Objeto, memória e afeto: uma reflexão
Object, memory and affection: a reflection
Enviado em: 12/04/2017
Aceito em: 03/06/2017
NERY, Olivia Silva1
Resumo:
Sejam objetos banais ou relíquias, eles podem
desempenhar papéis importantes na construção da
identidade, personalidade, e com vínculos memoriais dos
sujeitos. Possuem a capacidade de serem evocadores
memoriais e narradores de histórias. Nesse sentido, esse
ensaio apresenta uma reflexão sobre o poder memorial e
afetivo que alguns objetos possuem na vida dos
indivíduos. Nesse caso, apresentamos aqui os objetos
que pertenceram a Lyuba Duprat (1900-1994), que
lecionou durante décadas a língua francesa na cidade do
Rio Grande, Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: Objetos, memória, afeto.
Abstract:
Whether they be everyday objects or historical relics,
objects can play important roles in the creation of people’s
identities, personalities, and memories. Objects possess
the capacity to evoke memories and narrate the past. It is
in this spirit that this essay reflects on the affective and
memorial power that certain objects hold in the lives of
individuals. In this particular case, we examine objects
belonging to Lyuba Duprat (1900-1994), a woman who
imparted French language instruction in the southern
Brazilian city of Rio Grande – RS for many decades.
Keywords: Objects, memory, affection
1
Historiadora, Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPEL); Doutoranda em História pela
PUCRS, bolsista CAPES.
Revista Memória em Rede, Pelotas, v.10, n.17, Jul./Dez.2017 ISSN- 2177-4129
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“[...] esse objeto vale o ar”
(Clarice Lispector, 1999)
1. Conhecendo os objetos e seus cenários
Ao observarmos nosso entorno podemos perceber que estamos cercados por
inúmeros objetos, como assim já observou Abraham Moles (1972) e Jean Baudrillard
(1972) ao questionarem a necessidade de criarmos um inventário para que
pudéssemos organizar e entender os objetos que nos cercam. Assim, os objetos
vinculados aos indivíduos podem dizer muito sobre eles, tanto aqueles que estão mais
próximos do corpo, a exemplo daqueles que compõem a indumentária e a vestimenta,
quanto os que ficam escondidos em gavetas, em caixas ou expostos nas estantes
domésticas. Esses objetos que são guardados e preservados pelo seu dono, aos
poucos podem vir a adquirir um valor sensível e uma importância simbólica tanto para
ele próprio quanto para os outros indivíduos, que por ventura estiverem na sua
presença, principalmente para as pessoas mais próximas.
Nesse sentido, esse ensaio expõe os resultados parciais da pesquisa de
mestrado que abordou a relação dos objetos com a memória, os indivíduos, e os
aspectos simbólicos e imateriais que permeiam o universo da materialidade.
Buscamos nos aproximar da proposta trazida pelo autor francês Thierry Bonnot (2014)
quando afirma que as Ciências Humanas e Sociais devem passar de um estudo sobre
objetos como formas de um saber sobre os homens na sociedade, para um estudo
historicamente situado nos objetos, sua relação com os homens e sua influência nos
indivíduos (BONNOT, 2014).
Os objetos estudados pertenceram à professora de francês Lyuba Duprat (Rio
Grande, 1900-1994) que lecionou mais de 70 anos a língua francesa na cidade do Rio
Grande, extremo sul do Rio Grande do Sul, e atualmente estão salvaguardados em
instituições memoriais – como o Museu da Cidade do Rio Grande (MCRG) e a Salle
de Documenation Lyuba Duprat da Universidade Federal do Rio Grande – FURG - ou
nas residências de amigos e ex-alunos da professora.
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Assim,
o
trabalho,
baseado
em
entrevistas
orais,
proporcionou
um
entendimento mais aprofundado sobre as pontes de memória que os objetos dessa
professora despertavam em seus ex-alunos, formando uma rede de memórias,
esquecimentos e narrativas a partir dos vestígios de Lyuba. Inicialmente foram
estudados aqueles que fazem parte do acervo das instituições supracitadas,
entretanto, os objetos que estavam guardados nas casas de entes queridos da
professora, mostraram-se, eventualmente, mais importantes e simbólicos para os
entrevistados do que os do Museu e da Salle.
Tal resultado nos motivou a buscar o que havia “por trás” desses objetos,
entender o que eles representavam para seus guardiões e o que os diferenciava
daqueles musealizados. Esse acompanhamento da trajetória de alguns vestígios que
estavam deslocados das instituições memoriais, desvendou uma rede de afeto e de
emoção relacionados aos objetos que estavam na casa dos ex-alunos entrevistados.
