabilidades políticas – um conjunto de funções governamentais – aos «municípios» a formar nos distritos urbanos e/ou rurais11. Esta lei estabelecia claramente que os Governos municipais iriam «ouvir as opiniões e sugestões das Autoridades Tradicionais reconhecidas como tal pelas comunidades», mesmo que se tenha deixado por especificar como é que tais agentes sociopolíticos seriam identificados, e se a natureza da sua opinião seria vinculativa ou meramente consultiva12. As iniciativas do Governo da Frelimo não se ficaram por aqui. A continuação da pesquisa, bem como a formação de recomendações políticas sobre estas componentes ainda por resolver, foram sancionadas pelo Governo quando a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA ofereceu mais fundos ao MAE sob a forma de um projecto de «Desenvolvimento Democrático em Moçambique», a ser dirigido pelo Instituto Afro-Americano. Os investigadores da componente do projecto que dizia respeito à «Descentralização/Autoridade Tradicional» percorreram o país em 1995 e 1996, fazendo workshops com as Autoridades Tradicionais, agentes políticos estatais locais e representantes da «sociedade civil», em oito das dez províncias moçambicanas. Estes workshops tinham por objectivo facilitar a discussão sobre como é que as Autoridades Tradicionais poderiam ser claramente identificadas pelas comunidades rurais e pelos agentes do Estado, quais as suas funções, estatuto, direitos e deveres, no fundo, e decorrentemente, definir o modo como o seu mandato social poderia ser mais respeitado e seguro. Na prática, as reuniões funcionaram como um fórum encorajador para as exigências das anteriores autoridades gentílicas para serem mais «reconhecidas», para terem salários do Estado, para terem bicicletas (que facilitavam as suas deslocações), uniformes, e uma autoridade clara para 199 Vitor Alexandre Lourenço disciplinar os criminosos, delinquentes, aqueles que fugiam aos impostos e aqueles que não produziam. De acordo com o ponto de vista das Autoridades Tradicionais, este tipo de delinquência apareceu quando estas foram dispensadas das suas funções sociopolíticas no período pós-independência (MAE, 1996; Fry, 1997). O projecto DAT13 preparou uma série de cinco brochuras sobre a «autoridade tradicional», com o objectivo de instruir os funcionários de Estado locais acerca do papel da «autoridade tradicional» na história sociocultural moçambicana (MAE, 1996). Quando o director de pesquisa do projecto DAT começou a delinear propostas para a reforma legislativa e política, o Ministro da Administração Estatal prometeu, em 1995, que o presidente da República iria efectuar em breve uma proclamação pública sobre o papel da «autoridade tradicional» no período do pós-guerra, em Moçambique. De acordo com esta perspectiva, Francisco Manchava14 afirmou em 1995 que «o Governo cometeu um grave erro quando extinguiu a autoridade tradicional logo após a independência, e hoje, ao reconhecer este erro, está disposto a aceitar o regresso do poder tradicional» (O Notícias, 23 de Dezembro de 1995). Porém, contrariamente, o deputado da Frelimo Sérgio Vieira pôs de lado esta hipótese, considerando que as contribuições feitas a este propósito, por investigadores estrangeiros, eram objectivamente uma «demanda exótica». Sérgio Vieira reiterou a sua posição, que era partilhada por muitos dos seus camaradas da Frelimo e do Governo, onde defende que o colonialismo português destruiu as instituições políticas moçambicanas preexistentes, tendo-as substituído por autoridades administrativas, que sendo ou não herdeiras legítimas, ganharam e mantiveram as suas incumbências sociais apenas através da obediência servil aos senhores coloniais (O Domingo, 27 de Outubro de 1996). Nesta medida, constatamos que as expectativas das Autoridades Tradicionais não foram cumpridas, assim como não se verificou a reaproximação 200 completa entre