O que observamos foi a existência de uma forte relação de afeto e emoção com esses
vestígios. Eles eram objetos afetivos, conforme o conceito apresentado por Véronique
Dassié, sob os quais existe um cuidado, um valor patrimonial atribuído, são âncoras
memoriais que conectam memórias e identidades dos sujeitos e suas famílias
(DASSIÉ, 2010). A narrativa, o olhar, o cuidado no momento do toque e do uso desses
objetos que pertenceram a Lyuba Duprat eram latentes: não se tratavam de meros
objetos.
Alguns deles foram passados ainda em vida por Lyuba Duprat, em forma de
presente, outros no momento do inventário. Esses objetos, mesmo que de maneiras
diferentes, apresentaram uma carga simbólica e afetiva dentro de sua nova moradia,
as casas dos seguintes ex-alunos: Nubia Hanciau, Flavio Hanciau, e Ricardo Soler.
Começamos pelo espaço mais íntimo e que é detentor de uma quantidade de
símbolos e significados muito grande – a casa. O espaço da casa é um universo
individual, íntimo e familiar, que abarca toda a complexidade da relação entre público e
privado. A maneira como os espaços e os cômodos são distribuídos, a forma como os
objetos estão expostos (ou não) e a seleção de quem entra na casa e em cada
cômodo faz com que o espaço doméstico seja carregado de complexidade e ao
mesmo tempo seja uma extensão da vida, da cultura e da posição do indivíduo na
sociedade.
Para Bachelard “a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde,
o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda acepção do
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termo” (1993, p. 24). A casa é composta não só por paredes, telhados e pinturas, é
composta por móveis e objetos de várias categorias. Ao entrar na própria casa, o
indivíduo entra realmente em outro universo, em um espaço onde reproduz o seu
estilo de vida, os seus sonhos, desejos, medos, memórias e esquecimentos.
Ao entrar na casa de outra pessoa percebemos a disposição das coisas dentro
do espaço, o tamanho dos cômodos, a presença ou não de fotografias, objetos
decorativos e demais materiais que compõem o cenário doméstico. Os cômodos mais
íntimos são espaços mais secretos, onde o acesso não é tão permitido e utilizado
como os outros. Dentro do quarto é que estão os objetos mais íntimos, os maiores
segredos. A partir da reflexão de Bachelard (1993) e de Bernardes (2010), a casa é o
espaço aonde se guardam as memórias, as relíquias, os segredos e os
esquecimentos. Ao fazer o simples exercício de fechar os olhos e se imaginar
entrando na sua própria casa ou na casa de algum familiar, várias coisas são
lembradas e outras esquecidas.
Bachelard afirma que “é graças à casa que um grande número de nossas
lembranças estão guardadas; e quando a casa tem um porão, um sótão, cantos e
corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados”
(BACHELARD, 1993, p. 28). Dessa maneira, lembramos principalmente das casas em
que se viveu e daquelas de pessoas próximas, as de familiares, por exemplo.
A casa e todas as suas composições, significados e memórias mostram um
universo particular onde poucos, e somente aqueles que os donos desejam, têm
acesso. Para Joana Bernardes (2010), a casa pode contar a história do seu habitante,
assim como as coisas que estão dentro dela. Sendo assim, é possível compreender
um pouco mais a vida de alguém a partir do entendimento desse espaço e também do
cenário que o compõe (os objetos). Afinal, a casa é onde o indivíduo pode ser ele
mesmo, é o seu “canto”, onde não há tanta preocupação com o olhar dos outros.
Sobre isso, Ecléa Bosi traz a seguinte reflexão:
[...] o espaço que ela vivencia, como o dos primitivos, é mítico, heterogêneo,
habitado por influências mágicas. A mesa da família possui um lado onde é
bom comer, o lado fasto ode senta-se mamãe e é agradável estar; no lado de
lá, o retrato do tio-avô que me olha fixo, às vezes feroz, torna o lado nefasto
onde eu recuso comida e choramingo. Tudo é tão penetrado de artefatos,
móveis, cantos, portas e desvãos, que mudar é perder uma parte de si
mesmo; é deixar para trás lembranças que precisam desse ambiente para
reviver. (BOSI, 1994, p. 436)
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O autor Rafael Iglesia afirma que dentro do espaço privado, cada móvel e cada
canto da casa é investido de uma função e também de uma dignidade simbólica. Para
ele, todos os seres e objetos estão conectados dentro da casa, eles são cúmplices do
cotidiano familiar e dos seus hábitos e carregam um valor afetivo que é marcado por
sua presença (IGLESIA, 2011). Ferreira afirma que “[..] são, portanto, as narrativas
pessoais que dão aos objetos dilacerados pelo tempo, [...] o sentido de patrimônio”
(FERREIRA, 2008, p. 37). Assim, essa relação afetiva que temos com aquilo que é
visto como patrimonial é mediada, segundo a autora, pelas narrativas pessoais que
envolvem sua materialidade.