estas Autoridades Tradicionais e a Frelimo, ou até mesmo o actual Governo. No seguimento dos workshops do projecto DAT, os agentes locais do Estado mostraram uma preocupação pertinente acerca da viabilidade política do restabelecimento das Autoridades Tradicionais nas zonas rurais de Moçambique, enquanto que em Maputo a Frelimo e os líderes do Governo mostravam reservas quanto ao clamor levantado pela questão. Em Abril de 1997 o projecto DAT pretendia apresentar as suas conclusões e recomendações ao público nacional na capital do país, Maputo. Em vez disso, o projecto DAT foi forçado a fazer a sua conferência final na relativamente «deslocalizada» capital da província de Inhambane. Sendo capaz de asseverar em 1995 que «queria que a autoridade tradicional existisse», o presidente Joaquim Chissano não conseguiu certificar em 1996 ou 1997 que ela de facto existia e que lhe seriam concedidos poderes de acção político-administrativa a nível local (O Domingo, 11 de Dezembro de 1996). Porque é que o Governo da Frelimo retrocedeu no reconhecimento da «autoridade tradicional»? Porque é que o presidente Joaquim Chissano não pôde proferir as «palavras mágicas» que foram prometidas pelo seu próprio ministro da Administração Estatal? Nós iríamos mencionar que há uma lógica autoreprodutora neste assunto que fez com que a reaproximação política fosse inconcebível para a liderança da Frelimo. Com efeito, dentro do contexto do Estado multipartidário moçambicano do pósguerra, aqueles que foram identificados como Autoridades Tradicionais – quer pelo Estado, quer pela Frelimo, ou pela Renamo – tinham a tendência, em termos teóricos e genéricos, para associar-se mais facilmente à Renamo do que à Frelimo. Tal facto é muito natural, uma vez que a Frelimo, por um lado, ameaçava deveras as Autoridades Tradicionais e, por outro, tentava eliminar a sua influência política na sociedade rural moçambicana um pouco por todo o país. Pelo contrário, e de um modo geral, a Renamo reconhecia abertamente as Autoridades Tradicionais RES - PUBLICA Entre Estado e Autoridades Tradicionais em Moçambique e até as «integrou» politicamente para governar as populações rurais nas áreas geográficas das quais detinha o controle durante a «guerra civil». Nas localidades em que a Renamo não controlava nem o território, nem as populações rurais, não poderia ter estabelecido relações de «integração» política com as Autoridades Tradicionais. Mesmo nestas localidades, estas Autoridades Tradicionais eram, tendencialmente, mais receptivas à narrativa ideológica da Renamo do que à da Frelimo na campanha eleitoral de 1994. A Renamo que, até recentemente, era um exército de guerrilha sem uma rede de quadros políticos letrados, procurou militantes onde os podia encontrar; na maior parte dos casos, as Autoridades Tradicionais desempenharam bem essa atribuição política. Contrariamente, a Frelimo, embora conhecendo o valor político desses agentes políticos e relutante pela possibilidade de cultivar alianças, era da opinião de que este método de ganhar eleitorado era arriscado e inauspicioso. As próprias concessões que o Governo da Frelimo seria obrigado a fazer, para melhorar as suas relações com as Autoridades Tradicionais, iriam infundir mais poder a estes agentes políticos que, ainda recentemente, estavam na oposição político-partidária. Na opinião de muitos moçambicanos, as Autoridade Tradicionais estavam tão estreitamente ligadas à Renamo como a própria Frelimo está ligada ao Estado. Embora possa parecer tautológico, a conotação explícita das Autoridades Tradicionais com a Renamo reforça a sua associação com a oposição, e, nesta medida, podem ser igualmente interpretadas enquanto força política de bloqueio a operar na oposição partidária. Tal facto confirma de novo a visão estereotipada de agentes «obscurantistas» de isolamento e a relutância que a Frelimo (ainda) tem das Autoridades Tradicionais, como elementos que se mantêm à margem do Estado «moderno» e da sua agenda de desenvolvimento político, jurídico, económico e social (Lundin & Machava, 1995). Com efeito, apenas um ano e meio após a sua aprovação, a Lei dos Municípios de 1994 foi Artigos e Ensaios revogada15. Em Junho de 1997 foi aprovada um novo diploma legal que mandatava a devolução de poderes políticos aos Governos locais (autarquias)16. Estes seriam eleitos apenas nas cidades e áreas urbanas nos distritos rurais. Este facto pretendia assegurar que os agentes políticos locais tivessem um papel de conselheiros sobre os assuntos locais, e que os administradores distritais eleitos em Maputo continuassem a ter a palavra final nos assuntos relativos às áreas rurais do país. Ainda assim, a Renamo considerou que o levantar da questão da «autoridade tradicional» na praça pública era um modo eficaz de consolidar o seu apoio eleitoral nas áreas rurais. Os líderes da Frelimo chegaram à conclusão de que seria melhor se não fossem considerados inimigos declarados da «autoridade tradicional», embora também não fossem vistos como seus aliados. Os agentes políticos do Governo de todo o país acabaram por achar que era politicamente vantajoso dialogar «de vez em quando» com as Autoridades Tradicionais (O Notícias, 5 de Setembro de 1996). As ONG, tanto nacionais como internacionais, fizeram com que o trabalho das Autoridades Tradicionais fosse considerado parte integrante dos projectos sociais e/ ou humanitários, que precisavam de apoio popular a nível local. Ainda assim, está por se ver qual o tipo de «autoridade tradicional» que estará a ser «imaginado» em Moçambique (Anderson, 1991). A ideia de que a Renamo tem de Autoridades Tradicionais corresponde, geralmente, ao desejo manifestado pelas autoridades gentílicas de reaverem as suas antigas posições sociais - os workshops do projecto DAT de 1995-1996 deram-lhes esta esperança política. As antigas autoridades gentílicas imaginam-se como agentes cuja legitimidade política deriva, «tal como no passado», não de uma vitória eleitoral, mas de uma herança sucessória - ideia que foi entusiasticamente defendida pelo projecto DAT na sua produção escrita e nas suas apresentações públicas. Ao mesmo tempo, estas autoridades gentílicas imaginam-se como funcionários do Governo que, por si sós, representam 201 Vitor Alexandre Lourenço o poder do Estado nas suas áreas rurais de influência. Ambicionavam ter, uma vez mais, uniformes e salários de Estado, não só para «motivá-los nas suas tarefas», mas também para consolidar o «respeito» e o estatuto que lhes era devido (O Notícias, 23 de Outubro de 1996)17. Prevêem, ainda, que serão mandatados para cobrar impostos, «mobilizar» a mão-de-obra local, fazer o policiamento das populações, resolver conflitos, criar e manter uma nova ordem social. Todas estas funções não são apenas aquelas que desempenhavam no período colonial, mas também as que os órgãos locais da Frelimo viriam a desempenhar no período pós-independência ( Jornal de Notícias, 23 de Junho de 1997). Para a maior parte dos defensores do «regresso da autoridade tradicional», os outros representantes do Estado – leia-se «do Estado da Frelimo»– devem ser afastados dos cargos políticos a serem ocupados, por sua vez, pela «autoridade tradicional» (West, 1997). Independentemente dos riscos políticos, alguns agentes de Estado locais começaram a imaginar a «autoridade tradicional» como um prolongamento (administrativo) do Estado. Em Agosto de 1997, o parlamento moçambicano aprovou uma nova lei da terra, explicitando que as «comunidades locais» deveriam ser autorizadas a ser titulares colectivos das terras, e que deveriam ser consultadas acerca das concessões de terra nas suas áreas de residência18. A Renamo «imagina» que a comunidade local não é mais do que uma «autoridade tradicional» juntamente com as pessoas sob a sua jurisdição, enquanto que a Frelimo ainda tem de articular uma visão política alternativa sobre a questão. Mesmo assim, a maior parte dos agentes de Estado, particularmente a nível local, afastaram-se de qualquer noção de reconhecimento formal das Autoridades Tradicionais, sentindo que se o fizessem não só iriam colocar estes agentes políticos na sua posição familiar de intermediários, mas também iriam envolver o Estado no processo de mediação das suas exigências e/ou pretensões de legitimidade. 