Dentro das residências dos entrevistados alguns objetos apresentam funções
híbridas: são utilizados em suas funções normais, fazem parte da rotina casa e estão
misturados com os outros utensílios domésticos, ao mesmo tempo em que são vistos
como relíquias. Já outros são apenas expostos, relembrando uma espécie de altar de
homenagem; ou, ainda, são guardados em locais seguros, fora do olhar da maioria.
Gonçalves advoga que mesmo que os objetos continuem funcionando para aquilo que
foram fabricados, alguns acabam adquirindo uma função mágico-simbólica e religiosa.
“Não são, desse modo, meros objetos” (GONÇALVES, 2005, p. 18), possuem uma
personalidade que está diretamente relacionada com a personalidade de seu
proprietário, conceito que pode ser associado ao de “extended-self”, desenvolvido por
Ulpiano Bezerra de Meneses (1998), o qual demonstra que os objetos podem ser
vistos enquanto extensões de seus proprietários.
Durante a visita à casa dos entrevistados, cada objeto pertencente à Lyuba
Duprat mostrado por eles trazia consigo muitas histórias. Eles contavam um pouco
sobre a vida e utilidade das peças quando pertenciam à professora Lyuba e agora, aos
seus cuidados. O ato de contar as histórias e funções dos objetos feito por seus
proprietários é destacada como importante para Véronique Dassié pois, a história dos
objetos e suas trajetórias devem ser reconstituídas a partir dos testemunhos de seus
guardiões (DASSIÉ, 2010).
2. Cada objeto uma memória, uma história, uma emoção.
O primeiro objeto analisado dentro do contexto doméstico do casal Flavio e
Nubia Hanciau é uma chapeleira (Figura 1) que acompanha outros objetos que
pertenciam à professora:um porta-retrato com uma fotografia de Lyuba Duprat, dois
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moedeiros e, no local onde se guardam as bengalas, a bengala que pertencia ao pai
de Lyuba, Augusto Duprat.
Figura 1
Chapeleira de Lyuba Duprat, 2014. Fonte: Foto da Autora, 2014. Objetos pertencentes
ao Sr. Flavio e Sra. Nubia Hanciau
Ao falar do móvel e dos objetos nele colocados, Flavio Hanciau rememora:
[...] no final da vida ela me presenteou. É interessante, porque depois que eu
me casei ela me oferecia sempre a bengala do pai, e o chapeleiro. Eu sempre
dizia que gostava, mas que não queria nada dela, apenas a companhia, a
alegria. Então numa tarde ela disse: “Você vai levar, hoje você vai levar, é
importante que tu leves”, e naquela madrugada ela faleceu. Parecia que ela
pressentiu que algo ia ocorrer. A bengala eu guardo aqui na minha casa, com
o chapeleiro, com o porta-moedas. Porque ela pegava uma moedinha de dez
centavos e dava para a pessoa que passava na casa dela, que era sempre
agraciada com uma moedinha, e até nisso ela tinha uma atitude interessante,
porque ela se preparava para cada momento, para as pessoas que
2
chegavam na casa dela .
2
Entrevista de Flavio Hanciau em 12 de janeiro de 2015. Rio Grande, RS.
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Dessa forma, através das lembranças do senhor Flavio, verificamos a
importância que esses objetos têm na vida dos entrevistados e a representatividade
que possuem no espaço doméstico do casal. Levando em consideração a localização
destes objetos, a seleção, a disposição, a organização do conjunto, e o valor a eles
atribuído, eles são representativos de uma homenagem à Lyuba na casa de Flavio e
Nubia Hanciau, principalmente pelos elementos que o compõem: a foto, a bengala, o
quadro em francês e os objetos em sua posição original.