202 Todavia, ainda que negando para o exterior do partido e do Governo, a Frelimo continuou atenta à importância social e política que as Autoridades Tradicionais mostravam ter junto das comunidades rurais de Moçambique. Assim, ainda em 1997, o presidente do partido Frelimo e chefe de Governo, Joaquim Chissano, dialogou com os chefes tradicionais, em vários pontos do país, sublinhando a necessidade de um aprofundado e mais harmonioso relacionamento entre o Governo e as Autoridades Tradicionais (O Notícias, 22 de Janeiro de 1997). Por sua vez, o chefe do Executivo moçambicano, Pascoal Mocumbi, reunido com os chefes tradicionais de Dombe, informou-lhes que o Governo estava a efectuar estudos com vista ao relacionamento daquele com os líderes tradicionais, manifestando o que foi considerado uma grande satisfação por parte do Governo «o Governo está muito satisfeito por ver que os régulos, com as autoridades administrativas, têm tido um bom relacionamento, têm tido uma boa colaboração para manter a paz e estabilidade aqui em Dombe» (Jornal de Notícias, 18 de Junho de 1997). O envolvimento das «instituições tradicionais» neste processo foi inclusive matéria de análise na Assembleia da República. Hélder Muteia, deputado pela Frelimo, assim se pronunciou sobre a questão «a autoridade tradicional é um conceito que tem de ser estudado e sobre o qual deverá haver pronunciamento cauteloso, dado o facto de que o país tem uma experiência que certa classe de chefes tradicionais, chamados régulos, foram instrumentalizados pelo Governo colonial» (Jornal de Notícias, 27 de Julho de 1997). Neste mesmo ano de 1997, o governador da província de Tete, Virgílio Ferrão, num encontro realizado nos distritos de Macanga e Chiúta, reafirmou o envolvimento dos líderes tradicionais. Referindo-se à sua utilidade social, particularmente para o combate às queimadas, sublinhou que «eles têm domínio e poder de controle nas comunidades» (Jornal de Notícias, 9 de Outubro de 1997). RES - PUBLICA Entre Estado e Autoridades Tradicionais em Moçambique Estes depoimentos de distintas individualidades do Estado e do partido Frelimo parecem ter criado enormes expectativas sociais e políticas aos chefes tradicionais e ex-régulos, comunidades rurais, partidos políticos e «sociedade civil» em geral. De facto, a explanação definitiva, de forma mais clara e profunda, aguardava os resultados dos estudos que estavam a ser efectuados «para que se evitasse um relacionamento do tipo colonial, entre a Autoridade Tradicional e a estrutura estadual de um Moçambique livre e independente. Esta atitude está enquadrada no reconhecimento de que a verdadeira autoridade tradicional constitui o baluarte do nosso rico universo cultural, de que o país se orgulha» (Frelimo, 1999). O documento final da 1ª Sessão Extraordinária do Comité Central da Frelimo reitera, assim, a necessidade de valorização das Autoridades Tradicionais e dos Grupos Dinamizadores, enquanto alicerces da organização administrativa das comunidades rurais ao nível da base. Deste modo, a atitude do partido Frelimo e do seu Governo em relação às Autoridades Tradicionais foi sofrendo alterações, com uma posição muito menos radical daquela que era manifestada no período pós-independência, e menos céptica que nos últimos anos, na medida em que começava-se a esboçar a aceitação deste tipo de autoridade política, embora não houvesse ainda um enquadramento jurídico para as Autoridades Tradicionais dentro da hierarquia e organização político-administrativa do Estado moçambicano. Neste sentido, ainda que não sem algumas reservas, por parte de alguns sectores do partido, numa reflexão sobre as modalidades de relacionamento entre o Estado e as Autoridades Tradicionais, elaborada pelo Comité Central da Frelimo, em 1999, discutiam-se dois pontos principais a saber: por um lado, estratégias para elevação da dignidade própria das Autoridades Tradicionais, por outro, reconhecimento do contributo dos Grupos Dinamizadores na organização da vida das comunidades rurais em vários domínios, como o social, o económico, o político e o cultural, ambos os pontos Artigos e Ensaios sob a égide do lema «em Moçambique há lugar para todos» (Frelimo, 1999). Neste documento, a estratégia política da Frelimo relativamente às Autoridades Tradicionais assentava em dois objectivos principais. O primeiro, menos imediato mas não menos importante, pretendia elevar a legitimidade popular do partido Frelimo, através da redução de focos de descontentamento social, pelo estabelecimento de um melhor relacionamento com as Autoridade Tradicionais, na medida em que «se constatou que a autoridade tradicional tem, em algumas regiões do país, certa influência na orientação da vida das comunidades e que, por isso, procura recuperar algum espaço político» (Frelimo, 1999). No entender do Comité Central da Frelimo «estas atitudes têm motivações endógenas, isto é, da própria autoridade tradicional, mas acima de tudo, existem motivações exógenas, ou seja, de algumas forças políticas, que pretendem entrincheirar-se nela e colher dividendos políticos, sobretudo nas próximas eleições, previstas este ano» (Frelimo, 1999). Nesta medida, o segundo objectivo, de natureza mais imediata, visava contornar as manobras ou estratégias de algumas forças políticas da oposição (leia-se Renamo) em relação às eleições gerais, previstas para 1999 (alguns meses depois). Isto é, de acordo com constatações feitas pela Frelimo no terreno «existem algumas correntes políticas que pretendem instrumentalizar, à semelhança do que aconteceu no período colonial, os régulos descontentes, porque o seu poder não é legitimado pelas comunidades. O partido Frelimo reconhecendo o papel que a Autoridade Tradicional exerceu na educação cívica das massas, quando a campanha eleitoral de 1994, reitera a sua posição, para que de forma cautelosa, mais uma vez, os líderes tradicionais não se deixem desviar do seu papel histórico de defensores dos interesses do povo moçambicano, sob o perigo de serem arrastados para situações semelhantes ao período colonial» (Frelimo, 1999). Como podemos constatar, no 203 Vitor Alexandre Lourenço imediato, a natureza das preocupações político-estratégicas da Frelimo não era tanto a «autoridade tradicional» em si, mas sobretudo, a «autoridade tradicional» enquanto instrumento de mobilização eleitoral «agenciada» pela Renamo, para as eleições gerais desse ano. Apesar da leitura explícita deste pressuposto, o Comité Central da Frelimo, na tentativa de dissimular o seu oportunismo táctico, referia que «esta reflexão não visa responder somente a situações políticas pontuais (eleições de 1999), mas, e sobretudo, também enriquecer as qualidades do partido Frelimo, de instituição com capacidade de se adaptar aos fenómenos de modernidade e democracia» (Frelimo, 1999). Não obstante os progressos feitos até então, as Autoridades Tradicionais ainda não tinham qualquer forma de enquadramento legal do seu estatuto e funções por parte do Estado. Embora houvesse, como vimos, por parte da Frelimo e do Governo suportado pelo mesmo partido, uma maior abertura em relação a estes agentes políticos - na medida em que, como vimos, era «funesto» politicamente alienar segmentos da população, devido à competição partidária pela conquista