O significado destes objetos nos conduz à reflexão acerca da sua
imaterialidade, sua possível “alma”. O antropólogo Marcel Mauss revela, em sua obra
Sociologia e Antropologia, como um grupo de indígenas das regiões da Polinésia
realizava uma forma de troca e contrato envolvendo objetos, mas também serviços,
festas, banquetes, etc. (MAUSS, 2003). Ao observar essa troca de “presentes”, que
inicialmente parecia ser voluntária, o autor percebeu que esses presentes tinham um
hau. O hau é o espírito das coisas, não só dos objetos, mas também das florestas e
animais. O que se aproxima dessa pesquisa, basicamente, é a questão espiritual e
simbólica que os indivíduos atribuem aos objetos – essa transmissão de dons, esse
vínculo criado pela troca, é também um vínculo de almas, “pois a própria coisa tem
uma alma, é uma alma. De onde resulta que apresentar alguma coisa a alguém é
apresentar algo de si” (MAUSS, 2003, p. 200).
Assim, presentear o outro com algum objeto que foi seu é dar um pouco de si
para a pessoa, é doar-se junto com a materialidade. Ele passa a ser representativo do
seu doador e também do receptor; assim, “aceitar alguma coisa de alguém é aceitar
algo de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria rigorosa
e mortal, pois […] essas coisas vem da pessoa, não apenas moralmente, mas física e
espiritualmente”(MAUSS, 2003, p. 200). Essa reflexão pode ser associado aos objetos
recebidos pelos ex-alunos de Lyuba Duprat são também formas de representação da
própria professora, são partes dela e, por isso, recebem conservação e atenção
especial.
A alma das coisas também foi estudada por José Reginaldo Gonçalves, que,
na apresentação do seu livro Alma das coisas, sugere que apesar de termos muitos
objetos em nossas vidas, nossa sociedade desaprendeu a falar a língua deles. Para
ele, “é provável que a alma das coisas ainda nos afete secretamente” (GONÇALVES,
2013, p. 8).
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[...]enquanto portadoras de uma “alma”, de um “espírito”, as coisas não
existem isoladamente, como se fossem entidades autônomas; elas existem
efetivamente como parte de uma vasta e complexa rede de relações sociais e
cósmicas, nas quais desempenham funções mediadoras fundamentais entre
a natureza e cultura, deuses e seres humanos, mortos e vivos, passado e
presente, cosmos e sociedade, corpo e alma, etc. (MAUSS, 2003, p. 200) .
As ideias de Gonçalves parecem corroborar as apresentadas pelos autores
Flavio Silveira e Manuel Lima Filho, pois para eles os objetos fazem parte de um
universo criado por nós, ao atribuirmos valores simbólicos a eles, recebem uma aura,
uma fonte de comunicação que fala sobre quem somos, nosso lugar no mundo. Eles
também são “vias de comunicação relacionadas a determinadas experiências
culturais” (SILVEIRA e LIMA FILHO, 2005, p. 38). São exatamente esses diversos
sentidos que os objetos possuem que lhes permitem a capacidade de evocar
memórias “e experimentar a tensão entre esquecimentos e lembranças, a partir do
contato com a materialidade da coisa e os sentidos possíveis que ela encerra consigo”
(SILVEIRA e LIMA FILHO, 2005, p. 38).
Os objetos podem ser mais especiais para algumas pessoas do que para
outras. Aquelas que se sentem fascinadas pelo universo material e por sua biografia,
veem nas coisas mais do que matéria. Clarice Lispector dá um exemplo disso em seu
livro Um Sopro de Vida, o qual narra sobre a vida de um escritor e a relação
complicada que ele tem com seu alterego, Ângela. Os dois, o escritor e Ângela, estão
escrevendo um livro, ela decide escrever sobre as coisas: “nem sei como começar. Só
sei que vou falar no mundo das coisas. Eu juro que a coisa tem aura” (LISPECTOR,
1999, p. 103). Ângela refere-se a tudo que é concreto, material, mas também às
palavras, e o que “concretiza-se”. Em seu livro ela conta sobre a sua relação com
armários, bules, relógios, carro, etc. Cada um com uma aura, um papel, ela dá vida e
personalidade àquilo que parece imóvel, humaniza o objeto solitário: “[...] mas o
broche é sério. É um argumento. Lança-se no ar como uma mulher-gazela. Ele
prende, ele pesa, ele espera. E quando é desfechado—tudo fica nu, caem os panos e
os seios brancos parecem róseos. O broche é um ponto final” (LISPECTOR, 1999, p.
103).
A obra literária de Clarice Lispector mostra com delicadeza a imaterialidade dos
objetos. Dá a dimensão de como são importantes para a construção da identidade, da
vida de cada indivíduo. Ao falar da aura que as coisas possuem, e ao defini-las,
escreve:
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[...] o que se chama de "coisa" é a condensação sólida e visível de uma parte
de sua aura. A aura da coisa é diferente da aura da pessoa. A aura desta flui
e reflui, se omite e se apresenta, se adoça ou se encoleriza em púrpura,
explode e se implode. Enquanto a aura da coisa é igual a si mesma o tempo
todo. A aura qualifica as coisas. [...] De agora em diante estudarei a profunda
natureza morta dos objetos vistos com delicada superficialidade, e proposital,
porque se não fosse superficial se afundaria em passado e futuro da coisa.
(LISPECTOR, 1999, p. 105).
Talvez seja então a aura das coisas que os qualifiquem como diferentes e
importantes dentro de um contexto. Podem ser representações dos sujeitos e, além
disso, da alma das pessoas e de todos que, de alguma forma, possuem com elas
conexões. Entretanto, conforme nos relembra Thierry Bonnot (2014), os objetos não
nascem com tais funções e significados, são atribuídos durante sua trajetória de vida
social e sua relação com os sujeitos.
O segundo objeto analisado é o conjunto de licoreiro (Figura 2), também
pertence ao casal Hanciau,e, segundo os entrevistados, Lyuba Duprat utilizava para
servir vinho do porto para seus alunos e visitas.
Figura 2
Licoreiro e cálices de cristal, sem data. Foto da Autora, 2014. Objeto pertencente ao
Sr. Flavio e Sra. Nubia Hanciau
Ele fica agora na sala principal da casa, mas nem sempre está exposto ao
olhar de quem por ali passa, às vezes está guardado para preservar sua integridade
material. Ao mostrá-lo, Nubia relembra sobre o ritual feito por Lyuba ao recepcionar
seus convidados.O casal possui alguns copos e taças de cristal que pertenciam à
professora acomodados em uma cristaleira. Segundo ela, são pouco utilizados a fim
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de conservá-los, pois são muito delicados e importantes para o casal. A preservação
dos objetos está diretamente relacionada a uma função memorial e identitária que
esses vestígios têm em relação aos seus proprietários:
[...] o carinho, caminho para ser considerado como a alma do objeto, se torna
a razão para a sua conservação e assume a memória do que é suposto ser
preenchido. Então, esses são "objetos de afeto" na medida em que os
sentimentos são o princípio do compromisso mostrado a eles e parece
impossível para os seus titulares de se separar deles (DASSIÉ, 2009, p.2010
– tradução livre da autora).
São, acima de tudo, objetos afetivos que carregam em sua materialidade um
universo de imaterialidades, de lembranças, histórias, narrativas, identidades e
esquecimentos. Assim, a maioria dos objetos que hoje estão nos espaços domésticos
analisados, mostraram-se representativos de um vínculo vivo com a professora Lyuba.
O terceiro objeto é um pequeno vaso de pedra sabão com cachos de uva em
vidro (Figura 3), localizado na mesa de centro da sala do casal, mas antes, segundo
os entrevistados, fazia parte da decoração da sala onde Lyuba Duprat ministrava suas
aulas. Segundo Nubia, seria quase impossível encontrar um aluno da professora que
não lembrasse desse objeto, demonstrando sua importância no cenário em que a
Lyuba vivia e lecionava.
Figura 3
Objeto decorativo, uvas em vidro, 2014. Fonte: Foto da Autora, 2014. Objeto
pertencente ao Sr. Flavio e Sra. Nubia Hanciau
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A senhora Regina Carmem, outra ex-aluna entrevistada durante a pesquisa de
Mestrado, se emocionou ao visualizar a fotografia acima, disse ter sentido uma forte
emoção em rever o objeto, como se trouxesse tudo à tona em sua memória3. Sobre
esse objeto, o senhor Flavio Hanciau, reforçou que os cachos de uva foram um
presente seu e de seu pai para Lyuba Duprat, como lembrança de uma viagem que
ambos fizeram para Ouro Preto.
As histórias contadas sobre os objetos acabaram transferindo discursos e
sentimentos para sua materialidade. Eles adquiriram valor memorial e patrimonial
dentro das casas e famílias e são, geralmente, insubstituíveis, não são abandonados,
apenas passados de geração para geração ou entregues às pessoas que são muito
próximas à família. Seu valor simbólico, memorial e também espiritual (BOSI, 1994).