do poder de Estado - não havia ainda uma estratégia concretamente definida de reconhecimento formal do seu papel no futuro político de Moçambique. No caso específico do relacionamento do Estado com as Autoridades Tradicionais, Moçambique mantinha-se (e ainda se mantém), tal como muitos outros países africanos, com uma ambivalência governativa, sem que fosse definido explicitamente o que pertencia ao domínio «tradicional» e ao «moderno», e com sérias dificuldades em enquadrar estes dois tipos de realidade, principalmente a nível político (Lourenço, 2005). No entanto, em 2000, após a realização das eleições gerais em Moçambique - onde refira-se que, apesar da vitória eleitoral da Frelimo, a disputa entre as principais forças partidárias foi bastante equilibrada, em parte devido ao papel das Autoridades Tradicionais nalguns distritos, quer a favor da Frelimo, quer a favor da Renamo - o novo Governo da Frelimo, 204 cada vez mais consciente do estatuto e reconhecimento que as Autoridades Tradicionais usufruíam junto das comunidades rurais, e no sentido de minimizar a referida ambivalência política existente em Moçambique, apresenta através do MAE, o Regulamento do Decreto-Lei nº15 de 20 de Junho de 2000, o qual é aprovado pelo Conselho de Ministros, e posteriormente publicado no Boletim da República de Moçambique. A promulgação deste diploma, inseria-se no âmbito do processo de descentralização administrativa, valorização da organização social das comunidades locais e aperfeiçoamento das condições da sua participação na administração pública para o desenvolvimento socioeconómico e cultural de Moçambique, e para tal, tornava-se necessário estabelecer as formas de articulação política e/ou administrativa dos órgãos locais do Estado com as autoridades comunitárias. Para os efeitos do presente Decreto-Lei são autoridades comunitárias os chefes tradicionais, os secretários de bairro ou aldeia e outros líderes legitimados como tais pelas respectivas comunidades locais. No desempenho das suas funções administrativas, os órgãos locais do Estado deverão articular com as autoridades comunitárias, auscultando opiniões sobre a melhor maneira de mobilizar e organizar a participação das comunidades locais, na concepção e implementação de programas e planos económicos, sociais e culturais, em prol do desenvolvimento local (Lourenço, 2005). Em síntese, como se pode constatar, do ponto de vista do Estado, o reconhecimento de jure pode-se considerar histórico; do ponto de vista das Autoridades Tradicionais, a ambiguidade é princípio, e o reconhecimento de facto um caminho ainda a percorrer. Conclusão Em Moçambique, apesar da negação formal da organização sociocultural específica das sociedades rurais, nas «zonas libertadas», a Frelimo reconhecia, RES - PUBLICA Entre Estado e Autoridades Tradicionais em Moçambique no entanto, o prestígio das Autoridades Tradicionais junto das suas populações rurais, aceitava de certa maneira os fundamentos da sua dominação política, bem como a sua reconhecida legitimidade, admitindo, deste modo, a sua participação na nova definição e organização do jogo político local. Ao contrário, depois da independência, e, sobretudo, após o III Congresso que se realizou em 1977, e onde a Frelimo se definiu e constituiu como um «partido de vanguarda», adoptando para o efeito as referências ideológicas do «marxismo-leninismo», a sua política em relação à participação dos agentes políticos tradicionais, no jogo político das áreas rurais de Moçambique, radicalizou-se consideravelmente (Vieira, 1983; Cravinho, 1995)19. Deste modo, a institucionalizada tentativa dos agentes políticos estatais de uniformizar e moldar o sistema sociopolítico real, através do estranho exercício de tomar pela realidade o seu próprio discurso ideológico – que aliás, conjuntamente com outros factores, levou ao eclodir de uma «guerra civil», que opôs a