Pela atitude dos entrevistados, é possível dizer que os objetos mostrados
anteriormente são vistos como relíquias e patrimônios da família e da casa, que
provavelmente ficarão nesse cenário por muito tempo. Outro objeto que pode ser
encontrado na residência de Flavio e Nubia Hanciau é o porta-salgados, ele é
relembrado por Nubia como um utensílio muito usado por Lyuba, e que mostra o seu
hábito de receber bem os seus convidados. Segundo os entrevistados, ela servia, em
algumas datas especiais, salgados ainda quentes no recipiente acima. Segundo
Nubia, devido a sua qualidade material, às vezes também é usado por eles como um
objeto híbrido que, conforme dito anteriormente, é aquele que é utilizado de acordo
com sua função original, quando às vezes é deslocado ou recebe um caráter simbólico
diferenciado. O fato de alguns objetos serem utilizados de acordo com sua função
original não retira a importância simbólica atrelada a eles, mas sim, de alguma
maneira, acaba incluindo outras. E o uso diário dos objetos, segundo Bachelard, criam
vínculos entre presente e passado:
[…] os objetos assim acariciados nascem realmente de uma luz íntima;
chegam a um nível de realidade mais elevado que os objetos indiferentes,
que os objetos definidos pela realidade geométrica. Propagam uma nova
realidade de ser. Assumem não somente o seu lugar numa ordem, mas uma
comunhão de ordem. Entre um objeto e outro, no aposento, os cuidados
domésticos tecem vínculos que unem um passado muito antigo ao dia novo.
A arrumadeira desperta os móveis adormecidos (BACHELARD, 1993, p. 80)
3
Regina Carmem Dolci. Rio Grande/RS. 18 de dezembro de 2014. Entrevista concedida à Olivia Silva
Nery.
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Assim como o casal Hanciau, o ex-aluno Ricardo Soler possui, em sua
residência, diversos móveis que pertenceram à sua professora de francês. Alguns
foram remodelados e restaurados, mas compõem junto com outros objetos o espaço
da sala e escritório do entrevistado. Segundo Ricardo, ela mantinha a mesma
disposição que é mantida por ele até hoje. Em visita a sua casa, Ricardo contou que
nas ocasiões em que recebe visitantes que conheceram à professora Lyuba ou que se
interessam pelo mobiliário, ele conta um pouco da história desses móveis e objetos,
fazendo referência à sua antiga proprietária. Assim, não se trata de um móvel com
objetos quaisquer, mas de um conjunto de elementos que agregados são formadores
de um aparato simbólico e memorial, e, de certa maneira, uma homenagem à
professora na residência dos ex-alunos.
Entretanto, nem todos os objetos que eram de Lyuba estão expostos ao olhar
do público, alguns são mais íntimos, pois apenas as pessoas selecionadas podem vêlos. Eles possuem um lugar especial dentro da casa, e são guardados com maior
segurança, como pequenos tesouros. São carregados de questões simbólicas e
imateriais. Muitas vezes estes lugares são gavetas, caixas, álbuns que guardam
objetos, fotografias, documentos e tantos outros suportes que funcionam como
evocadores memoriais e identitários,
[…] o armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu
fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses
“objetos” e alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria
um modelo de intimidade. São objetos mistos, objetos-sujeitos. Têm, como
nós, por nós e para nós, uma intimidade (BACHELARD, 1993, p. 91).
O casal Flavio e Nubia Hanciau hoje salvaguardam outros objetos de Lyuba
Duprat que, diferente dos analisados até agora, não estão expostos ao olhar dos
visitantes e não são utilizados na rotina da casa. Em primeiro lugar analisaremos uma
“caixa de memória”, pois dentro dela está guardada uma diversidade de vestígios que
pertenceram à Lyuba Duprat. São vistos pela senhora Nubia como valiosos, não pelo
valor financeiro, mas pela importância que tinham na vida de Lyuba e para quem os
guarda atualmente.