Frelimo à Renamo – levou à obliteração dos canais de comunicação política, por um lado, de uma parte significativa da população rural, e, por outro, dos agentes políticos tradicionais com o partido-Estado Frelimo (Lourenço, 2004). Especificamente, esta crise política – que corresponde a uma crise de legitimidade da Frelimo – traduz o reconhecimento implícito de que a homogeneização do jogo político nas áreas rurais, não tinha feito desaparecer, para a sua população, a posição social e a legitimidade política do chefe tradicional - enquanto portador de conhecimentos sobre as tradições locais e enquanto gestor das relações políticas estabelecidas no seio dessas comunidades rurais - para disputar a aquisição do monopólio da violência simbólica legítima. Assim, pela objectiva e, cada vez mais, reconhecida sub-representação política estatal a nível local, e em virtude de inúmeras pressões internas e externas, o partido-Estado Frelimo, no final da década de 80, um pouco por todo o país, começou a esboçar Artigos e Ensaios uma abertura do jogo político à competição e, consequentemente, à sua reconfiguração. Com efeito, o primeiro esboço desta reconfiguração política tornou-se possível sobretudo depois das mudanças do Vº Congresso em 1989, após o qual a Frelimo autorizou uma nova Constituição Nacional. No entanto, e apesar das promissoras alterações e do retrato fidedigno que a Frelimo dispunha acerca da enraizada posição e legitimidade dos agentes políticos tradicionais, nas áreas rurais, a reconfiguração do jogo político ainda não passava daquilo que efectivamente era no início da década de 90: uma estratégia político-partidária em definição. De facto, e não obstante, por um lado, a referência explícita assumida no VI Congresso da Frelimo, em 1991, no sentido da valorização da gestão sociocultural que as Autoridades Tradicionais exerciam junto das comunidades rurais, e por outro, a multiplicidade de diplomas político-jurídicos20 que o poder formal legislou nos anos seguintes, no sentido de uma institucionalizada abertura do jogo político aos vários agentes – tradicionais ou não – o reconhecimento, de jure e de facto, aconteceria anos mais tarde, no âmbito do processo da descentralização administrativa, com o quanto a nós, tácito DecretoLei nº15/200021. Este Decreto-Lei remete a acção, intermediação, estatuto e funções sócio-políticas das Autoridades Tradicionais, para a difusa noção de autoridades comunitárias22, que do nosso ponto de vista, nada mais é do que remeter a instituição política tradicional para uma construção jurídicoadministrativa já efectivada pelo Estado colonial português: a regedoria administrativa (Lourenço, 2004). Notas 1 Investigador do CEA do ISCTE e Membro da Direcção do CISE Neste texto, recorre-se à utilização das designações de Autoridades Tradicionais, chefes tradicionais, régulos e autoridades gentílicas, que são, no entanto, revestidas com o mesmo sentido político, social e cultural. 3 Ministério da Administração Estatal 4 As perspectivas de Irae Lundin foram em certa medida prefiguradas por posições de alguns funcionários superiores da FRELIMO, 2 205 Vitor Alexandre Lourenço como por exemplo, o antigo ministro da cultura, Bernardo Honwana. Foram igualmente consideradas e moldadas pelas atitudes e práticas de funcionários distritais e provinciais do MAE. 5 Veja-se, por exemplo, o caso dos Changanas que estão organizados em grupos de parentes que descendem por via patrilinear e são patrilocais, unindo-se em torno de um mesmo antepassado-deus, o qual veneram. O xibongo constitui uma referência obrigatória para a identidade destes grupos. Estes vão-se encaixando em unidades sucessivamente mais vastas, através da dinâmica do parentesco, apresentando-se os membros do muti como membros de uma rede comunitária. 6 Outros participantes de conferências do MAE expressaram posições idênticas de forma ainda mais categórica. Porém, existe ainda no seio do Governo uma oposição substancial ao reconhecimento oficial dos chefes tradicionais. Por exemplo, alguns funcionários que participaram na Conferência do Instituto Superior de Relações Internacionais sobre “Moçambique no Pós-Guerra: Desafios e Realidades“, realizada em Maputo de 14 a 18 de Dezembro de 1992, argumentavam que o reconhecimento das chefaturas equivaleria à “recolonização” das áreas rurais.7 Ver também: Jornal Notícias, Administração Conjunta Vai Vigorar no País”, Maputo, 21 de Junho de 1995. 8 Os debates actuais têm por objectivo principal decidir se as instituições políticas tradicionais podem, ou não, ser consideradas expressões “legítimas” de uma comunidade política inserida no contexto de descentralização democrática. 9 Por exemplo, a afirmação algo pretensiosa por parte da FRELIMO de que toda a terra pertencia ao povo através do Estado (Lei da Terra, 1979) não tinha grande significado para as comunidades de pequenos agricultores, que necessitavam de saber qual o lote de terreno que iriam cultivar. De um modo geral, a terra continuava a ser ocupada segundo a lógica de princípios de aquisição e herança baseados no grau de parentesco. 10 Refira-se, no entanto, que esta nova Constituição Nacional só iria surgir no ano seguinte (1990). De entre as várias mudanças ocorridas, destaca-se o carácter liberal desta, abolindo os traços ideológicos do “marxismo-leninismo” bem como, a institucionalização da separação dos poderes legislativo, executivo e judicial, e ainda, a proclamação do respeito pelos direitos humanos, e a garantia da liberdade de os cidadãos nacionais se associarem em diferentes partidos ou associações políticas, o que possibilitou a abertura do caminho para o multipartidarismo. 11 Governo de Moçambique, Lei dos Municípios, nº 3/94, 1994. 12 Artigo 8.2 da referida Lei. 13 Projecto “Descentralização/Autoridade Tradicional” 14 Director Nacional do Núcleo de Desenvolvimento Administrativo do MAE. 15 Governo de Moçambique, Lei dos Municípios, nº 3/94, 1994. 16 Assembleia da República, Lei sobre as Autarquias Locais, nº 2/97, 1997. 17 Refira-se que em muitas áreas geográficas a aceitação das Autoridades Tradicionais na gestão sócio-política das comunidades não é de todo pacífica. Ver: Jornal de Notícias, “Régulos acusados de molestar populações” Maputo, 16 de Julho de 1997; Jornal de Notícias, “Régulos em Homoíne acusados de desobedecerem autoridade”, Maputo, 18 de Julho de 1997. 18 Assembleia da República, Revisão da Lei de Terras, 1997. 206 19 É de salientar que a partir do III Congresso, no qual se assistiu à vitória dos “político-militares marxistas”, os chefes tradicionais das chefaturas locais eram considerados como simples “lacaios” ou “fantoches” do poder colonial português. Na generalidade dos casos, os portugueses tinham-nos colocado como chefes de unidades administrativas sob a designação de régulos ou cabosde-terra. Dado o seu comprometimento e a servilidade em relação ao inimigo colonial que lhes eram atribuídos, não podiam candidatar-se a deputados das Assembleias do Povo, nem exercer qualquer responsabilidade política, administrativa ou judicial. 20 Lei da Descentralização. 21 Boletim da República, I Série, Número 24, Terça-Feira, 20 de Junho de 2000. 22 Para os efeitos do presente Decreto-Lei, são autoridades comunitárias: os chefes tradicionais, os secretários de bairro ou aldeia e outros líderes legitimados como tais pelas respectivas comunidades locais. Bibliografia Livros e Revistas ABRAHAMSSON, H., NILSSON, A. (1994), Moçambique em Transição - Um Estudo da História de Desenvolvimento durante o Período 1974-1992, Maputo, PADRIGU/CEEI-ISRI. ALEXANDER, J. (1995), Political Change in Manica Province: Implications for the Descentralization of Power, Maputo, Friederich Ebert Foundation. ANDERSON, B. 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