O
cargo
de
guardião
desses
objetos
está
diretamente
ligado
às
responsabilidades de preservar os suportes materiais e, consequentemente, as
memórias e histórias ali presentes. Por isso há a preocupação em preservar a
integridade material, pois eles são testemunhos, são documentos e pontes físicas da
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memória da professora Lyuba. Os “guardiões da memória” seriam, segundo Jean
Kellerhals, aqueles que se encarregam da “preservação dos traços – escritos, orais,
materiais - do passado familiar” (KELLERHALS, 2002, p. 553). Eles são essenciais
para uma transmissão memorial que, no caso dos autores, é baseada principalmente
na transmissão familiar e geracional. Mesmo não sendo o caso específico trazido aqui,
com relação à Nubia, Flavio, Ricardo e os objetos de Lyuba, por não serem familiares
da professora, tratam-se de pessoas que, de certa maneira, assumiram o papel de
guardião da memória e dos materiais de Lyuba Duprat e por terem sido muito
próximos à ela, gerando um sentimento familiar por eles mesmo narrado.
Nesse sentido, os objetos encontrados na caixa preservam e contam através
da narrativa de Nubia Hanciau algumas características da professora. Talvez estes
objetos estejam guardados fora do olhar do público para respeitar e preservar sua
intimidade natural deles, pois são anotações que podemos categorizar como íntimas
da professora Duprat. Reflexões, pensamentos, ideias que ela anotava, endereços de
amigos e familiares e datas de aniversário. Estes manuscritos guardam em suas linhas
e entrelinhas uma intimidade muito maior do que aqueles objetos que estão expostos
ao olhar na sala de estar, e também não ficavam expostos na sala de Lyuba.
Nubia e Flavio tiveram o cuidado de guardar esses objetos em um lugar com a
mesma intimidade, acobertados por uma caixa onde juntos criam um contexto: a caixa
com as coisas da Lyuba. Um conjunto de figuras e folhetos sobre história da moda,
teatro e comportamento que pertenciam à professora, são testemunhos dos materiais
recolhidos e utilizados por Lyuba durante os mais de 70 anos de docência.
Um documento em especial, que faz parte desta caixa, também possui o
caráter de relíquia: trata-se do documento original expedido em 1992 pela Câmara
Municipal de Vereadores, convidando a professora Lyuba Duprat para uma cerimônia
que foi realizada para homenageá-la e parabenizá-la pelos 75 anos de atuação no
magistério. Dessa forma, lembro da reflexão de Marcus Dohmannn, o qual aborda que
mesmo que os objetos não sejam mais utilizados pela sua função prática, eles
continuam veiculando e transmitindo informações sobre os sujeitos e estamos sempre
atribuindo valores simbólicos a eles (DOHMANN, 2013).
Além do documento ainda existem outros que são objetos e manuscritos
guardados e agrupados dentro da caixa. Ela é guardada e referida com afeição pelos
seus proprietários, eé mais um local que faz parte da trajetória dos objetos e da
biografia cultural dos pertences de Lyuba Duprat. Dessa forma, alguns objetos podem
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ser utilizados como pontos de partida para narrar algo, tanto sobre a vida do narrador,
quanto de outras pessoas. Essa capacidade é explorada por Janet Hoskins (1998), a
autora demonstra como um grupo de indivíduos utiliza seus objetos mais próximos,
aqueles mais afetivos, para contar suas trajetórias de vida – são os objetos
autobiográficos.
Baseada no conceito de “objetos biográficos” de Violette Morin, Hoskins
percebeu que aqueles mais íntimos eram vistos quase como pessoas, com
características “próprias” de seus donos. Os objetos biográficos envelhecem com o
seu dono, servem como representação da passagem do tempo e, principalmente, da
sua identidade. Eles são reconhecidos com mais facilidade pelas pessoas próximas de
seus proprietários, mostram-se mais representativos para sua família e amigos
(HOSKINS, 1998). Dessa forma, muitos dos objetos de Lyuba Duprat estudados aqui
podem ser entendidos como biográficos, representativos de sua proprietária e fortes
indicadores de sua história de vida e memória. Quando repassados por ela, ainda em
vida, para seus amigos, continuaram sendo sua representação, recebendo novos
contextos e funções.
Esses objetos mencionados continuam sendo biográficos, mesmo que fora do
seu contexto de “origem”, pois são âncoras narrativas e biográficas, e, por isso, não se
desvinculam totalmente da imagem de Lyuba Duprat. Auxiliares narrativos, os objetos
tornaram-se veiculadores de histórias de vida (a de Lyuba e de seus novos guardiões)
que passam a estar interligadas não só na memória, mas na materialidade dos objetos
que foram herdados. A posição desses objetos nos seus novos lares é, como
mostrado anteriormente, também uma posição estratégica: alguns estão perto do
olhar, da rotina e do dia-a-dia das famílias dos entrevistados. Nubia Hanciau, em seu
depoimento escrito para esta pesquisa, corrobora as reflexões trazidas acima:
[…] vemos Lyuba pelos cantos da nossa casa, se restabelece um diálogo
restaurador – mesmo que duas décadas de sua morte tenham transcorrido
ano passado –, através dos objetos legados, esparsos estrategicamente aqui
e ali... Como se cada um se decompusesse em vários, um quebra-cabeça,
cada peça repleta de detalhes e de possibilidades narrativas. Eles são
pretextos para um retorno, um olhar para trás, uma volta em flashes capazes
de refazer parte importante da vida, de provocar analogias que acontecem
4
naturalmente e não podem ser evitadas .
4
HANCIAU, Nubia. Breve depoimento escrito para Olivia Nery, janeiro de 2015.
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Os objetos herdados são vistos também como uma representação da
professora em sua residência. A maioria destes objetos não é mais utilizada somente
de acordo com suas funções originais e estão envolvidos com as histórias e memórias
dos sujeitos – desde o casal Flavio e Nubia Hanciau e Ricardo Soler, como seus
familiares e amigos e, claro, Lyuba Duprat. Eles adquiriram novas funções e “[...] no
rastro das mudanças de sentido dos objetos, encontramos as ações dos sujeitos
sociais, ativos construtores de memória” (GOMES e OLIVEIRA, 2010, p. 44). Assim,
os novos proprietários dos pertences de Lyuba Duprat, constroem e fortalecem a cada
narrativa a memória da professora, principalmente a partir da perspectiva de Pomian,
quando afirma que “a linguagem permite falar dos mortos como se estivessem vivos,
dos acontecimentos passados como se fossem presentes, do longínquo como se
fosse próximo e do escondido como se fosse manifesto” (POMIAN, 1984, p. 68).
Os objetos são também testemunhos, representativos de algo ausente. No
caso dos objetos estudados aqui, são marcadores da passagem de Lyuba na vida do
casal Hanciau e de Ricardo Soler, e, de certa forma, ela permanece ali, sua memória é
representada pelos seus objetos encontrados na casa.
3. Objetos e emoção por todos os lados, aspectos conclusivos.
Ao acompanharmos a trajetória desses objetos até a casa dos entrevistados,
percebemos que, mesmo não estando em espaços abertos ao público, como museus,
eles funcionam como fortalecedores, compartilhadores de memória, história e
esquecimento. Acabaram tornando-se a materialização do afeto que sentem pela
professora Lyuba Duprat. Chegamos a essa conclusão não só na visita realizada
durante a entrevista nas duas residências, mas pensando em todos os outros diálogos
que provavelmente aconteceram sobre estes objetos, com outras pessoas, familiares
e amigos, que frequentaram a casa dos entrevistados. Assim, os objetos de Lyuba
Duprat continuam com sua vida e trajetória, seus ciclos, não restritos somente à sua
função utilitária, mas auxiliando na manutenção da memória e da personalidade da
professora.
Para concluir esse ensaio e a reflexão aqui proposta, peço licença para falar
em primeira pessoa com o leitor sobre a carga memorial e afetiva dos objetos
salvaguardados pelos guardiões apresentados aqui. Durante a entrevista na casa do
casal Hanciau, sabendo da importância daqueles objetos e de seus significados tanto
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para eles, quanto para mim enquanto pesquisadora e observadora dos fenômenos da
memória, Nubia, gentilmente, ofereceu-me um suco em uma das taças de Lyuba.
Figura 4
Taça de Lyuba Duprat em uso, 2014. Fonte: Foto da Autora, 2014. Objeto pertencente
ao Sr. Flavio e Sra. Nubia Hanciau
Tratava-se de um momento único, singular e extremamente simbólico. Naquele
momento, eu, como pesquisadora atenta à relação do casal às coisas que pertenciam
a professora, me vi no outro lado do “palco”. Aquele momento de conexão física entre
mim, a taça, e Lyuba Duprat, me afetou. Talvez, por ter fortalecido o meu vínculo com
o objeto de pesquisa, mas creio que, principalmente, pude entender com mais
profundidade o que os objetos podem representar na nossa vida e o poder que eles
têm sobre nós. Reforço tal sentimento com mais um trecho de Clarice Lispector: “[...]
comprei uma coisa pela qual perdidamente me apaixonei: o preço não importa, esse
objeto vale o ar” (LISPECTOR, 1999, p. 113). Concordando, concluo: alguns objetos,
independentemente de sua forma, valor monetário, valem a nossa vida, nosso ar.
Referências
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